Faces de Jano:

A Identidade Nacional nos Estados Novos de Salazar e Getúlio, 1933-1945

By Yi Liu

B.A., Beijing Foreign Studies University, 2003

M.A., Brown University, 2007

A Dissertation Submitted in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the Department of Portuguese and Brazilian Studies

Providence, Rhode Island

May 2009

© Copyright 2009 by Yi Liu

This dissertation by Yi Liu is accepted in its present form by the Department of Portuguese and Brazilian Studies as satisfying the dissertation requirement for the degree of Doctor of Philosophy.

Date______Onésimo T. Almeida , Advisor

Recommended to the Graduate Council

Date______Luiz F.Valente, Reader

Date______Nelson H. Vieira, Reader

Approved by the Graduate Council

Date______Sheila Bonde, Dean of the Graduate School

CURRICULUM VITAE

Yi Liu was born in Shandong, China on December 21st, 1980. He received his B.A in Portuguese Language and Culture in 2003 from Beijing Foreign Studies University and

M.A in Portuguese and Brazilian Studies from Brown University in 2007. During his study at Brown, Yi Liu published Mini Portuguese-Chinese College Dictionary and

Chinese-Portuguese Thematic Dictionary as well as several articles focused on

Portuguese and Brazilian national identity. He is the recipient of Orient Foundation

Fellowship and Luso-American Foundation for Development Fellowship.

iv

AGRADECIMENTOS

Quero dizer o meu “obrigadíssimo” a várias pessoas, e a primeira a quem devo esta profunda gratidão é ao Professor Onésimo Almeida. Ainda hoje me posso lembrar claramente daquele email enviado pelo Professor Onésimo em junho de 2003, intitulado

“Finalmente!!!” em que ele me informou que arranjara para mim a bolsa da Fundação

Oriente. Foi essa bolsa que possibilitou a minha vinda para a Brown, e entendo quantos esforços o Professor Onésimo empregou para admitir um aluno asiático numa instituição americana por meio dum apoio europeu. Sendo o meu orientador, o Professor Onésimo incentivou o meu interesse na temática identidade cultural/nacional com seus cursos

“Cultura Portuguesa e Identidade Nacional” e “National Identities and Transnational

Challenges” dos quais foi inspirada a presente tese.

Quero também destacar o meu agradecimento especial ao Professor Luiz Valente, o diretor do departamento e primeiro leitor da minha tese, e ao Professor Nelson Vieira, graduate advisor do departamento e meu segundo leitor. Recebi grandes estímulos intelectuais do Professor Luiz durante minhas conversas e consultas com ele, e os cursos

“Nation and Narration”, “Que País é Este?” e “Os Sertões”, que fiz com o Professor Luiz, são imprescindíveis e cruciais para a parte brasileira desta dissertação. Em relação ao

Professor Nelson, tive a honra de trabalhar com ele por dois anos consecutivos como seu proctor , que foi uma experiência não só academicamente rica como também profissionalmente exemplar. O seu curso “Contemporary Brazilian Fiction” que tirei no

v

meu primeiro semestre na Brown abriu largamente o meu horizonte da literatura brasileira.

Gostava ainda de agradecer à Professora Leonor Simas-Almeida cujos cursos de língua e literatura portuguesas elevaram o meu nível de português para uma nova etapa e cujo carinho me proporcionou a sensação de casa numa cidade meia-Terra longe da minha terra natal. Os cursos de histórias brasileira e portuguesa que fiz com o Professor

James Green, o Professor Jorge Flores e o Professor Stefan Halikowski-Smith são importantes para o meu portfólio de estudos luso-brasileiros, e portanto quero registrar meus agradecimentos a eles. E devo ainda sincero agradecimento ao Professor Anani

Dzidzienyo cujo curso sobre África Lusófona complementou meu conhecimento do

Mundo Luso.

Graças às fellowships concedidas pela Fundação Luso-Americana para

Desenvolvimento, consegui realizar pesquisas na Biblioteca Nacional de Portugal e no

Instituto de Arquivos Nacionais. Agradeço aqui a essas instituições pelos seus generosos apoios financeiros e hospitalidade, e ao doutor Miguel Castelo Branco da BN e à doutora

Aura Carrilho do IAN/TT por me terem oferecido grandes assistências durante minhas estadas em Lisboa.

Não acredito que esta dissertação pudesse ter sido escrita em outro ambiente intelectual e acadêmico que não o do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, e desejo dizer o quanto agradeço a todos os meus professores, colegas e amigos do departamento por me terem encorajado e inspirado nos últimos seis anos na Brown.

vi

Durante todo o tempo em que preparei os materiais de pesquisa e escrevi a presente tese, contei com o amor e apoio da minha família. A ela, quero deixar aqui registrada minha gratidão, que, por ser tão imensa e profunda, simplesmente não cabe em palavras.

Yi Liu

Brown University

vii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 1

CAPÍTULO I O FORJAMENTO DA IDENTIDADE NACIONAL

1 MEMÓRIA E IDENTIDADE ...... 15

2 ESTADO NOVO SALAZARISTA E COMUNIDADE IMAGINADA ...... 24

3 O ESTADO NOVO GETULISTA E COMUNIDADE DE CORAÇÃO ...... 36

4 CONTINUIDADE NA COMUNIDADE IMAGINADA ...... 41

5 CONSCIÊNCIA NA COMUNIDADE DE CORAÇÃO ...... 48

6 NACIONALISMO : COMBINAÇÃO DE IMAGINAÇÃO E CORAÇÃO ...... 54

CAPÍTULO II A LITERATURA COMO MISSÃO

1 A IDEOLOGIA SALAZARISTA E A LITERATURA PRÉ -NEO -REALISTA ...... 67

2 O NEO -REALISMO COMO ANTI -IDENTIDADE NACIONAL ...... 80

3 A LITERATURA DE ESPERANÇA ...... 104

CAPÍTULO III A MISSÃO COMO LITERATURA

1 BUSCA DA BRASILIDADE ANTES DO ESTADO NOVO ...... 115

2 O ESTADO NOVO E OS INTELECTUAIS COOPTADOS ...... 122

3 HOMEM CORDIAL E GETÚLIO VARGAS ...... 150

CAPÍTULO IV O IRREALISMO SALAZARISTA E O REALISMO

GETULISTA

1 HIPER -IDENTIDADE VS . SUB -IDENTIDADE ...... 168

viii

2 IDEALISMO VS . PRAGMATISMO ...... 196

CONCLUSÃO ...... 215

BIBLIOGRAFIA ...... 220

ix INTRODUÇÃO

A questão da identidade em geral é uma temática filosófica cuja existência não é para ser solucionada ou respondida com uma verdade absoluta ou resposta definitiva mas sim para estimular mais questões e dúvidas, assim formando uma avalanche-problemática crescente que envolve cada vez mais planos e estratos sociais, culturais, filosóficos e até científicos e criando-se novos valores e idéias no curso de interações e colisões entre divergentes teorias e proposições. Contudo, sendo muitas vezes conflituosas e mutuamente contraditórias, as respostas ou as tentativas de resposta oriundas de diversas disciplinas e diferentes escolas, mais frequentemente do que se julga, complicam ao invés de esclarecer a questão da identidade, apesar de que em respectivos domínios e perspectivas cada resposta tenha razão até certo ponto. Isso, porém, não vai contribuir muito para o fato de que hoje em dia ainda não se tenha consolidado uma definição inteligível e consensual de identidade. Thomas Reid até afirma que: “Se me pedem uma definição de identidade, confesso que não posso dar nenhuma; é uma noção demasiado simples para admitir uma definição lógica, mas não consigo encontrar palavras para expressar as diferenças específicas entre este e outros conceitos, embora eu não corra o perigo de confundi-lo com outro qualquer” 1.

Na sua resposta a Sheldon Hackney, presidente da National Endowment for the

Humanities, Richard Sennett, professor de Humanidades na New York University declarou que: “Mr. Hackney is the latest of a long line of Americans who have sought to counter society's fissures by discovering a national identity or national character.

1 2

These phrases, however, merely display the gentlemanly face of nationalism.” 2

Marilena Chauí também compartilha de uma opinião similar com Professor Sennett, dizendo que: “Vivemos em sociedades que se recusam a refletir sobre suas divisões originárias e que dissimulam as divisões produzindo identidades e identificações imaginárias: a lei, o Estado, o Direito, a Organização, a família, a Razão, a Ciência, e, evidentemente, o Povo e a Nação. Paradoxalmente, a sociedade histórica encontrará um meio para exorcizar a história e para fazer dela sua grande aliada, instauradora das identidades.” 3 Entretanto, delinear e explicitar a identidade em geral não são o objectivo da presente tese. Pretendo aqui é focalizar uma determinada identidade - identidade com determinados atributos, possuída por certos grupos (étnicos, linguísticos, religiosos, ou uma mixtura) e contextualizda num demarcado contorno geográfico e temporal que ao mesmo tempo se sujeita a particulares condições tanto socio-políticas como culturais, assim como as componentes principais dessa identidade entre as quais irei debruçar-me. Tal identidade alvo do meu interesse, já evidenciada no título da dissertação, é especificamente a identidade nacional que

“pode assim ser definida como uma população humana que compartilha um território histórico, mitos comuns e memórias históricas, uma massa, cultura pública, uma economia comum assim como direitos e deveres legais comuns para todos os membros.”4 Essa definição por Anthony D. Smith, porém, nos fornece somente uma lista de elementos cruciais (mas de maneira nenhuma exaustivos) para a construção da identidade nacional, sem expor o processo de construção nem especificar as funções de cada elemento. Ademais, entre esses elementos, não nos preocupam muito os

3 elementos objectivos, ou seja, os hardwares (como território, economia e até a raça), mas sim os softwares – elementos subjectivos que são sujeitos a fluctuações e manipulações constantes – ou seja, mitos, vontades, sentimentos, imaginações entre outros elementos culturais. A razão será dupla: primeiro, os hardwares são diretamente relacionados com a formação e manutenção dum país em vez do formular da identidade nacional que pode, mas não necessariamente, representar a nação duma maneira fiel; segundo, o que os hardwares fornecem é uma plataforma física onde os softwares funcionam. São os softwares que constituem a Leitkultur – uma combinação de valores nucleares, e são não somente eles próprios como também as interações que fazem a temática da identidade nacional tornar significativa. O dinamismo dos elementos culturais determina que o formular da identidade nacional não seja um simples processo de acumulação e adicionamento de constituintes identitários. É por causa da “culturalidade” desses softwares que formam a identidade nacional, que em muitos casos a identidade cultural é proposta como sinônimo da identidade nacional, daí que diversos intelectuais se têm recusado a usar o termo “identidade nacional” nos últimos decénios. O motivo será multifacetado. Por um lado, a possível implicação do nacionalismo a que a identidade nacional poderia-se referir diminuiu imensamente a sua relevância no debate intelectual internacional após a Segunda

Guerra Mundial. Além disso o desenvolvimento das ciências sociais de influência americana fermentou uma tendência académica para a análise quantitativa, e portanto a natureza qualitativa da identidade nacional é suspeita de chegar a conclusões sobre-simplificadoras e generalizadoras. Por outro lado, o termo “identidade cultural”

4 se torna popular e ecoa fortemente entre intelectuais, visto que a identidade cultural pode evitar os nexos embrulhados entre a nação e o Estado que têm perturbado países como Espanha e Irlanda. Sem se envolver em conjunturas políticas, a identidade cultural poderia basear-se numa perspectiva mais flexível e muitas vezes mais exata.

No presente trabalho, porém, as duas preocupações gerais supracitadas não causarão problemas. Antes de tudo, os nossos países-alvo sofrem poucas, senão nenhumas, pronunciadas culturas contra-nacionais dentro do país como acontece com a francesa de Quebec no Canadá. Portugal é um país quase homogêneo em termos da cultura e de idioma, e o Brasil, embora tenha umas sub-culturas em comunidades

étnicas como a alemã, a italiana e a japonesa, não possui sequelas históricas como a

Espanha e a Bélgica. Assim, no plano cultural, a identidade nacional é aproximadamente equivalente à identidade cultural. Além disso, ambos os regimes que estudamos situam-se num período precedido de intensas atividades e idéias nacionalistas. Para os Estados-Nação durante os anos 30 e 40, o nacionalismo não é visto com olhos suspeitos como hoje em dia; pelo contrário, a presença do nacionalismo é um sinal importante da formação da identidade nacional assim como um prognóstico e até prova do estabelecimento da nação (é de admitir que o

(ultra)nacionalismo tende a confundir a identidade pessoal com a nacionalidade, como ilustra a expressão “Sou alemão, logo humano”). Contudo, o presente trabalho só compara a identidade nacional com a identidade pessoal para efeitos argumentativos.

Pretendo indagar sobre o papel do Estado no processo de construção ou reconstrução da identidade nacional durante Estado Novo salazarista e na sua

5 contrapartida brasileira, analisando tanto semelhanças como desigualdades entre mecanismos aplicados por estes dois regimes e as respectivas conseqüências decorrentes das diferentes circunstâncias e estratégias. Através do exame de textos literários, históricos e sociológicos, meu intuito é formular um modelo estrutural compatível para ambos os regimes que será suplementado por textos literários no intuito de formar uma imagem panorâmica. Não obstante abundantes trabalhos relativos à temática do Estado Novo, a maioria esmagadora deles foca somente aspectos administrativos e políticos, cujos conteúdos são mais técnicos do que humanísticos. Baseada numa perspectiva identitária, podemos chegar a interpretações literárias e culturais.

A minha argumentação desenrola-se em quatro capítulos: a discussão teórica da identidade que envolve a dicotomia “comunidade imaginada” e “comunidade de coração”, a análise de literatura situacionista portuguesa e o neo-realismo, a análise do relacionamento entre a intelligentsia brasileira e o regime Vargas e a comparação de posicionamento e orientação dos dois regimes.

Sendo ambos Estados corporativistas, os dois regimes compartilham algumas características fundamentais como a harmonização artificial da sociedade, especialmente das classes sociais, e a coletivização de indivíduo (o indivíduo só é reconhecido enquanto faz parte de uma totalidade orgânica, seja ela a família, a profissão, a comunidade ou a nação). Contudo, para o Portugal salazarista, a estratégia centra-se no reviver o passado, e no resistir ao moderno. Quanto ao Brasil getulista, parece que lhe falta uma política ideológica persistente apesar da constante

6 advertência da modernização e do nacionalismo.

No primeiro capítulo, argumento que a memória é a componente essencial na constituição tanto da identidade pessoal como da nacional. A presença duma memória coletiva, quer historicamente existente quer artificialmente inventada será um sine qua non para uma comunidade imaginada. O Estado Novo salazarista desfruta exatamente da transplantação e imposição da memória coletiva na mentalidade de massa para forjar a portugalidade desejada pelas autoridades. Para o Brasil getulista a que falta uma história nacional longínqua, o regime esforça-se por construir, em contraste, uma comunidade de coração (termo de Onésimo Almeida) baseada em sentimentos, emoções e afetos populares e nacionais ao redor do chefe do Estado -

Getúlio Vargas com quem os brasileiros comuns, especialmente os trabalhadores e pobres, se podem identificar e compadecer. Contudo, uma bem-sucedida comunidade nacional tem que ser uma mistura da imaginação e coração, as quais em conjunto se podem chamar de associação. A comunidade imaginada não pode assentar meramente na imaginação, enquanto o elemento de emoção sozinho não é o único componente da comunidade coração: a primeira precisa de cultivar emoções nacionais que permeiem a mente nacional, e a última necessita de uma ideologia oficial para controlar o coração pátrio. A força que combina a imaginação e coração é o nacionalismo. Ele engendra demandas de buscar a identidade nacional cujo surgimento envolve principalmente o reconhecimento e a identificação que se dirigem à formação duma comunidade nacional de associação a qual fornece solos fecundos para nutrir mais nacionalismo.

7

No capítulo II, argumento que antes do surgimento do neo-realismo e o boom das obras neo-realistas, as literaturas que se opõem ao Estado Novo não constituem uma força significativa no sentido da coerência e eficâcia, nem estilo ou temática sistemáticos, e a vasta maioria de escritores anti-salazaristas emerge depois da terminação da Segunda Guerra Mundial. Considerado como uma continuação modificada do realismo e da Geração de 70 com uma focagem mais extensa nas camadas sociais, o neo-realismo não é “neo” no sentido de que recorre ao realismo, especialmente às ideias estruturais como retratar o homem e a sociedade em sua plenitude em vez de facetas sonhadoras e revelar a face do quotidiano e da impotência do homem comum que está cheio de problemas e limitações. Coincidentemente, também não representa nenhuma novidade o Estado Novo durante o qual surgiu o neo-realismo. Então emerge um paralelo entre o neo-realismo que não é “neo” e o

Estado Novo que é nada novo, causando a impressão de que as conjunturas política e cultural em que a geração de 70 se insere foram transferidas para o contexto do

Estado Novo, e o neo-realismo torna-se um derivativo inovador do realismo. Se o realismo é considerado como crítica literária contra a monarquia e a decadência, assim como a substituição do romantismo, o neo-realismo constitui uma luta romanesca e ficcional contra a ditadura e obscurantismo salazarista e a substituição do modernismo subnutrido e até um pouco distorcido. “Desde o prefixo que distingue a sua novidade, o neo-realismo põe em questão ou, pelo menos, relativiza a ruptura que pretende instaurar nas letras nacionais do presente século. O «neo» remete, em última instância, não para um movimento ou uma geração realista anterior, mas para todo um

8 modo particular de sentir, de conhecer e de representar o real característico de períodos históricos nos quais a arte é chamada a intervir no destino da sociedade.” 5

As obras neo-realistas com descrições detalhadas e muitas vezes de primeira-mão da vida dos operários e trabalhadores comprovam que o folclore que o Estado Novo promove é, na realidade, um “fakelore” (termo de Alan Dundes) e o popular que o regime tenta valorizar é realmente o “popularizante”, nas palavras de Irene Fialho.

Mais importante, o neo-realismo, por um lado, interpreta o que é autenticamente popular cujo significado aqui não é “bem-vindo pela massa e povo” mas sim o que é o povo e a sua vida documentando e descrevendo minuciosamente suas alegrias humildes e agonias perenes, fazendo assim emergir a genuína identidade nacional dos portugueses comuns. As obras neo-realistas que envolvem diversas áreas, camadas, regiões, em conjunto, compõem uma imagem mais panorâmica e menos imparcial da sociedade portuguesa, especialmente as partes muitas vezes e propositadamente omitidas. É certo que o neo-realismo e as obras neo-realistas não podem representar cada factor e componente da nação portuguesa naquela época e, como a identidade nacional é uma Gestalt que difere do conjunto de elementos que fazem parte dela, o neo-realismo, por si, não constitui um caminho rumo à construção duma identidade nacional totalmente nova ou separada da do salazarismo. Entretanto, ele, pelo menos, consegue expor as contradições, distorções e artificialidade na propaganda nacional do Estado Novo. É de notar que embora haja diretos apelos ao combate e à revolta em várias obras neo-realistas, os romances e ficções neo-realistas essencialmente subvertem a ideologia oficial e a identidade imposta duma maneira indireta e latente,

9 ou seja, os neo-realistas não avisam os leitores do que devem fazer, mas estimulam-nos a pensar e tomar iniciativas voluntariamente. Nas palavras de António

Ramos de Almeida, “Os neo-realistas (...) exigem uma consciência tão forte, tão viril e tão humana que seja capaz de vencer, de ultrapassar, de ser diferente a todas as propagandas, e com descrições da rotina, do dia-a-dia, da vida terra-à-terra, desmistificam os mitos e mistérios que o Estado Novo se esforça a construir para

Portugal e para os portugueses.” 6

O terceiro capítulo é desenvolvido ao longo da história literária e intelectual do

Brasil e remata no homem cordial simbolizado por Getúlio Vargas. Neste capítulo argumentarei que o forjamento da identidade nacional no Brasil desfruta-se direta ou indiretamente de apoios da intelligentsia brasileira, os quais seja pela cooptação na burocracia seja pela produção intelectual contribuíam para o projeto do governo

Vargas. Diversos intelectuais renomados trabalham como funcionários ou assistentes na administração getulista, por exemplo, Mário de Andrade, Gustavo Capanema,

Carlos Drummond de Andrade, Anísio Teixeira, , e Villa Lobos. No

Brasil, a busca de um projeto cultural autônomo e de uma identidade nacional de fato animava escritores, artistas e educadores desde 1922. Embora cada caso seja um caso, em relação aos motivos de intelectuais a colaborar com o Estado, a intelligentsia brasileira cooptada se pode classficar, duma maneira geral, em três categorias. A primeira categoria consiste em ideólogos como , Francisco Campos e

Azevedo Amaral que ficam na frente falando em nome da elite burocrática e escrevendo textos para advogar o Estado autoritário. Os funcionário-escritores ou

10 escritores-funcionários, como Gustavo Capanema e Carlos Drummond de Andrade, ocupam a segunda categoria, os quais, através da integração de intelectuais no aparelho estatal, ou no emprego deles pelo Estado, desempenham um papel intermediário e coordenador no nexo entre a cultura e o poder. A presença de figuras como Drummond e Villa-Lobos também despolitiza, de algum modo, a cooptação de outros intelectuais que supostamente colaboram com o Estado em nome da amizade pessoal, o que resgata, até certo ponto, seu “estigma”. Intelectuais como Mário de

Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda, Graciliano Ramos que, apesar de assumirem cargos públicos e receberem subsídios governamentais, são relativamente independentes quanto à sua produção artística e intelectual. Esses intelectuais

“inocentes”, cujos cargos são antes um reconhecimento de sua competência artística e facilitação do seu trabalho do que um compromisso com o Estado, não escrevem sobre temas políticos nem ideológicos mas sim sobre literatura, folclore e história. Na realidade, o Estado pode constituir uma saída para muitos intelectuais que almejam uma nação autônoma, um Estado forte e uma cultura independentemente brasileira.

Ao mesmo tempo, o Estado também é uma poderosa ferramenta política que os intelectuais utilizam para realizar seus ideais artísticos através da qual o Brasil poderia ombrear com outras nações potentes no mundo tanto no domínio cultural como no do poder nacional. O realismo político e cultural do Estado Novo corresponde exatamente a uma intelligentsia desprovida de utopia e embebida dum sentido de missão. Nas palavras de Luciano Martins, a intelligentsia brasileira é “dotada do sentido de missão e, ao mesmo tempo, desprovida de utopia.” 7 É por esta razão que o

11 realismo e pragmatismo do Estado Novo combinam muito bem com o estilo da corrente principal da intelligentsia . Os interesses estatais e o ideal, assim como o interesse material dos intelectuais se reúnem, como Martins observa - a missão desprovida da utopia corresponde ao carácter realista do governo Vargas. Deste modo,

é relevante perguntar donde vem esse realismo estadonovista? O que são “os fundamentos objetivos da realidade” e “aspectos históricos” do Brasil? Para responder a essas perguntas, é importante frisar o papel do chefe do Estado Novo – Getúlio

Vargas, e a resposta consiste na família patriarcal e no homem cordial.

Embora o Estado getulista fosse inspirado pelo salazarista, diferenças desde distinções óbvias até nuanças são reconhecíveis tanto em burocracia e ideologia como em maneira de ser dos dois ditadores. No último capítulo, o meu objectivo é demonstrar que a maior diferença estratégica na construção da identidade nacional entre o regime Vargas e o de Salazar é que o primeiro tenta projetar o país no futuro e o último adota uma orientação virada para o passado, como as duas faces de Jano, o que resulta no idealismo salazarista e realismo getulista. Essa divergência em norteamento se funda, a meu ver, nas aspirações diferentes do Brasil e Portugal: o

Brasil, ambiciona realizar seu potencial como um país autônomo e potente tanto econômica como culturalmente no mundo, enquanto Portugal luta pelo seu sonho de império e por voltar a ser uma potência mundial no domínio espiritual. Portanto, apesar de compartilhar com Salazar tácticas comuns como a valorização da família e da religião, o que mais preocupa Getúlio Vargas é o desenvolvimento econômico, industrialização e modernização do país; quanto ao Portugal de Salazar, são

12 prioridades restaurar a glória dos Descobrimentos e fazer o país viver de novo o passado, o que requer a manutenção do país no status quo em vez de avanço rumo à modernidade. Essa disparidade também se espelha em diferentes maneiras de ser entre

Getúlio e Salazar. Getúlio, com seu sorriso permanente é visto e respeitado por muitos brasileiros como uma figura paterna benigna que “sempre lembrou da gente”.8 A certo ponto, ele até se transforma no padrinho nacional que, ao ver da maioria da arraia-miúda, é acessível e lhe proporciona a esperança no futuro. O populismo getulista, provavelmente inspirado por Perón, combina perfeitamente com a urbanização e a emergência da classe de trabalhadores urbanos no Brasil. Em contraste com Vargas, Salazar, porém, parece tender para ficar o mais distante possível do povo (Salazar uma vez afirmou que “não podia adular o povo sem ser um traidor da minha própria consciência. O nosso regime é popular mas não é um

Governo das massas, não sendo nem influenciado nem dirigido por elas.”) Sua personalidade sombria e preferência por reclusão refletem coincidente e exatamente o isolamento de Portugal e o peso histórico que o país tem que sustentar.

Por último, concluo que por um lado, a identidade nacional não é um ente fechado em si que repele elementos não-próprios, visto que qualquer ego precisa de alheios para se posicionar no seu contexto e asseverar sua propriedade; e, por outro, ela não é sobre forma ou aparência mas sobre essência e substância, isto é, são contraprodutivas e até contraintuitivas as tentativas tanto de ancorar a identidade nacional num fixado período histórico independente da realidade e conjuntura atual como de lhe imputar uma determinada forma e contorno rígido, dado que a identidade

13 nacional representa mais um modo de produzir do que o que é produzido, e tem que se equilibrar continuamente entre o ser em mutação e o estar em estagnação.

14

Notas:

1 Thomas Reid. Essays in the Intellectual Powers of Man, in John Perry, ed. Personal Identity, (Berkeley: University of California Press, 1975), p. 108. Citado por Onésimo Almeida in “Em busca de clarificação do conceito de Identidade cultural – O caso açoriano como cobaia” http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/ensaio60.htm

2 Ibidem.

3 Marilena Chauí. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular do Brasil , 2ªed. Editora Brasiliense. 1987. p.119.

4 Anthony D. Smith. National Identity . University of Nevada Press. 1993. p14.

5 Idem, p.65.

6 António Ramos de Almeida. “Notas para o neo-realismo”.In: O Diabo , Nº. 320, Lisboa, 1940, p.2.

7 Luciano Martins. “A gênese de uma intelligentsia ; os intelectuais e a política no Brasil: 1920 a 1940” In: Revista Brasileira de Ciências Sociais . São Paulo: ANPOCS, nº 4, v. 2, jul./1987, pp. 65-87.

8 A “paternalização” do ditador se deve ao fato de que o parentesco fictício prevalece em muitas regiões no Brasil: os pobres costumam pedir aos poderosos para estes se tornarem padrinhos de seus filhos recém-nascidos; e os descendentes de escravos poderiam virar parentes de antecessors de alguma tribo africana.

Capítulo I O Forjamento da Identidade Nacional

1 Memória e Identidade

Entre diversos estudos sobre a identidade e numerosos possíveis componentes da mesma, a presença da memória na sua constituição é consensualmente reconhecida.

David Lowenthal argumenta no seu famoso livro The Past is a Foreign Country que

“The past is integral to our sense of identity; ‘the sureness of I was’ is a necessary component of the sureness of ‘I am’. Ability to recall and identify with our own past gives existence meaning, purpose, and value. The ancient Greeks equated individual existence with what was memorable, and post-Renaissance Europeans have increasingly seen the past as essential to personality.”1 Marie-Claude Groshens, em “Production d'identité et memoire collective”, defende igualmente a tese de que a identidade é essencialmente constituída por uma memória, e no caso duma sociedade ou nação, essa memória é naturalmente coletiva. 2 O filósofo Avishai Margalit em The

Ethics of Memory , porém, discute o papel-chave da memória nacional na formulação da nacionalidade duma diferente perspectiva: “A nation has famously been defined as a society that nourishes a common delusion about its ancestry and shares a common hatred for its neighbors. Thus, the bond of caring in a nation hinges on false memory

(delusion) and hatred of those who do not belong.” 3

Antes de proceder à análise da memória coletiva, abordarei a memória como fundamento na identidade pessoal que pode ser, de certo modo, considerada como o microcosmo da identidade nacional. Sydney Shoemaker em Self-Knowledge and

15 16

Self-Identity observa que na realidade a identidade pessoal se baseia na memória que indivíduo possui, em vez de no corpo físico, isto é, a identidade pessoal permanece a mesma na medida em que a memória não se altera independentemente da mudança corporal. Lowenthal compartilha do mesmo ponto de vista: “Remembering the past is crucial for our sense of identity: (…) to know what we were confirms what we are.

Self/continuity depends wholly on memory; recalling past experiences links us with our earlier selves, however different we may since have become.”4 Assim, torna-se possível a separação da memória do corpo, ou seja, a separação da identidade pessoal da identidade corporal, porque a existência da memória constitui um elemento sine qua non para a existência da identidade pessoal que não necessita da sustentação espaço-temporal nem de uma realidade atual correspondente a essa memória.

Shoemaker explica:

One’s statement about one’s past, when made on the basis of memory, are not grounded on bodily identity, or spatiotemporal continuity, as a criterion of personal identity; they are not grounded on the knowledge of any physical relationship between one’s present body and a past one. Nor does one rely on one’s memories of one’s past because one has discovered, using physical criteria of identity, that such memories are usually accurate; on the contrary, one could not discover the truth of any judgment of bodily identity, or apply any physical criterion of identity, without already relying on one’s memories. It would be absurd to suggest that in order to be entitled to say “I remember taking a walk last night” I must first examine my body and satisfy myself that it is the same as some particular body that existed last night. From my point of view it seems unessential that the body I have now be the body I had when I took the walk; if I remember going for a walk then I did go for a walk, no matter what my present body was doing at the time. 5

Shoemaker acha que, para um indivíduo cujo cérebro é transplantado para um

17 corpo alheio por causa de uma operação cirúrgica, quando ele acordar da anestesia com um corpo totalmente estranho, embora muito desabituado, ele não iria considerar que esta combinação de corpo alheio com o seu próprio cérebro teria transformado a sua identidade, nem iria desempenhar o papel que o dono original do corpo joga. É de saber que as células no corpo humano mudam-se em cada sete anos, isto é, o nosso corpo físico também se metaboliza completamente. Portanto, teórica e fisicamente nós já não somos aqueles indivíduos de há sete anos. Shoemaker acredita que é a consistência na memória que pode complementar a possível inconsistência no corpo físico, mantendo assim a identidade ao longo do tempo. Tal supremacia da força memorial sobre a realidade visível e substancial é a essência da identidade pessoal.

Por outras palavras, o que determinará a identidade pessoal é antes o passado que o indivíduo lembra e reconhece do que o presente em que o indivíduo se encontra. O passado exerce sua influência sobre e até controlo do presente através da identidade pessoal edificada ao longo do passado, e tal identidade é basicamente estruturada e sustentada pela memória. Neste sentido, a identidade pessoal do presente é uma sequela da identidade do passado e tem que seguir o rumo ditado por aquela estrutura na medida em que a memória permaneça. Em termos da biologia cognitiva, a identidade possui certa “autopoiesidade”, termo cunhado por dois biólogos e filósofos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela, a fim de descrever o relacionamento complementar entre a estrutura e a função duma entidade. O significado da autopoiese

é evidente pelo nome: “auto” no grego significa o próprio enquanto “poiese” se refere

à reprodução. A autopoiese pode assim definir-se como um processo através do qual

18 um sistema vivo produz a sua própria organização e se mantém ele próprio num espaço relativamente fechado.

A estrutura e a ordem desse sistema são gerados a partir da interação dos seus próprios elementos auto-reprodutivos que se recriam com base na mesma estrutura, ordem interna e nas interações entre si. Como as células biológicas morrem e nascem constantemente, e as recém-nascidas subsituem as perecidas para continuar a função destas sem mudar a estrutura do orgão em que se encontram, nem afetar o funcionamento integral do orgão. 6 E pode observar-se que, na medida em que a estrutura não se muda, por mais frequência que os elementos constitutivos se sucedam, a identidade do sistema persiste. Assim, em relação à identidade pessoal, mesmo que todas as células no corpo humano que fisicamente compõe uma pessoa não sejam mais as de há dez anos, a identidade individual não sofre esse metabolismo radical.

Neste caso é simplisita compreender a estrutura como uma ordem interna de órgãos num organismo biológico, que é de fato uma estrutura existencial embutida nas coordenadas de espaço-tempo. Contudo, quando aplicada a uma sociedade ou uma nação, a teoria autopoisética é sujeita a umas pequenas modificações. O sociólogo alemão Niklas Luhmann incorporou a autopoiese na sua teoria a fim de demonstrar que a sociedade também é um sistema vivo onde as pessoas não desempenham papéis fundamentais. O mais importante é a estrutura social que modela o ser humano e define seus funcionamentos. Num sentido mais radical, o nascimento da vasta massa acontece só para preencher posições pré-determinadas e para realizar funções programadas por uma determinada estrutura social. A nação, como a sociedade, é

19 também um sistema delimitado por fronteiras tanto geográficas como etno-culturais entre ele próprio e o seu ambiente exterior. Esse sistema formula os seres nacionais e, suas fronteiras separam o que é “nós” do que é “eles”, juntamente produzindo e reproduzindo a marca da existência sui generis do sistema nacional – a identidade nacional sem a qual o sistema deixará de existir e dissolver-se-á no seu meio ambiente exterior e no decorrer do tempo. Continuando o raciocínio de sociólogo alemão, podemos conceptualizar a nação como um sistema vivo com uma vida que pode remontar aos tempos mais recuados na História, sendo que a estrutura de nação aqui não se refere à organização política e administrativa dum país, mas ao seu posicionamento na História (História com H maiúsculo representa a macro-história que inclui a história, o presente e o futuro) que é configurado e mantido pela memória coletiva acumulada ao longo do tempo e herdada de geração em geração através da história, tradição, religião, etc. 7 Isso será especialmente apropriado para os Estados

Novos que se auto-definem como estados corporativos e organicistas e funcionam como um sistema orgânico em que os nacionais, como as células, quer os grandes, quer os humildes, quer os chefes, quer os súbditos, têm que se subordinar a tal estrutura para continuar suas funções requeridas pela História assim como missão e identidade nacionais. Por outras palavras, vistos duma perspectiva da nação autopoiética, tanto as figuras célebres como as anónimas são produtos naturais da nação cuja existência é meramente uma resposta passiva à demanda da memória coletiva e identidade nacional.

Contudo, nesse contexto a forma singular da palavra “memória” é inexata e até

20 enganadora no sentido de que ela poderá provocar impressão de que a memória é um ente integral e coerente. No entanto, a memória não é de maneira nenhuma um conjunto nitidamente organizado ou indivisível. Por isso, será melhor substituir a memória pelo “armazém das memórias” ( memory warehouse ) para que se mostrem a diversidade e classificação dentro da memória como um todo. A nível individual, a função desse armazém memorial consiste em reter informações pessoais, provando a existência do portador das memórias em períodos que correspondem às mesmas; ao nível nacional o conjunto das memórias coletivas chama-se o passado que são efetivamente credenciais da existência e legitimidade duma nação ao longo do tempo.

Na formação da identidade, o que a memória ministra são matérias-primas tanto positivas (beneficientes à construção da identidade) como negativas (desconstrutivas em relação à identidade). Assim sendo, cabe a cada indivíduo ou portador de memória a evocação, recuperação e seleção de memórias específicas (mais exatamente, pedaços ou fragmentos específicos de memória) no formular de sua identidade, isto é, funcionalmente, a memória não é um todo homogêneo nem de natureza ativa mas uma mescla heterogênea sujeita a influências externas (por exemplo, ideologia dominante, propaganda nacional, entre muitos outros) através das quais as autoridades podem “acordar” as memórias desejadas enquanto deixam outras em adormecimento.

Na constituição da identidade nacional, o Estado tem que assegurar que só as memórias construtivas sejam selecionadas, enquanto as destrutivas se mantenham esquecidas e ignoradas, ou, pelo menos, deslembradas. Luciano Aronne de Abreu, em“Estado Novo, realismo e autoritarismo político”, argumenta que:

21

Mas a atitude nostálgica não pode depender apenas da natureza irrecuperável do acontecido para afirmar a sua capacidade de atracção e o seu impacto emocional De facto, ela navega muitas vezes até um passado que jamais foi vivido, tendo antes sido imaginado, idealizado, ou arquitectado a partir de modelos pré-estabelecidos, utilizando os diversos recursos dos quais dispõe a memória adquirida, entre os quais se conta, com um grande destaque, o discurso historiográfico. Este opera, nessas circunstâncias, por intermédio daquilo que Mikhail Bakhtin designou por “inversão histórica” : o ideal que não pode ser vivido é projectado no passado, é “memorizado” enquanto passado, conservado ( “cristalizado” , diz Bakhtin) em momentos seleccionados e combinados pela memória, ao mesmo tempo que outros são omitidos, isto é, esquecidos ou recalcados. Rebelando-se contra a idéia de “irreversibilidade do tempo”, sob a tutela desse “anjo da história” que Benjamin colocava no limiar do passado e do futuro, a operação nostálgica desenvolve, desta forma, como que um processo de higienização do acontecido, fazendo-o parecer completo, estável, coerente, e transformando-o, por tal via, em exemplo e objecto de atracção. 8

João Cesar de Castro Rocha, porém, atribui essa memória seletiva à incapacidade ou impossibilidade da representação totalizante da nação, o que foi corroborado pela assertação de Ernst Renan na famosa conferência realizada na

Sorbonne em 1882 decorrente da derrota francesa na guerra franco-prussiana:

“Nenhum cidadão francês sabe se é burgúndio, alano, taifale, visigodo; todo cidadão francês precisa ter esquecido São Bartolomeu, os massacres do Sul no século XIII” 9.

Na opinião de Renan, o cidadão francês faz-se a custo de olvidar ou desativar memórias indesejáveis e dilaceradoras, e “não é apenas a origem que se ignora, há muito mais para um cidadão esquecer a fim de se tornar ‘genuinamente’ francês. (...) quanto mais escritas, menos seus leitores serão capazes de apreender a totalidade da nação.” 10 Nos casos estadonovistas, por analogia, para tornar autenticamente cidadão

22 do Brasil pacífico e unificado deve-se esquecer o massacre em Canudos, e para assumir a identidade “imperial” portuguesa os portugueses da época de Salazar precisam de ignorar e negar os estigmas da pátria como Alcácer Quibir ou decadência em geral.

Na realidade, a demonstração da memória coletiva é a história que representa o conjunto de memórias nacionais ao longo do tempo – o passado, que, na opinião de

Eric Hobsbawm, é um dos critérios para a nacionalidade. “In practice there were only three criteria which allowed a people to be firmly classed as a nation, always provided it was sufficiently large to pass the threshold. The first was its historic association with a current state or one with a fairly lengthy and recent past” 11 As memórias coletivas ao nível nacional representam mesmo um passado comum dum país para seus nacionais. Esse passado pode ser relativamente recente e experienciado por cidadões seniores, e assim faz as memórias coletivas de primeira mão e realmente verificáveis (como para os que vivem na década de 20 do século XX, a proclamação da República tanto em Portugal como no Brasil constitui um passado recente), ou, ele pode ser tão remoto que é impossível verificar na realidade. Como um corolário, a história surge para representar o passado remoto inalcançável e inculcar esse passado distanciado na memória coletiva. Pouco a pouco, a História torna-se sinônimo do passado e constitui a memória coletiva que se sujeita a mais distorção, omissão e exageração, numa palavra, à manipulação dos que escrevem ou ditam a história.

Lowenthal tem uma magnífica argumentação relativa à memória e história:

23

Just as memory validates personal identity, history perpetuates collective self-awareness. To understand ‘what they are or what they might become’, notes Gordon Leff, groups ‘define themselves through history as an individual does through memory’. Indeed, the enterprise of history is crucial to social preservation. ‘Since all societies are organized … to ensure their own continuity’, collective statements about the past help to conserve existing arrangements, and the diffusion of all manner of history, whether fact or fable, fosters the feeling of belonging to coherent, stable, and durable institutions.Historical knowledge also differs from memory in telling us things about the past not known to those who lived at the time. To be sure, time-transformed recollections likewise invent and discover new facts; like histories, memories review the past with present hindsight. But whereas memory is seldom consciously revised, historians deliberately reinterpret the past through the lenses of subsequent events and ideas. Both history and memory engender new knowledge, but only history intentionally sets out to do so. 12

No que diz respeito à identidade nacional, a memória nacional, na sua forma exteriorizada como história e tradição nacional (e tudo o que é imaterial que se herda do passado), predomina sobre o próprio titular dessa identidade – a nação e os nacionais do presente, o que inevitavelmente envolve o passado idealizado e os antepassados heroificados. Nietzsche, em On the Genealogy of Morals , defende a relação de devedor/credor entre antepassados e descendentes:

The conviction reigns that it is only through the sacrifices and accomplishments of the ancestors that the tribe exists – and that one has to pay them back with sacrifices and accomplishments: one thus recognizes a debt that constantly grows greater, since these forebears never cease, in their continued existence as poweful spirits, to accord the tribe new advantages and new strength. In vain, perhaps? But theree is no “in vain” for these rude and “poor-souled” ages. What can one give them in return? Sacrifices (initially as food in the coarsest sense), feast, music, honors; above all, obedience (grifo meu) – for all customs, as works of the ancestors, are also their statutes and comands. 13

24

2 Estado Novo Salazarista e Comunidade Imaginada

A afirmação de Nietzsche é especialmente válida em relação ao pensamento salazarista que idealiza o passado nacional como o destino para onde Portugal se deve dirigir. Tal destino, na ideologia estadonovista, foi fadado desde a Conquista de Ceuta não obstante as mudanças dramáticas dentro e fora do país, e de acordo com essa ideologia, Portugal possui sempre uma grande missão, que é intencionalmente preservada na memória coletiva, e uma identidade nacional que deve ser imutável.

Contudo, de acordo com Nietzche, a obediência aos antepassados só aumenta enquanto os descendentes continuam prosperando e, “every step toward the decline of a tribe, every misfortune, every sign of degeneration, of coming disintegration always diminishes fear of the spirit of its founder and produces a meaner impression of his cunning, foresight, and present power.” 14 Desta forma, vale a pena perguntar por que depois de sofrer uma decadência crônica a obsessão com o passado durante o Estado

Novo se torna ainda mais intensa? A resposta reside na idéia de renascença ou regeneração no pensamento salazarista que inculca nos portugueses a noção de que o período de decadência é não-português, e que para recuperar a genuína portugalidade

é necessário restaurar o passado. Na ocasião da inauguração do Pavilhão de Portugal em 18 de Março de 1939, António Ferro, como comissário geral de Portugal na

Exposição Mundial, proferiu o seguinte discurso:

Os portugueses não naufragaram depois da sua epopeia marítima, que vivem hoje a sua nova renascença. Fatigados do seu esforço, nostálgicos da sua velha grandeza, os portugueses sentiam-se vencidos, quasi resignados à sua decadência. Mas a raça dos

25

descobridores não se tinha felizmente esgotado. Um homem, filho de camponeses, simples como o Evangelho, soube despertar-nos. Esse homem, Salazar, actual chefe do Governo Português, encontrou-se diante dum país empobrecido, devastado por um século de lutas intestinas. Que fez ele? Compreendeu que os portugueses se sentiam desunidos, acima de tudo, por não terem qualquer missão universal a desempenhar digna da sua glória passada. E chamou-os então à descoberta da verdade, ao reino de Deus! 15

A maneira ideal para efetivar a resnascença da pátria e reviver a memória do passado no presente será valorizar as instituições “duradouras” que têm certa hereditariedade e constância ao longo da história. Portanto, a memória coletiva que o

Estado se esforça por inculcar nos nacionais reflete, senão é, a estrutura da nação no passado; e através do reforço do papel da história e da tradição, o Estado pretende modelar a presente nação não só pela memória como também nos determinados comportamentos em conformidade com tal memória. Mas é também de ter em conta que diferentemente da memória pessoal, a memória coletiva pode ser transplantada através da educação, religião, tradição e propaganda nacional, o que constitui a primeira parte da construção da identidade nacional; a segunda será conscientizar essa memória transplantada ao nível individual, o que requer a presença duma estratégia contínua na ideologia por parte do Estado a fim de relembrar constantemente aos cidadãos essa memória existente e neles impor a identidade nacional oficial. A consolidação reforçada da memória coletiva desejável é acompanhada simultaneamente pelo esquecimento gradual tanto de memórias como de fatos indesejáveis. Numa palavra, a memória coletiva compõe-se de eventos, histórias, práticas, e de todas as tradições que podem restaurar a maneira de ser do passado. Tal passado não é necessariamente o passado verdadeiro, mas tem que ser um passado

26 ideal forjado de acordo com a ideologia oficial que é principalmente representado pelo tradicionalismo nos nossos casos. Esse tradicionalismo inclui duas vertentes: o tradicionalismo institucional composto pela família e religião, e o tradicionalismo fenomenal que se caracteriza pelo ruralismo e historicismo nacionalista. Através da análise das políticas estadonovistas em relação a tais fósseis vivos do passado, se poderá contornar a relevância memorial na construção da identidade nacional.

No Decálogo do Estado Novo português declara-se que “O Estado Novo representa, para os portugueses de hoje, o acordo de tudo o que é permanente e de tudo o que é novo, das tradições vivas da Pátria e dos seus impulsos mais avançados.” 16 A família e a religião que têm configurado as sociedades portuguesa e brasileira devem constituir as tradições não só mais viva como também as mais longevas no curso da história e, consequentemente, tornam-se as principais referências da memória coletiva do passado no presente. Em Portugal, a família, definida na Constituição de 1933 como “fonte de conservação e desenvolvimento da raça, como base primária da educação, da disciplina e harmonia social, e como fundamento de toda a ordem política pela sua agregação e representação na freguesia e no município”,17 visa restaurar a ordem patriarcal e hierárquica inerente à estrutura familiar. E, no Brasil, o patriarcado que “foi o núcleo formador de nossa realidade histórica e social, o centro de convergência da vida brasileira e a chave para entender sua formação e suas transformações no curso do tempo”18 , desempenha um papel similar. Para diversos intelectuais brasileiros, a família é uma das justificativas da nova política enraizada no passado e na tradição cuja valorização pode fundamentar e

27 estabilizar a ordem nacional. Em Portugal, Salazar observou uma vez que: “Quem diz família diz lar; quem diz lar diz atmosfera moral e economia própria”. Aqui a atmosfera moral refere-se sobretudo à ordem hierárquica natural e indisputável na família: a supremacia do paterfamilias e a subalternidade dos outros membros familiares. Expressões como “Na família o chefe é o Pai”, “O pai é a pessoa da família mais instruída”, e “É o pai que dá as ordens na família” são incutidas repetidamente às crianças por manuais escolares. A fim de manter a família no estado do passado, é preciso fixar as mulheres em casa em vez de as deixar trabalhar fora como profissionais. A missão principal da escola elementar em Portugal conforma-se nos seguintes termos: “cuidará da preparação das raparigas para a vida do lar, fornecendo-lhes noções elementares sobre economia doméstica, puericultura e enfermagem.” 19 Na Exposição dos Centros de Formação Familiar da Obra das Mães de 1954 se manifesta claramente os objetivos de promover e guiar a transformação das meninas de então na maternidade futura e de mandar as mulher para casa onde fica a maior virtude feminina. A família, como a instituição tradicional mais antiga e universal, constitui o berço do arsenal humano para o Estado Novo, e, assim, é o primeiro lugar onde a memória coletiva se começa a infundir.

Quanto à religião, a história de Portugal forma um relacionamento simbiótico com o cristianismo. Desde as Reconquistas até às descobertas, a causa religiosa tem acompanhado a expansão portuguesa, e a história de Portugal, assim como suas causas ultramarinas, também adquirem um matiz nobre e devoto graças à religião. O apelo dos nacionais para se apegarem firmemente ao catolicismo é uma forma de

28 convencer os portugueses a continuarem tomando esse “ópio espiritual” e se submergindo no passado. Do mesmo modo, a fundação do Brasil também envolve causas religiosas, o que se pode confirmar no quadro A Primeira Missa no Brasil , apesar de o governo getulista não se apresentar tão entusiasmado com a religião como o regime salazarista. A Igreja católica portuguesa, abafada pela Primeira República, recuperou seu poder e influência no Estado Novo, especialmente depois da

Concordata de 1940, visto que “The function of the State (…) corresponds exactly to that given to it by the Pope, who insists that ‘all the occupational groups (which make up a nation) should be fused into a harmonious unity, inspired by the principle of the common good.’ And the genuine and chief function of public and civil authority consists precisely in the efficacious furthering of this harmony and co-ordination of all social forces.” 20 A fortificação da fé religiosa, por um lado, é vista como garantia da legitimidade do regime salazarista e, por outro, como benção contínua de Deus à nação portuguesa ao longo da história. Neste sentido, a aparição da Nossa Senhora em

Fátima em 1917, o que significa, na interpretação do regime salazarista, não só que

Salazar é o salvador da nação portuguesa mandado pela divindade, como também que, nas palavras do velho fidalgo no romance A Garça e a Serpente , “Ela aparecera havia anos nas serranias de Fátima, no coração de Portugal, a curta distância do vale agreste onde se firmou por milagre a independência da Nação, quase inerme em face do poderoso vizinho, - é porque o pequenino Portugal entrava ainda nos planos do

Altíssimo.” 21 Como consequência, obras literárias que preconizam religiosidade tornam-se privilegiadas pelo regime português. A vencedora do Prémio Antero de

29

Quental em 1934, A Romaria , “obra de genuíno lirismo português, que revela uma alta sensibilidade de artista e que tem um sabor marcadamente cristão e popular”,22 foi escrita por um padre franciscano chamado Vasco Reis. Tendo o catolicismo como o leitmotiv , A Romaria venceu, inclusivamente, Mensagem de Fernando Pessoa que apenas ganhou um prémio da segunda categoria. 23

Diferente do tradicionalismo institucional que pretende manter a estrutura do passado em formas institucionalizadas, o tradicionalismo fenomenal procura projetar o status quo do passado no presente, quer dizer, fazer os cidadãos viver numa imagem-espelho do passado, o que contrasta agudamente com o Brasil varguista que, apesar de criar o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional com contribuições de Mário de Andrade, Gilberto Freire, Manuel Bandeira, etc, se esforça por modernizar o país. Num certo sentido, a preocupação com a tradição pelo governo varguista parece mais “sincera” e menos utilitária se comparada com a do regime salazarista. Consequentemente, o retrato dos portugueses, segundo a blueprint oficial,

é descrito como gente pobre, rural, trabalhadora, mas feliz:

Minha terra, quem me dera Ser humilde lavrador; Ter o pão de cada dia, Ter a graça do Senhor; Cava-te por minhas mãos Com caridade e amor. 24

Nas palavras de Denys Cuche:

Viver o passado como se presente fora, aí está a verdadeira ciência de um país uno, de uma pátria una, que se liberta enfim do fantasma da aceleração do tempo – do progresso -, doença que corrói as

30

sociedades modernas e perverte o nosso temperamento de trabalho, sacrifício e independência rural, a nossa tradição autoritária e espiritual, o nosso destino colonial. Vencido o tempo, pela prática da clausura moral e por prolongados exercícios da memória, do olhar e do desejo, Portugal podia, enfim, alimentar o sonho de uma comunidade perfeita (pura e disciplinada). Pela prática da fé e da obediência, virtudes superiores que o redimiam, Portugal era restaurado num eterno presente de si mesmo, heróico e santo, cujo modelo convenientemente idealizado, era o Portugal rural medieval e o século XVI imperial.” 25

Imagens como a noiva minhota e o pauliteiro transmontano , que se vestem pomposamente durante feriados e, que pouco têm a ver com a realidade, são representações ideais do campo e dos camponeses. A preferência pelo campo e ruralidade inevitavelemente se dirige à crítica da sua contrapartida: a cidade e o modo de viver urbano e moderno.

O ruralismo 26 que o Estado Novo cuidadosamente mantém e nutre corresponde exatamente à imagem idílica de Portugal do passado, o que faz lembrar o slogan da

TAP naquele tempo: Portugal – The Best Kept Secret in Europe . Embora seja difícil saber a influência que o ruralismo exerce sobre a atitude dos portugueses vis-à-vis o passado, pelo menos aos olhos das autoridades a ruralidade de Portugal representa a estabilidade da sociedade a custo da estagnação de toda a nação. Contudo, é questionável se é possível depositar a esperança de recuperação da identidade nacional dos antepassados heróicos nos aldeões “sãos”, humildes, folgazões mas submissos. A memória e impressão forjadas com base na ruralidade poderiam ser contra-produtivas em relação à construção da identidade e, como solução, nas tradições nacionalistas, o heroísmo, a magnanimidade e o espírito aventureiro são realçados para contrabalançar possíveis fraquezas resultantes do ruralismo.

31

As tradições nacionalistas portuguesas são estreitamente relacionadas com o seu passado de império marítimo, e, nesse sentido, toda a política nacionalista do Estado

Novo gira em torno dos Descobrimentos. Num discurso proferido no dia 30 de Junho de 1930, Salazar anunciou: “Na nossa ordem política, a primeira realidade é a existência independente da nação Portuguesa, com o direito de possuir fora do continente europeu, acrescendo à sua herança peninsular, por um imperativo categórico da História, pela sua acção ultramarina em descobertas e conquista, e pela conjugação e harmonia dos esforços civilizadores das raças, o patrimônio marítimo, territorial, político e espiritual abrangido na esfera do seu domínio ou influência.” 27

Tendo em conta a paixão e obsessão portuguesa para com o Quinto Império, não será difícil avaliar as cenas em Comemorações Centenárias , Exposição do Mundo

Português e Portugal de Hoje em que, além de todas as províncias no Portugal continental, a Madeira os Açores, cada constituinte do Ultramar foi minuciosamente representado (inclusive um dragão chinês de Macau participou na parada), o que, em conjunto, parece representar um filme da memória do passado para os portugueses a fim de não somente demonstrar a diversidade do Portugal imperial como também, mais importantemente, de impor uma memória coletiva conformada:

O Secretariado [de Propaganda Nacional] foi o grande reinventor da tradição portuguesa (...) já que pretendeu dar à tradição, nomeadamente às manifestações da tradição etnográfica, que é a que mais nos importa, um sentido revivalista, traduzido na negação do seu carácter espontâneo e na pretensão de tornar imutáveis as suas formas. Mas também os organismos culturais criados para preenchimento dos tempos livres dos trabalhadores, como a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, deviam incluir nos seus programas o estímulo dos seus associados para o

32

«reaportuguesamento dos costumes, da manutenção das tradições, da dignificação dos folguedos, do desenvolvimento do artesanato, do amor à terra e da defesa da arte e da literatura populares». Ao mesmo tempo, além de retirar o carácter ritual ao momento folclórico, vai fazer com que, no desejo de agradar e de cumprir com as regras impostas por um organismo superior que dita modos de agir, os criadores/recriadores da etnografia passem a agir como meros actores, que esperam aplausos ou recompensas pelo seu bom desempenho.” 28

As descobertas marítimas e as glórias civilizadoras portuguesas estão inevitavelmente entreligadas com a colonização, e, as colônias, conhecidas como províncias ultramarinas, são geralmente vistas como partes indispensáveis na recuperação do império: “O Estado Novo quer reintegrar Portugal na sua grandeza histórica, na plenitude da sua civilização universalista de vasto Império. Quer voltar a fazer de Portugal uma das maiores potências espirituais do Mundo. ”29 Contudo, duma perspectiva da memória seletiva, as colônias poderiam servir como um filtro bloqueador das memórias danosas à glorificação da pátria. Um funcionário do SPN anotou, em 8 de março de 1939, as suas impressões depois duma visita dele à

Alemanha nazi, afirmando que, segundo Hitler em Mein Kampf , a problemática colonial é menos sobre necessidades econômicas do que uma questão da honra e limpeza do estigma do infame Diktat de Versailles. Quanto ao Estado Novo, para curar a vergonha causada pelo Ultimato Britânico e a invasão francesa, a manutenção das colônias ultramarinas ajudariam os portugueses a esquecer a humilde história nacional entre a segunda metade do século XIX e o começo do século XX. A prova da colonização supostamente civilizadora pode ajudar a manter memórias coletivas

“sadias” em relação ao passado nacional, e ao mesmo tempo satisfaz outro critério da nationhood levantado por Hobsbawm: uma capacidade provada para conquista.

33

Em síntese, a componente memorial da identidade nacional representada pelo tradicionalismo e pela história, na interpretação da ideologia estadonovista, espelha um culto da tradição e um cometimento com herdar e continuar o grande esforço iniciado por gerações anteriores, o que está em conformidade com a declaração de

Erzo Ponzi no manifesto de Parma, “Em nome dos mortos, pelo futuro dos vivos!”. O historiador-ideólogo do Portugal salazarista, João Ameal, assim defendeu o tradicionalismo: “Os que atacam e condenam o tradicionalismo, procuram, em geral, confundi-lo com a inércia e a rotina. Nada mais calunioso, mais absurdo. O tradicionalismo afirma apenas esta coisa legítima e salutar: as nações, como os homens, devem ter memória. Não devem cometer a leviandade suicida de esquecer as suas raízes: devem aproveitar a experiência do que foi para saber preprarar o que há-de vir.” 30 Ele procede a argumentar que o tradicionalismo é uma relembrança da dívida e benefício que os homens presentes devem aos antepassados que não só criaram o ambiente de viver para os descendentes como também lhes formaram a maneira de ser e, que, a fim de transmitir e valorizar tal herança, é necessário cumprir as obrigações devidas aos antecessores através da conservação do patrimônio estrutural por eles fundado. Aqui esse patrimônio estrutural pode identificar-se com a estrutura nacional configurada pelo posicionamento da nação no curso da história mencionada anteriormente.

Todavia, a estrutura e posicionamento duma nação são de maneira nenhuma imutáveis no curso do tempo. Pelo contrário, a nação tem suas vicissitudes durante a sua evolução. Quando se altera a estrutura, as funções de cada componente mudam-se

34 correspondentemente. Neste caso, a memória com que uma nação sustenta a sua identidade perde de certo modo a coerência e continuidade. Mas, no caso dum forte

Estado, o Estado controla a produção de elementos constitutivos para restaurar a estrutura original da nação que já se teria transformado. Ou seja, nas palavras de

Maria Alves, o percurso de uma nação é unidirecional e, uma vez determinado, não se mudará. Como no caso de Portugal, a sua orientação decidida nos Descobrimentos como um império não se deve alterar a despeito de mudanças dramáticas dentro e fora do país, o que de fato preserva a identidade nacional e conserva a chamada continuidade do essencial. Na opinião de Maria Alves, “a essência do sentimento patriótico residia no consentimento conjunto de grandes sacrifícios através dos quais a nação se depurava e atingia uma consciência mais plena, realizando o seu espírito nacional. A condução deste processo materializava-se no Estado que devia respeitar o passado, agir de acordo com os seus ditames e, nunca lhe alterar o rumo.” 31 As desgraças, traumas e cicatrizes na memória nacional e correspondente história nacional são preenchidas ou cobertas para falsificar uma continuidade de glória, vitória e inalterável identidade, reforçando parte da história desejável na memória e, apagando a parte indesejável. Assim sendo, as produções culturais e intelectuais, assim como as funções administrativas e governamentais, visam arrastar o país para a pista de que já se tinha desviado há centenas de anos atrás. A evolução da nação é jamais motivada pelo seu mecanismo natural, isto é, não se pode adjustar às vicissitudes nem coadunar-se com o ambiente externo, mas é forçada pela máquina política – o Estado

35

O inculcar da memória coletiva, que grava nos nacionais a noção de que eles compartilham um conjunto comum, incentiva a formação da comunidade imaginada.

Além disso, segundo Benedict Anderson em Imagined Communities , o forjamento de identidade é possibilidado e amplificado pela existência dos media nacionias que têm uma enorme capacidade de entreligar indivíduos desconhecidos e dispersos por todo o país dando-lhes ideias, ou, nas palavras de Anderson, a imaginação de que todos eles estão, de fato, inextricavelmente conectados. Contudo, essa teoria segundo a qual uma nação baseada na imaginação se consolida por meio de livros e mass media encontrou não poucas objeções na intelligentsia que advoga que parâmetros subjetivos, como os citados há pouco, também devem ser tidos em consideração. Porém, tanto a memória como a imaginação não serão suficientes para se alimentar e consolidar uma identidade nacional de maneira duradoura. De acordo com Onésimo Almeida:

[A]o forjarem a sua identidade, porém, os grupos culturais não se imaginam apenas, como sugere a hoje famosa expressão de Anderson. Eles não imaginam a sua comunidade do mesmo modo que imagina a China quem nunca lá foi. É por isso que seria mais exacto chamar-lhes ‘comunidades mentais’, para acentuar que elas existem na mente das pessoas como realidades autênticas e não fantasiadas. Essas conexões colectivas não são imaginadas apenas, pelo facto de serem mentalmente concebidas. Mas essa nova proposta também não resolve o problema, pois não deixa precisa a natureza dessas realidades mentais. Parece-me assim igualmente insuficiente a hoje muito divulgada expressão ‘lugar de memória’, com que Pierre Nora procurou captar a idéia de nação. Como vimos, a memória é, afinal, apenas um dos elementos integrantes do processo de identidade. Walker Connor corrigiu o cliché que classificava o homem como ‘um ser racional’ preferindo considerá-lo como ‘um ser nacional’. Na verdade, essas concepções de pertença a comunidades não são apenas mentalmente concebidas porque são acima de tudo sentidas, experienciadas. Daí ser mais exacto chamar-se-lhes ‘comunidades do coração’. O trabalho da mente é, pois, esta concatenação, a criação da

36

narrativa através da qual cada indivíduo liga as peças mais próximas da sua mente e do seu coração, e que foram extraídas do conjunto de experiências acumuladas no meio cultural em que aconteceu crescer.” 32

3 O Estado Novo Getulista e Comunidade de Coração

O parecer de Almeida em relação à formação da comunidade e identidade é mais plausível no sentido de que a emergência da identidade nacional envolve primariamente uma etapa da identificação por uns nacionais com outros que são basicamente diferentes, quer em costume, quer em habitat, quer em religião, quer em raça, mas iguais na nacionalidade (como no Brasil os sertanejos identificando-se com os litorais e, em Portugal, os transmontanos com os açorianos), que abrange não somente a mente como também e, finalmente, o coração. Almeida suplementa que:

Para além do inventário dos traços objectivos (aparência física, língua, costume, atitudes e comportamentos) ou dos traços subjectivos (representação, vontade, imaginação, sentimentos específicos) a produção da identidade de um grupo implica a sua capacidade de se reconhecer nesses traços. Esta capacidade resulta de um complexo de ‘sentimentos – representações – vontades – imaginações’ cujo conteúdo se liga exclusivamente com a identidade; ela nasce do redobrar reflexivo (no sentido sartreano do termo) na sequência do qual o que à partida era da ordem da determinação experimentada conscientemente ou não – se transforma em autodeterminação consciente e voluntária.” 33

Pode observar-se que durante esse processo a questão mais relevante é “quem pertence a nós” e a resposta final vai constituir a conquista da alteridade grupal/regional pela comunidade nacional e a superação de obstáculos psicológicos de muitos nacionais em relação à definição de próprio/alheio. Para um país como o

37

Brasil a que falta uma história nacional longínqua, tanto a memória coletiva como a história da nação não são suficientes para a construção da identidade nacional. É por isso que, embora o Estado Novo getulista também valorize a família, a religião 34 e a tradição, o governo não investe tanto nessas áreas como a sua contrapartida portuguesa faz nem faz a estratégia saudosista ou passadista para anacronizar o presente e restaurar o passado. Os ideólogos do getulismo também admitem que a evolução do país tem sido cheia de contradições e vaivéns em vez de ser predestinada ou embutida duma missão histórica e divina: “A formação da nossa nacionalidade ocorreu através de vicissitudes cuja complexidade resultou em um acúmulo de elementos contraditórios e na justaposição de autênticos elos tradicionais e de acréscimos acessórios que, embora por vezes encarados como tradições reais, não devem contudo ser levados em consideração ao tratar-se de reviver e animar os fatores vitais do passado do Brasil.” 35 Esse complexo sentimento vis-à-vis o passado composto por uma mistura de valorização e suspeição assim como desejo e afastamento é, igualmente, observado pelo sociólogo Bernard Sorj quando afirma:

A sociedade brasileira é lúdica. Embora essa afirmação exigisse uma longa digressão e comprovação, não pode deixar de ser feita. Tal componente lúdico talvez tenha sua fonte principal na contribuição africana e indígena, mas também expressa o lado positivo do baixo nível de disciplina dos corpos e das mentes que a Igreja Católica tradicional e a escola conseguiram impor. Também colabora para a formação dessa sociabilidade lúdica a desvalorização do passado , principal fonte de angústias, remorsos e culpas, assim como a importância dos contatos pessoais, elemento básico para a sobrevivência numa sociedade patrimonialista, gerando o prazer da convivência e a valorização do conhecimento de outras pessoas. 36

Na opinião de Sorj, a sociedade brasileira é dominada por relações pessoais e

38 nexos interpessoais, o que faz a identidade depender mais da solidariedade afetiva e emotiva do que da razão e imaginação. Dada essa caraterística brasileira, é mais díficil fazer os brasileiros derivarem sua identidade nacional da reverência cega por um passado e antepassados divinizados – estratégia empregada pelos salazaristas.

Claudio Filho comenta que:

A especificidade da cultura latino-americana, e especialmente da brasileira, fragilizava a persistência do legado ibérico, já que, na esfera social, diferentemente do proposto pelos colonizadores portugueses e espanhóis, o apego à hierarquia, a respeitabilidade dos nomes de família e os títulos distintivos mostravam-se aqui historicamente relativizados, incitando os comportamentos entre desiguais em qualquer hierarquia a, logo que possível, buscarem no convívio íntimo a estratégia legitimadora das relações sociais. Uma das evidências do poderio da cordialidade em nossa cultura encontrava-se no fato de, ferindo os protocolos da civilidade e do próprio catolicismo, as relações entre os homens e as entidades divinas eram de uma ‘intimidade quase desrespeitosa’, sendo os santos invocados no diminutivo, como sentenciou Gilberto Freyre e reproduziu Sérgio Buarque .37

O informalismo, o anti-ritualismo, o pessoalismo e a paixão pelos diminutivos fazem com que a nação brasileira se materialize com base nas percepções relacionais e identificações emotivas. Correspondentemente, a construção da identidade nacional brasileira realiza-se mais por uma coesão adesiva pelo “coração” dos nacionais de baixo para cima do que pela imposição duma determinada ideologia rígida de cima para baixo. Como consequência, falta ao Estado Novo getulista uma doutrina tão bem-definida e pré-determinada como a salazarista. João de Scantimburgo em A Crise da República Presidencial , declara que o Estado Novo “não tinha ideologia”, já que era o “regime do presidente, de ‘Sua Majestade’, o Presidente.” 38 Thomas Skidmore

39 também insiste que o Estado Novo getulista funciona “sem qualquer base ideológica consistente, fruto de uma criação altamente pessoal”. 39 E Edgard Carone observa que a consolidação do aparato estatal getulista faz-se “segundo as circunstâncias” de modo que “falta orientação única, ideológica e política”. 40 Até o próprio ditador, numa carta dirigida a Oswaldo Aranha, em Dezembro de 1937, procura “explicar suas resoluções como tendo sido determinadas pelas necessidades do país, sem levar em consideração ‘princípios políticos ou idéias preconcebidas’” 41

A insuficiência do blueprint ideológico no Estado Novo getulista, é, porém, completada pela abundância emotiva e sentimental na construção da brasilidade.

Contudo, nem a afetividade nem qualquer emoção emerge ex nihilo , e a “comunidade de coração” (termo de Almeida), que se relaciona estreitamente com familiaridade e experiências pessoais, tem que se formar com apoio em certo alicerce emocional.

William Bloom argumenta que a identidade nacional “describes that condition in which a mass of people have made the same identification with national symbols – have internalized the symbols of the nation – so that they may act as one psychological group when there is a threat to or the possibility of enhancement of, these symbols of national identity.” 42 Este símbolo, no Brasil durante a época de

Vargas, é o próprio ditador que, com seu populismo e, posteriormente, o trabalhismo exerce enorme ressonância compassiva e apelo emotivo entre os brasileiros que são antes seres cordiais do que seres racionais ou seres nacionais. Ele é chamado carinhosamente de Getúlio 43 ou Dr. Getúlio ou pela sua alcunha “Seu Gegê”, e seu estilo político é conhecido como Getulismo 44 em contraste com o salazarismo em

40

Portugal.

Com sua autoridade ditadorial e afinidade paternal, forma-se ao redor desse pai de pobres a comunidade de coração brasileira, sendo que as caraterísticas relativas ao caráter de Getúlio, como afabilidade, amabilidade e bondade entre outras que ajudem os brasileiros ordinários a identificar-se com o presidente, são propositadamente divulgadas e sublinhadas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda. Para Denis

Rolland, a sensibilização do ditador constitui de fato uma mitificação cuja natureza se caracteriza por cotidianidade e aproximidade em vez de divindade e sublimidade, como no caso de Salazar:

[D]urante o Estado Novo realiza-se pela primeira vez no Brasil a tentativa de mitificação do Estado. É a expressão do mito da nação e da figura do chefe de Estado que encarna o destino nacional e traduz as verdadeiras aspirações de toda a coletividade. Os laços entre o povo e o chefe de Estado estabelecem-se pela relação mítica, criando assim uma identidade absoluta entre o representante e os representados. Sobre uma tela de fundo que sublinha a suposta ausência arbitrária de um Estado que recusa a força e a violência, o discurso oficial constrói a imagem de um presidente com base em conceitos aprovados e bem estudados pela pesquisa brasileira. 45

Heloísa Paulo opina que:

O objectivo é tornar a sua figura (Vargas) o mais popular possível. Getúlio é apresentado como um homem comum, pai de família, mas que possui características especiais como a do ‘malandro’, figura do indivíduo que não trabalha e vive de expedientes pouco honestos, tão popular nas ruas do Bairro da Lapa. Não o ‘malandro’ vadio e explorador, antes aquele que usa dos conhecimentos da “malandragem”, da astúcia, para não se deixar enganar, nem permitir que o ‘povo’ seja enganado. O seu nome é motivo para letras de samba e as suas tiradas são tomadas como exemplo do humor do

41

brasileiro. A própria figura de Getúlio, habitualmente vestido com o fato de linho branco e chapéu ‘Panamá’, contribui para esta imagem, misto de ‘malandro’ e de caudilho paternalista. Em 1940, para comemorar o aniversário do Presidente, é realizado na rádio um concurso de músicas sobre a sua pessoa.” 46

Uma leitura de escritos do ditador como diários, correspondência e discursos revela ainda que Getúlio Vargas é uma pessoa mais emotiva em comparação com seu homólogo português. Entre elas, a mais ilustradora será a carta testamento:

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História. (, 23/08/54 - Getúlio Vargas) 47

4 Continuidade na Comunidade Imaginada

O historiador e ideólogo salazarista, João Ameal uma vez opinou sobre a identidade nacional do seguinte modo:

A identidade nacional aparece essencialmente como aquilo que é o mundo visto por um determinado grupo dominante numa sociedade

42

particular. Essa identidade, e ainda dentro deste ponto de vista, é portanto uma narrativa, não é uma coisa, é uma representação e ela muda, é trabalhada política e economicamente, sendo pois manipulada. Normalmente, esta idéia de identidade é baseada no passado como se o passado fosse qualquer coisa ali literal. O passado é antes de mais algo que é redescoberto, é recontado e vai ao encontro do nosso desejo, da nossa memória e das nossas expectativas. E quando nós dizemos «cultura portuguesa», aliando esta idea de cultura com a de nação, existe aqui um fenómeno em que a cultura fica elidida justamente nessa idéia de nação, e mais uma vez se apresenta como uma construção: constrói-se uma nação, constroem-se tradições. A idéia da casa portuguesa, a idéia da música portuguesa, etc. 48

David Lowenthal concorda com Ameal, escrevendo que: “Endurance also distinguishes historical knowledge. Whereas most memories perish with their possessors, history is potentially immortal. Indeed, preserving knowledge of the past is one of history’s prime raison d’être : both oral accounts and archival records have long been kept against the lapse of memory and devouring time. History is also less open to alteration than memory: memories continually change to conform with present needs, but the historical record to some extent resists deformation.”49 É de notar que ambos, Ameal e Lowenthal, tocam num elemento essencial da identidade para além da memória, que é a continuidade, o que provavelmente pode responder às perguntas de David Hume: “What then gives us so great a propension to ascribe an identity to these successive perceptions, and to suppose ourselves possest of an invariable and uninterrupted existence thro' the whole course of our lives?” 50 , visto que a memória no seu estado aleatório não será capaz de estruturar uma identidade nacional de maneira coerente e estável. A memória tem que ser contínua em vez de isolada ou fragmentada, e a continuidade aqui não implica necessariamente a

43 incessante e ininterrupta recordação nem “uma espécie de concentração no tempo e no espaço (...) que exige a integração dos problemas ou das suas partes em sistema ou plano a ser executado, segundo a ordem mais racional”,51 mas a coerência da memória no sentido de que se pode apreender uma conexão sólida entre o passado e o presente. Tal conexão estável é caraterizada pela dependência do presente ao passado, e por uma transição da natureza derivativa entre os dois, quer dizer, o presente deve ser percebido como a extensão do passado na atualidade. Na ideologia estadonovista, não importa que a continuidade seja fatual ou ilusória desde que os nacionais se apercebam de, e reconheçam a ligação inquebrantável entre a inatualidade e atualidade, dado que o objetivo de manter tal continuum de memórias é sustentar e prolongar a causal line no curso da evolução e vicissitudes da nação, dando assim historicidade e legitimidade à identidade nacional. Ernest Renan argumenta que a construção da nação depende, em grande parte, da ligação da glória do passado com a vontade de construir um futuro comum:

A nation is a soul, a spiritual principle. Two things, which in truth are but one, constitute this soul or spiritual principle. One lies in the past, one in the present. One is the possession in common of a rich legacy of memories; the other is present-day consent, the desire to live together, the will to perpetuate the value of the heritage that one has received in an undivided form. Man (...) does not improvise. The nation, like the individual, is the culmination of a long past of endeavours, sacrifice, and devotion. Of all cults, that of the ancestors is the most legitimate, for the ancestors have made us what we are. A heroic past, capital upon which one bases a national idea. To have common glories in the past and to have common will in the present; to have performed great deeds together, to wish to perform still more. (...) A nation is therefore a large-scale solidarity, constituted by the feeling of the sacrifices that one has made in the past and of those that one is prepared to make in the future. It presupposes a past; it is summarized, however, in the

44

present, by a tangible consent, the clearly expressed desire to continue a common life. 52

Hoje em dia é mainstream conectar o Estado Novo ao historicismo, tradicionalismo, passadismo e saudosismo, especialmente no caso do Portugal salazarista, o que inevitavelmente coloca os regimes ao lado do passado e do antigo e em oposição a “novo”. Deste modo, o Estado Novo salazarista autodefine-se como

“uma entidade que representa, para os portugueses de hoje, o acordo de tudo o que é permanente e de tudo o que é novo, das tradições vivas da Pátria e dos seus impulsos mais avançados. Representa, numa palavra, a vanguarda social e política” 53 Assim, o nome do Estado Novo parece tornar-se uma contradição em si. Por um lado, o Estado

Novo estabeleceu um relacionamento simbiótico com o passado do qual deriva todas as suas forças espirituais e legitimidade, e por outro lado, toma uma postura virada ao vanguardismo tentando representar a nação na sua plenitude na atualidade. Segundo

Claude Lévi-Strauss, em “The Structural Study of Myth”, a criação dum mito, em geral, visa resolver um paradoxo por meio da elaboração dum modelo lógico. De fato, a função essencial de mito é fortificar uma idéia abstrata para que ela se aplique na realidade e produza efeitos antecipados através da influência no comportamento das pessoas sujeitas a essa idéia, enquanto enfraquece aspectos contraditórios normalmente factuais e concretos da idéia e cega os influenciados para que eles omitam ou não atendam a existentes contra-exemplos aparentes na realidade. Numa palavra, o mito desempenha o papel crivo que só mantém o que é deliberadamente desejado e filtra o não desejado. No salazarismo, entre a “novidade” expressa em nome do Estado Novo e a ideologia tradicionalista estadonovista destaca-se a idéia de

45 continuidade que resolve essa aparente contradição.

Com base na perspectiva de continuidade, o pensamento passadista pode, em essência, coadunar-se com a idéia de “novo”. Entretanto, esse novo não é o “novo” da inovação, mas o da renovação. Na expressão de António Cândido, o Estado Novo é um ente “repressivo e renovador”, mesmo que a renovação do Estado Novo brasileiro pareça orientar-se mais para a modernização e potencialização do país num sentido sutilmente diferente do que o rumo português. A significação da renovação assenta no seu nexo tanto com o passado como com o presente e futuro. Ela é a continuação e renascença do passado na atualidade, mantendo o continuum duma cultura que tem possibilidades de se estender ilimitadamente, a sequência duma história que pode ser repetida constantemente, e a sucessão duma nação que pode ressurgir momentaneamente. Um corolário da renovação é a continuidade que não só descreve o estado das memórias como também a natureza da identidade nacional. Em relação à identidade pessoal, a continuidade é um processo de intrinsic causation sugerida por

Russell, ou, na interpretação de Patterson, uma causal line em que um objeto é visto não como uma substância imutável, mas “a string of causally connected occurrences of the complex” 54 . Quanto à identidade nacional, a continuidade reside nessa causal line composta por uma série de memórias coerentes dos eventos históricos artificialmente homogeneizados. Sem a continuidade, a identidade nacional jamais pode se considerar como uma identidade estática, intermitente e estagnante à qual faltam hereditariedade e maleabilidade, representando a nação só num determinado período histórico e vencendo além do seu ambiente específico. No debate intelectual

46 denominado Existe uma Cultura Portuguesa? , foi proposta a identidade como continuidade, dado que aquela é algo dinâmico e processivo:

Nós temos muito essa idéia de identidade enquanto continuidade, vista esta quer em termos de identidade quer em termos de tradição. E isso é uma coisa que a própria História e aquilo que acontece diante dos nossos olhos desmentem, mostrando exactamente o contrário. A identidade não é una, a identidade é ambivalente e é um processo, é uma coisa que está em formação. 55

A continuidade representa o curso em que o passado e o presente se sobrepõem e testemunha o processo que o passado cria e nutre o presente que logo por sua vez cria e nutre outro presente. “Tradição e inovação dialogam para assegurarem a renovação social garantindo que, em cada momento, o legado do passado seja

“actualizado” sem sofrer subversão capaz de pôr em causa a identidade da cultura a que respeita.” 56 Se as memórias formam os elos na história nacional simbolizando diferentes fases e eventos históricos no curso do tempo da nação, a continuidade é o fio que enfia os elos para que se componham numa cadeia linear e unidireccional. E este fio condutor entre esses elos na formação e manutenção da nação na realidade reflete uma força mental e espiritual cuja existência, quer artificial quer natural, é supratemporal. A identidade nacional não surgirá duma mera acumulação das memórias coletivas, mas formar-se-á ao longo desse fio condutor que se pode compreender como uma versão da causal line que mencionei há pouco. A continuidade também implica um processo de assimilação e adaptação, integrando elementos essenciais e duradouros do passado e se adaptando aos requisitos e às condições dos novos tempos sem mudar o rumo do evoluir nacional. Quanto ao

47

Estado Novo salazarista, é evidente que Portugal é encarregado de continuar sua grande missão histórica e perpétua que, no entender do Estado, se iniciou desde os primeiros gestos da independência via as reconquistas no século XIII. Simbolizando a renascença pátria, o Estado Novo emerge na sequência de um período de caos e crises

à semelhança das grandes façanhas portugueseas que sempre foram precedidas por momentos críticos, e retoma o fio condutor da nação portuguesa, restituindo assim a identidade nacional como se ela nunca tivesse mudado. “[N]um conhecido postal de propaganda, intitulado ‘Salazar Salvador da Pátria’ – Salazar empunhando um escudo e uma espada e envergando um traje guerreiro, imagem inspirada na escultura de D.

Afonso Henriques, de Soares dos Reis – é restauração mítica e redentora.” 57 Tal analogia mitificadora do chefe de estado demonstra a intenção estatal de estabelecer a ligação entre o passado e o presente. Na publicação oficial do Estado Novo, o protagonista Manuel também afirma essa inclinação do mesmo:

Na nossa História todas as grandes glórias nacionais andam ligadas entre si por um fio invisível, sejam elas militares, científicas ou literárias. Esse fio invisível é o sentido da unidade espiritual que formámos no tempo e no espaço: no tempo desde o começo da nacionalidade; no espaço desde a Europa a Timor, sem esquecer as comunidades portuguesas que vivem no estrangeiro (...) Portugal – não é apenas o dia de hoje, os sacrifícios, os desejos e as realizações actuais, mas também as memórias do Passado e as promessas do Futuro; Portugal, o nosso Portugal não é apenas dos vivos – mas também dos mortos e dos que hão-de nascer e viver, para continuar Portugal. 58

Através do forjamento da continuidade identitária, o Estado Novo poderá realizar mais habilmente o seu objetivo de “mesmo povo, mesma nação e mesmo

Estado”, visto que devido à existência da continuidade identitária, a identidade

48 nacional perde, até certo ponto, sua relatividade, misturando a antiguidade com a atualidade e tornando-se atemporal. A estratégia renovadora que o Estado Novo adota para conectar o passado com o presente inevitalvemente eleva a importância da continuidade na construção da identidade nacional. O que ficou dito acima ilustra a dupla função da continuidade nas memórias coletivas e na identidade nacional.

5 Consciência na Comunidade de Coração

Enquanto a comunidade imaginada baseada na memória coletiva imposta ou transplantada pelas autoridades recorre à manutenção da pretensa continuidade entre a antiguidade e a atualidade, a comunidade de coração formada pelo sentimento e afetos nacionais precisa de se apoiar na consciência tanto individual como nacional para consolidar o conhecimento da realidade e associação emotiva com a comunidade.

Consciência 59 , cuja correspondente palavra inglesa é consciousness , representa “a sense of one's personal or collective identity, especially the complex of attitudes, beliefs, and sensitivities held by or considered characteristic of an individual or a group.” Segundo o Dicionário Aurélio , a consciência é o atributo que o homem toma em relação ao mundo e, posteriormente, em relação aos chamados estados interiores e subjetivos, o que finalmente resultará na possibilidade de níveis mais altos de integração. Enquanto o Estado Novo salazarista se esforça por misturar o passado com o presente, o getulista pretende, por contrário, destacar as características sui generis do governo Vargas na realidade: suas particularidades, alteridades e novidades

49 que distinguem o Brasil getulista tanto horizontalmente no mundo como verticalmente na história. Assim, o governo Vargas tem que conscientizar seus nacionais da sua alteridade e novidade, característica que despertarão afinidades emotivas com o

Estado nacional ou a nação estatal.

Lúcia Lippi Oliveira no seu “O Intelectual do DIP: Lourival Fontes e o Estado

Novo” comenta sobre significado do título do Estado Novo brasileiro: “o novo regime instaurado em 1937, como já mencionamos, procura se apresentar na pena de seus intelectuais como ‘novo’ e ‘nacional’. É ‘novo’ na medida em que procura modernizar o país. É novo porque, pela primeira vez, se apresenta voltado para as supostamente verdadeiras raízes da nacionalidade. Ao se implantar um novo regime autoritário, recusamos os modelos liberais importados e deixamos de imitar outras sociedades e culturas.” 60 Nelson Jahr Garcia argumenta igualmente que “[n]o que se refere à posição de Vargas, o que se tem é uma argumentação visando legitimar o golpe e o regime. Havia uma grande preocupação, também em se rejeitar quaisquer semelhanças com os regimes fascistas da Europa. Dessa forma, procurava-se justificar o regime implantado por ser o mais adequado à realidade brasileira, negando-se a influência de qualquer modelo teórico ou abstrato. Como se tratava de uma época em que se criticavam severamente a imitação, a adoção de idéias, inadequadas à realidade e a falta de realimos das instituições.”61 O “novo” no Estado Novo brasileiro tem pelo menos dois significados: por um lado ele é diferente da imitação dos modelos estrangeiros e, por outro, é diverso do que é velho. Além dos motivos da independência nacional e autonomia cultural, o Estado Novo getulista, segundo

50

Oliveira, poderia basear seu ideário em trabalhos de Pedro Dantas, pseudônimo de

Prudente de Moraes Neto na revista Cultura Política e no livro de Rosário Fusco, intitulado Política e Letras . Ambos os autores advogam a integração entre a política e a cultura mediante o relacionamento do movimento modernista de 1922 com a

Revolução de 1930 e o subsequente estabelecimento do Estado Novo. Todavia, ao ver de Mário de Andrade, essa combinação coordenada entre o modernismo e instalação do Estado Novo não tem fundamento. O surgimento do movimento modernista consiste somente numa necessidade ou numa resposta à exigência da conjuntura e

Zeitgeist daquele tempo, negando assim a aliança entre cultura e política desejada por

Getúlio Vargas:

o modernismo foi um trabalho pragmatista, preparador e provocador de um espírito inexistente então, de caráter revolucionário e libertário. (...) Graça Aranha concluía, num dos seus ensaios, que o Modernismo não devia se confinar à preocupação estética, mas tinha que se completar, intervindo na política também. (...) na maioria dos modernistas, quem quer que lhes estude as páginas teóricas e os manifestos de então, perceberá o espírito insatisfeito contra a própria pasmaceira democrática e a tendência ..para as extremas. Veio a revolução de 30. Provocada pelo modernismo? Deus me livre dizer semelhante bobagem! Mas na sua força formava aquele mesmo Partido Democrático, que fora o principal preparador dela. E na sua aceitação burguesa havia sempre uma vontade do novo que fazia dez anos os modernistas propgavam e ensaiavam. Foi um bem? Foi um mal? Foi uma necessidade, ordem natural de evolução pra melhores futuros. 62

Frantz Fanon, no fim da sua vida, observa que: “National consciousness, instead of being the all-embracing crystallization of the innermost hopes of the whole people, instead of being the immediate and most obvious result of the mobilization of the people, will be in any case only an empty shell, a crude and fragile travesty of what it

51 might have been.” 63 A cultivação da consciência somente com base na propaganda política será uma empty shell , e o intuito de Vargas de salientar a coincidência entre o

Estado Novo o modernismo é colocar o elemento cultural na política estadonovista, alargando a influência e popularidade do regime e, simultaneamente, enchendo tal empty shell . O regime getulista, que não emprega uma estratégia tão fundamentalista e historicista como Portugal, associa a consciência nacional à soberania popular concretizada em instituições públicas e estatais. Pode observar-se um enorme esforço político de camuflar as tentativas estatais, rcunhando-as como iniciativas advindas da vontade popular, o que se apresenta mais sútil do que as políticas salazaristas em

Portugal. Marilena Chauí observa que: “Os adjetivos Nacional e Popular podem indicar maneiras de representar a sociedade sob o signo da unidade social. Isto é,

Nação e Povo são suportes de imagens unificadoras tanto no plano do discurso político e ideológico quanto no plano das experiências e práticas.” 64 A valorização do popular, de fato, reflete o objetivo do Estado de formar uma consciência nacional em nome do popular mas sob o controlo do Estado nacional que, segundo Marilena Chauí,

é o único que tem capacidade de recuperar a universalidade identitária inexistente na cultura popular. Almir de Andrade, em “Problemas Políticos e sociais”, versa assim sobre a relação entre a consciência política e a cultura popular: “A missão da cultura popular e social não é apenas exprimir a vida, mas sim, substancialmente, a vida organizada. (...) A criação de uma verdadeira e sadia consciência política importa na compreensão profunda desses vínculos entre a cultura e a política”. 65 Por isso, não é uma mera eventualidade o fato de que Getúlio Vargas recorre ao populismo para

52 combinar o nacional e o popular e edificar a brasilidade à popular, o que representa, em essência, uma pseudo-auto-consciência da perspectiva da massa.

É de enfocar que a consciência/conscientização referida acima é totalmente diferente da que os socialistas e ativitistas como Paulo Freire 66 e Gyorgy Lukács 67 , que conceptualizam a conscientização. Segundo esse autores, o indivíduo conhece e ousa conhecer a realidade na sua plenitude e na sua forma genuína, o que é um processo fundamentado na relação entre a consciência e a realidade, e neste processo do desenvolvimento da consciência aprofunda-se o conhecimento das suas particularidades e uniqueness , facilitando assim a formação da identidade. Em relação

à conscientização no âmbito nacional, esta é pré-programada para apontar para certos aspetos da nação e para determinadas memórias, a fim de invocar certo sentimento ou emoção entre a massa como afeto e afinidade com Getúlio. Assim, a formação da identidade nacional não é um corolário da conscientização, sendo que esta é dirigida propositadamente à construção duma identidade nacional já desenhada no diagrama do Estado. É necessário que os nacionais estejam conscientes no sentido de que não só o conhecimento mas, mais importante, os sentimentos e atitudes são envolvidos. A consciência nacional não é um termo neutro e equidistante, mas um termo predileto e passional, e os nacionais propriamente conscientizados não devem ficar satisfeitos com o conhecimento da realidade; em contraste, eles devem ser motivados a agir em conformidade com programas montados pelo Estado que, em nome da nação, consegue representar os seus sujeitos no máximo grau, pensando por eles, sentindo por eles e agindo por eles. Nas palavras de Joaquim de Carvalho: “[O] que poderemos

53 vir a ser, não se revelava no indivíduo, em particular, mas no todo da Nação, no seu espírito materializado no Estado.” 68 Assim sendo, a primária representação desse todo da nação é o sentimento conjunto dos nacionais vis-à-vis a nação simbolizada, no caso do Brasil, por Getúlio Vargas. Carvalho acredita que a sede efetiva da nação reside na consciência dos seres nacionais que a compõem, o que, porém, não significa que a consciência de uma acumulação da massa de fato constitua a a nação que deve ser sentida como emoção, percebida como ideal e conscientizada como um total. A consciência nacional forjada e motivada pelo Estadové o que importa na construção da “comunidade de coração” e da identidade nacional. O discuro proferido por

Oswald Aranha, na ocasião do enterro de Getúlio Vargas, demonstrar mais eficazmente a estreita relação entre a consciência à getulista e a comunidade de coração estadonovista:

Quando, há vinte e tantos anos, assumiste o governo deste País, o Brasil era uma terra parada, onde tudo era natural e simples; não conhecia nem o progresso, nem as leis de solidariedade entre as classes, não conhecia as grandes iniciativas, não se conhecia o Brasil. Nós o amávamos, de uma forma estranha e genérica, sem consciência da nossa realidade. Tu entreabriste para o Brasil a consciência das coisas, a realidade dos problemas, a perspectiva dos nossos destinos. Ao primeiro relance, viste que a grande maioria dos brasileiros estava à margem, e a outra parte estava a serviço das explorações estrangeiras. E então, este espírito que conhecemos, retemperado no drama da fronteira, se alarmou nos seus estudos e se multiplicou na generosidade de seus sentimentos. Trouxeste uma cruzada que não está marcada no tempo e não tem horizonte fixado, que é a da integração dos brasileiros pelos brasileiros no seu próprio destino. Até então o Brasil não era nada, esperava por tudo. Não havia consciência do nosso progresso. Tu ofereceste a realidade, penetraste nela, tudo deste pelo novo Brasil que há de surgir, que há de crescer e se multiplicar e, quando integrado na sua grandeza entre as maiores

54

nações do mundo, que fatalmente viremos a ser, o teu nome estará não neste túmulo, mas no topo de um pedestal, onde a gratidão de todos os brasileiros te levará como reconhecimento. 69

6 Nacionalismo: combinação de imaginação e coração

Tanto a comunidade imaginada como a comunidade sentida formam-se por via do reconhcimento mútuo e interligação entre os membros constituintes e baseiam-se na associação deles com a comunidade como um todo uno. Portanto, sugiro o termo

“comunidade de associação” em substituição de qualquer das duas referidas acima.

Tal associação pode ser considerada como um termo neutro no sentido de que ela não se preocupa com a forma de os nacionais se associarem uns com os outros dentro de uma nação, ou como um termo ecléctico que se conforma com ora o coração, ora a imaginação, ora a mistura dos dois. Benedict Anderson afirma que: “[c]ommunities are to be distinguished, not by their falsity/genuineness, but by the style in which they are imagined.” 70 Admitimos a existência da dicotomia falsidade/autenticidade, mas será mais rendoso analisar o estilo através do qual uma comunidade nacional é edificada. E esta é uma metodologia orientada tanto para o processo como para o resultado. Contudo, eu próprio tendo a conceptualizar a comunidade nacional de associação como sendo um ente que contém um núcleo de coração e uma extensão radioativa de imaginação. Aliás, as fronteiras, que demarcam o âmbito do coração do da imaginação, por um lado são flexíveis e movediças, muitas vezes dependendo da escala de migração interna e da eficácia da propaganda nacional; e, por outro, nunca serão estandardizadadas, sujeitando-se apenas à trajetória pessoal de cada um.

55

Por outras palavras, a comunidade imaginada não pode assentar meramente na imaginação, enquanto o elemento de emoção sozinho não é o único componente da comunidade coração: a primeira precisa de cultivar emoções nacionais que permeiem a mente nacional, e a última necessita de uma ideologia oficial para controlar o coração pátrio. Para a união nacional portuguesa, a melhor maneira de agir é “uma acção incessante de educação mental, moral e espiritual do Povo Português, visando a realizar a sua completa integração nos conceitos políticos, sociais e nacionais do

Estado Novo, Nacionalista e Corporativo, e a despertar sentimentos de elevado

Nacionalismo e paixonada ambição de grandeza Pátria e Fé nos seus destinos. (grifo meu).”71 Humberto da Cruz, diretor da revista Propaganda Nacionalista , também frisa o fator de sentimento no processo da “construção social”: “O Chefe que se fixa na História, que se impõe por si mesmo, pelos seus valores morais e intelectuais, despertando nas multidões sentimentos de veneração, respeito e gratidão, exaltando vibrações de entusiasmo pela sua eloquência material e espiritual, talhando com clara visão e firme vontade os planos de construção social, fixando a disciplina e a ordem em todas as circunstâncias, com espraiamentos de alegria, esse surge por si, da massa, sem chamadas protectoras” 72 . Quanto ao Brasil, além do Departamento de Imprensa e

Propaganda chefiado por Lourival Fontes, Vargas tem a revista Cultura Política como sua principal arma ideológica, no intuito de mentalizar, senão domar, sua comunidade de coração. Com o objetivo de “definir e esclarecer as transformações sócio-econômicas por que passava o país” e “relatar minuciosamente as realizações governamentais”, a revista começa a circular em 1941 e vende-se nas bancas de

56 jornais tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, ao mesmo tempo que muitos outros jornais e revistas são censurados ou forçados ao fechamento por levantar vozes contrárias à governamental (o dono do jornal O Estado de S. Paulo , Júlio de Mesquita

Filho foi forçado a deixar o país, o que é um raro exemplo de exílio durante o Estado

Novo). A maior característica da Cultura Política será a diversidade dos seus colaboradores, incluindo tanto Almir de Andrade, Francisco Campos, Azevedo

Amaral e como Graciliano Ramos, Gilberto Freyre e Nelson

Werneck Sodré. A cooptação e utilização da inteligência faculta o governo Vargas uma penetração mais sútil e aceitável na mentalidade coletiva. 73

Eventualmente a comunidade imaginada e a comunidade de coração precisam de convergir juntas, e a força que combina a imaginação e coração é o nacionalismo.

Ele engendra demandas de buscar a identidade nacional cujo surgimento envolve principalmente o reconhecimento e a identificação que se dirigem à formação duma comunidade nacional de associação a qual fornece solos fecundos para nutrir mais nacionalismo, assim constituindo um processo circular e auto-reforçador. Pode observar-se que o nacionalismo é o prime mover deste inteiro processo, mas vale a pena salientar que o nacionalismo não poderia existir sozinho. Ele existe sempre com um objectivo, que é o de procurar definir a Nação, ou seja, buscar uma identidade nacional. Neste sentido, ele é apenas um meio através do qual a imaginação se transforma em sentimento, a distância na proximidade, e o passado no presente (a transformação da imaginação em sentimento não significa de maneira nenhuma a redução de força imaginária, mas pelo contrário que a imaginação “se sublima”

57 produzindo efeitos emotivos), enquanto expande a esfera da comunidade de coração para além do presente e da realidade, ancorando o sentimento e emoção nacional em bases tanto fatual e objetiva como idealizada e imaginada. O nacionalismo divulga sensações e fantasias entre nacionais como um agente de histeria contagioso. Tom

Nairn, no seu livro The Break-up of Britain: crisis of neo-nationalism , descreveu o nacionalismo do seguinte modo: “Nationalism is the pathology of modern developmental history, as inescapable as ‘neurosis’ in the individual, with much the same essential ambiguity attaching to it, a similar built-in capacity for descent into dementia, rooted in the dilemmas of helplessness thrust upon most of the world (...) and largely incurable.” 74 Devido às consequências de “neurose e demência incuráveis” que são frequentemente desejadas pelas autoridades oficiais, o nacionalismo vira uma ferramenta favorita do Estado para manipular a mentalidade coletiva. Deste modo, a melhor maneira de dirigir o nacionalismo é forjar uma identidade nacional tantalizadora para que o nacionalismo prossiga incessantemente.

Embora alguns intelectuais, como Benedict Anderson, considerem o nacionalismo como um artefato cultural de natureza especial, creio que nos casos estadonovistas o inverso poderia ser verdade: a cultura transforma-se num artefato nacional.

Contudo, o nacionalismo não é de maneira nenhuma uma invenção ou produto do Estado Novo. Em Portugal, obras literárias como Mensagem, de Fernando Pessoa,

A Arte de Ser Português, de Teixeira Pascoaes, entre muitas outras (curiosamente os precursores do nacionalismo português como José Agostinho de Macedo, José

Acúrsio das Neves e António Ribeiro Saraiva, etc., não gozam de muito renome),

58 assim como o Integralismo que se lhes seguiu, incontestavelmente evidenciam a onda do nacionalismo português depois do trauma nacional provocado pelo Ultimato Inglês.

Heloísa Paulo verifica que:

O ideal nacionalista, porém, não é somente fruto da ideologia do Estado Novo, do pensamento católico ou integralista. Na revista A Águia a insatisfação toma foros do nacionalismo extremado e de um saudosismo sebastianista. Todos reclamam reformas, quer os que se situam na extrema direita, como os integralistas, representados pelas revistas como a Nação Portuguesa , quer o grupo mais à esquerda, configurado a partir de 1921 no periódico Seara Nova , e posteriormente na Presença . Em 1922 a revista Contemporânea lança a proposta de se “viver de novo Portugal”, reunindo no seu âmbito uma proposta de renovação marcada por matizes diferenciados, como a idéia da “ordem social” de Homem-Cristo Filho, o nacionalismo assumidamente integralista de António Sardinha e Monsaraz, da defesa da raça lusa e do anti-semitismo de um Mário Saa, ou a visão estética da arte, marcadamente modernista, e nem por isso menos nacionalista, ou providencial de António Ferro, Almada Negreiros ou Canto da Maia. 75

Entre estes pensadores e ativitistas nacionalistas pré-Estado Novo, vários aderem à ditadura portuguesa nas décadas de trinta e de quarenta, especialmente depois de António Ferro ter chefiado o Secretariado de Propaganda Nacional, órgão governamental que se esforça por modelar os portugueses, tentando forjar e impor-lhes uma pré-determinada portugalidade. Durante o Estado Novo, o apelo ao nacionalismo é ainda mais exacerbado: numa petição para a legalização e apoio do

Movimento Trabalhista Português preconiza-se que portugueses não devem ficar satisfeitos por serem nacionalistas passivos e comodistas, que só sabem concordar mentalmente com directrizes superiores, mas devem possuir o nacionalismo-ativo de espírito 76 . Através da análise dum estudo sobre a União Nacional realizado por Supico

59

Pinto, podemos constatar novamente o peso do nacionalismo na ideologia estadonovista: “uma acção incessante de educação mental, moral e espiritual do Povo

Português, visando realizar a sua completa integração nos conceitos políticos, sociais e nacionais do Estado Novo, Nacionalista e Corporativo, e a despertar sentimentos de elevado Nacionalismo e apaixonada ambição de grandeza Pátria e Fé nos seus destinos.” 77

No Brasil, a ansiosa busca duma nação autônoma e potente por intelectuais teve coberto um caminho mais longo: desde o Indianismo representado por Iracema , de

José Alencar, a Porque me Ufano do Meu País , de Afonso Celso, a Triste Fim de

Policarpo Quaresma de Lima Barreto até ao Movimento Modernista (para não mencionar ideólogos do nacionalismo como Oliveira Vianna, Francisco Campos e

Azevedo Amaral). De acordo com Marilena Chauí, o que ficou referido acima são apenas uns elos da cadeia nacionalista brasileira:

Assim, durante os anos 10, o slogan dominante era: Consolidar a Nação (o que legitimou o extermínio dos rebeldes de Canudos e do Contestado); durante os anos 20 e 30: Construir a Nação (o que permitiu a absorção de todas as manifestações culturais pelo Estado); durante os anos 40 e 50: Desenvolver a Nação (fazendo com que a Cultura Popular fosse considerada atraso, ignorância e folclore); no início dos anos 60: Conscientizar a Nação (levando o populismo a produzir a imagem dupla da Cultura Popular como boa-em-si e alienada-em-si, precisando da condução de vanguardas tutelares e revolucionárias); durantes os anos 60 e 70: Proteger e Integrar a Nação (o que levou às práticas “modernas” de controle estatal da Cultura Popular); e agora, Conciliar a Nação (o que talvez seja feito num grande festim onde comeremos broa de milho). 78

Do que ficou escrito por Chauí podemos constatar uma evolução sumária do

60 nacionalismo brasileiro, e, igualmente, que a potencialização da ideologia nacionalista acompanha obviamente a eliminação de forças opositoras políticas e religiosas assim como elementos heterogêneos culturais. O Estado Novo é meramente um dos elos mais salientes nesta cadeia, e a formação da brasilidade, não obstante deslumbrante, se iniciou bem antes do Estado Novo varguista. O que destaca o Estado Novo é que durante o regime getulista passa a ser mais nítida a blueprint de moldar a identidade nacional à medida que aumenta a demanda de consolidar e potencializar a nação que se encontra entre ideologias discordantes, religiões variadas, raças diversas e regiões polarizadas. As frinchas entre os sub-grupos dentro de um país, o que quer seja que os distingue uns dos outros, podem se preencher por uma identidade nacional definida; e os elementos heterogêneos coadunar-se-ão juntos sob uma égide sublime e unificadora que é a Nação. Nos casos de Portugal e do Brasil, o nacionalismo não se transforma num extremado sentimento de xenofobia, mas fica sendo introvertido que incentiva o surgimento, quer natural quer artificial, da identidade nacional. Segundo

Heloísa Paulo, “uma das características dos Estados autoritários nos anos 30 é o apelo ao nacionalismo extremado através do ideal de ‘raça’. O Estado Novo no Brasil não foge à regra. A afirmação da existência de uma “raça brasileira”, no entanto, não significa o apelo às ideias de defesa de uma “raça ariana”, sobretudo numa sociedade onde o elemento negro é uma forte e constante presença. A ‘raça brasileira’ é definida a partir dos parâmetros da mestiçagem e o ‘brasileiro’ apresentado como fruto da união de três raças distintas.” 79 Para além disso, como os modernistas procuram um conceito de “arte” capaz de exprimir a verdadeira noção do “verde-amarelismo”, do

61 nacionalismo e de uma consciência política própria para o Brasil a qual se baseia na recuperação das tradições consideradas genuinamente “brasileiras” (como na imagem

Curupira - o índio com os pés virados para dentro, símbolo duma conscientização interior, ou no ato antropofágico, em que ambos representam um regresso a si e uma forma ou tentativa de recuperar o verdadeiro nacional em substituição de um outro

índio europeizado como o Guarani), o Estado Novo também adota uma postura populista ou pró-popular que visa conjugar o nacional e o popular no patamar do

Estado enquanto atende ao ideal dos modernistas.

Para concluir refira-se que a identidade nacional se alicerce em dois pilares de memória e emoção. Nas palavras de Renan:

A nation is a soul, a spiritual principle. Two things, which in truth are but one, constitute this soul or spiritual principle. One lies in the past, one in the present. One is the possession in common of a rich legacy of memories; the other is present-day consent, the desire to live together, the will to perpetuate the value of the heritage that one has received in an undivided form. Man (...) does not improvise. The nation, like the individual, is the culmination of a long past of endeavours, sacrifice, and devotion. Of all cults, that of the ancestors is the most legitimate, for the ancestors have made us what we are. A heroic past, capital upon which one bases a national idea. To have common glories in the past and to have common will in the present; to have performed great deeds together, to wish to perform still more (...) A nation is therefore a large-scale solidarity, constituted by the feeling of the sacrifices that one has made in the past and of those that one is prepared to make in the future. It presupposes a past; it is summarized, however, in the present, by a tangible consent, the clearly expressed desire to continue a common life. 80

Assim sendo, a questão central passa a ser o grau que cada Estado Novo investe na memória coletiva ou na emoção nacional, e respectivas estratégias e tácticas em implementar a identidade nacional de acordo com a conjuntura política e

62 sócio-cultural assim como, inevitavelmente, o caráter ou capricho dos ditadores.

Nos próximos capítulos, expandirei minha análise das semelhanças e diferenças entre os dois regimes tanto na identidade nacional per se como no processo de a construir.

63

Notas:

1 David Lowenthal. The Past is a Foreign Country . Cambridge: Cambridge University Press. 1985. p. 41.

2 Marie-Claude Groshens,em "Production d'identité et memoire collective. In Pierre Tap (org.) Organizado por Pierre Tap (Paris: Sciences de l'Homme, 1986.

3 Avishai Margalit. The Ethics of Memory , Cambridge: Harvard University Press. 2002. p.67

4 Lowenthal, op.cit., p.197.

5 Sydney Shoemaker. Self-Knowledge and Self-Identity . Cornell University Press, 1963, p.34.

6 Outro exemplo menos preciso será um tornado, apesar de que as moléculas de ar saem e entram continuamente, o tornado como um total fica mesmo.

7 É por isso que uma nação sem uma longa história é inerentemente alejada. A discrepância relativa à história nacional entre Portugal e o Brasil determina as estratégias diferentes de formular identidade nacional pelos Estados Novos respectivos.

8 Luciano Aronne de Abreu. “Estado Novo, realismo e autoritarismo político”. pp.2-3 http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/viewFile/7640/6995.

9 Renan “O que é uma nação?” Nacionalidade em Questão . Maria Helena Rouanet (org.). Cadernos da Pós / Letras . 1997. p.20.

10 João Cezar de Castro Rocha. “ ‘Nenhum Brasil Existe’: Poesia como História Cultural”. In João Cezar de Castro Rocha (org.) Nenhum Brasil Existe , Topbooks, 2003, p.21.

11 Eric Hobsbawm. Nations and Nationalism since 1780:Programme, myth, reality (2nd ed). Cambridge University Press. 1992. pp. 37-8.

12 Lowenthall, op.cit., pp.213-4.

13 Friedrich Nietzsche. On the Genealogy of Morals, Vintage Books . 1989. p.89.

14 Ibidem.

15 AOS/CO/PC-12D/13.

16 AOS/CO/PC-12/10.

17 Constituição Política da República Portuguesa , Imprensa Nacional, Lisboa 1933

18 Gilberto de Mello Kujawski. Idéia do Brasil: A Arquitetura Imperfeita . São Paulo: Senac Editora. 2001. p. 113.

19 AOS/CO/ED-7/7.

20 Michael Derrick. The Portugal of Salazar, Campion Books. 1939. p.66.

21 António Maria Pereira. A Garça e a Serpente, Lisboa: Parceria 2ª.ed. 1945. pp. 259-60.

22 José Blanco. “A Verdade sobre a Mensagem” www. Portalpessoa.org, p..4

64

23 Vise Mensagem: Uma Tentativa de Reinterpretação de Onésimo Almeida e Contra Salazar , uma coletânea de ensaios e poemas de Fernando Pessoa, para saber mais sobre a natureza anti-salazarista de Fernando Pessoa. A utilização das escritas pessoanas pelo Estado Novo salazarista era realmente parcial e podia causar distorções e deformações das idéias originais.

24 Maria Filomena Mónica. Educação e Sociedade no Portugal de Salazar . Lisboa: Editorial Presença/G.I.S.1978. p.141.

25 Denys Cuche. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. (2ªed). Tradução Viviane Ribeiro. EDUSC. 2002. p.41.

26 O tema de ruralismo é tratado mais detalhadamente no capítulo II. Ver também “Values and Ideology in the School Curriculum”, Culture Education andCommunity. Proceedings of the Second National Portuguese Conference ( Cambridge,Mass.: NADC, 1978), pp. 32-49

27 AOS/CO/PC-12E/3.

28 Sérgio Campos Matos. História, Mitologia, Imaginário Nacional: A História no Curso dos Liceus (1895-1939) . Livros Horizonte. p. 72.

29 AOS/CO/PC-12/10.

30 João Ameal. Construção do Novo Estado . Livraria Tavares Martins-Porto. 1938. p.58.

31 Maria Manuela da Silva Fernandes Alves. As Casas do Povo como Instituições Reveladoras da Mundividência do Regime Salazarista , Tese de Mestrado em História das Instituições e Cultura Moderna e Contemporânea. Universidade do Minho. 1998. p.8.

32 Onésimo T. Almeida. “Em Busca de Clarificação do Conceito de Identidade Cultural” in Actas do Congresso, I Centenário da Autonomia dos Açores, Vol.2, A Autonomia no Plano sócio-Cultural , Ponta Delgada: Jornal de Cultura. 1995. p.65.

33 Idem, p. 72.

34 Enquanto no Portugal salazarista realiza-se a Concordata, no Brasil permance a separação do Estado da religião.

35 Azevedo Amaral. O Estado Autoritário e a Realidade Naciona., Editora Universidade de Brasília. 1981. p. 84.

36 Autor anónimo. “Grande Galeria – Relações Humans”. p.5 http://200.150.149.165:9081/wps/wcm/connect/resources/file/eb778b00898e26f/6.GALERIA%2 0RELAES%20HUMANAS.pdf?MOD=AJPERES.

37 Claudio Bertolli Filho. “Sérgio Buarque e Cassiano Ricardo: Confrontos sobre a Cultura e o Estado Brasileiro” http://www.unicamp.br/siarq/sbh/Bertolli_C_F-SBH_Cassiano_Ricardo-Confrontos_Cultura_Esta do.pdf.

38 João de Scantimburgo. A crise da República Presidencial , São Paulo, Pioneira. 1969. p. 219.

39 Thomas Skidmore. Brasil: de Getúlio a Castelo , 4ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1975. p.54.

65

40 Edgar Carone. O Estado Novo. Difel. 1976. p.267.

41 Hélio Silva. 1937:todos os golpes se parecem . Civilização Brasileira. 1970. p. 525.

42 William Bloom. Personal Identity, National Identity and International Relations . Cambridge: Cambridge University Press. 1993. p.52.

43 Getúlio Vargas é o único ditador no Brasil que se chama pelo primeiro nome, o que é um sinal da sua popularidade entre o povo. Os ditadores militares são chamados de nome de família.

44 Só os estudiosos norte-americanos chamam Getúlio Vargas de Vargas e sua doutrina Varguismo.

45 Elide Rugai Bastos, Marcelo Ridenti, Denis Rolland (orgs.) Intelectuais: sociedade e política . Editora Cortez. 2003. p.89.

46 Heloísa Paulo. Estado Novo e Propaganda em Portugal e no Brasil: O SPN/SNI e o DIP . Coimbra: Livraria Minerva. 1994. p.65.

47 Carta Testamento de Getúlio Vargas http://www.culturabrasil.pro.br/cartatestamento.htm.

48 Augusto Santos Silva / Vítor Oliveira Jorge (org.). Existe Uma Cultura Portuguesa? Edições Afrontamento. 1993. pp. 45-6.

49 Lowenthal, op.cit., p.213.

50 David Hume. A Treatise of Human Nature , Longmans Green. 1909. p.181.

51 A Constituição das Câmaras na Evolução da Política Portuguesa . 1934. p. 371.

52 Ernest Renan. “What is a Nation” in Homi K. Bhabha (ed.), Nation and Narration . Routledge. 1995, p. 19.

53 AOS/CO/ED-1ª.

54 Orlando Patterson. “Continuity, Identity and Causal Lines in Socio-Cultural Process”. www.hks.harvard.edu-inequality-seminar-papers-patterson.pdf , p.7.

55 Augusto Santos Silva / Vítor Oliveira Jorge (org.), op.cit. , pp.45-6.

56 René Worms. Les Principes Biologiques de L’Évolution Sociale , Paris, V. Giard & E. Briere. 1910. p 50.

57 Sérgio Campos Matos. História, Mitologia, Imaginário Nacional: A História no Curso dos Liceus 1895-1939 . Livros Horizonte.

58 António Maria Zorro. Honra de Ser Português . Colecção Educativa. 1928. p.179.

59 Segundo o psicólogo britânico Stuart Sutherland em The International Dictionary of Psychology , a consciência define-se como “a fascinating but elusive phenomenon: it is impossible to specify what it is, what it does, or why it evolved. Nothing worth reading has been written about it.”.

60 Lúcia Lippi Oliveira. “O Intelectual do DIP: Lourival Fontes e o Estado Novo”. In: Lúcia Lippi

66

Oliveira. Helena Bomeny (org.) 2001. Constelação Capanema : intelectuais e políticas . Editora FGV : Universidade São Francisco.), pp.47-8.

61 Nelson Jahr Garcia. Estado Novo: Ideologia e Propaganda Política . São Paulo: Edições Loyola. 1980. p.50.

62 Mário de Andrade. “Modernismo”. In O Empalhador de Passarinho . Livraria Martins Editora. 1972. p.188.

63 Frantz Fanon. The Wretched of the Earth . New York: Grove Press. 1961. p. 270.

64 Marilena Chauí. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil . São Paulo: Brasiliense. 1987. p.104.

65 Almir de Andrade. Cultura Política , nº18. pp. 9-10.

66 Paulo Freire. Conscientização . São Paulo. Moraes. 1980.

67 Gyorgy Lukács. Consciência de classe. Extraído de Histoire et Conscience de Classe. Paris : Éditions de Minuit. 1960.

68 Joaquim de Carvalho. Compleição do Patriotismo Português . Coimbra: Atlântida. 1953. p.25.

69 Oswaldo Aranha, discurso ao enterro de Getúlio Vargas http://upassos.wordpress.com/2007/08/24/o-discurso-de-oswaldo-aranha-no-enterro-de-g etulio-vargas/.

70 Benedict Anderson. Imagined Communities: reflections on the origin and spread of nationalism . Verso. 2006. p.6.

71 AOS/CO/PC-4ª/1.

72 AOS/CO/PC-3J/14.

73 A relação entre o Estado e os intelectuais no Brasil é argumentada por extenso no capítulo III.

74 Tom Nairn. The Break-up of Britan . London: New Left Books. 1977. p.359.

75 Heloísa Paulo. Estado Novo e Propaganda em Portugal e no Brasil. O SPN/SNI e o DIP . Coimbra: Livraria Minerva. 1994. p.60.

76 Vise AOS/CO/PC-3J/21.

77 AOS/CO/PC-4ª/1.

78 Marilena Chauí, op.cit., pp.99-100.

79 Heloísa Paulo. Estado Novo e Propaganda em Portugal e no Brasil: O SPN/SNI e o DIP. Coimbra: Libraria Minerva, 1994, p.66.

80 Ernst Renan, op.cit., p. 19.

Capítulo II A Literatura como Missão

1 A Ideologia Salazarista e a Literatura Pré-Neo-Realista

Pese embora as autoridades, especialmente os órgãos encarregados da propaganda nacional, principalmente responsáveis pela construção da identidade nacional no Estado Novo, é indispensável a cumplicidade dos escribas assim como dos escritores de qualidade que são simpatizantes do regime neste processo. É também natural que o campo pró-governo não seja homogêneo: que tenha não só situacionistas, oportunistas, pseudo-pensadores como também verdadeiros intelectuais fascinados pela ideologia salazarista e cujos pensamentos e obras gozam tanto de renome como de valor artístico. Assim, surge a questão de diferenciar o grupo de plumitivos e escritores que apoiam quer o regime quer a sua ideologia, dos intelectuais anti-salazaristas que, exilados ou não, constantemente lutam contra a canga imposta pelo Estado Novo.

Ahmad Sadri, em Max Weber’s Sociology of Intellectuals , tenta distinguir e contrastar a intelligentsia que se define como o agregado de um estrato particular ou estratos particulares composto(s) por membros educados com os indivíduos que se consideram como um pequeno grupo de pessoas intelectual e mentalmente criativas.

Em relação a estes indivíduos criativos que são, na realidade, produtores de ideias e mercadorias intelectuais, aqueles são meramente consumidores do que estes produzem. Sadri define os intelectuais como os produtores das idéias criativas que são usualmente inimigos de ideologias, especialmente de ideologia oficial, e a

67 68 intelligentsia como um grupo de consumidores que só utilizam tais mercadorias produzidas pelos intelectuais para os seus interesses materiais.

Em comparação com os intelectuais, a intelligentsia tende a perceber ideias duma maneira mais instrumental e está mais disposta a agarrar-se às ideias solidificadas (ideologias) que servem seus interesses. Por contraste, a atitude dos intelectuais vis-à-vis ideias é menos determinada por considerações práticas, o que não significa, contudo, que estes abdiquem de interesses materiais, mas sim que os seus interesses ideais precedem os materiais. Sadri continua argumentando que

“Practical consequences of ideas, therefore, even when they adversely affect intellectuals’ material interest, cannot solely dictate the contents of intellectuals’ beliefs and thoughts. The push and pull of idea and material interests of intellectuals have greatly influeced the development of knowledge and the status of its carriers in a variety of civilizational contexts.”1

A esfera de ideias dos intelectuais é relativamente autônoma em relação aos interesses materiais. Sadri observa que as consequências sociais da existência dessa esfera de ideias puras, irrevelantes para a vida prática, poderia causar acusações oriundas das autoridades e da intelligentsia que se preocupam com interesses tanto materiais como ideológicos, visto que a pura intelectualidade é naturalmente aversa a ideologias e poderia subverter tais ideologias:

Pure intellectuality is averse to ideologies in general and to ideologies of intellectuals in particular. Of course, intellectuals are as likely as any other class to attempt legitimizing their material interests by creating their own ideologies. However, ideologies, as a set of relatively simple and fixed ideas in the service of a constellation of

69

fixed material interests, are vulnerable to intellectualization. (...) Rationalization is so central to intellectuals’ ideal interests that they are expected to resist its adulteration for the sake of their material interests or in the name of ideological contingencies. 2

A nível pessoal, os intelectuais enfrentam o dilema de optar entre integridade intelectual e contingências extra-intelectuais, ou entre ideias e dogmas. A nível social, o dilema surge quando se salienta a divisão universal entre ideologias e contraideologias de intelectuais. Na sociologia de Max Weber, existe uma tensão implacável entre o ideal e a realidade para os intelectuais que se traduz no retesamento entre idéias e ideologias.

O relacionamento entre a intelligentsia e ideologias, porém, é muito menos carregado de tensões ou dilemas, dado que como uma classe menos reflexiva e mais adaptada às contingências práticas, a intelligentsia é mais capaz de “build, preserve, and popularize ideologies.” É por esta razão que ela é o aliado natural da ditadura e cúmplice na obscurantização do povo no contexto do Estado Novo. “As a result, the intelligentsia are more “at home” in any particular culture than are the intellectuals.” 3

Tal conclusão torna-se perfeitamente correta no Portugal salazarista quer metafórica quer literalmente, visto que quase todos os intelectuais autônomos portugueses têm experiências de “fora da casa”, isto é, de exílio. De certo modo, a intelligentsia é construtora porque se encontra mais inclinada a absorver e internalizar construções ideológicas promovidas pelas autoridades e s adaptá-las para determinadas classes e camadas, consolidando assim o edifício ideológico, enquanto que, sendo uma casta inerentemente alienada, os intelectuais são interrogadores e desconstrutores da ordem e da ideologia em vigor. A. José Saraiva, em “O Meu Afastamento”, afirma que “para

70 um ideólogo a realidade pouco interessa. O que interessa é deduzir as consequências de um certo número de axiomas.” 4 Neste capítulo iremos observar como os intelectuais e os escritores neo-realistas em particular, subvertem o molde identitário do Estado Novo com base na realidade cruelmente verdadeira.

Adolfo Casais Monteiro, um pensador indepedente e intelectual anti-situacionista, já em 1933 tinha revelado sua atitude sobre a relação entre a intelligentsia e o governo assim como o relacionamento entre intelectualidade e o poder no seu Considerações Pessoais . Casais Monteiro preconiza que a grandeza de artista ou intelectual provém da personalidade que lhe concede uma “força torrencial”, possibilitando-lhe saltar dos moldes do tempo e criar meios de expressão consoante as suas próprias tendências e crenças. Por contraste, os medíocres tendem a imitar e preferem confinar-se aos limites ideológicos e temporais. Em outras palavras, os verdadeiros artistas e intelectuais devem estar livres de ideologia oficial, enquanto

“perante o homem que se liberta, a reacção daqueles que anseiam pela própria libertação não poderá ser senão um idêntico esforço de superação contra os hábitos, contra todas as facilidades da rotina (...) Mas um sem-número de medíocres prefere deificar, mumificando-as, as criações do génio”5, o que corresponde ao critério de

Sadri relativo à distinção entre os intelectuais, que são fazedores para não ser produtor de produtos culturais e ideativos, e a intelligentsia que é um grupo de consumidores dos produtos que aqueles criam.

Adoptando a definição da intelligentsia de Sadri, é relevante investigar a intelligentsia portuguesa durante o Estado Novo. Urbano Tavares Rodrigues,

71 ficcionista e professor universitário que também foi uma vítima do regime, argumenta, em “Literatura contra o Fascismo e Subliteratura Fascista”, que havia poucos escritores fascistas durante o Estado Novo, quer dizer, a casta de intelligentsia era bastante pequena. Para além de António Correia d’Oliveira (além de ser escritor oficioso do Estado Novo, Correia d’Oliveira foi o primeiro escritor português nomeado para o prémio Nobel cujos trabalhos História Pequenina de Portugal

Gigante , Aljubarrota ao Luar , etc, têm muita afinidade com a ideologia estadonovista), Mário Beirão que compôs a letra do hino da M. P., Ester de Lemos que escreveu o romance Companheiros , Fernando Guedes, autor de vários textos de qualidade como Esfera , Poesias Escolhidas e o chefe de Grémio Nacional de Editores e Livreiros, António Manuel Couto Viana que é dramaturgo e poeta, autor de O

Avestruz Lírico , assim como o fundibulário do Diário da Manhã . Os outros plumitivos são, em geral, rabiscadores que escrevem por interesses pessoais tanto políticos como materiais: por exemplo, Beckert da Assunção, autor do romance ditirâmbico Tronco em Flor ; Manuel Anselmo, Metzner Leone, Amândio César e os que forneceram copiosos textos à venalidade das selectas escolares como João Ameal,

Jerónimo Bragança, João Falcato, que são classificados como figuras infra-literárias.

Há outros escrevinhadores que despertam gargalhadas como “pontos altos de um ridículo quase alucinante” 6, por exemplo, Santos Cravina que escreve Portugal

Redimido , Epopeia de Salazar e Batalha do Ultramar e a francesa Christine Garnier que publicou uma coletânea de entrevistas com Salazar intitulada Vacances avec

Salazar .

72

Divergindo do ponto de vista de Rodrigues, considero que o escritor menosprezou a dimensão da intelligentsia e sobrestimou a força anti-salazarista. E isso é especialmente verdadeiro nos primeiros anos do regime durante o período pré-Segunda Guerra Mundial quando o Estado Novo ainda não incentivava a dissidência universal entre o ciclo intelectual português que se compunha tanto da intelligentsia como dos intelectuais. De fato, exceto os intelectuais-lutadores veteranos como António Sérgio que foi preso por quatro vezes (duas vezes entre

1933-1945) 7 , muitos escritores adotaram uma atitude não explicitamente denunciadora, senão ambígua, em relação ao Estado Novo. As futuras estrelas no combate contra o regime, Fernando de Assis Pacheco , Jorge de Sena, Sofia de Mello

Breyner, Egito Gonçavles, Natália Correia, Veiga Leitão, ainda só surgiam mais tarde.

A maioria dos intelectuais que a seguir se mencionam são, de fato, jornalistas e não romancistas ou ficcionistas. Tendo nascido nas décadas de 30 e 40 e perdido o apogeu do Estado Novo, a razão principal da sua oposição foi o fato de que o regime tinha aumentado o controlo do jornalismo, o que os forçou a abandoná-lo e a entrarem na carreira literária.. Baptista Bastos (nascido em 1934) começou a publicar só na década de 60), Mário Ventura (nascido em 1936), Daniel Filipe (poeta caboverdiano, só depois da Segunda Guerra Mundial, publicou a sua primeira obra), Adelino Tavares da Silva (cujo talento excede em muito os seus escritos publicados), e José Carlos de

Vasconcelos (nascido em 1940) cuja produção literária se concentrou nos anos 70.

Outros escritores de menor renome incluem Joaquim Letria (nascido em 1943), José

Jorge Letria (1951), Afonso Praça (1939), Cáceres Monteiro (1948), e Ribeiro

73

Cardoso (1945). É manifesto que quase todos nasceram entre 1930-1950, o que quer dizer que antes de 1945 estes intelectuais anti-fascistas estavam na sua puberdade e não eram ainda capazes de empregar armas literárias dum modo influente e eficaz.

Quanto aos intelectuais que não se ocupam de escrever, como os galardoados do

Prémio Artur Malheiro, destinado aos cientistas distintos portugueses, nomeadamente

António Aniceto Monteiro, doutor em Ciências Matemáticas que se exilou na

Universidade de Bahia Blanca, Argentina; Aurélio Quintanilha que, depois de ser demitido da Universidade de Coimbra, viveu em Maputo; o professor Marques da

Silva, demitido em 1947 das suas funções de docente na Faculdade de Ciências da

Universidade de Lisboa; Hugo Baptista Ribeiro, professor de matemática numa universidade dos Estados Unidos; outro que na altura aguardava julgamento nas prisões da cidade do Porto é Ruy Luís Gomes, ex-candidato da Oposição Democrática portuguesa às eleições presidenciais, demitido das suas funções de professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, ex-professor da

Universidade de Bahia Blanca, na Argentina, e, atualmente, professor de Matemática na Universidade do Recife, no Brasil. Esses professores, investigadores e cientistas, apesar de não constituirem a força capital contra o Estado Novo, representam um tipo de intelectuais. O seu êxodo realizou-se sobretudo nos últimos anos da década de 40 e durante o seguinte decénio, o que, em parte, espelha a intensificação de conflitos entre os intelectuais e o governo salazarista naquele tempo. Daqui, naturalmente, podemos inferir que antes de 1945 o obscurantismo e a correspondente dissidência entre intelectuais ainda estavam numa fase de “co-existência pacífica”: ambas as partes

74 estavam aquém do limite de tolerância.

Portanto, observa-se que a literatura contra o salazarismo ou fascismo português só vai crescendo nos anos 50 e 60, enquanto durante as primeiras décadas do regime, especialmente antes do fim da Segunda Guerra Mundial, tanto os intelectuais como suas obras não tomam uma postura abertamente anti-salazarista. Há figuras anti-salazaristas que, nos anos 50 e 60, escreveram obras consoante a ideologia estadonovista, e tal conversão aconteceu não só a políticos como Humberto Delgado, mas também a escritores como Francisco Rebello. No ano de 1939, Humberto

Delgado, que se tornou opositor saliente do regime na década de 50 e vítima do regime, publicou uma peça teatral em 3 atos intitulada 28 de Maio que foi radiodifundida em 28 de Maio de 1939 pelo Rádio Club Português. A peça é sobre a

Mocidade Portuguesa, valorizando o espírito de sacrifício pessoal e a supremacia da nação, assim como o chefe do Estado. Cito como exemplo a seguinte passagem:

Hersílio – Que felicidade deve ser assistir a este entusiasmo dum povo pelo seu Chefe, por aquele que mais patriota que qualquer, dá o exemplo da abdicação de tudo para viver só para os outros, para a Nação, para a Pátria! (ouve-se o hino da Mocidade). (Pausa, 10 segundos). 8

Obviamente faltam ao teatro de Delgado a complexidade e valor artísticos, e parece que o único objectivo da obra é uma barata promoção do nacionalismo que faz parte da propaganda nacional. Humberto Delgado, o futuro adversário de Salazar, não poupa nenhum esforço para elogiar o Estado Novo que daí a anos o matou. Com dois personagens artificialmente ingénuos, Cidália e Hersílio, Delgado adotou uma

75 maneira da instrução escolar para inculcar ideologia estadonovista.

Cidália – Que felizes seremos nesta terra redimida, meu amor? Na nossa casinha, onde tu representas o sacrifício do Homem pelo Homem, do Exército pela Pátria! (Ouve-se o hino da Legião a aproximar-se) Cidália- Lá vêm os legionários, os voluntários da ordem. Hersílio- Grande exemplo de nacionalismo. (O hino aproxima-se, é mais forte). (Gritos: Legionários, quem vive? Portugal, Portugal, Portugal!) (Quem manda? Salazar, Salazar, Salazar!) (Há grandes ruídos de vozes; ouve-se uma força a marchar) Viva a Pátria! Viva a Pátria! Viva a Pátria! 9

Se, na qualidade de político, a posição de Humberto Delgado relativa ao regime causaria dúvidas sobre os seus motivos, Luís Francisco Rebello, um dos maiores dramaturgos portugueses no século XX, que foi também exilado pelo Estado Novo, será um exemplo mais ilustrativo. Mesmo na véspera da conclusão da Segunda

Guerra Mundial, Francisco Rebello escreveu peças teatrais com temas ajustados à ideologia estadonovista. Em O ouro que Deus dá (Lisboa, 1944), a que foi concedido o Prémio do II Concurso de Teatro da Mocidade Portuguesa, Francisco Rebello cria uma história em que uns pastores jovens encontram um windfall de fortuna – ouro que supostamente lhes dispensará de trabalhar e obedecer:

Iº. Pastor (precipitadamente, acavalando as palavras umas sobre as outras) É esta pedra. (Aponta.) É oiro! oiro! (...) A gente descobriu-a – ali (...) Fica um homem rico, sem precisar de trabalhar mais (...) Disse o Ti’João. (ao ouvir este nome, o VELHO PASTOR franze o sobrôlho)

2º. Pastor (como um eco) (...) Sem precisar d’obedecer mais.

3º Pastor (mesmo jôgo)

76

(...) Nem de receber ordens. 10

Contudo, a presença dum velho pastor que se chama Tio João, cuja idade já representa sua autoridade sobre seus novos “colegas”, muda o rumo do evoluir da ação, transformando uma história de aventura numa lição moral, que produz um cheiro bem estadonovista.

1.º Pastor (para convencer melhor o VELHO PASTOR) Mas é oiro! é oiro! (Vai buscar a pedra e põe-lha diante dos olhos.)

O VELHO PASTOR (desviando-a com a mão) Isso que me interessa? Foi o demo que a pôs aí, para vos tentar. E vós caístes na tentação. E Deus castigou-vos (...) Quando um homem tem só o que é seu e o ganha do seu trabalho, e isso lhe chega, e de repente quere ter ainda mais, mesmo sem trabalhar, mesmo que tenha de passar a odiar os seus amigos, e até de matá-los; quando quere ter mais do que todos, mais do que precisa, mais do que Deus lhe dá – essa coisa é a ambição. E foi o oiro que fez de vós inimigos rancorosos, mordidos de ambições (...) E ociosos ... Trouxe-vos a ociosidade. 11

Tal pregação do velho pastor intencionalmente empregada por Luís Francisco

Rebello corresponde exatamente à atitude oficial do Estado Novo vis-à-vis o trabalho em Manifesto Nacionalista , de 10 de Novembro 1945: “Aos ataques dos inimigos empenhados em destruir a Ordem que não saberiam reconstruir, e à apatia dos indiferentes em quem não fala a voz do civismo, contrapõe a resolução firme e serena de (...) conciliar a aliança natural da Liberdade e da Autoridade, o predomínio do interesse comum sobre os interesses dos indivíduos, dos grupos e das facções, e a obra de reconstituição económica do País e a política de exaltação do trabalho.” 12 O velho pastor continua dizendo que o ouro poderia transformar os pastores de amigos em inimigos, de homens modestos em ambiciosos, de trabalhadores em ociosos e inúteis.

77

Como a peça é enquadrada no campo, local sempre preferido pelas autoridades estadonovistas em relação à cidade, os campesinos são desencorajados a deixar o campo para aspirar à mudança, o que é frequentemente interpretado como possuir ambição indevida ou desobedecer ao destino. “A imagem do país da ordem, de

Portugal de Salazar, de aldeões que trabalham e cantam a tradição nas suas aldeias, que choram e rezam pedindo a protecção divina em Fátima, resignados com o próprio destino, que emigram para o exterior ou vão para as colónias do Ultramar, cumprindo a ‘sina’ do ‘mar português’, sem nunca abandonar os velhos costumes da terra natal.” 13 A glorificação da vida rural tornou-se, assim, um dos pontos centrais da ortodoxia. Afinal de contas, o próprio Salazar era “um filho do campo”, com saudades do murmúrio das águas de rega e da sombra dos arvoredos. O poeta nacionalista

António Correia de Oliveira sintetizou muito bem o ponto de vista oficial num poema que posteriormente viria a ser incluído no livro único do Estado Novo:

Minha terra, quem me dera Ser humilde lavrador; Ter o pão de cada dia, Ter a graça do Senhor; Cavar-te por minhas mãos Com caridade e amor. 14

E, no final de O Ouro que Deus Dá , as implicações teatrais começam a adquirir significados religiosos:

(Um muito breve silêncio. O sol vai-se aproximando do ocidente, declinando no céu. As folhas das árvores tremem de luz. Um clarão doirado – o último – que não tardará a desaparecer – escoa-se por entre a folhagem e bate em cheio no VELHO PASTOR.) Uma doce penumbra vai invadindo a cena. O VELHO PASTOR continua a falar: quando Deus criou o homem e o pôs na terra,

78

disse-lhe: «Vai e trabalha. Amassarás o pão com o suor do teu rosto.» Todo o homem nasce com um destino, e o destino de cada um é o de todos – é sempre trabalhar. 15

O velho pastor, a seguir, tenta conectar o destino dos trabalhadores rurais à terra que representa a vida bucólica:

O trabalho é graça de Deus. Em cada semente que o homem lança à terra depois germina, e rompe o solo, e vai crescendo, crescendo, fecundada pelas chuvas e pelo sol, e é espiga loira de trigo que depois nos dá o pão – anda a mão do Senhor: anda a sua graça. O destino do homem é semear o trigo que há-de dar o pão. O destino do homem é a terra – é o trabalho. 16

Em agudo contraste com Francisco Rebello e os seus teatros pró-Estado Novo,

Casais Monteiro demonstra, no seu livro, uma posição totalmente diferente em relação à natureza da obra artística: “cada obra com valor artístico tem que ser uma forma, quer implícita quer explícita, de revolta, visto que a criação artística significa a renovação dos verdadeiros artistas é a revolta do homem que quer renovar-se criando, que vê na arte uma forma de existência.”17 António Ramos de Almeida também manifestou um ponto de vista similar, mas de um ângulo oposto: “Um romance ou uma novela que seja um simples discurso de propaganda, construído com mera retórica, não será nem um romance, nem uma novela, nem um poema. Será, se for, uma obra falhada.”18 Mas o que Francisco Rebello nos demonstra nessa peça teatral não é nada de revolta, mas tudo de propaganda e conformidade.

Encenando o campo rural - o sítio ideal para encadear os portugueses, especialmente os camponeses e produzir portugueses estereotípicos com uma

79 identidade nacional genuinamente portuguesa - o teatro de Francisco Rebello valoriza explicitamente a obediência, a submissividade e o apego ao trabalho e à terra, o que corresponde exatamente às caraterísticas dos portugueses “oficializados”. Uma outra peça de teatro escrita anteriormente por Francisco Rebello, A Lição do Tempo , também não é menos conformista do que O Ouro que Deus Dá na qual o protagonista, um menino chamado de João, oscila entre dois pensamentos opostos ditados pelo

Diabo e um anjo respectivamente. Enquanto aquele o induz a desobedecer aos requisitos do seu avô que inequivocamente representa a autoridade indubitável (como o velho pastor, a idade constitui uma hierarquia natural entre relações interpessoais tanto além como aquém da família), este encoraja o rapaz a submeter-se à vontade do avô:

O Tempo: - (assumindo um tom grave) Ouve, João,.. na vida, mandar Custa mais que ser mandado (...) João – Ora adeus! Não acredito! O TEMPO: - João! Não é bonito Duvidar Assim dos teus superiores!

CENA V O Diabo – Obedecer, Que horror! Não há nada pior! (...) O Anjo: - Cumprir sempre o seu dever É o mais nobre caminho! 19

Embora não seja plenamente justificado classificar o autor como ideólogo salazarista só com base no conteúdo dos seus textos teatrais supracitados, é visível a ligação entre a ideologia estadonovista e sua obra que não somente mostra certa

80 simpatia pelo regime como também o advoga. Contudo, desde o fim dos anos 40, Luís

Francisco Rebello foi apontado como um representante anti-fascista entre os dramaturgos portugueses cujo Os Pássaros de Asas Cortadas e Condenados à Vida são efusivamente elogiados por intelectuais e críticos portugueses anti-salazaristas.

Curiosamente, os teatros pró-salazaristas são, porém, excluídos da biografia de

Francisco Rebello, o que espelha uma tentativa de limpar estigmas de cumplicidade.

Pelo contrário, no dizer de António Cândido, o estigma é indispensável para que os intelectuais brasileiros produzam obras valiosas. E creio que se fosse possível indagar todos os rastros literários deixados por cada escritor ou intelectual ao longo do desenvolvimento do Estado Novo, diversos deles seguiram trajetórias similares à de

Francisco Rebello. Contudo, a posterior conversão, muitas vezes, acompanha não somente a mudança da postura ideológica e política como também o branqueamento das manchas anteriores. Na atualidade, a estréia teatral de Rebello é universalmente reconhecida como O Mundo Começou às 5 e 47 que, segundo Luciana-Stegagno

Picchio em História do Teatro Português , é uma “peça em que a oposição entre o velho mundo que se recusa a morrer, o novo que o ataca e a lei do tempo que ambos governa, é dada com expedientes de originalidade expressionista.” 20

2 O Neo-Realismo como Anti-Identidade Nacional

Não é meu interesse averiguar o motivo da conversão de Luis Francisco Rebello e outros escritores do pró-Estado Novo ao lado oposto. O nosso ponto de vista é que

81 antes de meados de 1940 não havia tantos intelectuais anti-salazaristas como

Rodrigues acha, nem um determinado grupo de escritores ou movimento que representa uma força organizada anti-estadonovista, excepto o neo-realismo. Em geral, o neo-realismo é considerado como uma continuação modificada do realismo e da

Geração de 70, fazendo uso de uma focalização mais detalhada nas camadas sociais.

E, os neo-realistas que são

escritores, críticos e ensaístas que formam uma geração congraçada por alguns factores comuns: nascidos em grande parte na segunda década do século, tendo-se formado intelectualmente num tempo de crise social e económica muito aguda, seguindo um ideário cultural marxista, manifestando um certo distanciamento (que chega a ser oposição declarada) em relação ao legado modernista, enunciando uma linguagem artística comprometida e anti-esteticista, os escritores, críticos e ensaístas que associamos ao Neo-Realismo português configuram uma unidade relativa, não isenta de diferenças internas; tanto aquela como estas podem ser aferidas nas páginas dos inúmeros jornais e revistas (...) que deram corpo ao ideário neo-realista, através da publicação de textos literários, de textos críticos e sobretudo de textos doutrinários. 21

Os autores realistas, quer Eça de Queiroz que focaliza a alta burguesia e a sua hipócrita natureza, quer Trindade Coelho que se preocupa com pequenos burgueses rurais, não mostram nem fazem representar-se a ligação entre personagens e o destino de Portugal que já perde o comboio rumo à modernidade. Os realistas enchiam seus romances com a insatisfação em relação ao status quo e a crítica de certa camada social; em contraste, os escritores neo-realistas têm em comum a convicção de que cabia aos trabalhadores (operários e agrários) portugueses, muitas vezes protagonistas em ficções neo-realistas, a missão social-histórica de mudar a realidade nacional, o que é distinto do realismo cujas personagens raramente têm subjetividade e vontade

82 ativa de mudar a sociedade e o ambiente em que se encontram. Por conseguinte, este é o caso do neo-realismo que é considerado como uma resposta elaborada em narrativas ou escassamente, em poemas (a opção do neo-realismo pela ficção deve-se, tanto no

Brasil como em Portugal, aos regimes ditatoriais que fazendo uso da censura favoreciam o emprego do estilo narrativo pelos escritores) a uma situação de supressão das liberdades políticas e de forte repressão.

Embora não seja uma mera extensão ou prolongamento do realismo, o neo-realismo não é “neo” no sentido de que recorre ao realismo, especialmente às ideias estruturais como retratar o homem e a sociedade em sua plenitude em vez de facetas sonhadoras e revelar a face do quotidiano e da impotência do homem comum que está cheio de problemas e limitações. Coincidentemente, também não representa nenhuma novidade o Estado Novo durante o qual surgiu o neo-realismo. Desde modo, emerge um paralelo entre o neo-realismo que não é “neo” e o Estado Novo que é nada novo, causando a impressão de que as conjunturas política e cultural em que a geração de 70 se insere foram transferidas para o contexto do Estado Novo, e o neo-realismo torna-se um derivativo inovador do realismo. Se o realismo é considerado como crítica literária contra a monarquia e a decadência, e a substituição do romantismo, o neo-realismo constitui uma luta romanesca e ficcional contra a ditadura e obscurantismo, e a substituição do modernismo subnutrido e até um pouco distorcido. “Desde o prefixo que distingue a sua novidade, o neo-realismo põe em questão ou, pelo menos, relativiza a ruptura que pretende instaurar nas letras nacionais do presente século. o «neo» remete, em última instância, não para um movimento ou

83 uma geração realista anterior, mas para todo um modo particular de sentir, de conhecer e de representar o real característico de períodos históricos nos quais a arte é chamada a intervir no destino da sociedade.” 22 As primeiras manifestações neo-realistas emergem em revistas progressistas como Outro Ritmo , O Diabo , Sol

Nascente , Altitude , etc, e pouco a pouco em revistas veteranas como Seara Nova e

Presença. Contudo, só por ocasião da erupção da Segunda Guerra Mundial começaram surgindo obras romanescas e ficcionais de índole neo-realista como Ilusão na Morte de Afonso Ribeiro em 1938, Sinfonia de Guerra e A Arte e Vida de António

Ramos de Almeida em 1939 e 1940 respectivamente, Rosa dos Ventos de Manuel da

Fonseca em 1940, Corsário de Álvaro Feijó em 1940 que inicialmente são marcados pelo articulismo e polémica literários. Ao longo do aparecimento dos títulos mais significativos assim como das figuras mais destacadas do neo-realismo português, como Alves Redol, Afonso Ribeiro, Fernando Namora, Manuel da Fonseca, entre outros, a atenção dos neo-realistas deslocou-se posteriormente do conto e poesia para o romance, ficção e ensaio histórico.

Em geral tais ficções e romances neo-realistas têm como focagem o dia-a-dia dos trabalhadores mais ordinários e humildes, ceifeiros e mondinos do Alentejo

(presentes, por exemplo, em Gaibés e Avieiros de Alves Redol, e em Cerromaior de

Manuel da Fonseca); fangueiros e pescadores da área do Ribatejo ( Marés, Fanga e

Avieiros ), barqueiros e vinhateiros da região duriense, pescadores da Nazaré (em Uma

Fenda na Muralha ); enfim, os moços, os marçanos, os operários e os empregados de escritório de centros urbanos (presentes em Marés e sobretudo em Reinegros ) – todos

84 se caracterizam essencialmente pelo mesmo factor de dependência econômica de um patrão, do salário que este controla e se sujeitam aos abusos e exploração deste.

“Como resultado, as condutas mais quotidianas, bem como os seus dramas mais

íntimos, as suas misérias bem como os seus sonhos, patenteiam a experiência comum de todo e qualquer trabalhador numa sociedade capitalista.”23 Naturalmente os títulos de romances e ficções neo-realistas muitas vezes têm um sabor campesino e regionalista, como Aldeia , de Afonso Ribeiro, em que o autor prosseguiu no seu inquérito aos sofrimentos e reações da gente popular nortenha, aldeã ou suburbana com uma linguagem intimamente popular e vernacular. Exemplos são, igualmente, Eu queria Viver (1942) e Mineiro (1944) de Manuel do Nascimento que retratam as situações de “dependência feminina, sujeição pequeno-burguesa ao dinheiro, e exploração salarial” 24 . O romance Casa na Duna , de Carlos de Oliveira, descreve a luta contra a terra areenta e estéril e a decadência da quinta dos Paulos, “família cuja história enquadra o romance e onde se vêm refletir os diversos aspectos das condições econômicas que arruinam o pequeno lavrador que vê a sua coirela levada pela hipoteca depois de uma seca maior ou de uma colheita infeliz.”25

Contudo, os títulos campesinos assim como as características representativas de uma região que uma obra neo-realista pretende retratar não significam a presença do regionalismo, ou, do ideário regionalista no pensamento neo-realista. Gaspar Simões revela a distinção básica entre o passado regionalista do romance português e os escritores que pretendiam, pelos anos 40, ter sido os primeiros a trazer às letras nacionais a vida do povo rural: “A «grande vitória» dos neo-realistas do tipo de

85

Fernando Namora é a de continuar a «cultivar um regionalismo sem regionalismo».

Ou seja, enquanto escritores como Aquilino de Terras do Demo foca os aspectos pitorescos da vida do povo a partir de uma posição de esteta distanciado, despreocupado com as repercussões sociais da sua obra, os neo-realistas são os primeiros a identificar-se com as vivências do povo e a representar a sua realidade

(rural) a partir de um prisma ideológico, de modo a «focar por um binóculo particularmente regulado para fazer avultar aquilo que até então o regionalismo explorara sobretudo nos seus aspectos pitorescos e sem repercussão social.” 26

Segundo Ana Paula Ferreira, João Pedro de Andrade, um crítico do movimento neo-realista, é curiosamente o primeiro a sugerir que um dos méritos do neo-realismo consiste em ressuscitar o regionalismo alargando o seu alcance, para além da mera descrição das particularidades regionais a um significado universal. No presente capítulo, percebemos tal significado universal duma perspectiva identitária e analisamos instrumentalmente o “regionalismo sem regionalismo” presente nos romances neo-realistas implicitamente como armas para desmentir os pomposos esforços do Estado Novo para padronizar o povo português e identificá-lo com o modelo salazarista.

Visto dum outro ângulo, o surgimento do neo-realismo é como uma reacção literária à idéia da “arte pela arte”, ou seja, a arte que se dissocia da realidade social.

António Vale, em “Cinco notas sobre forma e conteúdo”, argumenta que a recusa da representação da realidade ou d’«arte pela arte» aparece em épocas de consolidação duma sociedade, como resistência do artista a retratar nas suas obras uma realidade

86 que condena e, portanto, como atitude de protesto e desacordo. E, assim, a situação é completamente diferente em períodos de crise e transformação social, e a «arte pela arte» é antes de mais nada a manifestação, por parte dos estratos condenados, do receio de uma realidade que, em todos os seus aspectos, lhes grita essa condenação.

Daí fugirem artistas à reprodução de tal realidade acusadora e refugiarem-se em especulações formais, onde a verdade não esteja presente. 27 Num período em que o jornalismo era severamente censurado e diversos escritores se recusam a representar a realidade quer por causa do receio quer da desilusão, o neo-realismo assume uma função dupla: jornalística e literária. É por isso Alves Redol explica no prefácio do seu famoso romance neo-realista Gaibéus :

Gaibéus seria um compromisso deliberado da reportagem com o romance, em favor dos homens olvidados, e também da literatura aviltada. Não conseguiu voar tão alto nem tão longe. Mas perante a ameaça que depois tão tragicamente todos provaram na consciência, ou na própria carne, Gaibéus quis ser, e foi, um dos gritos exactos de um drama colectivo e privado. 28

Casais Monteiro certa vez levantou a questão “Pois que é o artista, em todos os tempos, senão o indivíduo ansiando por libertar-se, senão o revoltado?”, sugerindo a missão dos intelectuais, e proclamando ousadamente que “O artista é essencialmente o homem que desobedece.” 29 Tal desobediência, aos olhos de Casais Monteiro, é especificamente visada aos fortes que incluem as autoridades e à rotina decadente, uma vez que “Os artistas modernos (...) são aqueles que vivem sob o signo da liberdade, isto é, sob o signo da vida” e “aqueles que ousam percorrer os caminhos incertos da noite, sabendo que ao fim encontrarão a manhã.” 30 Tal declaração está

87 cheia de coragem, confiança e otimismo, o que tem alguma semelhança com o sentimento esperançado do neo-realismo. Os verdadeiros lutadores artísticos, como indica Alves Redol, não vivem afastados da sociedade ou da realidade, seja ela qual for. “Tudo vibra e palpita na obra do artista moderno, porque ele não vive hoje numa torre de marfim a polir uma obra deshumanizada, mas pelo contrário aspira a criar segundo a sua própria maneira de ser, sinceramente.” 31 Nestas palavras, não só se pode observar um slogan de luta como também a determinação de persistir além da crença na missão da literatura.

Portanto, Alves Redol, o pioneiro indubitável do neo-realismo português, considera o seu romance inaugural do neo-realismo como uma obra que “não pretende ficar na literatura como obra de arte.” Ele quer ser, antes de tudo, “um documentário humano fixado no Ribatejo.” Publicado pela primeira vez em 1939, Gaibéus não é só um verdadeiro brainchild do autor sobre o significado e o papel da arte resultante duma longa reflexão e duma série de artigos publicados em jornais de Vila Franca de

Xira onde viveu por muitos anos, como também um bodychild no sentido de que a obra não é meramente imaginada e criada mental e intelectualmente, mas também provém das amplas e intensivas field trips em que o autor coleciona material de primeira mão sobre trabalho nos arrozais, inclusive dados técnicos de cultivar arroz. A sede, a fome, o sol cauterizante, a pobreza extrema, a doença, a fadiga, a monotonia, as pequenas alegrias e humildes sonhos dos trabalhadores da leirizia são pormenorizadamente documentados por Redol que fielmente os transmite aos leitores.

Isento de intrigas dramáticas ou intento de tornar blockbuster , o romance é

88 considerado por Redol como “anti-assunto, ou melhor, anti-história, sem personagens principais”. Assim, o “tema nasce no colectivo de um rancho de ceifeiros migradores, acompanha-lhes os passos desde a chegada à partida da lezíria ribatejana, no drama simples e directo da sua condição destaca um ou outro para apontar certos fios mais individualizados, mas logo os faz regressar à trama do grupo.” 32 Em palavras mais simples, Redol pretende representar a “mesma realidade nas suas contradições”, ou seja, apresentar um estado contraditório, não-uniforme, e não-homogêneo, mas sim conflituoso e problemático. Nesta realidade contraditória, há histórias dolorosas e turvas, para além dos detalhes sobre a vida dura dos jornaleiros, uma historinha de conversa entre uma mãe e seu filho que, no final do romance, demonstra as fissuras da sociedade que o Estado Novo valoriza como harmônica, corporativa e sem-classes:

Sentado no chão com os gaibéus; é pior que um rapaz da rua. Parece impossível, Marinho! (...) quando chegar a casa, tenho de o lavar todo. Metido com gente porca... 33

É evidente em Gaibéus a existência duma identificação direta e empatética do autor com os sofrimentos e as aspirações dos trabalhadores, o que influencia o modo como a realidade é representada literariamente. Em 31 de janeiro de 1958, numa entrevista ao Diário de Lisboa , Redol declarou: “não se esqueça que nos batíamos contra os partidários da ‘arte pela arte’ – esbatia as determinações individuais, as particularidades psicológicas, os tipos, os caracteres, as paixões humanas.”34 Nessas palavras, Redol exprime certo determinismo social crendo que a identidade é social e ambientalmente formada, o que implica que é errada e enganadora a padronização identitária pelo Estado Novo. É de notar que a identificação do autor com os

89 personagens já principia em seus field trips e convívio com as suas personagens na realidade, o que lhe dispensa o recurso ao esquematismo ou ao exagero sentimental para evocar compaixão e reconhecimento dos leitores. Tal integração por si própria constitui uma aliança identitária com os personagens e um forte combate contra a

“arte pela arte”.

Em Cerromaior , cujo título não é menos agreste, Manuel da Fonseca leva a integração autoral mais longe, criando um personagem que é homem de letras e colocando-o num contexto cujas condições são familiares ao autor na realidade:

Lá em baixo, os homens trabalhavam derreados, a cabeça tombada para a terra. No monte, Zabela chorava pelo filho... Ardia tudo. O ar era um braseiro, subindo, bagaroso, como um mar. Estrada fora, caminhava um garoto faminto e rasgado, Os palhaços de caras pintadas estralejavam risos e o dono do circo espancava o garoto. «A bondade não serve para nada, senhor Adriano». 35 Zé da Água caminhava de joelhos atrás do burro pelas ruas da vila e aparecia, agora, esbatido na distância. Joaquim Mónico ria com a barba cheia de bocados de palha. A velha Maria Biscoita era um monte de trapos debaixo de um feixe de lenha. Todos os pobres do portão passavam como uma fila interminável. 36

O romance coloca em questão a situação dos intelectuais através do protagonista

Adriano, um letrado, que “vivera entre os livros, o liceu, os cinemas. Agora, lia romances ou quedava-se aborrecido em vagos pensamentos” 37 , e suas reações perante a realidade cruel que ele não conhecia, o que provavelmente reflete a situação de muitos intelectuais naquela altura, e constitui um apelo a tais intelectuais a sair da torre de marfim para sentirem a realidade cruel pessoalmente. Adriano finalmente entendeu que “Há duas espécies de homens: os que mandam e os que obedecem”,38 e tendo caído numa posição dilemática, porque ele não pertence a nenhum lado dos dois,

90 o que nos lembra a tensão entre consciência e interesse material mencionada por Sadri.

Com o seguinte poema, o protagonista demonstra agonias e solidão de Adriano:

Ninguém uma luz me acende! Depois que o dia se acabe porta minha não se abre, só procuro algum alpendre. Se alguém me não compreende, eu o vou esclarecer: é a vida sem prazer e sem esperanças no futuro; que eu vivo sempre no escuro, nasce o sol, torna a nascer. 39

Pra tudo quanto é nascido dizem que o sol alumeia, mas uns têm a casa cheia e outros o chão varrido! Está isto mal dividido, o mundo está mal composto. Uns vivendo com desgosto, outros com muita alegria; pra estes é sempre dia, pra mim é sempre sol-posto! 40

Ana Paula Ferreira, em Alves Redol e o Neo-Realimo , assim psico-analisa os que obedecem: “A convicção de que sempre houve e haverá ricos e pobres, patrões e servos, leva o trabalhador a resignar-se com a sua sorte, humilde e temeroso frente ao pequeno deus que rege a sua vida. Ainda que consciente da injustiça contra ele praticada, a sua passividade natural incapacita-o de se defender ou revoltar contra a sua condição. Sente-se assim vagamente também «culpado» dela, e por isso mais miserável ainda.” 41 . Através do retrato das durezas da vida e severidades do ambiente com que os trabalhadores têm que lidar, “as condições atmosféricas próprias de cada local, por exemplo, o calor sufocante e as cheias que assaltam periodicamente a região

91 sul do Tejo; as secas e as chuvas torrenciais que não permitem o florescer das vinhas durienses; as tempestades que os barqueiros e os pescadores enfrentam” 42 , os neo-realistas patenteiam uma série de imagens totalmente diferentes do que o Estado

Novo demonstra em relação aos campestres e operários e suas vivências, desmentindo assim as imagens idealizadas e fantasiadas que o regime se esforça por projetar para os portugueses através da propaganda nacional e prémios literários.

Em 1935, o prémio “Antero de Quental” é concedido ao poema Desaparecido escrito por Carlos Queirós, escritor oficioso senão semi-oficial do Estado Novo que trabalhou na divulgação da poesia, do teatro e do turismo na Emissora Nacional e que dirigiu a revista Panorama do SNI. Sendo natural da cidade de Lisboa, Carlos

Queirós, porém, aspira ao campo e à vida campesina, e ao mesmo tempo mostra certa antipatia em relação à cidade.

Na cidade, quem olha para o céu? É preciso que passe um avião... quem dera o silêncio, a solidão, Onde pudesse, alguma vez ser eu!

Na minha cidade nasci; nela nasceu A minha dispersiva inquietação; E o meu tumultuoso coração Tem o pulsar caótico do seu.

Ah! Quem me dera, em vez de gasolina, O cheiro a terra húmida, a resina, A flores do campo, a leite, a maresia!

Em vez da fria luz que me alumia, O luar sobre o mar, em tremulina... -Divina mão compondo uma poesia. 43

É interessante contrapor o último passo desse poema com os primeiros versos

92 do poema que acabei de citar no romance de Manuel Fonseca, Cerromaior . Enquanto

Queirós parece desfrutar duma noite luarenta sem luz elétrica da cidade, Adriano fica triste e derrotado pela falta da luz no campo e pelo viver interminável no escuro sem rumo nem futuro. A imagem poética e cor-de-rosa que Queirós constrói no seu oficialmente premiado poema é subvertida pela escuridão infinita e sufocante presente e, mais importantemente, sentida no poema de Adriano.

A seguir a Carlos Queirós, o vencedor do prémio de Antero de Quental em

1936 é Azinhal Abelho com o seu primeiro livro Confidências de um Rapaz

Provinciano , em que o poeta faz questão de asseverar a sua crença cristã ou o ruralismo alentejano de um rapaz provinciano. O seguinte passo do poema “ A

Cidade ” é dedicado a António Ferro:

Ai a Cidade, as cidades! Todas grandes, uniformes, sem alma para nós bebermos!

Os homens, os que são homens, não têm lá morada com certeza. Eu vejo-lhes as ruas endoidadas num movimento alucinante que perturba e pergunto receoso: - aonde irá esta gente com tanta pressa, com tanta, sempre a correr e a passar por cima uns dos outros, sem noção do que é ter alma, coração. 44

O rapaz que acusa a cidade e os cidadãos da falta de alma e coração encontra seu contra-libelo no romance O Homem que Matou o Diabo , de Ribeiro Aquilino que, através do protagonista João, acusa por sua vez a modelação e o fantochar dos

93 portugueses ordinários pelas autoridades como o Diabo.

O meu espírito era como velha casa ao desamparo, cheia de teias de aranha, de imagens mortas acordadas por capricho da imaginação, de passos que passaram, de carochas e ratazanas (...). O que havia de generoso, de vivificante, de criador na minha pessoa foi espezinhado, ficando reduzido a acabado anarquista, não contra a sociedade, visto que ao meu maior grau de aniquilamento é que correspondia o maior grau de perfeição, mas contra mim mesmo. Aqui está o que fui até que o Diabo me levou. Pudesse eu enfaixar os mandamentos da minha fé nos liames da impostura, como tantos bons católicos fazem, e não teria chegado ao cairel; não mo permitia o amor à sinceridade e libertei-me duma escravidão para cair noutra. Sou devasso, tenho o horror do trabalho, engano, minto, sou capaz de roubar e de matar, para quê dizer-lhe que não? Estou gafo moralmente; fujam de mim; fuja também de mim o senhor, que lhe posso passar a lepra! 45

Neste parágrafo o protagonista admite a perda do espírito e a parte ativa dele, mas isso acontece porque o Diabo os rouba. Então é relevante perguntar na realidade quem desempenha este papel do diabo que encaixa João num molde e o priva de todas as características pessoais e até humanas, e que “revestiu outros aspectos não menos desfeiteadores para a personalidade que me haviam inculcado” como “a resignação e a conformidade como modos superiores de vida moral e levei anos a pulir castiçais, endireitar narizes aos mamarrachos dos altares, fechando os ouvidos à voz que clamava: quando despes a blusa de escravo?”46 . No romance o diabo é mesmo padre

Augusto que, supostamente, representa a encarnação da caridade, benevolência e paixão. Mas é esta figura imaginadamente positiva que com “a sua disciplina, toda de preconcebimento, de reservas, de mutilação, engendrou um João Ninguém de que eu

(João) próprio arrenego” 47

É evidente que aqui o João Ninguém representa o protagonista sem identidade,

94 ou um estado despessoalizado. Sendo João Ninguém, o nosso protagonista só tem nome mas lhe falta a identidade, ou seja, a identidade que se reconhece e se aceita pelo mundo exterior é uma identidade alheia e exôgena, imposta pela Igreja e pelo padre Augusto: “Tudo o que havia de nobre, de singular, de apaixonado em mim, susceptível de exaltação e de engrandecimento pessoal, repisaram-no implacavelmente como às ortigas bravas se, por inadvertência, o deixaram mirrar ao enjeite. Tornaram-me um ser amorfo, despersonalizdo, exemplar de série sob a rasoira e norma teológica. Outra obra seria o esporádico. Tudo evoluciona e a Igreja tudo pressupõe estático.” 48 Tal identidade forçada priva João de todas as suas características sui generis pessoais, transformando-o numa concha vazia sem capacidade da auto-identificação: com a identidade imposta, ele é João no exterior porque a Igreja e o mundo representado pela Igreja o reconhecem como tal, mas ele é ninguém no interior devido à perda da personalidade. Neste romance é explícita a analogia entre a Igreja que, de acordo com Luís da Cunha Gonçalves, em O Problema da Educação nas suas relações com a Família, o Estado e a Igreja , é o aliado mais poderoso do Estado, e o Estado Novo que se declara um regime católico e resume a

Concordata com a Igreja católica depois da secularização durante a Primeira

República. Com o intuito de controlar os portugueses, a Igreja católica torna-se o melhor aliado do Estado Novo, que persistentemente prega desinteresse e abnegação, sofrimento e perdão, humildade, o exame da consciência e remorso, a ordem, a paz através da resignação em pobreza e em infortúnio, e da esperança na recompensa da vida celestial. Estas características aclamadas pela Igreja – a submissão, obediência,

95 tolerância, até inércia e outras qualidades eram exatamente facetas do caráter nacional ideal que o Estado Novo almejava forjar a fim de estabilizar e desativar a sociedade portuguesa. Do mesmo modo Salazar é descrito na propaganda nacional como salvador da nação portuguesa enviado por Nossa Senhora de Fátima, o qual deve ser absolutamente obedecido e seguido. Porém, Aquilino Ribeiro não está sozinho na denúncia da Igreja, símbolo do Estado Novo, a qual “pelo seu pavor à carne, pretendeu ferir de morte as fontes da vida e depravou o mundo.” Casais Monteiro fez uma crítica não menos veemente do altar eclesiático e da inteligência-cúmplice:

“desejosa apenas de ídolos a quem dirigir discursos balofos e queimar o incenso das adjectivações, amorfas” que “prefere a atitude servil de erguer um altar e pôr lá, feitas imagens de mármore gelado, reduzidas a ridículos espantalhos, as figuras daqueles que nada odiaram tanto como poder servir a sua obra de padrão definitivo às admirações futuras.”49

Perante tal cumplicidade entre “crença” e “política”, Aquilino Ribeiro não deixa de criticar no seu romance: “Obedeceram à sua fé e, mestres inteiriços, procuraram moldar-me adequadamente. Queixo-me da instituição absurda que estandardiza a pessoa interior para uma finalidade que interessa tanto à vida como a mim a água que agora vai correndo para o mar. (...) Queixo-me do estatuto por que pautam o seu magistério, abafador da inteligência e das faculdades originais.” 50 Finalmente todas as insatisfações convergem numa afirmação: “Com tais erros de princípio, a acção de

VV. RR, tem de ser anti-humana, antiprogressiva e, portanto, imoral”. É de admitir que tal atrevida declaração manifesta perfeitamente o difuso sentimento dos

96 intelectuais portugueses aversos à estandardização da identidade e à distorção da individualidade, reclamando personalidade, particularidades e, numa palavra a liberdade de existir. Neste sentido, Aquilino Ribeiro inicia uma denúncia mais direta e veemente contra o regime em comparação com os seus colegas neo-realistas. Através da imagem cor-de-rosa do rural, como “Anhos e cabritos saltaricavam pelos pastos à volta das mães que balavam, e a sua mobilidade infundia por terras e céu o flagrante da natureza ressurrecta. E a meus olhos, saturados da perspectiva citadina, nada me parecia mais digno de ser vivido que a écloga campestre duma choupana à beira dum riacho, com uma mulher bonita para nos amar e ser amada e uma cabra que nos abastecesse de leite” 51 , na realidade a situação é a que Bemposta declara: “Neste país da lágrima ao canto do olho, ficávamos afogados num mar de prantos e comiserações.

Era um erro!”52

Outro intelectual que explicitamente levanta a questão da identidade é o supracitado Adolfo Casais Monteiro. Em 1944, Casais Monteiro publica outra coletânea de poemas intitulada Canto da Nossa Agonia , em que intensifica a sua crítica da política estadonovista em relação ao passado e o forjamento da identidade nacional portuguesa pelas autoridades. O poema exprime não só o entendimento e perspicácia dos intento e intrigas do Estado Novo por um intelectual íntegro como também a sua extrema agonia no perceber da realidade e status quo de Portugal, assim como dos seus compatriotas:

Andámos a vida inteira de olhos fechados. A vida passou em nós

97

como se fosse estrangeira.

Nem sequer um dia esperámos saber dizer. Ter que dizer, nunca soubemos o que isso fosse.

E jamais tivemos nenhuma esperança de um dia querermos fosse o que fosse - tirando as coisas do dia-a-dia (...)

E os dias passados, não sei que sabor nos têm agora... como se tivesse sido mentira... como se lhes tivesse sempre faltado alguma coisa indispensável! (...) Fomos levados de mãos atadas. fomos traídos, fomos roubados da nossa autêntica identidade .

Fomos ceifados da nossa vida, de nós fizeram pior que entulho, nada deixaram do que era nosso.

em vão lançámos as mãos prá vida; em vão quisemos que fosse nossa. Donos de nada, em tudo intrusos, temos apenas, bem nossa, a morte.53

Casais Monteiro é um dos poucos intelectuais portugueses que levantam a questão da identidade. Se os neo-realistas manifestam a preocupação com a identidade duma maneira ímplicita e desabafam latentemente seu protesto contra a pseudo-identidade, Casais Monteiro faz isso explicita e altamente, embora, diferentemente dos outros neo-realistas que encontram a identidade dos portugueses ordinários nas suas terras, em lugares de trabalho e nas duras vidas quotidianas,

Casais Monteiro não ofereceu resposta à problemática identitária. Nas palavras de

98

Saraiva e Óscar Lopes, “Adolfo Casais Monteiro assinalou-se em diversos ensaios nos primeiros poemas, depois reunidos em Versos (1944), por uma rudeza e severidade sem amabilidades nem afabilidade a que correspondia um conflito interno. O Canto da Nossa Agonia (1941) e Europa (1946) reagem de forma tensa às angústias da fase de apogeu do fascismo bélico.” 54 É de admitir que a escrita e pensamento de Casais

Monteiro sejam de qualidade e tenham exercido suas influências sobre leitores, mas, antes do surgimento do neo-realismo e do boom das obras neo-realistas, as literaturas que se opõem ao Estado Novo não formam um sistema, ou um estilo e temática unificados. Ou seja, antes do neo-realismo emergir e se tornar um mainstream na literatura anti-fascista portuguesa, a tese que literatura tem uma missão é ainda precária.

O ressentimento dos intelectuais deve-se principalmente não só ao obscurantismo 55 do Estado Novo como também à fabricação e imposição duma identidade nacional artificial que se resulta numa “hiper-identidade” 56 portuguesa, nas palavras de Eduardo Lourenço. Contudo, tal hiper-identidade no contexto do

Estado Novo apresenta-se como um conceito abrangente que tenta encerrar e homogeneizar tudo dentro da estrutura da hiper-identidade, isto é, a identidade é tão omnipresente e omnipotente que influencia e tenta mudar forçosamente todas as facetas da vida de todos nacionais com base numa finda mitologia que o regime salazarista constantemente se esforça por reviver. Portanto, a hiper-identidade à estadonovista é uma identidade não-substantivada e inanimada, porque as vivências e as pessoas assim como a maneira de ser delas não se podem simplesmente criar ex

99 nihilo e padronizar ou modelar de acordo com um blueprint , ora prototópico ora estereotípico. Com base no diagrama estadonovista sem “matéria-prima” substancial.

O bom povo é aquele com que o Estado Novo se identifica e em que se apoia, é o que se liga directamente aos valores nacionais, genuinamente portugueses e que os conserva e defende, mesmo que de forma inconsciente (justificação do obscurantismo estadonovista). O bom povo constitui a espinha dorsal da audiência do programa ideológico salazarista, e ajuda o Estado Novo a contrariar a influência externa e moderna. Do bom povo deriva a cultura popular puramente portuguesa e uma

“mentalidade nativa” que são realmente um conceito reduzido a um âmbito rural e amputado por uma intenção política de dominação.

Por um lado, podemos constatar a celebração das façanhas históricas e o que

Arlindo Monteiro chama de “hipervalorização do herói individual” 57 os quais, na visão do Estado Novo, compõem a inteira história de Portugal (em que obviamente os camponeses não desempenham nenhum papel), e empedram o futuro caminho determinado que a nação portuguesa deve e tem que perseguir; mas, por outro, “…the peasant and rural way of life came to be regarded as the repository of national virtues and an integral part of nationhood. Salazar used the dual centenary to praise ‘the traditional order, the past, the good old days of the medieval pax ruris …the neo-medieval saudosismo of many Salazarian intellectuals, emblems of the traditionalist order of the Nation (…) In essence, the message was that simple peasant living was superior to modern, materialist-dominated culture. This dominant ruralism lavished excessive attention upon traditional ways of living, costumes, song and

100 gastronomy. Traditional activities such as agriculture, stock raising and fishing were seen as key elements in forging the national identity.” 58 Assim, forma-se uma discordância ou, mais precisamente, um desengate entre a identidade heróica historicamente formada que se considera como o molde identitário de Portugal, mas que só existe em textos ou manuais escolares, e a identidade bucólica duma nação idealizada como rancho folclórico da atualidade. Através deste desengate, observamos, porém, o frustrado esforço oficial de conjugar o nacional que representa a sublime glória do passado e o popular que, na visão de Salazar, é a ideal maneira de ser para os portugueses. Em vez do sinergismo das duas, vemos apenas a subjugação do popular pelo nacional, embora António Ferro tenha uma vez declarado que “Uma pátria é espiritualmente grande não só pela alma dos seus santos e heróis, pelo génio dos seus artistas e poetas, como pela graça do seu povo. Vamos ainda mais longe: o povo é, em Portugal como em toda a parte, o verdadeiro criador da poesia nacional, a sua fonte. Deixar secar a fonte é deixar secar, portanto, a nascente dessa poesia. Não esquecer ainda que a arte popular é a única distracção e a única festa do povo das aldeias, a sua única evasão.”59

Segundo a teoria de Marilena Chauí que diz respeito às interações entre o nacional e o popular no Brasil: “o que permite a absorção contínua da Cultura Popular pela imagem do nacional é a mitologia verde-amarela, cimento ideológico inquebrantável”,60 e “os adjetivos ‘Nacional’ e ‘Popular’ podem indicar maneiras de representar a sociedade sob o signo da unidade social. Isto é, Nação e Povo são suportes de imagens unificadoras tanto no plano do discurso político e ideológico

101 quanto no plano das experiências e práticas”61 . Contudo, no Portugal salazarista, existem dois problemas para que o governo não tivesse conseguido soluções bem-sucedidas. O primeiro refere-se à imagem nacional: enquanto o Brasil getulista apela aos cidadãos para se ufanarem da pátria por causa do tamanho geográfico, recursos naturais e caráter nacional, a estratégia de Salazar baseia-se na história glorificada pelos Descobrimentos do passado e a posse das “províncias ultramarinas”.

É por este motivo que as façanhas marítimas são repetidamente celebradas e representantes ou mascotes da cada colónia. Assim, a imagem nacional de Portugal projeta-se tanto para dentro do país como para além. Contudo, ao longo do tempo tem sido desafiada a imagem nacional de heróis e façanhas cuja manutenção esgota

Portugal tanto economica como espiritualmente e causa traumas tanto psicológicos como físicos, reduzindo assim ainda mais o valor do nacional. João de Melo opina que:

Define o último andamento desta representação imperial de fraca qualidade: “O meu país era um coro sem orgão desde o dia em que um corno manso gritou à multidão das suas viúvas: Para Angola, rapidamente e em força! Os bispos abençoaram de novo as naus, e os construtores civis acenderam na direcção dos ministros um sorriso ácido. O meu país deixou de ser um país e converteu-se aos poucos num asilo de velhos com claustros de convento e um corredor subterrâneo. Neste curral de seres funestos, onde ninguém tem ordem para dar um arroto, toda a gente dorme afogada na própria caca, devora as lombrigas e reza a Deus Nosso Senhor por melhores dias ou por uma santa hora de morrer.”62

Quanto ao popular, o problema é ainda maior. Embora se possam constatar bastantes atividades culturais (como a instalação da casa do povo, o prémio da aldeia mais portuguesa, e teatro ambulante) promovidas pelo SPN/SNI que são

102 supostamente “para” e “por” o povo, o regime estadonovista não consegue ganhar a popularidade nem transformar o verdadeiro “popular” no “popular” da definição oficial. Os estudos acerca da “cultura popular”, do folclore, que são produzidos pela intelligentsia e especialistas só servem para esculpir o “rosto” oficial do “povo”, ganhando um carácter utilitário quando se trata de recuperar festas e costumes populares, reviver ou mesmo “criar tradições que se identificam com a visão que o

Estado Novo procura perpetuar do quotidiano popular. O incentivo aos ranchos folclóricos, as festas tradicionais, como os festejos de Santo António em Lisboa ou as

Festas Gualterianas em Guimarães, aos Festivais, como Grande Festival de Folclore na capital, ou mesmo a participação dos grupos regionais nas Exposições

Internacionais, introduzem uma nova versão da tipicidade, que acaba por ser a marca registrada da imagem oficial do país durante o Estado Novo. O regime procura, desta forma, aproximar-se do “povo”, mostrar-se conhecedor dos seus costumes e realidades, ainda que a sua própria imagem do “popular”, exemplificada nos ricos trajos das senhoras da sociedade nas Exposições ou solenidades oficiais, esteja muito longe do quotidiano do povo português de então.” 63 Contudo, as obras neo-realistas com descrições detalhadas e muitas vezes de primeira-mão da vida dos operários e trabalhadores comprovam que o folclore que o Estado Novo promove é, na realidade, um “fakelore” (termo de Alan Dundes) e o popular que o regime tenta valorizar é realmente o “popularizante”, nas palavras de Irene Fialho. Mais importantemente, o neo-realismo, por um lado, interpreta o que é autenticamente popular cujo significado aqui não é “bem-vindo pela massa e povo” mas sim o que é o povo e a sua vida dele

103 documentando e descrevendo minuciosamente suas alegrias humildes e agonias perenes, fazendo assim emergir a genuína identidade nacional dos portugueses comuns. As obras neo-realistas que envolvem diversas áreas, camadas, regiões, em conjunto, compõem uma imagem mais panorâmica e menos imparcial da sociedade portuguesa, especialmente as partes muitas vezes e propositadamente omitidas. É certo que o neo-realismo e as obras neo-realistas não podem representar cada factor e componente da nação portuguesa naquela época e, como a identidade nacional é uma

Gestalt que difere do conjunto de elementos que fazem parte dela, o neo-realismo, por si, não constitui um caminho rumo à construção duma identidade nacional totalmente nova ou separada da do salazarismo. Entretanto, ele, pelo menos, consegue expor as contradições, distorções e artificialidade na propaganda nacional do Estado Novo. É de notar que embora haja diretos apelos ao combate e à revolta em várias obras neo-realistas, os romances e ficções neo-realistas essencialmente subvertem a ideologia oficial e a identidade imposta duma maneira indireta e latente, ou seja, os neo-realistas não avisam os leitores do que devem fazer, mas estimulam-nos a pensar e tomar iniciativas voluntariamente. Nas palavras de António Ramos de Almeida, “Os neo-realistas (...) exigem uma consciência tão forte, tão viril e tão humana que seja capaz de vencer, de ultrapassar, de ser diferente a todas as propagandas, e com descrições da rotina, do dia-a-dia, da vida terra-à-terra, desmistificam os mitos e mistérios que o Estado Novo se esforça a construir para Portugal e para os portugueses.” 64

Neste sentido, o neo-realismo, sendo um tipo de propaganda por si próprio, se

104 pode ser considerado como contra-propaganda do Estado Novo:

Literatura de propaganda, dizem até os mais inteligentes dos subjectivistas, é o que prezam os pioneiros do neo-realismo. Uma em crise, nos últimos instantes de coma, prestes a morrer agarrada aos seus mitos, às suas moléstias hereditárias, ao fundo místico das suas crenças seculares; outra com os olhos no futuro, com os pés enterrados na realidade, agarrada à vida, para a qual ainda vão nascer, porque é uma vida nova que vai surgir. Porque não sentem nem estética nem humanamente as contradições, os dramas, as tragédias, as esperanças, as possíveis alegrias da hora que passa, os subjectivistas apelidam de políticos aqueles que vivem dessas e para essas contradições, desses e para esses dramas, dessas e para essas possíveis alegrias e esperanças, na certeza ultrametafísica de que são o labirinto dos seus problemas individuais, o estilizado da sua forma, o decadentismo mórbido da sua sensibilidade estética, a ponte de toda a arte. 65

3 A Literatura de Esperança

Entretanto, a missão da literatura anti-salazarista, que é a do neo-realismo em particular, não é limitada à anti-propaganda. Nas trevas salazaristas, ela muitas vezes serve como um farol que quebra a escuridão imposta pelo Estado Novo, inspira nos leitores esperança numa ocasião de desespero e raia um caminho, por mais deslumbrante que seja, rumo à liberdade e a um futuro brilhante. Por outras palavras, a evocação da esperança é talvez a melhor intrepretação da “literatura como missão” e demonstração da atenção e preocupação com a humanidade. Como Alves Redol observa, “afigura-se evidente que à literatura não cabe resolver problemas económicos, sociais ou políticos. A afirmação não valeria o trabalho de escrevê-la, se não aquietasse certos pequenos budas. Mas não é de menor evidência que todos eles pertencem ao foro humano e que à literatura se deve consentir que surja sempre como

105 a voz do escritor que a cria.” 66 Tomando uma posição na luta de classes e denunciando as desigualdades sociais e os desmandos das elites, os neo-realistas, profundamente influenciados pelo marxismo, apresentam um otimismo lutador e uma forte crença no progresso da humanidade em comparação com o pessimismo demonstrado no realismo que se trava na decadência portuguesa.

Contudo, dadas as severas condições políticas e sociais em que os neo-realistas se encontram esperança e aspiração a uma nova vida nos romances neo-realistas não é uma tarefa fácil, nem algo taken for granted . De fato, observam-se frequentemente tanto o desespero como a esperança e a luta entretecida entre os dois: o desespero é originado nas durezas da vida das quais os escritores neo-realistas desfrutam para desconstruir a identidade imposta pelo Estado Novo; a esperança baseia-se na crença na humanidade e na missão dos intelectuais literários de representar a realidade fielmente e guiar seus compatriotas perdidos na escuridão estadonovista, apesar de as letras per se não terem capacidade de solucionar problemas reais. Paula Ferreira notou o vaivém entre esperança e a sua perda em romances neo-realistas, e indica que a perda da esperança muitas vezes é acompanhada pelo suicídio:

Perdidas todas as esperanças num «futuro» melhor, ausente daqueles que o possuem fisicamente, o suicídio afigura-se como escape, é certo, mas sobretudo como o único acto de autopossessão que resta ao trabalhador sem «um norte». É com uma certa admiração pela coragem do suicida que outros trabalhadores em vias do desespero total olham para o seu exemplo. Por isso, Manuel Caixinha ( Fanga , p. 174) se atira da alverca abaixo; e Toino Revel contempla o suicídio como a única solução para os seus problemas ( Avieiros , p.322). Aquele que tenta matar-se, mas sua coragem enfraquece, passa, então, a ser visto como um fraco aos olhos da colectividade. É o que acontece, por exemplo, com o Macário de Porto Manso . (p. 218). Por outro lado,

106

a esperança sempre paira sobre uma nação obscurantizada e vitimada pelo Estado Novo 67 .

E tal esperança, que sempre paira, por vezes exprime-se através dos neo-realistas duma maneira ímplicita. Urbano Tavares Rodrigues, inclusivemente, já descobriu tal fenómeno de esperança presente em diversas obras publicadas por autores não situacionistas, especialmente pelos neo-realistas: “É a janela da esperança que se abre em certos assomos de revolta dos «Gaibéus», de Redol; e na errância com que termina «Esteiros», de Soeiro Pereira Gomes o João Gaitinhas vai por esse País fora descobrir «e repetir» a significação das pisadas revolucionárias de seu pai.”68

Em Gaibéus , embora seja óbvio que um tom deprimente e um sentimento de desilusão estão sempre presentes no romance (“A terra parece praguejada. E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.” 69 ), o vinho oferece o

único escape da realidade como se observa na canção do vinho que marca a partida e chegada dos ceifeiros:

Era o vinho, meu Deus, era o vinho, Era o vinho que eu mais adorava... (...) Só por morte, meu bem, só por morte, só por morte eu o vinho deixava.70

Podemos ainda entrever escondida na imaginação e no sonho dos trabalhadores que também são os do próprio autor: “Não havia a seus olhos só planície e céu – havia o futuro a rasgar-se para além daquele céu e daquela planície. Outras gentes, outras casas, outras estradas (...) Por essas estradas, corria para eles uma vida nova que os faria homens.”71 No final do romance o aparecimento dum movediço comboio serve como o símbolo de levar os trabalhadores para além daquela terra, o que nos lembra o

107 comboio rumo à modernidade aos olhos da Geração de 70.

Em comparação com Gaibéus de Redol, o Fogo na Noite Escura , de Fernando

Namora, desvenda mais explicitamente a existência da esperança nos tempos difíceis, retratando sem nenhuma idealização o quotidiano rural da Beira e do Alentejo assim como a alienação dos camponeses, suas superstições e, mais importante, o modo como afrontam o poder e “transgridem” os limites impostos por uma sociedade forçadamente enclausurada. A coragem e aspiração dos agricultores, ganhões, mineiros etc., desempenham um papel de fogo o qual presta aos leitores o calor da esperança numa noite aparentemente interminável. A metáfora de luz na noite é também utilizada por Luís de Sttau Monteiro na sua peça teatral Felizmente Há Luar ! que tem como cenário o ambiente político dos inícios do século XIX durante o controlo de terror pelos ingleses, os quais obviamente simbolizam o Estado Novo e

Salazar. O protagonista Gomes Freire de Andrade, que planeja o regresso do Brasil do rei D. João VI, foi condenado ao “auto-de-fé” e queimado publicamente para ameaçar os outros rebeldes. Na noite da execução, para surpresa das autoridades, a lua está brilhante e o luar, símbolo da liberdade, expele tanto a escuridão da noite como o terror que os oficiais querem causar.

Continuando na linha do teatro, voltamos a Francisco Rebello que depois de primeiras obras “estigmatizadas”, se empenha na escrita de peças de teatro anti-salazaristas. A sua peça mais influente, O Dia Seguinte , narra uma história sobre um jovem casal com um filho prestes a nascer mas incapaz de tolerar mais dificuldades da vida, decidindo por isso cometer suicídio. Depois de se matar, o casal

108

é chamado para descrever a sua vida, o que os leva a reviver os seus momentos mais importantes, desde os mais optimistas e esperançados aos de desespero que os conduzem ao suicídio. Durante o processo de relembrança, o casal torna-se consciente de que o suicídio é um erro e que eles deviam sobreviver com esperança no futuro, porque sempre existe um dia seguinte e, provavelmente, amanhã é outro dia. O teatro levanta, assim, a idéia de esperança na humanidade e na marcha imparável da vida que, apesar das dificuldades encontradas, traz sempre um “dia seguinte” e um alvorecer que renasce todas as manhãs. Nas palavras de Mário Castrim, “[v]ale pelo menos como documento de uma época batida por todos os desesperos e rica de todas as promessas.” “A verdade é que O Dia Seguinte não podia agradar à ditadura fascista; era um protesto e era, simultaneamente, um grito de esperança, uma afirmação de confiança no futuro, isto numa época de desespero, na época em que (...) o fascismo odiava tudo quanto lhe cheirasse a certeza à vitória de um dia seguinte”.72

Augusto Casimiro, no seu romance A Vida Continua... , exprime a mesma idéia que Francisco Rebello em O Dia Seguinte , descrevendo a escuridão do presente e concomitantemente manifestando a esperança num próximo futuro brilhante: “a noite vai a caminho da aurora. Há sempre uma aurora. De olhos fechados aquela face esplende. Diz sofrimento vencido, um suave cansaço, - a vitória inevitável. O homem que não temeu a morte e sabe ser duro, o homem que conheceu e viveu o amor, dominando o que desmente o amor, o que venceu em si o egoísmo e a caverna, caiu de joelhos, está de joelhos, afogando o rosto que parece mais róseo na brancura das roupas (...) E os soluços, que lhe desatam a garganta e as lágrimas que chora, são, no

109 silêncio da hora alta, como um canto anunciando a manhã que vai romper.

A VIDA CONTINUARÁ...”73

Quer pela documentação das vivências sofredoras do povo, quer pela incitação da esperança, os intelectuais anti-salazaristas pretendem ajudar os portugueses a discernir a sociedade e a época em que se encontram. Num contexto da ditadura com uma formidável máquina da propaganda ideológica, o que tais intelectuais empreendem não são meramente descrições detalhadas de diversos costumes, crenças ou tradições em vários cantos de Portugal, mas um movimento progressivo de desmentir os mistérios, epopeias e fakelores , assim como desenganar o bom povinho iludido ou obscurantizado pelo Estado Novo. Para os leitores desses intelectuais decompõe-se automaticamente a identidade nacional concebida e imposta pelos

órgãos de propaganda, porque ela não corresponde à realidade nem se qualifica para o que é popular. Deste modo, os leitores voltam a conhecer a realidade e a si próprios sem máscaras, nem influência ideológica do Estado, surgindo a sua identidade original, o que é exatamente a idéia que Casais Monteiro manifesta no s eu poema

Saudades da Origem :

Esta ansiedade de ser simples! Saudade da origem, duma origem que talvez nunca fosse, mas duma origem como deveria ser, toda sinceridade simples e clara, sem aquele franzido aos cantos da boca que nos deixa a necessidade de fingir...

Esta ansiedade de pureza! Ah! não da pureza dos teólogos mas da pureza de haver a vida sem máscara

110 e de não andarmos a inventar torturas complicadas e doutas, sábias, invenções para esquecer a vida... Ai! – não podermos assassinar o Adão e mais a Eva! 74

111

Notas:

1 Ahmad Sadri. Max Weber’s Sociology o f Intellectuals . Oxford University Press.1992. p.70.

2 Idem, p.71.

3 Idem, p.73.

4 A. José Saraiva. “O Meu Afastamento” In: Expresso . Lisboa. 22-5-1982. p.26R.

5 Adolfo Casais Monteiro. Considerações Pessoais . Imprensa da Universidade Coimbra. 1933. pp. 8-9.

6 Urbano Tavares Rodrigues. “Literatura contra o Fascismo e Subliteratura Fascista”.In: O Fascismo em Portugal: Actas do Colóquio realizado na Faculdade de Letras de Lisboa em Março de 1980 , Lisboa:A Regra do Jogo. 1982. p.467.

7 Mesmo Mário Soares foi preso pela primeira vez no ano 1946.

8 Humberto Delgado. 28 de Maio (peça em 3 actos radiodifundida em 28 de Maio de 1939 pelo Rádio Club Português – Parede – Portugal), Casa Portuguesa. 1939. p.65.

9 Idem, p.66.

10 Luiz-Francisco Rebello. O Ouro que Deus Dá (Primeiro Prémio do II Concurso de Teatro da Mocidade Portuguesa). Lisboa. 1944. p.73.

11 Idem, p.37.

12 AOS/CO/PC-3J/2.

13 Heloísa Paulo, op.cit., p.137

14 Maria Filomena Mónica. Educação e Sociedade no Portugal de Salazar . Lisboa: Editorial Presença/G.I.S. 1978. p. 141 .

15 Luiz-Francisco Rebello, op.cit., 1944, p.39.

16 Idem, p.40.

17 Casais Monteiro, op.cit., 1933, p.12.

18 António Ramos de Almeida. “Notas para o neo-realismo” In: O Diabo , Nº. 320. Lisboa. 1940. p.2.

19 Luiz Francisco Rebello. A Lição do Tempo (Teatro do Centro Universitário de Lisboa da Mocidade Portuguesa). Lisboa,. 1943. pp.27-8.

20 Luciana Stegagno Picchio. História do Teatro Português . Lisboa: Portugália. 1969. p.357.

21 Carlos Reis. História Crítia da Literatura Portuguesa (Vol.IX). Editorial VERBO 1993. p.15.

112

22 Idem. p.65.

23 Ana Paula Ferreira. Alves Redol e o Neo-Realismo Português , Lisboa: Caminho.1982. p.135.

24 Carlos Reis, op.cit., p.1107.

25 Carlos de Oliveira. Casa na Duna . Lisboa : Livraria Sá da Costa Editora. 1977. p.1.

26 Gaspar Simões. Crítica , Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda. 1983. pp.133-4.

27 António Vale. “cinco notas sobre forma e conteúdo”. In: Vértice . 131-132.1954. pp. 467-8.

28 Alves Redol. Gaibéus (6ª.ed).Lisboa: Publicações Europa-América. 1977. p.17.

29 Adolfo Casais Monteiro. Considerações Pessoais . Imprensa da Universidade Coimbra. 1933. pp.8-9.

30 Idem, p.16

31 Ibidem.

32 Alves Redol, op.cit., p.16.

33 Idem, p.172.

34 Esta revista encontra-se reproduzida na revista Vértice , nº 173, fevereiro de 1958, pp.108-10.

35 Manuel da Fonseca. Cerromaior . Lisboa:Forja. 1976. p.189.

36 Idem, p.219.

37 Idem, p.31.

38 Idem, p.219.

39 Idem, p.233

40 Idem, p.234.

41 Ana Paula Ferreira, op.cit., p.137.

42 Idem, p.135.

43 Carlos Queirós. Desaparecida . Lisoba: Edição do Autor. 1935. pp.59-60.

44 Azinhal Abelho. Confidências de um Rapaz Provinciano . Lisboa: S.ed.1935. pp. 26-27.

45 Aquilino Ribeiro. O Homem que Matou o Diabo . Paris-Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand. p.341.

46 Idem, p.339.

47 Idem, p.336.

48 Idem, p.337.

113

49 Adolfo Casais Monteiro, op.cit., 1933, pp.8-9.

50 Aquilino Ribeiro, op.cit., pp.336-7.

51 Aquilino Ribeiro. Lápides Partidas. Livraria Bertrand-Lisboa, p.372.

52 Idem, p.348.

53 Adolfo Casais Monteiro. Canto da Nossa Agonia . Edições. 1944, pp.38-9.

54 António José Saraiva, Óscar Lopes. História da Literatura Portuguesa ,15ª ed.Porto Editora. 1989, p.1082.

55 Além de obscurantizar o país na área das humanidades e ciências sociais, o Estado Novo não deixa de castrar a ciência natural portuguesa. Joaquim Barradas de Carvalho em O Obscurantismo Salazarista . Seara Nova . 1974 enumera os ilustres cientistas portugueses que se exilam quer voluntaria quer forçosamente: onde trabalham os laureados do Prémio Artur Malheiro da Academia das Ciências da Lisboa? Um, precisamente o primeiro a receber o galardão, é hoje professor de matemática numa universidade argentina, outro vive há anos em Lourenço Marques, impossibilitado de reger a sua cátedra da Universidade de Coimbra, um terceiro – um dos valores mais positivos da sua geração – é hoje comerciante; dois outros foram obrigados a exilar-se em França para aí poderem prosseguir os seus trabalhos de investigação científica; ainda um outro é professor de matemática numa universidade dos Estados Unidos da América do Norte e há um, finalmente, que aguarda julgamento nas prisões da cidade do Porto! – Pergunta-se: quantos Prémios Artur Malheiro se encontram ainda hoje nas universidades portuguesas? Os dedos de uma só mão são já em demasia para os contar... . (Joaquim Barradas de Carvalho. O Obscurantismo Salazarista . Seara Nova. 1974, pp.55-6).

56 A dicotomia hiper-identidade/sub-identidade é discutida no último capítulo.

57 Arlindo. M. Caldeira. “O poder e a memória nacional. Heróis e vilõees na mitologia salazarista”. In: Penélope , Nº. 15.1995, p.130.

58 David Corkill and José Carlos Almeida, "Commoration and Propaganda in Salazar's Portugal: The Portuguese World Exhibition of 1940." p.12. http://www.e-space.mmu.ac.uk/e-space/handle/2173/14342.

59 António Ferro. Prémios Literários (1934-1947) . Lisboa: Edições SNI. 1950, p.90.

60 Marilena Chauí. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular do Brasil , 2ªed. Editora Brasiliense. 1987. p.99.

61 Idem, p.104.

62 João de Melo. Autópsia de um Mar de Ruínas (4ªed.). Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992, p.287.

63 Heloísa Paulo. Estado Novo e Propaganda em Portugal e no Brasil. O SPN/SNI e o DIP , Coimbra: Libraria Minerva. 1994, pp.82-3.

64 António Ramos de Almeida. “Notas para o neo-realismo”. In: O Diabo , Nº. 320. Lisboa. 1940, p.2.

65 Idem, p.2.

114

66 Alves Redol, op.cit., p.17.

67 Ana Paula Ferreira, op.cit.,p.159.

68 Urbano Tavares Rodrigues. “Literatura contra o Fascismo e Subliteratura Fascista”. In O Fascismo em Portugal: Actas do Colóquio realizado na Faculdade de Letras de Lisboa em Março de 1980 . Lisboa:A Regra do Jogo, 1982, p.435.

69 Alves Redol, op.cit., p.23.

70 Alves Redol, op.cit., p.173.

71 Idem, p.168.

72 Mário Castrim in Diário de Lisboa , data desconhecida.

73 Augusto Casimiro. A Vida Continua..., Lisboa: Livraria Editora. 1942. p.185.

74 Adolfo Casais Monteiro. Sempre e Sem Fim. Edições “Presença” 1937. p.23.

Capítulo III A Missão como Literatura

1 Busca da brasilidade antes do Estado Novo

Como se deve definir uma nação tem sido um problema espinhoso e persistente para intelectuais em todo o mundo, especialmente para os de países ex-colônias, visto que a questão da identidade nacional nesses países que têm uma história relativamente curta, uma intervenção tanto cultural como histórica forte de um ou uns “alheios” e independência “recente” será mais preocupante. 1 O sucesso da construção duma nação ou de uma identidade nacional ajudará um país a identificar-se dentro duma falange de nações no mundo e a cultivar a confiança dos nacionais derivada da sua unidade. Para o Brasil, a questão de construir uma nova nação colocou-se duma maneira destacada, pela primeira vez, no processo da independência. Contudo, devido ao brilho da Coroa, à existência dum “Império” no imaginário popular e ao entusiasmo ainda não desvanecido pela independência recém-alcançada, a identidade nacional brasileira parecia não se sentir abalada pelo fato de “a nação continuar cindida em pedaços”: diferentes partes do país com características distintas, disparidades abismais entre classes sociais, discrepância severa entre raças cobertas pelo mito clichê da harmonia de três raças. Durante a Primeira República, surgiu de novo a questão da nação, dado que era imperativo para a intelligentsia procurar outros meios a preencher a vaga resultante da deposição do monarca e do acordar do sonho imperial a fim de unificar um país profundamente desigual, heterogêneo e hierarquizado. De acordo com Adalmir Leonídio, ao Brasil faltava um pensamento

115 116 filosófico universalmente aceito a nível nacional que tivesse efeitos duradouros, como

“todos os indivíduos nascem livres e iguais” na França, para que se aglutinassem todos os seres nacionais.2 Ademais, no Brasil a etnicidade, por si só, não constituía um elemento de força suficiente para todos os brasileiros se enquadrarem numa comunhão, como no caso da Alemanha. Deste modo, se definimos nação como uma comunidade baseada numa tradição histórica que abrange língua, religião, raça, experiência sociocultural, dentro de um território estritamente demarcado por limites geográficos e mais flexivelmente delimitado por fronteiras lingüísticas e culturais em que os membros compartilham traços tanto socioculturais como econômicos e naturais 3, o Brasil durante a Primeira República, pelo menos no início dela, não se qualificava para constituir uma nação no pleno sentido.

Consequentemente, durante esse período a definição do Brasil e da brasilidade - preocupação constante dos intelectuais brasileiros - os esforços deste tipo não conseguiram muito êxito. Os românticos com sua imaginação e idealização dum

Brasil puro e paradisíaco tentam buscar um Brasil original nos índios e na cultura aborígene, mas, como se pode observar em Iracema , de José de Alencar, os românticos não têm a capacidade ou possivelmente nem a vontade de conceber um

Brasil totalmente indígena e livre de intervenções europeias. As suas paixões nacionalistas assim como a procura aparentemente ávida duma pátria resultam em tentativas de criar um nexo entre um começo hipotético e idealizado e um status quo já conhecido, mas involuntariamente admitido. Embora teoricamente o romantismo assuma um tom anti-colonial, o que se constata nos romances e ficções românticas é

117 uma contradição inevitável e insolúvel entre o Brasil virgem com seus habitantes indígenas e os colonizadores forasteiros, o que resulta, em geral, no sacrifício do primeiro. Tal sacrifício ou dano sofrido pelo Brasil demonstra a incapacidade dos românticos de edificarem uma identidade nacional brasileira compatível com a realidade. A morte de Iracema, anagrama da América, representa o custo que o Brasil tem que pagar para se establecer ao misturar-se com a Europa, e ao mesmo tempo implica também o prejuízo, senão a perda da própria brasilidade para ironicamente fomentar uma brasilidade.

Entrando na Primeira República, a brasilidade desta vez encontra-se dilacerada pela dialética litoral/sertão. Em agudo contraste com o litoral que se vem modernizar

à europeia, o interior representado pelo sertão permanece na era arcaica e continua a manter características fora-de-moda. conclui muito bem: “As populações sertanejas, desenvolvendo-se isoladas da costa, dispersas em pequenos núcleos através do deserto humano que é o mediterrâneo pastoril, conservaram muitos traços arcaicos. (...) Contrastam flagrantemente com as populações litorâneas, que gozam de intenso convívio social e se mantêm em comunicação com o mundo (...) Na verdade, a sociedade sertaneja do interior distanciou-se não só espacial mas também social e culturalmente da gente litorânea, estabelecendo-se uma defasagem que as opõe como se fossem povos distintos.” 4 Essas características tanto do próprio sertão como de seus habitantes contrapõem-se drasticamente ao litoral que se carateriza por indústria, cidades cosmopolitas e modernidade, o que coloca um grande desafio para os então intelectuais brasileiros. A experiência pessoal de durante a

118 sua viagem com a tropa republicana resultou na renomada obra Os Sertões e incentivou-o a refletir sobre a situação dilemática e dialéctica do Brasil, através da qual o autor adquiriu uma nova perspectiva em relação aos canudenses e à brasilidade.

Porém, o que Euclides da Cunha não consegue resolver é a realidade preconceituosa contra os sertões e os sertanejos por parte das elites. Sob a influência do pesudo-cientismo e determinismo, o Brasil ainda se encontra dividido, e a identidade nacional em formação conflituosa, e para os que tentam procurar um rumo para a brasilidade, frustração e fracasso são mais frequentes do que encorajamento e ressonância.

A frustração de abrasileirar o Brasil e nutrir a brasilidade continua num personagem de Lima Barreto - Policarpo Quaresma que tenta abrasileirar o Brasil através da valorização do país que devia ser encorajada num momento em que o auspício da proclamação da República não conseguia curar um país dominado pelas elites que só fitavam os olhos na Europa e mal desejavam se identificar com o povo que “não se enquadrava nos padrões europeus nem pelo comportamento político, nem pela cultura, nem pela maneira de morar, nem pela cara.” 5 Em tal situação, os ideais de Quaresma, embora visionários, serviam como remédios possíveis para uma nação que “continua cindida em pedaços” (expressão de Lúcia Lippi Oliveira), porque

Quaresma, antes de tudo, é um brasileiro em sentido pleno:

Errava quem quisesse encontrar nele qualquer regionalismo; Quaresma era antes de tudo brasileiro. Não que o fazia vibrar de paixão não eram só os pampas do sul com o seu gado, não era o café de São Paulo, não eram o ouro e os diamantes de Minas, não era a beleza da Guanabra, não era a altura da Paulo Afonso, não era o estro de

119

Gonçalves Dias ou o ímpeto de Andrade Neves – era tudo isso junto, fundido, reunido, sob a bandeira estrelada do Cruzeiro. 6

Na sua procura dum grande Brasil, emerge um espírito precioso para a consolidação duma nova nação. Nas palavras de Valente, “[e]xiste algo de heróico (...) nessa verdadeira ‘busca’ patriótica que impulsiona Policarpo a procurar a realização do potencial de grandeza do Brasil.” 7 Vista duma lente aprovadora, a preconização da cultura nacional por Quaresma pode ser uma alerta do perigo de plagiar a cultura europeia pela elite brasileira, e uma tentativa de consagrar a independência cultural brasileira. Nos últimos anos do Império já havia diversos intelectuais brasileiros que advertiram que o mimetismo prejudicaria a independência cultural e a originalidade da nação brasileira, entre os quais se destacavam Sílvio Romero e João Capistrano de

Abreu. Ambos advogavam a valorização da cultura nacional e a introspecção para dentro do país. Segundo Bradford Burns, essas vozes “formed the headwaters of a stream of cultural nationalism that, within two generations, would become a turbulent

8 river.” Tal preocupação com a originalidade nacional e cultural será resumida no movimento modernista e na questão da influência indígena, símbolo da tradição brasileira que estava à beira de desvanecimento 9, também será tratada por Mário de

Andrade.

Desde o sacrifício de Iracema à mudança da opinião de Euclides da Cunha, ao triste herói, Policarpo Quaresma, podemos verificar um progresso contínuo rumo à conscientização da brasilidade, e a incessante procura de soluções para a nacionalidade brasileira. Tais esforços, porém, não resultam em efeitos satisfatórios para os intelectuais brasileiros. Por fim, no ano de 1922, esse desprazimento geral

120 relativo à situação identitária e cultural do país desemboca no movimento modernista que preconiza a brasilidade original e autônoma. No discurso que proferiu na segunda noite da Semana, focaliza a idéia da originalidade, a qual, além de procurar atualizar-se, tem que refletir especialmente o “sentimento nacional”.

Considerada como a mediadora da transição que se iniciara nos anos 1920 e se completava nos anos 1940, a geração modernista continua o projeto de Policarpo

Quaresma no sentido de descobrir uma saída para o Brasil. Entre as obras modernistas,

Macunaíma será a mais representativa: um indivíduo nascido no interior do Brasil que não tem nenhum carácter implica a falta de definição de um caráter nacional, a cultura submissiva e dividida, e o descaso para com as tradições. Mário de Andrade compõe essa rapsódia através de recolher meticulosamente lendas, folclores, costumes, bichos e plantas de todas as regiões sem se referir a nenhuma delas, misturando as diversas manifestações culturais e religiosas, dando assim um aspecto de unidade nacional que não condiz com a realidade dividida de cultura brasileira. Em Macunaíma se fazem de fato desgeografização e desregionalização que desrespeitam lendariamente a geografia o mais possível. A diversidade marioandradiana de conceber a brasilidade na sua pluralidade fragmentada e heterogeneidade descentralizada, apesar de apresentar literaria mas honestamente o Brasil como um ente nacional, é conflituosa como a idéia da unidade nacional almejada por muitos outros intelectuais, como

Cassiano Ricardo que advoga “Marcha para o Oeste” e o “Estado bandeirante” com o objetivo de promover a união do território nacional e integrar os “elementos dispersos da nacionalidade” (por isso o governo tem que ser suficientemente forte para

121 contrabalançar a dominação regionalista, contaminada pelo espírito de facção e antipática ao ideal nacional). Para além disso, no romance Macunaíma per se não se soluciona satisfatoriamente a questão da muiraquitã que simboliza a essência da cultura brasileira. O fato de que ao Brasil falta uma cultura auto-consciente como falta ao herói um caráter definido impossibilita o surgimento duma identidade individual/nacional distinta.

No mesmo ano em que Mário de Andrade publicou Macunaíma , saiu à luz

Manifesto Antropófago , de Oswald de Andrade, segundo o qual a antropofagia é uma inversão do mito do bom selvagem que se considera puro e inocente (Em Marco Zero

II , Oswald escreve “As origens intelectuais da Antropofagia estão em Montaigne, em

Rousseau! – exclamou Jack. – É a exaltação do homem natural, com uma diferença, não o elogio do “bom selvagem” mas do mau, do verdadeiro” 10 ). O índio passa a ser mau e esperto, porque canibaliza o estrangeiro, digere-o, tornando-o parte de si. Por meio da antropofagia, Oswald de Andrade pretende que o Brasil também seja um país canibal, o que alude a uma possibilidade que é o colonizado que digere o colonizador e ganha sua independência em vez do contrário, ou seja, é a cultura brasileira que digere a portuguesa e a européia, e as torna brasileiras. Além disso, “O modelo da canibalização introduz uma visão mais aberta e mais dinâmica da cultura brasileira, porquanto a preocupação com o estabelecimento de um momento de origem ou de nascimento da identidade nacional é substituída pela concepção de um processo que, visto como parte do inconsciente cultural brasileiro, remete não para um passado fechado e acabado, mas para um futuro aberto e a ser construído. Em outras palavras,

122 a identidade nacional não seria uma herança recebida passivamente, mas um projeto que precisa ser constantemente renovado.” 11 Através da descrição do Brasil como um canibal que come seres humanos nunca por nutrição mas para absorver em si as qualidades do comido, Oswald pretende verificar que a cultura brasileira é, na realidade, mais englobante e forte: “Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o”12 . Contudo, é de notar que embora seja plausível a idéia de antropofagia de Oswald de Andrade, falta-lhe não só o espírito sistemático como também um plano concreto e condições objetivas para a implementar de uma maneira mais substantiva.

2 O Estado Novo e os Intelectuais Cooptados

Contudo, durante a Primeira República o modernismo não se combina bem com o ideário do governo nem é aceito largamente por outros intelectuais, e tanto a nova forma da literatura como o significado imbuído nela não causam muita ressonância positiva na sociedade brasileira. Por ocasião da Revolução de 1930, os brasileiros continuavam a ser desterrados na sua terra 13 . A partir do golpe de Vargas o modernismo se tornou o movimento artístico mais destacante no Brasil, e se realiza rapprochement entre a política e a cultura, relação que teria sido condenada na

Primeira República. Diferente do Brasil-Império que é um ente político naturalmente aleijado nacional e identitariamente dado que o imperador por si próprio é da Casa de

123

Bragança e nele corre sangue português, e da Primeira República que é um governo fraco 14 especialmente na sua capacidade de unificar o país (senão de dilacerar o

Brasil ainda mais) e cultivar o nacionalismo ou patriotismo entre os brasileiros, o

Estado Novo getulista, em contraste, “em sua complexa trama de ‘tradição’ e

‘modernização’, exerceu um apelo substancial sobre a intelectualidade brasileira.

Segundo Daniel Pécaut, em Os intelectuais e a política no Brasil; entre o povo e a nação , a desilusão com a República e indignação frente ao desleixo para com a organização da nação dos intelectuais estimulam-nos a manifestar uma vocação quer colaboradora, quer cooperativa, quer cooptativa, para solicitar o apoio promotor do

Estado, e ao mesmo tempo mostram-se dispostos a auxiliá-lo na construção da nação brasileira e brasilidade assumindo funções públicas ou falando uma linguagem oficial e estatal. “Figuras egressas do modernismo – tanto os que ingressaram nos movimentos radicais dos anos 1930 quanto os que se mantiveram ligados aos partidos tradicionais – foram desembocar numa corrente comum que se insere no projeto de construção do Estado nacional. Literatos modernistas, políticos integralistas, positivistas, católicos, socialistas são encontrados trabalhando lado a lado.” 15 Inserido num período repleto de choques de idéias e pensamentos que visam buscar uma identidade nacional ou pelo menos uma solução para ela, o Estado Novo consegue satisfazer tanto o critério de nacionalidade e popularidade por se proclamar um regime genuinamente nacional como o critério de ser um Estado forte 16 , agradando assim especialmente aos intelectuais como Cassiano Ricardo e Villa-Lobos (de Ricardo provém a idéia de um “Brasil-Menino”, que pretende glorificar o país como uma

124

“Nação Jovem” correspondente ao nome “Estado Novo”). Em relação ao músico, segundo Angela Maria de Castro Gomes em História e Historiadores :

na sua figuração musical claramente se mostra uma visão de mundo que impõe a ordem da ópera e da música clássica ao desordenado universo dos cantos populares do samba e dos sons indígenas: no canto orfeónico que tem uma estrutura similar à do Estado Novo, cada voz está localizada hierarquicamente na pauta musical exercendo a respectiva função consoante as diretrizes do maestro – símbolo do chefe do Estado. A inteligência foi assim chamada a colaborar com o Estado, e as letras e as artes, em conseqüência, colocadas nos devidos lugares como expressões nacionais, e os modernistas adequavam-se magnificamente bem à tarefa, porque reinstauravam a temática da brasilidade, quanto porque eram os intelectuais disponíveis para o preenchimento dos cargos públicos do Estado Novo. 17

Ademais, o Estado Novo é caracterizado como a ditabranda em contraposição com a ditadura tradicional, dado que faltam ao Estado Novo brasileiro características gerais duma ditadura como a rigidez, a severidade e a formidabilidade que demonstra o Portugal salazarista. É interessante que durante o governo Vargas, não obstante as dissidências provenientes de intelectuais, quase nenhum intelectual se viu forçado ao exílio ou ao auto-exílio, o que contrasta agudamente com o Estado Novo salazarista em que imensos escritores, professores e pensadores foram exilados ou se exilaram.

Além disso, apesar de haver muitos intelectuais ou literatos cooptados no governo

Vargas, não existem muitas obras literárias (romances, ficções, contos, poesias, teatros, etc) situacionistas que visam glorificar e embelezar o Estado Novo, não obstante bastantes trabalhos não-literários a favor do regime que são essencialmente argumentações e ensaios que principalmente são publicados na revista Cultura

Política . Uma grande distinção entre o Estado Novo salazarista e o getulista

125 encontra-se no facto de o último não pretender, pelo menos não avidamente, impor uma ideologia unitária e englobante sobre os intelectuais, dando-lhes assim alguma liberdade e certo espaço para agir, embora seja também verdadeiro que tal liberdade e espaço na criação literária e expressão ideológica sejam bastante limitadas. Contudo, num sentido ou noutro, elas são importantes e servem como uma buffer zone entre o

Estado e os intelectuais assim como entre a política e cultura. Assim, o Estado Novo getulista evita ser um regime totalitário que interfere em tudo. De acordo com

Rodrigues, o periódico oficial, Cultura Política , também não busca impor uma linha

única de pensamento (“totalitário”), mas sim uma difusão de várias correntes ideológicas autoritárias, o que explicaria a heterogeneidade de seus colaboradores, mas, embora aberta a todas as facções compatíveis com o autoritarismo, representa um esforço de conseguir consenso entre os intelectuais cooptáveis.

Essa generosidade estadonovista não vem sem custo, e para os modernistas, não existe almoço de graça. A bondade estadonovista tem seus requisitos: a cooptação e colaboração dos intelectuais junto ao Estado Novo, quer escrevendo os artigos ideológicos que visam explicar e justificar o projeto do Estado Nacional ou comentar as palavras do chefe de governo e divulgando as ações governamentais, como faz

Almir de Andrade, quer escrevendo sobre literatura, folclore, situação regional que indiretamente contribuem para a legitimação do Estado 18 , quer tomando posse e cargos administrativos como Gustavo Capanema e Carlos Drummond de Andrade, quer dirigindo instituições burocráticas-acadêmicas como o Serviço do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e

126

Artístico Nacional estão presentes as idéias de Mário de Andrade, Gilberto Freyre,

Manuel Bandeira, etc.) e o Instituto Nacional do Livro para agir no campo cultural.

Torna-se, assim, evidente o sucesso que o Estado Novo conseguiu no recrutamento de intelectuais no aparato estatal e no apelo para a participação de larga escala da intelligentsia em projetos estatais. ´

O sucesso estadonovista na incorporação de intelectuais deve-se primariamente ao fato de que ser uma tradição no Brasil os intelectuais e escritores desempenharem funções governamentais:

Observa-se que quase toda a literatura brasileira, no passado como no presente, é uma literatura de funcionários públicos. Nossa figura máxima, aquela que podemos mostrar ao mundo [...] foi um diretor-geral de contabilidade do Ministério da Viação, [...] Raul Pompéia, diretor de estatística do Diário Oficial e da Biblioteca Nacional; , inspetor escolar no Rio; , diretor de instrução no estado do Rio, como também o foram José Veríssimo e Franklin Távora, respectivamente no Pará e em Pernambuco; Aluísio Azevedo, oficial-maior no estado do Rio e cônsul; Araújo Porto-Alegre, cônsul; Mário de Alencar, diretor de biblioteca na Câmara; Mário Pederneiras, taquígrafo no Senado; Gonzaga Duque, oficial da Fazenda na Prefeitura do Rio; B.Lopes, empregado nos Correios, como Hermes Fontes; Ronald de Carvalho, praticante de secretaria e depois oficial no Itamaraty; , diretor de Justiça no estado do Rio; Humberto de Campos, inspetor federal de ensino; João Ribeiro e Capistrano de Abreu, oficiais da Biblioteca Nacional; Guimarães Passos, arquivista da mordomia da Casa Imperial; Augusto de Lima, diretor do Arquivo Público de Minas; Araripe Jr., oficial do Ministério do Império; Emilio de Menezes, funcionário do recenseamento; Raymundo Correia, diretor de Finanças do governo mineiro, em Ouro Preto; Luís Carlos e Pereira da Silva, da Central do Brasil; Ramiz Galvão e Constâncio Alves, respectivamente diretor e diretor de seção da Biblioteca Nacional; José de Alencar, diretor e consultor da Secretaria da Justiça; Farias Brito, secretário de Governo no Ceará; Lúcio de Mendonça, delegado de instrução pública em Campanha; Manuel Antônio de Almeida, administrador da tipografia Nacional e oficial da Secretaria da

127

Fazenda; Lima Barreto, oficial da secretaria da Guerra[...]; João Alphonsus, funcionário da secretaria das Finanças em Minas; o grande Gonçalves Dias, oficial da Secretaria de Estrangeiros... Mas seriam páginas e páginas de nomes, atestando o que as letras devem à burocracia, e como esta se engrandece com as letras [...] Por que há que contar com elas, para que prossiga entre nós certa tradição meditativa e irônica, certo jeito entre desencantado e piedoso de ver, interpretar e contar os homens [...] o que talvez só um escritor- funcionário, ou um funcionário-escritor, seja capaz de oferecer-nos, ele que constrói, sob a proteção da Ordem Burocrática, o seu edifício de nuvens, como um louco manso e subvencionado. 19

Essa tradição de convívio entre cultura e política observada por Carlos

Drummond de Andrade que remonta à época do império definitivamente se estende à geração de 30. Augusto Meyer, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Carlos

Drummond de Andrade eram escritores-funcionários que mantinham laços de amizade com os políticos estaduais que, em Minas, haviam liderado o movimento revolucionário em 1930, sendo que alguns desses homens políticos se tornaram dirigentes de primeiro escalão no novo regime. Osvaldo Orico, Herman Lima,

Peregrino Jr. etc., por sua vez, são funcionários-escritores que iniciaram suas carreiras na capital federal, sem contar com o apoio de uma “panela” bem situada que pudesse lhes garantir empregos e oportunidades complementares de ganho. Enquanto os primeiros se transferiram para o Rio de Janeiro a chamado dos chefes políticos do novo regime, os outros eram migrantes sequiosos de encontrar um lugar ao sol. Em outras palavras, a convocação de Drummond, Abgar Renault e Augusto Meyer, para que preenchessem os cargos de confiança no segundo escalão no aparato estatal, inscrevia-se numa estratégia que consistiu em esfacelar a autonomia das oligarquias estaduais pela formação de um quadro de agentes em que “o principal trunfo é o

128 acesso ao centro dominante de poder econômico e político, o governo federal.” 20

Carlos Drummond de Andrade já começa como chefe de gabinete do ministro da

Educação e Saúde Pública; Augusto Meyer transfere-se do Rio Grande do Sul para dirigir o Instituto Nacional do Livro, cargo do qual se afasta apenas em 1944, quando viaja aos Estados Unidos a convite do Departamento de Estado (durante a sua ocupação como chefe do INL, Meyer parou de escrever poemas); Osvaldo Orico inicia sua carreira de funcionário como inspetor regional de ensino, e torna-se secretário-geral do estado do Pará em 1936 e descontinuou a escrita de poemas no fim da década de 20; Herman Lima consegue vir para o Rio de Janeiro, removido da

Delegacia Fiscal de Salvador para o Tesouro Nacional; o primeiro emprego de

Peregrino Jr. no Rio é de escrevente extranumerário na Central do Brasil, fazendo em seguida o concurso para auxiliar de escrita. Os funcionários-escritores, sendo quase sempre originários de estados periféricos em relação aos centros culturais e políticos, portadores de diplomas superiores de baixa conversibilidade no mercado federal de postos, iniciam sua trajetória intelectual buscando filiar-se nos remanescentes anatolianos da República Velha que haviam conseguido estabilizar sua situação de emprego e, ao mesmo tempo, fazendo lances arriscados em áreas da produção cultural cuja rentalibidade ainda era uma incógnita. 21

Em comparação com os anatolianos, que eram e tinham que ser polígrafos para satisfazer diversas demandas que lhes faziam a grande imprensa, as revistas mundanas, os dirigentes e mandatários políticos da oligarquia, os intelectuais recrutados pelo regime Vargas, tanto funcionários-escritores como escritores-funcionários, embora

129 assumissem tarefas políticas e ideológicas nos diferentes domínios relacionados com os postos burocráticos, nomeadamente nas áreas educacional e cultural, desempenhavam funções específicas e muitas vezes de sua especialidade e preferiam confinar suas pretensões intelectuais a um determinado gênero ou, então, repartiam seus investimentos entre obras literárias e textos de natureza política.

O que muitos estudiosos que investigam a história intelectual do Estado Novo omitem é que a colaboração entre o Estado e a intelligentsia ou entre a política e cultura não se faz duma maneira unilateral, quer dizer, a cooptação intelectual não somente se apresenta como o ingresso dos escritores, pensadores, etc., no aparato político ou como prestação uni-direcional de serviço tanto ideológico como cultural ao Estado Novo, como, aliás, o processo de cooptação é de fato bilateral. Mais precisamente, a cooptação não é apenas dada pela intelligentsia , como também procurada ativamente pelo Estado e os políticos em nome de interesses nacionais, ideal comum e muitas vezs de amizade pessoal. Tal cooperação entre os dois lados é, na verdade, bilateral. A participação de Getúlio Vargas na Academia de Letras é um símbolo da vontade do Estado Novo em acomodar-se, conviver com e até tornar-se parte da força cultural, embora essa ação sempre tenha suas implicações políticas. Em

1943, durante o seu discurso de admissão na Academia Brasileira da Letras, Vargas justifica a sua entrada no seio da eminente instituição insistindo no caráter indissociável do intelectual e do político, dissertando sobre a “necessária simbiose entre os homens de idéia e os homens de ação”. Desta forma, é concedido ao intelectual o papel de conselheiro consultivo do Estado do qual o Estado busca

130 proativamente idéias, conselhos e colaborações. Assim, o relacioamento entre os dois lados torna-se um vaivém recíproco ao invés de uma relação prestador-recipiente unilateral: “reservou para os oferecimentos de colaboração intelectual uma acolhida favorável, e mais ainda porque, propenso ao pragmatismo e refratário à mobilização das massas, ganhou dos ideólogos realistas o rótulo de agente de modernização e pacificador, concentrando aí as suas ambições”. 22

Na opinião de Almir de Andrade, existe uma relação orgânica entre política e cultura que se pode considerar como um “traço vigoroso de união”, porque a cultura serve como uma ponte conectando a política e a vida, e “as mais genuínas fontes de inspiração popular”, enquanto “a política empresta à cultura uma organização, um conteúdo socialmente útil, um sentido de orientação para o bem comum”. Ademais, ele advoga que a cultura, embora proveniente da vida, tem que transcender a vida, e a maneira de realizar tal objetivo é por via da política: “a missão da cultura popular e social não é apenas exprimir a vida, mas sim, substancialmente, a vida organizada. (...)

A criação de uma verdadeira e sadia consciência política importa na compreensão profunda desses vínculos entre a cultura e a política.”23 No processo de integração da cultura na política, cabe ao Estado proceder a essa organização em nome do bem comum, da convivência de pensadores localizados em vários pontos do espectro ideológico. Essa perspectiva de Almir de Andrade no que diz respeito à relação entre cultura e política passa a ser crucial para o Estado Novo, sendo que neste processo o ditador personaliza o Estado. Nas reflexões de Paulo Augusto Figueiredo a política deve incorporar a cultura porque “a cultura significa superiorização e sistematização

131 de valores; e política, a integração desses valores nos planos coletivos de vida. É que não há verdadeira cultura sem vida. E não há vida sem organização. Daí a necessidade da integração da cultura na política, cujo fim é justamente a ordenação sistemática de todos os elementos da vida. (...) a política almeja a formação plena do homem como cidadão, assim como a cultura visa a formação plena do homem como indivíduo. (...)

Quem racionaliza a vida é a cultura; quem a organiza é a politíca. Política e cultura operam, assim conjugadas, na mesma zona vital” 24 . A política e a cultura formam naturalmente uma relação de simbiose, e esta relação deve ser consolidada através da função dos intelectuais, o que implica a conjunção da cultura – a conceptualização e fermentação de idéias, com a política – a execução e a implementação de idéias.

Lippi Oliveira também opina que a cultura passa a ser elemento fundamental da política , e lembra que um dos componentes “do pensamento político dos anos 30 é a defesa do papel predominante, prioritário e exclusivo das elites no processo de mudança social”. Trata-se evidentemente de um tema internacional e largamente defendido pelos intelectuais europeus do período, porque dada a ignorância e incapacidade geral da gente comum, serão as elites culturais e intelectuais que desempenharão o papel de construtores da nação e identidade nacional. Contudo, a

única entidade que tem o poder de colocar os intelectuais em postos adequados para que assumam as respectivas funções é o Estado – o supremo garantidor da nação e o coordenador de todos construtores-intelectuais da nacionalidade. Inerente a este raciocínio, é suposto que a nação e a nacionalidade se livrem da imitação e mímica cultural e ideológica, e que tanto o Estado como os intelectuais devam ser autônomos,

132 o que corresponde exatamente à idéia da originalidade preconizada durante o movimento modernista. A genuína política como a autêntica cultura também recusa a imitação. Em relação aos “ismos” importados, nomeadamente nazismo e comunismo, o Estado Novo consegue manter-se independente e resistente. No romance Marco

Zero II , mesmo Oswald de Andrade, escritor não-simpatizante do regime, não esconde sua atitude negativa vis-à-vis o comunismo e o integralismo (derivativo do nazismo) considerados como ideologias estrangeiras:

Nós, os brasileiros, que não mancomunamos com o judaísmo, nós que não colocamos os interesses pessoais acima dos interesses da pátria, nos apresentamos a todo Brasil como guardas ciosos do seu nome de bem no passado, de sua força no presente e de fé de vencer no futuro! Alistai-vos, pois, companheiros da Água Choca, nas fileiras da Ação Integralista Brasileira. Só nós salvaremos o Brasil! Porque somos nacionalistas! Um anauê para o vosso chefe municipal, Doutor Miguel riskalá! Três anauês para o Chefe Nacional, Plínio Salgado! Um anauê para o Brasil! 25

Depois de muitas palavras de auto-elogio e declaração patriótica, os integralistas dão três anauês para Plínio Salgado mas um só anauê para o Brasil. Oswald de

Andrade demonstra que o que os integralistas valorizam mais é o seu chefe, em vez da nação que será um pretexto para que eles ascendam ao poder. O autor também alerta para o potencial perigo do Integralismo e sua impotência vis-à-vis problemas nacionais: “Você tem visto as passeatas de Plínio Salgado, a propaganda desavergonhada desses súditos disfarçados de Hitler e Mussolini!”26 “Qual a solução que os integralistas oferecem aos dois problemas máximos da nacionalidade? O

Imperialismo e o latifúndio? ” 27

De maneira diferente mas de intuito similar, Oswald de Andrade ridiculariza os

133 comunistas descrevendo a maneira de ser deles, a sua maneira de ser, contrastando a sua atitude de escritor em relação a essas ideologias forasteiras:

Em 1930, logo depois da revolução, os comunistas tinham se deixado rebocar pelo “Tenentismo”. Seguia-se a isso uma crise de sectarismo obreiro que afastara Claudino da direção. Da ala intelectual restara, além de Leonardo, o camarada Lino, que soubera granjear o apoio da massa entusiasmada com sua miséria ascética. Tinha havido um momento em que um estivador que ganhasse mais e se vestisse melhor era posto sob suspeita de adesão à burguesia. Maria Parede regalava-se nesse extremismo demagógico. Aparecia , às vezes, à noite, disfarçada em camponesa, a cabeça num lenço sujo. Procuravam-se para o estado-maior do Partido, operários que tivessem a “linha máxima”. Evidencia-se cada vez mais o anarquismo de Olivério rusco, grande orador falando uma linguagem desabusada e pitoresca, com um braço quebrado nas torturas de um cárcere europeu. 28

Perante esses “ismos” importados o romance reflete também a preocupação do autor com as raízes históricas do país e a estirpe nacional que podem ser transformadas, distorcidas e desviadas pela influência exterior:

Eu só tenho um receio. É de que vocês também desviem o Brasil de seu curso histórico, de seu curso nacional. A nossa verdade racial não é o comunismo, não poderá ser nunca dirigida pelo internacionalismo, nem ficar à mercê do comintern que é uma força estranha à nossa história (...) Já é uma abdicação essa fraseologia empafiada que vocês usam na propaganda, chamando “camponês” o nosso caipira. Nem traduzir vocês sabem (...) O comunismo teve aqui um erro inicial, quando foi fundado pelo intendente Brandão o bloco Operário e Camponês. Isso não é e nunca será brasileiro (...) Os nossos marxistas bisonhos não passam duns importadores de idéias feitas, frases feitas, de imperialismos feitos! Tenho medo de que o comunista brasileiro saia uma contrafação repugnante e inútil como foi os positivistas da Primeira República, um anormal que será fatalmente expulso do organismo político. Nossa independência deve ser exclusivamente brasileira! Nós temos que ser brasileiros! 29

Nas palavras de Francisco Campos, que advoga um Estado Nacional autônomo

134 e endogêneo, o Brasil deve afastar-se de qualquer “ideologia exôtica” para afirmar sua pura nacionalidade:

O Estado Novo não se filia, com efeito, a nenhuma ideologia exotica. E’ uma creação nacional, equidistante da licença demagogica e da compressão autocratica, procurando conciliar o clima liberal, especifico da America, e as duras contingencias da vida contemporanea, cheia de problemas e de ricos e varrida de ondas de inquietação e de desordem, instavel no seu equilibrio, obrigado a crear novas formas para o trabalho, a producção, a distribuição dos bens, o manejo do capital e da moeda, e, sobretudo, as novas configurações politicas, sociaes e moraes em que o turbilhão de idéas, de sentimentos e tendencias encontre o seu estado de satisfacção e de repouso. 30

A autonomia do Estado Novo ou a sua neutralidade vis-à-vis os “ismos” importados eleva a sua credibilidade de ser um regime nacional genuinamente brasileiro, e tal reputação virá a convencer os intelectuais ainda mais da sua opção e cooptação. Contudo, o que o governo Vargas conseguiu fazer não foi só desfrutar do movimento modernista que constitui a primeira expressão da busca de novos referenciais para a idéia do “nacional” como manifestação do “popular” e do

“folclórico”, mas mais crucialmente a inclusão de elementos culturais no Estado - um aparelho geralmente considerado mais forte, mais concreto e mais coesivo do que o conceito da nação. É por isso que chamamos o Estado Novo getulista do Estado

Nacional ou o Brasil getulista de Nação Estatal. A fim de transformar o Estado autoritário na Nação universal ou no símbolo dela, o Estado necessita de elementos culturais que se considerem como constituinte principal da tradição e do espírito nacional. Naturalmente, o grupo principal e mais disponível e influente de fornecedores desses elementos culturais é a intelligentsia , e o Estado Novo brasileiro

135 não encontra muita dificuldade em buscar seus colaboradores entre ela. Por exemplo, o Grupo Anta é a vertente mais próxima do regime que propõe soluções nacionalistas para os problemas políticos e sociais. A idéia de “povo”, a necessidade da criação de um estereótipo de “brasilidade”, no qual os mais diversos segmentos da sociedade brasileira se identifiquem, coloca o regime como o principal incentivador da tão propalada sedimentação e da divulgação desse nacionalismo. Contudo, o que ficou dito acima não revela o fato de que o Estado Novo pratica uma política de nacionalização do Estado, e neste processo, os intelectuais são elementos indispensáveis para a sua legitimação e nacionalização. O sucesso da nacionalização do Estado Novo deve-se ao fato de que a nacionalidade brasileira, ou pelo menos, o conceito da nacionalidade brasileira, no começo do século XX ainda se encontra em estado de desenvolvimento incipiente pese embora a muita vontade e impulso da intelligentsia preocupada com definir e demonstrar a brasilidade. E, essa constante preocupação intelectual com a problemática identitária e o ideal comum de intelectuais de construir uma identidade nacional à brasileira verifica exatamente que a brasilidade é ainda um conceito sub-desenvolvido e mal-fundamentado, que precisa de consolidação persistente. Nas palavras de Eduardo Lourenço: a brasilidade é uma sub-identidade. Através da primeira secção deste capítulo podemos constatar que os intelectuais não encontraram saída ideal para a identidade nacional brasileira desde o império, uma vez que a edificação duma nacionalidade não pode atingir a perfeição, se é que ela existe, num curto período de tempo. Contudo, o estabelecimento do

Estado Novo de natureza nacional, em parte, recompensa a insuficiência da

136 nacionalidade brasileira. É identificada como a nacionalidade a “estatalidade” do

Estado Novo cuja força coesiva e ideologia nacionalista constituem um centro ou um símbolo nacional que tem força centrípeta para os brasileiros, ao passo que o Estado se auto-define e se confunde propositadamente com a nação. De uma perspectiva oposta, a nacionalização do Estado é vista como a estatalização da nação no sentido de que o Estado representa, simboliza e encarna a Nação, o que inevitavelmente envolve fatores políticos e culturais que convergem no papel desempenhado pelos intelectuais – representantes e porta-vozes da nacionalidade e defensores da identidade nacional, visto que a inclusão dos intelectuais no Estado constitui uma justificação da substituição da nacionalidade pela estatalidade e a legitimação dum regime político ávido de assumir a função da Nação. Por outro lado, a nacionalização do Estado com uma postura nacionalista serve como um pretexto ideal para que intelectuais colaboradores se aliviem do estigma de cooptação. “Diante dos dilemas de sua filiação ao regime autoritário que remunerava seus serviços, buscaram minimizar os favores da cooptação lhes contrapondo uma produção intelectual fundada em álibis nacionalistas.” 31 Em nome de agentes que representam os anseios do povo e o pulso da nação, os intelectuais cooptados podem usufruir das condições e conveniências concedidas pelo Estado, e ao mesmo tempo que declaram que suas produções intelectuais não são sujeitas às demandas por qualquer determinado grupo dirigente ou político, apesar de muitas vezes tais produções intelectuais terem implicações ou significados políticos e ideológicos. As primícias da nacionalidade neste caso servem como crivos que filtram as pretensões administrativas e materiais

137 dos cooptados. Contudo, por mais sublime que seja o pretexto dos intelectuais cooptados em relação à sua colaboração com o Estado, a “eficácia política de seus escritos derivou (...) das suas capacidades de converter seus pontos de vista em ortodoxia ideológica” 32 . Isso é particularmente verdadeiro para os principais artífices do “pensamento autoritário” – Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Francisco Campos, por exemplo, são os hardliners da ideologia estadonovista. 33

Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder – Formação do Patrononato Político

Brasileiro , argumenta que mesmo que não tenha chegado a monopolizar o controlo do mercado e a contratação de serviço culturais, o poder público é de fato

“concessionário-mor” dos padrões da legitimidade intelectual. “As encomendas, os prêmios, as viagens de representação, as prebendas, tudo que ostentasse o timbre do oficialismo passou a constituir a caução daqueles que aspiravam ingressar no panteão da cultura brasileira. O brasileiro que se distingue há de ter prestado sua colaboração no aparelhamento estatal, não na empresa particular, no êxito dos negócios, nas contribuições à cultura, mas numa ética confuciana do bom servidor, com carreira administrativa e curriculum vitae aprovado de cima para baixo”. 34 Contudo, o fato de que em certos aspectos e em certo grau o Estado se torna o supremo árbitro que legitima, avalia e determina as competências de numerosos intelectuais e seus trabalhos literários e intelectuais, e o patrão deles responsável pelo seu recrutamento, seleção, treinamento, ajustamento e promoção 35 não significa que os méritos artísticos tanto dos intelectuais cooptados ou colaboradores como suas obras sejam unicamente determinados pelo Estado ou que os valores intelectuais dos cooptados ou

138 colaboradores devam ser reduzidos à proporção de nível de privilégio e de posto administrativo que recebem do Estado. Na realidade é ainda duvidosa a ligação necessária entre o mérito intelectual e a carreira de intelectual durante o período

Vargas. Por exemplo, Mário de Andrade, talvez o maior romancista modernista, só assumia cargo do Instituto de Estudos Brasileiros, posição marginal que não pode representar a sua qualidade artística no intercâmbio entre posto público e valor cultural.(No caso de Mário de Andrade, que tem incessantemente recolhido, catalogado, classificado e valorizando os cabedais culturais e materiais espalhados por todo o país através de numerosas viagens pelo Brasil, como o roteiro de Macunaíma, com o objectivo de verificar, salientar e até reviver a originalidade brasileira ignorada e muitas vezes em risco de extinção, para ele é particularmente apelativa a construção de uma política nacional de preservação do patrimônio cultural brasileiro e, portanto,

é seu interesse e também seu ideal implementar projetos ou políticas que dizem respeito à criação de um órgão capaz de preservar a cultura e valorizar o patrimônio brasileiro. Contudo, só o Estado possui recursos suficientes para a formulação de uma política nacional de preservação da memória e do patrimônio histórico nacionais.

Deste modo, será natural e inevitável a sua colaboração com o Estado). Carlos

Drummond de Andrade que pertence à geração mineira e é muito amigo de Gustavo

Capanema 36 , apesar de trabalhar para o Estado Novo como funcionário do gabinete do ministro da Educação, mantinha a sua integridade, dignidade e autonomia mental, e durante a sua carreira administrativa publicou poemas revolucionários como os de

Sentimento do mundo e de Rosa do povo que exprimem suas idéias contrárias ou

139 não-conformistas com a ideologia estadonovista. Em relação aos intelectuais fiéis ao

Estado Novo, como Cassiano Ricardo, que presta seu apoio a Vargas tanto pela palavra como pela ação por causa do seu ideário afim à ideologia estadonovista, é díficil julgar se o seu serviço no aparato estatal seja mais incentivado por interesses materiais por ideal mental ou uma combinação de dois. Para além disso, como diz

Bomeny, o “ talento de Villa-Lobos se sobrepõe às imagens produzidas no contexto do Estado Novo, reveladoras de sua intimidade com o poder. Os versos de Fernando

Pessoa são mais fortes (e mais independentes) que a lembrança de sua propalada simpatia pelo fascismo. A música de Wagner ganha autonomia e acaba superando a sua associação com Hitler” 37 , ou mais remotamente o confucionismo – ideologia oficial por milhares de anos na China – não dana nada a grandeza de Confúcio como intelectual autônomo. No Estado Novo sempre se pode observar essa dependência insubordinada dos intelectuais que administrativamente se subordinam ao Estado enquanto mantêm sua independência intelectual. Nas palavras de Bomeny, perante a política, a arte é maior “em sua permanência, transcendência e atemporalidade, em sua insuperável capacidade de emocionar e em sua insubmissão às contingências e conjunturas.” 38

De outra perspectiva, ao contrário das análises baseadas na cooptação, Milton

Lahuerta chama a atenção para a “conquista” dos intelectuais para a formação de um bloco de poder: Ao se propor a organizar a sociedade, a cultura, a economia e o direito modernos, o Estado Novo procura ganhar os intelectuais, oferecendo-lhes as condições para a satisfação das exigências gerais que pode oferecer um governo, um

140 partido no governo (…) [acolhendo] os intelectuais, mostrando um caminho seguro, evidentemente que com seu assentimento, para a realização de seus ideais e de suas utopias: o da construção da nação por via do Estado que com ela queria se confundir.

É por isso que não se trata de cooptação, mas de constituição de um novo bloco de poder com uma simultânea perspectiva autoritária e modernizadora, que busca consenso entre a intelectualidade chamando-a para participar do processo, realizando a fusão de modernidade e projeto nacional.” 39 Não obstante o pretexto ideológico de nacionalismo e a isca material de remuneração ou privilégios, há intelectuais que dão as costas ao Estado Novo por se afastarem de postos administrativos e se concentrem na produção estritamente literária. Oswald de Andrade, através duma pequena história no seu romance Marco Zero II , descrever como um intelectual ideal deve ser:

Fora para Campos de Jordão. Ele não tivera recursos para estudar. Atingira uma relativa instrução fazendo a sua carreira de jornalista, de revisor a redator, e articulista. Fora secretário de gente rica. Poderia ter feito caminho e futuro, mas desligara-se corajosamente de tudo, abandonara conforto e cargo. Compreendera o papel do intelectual. 40

Similarmente, Silviano Santiago no seu romance Em Liberdade tenta restorar a história verdadeira que um escritor não-cooptado experienciou durante o Estado Novo cujo nome é Graciliano Ramos. O romance destaca-se pela sua aproximação da

História e a prisão de Graciliano Ramos tanto na realidade como nesta obra literária.

O romance é uma denúncia ou uma desilusão diante do comportamento de vários intelectuais brasileiros contemporâneos de Graciliano Ramos, e revela como o governo manipula a intelligentsia indiretamente por forças políticas e econômicas:

141

Ao assinar hoje o ponto na Livraria José Olympio, encontro o Zé Lins absurdamente eufórico. Tinha um envelope já aberto na mão e o abanava – devido ao calor que fazia – como se fosse um leque. Queria achar um companheiro que pudesse aceitar um convite para passar o fim de semana em São Paulo. Não chegava a caracterizar a procedência do convite. Repetia que era tudo de graça: passagem, hotel, comida etc. A procedência do convite continuava um mistério. Teria certas implicações políticas decorrentes da posição que São Paulo toma na luta sucessória? 41

É evidente a semelhança entre esses intelectuais convidados no romance e os intelectuais cooptados na realidade, sendo ambos “bons e obedientes”. O convite feito por organizadores desconhecidos que são realmente as autoridades assim como a viagem gratuita são, em essência, um engodo para cativar intelectuais “inocentes”. E a verdade só será desvendada quando o protagonista dá de cara “por acaso” com o ministro Capanema – “mineiro compenetrado, tinha o nariz avantajado (quase de negro) e o beiço caído. Bochechas grandes e flácidas. Reconheceu-me, creio, e esboçou gesto de cordialidade na minha direção”42 , e posteriormente se depara na saída do elevador com um poeta mineiro que todo mundo sabe quem é.

Foi uma dessas viagens organizadas não se sabe direito por quem, com finalidade dúbia, em que a responsabilidade econômica e política pelos convidados é dividida entre vários grupos, a fim de que, havendo conseqüências desastrosas, ninguém saia prejudicado. Um implica o outro que, por sua vez, implica um terceiro, e assim por diante. No final, forma-se um círculo de influências poderoso que é indestrutível. Nessa altura, investigadores e investigados concordam em dar o caso como encerrado e esquecido. “Foi um equívoco que não será repetido” – concluem e arquivam a história. Não creio que a nossa viagem, no balanço final, tenha sido um equívoco para os desconhecidos organizadores. Tudo correu como manda o figurino. Fomos convidados bons e obedientes , que seguiam à risca os horários e a etiqueta do lugar. Daí a viagem ter sido um equívoco para nós, ou pelo menos para mim. (grifo meu) 43

142

Depois da saída da prisão, embora reganhe a liberdade, o Graciliano Ramos de

Silviano Santiago descobre que ele é financeiramente desapoiado e tem que sustentar a sua mulher e filha, o que o coloca outra vez numa situação de prisão – prisão pecúria. O protagonista é posto em liberdade pelo Estado, mas a realidade geral para a inteligência - só os cooptados desfrutam do bem-estar de vida – poderá desprovir a sua liberdade outra vez por o obrigar a ser cooptado. Liberdade física em troca da prisão mental. A frustração do protagnoista, por um lado, espelha as dificuldades e isolamento sofridos por intelectuais autônomos como ele, mas, por outro lado, verifica o êxito do governo Vargas em alcançar e penetrar a intelligentsia brasileira.

Continuando a linha de intelectuais não-cooptados, é de notar que durante o

Estado Novo o único grupo intelectual que se afasta voluntariamente como uma coletividade é o dos neo-realistas. Tal posição anti-situacionista tem alguma semelhança com os neo-realistas portugueses. Contudo, em contraste com as contrapartidas portuguesas que se empenham na escrita sobre diversas camadas sociais em diferentes partes de Portugal, os neo-realistas brasileiros concentram suas obras no nordeste e enfocam principalmente o tema da decadência, quer socio-econômico, quer pessoal-familiar. Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge

Andrade, Érico Veríssimo, Ciro dos Anjos, Lúcio Cardoso, Nelson Rodrigues,

Manuel Bandeira são representantes desse grupo de escritores.

Em Riacho Doce , José Lins de Rego não poupa nenhum esforço para descrever a miséria e pobreza duma aldeia nordestina.

143

O riacho descia com água doce e trazia febres para eles. era boa a água, era ria no verão mais pesado, mas as marés subiam, as grandes marés subjugavam a água doce, levando a pobrezinha para as levadas podres. e os maceiós fediam, as febres faziam tremer os dentes, inchar a barriga, matavam menino, aleijavam os grandes. E eles viviam, apesar de tudo. O peixe do mar, a farinha de mandioca, davam de comer, matavam a fome. Eram poucos por ali. As pescarias de cavala, à linha, faziam o dinheiro para comprar o pano para cobrir as indecências dos grandes e dos velhos. Os meninos viviam mesmo nus – de olhos vermelhos pelas doenças, de barriga inchada como zabumba. Os que resistiam, os que fugiam das febres e caganeiras, seriam o Joca-Terto, o Maneco Piaba, os homens de jangada, dos dias e noites em alto mar esperando o peixe, fazendo a vida mais dura deste mundo. Voltavam das pescarias. quarenta e oito horas ao relento, com o sol nas costas, sem dormir, comendo a farinha seca, o peixe frito. Caíam na madorna das caiçaras, de corpo batido, arrebentado. quem os visse assim falaria de preguiça, de gente imprestável, do pobre Brasil. Há cem anos que viviam assim. Tinham os currais de peixe que o governo de quando em vez mandava quebrar. tinham as jangadas, compradas pelos olhos da cara, paus que vinham de quitunde, pano comprado com economias medonhas. Tinham o mar, que ninguém lhes tomava, a terra arenosa, e as febres que a água doce dava de presente. 44

A situação miserável deste sítio já permance por muitos anos como Lins de

Rego afirma: “No Riacho Doce tudo era no mesmo, tudo como há cem anos.” Dentre tais caraterísticas lamentáveis do Riacho Doce, o autor aumenta elementos incertos: a intervenção do governador, o que dramatiza ainda mais o fado vulnerável do Riacho

Doce:

Era assim o Riacho Doce, quando um governador achou aquilo bonito e veio passar uns dias na praia. foi um rebuliço, uma completa tranformação no lugarejo perdido. fizeram casas novas, trouxeram para ali luz elétrica, e uma vida diferente se agitava pelo recanto outrora esquecido. O governador começou a passar o verão no Riacho Doce, vieram outras pessoas graduadas, apareceram veranistas de todos os lados. Agora os praeiros tinham de que viver. O peixe subiu de cotação. Uma cavala regular passou a custar dez mil-réis, e não dava para quem queria. Crescera o lugar, a igreja era um brinco, vinha padre dizer missa de graça, os automóveis que passavam por ali em

144

disparada agora paravam. O governador se espalhava na espreguiçadeira, na conversa. À noite havia pastoril, reisado, chegança. Tabuada, o mestre maior, descera de Bebedouro com o seu grupo para lá. 45

A miséria e a pobreza, doença permanente nesta região, fornece aos neo-realistas suficiente armamento para criticar o governo, e incentiva certo ressentimento no romance em relação às autoridades, o que provavelmente reflete a atitude da maioria dos neo-realistas vis-à-vis o governo getulista.

Depois foi-se o governador, e o novo que chegou não gostava de banho de mar. As casas novas se fecharam, ninguém gostava mais do Riacho Doce, aquilo ali dava febre. Falavam de um rico que perdera um filho de impaludismo, pegado no Riacho Doce. Era até um perigo demorar um automóvel por aquelas bandas. A igreja voltou a ser um ninho de corujas e morcegos. As missas de festas voltaram a custar 100$000, tirados do bolso do povo. 46

Sendo amigo de José Lins de Rego e um neo-realista por si próprio, Graciliano

Ramos também se empenhou no seu romance Vidas Secas na descrição da dureza que os habitantes nordestinos sofreram.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. 47

É de notar que, ao lado da descrição e narração pelos neo-realistas, sempre existe um cinismo misturado com vexame e queixa latentes nas obras neo-realistas que em conjunto exprimem a insatisfação com a realidade.

Graciliano Ramos também não foge à regra:

145

A linguagem escrita é uma safadeza que vocês inventaram para enganar a humanidade, em negócios ou com mentiras. 48 A tecla de sempre, arte como instrumento de propaganda política.. 49

Uma pátria dominada por Dr.Gouveia, Julião Tavares, o diretor da minha repartição, o amante de D.Mercedes, outros desta marca, era chinfrim. Tudo odioso e estúpido, mais odioso e estúpido que o sujeito cabeludo que despejava aguardente no copo sujo. 50

Em geral, tal cinismo provém dum ressentimento e desilusão para com as autoridades, o que se espelha na experiência dum literato cujo trabalho, na opinião dele, não foi justamente reconhecido: “Escrevi muito atacando a república velha, doutor; sacrifiquei-me, endividei-me, estive preso por causa da ideologia, doutor.

Afinal, para se livrarem de mim, atiraram-me este osso que vou roendo com ódio. ”51

Contudo, muitas vezes o cinismo de letrados também origina duma incapacidade de auto-controlo e impotência vis-à-vis a realidade, o que é o caso do personagem principal do romance, Luís da Silva, um letrado que trabalha para um jornal. Algumas vezes ele vive no seu mundinho enclaustrado que repele à realidade, e parece que ele

é dirigido por alguém e se sujeita às ordens misteriosas. Igual aos organizadores desconhecidos que manipulam a viagem de intelectuais no romance Em Liberade , essa “mão invisível” torna a controlar Luís da Silva.

Fui até o fim da linha de bonde e parei, como se me tivesse faltado a corda de repente. (...) Teria andado léguas se os trilhos avançassem para o interior, mover-me-ia regularmente, como um bonde. apenas não me deteria diante dos postes cintados de branco. Nessas marchas compridas a que me habituei – um, dois, um, dois – a fadiga adornece e quase não penso. Exatamente como se uma vontade estranha me dirigisse, um sargento invisível que se descuidasse do exercício e fosse pelo campo, embrutecido pela cadência – um, dois, um dois –

146

esquecido da voz de comando, pensando nos versos de um Julião Tavares ou nos bilhetes de outro Marina. ando meio adormecido. Se alguém me gritasse: - “À direita, à esquerda”, volveria à direita, volveria à esquerda, sem procurar saber donde partia a ordem. Por que à direita? Por que à esquerda? Poderia ser meia-volta. Mas ninguém fala, e vou para a frente, sem perceber que posso voltar, libertar-me da autoridade de um sargento invisível e caminhar anturalmente, parando, observando as casas e pessoas. De repente os trilhos desaparecem e relaxa-se a corda do boneco. 52

Com certeza, a caraterística neo-realista regionalista não se perde no romance, a comiséria característica dos romances neo-realistas tanto portugueses como brasileiros que implica a atitude de compaixão e solidariedade do autor :

O que lhe interessa na minha terra é o sofrimento da multidão, a tragédia periódica das secas. Procuro recordar-me dos verões sertanejos, que duram anos. A lembrança chega misturada com episódios agarrados aqui e ali, em romances. Dificilmente poderia distinguir a realidade da ficção.53

Nas palavras de Afrânio Coutinho em Literatura no Brasil , a região nordestina prestava-se à maravilha para a valorização das tradições culturais. Daí a força com que o movimento regionalista se difundiu por toda a região, da Bahia ao Ceará e mais ao Norte. A fórmula era buscar no ambiente social, cultural e geográfico os elementos temáticos, os tipos de problemas, os episódios, que seriam transformados em matéria de ficção. A técnica era a realista, objetiva, os escritores buscando valer-se de uma coleta de material in loco , à luz da história social ou da observação de campo, tornando os seus romances verdadeiros documentários ou painéis descritivos da

“situação” histórico-social. Não foi difícil, num momento de intensa propaganda de reforma social e mesmo de revolução, como a década de 30, que os livros do grupo constituíssem uma literatura engagée , de participação política, no sentido de “expor”

147 as mazelas do estado vigente como premissa à necessária transformação revolucionária. Muitos desses escritores tornaram-se até militantes políticos, vindo a constituir uma verdadeira literatura de esquerda” 54 , o que confirma, duma perspectiva oposta, a opinião de Daniel Pécaut: “a consideração dos interesses dos intelectuais não poderia se sobrepor às condições e posições políticas desses mesmos intelectuais, assim suas atuações não seriam somente pretextos ou estratégias de colocação social, do mesmo modo que suas convicções políticas não seriam meramente ditadas pelas conveniências de acesso a cargos e prestígio, mas uma crença ou descrença na realidade.” 55

Contudo, o neo-realismo brasileiro não consegue incentivar muita agitação, ressonância e turbulência de larga escala no Brasil como a sua contrapartida portuguesa faz no Portugal salazarista, e a sua presença também não constitui uma ameaça contra a ideologia estadonovista. Por quê? Primeiro, diferente do neo-realismo português que tem todo o país e várias classes sociais como seu objeto e objetivo, o neo-realismo brasileiro se confina no nordeste e principalmente à vida da população rural. Segundo, e mais importantemente, distinto do regime Salazar, o governo Vargas não apresenta uma imagem nacional ou uma identidade brasileira imaginária, mitificada e etérea como Salazar faz à portugalidade. Enquanto o Estado

Novo salazarista pretende restaurar a glória dos tempos remotos com uma ideologia saudosista e quase anacrônica, o getulista recorre ao tema da conquista do Brasil Real, descobrindo e explorando o país na atualidade. O lema da Marcha para Oeste advogado primeiramente por Cassiano implementa-se através de políticas que

148 envolvem iniciativas em áreas de cultura, educação, geografia, demografia (a criação da Comissão Nacional do Ensino Primário, o Conselho de Imigração e

Colonização, o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem e o Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística, etc) que visam tornar as partes do presente Brasil e os brasileiros antigamente ignoradas e omitidas mais visíveis, mais entendíveis e mais integráveis. A identidade nacional é assim fundamentada numa percepção realista em vez de imaginária, e num esforço de conhecer o país em vez de mitificar e obscurantizar o país. Conversamente a identidade nacional formada desta maneira volta a ajudar a integrar o país devido à força coesiva duma identidade nacional genuína e legítima. Segundo Costa o “caráter nacional do regime político…e sua atualidade – um governo adequado ao presente, e não atado a um futuro inexistente, nem muito menos romântico e nostálgico do passado – serão os fundamentos desse realismo peculiar, e esses três conceitos (real, nacional e atual) surgem como complementares e indissociáveis na estrutura argumentativa. “Não se pode fazer a apologia de nenhuma forma de governo, isoladamente, considerada em teoria, ou ao pé da letra. Somos obrigados a procurar, dentro de um critério mais conciliador, aquela que maiores vantagens propicia à índole e às circunstâncias do povo que a adota.” 56 Lúcia Lippi Oliveira também defende que a memória da nação construída no Estado Novo pela instituição entregue aos modernistas pelo ministro Gustavo

Capanema teve o mérito de afastar-se do culto ao passado (José Mariano Filho) e do ufanismo patriótico (), o que significa um retorno à atenção ao presente e à realidade.

149

Resulta daí que um “conceito” importante para a caracterização do Estado Novo

– como regime político – é o seu “realismo”. Procura-se ressaltar o caráter realista do novo modo de organização política, estando o regime alinhado às tendências mundiais, mas adaptado à realidade do Brasil – o que o contrapõe, no essencial, à República

Velha (idealista e desligada das condições reais da vida nacional). Segundo Oto

Prazeres (1941b: 64), “uma Constituição não é um código teórico, e não deve estar nem adiantada nem atrasada para o momento do povo a que vai servir”. Esse realismo

(contra as ficções jurídicas) é um dos pontos-chave da argumentação – científica – dos ideólogos e a justificativa exata para a maioria das categorias criadas pelo discurso autoritário (o “federalismo centralizador”, a “democracia social e econômica”, o

“governo forte” etc.). Azevedo Amaral, um dos ideólogos mais sólidos do Estado

Novo, também argumenta que em vez de ser uma entidade fantástica ou uma miragem desfuntamentada, o Estado Novo é robuscamente baseada na realidade terra-a-terra.

Distinguindo-se inconfundivelmente das formas de organização política emergidas de um plano subjetivamente elaborado e no qual se traçam aprioristicamente as bases de uma construção estatal idealizada em abstrato, o novo Estado brasileiro, conforme se depreende da análise do texto constitucional e do exame das circunstâncias históricas determinantes da reforma nacional precipitada pelo golpe de Estado de 10 de novembro, concretiza uma ordem política, social econômica e espiritual erguida sobre os fundamentos objetivos da realidade. A renovação estrutural da Nação e o sentido do regime adotado não procederam de um trabalho intelectual teórico orientado com a finalidade de impor ao país instituições preferidas pelo legislador constituinte. Este submeteru-se à realidade nacional , tanto nos seus aspectos históricos como nos fatos atuais. Sendo, portanto, um tipo de Estado rigorosamente realístico , isto é, uma organização que não visa encaminhar a Nação para configurações orgânicas aprioristicamente determinadas por esta ou aquela teoria política, mas que representa apenas a adaptação de novas instituições

150

aos imperativos de realidades econômicas, sociais, culturais, políticas e históricas, o Estado autoritário brasileiro não fixa princípios abstratos em realação a nenhum prolema encontrado na vida social do país. 57

O realismo político e cultural do Estado Novo corresponde exatamente a uma intelligentsia desprovida de utopia e embebida dum sentido de missão. Nas palavras de Luciano Martins, a intelligentsia brasileira é “dotada do sentido de missão e, ao mesmo tempo, desprovida de utopia.” 58 É por isso que o realismo e pragmatismo do

Estado Novo se combinam muito bem com o estilo da corrente principal da intelligentsia . Os interesses estatais e o ideal, assim como o interesse material dos intelectuais se combinam, exatamente como Martins observa - a missão desprovida da utopia corresponde ao carácter realista do governo Vargas. Então é relevante perguntar donde vem esse realismo estadonovista? O que são “os fundamentos objetivos da realidade” e “aspectos históricos” do Brasil? Para responder a essas perguntas, é importante frisar o papel do chefe do Estado Novo – Getúlio Vargas, e a resposta consiste na família patriarcal e no homem cordial.

3 Homem Cordial e Getúlio Vargas

“A família, sob a forma patriarcal ou tutelar, tem sido no Brasil uma dessas

‘grandes forças permanentes’. Em torno dela é que os principais acontecimentos brasileiros giraram, durante quatro séculos; e não em torno dos reis ou dos bispos, de chefes de Estado ou de chefes da Igreja”59 escreve Gilberto Freyre, e continua: “a casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social

151 político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o banguê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater familias, culto dos mortos, etc); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (...); de política (o compadrismo).” 60 Assim, o latifúndio constituiu o microcosmo da sociedade brasileira naquele tempo. Para compreender o Brasil, é necessário conhecer o homem cordial e, para conhecer este, é obrigatório saber da família patriarcal de que nasce e se nutre o homem cordial. “Patriarcado foi o núcleo formador de nossa realidade histórica e social, o centro de convergência da vida brasileira e a chave para entender sua formação e suas transformações no curso do tempo” 61 .

Segundo o vencedor mexicano do prêmio Nobel de literatura, Octavio Paz, se pode constatar uma ligação secreta, senão decifrável, entre a geografia e a história dum país, De acordo com ele: a Índia “é um cone invertido, uma árvore cujas raízes penetram o céu. (...) A China é um ventre, umbigo e sexo do cosmos”. E “a geografia do México tende à forma piramidal como se existisse uma relação, secreta mas evidente, entre o espaço natural e a geometria simbólica, e entre esta e o que chamei a nossa história invisível.”62 . Quanto ao Brasil, o músico pró-Estado Novo Villa- Lobos já proclamou “o Brasil tem a forma de um coração”. Sim, o Brasil é um coração, e o brasileiro, antes que o “resultado de três raças, condicionado pelo meio físico, cordial, pacífico, tolerante, altruísta, apegado ao passado europeu e português, religioso mas sem profundidade, emotivo, mais coração que razão, resignado, imitador de estrangeiro, mestiço, afetivo, apegado ao maternal, machista, sensual, apático, patriota,

152 saudosista, colecionador de títulos, amante de vaidades, hospitaleiro, boa-vida, malandro, conciliador, moreno, misto de Jeca-Tatu-Macunaíma-e-Pedro-Malasartes

(...)”63 , trata-se do homem cordial, termo criado pelo escritor Ribeiro Couto e valorizado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, o qual não é necessariamente cortês, afável e cordato (“Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim da esfera do íntimo, do familiar, do privado” 64 ).

Contudo, quando Ribeiro Couto e Sérgio Buarque de Holanda se referem ao homem cordial, eles aludem ao estereótipo do homem cordial – produto natural e típico na formação histórica do Brasil ou a um fenômeno social causado pelo homem cordial que não tem um alvo específico nem concreto. Contudo, no contexto do

Estado Novo, o homem cordial tem seu exemplo vivo: Getúlio Vargas. Ele representa, por um lado, a nação estatalizada e, por outro, o Estado Novo nacionalizado como supremo chefe político do país e como brasileiro típico em que todos os brasileiros ordinários devem encontrar sua respectiva silhueta e muitos conseguem encontrá-la.

Eis o efeito que o Estado Novo almeja: não tem o dilema da dialéctica índio brasileiro/colonizador europeu, não involve superioridade/inferioridade e a subsequente assimilação ou digestão: o próprio ditador, Getúlio Vargas, populista e bem-vindo entre a massa (mesmo Lacerda acredita que é impossível derrutar Vargas pelas urnas) com base no poderoso aparelho estatal ideologica ou administrativamente

153 apoiado por diversos intelectuais. Ele representa o Brasil e tipifica os brasileiros. popular, sorridente, simpático, malandro como um membro de família. A personalidade dele representa o brasileiro, ou seja, os brasileiros encontram sua identidade/caráter em Getúlio Vargas. Ele é o homem cordial absolutamente pulsional, movido pelos impulsos elementares e contraditórios do coração, a simpatia e antipatia, o amor e o ódio, a receptividade e o hermetismo 65 . Fornece Sérgio Buarque de

Holanda, sem reserva, a este ponto de vista seus apoios: “A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade (...) representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante.” 66 e continua: “(...) a repulsa firme a

(...)despersonalização tem sido, até aos nossos dias, um dos traços mais constantes dos povos de estirpe ibérica.”67

Podemos verficar a existência do personalismo e privatismo por todo o Estado

Novo por meio de amizade e relações pessoais entre os políticos e os intelectuais assim como os pistolões oligárquicos e os protegés literatos. 68 Não meramente no sentido de que o governo Vargas é populista, como também Getúlio Vargas é considerado como um mecenas cordial que trava amizades pessoais com diversos intelectuais. O relacionamento pessoal e privado assim serve como lubricante no funcionamento do aparelho estatal, o que nos lembra que a operação do Estado Novo

154 não será nunca totalmente baseada na ideologia e no poder. Nas palavras de Ricardo

Cassiano: “Diziam-no [Vargas] maquiavélico, mas seu maquiavelismo nada tinha que ver com o de príncipe; antes era temperado pela sedução e bondade, sublinhado pelo

“homem cordial” que o tornou sempre acolhedor, (...) Envolvente, sem deformação ou mistificação. Aquele Getúlio que nos havia recebido a mim e ao Menotti, mandando o continuo trazer “um café bem paulista” (...) e que perguntado por um jornalista sobre se teria muitos inimigos, respondeu que sim. Não tão inimigos, porem, que amanhã não pudessem ser amigos. O intelectual que substituiu Alcântara Machado na academia e que se sentava ao nosso lado esquecido do seu cargo de primeiro mandatário da Nação, como simples colega democraticamente. A ponto de Manuel

Bandeira certa vez me haver dito que ele era um ”perfeito acadêmico”. No tocante ao homem cordial, existe uma cadeia de Nação-Estado-Getúlio Vargas: enquanto a nação

é um hipernônimo do Estado através da nacionalização do Estado ou estatalização da nação, Getúlio Vargas é o hipônimo do Estado e consequentemente da nação por ser visto como o homem cordial que representa os brasileiros. De fato, esta cadeia envolve dois processos: a nacionalização do Estado que se baseia na participação e cooptação dos intelectuais, e personalização ou concretização do homem cordial por

Getúlio Vargas, chefe do Estado que é reconhecido, aceito e identificado pela massa brasileira. Quando esses dois processos se fundem, a personalidade de Getúlio Vargas torna-se o símbolo da nação brasileira promovido pelo aparelho estatal, e o homem cordial personalizado por Vargas transforma-se no Homem Brasileiro. Nas palavras de

Azevedo Amaral, este processo acompanha todo o desenvolvimento do Estado Novo

155 o qual se verifica crucial para o Brasil se manter brasileiro.

O cunho de brasilidade que o Chefe da Nação tem procurado sempre imprimir às reformas foi particularmente benéfico na phase que se seguiu à derrocada dramática da Velha República. Um dos maiores perigos que então se esboçavam era o de vir a ser a renovação nacional demasiadamente influenciada por ideologias e modelos exôticos vindos de todos os quadrantes e que, nas condições peculiares do momento histórico que atravessamos, eram capazes de deformar a architectura política e social do Brasil novo, imprimindo-lhe as anomalias de inadaptáveis estylos de importação. apoiando-se em um forte sentimento brasileiro, que parece ser um dos traços mais accentuados da sua personalidade, o Chefe do Governo Provisório conseguiu impedir que na massa plástica da nação abalada pelo traumatismo revolucionário se enxertassem, em detrimento das nossas tendências próprias, elementos extranhos, que viriam a ser fatalmente germens de decomposição do organismo nacional. Actuando por essa forma, o Presidente Getúlio Vargas prestou ao Brasil o mais relevante serviço. 69 (grifo meu)

O que é implicitamente imbuído no homem cordial em relação à cultura nacional e à intelligentsia não é considerado como um mecanismo de monopolizar o poder mas uma afirmação da personalidade do chefe e um culto do personalismo.

Francisco Campos em seu O Estado Nacional afirma que “um Estado como este não pode ser, porém, uma abstracção juridica. Há de ser um homem, uma pessoa viva, inteligência, vontade e sentimento – faculdades da pessoa humana e não de formulas algébricas ou de abstracções jurídicas.” 70 Quanto ao Estado Novo que é alegamente um regime populista, Campos acredita que o Estado só se revela através do chefe do

Estado – “o Estado que se torna visivel e sensivel no seu chefe, o Estado dotado de vontade e de virtudes humanas, o Estado em que corre não a lympha da indifferença e da neutralidade, mas o sangue do poder e da justiça.” 71 Ele continua argumentando sobre a importância da personalidade do chefe:

156

Ha uma relação mysteriosa entre as collectividades humanas e a personalidde que, em cada época, o destino lhes reserva como chefe. As instituições são, em parte, o homem que as modelou e que as anima do seu espirito e da sua vontade. Pode-se dizer, portanto que o Estado Novo é o Sr. Getulio Vargas, e que sem elle, sem o seu temperamento e as suas virtudes, o Estado Novo teria outro sentido e outra expressão. O que a posteridade reconhecerá como um dos traços definidores da sua physionomia singular de homem publico é a feliz alliança de qualidade que andam ordinariamente separadas: rectidão, fortaleza, sernidade, comprehensão, humanidade. A constancia da sua attitude por entre as mais diversas circumstancias indica a existencia de um designio secreto superior às vicissitudes do tempo e sem o qual o homem publico não é um grande homem de Estado. Este é o grande constructor, o homem que projecta para os tempos a vir, que espera e pacienta com as circumstancias, sem se deixar dominar por ellas, o homem de um pensamento e de uma vontade, firme ainda quando parece transigir ou contemporizar, trabalhando interiormente nos seus planos e nas suas antecipações, quando aquelles e estas encontram exteriormente difficuldades, empecilhos ou obstrucções. 72

Parece que o próprio Getúlio Vargas também admite o seu papel como homem cordial enraizado na família patriarcal, porque uma vez insatisfeito com a interpretação de Francisco Campos relativa ao Estado Novo, Vargas ordenou Almir de

Andrade para buscar uma outra visão do “espírito” do regime, o que deu origem ao livro Força, Cultura e Liberdade (1940) em que Almir de Andrade procura vincular o governo Vargas às raízes culturais brasileiras. A primeira das tradições brasileiras se refere às qualidades excepcionais da colonização portuguesa. Essa colonização teria gerado uma mentalidade política original: a autoridade transfere-se do Estado para a família representada e dominada por paterfamilias patriarcal cujas autoridades são naturais, inerentes e indisputáveis. Tal mentalidade original e tradicional no contexto do Estado Novo se procura apresentar, contudo, como “novo”, visto que pela primeira vez, o Estado se vira para as verdadeiras raízes da nacionalidade por recusar os

157 modelos exôticos e importados, o que se constata no relacionamento íntimo entre o movimento modernista de 1922 e a Revolução de 1930 que conversamente verifica sa interpretação de Almir de Andrade. Assim, o personalismo e a cordialidade são os traços culturais que legitimam o novo regime. A singularidade das relações sociais do homem brasileiro constituía a tradição a ser respeitada, e Vargas é o principal intérprete dos ideais e dos sentimentos que se encontram subjacentes na vida brasileira. “A valorização da pessoa de Vargas encontra respaldo na mentalidade política brasileira, que sempre pessoalizou o mando. A tradição política teria sido reintegrada pela ‘eliminação dos intermediários’, por uma aproximação maior entre o governo e o povo.”73 Para Almir de Andrade, o que diferencia o Estado Novo das experiências fascistas é exatamente a maneira de praticar e interpretar a autoridade. O governo pessoal, sem intermediários entre o governante e o povo, é um tipo de regime que por sua própria natureza não pode se converter em doutrina política; depende do homem, das qualidades pessoais do governante. Como próprio Vargas declara: “Hoje, o Governo não tem mais intermediários entre ele e o povo. Não há mais mandatários e partidos. Não há mais representantes de grupos e não há mais representantes de interesses partidários.”74 “As massas da população assistiam ao desenvolvimento da acção dos governos e a elaboração das leis pelos pseudo-representantes da nação na atitude de um povo conquistado e arbitrariamente dirigido por uma potência exôtica, apoiada na força de uma guarnição estrangeira.”75 A identificação Estado/nação acaba por eliminar a necessidade de corpos intermediários entre o povo e o governante. Por isso multiplicam-se expressões como: “Getúlio Vargas compreendeu

158 as solicitações de nossa alma e os imperativos do nosso meio, e foi por isso que pôde disciplinar as nossas forças, harmonizar e hierarquizar os nossos valores, coordenar os nossos traços essenciais, enfim, revelar a nação e traçar-lhe um destino, que o Estado

Novo vai realizando” (...) “Com o Estado Nacional o Brasil tornou-se exclusivamente brasileiro” 76 . Esse traço apaga a necessidade de partidos e de organizações políticas, pois o povo já está representado pela competência de seu governante, capaz de fazer

(ou cercar-se de quem possa fazê-lo) um verdadeiro diagnóstico sobre a sociedade.

Durante o Estado Novo, a edição de cartilhas e livros, a promoção de concursos de monografias sobre o presidente, a realização de cerimônias grandiosas no Dia do

Trabalho, no aniversário do presidente e do regime foram uma constante. A criação, em 1943, de um dia em que as crianças deveriam comemorar o “Dia do Índio”, “por coincidência” em 19 de abril, dia do aniversário do presidente, pode nos alertar para a abrangência desse processo. Ao passo da formulação do homem cordial, também se constroem imagens como homem providencial ou “homem modelo” como subprodutos do homem cordial. Mesmo Darcy Vargas, a mulher do ditador, vira o objeto de propaganda oficial para colorir e enriquecer a personalidade de Getúlio

Vargas. Também, “a partir de 1940, a imprensa ecoa sistematicamente os aniversários do presidente que cai no dia 19 de abril. Em 1941 e 1942, chega-se ao apogeu destas manifestações nas quais associam-se as rádios, as escolas, os clubes, as corporações.” 77

Por outro lado, o Estado, por guardar uma relação intrínseca com a cultura, “é a expressão de tudo o que é fundamentalmente social dentro do homem, um

159 instrumento de socialização das forças econômicas, políticas, morais e intelectuais das coletividades”. Para Almir de Andrade, as justificativas da nova política se buscam nas verdadeiras raízes, na tradição. A fundamentação da nova ordem se busca nos valores do passado que legitimam e dão estabilidade ao regime . A figura de Vargas encarna o espírito de cordialidade . Ao desempenhar esse papel, Vargas passaria a representar a mentalidade política brasileira. A relação direta entre governantes e o povo, a pessoalização do mando, configura uma das dimensões de Vargas, representado pela figura do “pai”. Lippi Oliveira também observa que “existe uma identificação do país com a casa e do governante com o pai. Pela aproximação do poder à cena doméstica, Vargas vira ‘naturalmente’ o pai do povo, o chefe dessa enorme família de brasileiros” 78 . Entretanto, essa figura de pai de Vargas é muito distinta do papel desempenhado por Salazar em Portugal. Se Salazar é projetado aos portugueses como uma figura de pai semi-divino que fica sempre acima da vida mundana e se esforça por afastar-se da massa o mais possível, controlando e manipulando o país com um raciocínio impecável e uma frieza que nunca muda,

Getúlio Vargas é uma figura com que os brasileiros se podem identificar e relacionar.

Ele é considerado por muitos pobres como padrinho que “sempre lembra da gente!”

Ele não tem que ser um semi-deus, mas é homo magus que encarna as forças da alma nacional sem sacralização portuguesa, e homo faber , representante do Estado e da política nacional sem afastamento das massas. Opina Denis Rolland que: “[d]efinido como o ‘construtor de um novo Brasil’, o presidente é um homem ‘cordial’,

‘ponderado’, ‘sensível’, ‘pacificador’. É comparado às grandes figuras nacionais

160

(Duque de Caxias e Padre Anchieta), e ainda ‘pai dos pobres’, o ‘reformador’ por excelência que intervém tanto nas artes como no direito brasileiro.” 79

A formulação da identidade nacional brasileira ou mais precisamente do caráter nacional não é nada sobre a mitificação; pelo contrário, ela é um processo de desmistificação e um regresso ao núcleo histórico da vida quotidiana e ordinária no

Brasil. A identidade nacional não é sobre ser brasileiro mas é sobre comportar-se como brasileiro duma maneira mais natural sem disfarce, sem camuflagem e sem sublimação. O homem cordial, mesmo que não represente todos os brasileiros, demonstra a essência de maneira de viver da vasta maioria dos brasileiros e, mais importantemente, a maneira como brasileiros convivem uns com os outros. É de admitir que a representação da nação pelo Estado não seja a única possibilidade de o

Estado “substituir” e equivaler à nação. Além de ser o sinônimo da nação brasileira, o

Estado Novo ainda pode ser um hipernônimo da nação, e a nação assim torna-se o hipônimo do Estado, dado que o Estado é mais moderno, consciente e orientado do que a nação.

Pelo Estado Novo e por Getúlio Vargas, o Brasil vem sendo abrasileirado em conformidade com o blueprint estadonovista. O nacionalismo transforma-se no estatismo e consequentemente no personalismo de Vargas, e, assim, a nacionalidade brasileira é embutida pelo Estado Novo representado pela personalidade do ditador.

Neste processo, a nacionalização do Brasil sob a égide dum regime autoritário também corresponde a ideais de diversos intelectuais que prestam seus trabalhos ou assistâncias por diferentes meios. A sempre buscada identidade nacional brasileira,

161 que nunca foi consesualmente definida, pelo menos se critaliza na personalidade de

Getúlio Vargas – o homem cordial.

162

Notas:

1 Segundo Nísia Trindade de Lima o papel da intelectualidade na construção simbólica da nação é especialmente marcante e constitui uma característica importante em sociedades que se retardaram no processo de modernização capitalista.

2 A falta dum pensamento deste tipo deriva do fato de que “a existência abstrata de uma nação, identificada com o pacto social entre homens que se sentiam iguais, se chocava com a existência de uma unidade territorial que congregava imensas desigualdades. Adalmir Leonídio, “O sertão e ‘outros lugares’: a idéia de nação em Paulo Prado e Manoel Bomfim”. De sertões, desertos e espaços incivilizados . Angela Mendes de Almeida, Berthold Zilly, Eli Napoleão de Lima (org.) , Mauad : Faperj, 2001, p.25.

3 De acordo com Anthony D. Smith, “A identidade nacional pode assim ser definida como uma população humana nomeada que compartilha um território histórico, mitos comuns e memórias históricas, uma massa, cultura pública, uma economia comum assim como direitos e deveres legais comuns para todos os membros.”3 Anthony D. Smith. National Identity. University of Nevada Press. 1993. p14.

4 Darcy Ribeiro. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil . Companhia de Letras, 2ª ed. 2004. pp. 354-5.

5 José Murilo de Carvalho, Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República Que Não Foi (3ª.edª) , Companhia das Letras, 2005. p.162.

6 Lima Barreto. Triste Fim de Policarpo Quaresma (16ª ed.), Editora Atica, 1998. p.30.

7 Luiz Fernando Valente. “Pluridiscursividade e Dialogismo em Lima Barreto”.In: Colóquo | Letras número 120 Abril-Junho 1991. p.57.

8 Bradford Burns. A History of Brazil (3 rd Edition), Columbia University Press. 1993. p.202.

9 Quando Albernaz e Quaresma pretendem arranjar umas canções tradicionais para o aniversário de praça de Albernaz, os dois têm que recorrer à antiga lavadeira de Albernaz - uma velha negra que já quase esqueceu tudo. Finalmente, com a ajuda de um colecionador quase-académico a tradição consegue recuperar-se, o que verifica que a tradição ou cultura puramente nacional já se despopularizou bastante no Brasil. Thomas Skidmore tem uma descrição correspondente sobre a influência índia. “The existence, let along the fate, of Brazil’s indigenous people, like most people of the distant interior, was virtually ignored by coast-dwelling Brazilians at the turn of the century. … As a result, the Indian was as exotic a figure for most Brazilians as he was for the schoolchildren of Europe and North America. In the words of John Hemming, an English expert on the history of the Brazilian indigenous, “Indians were becoming curiosities rather than a serious threat” (Thomas Skidmore. Brazil: Five Centuries of Change . Oxford University Press, 1999. p. 81).

10 Oswald de Andrade. Marco Zero II , São Paulo: Globo, 1991, p.210.

11 Luiz Fernando Valente. “Oswald/Alencar: a antropofagia revisitada”, Atlântida , 35 (1990): p.84

12 Oswald de Andrade. Manifesto Antropófago .

163

13 “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso, e, ambiente muitas vezes desfavoráveis e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra . (grifo meu)” – Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil . Companhia das Letras, 26ªed, 2003. p. 31.

14 Falando do mal da Primeira República que não se conforma com a realidade brasileira, indica Azevedo Amaral em O Estado Autoritário e Realidade Nacioanl : “Não é contudo possível opor-se indefinidamente às realidades que, por mais recalcadas que sejam, reagem afinal acabando por impor-se vitoriosamente. O Estado desarticulado dos elementos humanos, que, em última análise, são a força motriz das suas engrenagens, não pode ser um aparelho meramente mecânico funcionando automaticamente como o imaginam o sutopistas de um impersonalismo irrealizável. O mal da Velha República não havia sido o excesso de poder pessoal, mas exatamente a fraqueza da maior parte das personalidades que deveriam ter exercido aquele poder...” (Azevedo Amaral, O Estado Autoritário e Realidade Nacioan, Editora Universidade Brasília, 1981, p.68).

15 Lúcia Lippi Oliveira. “As raízes da ordem: os intelectuais, a cultura e o Estado”. In: A Revolução de 30. Seminário internacional . Brasília, UnB, 1982. p. 508.

16 Tradicional e geralmente, acredita-se que os intelectuais brasileiros do final do século XIX e no início do século XX leram a modernização do país considerando fortemente a aposta de intervenção do Estado na articulação e/ou moderação de forças sociais. Isso talvez explique por que mesmo liberais como Anísio Teixeira, tendo como inspiração os Estados Unidos, com forte tradição de desconfiança em relação ao papel do Estado interventor, tenham condicionado a renovação brasileira à ação estatal.

17 Angela Maria de Castro Gomes. História e Historiadores . Rio de Janeiro: FGV. 1996. p. 139.

18 Revela um estudo realizado sobre a composição de contribuintes para a revista Cultura Política que “[d]os 73 autores selecionados, 41 são ligados diretamente ao Poder Executivo, quatro desempenham funções judiciais, cinco são estudantes de direito (alunos do próprio Almir de Andrade), sete são professores universitários (quatro professores de direito, um de economia e dois professores cujo curso não é mencionado), três são militares, sete são “profissionais liberais” (identificados como jornalistas, advogados, escritores, poetas e críticos literários), além de cinco autores cujas referências biográficas não foram encontradas. Estes dados tornam ainda mais reveladora a origem do discurso político – o aparelho do Estado e não a “sociedade civil” – se levarmos em conta que os 42 funcionários do Executivo contribuem com 81 artigos no total, enquanto em todos os outros campos de atuação a quantidade de artigos é quase equivalente ao número de colaboradores.” - Adriano Nervo Codato e Walter Guandalini Jr, "Os autores e suas idéias: um estudo sobre a elite intelectual e o discurso político do Estado Novo", p.5 www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/356.pdf.

19 Carlos Drummond de Andrade. Passeios na ilha , Organização Simões, 1952, pp. 658-9.

20 Helena Bomeny (org.) Constelação Capanema : intelectuais e políticas . Editora FGV : Universidade São Francisco, 2001,p.231.

21 Lúcia Lippi Oliveira. “Tradição e política: o pensamento de Almir de Andrade”. In: Lúcia Lippi Oliveira, Angela Maria de Castro Gomes e Mõnica Pimenta Velloso (org.), Estado Novo: ideologia e poder . Rio de Janeiro: Zahar.1980. p.232.

22 Idem, p.87.

23 Angela de Castro Gomes, “Propaganda política, construção do tempo e do mito Vargas: o

164

Calendário de 1940” In: Elide Rugai Bastos, Marcelo Ridenti, Denis Rolland (orgs.) Intelectuais: sociedade e política. Editora Cortez. 2003, p.157.

24 Idem, p.158.

25 Oswald de Andrade. Marco Zero II . São Paulo: Globo. 1991. p.236.

26 Idem, p.162.

27 Idem, p.272.

28 Idem, p.274.

29 Idem, p.163.

30 Francisco Campos. O Estado Nacional : sua estructura, seu conteudo ideológico . Rio de Janeiro: José Olympio. 1941. p.229.

31 Sérgio Miceli. Intelectuais à Brasileira . Companhia das Letras. 2001. p.216.

32 Idem, p.220.

33 Socio-economicamente, a maioria dos intelectuais predominantes nos anos 30 formam-se em direito (Mário de Andrade é uma exceção) e , nas palavras de António Cândido, “Em geral filhos dos grupos dominantes nos vários níveis, ou da classe média pobre e abastada, eles recebem na maioria uma vantagem de berço que lhes facilita singularmente a vida e que eles procuram manter, ampliar ou recuperar. Por outro lado, como são objeto de uma certa sacralização, reivindicam para si critérios especiais de avaliação, que são aceitos tacitamente como uma espécie de pacto ideológico (que Miceli procura denunciar). Segundo ese pacto, são tratados como representantes do “espírito” e por isso até certo ponto imunes de julgamentos que comprometam a “nobreza” da sua ação. Eles próprios não querem ser apenas desfrutadores, porque quase sempre acreditam com sinceridade no seu estatuto peculiar; e assim se plasmam personalidades e categorias extremamente curiosas. O intelectual parece servir sem servir, fugir mas ficando, obedecer negando, ser fiel traindo. 72 (Sérgio Miceli. Intelectuais à Brasileira . Companhia das Letras. 2001. )

34 Raymundo Faoro. Os donos do poder – Formação do patrononato político brasileiro . 2 vols. 2ª ed. Porto Alegre: Globo. 1977. p. 743.

35 Não é por acaso que, do total de trinta acadêmicos eleitos entre 1930 e 1945, 70% pertenciam aos altos escalões do estamento burocrático, sendo que muitos deles garantiram sua vitória em função da rede de influências que tiveram a oportunidade de acionar, em detrimento daqueles que concorriam apenas pelo mérito de suas obras.

36 Os intelectuais, arquitetos e literatos que escrevem a Capanema incluem “Carlos” como uma extensão do ministro: “Apenas lhe peço me avisar por uma palavrinha sua ou do Carlos...” (Mário de Andrade); “peça ao Carlos que me explique o que voê quer...” (Mário de Andrade); “meu caro Capanema: um grande abraço para você, outro par Carlos...” (Gilberto Freyre)...( Frases das cartas ao ministro depositadas no Arquivo Capanema, CPDOC, Rio de Janeiro) – Lúcia Lippi Oliveira, op.cit., 1980, p.29.

165

37 Bomeny, op.cit., pp.208-9.

38 Helena Bomeny, “Infidelidades Eletivas: Intelectuais e Política”, In: Constelação Capanema : intelectuais e políticas (Helena Bomeny, org.) Editora FGV : Universidade São Francisco, 2001, p. 32.

39 Milton Lahuerta. “Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In: De Lourenzo, Helena Carvalho & Costa, Wilma Peres da (orgs.). A década de 20 e as origens do Brasil modeno . São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1997, pp. 93-114.

40 Oswald de Andrade, op.cit., 1991, p.80.

41 Silviano Santiago, op.cit., p.67

42 Idem, p.36.

43 Idem, p.15.

44 José Lins do Rego. Riacho Doce . José Olympio. 1980. p.73.

45 Idem, p.74.

46 Ibidem.

47 Graciliano Ramos. Vidas Secas , Rio de Janeiro: Record, 1977. p. 9.

48 Graciliano Ramos. Angústia (11ª ed.), Martins. 1969. pp.90-1.

49 Idem, p.172.

50 Idem, p. 178.

51 Idem, p.39.

52 Idem, p.195.

53 Idem, p.40.

54 Afrânio Coutinho (dir.). Literatura no Brasil . Vol 5. Global. 2003. p. 278.

55 Daniel Pécaut. Os intelectuais e a política no Brasil; entre o povo e a nação . São Paulo: Ática, 1990, pp.21-2.

56 Castro Costa, “Conceito de Democracia no Estado Nacional”, Cultura Política , Nº.32, pp.25-7.

57 Azevedo Amaral. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional , Editora Universidade Brasília, 1981, p.149.

58 Luciano Martins. “A gênese de uma intelligentsia ; os intelectuais e a política no Brasil: 1920 a 1940” In: Revista Brasileira de Ciências Sociais . São Paulo: ANPOCS, nº 4, v. 2, jul./1987, pp. 65-87.

59 Gilberto Freire. Sobrados e mucambos (3ª ed). Rio de Janeiro: José Olympio.1961. p.70.

166

60 Gilberto Freire. Casa-grande e Senzala . Rio de Janeiro: José Olympio. 1964. p.73.

61 Gilberto de Mello Kujawski. Idéia do Brasil: A Arquitetura Imperfeita . São Paulo: Senac Editora. 2001. p. 113.

62 Octavio Paz, O Lavirinto da Solidão e Post-Scriptum , 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1984, p242.

63 Hélcion Ribeiro. A Identidade do Brasileiro: “Capado, Sangrado” e Festeiro . Vozes. 1994. p.15.

64 Sérgio Buarque de Holand. Raízes do Brasil (26ª ed.). Companhia das Letras. 2003, p.206.

65 Kujawski, op.cit., p.93.

66 Hollanda, op.cit., pp. 146-7.

67 Idem, p.133.

68 Do homem cordial deriva naturalmente o personalismo que é diferente do individualismo à americana. Numa carta de Carlos Drummond de Andrade endereçada a Gustavo Capanema, ele escreve: “é verdade que minha colaboração foi sempre prestada ao amigo, e não propriamente ao ministro nem ao governo, mas seria impossível dissociar essas entidades e, se eu o conseguisse, isto poderia servir de escusa para mim, porém não beneficiaria o ministro... (Carlos Drummond de Andrade, 25-3-1936). ( Frases das cartas ao ministro depositadas no Arquivo Capanema, CPDOC, Rio de Janeiro). Mário de Andrade uma vez fez reclamações contra o impersonalismo da máquina burocrática, afirmando que “(...) as minhas vontades de bem servir se quebram com a lembrança do que é a burocracia didática deste nosso país. Já tive experiência tão dura disso com a reforma do ensino do Instituto Nacional de Música, na qual tomei parte por convite do então ministro Francisco Campos... Trabalhamos juntos, heroicamente, Luciano Gallet, Sá Pereira e eu. Pra quê? Pra o nosso ingenuíssimo idealismo se destruir todinho ante um organismo burocrático irremovível...” (Carta a Capanema, 23-2-1939. Arquivo Gustavo Capanema, CPDOC-FGV.). E lhe parece uma amargura o fato de que é o ministro de educação em vez de um amigo pessoal para quem Mário de Andrade trabalha: “(...) Por mais amizade que lhe tenha e liberdade que tome consigo, sempre é certo que diante de você não esqueço nunca o ministro, que me assusta, me diminui e me subalterniza. Isto, aliás, me deixa danado de raiva e é a razão por que fujo sempre as altas personalidades. Por carta e de longe, posso me explicar com menos propensão ao consentimento. (Mário de Andrade, 23-2-1939).

69 Azevedo Amaral. A Renovação Nacional . Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1936. pp.24-5.

70 Campos, op.cit., p.231.

71 Ibidem..

72 Ibidem.

73 Lúcia Lippi Oliveira, op.cit., 1980, pp.42-3.

167

74 Getúlio Vargas. Discurso . 7-1-1938. In: Alfredo Pessoa . Cultura Política, nº18 p. 113.

75 Azevedo Amaral, op.cit., 1936, pp. 31-2.

76 Paulo Augusto Figueiredo. “O Estado Nacional”. In: Cultura Política , Nº 2., pp.89-98.

77 Denis Rolland, “O estatuto da cultura no Brasil do Estado Novo: entre o controle das culturas nacionais e a instrumentalização das culturas estrangeiras” In: Elide Rugai Bastos, Marcelo Ridenti, Denis Rolland (orgs.) Intelectuais: sociedade e política . Editora Cortez, 2003 p.90.

78 Lúcia Lippi Oliveira, op.cit., 1980, p.44.

79 Rolland, op.cit, p.89.

Capítulo IV O Irrealismo Salazarista e o Realismo Getulista

1 Hiper-identidade vs. Sub-identidade

Eduardo Lourenço uma vez observou que a identidade nacional portuguesa é um caso de uma hiper-identidade; e, em contraste, a identidade nacional brasileira é uma sub-identidade. É de admitir que tal distinção entre a portugalidade e brasilidade seja exata no sentido de nível de preocupação com a identidade nacional pelos intelectuais e escritores. A persistente busca duma genuína identidade nacional brasileira já começou desde o império com o romantismo, passando o naturalismo, o realismo ao pré-modernismo e finalmente ao movimento modernista. Essa procura trans-secular da brasilidade testemunha os esforços culturais dos intelectuais para conhecerem, definirem, construirem e consolidarem o Brasil, porque, como um país jovem, no Brasil a questão da identidade nacional tem sido uma inquietação para os conscientes e preocupados com a idéia de nação. Essa preocupação também reflete o fato de que falta ao Brasil uma identidade nacional bem definida e sólida cuja construção tem historicamente cabido aos intelectuais e escritores. É por isso que a brasilidade é uma sub-identidade a ser determinada, desenvolvida e fortalecida. Nesse sentido, é exato o termo “sub-identidade” de Eduardo Lourenço. Contudo, durante o processo de busca da brasilidade, fizeram-se diversas tentativas de diferentes perspectivas para abrasileirar o Brasil, o que resulta num conhecimento mais profundo e imparcial da realidade nacional. Tal processo de procura identitária é realmente um processo de ajustar diferentes ideais de vários grupos intelectuais à situação

168 169 verdadeira do Brasil, durante o qual problemas que envolvem cada componente da identidade nacional (como raça, clima, geografia, formação histórica, etc) são levantados e discutidos. Nas palavras de Lúcia Lippi Oliveira, “Sílvio Romero,

Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna e outros, apesar das diferenças que os separam, são apresentados como uma “genealogia” da corrente que se contrapõe ao ufanismo. O sertanejo, o Estado, o branqueamento são caminhos possíveis para a construção da nacionalidade, que escapam a uma visão idílica inicial, que vê o progresso brasileiro inscrito numa ordem natural. Neste ponto, o modernismo retoma e aprofunda esta tradição: trata-se da denúncia do Brasil arcaico, atrasado, comandado por uma política incompetente.” 1

Quanto a Portugal, a questão da identidade nacional nunca foi uma preocupação principal dos intelectuais portugueses que focalizavam muitas vezes a dicotomia decadência/renascença. Neste sentido, será seguro dizer que identitariamente Portugal não sofreu de nenhuma crise, dada a sua condição privilegiada como uma nação de raça, língua e cultura homogêneas assim como a sua longa história como o primeiro país com fronteiras definidas na Europa e como o fundador de um império marítimo 2.

A identidade nacional portuguesa na era contemporânea, em comparação com a brasileira, era mais nítida, sólida, determinada, ou, mais precisamente, pré-determinada que gozava de uma incontestabilidade e indubitabilidade graças aos fatores supramencionados. É por isso que a portugalidade se considera como uma hiper-identidade. Na visão de muitos intelectuais e escritores portugueses, essa hiper-identidade, formada durante os Descobrimentos e a expansão portuguesa, não só

170 simboliza uma época heróica no passado como também deve representar a portugalidade de então e guiar o curso do evoluir de Portugal. Por conseguinte, em

Portugal não existiu a problemática da identidade. O que preocupa os intelectuais, tanto a geração de 70 como a de Orpheu , é a perda e re-obtenção da identidade nacional portuguesa que historicamente se descortinam como a decadência e a renascença de Portugal. Para a geração de 70 e, mais tarde, para os autores como

Teixeira de Pascoaes, a decadência é um período não português, e os portugueses que se encontravam na decadência perderam a sua portugalidade. Por negar a portugalidade à decadência, esses autores pretendem esclarecer o que é genuinamente

Portugal e português, e tentam, pelo menos nas obras deles, restaurar tal portugalidade.

Os verdadeiros portugueses são aqueles heróis e semi-deuses que dominam um império marítimo e espalham a glória lusa por todo o globo - uma tipologia da existência construída com base nas figuras, idéias e façanhas históricas e míticas

(Afonso Henriques, Infante D. Henrique, pátria, raça, etc) – “que poderão, de algum modo, polarizar as aspirações, sentimentos e objectivos colectivos de uma comunidade nacional” por meio de um dinamismo identificador com semi-deuses ou heróis em que “o sujeito tenderá a tornar-se semelhante ao modelo imaginário, distanciando-se da realidade.” 3

Sendo seguramente estabelecida e arraigada, a hiper-identidade nacional portuguesa inerentemente prescreve que o ser português permaneça o mesmo como os antigos, apesar de que a conjuntura e época em que se formou tal hiper-identidade já ter caducado para sempre, o que resulta num lapso identitário entre o presente e o

171 passado. A tentativa salazarista de restaurar o passado e de se identificar com os antepassados, isto é, modelar os portugueses de então pelo molde identitário forjado em conformidade com a imagem dos Descobrimentos vai inevitavelmente resultar numa disjunção entre a identidade e a realidade, o que se equivale a transplantar uma memória num corpo alheio. Mesmo Joaquim de Carvalho, um autor pró-Estado Novo, que defende que o ideal português seja “a projecção (...) da gesta que nos deu fisionomia inconfundível na História do Mundo”, opina que “as nações, com a responsabilidade histórica da gente portuguesa, não podem imobilizar-se extaticamente (...) têm que desentranhar sucessivamente da massa das suas tradições e aspirações um ideal coerente com a conjuntura histórica, que exprima e defina o seu estar mutável em concordância com o seu ser permanente. Estacionar, é cometer o pecado da incompreensão e a cobardia de enfrentar as realidades que o acontecer faz emergir da temporalidade histórica..” 4 A hiper-identidade caracterizada por uma mundividência passadista e mindset obstinada, é realmente uma identidade anacrônica que se demonstra indiferente à realidade e resistente à atualização. Se bem que fosse durante o Estado Novo essa hiper-identidade portuguesa era promovida intencionalmente por Salazar, podia-se observar a sua influência na diferença entre o modernismo português e o movimento modernista brasileiro. Segundo Massaud

Moisés, o termo moderno tem múltiplos significados e interpretações :

“Moderno” é um vocábulo ambíguo, para não dizer polissêmico. Designa o contemporâneo de quem fala ou escrever: o moderno para Zola era o cientificismo, as teorias de Claude Bernard, enquanto para os românticos consistia no gosto da melancolia e das ruínas. Mas também nomeia o novo que se anuncia por entre as brumas do aqui e

172

agora, ou a proposta revolucionária capaz de romper a cadeia do convencionalismo; nesta acepção, o moderno é o signo das vanguardas, da inconformidade e do futuro que se esboça no ramerrão do presente: o moderno era Claude Monet, com o seu ousado projeto “realista”, enquanto Délacroix representava o passado digno de repúdio, mas em pouco tempo Van Gogh é que passaria a ser modernista. E assim por diante. 5

Contudo, o que sublinha a diferença entre o modernismo português e o movimento modernista brasileiro não é só a escala e nível de influência nos respectivos países como também a preocupação com e a determinação de mudar a realidade nacional. O objetivo do modernismo português, como o do movimento modernista brasileiro, também visa revolucionar e atualizar a cultura nacional com caraterísticas de inconformismo e o desejo de romper com o passado. Contudo, tanto no seu alcance como na sua profundidade, o modernismo português não atingiu o nível da sua contrapartida brasileira. Ademais, o atraso e subdesenvolvimento do país não se tornaram a preocupação principal dos modernistas portugueses. A focagem central dos modernistas, especialmente no seu ínicio, também não residia na realidade nacional. Em comparação com os modernistas brasileiros, são de muito menor grau a insatisfação com a realidade do país assim como a determinação de mudar o status quo dos modernistas portugueses. Nas palavras de António José Saraiva e Óscar

Lopes, eram demasiado variados os modernistas portugueses sem um programa praticável: “o grupo modernista acolhe Ângelo de Lima cuja poesia é uma mensagem do seio da loucura; António Botto, alia uma boa versificação livre, em ritmo cantante quase tradicional, a um grande candura e irregularidade de estilo, e que deixou também um volume extraordinariamente fluente de Contos ; e Raul Leal, poeta em

173 francês de uma mística paracletiana. Mário Saa, paradoxalmente modernista e arcaizante, distinguir-se-á pelo anti-semitismo e por teses eruditas sensacionais.

António Ferro, ligado ainda novo ao grupo de Orpheu , levaria para o jornalismo e para a orientação do Secretariado de Propaganda Nacional (1933) um certo modernismo formal.” 6 Além de António Ferro, Almada Negreiros 7 também se filiou

às idéias estadonovistas. Quanto a Fernando Pessoa, a maior figura do modernismo português, acabou por aderir ao futurismo que via o passado do país como uma utopia e fitava os olhos no futuro de Portugal, enquanto os modernistas brasileiros principalmente se preocupavam com o presente do Brasil. “Não somos, nem nunca fomos ‘futuristas’. Eu, pessoalmente, abomino o dogmatismo e a liturgia da escola de

Marinetti. Seu chefe é, para nós, um precursor iluminado, que veneramos como um general da grande batalha da reforma, que alarga seu front em todo o mundo. No

Brasil não há, porém, razão lógica e social para o futurismo ortodoxo, porque o prestígio de seu passado não é de molde a tolher a liberdade de sua maneira de ser futura. Ademais, ao nosso individualismo estético, repugna a jaula de uma escola.

Procuramos, cada um, atuar de acordo com nosso temperamento, dentro da mais arrojada sinceridade.” 8 E, uns anos depois, “Graça Aranha acentuando que Marinetti fora o libertador do ‘terror estético’, assinalaria a propósito da atitude do grupo inovador paulista: ‘Quando aqui chegou (o futurismo), já tarde, o seu nome desacreditado foi repelido e mudado em outro menos expressivo, mais acomodatício e tão efêmero, em modernismo.’” 9

A revista Orpheu , a marca do modernismo português, só tem uma vida muito

174 curta, saindo fora de cena depois da publicação de apenas dois números. Quanto ao movimento modernista brasileiro, é de lembrar que, segundo Antônio Cândido, as três obras mais importantes da sua geração sobre o Brasil foram escritas e publicadas nas décadas de 30 e 40: Casa-Grande e Senzala 10 de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil de

Sérgio Buarque de Hollanda e Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado

Júnior, para não mencionar obras de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, entre muitos outros. Todas essas obras visam oferecer uma imagem a mais real possível do

Brasil enquanto indagam sobre os fundamentos e causas históricas assim como o processo da evolução do Brasil. É muito óbvia a preocupação intelectual com a brasilidade tanto do passado como da atualidade. Nas obras modernistas brasileiras pode-se observar claramente uma noção de que cabe aos intelectuais a missão de conhecer, analisar, demonstrar e mudar a realidade nacional. Para Wilson Martins, “os modernistas, quer o quisessem ou não, foram os herdeiros dessas aspirações nacionalistas”, aspirações marcadas pela consciência de que éramos um país atrasado.

Nas palavras de Paulo Prado, dávamos “ao mundo o espetáculo de um povo habitando um território, que a lenda – mais que a verdade – considera imenso torrão de inigualáveis riquezas, e não sabendo explorar e aproveitar o seu quinhão. Dos agrupamentos humanos de mediana importância, o nosso país é talvez o mais atrasado.

O Brasil, de fato, não progride; vive e cresce, como cresce e vive uma criança doente no lento desenvolvimento de um corpo mal organizado.”11 O movimento modernista não é um movimento passivo, e não é uma resposta ou reação contra qualquer política governamental, mas uma chamada energética, um calling a que corresponde o Estado

175

Novo getulista posteriormente. “O que importa para o artista moderno é traduzir nossa

época e a sua personalidade (...) A arte moderna é uma manifestação natural e necessária. Os artistas modernos são homens convencidos de que é preciso criar novas formas, porque as que existem já não traduzem mais a vida contemporânea (...) A grande diferença entre os passadistas e os modernos é que os passadistas acreditam, e os modernos não acreditam, na gramática, no vernáculo, nos princípios, em tudo o que está estabelecido, no magister dixit .” 12 Enquanto os participantes do movimento modernista brasileiro desviam o seu olhar da Europa, focalizando o seu próprio país com objetivo de o traduzir e melhorar, os modernistas portugueses, em contraste, são mais cosmopolitas, estendendo sua atenção às teorias literárias e a novas formas da expressão originadas tanto na Europa como no mundo. Há estudiosos que identificam três fases no modernismo português: a 1ª fase é o orfeísmo , em que os escritores se vêem responsáveis pela revista Orpheu , e por trazer Portugal de volta às discussões culturais na Europa; a 2ª fase é o presencismo , que fundou a revista Presença e que buscava, sem romper com as idéias da geração anterior, aprofundar em Portugal a discussão sobre novas formas de expressão que continuavam surgindo pelo mundo. O foco do modernismo português, pelo menos nas primeiras duas fases, se concentrava geograficamente na Europa e no mundo e, esteticamente, nos métodos e teorias vanguardistas. Só na 3ª fase, designada como neo-realismo , os intelectuais começaram a concentrar-se somente em Portugal e nos assuntos portugueses, combatendo o fascismo/salazarismo e defendendo “uma literatura como crítica/denúncia social, combativa, reformadora, a serviço da sociedade para alertar as pessoas e tirá-las da

176 passividade.” Deste modo, só nessa terceira fase a hiper-identidade foi interrogada e desafiada pelos escritores neo-realistas através da descrição e documentação das durezas da vida, do infortúnio dos agrários, e da miséria das pessoas ordinárias e humildes, pondo em causa assim a hiper-identidade utópica salazarista.

O movimento modernista brasileiro, porém, surgiu com um programa de construção da identidade nacional fiel à realidade sui generis do Brasil. A sub-identidade nacional brasileira, na visão dos modernistas brasileiros, apresenta-se como uma crise identitária durante o movimento modernista que emergia com diferentes soluções para superar essa crise. “Do grupo verdeamarelo nasce a

‘Bandeira’, que não quer nem a Roma do fascismo, nem a Moscou do comunismo, defende o centro, mas que, por sua tendência autoritária, desemboca no Estado Novo.

Da ‘Anta’ sai o Integralismo, de Plínio Salgado. Da ‘Antropofagia’, cindida, uma equipe se encaminha para a extrema esquerda, e a outra, dispersa-se pelo Partido

Democrático, vai para a revolução constitucionalista e para a neutralidade.” 13 Assim,

“o indigenismo, a antropofagia, o verdeamarelismo e outras correntes do pós-22 constituem retrocesso, ao menos como visão da História e da realidade, uma vez que a utopia – fundamento universal das vanguardas – estava situada no passado e não no futuro.” 14 Contudo, esse destaque da história não é nada igual ao historicismo português que pretende restaurar o passado. Para os modernistas brasileiros, a história serve como um espelho e uma referência imprescindível para entender e diagnosticar o presente. O passado não é um ideal nem é um objetivo para os modernistas: “A memória da nação construída no Estado Novo pela instituição entregue aos

177 modernistas pelo ministro Gustavo Capanema, teve o mérito de afastar-se do culto ao passado (José Mariano Filho) e do ufanismo patriótico (Gustavo Barroso).” 15 Se os modernistas brasileiros têm algum ideal, ele tem que ser o que é autenticamente brasileiro, o que muitas vezes remonta a um passado mais remoto que a colonização portuguesa. Como Mário de Andrade declarou: “Antes dos portugueses descobrirem o

Brasil, o Brasil já havia descoberto a felicidade”:

Com isso, negavam, paradoxalmente, o vínculo com o Futurismo e tendências afins: o caráter ambivalente, para não dizer esquizotímico, do nosso Modernismo se enraíza nessa dualidade reativa perante as novidades introduzidas ou propostas pelas frentes renovadoras do início do século. Reagiam, portanto, contra o ornamentalismo, o vernaculismo, o europeísmo parnasiano, ao mesmo tempo que rendiam reverência a um passado ainda mais remoto, e além disso reaquecendo um estereótipo romântico, posto que sob o pretexto de brasilidade e nacionalismo. E assimilaram soluções futuristas, cubistas e outras, sem considerar que, assim procedendo, estavam-se submetendo, tanto quanto os autores que abominavam, aos valores europeus, não obstante avançados ou vanguardistas. 16

A sub-identidade brasileira e o desconforto com ela da parte dos intelectuais brasileiros os incentivavam a indagar, buscar e interpretar a brasilidade constantemente, o que resulta numa identidade nacional atualizada e ajustada à realidade nacional. Ironicamente, a confiança, ou sobre-confiança portuguesa na sua portugalidade histórica exonerava na intelligentsia portuguesa a tarefa de escrutinar essa hiper-identidade que se tornou algo taken for granted .

Os impactos da distinção entre hiper-identidade e sub-identidade podiam-se sentir nos dois Estados Novos. As políticas salazarista e getulista em relação à identidade nacional, quer por acaso quer por intenção, correspondem à hiper-identidade e

178 sub-identidade respectivamente. Uma diferença estratégica na construção da identidade nacional entre o regime Getúlio e o de Salazar é que o primeiro tenta projetar o país no futuro e o último adota uma orientação virada ao passado, como as duas faces de Jano. Essa divergência de norteamento se funda, a meu ver, por um lado nas aspirações diferentes do Brasil e Portugal: o Brasil ambiciona realizar seu potencial no mundo como um país autônomo e potente tanto econômica como culturalmente, enquanto Portugal luta pelo seu sonho de império e por voltar a ser uma potência mundial no domínio espiritual. Portanto, apesar de compartilhar com

Salazar tácticas comuns como a valorização da família e da religião, o que mais preocupa Getúlio Vargas é o desenvolvimento econômico, a industrialização e a modernização do país; quanto ao Portugal de Salazar, são prioridades restaurar a glória dos Descobrimentos e fazer o país viver novamente o passado, o que requer a manutenção do país no status quo , em vez de avanço rumo à modernidade.

Essa disparidade também se espelha em diferentes maneiras de ser entre Vargas e Salazar. Getúlio com seu sorriso permanente, é visto e respeitado por muitos brasileiros como uma figura paterna benigna que “sempre lembrou da gente” 17 A certo ponto, ele até se transforma no padrinho nacional que, ao ver da maioria da arraia-miúda, é acessível e lhe oferece a esperança no futuro. O ditador brasileiro é também chamado e lembrado pelo seu primeiro nome, Getúlio, o que é um sinal de afeição (por oposição, os generais durante a ditadura militar foram sempre referidos pelo nome de família). Ser um homem cordial e populista per se é um sinal da aproximação da realidade nacional e abandono de qualquer idealismo utópico.

179

Ademais, o populismo varguista, provavelmente inspirado por Perón, combina perfeitamente com a urbanização e a emergência da classe de trabalhadores urbanos no Brasil. Essa personalidade de Vargas infunde o personalismo ou “humanismo” no aparelho estatal que faltam à Velha República. Falando do mal da Primeira República que não se conforma com a realidade brasileira, Azevedo Amaral, em O Estado

Autoritário e Realidade Nacional , observa que “[n]ão é contudo possível opor-se indefinidamente às realidades que, por mais recalcadas que sejam, reagem afinal acabando por impor-se vitoriosamente. O Estado desarticulado dos elementos humanos, que, em última análise, são a força motriz das suas engrenagens, não pode ser um aparelho meramente mecânico funcionando automaticamente como o imaginam os utopistas de um impersonalismo irrealizável”. 18 Oliveira Vianna também atribui a causa de problemas brasileiros à inadequação de instituições brasileiras à realidade. Compreender as causas do idealismo utópico no Brasil, conhecer a realidade brasileira por meio do estudo de seu passado e propor reformas que possibilitem adequar instituições à realidade nacional. Em relação à última, deve-se salientar que ela está diretamente ligada à já citada missão política dos intelectuais, que deverá ser analisada em suas relações com as idéias e práticas políticas autoritárias do Estado Novo. A preocupação de Oliveira Vianna em compreender as causas do idealismo utópico pode ser observada desde as obras O

Idealismo na Evolução Política do Império e da República (1922) e O Idealismo da

Constituição (1924). Esta, não por coincidência, teve uma segunda edição em 1939, aumentada, na qual o autor refere-se ao Estado Novo como um exemplo de realismo

180 político, legitimando-o em suas práticas políticas. Segundo ele, de um modo geral, o idealismo utópico teria por causas as condições espirituais da primeira geração posterior à Independência, educada fora do Brasil e, portanto, alheia à realidade brasileira, o que alude provavelmente aos autores da geração romântica e à segunda geração, que, ainda que formada nas academias de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e

Bahia, teve por mestres justamente os idealistas da primeira. Oliveira Vianna e outros intelectuais conservadores como Almir de Andrade e Francisco Campos buscaram demonstrar a realidade nacional dedicando-se ao estudo do passado nacional desde o período colonial, a fim de fazer um diagnóstico do presente e, com base nele, propor um modelo de organização política compatível com o que consideravam o Brasil real.

Na obra Populações Meridionais do Brasil , o autor destacou a importância da história na formação de um povo e, portanto, a necessidade de se estudar o passado para identificar o germe de idéias atuais utilizando-se de métodos e instrumentos capazes de fazer a mais rigorosa e exata reconstituição possível desse passado. A princípio, retrocedendo seu estudo ao que ele chamava “século I da história nacional”, Oliveira

Vianna identifica três diferentes histórias do Brasil, em virtude das determinações do meio físico e das pressões históricas e sociais sobre os elementos étnicos, que resultaram na formação de sociedades e tipos sociais específicos: no Norte, sociedade dos sertões, foi identificado o sertanejo; no Centro, sociedade das matas, o matuto; no

Sul, sociedade dos pampas, o gaúcho. Com base nesse conhecimento do passado, em sua já citada obra O Idealismo da Constituição , Oliveira Vianna refere que os

“sonhadores liberais e suas formosas construções políticas” falharam justamente por

181 desconhecer que os clãs patriarcais são a base de toda a nossa estrutura social e política e que estão em nosso povo em um estágio muito elementar de integração social. Nesse sentido, segundo ele, constituem exceção os indivíduos que não estão preocupados apenas com os interesses particulares de seu clã ou partido político, que, por sua vez, nada mais é do que uma organização de interesse privado dos clãs. Desse modo, Oliveira Vianna afirma que a “politicalha” é a forma como o espírito de clã manifesta-se na vida política e administrativa: “Em cada brasileiro, mesmo o de idealismo mais elevado, há sempre um politiqueiro em latência, justamente porque há nele sempre um homem de clã” 19 . E, a famosa obra de Sérgio Buarque de Hollanda nos ensina que o núcleo desse clã, ou o próprio homem de clã, é o homem cordial que mantém uma vasta rede de relações pessoais.

Em contraste com Vargas, Salazar, porém, parece tender para ficar o mais distante possível do povo. No dia 22 de Julho de 1946, a revista Times publicou uma reportagem sobre o Dr. Oliveira Salazar intitulada The Quiet Life , e o autor comenta a personalidade de Salazar do seguinte modo: “It is doubtful if Salazar likes either the salute or the slogan. Unlike all other modern dictators, he hates parades, pomp or cheers. When he rides to ceremonies with President Carmona, the old soldier preens and beams; Salazar slinks back in the car, a scowl on his handsome face with the

Savonarola-hard mouth. Asked why he refused to respond to cheers, Salazar gave a characteristic answer: “I could not flatter the people without being a traitor to my own conscience. Our regime is popular but it is not a government of the masses, being neither influenced nor directed by them. These good people who, moved by the

182 excitement of the occasion, cheer me on day, may rise in rebellion the next day for equally passing reasons” 20 (Não podia adular o povo sem ser um traidor da minha própria consciência. O nosso regime é popular mas não é um Governo das massas, não sendo nem influenciado nem dirigido por elas. Esta boa gente que, levada pela excitação do momento me aplaude um dia, pode levantar-se em revolta no dia seguinte por idênticas razões transitórias”). A observação do Times foi corroborada por Taylor Pearson & Carson Broadcasting no seu programa de descrição de figuras notáveis no mundo em outubro de 1943:

His scholarly face ‘not made for laughter’ is lined with fatigue. Salazar eats a little; sleeps badly. In eight years he has gone twice to the theatre and twice to a movie theatre and in each case the visit was official. On his rare public appearances he wears a plain black suit and hat, without any medals or decorations. He insists that he be called simply ‘The Minister’. SALAZAR SHUNS PUBLICITY and seldom lets himself be photographed. Even his style of speech is ‘terse and bare’. Salazar reads every newspaper he can and says “All that reading may be a vice for what I learn from it does NOT make up for the time taken by it, but it confirms in me my ideas and brings me back to a prudent silence; if I had to speak every day, I should soon have nothing left to say, and would necessarily come to utter some stupidities”

De ponto de vista desse programa, Salazar é intelectual demais para ser popular, e, aliás, ele não se preocupa com popularidade “(...) all he cares for is HIS WORK. He says and means it: ‘I COLDLY DO MY DUTY’”. 21

Sua personalidade sombria muitas vezes causa medo, até entre os oficiais salazaristas. Em Janeiro de 1957, o Departamento de Estado americano revelou ao mundo o que afirma ser o texto integral do relatório de Marcelo Caetano às comissões distritais e concelhias da União Nacional, reunidas em sessão secreta durante a qual o

183 futuro sucessor veementemente reclamou que “Perguntar-nos-ão: e por que haveis suportado tudo isso? (...) tinhamos-lhe medo, tremíamos ao ouvir-lhe a vozinha meiga e pérfida, o olhar frio por debaixo das óculos escuros (...) Estávamos à sua mercê. Ele

é que dispunha das nossas vidas.”22 E a preferência de Salazar pela reclusão reflete coincidente, mas exatamente o isolamento de Portugal durante o Estado Novo e o peso histórico que o país tem que sustentar.

No pensamento de Salazar, o país funciona como uma máquina cujos órgãos governamentais e sujeitos nacionais são constituintes, componentes e acessórios substituíveis que desempenham funções pré-determinadas. “O Estado constituía o

órgão chave de um todo hierarquicamente diferenciado e predisposto para a realização de funções complementares. Cada parte, se bem que realizasse uma função específica, fazia-o em absoluta coordenação e dependência das finalidades gerais, geridas pelo

Estado. Por outras palavras, a dignidade de uma função estava intimamente ligada à sua utilidade enquanto serviço prestado à Nação.” É por esta razão que parece que os portugueses durante a época Salazar não eram nacionais no seu pleno senso, mas sim atores que desempenham papéis dos portugueses nacionais que são componentes duma nação portuguesa preconcebida. Os portugueses no regime salazarista são tratados como profissionais que se imbuem duma identidade/papel pré-concebido e a priori :

E era assim que os queriam ver os responsáveis pela propaganda, ao fomentarem manifestações de “arte popular” fora do tempo correcto para a sua realização e ao assistirem, de fora, como espectadores que se demarcam da acção que presenciam, aos actos que encomendavam. Foi exactamente como actores, pior ainda, como “bonecos”

184

articulados e falantes que os membros do júri do S.P.N. desejaram encontrar os habitantes das aldeias presentes ao Concurso da Aldeia mais Portuguesa, e é como “bonecos” que a publicação de responsabilidade do S.N. I., editada em 1947 e intitulada Monsanto, os vai classificar; «a arte popular é a única distracção e a festa continua do povo das aldeias, a sua única evasão, (...) o necessário, o verdadeiramente belo, seria transformar Portugal rústico numa constante exposição viva da arte popular. Os bonecos já não nos satisfaziam. Queríamos vê-los mexer, cantar, dançar.» E foi, efectivamente, o que viram: se o regulamento do Concurso dava como principal objectivo para a iniciativa o «desenvolver nos portugueses o culto pela tradição, estimulando o regionalismo nacional.» e «interessar, nessa obra de renascimento folclórico e etnográfico nacional, o povo das aldeias, os artistas anónimos que, aperfeiçoando o barro, entoando cantigas, ou simplemente, repudiando influências alheias e nocivas, logram manter intactos, na sua pureza e graça, os costumes tradicionais da sua terra.», também obrigava que as aldeias presentes a concurso fossem aquelas que apresentassem «a maior resistência oferecida a decomposições e influências estranhas e o estado de conservação no mais elevado grau de pureza das características seguintes: 1º Habitação; 2º Mobiliário; 3º Trajo; 4º Artes e indústrias populares; 5º Formas de comércio; 6º Meios de Transporte; 7º Poesias, contos, superstições, jogos, canto, música, coreografia, teatro, festas e outras usanças; 8º Fisionomia topográfica e panorâmica.» 23

O que é, então, a identidade a priori ? Em geral o termo a priori é para exprimir um conhecimento ou justificação independente de experiências, evidências empíricas ou a realidade em geral. Uma justificação a priori é independente de experiências; mas a questão de apriorismo só interessa a questão “com base no que uma proposição

é justificada”. Galen Strawson advoga que um argumento a priori é aquele que “you can see that it is true just lying on your couch. You don't have to get up off your couch and go outside and examine the way things are in the physical world. You don't have to do any science.” 24 Kant afirma, de modo igual, que “although all our knowledge begins with experience, it does not follow that it arises from experience.”25 Tal

185 conhecimento, de acordo com o filósofo, é transcendental e baseado na forma de todas as experiências possíveis: ele deriva de uma magna macro-experiência: a mãe de todas as experiências, enquanto aposteriorismo se assenta no conteúdo de experiências cujo caráter é empírico. Kant afirma que “it is quite possible that our empirical knowledge is a compound of that which we receive through impressions, and that which the faculty of cognition supplies from itself (sensuous impressions giving merely the occasion)”,26 o que será muito limitado e provavelmente aleijado.

Kant pensa que o conhecimento a priori , na sua forma pura, é livre da participação de qualquer conteúdo empírico, e, portanto, é limitado à dedução das condições de experiências possíveis. Tais experências possíveis no Portugal de Salazar se referem exatamente às experiências dos descobridores-antepassados que transcendem o tempo e espaço, e continuam a vigorar na sociedade portuguesa como o núcleo da nação e patrimônio vivo dos portugueses. Tal situação nos traz para o que ficou escrito no primeiro capítulo da presente dissertação. A veneração dos descendentes relativa aos antepassados, a disjunção entre a memória e o corpo, o que inevitavelmente envolve a omissão ou ignorância da realidade atual.

Neste raciocínio, os portugueses comuns não têm nem precisam ter tais experiências do passado que ditam a formação da portugalidade no pensamento de

Salazar. “These a priori, or transcendental conditions, are seated in one's cognitive faculties, and are not provided by experience in general or any experience in particular.” Também não é coincidência que a ideologia estadonovista adota esta postura a priori em relação à identidade nacional portuguesa que se baseia em

186 experiências não incertas, mas determinadas dum ponto de vista histórico e, igualmente, isentas de qualquer conteúdo empírico para os herdeiros destas experiências remotas. Kant proclama que “the human subject would not have the kind of experience that it has were these a priori forms not in some way constitutive of him as a human subject. For instance, he would not experience the world as an orderly, rule-governed place unless time and cause were operative in his cognitive faculties.” 27

Normalmente, a dedução transcendental não se esforça por evitar a realidade ou objetividade de tempo e causa, e, ao mesmo tempo, tenta explicar o que constitui a subjetividade e relação desta com a objetividade e realidade. No caso do Estado Novo salazarista, embora Salazar declarasse que não vivia desprendido da vida real pelo apriorismo, o seu regime não agia de acordo com as realidades nacionais; aliás, mantendo “poderosas amarras a alguns princípios fundamentais que a razão esclarecida e a experiência dos séculos consagraram no exercício do Poder; servidos por aquelas luzes superiores que iluminam os fundamentos da vida social e os seus fins; vinculados à tradição e à história da Pátria portuguesa, com seu património, seus interesses materiais e morais, sua índole e vocação no mundo” 28 , o que sujeita a construção da portugalidade totalmente à subjetividade do próprio ditador.

A natureza do apriorismo implica uma forte tendência ao modelo ou molde e a existência de um protótipo estereotipado que ao longo do tempo e na visão oficial se torna um arquétipo. Um princípio fundamental do pensamento salazarista era a subordinação da razão e liberdade a um ideal construído “naturalmente” pela tradição a partir do modo de ser nacional. Salazar afirma que: “[h]á que copiar pacientemente

187 um modelo, não perder de vista os pontos de referência, realizar um pensamento de vida. A função do modelo ideal, aspiração ou guia – é vincar a orientação superior das faculdades humanas, não deixando que se extraviem com as mil contingências da vida, com mil contradições das doutrinas, com as mil adversidades do tempo.”29 Maria

Alves observa que “as marcas do passado eram de tal modo nítidas e determinantes das acções e aspirações do presente que nenhum homem se podia conceber individualmente presente em sociedade. (...) Apenas quando inscrito nos agrupamentos naturais o indivíduo ganhava relevância pois passava a representar moralmente uma responsabilidade e a encontrar-se integrado na utilidade social de uma função; enquanto sujeito autônomo, era incapaz de protagonismo social. Neste sentido, o ‘cidadão’ era uma entidade abstracta de onde não podia emanar qualquer soberania.” 30 E durante o Estado Novo salazarista se existisse alguma valorização do indivíduo, tal valorização teria como objectivo melhor servir a coletividade e o Estado:

“Essa valorização do indivíduo que proclamo e julgo necessária, nada tem a ver com os chamados Direitos do Homem e refere-se apenas à sua valorização como elemento social” 31 , esclarece Salazar. A consciência individual era historicamente definida: o que somos, o que poderemos vir a ser, não se revelava no indivíduo, em particular, mas no todo da Nação, no seu espírito materializado no Estado. O julgamento do caráter nacional português serve como justificativa do autoritarismo português. Na interpretação do corporativismo salazarista por Maria Alves: “pretende-se construir o

Estado social e corporativo em estreita correspondência com a constituição natural da sociedade. As famílias, as freguesias, os municípios, as corporações onde se

188 encontram todos os cidadãos, com suas liberdades jurídicas fundamentais, são os organismos componentes da Nação, e devem ter, como tais, intervenção directa na constituição dos corpos supremos do Estado: eis uma expressão, mais fiel que qualquer outra, do sistema representativo. As estruturas do Estado propunham-se aprisionar nas suas malhas os ‘corpos vivos’ da nação e, dar-lhes voz. Cabia ao Estado,

(...) ser o único intérprete autorizado da vontade nacional.” A este entendimento do papel do Estado não foi alheia a imagem que Salazar e outros teóricos do regime possuíam do modo de ser nacional: o português era sentimental, nostálgico, pouco dado às iniciativas e quando as tomava, incapaz de lhes dar continuidade.” 32 Segundo

Fernando Pessoa, os portugueses nunca conseguem agir sozinhos, sempre pensando juntos e seguindo um precursor . Os ideólogos do regime, portanto, preconizam que a massa portuguesa é presa fácil dos demagogos maliciosos, porque lhe falta a faculdade do discernimento claro da realidade e, da capacidade de reunir esforços e preseverança para levar a bom termo. Perante tal menoridade, apenas a clarividência do Estado podia obstar à dissolução que o jogo de forças resultante de tais comportamentos naturalmente conduzia. Tal fato constata, outra vez, que o Estado é um meio ou até um pretexto de organizar a nação em nome do passado que determina a identidade nacional. Essa percepção oficial do caráter nacional português estimula o

Estado Novo a acreditar que é necessário regenerar o português. Contudo, os que mais precisam uma operação identitária são os residentes nas cidades corrompidas por

“forças modernas”. Quanto aos agrários e aldeãos, a melhor maneira é fixá-los onde eles permancem e manter a sua maneira de ser para sempre.

189

O apriorismo requer que Portugal se feche em si mesmo no seu sonho imperial, no seu palácio auto-construído e no seu mito auto-mistificado. Assim, Portugal no período do Estado Novo transforma-se em the best kept secret in Europe . Tanto a preferência pela ruralidade como o ódio à cidade e à urbanidade revelam o gosto do regime e o seu esforço de não acordar Portugal e os portugueses num devaneio identitário. Os marinheiros, heróis e semideuses dos Descobrimentos que conhecem mais num dia só do que os romanos em cem anos são transformados nos agrários anafalbetos, trabalhadores humildes, campestres com mentalidade limitada e local.

Ironicamente perderam a identidade dos seus antepassados que o Estado Novo quer seguir e copiar. As funções dos portugueses, de acordo com a ideologia salazarista, são predeterminadas e até fadadas já na trajetória histórica de Portugal que se projetará ao futuro como o Quinto Império. O roteiro do passado que Portugal e os heróis-antepassados cobriram é o processo de forjar um modelo e um molde para formular os portugueses do século XX. E esses descendentes não precisam nem podem possuir uma própria identidade: eles em conjunto têm uma identidade só: a identidade nacional portuguesa que é ironicamente derivada do passado desligado da presente realidade em que se encontram inseridos. Mesmo o Estado ou aparelho estatal é um meio para realizar a utopia salazarista. É por isso que a propósito do

Estado italiano, Salazar afirma: “A ditadura fascista tende para um cesarismo pagão, para um estado novo que não conhece limitações de ordem jurídica ou moral, que marcha para o seu fim, sem encontrar embaraços nem obstáculos.”33 À divinização do Estado, Salazar antepôs a idéia de um Estado subordinado à moral, respeitador

190 dos valores do passado e dos corpos vivos da nação , o que revela que até o Estado é um instrumento na realização da identidade nacional formada na história. Maria Alves argumenta que o “Estado não era um fim em si mesmo mas um meio, um instrumento decisivo para fomentar a unidade, promovendo, coordenando, harmonizando e fiscalizando todas as actividades nacionais.” 34 Marilena Chauí observa ainda que:

[É] essa indeterminação fundamental do Nacional que é recusada pela ideologia nacionalista. Assim como a teologia e a metafísica sempre se empenharam em oferecer provas da existência de Deus e do Mundo, sejam provas a priori (da essência de Deus ou do Mundo se deduz a necessidade de suas existências) sejam provas a posteriori (da finitude do Mundo e das criaturas se deduz a existência do Infinito criador; da existência do Infinito criador, se deduz a existência do Mundo finito), assim também, substituto moderno da teologia e da metafísica, o nacionalismo não faz senão produzir provas a priori e a posteriori da existência da Nação como um ser determinado, uma essência, uma substância e uma idéia. Procura-se eliminar o que mais interessa no Nacional, isto é, a indeterminação, sua existência contraditória como prática contraditória em busca da unidade que anule as divisões sociais e que não pode cumprir-se. Dessa maneira, o nacionalismo converte uma prática histórica numa substância imortal. Num ídolo, muitas vezes com apetite sangrento. Compreende-se, então, por que os vários nacionalismos se preocupam tão intensamente em produzir a identidade nacional, que, na prova a priori, é deduzida das etnias, dos costumes, da língua, da família, dos sentimentos comunitários ‘naturais’, e, na prova a posteriori, é deduzida do Estado . (grifo meu) 35

A família, a religião, e a tradição que são persistentemente destacadas em discursos e retóricas estadonovistas são provas a priori e naturais da identidade nacional portuguesa. E, o próprio corporativismo, que é um sistema ou uma

“concepção completa da organização social que entende a vida da nação como um todo funcionalmente interdependente de complementar, hierarquicamente disposto, de acordo com uma suposta tendência natural” 36 , é o corolário na forma organizada dos

191 elementos naturais e a priori , o qual corresponde às tendências naturais dos agrupamentos. A existência dessas instituições naturais, para Salazar, é a evidência inabalável da identidade nacional portuguesa, e o Estado tem que ser organizado segundo a ordem e índole naturais de Portugal e dos portugueses.

Assim, a característica organicista do Estado Novo visa demonstrar essa naturalidade na tradição apoiada por uma série de valores, experiências e atitudes naturais e na identidade nacional que cunha os agrupamentos humanos instintivamente formados. Através deste critério de “seleção natural” ditado pelo

Estado Novo, memórias coletivas indesejadas e experiências desintegradoras ou não-conformistas eram eliminadas no confronto do passado com o presente, sendo o que sobrevive sob o controle da autoridade era visto como o modo espontâneo, natural e autêntico do ser português. O Estado, uma “vontade esclarecida”, um “pensamento constante”, um “órgão de estudo e execução”, não é concebido como um fim no salazarismo: a sua função é facilitar a conservação e restauração do que já existiu há centenas de anos, do que deriva sua legitimidade. O Estado é somente um executivo para impor nos portugueses uma identidade nacional ditada por instituições e valores a priori e para realizar esta meta, o Estado não deixa de recorrer a qualquer meio.

Salazar, como representante da vontade nacional e salvador da nação portuguesa mandado pela divindade, também não precisa de qualquer legitimação do povo ou da presente realidade. Deste modo, o ditador português, exigia de si mesmo o isolamento nessa posição: encontrar a isenção e força necessárias à aplicação das suas idéias sobre o corpo social, que, ao mesmo tempo, o afasta da realidade terra-à-terra (e ele

192 tem que se distanciar das vulgaridades mundanas para que assuma sua posição mítica, divina e etérea.). Nas palavras de Maria Alves, “a realidade era reduzida a “coisa”, tornava-se algo moldável aos interesses do reformador. O homem passava a ser o que

à idéia de história nacional convinha que fosse, o indivíduo e as manifestações da sua vontade, não eram afirmações de carácter individual e autónomo” 37 . É crucial notar que o Estado, no pensamento de Salazar, não é o construtor da identidade nacional ou do ser português. O fazedor do português é a história, a providência, e as instituições naturais. O Estado só executa as ordens naturais e organiza a nação portuguesa de acordo do como deve ser. O Estado é essencialmente um agente que se esforça por impor a portugalidade existente desde há séculos.

Quanto ao Brasil getulista ao qual faltam as vantagens e legitimidade históricas, cabe ao Estado, que continua o trabalho dos intelectuais de gerações anteriores, forjar uma identidade nacional. O Estado constrói, de baixo para cima, uma identidade nacional. Na opinião de Marilena Chauí, o Estado é a evidência a posterior que testemunha a existência da brasilidade, ou seja, a brasilidade manifesta-se por meio do

Estado. Diferente da situação portuguesa em que as instituições naturais se consideram como geradores naturais da identidade nacional e o Estado só a propaga, o

Estado, no Brasil getulista, constitui a prova da brasilidade. A legitimidade deste não provém da providência nem de qualquer instituição pré-existente e natural, mas da sua capacidade de responder a, e satisafazer as aspirações tanto da inteligência como do povo, o qual requer o Estado para entender fundamentalmente a realidade nacional e o pulso da época em que se encontra. O próprio Vargas declara: “o regime de 10 de

193

Novembro, que corresponde plenamente às aspirações gerais do país e é, repito, profundamente brasileiro, porque vem reavivar fatos históricos da nacionalidade, foge

às mistificações do regime anterior, sendo, contudo, mais democrático na sua essência, integrado, como está, no sentido concreto das nossas realidades.” 38 O Estado Novo getulista, apesar da valorização da família, religião e tradição, não se esforça por impor uma identidade nacional oficialmente forjada. Ademais, um relance sobre os discursos getulistas revela que o ditador não tem uma imagem estereotípica do brasileiro nem uma convicção no destino fadado da nação brasileira. O que ele defende e realiza são objetivos concretos, realizáveis e pragmáticos, o que corresponde à metodologia do aposteriorismo: colecionar evidências práticas na realidade a partir das quais se induz uma abstração compreensiva.

Distinto do governo Salazar que se considera como agente da providência e como eleito pelo destino nacional, o Estado Vargas vê-se como o representante da nação que precisa da simpatia, senão afinidade, da massa. Karl Loewenstein, um professor de ciência política em Amherst College, no seu livro Brazil under Vargas define o regime como do seguinte modo:

Technically Brazil is a full-fledged dictatorship; the rules of law governing the policital society are not agreed upon by the people but superimposed by the government from above. If an apposite counterpart to the term ‘democratic’ is in order, the regime must be spoken of as “authoritarian”. But it is neither totalitarian nor ‘semitotalitarian’ (...) It is imperative to clarify these loosely and indiscriminately used terms. ‘Authoritarian’ refers to the form of government, to the type and technique of the policy-forming power. “Totalitarian”, on the other hand, refers to a way of life, to social factors. It implies that the sphere of private life of the individual citizen or subjetct is subordianted to the public policies of the state to the point

194

of obliteration. A totalitarian state is always an authoritarian state; totalitarian control of private life can be accomplished only by way of authoritarian command. But an authoritarian state need not be totalitarian. Brazil is a case in point. (...) Private life, private law, family, business recreation, and cultural activities remain unaffected by the regime under the condition that they do not obstruct public policies. What influence the state may exercise on such manifestations of private life touches the surface only.” 39

De acordo com Loewenstein, Vargas não pretendia, ou realmente não conseguia, alterar de maneira dramática, a maneira de ser dos brasileiros nem forçava a modelação destes em conformidade com um blueprint pré-concebido e alheio à realidade ou ao presente. É por este motivo que o regime Vargas era muitas vezes chamado de “ditabranda” em vez de ditadura, o que se coaduna com a afirmação de

Sérgio Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil , segundo a qual a doçura no caráter nacional brasileiro não combina bem com a ditadura. Numa carta enviada a Getúlio

Vargas pelo seu secretário privado em 1938, logo depois da instauração do Estado

Novo, Luís Vergara recomenda que o regime não se deva apoiar “na fidelidade das baionetas e numa permanente vigilância policial”, e que seja imperiosa a adoção de diretrizes de alcance tanto doutrinário como prático através de um “delicado e precioso aparelho” de propaganda operado por “poucos intelectuais, encerrados num gabinete, sob uma direção bem controlada” a fim de que os princípios do Estado

Novo se difundam “de forma instrutiva e acessível”, para “o uso do povo” e para “uso da catequese oral” 40 . Qualquer que seja o motivo, podem-se observar tentativas do governo Vargas para estabelecer rapprochement com o povo brasileiro, nomeadamente os pobres e os trabalhadores. Se a concepção e modelagem da portugalidade no Portugal salazarista é puramente uma obra unilateral da máquina

195 estatal que concretiza o ideal de Salazar, no Brasil isso faz-se de modo bi-lateral não obstante a manipulação ideológica de certo grau pelo governo. O Estado Vargas, centralizador e unificador, é uma prova da existência duma identidade nacional coesiva num país tão heterogêneo composto por partes geografica e culturalmente diversas. Essa natureza do Estado Novo getulista exige que os nacionais se identifiquem, pelo menos emocionalmente, com o Estado de modo que se legitime a identidade nacional representada por este, enquanto o Estado Novo salazarista deriva sua legitimidade e razoabilidade da fatalidade nacional e divindade, o que o isenta da aprovação necessária da massa ou dos intelectuais. É esta diferença que resulta na distinção entre o populismo getulista e o popularismo salazarista 41 .

Como a carta de Luís Vergara revela, a estratégia de Vargas também não surge de revelação ou ex nihilo . Vargas num discurso sobre movimento literários e culturais com a política proferido, em 1951, na Universidade do Brasil declara:

As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do modernismo na literatura brasileira (...) foram as mesmas que precipitaram, no campo social e político, a Revolução vitoriosa de 1930. A inquietação brasileira (...) buscava algo de novo, mais sinceramente nosso, mais visceralmente brasileiro (...) a renovação dos valores literários e artísticos, de um lado, a renovação dos valores políticos e das próprias instituições (...) se fundiram num movimento mais amplo, mais geral, mais completo, simultaneamente reformador e conservador, onde foram limitados os excessos, (...) harmonizadas as tendências mais radicais e divergentes. Tive ao meu lado as gerações novas do Brasil, que, em todos os setores da inteligência e da cultura, procuravam novas formas de convivência e novas expressões para valores antigos. Porque nunca pretendi favorecer reformas que não tivessem raízes nas aspirações mais profundas e mais constantes da coletividade e que não exprimissem um consórcio pacífico de evolução e tradição. 42

196

Em contraste com o Estado Novo salazarista que se instaurou por ocasião duma crise financeira, o Estado Novo getulista conseguia andar de onda do movimento modernista por ocasião duma crise identitária.

O relacionamento entre o Estado e a inteligência, quer por colaboração, quer por cooperação, quer por cooptação, pelo menos, comprova que os intelectuais tinham algo em comum com o Estado:

Nele (Estado Novo) foi conseguida uma fórmula política que, primeiro, conseguiu realizar a façanha de arbitrar os interesses contraditórios das elites regionais brasileiras, dando-lhe uma forma abrangente, abrindo, assim, parte do caminho para uma modernização longamente aguardada, e necessária, da base produtiva do país. (...) Esta imagem da era de Vargas, portanto, põe o acento no misto de astúcia, clarividência e racionalidade com que esta vitória foi conseguida – quaisquer que sejam os julgamentos e críticas sobre o lado ditatorial e violento da solução estadonovista, e mesmo que se considerem as suas contradições e tensões. Uma imagem que apresenta o regime como algo que tem fronteiras claras e uma identidade pouco equívoca em sua lógica e realizações, cujo feito maior é o de ter conectado nacionalmente espaços fragmentados e desiguais da sociedade brasileira das décadas de 1930 e 1940 – ou seja, ter produzido um consenso entre Estado e sociedade que funcionou para tornar real a viabilidade de um Brasil industrial, urbano, moderno. E, nas entrelinhas, sugerir que não havia qualquer outra opção de caminho para a modernidade. 43

2 Idealismo vs. Pragmatismo

Contudo, há estudiosos que discordam da caracterização dos Estados Novos pela dicotomia a prioria / a posteriori que é essencialmente um par de termos filosóficos, argumentando que a portugalidade à salazarista não é uma identidade a priori , e brasilidade não é a posteriori , visto que tanto a portugalidade como a brasilidade são

197 realmente escolhas dos respectivos ditadores que são relacionadas com mundividência e perspectiva da realidade e história, não tendo a ver com a existência epistemológica identitária. O que distingue a visão do Estado Novo salazarista da sua contrapartida brasileira é o idealismo que carateriza o pensamento utópico salazarista versus o realismo salientado no getulismo.

Curiosamente, no Portugal salazarista, por um lado, preconiza-se a utopia nacionalista e historicista como uma forma do ideal nacional. Ferreira de Macedo, publicou um artigo intitulado “Educação do Povo”, em Seara Nova em 1945, em que valorizava o espírito utópico: “Eu sei que a vossa tendência, a tendência de todos os políticos, é verem nos ideais dos educadores, dos filósofos e dos moralistas, simples fantasias utópicas, fora das verdadeiras realidades. Assim, têm sido acusados de puros idealistas, de construir nas nuvens, de imaginar repúblicas impossíveis, tão grandes espíritos como Platão, Tomaz Moro, Campanela, Fenelon, Weels, Sanderson, etc, etc.

Mas reparai bem como são vãs e ridículas tais injúrias. A Utopia (disse-o um grande pensador e artista, um grande e sincero amigo do povo, em frases liminosas e lapidares): ‘A Utopia é o princípio de todo o progresso; sem os utopistas de outrora, os homens viveriam ainda miseráveis e nus nas cavernas. Foram os utopistas que traçaram as linhas da primeira cidade. Dos sonhos generosos saem as realidades bemfazejas.” 44 Por outro lado, também se fala da realidade, porque o significado da realidade no Estado Novo tem sua própria interpretação: num manifesto da propaganda nacionalista feito por Humberto da Cruz, em 1948, intitulado Apelo à

Realidade , o autor advoga que em Portugal “ a primeira realidade é a existência

198 independente da nação Portuguesa, com o direito de possuir fora do continente europeu, acrescendo à sua herança peninsular, por um imperativo categórico da

História, pela sua acção ultramarina em descobertas e conquista, e pela conjugação e harmonia dos esforços civilizadores das raças, o patrimônio marítimo, territorial, político e espiritual abrangido na esfera do seu domínio ou influência.” 45 E é irônico que o Estado Novo também pregasse o realismo, realismo à estadonovista que considera a liberdade, a igualdade e fraternidade assim como outros símbolos da modernidade como mitos prejudiciais e desintegradores que não correspondem à realidade nacional portuguesa. João Ameal, em Panorama do Nacionalismo

Português , declara que “o repúdio dos mitos é já uma animadora manifestação do regresso à ordem intelectual e moral. Em vez de se baterem por fórmulas sem conteúdo (por uma Liberdade ideológica, traduzida, na prática, em supressão da liberdade; por uma Fraternidade transformada em fratricídio; por uma Igualdade geradora das mais cruas tiranias; por uma soberania popular que tem sido apenas soberania maçónica) – os portugueses de hoje querem entregar-se a disciplinas capazes de reconstruir a Nação.”46 O próprio Salazar esclarece “Nem eu posso comprometer-me a executar ideias que não sejam as minhas ideias e a realizar aspirações nacionais por processos que não sejam os que me são impostos pela minha consciência e pelo meu temperamento; não tenho fantasias para idear o impossível, coragem para prometer o que não há possibilidade de dar, maleabilidade para ser intérprete do que não consigo entender.” 47 Para Salazar, é a história em vez da mera existência que constitui a condição sine qua non de uma realidade, ou seja, o que ele

199 quer dizer em relação ao natural, como família, freguesia, corporação, é o que possuem uma existência histórica e natural, enquanto cidadão é um ente neo-criado para Salazar que tem um sabor demasiado artificial e moderno, contra-histórico. “O

Estado forma-se pela organização da Nação, a partir da Família, através das

Freguesias, dos Municípios e das Corporações morais e econômicas, isto é, através dos grupos naturais, que são uma realidade social, e não através da ficção democrática, o cidadão, que é uma abstração.” 48 . Por frisar a existência natural, o salazarismo tenta, de fato, validar o presente por meio do passado. David Lowenthal, em Past is a

Foreign Country , argumenta que: “[t]he past validates the present in two distinct ways: by preserving and by restoring. Preservation invokes the continuance of practices that supposedly date from immemorial time; changes, if any, have been superficial, inconsequential. (…) Restoring lost or subverted values and institutions is a second mode of validation. A remote past legitimates and fortifies the present order against subsequent mishap or corruption.” 49 Portanto, a visão salazarista em relação à identidade nacional assenta no saudosismo caraterizado por um passado nacional idealizado. O molde identitário que Salazar concebe para o português deriva das experiências históricas portuguesas as quais Salazar minuciosamente estuda, classifica e escolhe. A identidade nacional salazarista é uma escolha em vez duma invenção ex nihilo ou uma imaginação como a preconizada por Hitler que mandou expedições ao

Tibete para achar rastros dos homens-deuses que são supostamente antepassados dos arianos. Deste modo, a idealização do passado do país realiza-se com base numa anacrônica interpretação da dicotomia decadência/renascença de Portugal através da

200 qual se apagam os estigmas e elementos não-portugueses durante a decadência para reviver o passado utópico que simboliza a portualidade na sua plenitude. Essa renegeração é o que o regime significa pelo nome: Estado Novo. O “novo”, como já argumentado no capítulo I, não se refere à inovação nem ao progresso à modernidade numa nova época, mas à renovação que tem como objetivo a restauração do passado nos tempos novos. A visão renascentista ou regeneradora de Salazar é muito bem delineada por Maria Alves na sua tese Mundividência do Regime Salazarista : “A nação portuguesa, pela ausência de uma gestão política pautada por sãos princípios, tonara-se um corpo doente cujo revigoramento passava pela transformação lenta, mas segura, da mentalidade nacional, pela eliminação progressiva de elementos desnacionalizadores, pelo esforço na missão civilizadora nas colónias africanas, pela submissão a princípios congregadores e consonantes com a tradição. A essência do sentimento patriótico residia no consentimento conjunto de grandes sacrifícios através dos quais a nação se depurava e atingia uma consciência mais plena, realizando o seu espírito nacional. A condução deste processo materializava-se no Estado que devia respeitar o passado, agir de acordo com os seus ditames e, nunca lhe alterar o rumo (...) para preservar a identidade, para garantir a continuidade do essencial.” 50 Ao fim e ao cabo, o Estado Novo português per se , representa a restauração, a verdadeira renascença pátria e a continuação dos grandes momentos históricos. Na ideologia do

Estado Novo desvenda-se uma missão a cumprir, um fio condutor manifesto, desde a

Batalha de Ourique, à Reconquista, à grande “cruzada” dos descobrimentos e conquistas até às guerras coloniais nas décadas de 1960 e 1970. Por ressuscitar a

201 pátria portuguesa na sequência de um período crítico de desordem e fracasso, Salazar tenta retomar aquele fio condutor perdido durante a decadência e implantar a glória do passado no presente, o que é fundamentalmente um anacronismo utópico. A emergência de Salazar, “tal como foi simbolizada num conhecido postal de propaganda, intitulado ‘Salazar Salvador da Pátria’ – Salazar empunhando um escudo e uma espada e envergando um traje guerreiro, imagem inspirada na escultura de D.

Afonso Henriques, de Soares dos Reis – é restauração mítica e redentora.” 51 Tendo em conta o que ficou dito acima, é pouco duvidoso por que o Estado Novo português prefira definir a nação em termos da raça ou etnicidade que muitas vezes envolve a idéia de continuidade histórica, representada nas tradições mantidas por descendentes de gerações prévias de grandeza e heroísmo. Assim, o Estado goza da legitimidade nacional como um corolário, e reflete ideais e características do historicismo, construindo e imaginando uma idéia-nação sem uma realidade nação. Contudo, segundo Sérgio Campos Matos em História, Mitologia, Imaginário Nacional , “o desejo de corresponder a estas exigências levou que muitas aldeias se esforçassem por reactivar modos de vida que já não usavam, trajos que já ninguém vestia – em

Boassas apareceram «em trajo típico os senhores da Casa do Paço», no meio do povo, no qual se encontravam «muitos pares em indumentária característica.»; Mais grave, do ponto de vista etnológico, foi a demonstração dos rituais da tradição: para mostrar ao júri do S.P.N. como eram capazes de fazer reviver as suas tradições, certas aldeias

“representaram”, num só dia, todos os momentos do ano – em Monsanto «um coro magnífico entoou as “Janeiras”. Seguiu-se a procissão do enterro do Senhor e

202 queimou-se num largo o tradicional “madeiro” do Menino Jesus e fez-se ainda um estupendo “pregão das almas”»; no Paul, «Um grosso madeiro ardia e noutro local queimou-se a fogueira de S.João, agora sem o sacrifício animal (...) a aldeia mais

Portuguesa (...) foi escolhida, após sucessivas eliminatórias, entre aquelas que não se importaram de representar as suas tradições, mesmo que essa representação tenha implicado um desrespeito, pelo tempo próprio do procedimento, ao ritual tradicional.”52

Outra evidência da artificialidade da tradição salazarista é que durante desfiles do tricentenário, realizados em 1940, “testemunho oral referiu ter desfilado na

Avenida da Liberdade vestido de ‘pescador da Nazaré’ – calça e camisa de quadrados, barrete negro, pés descalços -, enquanto a sua região de origem era na verdade o interior sul do país.” 53 Devido a esse idealismo salazarista que desvirtua drasticamente a realidade portuguesa, surge o neo-realismo que é uma resposta revoltosa e dissidente ao irrealismo salazarista na imposição da identidade nacional e

à sua manipulação da nação portugesa. O neo-realismo é uma reação à depressão que

é incentivada pela situação portuguesa. Ele é passivo no sentido de que ele deriva da conjuntura social, ideológica e psicológica criada pelo Estado Novo. O neo-realismo constrói uma anti-identidade nacional portuguesa, uma identidade não desejada pelas autoridades que se esforçam por obscurecer e fazer esquecer. Diferente do neo-realismo brasileiro que é também conhecido como regionalismo e acusado da sujeição ao pitoresco devido ao “fantasma do folclore que ronda tais incursões pelo regionalismo, notadamente o nordestino” 54 , o neo-realismo português, nas palavras de

203

Gaspar Simões, cultiva um regionalismo sem regionalismo, isto é, o neo-realismo português representa uma realidade nacional, superando as limitações do regionalismo e, assim, retratando uma imagem do rural cujo significado é universal. Mostrando as vivências e experiências quotidianas dos trabalhadores rurais sem se prender com as particularidades e o pitoresco regionais, o neo-realismo visa minar e subverter a propaganda salazarista e a identidade nacional imposta pelo regime.

No Brasil getulista, porém, não se sentia a fascinação pelo passado. Um dos maiores ideólogos do Estado Novo brasileiro, Francisco Campos, uma vez declarou que “(...) as formas espirituais do passado, com que continuamos a vestir a imagem do mundo, se revelam inadequadas, obsoletas ou desconformes.” 55 Na opinião de

Marilena Chauí, para o Brasil “ter uma história e ser história é um problema. Trata-se da sociedade (...) que não [pode] recorrer a princípios naturais, divinos e conscientemente racionais para determiná-la. Terá que encontrar dentro de si os princípios de seu surgimento, de sua instituição e de suas transformações” 56 , o que exige introspeção profunda e sóbria da realidade nacional. Quanto à atitude de Getúlio

Vargas em relação ao espírito realista, basta um relance sobre os discursos do gaúcho para revelar a ênfase dada pelo ditador à realidade. Em Manifesto à Nação , Vargas afirma que “[a] época de renovação e reconstrução que atravessa o país precisa ser encarada dentro da realidade brasileira, consultando as nossas tradições e a experiência dos erros anteriores, considerados como lições para o futuro. Cumpre-nos fugir às seduções do puro doutrinarismo, às influências dos ideais de empréstimo e das novidades perigosas. Semelhante atitude não implica, entretanto, ficarmos inertes,

204 comodamente apáticos, indiferentes às conquistas do pensamento político contemporâneo, sonhando, por preguiça mental, a volta automática ao passado.” 57 Na entrevista concedida à revista Paris Soir , Vargas reiterou sua suspeição relativa ao passado e realce na presente realidade: “O que existe nele (o espírito do regime brasileiro) é uma revisão dos velhos conceitos da democracia meramente formal.

Nenhum regime pode divorciar-se da realidade e a noção da realidade é fundamentalmente dinâmica, não estática. 58 No discurso proferido a 29 de Agosto de 1939, o ditador mais uma vez exprimiu sua preocupação com a realidade nacional:

“O Estado Novo é o Estado brasileiro, segundo as tradições brasileiras, orientado no sentido das nossas realidades.” 59

O realismo, ou pelo menos o não-idealismo de Getúlio Vargas, por um lado, será uma reação natural à situação complexa do Brasil que é bem mais heterogênea e diversa do que a portuguesa; por outro, deve-se, em parte, à influência do positivismo.

Em 1909, o futuro ditador foi eleito deputado da Assembléia dos Representantes do

Rio Grande do Sul ocupando uma das vagas do PRR cuja ideologia oficial é o positivismo. Segundo Pedro Cezar Dutra Fonseca, não obstante os diversos pensamentos que influenciaram o curso político de Vargas, o positivismo sempre pertence ao núcleo do pensamento de Vargas 60 . No pensamento positivista, o desenvolvimento do mundo divide-se em três etapas: teológica, metafísica e positivista. No estado teológico a observação dos fenômenos tem muito limitada importância e a imaginação desempenha papel relevante, porque o homem supostamente entende a natureza não por experiências empíricas, mas pela crença na

205 intervenção divina. Segundo Fonseca, a mentalidade teológica também consolida a coesão social e fundamenta a vida moral, o que nos lembra a ideologia salazarista. Em contraste, na etapa positiva, estado mais elevado no positivismo, caducam-se a subordinação do homem ao sobre-natural assim como a submissão da observação à imaginação ou idealização, e salientam-se não somente os fatos e fenómenos, que em conjunto constituem a realidade, como também as causas, relações e leis constantes na realidade. Seria o modernismo outro movimento que poderia exercer influência sobre

Vargas que mais tarde advogava a aliança entre cultura e política e entre homem de idéia e o de ação. A geração modernista profundamente sentia a dor do subdesenvolvimento e atraso em relação à Europa e à América do Norte, e o reconhecimento do atraso é o primeiro passo para enfrentar a realidade. Abdicando do cego ufanismo, os modernistas não só conseguiam apreciar a grandeza natural do

Brasil como também se aperceber da questão expressa nestes termos: “como estamos tão mal se as condições materiais são tão boas ?”. É desde as tentativas de resolver esse problema que o foco dos intelectuais se transfere da natureza para o caráter e identidade nacional. “A retomada do nacionalismo envolve a consciência do subdesenvolvimento, prenúncio de outro esquema explicativo para o país, à base das dicotomias Brasil real/ Brasil ideal, onde o Brasil litorâneo, importado, bacharelesco é acusado de impedir e anular o desenvolvimento nacional. Segundo Renato de

Almeida, ‘foi a minha geração, libertando-se resolutamente do ufanismo das gerações anteriores, que procurou ver com clareza e honestidade o Brasil, inventariando os nossos defeitos e as nossas virtudes, para determinar com exatidão as coordenadas da

206 civilização brasileira’” 61 . Paralelo ao modernismo, o neo-realismo brasileiro também visa, pelo menos supostamente, ajustar o país à realidade nacional. De acordo com

Gilberto Freyre, em Manifesto Regionalista , o neo-realismo, que no Brasil é geralmente referido como regionalismo, procura “defender esses valores e essas tradições, isto sim, do perigo de serem de todo abandonadas, tal o furor neófílo de dirigentes que, entre nós, passam por adiantados e progressistas pelo fato de imitarem cega e desbragadamente a novidade estrangeira.” 62 Diferente da sua contrapartida portuguesa que se considera como levante contra o irrealismo salazarista e símbolo duma anti-identidade relativa à identidade oficial, o neo-realismo brasileiro, graças ao realismo getulista, não incita identitariamente desafios contra a ideologia estatal.

É também duvidável se o neo-realismo brasileiro pretende agir contra o governo

Vargas, embora vários escritores regionalistas como Graciliano Ramos e Rachel

Queiróz participassem do partido comunista. O objetivo principal do neo-realismo é conservar as tradições regionais, valorizar regiões que formam a realidade brasileira

(“O conjunto de regiões é que forma verdadeiramente o Brasil. Somos um conjunto de regiões antes de sermos uma colção arbitrária de Estados” 63 ), e contrabalançar a

“novidade estrangeira de modo geral” 64 , o que difere distintamente da sua contrapartida portuguesa. Ademais, o neo-realismo brasileiro, nas palavras de Freyre, visa integrar, em vez de dividir, o Brasil duma perspectiva regional, o que se combina de fato com a política unificadora do Estado Novo.

A maior injustiça que se poderia fazer a um regionalismo como o nosso seria confundí-lo com separatismo ou com bairrismo. Com anti-internacionalimo, anti-universalismo ou anti-nacionalismo. Ele é

207

tão contrário a qualquer espécie de separatismo que, mais unionista que o atual e precário unionismo brasileiro, visa a superação do estadualismo, lamentavelmente desenvolvido aqui pela República – este sim, separatista – para substituí-lo por novo e flexível sistema em que as regiões, mais importantes que os Estados, se completem e se integrem ativa e creadoramente numa verdadeira organização nacional. Pois são modos de ser – os caracterizados no brasileiro por sua forma regional de expressão – que pedem estudos ou indagações dentro de um critério de interrelação que, ao mesmo tempo que amplie, no nosso caso, o que é pernambucano, paraibano, norte-rio-grandense, piauiense e até maranhense, ou alagoano ou cearense em nordestino, articule o que é nordestino em conjunto com o que é geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano. 65

Por conseguinte, a contradição entre o Estado Novo getulista e os intelectuais brasileiros parece mais suave e sempre vulnerável à reconciliação através de relações interpessoais e amizades pessoais entre os estadistas, funcionários-escritores, escritores-funcionários e intelectuais. O exemplo mais ilustrativo será o autor de

Memórias do Cárcere , Graciliano Ramos. 66 Acusado de participar de levante comunista de novembro de 1935, o romancista foi preso em março de 1936, um ano antes da instalação do Estado Novo no Brasil, sendo que catorze meses depois foi libertado. No mesmo ano, o seu romance Angústia foi lançado com o prêmio "Lima

Barreto" concedido pela Revista Acadêmica que lhe dedicou ainda uma edição especial, de número 27 - ano III, com treze artigos sobre o romancista. Ramos também recebeu o prêmio Literatura Infantil mesmo do governo federal - o Ministério da Educação, com “A terra dos meninos pelados”. No ano seguinte, ele foi inclusivamente nomeado para cargo de Inspetor Federal do Ensino Secundário no Rio de Janeiro. Como um assíduo frequentador da sede da revista "Diretrizes", junto de

Jorge Amado, José Lins do Rego, e outros “conhecidos comunistas

208 e elementos de esquerda”. Em agudo contraste, em Lisboa foi dissolvida a Associação de Escritores Portugueses por conceder um prémio literário a um escritor africano socialista. Diferente do salazarismo que advoga uma estrutura e ideologia políticas distintivamente diversas da democracia anglo-americana, o pensamento de Getúlio

Vargas parece tender a ficar dentro do enquandramento de democracia, explicando que a diferença situacional do Brasil se deve às particularidade do Brasil que precisam de um regime e políticas realísticas. “Dentro de nossas realidades e diretrizes históricas, instituímos uma democracia realista e funcional. Certamente, por sua características, difere de muitas organizações americanas, mas é a forma necessária de concentração da autoridade, que permite a uma nação de vasto território, com um passado de regionalismos estreitos e particularismos de formação, adquirir estrutura capaz de resistir às crises do seu próprio crescimento e às graves perturbações que atravessa o mundo”. 67 Em contraste, devido ao irrealismo salazarista de que a vasta maioria de intelectuais portugueses discorda, muitos deles se vêem forçados ao exílio ou colocados na prisão. A distorção da realidade pelo Estado Novo português, a obscurantização da massa através da propaganda nacional e do livro único resultam no confronto direto, inevitável e incoordenável entre o regime e os intelectuais.

Ademais, o idealismo salazarista caraterizado pela manipulação da realidade e da tradição, mina em vez de consolidar o que é português e constituintes da portugalidade. “A ‘invenção da tradição”, a criação do folclore por elementos alheios aos seus praticantes habituais, conduz mais à morte da tradição do que ao seu

‘renascimento’, como era pretendido, porque os gestos perdem autenticidade, porque

209 se retira, ao considerar qualquer tempo certo para a sua execução, toda a ‘magia’ inerente ao gesto e toda a expressão etnográfica passa a ser acontecimento banal, a que se não dá importância. A prática dos costumes, das crenças e da arte populares, se for encomendada ou ensinada, deixa de comportar um dos traços que a compõem, e que é exactamente o tradicionalismo, pois dizer tradicional é dizer espontâneo, desejado, e todos os dias a tradição é sujeita a uma triagem por parte de quem a usa habitualmente na sua vida. A passagem do tempo, a memória dos povos, o progresso, a mudança de vida, aumentam ou reduzem o pecúlio tradicional, modificam-no segundo as necessidades do momento. A cantiga que hoje é popular, amanhã poderá já não o ser, suplantada por uma sua inovação, mais perfeita aos ouvidos de quem escuta, ou por uma nova cantiga, mais de acordo com a emoção dos cantadores, dos autores, dos improvisadores, dos ouvintes. A obrigação das práticas etnográficas tradicionais subentende a sua fixação, faz com que as formas passem a ser imutáveis, limitadas ao tempo presente que se projectará no futuro.” 68

Quanto ao Estado Novo getulista, é natural pensar que o relacionamento flexível entre o governo e a inteligência deve-se à presença de escritores e intelectuais no aparelho estatal os quais, sendo camadas intermediárias entre os dois, desempenham funções de amortecedores ou pára-choque para os conflitos derivados das interações entre política e cultura. Por este raciocínio, o realismo getulista não contribui para essa “harmonia” brasileira. Contudo, o que ficou referido acima evidencia exatamente a influência do realismo getulista no Brasil. Em comparação com a sua contrapartida portuguesa, o governo getulista não adota uma postura inflexível, impassível e até

210 intolerante em relação aos intelectuais como o faz o salazarista. A inclusão dos diversos intelectuais no aparelho estatal, quer por cooptação, quer por cooperação, demonstra uma atitude prática e realista de Getúlio Vargas perante a realidade nacional. É provavelmente por isso que o regime Vargas se chama, nas palavras de

Lowenstein, de sloppy despotism .

Notas :

1 Lúcia Lippi Oliveira. “As raízes da ordem: os intelectuais, a cultura e o Estado”. In: A Revolução de 30. Seminário internacional . Brasília, UnB, 1982, p.512.

211

2 Portugal também está livre de problemas relacionados com raça, língua, etc que poderiam dilacerar um país identitariamente.

3 Sérgio Campos Matos. História, Mitologia, Imaginário Nacional: A História no Curso dos Liceus (1895-1939) . Livros Horizonte. pp.66-7.

4 Joaquim de Carvalho. Compleição do Patriotismo Português . Coimbra: Atlântida. 1953.p.30.

5 Massaud Moisés. História da Literatura Brasileira , Vol III, cultrix, 2001, p.11.

6 António José Saraiva e Óscar Lopes (org.). História da Literatura Portuguesa (15.ª ed), Porto Editora. 1989. p.1062.

7 Para além das obras de natureza de lambe-cu, cito uma só história documentada no artigo intitulado “Almada e Dantas a Nu” de Fernando Dacosta publicado em Público (4/4/93) aqui para demonstrar a “índole” de Almada Negreiros:

“Almada Negreiros …apoiou o salazarismo e o catolicismo, fez vitrais para a igreja e murais para o regime. Aceitou denegrir figuras da oposição (caso de Norton de Matos) e propagandear grupos do regime (caso da Legião Portuguesa). Quando este vai à antestreia do "Auto da Alma", no Teatro S. Carlos, com cenários seus e interpretação de Maria Lalande, ambos se precipitam, no final, para o então presidente do Conselho. - Posso dar-lhe um beijinho?, pergunta a actriz.

Salazar, indiferente:

- Se isso lhe dá prazer...

Ela beija-o.

Almada avança:

- Posso cumprimentar Vossa Excelência?

Salazar fita-o:

- É o senhor Almada?

Almada curva-se respeitosamente:

- Sim, senhor Presidente, sou eu. Tenho muita, muita honra em cumprimentá-lo!

À distância, Vitorino Nemésio cicia para um amigo, que nos conta o episódio:

- O Dantas está vingado!”

(Ver também Manifesto Anti-Dantas e Por Extenso de Almada Negreiros).

8 Mário da Silva Brito. “Futurista?”. In: Anhembi , novembro de 1954. p. 539.

9 Afrânio Coutinho (dir.). A Literatura no Brasil (3ª ed.). José Olympio.1986. 47.

212

10 “Separadas apenas por três anos, as obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda mais divergem que se assemelham. Como se o fato de um ser pernanbucano e o outro paulista lhes determinasse a visão do mundo, enquanto um se concentra no passado a fim de compreendê-lo e enaltecer-lhe as virtudes, o outro atravessa todo o nosso conspecto histórico à procura das pistas que anunciem o futuro. Aquele é um homem moderno, ajustado às escolas socioetnológicas predominantes no tempo; este é, ao menos em sua obra capital, um modernista. Tomando-os em sua expressão mais simples, o primeiro seria um reformador, o segundo, um revolucionário; um, olha para trás, ansioso de captar, otimistamente, as coordenadas da nossa formação social; o outro, alonga a vista para a frente no encalço das saídas.” (Massaud Moisés. História da Literatura Brasileira . Vol III. Cultrix. 2001. p.136).

11 Lúcia Lippi Oliveira, op.cit., p.512.

12 Rubens Borba de Morais. “Domingo dos Séculos”. In: Candeia Azul, 1924. pp.14,56,69.

13 Mário da Silva Brito. “A Revolução Modernista”. In: Afrânio Coutinho (dir.), A Literatura no Brasil , 3 vols., rio de Janeiro, sul-Americana/S.José, 1955-1959, vol. III, t.1. p. 478.

14 Massaud Moisés, História da Literatura Brasileira , Vol III, cultrix, 2001, p.25.

15 Lúcia Lippi Oliveira. “O Intelectual do DIP: Lourival Fontes e o Estado Novo” In: Helena Bomeny (org.) Constelação Capanema : intelectuais e políticas . Editora FGV : Universidade São Francisco. 2001. p.97.

16 Idem, p.25.

17 A “paternalização” do ditador se deve ao fato de que o parentesco fictício prevalece em muitas regiões no Brasil: os pobres costumam pedir aos poderosos para estes se tornarem padrinhos de seus filhos recém-nascidos; e os descendentes de escravos poderiam virar parentes de antecessors de alguma tribo africana.

18 Azevedo Amaral. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional .Editora Universidade Brasília. 1981. p.68.

19 Oliveira Vianna. O idealismo da Constituição. São Paulo: Nacional. 1939. p. 69.

20 AOS/CO/PC-12E/1.

21 AOS/CO/PC-3I/18.

22 AOS/CO/PC-43/10. Foi alegado que os serviços americanos de informação obtiveram este documento das mãos de um membro do Comité Central do Partido Neo-Fascista em Roma.

23 Sérgio Campos Matos, op.cit., p.73.

24 Galen Strawson. http://www.believermag.com/issues/200303/?read=interview_strawson.

25 Immanuel Kant. Critique of Pure Reason , New York: St.Martin’s Press.1987. introduction, §1.

26 Ibidem.

27 Wikipedia. http://en.wikipedia.org/wiki/A_priori_and_a_posteriori_(philosophy)#cite_note-0

28 A. Salazar, DNP , Vol. II 2ªed., 1945 p.64.

213

29 Maria Alves, op.cit., p.19.

30 Idem, p.10

31 Ibidem.

32 Idem, p.29.

33 Idem, p.28.

34 Idem, p.29.

35 Marilena Chauí. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular do Brasil . 2ªed, Editora Brasiliense.1987. p.115.

36 Maria Manuela da Silva Fernandes Alves. As Casas do Povo como Instituições Reveladoras da Mundividência do Regime Salazarista . Tese de Mestrado em História das Instituições e Cultura Moderna e Contemporânea. Universidade do Minho. 1998. pp.35-6.

37 Idem, p.20.

38 Getúlio Vargas. Discurso proferido a 13 de Maio de 1940, op.cit., p. 62.

39 Karl Loewenstein. Brazil under Vargas . The Macmillan Company. 1942. p. 373.

40 CPDOC/FGV. LV c 1938.00.00/1.

41 O que o Estado Novo pratica é o popularismo cuja finalidade é imitar as formas populares. No caso do manual escolar, por exemplo, Irene Fialho observa que há duas maneiras para popularizar os textos “não populares”: textos «ao jeito popular» textos que os autores propositadamente compuseram para imitarem as formas e os géneros populares, os textos que verdadeiramente se chamam popularizantes, ou eram textos de temática tradicional, isto é, textos que utilizando temas tradicionais, foram compostos, revistos ou adaptados por um autor erudito que os desejou publicar. Nas escolas elementares, “cantam-se cantigas tradicionais e, em seguida, quadradas de autores eruditos como se fossem populares. Decoram-se poemas cultos popularizados, mas não se identificam os autores; esquecem-se as poesias populares, que se aprenderam antes da alfabetização, para se sobrevalorizarem as outras, que tomam o seu lugar.” (Irene Maria Leandro Rodrigues Fialho, Popular e Popularizante nos Manuais Escolares do Estado Novo , Tese de Mestrado em Literaturas Comparadas. Universidade Nova de Lisboa. 1993. p. 17).

42 Getúlio Vargas. discurso pronunciado na Universidade do Brasil em 28-7-51. O governo trabalhista do Brasil (Rio de Janeiro: José Olímpio. 1952.

43 Maria Celia Paoli. Prefácio in Cidadania e Exclusão : Brasil 1937-1945 (Adriano Luiz Duarte), Editora da UFSC, 1999, p.15-16.

44 A. A.Ferrira de Macedo. A Educação do Povo . Seara Nova. 1945. pp29-30.

45 AOS/CO/PC-4ª/1.

46 João Ameal. Panorama do Nacionalismo Português . Lisboa: Aparições. 1932. p.68.

214

47 Maria Alves, op.cit., p.28.

48 AOS/CO/PC-3J/14.

49 David Lowenthal. The Past is a Foreign Country . Cambridge: Cambridge University Press. 1985. pp.40-41.

50 Maria Alves, op.cit., pp.8-9.

51 Sérgio Campos Matos. História, Mitologia, Imaginário Nacional: A História no Curso dos Liceus (1895-1939) . Livros Horizonte, p.105.

52 Idem, pp.73-4.

53 Idem, p. 74.

54 Massaud Moisés. História da Literatura Brasileira , Vol III, cultrix, 2001, 137.

55 Francisco Campos. O Estado Nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico . Rio de Janeiro: José Olympio. 1940. p.65.

56 Marilena Chauí, op.cit., p.118.

57 Getúlio Vargas. Manifesto à Nação, lido a 14 de Maio de 1932, in As Diretrizes da Nova Política do Brasil , José Olypmpio, 1943, p. 42.

58 Getúlio Vargas. Entrevista ao Paris Soir publicada a 19 de Julho de 1939, op.cit., p. 60.

59 Getúlio Vargas. discurso proferido a 29 de Agosto de 1939, op.cit., p. 61.

60 http://www.anpec.org.br/encontro2004/artigos/A04A018.pdf.

61 Lúcia Lippi Oliveira. “As raízes da ordem: os intelectuais, a cultura e o Estado”. In: A Revolução de 30. Seminário internacional . Brasília, UnB, 1982, p.513.

62 Gilberto Freyre. Manifesto Regionalista de 1926 . Edições Região 1952. pp.27-8.

63 Idem, p.26

64 Ibidem.

65 Idem, p.23.

66 Outro exemplo é Sérgio Buarque de Holanda. Não obstante uma posição anti-situacionista, o historiador foi convidado por Gustavo Capanema para fazer parte da Comissão de Teatro do Ministério da Educação. E, um ano antes da instalação do Estado Novo, publicou sua obra-magna: Raízes do Brasil .

67 Getúlio Vargas, entrevista concedida ao enviado especial de La Prensa e publicada a 27 de Junho de 1941. Idem, p. 65.

68 Sérgio Campos Matos, op.cit., p. 78.

CONCLUSÃO

No que ficou argumentado nesta tese destacam-se duas dicotomias: nacional / não-nacional e passado / realidade, ou seja, nós/eles e fomos/somos. A primeira dicotomia é mais relevante para o Brasil getulista que se esforça por se distinguir tanto do antigo legado português como da influência moderna européia, enquanto a segunda é mais aplicável ao Portugal salazarista que se encontra entravado entre o inevitável mas desconcertante presente e o utópico mas inalcançável passado.

No caso do Estado Novo brasileiro, é de salientar que o que é nacional não é o que sobra depois de se retirarem todos os elementos considerados não-nacionais. Em vez de ser uma coisa fixada ou invariada, a nação é um processo fluído cujo desenvolvimento e até sobrevivência dependem da existência de um outro ou uns outros: Portugal precisa de Espanha para se distinguir na Península Ibérica, e da

Europa para asseverar sua portugalidade e iberidade; América Latina necessita da

América do Norte para afirmar sua “Latinamericanidade”, e sem América Espanhola a brasilidade seria uma idéia vaga. A nação como um ente integral assim como seus componentes que fazem parte desta Gestalt nacional são contingentes numa rede de elementos forasteiros, sem os quais até não valeria a pena a existência do nacional. A alteridade não é só inevitável na constituição da propriedade (mesmo Policarpo

Quaresmo tem o hábito de comprar “sempre o pão da padaria francesa”, e plantar a batata inglesa em Sossego), como também imprescindível 1.

Ademais, o que essencialmente distingue o “nacional” entre os “não-nacionais” é

215 216 mais o modo sui generis de produzir do que o que foi produzido. Por outras palavras,

é por sustentar um mecanismo de se regenerar duma maneira original em vez de agarrar-se aos costumes arcaicos ou isolar-se do exterior que se mantém a nacionalidade. Hoje em dia, perante a progressiva globalização, o conflito entre o nacional e o não-nacional também se encarna no relacionamento entre o local e o global. Michael Hardt e Antonio Negri observam convincentemente:

[T]he problem rests on a false dichotomy between the global and the local, assuming that the global entails homogenization and undifferentiated identity whereas the local preserves heterogeneity and difference. Often implicit in such arguments is the assumption that the differences of the local are in some sense natural, or at least that their origin remains beyond question. Local differences preexist the present scene and must be defended or protected against the intrusion of globalization. (…) This view can easily devolve into a kind of primordialism that fixes and romanticizes social relations and identities. What needs to be addressed, instead, is precisely the production of locality , that is, the social machines that create and recreate the identities and differences that are understood as the local. The differences of locality are neither preexisting nor natural but rather effects of a regime of production. Globality similarly should not be understood in terms of cultural, political, or economic homogenization . Globalization, like localization, should be understood instead as a regime of the production of identity and difference, or really of homogenization and heterogenization. 2

Antes do movimento modernista, a ansiedade de procurar uma cultura puramente nacional revela a incapacidade da cultura brasileira de então de incorporar elementos não-nacionais. É por causa dessa incapacidade de digerir e absorver influência estrangeira que o país oscila constantemente entre o ufanismo e o mimetismo, porque só depois de adquirir uma capacidade de assimilar, transformar e utilizar fontes forasteiras, a cultura nacional poderá transcender o seu provincialismo

217 e libertar-se tanto da xenofobia como da xenofilia, atingindo sua independência verdadeira. E a superação de freios auto-impostos pela cultura autóctone ajuda-a a ganhar um horizonte e uma significação comsmopolitas. Cultural e politicamente, tal objetivo é respectivamente almejado pelo Manifesto Antropófago , de Oswald de

Andrade, que visa assimilar méritos alheios para o uso brasileiro, e pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, que pretende industrializar e modernizar o Brasil sob o controlo do homem cordial.

Pelo mesmo raciocínio, no Portugal salazarista a teimosia de manter a identidade nacional ao modo do passado mostra a incompetência para atualizar e determinar o devir do país na presente realidade. Na opinião de Daniel Melo, mesmo por causa dessa incompetência, “o regime (...) teve dificuldade em conceber as práticas sócio-culturais fora do seu esquema ideológico” e, portanto, precisa de impor

“maior vigilância e selectividade na composição dos acervos bibliográficos das bibliotecas oficiais”. A identidade nacional não é meramente um objeto estático, inflexível ou permanente, e o que para manter não é a forma da portugalidade e do espírito nacional, mas a essência e a substância de ser, de primar e de regenerar. Nas palavras de Machado de Assis “O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.” 3 Sem esse sentimento íntimo com seu tempo e conjuntura, nem cultura nem política podem prosperar, senão sobreviver.

Por fim, no contexto estadonovista que é política e culturalmente particular na história, a questão da identidade nacional constitui uma problemática complexa e ao

218 mesmo tempo um cabedal patrimonial rico para as duas nações lusófonas. Quer imaginada quer sentida, quer artificial quer natural, ela é uma Gestalt que se cristaliza a partir da mescla de elementos étno-culturais e sócio-políticos que são heterogeneamente afins. Esses diversos elementos em conjunto, como as ruas que convergem na praça à romana, formam um símbolo de comunidade nacional onde cada um é associado a outros de certo modo e de certa maneira. Os indivíduos nacionais assim podem celebrar, comemorar e fantasiar a sua unidade e solidariedade como uma nação em vez dum ajuntamento de fulanos, compartilhando assim um passado comum ex post facto, um presente real ipso facto , assim como um futuro porvir. Na sua praça identitária à romana, que é tanto o ponto final de convergência como o ponto inicial de divergência, ecoa a antiga canção espartana: “Somos o que vocês foram; seremos o que vocês são”.

219

Notas:

1 Interessantemente, é através de apoio estrangeiro (especialmente da frota estadunidense) que o governo Floriano conseguiu reprimir a revolta naval, consolidando assim o novo regime brasileiro.

2 Michael Hardt and Antonio Negri. Empire. Cambridge: Harvard University Press. 2001. p.45.

3 Machado de Assis. “J.M. Notícia da Atual Literatura Brasileira - Instinto de Aacionalidade”, Obras Completas, v. 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. p.804.

BIBLIOGRAFIA

ABELHO, Azinhal. Confidências de um Rapaz Provinciano . Lisboa, s.ed., 1935.

ALENCAR, José de. Iracema: lenda do Ceará . São Paulo: Editora Ática, 1990.

ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: reflections on the origin and spread of nationalism , Verso, 2006.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Passeios na ilha , Organização Simões, 1952.

ANDRADE, Mário de. “Modernismo” in O Empalhador de Passarinho , Livraria Martins Editora, 1972. , Macunaíma: o herói sem nenhum caráter . São Paulo: Martins, 1978.

ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. , Marco Zero II , São Paulo: Globo, 1991.

AMARAL, Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional , Editora Universidade Brasília, 1981. , Renovação Nacional . Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1936.

AMEAL, João. Panorama do Nacionalismo Português , Lisboa: Aparições, 1932. , Construção do Novo Estado . Livraria Tavares Martins-Porto, 1938.

ALMEIDA, Angela Mendes de, et al(org.). De sertões, desertos e espaços incivilizados ., Mauad : Faperj, 2001.

ALMEIDA, António Ramos de. “Notas para o neo-realismo” in O Diabo , Nº. 320, Lisboa, 1940.

ALMEIDA, Onésimo T. “Em Busca de Clarificação do Conceito de Identidade Cultural” in Actas do Congresso, I Centenário da Autonomia dos Açores, Vol.2, A Autonomia no Plano sócio-Cultural, Ponta Delgada: Jornal de Cultura, 1995. ______, “Values and Ideology in the School Curriculum”, Culture Education and Community. Proceedings of the Second National Portuguese Conference (Cambridge,Mass.: NADC, 1978), pp. 32-49 ______, Mensagem–Uma Tentativa de Reinterpretação, Angra do Heroísmo: SREC,1987 ______, National Identity - a Revisitation of the Portuguese Debate . Maynooth, Ireland: National University, 2002 221

ALVES, Maria Manuela da. As Casas do Povo como Instituições Reveladoras da Mundividência do Regime Salazarista , Tese de Mestrado em História das Instituições e Cultura Moderna e Contemporânea, Universidade do Minho, 1998. 220

ASSIS, Machado de. “J.M. Notícia da Atual Literatura Brasileira - Instinto de Aacionalidade”, Obras Completas, v. 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma (16ª ed.), Editora Atica, 1998.

BASTOS, Elide Rugai, et al (orgs.). Intelectuais: sociedade e política . Editora Cortez. 2003.

BHABHA, Homi K. (ed.). Nation and Narration . Routledge. 1995.

BLOOM, William. Personal Identity, National Identity and International Relations . Cambridge: Cambridge University Press. 1993.

BOMENY, Helena Bomeny (org.). Constelação Capanema : intelectuais e políticas . Editora FGV : Universidade São Francisco, 2001.

BRITO, Mário da. “A Revolução Modernista”, in Afrânio Coutinho (dir.), A Literatura no Brasil , 3 vols., rio de Janeiro, sul-Americana/S.José, 1955-1959, vol. III.

BURNS, Bradford. A History of Brazil (3 rd Edition), Columbia University Press, 1993.

CALDEIRA, Arlindo. M. “O poder e a memória nacional. Heróis e vilõees na mitologia salazarista”, Penélope , Nº. 15, 1995.

CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico . Rio de Janeiro, José Olympio, 1940.

CARONE, Edgar. O Estado Novo . Difel, 1976.

CARVALHO, Joaquim Barradas. O Obscurantismo Salazarista . Seara Nova. 1974.

CARVALHO, Joaquim de. Compleição do Patriotismo Português . Coimbra: Atlântida. 1953.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República Que Não Foi (3ª.edª) . Companhia das Letras, 2005.

CASIMIRO, Augusto. A Vida Continua.... Lisboa: Livraria Editora. 1942.

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular do Brasil , 2ªed, Editora Brasiliense, 1987.

222

CODATO, Adriano Nervo et al. “Os autores e suas idéias: um estudo sobre a elite intelectual e o discurso político do Estado Novo”. www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/356.pdf

COSTA, Castro. “Conceito de Democracia no Estado Nacional”, Cultura Política , Nº.32.

COUTINHO, Afrânio (dir.). A Literatura no Brasil (3ª ed.), José Olympio, 1986.

CUCHE, Denys. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. (2ªed). Tradução Viviane Ribeiro. EDUSC. 2002.

DACOSTA, Fernando. “Almada e Dantas a Nu” publicado em Público (4/4/93).

DELGADO, Humberto. 28 de Maio (peça em 3 actos radiodifundida em 28 de Maio de 1939 pelo Rádio Club Português – Parede – Portugal), Casa Portuguesa. 1939.

DERRICK, Michael. The Portugal of Salazar, Campion Books, 1939.

DUARTE, Paulo. Prisão, exílio luta , Rio de Janeiro, Zelio Valverde, 1946.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder – Formação do patrononato político brasileiro , 2 vols. 2ª ed. Porto Alegre, Globo, 1977, vol.2.

FERREIRA, Ana Paula. Alves Redol e o Neo-Realismo Português , Lisboa: Caminho, 1982.

FERRO, António. Prémios Literários (1934-1947) . Lisboa: Edições SNI. 1950.

FIALHO, Irene. Popular e Popularizante nos Manuais Escolares do Estado Novo , Tese de Mestrado em Literaturas Comparadas, Universidade Nova de Lisboa, 1993.

FIGUEIREDO, Paulo Augusto Figueiredo, “O Estado Nacional”, Cultura Política , Nº 20.

FONSECA, Manuel da Fonseca. Cerromaior , Lisboa: Forja, 1976.

Frantz Fanon, The Wretched of the Earth , New York: Grove Press, 1961.

FREIRE, Paulo. Conscientização . São Paulo, Moraes, 1980.

FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista de 1926 , Edições Região 1952. , Sobrados e mucambos , 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961. , Casa-grande e Senzala , Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

223

GARCIA, Nelson. Estado Novo: Ideologia e Propaganda Política , São Paulo: Edições Loyola, 1980.

GOMES, Angela Maria de. História e Historiadores . Rio de Janeiro, FGV, 1996.

GROSHENS, Marie-Claude. “Production d'identité et memoire collective” In : Pierre Tap (org.), Sciences de l'Homme, 1986.

HOBSBAWM, Eric. Nations and Nationalism since 1780:Programme, myth, reality (2nd ed), Cambridge University Press, 1992.

HARDT, Michael Hardt, et al. Empire, Harvard University Press, 2001.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil (26ª ed.), Companhia das Letras, 2003.

HUME, David. A Treatise of Human Nature , Longmans Green, 1909.

KANT, Immanuel. Critique of Pure Reason , New York: St.Martin’s Press, 1987.

KUJAWSKI, Gilberto de. Idéia do Brasil: A Arquitetura Imperfeita , São Paulo: Senac Editora, 2001.

LAHUERTA, Milton. “Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In: De Lourenzo, Helena Carvalho & Costa, Wilma Peres da (orgs.). A década de 20 e as origens do Brasil modeno . São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1997.

LOEWENSTEIN, Karl Loewenstein. Brazil under Vargas , The Macmillan Company, 1942.

LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade: psicanálise mítica do destino português (1ºed.) , Lisboa: Gradiva, 2000.

LOWENTHAL, David. The Past is a Foreign Country . Cambridge: Cambridge University Press. 1985.

LUKÁCS, Gyorgy. Consciência de classe. Extraído de Histoire et Conscience de Classe . Éditions de Minuit, Paris, 1960.

MACEDO, A. A.Ferrira de. A Educação do Povo . Seara Nova. 1945.

MARGALIT, Avishai. The Ethics of Memory , Cambridge: Harvard University Press, 2002.

MARTINS, Luciano. “A gênese de uma intelligentsia ; os intelectuais e a política no Brasil: 1920 a 1940” In: Revista Brasileira de Ciências Sociais . São Paulo: ANPOCS, nº

224

4, v. 2, jul./1987.

MATOS, Sérgio Campos. História, Mitologia, Imaginário Nacional: A História no Curso dos Liceus (1895-1939) . Livros Horizonte.

MELO, João de. Autópsia de um Mar de Ruínas (4ªed.), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.

MICELI, Sérgio. Intelectuais à Brasileira . Companhia das Letras, 2001.

MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira , Vol III, cultrix, 2001.

MÓNICA, Maria Filomena. Educação e Sociedade no Portugal de Salazar . Lisboa, Editorial Presença/G.I.S, 1978.

MONTEIRO, Adolfo Casais. Considerações Pessoais , Imprensa da Universidade Coimbra. 1933.

, Sempre e Sem Fim. Edições “Presença” 1937.

, Considerações Pessoais . Imprensa da Universidade Coimbra. 1933. , Canto da Nossa Agonia . Edições, 1944.

MORAIS, Rubens Borba. “Domingo dos Séculos”, In: Candeia Azul, 1924.

NAIRN, Tom. The Break-up of Britan . London: New Left Books, 1977.

NIETZSCHE, Friedrich.On the Genealogy of Morals, New York: Vintage Books, 1989.

OLIVEIRA, Carlos de. Casa na Duna , Lisboa : Livraria Sá da Costa Editora, 1977.

OLIVEIRA, Lúcia Lippi. “As raízes da ordem: os intelectuais, a cultura e o Estado”. In: A Revolução de 30. Seminário internacional . Brasília, UnB, 1982.

OLIVEIRA, Lúcia Lippi, et al (org.). Estado Novo: ideologia e poder . Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

PAOLI, Maria Celia. “Prefácio” in Cidadania e Exclusão : Brasil 1937-1945 (Adriano Luiz Duarte), Editora da UFSC, 1999.

PAULO, Heloísa. Estado Novo e Propaganda em Portugal e no Brasil. O SPN/SNI e o DIP . Coimbra: Livraria Minerva. 1994.

PAZ, Octavio. O Lavirinto da Solidão e Post-Scriptum , 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

225

PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil; entre o povo e a nação . São Paulo: Ática, 1990.

PEREIRA, António Maria. A Garça e a Serpente, Lisboa: Parceria 2ª.ed. 1945.

PESSOA, Fernando. Contra Salazar, António Apolinário Lourenço e Angelus Novus Editora, 2008

PICCHIO, Luciana Stegagno. História do Teatro Português , Lisboa: Portugália, 1969.

QUEIRÓS,Carlos. Desaparecida , Lisoba, Edição do Autor, 1935.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas , Rio de Janeiro: Record, 1977. , Angústia (11ª ed.), Martins, 1969.

REBELLO, Luiz-Francisco. O Ouro que Deus Dá (Primeiro Prémio do II Concurso de Teatro da Mocidade Portuguesa), Lisboa, 1944. , A Lição do Tempo (Teatro do Centro Universitário de Lisboa da Mocidade Portuguesa). Lisboa, 1943.

REDOL, Alves. Gaibéus (6ª.ed), Lisboa: Publicações Europa-América, 1977.

REGO, José Lins do. Riacho Doce , José Olympio, 1980.

REIS, Carlos. História Crítia da Literatura Portuguesa (Vol.IX). Editorial VERBO 1993.

RENAN, Ernst. “O que é uma nação?” In: Nacionalidade em Questão . Maria Helena Rouanet (org.). Cadernos da Pós / Letras. 1997.

RIBEIRO, Aquilino. O Homem que Matou o Diabo . Paris-Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand. , Lápides Partidas. Livraria Bertrand-Lisboa, 194-.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil (2ªed.) Companhia de Letras, 2004.

RIBEIRO, Hélcion. A Identidade do Brasileiro: “Capado, Sangrado” e Festeiro , Vozes, 1994.

ROCHA, João Cezar de. “ ‘Nenhum Brasil Existe’: Poesia como História Cultural”, in João Cezar de Castro Rocha (org.) Nenhum Brasil Existe, Topbooks, 2003.

226

RODRIGUES, Urbano Tavares. “Literatura contra o Fascismo e Subliteratura Fascista” in: O Fascismo em Portugal: Actas do Colóquio realizado na Faculdade de Letras de Lisboa em Março de 1980 , Lisboa:A Regra do Jogo, 1982.

SADRI, Ahmad. Max Weber’s Sociology of Intellectuals . Oxford University Press, 1992.

SANTIAGO, Silviano. Em Liberdade , Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

SALAZAR, António. DNP , Vol. II 2ªed., 1945.

SARAIVA, A. José Saraiva. “O Meu Afastamento”, In: Expresso , Lisboa, 22-5-1982.

SARAIVA, António José, et al. História da Literatura Portuguesa , 15ª ed., Porto Editora. 1989.

SCANTIMBURGO, João de. A crise da República Presidencial , São Paulo: Pioneira, 1969.

SHOEMAKER, Sydney. Self-Knowledge and Self-Identity , Cornell University Press, 1963.

SILVA, Augusto Santos Silva, et al (org.). Existe Uma Cultura Portuguesa? Edições Afrontamento, 1993.

SILVA, Hélio. 1937:todos os golpes se parecem , Civilização Brasileira, 1970.

SIMÕES, Gaspar. Crítica , Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1983.

SKIDMORE, Thomas. Brazil: Five Centuries of Change . Oxford University Press, 1999. , Brasil: de Getúlio a Castelo , 4ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

SMITH, Anthony D. National Identity. University of Nevada Press. 1993.

VALE, António.“Cinco notas sobre forma e conteúdo”, in Vértice , 131-132, 1954.

VALENTE, Luiz Fernando. “Pluridiscursividade e Dialogismo em Lima Barreto” in Colóquo | Letras número 120 Abril-Junho 1991. , “Oswald/Alencar: a antropofagia revisitada”, Atlântida , 35 (1990).

VARGAS, Getúlio. O governo trabalhista do Brasil , Rio de Janeiro: José Olímpio, 1952. , As Diretrizes da Nova Política do Brasil , José Olypmpio, 1943. , Discurso , In: Alfredo Pessoa . Cultura Política, nº18, 7-1-1938.

VIANNA, Oliveira. O idealismo da Constituição. São Paulo: Nacional, 1939.

227

WORMS, René. Les Principes Biologiques de L’Évolution Sociale , Paris, V. Giard & E. Briere, 1910.

ZORRO, António Maria. Honra de Ser Português . Colecção Educativa. 1928.

Fontes da Internet:

ABREU, Luciano Aronne de. “Estado Novo, realismo e autoritarismo político” http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/viewFile/7640/6995

Autor anónimo, “Grande Galeria – Relações Humans” http://200.150.149.165:9081/wps/wcm/connect/resources/file/eb778b00898e26f/6.GALE RIA%20RELAES%20HUMANAS.pdf?MOD=AJPERES

BLANCO, José. “A Verdade sobre a Mensagem” www. Portalpessoa.org

CORKILL, David, et al. “Commoration and Propaganda in Salazar's Portugal: The Portuguese World Exhibition of 1940”. http://www.e-space.mmu.ac.uk/e-space/handle/2173/14342

FILHO, Claudio Bertolli.“Sérgio Buarque e Cassiano Ricardo: Confrontos sobre a Cultura e o Estado Brasileiro” http://www.unicamp.br/siarq/sbh/Bertolli_C_F-SBH_Cassiano_Ricardo-Confrontos_Cult ura_Estado.pdf

PATTERSON, Orlando.“Continuity, Idenity and Causal Lines in Socio-Cultural Process”, www.hks.harvard.edu-inequality-seminar-papers-patterson.pdf

STRAWSON, Galen. http://www.believermag.com/issues/200303/?read=interview_strawson

Wikipedia. Http://en.wikipedia.org/wiki/A_priori_and_a_posteriori_(philosophy)#cite_note-0

Arquivos:

Arquivo de Oliveira Salazar (IANTT)

Arquivo de Estado Novo (IANTT)

Arquivo Gustavo Capanema, CPDOC-FGV

228