UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

DISSERTAÇÃO

MORALIDADES, REGULAÇÕES, SABERES E AS “PERVERSÕES” NO HEAVY METAL

RICARDO CORREIA CARRAMILLO CAETANO

2016

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MORALIDADES, REGULAÇÕES, SABERES E AS “PERVERSÕES” NO HEAVY METAL

RICARDO CORREIA CARRAMILLO CAETANO

Sob orientação da Prof.ª Dr.ª Alessandra Rinaldi

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.

Rio de Janeiro, RJ Abril, 2016 FICHA CATALOGRÁFICA

UNIVERSIDAE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

RICARDO CORREIA CARRAMILLO CAETANO

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.

DISSERTAÇÃO APROVADA EM 16 de maio de 2015.

______Prof.ª Dr.ª Alessandra Rinaldi (Orientadora)

______Prof.ª Dr.ª Maria Elvira Benitez

______Prof.ª Dr.ª Luena Nunes

AGRADECIMENTOS

Seria um exagero dizer que esta foi a parte mais difícil de escrever, mas ainda sim foi difícil. São tantas pessoas para agradeçer que tive que fazer uma lista para não me esquecer de nenhuma. Tantas pessoas me ajudaram ao longo destes 2 anos de mestrado. Começo pela minha orientadora Alessandra de Andrade Rinaldi que embarcou em um projeto cujo objeto e tema talvez pouco conhecesse mas que, a seu modo, conseguiu adaptá-lo e encontrar um meio termo entre o que eu propuz e o que ela dominava. Apostou em minhas ideias (nem sempre claras) e mostrou bastante entusiasmo com os rumos do trabalho, por isso agradeço imensamente. Agradeço as professoras Luena Pereira (UFRRJ) e Maria Elvira Diaz Benitez (Museu Nacional) que não são só membros da banca mas pessoas que me auxiliram de algum modo ao longo de minha trajetória acadêmica. Deram importantes dicas e foram exenciais para os rumos tomados no trabalho. Sem a disciplina feita com a Maria Elvira meu trabalho não seria o que é hoje. Agradeço imensamente a meus pais, Lucio e Edith, por sempre me apoiarem, acreditarem em mim e por sofrerem comigo a cada momento de estresse que o mestrado proporciona. Mas também por viverem comigo cada momento de felicidade e de conquistas. A cada etapa estiveram comemorando comigo desde o sucesso no concurso, fazer a qualificação, nos útlimos momentos de conclusão da dissertaçõa até agora na defesa. Tentaram me acalmar quando precisei, me orientar, acreditaram na minha capacidade (as vezes até demais, como muitos pais fazem). Agradeço por tudo. Jacqueline Lobo de Mesquita, não tem como medir a importância de sua aparição em minha vida. A primeira coisa que posso dizer é que não teria passada em um colocação tão boa na prova de mestrado se você não tivesse aparecido do nada na minha vida. Como alguém pode fazer tanto por alguém em apenas 2 anos? Você fez. Me ajudou a crescer, ter mais confiança em mim mesmo e acreditar nas coisas. Certamente daqui a muitos anos ainda vou contar para os outros qual foi a história do mestrado e começaria “Teve uma menina que disse que queria estudar comigo e desde então...” passamos juntos no concurso. Enfim, muito obrigado por tudo que fez e fará por mim, poderia fazer um texto de agradecimentos só pra você. Agora tem uma série de pessoas que a rigor nem tinham a obrigação de me ajudar mas que sem eles tudo teria sido mais dificil. Começo por um amigo que dividiu a casa comigo, com quem dividi algumas das minhas angustias pessoais, alguém que me fazia dar risadas o amigo de mestrado Nathanael Araujo. Sem ele meu projeto não teria mudade para o que se tornou hoje. Graças as conversas e as dicas tive a ideia do novo projeto. Ao meu amigo que frequenta o underground punk rock Dylan Oliveira cuja ajuda foi essêncial para o meu trabalho. Não só deu dicas de que caminhos poderiam me ajudar, mas me fez ter contatos de suma importância para o doutorado e que ampliaram minha visão sobre o que é produzido no Brasil. Fora, é claro, o entusiamos apresentado pelo meu tema o que se sempre dá ânimo de continuar.

Uma surpresa agradável ao longo do curso foi encontrar uma amiga da graduação fanática por heavy metal Laryssa Owsiany (UFRRJ). A ajuda nem sempre bem só de dicas ou conselhos, mas de conversar informais e entusiasmadas sobre um assunto. E era o que acontecia. Agradeço pelos lembretes de que ia ter show da banda x ou da y. Ainda não tive a oportunidade de ir ao famoso Roça n Roll de que ela tanto falou, mas irei. Por fim, não poderia deixar de agradeçer a professora Miriam Santos (UFRRJ) que mesmo não sendo minha orientadora sempre demonstrou preocupação e atenção com meu tema. A todo instante apontava materiais que poderiam me ajudar, bem como mandava e- mails que pudessem me interessar, fez questão de aparecer em algumas das minhas apresentações. Teriam muitas outras pessoas a agradecer, amigos que fiz ao longo do mestrado como Allysson Lemos, Thiago Splatter, Daniel Renan, aos professores do PPGCS, amigos de tempos mais antigos como Pedro Henrique Rocha, Alberto Janeiro Neto, Ingrid Miguez dentre tantos outros que atravessam nossa vida e deixam suas marcas eternizadas em nossas memórias. Agradeço ao CNPQ pelo fomento da minha pesquisa que seria muito mais difícil sem o auxílio.

RESUMO

CAETANO, Ricardo Correia Carramillo. Representações de “Perversões” no Heavy Metal. Dissertação de Mestrado, PPGCS/UFRRJ, 2016.

O presente trabalho tem como objetivo tratar das tentativas de regulação de músicas de heavy metal. No ano de 1985 ocorreu uma audiência no Senado norte americano a pedido de uma associação chamada PMRC (Parental Music Resource Center). A audiência tinha como objetivo tratar da regulação do mercado fonográfico. Mobilizando discursos moralizantes sobre as músicas de heavy metal a associação propôs medidas regulatórias a indústria fonográfica. As acusações ao estilo passavam por discursos sobre os supostos “perigos” do que chamaram de rock pornográfico, deixando claro que os conteúdos sexuais preocupavam a associação. Para mostrar os efeitos da atuação da PMRC foi escolhida a banda norte americana por perceber que ela sofreu as consequências das exigências da associação. A hipótese é de que a banda sofreu com a regulação por conta dos conteúdos tidos como “perversos”, “grotescos” e “perigosos” de suas músicas. Pretende-se mostrar o que orientava a atuação da PMRC em suas ações contra o heavy metal, mas também as respostas da banda Cannibal Corpse ás tentativas de regulação. Para tanto será focada a audiência no Senado por ver neste momento o ápice da atuação da associação, bem como por ser um momento privilegiado para perceber quais categorias são utilizadas nos discursos de membros da PMRC para embazar suas acusações ao heavy metal. Também será apresentada uma visão histórico cultural a partir de teóricos de diferentes áreas das ciências humanas como Sociologia, Antropologia, Filosofia e história, por exemplo. Narrativas, contidas em um documentário sobre a banda, em um livro biográfico e entrevistas contidas em sites na internet sobre a banda que apresentem o ponto de vista da mesma também serão utilizados para melhor compreender o ponto de vista da banda sobre os conteúdos de sua obra e sobre os impactos das tentativas de regulação em sua trajetória artistica. O que se percebe é que, a partir de 1984, gerou-se um “pânico moral” com relação as obras de algumas bandas. Esse “pânico” gerou efeitos posteriores ao ano de atuação da PMRC que pode ser percebido na banda Cannibal Corpse.

Palavras-chave: Heavy Metal, Perversão, PMRC, Cannibal Corpse. ABSTRACT

This paper aims to deal with attempts to regulation of heavy metal music. In 1985 there was a hearing on the North American Senate at the request of an association called PMRC (Parental Music Resource Center). The hearing was intended to deal with the regulation of the music industry. Mobilizing moralizing discourses about heavy metal music the association proposed regulatory measures the music industry. The charges in the style passed by speeches about the supposed "dangers" of what they called pornographic rock, making it clear that the sexual content was a big concern to the association. To show the effects of the PMRC action the North American band Cannibal Corpse was chosen to realize that she suffered the consequences of the association's demands. The hypothesis is that the band suffered from the regulation because of content regarded as "wicked," "grotesque" and "dangerous" of their music. It is intended to show what guided the performance of the PMRC in their actions against the heavy metal, but also the answers of the band Cannibal Corpse ace attempts to regulation. For that will focus the audience in the Senate to see this time the apex of the association's activities, as well as a privileged moment to understand which categories are used in the speeches of members of the PMRC to support their charges to heavy metal. It will also be presented a cultural historical view from theoretical to different areas of the humanities such as sociology, anthropology, philosophy and history, for example. Narratives, contained in a documentary about the band, in a biographical book and interviews contained in sites on the Internet about the band to present the point of view of the same will also be used to better understand the point of view of the band on the contents of his work and on the impact of attempts at regulation in its artistic trajectory. What we see is that, from 1984, was generated a "moral panic" about the works of some bands. This "panic" generated aftereffects per year of operation of the PMRC that can be perceived in the band Cannibal Corpse.

Keywords: Heavy metal, Perversion, PMRC, Cannibal Corpse. . LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Composição do Comitê em Comércio, Ciência e Transporte...... 31

Figura 2 – Participantes da Audiência proposta pela PMRC...... 32

Figura 3 – Imagem lançada para divulgar a música Animal (Fuck Like a Beast) da banda norte americana W.A.S.P (esquerda)...... 34

Figura 4 – Álbum Pyromania da banda norte-americana Def Leppard (direita)...... 34

Figura 5 - Selo criado pela PMRC que deveria estar em capas de CDs cujo conteúdo fosse considerado explícito, seja com violência, sexualidade ou satanismo...... 40

Figura 6 - Capa do CD Yesterday and Today (1966) da banda The Beatles...... 56

Figura 7 – Capa do albúm Reek of Putrefaction da banda Carcass, de 1988...... 58

Figura 8 - Capa original do álbum , segundo álbum da banda Cannibal Corpse de 1991...... 63

Figura 9 - Capa original do álbum Tomb of the Multilated, de 1992...... 64

Figura 10 - Capa do album Worm Infested de 2003...... 71

Figura 11 – Capa do album Vile de 1996...... 71

Figura 12 - Album The Wretched Spawn de 2004...... 72

Figura 13 - Album Evisceration Plague, de 2009. Uma das capas que fugiu às características comuns à banda...... 80

LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Tabela com as “quinze imundas” da PMRC...... 29

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

A construção do objeto ...... 13

O objetivo e metodologia ...... 17

Justificativa ...... 21

A organização da dissertação...... 24

CAPÍTULO 1 - MORALIDADE E REGULAÇÃO ...... 26

Surgimento da PMRC ...... 27

Audições, consensos e dissensos ...... 30

Entre a liberdade de expressão e a moralidade das famílias ...... 40

A moralidade e o saber sobre o “perverso” ...... 43

CAPÍTULO 2 - HEAVY METAL E A “PERVERSÃO” ...... 47

A “perversão” como problema ...... 48

Heavy metal: música dos “perversos” ...... 54

Cannibal Corpse e o goregrind/splatter ...... 60

CAPÍTULO 3 - CANNIBAL CORPSE E A APROPRIAÇÃO DA IDEIA DE PERVERSO ...... 66

A apropriação do perverso: o grotesco, o terror e a violência como capitais culturais e econômicos ...... 66

A a apropriação do perverso e a “criação” do mundo artístico ...... 73

Cannibal corpse e sua relação com regulações ...... 76

CONCLUSÃO ...... 83

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 85

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ...... 86

ANEXO I ...... 89

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LISTA DE ABREVIATURAS PMRC – Parental Music Resource Center. RIAA – Recording Industry Association of America. PAL – Parental Advisory Label. CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito. EUA- Estados Unidos da America. MTV- Music Television. NAB – Nacional Association Broadocasters.

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INTRODUÇÃO

A construção do objeto A escolha por trabalhar com heavy metal se deu por alguns fatores que podem merecer uma breve explicação. Primeiramente é preciso dizer que sou um pesquisador que faço parte do universo que investigo, uma vez que sou um consumidor desse estilo de música, portanto de alguma forma faço parte do que Howard Becker (1977) chama de mundo artístico. Isso se dá pelo fato de pessoalmente gostar e consumir produtos vinculados ao meio da produção e do consumo do heavy metal tal como CDs e camisetas assim como participar de alguns eventos, como shows e outros eventos musiciais. Mas é preciso esclarecer meu posicionamento ambíguo. Diferente de outros pesquisadores de heavy metal não posso dizer que seja um “pesquisador nativo”, pelo menos não totalmente. Minha relação com o estilo heavy metal se dá muito mais como um apreciador do que um frequentador do meio. Por este motivo tenho certo conhecimento, mas acredito ter muito mais dúvidas e questionamentos do que certezas sobre o meu objeto. Portanto, os questionamentos que levaram a criação deste projeto se dão muito mais por alguém que tem pouco relacionamento pessoal com seu objeto do que por um “nativo” propriamente dito. Outro ponto interessante de se pensar é que este trabalho é fruto do que Howard Becker (1998) poderia chamar de acaso. Na tentativa de entrar para o mestrado na UFRRJ fiz uma disciplina como aluno especial. Disciplina de gênero na qual conheci a professora Alessandra Rinaldi, minha atual orientadora. Com a necessidade de fazer um trabalho final e ao mesmo tempo um projeto de mestrado, um trabalho sobre questões de gênero no heavy metal foi pensado para a disciplina. Neste trabalho queria entender como os idiomas de gênero organizavam certas práticas de integrantes do estilo heavy metal. Acreditando, como mostram autores como Robert Walser (1993), que certas noções de masculinidade parecem prevalecer no heavy metal pretendia verificar, a partir de uma comparação entre dois estilos de heavy metal diferentes como construíam essa noção e como lidavam com os afastamentos desse ideal. A partir da comparação entre os estilos Glam Metal e o , ambos dos anos 1980, pretendia perceber se o primeiro não havia sido muitas vezes considerado como não sendo uma banda de heavy metal por adotar uma forma de se vestir e uma “performance feminina” vista como não adequada à forma supostamente tradicional do heavy metal até então. No caso, uma questão de gênero pareceu interessante para pensar a aparente “exclusão” do Glam: o fato de serem considerados “afeminados”. As bandas deste estilo utilizavam uma

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indumentária normalmente usada por mulheres como meia calça, maquiagem, produtos para cabelo e a cor rosa predominava em seu vestuário. Uma vez que heavy metal era construído, suportado em idioma de masculinidade, em um visual no qual predomina normalmente a cor preta, as bandas Glam acabavam destoando desse estilo de se vestir. Ao assistir a alguns documentários sobre heavy metal me deparo com a fala de alguns membros de bandas da época estudada (década de 1980) que parecem utilizar uma linguagem generificada para se referir ao subgênero do heavy metal chamado de Glam Metal. Termo como “gaymetal” foram utilizados por Dave Mustain para desmerecer o Glam. O guitarrista da banda Slayer foi outro que se referiu às bandas de Glam como não sendo de heavy metal. Outro evento que pode estar relacionado com o “acaso” foi o que me levou ao projeto atual. Na busca por me aprimorar nas teorias de gênero, fui aconselhado a fazer uma disciplina no PPGAS/Museu Nacional. Disciplina esta que tratava de questões relacionadas com gênero e sexualidade. Nela tive que, mais uma vez, fazer um trabalho de conclusão de curso que deu origem à reelaboração quase que completa do projeto inicial de mestrado. O heavy metal continuou como um objeto, mas a questão central mudou. Ao invés de tratar das questões de gênero, passo a tratar dos sentidos atribuídos por uma associação de pais (Parental Music Resource Center – PMRC), nos Estados Unidos da América na década de 1980, à incitação aos atos sexuais presentes nas músicas considerados “perversos” assim como práticas consideradas criminosas ou desviantes como assassinatos contidos em obras de bandas de heavy metal. Dentre estes atos estão uma série de comportamentos sexuais (masturbação, sadomasoquismo, necrofilia e sexo sem consentimento, por exemplo), que foram ressaltados pelos integrantes do PMRC. Vale ressaltar que tais atos vêm sendo classificados pelos campos médico e psiquiátrico desde o final do século XIX como distúrbios. Esses atos foram vistos, no século XIX, pelo psiquiatra austríaco Krafft-Ebing (1840-1902) como “distúrbios” psiquiátricos, materializando assim a medicalização (FOUCAULT, 2001; CARRARA, 1998) dos comportamentos perversos. Ele foi um pioneiro ao descrever o comportamento sexual dentro de um quadro de categorias patológicas, considerando-os como distúrbios sexuais por conta de uma visão psiquiátrica vigente na segunda metade do século XIX, como nos dizem alguns autores como Foucault (1977) e Georges Lanteri-Laura (2001). De forma a materializar essa ótica sobre a patologização dos “prazeres perversos” bem como de determinados comportamentos tidos como anormais, integrantes do PMRC, em

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meados dos anos 1980, manifestam-se contrários à música heavy metal e com isso fazem propostas para regular o mercado fonográfico. A associação se preocupava com o que seus filhos estavam consumindo em termos de música e quais possíveis malefícios poderiam ser trazidos. Esta associação foi formada no ano de 1985 pela esposa de Al Gore, Tipper Gore. Segundo colunista do site Whiplash, Tipper Gore escutava junto com sua filha a trilha sonora do filme Purple Rain (1984) na qual continha a música Darling Nikki do músico Prince. Ela ficou espantada com a quantidade de referências à masturbação e assim foi criada a PMRC1. Criaram uma série de exigências que estão principalmente relacionadas ao incômodo com o conteúdo de obras, principalmente, mas não só, de músicas de heavy metal. Discursos sobre a decadência da família nuclear, da violação da moral e bons costumes eram proferidos pela PMRC como argumentos contra as músicas que abordassem temas violentos e relacionados a sexo, assunto que será abordado no capítulo 1 desta dissertação. Uma das primeiras ações da PMRC foi mandar uma carta para a RIAA (Recording Industry Association of America), uma organização que representa as gravadoras americanas, pedindo que atendessem a uma série de exigências2. Dentre elas, estavam a obrigatoriedade de imprimir letras nas capas, manter as capas com cenas explícitas, com conteúdos sexuais ou violentos embaixo das prateleiras e reavaliar os contratos de músicos que empregam violência e conteúdo sexual explícito nos palcos. Em 1985 algumas gravadoras aceitaram colocar a etiqueta cunhada pela PMRC com os dizeres explicit content ou explicit lyrics. Entre os ganhos da PMRC estão a criação e aprovação da utilização destes selos bem como a preocupação das gravadoras americanas com as suas capas. A partir da apreensão de uma série de tentativas por parte da PMRC (Parents Music Resource Center) de impor limites à venda e veiculação de determinadas obras, optei por analisar essa atuação. Sendo assim, busquei apreender de que forma os sentidos sobre sexualidades consideradas perversas, violência e comportamentos tidos como desviantes poderiam provocar ações dos integrantes da PMRC com fins de uma regulação do mercado fonográfico norte-americano. Para tanto escolhi como objeto as iniciativas do PMRC e especificamente seus efeitos sobre a banda Cannibal Corpse por acreditar que algumas das

1 Fonte: WHIPLASH. A História da Parents Music Resource Center. Disponível em: . Acesso em 04 de maio de 2015. Este site contém muitas informações sobre a atuação da PMRC. 2 Fonte: RIAA. Recording Industry Associantion of America. Disponível em: . Acesso em 21 de maio de 2015. Site oficial da RIAA.

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capas de seus álbuns e de suas músicas materializavam de forma típica o que os integrantes da PMRC desejavam expurgar. A escolha da banda se deve ao fato dela ter sofrido as consequências das exigências da PMRC. Essas consequências serão mais bem trabalhadas nos capítulos dois e três da dissertação. Por agora é suficiente dizer que todas as capas de CD da banda tinham o selo explicit content que, por sua vez, trazia algumas outras consequências como ser recusada em algumas lojas (como Wallmart, por exemplo) que se negavam a vender álbuns de bandas que tivessem esse selo em suas capas de CD. A banda surgiu na década de 1990 nos EUA e é conhecida por abordar em suas músicas temáticas relacionadas com práticas tidas pelos próprios nativos (os músicos e os fãs) como “agressivas” e “violentas”. Dentre os principais temas estão a necrofilia (prática sexual ou desejo por cadáveres), zumbis e alguns atos de violência como assassinatos e estupros. Além das letras contendo temas de violência, as capas eram uma das principais formas de veiculação da imagem da banda e os maiores alvos de regulação. Vale lembrar que Cannibal Corpse faz parte de todo um movimento de bandas de (subgênero do heavy metal que se utiliza de uma forma considerada mais “pesada” de tocar e cujo tema mais abordado é a morte, surgido na década de 1990) que já vinham valorizando temáticas cada vez mais vistas como “agressivas”. Desde a década de 1980 uma série de bandas já vinha abordando assuntos mais “violentos”, desde guerras até focar na morte por si mesma como tema (de onde surge o nome Death Metal, por exemplo). Cannibal Corpse surge como um dos grandes expoentes do Death Metal. Uma banda que levou para níveis ainda mais “violentos” o que já vinha sendo feito por outras bandas da época. Bandas de Thrash Metal já traziam agressividade em suas composições, mas flertavam mais com temas políticos e religiosos. Bandas como Cannibal Corpse e Carcass passam a trazer o sangue, as doenças, os corpos dilacerados, seja por atos de violência, seja por razões médicas (como a hanseniase e câncer) e assassinatos. O que me chama atenção sobre essa banda foi o fato de que, desde a década de 1990 (data do lançamento do seu primeiro álbum), tiveram que substituir suas capas originais por capas alternativas que não tivessem imagens com conteúdos “violentos” de maneiro tão explícita. Essas regulações se devem às exigências da PMRC. É possível saber sobre essas tentativas de regulação a partir de documentos existentes na internet (como a transcrição de uma audiência ocorrida no senado norte-americano que tratou do chamado Rock Pornográfico), o documentário sobre a banda e sua autobiografia.

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Frente às considerações acima construí como objetivo tratar da visão da PMRC com relação aos conteúdos das músicas de heavy metal e da visão que os próprios músicos da banda Cannibal Corpse têm de atos considerados pervertidos contidos no estilo de heavy metal ao qual a banda pertence. O trabalho de Laura Lowekron (2011) sobre a CPI da pedofilia foi o que despertou para hipótese desta dissertação. No trabalho, Lowekron pretende analisar como a visão da pedofilia sofreu mudanças ao longo do tempo. A partir de um recorte histórico sobre as transformações ocorridas antes e a partir da modernidade, sobretudo séculos XVIII e XIX, ela mostra como questões como a autonomia do sujeito, a noção de indivíduo e a de consenso vieram à tona. Inspirada pelos estudos sobre a medicalização dos comportamentos sexuais, a autora mostra como o discurso médico sobre o pedófilo ganha força e coloca o agente do ato sexual numa categoria patológica. Mas além de colocar o agente do ato sexual, coloca também as pessoas que fantasiam essas práticas ditas perversas. O mesmo parace ter ocorrido na época que a PMRC surge vendo no heavy metal um problema, sobretudo sua relação como determinados comportamentos tidos como anormais. O que a associção estava de alguma forma tentanto “penalizar” eram as representações, as fantasias de atos desviantes e não os atos em si. Portanto, os músicos de heavy metal, que utilizavam estes atos como inspiração para suas músicas, eram considerados “perversos” simplesmente por tratarem destes assuntos (assassinatos, estupros, necrofilia, zumbis, sexo grupal, entre outros) em suas músicas.

O objetivo e metodologia As ações da PMRC na década de 1985 e as capas “censuradas” da banda Cannibal Corpse, sobretudo na década de 1990, são objeto dessa dissertação. Portanto será tratado da relação entre moralidade e regulação nos EUA na década de 1980 de forma a ampliar a discussão sobre as sanções morais que chegam a se tornar uma tentativa de regulação. Para isso utilizarei o exemplo da PMRC, comitê que ajuda a perceber como a partir de mobilizações de certos valores morais, organizações sociais pretendem regular o mercado fonográfico. Intenciono compreender como as verdades médico-psiquiátricas e a psicologia são usadas como discursos que organizam moralidades em torno de parte da música norte- americana da época. Desta forma, a intenção é apreender de que formas julgamentos morais estão suportados por essas verdades médico-psiquiátricas.

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Sendo assim, almejo apreender como, a partir de uma leitura moral feita pelos membros da associação já mencionada de letras de músicas escritas por alguns, membros de grupos de rock e heavy metal puderam ser entendidos como seres “perigosos”, capazes de poluir as moralidades das famílias norte-americanas (Douglas, 1991). Tendo em vista que a atuação mais expressiva da PMRC parece ter se resumido à década de 1985 tomarei como principal fonte de informação a transcrição da audiência pública feita no senado dos EUA que tratou das questões levantadas por essa associação contida num livro chamado Hearings before the Committee on Commerce, Science and Transportation: United States Senate, Ninety-ninth congress; First Session on Contents of music and the lyrics of record. O livro está presente na Universidade de Michigan, nos EUA, mas está disponível on-line3. Além da transcrição completa da audiência o documento conta também com um apanhado de notícias sobra a atuação da PMRC, cartas enviadas ao senado dos EUA por importantes figuras (presidente da Associação Nacional de Radiodifusores, presidente da Associação Americana da Industria, por exemplo) norte-americanas e uma carta da RIAA (Recording Industry Association of America) em resposta às declarações da PMRC. Por meio da análise dos discursos proferidos nessa audiência no Senado norte- americano e dos outros documentos contidos nesse livro, pretendo perceber quais categorias são mobilizadas pela PMRC nas suas acusações contra o heavy metal. Nessa Audiência, membros da PMRC como Tipper Gore (esposa do então senador Albert Gore), Susan Baker (esposa do Secretário do Tesouro, James Baker), Pam Howar (esposa do corretor de imóveis Washington Raymond Howar) e Sally Nevius (esposa do ex-Presidente do Conselho da Cidade de Washington John Nevius) em conjunto com Senadores como John D. Rockfeller IV (Virginia Ocidental), Albert Gore (Tennense), Ernest Rollings (Carolina do Sul), John Danforth (Virginia e presidente da Comissão) que apoiavam a causa discutiam que medidas deveriam ser tomadas em relação as músicas de rock que traziam letras “perversas” exaltando o “mal sexo” (RUBIN, 1993). A ideia é perceber que tipo de categorias são mobilizadas nas acusações feitas contra os músicos de Rock e heavy metal. Que consequências tais falas tiveram? Produziram atos de censura ou de regulação? Bem como saber quais questões eram levantadas pelos representantes da PMRC e pelos políticos que apoiaram a causa. Pretendo tratar de uma lista de músicas criada pelo PMRC intitulada filth fithteen (quinze indecentes/imundas). A lista trás um dado interessante, dentre as quinze, nove trazem

3 Fonte: HATHITRUST. Disponível em: . Acesso em 21/03/2015.

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conteúdo sexual e destas nove, duas trazem a masturbação como um problema. Foucault diz que o sexo é afastado das crianças, mas não de forma a silenciar os discursos sobre o sexo e sim normalizá-lo, dar novos contornos a ele. Desta forma surgem novas definições de quem e de que forma pode-se falar sobre sexo com as crianças e adolescentes. Como ele mesmo afirma mesmo o “não dizer” já pode ser uma ferramenta de análise e compreensão de uma lógica discursiva sobre o sexo. O que se diz e o que não se diz devem ser levados em consideração, bem como as formas de dizer e não dizer. Gayle Rubin também traz dados interessantes sobre a realidade nos EUA da década de 1950 a 1980 que ajudam na compreensão do tema estudado. Segundo a autora no ano de 1977 a oposição de “direita” à homossexualidade, educação sexual e pornografia se tornou central na política norte-americana. A razão é que perceberam o apelo de massa que essas questões ligadas à sexualidade traziam. É quando surge a Lei de Proteção da Família, que apesar de nãoter sido apovada, gerou discussões constantes sobre o tema e cujos reflexos, diz Rubin, ainda são vistos. O caso da PMRC e a tentativa de regular as capas de CDs poderia ser um deles. Rubin não nega Foucault quando ele diz que ao contrário de haver uma enorme repressão com relação aos dircusos sobre o sexo há uma explosão discurssiva, mas acredita que o tenham interpretado mal. Rubin está claramente lutando para qua haja mudanças no cenário de repressão sexual da época que escreve e acredita que muitos usam Foucault para mostrar que não há repressão. É preciso compreender melhor o que Foucault diz sobre a repressão. Segundo Rubin, Foucault não diz que não há repressão, mas sim que os mecanismos de controle da sexualidade são amplos e muitas vezes sutis e complexos de forma que, mesmo falando a todo instante de sexo não se deixa, por isso, de controlá-lo. Há, por exemplo, um controle da forma de falar de sexo, dos locais apropriados e uma clara separação entre quem pode e quem não pode falar (as crianças, por exemplo, não podem falar de sexo, pois nem mesmo teriam em suas mentes ainda puras qualquer noção sobre o sexo). Esta é divisão entre lícito e ilícito a partir de regulações legais, tais como as citadas por Rubin. A respeito da banda, analiso as capas dos CDs bem como pesquiso a produção de um sentido de si, a partir de distintas fontes como entrevistas feitas com os integrantes da banda, um documentário feito sobre a banda Cannibal Corpse (produzido por Denise Korycki4) e um livro biográfico escrito por Joel McIver (2014), autor de outras biografias sobre bandas de

4 É uma diretora e produtora de vídeos chamada pela gravadora Metal Blade Records, uma das mais importantes gravadoras de heavy metal, para gravar um DVD sobre a banda Cannibal Corpse. O DVD foi gravado para ajudar no lançamento do mais novo CD, o décimo terceiro, da banda intitulado Skeletal Domain (2014).

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heavy metal. A ideia é apreender, por meio dessas fontes documentais, dados sobre suas escolhas musicais, assim como as respostas que produziram às tentativas de regulação feitas por membros da PMRC. A partir desse material almejo compreender algumas das estratégias adotadas pela banda e por seus produtores para driblar alguns problemas que poderiam surgir com as ações da PMRC. Estratégias como colocar as capas originais na parte de dentro dos CDs, criando capas alternativas que ficavam na parte exterior, capas estas que se adequavam às exigências de um certo discurso moral. A utilização da capa se dá pelo fato de que nas falas da PMRC não eram só as letras das músicas os alvos, mas também as capas e videoclipes. No entanto, não faço uma análise estética ou artística da obra, mas sim das discussões morais que foram geradas pelo material que será apresentado. Para tanto, me apoio em informações fornecidas pelo site obsessed with skulls5 que traz todas as capas que a banda teve que alterar para se adequar às exigências do mercado fonográfico. Considero a importância da reflexão acerca desse material uma vez que possibilita a compreenção do embate entre liberdade de expressão e moralidades familiares no contexto norte-americano do período. A proposta é também apresentar a discussão sobre a problematização dada à sexualidade, à noção de “perversão” e aos atos considerados desviantes. A partir de autores como Michel Foucault (1977), Georges Lanteri-Laura (2001) e Gayle Rubin (1993) será feita uma exposição da sexualidade como um problema e qual a especificidade deste problema a partir do século XIX. Para tratar da noção de desvio, será utilizado o autor Howard Becker (1991) do livro Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Pretende-se com isso situar o estilo splatter e a banda Cannibal Corpse nesta discussão. Parto de reflexões téoricas que me levam à sexualidade, suas práticas e os comportamentos tidos como desviantes, não a partir do ponto de vista biológico e sim analisando-os em termos discursivos (Rubin, 1993) e relacionais. Portanto, neste trabalho procuro compreender o caráter de construção social de determinadas categorias, tais quais “perversão” e desvio, dentre outras que serão utilizadas aqui. Ainda é preciso mostrar à luz, de autores como Sérgio Carrara (1998) e os outros já citados, a relação entre essas categorias e o crescimento de um discurso psquiátrico normalizador. O foco de Carrara é na relação entre crime e loucura, mostrando, assim como Lanteri-Laura (2001), que há um momento específico no qual essas duas noções começam a

5Fonte: OBSESSED WITH SKULLS. Disponível em: . Acesso em 22 de fevereiro de 2015.

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se relacionar. O pensamento psquiátrico assume um papel preponderante, inclusive com relação à justiça, como afirma Foucault (2001) em “Os anormais”. Ao refletir sobre a produção do perverso, será explicado o que é o splatter, assim como falarei um pouco da banda Cannibal Corpse. Para isso, utilizarei a explicação do estilo splatter trazida por Leonardo Campoy (2011) que mostra a relação deste estilo com temas considerados “patológicos”, termo utilizado pelo autor para definir este estilo de heavy metal. O splatter\goregrind\grindcore são boas ferramentas para compreender o que é chamado de perverso, grotesco ou monstruoso, bem como as utilizações dessas categorias em manifestações artísticas, no caso o heavy metal. Como a maior parte dos trabalhos sobre heavy metal trazem a sua história ou genealogia prefiro, assim como o sociólogo Leonardo Campoy (2010), não tratar novamente desta história. O intuito é aproximar, por meio dessa produção documental, da visão dos integrantes da banda sobre a tentativa de regulação por parte da PMRC sofridos pela banda, bem como o que os próprios músicos narram sobre estes casos. Por fim, trarei uma bibliografia sobre a socilogia da arte. Teorias como a da recepção parecem interessantes para pensar em que momento no processo de criação de uma obra de arte (uma música, um quadro, uma poesia, um romance) o significado da obra é definido. Ao contrário do que poderiam pensar alguns, o significado de uma obra não reside na própria obra e nem no autor (criador, artista), mas sim no momento que ela chega no público, ou seja, na recepção. Autores como Roland Barthes (1968) e Foucault (1970) tratam das questões relacionadas à autoria questionando a noção de autor. Já Vera Zolberg (2006) e Howard Becker (1977) tratam de teorias da sociologia da arte que nos ajudam a compreender a arte enquanto um processo socialmente construído. Assim sendo, os significados das músicas de Cannibal Corpse vão além do controle da própria banda, dando espaço para diversas interpretações, inclusive as dadas pelos seus críticos. Será disponibilizado mais espaço para apresentar o ponto de vista da própria banda, bem como de narrativas sobre ela. Parece interessante saber quais as inspirações e quais termos eles mesmos utilizam para definir suas músicas, bem como saber um pouco o que pensam sobre as críticas feitas a eles.

Justificativa No que diz respeito ao recorte espaço-temporal do objeto, bem como a própria escolha do objeto, afirmo que, com relação ao primeiro ponto foi selecionado a década de 1980 a

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1990, nos EUA, por ser o palco das discussões levantadas pela PMRC sobre os conteúdos das obras de bandas de heavy metal, foi em parte da década de 1980 que alguns músicos foram chamados para esclarecer algumas questões sobre o conteúdo de suas músicas6. Também, nesta época se dá a criação do selo de classificação (criado pela PMRC) que indicava qual a faixa etária de consumidor deveria comprar o produto, além de indicar, já na capa do CD, qual o conteúdo (por exemplo, violência, sexo, satanismo). No que diz respeito à escolha da banda, essa se deu porque, tendo em vista que o heavy metal se subdivide em vários estilos, é preciso fazer um recorte. Nem todos são bons objetos para pensar as polêmicas trazidas pela PMRC, pois nem todos trazem em suas músicas conteúdos que não são aceitos moralmente por serem considerados “perversos”. Muito embora a PMRC tivesse como alvo quase tudo o que era produzido por músicos de heavy metal, alguns temas ultrapassavam esse estilo musical tais quais a decadência da família nuclear e a condenação de conteúdos ligados à violência e sexualidade. Poderia escolher outros gêneros musicais, entretanto escolhi o heavy metal e mais especificamente o splatter em razão de esse gênero materializar uma espécie de caricatura dessa ideia de “perverso” construída pelos membros da PMRC. Splatter é um nome dado inicialmente para um estilo de filmes de terror surgido por volta da década de 1960. Os filmes desse estilo têm como enfoque cenas violentas, com sangue e muitas vezes mutilações de corpos. São, sobretudo, do gênero cinematográfico de terror e mostram cenas muitas vezes distantes da realidade. Algumas cenas são tão exageradas que chegam a provocar risos nos espectadores. É importante lembrar que estilos de obras como o Splatter não começaram no cinema. O teatro francês Grand Guignol já em 1897 exibia peças com cenas extremamente realistas que já pertenciam ao gênero terror e tinha como objetivo chocar a plateia. Tempos depois a indústria cinematográfica passa a utilizar as temáticas e técnicas deste tipo de teatro criando estilos de filmes de terror cujos enredos giram em torno de exibições de cenas de violência de todos os tipos. Dentre elas uma das características é a relação com práticas sexuais consideradas como fora do padrão da sexualidade normal7.

6Fonte: WHIPLASH. História da PMR. Disponível em: . Acesso em: 04 de maio de 2015.

7 A Antropóloga Gayle Rubin (1993) discute como no mundo ocidental se construiu uma estratificação sexual por meio do qual sexo conjugal entre dois parceiros é considerado normal em oposição a práticas sexuais consideradas ilícitas, dentre as quais estão a maior parte das parafilias.

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O estilo ou subgênero (nome dado às diversas vertentes do heavy metal) chamado de Splatter é um dos que mais aborda temas “violentos” ao estilo de filmes de terror sanguinolentos. Há um certo senso comum de que a definição de Splatter foi criada pelo diretor de cinema George A. Romero, criador de alguns dos mais famosos filmes de zumbis como Dawn of the Dead (Despertar dos mortos, 1978). Este estilo de heavy metal normalmente é associado a outros dois o goregrind e o grindcore. Uma das principais caracteristicas destes estilos é a frequente abordagem de temas considerados “nojentos”, “violentos” e com práticas sexuais “extremas”. A distinção entre eles parece ser mínima, segundo o antropólogo Leonardo Campoy (2008). Este autor agrupa-os numa mesma classificação quando analisa vertentes do Metal Extremo8 brasileiro chamando-os de “patológicos”. Ele justifica este róulo por conta dos temas abordados pelas bandas pertencentes a esse subgênero do heavy metal e por ser a forma como os próprios nativos classificam esses estilos de música. Ao longo da história do heavy metal algumas vertentes (chamadas de subgêneros) trilharam um caminho que as levou progressivamente a valorizar cada vez mais temas violentos, muitas vezes considerados tabus para a sociedade ocidental. Mas, como dito anteriormente, Cannibal Corpse é considerada pioneira na sua forma de fazer música, tanto pelo aspecto sonoro, como o gráfico e o das letras ressaltando a violência e a “perversidade” em suas letras e capas de Cds. Vale ressaltar que, apesar desse campo de produção ser vasto, pouca discussão foi feita a partir de exemplos tirados do heavy metal. Alguns dos trabalhos mais conhecidos sobre heavy metal tratam de algumas características do estilo. Alguns autores vindos das Ciências Sociais abordam questões mais antropológicas como o ponto de vista dos nativos sobre suas produções musicais e de sentido sobre si. No trabalho de Leonardo Campoy (2011), o meio chamado de underground é o foco. Ele estuda o chamado metal extremo. Já o antropólogo Pedro Alvim (2001) estudou a relação entre heavy metal e o satanismo, a partir de uma etnografia no Rio de Janeiro que pretendia esclarecer essa relação e a utilização de símbolos considerados sagrados para o cristianismo. Já alguns autores como o musicólogo Robert Walser (1993) e a socióloga Danna Weistein (1991) pretendem compreender o heavy metal desde a sua relação com a música clássca até a forma de se vestir e as atitudes, pretendendo, assim, desmistificar uma série de preconceitos para com o estilo. Muito embora todos tenham tratado do heavy metal de forma ampla mostrando, inclusive, a relação do estilo com práticas sexuais consideradas perversas, não deram ênfase à

8 Metal extremo é uma vertente de heavy metal que engloba uma série de subgêneros, tais como Thrash, Death e Black Metal, por exemplo. Essa é a vertente que tenta levar o som e as temáticas ao extremo.

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atuação da PMRC. Acredito que, a partir de um estudo mais aprofundado sobre a PMRC e sobre como a banda Cannibal Corpse se constrói como “patológica”, é possível perceber como são mobilizadas as relações entre moralidades, regulações, práticas sexuais dissidentes e comportamentos desviantes.

A organização da dissertação Esta dissertação está divida em três capítulos. No primeiro capítulo intitulado “Moralidade e regulação” pretendo abordar as ações da PMRC e responder algumas questões, como: quais as categorias mobilizadas pela associação? Quais eram as acusações feitas as bandas de heavy metal? O que de fato era exigido pela PMRC, censura ou regulação? Para responder a estas questões, será utilizado a audiência ocorrida no Senado norte-americano. Audiência que contou com a participação de membros da PMRC, Senadores norte- americanos, músicos que foram chamados para depôr e representantes de associações ligadas à indústria fonográfica como a RIAA e a NAB (Associação Nacional de Radiodifusores). No segundo capítulo “Heavy metal e a perversão” pretende-se perceber a relação entre os temas das músicas e capas de CDs da banda Cannibal Corpse e a algumas noções de “pervesão” construídas social e historicamente. Através de um apanhado teórico sobre os autores que tratam de noções de “perversão”, pretende-se perceber como os conteúdos da banda são julgados a partir de noções morais e médico-psiquiátricas. Autores como Foucault e Lanteri-Laura ajudam a pensar a relação entre “perversão” e sexualidade. Enquanto autores como Howard Becker ajudam a pensar a noção de comportamentos desviantes, que são produzidos socialmente por parte da sociedade. Ambas as noções parecem estar presentes nas músicas de Cannibal Corpse. Atos como estupros, assasinatos e necrofilia por exemplo são comuns nas letras e em algumas capas de CD. O terceiro capítulo apresenta narrativas sobre a banda e um pouco do ponto de vista da banda. Com a finalidade de saber como a própria banda vê a si mesma e algumas das críticas feitas a eles. Trata-se também de algumas teorias de arte que nos ajudam a compreender a relação entre autor e obra, a fim de melhor entender como se dá a construção do sentido de uma obra de arte. No caso específico deste trabalho, a obra de arte em questão é a música da banda Cannibal Coprse bem como a arte de capa da banda, principais alvos de críticas. Se no primeiro capítulo o objetivo era apreender quais categorias a PMRC mobilizou, neste capítulo pretende-se perceber quais eram utilizadas pela banda. Categorias como “grotesco”, “extremo”, “ofensivo” entre outras são utilizadas pela própria banda para definir o conteúdo

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de seu trabalho. Mas, ao mesmo tempo, as entrevistas deixam claro o teor de fantasia das músicas, com os integrantes da banda querendo afastar os conteúdos das músicas o máximo possível da realidade. Jorge Leite Jr. contribui quando mostra que algumas características do pornô bizarro são tão extremas que geram repulsa, mas também o riso. Algo semelhante ocorre com a banda estudada. Espera-se que os capítulos se comuniquem entre si tendo como fio condutor a noção normalização de alguns atos sexuais e o que levou e leva um julgamento moral a ser também legal. Não é possível desvencilhar a discussão das perversões da noção de uma normalização (Foucault, 1977) de determinados atos, bem como a relação entre a moral cristã, a medicina e os mecanismos de regulação da sexualidade. Por isso alguns autores como Foucault, Gayle Rubin, Lanteri-Laura e Jorge Leite Jr. estão presentes em toda a dissertação.

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CAPÍTULO 1 - MORALIDADE E REGULAÇÃO

Neste capítulo será tratada a relação entre moralidade e regulação nos EUA na década de 1980. No caso específico desta dissertação, é trabalhado o caso da PMRC (Parental Music Resource Center), associação norte-americana formada por esposas de políticos norte- americanos com o intuito de regular a indústria fonográfica na década de 1985. Intenciono apreender como as verdades médico-psiquiátricas e a psicologia são usadas como discursos que organizam moralidades em torno de parte da música norte-americana da época. Desta forma a intenção é apreender de que formas julgamentos morais estão suportados por essas verdades médico-psiquiátricas. Ao longo do capítulo é possivel perceber que a partir de uma leitura moral feita pelos membros da PMRC de letras de músicas escritas por alguns membros de grupos de rock e heavy metal estes puderam ser entendidos como seres “perigosos”, capazes de poluir as moralidades das famílias norte-americanas (Douglas, 1991), sobretudo poluir a mente das crianças e jovens. Tomo como exemplar a iniciativa da PMRC de tentar regular o mercado fonográfico norte-americano por meio de mobilizações sociais e políticas, a fim de “auxiliar” (como afirmam os próprios represetantes da PMRC) os pais no reconhecimeto de conteúdos considerados “moralmente impróprios” para seus filhos. Na década de 1985 a PMRC teve o ápice de sua atuação quando levou seus questionamentos ao Senado norte-americano. A partir da transcrição da audiência pública feita no senado dos EUA9, que tratou das questões levantadas por essa associação, é possivel perceber como discursos eram mobilizados pela associação. Os participantes da Audiência são membros da PMRC como Tipper Gore (esposa do então senador Albert Gore), Susan Baker (esposa do Secretário do Tesouro, James Baker), Pam Howar (esposa do corretor de imóvei Washington Raymond Howar) e Sally Nevius (esposa do ex-Presidente do Conselho da Cidade de Washington John Nevius). Os Senadores

9 Transcrição contida no livro chamado Hearings before the Committee on Commerce, Science and Transportation: United States Senate, Ninety-ninth congress; First Session on Contents of music and the lyrics of record. Disponível em: . Acesso em 22 de maio de 2015.

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como John D. Rockfeller IV (Virginia Ocidental), Albert Gore (Tennense), Ernest Rollings (Carolina do Sul), John Danforth (Virginia e presidente da Comissão) que apoiavam a causa, discutiam se algumas medidas deveriam ser tomadas em relação às músicas de rock que traziam letras “perversas”, exaltando o “mal sexo” (RUBIN, 1993) e comportamentos moralmente não aceitos. Ao concluir o capítulo espero apreender que tipo de categorias são mobilizadas nas acusações feitas contra os músicos de Rock e heavy metal. Que consequências tais falas tiveram? Produzirams atos de censura ou de regulação? Bem como saber quais questões eram levantadas pelos representantes da PMRC e pelos políticos que apoiaram a causa. Se alguma medida legal era proposta ou se a seção serviria apenas como forma de divulgação das apreensões da PMRC.

Surgimento da PMRC Embora não tenha encontrado documentos que comprovem ou que esclareçam totalmente como a PMRC surge existem, alguns pontos que sempre aparecem quando se lê sobre essa associação. Em 1984 a esposa do senador norte-americano Al Gore10, Tipper Gore, ouve junto com sua filha de 11 anos uma música do Prince chamada Darling Nikk (acontecimento relatado na matéria de jornal presente no anexo 1). A letra da música fala de masturbação feminina. Tipper Gore fica chocada com o conteúdo da música e se preocupa com o que sua filha pode estar ouvindo. A partir dessa preocupação particular com sua filha e do que foi chamado pelo sociólogo norte-americano de “um incomum esforço combinado de alguns parentes preocupados” (DEFLEM, 2001) começa a formação da PMRC. Tem-se como mito de origem que coincidentemente na mesma época outras esposas de importantes políticos e personalidades norte-americanos também tiveram uma experiência parecida com a de Tipper Gore. Susan Baker, esposa do secretário do tesouro americano James Baker, descobre a letra da música Like a Virgin de Madonna. Pam Howar, esposa de um imporante executivo imobiliário Raymond Howar, supostamente “reparou nas letras das músicas que escutava em suas aulas de aeróbica e pensou que eram as mesmas músicas que sua filha ouvia”. Junto a outras esposas de políticos importantes dos EUA, como Sally Nevius (esposa do ex-presidente do conselho Washington DC, John Nevius) e Ethelynn Stuckley (esposa do ex congressista Williamson Stuckley) é formada a PMRC.

10 Político do Partido Democrata, Vice presidente na era Bill Clinton (1993-2001) e candidato à presidência da República no ano 2000, tendo perdido para o canditado Goerge W. Bush.

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Assim que a PMRC se forma mais figuras importantes como congressistas dos EUA e representantes vão se filiando à associação. Segundo Deflem (2001) No mesmo dia da formação da PMRC, Edward Fritts, Presidente da Associação Nacional de Radiodifusores, escreveu mais de 800 cartas para estações de rádio e TV alertando contra álbuns com letras pornográficas, e pedindo para que as gravadoras fixassem papéis com as letras para todos os álbuns mandados para as rádios (Senado norte-americano 1985:133, ver Kaufman 1986:236). Os principais objetivos da PMRC eram informar pais sobre as músicas seus filhos estavam expostos através das rádios, lojas de discos, ou em concertos e pedir à indústria fonográfica uma restrição voluntária com atenção à música explícita e obscena. (DEFLEM, 2001)11. O intuito principal da PMRC segundo falas dos próprios membros da associação era alertar os pais sobre o que seus filhos estavam ouvindo e consumindo. Além disso, determinar que a indústria fonográfica criasse restrições vonluntariamente contra músicas de conteúdo “obsceno” e “pornográfico”. Para tanto, criaram uma lista de exigências que pretendiam que a RIAA (Recording Industry Association of America, agência que regula o mercado fonográfico nos EUA, tendo 85% da produção musical relacionada a ela) atendesse. Lista de Exigências da PMRC12: 1. Deixar a letra impressa nas capas dos álbuns. 2. Manter capas com conteúdos explícitos debaixo das prateleiras. 3. Estabeler um sistema de classificação como aqueles usados nos filmes. 4. Estabelecer uma classificação para concertos. 5. Rescindir os contratos de artistas que utilizam violência ou comportamento sexual explícito em palco. 6. Estabelecer uma vigilância da mídia por cidadãos e gravadoras, que pressionaria meios radiodifusores a não levarem ao ar “talentos-questionáveis”. A primeira ação da PMRC foi mandar uma carta à RIAA. Pouco tempo depois a RIAA se manifestou dizendo que a única exigência que seria atendida seria a de colocar um selo genérico nos produtos que contivessem conteúdos explícitos, seja relacionado às práticas sexuais, violência ou religião (sobretudo acusações de satânismo)13. O representante das gravadoras, Stanley Gortikov, afirmou que era muito difícil categorizar ou definir o que era “explícito”, assim como era muito difícil controlar um volume tão grande de artistas e CDs

11 On the same day of the PMRC’s formation, Edward Fritts, President of the National Association of Broadcasters (NAB), wrote over 800 letters to radio and TV stations warning against pornographic record lyrics, and requesting that record companies affix lyric sheets to all recordings sent to broadcasters (U.S. Senate 1985:133; see Kaufman 1986:236). The main goals of the PMRC were to inform parents about the music their youngsters were exposed to through radio broadcasts, in record stores, or at concerts, and to request the record industry for voluntary restraint with regard to explicit and obscene music (DEFLEM, 2001). 12 Fonte: Shmoop. Disponível em: . Acesso em: 23 de abril de 2015.

13 A carta com a resposta da RIAA está presente no livro utilizado como fonte de acesso direto às informações sobre a PMRC.

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produzidos sob a responsabilidade da RIAA. Por estes motivos, era praticamente impossível atender a todas as demandas da PMRC. Outra medida tomada pela PMRC foi a criação de uma lista de músicas que eram moralmente condenadas pela associação. As músicas foram chamdas de filthy fitteen. Segue a lista (tabela 1):

Artista Música Classificação Judas Priest Eat me alive X (sexo) Motley Crue Bastard V (violência) Prince Darling Nikki X (sexo) Sheena Easton Sugar Walls X (sexo) W.A.S.P (Animal) Fuck like a beast X (sexo) Mercyful Fate Into the Coven O (ocultismo) Vanity Strap on Robby Baby X (sexo) Def Leppard High n’ Dry D/A (drogas ou alcool) Twisted Sister We’re not gonna take it V (violência) Madonna Dress you up X (sexo) Cyndi Lauper She bop X (sexo) AC/DC Let me put my love into you X (sexo) Black Sabbath Trashed A/D (drogas e alcool) Mary Janes Girls My house X (sexo) Venom Possessed O (ocultismo) Tabela 1 – Tabela com as “quinze imundas” da PMRC. Fonte: http://www.nndb.com/lists/405/000093126/. Acessado em 13 de maio de 2015.

Diante da falta de sucesso no contato direto com a RIAA, a PMRC tomou uma decisão mais séria. Levar ao Senado dos EUA suas preocupações. De acordo com Matheu Deflem (2001), essa associação via o Rock e parte do Pop como músicas pornográficas. Deflem afirma que após a criação dessa associação foi a primeira vez que as críticas ao Rock e Heavy metal tomaram proporções mais sérias. O heavy metal quase desde sua criação tinha como principal característica abordar temas que causassem choque com sua forma de tocar e suas letras, principalmente. Portanto não é novidade que estivesse sendo alvo de críticas. Mas, pela primeira vez, uma associação se organiza para tentar regular o que chamaram de rock pornográfico, porém isso não foi exclusivo para o heavy metal, haja visto que músicas de

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cantores(as) Pop também eram alvo. Sendo assim, tratava-se de uma ação moralizadora das músicas.

Audições, consensos e dissensos A chegada da PMRC ao senado também não é clara. Não foram encontradas fontes que descrevam ao certo como se deu essa relação. O que se sabe é que as integrantes desta associação eram esposas de políticos norte-americanos e que tiveram espaço no senado para trazer suas questões. Esse espaço foi concedido no dia 19 de setembro de 1985. Neste dia ocorreria uma reunião do Comitê de Comércio, Ciência e Transporte (assuntos sem relação com as questões da PMRC). Deste Comitê participavam alguns dos maridos de membros da PMRC, notadamente o presidente do Comitê John Danforth, o senador Al Gore e o senador Ernest Hollings. Ao que parece foi concedido à PMRC um tempo, antes de começarem as discussões relativas ao Comitê para que expusessem suas preocupações e argumentações. Na figura 1 pode-se ver a lista de quem compôs o Comitê14. A audiência ocorreu antes do Comitê abrir suas discussões. Alguns Senadores que participam do Comitê fizeram breves exposições de suas opiniões a favor da PMRC. Na figura 2 é possível ver a ordem das falas.

14 Disponível em: . Acesso em 13 de setembro de 2015.

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Figura 1 - Composição do Comitê em Comércio, Ciência e Transporte.

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Figura 2 – Participantes da Audiência proposta pela PMRC.

O presidente John Danforth abre a audiência. Ele começa afirmando que as discussões não eram sobre legislação. Tratava-se muito mais de uma discussão acerca do que vinha sendo conhecido como rock pornográfico. Nas palavras do próprio senador A razão para esta audiência não é promover alguma legislação... Mas simplesmente promover um fórum para arejar o problema ele mesmo, para ventilar o problema, para trazê-lo ao domínio público... para que todo o problema possa ser levado à atenção do povo Americano (U.S. Senate 1985:1) (DEFLEM, 2001)15.

15 The reason for this hearing is not to promote any legislation... But simply to provide a forum for airing the issue itself, for ventilating the issue, for bringing it out in the public domain... so that the whole issue can be brought to the attention of the American people (U.S. Senate 1985:1) (DEFLEM, 2001).

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Na sequência falaram os Senadores Ernest Hollings, Paul Trible e Al Gore. Cada um a seu modo se colocou a favor dos problemas trazidos pela PMRC. Hollings fez colocações mais enérgicas contra o que ele chamou de “porn rock” afirmando que procurará um jeito de acabar com a “sujeira ultrajante” da “música intercalada com pornografia”16. Ele chega a se referir à Primeira Emenda Constitucional dos EUA, conhecida por defender a liberdade de expressão. Sua alegação é de que os criadores da Primeira Emenda não tiveram contato com este tipo de música nem com as transmissões delas pelo mundo. O que significa dizer que ele questionava se a noção de liberdade de expressão se aplica à realidade da época (1985). Na sequência falou o Senador Trible. Ele trouxe a ideia do poder da música sobre os jovens, principalmente os que já apresentarem o que ele chamou de “problemas psicológicos”. Aponta também para a importância do envolvimento de toda a sociedade já que é uma responsabilidade de todos. Afirma que os pontos levantados na audiência não vão contra a Primeira Emenda Constitucional, portanto não ferem a liberdade de expressão. Por último falou o senador Al Gore, que afirmou compreender as preocupações da PMRC mencionando o profundo envolvimento de sua esposa. Ele afirma que tem duas questões que são as mais importantes para ele. Uma é que o que está em jogo não envolve a perda de liberdade de expressão, censura ou regulação (ele mesmo não dá maiores explicações quanto ao que entende por estes termos). O que se está pedindo é que a indústria fonográfica voluntariamente crie uma “auto-restrição” e um sistema que ajude os pais a “exercer o que eles acreditem que sejam suas responsabilidades com seus filhos” (U.S. Senate, 1985). No segundo ponto ele aponta para a peculiaridade dos materiais musicais de Rock produzidos na década de 1980 se comparados aos materiais passados, ou seja, produzidos desde a década de 1950. Diz que o Rock já sofria críticas, mas que nunca tinha visto algo como o que vinha sendo produzido naquele momento (em nenhum momento ele especifica ou explica o que quer dizer com isso). Ele pergunta aos presentes se os representantes da indústria fonográfica não se sentem responsáveis por isso.

16 O Senador utiliza os termos “outrageous filth” e “music interspersed with pornography”.

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Figura 3 – Imagem lançada para divulgar a música Animal (Fuck Like a Beast) da banda norte americana W.A.S.P (esquerda). Figura 4 – Álbum Pyromania da banda norte-americana Def Leppard (direita).

Após essa abertura com a fala de três dos senadores que faziam parte do Comitê em Comércio, Ciência e Transporte foi a vez da senadora Paula Hawkins que não fazia parte do Comitê. Ela reitera o que os outros disseram, mas traz ao público presente algumas capas de CDs de alguns artistas de heavy metal e música Pop. As capas mostradas foram das bandas W.A.S.P (figura 3), Def Leppard (figura 4) e Wendy O. Williams. Após a exposição da Senadora, é cedida a palavra aos representantes da PMRC. A primeira é Susan Baker. Ela começa apresentando a PMRC. Diz que a associação se formou da preocupação de mães de crianças pequenas e contra a influência de letras de músicas que trazem conteúdo sexual explícito, violência e o uso de drogas e álcool. Tendo dito isso, afirma que a principal preocupação da associação é educar e informar os pais sobre esses conteúdos alarmantes assim como pedir a indústria fonográfica que tome alguma atitude. Diante do volume crescente de músicas com conteúdos “inapropriados” Susan acha que alguma atitude deve ser tomada. Um ponto importante é a relação entre essas músicas e a enorme quantidade de adolescentes grávidas e suicidas que ela afirma estarem em proporções epidêmicas. O estupro também foi mencionado, mas não com tanta ênfase. Então se conclui a visão de Susan

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Baker sobre o quão nocivo pode ser a música heavy metal, música que leva a atos nocivos aos indivíduos, principalmente aos jovens e crianças. Dando sequência à fala de Susan Baker, Tipper Gore é encarregada de falar sobre as propostas da PMRC. Ela afirma que o que a PMRC pediu à RIAA é que colocasse um selo que avisasse aos pais sobre os conteúdos das obras que estavam no mercado. Desta forma, poderiam pautar suas escolhas a partir dos avisos expostos nas capas de CDs. Afirmou que tentaram negociar com a indústria fonográfica e chegaram ao acordo sobre o selo, ir além disso parecia inviável por uma série de questões. Um dos pontos mais importates da fala de Gore é quando ela mostra o que a PMRC não é. Ou quais não são as propostas do grupo. A primeira coisa que diz é “Uma classificação voluntária não é censura”, se referindo ao selo que deve ser colocado nas capas dos CDs. Eis parte da fala da Tipper Um selo voluntário não é censura. Censura implica restringir acesso ou suprimir conteúdo. Essa proposta não faz nenhum dos dois. Ainda, não envolve ação Governamental. Colocar o selo voluntariamente não infringe de maneira nenhuma a primeira emenda. Colocar o rótulo (selo) é um pouco mais do que a verdade na embalagem, por hora, um princípio honrado no nosso livre sistema empresarial, e sem a rotulação (colocar o selo) a orientação para os pais é praticamente impossível. Mais importante, o comitê deveria compreender que a PMRC não está advogando para nenhuma intervenção Federal ou legislação. Os execessos sobre os quais estamos discutindo foram permitidos para desenvolver o mercado, e nós acreditamos que as soluções para estes excessos deveriam vir da indústria que permitiu o crescimento deles e não do Governo. (U.S Senate, 1985).17 Os membros da PMRC terminam suas exposições com o que Tipper Gore chamou de “consultor” Mr. Ling. Não fazem uma apresentação muito detalhada dele, de forma que fica difícil saber quem é exatamente. Porém, em uma notícia do jornal Christian Science Monitor é esclarecido quem é Mr. Ling. O jornal diz que ele é um Reverendo, rock music expert e consultor da PMRC. Ele faz uma apresentação de slides com uma série de bandas. Ele expõe suas capas e comenta sobre suas músicas, sobretudo as letras. Bandas de heavy metal como a já citada W.A.S.P, AC/DC, Ozzy Osbourne, Judas Priest, Venom, Slayer, Motley Crue, bem como artistas do Pop como Wendy O. Williams e Prince foram citadas e tiveram algumas de

17 A voluntary labeling is not censorship. Censorship implies restricting access or suppressing content. This proposal does neither. Moreover, it involves no Government action. Voluntary labeling in no way infringes upon first amendment rights. Labeling is little more than truth in packaging, by now, a time honored principle in our free enterprise system, and without labeling, parental guidance is virtually impossible. Most importantly, the committee should understand the Parents Music Resource Center is not advocating any Federal intervention or legislation whatsoever. The excesses that we are discussing were allowed to develop in the marketplace, and we believe the solutions to these excesses should come from the industry who has allowed them to develop and not from the Government. (U.S Senate, 1985).

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suas músicas analisadas. Essa análise foi uma pretensão de interpretação do significado das músicas. Foram acusados de incitarem a práticas como masoquismo, estupro, ocultismo, violência, suicídio entre outras. Pensando no quadro da época fica mais clara a compreensão dos acontecimentos mais específicos da PMRC nos EUA. A própria nomenclatura porn rock não é uma escolha aleatória ou mero nome dado ao que os membros da associação viam no rock, a acusação/perseguição da pornografia não foi um fenômeno isolado nesse contexto. Naquela época, em paralelo, nascia um fenômeno ocorrido entre as décadas de 1970 e 1980 conhecido como Feminist Sex Wars. Uma divisão dentro da segunda onda do movimento feminista norte-americano a partir da década de 1970. De um lado estavam as feministas contra a pornografia que achavam que a pornografia era uma forma de subjugar a mulher. Para elas as produções pornográficas sempre mostravam mulheres sendo subjugadas de diversas formas, seja através de estupro, incesto, práticas sadomasoquistas e submissas ao homem. Houve um movimento anti-pornografia que pedia por uma legislação contra as produções pornográficas. Do outro lado estavam as feministas pró-sexo, que viam na liberdade sexual também uma liberdade para as mulheres. Não acreditavam que alguma forma de censura ao sexo pudesse ajudar nas causas feministas. Percebiam que a indústria pornográfica estava sim incluída numa cultura machista, mas não achavam que essa indústria tivesse dado origem ao machismo ou que por meio de sua censura fossem acabar com a opressão às mulheres. Defendiam a diversidade de práticas sexuais ao contrário das feministas anti-pornografia que condenavam todas as “variantes das condutas sexuais” (Rubin, 1993). Sendo assim, a perseguição à pornografia é algo que se acentua nesse período; e não é de se surpreender que algo chamado de rock pornô esteja sendo discutido amplamente no Senado norte-americano. Mais ainda, que a discussão tenha sido levantada por mulheres, que mesmo não fazendo parte de movimentos feministas, se sentiam ainda mais ameaçadas pelas canções de rock e heavy metal. Canções que frequentemente reproduziam as hierarquias de gênero, colocando a mulher em posições de submissa ao homem, algo que acontecia também em filmes pornográficos18.

18 Um fato interessante é que o que deu origem a esse movimento anti-pornografia nos EUA foi um filme entitulado Snuff (1976). Snuff é um termo utlizado para designar filmes cujas cenas pretendem mostrar atos reais. Distintamente dos filmes como um todo que são fruto de toda uma produção de cenas fictícias que, no máximo, pretendem ser realistas, mas não reais. Nos filmes snuff os “atores”/ “personagens” estão de fato executando as ações mostradas durante o filme. Portanto se houver morte no filme o óbito realmente aconteceu, não é somente uma representação. Por conta disso, uma série de filmes que se classificavam como snuff foram alvo de investigações.

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Vale ressaltar, como afirma Jeffrey Weeks (1983) que, ao que tudo indica, as mulheres membros da PMRC não pertenciam a nenhum momvimento feminista, mas sim ao que o autor chamou de New Right/New moral right. Vertente da direita norte-americana e britânica que cresceu na década de 1970, época de crescente apoio popular a atitudes mais liberais, como os direitos dos gays, por exemplo (Weeks, 1983). Essa nova direita foi a base para a vitória de Ronald Reagan nos EUA em 1980 e 1984, presidente conhecido por ser conservador. Portanto, não se deve confundir as feministas anti-pornografia com as ações da PMRC. A questão é que esta associação fazia parte de um contexto de mulheres que lutavam contra a pornografia. A nova direita via a sexualidade como perigosa assim como defendia ideais como o da família. Retornando ao contexto das audiências e ao término da exposição dos membros da PMRC, era chegada a vez de os membros do Comitê fazerem perguntas ou tecerem comentários. Quando o presidente da Comissão pergunta ao Mr. Ling se ele achava que os casos de suicídios relacionados ao Rock eram raros ou comuns ele afirma que acha que eram comuns. Acredita que haja um grande efeito sobre os jovens. Para dar mais credibilidade às suas considerações, utiliza sua experiência de mais de 10 anos trabalhando com adolescentes. Ele afirma ter visto o comportamento dos jovens ser influenciado e encorajado por “esse tipo de música”. Segue explicando que a música pode até refletir os pensamentos e comportamentos dos jovens de 18 anos. O problema é quando atinge os mais novos que, segundo ele, passa de um reforçamento de suas atitudes para um encorajamento, tendo em vista que eles ainda não têm as referências propriamente internalizadas, infatizando mais uma vez a suposta vulnerabilidade dos jovens. Algumas das perguntas e comentários feitos pelos membros do Comitê merecem atenção. O Primeiro Senador a fazer perguntas foi Al Gore. As perguntas feitas por ele mais pareciam querer reafirmar os pontos já colocado pela PMRC. Reitera a afirmação de que não haja uma requisição de ação governamental com relação ao selo colocado nas capas de CDs. Outra pergunta direcionada aos membros da PMRC era sobre as formas de controle dos pais com relação às músicas que os filhos ouvem. Ele reiterou a falta de um aviso presente nas capas, sendo quase impossível saber qual o conteúdo das músicas. O próximo a fazer perguntas foi o Senador Rockefeller. Este senador se coloca intensamente a favor da PMRC, demonsrando afinidade com as preocupações trazidas pelas integrantes da PMRC. Seus principais questionamentos estavam relacionados à linha que divide aquilo que é explícito e o que não é. Ele pergunta a membros da PMRC o que as

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empresas com as quais a associação de pais conversou sobre o posicionamento deles quanto a esta questão. Ainda pergunta sobre os vinte por cento de empresas que se negaram a aceitar a utilização do selo e quais as justificativas utilizadas por elas. Faz mais uma pergunta sobre quais seriam as argumentações dos que não consideram clara a relação direta entre “violência”, “tendências perturbadoras” e a proliferação deste tipo de material”. Mostrando que para ele essa relação era óbvia, quase irrefutável. Para finalizar sua fala pergunta sobre a relação entre o que chamou de “fenômeno MTV”, os materiais expostos pelos integrantes da PMRC e os problemas existentes na população adolescente, mais uma vez estabelecendo relações de causalidade entre os materiais das bandas de heavy metal/rock e os crescentes problemas com a população jovem. Essa fala foi seguida por um dos únicos Senadores (senador Exon) que, apesar de concordar com as razões pelas quais a PMRC se preocupava, se colocou de maneira distinta dos outros. Demonstrou compreensão com as questões trazidas pela PMRC. Mas, em dado momento do seu discurso, percebe que nunca antes tinha visto uma Audição no Senado com tanta cobertura da mídia e com um número tão grande de pessoas querendo participar. Sua segunda observação que surge em forma de questionamentos aos depoentes da associação era sobre a não intenção de transformar suas exigências em legislação ou ação estatal. Ele pergunta aos presentes então qual seria o propósito daquelas Audições em frente ao Comitê. Ainda afirma que ele não marcou aquelas audições e pergunta aos demais porque esses eventos midáticos são marcados no Senado, já que não é para que tomem nenhuma atitude sobre o assunto. Nesse momento o presidente do Comitê responde à pergunta do Senador. Ele afirma que essa Audiência serve para mostrar a existência de problemas no país que não necessariamente precisam de ação legislativa. Ao que o senador Exon responde que ainda acha que não é a função principal do Congresso. O questionamento deste senador traz à tona as relações de proximidade entre os membros da PMRC e alguns dos senadores pertencentes ao Comitê no qual a Audiência estava ocorrendo. Não que esta tenha sido sua intenção, já que ele se coloca a favor de que haja alguma forma de legislação contra o estilo de música que estava sendo questionado. No entanto, ao questionar qual o sentido daquela Audiência e mais, quem tinha agendado a mesma, ele mostra o quão suspeita era aquela situação. Em seguida toma a palavra o Senador Hawkins, que é ainda mais incisivo do que o Senador Rockefeller. Ele afirma não ser a favor da liberdade de expressão. Diz que ninguém tem o direito de “envenenar as crianças” com os tipos de letras que foram mostradas no

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Comitê pela PMRC. Ele deixa claro que um dos maiores problemas são os meios de comunicação públicos como rádios e televisão. Suas questões estão mais voltadas para a MTV e a produção de vídeos que tem aumentado. Tanto ele quanto Rockefeller perguntam sobre o posicionamento dos representantes da indústria fonográfica e das empresas de televisão. Após as falas da PMRC são chamados a depor alguns músicos que se opõem as propostas da associação. Dentre eles estão Dee Snider, Frank Zappa e John Denver. Os três alegam que há tentativa de censura por parte da PMRC. Frank Zappa vai além, acusando a própria RIAA de se beneficiar da decisão de colocar selos nas capas. Há uma uninimidade sobre a questão da responsabilidade dos pais quanto ao que os filhos consomem. Frank Zappa e Dee Sinder dizem que não se deve colocar o selo porque não se pode responsabilizar o artista e nem as gravadoras pelo que os jovens consomem, mas sim os pais. Para eles é responsabilidade dos pais controlar o consumo dos filhos.De ambos os lados uma coisa é clara, os pais têm autoridade sobre os filhos, sendo desta forma sujeitos em formação. Em uma sociedade que prega, como diria Dumont (2000) que o indivíduo tem autonomia, pode-se pensar que as crianças ainda não são plenamente indivíduos, pois não têm total autonomia sobre seus atos para tomar suas decisões. Para sustentar suas acusações, a PMRC chama para depor um doutor em música: o Dr. Joe Stuessy. Ele fala sobre como a música afeta o comportamento humano. Mostrando, portanto, os perigos da exposição a determinados tipos de música e quais reações essas músicas podem causar. O outro é Dr. King, psquiatra infantil, que trata de crianças com problemas com drogas. Ele afirma que quase todos os seus pacientes escutam heavy metal. Ele explica algumas características desse tipo de música para mostrar como ela afeta as crianças e adolescentes. Diz que, mesmo que os músicos afirmem que não se envolvem nos tipos de atos que descrevem em suas músicas, não impedem que jovens “desajustados” se sintam poderosos ao ouvir esse tipo de música. Lembra que a identidade dos jovens não é bem formada e, portanto, são mais vulneráveis à música heavy metal. Depois de exposição destes dois Doutores, a audiência se conclui com a fala de Edward O. Fritts, presidente da Associação Nacional de Radiodifusores. Seu poscionamento é a favor da PMRC, embora tente mostrar que não é a maioria do Rock e heavy metal que tenha conteúdos sexualmente explícitos. Ele mostrou as negociações com representantes de gravadoras e de rádios que se mostraram a favor da causa.

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Dada a falta de alguns trechos da audiência não fica claro como termina. O que se sabe é que a PMRC consegue fazer com que a RIAA voluntariamente adote o selo como forma de proteger as crianças e jovens e auxiliar os pais no conhecimento do que seus filhos consomem.

Entre a liberdade de expressão e a moralidade das famílias A PMRC pretendia estebelecer regras mais rígidas para o mercado fonográfico. Muito se discute se houve ou não tentativa de censura por parte da PMRC. O historiador Nathaniel T. Belcik (2012) afirma ter havido censura por parte da PMRC, já o professor e sociólogo Matheu Deflem (2012) diz que não há censura nos EUA. A PMRC pode ter tentado censurar músicas que trouxessem conteúdos considerados por eles como “explícitos”, mas, no fim, o que conseguiu foi um acordo com a RIAA que gerou os selos expostos nas capas de CDs que mostravam a mensagem “Parental Advisory: Explicit Content” ou “Parental Advisory: Explicit Lyrics” como exposto na figura 5.

Figura 5 - Selo criado pela PMRC que deveria estar em capas de CDs cujo conteúdo fosse considerado explícito, seja com violência, sexualidade ou satanismo.

Membros da PMRC se defendiam das acusações de tentativa de censura alegando que a única coisa que queriam era criar uma forma de alertar os pais sobre os conteúdos das músicas que seus filhos ouviam, como informação disponível na repostagem contida no anexo 1, bem como em trechos da audiência descrita acima. Desta forma, os pais teriam um controle maior sobre o que seus filhos consumiam. Por outro lado, para muitas gravadoras e músicos,

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essa tentativa era sim um ato de censura que ia contra a Primeira Emenda da Constituição norte-americana.19 Os discursos proferidos por integrantes da PMRC traziam a preocupação com o que as crianças e adolescentes estavam ouvindo. A ligação entre as músicas de Rock e Heavy metal e práticas como estupro e assassinatos era feita para embasar os argumentos da associação de pais, criando assim uma espécie de “pânico moral”. Houve uma ampla cobertura da mídia que ora colocava as práticas da PMRC como censura ora colocava com algo necessário para o bem-estar da sociedade. É possível notar, assim como explica Laura Lowekron (2013), que a moralidade orienta ações contra aqueles que são considerados desviantes. No trabalho, a autora fala sobre a CPI (ocorrida em 2008) contra a pedofilia. Ela afirma que não era somente o ato em si que era criminalizado, mas as representações que se fazia dele. Desta maneira, filmes pornográficos que representassem qualquer relação pedófila, mesmo que nenhuma criança ou menor de idade atuasse no filme, seria considerado crime. Eles vão além, não só os produtores do filme eram considerados criminosos, mas também os consumidores. Neste ponto é que Lowkron (2013) mostra como o que se estava criminalizando com isso era a fantasia e não o ato em si. O mesmo ocorria com as acusações da PMRC. O que a todo instante estavam mostrando como algo nocivo e que incitasse a atos desviantes, prejudiciais à sociedade era a fantasia. Fantasia mostrada em clipes, capas de CD e letras de músicas. No trabalho de Laura Lowekron sobre a pedofilia a autora analisa como a visão da pedofilia sofreu mudanças ao longo do tempo. A partir de um recorte histórico sobre as mudanças ocorridas antes e a partir da modernidade ela mostra como questões como a autonomia do sujeito, a noção de indivíduo e a de consenso vieram à tona. Assim ela mostra como o discurso médico sobre o pedófilo ganha força e coloca o agente do ato sexual numa categoria patológica. A autora traz um caso específico da CPI da pedofilia ocorrida no ano de 2008 no Brasil. Neste caso ela se refere à tentativa de retirar imagens e vídeos que contenham cenas de pedofilia. Nesta ação do governo brasileiro em conjunto com agentes internacionais tanto o praticante do ato quanto os usuários que consomem esse tipo de conteúdo são considerados criminosos.

19 Amendment 1 - Freedom of Religion, Press, Expression. Ratified 12/15/1791. Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances. Disponível em: . Acesso em 21 de janeiro de 2016.

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Nesse sentido, os consumidores de filmes pornôs com menores de idade são considerados criminosos por dois motivos específicos. Um deles é o psicológico, pois um consumidor desses materiais seria um pedófilo em potencial, podendo facilmente sair da fantasia para o ato. E o aspecto econômico. Essas pessoas contribuiriam para a manutenção de uma indústria e de um mercado com conteúdos moral e legalmente inapropriados, fomentando a prática a partir da lógica de oferta e procura. Seguindo a linha de raciocínio da autora é possível perceber que os discurso aplicados às bandas de heavy metal estão imbuídos dessa noção. O que estava presente nos discursos era o medo da exibição das imagens das capas dos CDs assim como o acesso que crianças poderiam ter ao conteúdo das músicas. Em determinada época, um selo que identificava qual classificação etária era permitida foi colocado por pedidos da PMRC (Parents Music Resource Center). É possível acessar parte do discursso de Tipper Gore na reportagem em anexo (ver anexo1). Pode-se dizer, com base em autores como Foucault (1977), Gayle Rubin (1980), Howard Becker (2009) que as ações da PMRC estão orientadas por uma maneira de pensar construída no ocidente, que vê a sexualidade e alguns comportamentos considerados desviantes como perigosos. Como dito anteriormente, a sexualidade assume um papel central na própria definição de si do indivíduo ocidental moderno. Portanto há toda uma preocupação com a sexualidade dos indivíduos, principalmente alguns indivíduos tidos como incapazes, o caso das crianças e jovens. Não só com a sexualidade, mas com a sugestionabilidade juvenil também. Além da sexualidade, a PMRC também se refere a outros aspectos das músicas de heavy metal como o estupro, a violência e o culto a algo que chama de satanismo. Atos estes mais enquadrados no que Becker (1991) chama de desvios de comportamento. Desvios estes que devem ser punidos, seja legalmente, seja moralmente por estarem em desacordo com o que é considerado a regra por uma parcela da sociedade. A partir dos discursos proferidos pelos representantes da PMRC no Senado e da reportagem em anexo é possível ter uma ideia das preocupações dos membros desta associação. É interessante pensar junto com Cohen (1973) sobre o pânico moral criado na época. Algumas das etapas descritas20 pelo autor parecem se materializar neste caso da PMRC

20 Noção utilizada por Stanley Cohen (1973) remete ao exagero dos fatos por parte de alguns agentes. De acordo com o autor: “Societies appear to be subject, every now and then, to periods of moral panic. (1) A condition, episode, person or group of persons emerges to become defined as a threat to societal values and interests; (2) its nature is presented in a stylized and stereotypical fashion by the mass media; (3) the moral barricades are manned by editors, bishops, politicians and other right-thinking people; (4) socially accredited experts pronounce

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e o heavy metal. Um dos passos é o surgimento de um grupo que causa incômodo. Um grupo de cidadãos preocupados com os valores morais da sociedade e que pretendem salvaguardá- los. Há também a ajuda da mídia tanto no caso do presidente da Associação Nacional de Radiodifurores (NAB, sigla em inglês) Edward Fritts21, quanto na ampla cobertura da audência no Senado. Esses são alguns pontos nos quais Stanley Cohen ajuda a compreender o caso estudado.

A moralidade e o saber sobre o “perverso” Interessantes são as categorias mobilizadas pelos membros da PMRC e pelos senadores que os apoiavam. Os termos “mãe” (mother) e “pais” (parents) eram utilizados em alguns momentos. Como a associação é formada, ou pelo menos liderada, por mulheres/mães de família, era comum acionarem a categoria “mãe” como posição de autoridade para dizer o que estavam argumentando. Afinal, não eram apenas mulheres defendendo as crianças, eram além de tudo “mães” que sabiam do que estavam falando. Na fala de Tiper Gore: “Não venho aqui somente como cidadã norte-americana, mas como mãe que quer proteger seus filhos”. (Anexo 1). Adriana Vianna e Juliana Farias (2011) exploram essa utilização da categoria “mãe”. Embora estejam focadas em situaçãoes de violência estatal e sofrimento pela perda de filhos em “combate policial” é possível fazer uma associação da utilização dessa categoria politicamente. Vianna e Farias percebem a formação de “[...]estratégias de reconhecimento do valor político dessas perdas [...]” (Vianna e Farias, 2011) para obtenção de maior legitimidade para as dores sofridas pelas mães que perderam seus filhos. No caso dos membros da PMRC não há essa relação com o sofrimento de mães que perderam seus filhos, mas a utilização de estratégias como deixar claro que não estão recorrendo ao senado norte-americano como cidadãs, mas como mães de crianças, algo que assemelha ao uso do idioma do gênero feminino e da ideia de maternidade como estratégias políticas. Para além desta estratégia houve uma outra que talvez tenha sido de fato a mais eficaz: a utilização de suas relações privilegiadas com políticos e empresários norte-americanos. Como já foi dito, havia uma relação de parentesco com alguns dos membros do senado que

their diagnoses and solutions; (5) ways of coping are evolved or (more often) resorted to; (6) the condition then disappears, submerges or deteriorates and becomes more visible. Sometimes the object of the panic is quite novel and at other times it is something which has been in existence long enough, but suddenly appears in the limelight. Sometimes the panic passes over and is forgotten, except in folklore and collective memory; at other times it has more serious and long-lasting repercussions and might produce such changes as those in legal and social policy or even in the way the society conceives itself” (COHEN, 1973). 21 O presidente da Associação Nacional de Radiodifusores Edward Fritts mandou mais de 800 cartas para estações de rádio e TV alertando sobre o chamado rock pornográfico.

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estavam presentes no dia da audiência pública que abriu espaço para o debate sobre medidas a serem tomadas quanto ao conteúdo das músicas de heavy metal e rock. Outra categoria de autoridade era serem “pais”, o que mais uma vez mostrava a relação de proximidade com o assunto abordade na audiência. Ser “pai” (no sentido de pai de família, incluindo aqui homens e mulheres, pais e mães) dava maior legitimade para lidar com o assunto. O termo “pais” surge tanto em contexto de mostrar que os pais devem ser alertados, principalmente pelos selos colocados nas capas, sobre os conteúdos das músicas que seus filhos ouvem. Para com isso terem maior controle da situação e da “educação” de seus filhos. Mas também surgem nos momentos que é utilizado para questionar a autoridade dos que foram à audiência para arguir contra a PMRC (Frank Zappa, Dee Snider e John Denver). Sendo os dois primeiros (Zappa e Snider) pais de família eles discordaram da forma como a PMRC via a responsabilidade da indústria fonográfica. Outro ponto importante é o fato de terem chamado para depôr “profissionais” de áreas como psiquiatria e música, chamando-os de especialistas no assunto sobre a influência da música na vida e comportamento dos jovens. Ao longo da audiência foram três profissionais, Mr. Ling (consultor da PMRC), Dr. Jon Stuessy (Doutor em música) e Dr. King (psiquiatra infantil). A participação deles parece mostrar a importância de se ter uma opinião de supostos especialistas que possam legitimar os argumentos da PMRC. Os três especialistas deram ênfase à vulnerabilidade dos jovens e crianças e aos “perigos” da música heavy metal. Como afirma Foucault em Os Anormais (2003), estes são profissionais que legitimam uma noção de normalidade. Músicos de heavy metal poderiam apresentar comportamentos que não estivessem dentro deste padrão de normalidade. Até aqui já é possível perceber alguns dos pontos que são ressaltados pelos membros da PMRC. O primeiro ponto está relacionado à nocividade da música que está sendo criticada. Essa noção de “perigo” é bem trabalhada por Mary Douglas (1991) que mostra como a “impureza é uma ofensa contra a ordem” (Douglas, 1991). Os perigos são uma suposta “ameaça” que permitem manter coerção. Mas todos estão expostos aos perigos, tanto os transgressores quanto os que tentam manter a ordem. O que Douglas quer dizer é que a crença em “contágios perigosos” protege certos valores morais. Dessa maneira um ato transgressor pode ser perigoso por causar um desequilíbrio em uma ordem tida como natural. No caso das acusações da PMRC ao heavy metal é clara a noção de contágio ou de perigo, principalmente na fala da Susan Backer que associa o consumo de música heavy metal com as crescentes

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taxas de suicídio e de gravidez na adolescência. Há uma consequência ruim para os que consomem um estilo de música “impuro”. O segundo ponto é que o poder nocivo do heavy metal atinge sobretudo os jovens e crianças. O que nos leva a pensar no que Lowekron mostrou sobre a noção de vulnerabilidade infantil. O público-alvo que corre mais risco é o das crianças por conta de uma construção socio-cultural que fez das crianças e jovens seres que devem ser protegidos. Uma noção que foi construida muito recentemente, no fim do século XX, em parte da sociedade ocidental (Lowenkron, 2013). Essa característica nociva do estilo de música fica evidente quando Tipper Gore usa o exemplo do jovem Steve Boucher, que cometeu suicídio ouvindo a banda AC/DC. Outro momento foi já descrito acima, quando Mr. Ling (consultor da PMRC) mostra uma série de capas de álbuns e letras de banda de heavy metal e ainda na exposição do psiquiatra Dr. Paul King que mostra associação entre heavy metal abuso de drogas, sexo, violência e o “poder do mal” (Deflem, 2001). Além de trazer dois casos de assassinato e suicídio que supostamente estariam relacionados ao consumo de música heavy metal.

Neste capítulo pretendi mostrar o que organizava as atividades da PMRC na sua jornada contra a música heavy metal. Quais preceitos morais, tais como de família, vulnerabilidade infantil e “perigos” da sexualidade, e quais estratégias foram utilizadas pelos membros da associação também foram explorados ao longo do texto. A história da PMRC aqui exposta não se encerra plenamente ao término da Audiência no Senado. Após a audiência no senado, a PMRC consegue um acordo com a RIAA de colocar o selo. Mas um ano depois, 1986, lança uma nota de repúdio ao não cumprimento do acordo por parte da RIAA. Reclamam que os selos são muito pequenos dificultando a eficácia do mesmo. Após esse ano, segundo Deflem (2001), as ações da PMRC e da RIAA não ficam claras, afirmando que algumas gravadoras peguenas ainda se recusavam a usar o selo e com a pouca aceitação da maioria dos músicos que acusavam a RIAA de ter se vendido. A grande questão que fica sobre esse caso de tentativa de regulação é não tanto atestar sua eficácia direta sobre as vendas de álbuns ou mesmo sua eficácia em produzir alguma legislação sobre o assunto, mas o que mais pode ter gerado social e moralmente. Além disso, há a questão que nos remete a Foucault (1982), sobre a exposição de determinados temas como uma forma de normalização dos sujeitos. Apesar de parecer contraditório, a tentativa da PMRC de ocultar o “horror” das músicas heavy metal foi feita a partir de uma extrema exposição do problema e não de uma ocultação. O que nos remete também à própria noção de

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pânico moral já trabalhada anteriormente na perspectiva de Stanley Cohen. Portanto, uma das ferramentas cujo a própria PMRC não tem controle dos resultados foi essa extrema exibição dos conteúdos das músicas de heavy metal. O efeito foi, pelo menos, duplo. Por um lado, esse caso não trouxe nenhum problema para as vendas de CDs de heavy metal, alguns chegam a dizer que as vendas aumentaram. Por outro, gerou uma série de tentativas legislativas em alguns estados norte-americanos. Tentativas de criar leis que de fato proibissem a venda de CDs com o selo para menores de 14, por exemplo, ou a proibição para menores de 18 anos de frequentarem shows, a menos que estivem acompanhados dos seus responsáveis. Como afirma o Mathieu Deflem (2001):

Em todo caso, por mais que as ações da PMRC não tenham se tornado diretamente legislação ou mais rigorosos sistemas de classificação, é claro que desde a Audiência no Senado a questão da relação entre música popular, sexo, violência e declínio de padrões morais foram trazidos para a discussão pública e gerou uma enorme atenção da mídia. Em adição, algumas comunidades e estados propuseram recentemente ordens para identificar e monitorar músicas ofensivas, e muitos estados e instâncias Federais de legislação lidaram de alguma forma ou de outra com o controle de músicas. Em qualquer evento, pode-se observar que após as ações da PMRC e as Audiências no Senado, que era afinal um resultado direto das atividades da PMRC, o cenário estava formado para um clima de reforçamento da lei, legislação, e mobilizações sociais posteriores direcionados contra e para a música popular. Paradoxalmente, a PMRC sempre foi cuidadosa em evitar trazer a Primeira Emenda e enfatizou que não procurava nenhuma legislação. Mas o mundo da música tinha que se encaixar no mundo da lei. (Deflem, 2001).22 Alguns dos efeitos posteriores às ações da PMRC ficarão mais claros nos capítulos a seguir, nos quais tratarei da banda norte-americana Cannibal Corpse. Banda que sofreu parte das consequências, mas também soube se beneficiar das tentavias de regulação por parte da PMRC.

22 In any case, although the PMRC’s actions have not managed to directly lead to legislation or a more strict rating system, it is clear that since the Senate Hearing the issue of the nexus between popular music, sex, violence and declining moral standards has been brought to the foreground of public discussion and has generated an enormous amount of media attention. In addition, some communities and states have recently proposed ordinances to identify and monitor offensive music, and several state and Federal instances of legislation have dealt with the control of music in some form or another. In any event, it can be observed that following the PMRC’s actions and the Senate Hearing, which was after all a direct result of the PMRC’s activities, the stage was set for a climate of law enforcement, legislation, and further social mobilization targeted against and for popular music. Paradoxically, the PMRC has always been careful to avoid bringing in the First Amendment and stressed that it did not seek any legislation. But the world of music must fit the word of law. (Deflem, 2001)

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CAPÍTULO 2 - HEAVY METAL E A “PERVERSÃO”

A atuação da PMRC tratada no capítulo anterior mostrou o que seria talvez a primeira grande mobilização contra o heavy metal e o rock. Mathieu Deflem (2001) mostra que os efeitos das ações da PMRC não se resumem à audiência no Senado em nem à utilização do selo nas capas de CDs. Neste capítulo começaremos a tratar de uma banda que teve que lidar com esses efeitos posteriores às ações da associação. Uma das bandas que teve em todos os seus CDs o selo criado pela RIAA a pedido da PMRC: Cannibal Corpse. A postura da PMRC contra as músicas de bandas de heavy metal pode ser entendida a partir da literatura das Ciências Sociais como resultado de uma construção histórica, social e cultural das noções de “peversão”, “obscenidade”, “violência” e “desvio”. Autores como Jeffrey Weeks (1985), Michel Foucault (1977), Gayle Rubin (1993) e Howard Becker (2009), por exemplo, sustentam que não se pode essencializar estes termos, mas sim se deve compreendê-los dentro de seu contexto. É o que será feito no capítulo a seguir, no qual mostro a construção de algumas dessas noções já citadas acima. Tendo em vista que a PMRC e a banda Cannibal Corpse estão dentro de um contexto norte-americano “conservador” com noções como a de família nuclear e de “normalidade” muito fortes não é possível ignorar que algumas de suas falas estejam carregadas destes conceitos. Fica claro em entrevistas com membros da banda (que serão mais exploradas no capítulo seguinte) seus posicionamentos sobre os conteúdos de suas músicas. Os conteúdos das músicas podem ser considerados “obscenos” ou “violentos” para a associação, mas o que será que eles pensam sobre isso? Alguns dos termos como “ofensivo”, “perversão” “nojo”, obsceno”, “assustador”, “extremo” entre outros são utilizados pelos próprios músicos de algumas bandas de heavy metal, dentre elas a Cannibal Corpse. Não estarei utilizando estes termos por considerar que sejam os que melhor definem o que a banda está fazendo, mas sim por serem os utilizados pelos membros da banda para definir seu tipo de som, suas letras e capas.

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A “perversão” como problema Neste capítulo pretendo tratar de autores que colocam a noção de “perversão” como uma construção social. Desta forma autores como Foucault (1977), Lanteri-Laura (2010), Gayle Rubin (1993) e trabalhos feitos partir desses clássicos como de Laura Lawerkron (2013) podem ajudar na compreensão da “criação ou invenção das perversões” como um problema de saúde mental e, portanto, um problema que deve ser tratado pelo Estado. Esses autores problematizaram, cada um a seu modo, os discursos em torno da sexualidade como propulsora de distúrbios da mente, a produção de certas verdades sobre o sexo, sobretudo as que obtinham um certo aval da ciência tais como a medicina e a psiquiatria. Segundo alguns destes autores houve um momento, mais precisamente parte do século XIX, em que a sexualidade passa a ser tratada como um problema médico, sendo associada quase que diretamente ao indivíduo supostamente portador de alguma psicopatologia que deveria ser tratada. Foucault (1977) fala da transição de um saber religioso para um saber médico mostrando como no ocidente vinha se constituindo, desde o século XVI, uma Sciencia Sexualis, adotando uma série de técnicas, sobretudo a confissão, que garantem a manutenção do poder sobre os saberes sobre o sexo. Desta forma, ele diz, no ocidente, ao contrário do que ele chama de ars erotica, quem é mais incitado a falar sobre o sexo é quem está nas escalas mais baixas da hieraquia de poder. Ou seja, ao invés de ser um mestre, que está no topo da escala hierárquica, a falar sobre o sexo são as pessoas comuns que são estimuladas a falar sobre suas práticas sexuais. Neste caso, portanto, quem ouve detém o poder mais do que quem fala, esta é uma das principais características das sciencia sexualis. Foucault acredita que há uma explosão discursiva sobre o sexo. Assim como Lanteri-Laura traz uma pequena história das mudanças nesse discurso, os mecanismos de poder utilizados a partir desse discruso. Ele coloca que longe de haver uma repressão ao discurso sobre o sexo há uma incitação a se falar deste. O que não quer dizer, como afirma Gayle Rubin, que não haja repressão, o que muda é na verdade o mecanismo de controle. Esse mecanismo se dá pela incitação dos discursos, a partir do conhecimento minucioso das práticas sexuais mais pessoais. Por isso, a partir do século XVI com a pastoral cristã, começa uma era de incitação a se falar do sexo na prática da confissão. Mas é a partir do século XVIII que o saber médico passa a imperar sobre os outros saberes, tais quais os juízes e a pastoral cristã. Foucault mostra que, com a passagem do século XVIII para o XIX, o sexo heterossexual monogâmico, tido como normal, já quase não é comentado, esse sim, sendo silenciado. Por já ser considerado comum e normal, dentro de um padrão estabelecido, já não há tantos comentários. Ao contrário, a sexualidade considerada perversa, desviante, começa a

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ser o foco das discussões. Isso ocorre porque é a partir destas “sexualidades periféricas” que a normal é garantida. Creio que essa incitação ao sexo se faz presente no material em questão, produto de minha dissertação. Uma ordem discursiva em torno da normalização do sexo se instaura, na medida que as temáticas abordadas pela banda Cannibal Corpse sejam consideradas por censores como a PMRC ou o próprio mercado como obscenas e “perversas”. Percebo, assim, a construção, tanto para a banda quanto para os seus “censores” do que seja “normal” ou “perverso”. Assim como Robert Castel (1978), Foucault mostra como, antes da ascenção da ciência como saber legítimo sobre a sexualidade e a própria loucura, eram a família, a Igreja e o Poder Judiciário que tinham o poder de decisão sobre estes assuntos. O que Foucault afirma é que, na passagem do século XVIII para o século XIX, a explosão discursiva sobre o sexo causa algumas mudanças. Dentre elas está que a relação monogâmica, já estabelecida como regra, não é mais mencionada como antes, se mantém, mas em silêncio. Como dito, as perversões sexuais, que além de terem aumentado no vocabulário médico do século XIX, passam a ser o centro de toda a atenção. Nas palavras do prórpio autor O casal legítimo, com sua sexualidade regular, tem o direito à maior discrição, tende a funcionar como uma norma mais rigorosa talvez, porém mais silenciosa. Em compensação, o que se interroga é a sexualidade das crianças, a dos loucos e dos criminosos; é o prazer dos que não amam o outro sexo; os devaneios, as obsessões, as pequenas manias ou as grandes raivas. Todas essas figuras, outrora apenas entrevistas, têm agora de avançar para tomar a palavra e fazer a difícil confissão daquilo que são. Sem dúvida não são menos condenadas. Mas são escutadas e se novamente for interrogada, a sexualidade regular o será a partir dessas sexualidades periféricas, através de um movimento de refluxo. (Foucault, 1977, p. 43)

O surgimento de várias sexualidades periféricas (RUBIN, 1993) (zoofilia, pedofilia, sodomia, etc.) na virada do século XVIII para o XIX não significa nem uma falta de rigor com elas nem repressão, mas uma mudança nos mecanismos de poder, que vão além da simples proibição. Um dos pontos abordados por Foucault (1977) como um desses mecanismos de poder é o que ele chamou de “caça às sexualidades periféricas” (FOUCAULT, 1977). A sexualidade torna-se algo central para especificação do indivíduo e, portanto, afirmar que a sociedade moderna, do século XIX, limitou o sexo ao matrimônio ou a qualquer relação sexual dita tradicional seria um equívoco. Ao contrário, as formas de sexualidade se ampliaram, não houve uma singularização. A forma do poder operar é justamente essa: não através da repressão das práticas sexuais divergentes, mas através de uma constante incitação a se falar sobre elas para normalizá-las.

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O que parece estar representado nas músicas e capas de CD da banda estudada são as ditas sexualidades periféricas, assim como representações de atos violentos como assassinatos, estupros e vilipêndio de cadáver), atos chamados por Becker (2009) de “desviantes”. Como mostrado no tópico anteriores, representações contidas em suas capas eram sempre de atos não convencionais ou mesmo ilegais. Tanto a exposição de cadáveres, como a violência e a própria sexualidade estão presentes. Dessa forma, o que é explorado pelos músicos da banda é justamente o que não é a regra, mas o “perverso”, o “anormal” e o “desvio”23. O psiquiatra Georges Lanteri-Laura mostra como a “perversão” foi sendo modelada pela psicanálise em um primeiro momento, sobretudo na segunda metade do século XIX, e depois foi sendo apropriada pela medicina em geral. Lanteri-Laura aponta como Freud é tido como o divisor de águas sobre o tema. A publicação em 1905 “dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade constituiu uma etapa decisiva na própria história da elaboração desse saber” (Lanteri-Laura, p.10, 1979). No entanto, o autor afirma que seria um erro pensar que somente a partir de Freud a medicina começou a dar importância à sexualidade. Para ele Freud é fruto de uma série de pensadores, dentre eles médicos que já haviam tratada da sexualidade como um problema relevante para a medicina e a psiquiatria. O autor procura em seu texto “determinar a evolução global de um campo de saber em que a psicanálise conhece uma posição importante, mas não exclusiva” (Lanteri-Laura, p. 13, 1979). Lanteri-Laura afirma, portanto, que se deve tratar de um “certo número de teorias psicopatológicas das perversões e compreender suas relações com as representações sociais que ajudam nossa cultura a se conformar com a existência das perversões e com a presença dos perversos” (Lanteri-Laura, p. 14, 1979). Exatamente o que Foucault afirma sobre a construção de um discursso de normalização. Assim como Foucault (1977), Lanteri-Laura mostra como a questão da sexualidade dos adultos não era um problema no Antigo Regime. A partir do momento em que se associaram comportamentos “desviantes” a psicopatologias e a sexualidade houve uma mudança na visão dos delitos. Como afirma o autor “Os comportamentos perversos eram

23 A temática da sexualidade e da “perversidade” são organizadas no mundo ocidental também a partir da noção de loucura. Foi a partir de mudanças na forma de ver e tratar a loucura que foram surgindo novos saberes e novas autoridades sobre os assuntos relacionados a “perversão”. Esses saberes são os saberes médicos que, a partir de parte do século XIX no ocidente, passam a ser os responsáveis pelos loucos e por seu tratamento. Com base nisso, pode-se pensar mais a fundo com autores como Robert Castel (1978) e Sérgio Carrara (1998) abordam a relação entre crime e loucura. É preciso perceber que a “loucura” não pode ser pensada anacronicamente, uma vez que está definida num tempo e espaço. Antes do século XIX não era pensada somente em termos psiquiátricos, estava relacionada a todos que perturbassem a ordem pública. Portanto, libertinos, prodígios e qualquer outro tipo de pessoa que perturbasse o espaço público eram internados na mesma instituição.

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ignorados enquanto tais e só se viam eventualmente condenados por suas consequências” (Lanteri-Laura, p. 16, 1979). O que antes era julgado a partir de leis por juízes que pouco levavam em consideração a visão médica dos casos, passou a considerar os atos “perversos” como frutos de problemas médicos que deveriam ser tratados. Se num primeiro momento a punição era a consequência de atos perversos, em um segundo é o tratamento terapêutico que passa a ser aplicado. O médico via em atos que eram alvos de julgamentos morais doenças que deveriam ser tratadas. Lanteri-Laura traz o caso do sargento Bertrand que cometeu atos de necrofilia na primeira metade do século XIX. Ele foi condenado por ir à noite para cemitérios e profanar sepulturas de mulheres jovens, além de mutilar cadáveres e ter relação sexual com eles. No entanto, o ato sexual não teve nada a ver com sua condenação, mas sim o ato moral de profanar sepulturas. “O aspecto sexual do problema parece não haver preocupado os magistrados” (Lanteri-Laura, p.16, 1979). Foi a partir deste caso que o autor mostra que a atenção do psiquiatra Lunier foi direcionada à sexualidade. Ele apontou para o fato de que o lugar do sargento era em um manicômio e não uma prisão. Para Lunier era preciso introduzir os aspectos sexuais dos fenômenos, desta forma atestava a eficácia da terapêutica e acreditava em poder tratá-los. Assim como Laqueur (2001) em seu livro “Inventando o Sexo” afirma que a Ciência é produto e não produtora exclusiva das verdades discursivas sobre os sujeitos24, Lanteri-Laura seguem o mesmo caminho. A intenção dele é mostrar que, antes de a psiquiatria e psicanálise inventarem as perversões, já existiam discursos sobre elas. Assim ele afirma que “Vemos, assim, que o estudo das singularidades do comportamento sexual não teve um aparecimento precoce no discurso médico do século XIX” (Lanteri-Laura, p.17, 1979). Retornando, então, é notável que no processo de construção das patologias e perversões há a existência de intensa conexão entre fatos morais e saberes médicos. No período de 1810, afirma Lanteri-Laura (1979), o legislador “só se preocupava com a moral privada na eventualidade, julgada excepcional, de ela interessar à ordem pública” (Lanteri- Laura, p. 18, 1979). Desta forma ele prossegue tentando explicar os dilemas de uma sociedade burguesa que ao mesmo tempo em que queria manter a ordem pública temia a perda de

24 Thomas Laqueur aponta em seu livro o momento no qual a noção de um único sexo é substiuído pelo modelo do dimorfismo sexual. Com isso, ele mostra como algumas das “descobertas” científicas estão relacionadas ao contexto no qual estão inseridas. Mas a partir da suposta autoridade científica certas verdades eram criadas. No entanto, essas “verdades” estavam diretamente relacionadas às crenças da época. Desta forma, a noção de dimorfismo sexual reafirmava a posição de inferioridade da mulher, só que agora pautada em conhecimentos científicos, sendo um dado de natureza biológica.

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liberdades, “essa sociedade fazia questão de uma ordem pública que a protegesse do eventual retorno a subversão, mas tinha horror a que a autoridade judiciária se intrometesse em suas maneiras de fornicar” (Lanteri-Laura, p. 18, 1979). Depois da Restauração, depois da Monarquia de Julho, depois da incômoda retomada das classes dirigentes pela religião, essa sociedade já não podia deixar de aceitar um certo moralismo nessas questões: a medicina iria propô- lo, porém com notável ambiguidade, pois pretendia, ao mesmo tempo, que a ciência só se realizasse desprezando os preconceitos e abandonando os pressupostos morais, e que essa ciência, assim empregada, viesse a se pronunciar sobre as práticas naturais e as que não o eram. (Lanteri-Laura, p.19, 1979).

Prosseguindo com seu argumento, o autor mostra que a medicina do século XVIII, mesmo que imbuída com o espírito iluminista, fazia parte de uma sociedade cheia de tradições e regras. Sendo assim, um dos aspectos que levava à construção das patologias era a ideia de que o sexo não reprodutivo era reprovados moralmente. O autor aborda que, nesse cenário, a sexualidade está diretamente e unicamente relacionada a reprodução. O corpo como meio de prazer, e sobretudo como meio de prazer que é o orgasmo, achava-se, a despeito do dogma da encarnação, na vertente do mal, e a carne só podia ser um lugar de impiedade. Duas exigências decorreram disso. Primeiro, a única justificação para a sexualidade era a reprodução da espécie, e, somada ao sacramento do matrimonio, ela apagava o pecado do prazer; mas o prazer em si era tido apenas como uma falha, da qual ao menos a esposa podia ser salva pela graça da frigidez; e a união só era lícita quando contribuía para a procriação, única coisa a desculpar a bestialidade desses atos. Tudo o que não conduzia diretamente à reprodução tornou-se pecaminoso (Lanteri-Laura, p.21, 1979).

A partir da segunda metade do século XIX o domínio do lícito era o da ausência de prazer e o da procriação conjugal. Já o do ilícito um campo aberto de possibilidades. Lanteri- laura, ao analisar a separação entre lícito e ilícito ocorrida no século XIX, tenta mostrar que há uma reorganização do vocabulário importante para compreender como a palavra “perversão” passou a ser totalmente relacionada à sexualidade. Dessa forma, o “campo semântico” (Lanteri-Laura, 1979) no qual as questões ligadas à “perversão” e às condutas sexuais foram se formando. Nota-se no contexto descrito por Lanteri- Laura algo análogo ao refletido por Gayle Rubin (1993) em outro momomento nos EUA dos anos de 1980: a existência de hierarquias sexuais capazes de organizar as moralidades dos sujietos. Rubin (1993) em seu texto “Pensando o sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade” mostra que há na sociedade ocidental uma hierarquia dos valores sexuais que coloca o sexo monogâmico

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heterossexual com fins repreodutivos no topo, ao passo que o sexo com travestis, transsexuais, fetichista e entre gerações na escala mais baixa. Ela, assim como Foucault, aponta para a transição da visão religiosa sobre o sexo para a médica e psquiátrica. Embora não explore a fundo como Foucault essa transição, mostra que a visão médica é a que passou a predominar dando um sentido patológico para as práticas sexuais desviantes. O que é interessante pensar, fazendo a relação entre Rubin e Foucault, é sobre a linha divisória que separa o “bom sexo” do “mau sexo”. Ambos comentam, cada um a seu modo, como os desejos sexuais “pervesos” passam a ser mais ouvidos com a multiplicidade discurssiva a que Foucault se refere. Cada vez mais quer se ouvir falar das minúcias das práticas sexuais, sejam elas quais forem. Foucault se indaga: a aparente aceitação, ou vontade de saber mais sobre essas práticas desviantes seria um sinal de maior liberdade? Não, o que muda na verdade é a forma de controle exercido sobre essas sexualidades. Ouvir, saber sobre essas práticas sexuais é sinônimo de poder sobre elas. Rubin faz indagação semelhante quando aponta que essa linha divisória não é fixa. Ou seja, práticas sexuais que hora não são aceitas podem se tornar aceitas. O que para ela não significa que sejam totalmente aceitas. Ainda se exerce um controle sobre elas, pois há, mesmo no lado do “bom sexo”, uma gradação que vai do sexo heterosexual monogâmico (sendo o mais aceito) até práticas sexuais fetichistas (que são algumas das menos aceitas). O que esses autores têm em comum é a tentativa de mostar o caráter de construção dessas hierarquias, bem como desses conceitos de “perversão”, sexo desviante e obsceno. Praticamente tudo o que não estivesse incluído no sexo dentro do casamento com fins reprodutórios estaria, sobretudo a partir do século XIX, incluido na lista de práticas sexuais desviantes. Claro que essa moralidade não é tão opressora como poderia parecer, a todo o instante existem formas de burlar essas sanções morais, como bem nos mostra Jefrey Weeks (1985). Ele mostra que os chamados “valores morais dominantes”, combatidos na década de 1960 pelo que ele chamou de “radicais do século XX” (radicais não em sentido negativo, mas no sentido de todos aqueles que, principalmente, desde a década de 1960 combatem os valores morais ocidentais, sobretudo norte-americanos e europeus), são constantemente desafiados ou até mesmo ignorados. Caso contrário uma banda como Cannibal Corpse não conseguiria a fama e o sucesso que obteve (muito embora, como será trabalhado no capítulo 3, isse se dê também ao fato da época na qual a banda está inserida).

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Heavy metal: música dos “perversos” Acredito que as acusações “científicas” e morais produzidas pelos integrantes do PMRC possam ser lidas como resultado de uma história de longa duração que toma o sexo como perigoso e como elemento produtor de subjetividades “normais e desviantes”. Sendo assim, detenho-me nesse momento no entendimento sobre como essa ideia de “perversão” possibilitou que a banda Cannibal Corpe tivesse suas músicas e capas de cds “reguladas” pelos integrantes do PMRC à luz das considerações de que materializariam ou promoveriam “perversões” por meio da circulação de suas músicas. Para tratar dos casos de regulação às capas da banda Cannibal Corpse, resultado das ações dos integrantes da PMRC, parece interessante pensar no impacto causado pelo rock, que é a estilo de música que dá origem ao heavy metal. Tratar de história do heavy metal é algo bastante complexo, tendo em vista que, como vários estilos musicais, não há consenso sobre questões como: sua origem, o que é heavy metal, quais bandas pertencem ou não ao estilo dentre várias outras.25 Se há um consenso sobre o heavy metal é que há um fio condutor que liga o blues e o rock a ele. Cronologicamente surge primeiro o blues (surgimento e consolidação: 1930 a 1950), rock n’ roll (1950 a 1960), rock (1960 a 1970) e o heavy metal (1970 a 1990). Estilos musicais como o blues26 norte-americano já causavam certa estranheza. Nesse caso as razões estão relacionadas ao preconceito e a segregação racial existente nos EUA. O estilo causava reações negativas simplesmente por ser feito por negros e tratar de assuntos relacionados aos negros. O estilo conhecido como Rock n’ Roll surge a partir das apropriações feitas por músicos brancos do blues. Dessa forma, toda a performance desde os movimentos corporais até a forma de cantar lembrava muito o blues, só que executados por músicos brancos. O maior exemplo, talvez seja o Elvis Presley. O músico causou incômodo por ser um branco que dançava e cantava de maneira muito “sensual”. Já o Rock é um estilo surgido na década de 1960 que tem um objetivo maior de confrontar a sociedade na qual está inserido. É, sobretudo, uma manifestação jovem que questiona alguns dos valores da sociedade norte-americana (Muggiati, 1973). Dentre os valores criticados estão: a família tradicional ou nuclear, as condutas sexuais consideradas

25 Pare saber mais sobre a história e as principais características do heavy metal ao longo de sua história fiz uma pesquisa nos trabalhos do jornalista Ian Christe (2010), no documentário Metal: a headbanger’s journey (2011) do antropólogo e produtor canadense Sann Dunn, nas teses de doutorado do antropólogo Pedro Alvim Leite Lopes (2011) e do Leonardo Campoy (2011) e o no livro do musicólogo norte-americano Robert Walser. Tendo em vista que estes trabalhos já exploraram a história do heavy metal não parece necessário repetir o que já foi feito muito bem pelos trabalhos citados. 26 Estilo de música criado pelos negros norte-americanos. O estilo data de 1930, mas adquire sucesso comercial na década de 1950. Este estilo tratava em suas letras, principalmente da realidade dos negros nos EUA.

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repressivas, a proibição das drogas e os discursos e ações militares. O estilo causou resistências por parte da sociedade na qual estava inserido, principalmente por conta de características como o estilo de som, a forma de se vestir e as ideologias trazidas por seus adeptos. Por conta dessas características surgiu uma série de reações ao estilo. A reação ao rock foi tão manifesta que, por exemplo, Richard Nixon (presidente dos EUA no período de 1969 a 1974) pediu sua censura prévia e inclusive o banimento de músicas que falam do uso de narcóticos27 (Whiplash, sem referência de ano da matéria). Bandas como The Beatles, Rolling Stones e Bob Dylan (para citar alguns dos principais expoentes do Rock) sofreram acusações por parte de religiosos e “conservadores” em seus países. Capas de CDs de algumas destas bandas, como The Beatles e Rolling Stones, foram alvo de regulação por parte da gravadora a qual pertenciam na década de 1960. Em 1966 a capa do álbum Yesterday and Today, dos Beatles foi “censurada”28 (Belcik, 2012). A capa expunha os integrantes da banda com carcaças de animais e bonecos de bebês (Figura 6). Portanto já era uma prática comum a utilização de imagens, letras e sonoridades que causassem reações negativas.

27 Wiplash, Em 24/10/1970: Richard Nixon pede censura prévia para músicas de rock: Disponível em: .Acesso em 02 de março de 2015. 28 Entende-se censura aqui não no sentido legal, mas no sentido de que teve que sofrer alguma alteração para se adequar ao mercado fonográfico. Alguns estabelecimentos comerciais não aceitavam vender alguns CDs por conta dos conteúdos de suas capas. Mais tarde, com o surgimento da PMRC o selo era o indicativo para algumas lojas de quais CDs não vender. Normalmente eram os que tinham o selo.

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Figura 6 - Capa do CD Yesterday and Today (1966) da banda The Beatles.

O rock tratava de questões muitas vezes consideradas tabu, como religião, sexualidade e drogas. Não é por acaso que o lema do estilo ficou conhecido como "Sexo, drogas e Rock' n Roll". O festival Woodstock é um dos maiores exemplos do impacto na época. O festival mobilizou jovens de várias partes dos EUA, ao todo eram 450 mil pessoas29, num período de contestação frente a Guerra Fria. O rock era uma das formas por meio das quais jovens norte- americanos manifestavam suas insatisfações com relação à moral, bem como ao rumo que seguia o seu país, questionando acontecimentos como a Guerra do Vietnã, a noção de família nuclear, a segregação racial e a ideia de uma repressão à sexualidade. O heavy metal surge na década de 1970 com a banda inglesa Black Sabbath. Por mais que haja controvérsias quanto à origem, parece existir um certo consenso do que a banda com maior importância para a origem do estilo seja essa. Eles já eram acusados de serem supostamente “satânicos”, embora negassem que fossem. Desde então o heavy metal flerta

29 Brasil Escola, Festival de Rock de Woodstock. Disponível em: . Acesso em 30 de março de 2015.

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com temas controversos e polêmicos. Temas como sexo, violência, religião ou morte estão presentes na maioria dos estilos de heavy metal. Na década de 1980 os temas mais voltados para sexualidade passam a ser mais explorados pelas bandas de heavy metal. Bandas como Motley Crue, Poison e W.A.S.P fazem canções sobre a quantidade de mulheres com que tiveram relações sexuais, orgias, bem como dos perigos que a mulher representa (WALSER, 1993). Um exemplo é a música Animal (Fuck like a beast) da banda norte-americana W.A.S.P. Animal (Fuck like a beast) I got pictures of naked ladies Lying on their beds I whiff that smell and sweet convulsion Starts a-Swelling inside my head I'm making artificial lovers for free I start to howl I'm in heat I moan and growl and the hunt drives me crazy

I fuck like a Beast (W.A.S.P, 1984)

Já que o estilo se subdivide em uma série de subgêneros é preciso perceber que não há homogeneidade nas formas de se fazer heavy metal. Alguns estilos como Power Metal30 ou Progressive Metal31 não trazem quase elementos considerados “violentos” em suas músicas, muito menos conteúdos sexuais. As temáticas são mais voltadas para mundos fantásticos como os da literatura ou filmes com temáticas medievais e mágicas. Ou em outros casos para temas mais introspectivos, reflexivos ou coisas do gênero. Essas bandas não trazem em suas capas cenas de “violência” ou de referências à sexualidade (como nudez ou mesmo atos sexuais) e muitas vezes podem não soar tão provocativas quantos outros estilos como: Death Metal, Thrash Metal ou Black Metal32. No fim da década de 1980 e início de 1990 surgem as bandas dos subgêneros considerados os mais “agressivos”, tanto no que se refere as temáticas abordadas em suas letras, como na forma de tocar e as escolhas das artes de capa dos CDs. Aparecem com mais

30Power Metal é um estilo de heavu metal que aborda temas relacionados a aventuras épicas, medievais, como contos literários de temáticas medievais (na maior parte das vezes esse tempo medieval era representado de maneira bastante romantizada. Dando muito mais ênfase às batalhas heróicas do que a temas como a peste bubônica, torturas ou mortes em guerras por exemplo). Além destas temáticas esse estilo é um dos que mais se relaciona com música erudita, como a música clássica, por exemplo. 31Progressive Metal ou metal progressivo é o estilo mais complexo, com composições mais elaboradas. As letras variam muito, mas quase nunca abordam temas de grande violência. Muitas vezes são letras reflexivas e introspectivas. 32 Death, Thrash e Black Metal são alguns dos estilos mais pesados de heavy metal. O primeiro, como o próprio nome já diz, aborda constantemente morte além de se caracterizar por uma forma mais “agressiva” de tocar. O segundo estilo, trata de assuntos como guerras, revoluções e algumas formas de violência. O terceiro é o estilo que se considera satânico, frequentemente as letras abordam temas anti-cristianismo.

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frequência os vocais guturais (tipos de vocais tidos como mais agressivos, cuja sonoridade parece mais com um grunhido de animais, algumas bandas inclusive reproduzem um som parecido com o de porcos), a forma tida como mais agressiva de tocar os instrumentos (por conta da velocidade com que se toca os instrumentos bem como de um som considerado mais “barulhento”, mais alto, com guitarras cada vez mais distorcidas) e as letras e capas de CDs com conteúdos supostamente mais “agressivos” de uma maneira geral. Nesse contexto a banda norte-americana Carcass, em 1988, lança o álbum Reek of Putrefaction. CD que teve que alterar sua capa (Figura 7) já que na capa original havia uma fotomontagem com cadáveres verdadeiros.

Figura 7 – Capa do albúm Reek of Putrefaction da banda Carcass, de 1988.

Os conteúdos relacionados à “violência” e à morte não ficam somente na capa, estão presentes também nas letras dos álbuns. Neste CD em específico todas as letras são sobre doenças como câncer, bem como as secreções liberadas pelo corpo morto (fazem referência ao pus, ao gás que é liberado pelo defunto), o odor “nauseante” e das vísceras.

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Segundo entrevista, contida no site EARACHE, dada pelo vocalista e baixista fundador da banda Jeff Walker33 a inspiração para as letras foram dicionários de medicina e de enfermagem. Na mesma entrevista comenta mais sobre as letras e afirma que não se deve levar a sério o que eles escrevem, pois eles não querem dizer nada com o que escrevem. “Você leva qualquer coisa ao seu extremo e simplesmente fica engraçado. Quer dizer, é como a piada ‘O que você ganha se esfaquear um bebê com uma faca de cozinha? Uma ereção, com certeza!’ É tão distorcido que fica engraçado!”34. Nota-se que, primeiro a intenção era ir ao limite do que os próprios integrantes da banda considerassem nojento, mas ao passar desse limite o que ocorria era que a música ficava engraçada. Segundo que parte das inspirações deles vieram diretamente de manuais de medicina e enfermagam, portanto suportavam suas letras em uma linguagem adaptada destes manuais. Nesse surgimento de bandas de Death Metal surge Cannibal Corpse, considerada por produtores musicais, bem como por parte da mídia especializada em heavy metal, a pioneira no que fez. Ficou conhecida pelo estilo vocal (como mencionado anteriormente, os vocais guturais), pela forma de tocar e principalmente pela temática trazida em suas letras e imagens de suas capas de CDs. As letras iam desde estupros seguidos de assassinatos, até atos de “necropedofilia” e de zumbis. Em entrevistas para uma série de televisão dedicada ao heavy metal, chamada de Metal Evolution, produzida pelo antropólogo canadense Sam Dunn, é possível ver o quanto a banda contribuiu para o chamado de metal extremo35. Em certo ponto do episódio dedicado ao metal extremo o antropólogo Sam Dunn afirma que, nos EUA, a banda Cannibal Corpse é uma das pioneiras na sua forma de tocar e nas letras que faz influenciando uma série de bandas que surgiram depois. No documentário biográfico da banda, intitulado Centuries of Torment, é reafirmada a posição de pioneirismo da banda. A junção de Death Metal com temáticas gore36, ou seja, temáticas ainda mais “nojentas” do que as bandas anteriores vinham fazendo, foi algo que a banda Cannibal Corpse popularizou. Isso não significa que tenham sido os primeiros a

33 Entrevista contida no site Ear Ache. Disponível em: . Acesso em 20 de novembro de 2015. 34 You take anything to its extreme and it just becomes funny I mean like the joke "What do you get if you stab a baby with a kitchen knife? An erection of course!" - It’s so twisted it becomes funny!

36 Gore pode ser traduzido como grotesco. Músicas ou filmes com temática gore são filmes que exploram a violência física, tais como tortura e assassinato e focam nas imagens (ou referência a essas imagens quando se trata de letras de música) exageradamente violentas como crânios sendo esmagados, olhos sendo furados e entranhas expostas.

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abordar os temas, mas assim como Black Sabbath é considerada a banda fundadora do heavy metal a Cannibal é pensada como uma das primeiras a fazer o que fez: misturar heavy metal com temáticas consideradas pelos próprios membros da banda como “grotescas”, “violentas” e “assustadoras”. Mas é com bandas como Cannibal Corpse que a “violência” e a sexualidade são posicionadas de forma distinta no heavy metal. Ao invés de tratar exclusivamente das temáticas sobre orgias, como os músicos da década de 1980, eles levam suas letras ao extremo de práticas consideradas criminosas, com referências à sexualidade e práticas que poderiam ser consideradas crime. Uma certa necrofilia canibal assume o papel principal nas letras da banda, além de desejos assassinos e zumbis. Letras sobre pedófilos zumbis, condenados a viver pelo prazer de violar túmulos de crianças mortas ou de padres sodomitas e pedófilos. Traziam o que eles mesmos consideravam as coisas mais “nojentas” e “deploráveis” para sua música.

Cannibal Corpse e o goregrind/splatter A banda Cannibal Corpse, como escrito antes, é conhecida por seu som pesado e suas capas de CDs com ilustrações “violentas”, geralmente contendo sangue e zumbis. Suas temáticas são associadas a subgêneros de heavy metal chamados de goregrind e splatter. Como ressaltado anteriormente, estes tipos de heavy metal tem como grande inspiração filmes de terror, principalmente os mais sanguinolentos. Mas uma característica interessante destes estilos de filme é o exagero das cenas. As mortes ocorrem de maneiras extremamente exageradas (cabeças sendo esmagadas, olhos sendo perfurados, crânios sendo abertos, muitas vezes utilizando cenas de sexo com cadáveres e canibalismo). A banda foi fundada em 1988, mas lançou seu primeiro CD com gravadora em 1990, . Formada por cinco integrantes, todos do sexo masculino. (baixo), (vocal), (bateria), Bob Rusay (guitarra) e (guitarra). Desde o início suas temáticas eram relacionadas a temas considerados violentos, mas, sobretudo, canibalismo, zumbis, mortes, assassinatos e sexualidade. A ideia da banda era fazer letras parecidas com filmes de terror, não somente os de splatter, mas também outros tipos como “O Exorcista”, “O Iluminado” e “A Morte do Demônio”. No livro autobiográfico da banda há a explicação para o surgimento do nome da banda. O baixista Alex Webster surgiu com a ideia para o nome e todos os outros membros

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gostaram. A ideia, segundo Webster, era que o nome causasse “choque” na audiência. No primeiro álbum as letras foram todas criadas pelo vocalista, Chirs Barnes. Todos gostavam de filmes de terror e queriam passar isso para suas músicas. O direcionamento que a banda queria seguir ficou melhor representado em seu segundo CD, Butchered at Birth (1991) (Figura 8). Uma de suas primeiras capas mais “polêmicas” segundo Brian Slagel, produtor da banda na época. Nela era representada uma mulher grávida sendo mutilada do pescoço para baixo por zumbis, o bebê é removido do ventre, fetos mortos estão pendurados ao fundo pelos cordões umbilicais. Algumas das letras deste CD traziam, além da violência, principal marca da banda, algumas músicas com conteúdos sexuais como Meat Hook Sodomy e Under the Rotted Flesh. Eis uma das descrições deste álbum presente no site allmusic: No início dos anos 90, Cannibal Corpse adquiriu uma pequena fama no cenário death metal underground utilizando algumas das mais grotescas letras que o subgênero tinha a oferecer. Se apoiando em chocar valores, a banda inspira comparações a GWAR vem além como uma paródia do death metal e grindcore mais do que qualquer coisa. Assim como o seu álbum anterior Eaten Back To Life, Butchered at Birth aborda tópicos escabrosos como desmembramento, tortura e masoquismo. Precisariam do papel com a letra para saber o quão grotesco são músicas como “Under the Rotted Flesh”, “Meat Hook Sodomy”, “Covered With Sortes” e “Rancid Amputation” – o vocal de grunhido são impossíveis de compreender. Alguns lojistas se recusaram a vender este CD por causa da sua imagem de uma mulher sendo multilada por zumbis e Cannibal Corpse não perdeu tempo ao se aproveitar ao máximo da publicidade da controvérsia. Os rockeiros são unidimensionais, porém, eles nunca reivindicaram ser nada mais. O objetivo óbvio desta banda era fazer a música equivalente a um filme de terror B, e neste nível, o álbum foi muito bem-sucedido.37

Essas são as considerações de um site especializado em música sobre o CD do Cannibal Corpse. Nessa descrição é interessante ver como chama a atenção para a “brutalidade” trazida pelas letras das músicas da banda. Só que o próprio texto mostra a forma como a banda se utiliza das controvérsias como forma de marketing. O baixista Alex Webster afirma em uma entrevista que sua intenção era que as letras parecessem histórias assustadoras

37 In the early '90s, Cannibal Corpse acquired a small cult in the death metal underground by embracing some of the most gruesome lyrics the subgenre had to offer. Thriving on shock value, the band inspires comparisons to GWAR and comes across as a parody of death metal and grindcore more than anything. Like its previous album, the equally twisted Eaten Back to Life, Butchered at Birth addresses such lurid topics as dismemberment, torture, and masochism. One will need the lyric sheet to know just how gross songs like "Under the Rotted Flesh," "Meat Hook Sodomy," "Covered with Sores," and "Rancid Amputation" are -- the grunting vocals are impossible to understand. Some retailers refused to carry this CD because of its depiction of a woman being mutilated by zombies, and Cannibal Corpse wasted no time getting as much publicity as possible from the controversy. The rockers are one-dimensional, but then, they never claimed to be anything else. This band's obvious goal was to deliver the musical equivalent of B-movie horror flick, and on that level, the album is outrageously successful. Disponível em . Acesso em 14 de maio de 2015.

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“sérias”. Mas que com o excesso de violência (ele usa o termo extreme gore) algumas letras acabam ficando “engraçadas”. Outro dado importante sobre a banda é que em suas músicas todas as representações são fortemente exageradas (tal qual os já citados filmes splatter), o que, de alguma maneira poderia torná-las menos sérias do que os membros da banda gostariam. O que nos remete a Jorge Leite Jr. (2012) quando ele fala dos freak shows e dos bufões. No caso do primeiro eram espetáculos que traziam pessoas com deformidades físicas ou todo e qualquer tipo de “anomalia”. Os excessos destas apresentações bem como das performances dos bufões apresentavam uma dualidade, horror e riso, nojo e curiosidade. Ou mesmo no pornô bizarro que traz cenas que ao mesmo tempo em que remetem ao “horror” ou “nojo” acabam sendo cômicas por seus exageros. Temas que serão mais abordados no próximo capítulo com mais amplitude e aprofundamento. Outras considerações sobre este álbum estão presentes no documentário Centuries of Torment: the fisrt 20 years, produzido por Denise Korycki38. O documentário39 foi lançado nos EUA e na Europa, mas hoje pode ser acessado na internet, na íntegra. Neste documentário é feita toda uma história, mesmo que resumidamente, da trajetória da banda desde seu primeiro álbum até o último (1987 até 2007). O primeiro vocalista Chris Barnnes, compositor de todas as letras do álbum, afirma que neste CD a banda encontrou sua identidade.

38 É uma diretora e produtora de vídeos chamada pela gravadora Metal Blade Records, uma das mais importantes gravadoras de heavy metal, para gravar um DVD sobre a banda Cannibal Corpse. O DVD foi gravado para ajudar no lançamento do mais novo CD, o décimo terceiro, da banda intitulado Skeletal Domain (2014). 39 O documentário sobra a banda é dividido em três partes. Na primeira é exposta a história da banda, desde o primeiro álbum até o último. Na segunda parte há uma apresentação das performances ao vivo, bem como os videoclipes da banda. Na terceira são abordados alguns tópicos interessantes, dentre eles o de mais importância para o presente trabalho é o das tentativas de censura às capas da banda.

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Figura 8 - Capa original do álbum Butchered at Birth, segundo álbum da banda Cannibal Corpse de 1991.

O primeiro CD a dar total enfoque em conteúdos sexuais foi o (Figura 9), data de 1992. Neste CD a capa já traz conteúdo sexual com um zumbi fazendo sexo oral numa mulher morta, com o abdômen aberto e cortes por todo o corpo. Neste álbum todas as letras, exceto uma, falam de práticas sexuais. Músicas como I cum blood, Necropedophile, Addicted to Vaginal Skin e Entreils Ripped from a Virgin's Cunt são algumas das músicas mais famosas do álbum. Este CD é considerado um dos maiores sucessos da banda e considerado pelos próprios integrantes como um de seus melhores álbuns.

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Figura 9 - Capa original do álbum Tomb of the Multilated, de 1992.

Todas as capas tiveram que sofrer alterações por conta da relação com o mercado fonográfico. Como dito anteriormente algumas lojas se recusavam a vender alguns álbuns, principalmente os que estivessem com o selo. Tendo uma versão original e uma que era exposta nas lojas. As versões originais poderiam ser vistas no interior do encarte do CD. Para os produtores essa era uma boa estratégia de mercado: atiçar a curiosidade dos fãs. No documentário já citado é possível ver essas estratégias. Era característico da banda, desde seu primeiro álbum até o último (talvez com a exceção do álbum Kill), expor capas com cenas de violência. Um fato curioso é que a banda teve ainda mais sucesso depois de ter aparecido no filme estrelado por Jim Carrey, “Ace Ventura: detetive de animais” (1994). No filme eles aparecem tocando a música , um de seus hits de maior sucesso contido no album Tomb of the Mutilated. A partir de então ganharam cada vez mais visibilidade.

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Em 1996 a banda sofre críticas do Senador Bob Dole que acusa seus componentes de criar “música exaltando os prazeres de estuprar, torturar e mutilar mulheres”40. Além de Dole outros dois políticos (C. Delores Tucker e William Bennett) mencionaram a banda ao tecerem críticas a alguns estilos de música que estariam destruindo a imagem do país e influenciando mal os jovens. Esses políticos faziam parte de um movimento maior do que foi chamado pelo jornal The New York Times de cruzada anti-rap41. Ou seja, nestes casos o alvo não era o heavy metal, mas sim, toda e qualquer tipo de música que trouxesse conteúdos sexualmente explícitos e violência. A banda continua produzindo até os dias atuais, sempre mantendo os temas relacionados à violência, principalmente. Nos EUA, parece que não causou mais problemas desde 1996, quando foi alvo das últimas críticas feitas por políticos. O que se pretendeu ao longo do capítulo foi mostrar essa relação entre loucura, sexualidade e crime. A banda estudada traz em suas músicas alguns destes temas com recorrência. Seus CDs, suas letras e capas de CDs são lidos por como um bem cultural “perverso” e “perigoso”. Sendo assim, suponho que as agências reguladoras, o PMRC assim como The New York Times de cruzada anti-rap entendiam que não só as múcias, Cds e capas ofereceriam perigo aos jovens que as ouvissem, bem como os integrantes das bandas seriam entendidos como seres “perversos”. É como se houvesse uma dificuldade de se separar a esfera pessoal, individual do músico de sua esfera puramente artística. A arte e a individualidade do artista se fundem aos olhos dos “avaliadores morais” de suas obras. Por isso parece interessnte trazer um pouco mais do ponto de vista dos músicos que fazem parte da banda Cannibal Corpse. Com o intuito de compreender melhor o que eles pensam sobre sua música, o que vêem das críticas feitas a eles e, em alguma medida, que estratégias adotaram comercialmente, como se apropriaram da classificação de “perversidade”? Que inspirações e respostas dão aos que tentaram “regular” suas produções artísticas?

40 “music extolling the pleasures of raping, torturing and mutilating women” The New York Times, Films and Recordings Threaten Nation's Character, Dole Says. Disponível em: . Acessado em 20 de agosto de 2015. 41 Los Angeles Times, . Disponível em: . Acessado em 20 de agosto de 2015.

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CAPÍTULO 3 - CANNIBAL CORPSE E A APROPRIAÇÃO DA IDEIA DE PERVERSO

A apropriação do perverso: o grotesco, o terror e a violência como capitais culturais e econômicos Após tratar da construção da noção de “perversão” ligada a sexualidade e a comportamentos desviantes, como apresentado no capítulo anterior, parece interessante ver de que forma os músicos se apropriaram de algumas destas categorias. A partir de narrativas sobre a banda contidas em entrevistas em sites como Loudwire, Invisible Orange, Pure grain audio, Chicago Innerview, no livro biográfico e no documentário, pretende-se perceber um pouco mais sobre as formas de apropriação feitas pela banda. Leonardo Campoy estudou o underground heavy metal no Brasil e percebeu que a categoria “patológico” é utilizada pelos integrantes dos estilos splatter/goregrind/grindcore para definirem o que as bandas deste estilo fazem. Vale ressaltar que essa apropriação das noções de “patológico” são inicialmente produzidas no exterior, sobretudo EUA, e depois incorporadas no contexto brasileiro. Nos EUA houve a incorporação da noção de grotesco como bens simbólicos, pela banda Cannibal Corpse. Além dessa banda, outras bandas de heavy metal, notadamente a banda Carcass já mencionada anteriormente, se apropriam de muito do que está nos catálogos psiquiátricos e médicos. Enquanto bandas como Carcass, como visto, se apropriaram propositalmente de termos tirados diretamente de dicionário de medicina e enfermagem, outras como Cannibal Corpse utilizavam o que viam em filmes de terror para sua inspiração. A necrofilia é a principal delas, mas também estão presentes em algumas músicas a pedofilia, sadomasoquismo, escatologias e estupros. O que estas bandas, mas sobretudo, os produtores musicais que as contratavam, faziam era transformar algumas noções socioalmente construídas em bens culturais comercializáveis. As bandas de heavy metal, desde seu surgimento, utilizam alguns elementos para chamar a atenção de seu público. A banda Black Sabbath utilizava a religião e as letras com temáticas de filmes de terror. Para além das letras e da sonoridade as capas de CD sempre tiveram um papel muito importante no heavy metal, eram como um complemento às músicas. Outra banda icônica no que diz respeito as performances é a banda Alice Cooper42. A banda

42 Banda norte-americana formado em 1975 conhecida por fazer shows ao vivo quase circenses. Alguns dos shows contavam com cenas do cantor sendo decaptado na guilhotina, segurando cobras entre outras coisas. Ele é conhecido como o pai do Shock rock, sendo grande influência para bandas como Kiss.

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trazia espetáculos nos shows. Em dado momento do “show de horrores” o vocalista era executado em uma performance de decaptação, na qual a cabeço do cantor era erguida para o público. Portanto não é algo incomum no heavy metal. A banda Cannibal Corpse não tinha uma performance ao vivo tão chocante quanto Alice Cooper ou a banda Kiss43. Mas a sua própria maneira causou choque, principalmente dentro do próprio meio heavy metal. Se por um lado não tinha uma performance ao vivo teatral, o conjunto de sua obra já trazia elementos suficientes para causar rebuliços. Suas capas e os títulos das letras eram o que chamavam mais atenção do público externo ao heavy metal, já que dificilmente paravam para ouvir as músicas ou ler as letras (compreendê-las somente escutando as músicas era quase impossível). Segundo o produtor Brian Slagel, responsável por uma das maiores produtoras de heavy metal dos EUA Metal Blade, a banda trazia algo que ele nunca tinha visto antes. Brian Slagel: Cannibal mandou uma demo e a primeira coisa eu fiz foi olhar para o título das letras. Tinha uma música chamada “A Skull Full of Maggots” e eu pensei imediatamente que deveria contratar essa banda baseado unicamente naquele título da música! A demo acabou ficando muito boa e nós acabamos contratando eles em 1989. Tinham outras bandas de death metal – Morbid Angel, Death, Obituary entre outras – e algumas destas bandas escreviam letras gore mas nenhuma outra banda estava fazendo isso neste extremismo, isso com certeza. Eu sempre pensei que era bem legal: que a letras eram tão exageradas. A música era muito boa também, o que era ótimo porque você não pode ter somente títulos de letras bizarras: tinha que ter qualidade musical também.44

Esta passagem mostra o que Bourdieu chamou de produção de “bens simbólicos” (1974). O produtor da banda sabe que há um mercado para os conteúdos produzidos pela banda, há um público que consome este tipo de de produto e percebe na banda uma boa oportunidade de negócios. A banda passa a fazer parte de uma indústria cultural que tem como objetivo atingir um público abrangente de consumidores daquele produto. Esta

43 A banda Kiss é conhecida pelas pinturas nos rostos, fantasias dos quatro inegrantes (cada uma represetando um personagem) e pelos shows cheios de efeitos, dentre os quais pirotecnia, sangue sainda da boca do baixista (Gene Simmons) e faíscas saindo da guitarra (Ace Frehley). Outra importante banda do estilo conhecido como Shock rock. 44 Brian Slagel: Cannibal sent us a demo cassette, and the first thing I did was look at the song titles. There was a song on there called 'A Skull Full Of Maggots,' and I immediately thought that I should sign this band based on that song title alone! The demo turned out to be really good, and we ended up signing them in 1989. There were other death metal bands around - Morbid Angel, Death, Obituary and so on - and some of those bands were writing gory lyrics, but no other band was doing that to this extreme, that's for sure. I always thought that was really cool: that the lyrics were so over the top. The music was really good too, which was great because you can't just have bizarre song titles: there has to be musical quality as well.

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apropriação do “perverso”, do grotesco e do “terror” se dá dentro de um contexto no qual esses conceitos são vistos como mercadoria. O baixista e um dos fundadores da banda, Alex Webster, afirma sobre suas intenções com relação às temáticas das letras da banda: Eu queria que as músicas fossem genuinamente assustadoras. Eu queria que nossas músicas assustassem as pessoas como um grande filme de terror ou livro dos anos 70. As letras precisam ser surreais, porque o que assusta as pessoas é quando algo estranho acontece, algo que não é como a realidade. Como no filme Fanasma (Phantasm) quando o cara sangra na cor amarela. As vezes as coisas que não fazem sentido são as mais assustadoras. Por exemplo, no “O Iluminado" (The Shinning), tem uma parte que você vê um cara com uma fantasia de urso fazendo sexo oral em um cara com uma de smoking. Você fica tipo, “Que merda era aquela?”. É assustador porque é muito estranho.45 (2014, pág.104) Eles acabavam se apropriando de conceitos e comportamentos considerados “perversos” e os utilizavam em sua música como forma de entretenimento. Além das letras, Alex acredita que as imagens sejam muito mais assustadoras do que as letras. “Eu mesmo sempre pensei que o visual é mais assustador do que as letras. Quando você vê um globo ocular sendo espetado por um pedaço de madeira quebrado em um filme de Lucio Fulci46 tem muito mais impacto do que isso descrito em palavras47” afirma o baixista, mostrando um dos porquês das capas escolhidas pela banda. Mas, como já havia comentado no capítulo anterior, o álbum mais “extremo” da banda Cannibal Corpse, segundo o autor do livro, Joel McIver, sobre a banda, foi o Tomb of the Mutilated. Mais uma vez Webster comenta, em um trecho do livro no qual ele fala um pouco sobre o álbum Tomb. Alex: ‘Entrails’48 é tão exagerada que é ríducula. Quando tínhamos 20 anos não estávamos pensando muito seriamente sobre essas coisas. Chris escreveu as letras e nós demos a ele total liberdade para que elas fossem o mais ofensivo e perturbador quanto ele achasse necessário. Hoje em dia nós provavelmente pensaríamos um pouco mais sobre os conteúdos das músicas e no resultado final, pode ser letras que ainda assustem, mas menos demasiadamente ofensivas. Eu acho que, às vezes, uma pegada mais sutil

45 I wanted the lyrics to be genuinely frightening. I wanted our songs to scare people, like a great horror film or book from the 70s. The lyrics need to be surreal, because what frightens people is when something weird happens that is not like reality. Like in the movie Phantasm, when the guy bleeds yellow blood. Sometimes things that don't make sense are the scariest. For example, in The Shining, there's a part where you see a guy in a bear suit giving a blowjob to a guy in a tuxedo. You're like, "What the fuck is that?" It's terrifying because it's so weird. 46 Diretor, escritor e ator italiano. 47 We don't have just one sound. It's all about horror and it's all death metal, but there's quite a bit of variety within those parameters. I always thought visuals were more horrific than lyrics, myself. When you see an eyeball get skewered by a piece of broken wood in a Lucio Fulci movie, there's much more impact than having that described in words.

48 Refere-se à música Entrails Ripped from a Virgin’s Cunt música do album Tomb of the Mutilated.

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pode ser mais eficaz para ficções de terror – ‘sutil’ sendo um termo muito relativo no nosso caso, talvez a diferença entre um machado atingindo as genitálias e um machado na cabeça. Mas é o que nossa banda está fazendo realmente: colocando ficção de terror na música. Nós não apoiamos o que os personagens em nossas músicas fazem: eles são só personagens do mal que são apropriados para histórias como essas. (Bible of Butchery, 2014)49. O primeiro vocalista da banda e principal compositor, Chris Barnes50, no documentário produzido sobre a banda, comenta um pouco sobre esse CD. Ele deixa claro que colocou tudo o que ele achava mais “nojento” e “ofensivo” no albúm Tomb of The Mutilated. Eram certamente as letras que eles todos consideravam as mais “pesadas” já escritas pela banda. Webster chega a afirmar que algumas das músicas contidas neste álbum faziam sucesso exclusivamente pelo nome chamativo como I Cum Blood, que conta a história de um homem que volta dos mortos (zumbi) e quer ter relações sexuais com cadáveres de mulheres, mas também matar mulheres vivas e transar com elas. Assim como o corpo de suas “vítimas” ele também está em decomposição e o sangue que sai de sua ejaculação é fruto disso. Eu gozo sangue [...] Fodendo o podre Meu sêmem está sangrando O cheiro de podridão Vaza de sua cavidade genital O cheiro era insuportável Enquanto eu a desenterrava Eu gozo sangue da minha ereção Eu sinto ele escorrer pela garganta dela, engolir [...] A música, trata, dentro desta ficção, de escatologia, necrofilia e assassinato. Assim como fala dos fluidos corporais referindo-se às secreções, sangue, “gosma”, “muco”, “coágulos”. Além do que trata de algo grotesco, no sentido de algo exagerado, uma hipérbole e um excesso. Neste ponto parece interessante utilizar o termo grotesco tal qual o utilizou Bakhtin (1993) e reiterado por Jorge Leite Jr. (2006) que apontam como uma das características do que chamaram de “realismo grotesco”:

49 Alex: 'Entrails' is so over the top that it's ridiculous. In our twenties, we weren't thinking too seriously about this stuff. Chris wrote the lyrics and we gave him free rein to be as offensive and disturbing as he thought necessary. Nowadays we probably think a little more about the subject matter of our songs, and the end result can be lyrics that are still horrifying but less overtly offensive. I think that sometimes a more subtle approach can be more effective for horror fiction anyway - 'subtle' being a very relative term in our case, maybe the difference between a hatchet to the genitals and a hatchet to the head. But that's what our band is doing really: putting horror fiction to music. We don't back what the characters in our songs are doing: they're just evil characters who are appropriate for stories like these. 50 Chris Barnes foi o primeir vocalista da banda e responsável pela maio parte das letras da banda até o quarto CD, The Bleeding. Depois deste album ele foi mandado embora da banda.

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É esta união do corpo deformado com o riso que faz Bakhtin nos anos 30 do século XX, criar seu conceito de “realismo grotesco”, como já visto. Aqui, o corpo é entendido em constante transformação, eternamente incompleto e por isso mesmo inacabado, focado em seus orifícios, protuberâncias, excreções. Tal noção expressa uma valorização das fases da vida como momentâneas, da mutação dos corpos que engravidam e adoecem, dos líquidos e odores exalados pela matéria física. Existe também uma importância especial nas partes que se abrem para o exterior: boca, narinas, vagina, ânus. (Leite Jr., 2006) Os exageros das músicas de Cannibal Corpse, muito comuns no subgênero goregrind/splatter, deixam claro que é uma mera representação totalmente fictícia e muito afastada da realidade. Que muito se assemelham ao que Jorge Leite Jr. (2006) chamou de “farsa” se referindo à prática teatral ocorrida na Idade Média com representações “dissimuladas” que exageram o ridículo e o grotesco (Leite jr., 2006). Ao tratar do assunto, o autor está se referindo à forma como o riso é utilizado em parte da Idade Média para fins religiosos. Mesmo sendo mal visto por parte do clero é utilizado para ridicularizar o inferno, os demônios. É quando ele pretende mostrar a relação entre risada, o grotesco e a sexualidade. Segundo o autor é no século XIX que o grotesco surge como categoria estética. Diz ele O grotesco então de um lado, cria o disforme e o horrível; do outro, o cômico e o bufo (Hugo, 2002: 30), e torna-se assim uma maneira de apresentar o sublime através do degradado. [...]Surge então neste século o conceito de grotesco como uma estética própria que, devido a seus exageros e desproporções, especialmente corporais, une o medo, o engraçado e, ao mesmo tempo, o elevado e grandioso apresentados em uma versão “inversa”. (Leite Jr., 2006) Uma característica do grotesco é causar estranhamento, medo, repulsa, mas também provocar o riso. Exalta as partes inferiores do corpo humano (no sentido anatômico, da cintura para baixo), dos orifícios (ânus, vagina, narinas, boca). Jorge Leite Jr. quer chegar à reflexão sobre como a pornografia é uma forma de estética do grotesco, principalmente a considerada bizarra e fetichista que, segundo ele, é (...) manifestada pela exposição exagerada dos closes genitais (Explorando o canal retal – EUA, 1998), das “anormalidades” físicas (Anã Anal – França; sexo com uma anã) ou da “feiúra” (Fat Piggy’s Pizza Pussy Party – EUA; sobre pessoas muito gordas comendo pizza e participando de uma orgia ao mesmo tempo) e dos corpos “não-domesticados (Leite Jr., 2006). Essas características citadas pelo autor me pareceram próximas do caso estudado neste trabalho. Imagens (figuras 10, 11 e 12) como as a seguir podem mostrar a proximidade com o que ele afirma do parágrafo acima. Exceto claro pelo fato de ele estar falando de pornografia bizarra e eu de uma banda de heavy metal que utiliza uma estética grostesca ressaltando as partes genitais, mutilações corporais e em alguns momentos a sexualidade.

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Figura 10 - Capa do album Worm Infested de 2003.

Figura 11 – Capa do album Vile de 1996.

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Figura 12 - Album The Wretched Spawn de 2004.

Como se pode ver nas capas dos álbuns há uma ênfase em algumas partes do corpo geralmente escondidas nos cotidianos. Ora aparece a vagina ora um pênis (talvez sutil de se perceber no album Vile). E somado a essa exposição dos corpos está sempre uma relação com violência física, o sangue e a mutilação dos corpos (excetuando-se pela figura 2 que poderia ficar aberto a interpretações de que a mulher na foto esteja sentido algum prazer.). Corpos mutilados, em situações impossíveis, exagerando na violência a tal ponto de ser completamente fora da realidade. O mesmo ocorre com as letras da banda, principalmente dos quatro primeiros álbuns. Neste trecho Alex Webster fala sobre as músicas da banda e as reações, nem sempre esperadas, a elas. Nós nunca quisemos que nenhuma de nossas músicas fossem vistas como engraçadas: nós queriamos que o ouvinte visse cada música como sua história de terror indivudual, e ela pode ser levada a sério como um um filme

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de terror pode – mas o que nós descobrimos foi que quanto mais nojenta/grotesca (gore) é a música mais as pessoas injetam um sentimento de humor negro nas suas interprtações dela. Eu consigo perceber que algumas das músicas são tão fora da realidade que talvez se você ache isso divertido, mas se você visse isso acontecendo na vida real a última coisa que você acharia é que é engraçado. […] […] Pessoalmente nós não nos levamos a sério, mas nós levamos nossas músicas a sério – embora, é claro, não tenhamos a intenção de fazer das músicas nenhum tipo de instrução para a vida. (Butchery at Birth, 2014)51 O que Alex mostra aqui é que ele percebe que quanto mais gore, ou seja, quanto mais exagerada for a música maior a chance de o público achar graça. É claro que ele está se referindo ao público fã da banda. O mesmo não pode ser dito dos senadores que citaram a banda no Senado e algumas das lojas que se negavam a vender os CDs da banda por conta, sobretudo, de suas capas. O que nos leva ao próximo tópico relacionado à teoria da recepção. Teoria que nos mostra as diferentes formas de interpretar uma manifestação artística, dando maior ênfase na recepção do que na própria criação de uma obra.

A a apropriação do perverso e a “criação” do mundo artístico Uma das frases logo na abertura do livro biográfico escrito por Joel McIver sobre a banda pode dar uma boa definição de como é vista a banda Cannibal Corpse. Segue o breve prefácio: Este livro é sobre a vida e o trabalho de pessoas totalmente normais. Os membros de Cannibal Corpse são amigáveis, educados, músicos completamente treinados (tradução incerta para house-trained) que não tem hábitos indecentes, até onde o escritor sabe. No entanto, as letras das músicas de Cannibal Corpse não são para os de coração fraco. Violência, tortura, assassinato e muitas outras práticas perturbantes são descritas com muito detalhes gráficos. Portanto não leia este livro se você é sensível, se ofende facilmente ou – no caso de menores – sem permissão de seus pais ou responsáveis. Não procure replicar nenhuma das práticas mencionadas nas músicas de Cannibal Corpse. Qualquer semelhança nas referidas músicas com qualquer pessoa, viva ou morta, não são intencionais e totalmente coincidências.

51 We never wanted any of our lyrics to be seen as funny: we want the listener to view each song as its own individual horror story, and they can be taken seriously in the way that a frightening horror movie can be taken seriously - but what we've found is that the gorier a song is, the more people inject a feeling of black humour into their interpretation of it. I can see that some of the songs are so over the top that you might find it amusing, but if you saw any of these things happening in real life, the last thing you'd be doing is laughing. You'd be trying to help the poor victim escape their predicament, or possibly running for your life. The context adds that element of fun to something that is really morbid and macabre, and at a concert, we're having fun because we're playing really high-energy music and everyone's laughing and having a really good time. George will say some tongue-in-cheek funny stuff on stage when he's announcing the songs, and that helps lighten up something that's really quite dark, taken at face value. That's the way we design them to be. As people we don't take ourselves seriously, but we do take our songs seriously - although of course we don't intend the lyrics to be any kind of instruction for living.

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Você foi avisado. Joel McIver, 201452 Cabe aqui, a partir de autores como Foucault (2001), Roland Barthes (1968), Vera Zolberg (2006) e Howard Becker (1977) pensar a noção de autoria nas Ciências Sociais. Essa relação entre as Ciências Sociais e a arte que, segundo Zolberg, já foi uma relação tensa é explorada por Becker em seu texto “Mundos Artísticos”. Neste texto ele tenta mostrar como a arte, diferente do que é colocado pelos profissionais relacionados às artes (como críticos de arte e pelos próprios artistas) não surge de uma inspiração “divina”, portanto não é necessariamente um projeto individual de um “gênio”, como diria Elias (1991) em sua obra sobre Mozart. O que há na verdade é todo um esforço coletivo que dá sentido artístico a determinadas obras. Com isso ele retira também uma noção essencialista de obra de arte, mostrando que não há nada intrínseco a nenhuma obra de arte que a torne um objeto artístico. Vera Zolberg segue o mesmo caminho ao mostrar que ao longo da história ocidental surgem duas linhas de pensamento sobre a arte. Uma internalista, ou humanística, a outra externalista, mais associada às Ciências Sociais. Na primeira vertente, a obra de arte seria fruto de uma inspiração quase divina, singular, com características que seriam consideradas universalmente belas. Na segunda dá-se uma ênfase maior ao contexto bem como a noção de construção das noções de belo ou do que é arte e do que não é. É nessa ponte que as reflexões de Foucault sobre autoria entram em cena mostrando uma certa especialização da autoria. Ele evidencia que normalmente buscam o significado das obras em seus autores, quando na verdade, segundo Becker e Foucault, (e até na crítica de Roland Barthes) não é nem no autor (a fonte, o início), nem na crítica (crítica especializada), mas na recepção que o significado da obra se dá de fato. A crítica de Barthes é na centralidade do autor quando se está tratando de obras literárias. Ele questiona o leitor a pensar sobre de quem é a fala em um texto e afirma não ser possível sabê-lo. É impossível com base única e exclusivamente no texto saber quem está falando, se é o autor, se é a personagem, se o texto é sobre uma experiência real ou mera ficção. Será para sempre impossível sabê-lo, pela boa razão de que a escrita é destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse

52 This book is about the life and work of entirely normal people. The members of Cannibal Corpse are friendly, polite, fully house-trained musicians who have no nasty habits whatsoever, as far as the writer is aware. However, the lyrics of Cannibal Corpse's songs are not for the faint-hearted. Violence, torture, murder and many other disturbing practices are described in graphic detail. So don't read this book if you are sensitive, easily offended, or - in the case of minors - without the permission of your parents or guardians. Do not attempt to replicate any of the practices mentioned in Cannibal Corpse's songs. Any resemblance in said songs to any person living or dead is unintentional and entirely coincidental. You have been warned. Joel McIver, 2014.

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compósito, esse obliquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve. (Barthes, 1968) Ele destaca que o “Autor” com “A” maiúsculo é uma criação da modernidade. E que, por mais que para ele, a escrita “mate” o autor ainda é muito comum associar a obra à personalidade do autor. [...] a crítica consiste ainda, a maior parte das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o falhanço do homem Baudelaire, que a de Van Gogh é a sua loucura, a de Tchaikowski o seu vício: a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua «confidencia» (Barthes, 1968). Seguindo essa linha de raciocínio é possível pensar que as críticas feitas às letras da banda Cannibal Corpse são atribuídas aos músicos que as compuseram. Não à toa em algumas falas do Alex Webster ele reitera repetidas vezes que o que eles escrevem são como textos de ficção de terror. Fazem isso justamente para afastar deles o estigma de que pratiquem ou apoiem os atos descritos em suas músicas ou representados em suas capas. Lembrando que as capas são todas obras do mesmo artista, , mas são os músicos que carregam o estigma pelo conjunto da obra. Como nos diz Barthes (1968)53, não é o autor que define sua obra, mas o leitor. Aqui entendo leitor em um sentido mais amplo o de receptor, ou seja, tanto os fãs quanto os críticos da banda. Uma das grandes questões levantadas nas teorias de arte é a relação entre a vida pessoal do artista e sua arte, entre autor e obra. Ou seja, é comum numa obra literária, por exemplo, acharem que o narrador ou o protagonista são um reflexo do autor. Portanto se um livro trata de um romance, os leitores muitas vezes acreditam ser uma obra quase biográfica. A distinção entre ficção e vida não é tão clara aos olhos dos leitores, dos receptores. O mesmo ocorre com outras formas de arte, como a música, os filmes e as pinturas. A noção de que o conjunto da obra de uma banda, considerando a música, a capa do CD, a letra e as performances ao vivo, não são somente uma performance, mas fazem parte da vida pessoal de cada integrante da banda. Estou me referindo a performance como nas peças teatrais, é como uma atuação, uma fantasia. Esse processo de relacionar diretamente autor e sua obra está ligado à individualização ocorrida na modernidade. Essa afirmação é de Foucault (1970), quando analisa o que é um

53 O que Barthes diz é que a morte do autor dá lugar ao nascimento do leitor. O leitor (receptor) é o que vai dar sentido a obra. Ele afirma “a unidade de um texto não está em sua origem, mas no seu destino...” (Barthes, 1968). Roland Barthes pode estar sendo um tanto radical ao “matar o autor”, mas sua argumentação parece interessante para pensar o que ocorre no caso estudado. A crítica, sejam os críticos profissionais, sejam os críticos morais (como no caso da PMRC, por exemplo), normalmente procura na obra o autor por trás dela

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autor. Neste texto, uma conferência oferecida em Búfalo, EUA, ele questiona a noção de autoria e tem como objetivo “examinar unicamente a relação do texto com o autor, a maneira com que o texto aponta para essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos aparentemente”. (Foucault, 1970). Algo que pode ser visto com a banda aqui estudada. Por conta da tendência de se comparar a obra com o indivíduo que a criou os membros da banda se defendiam constantemente de supostos equívocos e críticas. Essas defesas ficam claras em alguns trechos de entrevistas nos quais alguns integrantes tentam deixar claro que o que fazem é arte. Alex: Você gostaria de viver em um mundo no qual as pessoas não pudessem fazer arte que fosse feia? Eu digo, não. Nós temos sido bem claros em todas as entrevistas que fazemos que isso é só como estórias de terror fictícias e não são características com as quais nós nos relacionamos. Uma das razões pelas quais tivemos tantos problemas com censura é que as pessoas olham para os filmes e dizem, “Eli Roth”54 fez o “Hostel” e ele claramente não pensa que pessoas deveriam ser levadas para uma fábrica Slovaka e torturadas até a morte por dinheiro”. Se nós escrevemos músicas sobre a mesma coisa as pessoas dizem, “A maior parte das músicas que ouvi toda a minha vida eram sobre caras cantando sobre suas namoradas e como eles as amavam” e eles assumem que nós estamos partindo do mesmo ponto como músicos, mas não estamos. Nós aproximamos nossas letras com a forma dos filmes de terror. Ou um romance do Stephen King55: tem todo tipo de violência nestes livros, mas ninguém pensa nada menos por causa disso. (2014, pág. 106).56 O que fica claro é que os autores das músicas não detêm o poder sobre o significado de suas obras. Seja nos momentos nos quais Webster se refere ao teor cômico (não intêncional) ou ás críticas feitas por conta dos conteúdos “agressivos” das músicas. É neste ponto que as teorias sobre a arte nos ajudam a compreender as acusações feitas a banda, personificando os conteúdos das músicas as associando aos indivíduos que as compuseram.

Cannibal corpse e sua relação com regulações Outro ponto importante para compreender a fama adquirida pela banda está na sua relação com críticas feitas por políticos norte-americanos, notadamente senadores como Bob Dole (candidato a presidência em 1996), Joe Lieberman e Sam Nunn. Assim como as

54 Diretor, produtor e ator norte-americano de cinema. Conhecido por dirigir filmes de terror como O Albergue e a Cabana do Inferno. 55 Autor de livros de terror, suspense e ficção. Muitas obras deste autor tem versões cinematográficas. 56 Alex: Would you want to live in a world where people couldn't make art that was ugly? I say no. We're very clear in all the interviews we do that these are just fictional horror stories, and that these are not characters which we relate to. One of the reasons we've had such problems with censorship is that people look at movies and they say, "Eli Roth made Hostel and he clearly does not think that people should be taken into a Slovakian factory and tortured to death for money." If we write a song about the same thing, people go, "Most of the songs I've listened to throughout my life are guys singing about their girlfriends and how much they love them" and they assume that we're coming from the same standpoint as musicians, but we're not. We're approaching our lyrics the way a horror movie is approached. Or a novel by Stephen King: there's all sorts of violence in those books, but no-one thinks any less of him because of it.

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censuras sofridas na Alemanha e na Austrália. Mas a verdade é que nos EUA não houve censura por parte do governo, mas a banda ficava à mercê de empresas privadas como a já citada Wallmart, como deixará claro o trecho a seguir: Ex-senadores e alguns puritanos renovados Bob Dole e Joe Liebeman expressaram seu desgosto com Cannibal Corpse em alto e bom som em discursos de campanha – Dole tem a fama de chegar a afirmar que a banda “diminui o caráter nacional dos EUA” com “violência desmiolada e sexo sem amor”, embora um assessor tenha reconhecido que o senador nem mesmo tenha escutado nenhum dos álbuns da banda Cannibal Corpse.57 Em 1997, mesmo que de maneira muito tangencial, a banda Cannibal Corpse é mencionada no Senado norte-americano. Mais uma vez em um Subcomitê que nada tinha a ver com discussões sobre arte, entretenimento ou conteúdos midiáticos, é feita uma reunião para discutir o tópico “Violência musical: como isso afeta nossa juventude”. Encabeçada pelo Senador do Kansas Sam Brownback, o já mencionado Senador de Connecticut Joe Lieberman, e a Dra. C. DeLores Tucker (ativista social pela causa de mulheres americanas afrodescedentes). O debate era novamente sobre os efeitos nocivos de músicas e outras formas de entretenimento (como programas de TV, por exemplo) que expusessem cenas de violência. Desta vez o grande “vilão” trazido por Joe Lieberman foi Marilyn Manson, sendo a banda Cannibal Corpse uma das citadas também. Neste caso a banda estudada não era o principal alvo, portanto nada sofreram com a reunião. Pelo contrário costumam agradecer a Bob Dole pelo que chamam de “propaganda gratuita para a banda”, associando as acusações do senador a sua crescente popularidade. Mostrando mais uma vez que algumas das tentativas de regular o mercado podem ter surtido pouco efeito ou até mesmo o efeito contrário ao desejado pelos críticos da banda. Os problemas com censuras citados por Webster não se referem tanto aos EUA, já que lá a única coisa que mais se aproxima de censura são as negociações com algumas lojas que pedem que a capa original seja trocada por outra alternativa. Além disso a própria obrigatoriedade imposta pela própria RIAA de utilização de um selo que deixasse claro o teor dos conteúdos das letras. Ou seja, no fim acabam não sendo de fato censura, mas sim uma regulação, como dito em capítulos anteriores.

57 Former U.S. Senators and renowned prudes Bob Dole and Joe Lieberman have expressed their disgust with Cannibal Corpse out loud in campaign speeches—Dole famously going so far as to claim that the band “undermines the national character of the United States” with “mindless violence and loveless sex,” even as an aide acknowledged that Dole had not actually listened to any of Cannibal’s records.

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As únicas censuras de fato sofridas pela banda foram na Alemanha e na Austrália. Na Alemanha foram proibidos de tocar no país a partir de 1998. Esta proibição era de fato legal, ou seja, eles poderiam responder processos se tocassem no país ou mesmo se vendessem seu material por lá. Esta proibição foi desfeita parcialmente em 2006. Parcialmente porque as músicas de seus três primeiros CDs não poderiam ser executadas em shows, o material também não poderia ser vendido nas lojas alemãs. Esse talvez tenha sido o caso mais sério de censura já sofrido pela banda. Além de suas músicas, o que parece acontecer é que os músicos são julgados moralmente por conta dos conteúdos de suas músicas. São mal vistos pelo conteúdo mesmo que nunca tenham praticado nenhum dos atos, sendo prováveis responsáveis pelos atos cometidos por jovens como suicídios, assassinatos e gravidez. O que, em certo sentido, e mais grave é que, no fim das contas, mesmo se o sujeito em questão é culpado, o que o juiz vai poder condenar nele, a partir do exame psiquiátrico, não é mais precisamente o crime ou o delito. O que o juiz vai julgar e o que vai punir, o ponto sobre o qual assentara o castigo, são precisamente essas condutas irregulares, que terão sido propostas como a causa, o ponto de origem, o lugar de formação do crime, e que dele não foram mais que o duplo psicológico e moral. (Foucault, 2001) Os integrantes da banda estudada eram considerados desviantes e, portanto, alvo de suspeitas por parte de seus críticos como os senadores já mencionados, por exemplo. O que é visto no caso da banda é que sua obra (músicas e capas) são vistos como os comportamentos estranhos ou anormais apresentados pelos músicos. Senadores como Bob Dole e Joe Lieberman os consideraram nocivos para a nação americana. A partir de um pré-julgamento do trabalho da banda utilizavam o nome desta e de outras bandas para mostrar as características nocivas do heavy metal58. Segundo uma breve nota escrita na época pelo jornalista Jonathan Gold do LA Times o senador Bob Dole teria prestado um imenso serviço de divulgação da banda que, apesar de já ser bem conhecida, ganhou ainda mais visibilidade. Fato confirmado pelo produtor da banda e pelo baixista. Brian Slagel: Tiveram vários momentos divisores de águas interessantes para o Cannibal ao longo dos anos que realmente os fizeram deslanchar. O caso do Bob Dole foi inacreditável. Nós já tinhamos passado por todas as questões da PMRC nos anos 80 então estavamos acostumados a ter pessoas do governo dizendo coisas asquerosas sobre banda de metal, mas aquilo realmente se voltou contra eles porque tudo o que fizeram foi dar as bandas uma enorme publicidade.

58 Vale lembrar que nesta época o principal alvo de políticos norte-americanos, bem como de ativistas de movimentos sociais, era o Rap. Estes senadores estavam falando na década de 1990, época na qual o Rap assume os holofotes das críticas nos EUA, o que faz ser surpreendente a menção à banda Cannibal Corpse.

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È exatemente o que aconteceu aqui. Quando toda essa coisa surgiu, a primeira coisa que soubemos foi que Chris Barnes estava falando com Tom Brokaw nos noticiários nacionais das seis horas na NBC! Naquela época milhares e milhares de pessoas estavam assistindo o noticiácio da NBC e isso era incrível, honestamente. Nós não poderiamos estar mais felizes. Repentinamente lojas começaram a ter álbuns da Cannibal, coisa que não ocorreria antes. Alex: Me falaram que nós estavamos em uma lista de certas bandas que Bob Dole mencionou. Destas bandas nós eramos a menor e além disso a única banda que não era de hip-hop. A minha parte cínica pensa que nós fomos colocados lá para que os Republicanos, que eram vistos como racistas por alguns, não sofressem ataques de artistas negros. Mas isso é especulação da minha parte.59 (Bible of Butchery, 2014). Na história da banda houve um período no qual eles ponderaram mais sobre as capas antes sempre preenchidas com ilustrações gráficas consideradas muito agressivas para algumas empresas que distribuíam os CDs. Assim a banda chegou num empasse. Quando perguntado em entrevista contida no site Loudwire60 do porquê de álbuns produzidos no ano de 2006 e 2009, os álbuns Kill e Evisceration Plague (figura 13) respectivamente, não tinham as capas características da banda com cenas consideradas “violentas”. Alex responde: Nada em particular. Quer dizer, falando francamente, teve um pouco a ver com as dificuldades de ter os álbuns nas lojas que estava ocorrendo naquela época. Foi uma combinação, porque não foi como se estivéssemos especificamente nos curvando a censura ou algo do tipo, mas nós tinhamos que pensara respeito do que era o mais importante para nós e nossa banda e o mais importante era a música que nós criamos. Se ter uma capa de album que fosse impedir que nosso album fosse vendido em algum lugar – aquilo não parecia lógico e tinham um número limitado de lugares para vender CDs naquela época. Então essa foi uma das considerações, e eu gosto de mencionar isso primeiro, porque não deixar aquilo fora do caminho? É algo sobre o qual nós nem gostamos de ter que pensar, mas infelizmente nós temos que pensar sobre isso.61

59 Brian Slagel: There have been several interesting watershed moments for Cannibal over the years that really got them out in front. The Bob Dole thing was unbelievable. We'd been through the whole PMRC thing in the 80s, so we were pretty used to having government people saying nasty things about metal bands, but that really backfired on them because all it did was give the bands concerned huge amounts of publicity. That's exactly what happened here. When that whole thing hit, the first thing we knew was that Chris Barnes was talking to Tom Brokaw on the national six o'clock news on NBC! Back then, millions and millions of people were watching the NBC news, and it was awesome, quite honestly. We couldn't be happier. All of a sudden stores started carrying Cannibal albums that wouldn't before. Alex: I was told that we were on a list of certain bands that Bob Dole mentioned. Of those bands, we were the smallest, and also one of the only bands that wasn't a hip-hop act. The cynical part of me thinks that we were put in there so the Republicans, who are viewed as racist by some, wouldn't be seen to be attacking only black artists. But that is speculation on my part.

60 Disponível em Acessado em 02 de janeiro de 2016. 61 Nothing really in particular. I mean, speaking frankly, some of it has to do with difficulties of getting records into stores that was occurring around that time. It was a combination, because it wasn’t like we were specifically buckling to censorship or anything like that, but we had to really think about what was the most important thing to us and our band and the most important thing to us in this band is the music that we’re making. If having an album cover that was going to prevent our album from being sold anywhere — that didn’t seem logical and there was a limited number of places to sell records at that time. So that was one of the considerations, and I’d like to

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Figura 13 - Album Evisceration Plague, de 2009. Uma das capas que fugiu às características comuns à banda.

O que Alex mostra é uma adptação que a banda teve que fazer diante do mercado fonográfico norte-americano. Essa adaptação se limitou às capas de CD, já que as letras e o som continuaram os mesmos. Ele também mostra as estratégias adotadas para não ter que abrir mão de parte da identidade da banda. Eles continuariam a fazer capas como as anteriores, mais conhecidas pelos fãs, mas estas capas estariam no interior do CD. Contavam também com a ajuda do produtor Brian Slagel que deu total apoio às ideias da banda. Slagel já tinha experiência com tentativas de regulação por parte da PMRC e tinha noção de que estratégias adotar para evitar os problemas que poderiam surgir com bandas como a Cannibal Corpse. Quando o segundo álbum de estúdio da banda surgiu ele tinha características ainda mais “gráficas” do que o primeiro, segundo o próprio produtor. A capa de CD chamou a atenção de todos na produtora da banda. Alguns acharam que poderia causar problemas, mas Slagel achou genial. Nas palavras dele:

mention it first, because why not get that out of the way? It’s not something that we even like having to think about, but unfortunately we have to think about it. Disponível em: Cannibal Corpse’s Alex Webster Discusses ‘Torture,’ Summer Slaughter + Religion | Acessado em 01 de janeiro de 2016.

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Brian Slagel: A primeira controvérsia sobre Cannibal Corpse começou com o álbum Buthcered at Birth. As pessoas já sabiam sobre a banda, claro, porque eles já tinham o primeiro CD, que era bastante extremo. Naquela época nós éramos distribuídos pela Warner Brothers, mas nós sentimos que Butchered seria um pouco demais para eles, então mantivemos o álbum fora da Warner e distribuímos de forma independente. Era mais legal fazer desta maneira. Quando nós pegamos a arte de capa, algumas das pessoas na gravadora estavam preocupadas com ela e me perguntaram “O que você pensa sobre isso? É bastante extremo”. Mas eu disse “É uma das melhores capas de CD que eu já vi!”. Eu sabia que iria atrair bastante atenção, mas eu sempre gostei de puxar o envelope. Eu cresci sendo um grande fã de Alice Cooper e Kiss e eu sabia que isso causaria um impacto.62 (2014, pág. 106) Portanto, o que se nota é que a banda e seus produtores tinham que adotar estratégias diante de exigências do mercado. Seja produzindo um álbum de maneira independente para evitar problemas com clientes como a Warner, seja substituindo a capa original por versões alternativas para não perderem espaço no mercado. Diante de perspectivas moralistas da obra de arte, o que restava para a banda era procurar meios de se adaptar sem perder o que consideravam como sua “personalidade”. Por meio dessas controvérsias passadas pela banda percebe-se a distinção feita por Campoy entre mainstream e underground. O que faria uma banda sair da segunda e entrar na primeira? Deixar de ser uma banda underground significa, entre outras coisas, assinar contrato com uma grande gravadora. Exatamente o que ocorre com Cannibal Corpse em 1989 quando eles assinam com a Metal Blade. É a partir deste momento que eles ganham maior visibilidade. Como toda banda, Cannibal Corpse esteve fora do mainstream no começo de sua carreira, mas logo alcançou seu posicionamento no mercado fonográfico, sofrendo uma alteração de status. Essa ampla visibilidade ganha pelo heavy metal e, no caso específico deste trabalho, pela banda Cannibal Corpse faz com que duas coisas ocorram: por um lado seu sucesso comercial repercute de maneira positiva dando maior visibilidade para a banda e trazendo maiores recursos financeiros, por outro, essa visibilidade pode trazer um número maior de problemas a serem enfrentados. Estar no foco de discussões morais é um desses problemas.

62 Brian Slagel: The first salvo of controversy around Cannibal Corpse started around the Butchered at Birth album. People knew about the band already, of course, because they already had the first record out, which itself was pretty extreme. At the time we were distributed by Warner Brothers, but we felt that Butchered would be a little too much for them, so we kept the album out of the Warners deal and distributed it independently. It was cooler to do it that way anyway. When we got the album artwork in, some of the people at the label were concerned about it and asked me "What do you think of this? It's pretty extreme" but I said "It's one of the greatest album covers I've ever seen!" I knew it was going to attract a lot of attention out there, but I've always liked to push the envelope. I grew up being a huge Alice Cooper and Kiss fan, and I knew it would make an impact.

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O que se pretendeu mostrar neste capítulo foram as formas como a banda vê a si mesma e a forma como a banda age diante das tentativas de regulação. Alguns dos efeitos das ações da PMRC podem ser vistos a partir da banda Cannibal Corpse. As negociações com o mercado que em parte acatou algumas das exigências da PMRC pode ser um destes efeitos. Apesar de Bourdieu falar de uma autonomização do campo artístico, que de fato é percebida no mundo moderno, ainda á uma dependência do mercado, por isso é necessário que se façam negociações. Negociações percebidas em algumas das falas apresentadas durante o trabalho.

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CONCLUSÃO

A partir da dissertação realizada foi possível perceber que nos EUA das décadas de 1980 a 1990 noções morais e saberes psiquiátricos eram utilizadas na tentativa de regulação do mercado fonográfico. A partir da análise das audiências proferidas pelos membros da PMRC no senado americano percebeu-se a criação de um pânico moral. Este pânico moral, a partir da psiquiatrização dos comportamentos e de uma atenção especial ao público juvenil como uma popução vulnerável, visava alocar bandas de heavy metal como potenciais ameaças às famílias norte-americanas. Sendo assim, ocorreu, por parcela dos integrantes do cenário político norte-americano uma perseguição moral baseada em valores construídos em torno dos saberes médicos e da popularização da noção do “perverso”. Dirigidas a uma percela da produção fonográfica do momento e em especial às bandas de heavy metal como Cannibal Corpse. Baseado na noção de que a produção dessas bandas circulava entre os jovens e por isso poderiam influenciá-los, houve nos EUA tentativas de criar obstáculos na produção e circulação de determinadas produções artísticas, especificamente as realizadas bandas como Cannibal Corpse. Para tanto foram mobilizados discursos moralizantes suportados em um suposto conhecimento científico sobre a psiquiatria e psicologização dos indivíduos, assim como foram criados mecanismos de regulação da circulação e da venda dos bens culturais produzidos pela banda Cannibal Corpse, como suas músicas, seus vídeos e suas capas de LPs. Um ponto interessante que o desenvolvimento da pesquisa revelou foi sobre a centralidade da sexualidade nos discursos da PMRC e nos conteúdos da banda Cannibal Corpse. Se em um primeiro momento a sexualidade aparecia como a categoria mais importante para analisar as propostas feitas no projeto, com o desenvolvimento do trabalho foi possível perceber que existiam questões para além da sexualidade. Questões essas como as acusações de apologia não só a atos sexuais dissidentes, mas também atos considerados criminosos (como assassinatos e estupros) e outros atos desviantes (como apologia a drogas e a religiões não cristãs). Assim como nas músicas da banda estudada, não seria possível pensar a representação somente de atos sexuais. Parecia necessário falar de modo mais amplo do “perverso” como o “grotesco” e o “terror”. Entretanto, de forma interessante os produtores desses bens artísticos considerados “perigosos” se apropriaram das rotulações gerais acerca do “grotesco” da abjeção construídas ao longo do século XIX no cenário ocidental em suas criações artísticas. Assim como se apropriaram da forma como essas mesmas categorias foram acionadas por agentes

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moralizantes, como os membros da PMRC, e lhes dando novos sentidos, transformando as “acusações” que lhes eram dirigidas em benefícios no mercado fonográfico. A banda Cannibal Corpe é exemplar neste sentido, uma vez que suas produções podem ser o reflexo da sua capacidade de adapatação e absorção de temas considerados polêmicos. Interessante ressaltar que, ao mesmo tempo que abordam em suas músicas temas ditos “perversos”, esforçam-se para se afastarem das acusações de que pratiquem os atos contidos nas letras, repelindo qualquer aproximação com as práticas descritas em suas músicas. Cannibal Corpse surge em um contexto no qual o heavy metal já é um estilo de música mainstream, ou seja, absorvido pelo mercado. Portanto, apesar da regulação antes descrita, a banda não sofre consequências graves pelo conteúdo que produz. Em nenhum momento pode-se dizer que foi vítima dos opressores que impediram a venda ou circulação da produção artística em questão. Talvez porque essa iniciativa da PMRC tenha sido limitada pelos direitos individuais tão relevantes para a sociedade norte-americana. Talvez por isso os efeitos são em torno dos limites de atuação (regulação) e não de um cerceamento de liberdade de expressão artísicto. Integrantes da banda diziam estar amaparados pela liberdade de expressão muito valorizada nos EUA. E a própria PMRC tinha cuidados ao tocar no tema, sempre tentando se defender de acusações de que estivesse cometendo algum ato de censura. É possível notar que a ideia da regulação moral se perpetuou após a atuação da PMRC. Como visto em 1996, dez anos após o episódio da ascensão da PMRC, o tema da nocividade de formas de arte ainda volta à arena pública, desta vez tendo como principal alvo músicos de Rap, sendo a banda Cannibal Corpse e Marylin Manson as únicas bandas de heavy metal mencionadas. Senadores apresentaram o mesmo discurso de “perigos” presentes em manifestações artísticas. Apesar do recorte histórico feito neste trabalho, as questões relacionadas à moralidade e regulação, mais especificamente no que diz respeito a temáticas tidas como perversas, não é algo do passado. É uma questão que continua em suas diferentes formas e em seus diferentes contextos.

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ANEXO I

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