A Construção do Território:

Negras cartografias de uma cidade

A fim de melhor caracterizar o histórico da “Família Silva” no município de

Porto Alegre, cabe situar de uma forma mais ampla a trajetória dos espaços negros nesta cidade, assim como a dinâmica dos processos de expulsão a que foram submetidos. Se a expansão da urbe se deu de forma centrífuga, o mesmo também aconteceu com os territórios negros urbanos ao longo do século XX. A macro-tendência constatada para o século passado foi de que, à medida em que a cidade foi crescendo, os territórios negros180 - “cinturões de cor em torno da cidade que se aburguesava lentamente”181 - foram sendo empurrados para periferias cada vez mais distantes.

Como já afirmamos no capítulo introdutório, recente estudo demonstrou que abundavam na região central de , na segunda metade do século

XIX, territórios negros localizados nas ruas Fernando Machado e Demétrio

Ribeiro, e também em becos que lhe eram perpendiculares. Essas moradias e esconderijos eram descritas com termos pejorativos como “colméia de vagabundos”, “habitações inabitáveis”. Assim caracterizados, os locais onde os cativos “paravam” eram interpretados pelas autoridades como fonte de desordem,

180A noção de território negro se desdobra em duas partes: o de ocupação residencial e o de ocupação interacional. No primeiro predominam as relações de parentesco e vizinhança enquanto que no último estas relações podem até existir mas não são o que determinam a forma de apropriação do espaço. Enquanto que no meio rural os territórios negros são ao mesmo tempo lugar de residência e local de interações entre pessoas do mesmo grupo e demais pessoas seja através do trabalho ou do lazer, no meio urbano prevalece a ocupação interacional que não exclui a residencial (LEITE, 1990). 181 PESAVENTO (1995) p. 84 proibidos e combatidos182. Além dos escravos de Porto Alegre que nesses locais se estabeleciam, há que considerar também a presença na cidade de negros, fugidos e libertos, originários do interior e que ao longo do século XIX, em função da “lenta desagregação escravocrata”, rumavam ao “maior centro urbano do sul”183.

Gilmar Mascarenhas de Jesus refere-se da seguinte maneira à formação de núcleos habitacionais de negros na cidade:

“Ao longo do século XIX, observa-se, nas zonas pobres da cidade de Porto Alegre, a formação de pequenos núcleos habitacionais de predominância negra, bem como se constata a existência de regiões (as 'emboscadas') caracterizadas por abrigar temporariamente escravos fugitivos”. 184

Em sua dissertação de mestrado, Cláudia Mauch arrolou alguns dos principais locais que despertavam a preocupação de uma imprensa que se colocava como guardiã da moral da cidade nos primeiros anos do regime republicano185. Há uma relativa coincidência entre estes becos e ruas descritos como “zonas de desordem”, com a região assinalada por Paulo Moreira: principalmente ruas perpendiculares aos mais importantes logradouros da região central naquela ocasião. Conforme a autora, desde o período colonial a rua

Duque de Caxias e a Praça da Matriz, situadas no topo do promontório a partir do

182MOREIRA (2003) p. 54-65. 183PESAVENTO (2001) p. 31 184JESUS (1999). p. 149 185MAUCH (1992) p. 103

76 qual Porto Alegre se erigiu, constituiam um limite entre a parte nobre da cidade, rumo ao porto, e a Cidade Baixa, ao sul delas186.

Os jornais estudados por Mauch prescreviam uma ação política de

“saneamento moral” a fim de combater focos de desordem e imoralidade. Apesar da localização central dos becos, eles eram tratados como se fossem “um outro mundo encravado dentro da cidade civilizada”187. Um exemplo de medida tomada pela Intendência Municipal para submeter os cortiços da região central às condições de “higiene, segurança e estética” por ela julgadas adequadas foi o progressivo aumento de impostos municipais para a área central durante os anos

1890188, assim como estabelecer, no Código de posturas municipais de 1893,

“regras a serem observadas para construções na cidade”. De acordo com

Pesavento,

“Na defesa da regulamentação das construções, o conselheiro municipal Ramiro Barcelos argumentava em torno da proibição da moradia em prédios que não satisfizessem as condições de higiene: como se dá por exemplo com os inúmeros porões do Centro da cidade e que constituem também um dos focos de insalubridade.” 189

Na Cidade Baixa também existiam “locais mal-afamados”, dentre os quais a rua da República e a atual João Alfredo. Além destes, havia comunidades inteiras qualificadas como perigosas: era o caso do Areal da Baronesa, próximo às ruas listadas, e em direção ao sul, rumo ao , a Ilhota; e a Colônia

186MAUCH (1992) p. 80 187MAUCH (1992) p. 110-111 188Curiosamente, um dos jornais referidos como defensores do saneamento moral da cidade – a Gazetinha – tinha uma postura crítica em relação ao aumento de taxas. 189PESAVENTO (1994). p. 88

77 Africana, localizada no lugar atualmente denominado Rio Branco190. Ambos abrigavam população fundamentalmente negra, o que vem a confirmar o racismo impregnado na noção de “classes perigosas”, conforme lembrado por Mauch191.

Também Sandra Pesavento destaca, além dos becos, focos, lugares de enclave no interior da urbe, as citadas comunidades como lugares de alteridade, externos ao espaço central, e que o envolviam como um cinturão negro192. Vamos nos centrar, aqui, na segunda área citada, por sua maior proximidade geográfica com o grupo social por nós estudado. Porém, é importante lembrar que outra comunidade atualmente reconhecida como remanescente de quilombo – a que vive na travessa Luís Guaragna – guarda vínculos históricos com o Areal e a

Ilhota.

Gilmar Mascarenhas de Jesus, referindo-se a estudo de Mauch, observa que a cidade recorria amplamente ao trabalho negro, definindo, porém, restrições quanto aos lugares e momentos em que a sua presença seria admitida fora dos horários de trabalho. Na modernidade, “o elemento negro é indesejável, devendo, sempre que 'dispensado' do trabalho, refugiar-se em enclaves étnicos como o

Areal da Baronesa e a Ilhota”193.

A dissertação de mestrado de Eduardo Kersting versa sobre a Colônia

Africana. É pertinente no contexto deste laudo, apresentar algumas de suas principais idéias. Ali, propõe que a construção de um imaginário social sobre a região enquanto um antro de bandidos, “um lugar inquestionavelmente perigoso”

190 MAUCH (1992) Eduardo Kersting produziu uma dissertação de mestrado sobre a Colônia Africana, na qual ela é situada geograficamente tendo como limites aproximados a rua Ramiro Barcelos, a Rua Castro Alves, o Instituto Porto Alegre (IPA) e a Protásio Alves (Caminho do Meio). KERSTING (1998). p. 102 191MAUCH (1992) p. 141-142 192PESAVENTO (2001) p. 69-71 193JESUS (1999) p. 145

78 foi fundamental para a estigmatização de sua população, e posterior invisibilização da mesma. Esta invisibilização culminou na redefinição do nome do local para Rio Branco, na década de 1910194. O autor explicita algumas representações sobre os negros no imaginário coletivo, que teriam produzido tal estigmatização. A eles eram associadas as idéias de vício, ociosidade e crime, em sintonia com as teorias racistas da criminologia do século XIX195.

Seu trabalho demonstra que a Colônia Africana também era invisibilizada na medida em que lhe era negado o status de arraial. Formados em periferias da cidade durante a segunda metade do século XIX, os arraiais – Menino Deus,

Navegantes, por exemplo – eram tidos como zonas consideradas habitáveis na cidade, “verdadeiras cidadezinhas interioranas”196. A ausência da Colônia Africana nas fontes mais antigas dificulta estabelecer suas origens, problematizadas pelo autor. Rastreando os antigos proprietários de terras na região, Kersting coloca como uma hipótese bastante considerável que antigos escravos das famílias

Mostardeiro e Mariante tenham sido “despejados nas bordas menos valorizadas das propriedades de seus antigos donos”; “libertos pelos proprietários das terras daquela área ou adjacências”, “foram ficando nas partes menos cobiçadas daquelas antigas chácaras”. Ele agrega a esta hipótese, considerada “bastante provável”, outras “igualmente consideráveis”, e que nos parecem particularmente importantes:

“Uma possibilidade seria a de que a Colônia Africana foi abastecida por parte daquela população pobre que foi sendo

194KERSTING (1998) 195KERSTING (1998) p. 84-88 196KERSTING (1998) p. 103-105; 125; 149

79 expulsa do centro da cidade a partir da década de 1890, como foi reiterado na primeira parte do trabalho. As características da época, com as suas precárias condições de moradia, e decorrendo disso, sua baixa valorização na época, pode ter atraído as pessoas de pouca renda. Outra possibilidade é que, dada as características do local, com a sua espessa mata, ele tenha servido de abrigo para pessoas que, por variadas razões, encontravam-se colocadas à parte do modelo de sociedade urbana que se formava, marginalizadas pelas práticas pouco civilizadas que tinham de ganhar a vida.” 197

Assim, a Colônia Africana teria na sua formação não só a permanência de libertos da região, mas também o acolhimento de população expulsa de outras

áreas. Além disso, destaca-se na formação de territórios negros urbanos uma inserção desfavorável no emergente mercado de trabalho livre: associados a uma imagem de trabalhadores desclassificados, em uma sociedade que cada vez mais valorizava a mão-de-obra branca, tinham possibilidade de empregar-se em

“ocupações socialmente menos consideradas e, igualmente, menor remuneradas: os trabalhos braçais de pouca procura (carroceiros, cargueiros, pedreiros), os biscates em geral e a maioria dos serviços domésticos (cozinheiras, lavadeiras, criadas, etc.) Nas cidades, toda essa situação ocasionou a exclusão espacial da maioria da população negra, que foi sendo forçada, até pela própria lógica da modernidade urbana que se estabelecia, a viver nas áreas menos procuradas e, não raro, mais insalubres”198.

A restrição das possibilidades profissionais aqui descrita se repetiu em outros territórios negros urbanos posteriores à Colônia Africana. Décadas após o

197KERSTING (1998) p. 111-112. Grifos nossos. 198KERSTING (1998) p. 115.

80 imediato pós-abolição, encontramos as mesmas profissões entre os integrantes e os ancestrais da “Família Silva”. Alípio Marques dos Santos, avô materno do grupo, teve ao longo de sua vida diversas ocupações: pedreiro e jornaleiro, complementava a renda trabalhando como agricultor em suas terras. Naura

Borges da Silva e sua filha Anna Maria trabalhavam como criadas e lavadeiras.

Euclides José da Silva era ferreiro. Mesmo hoje as ocupações não diferem tanto daquele quadro. As mulheres da comunidade seguem se dedicando a trabalhos domésticos; e a maior parte dos homens trabalha no Country Club como caddies, sem, sequer, ter a carteira assinada; além desses, outros trabalham em residências e condomínios como vigias e jardineiros.

O autor também faz referências à religiosidade afro-brasileira na região e

às tentativas de combatê-la, paralelas ao processo de transformação da Colônia

Africana em “Rio Branco”. Essas transformações ocorriam no mesmo tempo em que “a comunidade negra subia o morro” nas primeiras décadas do século XX. A

Colônia Africana vinha sendo “urbanizada” e “descaracterizada como área essencialmente negra”, figurando em 1922 como um bairro “saneado”199. As investidas policiais mais constantes, a expansão da cidade, a privatização do solo e os aumentos de impostos são elencados como fatores que teriam levado a população negra a se refugiar em partes mais altas, levando à constituição do território negro do Mont Serrat200. O autor cita as seguintes fontes que lhe permitem pensar em uma ligação “quase umbilical” entre as transformações de um bairro e o surgimento de outro:

199KERSTING (1998) p. 195. 200KERSTING (1998) p. 180-199

81 “Atualmente [o Rio Branco] é um bairro moderno e urbanizado, mas ainda até bem pouco tempo era um lugar perigoso e infestado de desordeiros. (...) a região era domínio indiscutido da alta malandragem que vinha da bacia do Mont Serrat, do outro lado, e sitiava a praça para melhor farrear”201.

“O bairro Rio Branco, antes denominado Colônia Africana, habitado por gente da pior espécie, transformou-se completamente. Formou-se o bairro Mont Serrat, local que há poucos anos era mato”202.

No entanto, a expulsão para a região do Mont Serrat foi apenas um primeiro passo. “(...) deve-se responder (...) onde ficou a Colônia Africana: foi sendo expulsa para a periferia – da cidade e da história”203.

Antes de mais nada, é necessário esclarecer ao que estamos nos referindo quando se fala em “bacia do Mont Serrat”. Ao descrevê-la, Sanhudo remete aos bairros definidos em lei como Auxiliadora e Mont Serrat em 1959. Afirma que apesar desse nome ter batizado “a colina do além ”, ele se popularizou no que diz respeito à depressão ao norte da mesma, até a atual Rua

24 de outubro204. Esta “famigerada bacia” possuía, na descrição do cronista,

201SANHUDO apud KERSTING (1998) p. 199. Grifo nosso. Em momento oportuno será explicado o motivo do mesmo. 202COSTA apud KERSTING (1998) p. 200 203KERSTING (1998) p. 201 204SANHUDO (1975). p. 111-113. Apesar de publicado em 1975, Ary Veiga Sanhudo advertia em uma explicação inicial que aquelas crônicas tinham um “sabor antigo”, já que haviam sido escritas em 1960, simultaneamente àquelas publicadas no primeiro volume, em 1961. Encontramos outras fontes que nos permitem pensar em um Mont Serrat muito mais abrangente. No dia 9 de agosto de 1927 o jornal Diário de Notícias divulgava a ocorrência de um “Conflito no Monte Serrat”. Após desentendimentos em um baile na Anita Garibaldi, e perseguição pela região, Pedro Prates e Valencio Faustino de Oliveira agrediram-se mutuamente, com tiro e porrete. O local do entrevero foi a esquina da rua Dom Pedro II com a Estrada da Pedreira, atual Plínio Brasil Milano. O tom da notícia dá a entender que ali ainda era considerado Mont Serrat. MCSHJC – Diário de Notícias – 9/8/1927 p. 8. Por seu turno, em algumas transações imobiliárias referentes aos terrenos da Chácara Limongi, que se localiza no atual bairro Três Figueiras, os terrenos aparecem como pertencentes ao Mont Serrat – por vezes, também, como Petrópolis.

82 “grande número de modestas casinhas, atestando os seus humildes moradores”205. Note-se que o adjetivo – famigerado – por ele utilizado, que possivelmente era corrente entre os moradores da cidade, também estava presente nos discursos acerca da Colônia Africana206. Foram herdados pelo Mont

Serrat não apenas parte da população daquela localidade, mas também boa parcela dos estigmas a ela vinculados. Ao menos a leitura de diversos discursos produzidos acerca da região durante o século XX evidencia a semelhança com as representações moralistas e estigmatizantes e as práticas saneadoras tão bem discutidas pelos autores analisados. Para Sanhudo:

“Hoje, o lugar está modificado, mas, se bem considerarmos, vamos constatar que nem tanto assim! Ainda é o Mont Serrat das correrias e dos tipos pitorescos e desordeiros de todos os tempos. Uma época houve, no entanto, que visitar essa bacia era uma aventura! Aí era o lugar, famigerado e temido, onde o arruaceiro fazia de dia e pagava de noite! Quantas histórias tenebrosas saíram daí, umas inspiradas nas aperturas da baixa malandragem da cidade e outras bem mais alimentadas pelos esfuziantes valores da boa cachaça”207.

Em 1928, uma equipe de repórteres do Correio do Povo se dispôs a viver a aventura lembrada por Sanhudo, e a compartilharam com os leitores do jornal, em reportagem publicada no dia 27 de outubro. Além de uma bela caracterização de como deveria ser a bacia do Mont Serrat por aqueles anos, o texto evidencia as

Propomos como hipótese, feita a partir do cruzamento de diversas fontes, que o Mont Serrat aparece em duas acepções: ora em sentido restrito – a bacia; ora em um sentido mais amplo – abarcando lugares para além da baixada. 205SANHUDO (1975) p. 112 206PESAVENTO (2001). p. 87 207SANHUDO (1975) p. 111.

83 mesmas representações estigmatizantes de que viemos falando. Qualificações como “valhacouto misterioso de malfeitores e larápios” e “paraíso da gataria” se assemelham em muito com as descrições analisadas por Mauch e Kersting para os becos da zona central e para a Colônia Africana. A entrada dos repórteres na bacia, lembra novamente “outro mundo no interior da cidade civilizada”: antes de se sentirem capacitados para enfrentar “os mistérios da Bacia”, eles optam por entrevistar moradores do bairro208, que se queixam dos “gatunos” que ali habitavam. Diante da ausência de policiamento, afirmavam os mesmos:

“Nós somos a nossa polícia. E quando apanhamos um larápio, fazemos justiça pelas nossas próprias mãos e com a colaboração dos vizinhos. Por mais de uma vez já, surramos em plena rua audaciosos “gatos”.”

O repórter aplaude o episódio:

“- Deve ter sido um espetáculo curioso! - Uma beleza!” 209

A precariedade do bairro constantemente é lembrada, não apenas no que diz respeito ao policiamento, mas também ao “estado deplorável da estrada”, à luz, à água, ao recolhimento de lixo. Por esta razão o texto foi intitulado “Não é que falte alguma coisa no arrabalde de Monte Serrat, pois que lhe falta tudo !!”.

Os autores afirmam que ao “contrário do que muita gente supõe, ele é velho, pois há longos anos está habitado”. Contudo, seu desenvolvimento era recente.

208Deduzimos da leitura do texto que trata-se aqui do atual bairro Auxiliadora; um pouco ao norte da “Bacia”. 209AHPOA, Correio do Povo, 27/10/1928 p. 5.

84 Saudosos da festa da Penha, em devoção a Nossa Senhora da Auxiliadora, que há cinco anos não mais ocorria, afirmavam que a “capelinha” do bairro tinha raro e esparso funcionamento desde então. Partem, pois, para uma caracterização da

“Bacia”.

“Pois bem, aquela baixada ali, conhecida por bacia do Mont Serrat é habilitada por gente pobre. Mas os “gatos” de toda essa zona da cidade – 3o e 4o distritos – ali armaram tenda e instalaram o seu quartel-general... (...) De posse de tais informações, fomos até a “Bacia”, que é um vale extenso muito povoado e cujas construções são pequenas casas de madeira. (...) Ali chegados verificamos que a Bacia faz vida autônoma. Embora humilde, tem o seu comércio. Porcos e cabritos nas ruas.” 210

Tentando travar contato com moradores do local que poderiam lhe servir de informantes, os repórteres não foram muito bem sucedidos. Aqueles com quem tentou estabelecer contato não foram muito receptivos. É o caso de alguém que se intitulava médico, que indagado sobre a presença de “gatos” na Bacia do Mont

Serrat, traz uma versão um pouco diferente sobre o dito “paraíso da gataria”:

“Pois sim que “gato” se deixa ver! Gente misteriosa... De certo trabalham de noite e de dia dormem... Agora: eu ouvi dizer que há aqui muito ladrão de auto. Mas não sei de nada. Não conheço. As pessoas que eu conheço aqui – tudo gente direita. Pobres, mas honrados. Vivem do seu trabalho”.211

210AHPOA, Correio do Povo, 27/10/1928 p. 5. Grifos nossos. É possível que os animais destacados fossem dedicados aos rituais das religiões afro-brasileiras, já que, como veremos, o texto destaca a presença desta religiosidade na “Bacia” e até muito recentemente funcionava uma casa de religião no bairro. Conforme Reginaldo Gil Braga, no batuque, tal como é praticado contemporaneamente no Rio Grande do Sul, o porco é um animal dedicado a Odé e Otim, e cabras e bodes são ofertados a diversos orixás, de acordo com sua cor (cabras para Oiá, Obá, Oxum e Oxalá; bodes para o Bará, Ogum, Ossanha e Xapanã). PRANDI, (1998) 211AHPOA, Correio do Povo, 27/10/1928 p. 5.

85 Outro “informante”, um “rapagão”, informou a eles sobre a existência de batuques, embora tenha se recusado a falar mais por temer represálias de natureza místico-religiosas.

“- Mas o que é barbaridade aqui são os batuques! Virge! - Muitos? - Uma porção. Eu não gosto de falar porque os batuqueiros fazem “moamba” e botam um azar na gente...” 212

Assim como determinados moradores tinham medo de “moambas” que

“botavam um azar”, outros tantos se assustavam e hostilizavam a presença de uma senhora que residia nas imediações da rua Mariland. Os repórteres foram levados para visitá-la por pessoas que queriam que o jornal denunciasse o incômodo por ela causada à vizinhança. Praxedes, esse era o seu nome, morava próxima ao fim da linha dos Moinhos de Vento. O seu lar era assim descrito:

“E levou-nos ver uma casa de madeira que ainda não veio abaixo graças a duas estacas – escoras ali postas por mão piedosa. À porta da casinha, encolhida, a cabeça coberta por um pano, uma preta velha tomava um banho de sol. No chão, imundo, zumbiam os moscardos verdes e azuis das podridões. Pela porta aberta pudemos ver o interior da casa. Indescritível de imundície. Um cheiro horrível empestava o ambiente.” 213

A entrevista que realizaram (ou tentaram realizar) com Praxedes nos informa que ela tinha mais de sessenta anos (os jornalistas acreditavam ser

212AHPOA, Correio do Povo, 27/10/1928 p. 5. 213AHPOA, Correio do Povo, 27/10/1928 p. 5.

86 nonagenária) e originária de Alegrete, onde foi “criada por gente muito boa. Gente branca e da qualidade do senhor.” Ela era, provavelmente, da primeira geração de libertos ou, quem sabe, viveu ainda em parte do período escravista. Em ambas possibilidades, teve vínculos de dependência com “gente muito boa”, e posteriormente veio se estabelecer na cidade, onde levava existência miserável.

Longe de ser um caso isolado, essa situação se repetiu ao longo do tempo. Já aludimos ao poder de atração desempenhado pelas grandes cidades para libertos214. Essa situação se repetiria, em outro caso que em seguida examinaremos – o de Percília – e também é possível traçar um paralelo com o vivido pelos ancestrais da “Família Silva” – apesar dessa vinda ter se dado um pouco mais de uma década após a visita do Correio do Povo à “casinha” de

Praxedes.

Os momentos seguintes da entrevista são esclarecedores a respeito das dificuldades de convívio ou de compreensão da alteridade entre a sociedade

“branca” (representada pelos moradores da Mariland da parte exterior à “Bacia” - corresponderia ao atual bairro Auxiliadora, ou mesmo pelos repórteres) e a população da “Bacia”, representada por Praxedes. A presença da “preta velha” era indesejada justamente por se localizar em uma esquina limítrofe entre esses dois espaços. Ela narrava:

“- E depois não se pode dormir. Toda a noite atiram pedras em minha casa. São esses vizinhos, que não gostam de mim. Já botaram aqui o diabo. Ele está aqui dentro. No chão. É um

214“Além de tudo, a cidade se convertia no principal centro de atração para libertos, num momento de transição da escravidão para o assalariamento”. PESAVENTO (1999). p. 264.

87 diabinho pequeno. Mas incomoda. Às vezes vem pra fora. Olhe: agora está ali ele, no chão... E apontava para determinado lugar do solo. - Ah! meu branco! Tem muita gente “marvada” neste mundo. Todo dia e toda noite me atiram pedras. E depois, não sei o que é. Todas as noites as portas batem, vivem batendo...”215

Praxedes era vítima, pois, de agressões físicas e simbólicas. Mesmo em meio à entrevista que protagonizava, o diabinho que acreditava assolá-la

(entendido como enviado pelos vizinhos) fez-se presente. Provavelmente assustados perante aquela manifestação, os repórteres decidiram abandonar o

“local desagradável”. Enquanto se afastavam, após caminhar cinqüenta passos, ouviram “grande berreiro”. Era Praxedes, sacudindo uma vara e cortando “ o ar com impropérios e palavrões obscenos”. Comprometidos com os vizinhos de

Praxedes a pedir através do jornal providências em relação aos “vexames que as famílias da vizinhança tem de passar diariamente”, os repórteres davam o veredito: “E têm razão. Aquele quadro deve ser removido dali.”216

Aquele quadro foi removido dali. Não, imediatamente, naquele momento, mas hoje a “Bacia do Mont Serrat” não se assemelha ao território negro de outrora. A política “saneadora” mais uma vez acabou por prevalecer. Poderíamos propor a hipótese de que, mais do que uma característica específica do momento de reorganização espacial do Centro da cidade em fins do século XIX, ou da lenta invisibilização e transformação da Colônia Africana nas primeiras décadas do século XX, a mesma era um processo de longa duração, que envolveu diversas outras comunidades ao longo do século. Claro que cada uma delas viveu um

215AHPOA, Correio do Povo, 27/10/1928 p. 5. 216AHPOA, Correio do Povo, 27/10/1928 p. 5.

88 processo específico, com nuances e características próprias. No entanto, a fúria saneadora da cidade sempre se fez presente.

Na já citada crônica, Sanhudo apontava que nos anos 60 a “Bacia” já não era a mesma (muito embora em seguida se corrija – “nem tanto assim”). O Mont

Serrat de hoje abriga territorialidades distintas. Edifícios e condomínios de luxo predominam nas partes mais altas. Além destes, há prédios de classe média alta, o comércio voltado a abastecer essas residências, supermercados, postos de gasolina, por vezes restaurantes e bares pelo bairro. No entanto, a “modernidade urbana” não conseguiu apagar de todo as raízes negras daquela zona:

“Atualmente, o Mont Serrat, bem como os arredores que compunham a Colônia Africana, é um misto de populações divididas entre carros importados e casas velhas de madeira, comidas por cupins. Entre os negros que resistiram à selvageria dos interesses imobiliários encontra-se Mãe Laudelina do Bará, 81 anos, dos quais 53 como Mãe de Santo, cultuando a tradição que em Porto Alegre é conhecida como lado de oió.”217

Ao realizar seu estudo sobre a cosmovisão e a socialidade batuqueiras em

Porto Alegre, cuja observação de campo foi efetuada na casa de mãe Laudelina do Bará, situada próxima a um grande cruzamento do Mont Serrat, a antropóloga

Jacqueline Pólvora traz contribuições bastante importantes. Esse território surge como um lugar de reunião “para consolidar seus laços afetivos e religiosos”.

Assim, mesmo para aqueles que não conseguiram resistir à especulação imobiliária, o bairro surge como local simbolicamente relevante para a espacialidade negra:

217PÓLVORA (1996) p. 164

89 “O Mont Serrat também passa a ser território importante para os batuqueiros quando estes se referem ao bairro como lugar de batuqueiro forte, uma menção às antigas casas de Religião que por lá existiram. A própria família de Santo de Mãe Laudelina do Bará (sua Mãe e avó de Santo) foram moradores do Mont Serrat”218

Assim, os territórios são compostos não apenas pela continuidade de sua ocupação no tempo (as “casas velhas de madeira, comidas por cupins” que lograram resistir às formas de pressão para que dali se retirassem), mas também pela continuidade de um espaço mítico neles contido. O Bará “assentado” na encruzilhada próxima à casa de Mãe Laudelina é um exemplo219.

No entanto, vamos aqui direcionar nosso olhar para outro território negro urbano, que nos parece estar relacionado mais diretamente à “Família Silva”.

Referimo-nos a Petrópolis. No livro “Memória dos Bairros – Petrópolis”, seus autores estabelecem uma relação entre a Colônia Africana e uma região da Bela

Vista chamada de “Chácara” - a atual praça da Encol220 e seu entorno.

Caracterizado o processo de diáspora dos negros do atual bairro Rio Branco – aqui associado ao “crescimento populacional de Porto Alegre, na década de 1920, incrementado pelas correntes migratórias européias pós Primeira Guerra Mundial”, se explica o surgimento da dita “Chácara” bem como da parte baixa do bairro

Petrópolis221. Essa última é assim descrita:

218PÓLVORA (1996) p. 165. Grifos originais. 219PÓLVORA (1996) p. 169. 220Nome pelo qual é popularmente conhecida a praça Carlos Simão Arnt. 221QUEVEDO e RIOS (2002). p. 112

90 “os moradores da parte baixa do Petrópolis – Av. Lavras, Alegrete, Ijuí e Bagé – formavam uma comunidade também humilde, cuja maioria era constituída por descendentes de africanos, entendendo-se até, que muitos chegaram ali vindos da Colônia Africana de onde tiveram de se retirar. Esse fato justifica e esclarece o porquê dessa parte da comunidade de Petrópolis se identificar mais com os moradores da Chácara e vice-versa. Ou seja, havia identificação e afinidades culturais e religiosas entre ambas”222

Quando o texto fala em diferenças religiosas, refere-se “às muitas casas de religião” que se instalaram no bairro Petrópolis. As autoras fazem uma contraposição entre os “tambores e atabaques” da parte baixa do bairro e o catolicismo da parte alta223.

Cabe fazer algumas observações, tendo em mãos um mapa da cidade de

Porto Alegre. Acreditamos ser possível falar na “Chácara” e na parte baixa de

Petrópolis como um mesmo território negro. A espacialidade das relações sociais nunca obedeceram aos limites administrativos de bairros, sobretudo em um período no qual tais limites inexistiam224. Observando um mapa, ou mesmo caminhando pela região, perceberemos sua proximidade.

Além disso, se atentarmos para a geografia de Porto Alegre, constataremos que os territórios negros aqui descritos – Colônia Africana, bacia do Mont Serrat,

Petrópolis / Chácara – encontravam-se separados entre si por um grande morro, que inicia no Rio Branco na altura do IPA (Instituto Porto Alegre)225, justamente um limite da Colônia Africana. Quando Sanhudo observava que negros do Mont

222QUEVEDO e RIOS (2002) p. 113 223QUEVEDO e RIOS (2002) p. 113 224As Avenidas Nilo Peçanha e Nilópolis só foram definidas como limites entre Petrópolis e Bela Vista em 1959. FRANCO (1988) 225O IPA – à época de sua inauguração, Porto Alegre College – foi fundado no ano de 1923 no alto de uma colina à qual só se tinha acesso através da rua Casemiro de Abreu. MCSHJC – Diário de Notícias, 11/9/1927

91 Serrat vinham “do outro lado” para farrear, certamente se referia ao morro. Desta maneira, podemos concluir que o acidente geográfico não deveria representar impeditivo às redes de trânsito e sociabilidade dos mesmos. Sendo assim, são prováveis os fluxos do Mont Serrat e de Petrópolis entre si.

Dentre os entrevistados cujas falas estão registradas no supracitado livro, são constantes as referências à rua Bagé como divisória entre uma parte do bairro reconhecida como pobre, negra (em direção ao morro, à Chácara e à Bela Vista); e outra parcela (em direção à Avenida Protásio Alves, e para cima desta) considerada de superior poder aquisitivo, de uma classe média mais abastada226.

Um depoimento publicado parece particularmente interessante. Um entrevistado enfatiza a discriminação presente na distinção corrente entre a

“África da pobreza” e a “África da riqueza”, respectivamente, a parte baixa e alta do bairro. Gostaríamos de propor a seguinte interpretação para esta fala: a distinção jogava com a polissemia da palavra “África”. A pobreza era vinculada à palavra “África” – continente de origem de um povo e símbolo de negritude. A associação assim realizada, naturalizava uma relação de causa e efeito, tomada como auto-explicativa e auto-justificativa. Eram negros por serem pobres, eram pobres por serem negros. Por outro lado, a “África” da riqueza remete ao sentido da palavra como feito, façanha, proeza. Dá a entender, portanto, que os ricos assim o eram por seus próprios feitos, façanhas, proezas. A alguns, liberalismo e meritocracia; a outros, racismo227.

226QUEVEDO e RIOS (2002) p. 114-117. 227“... é fácil verificar que a “linha de classe” nas condições de existência urbana, fortalece-se sem eliminar, porém, a “linha étnica”. Esta persiste cortando as categorias ocupacionais, as vizinhanças, quando não o próprio companheirismo.” OLIVEIRA (1976) p. .65.

92 Alguns entrevistados justificaram uma maior pobreza e precariedade de condições na parte mais baixa de Petrópolis pela sua proximidade com a

“Chácara”. Ela foi entendida por vezes a partir da categoria “vila”: “era uma vila de bom tamanho. Ela começava aqui no início da Nilópolis e ia até a Embratel e fechava na Carlos Trein, ela ia até lá em cima do Mont Serrat”228.

A fala de um ex-morador da Chacrinha – um olhar de dentro, portanto – destoa das demais, na medida em que ele atribui positividade àquele local, em contraposição ao individualismo associado à vida nos edifícios:

“O pessoal ali era unido, era tudo uma coisa só. (...) Todo mundo brincava, jogava e sambava junto (...) depois começou a vir esses edifícios, (...) não é como a gente, que foi criado junto, agora é mais edifício, já não se conhece o vizinho. (...) Aqui era tudo uma coisa só para nós, não tinha nada de vila, só tinha o nome de vila Chacrinha, mas tudo era uma coisa só para nós (...) era tudo meio parente”. 229

Outra fala também dá ênfase à solidariedade de grupo que ali havia.

“Ali, as famílias que viviam eram todas irmanadas, tanto que uma vez, eu faço aniversário em primeiro de julho, e eu fiz uma festa e o pessoal se entusiasmou e saiu para rua, tipo escola de samba, e uma camionete da Zero Hora passou na hora e estampou no outro dia: 'Carnaval de inverno em plena Avenida Ijuí'.”230

Essas relações solidárias, contudo, não eram apenas internas à comunidade negra das ruas Lavras, Alegrete, Ijuí e Bagé – ou outras próximas

228Depoimento de Ari Martins Júnior reproduzido em QUEVEDO e RIOS (2002) p. 114 Essa foi a única referência que encontramos a uma continuidade territorial entre Petrópolis e Mont Serrat. 229Depoimento de Antônio Custódio da Rosa reproduzido em QUEVEDO e RIOS (2002) p. 115 230Depoimento de Paulo Lara de Oliveira reproduzido em QUEVEDO e RIOS (2002)p. 115

93 delas. A “Família Silva”, estabelecida no atual bairro Três Figueiras em princípios da década de 1940, tinha relações comunitárias com o aludido território negro.

Novamente o mapa da cidade, ou uma caminhada por ela, nos será útil. Seja pela

Nilo Peçanha, seja pela Carlos Gomes, o território da comunidade estudada não dista da parte baixa de Petrópolis. Vale lembrar que a avenida Pirapó, paralela à

Bagé, é a continuação da João Caetano. Uma filha do casal Anna Maria e

Euclides era afilhada de uma habitante da região em questão231. Desta forma, ambos territórios estavam unidos por relações de compadrio / apadrinhamento.

Além disso, João Brito Soares, filho de criação da avó dos Silva, recorda de vender verduras produzidas no seu terreno naquele bairro, que estava inscrito nas redes de sociabilidade:

“Sete, oito horas da manhã eu saia com dois balaios de verduras para vender em Petrópolis, que tinha uma meia dúzia de casas, mas eu vendia”232.

Ao fundo, à direita, a Avenida Carlos Gomes, e, do outro lado, morro e mato. Ao fundo, a esquerda, as casas mais pobres da parte baixa de Petrópolis. Na transversal, com palmeiras, a Avenida Protásio Alves. Foto de Léo Guerreiro e Pedro Flores em 1955. Foto 1024f Fototeca Sioma Breitman – Museu Joaquim José Felizardo

231Lígia Maria da Silva tem como madrinha de crisma uma moradora da Rua Bagé. 232Entrevista realizada com João Brito Soares no dia 05 de junho de 2004.

94 Se não podemos inferir uma ligação genealógica, genética, direta entre a

“Família Silva” e a Colônia Africana – são os desterrados de São Francisco de

Paula e Cachoeira do Sul que estão na gênese da comunidade alvo deste estudo

– são perceptíveis, porém, ligações mais sutis e mais profundas. A história de ambas – e de Mont Serrat, e de Petrópolis – estão inseridas em uma dinâmica mais ampla no que diz respeito aos territórios negros de Porto Alegre: uma história de deslocamentos e solidariedades, de expulsões e de resistência. Nesse sentido, indubitavelmente a “Família Silva” é um território de resistência, uma vez que logrou permanecer em suas terras ao longo do século XX, quando as famílias negras residentes em zonas mais próximas à região central foram sendo progressivamente removidas para locais mais distantes.

Durante o início da década de 1950, os administradores municipais e intelectuais porto-alegrenses começaram a preocupar-se com o elevado crescimento populacional da cidade, particularmente com o fenômeno então denominado de “vilas de malocas”. Tratavam-se de moradias populares, pauperizadas, espalhadas por diversas regiões da cidade. A um relatório apresentado pelo Prefeito Ildo Meneghetti à Câmara Municipal em 1952, foi anexado um estudo realizado por um engenheiro, pelo responsável pela limpeza pública, por um comerciante que era vice-presidente da LBA, por um jornalista e delegado, por um urbanista, por outro jornalista, e, finalmente, pelo responsável pela Habitação Popular na Prefeitura. A expansão das malocas, neste relatório, era associada ao êxodo rural – à miséria vivida no campo e à atração exercida

95 pela urbe. Em outro trecho, os analistas relacionaram a geografia da cidade com a localização preferencial das vilas de malocas, e com seu rápido crescimento.

“Porto Alegre é uma cidade que cresceu pelos vales. Ela é como que uma grande mão, com o punho apoiado numa curva do Guaíba e os dedos a repousarem por entre os morros, acompanhando o casario, o curso dos riachos e se espairando à sombra das colinas e morros que margeiam a cidade. Sobraram, por isso, pela grande extensão da capital, muitos terrenos baldios, muitas vezes próximos às linhas de bondes, que se desdobram, para poder alcançar as casas dos bairros distantes. Começaram a aparecer nestes terrenos, uns, pertencentes a particulares, outros, à Municipalidade, pequenos casebres, construídos do dia para a noite, sem licença de qualquer espécie, sem forma e arruamento. De início não havia problemas. Desde o momento, entretanto, em que o povo notou as vantagens da vida nestes casebres, vida sem preocupações e sem impostos e reparou que os construtores e moradores não foram dali desalojados, houve um surto repentino destas construções e surgiram, de repente, as chamadas vilas de “malocas”. (A maloca, para o porto-alegrense, é o pequeno casebre, geralmente feito de tábuas velhas, equivalente à favela carioca e ao mocambo pernambucano). Tão rápido foi o desenvolvimento de algumas destas vilas, que uma delas tomou a denominação popular de “vila Caída do Céu”” 233

Note-se que os moradores destas habitações precárias acabavam por ser responsabilizados pela sua expansão, devido a supostas “vantagens da vida”. A localização das vilas é associada aos terrenos mantidos sem ocupação pela urbanização, freqüentemente próximos ao fim das linhas dos bondes. O referido estudo também inventaria as vilas de malocas que haviam na Porto Alegre de então. Uma parte repleta de malocas era a zona litorânea que se estendia desde

233AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume. p. 851. Grifos nossos.

96 o centro da cidade, à altura da rua Conceição, até a região de Navegantes, onde se destacava a vila Dona Teodora. No Caminho do Meio, ou seja, na região da

Avenida Protásio Alves, são elencadas duas vilas de dimensões consideráveis, que possivelmente sejam a “Chácara” a que se referiu anteriormente. O abrigava duas vilas imensas, a Maria Conceição e a Santa Luzia. São relacionadas também vilas no Menino Deus (dentre as quais, é referida a Ilhota como uma das maiores), no “Morro do Menino Deus” e diversas outras de tamanhos significativos entre os bairros Teresópolis e Cristal, provavelmente estando na gênese da atual vila Cruzeiro do Sul.

Dentre os fatores que teriam levado as pessoas a se estabelecer nas malocas, o estudo apresenta as seguintes:

“- demolição do prédio; - necessidade de desocupar a casa; - para não pagar aluguel; - para estar mais próximo do local de serviço; - porque não tinham onde morar; - por ser o local de procedência propício a enchente; - por viverem sempre em casebres” 234

Note-se que diversos dos motivos apresentados remetem à impossibilidade de permanência em lugares anteriormente ocupados, seja por dificuldades econômicas, seja pela demolição de moradias anteriores. Isto é, pela “mão invisível” do mercado imobiliário, seja pela mão “visível” das remoções e demolições. Mesmo desastres naturais – as enchentes – eram socialmente seletivas em sua incidência, na medida em que uma das áreas mais pobres da

234AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume. p. 862.

97 cidade – Navegantes – se localizava na beira do rio, portanto bastante sujeita a elas. Acreditamos que a enchente de 1941 foi relevante para a difusão das “vilas de malocas”, por ter deixado muitos desabrigados, e que aqueles que se estabeleceram em Navegantes – nesse contexto, bairro bastante desvalorizado – realmente eram os que não tinham outras opções235.

As “vilas de malocas” são descritas como antros de “imoralidade”, e os exemplos que a justificariam são um caso de homossexualidade236, um de embriaguez237 e um de prostituição238, em suma, comportamentos considerados desviantes por não se enquadrarem em uma moral socialmente imposta. Cumpre notar que os mesmos foram destacados por terem se dado em “vilas de malocas”.

Além disso, como anteriormente demonstrado, há tempos os comportamentos considerados intoleráveis para o moralismo daquela sociedade, vinham servindo para remover aqueles cuja presença não era desejada. Na conclusão do estudo, a política pública prescrita em relação às malocas era a seguinte:

235Cabe lembrar que foi para essa região que Alípio Marques dos Santos teria se dirigido em seus primeiros tempos de Porto Alegre, de acordo com depoimento anteriormente referido no item dos vínculos históricos e sócio culturais. Teresa Dutra Gonçalves, vizinha já mencionada no capítulo anterior, tamém residiu na Dona Teodora em meados da década de 50. Esta rua era descrita como uma das maiores concentrações de “vilas de malocas”. Entrevista realizada no dia 30 de junho de 2004. 236Em uma maloca da vila Santa Luzia, compartilhavam três homens o mesmo barraco. “ No momento de serem visitados pelo assistente social, dois deles estavam vestidos de mulher, lavando roupa e o outro a louça, enquanto o terceiro dizia ser o chefe deles”. AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume. p. 859. 237Os pesquisadores se espantaram pelo fato do chefe de família de uma casa visitada estar embriagado no momento de responder o questionário. AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume. p. 859. 238Foi visitada uma “casa de tolerância” nas Docas das Frutas, isto é, região entre Conceição e Garibaldi. Ali, os “dancings” funcionariam à luz do dia. “Os amantes da música popular localizam-se, ora no portal da maloca, ora na frente da mesma, reunindo, em torno de si, grupos de admiradores. Os alcoólatras são encontrados nas sarjetas, nas ruas e nos botequins. É permanente o policiamento que não consegue, entretanto, evitar o crime, o jogo, a malandragem, os desafios, as brigas e o sensualismo”. AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume. p. 859.

98 “visto serem as malocas um quisto social, uma situação anômala, uma vida marginal ao ambiente social de Porto Alegre, é urgente que os poderes públicos tomem medidas concretas para o extermínio das mesmas.” 239

Para dar cabo desta política, era necessário que “a Prefeitura amplie o plano de desapropriações que já vem sendo executado, de modo a obter, sem demora, grandes áreas de terra, em locais apropriados, para moradias populares”240. Conforme observam os sociólogos Aldovan de Oliveira Moraes e

Flávio José Anton, as áreas em questão eram “regiões periféricas, distantes do centro, carentes de infra-estrutura urbana”241. Percebe-se que, ainda que o

“extermínio” daquele “quisto social” fosse a política idealmente pensada, na prática se realizaram remoções. Sendo impossível exterminar as “malocas”, ao menos eram levadas para fora do alcance do “olhar civilizado” da urbe. Por essa razão, foram desapropriados terrenos para posterior loteamento: 26 hectares no passo do Feijó e 20 na estrada João de Oliveira Remião242.

O relatório apresenta, portanto, os primeiros resultados. São verdadeiramente impressionantes. Foram levantadas no referido estudo, 3.965 moradias em “vilas de malocas”. As remoções postas em prática totalizavam 597, ou seja, 15% daquelas, em curto espaço de tempo. Dentre as vilas que tiveram

239AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume. p. 863. Grifos originais. 240AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume. p. 863. 241MORAES e ANTON (2000). p. 13 242AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume. p. 880. É de se destacar a provável vinculação entre o terreno então comprado na Estrada Remião, com a constituição histórica da e seu entorno.

99 maior número de casas removidas estão a “Doca das Frutas” (45 remoções), rua

Santana (88 remoções) e vila Caiu do Céu (313 remoções).

Os moradores desta última (localizada na atual Avenida Oscar Pereira, perto da Vila Santa Luzia) foram transferidos em larga escala para a Vila São

José. Enquanto estas, mais próximas à região central, tinham um decréscimo populacional, a São José, mais afastada, tinha um acréscimo vertiginoso e rápido em suas dimensões – 236% no intervalo de um ano.

“Em 31 de Dezembro de 1950, existiam na Vila S. José, 163 residências, constante de 112 casas de diversos tipos e 51 malocas, e em 13 de dezembro de 1951, o total de moradias era de 549, inclusive 12 casas construídas na Vila 9 de junho e 112 malocas removidas da Vila Caiu do Céu, além de outros setores.” 243

Vale lembrar que a rua Santana, desde o século XIX, era um território negro. Conforme Sanhudo,

“Em julho de 1865, quando o Visconde da Boa Vista começou a governar a Província, já havia uma larga estrada que, por ser muito procurada e habitada pelos pretos forros, tomou este nome. Era a Rua dos Pretos Forros. (...) Quando se votou a lei do Ventre Livre, em 28 de setembro de 1871, a Rua dos Pretos Forros tomou então a invocação daquela data. Passou a ser Rua 28 de Setembro. (...) Em 1885, a velha Rua dos Pretos Forros mudou o nome para Rua Santana.”244

243AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume. p. 863. 244SANHUDO (1979). p. 247-248

100 Muito embora as progressivas redefinições do nome do logradouro durante aquele século tenham tornado invisível suas origens, ainda no século XX era um local de moradia para os negros de Porto Alegre ou daqueles originários do interior. Ido José da Silva nos narrou o seu reencontro, em Porto Alegre, com seu irmão, da seguinte forma.

I: “– Quando fazia 17 dias que eu estava em Porto Alegre, nos encontramos no centro e ele me perguntou: “O que está fazendo aí? Tenho uma peça alugada, quer morar comigo?” Eu aceitei. No bairro Santana. A: – Mais ou menos onde no bairro Santana? I: – Mais ou menos na Santana com a Ipiranga.”245

Ambos não permaneceram muito tempo naquele local. Vale lembrar que o momento em que Ido situa sua passagem pela Santana – sua chegada em Porto

Alegre, no ano de 1951 – coincide com os despejos aludidos.

“Vilas de malocas” e “territórios negros” não podem ser tomados como sinônimos, como analisaremos de forma pormenorizada mais adiante. No entanto, há uma relação entre eles que pode ser verificada por uma maior representatividade da população negra nos setores mais pauperizados da sociedade.

Tal fato era explicitamente reconhecido por um contemporâneo. Laudelino de Medeiros escreveu em 1951, mesmo período do relatório da Prefeitura, um

“ensaio de sociologia urbana” sobre as Vilas de Malocas. Nele, tentou perceber nas vilas estudadas aquilo que chamou de “tipos raciais”. Comprometido com uma antropologia preocupada com tipificação racial, ao constatar uma “certa

245Entrevista com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004

101 correspondência entre brancóides e negróides e uma percentagem mais elevada de mulatos”, espantou-se pelo fato de estarem sobre-representados ali os

“negróides” que, acreditava ele, tinham participação “muito pequena na população do Brasil e particularmente do Rio Grande do Sul”. Ele explicava, portanto, essa incidência através “do fato das 'malocas' corresponderem às camadas inferiores e aí terem se situado os negros em virtude de circunstâncias históricas, sociais, culturais e econômicas”.

Dentre essas circunstâncias, gostaríamos de destacar fundamentalmente um longo período de extração compulsória da mão-de-obra, as circunstâncias adversas com que emergiram do cativeiro, o limitado mercado de trabalho de serviços socialmente desvalorizados e mal remunerados, e sobretudo, o preconceito social a que eram submetidos. Preconceito este que Laudelino de

Medeiros tentou minimizar (“ausência de preconceitos raciais mais vivos”) ao tentar explicar o “alto coeficiente de caldeamento” e a “alta percentagem de mestiços”246. No entanto sua própria interpretação não corrobora esta assertiva.

Não há indício mais significativo do preconceito da sociedade sul-riograndense do que determinado grupo étnico estar representado em proporção superior nos estratos mais desfavorecidos.

O ensaio de Medeiros tem maior riqueza por seus dados empíricos do que propriamente por sua interpretação dos mesmos. Entre outras coisas, destaca

“desajustamentos sociais de natureza educacional ou psicológica” na explicação das mesmas, para em seguida, sentenciá-las como “fato social de estrutura”, se abstendo de conclusões sobre os seus efeitos “morais, sociais e econômicos”.

246MEDEIROS (1951). p. 47-48

102 Contudo, algumas de suas observações parecem relativizar a leitura realizada pela Prefeitura. Muito embora com o mesmo tom moralista – as famílias que habitavam as vilas tinham “desajustes familiares” – com espanto reconhecia

“tratar-se, na grande maioria, de cidadãos ordeiros, quase sempre trabalhadores, ainda que muitas vezes com trabalho irregular”247. Reconhecia, por fim, uma forma própria de organização da sociabilidade, em uma tentativa inicial de penetrar na lógica das “Vilas de Malocas”, e nelas reconhecer uma alteridade. Essa forma, a vizinhança, se caracterizaria pelos contatos face a face, pelas relações pessoais que se estabeleciam e pela reciprocidade de objetos e serviços. Eram, pois, tributárias de um “vasto patrimônio de saber, arte e valores étnicos”. A vizinhança, destacava o autor, não era um fenômeno generalizado na área urbana. Contudo, apesar das especificidades e positividades que o autor sabe destacar, ao fim das contas a tônica “saneadora” acaba por prevalecer em seu discurso, já que as

Vilas de Malocas representavam “riscos para a saúde pública e inconvenientes para a beleza urbana”248.

O autor, por fim, destacava que a maior parte dessas vilas encontrava-se dentro do perímetro urbano, próximas à região central.

“É interessante observar que quase todas as “vilas” estão inseridas em pleno perímetro urbano, com exceção apenas da localizada na estrada de Canoas (que aliás fica no extremo da grande Avenida Farrapos), e a que se encontra no Cristal (rua Chico Pedro). O maior número e as principais se encontram em bairros populosos e algumas mesmo se localizam em pleno coração da cidade (Cais do Porto, atrás da Viação Férrea; “Forno do Lixo”, Rua São Luiz; a Ilhota; e outras). Houve até duas dessas “vilas” que se localizaram em ruas principais, no fim

247MEDEIROS (1951) p. 33, 16 248MEDEIROS (1951) p. 62-66

103 da Av. Borges de Medeiros e na Av. Bento Gonçalves, mas dali foram pouco tempo depois movidas pela Prefeitura. Quase todas junto ou muito próximo às linhas de transporte coletivo; e apenas três se localizaram próximo aos bairros industriais de São João e Navegantes.” 249

Muitas outras vilas da região central foram movidas ou tiveram de mover-se após 1951. Coletamos os levantamentos da mesma natureza realizados após

1951, a fim de detectar essa tendência. Após o primeiro estudo, o poder público manteve a preocupação de manter o saber, e portanto o agir, sobre as “vilas de malocas” sob controle. Contamos com levantamentos efetuados em 1952, 1964,

1973, 1982, 1990 e 1998250 - em média, um por década. No nosso entendimento, devemos estar atentos ao fato de que a metodologia empregada em cada um desses levantamentos não era uniforme. Diante da dificuldade de conceituação – malocas, vilas irregulares, agrupamentos marginais, sub-habitações, favelas, loteamentos irregulares – o entendimento e a concepção sobre o objeto pesquisado teve diversas variações; mesmo os critérios de delimitação do que era uma unidade (quantas vilas há na Vila Cruzeiro ou na ?) foram definidos de forma distinta251. Outros aspectos são de difícil apreensão – quais os diferentes graus de visibilidade ou invisibilidade dados em cada um desses estudos às vilas em questão? Tudo isso demonstra que não cabe a dados quantitativos desta natureza reproduzir a realidade como um espelho ou uma máquina fotográfica. Isso, em nosso entendimento, não invalida sua utilização, mas nos leva à problematizá-la. Como demonstrativos de macro-processos são

249MEDEIROS (1951) p. 16. Grifos nossos. 2501952: AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume.p. 847-880; 1964: DMCP (1964); 1973: JORGE (1973); 1982: SKOLAUDE, FERRARO e SILVA (1982); 1990: QUADROS (1992); 1998: MORAES e ANTON (2000). 251Exatamente por essa razão optamos por focar a quantidade de casas, não a quantidade de vilas.

104 eficientes. Mas o macro só faz sentido ao nível do vivido – da escala micro. Por isso, após apresentarmos um macro-processo “as vilas foram expulsas progressivamente das áreas centrais de Porto Alegre” (e os dados são significativos), vamos reduzir nossa escala de observação aos processos vividos em cada local de nosso interesse.

Dividimos a cidade de Porto Alegre em algumas macro-regiões, e após, estabelecemos a quantidade de casas de “vilas de malocas” registradas nos censos realizados em cada uma delas. Finalmente, foram elaborados gráficos representando a variação da participação relativa, em percentuais, das casas localizadas em cada uma das regiões, no total da cidade. As regiões foram elencadas de forma centrífuga, semelhante à tendência geral dos deslocamentos aqui considerados252.

A primeira região escolhida, em vermelho no mapa, foi a do Centro da cidade com demais bairros no seu entorno, incluindo, ao sul, a , o

Menino Deus e a , ao norte o bairro Floresta, e a leste a seqüência de bairros compreendida entre Moinhos de Vento e Santana. A segunda região, em cor de rosa, compreende as Ilhas, e o início da Zona Norte da cidade, desde os bairros São Geraldo, São João, Navegantes e Marcílio Dias, até Jardim São

Pedro e Jardim Floresta. A terceira região, em cor de laranja, compreende uma faixa de bairros entre a Auxiliadora e o Jardim Botânico, e ainda Higienópolis,

Passo d'Areia, Boa Vista, Três Figueiras e Chácara das Pedras. A quarta, em

252Optamos por não utilizar as regiões do Orçamento Participativo por duas razões. Em primeiro lugar, ela não tem a disposição espacial que é importante para o estudo que estamos nos propondo a fazer. Além disso, ela corta em três regiões (Centro, Noroeste e Leste, através das Avenidas Carlos Gomes e Nilo Peçanha, os territórios negros que estamos analisando. No Centro ficaria o território de Petrópolis, no Noroeste a Vila Caddie, e Leste a “Família Silva” e o Resvalo, quando na prática basta atravessar a rua para ir de uma região à outra).

105 lilás, corresponde à região entre os bairros Cristal e Santo Antônio, incluindo a vila

Cruzeiro e os bairros Teresópolis e Nonoai. Em seguida, em marrom, demarcamos a região dos bairros Partenon e Glória e seus entornos, abrangendo até a e a Agronomia. A sexta região em questão, registrada em amarelo, aqui denominada Leste, inicia nos bairros e Bom Jesus, a norte estende-se até a , o Jardim Itu-Sabará e o Passo das Pedras, e a leste chega ao bairro Protásio Alves. A sétima região, em rosa claro, corresponde ao norte da cidade, a partir do Cristo Redentor e do Jardim Lindóia, incluindo a maior parte da divisa com Alvorada (bairros Rubem Berta e Mário Quintana).

Elencamos ainda a zona sul da cidade, em creme, compreendendo todas as regiões ao sul dos locais aqui relacionados, com exceção da Lomba do Pinheiro e da Restinga, que constituem a nona e última região, em bege no mapa.

Mapa confeccionado a partir de original disponibilizado no sítio da Prefeitura

Municipal de Porto Alegre, endereço: http://www.portoalegre.rs.gov.br/dadosger/mapas.htm

106 1. Farrapos 23. Centro 45. Partenon 67. não cadastrado

2. Humaitá 24. Independência 46. Vila João Pessoa 68. Espírito Santo

107 3. Anchieta 25. Rio Branco 47. São José 69. Guarujá

4. não cadastrado 26. Mont Serrat 48. Agronomia 70. Hípica

5. Navegantes 27. Bela Vista 49. Santa Teresa 71. Chapéu do Sol

6. São João 28. Três Figueiras 50. Teresópolis 72. Serraria

7. Jardim São Pedro 29. Chácara das 51. Glória 73. Ponta Grossa Pedras

8. Jardim Floresta 30. Vila Jardim 52. Cel. Aparício 74. Belém Novo Borges

9. Sarandi 31. Petrópolis 53. Cristal 75.

10. Rubem Berta 32. Praia de Belas 54. Nonoai 76. não cadastrado

11. São Geraldo 33. Cidade Baixa 55. Cascata 77. Lami

12. Santa Maria Goretti 34. Farroupilha 56. Vila Assunção 78.

13. Higienópolis 35. Santa Cecília 57. Camaquã 79. Cristo Redentor

14. Passo da Areia 36. Jardim Botânico 58. 80. Jardim Lindóia

15. Vila Ipiranga 37. Bom Jesus 59. Vila Nova 81. São Sebastião

16. Jardim Itu - Sabará 38. Jardim do Salso 60. Belém Velho 82. Santana

17. Passo das Pedras 39. 61. Lomba do Pinheiro 83. Medianeira

18. Mario Quintana 40. Protásio Alves 62. Tristeza 84.

19. Floresta 41. Arquipelago 63. Vila Conceição 85. Marcílio Dias

20. Moinhos de Vento 42. Menino Deus 64. Ipanema

21. Auxiliadora 43. Azenha 65. Aberta Morros

22. Boa Vista 44. Santo Antônio 66. Restinga

108 Região 1952 1964 1973 1982 1990 1998 Casas % Casas % Casas % Casas % Casas % Casas % Centro 994 21,6% 1409 10,4% 1006 5,0% 382 1,0% 1156 1,3% 668 0,9% Navegantes 1052 22,8% 4077 30,0% 2099 10,4% 1399 3,7% 5290 5,8% 5876 8,0% Passo d'Areia /J. Botânico 226 4,9% 296 2,2% 723 3,6% 377 1,0% 0 0,0% 415 0,6% S. Antônio / 15,2 Cristal 1148 24,9% 3565 26,2% 3567 17,7% 7342 19,3% 15488 16,9% 11129 % Partenon / 20,4 Glória 1114 24,2% 1940 14,3% 4490 22,3% 10178 26,7% 16774 18,3% 14923 % Leste 12,4 49 1,1% 1187 8,7% 2572 12,8% 5292 13,9% 10554 11,5% 9048 % Norte 24,7 0 0,0% 683 5,0% 3180 15,8% 8031 21,1% 19720 21,5% 18071 % Sul 10,4 27 0,6% 408 3,0% 1525 7,6% 2960 7,8% 12339 13,5% 7563 % L. do Pinheiro / Restinga 0 0,0% 22 0,2% 999 5,0% 2132 5,6% 10278 11,2% 5364 7,3%

Total 4610 13587 20161 38093 91599 73057

109 A tendência geral é evidente. A região central representa uma parcela cada vez menor das vilas populares da cidade. Se em meados do século XX representava pouco mais de 20% das casas das “vilas”, chegou ao seu final praticamente “saneado”, e nisso, vale lembrar, estão incluídos não apenas o

Centro mas outros bairros em seu entorno. O mesmo se pode dizer de outras regiões mais próximas à área central: a tendência da região de Navegantes – após um ápice em 1964, ano em que apareceu com 30% das “malocas” de Porto

Alegre – também é de queda, assim como da região do Jardim Botânico,

Petrópolis, até o Passo d'Areia. Mesmo a faixa de Santo Antônio ao Cristal – que ainda hoje abriga grandes, algumas das maiores vilas de Porto Alegre – em termos relativos diminuiu sua participação no conjunto. Em compensação, as

áreas mais afastadas – Leste, Sul, Lomba do Pinheiro e particularmente Norte – tiveram um acréscimo considerável. Em seguida, analisaremos como se deu em termos concretos essa dispersão para áreas mais distantes.

No que diz respeito a Petrópolis, o estudo de Maria Augusta Quevedo e

Renata Lerina Ferreira Rios destaca que com a enchente de 1941, a região central da cidade sofreu graves alagamentos que a tornaram um local menos atraente para a elite habitar. Desta forma, esta procurou moradia em locais mais altos253. Além disso, o “desenvolvimento dos transportes aproximou cada vez mais o bairro do Centro. A especulação imobiliária no bairro, pressionava os moradores mais humildes a venderem os seus imóveis, sempre garantindo o pagamento à vista”254. Diante de impostos urbanos cada vez mais elevados, e do assédio de pessoas que ofertavam valores em dinheiro para adquirir suas casas,

253QUEVEDO e RIOS (2002) p. 58-59. 254QUEVEDO e RIOS (2002) p. 118.

110 seus moradores foram “mandados para as periferias, os atuais bairros Vila

Jardim, Bom Jesus e o ex-bairro Mato Sampaio.”255 Dando voz aos depoentes que inspiraram esta interpretação, temos:

“A única queixa que eu tinha é que o meu imposto era muito alto, depois eles baixaram um pouco, é uma das mágoas que eu tenho, eu reclamei na Prefeitura e disseram para mim - “mas o senhor mora num bairro nobre”. Sim, moro hoje num bairro nobre, mas agora vai saber a origem, o que meus sogros, eu, minha esposa e meus filhos sofremos para estar ali até hoje. Hoje sim eu me dou por contente, mas lutei muito, muito, tanto que na minha quadra – da Ijuí até a Nilópolis, onde hoje é a Praça da Encol – o único morador que resistiu sou eu. Todos venderam, todos tiveram que vender, e eu resisti, estou resistindo (...)” 256 (...) “praticamente esse proletariado foi todo embora, começaram a receber propostas para vender os lugares, tinham casas de madeiras muito simples e acabaram sendo desalojados, por uma força economicamente prepotente (...)”257 “Depois mais tarde a gente sempre ouvia o comentário, ah, esse pessoal vai vendendo as suas casinhas e vai indo lá pra vila Jardim” 258

É necessário observar que evidentemente, a discriminação étnica teve seu papel nesse processo de exclusão de um bairro cindido pelo preconceito. Um informante, que estudou no colégio Santa Inês entre 1968 e 1975, por sua mãe trabalhar com alguém, um dos primeiros negros a ali realizar seus estudos, contou:

(...) “sofri muita discriminação, às vezes para não ter que ir à aula de religião eu dizia que era macumbeiro, eles me chamavam de macumbeiro (...) e sofria discriminação lá e aqui, (...) eu sofria discriminação deles lá, por ser negro, e sofria discriminação aqui, pelos meus próprios colegas de vila, de rua, porque eu me dava

255QUEVEDO e RIOS (2002) p. 113. 256Depoimento de Paulo Lara de Oliveira em QUEVEDO e RIOS (2002) p. 60 257Depoimento de Hiron Goidanich em QUEVEDO e RIOS (2002) p. 61 258Depoimento de Sandra Tarragô em QUEVEDO e RIOS, (2002) p. 119.

111 com os brancos, estudava num colégio de brancos. Mas eles não viram que eu tinha ganho uma bolsa, que a minha mãe trabalhava com alguém... mas não que nós tivéssemos mais dinheiro do que eles” 259

Tal processo teria se intensificado – e aqui encontramos um paralelo à situação da “Família Silva” e comunidades vizinhas – a partir da instalação do

Shopping Center Iguatemi, em 1983. Se tornando a Avenida Nilo Peçanha uma via de ligação do centro da cidade com o Shopping, as moradias dos bairros ao longo deste logradouro se valorizaram e elitizaram ainda mais. As moradias populares que ali existiam se tornavam indesejáveis. Durante a década de 1990, foram reassentados diversos domicílios que se localizavam na esquina da

Coronel Lucas de Oliveira com a Avenida Neusa Goulart Brizola, ainda que esse reassentamento difira de outras remoções por ter sido realizado internamente ao bairro260.

As principais áreas de refúgio apontadas constam da rede de sociabilidade da “Família Silva”, e sofreram um crescimento vertiginoso na segunda metade do século. A Vila Jardim já aparecia no levantamento de malocas realizado em 1952, com 49 casas261. No levantamento de 1964, as vilas Jardim I, II, III, e IV

(chamadas, respectivamente, de Beco do Forte, Barão de Bagé, Conde da

Figueira, Aquiles de Porto Alegre) somavam 307 residências. Curiosamente, no mesmo ano, só foram contabilizadas 7 “malocas” na Avenida Bagé262. O ano de

1973 acusava 269 casas nas Vilas Jardim I e II, mas se somarmos a este total as outras vilas localizadas neste bairro (Mirim, 444 casas e Caracol, 76 casas), o

259Depoimento de Ari Martins Jr. em QUEVEDO e RIOS (2002) p. 78 260QUEVEDO e RIOS (2002) p. 133-135. 261AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume.p. 847-880 262DMCP (1964)

112 valor se elevará para 789 moradias263. Em 1982, as vilas Jardim I, II, III, IV, V, VI,

VII, VIII, IX (Caracol) e X totalizavam nada menos que 1033 casas, e se considerarmos também a vila Mirim, a soma se elevará para 1666 casas264. Para

1990, as vilas Jardim de I a X totalizavam 2077. A vila Mirim não foi computada265.

Note-se que, nos anos iniciais da década de 1990, a política “saneadora” chegava ali também: esta é a época em que a vila Mirim foi removida266. No ano de 1998, como resultado da mesma, a vila Jardim totalizava 856 domicílios, e a vila Mirim,

121267.

A vila Jardim constituiu-se como área de refúgio não apenas dos expulsos de Petrópolis, mas, de uma forma mais geral, de diversos outros territórios negros da cidade de Porto Alegre. No dia 25 de junho de 1989, o jornal Zero Hora publicou uma reportagem, na qual um morador da Vila Jardim (rua Souza Lobo) narrava sua infância, passada na Colônia Africana (rua Vasco da Gama). Com 51 anos naquela ocasião, Carlos Matos descrevia o local de onde era originário como um lugar idílico, onde havia festas, bailes, futebol, “e a negrada adorava vestir-se bem, usar ternos brancos para freqüentar as festas”. Porém,

“De uma hora para outra, toda a família teve de abandonar a casa onde morava, saindo de um lugar bonito, onde se relacionava bem com todos e mudar-se para um fim de mundo. Ele não lembra quem ficou com o terreno de seu pai, nem o tipo de transação com o comprador. ‘Acho que isso aconteceu com a maioria das famílias. Os burgueses começaram a chegar e a comprar tudo’”. 268

263JORGE (1973) 264SKOLAUDE, FERRARO e SILVA (1982). 265QUADROS (1992) 266Ver ANJOS (1993) 267MORAES e ANTON (2000) 268Zero Hora, 25/6/1989. Pesquisado no AHPOA, coleção de recortes, recorte n. 0733.

113 Assim, as periferias onde eram despejados os expulsos pelo crescimento da cidade eram representadas como um “fim de mundo”, em contraposição aos territórios de origem, plenos de positividade.

Também o bairro Bom Jesus foi um destino para os que não lograram permanecer na região central, ou mesmo para os chegados do interior do estado.

Em 1994, ano em que uma senhora negra, moradora da Vila Pinto, completava seu centenário, ela foi entrevistada por pesquisadores vinculados à Secretaria

Municipal da Cultura de Porto Alegre. Este trabalho resultou em uma publicação na série “Depoimentos”269. A trajetória narrada por Percília da Rosa traz à tona uma vida de dificuldades e muito trabalho: no auxílio ao pai na lavoura, empregando-se – em hotéis, estâncias, casas particulares – como cozinheira ou criada. Vivenciou diversos deslocamentos em busca de melhores oportunidades – da infância, em São Francisco de Assis, Percília migrou para Alegrete e posteriormente para Porto Alegre270.

Sua história lembra em muitos aspectos a dos Silva. A vinda do interior na primeira metade do século XX e o estabelecimento em um lugar afastado dentro da capital, apontado como “mato”, onde poderiam ter um lugar para si são os principais pontos em comum.

“Quando eu cheguei, aqui era tudo mato. Um matagal que era uma barbaridade, tinha árvore para tudo quanto é lado. Depois, quando eu vim para cá eu arrumei esse terreno. Começaram a cortar árvores, aí eu pude fazer a minha casa. Era a coisa mais horrível esse matagal e deu muito trabalho para limpar. A água a gente teve de ir buscar de balde. Quem morava

269MUNIZ, MEIRELLES e BARCELLOS (1994). 270Infelizmente, os dados trazidos na obra não são suficientes para estimar aproximadamente a época de sua chegada em cada uma dessas cidades. A única indicação é de que a vinda para Porto Alegre foi quando seus filhos já estavam “grandinhos”.

114 há mais tempo já tinha água. (...) Juntei minhas coisas e vim embora para cá. Em seguida eu arrumei uma casa, mas hoje está bem mais difícil arrumar. Quando acha uma casinha, para arrumar o aluguel é um dinheirão. Fiquei então morando com a minha filha. Não nesta casa que estou hoje, mas noutra, no meio do matagal que era tudo isso aqui. Mas eu procurava uma casa pra mim, um terreninho para limpar e ficar. Eu era uma negra sadia e trabalhadora”. 271

O bairro Bom Jesus, e as vilas nela situadas, tiveram um crescimento semelhante ao da Vila Jardim, na segunda metade do século XX.

Número de casas – Bairro Bom Jesus 272

Vila 1952 1964 1973 1982 1990 1998

Nossa Senhora de Fátima 600 721 1263 2388

Pinto 359 2222

Cristiano Fischer 560

Bom Jesus I 30 26

Bom Jesus II 30 29

Bom Jesus III 20 40

Bom Jesus IV 5 10

Mata Sampaio273 1722 3511 1270

Divinéia 1139

da Paz 28

Total 600 1640 3070 6004 4659

A diminuição do número de casas consideradas “vilas”, durante a década de 1990, após progressivos aumentos durante a segunda metade do século pode ser atribuída ao fato de que lugares até então considerados como “Bom Jesus”

271Depoimento de Percília da Rosa em MUNIZ, MEIRELLES e BARCELLOS (1994) p. 19 2721952: AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume.p. 847-880; 1964: DMCP (1964); 1973: JORGE (1973); 1982: SKOLAUDE, FERRARO e SILVA (1982); 1990: QUADROS (1992); 1998: MORAES e ANTON (2000). 273Mato Sampaio já constituiu um bairro, e posteriormente perdeu esse status. Foi aqui computado porque na atualidade ele faz parte do Bom Jesus. A grafia Mata Sampaio aparece no censo de 1982.

115 passaram a ser contabilizados como parte dos bairros Jardim do Salso e Jardim

Carvalho. Além disso, recebeu menor afluxo de novos habitantes, pois outros lugares, mais distantes, eram elencados preferencialmente como rota de expulsão da população daquela região, conforme se desenvolverá mais adiante. Antes, porém, vamos nos remeter à memória que os Silva têm do seu território.

Memória Social da ocupação territorial

A terra, base geográfica, está posta como condição de fixação, mas não é elemento exclusivo para a existência de um grupo. Em outras palavras, é a comunidade que constrói o território enquanto espaço social e simbólico e não o território que constitui a mesma (LEITE, 2000). É a posse dele que propicia as condições de permanência, de continuidade das referencias culturais significativas para a consolidação do imaginário coletivo. O espaço não se define apenas pela sua materialidade territorial, mas também por sua construção, sua organização, sua disposição e suas inscrições. Desta forma, ele não é somente um lugar geográfico. É, sobretudo, uma rede relacional com representações coletivas que permite aos membros de um grupo dar as características de seu espaço significados reconhecidos pelos demais. A constituição de um espaço social específico empreendido pela “Família Silva”, que se inscreve num âmbito territorial geográfico e simbólico, nos remete a processos segregrativos, relações interétnicas e a uma forma organizacional balizada em parâmetros auto- organizativos de exclusão/inclusão fundados no parentesco. São a esses

116 elementos que iremos nos reportar agora com o auxílio da memória social da ocupação territorial.

Conforme referido anteriormente, as recordações dos integrantes do grupo remontam a década de 1940 no que diz respeito a fixação de seus antepassados no território que habitam na atualidade. Segundo Ido, tio paterno da comunidade,

Alípio Marques dos Santos “foi morar ali em 1941.Quando eu vim para Porto

Alegre ele já estava ali há 10 anos.”274.A situação em que se encontrava a região naquela época é descrita por João, filho de criação de Naura e Alípio, da seguinte maneira:

“- Isso aqui era campo atirado. Ninguém dava bola para nada. Não tinha ninguém. Foram fechando os pedaços. Foram fechando, foram demarcando e foi ficando.”275

De acordo com Ido, “era só campo. Não tinha nada ali.” 276 Esses relatos são compatíveis com as informações que podemos extrair de dois mapas produzidos pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

O primeiro é um levantamento aerofotogramétrico construído entre os anos de 1939/1942277. Nele podemos observar que a região hoje conhecida como bairro

Três Figueiras era parcamente povoada e que a vegetação densa e os arroios existentes contribuíam para a configuração de uma atmosfera de ruralidade. O

274 Entrevista realizada com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004. 275 Entrevista realizada com João Brito Soares no dia 05 de junho de 2004. 276 Entrevista realizada com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004. 277 SMOV – Mapa Topográfico do Município de Porto Alegre, executado pelo Sindicato Condor Ltda., Secção Aerofotogramétrica, de acordo com o contrato lavrado em 5 de julho de 1939. Folhas XI-20 e XI-25. O referido mapa foi feito em base a uma fotografia aérea, tirada em 1939, e foi restituído em 1942.

117 local onde hoje está o Colégio Farroupilha era qualificado como Chácara Três

Figueiras, corroborando os depoimentos segundo os quais antigamente ali só havia esse tipo de propriedade. A rua João Caetano não passava de um leito carroçável de breve extensão após a Avenida Carlos Gomes, demonstrando que os poucos caminhos existentes eram de difícil acesso.

No mapa aerofotogramétrico de 1956278, o território ocupado pelos Silva pode ser identificado pela existência de duas edificações. Uma delas, a maior, localiza-se no mesmo espaço em que, segundo os integrantes da comunidade, existia a casa de Naura e Alípio:

“- A minha avó sim. Eu me lembro bem da minha avó porque ela morava aqui. Ela morava bem perto do poço onde eu estou morando hoje.”279

Fotografia original a partir da qual foi realizado o mapa de 1956. Note-se que o trecho a leste da Carlos Gomes (maior rua, no sentido transversal) tinha bastante vegetação (mato), especialmente onde habitam os Silva. Suas vias de acesso eram picadas.

278 SMOV – Levantamento aerofotogramétrico executado para a Prefeitura de Porto Alegre na gestão do Prefeito Leonel Brizola. Fotografias tomadas em 1956 279 Entrevista realizada com Zuleica Briolandi da Silva no dia 12 de junho de 2004.

118 Fonte: Mapoteca do AHPOA 5.5.2.1 /163 Mosaico Aerofotogramétrico do Município de Porto Alegre n. 8

A menor, tendo em vista a época da confecção do mapa, tratava-se da moradia de Anna Maria e Euclides, que passaram a residir ali desde o seu matrimônio realizado em 1954280. Os caminhos que levavam até as casas corroboram as informações prestadas pelos Silva quanto a abertura de uma picada para que os convidados da festa de casamento de seus pais chegassem ao local Podemos observar ainda a existência de espaços cultivados próximo as edificações

Conforme João, filho de criação de Naura e Alípio,:

280 É importante ter em conta que as casas eram de madeira e que ao longo dos anos foram reformadas, reconstruídas e até mesmo mudadas de lugar.

119 “- Então nós plantávamos aqui, plantávamos mandioca, plantava aipim, plantava batata doce, plantava amendoim. Aqui nós estamos sentados aonde a gente plantava amendoim, era plantação de amendoim. “281

Nas palavras de Zuleica Briolandi, integrante da comunidade :“- Nós plantavamos bastante coisa:aipim, amendoim, milho, batata-doce”282. Lígia Maria, sua irmã, recorda também das plantações de milho, amendoim, aipim, batata doce, o cultivo de pêssegos, uva mosquetel, moranguinho, além de uma vaca leiteira, porcos e galinhas. Ela lembra ainda de uma plantação de flores que era vendida no dia de finados no cemitério São João283. O cultivo de legumes, frutas e, como veremos na fala de João, verduras tinha como principal objetivo garantir a subsistência dessa coletividade fosse através do consumo fosse através da venda desses produtos agrícolas:

“- Na época, eu com sete ou oito anos, eu levantava às 5 horas da manhã para por fogo no fogão de lenha para esquentar água para gente tomar o café de manhã, café preto, e aguar os canteiros. Sete, oito horas da manhã eu saia com dois balaios de verduras para vender em Petrópolis, que tinha uma meia dúzia de casas, mas eu vendia.”284

281 Entrevista realizada com João Brito Soares em 05 de junho de 2004. 282 Entrevista realizada com Zuleica Briolandi da Silva no dia 12 de junho de 2004. 283 Entrevista realizada com Lígia Maria da Silva em 25 de maio de 2004. 284 Entrevista realizada com João Brito Soares no dia 05 de junho de 2004.

120 Essas falas nos remetem a uma produção e uma organização do trabalho voltados para a garantia da existência e da continuidade da unidade familiar enquanto tal, demonstrando que a perpetuação do grupo familiar na terra dependeu de uma produtividade mínima capaz de garantir a permanência e renovação das gerações assim como ocorrido com outras comunidades negras gaúchas reconhecidas como remanescentes de quilombo285. Buscar serviço nas

285 Vide LEITE(2002), BARCELLOS et alii (2004), ANJOS e SILVA (2004)

121 circunvizinhanças passou a ser a alternativa encontrada pelos atuais integrantes da” Família Silva” para a continuidade da residência e a manutenção dos laços familiares como referido anteriormente286. Com o passar dos anos a atividade agrícola foi perdendo espaço para a construção de suas casas, mas a relação com a terra se perpetua no cultivo de ervas medicinais, na manutenção de

árvores frutíferas e no cultivo de mudas de plantas para jardins287.

Voltando ao mapa podemos verificar a presença de outras casas na região.

Conforme os relatos do grupo, as residências localizadas a leste, em direção ao traçado projetado da rua Osório Tuyuty de Oliveira Freitas, eram da família

Freitas, na direção sudeste, próximo ao traçado projetado da rua Lobélia da família Dutra. Essas informações foram obtidas durante o processo de pesquisa, quando os informantes caminhavam conosco pelo território e pelos arredores e nos indicavam os locais das casas de seus avós maternos e de seus pais e onde moravam os antigos vizinhos. Nesses percursos pudemos perceber o amplo domínio de conhecimentos que eles detém sobre a história de ocupação da região

286 Todas as atividades não agrícolas exercidas pelos seus avós maternos, pelos seus pais e por eles tem vínculos com a região: o serviço na construção civil, as tarefas domésticas, o trabalho de caddie, a jardinagem e a vigilância. 287 A essa questão nos reportaremos mais adiante.

122 do entorno. História esta com a qual estão intimamente relacionados. É o que se evidencia quando atentamos para o surgimento da “Vila Beco do Resvalo”, que localiza-se próximo a intersecção da Rua Portulaca com a Rua João Caetano, aos fundos da comunidade. Segundo João, filho de criação de Naura e Alípio,

J:”- A Vila do Resbalo nasceu em meados de 64, 65. Na época da revolução é que o pessoal veio chegando, veio botando . Quem deu o nome de Vila do Resvalo foi o falecido meu pai. A: - É? Por quê? J:- Porque abriram a rua, foi aberta alguma, uma extensão de rua, da Carlos Gomes até aqui na frente da nossa chácara. A:- Na João Caetano? J:- Na João Caetano, isto. Nosso número aqui, na época, eu acho que devo ter alguma coisa, era João Caetano 1.170. A gente usava esse número. Então era um barro vermelho aquilo ali, e quando chovia tu resvalava mesmo e caía. E como o pessoal botou a vila, e não tinha nome, e tinha uns pinguços demais assim que estava. - Bah, e essa é a legítima Vila do Resvalo. E pegou, o nome ficou Vila do Resvalo.”288

Essa ocupação aparece inicialmente como um “não lugar”, inqualificável, na medida em que acolheu, a princípio provisoriamente, aqueles que as necessidades do emprego e da miséria obrigaram a urbanização (AUGÉ, 1999), sendo inclusive contabilizada em conjunto com outras ocupações da região quando do levantamento por orgãos municipais de “vilas e agrupamentos marginais”. Em 1973, em virtude do número expressivo de famílias que a compunham, ela passou a ser considerada de forma distinta.

288 Entrevista realizada com João Brito Soares no dia 05 de junho de 2004.

123 Ainda no levantamento de 1952, foi apurada a presença de 24 famílias habitando em uma então chamada “vila de malocas” na rua Frei Caneca. Este agrupamento muito provavelmente está na origem da vila Caddie: a rua Frei

Caneca localiza-se ao lado do Country Club, ligando o território da referida vila à rua 14 de julho. No censo realizado em 1964, aparece novamente a vila Frei

Caneca, e junto a ela, computado o número de casas de uma vila denominada

“Country Club”, totalizando 116 casas. Se a situarmos no mapa anexado ao levantamento deste ano, perceberemos que sua localização é coincidente com a do atual Resvalo. A partir de 1973, os poderes públicos passaram a distingui-las, bem como a denominá-las da forma como atualmente são reconhecidas. Nessa ocasião, o Beco do Resvalo contabilizava 170 “malocas”, e a Caddie, 70. Nesse ano aparece também a Frei Caneca. A localização no mapa indica ser muito próxima à Caddie, apenas em direção à Boa Vista, e não à Nilo Peçanha289.

Segundo Jurumi Pereira de Abreu, moradora há 35 anos na Vila Beco do

Resvalo, ela surgiu com a abertura de ruas feitas a picão e enxada, porque aquilo ali era tudo mato. Quando iam à Prefeitura, na tentativa de obter água e luz, diziam-lhes que aquele local era um buraco e que não tinha dono. Corriam boatos que aquela área era propriedade de duas solteironas que foram morar no Rio de

Janeiro e que deixaram aquilo ali para os pobres. Dizia-se também que ali teria sido antigamente um cemitério e por essa razão ninguém a queria. As histórias evidenciam o status do território naquele período: terra sem dono, deixada para os pobres, lugar que ninguém queria. Na década de oitenta, conforme relatado por

2891952: AHPOA, Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952, II Volume.p. 847-880; 1964: DMCP (1964); 1973: JORGE (1973)

124 Jurumi, os “burgueses começaram a tomar conta”290, trazendo a polícia, ameaçando botar fogo nas casas, batendo fotos e tentando fazer de despejos individuais uma retirada coletiva291. Essa ocasião está claramente vinculada a uma profunda transformação ocorrida na região.

Conforme aludido anteriormente, a construção do Shopping Center

Iguatemi, no ano de 1983, trouxe diversas transformações para os bairros a ele vizinhos, particularmente àquelas regiões próximas à Avenida Nilo Peçanha. A elitização e valorização de bairros que, de um momento para outro se descobriam

“nobres” gerou os mais variados processos de exclusão da população mais carente da região. Tal como em Petrópolis, o “saneamento”, disfarçado de políticas de urbanização, se fez presente.

Até aquela ocasião, a Nilo Peçanha terminava após o Colégio Anchieta, isto é, na Rua Luiz Manoel Gonzaga. No entanto, para permitir a chegada a partir

290 A denominação burgueses foi utilizada por outros moradores da Vila Beco do Resvalo e da Caddie constituindo-se enquanto categoria nativa de oposição entre estes e os atuais moradores da região. É interessante perceber que tal classificação não é usada pelos integrantes da “Família Silva”, ou seja, são outros os elementos que definem sua distintividade prioritariamente. Ainda que as diferenças em termos de classe sejam explicitamente identificáveis, não são elas que servem de parâmetro para a constituição das relações sociais do grupo. 291 Entrevista com Jurumi Pereira de Abreu no dia 26 de julho de 2004.

125 dos bairros centrais ao Iguatemi, se abriu o trecho deste logradouro até lá.

Segundo um texto publicado no jornal Correio do Povo, a extensão do trajeto da rua se encontrava nos planos da Prefeitura Municipal desde 1973, não tendo sido realizada até então por não haver dotações para o projeto. O problema foi contornado através de progressivos parcelamentos do solo, que já estavam sucedendo, e ensejavam à administração municipal futura conclusão do projeto.292

Em suma, a abertura da rua para viabilizar o acesso ao Shopping Center foi feita com base ao parcelamento e loteamento da região, vale dizer, a uma radical transformação sócio-econômica daquele local, sem a menor consideração por quem ali vivia. Isso não deveria surpreender, afinal estávamos nos anos finais da ditadura militar no país. A Prefeitura Municipal estava comprometida com um modelo autoritário de Estado e de desenvolvimento nacional. Em termos de município, se acreditava que a abertura de vias poderia superar os entraves ao desenvolvimento regional. Era o que noticiava a Folha da Tarde por ocasião da abertura do Iguatemi. Ali claramente se explicitava que o objetivo da construção da Nilo Peçanha era desenvolver Três Figueiras e Chácara das Pedras, ao mesmo tempo em que as obras na Aureliano de Figueiredo Pinto e na Érico

Veríssimo objetivavam “desenvolver” Partenon, Glória e Teresópolis. À comunidade negra que vivia nos arredores desta última avenida – a Ilhota – era atribuída a “culpa” pelo não desenvolvimento dos referidos bairros, considerada um “bolsão de estagnação”293.

Um depoimento coletado no livro “Memória dos Bairros – Petrópolis” reforça a idéia de que a abertura da Avenida Nilo Peçanha no trecho entre o Anchieta e o

292Correio do Povo, 2 de janeiro de 1983. Consultado na coleção de recortes do AHPOA. Recorte 4804. 293Folha da Tarde, 19 e 20 de março de 1983. Consultado na coleção de recortes do AHPOA. Recorte 4802.

126 Iguatemi produziu não apenas desequilíbrios sócio-econômicos, mas também ecológicos:

“A Avenida Nilo Peçanha terminava no Colégio Anchieta, e ali era um grande matagal (...) [o poder público] ao mesmo tempo que abre as avenidas permite um desenvolvimento sem planejamento adequado, pois ali por exemplo (...) era um fator dos mais importantes do ecossistema da cidade de Porto Alegre(...)”294

Havia, porém, uma diferença entre a abertura da Nilo Peçanha e da Érico

Veríssimo. A primeira foi realizada com grande participação de verbas particulares, dentre as quais o Iguatemi representava a maior parcela. Em outras situações, se empregava dinheiro público, e ele exemplificou com o caso da

Ilhota. Era isso o que destacava o prefeito Guilherme Socias Villela na inauguração daquele trecho da Avenida, evento festivo no qual também estavam presentes o representante da AMATRES, o vereador João Dib, e o então presidente da Associação dos Lojistas do Shopping Center Iguatemi, Carlos

Augusto Krás Borges295.

Durante a década de 1980 a Vila Beco do Resvalo atingiu o seu auge e também sua queda, por motivo da remoção ocorrida a partir de 1984. Os resultados desse processo podem ser vistos comparando o mapa aerofotogramétrico, realizado em 1982, com sua atualização, efetuada em 1986, anexados a este laudo. Por outro lado, podemos analisar os dados que temos a partir de censos de vilas populares. Em 1982, a vila Beco do Resvalo tinha 220 casas e 990 habitantes estimados. No levantamento de 1990, sequer se deram ao trabalho de contabilizá-la: de um momento para o outro tornava-se invisível. Em

294Depoimento de Beto Moesch em QUEVEDO e RIOS (2002) p. 134. 295Zero Hora, 19 de março de 1983. Consultado na coleção de recortes do AHPOA. Recorte 4804. Folha da Tarde, 19 e 20 de março de 1983. Consultado na coleção de recortes do AHPOA. Recorte 4802.

127 1998, apenas 28 casas foram ali contabilizadas296. Na vila Caddie o processo foi semelhante. No ano de 1982, eram calculadas 100 casas e estimados 450 habitantes. Em 1990, igualmente as fontes silenciam a respeito. Em 1998, temos o registro de 75 casas297.

Número de casas no Beco do Resvalo e na vila Caddie

1952 1964 1973 1982 1990 1998

Vila Caddie/ 70 (Caddie) 24 Frei Caneca + 110 (Frei 220 xxx 28 Beco do 116 Caneca) Resvalo 170 100 xxx 75

Dando expressão gráfica a esses valores numéricos:

296É provável que dentre estas 28 casas estejam contabilizadas as moradias da “Família Silva”. 297 1982: SKOLAUDE, FERRARO e SILVA (1982); 1990: QUADROS (1992); 1998: MORAES e ANTON (2000). Em 7 de maio de 1991, a Zero Hora noticiava que “Constituída por malocas, o que acentua o contraste com as belas casas das áreas vizinhas, a vila Kedi está com os seus dias contados no bairro Boa Vista.” Era uma preocupação da AMATRES “como ficará a situação da creche batizada como Associação do Centro Infantil da Vila Kedi, construída pela entidade com a ajuda da comunidade católica do Mont’Serrat, Assembléia de Deus, LBA e Country Club, para beneficiar 60 crianças carentes.” Acreditamos que não ficou. Nos dias de hoje, as crianças carentes da região não têm creches para ir. Zero Hora, 7 de maio de 1991. Pesquisado no AHPOA. Coleção de recortes, recorte n. 7878.

128 Dona Jurumi recorda de diversos episódios relacionados com este processo de expulsão298. Num deles derrubaram uma residência com a moradora na porta. Em outro despejaram um senhor de idade e o levaram para um banhado próximo da Vila Safira onde ele acabou morrendo. Jurumi recorda ainda da existência de um vereador que teria ajudado em muito a Vila do Beco do Resvalo, mas que teria morrido em um acidente as vésperas de ser eleito deputado299. Os habitantes da vila procuraram o Movimento de Direitos Humanos que passou a representá-los legalmente na disputa territorial.

Através de processo judicial300, os moradores da Vila Beco do Resvalo tentaram barrar o processo de despejo que vinham sofrendo. Dentre eles, não é citado nenhum integrante da “Família Silva”, o que demonstra que para os moradores da região tratavam-se de grupos distintos. O objetivo do processo era a manutenção de sua posse, já que mesmo após despacho favorável à continuidade dos moradores do Beco, os réus, interessados na implantação de um condomínio horizontal por ali, pressionavam para sua saída. Os autores da ação destacavam que as “vendas de lotes vem sendo efetuadas de há muitos anos, porém os compradores dos lotes não detém, nem detiveram a posse do

BECO DO RESVALO”. Além disso, os advogados do Movimento de Direitos

Humanos realizaram a seguinte denúncia, sobre métodos truculentos de pressão sobre os moradores:

298Entrevista com Jurumi Pereira de Abreu no dia 26 de julho de 2004. 299 O vereador era conhecido como Valneri Antunes, nome também lembrado pelos integrantes da “Família Silva”. O acidente de carro que ele sofreu é considerado por Jurumi como uma evidência do poder dos burgueses interessados na área. 300 Processo 01185193495 – Distribuição por dependência aos autos de n. 01185092143. 1a vara da Fazenda Pública – Porto Alegre. Anexado ao Inquérito Civil Público n. 11/2002 – Quilombo Urbano – Porto Alegre – Família Silva. f. 623-634.

129 “Ocorre que os hoje 25 proprietários dos 40 lotes que compõe o projeto do Loteamento Chácara Limonge (...), preferem expulsar os posseiros da área – moradores do Beco do Resvalo – com ameaças e força. Ignoram que a matéria está sub-júdice: enquanto houver discussão sobre a posse, discussão esta lançada nos autos de no 01185092143, não poderão os sedizentes proprietários fazer prevalecer o domínio sobre a posse.” 301

Além disso, o processo alude a um massacre ali ocorrido em 1982:

“A situação vem se tornando insustentável. A primeira Ré já está instalando Galpão de obras na área, e as máquinas da empresa ameaçam recomeçar a chacina de 1982. Em 1982, o massacre foi perpetrado e, após o massacre, vieram as lastimáveis e tardias explicações”. 302

Concluiam anexando ao processo um “auto de manutenção de posse”, assegurando a posse aos moradores da Vila Beco do Resvalo. No entanto, como demonstram os dados anteriormente apresentados, a maior parte daqueles moradores não logrou ali permanecer até os dias de hoje, inclusive com a ocorrência de episódios lastimáveis. Dentre as áreas de reassentamento dos mesmos, temos lugares ainda mais distantes, próximos à divisa com Alvorada.

Conforme observam pesquisadores que estudaram a história do bairro Chácara da Fumaça, a “administração Dib, portanto, detecta o problema e alinha uma área periférica entre os planos do poder público, decretando, agora institucionalmente, que o assunto habitação fará da Chácara da Fumaça um escoadouro populacional”. O problema, é evidente, tratava-se da eterna “necessidade de transladar, para outros locais, grupos que povoam pontos mais centrais de Porto

Alegre”303.

301Processo supracitado. Negritos nossos, sublinhados originais. 302Processo supracitado. 303JOBIM, FERNANDEZ, GOMES e SANTOS (1999). p. 50

130 A Chácara da Fumaça se localiza no bairro atualmente denominado Mário

Quintana. É ali que se encontra a Vila Safira, presente no relato de Dona Jurumi sobre os mecanismos de pressão para o deslocamento dos moradores do

Resvalo304. No dia 21 de março de 1977 uma reportagem da Folha da Tarde revela a precariedade de condições dos moradores daquele local. Diante da ausência de abastecimento de água, os moradores exploravam um poço, então fechado, para satisfazer às suas necessidades. Na ocasião, eles haviam instalado reservatórios em suas casas. Também havia queixas quanto à quantidade ínfima de ônibus, superlotados, para levá-los ao Centro de Porto Alegre305.

No levantamento de 1998 das vilas de Porto Alegre, destacava-se a origem dos moradores de algumas vilas da Chácara:

“Os habitantes do Loteamento Vila SÃO FRANCISCO são oriundos da antiga Vila Beco do RESVALO (03 – Três Figueiras), atualmente reduzida a um núcleo. Foram reassentados por Eduardo Kalinowski, um dos proprietários da área no bairro Três Figueiras. Foi fornecida documentação de compra e venda, ou seja, são proprietários. Os habitantes da vila sem nome aqui denominada Vila Rua SEIS DE NOVEMBRO no 285 também são oriundos da antiga Vila Beco do RESVALO e estão em área de propriedade do DEMHAB, sem nenhum tipo de contrato junto a este”306.

Contudo, se observarmos no mapa a localização da rua Seis de Novembro, veremos que esta vila não é anônima, tendo uma designação bastante significativa. A região no entorno da Estrada Martim Felix Berta, José Marcelino, e

Seis de Novembro chama-se “Vila do Resvalo”, numa clara homenagem ao lugar de origem. Também foi prestigiado o político que os teria ajudado – um pouco

304 Entrevista com Jurumi Pereira de Abreu no dia 26 de julho de 2004. 305Folha da tarde – 21/3/1977. Pesquisado no AHPOA – Coleção de recortes, recorte 7904 306 MORAES e ANTON (2000) p. 83

131 mais ao norte, situa-se a “Vila Valneri Antunes”. Através das denominações dadas

às vilas, eram ressaltados os vínculos com os lugares de origem, que não se pretendia apagar.

É possível traçar um paralelo entre o processo aqui analisado, ocorrido em espaço urbano em pleno século XX, com a constatação de Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, referente ao espaço rural e a períodos bastante anteriores. Aos pequenos produtores cabia

“o papel de ocupar a terra, desbravando-a e povoando-a, de modo a cumprir as tarefas que lhe foram sendo, gradativamente, exigidas. A área que ela ocupa, e continuará ocupando, é aquela não ocupada pela agricultura comercial especulativa (no interior da plantation) e não ambicionada por interesses mais poderosos (a fronteira aberta), daí o caráter precário e transitório do uso e posse da terra por pequenos proprietários e lavradores sitiantes, como se fossem eles pequenos ocupantes ocasionais de glebas provisórias”. 307

Com alguns pequenos reparos e adequações necessárias, acreditamos que esta citação serve em muito para a análise dos territórios negros urbanos e vilas populares aqui analisadas. Ao menos, ela assemelha-se às palavras, bastante simples, mas esclarecedoras, de Dona Jurumi Pereira de Abreu. Como já dito anteriormente, ali era considerado “lugar que ninguém quer”, inclusive pela

Prefeitura. Completava ela o relato: “ninguém quer, até aparecer os bobos pra limpar”308.

Esvaziados os terrenos do mato que ali havia, ocorreu uma urbanização mais intensa das ruas nas proximidades da comunidade “Família Silva” e da Vila

Beco do Resvalo, em paralelo a um processo de expulsão dos que ali viviam.

307LINHARES e SILVA (1981) p. 119 308Entrevista com Jurumi Pereira de Abreu no dia 26 de julho de 2004.

132 Temos, de acordo com dados obtidos junto à Secretaria do Planejamento

Municipal, as seguintes datas de abertura das vias no entorno :

• Av. Luiz Manoel Gonzaga:

.1entre Carlos Gomes e Ildefonso Simões Lopes – 1953

.2entre Ildefonso Simões Lopes e rua 1o de janeiro – 1971

.3entre rua 1o de janeiro e Rua Rosa – 1975

.4entre Rua Rosa e 70,00 metros além de rua Iracema – 1975

.5entre o trecho anterior até a rua Portulaca – 1980

.6entre a rua Portulaca e a rua Tomaz Gonzaga – 1978

• Rua Portulaca – somente 52,00 m, cadastrados em 28/7/1997

• Rua Ewaldo Campos – cadastrada em toda extensão em 11/12/1997 –

Loteamento Praça Paris

• João Caetano

1. entre Carlos Gomes e Ildefonso Simões Lopes – 1965

2. entre Ildefonso Simões Lopes e Miosótis – 1968

3. entre Miosótis e Portulaca – 4/2/2004

4. trecho entre divisa loteamento Praça Paris e Avenida Nilo Peçanha –

cadastrado em 11/12/1997

Além destas, poderíamos ainda citar o exemplo da rua Labélia. Quando militantes do Movimento Negro realizaram o vídeo citado na Introdução, e apresentado no II Fórum Social Mundial, em fevereiro de 2002, foram registradas diversas fotos. Nelas, a rua inexistia. Em maio de 2004, quando tivemos os primeiros contatos com a comunidade, ela já estava pavimentada. A área adjunta

133 a esse recente logradouro também sofreu modificações profundas que têm implicações diretas para a “Família Silva” como veremos mais adiante.

A demanda deles, que ali logrou permanecer, representa uma manifestação clara por parte desse grupo de que não deseja mais cumprir o papel de desbravadores transformados em ocupantes ocasionais, mas sim de cidadãos plenos em seus direitos, como oportuniza o Artigo 68 ADCT por eles invocado.

As diferenças culturais e os critérios de pertencimento territorial:

Para os orgãos municipais, até poucos anos atrás, a “Família Silva” tratava- se de mais uma “ocupação irregular” da cidade sendo confundida com a “Vila

Beco do Resvalo”, embora existam diferenças importantes entre os dois grupos de ordem territorial, espacial, histórica e étnica que nos foram reveladas ao longo do processo de pesquisa 309.

Enquanto no terreno dos “Silva” existem cercas e marcos de concreto colocadas por seus antepassados que estabelecem a sua área de domínio em

309 É o que pudemos perceber ao longo do processo de pesquisa quando entramos em contato com diversas secretarias do município

134 relação ao entorno e as casas estejam dispostas no pátio de forma espaçada em função da lógica familiar interna, no “Resvalo” observa-se uma disposição seqüencial das residências que obedece aos fluxos migratórios campo - cidade que deram origem a essa ocupação na década de 60, isto é, em período posterior

à chegada de seus vizinhos. Com o passar do tempo, a população dessa vila passou por um processo de diminuição, especialmente nos últimos vinte anos. A

“Família Silva”, pelo contrário, só fez aumentar. A ocupação do território que iniciou com a primeira casa construída pelo avó materno no início da década de

40 hoje conta com sete unidades residenciais.

Na “Vila Beco do Resvalo” predominam as famílias brancas. Na “Família

Silva”, como descrevemos anteriormente, as alianças matrimoniais se realizam com outras pessoas negras do entorno com as quais eles mantém intensa

135 sociabilidade em função da proximidade, do trabalho ou da amizade. Os dois grupos utilizam categorias distintas para se referirem uns aos outros. Os “Silva” são “a Família do Tio Donga310”com a qual se relacionam muito bem. Os vizinhos são os moradores do “Resvalo”, nome que teria sido atribuído pelo avô materno do grupo como apontamos anteriormente.

Essas diferenças não impedem, no entanto, que esses dois grupos experienciem processos de exclusão similares. Estamos nos referindo às tentativas de remoção que os moradores da “Vila Beco do Resvalo” sofreram desde a década de 80, em grande parte já concretizadas, e às que os Silva vêm tentando impedir seja por via judicial, seja pela via da organização política em termos étnicos. Poderíamos nos perguntar por que os habitantes da vila não fazem uso da mesma estratégia de resistência atualmente empregada pela

“Família Silva”, tendo em vista que o critério de auto-identificação se coloca como suficiente para a caracterização das comunidades remanescentes de quilombos.

Se atentarmos para as implicações simbólicas de tal atitude, veremos que no contexto brasileiro das relações interétnicas classificar-se como negro, ou ainda, como comunidade remanescente de quilombo, representa assumir uma vinculação com uma população historicamente explorada, oprimida e discriminada. O direito à propriedade da terra reconhecido no artigo 68 relaciona- se a uma herança, baseada no parentesco, a uma história baseada na reciprocidade e na memória coletiva, e a um fenótipo como princípio gerador de identificação, onde o casamento preferencial atua como valor operativo no interior do grupo. Esse mecanismo legal só se coloca como uma opção para aqueles

310 Apelido pelo qual era conhecido Euclides José da Silva, pai dos integrantes da “Família Silva”.

136 grupos que já possuem familiaridade com o idioma étnico, que trazem consigo em suas trajetórias este critério como fator de constrangimento e de identificação.

Esse não é o caso dos moradores da Vila do Beco do Resvalo. Para eles é o antagonismo entre as classes sociais, como o uso recorrente da categoria burgueses em seus relatos evidencia, que conforma suas experiências em sociedade.

O acesso à terra e a legitimidade da sua apropriação pelos integrantes da

“Família Silva” dependeram e ainda dependem da descendência aliada à residência na área de domínio da família de origem, de forma semelhante ao que foi observado em outras comunidades negras remanescentes de quilombo no Rio

Grande do Sul311. Os que não nasceram ali, mas se casaram com descendentes da família ancestral e passaram a residir na terra adquiriram, através do vínculo matrimonial, uma condição de pertencimento que os insere na categoria de parentes e membros do grupo312. É importante ressaltar que após as uniões, os casais passaram a residir no território com o consentimento dos mais velhos do grupo. Tal inclusão, segundo o relato de Lígia, era mais fácil se o casamento fosse oficializado, de papel passado. A explicitação desse critério demonstra que a inclusão de novos integrantes no grupo – que tinha implicações em termos de compartilhamento dos recursos territoriais para a moradia - seguia parâmetros de moralidade e hierarquia inerentes ao código familiar do grupo, parâmetros estes que permitiram a perpetuação da “Família Silva” enquanto tal. Nesse sentido, a família se coloca enquanto locus da sobrevivência e resistência do grupo, ou seja,

311 Vide LEITE (2002) 312 Como observa WOORTMANN (1995) entre os camponeses a propriedade é um valor social intimamente associado ao princípio da descendência ou sucessão. O parentesco é um código através do qual se expressam as relações de propriedade.

137 se constitui numa referência a partir da qual os indivíduos desenvolvem suas práticas de representação do mundo e de si mesmos (Pereira e Gomes, 2002).

A inclusão de novos membros através do vínculo matrimonial possibilita aos mesmos a aquisição de uma condição de pertencimento que os insere na categoria de parentes, mas é a descendência aliada à residência na área de domínio da família de origem que confere aos indivíduos a denominação de herdeiros, donos da terra segundo o direito costumeiro e as regras de uso e usufruto do território que os seus antepassados lhe deixaram. Edésio, viúvo de

Zeneide da Silva, irmã dos integrantes da comunidade, nos explicou a partir da sua situação quais eram os elementos que definiam quem eram aqueles que tinham direitos sobre o local. Ele nos disse que participava das reuniões para representar seus filhos que são menores de idade, e que quando recebeu propostas de vender o pedaço de terra onde está a sua casa respondeu que não podia negociar com algo que não lhe pertencia. Afinal de contas, só era dono quem tinha o sangue. Nesse caso, os filhos dele com Zeneide. A situação de Lídia

Marina da Silva, irmã que mora na Lomba do Pinheiro, esclarece um pouco mais essa distinção entre parentes e herdeiros. Quando perguntamos numa reunião com o grupo se os que estavam fora teriam direitos sobre a terra, nos responderam que não por que quem saiu desistiu de lutar por ela, mas tal afirmação foi feita com ressalvas. Era preciso ter em conta a necessidade da pessoa em questão. No caso da irmã, casada e devidamente estabelecida em outro bairro da cidade, não haveria por que a mesma querer retornar. Em relação

à situação de uma prima que fora despejada dali por ordem judicial, “Lucinha”, a disposição dos informantes era outra. Como era sabido que ela estava vivendo de

138 favor em casa alheia e tinha crianças pequenas, caso houvesse interesse de sua parte poderia retornar. A única condição imposta para seu reingresso no seio do grupo era a de que não trouxesse consigo seu companheiro, porque ele tinha mania de cercar a casa como se esta fosse um forte. Como é possível observar no croqui e nos mapas que seguem em anexo, a apropriação do território é feita de forma simultaneamente individual e coletiva. Cada um tem a sua casa e alguns até tem pequenas cercas de madeira vazadas, mas todos circulam livremente pelo pátio, usam os banheiros existentes e consomem as frutas provenientes das

árvores ali plantadas. O uso individual das residências está englobado pelo uso coletivo do território e de seus recursos naturais.

O destaque dado a esses parâmetros que definem quem é de dentro e quem é de fora do grupo, quem tem direito a terra e quem não tem, tem por objetivo demonstrar que existem critérios que regulam essas questões. No entanto, não significa dizer que eles são fixos, imutáveis, muito pelo contrário, eles são forjados em função de contextos específicos para os quais deve-se atentar e tendo em vista as relações de poder internas a comunidade.

Percebemos, ao longo do processo de pesquisa, e principalmente nas reuniões com o grupo, que são os irmãos mais velhos, e deles, as mulheres que detêm voz de comando e poder de decisão sobre os assuntos internos à comunidade. Poder este que lhes foi transmitido por sua avó materna, considerada uma verdadeira

“matriarca”. Segundo Jorge Bertoino Gomes313, amigo e compadre do grupo,

Naura coordenava quem fazia casa em cada lugar. Com a sua morte, são os pais,

Anna Maria e Euclides que assumem esse posto. Posteriormente, com o

313Entrevista com Jorge Bertoino Gomes realizada no dia 21 de maio de 2004.

139 falecimento da esposa é este último que desempenha esse papel até os últimos anos de sua vida.Conforme Zuleica, sua filha:

“– Não tinha muita casa porque o pai não deixava fazer muita casa, né. Até a Ligia quando casou foi uma briga. Só tinha a casa da minha avó. Não queria que ficasse aquele monte de casa. Pra fazer uma casa tinha que consultar minha avó. Minha avó tinha que consultar meu pai. Não podia fazer uma casa ali, mas depois ele deixou.”314

Outras pessoas habitaram o território ocupado pelos Silva com o consentimento dos mesmos em períodos anteriores como, por exemplo, João, filho de criação de Naura e Alípio e sua esposa Antonia315, uma idosa negra conhecida pelo apelido de Vó Pequena316 e Zaida, sogra de Lígia Maria. Via de regra, os relatos permitem observar uma conduta de inclusão e auxílio a pessoas socialmente necessitadas e desamparadas, através de redes de solidariedade baseadas nas relações de vizinhança, compadrio e parentesco, corroborando as afirmações de Leite (1995) quando esta diz que elas - as famílias negras - compartilham experiências de vários tipos, trajetórias comuns, situações de discriminação e de super-exploração, circunstâncias de desencontros e desarticulações grupais. A inclusão dessas pessoas no território, evidencia tentativas de construção de vínculos perdidos, num determinado lugar, compondo uma cartografia negra onde o trajeto desses indivíduos configura um desenho social formado por pontos fixos, esses pontos remetendo à territorialidade negra na cidade, aos seus espaços historicamente constituídos, que servem de refúgio e

314Entrevista com Zuleica Briolandi da Silva realizada no dia 12 de junho de 2004. 315 João refere-se a outros dois filhos de criação de Alípio e Naura que os visitavam quando ele era criança. 316 Em entrevista realizada com Lígia Maria da Silva, em 25 de maio de 2004, ela declara que seu avô Alípio deixou Vó Pequena botar sua casinha no terreno por que ela já era muito velha e as filhas não podiam cuidar dela. Anos depois ela teria retornado para a Rua Anita Garibaldi para viver com uma de suas filhas.

140 onde essas pessoas encontram a solidariedade étnica.

O território ocupado pelo grupo já foi espaço de trabalho e continua sendo de residência, mas possui outros sentidos que exploraremos a seguir.

O uso de plantas medicinais e outras formas de cura:

Um dos patrimônios deixados pelos antigos é o da medicina caseira, que é bastante praticada entre os integrantes da “Família Silva” e cujo conhecimento foi adquirido dos antepassados. Além do uso de chás e da garrafada de ervas, são comuns os relatos sobre as benzedeiras que habitaram o território e as quais constantemente se recorria: Vó Pequena e Zaida. Vó Pequena, conforme relatos, benzia com tesoura e brasa. Segundo Pereira e Gomes (2002), o emprego de ervas curativas, rituais religiosos, símbolos e objetos sagrados são alguns sinais que indicam tratar-se de meios terapêuticos que mantêm em relação à medicina institucionalizada posturas de oposição e interação. O ato de benzer, isto é, de dirigir ao outro um enunciado com determinada intenção forma um conjunto de significados que estão diretamente relacionados com os modelos culturais dos grupos que exercem essas práticas. Para as pessoas inseridas nesses modelos o mundo e o sujeito são concebidos como uma totalidade. A ruptura dessa totalidade instaura a desordem contra a qual é necessário proteger-se através do auxílio de forças sobrenaturais, sejam santos, espíritos dos ancestrais, anjos ou objetos sacralizados. Estar doente é, desta forma, vivenciar o estado de desordem ou de quebra na harmonia nas relações do indivíduo com o mundo, consigo mesmo e com os semelhantes. Nesse sentido, o conceito de benzeção

141 implica, em diversos contextos sociais, uma ação simultânea de gestos e palavras sagradas com o objetivo de reorganizar o mundo.

Próximo das casas da comunidade pudemos observar canteiros destinados ao cultivo de ervas medicinais que são utilizadas na forma de chá para combater ou prevenir doenças. A partir dessas informações traçamos o quadro abaixo sobre o uso de plantas medicinais pelo grupo:

– Tipos de ervas Tipos de Doenças Modos de preparo Boldo Estomâgo Chá Guaco Gripe Chá Poejo Bronquite Chá Limão Gripe Chá Erva Cidreira Calmante Chá Hortelã Vermes Chá Alfazema Tosse Chá ********** Pontada Chá Fonte: Informações obtidas com os integrantes da “Família Silva”.

Conforme o relato de Lorivaldino, foi sua sogra que lhe ensinou a usar uma planta existente no território que ocupam, em forma de chá para combater a

“pontada”. Tal fato ocorreu quando sua filha Beatriz tinha alguns meses e ele e sua esposa não tinham dinheiro para comprar os remédios para combater o quadro infeccioso diagnosticado na criança. A menina curou-se, e a partir de então cada vez que alguém da comunidade apresenta os sintomas da referida doença é medicado com o referido chá que é normalmente denominado “chá da pontada”. Os netos de Naura lembram que a avó preparava xaropes de guaco com mel, no entanto, esse saber fazer não lhes foi transmitido, ficando guardado apenas nas lembranças de seus integrantes o seu uso no caso de tosse.

142 Lorivaldino da Silva faz garrafadas como aprendeu com a sua avó materna,

Naura. Trata-se de uma infusão de ervas que é utilizada para combater dores musculares. Lígia Maria da Silva, sua irmã, conta que ao chegar do hospital onde ganhara uma de suas filhas, estava com as pernas paralisadas. Ela acredita que foi graças ao fato de sua avó lhe aplicar a garrafada nas pernas que ela recuperou os movimentos. Seu irmão coloca numa garrafa arruda, alecrim, catinga de mulata e mestruz e completa com álcool. A eficiência desse remédio, segundo seu produtor, aumenta na medida em que as ervas estão bem curtidas. O critério para definir tal estado é quando a mistura se torna um líquido verde de cheiro forte.

Para fazer a garrafada, Lorivaldino colhe as ervas no território atualmente ocupado e na área que foi, segundo relatos dos integrantes da comunidade, subtraída pelas construtoras. Este local encontra-se dentro da área reivindicada pelo grupo. Há menos de um ano atrás contava com densa vegetação, e hoje é alvo de sistemáticas terraplanagens de preparo do solo para construção civil. Tal situação coloca em risco a continuidade desse saber fazer transmitido através das gerações e que constitui um modo de conhecimento tradicional de fundamental importância para a identificação do grupo enquanto tal, na medida em que os ingredientes para o preparo da garrafada estão ameaçados de desaparecer para dar lugar a condomínios residenciais de luxo.

143 144 145 146 O uso de chás e infusão de ervas pelos integrantes do grupo se faz de forma concomitante com a medicina convencional. No entanto, o acesso ao atendimento médico, constitui até os dias de hoje, um problema para a comunidade que se reflete nos vários óbitos já mencionados, nas freqüentes complicações decorrentes de doenças respiratórias e nas faltas ao trabalho e a escola por parte dos moradores. Os postos de saúde mais próximos se recusam a atendê-los em função deles morarem no bairro Três Figueiras, uma zona considerada de camadas médias, no qual os recursos públicos de saúde e educação não teriam tanta demanda. Esta situação obriga que os integrantes da

“Família Silva” se desloquem para outros locais da cidade à procura de atendimento.

O envolvimento da comunidade com o território que habita que se explicita na memória social que esta detém sobre ele e as áreas que lhe cercam, nas formas de apropriação - seja pelo cultivo ou residência, individual ou coletiva -, também se expressa através das inscrições produzidas pelos seus integrantes nesse espaço. Referimo-nos as árvores existentes no entorno da área. As figueiras, seringueiras, caneleiras e árvores frutíferas plantadas por seus antepassados demarcam um processo histórico de conquista, ocupação e fixação deste grupo num determinado território. Grande parte das cercas e dos marcos de

147 granito que davam sustentação a elas estão encobertos pela vegetação, ou foram deslocados por aqueles que tinham interesse na área, mas as árvores, devido as suas dimensões e a consciência ambiental que gradualmente infiltrou-se nas políticas de urbanização, permaneceram. Esses marcos botânicos que delimitam o espaço construído pela comunidade são bastante valorizados pelos Silva em função do significado que adquire para eles: uma evidência de que seus antepassados ali estiveram, cultivaram aquela terra e dela obtiveram frutas e sombra, mas também criaram raízes em um lugar para poder viver à sua maneira, segundo suas regras, sem estar subordinado a ninguém.

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