v. 4 n. 1 jan./jun. | 2019 revista de educação, ciência e tecnologia do IFG ISSN: 2526–2130 Expediente

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE GOIÁS

Reitor Conselho Científico Jerônimo Rodrigues da Silva ADRIANA GOMES DICKMAN, LAURETE MEDEIROS BORGES, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG), Brasil Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), Brasil Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação ÂNGELO MÁRCIO LEITE DENADAI, LEONARDO GABRIEL DINIZ, Centro Federal de Educação Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Brasil Tecnológica de Minas Gerais (CEFET/MG), Brasil Paulo Francinete Silva Júnior ANNA MARIA CANAVARRO BENITE, LUANA ALVES LUTERMAN, Coordenadora da Editora Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil Universidade Estadual de Goiás (UEG), Brasil Vanderleida Rosa de Freitas e Queiroz CARLOS FERNANDO DA SILVA RAMOS, MARÍA DEL MAR LORENZO MOLEDO, Instituto Politécnico do Porto (IPP), Portugal Universidade de Santiago de Compostela (USC), Espanha Editora-Chefe da Tecnia Tânia Mara Vieira Sampaio CELINA CASSAL JOSETTI, MIGUEL ANGEL SANTOS REGO, Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEDF), Brasil Universidade de Santiago de Compostela (USC), Espanha Editores de Seção CIBELE SCHWANKE, NELSON DE LUCA PRETTO, Carlos de Melo e Silva Neto Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Brasil Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil Rogério Max Canedo DIÓGENES BUENOS AIRES DE CARVALHO, REGINA DA SILVA PINA NEVES, Tânia Mara Vieira Sampaio Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Brasil Universidade de Brasília (UNB), Brasil EDÉSIO FIALHO DOS REIS, RICARDO DOS SANTOS COELHO, Conselho Editorial Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Brasil Carlos de Melo e Silva Neto Fábio Teixeira Kuhn EDUARDO MARTINS GUERRA, ROBERTO ABDALA JÚNIOR, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Brasil Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil Fernando dos Reis de Carvalho Lucas Nonato de Oliveira ENOQUE FEITOSA SOBREIRA FILHO, RONEI XIMENES MARTINS, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil Universidade Federal de Lavras (UFLA), Brasil Maria Aparecida de Castro Maria de Jesus Gomides EVA TEIXEIRA DOS SANTOS, ROSANE ROCHA PESSOA, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil Rita Rodrigues de Souza Tânia Mara Vieira Sampaio FERNANDO ANTONIO BATAGHIN, RUTH CATARINA CERQUEIRA RIBEIRO DE SOUZA, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil Vanderleida Rosa de Freitas e Queiroz FERNANDO FÁBIO FIORESE FURTADO, SEIJI ISOTANI, Projeto Gráfico, Diagramação e Capa Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Brasil Universidade de São Paulo (USP), Brasil Pedro Henrique Pereira de Carvalho INALDO CAPISTRANO COSTA, SERGIO SCHEER, Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil Revisão de Língua Portuguesa Paula Almeida da Silva IRIA BRZEZINSKI, Pontifícia SIMONE SOUZA RAMALHO, Universidade Católica de Goiás (PUC/GO), Brasil Instituto Federal de Goiás (IFG), Brasil Revisão de Língua Estrangeira JEANE SILVA FERREIRA, SOLANGE MARTINS OLIVEIRA MAGALHÃES, Lemuel da Cruz Gandara Instituto Federal do Maranhão (IFMA), Brasil Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil Rita Rodrigues de Souza Pareceristas ADRIANA D'AGOSTINI (UFSC) CARLOS DE MELO E SILVA NETO (IFG) ADRIANA GOMES DICKMAN ((PUC-MG)) CACILDA FERREIRA DOS REIS (IFBA) ADRIANO ARRIEL SAQUET (IFFAR) CELINA CASSAL JOSETTI (SEDF) ADRIANO WILLIAN DA SILVA(IFPR) CLEBER ANTONIO LINDINO (UNIOESTE) ALAN KELLER GOMES (IFG) DANIELA ZANOTTI DA SILVA (IFRJ) ALBERTO D'AVILA COELHO (IFSUL) DEVANI SALOMÃO DE MOURA REIS (USP) ALDEMIR INÁCIO DE AZEVEDO (IFBA) DILTON CÂNDIDO SANTOS MAYNARD (UFRJ) ALEXANDRE DE OLIVEIRA FERNANDES (IFBA) ÉDER MENDES DE PAULA (FEG) ALFREDO DOS SANTOS MAIA NETO (IFMA) EIDER LÚCIO OLIVEIRA (IFG) ANDRÉ ROSA MARTINS (IFBA) EWERTHON CLAUBER DE JESUS VIEIRA (IFBA) ÂNGELO FRANCKLIN PITANGA(IFBA) FABIANA DA SILVA ANDERSSON (IFG) Imagem da Capa ANTÔNIO CARLOS ALMEIDA (IFRJ) GIZELE PARREIRA (IFG) Pórtico “Exposição Cultural - Econômica de ARTHUR VERSIANI MACHADO (IFMG) IVONE CELLA DA SILVA (UNEMAT) BRUNO BASTOS GONÇALVES (UNESP) JAMES DEAM AMARAL FREITAS (IFG) Goiânia”. Escultura em Bronze (32 x 25 x 7cm) de Júlio Valente. Exposta na antesala da diretoria do IFG/Câmpus Goiânia-Oeste. Acervo artístico do IFG/Câmpus Goiânia-Oeste.

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SUMÁRIO

Editorial 06

Ensaios

As Mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres 11

Artigos

Educação e neoliberalismo: presença e papel do estado na educação brasileira contemporânea 26

Subjetividade docente em tempos de cultura 41 da performatividade

Perfis de Adoecimento mental dos servidores públicos federais assistidos pelo SIASS IFGoiano/IFG 52

A epistemologia da práxis como base do ensino criativo, colaborativo e inovador 65

Literatura de cordel x mídia na alfabetização e a motivação do gestor escolar 91

Tecnologias na educação básica pública a partir da visão do professor 108

Recuperação de áreas degradadas no Brasil: conceito, história e perspectivas 124

Análise de viabilidade econômica do aproveitamento energético do biogás e do biometano provenientes de dejetos de suínos: estudo de caso 146

Relato de Experiência

Ensino de História e Educação não formal: o fenômeno das videoaulas do YouTube 170

Nota Científica

Registro de morcego ameaçado de extinção em área de mineração no Cerrado 186

Predador de abelhas sem ferrão no Cerrado brasileiro: primeiro registro de Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Histeridae) em colônia de Melipona quadrifasciata 194

Editorial

[...] “eu acho que discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso. Então, não quero afirmar que haja uma construção discursiva de um lado e um corpo vivido de outro”.1 Judith Butler

Na companhia da filósofa Judith Butler, publicamos o primeiro volume de 2019 da Revista Tecnia. Os muitos discursos, dos textos apresentados nesta edição, são reveladores de corpos que em seus diferentes tempos e espaços lutam por afirmar a vida plena, seja a humana ou a do ecossistema. Transitando nas construções discursivas sobre as relações sociais de poder, vamos nos deparar com textos os mais diversos, os quais nos convidam à reflexão. Isso por meio do ensaio que desvenda as assimetrias experimentadas cotidianamente nas relações de gênero construídas socialmente. Ou também em artigos e relatos de experiências que instigam a reflexão sobre outras relações de poder vividas na produção de saberes; na esfera do diálogo Educação e Estado; Educação e as tecnologias da informação e comunicação; e Educação e literatura regional, ou até mesmo em artigos e notas científicas que abordam a dimensão relacional ser humano e ecossistema, com vistas à sustentabilidade da vida. Ao publicar este periódico, há uma expectativa que consiste no estabelecimento de uma interlocução com leitores e leitoras para ampliar a reflexão e transformar nossos processos de aprendizagem em espaços de construção ética sensível à alteridade. Por isso, assumimos que todos os corpos, sejam eles humanos ou sistemas vivos, presentes na fauna e flora de nosso meio ambiente, todos esses corpos importam, todos eles pesam na hora de decidirmos os rumos de nossas ações educativas, políticas e éticas. Mesmo considerando que Judith Butler, no trecho supracitado, se refira a grupos sociais humanos, me permito ampliar a concepção de corpos para incluir o ecossistema ao humano, já que esse movimento não entra em contradição com seu pensamento. O propósito é chamar nossa atenção para a armadilha de operarmos com paradigmas que tratam certos corpos, por sua diferença em termos de códigos de legitimidade, como corpos abjetos aos quais não se garantem a vida e a dignidade, e isso cabe tanto para pensar as pessoas de determinados grupos sociais e o modo como as pessoas lidam com a natureza. Em suas palavras “pensar os corpos diferentemente me parece parte da luta conceitual e filosófica [...], o que pode estar relacionado também a questões de sobrevivência. A abjeção de certos tipos de corpos, sua inaceitabilidade por códigos

1 PRINS, BAUKJE; MEIJER, IRENE COSTERA. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Rev. Estud. Fem. vol.10 no.1 Florianópolis Jan. 2002, p. 155-167 (p. 163).

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de inteligibilidade, manifesta-se em políticas e na política, [...] então eu tento, quando posso, usar minha imaginação em oposição a essa ideia.”2 Em seu trabalho a autora busca construir um campo de possibilidades que nos instigue a pensar nas mudanças sociais, culturais, econômicas, políticas e éticas de modo que caibam todos: “nenhum a menos”. Reinventar a vida, os saberes, a educação, as tecnologias e as relações sociais e ecossistêmicas são possibilidades do diálogo iniciado nesta edição. O artigo que abre esta edição vem do Programa Doutoral em Estudos Culturais da Universidade de Aveiro, em Portugal. As autoras nos brindam com um estudo que apresenta o diálogo entre obras dos Estudos Culturais e o livro-documentário “As mulheres do meu país”. De modo singular, o texto faz uma análise das relações de poder entre gêneros ao analisar a história de mulheres portuguesas em meados do séculos XX, ao retratar em particular as mulheres das classes sociais menos abastadas, sem preparação ou recursos para superar essa condição no seu cotidiano, nos seus diversos papeis de mulher, mãe, trabalhadora, dona de casa. Os temas de poder, dominação, luta contra hegemônica e resistência emergem do conteúdo do livro. Um texto que, sem dúvida, nos faz pensar na produção literária e acadêmica, de tantas pessoas que retratam as relações sociais de poder na intersecção de gênero, classe e raça-etnia como presença marcante na construção de saberes. Saber e poder, um binômio inseparável, pode ser evidenciado em um estudo que traz um breve panorama das políticas públicas de Educação vigentes, em contraponto com a discussão sobre a incursão do modelo neoliberal na educação brasileira, partindo de um ponto de vista histórico. Outro acercamento que nos instiga ao debate sobre a Educação vem do artigo que aborda a cultura da performatividade trazida por exigências que tornam indicadores mais importantes que a vida propriamente dita. Esses estudos apontam para as reformas educacionais pautadas pela implantação de um Estado avaliador, que ao lançar no campo da Educação a primazia das avaliações de desempenho, faz com que professores e estudantes tenham como principal objetivo resultados nas avaliações de larga escala. Essa realidade, ao privilegiar o desempenho, impacta estudantes e docentes de modo significativo produzindo uma outra subjetividade, essa subserviente a uma cultura de performatividade para atender às demandas de um Estado marcado por práticas gerencialistas. A performance exigida nos tempos atuais pode estar na base dos processos de adoecimento, identificados em outro estudo o qual avalia Institutos Federais de Educação. A pesquisa demonstra a prevalência de transtornos mentais e comportamentais que geram sofrimento no cotidiano de trabalho ou levam até mesmo ao afastamento, principalmente entre o grupo de mulheres docentes e técnico-administrativos. A despeito da realidade marcada por obstáculos, ela se move nas contradições. Os sinais de vida e esperança mesclam-se às dificuldades e lançam luz a outras possibilidades de aproximação dos desafios da Educação. A formação docente sustentada pela epistemologia da práxis, tratada em um dos artigos, ao enfatizar as concepções críticas, plurais, colaborativas, criativas e inovadoras pode possibilitar experiências formativas associadas à emancipação. Nesse sentido, a relação e interdependência entre afetividade e inteligência como parte constitutiva da práxis pedagógica, na formação docente, se destaca sobretudo por melhorar os vínculos estabelecidos

2 Idem, p. 157. 7

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entre sujeitos-sujeitos, sujeitos-objetos de conhecimento, aspecto essencial à formação integral e humanizadora. No bojo desta busca por uma Educação que instigue a vida de forma ampla e plena, um dos artigos apresenta a motivação propiciada pelos procedimentos didáticos e midiáticos no trabalho pedagógico por meio da literatura de cordel na alfabetização. As atividades escolares referentes à literatura de cordel ainda são pouco divulgadas no meio escolar na região norte. Contudo, ressalta- se que com a globalização e os diversos recursos tecnológicos da atualidade, aos poucos essa literatura emerge como recurso pedagógico de valor ímpar no trabalho docente com temas interdisciplinares a serem tratados na alfabetização. Refletindo sobre Tecnologia e Educação, dois textos trazem os resultados de suas investigações. Um deles analisa as políticas educacionais que visam a integração de tecnologias à educação básica, e o artigo inicia por mapear a percepção de docentes da rede pública sobre o papel das tecnologias na Educação e a trajetória de suas práticas pedagógicas. A pesquisa revelou que os professores e professoras utilizam os objetos tecnológicos com uma perspectiva tecnocêntrica e sem alcançar a práxis no sentido de atividade humana transformadora, o que evidencia a necessidade de um aprofundamento no estudo do uso de tecnologias, como forma de superar a racionalidade instrumental que prevalece no tratamento do tema. O outro estudo, por sua vez, demonstra que os estudantes conciliam as aulas tradicionais da escola com as videoaulas do YouTube em face dos vários recursos midiáticos e interativos dessa ferramenta.

Dos avanços das tecnologias na Educação nos deparamos com a urgência de uma perspectiva que contemple uma nova percepção da relação de interdependência entre os seres humanos e o ecossistema. Os impasses para a sustentabilidade da vida são muito amplos e implicam em uma rede intrincada de conexões que precisa ser observada para romper com a fragmentaridade das ciências. A busca por uma interdependência dos seres precisa ser articulada por diversos saberes que se comprometam a enfrentar problemas éticos e políticos, na esteira da luta por viabilizar formas de vida não hegemônicas. Uma perspectiva fortemente presente nos trabalhos de Judith Butler ao assumir, em diversos espaços, uma intensa critica às guerras e o terror contra imigrantes ou refugiados, à violência genocida e discriminatória dos Estados e no âmbito das condições ambientais, a denúncia da destruição provocada pela globalização. Observando os problemas ambientais que assolam o planeta e sentindo diariamente suas consequências, tem-se como de extrema importância a recuperação de áreas degradadas na contemporaneidade. Um dos artigos analisa como a recuperação destas áreas tem sido tratada no Brasil, desde sua origem na história nacional até a atualidade. Também analisa as perspectivas para essa prática no futuro. No intuito de resgate de uma dívida histórica com o descuido ao meio ambiente, essa pesquisa constatou que o processo de recuperação é importante e necessário, e que há técnicas eficazes para a nucleação; transposição do banco de sementes; poleiros naturais ou artificiais; transplante de plântulas; estaquia; semeadura direta, plantio de mudas; adubação verde; plantio de espécies nativas e a utilização de fungos micorrizados arbusculares, para ir de encontro a uma política de leis e decretos que beneficiam o capital exploratório e não incentiva ou não responsabiliza as pessoas pela recuperação ambiental necessária.

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Nesse conjunto de preocupações ecossistêmicas sustentáveis, outro artigo analisa quatro cenários para identificar a viabilidade econômica da geração de energia elétrica e da produção de biometano, a partir do biogás oriundo de dejetos de suínos. O estudo constata a viabilidade do processo, seja para consumo interno ou para, posteriormente, pensar a produção de gás natural a ser comercializado. Em uma aproximação de nossas preocupações com o bioma do Cerrado e sua conservação, duas pesquisas apontam a presença e os possíveis riscos às espécies de morcegos e abelhas da região. A primeira das notas científicas artigos afirma que o Cerrado possui grande diversidade de morcegos, alguns deles ameaçados de extinção. Ao estudar áreas de mineração, foi possível identificar a presença de duas espécies, uma delas em extinção, por meio da análise de seus dejetos. A ação humana de modificações nos ambientes naturais é sem dúvida, responsável pela perda do habitat natural dos quirópteros, exigindo deles adaptações diversas à heterogeneidade ambiental. Estudos com esse enfoque nos convidam a refletir sobre a necessidade de pensarmos na interdependência de todos os fios de vida que compõem o ecossistema. A segunda apresenta no mesmo ambiente de pesquisa, o Cerrado, a presença de inimigos naturais com potencial de causar sérios danos às abelhas, até mesmo a morte da colônia. Considerando a ausência de muitos estudos sobre a relação entre besouros e abelhas sem ferrão, esta pesquisa preliminar resgatou alguns dados sobre o processo de mapeamento das possíveis ameaças e formas de resistência e apropriação destes inimigos dentro da colônia. Chamou a atenção no estudo detectar que a ação do predador, anteriormente descrito para a região do bioma Amazônico, é presente n0 bioma Cerrado. A você, leitora e leitor da Revista Tecnia, desejamos que o material aqui organizado traga bons desafios e nos des-instalem de nossas certezas. No intuito de seguirmos construindo saberes, a partir de nossas incertas certezas, comprometidos com uma ética da alteridade e do cuidado de nossa grande casa, o ecossistema. Nesse convite à leitura está a provocação para que os debates sobre a Educação nos regalem tempos oportunos para construção de identidades, que saibam conviver e aprender na diversidade superando discriminações ou exclusões, fruto de uma construção histórica e social que é sempre datada, localizada, generificada e racializada. Por isso, cabe recorrer à argumentação de Judith Butler ao finalizar este editorial:

“[...] argumentar que o corpo é um referente evasivo não equivale a dizer que ele é apenas e sempre construído. De certa forma, significa exatamente argumentar que há um limite à construtividade, um lugar, por assim dizer, onde a construção necessariamente encontra esse limite”.3

Profa. Dra. Tânia Mara Vieira Sampaio Editora-Chefe

3 Ibidem, p.158. 9 ensaio

• As Mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres Alcina Fernandes Maria Manuel BaptistaDaywes Pinheiro Neto ______As Mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres

As Mulheres do Meu País [The Women of My Country]: a study on women As Mulheres do Meu País: [Las Mujeres de mi País]: un estudio sobre mujeres

Alcina Fernandes Universidade de Aveiro - Portugal/Centro de Línguas, Literaturas e Culturas [email protected]

Maria Manuel Baptista Universidade de Aveiro - Portugal/Centro de Línguas, Literaturas e Culturas [email protected]

Resumo O livro As Mulheres do Meu País foi escrito e publicado em fascículos entre 1948 e 1950 pela jornalista e escritora Maria Lamas. Este livro é um documentário que retrata a condição feminina portuguesa nos meados do século XX, no período da ditadura do Estado Novo, em particular a das mulheres das classes sociais mais baixas, sem preparação ou recursos para superar essa condição no seu quotidiano, nos seus diversos papeis de mulher, mãe, trabalhadora, dona de casa. Os temas de poder, de dominação e a luta contra-hegemónica e resistência emergem do conteúdo do livro e a autora não utiliza o binómio homem/mulher, apresentando, já, precocemente uma perspetiva intersecional de sexo e classe, o que coloca a questão de se estar em presença de uma obra que não só retrata as mulheres como também todo um sistema político. O presente artigo insere-se num estudo que se quer mais aprofundado, e tem por objetivo a análise da obra As Mulheres do Meu País a partir dos discursos hegemónicos do Estado Novo em Portugal em contraste com as práticas e discursos contra-hegemónicos que a obra propõe. Para este estudo observámos a abordagem qualitativa ao realizar a pesquisa documental e proceder a uma análise hermenêutica da obra. Neste desiderato tomamos por suporte um mapa de autores e filósofos dos Estudos Culturais, com impacto nas teorias de género.

Palavras chave: Maria Lamas; Mulheres; Estado Novo; discurso hegemónico e contra-hegemónico; Estudos de Género.

Abstract The book As Mulheres do Meu País [The Women of My Country] was written and published in fascicles between 1948 and 1950 by journalist and writer Maria Lamas. This book is a documentary that portrays the Portuguese feminine condition in the middle of the twentieth century, during the period of the Estado Novo dictatorship, in particular that of women from the lower social classes, with no preparation or resources to overcome this condition in their daily life, in their various roles of woman, mother, worker, housewife. The themes of power, domination and counter-hegemonic struggle and resistance emerge from the content of the book and the author does not use the male / female binomial, already presenting an intersectional perspective of sex and class, which poses the question of to be in the presence of a work that not only portrays women but also a whole political system. This article is part of a study that is further explored and aims to analyze the work The Women of My Country from the hegemonic discourses of the Estado Novo in Portugal in contrast to the counter-hegemonic practices and discourses that the work proposes. For this study we observed the qualitative approach when performing the documentary research and proceed to a hermeneutical analysis of the work. In this direction we take for support a group of authors and philosophers of Cultural Studies, with impact on the theories of gender.

Keywords: Maria Lamas; Women; New state; hegemonic and counter-hegemonic discourse; Gender Studies.

Resumen El libro As Mulheres do Meu País [Las Mujeres de Mi País] fue escrito y publicado en fascículos entre 1948 y 1950 por la periodista y escritora Maria Lamas. Este libro es un documental que retrata la condición femenina portuguesa en la mitad del siglo XX, en el período de la dictadura del Estado Novo, en particular las de las clases sociales más bajas, sin preparación ni recursos para superar esta condición en su vida diaria, en sus diversos papeles de mujer, madre, trabajadora, ama de casa. Los temas de poder, de dominación y la lucha contra-hegemónica y resistencia emergen del contenido del libro y la autora no utiliza el binomio hombre / mujer, presentando, ya, precozmente una perseverante interseccional de sexo y clase, lo que plantea la cuestión de si está en presencia de una obra que no sólo retrata a las mujeres, sino también a todo un sistema político. Este artículo es parte de un estudio más profundo que quiere, y tiene como objetivo, analizar la obra Las Mujeres de mi País desde el discurso hegemónico del Estado Novo en Portugal, en contraste con las prácticas y discursos contra-hegemónicos que la obra propone. Para este estudio observamos el

As mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 abordaje cualitativo al realizar la investigación documental y proceder a un análisis hermenéutico de la obra. En este desiderato tomamos por soporte un mapa de autores y filósofos de los Estudios Culturales, con impacto en las teorías de género.

Palabras clave: Maria Lamas; las mujeres; Estado Nuevo; el discurso hegemónico y el contra-hegemónico; Estudios de Género.

Introdução

Na elaboração deste retrato, a autora muniu-se da observação, da reflexão pessoal e do conhecimento direto: “Fui ao encontro das minhas irmãs portuguesas, procurei conhecer e sentir as suas vidas humildes ou desafogadas, as suas aspirações ou a sua falta de aspirações, sintoma alarmante de ignorância, desinteresse e derrota” (LAMAS, 2002, preâmbulo, s/p). Esta obra nasce da preocupação da autora sobre as condições de vida das mulheres “que não tinham preparação para ultrapassar” (SOUSA, 2002, p.XIII) e o seu “grande sonho de um mundo mais harmonioso e iluminado de fraternal Amor” (LAMAS, 2002, p. manuscrita s/n). Nele se elege “o retrato cru da condição feminina portuguesa na primeira metade do século XX” (BEAUVOIR, 2002, p. XIX), em particular “das mulheres de classes sociais mais baixas, vítimas de condições que não tinham preparação para ultrapassar” (SOUSA, 2002, p. XIII), em pleno regime político ditatorial – o Estado Novo. “Abrir as consciências para o lugar da mulher na sociedade é um dos objetivos” (MARCOS, 2016, p. 99) que acompanharam a vida e obra de Maria Lamas. E, toda a atividade por si desenvolvida, como jornalista e como cidadã em prol dos direitos e dignidade da mulher, concedeu-lhe os alicerces motivadores deste empreendimento. Contudo, o fundamento que esteve na origem da elaboração desta obra de grande envergadura pode-se encontrar numa sucessão de factos, a saber: O fim da II Guerra Mundial foi portador das democracias parlamentares e do denominado Estado Social. A condenação dos totalitarismos generalizou-se. A oposição de Maria Lamas ao regime do Estado Novo levou-a a desenvolver esforços para uma mudança, imprimindo intensidade na sua ação em diversos domínios (ALMEIDA, 2016). Porém, através da censura, a par de coerções morais e sociais e de leis repressivas, passo a passo, o Estado Novo foi construindo a sociedade que Salazar considerava coerente e regular (ROSAS, 1989), como um “panóptico [que] é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogéneos de poder” (FOUCAULT, 1999, p. 167). Luiz Humberto Marcos apropriadamente afirmou: “o regime ofuscava a violência contida no controlo do pensamento social. O sistema estava tão bem montado que a maioria desconhecia os seus malefícios” (MARCOS, 2016, p. 89 e 90). No controlo efetivo do pensamento, através dediversos aparelhos ideológicos (GRAMSCI, 1999), encobria e naturalizava toda a violência, num verdadeiro sistema. Ora, acontece que o controlo do pensamento, bem como a violência simbólica ou física, constituem uma afirmação do poder através da dominação cultural (GRAMSCI, 1999). São corpos estranhos ao caráter distintivo do ser humano e moldam as próprias identidades e relações sociais. Os processos de naturalização do poder e da violência a partir dos sistemas políticos são questões já longamente estudadas nos Estudos Culturais, que têm como questões nucleares o estudo dos fenómenos de poder, da dominação cultural, da luta contra-hegemónica e dos processos de resistência que lhe estão associados (cf.,entre outros, HALL, 2016 ). Os Estudos Culturais procuram responder às exigências que são específicas de cada contexto cultural, servindo-se de uma ampla gama de teorias e campos científicos, que, articuladamente, 12

As mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 possibilitam a abertura para uma leitura e compreensão desnaturalizada dos fenómenos de poder hegemónico GRAMSCI,1999;( BENNETT, 1998). Ao analisarmos a obra de Maria Lamas, encontrámos aí esta mesma vontade de desnaturalização do poder hegemónico que o EstadoNovo exercia sobre os corpos e as vidas das mulheres concretas, que a autora procurou conhecer e dar visibilidade, erguendo-se, assim, assim, como uma forma de resistência ao discurso que sobre elas se produziu durante o período salazarista em Portugal. Bem informada e atenta às questões do seu tempo, viveu da atividade de jornalista e escritora. Pensou, sentiu, viveu os problemas que as mulheres sentiram e viveram naquele tempo, incluindo- se aí a si própria (FIADEIRO, 1993, 2003). Participava dos anseios e lutas das mulheres, pois que “pela própria conceção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e agir” (GRAMSCI, 1999, p. 94). Com a sua observação e reflexão, o seu pensamento e luta abraçou a causa pelos direitos e dignidade das mulheres “para que a mulher portuguesa ocupe o lugar que lhe compete na sociedade e na vida” (LAMAS, 2002, s/ p.) Em 1946 assume a Presidência do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, organização legal “que chega a ter duas mil associadas” (FIADEIRO,1993, p.13) Neste espaço, que era o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, conviviam mulheres de todas as origens sociais. Aí se valorizavam as atividades tidascomo menores, que mesmo com esta classificação se mantinham escondidas de modo sistemático, embora com alguma reserva. Em convívio aberto, sem restrições, as mulheres adquiriam conhecimento e educação, alargando a sua própria visão para além do lar ou da trabalhadora sem capacidades e ‘boçal’. Esta organização de mulheres representava um perigo para o Regime, pois dava voz, dava visibilidade à parte da população que se queria anónima, ao impor a aceitação de uma fraqueza que lhes era ditada. Não podia ficar impune. A organização por Maria Lamas da exposição “Livros Escritos por Mulheres”, acompanhada de várias conferências, como forma de tornar visível o trabalho intelectual e literário das mulheres (FIADEIRO, 2003), serviu de pretexto para o encerramento do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Porém, a anteceder o encerramento, o Regime colocou Maria Lamas na opção forçada de escolher entre ser diretora da Revista “Modas e Bordados” (de O Século) de cujo trabalho angariava o seu sustento e o ser Presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Optou pelas Mulheres, continuando a sua ação no Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (LAMAS, 2002). Muito pouco tempo depois, foi imposto o encerramento desta importante organização de mulheres. Importará referir que o trabalho do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas não correspondia aos interesses do regime do Estado Novo, que tinha constante e fortemente implantado um pensamento próprio sobre as mulheres e os seus lugar e papel na sociedade portuguesa e que em 1936 criou a primeira organização estatal de mulheres, o Obra das Mães Pela Educação Nacional (OMEN, com o objectivo de fomentar a ação educativa no seio da família, preparando as futuras mulheres para as obrigações domésticas e sociais (PORTUGAL, 1936)). O pensamento do regime do Estado Novo, fundamentava-se na subalternidade e discriminação da mulher, ao reputar-lhe a vocação natural para o casamento, sem outro espaço que não o do lar, sem outra função que não fosse a deser boa dona de casa, esposa dedicada, de mãe extremosa e cuidadora, sempre submissa aos desejos do marido (PIMENTEL, 2011). E,

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As mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 através desta organização pôs “a funcionar de modo mais direto e abrangente a propaganda política sobre a mulher e a família (FERREIRA, 2004, p.169) Dar visibilidade à mulher, tornando-a presente no espaço público dando-lhe o seu valor, reconhecendo-lhes as suas capacidades e poder de realização permitire a denúncia das suas vidas difíceis e miseráveis, não podia deixar de incomodar o poder salazarista (MARCOS, 2016). Na verdade, o papel que o regime destinava à mulher, olhando-a exclusivamente na sua condição biológica de reprodutora, esposa, mãe e cuidadora, assim, confinada unicamente aoespaço privado, no entendimento de ser esse o seu papel na defesa e promoção da família,tida esta como o núcleo da sociedade e fundamento de toda a organização política. O regime salazarista afirmava que as organizações de mulheres criadas oficialmente, eram suficientes para tal desiderato, ao terem como missão a educação e orientação das mulheres (Constituição de 1933; MARCOS, 2016). Qualquer outra organização, que fugisse ao controlo do pensamento do regime, que impedisse por qualquer modo ou meio o papel de género que o Estado Novo esperava e queria de uma mulher, correspondia a um obstáculo a afastar. Por isso, ao pôr em causa a concepção de género professada pelo regime, a organização liderada por Mara Lamas, tinha por destino o encerramento, por subversiva. Desempregada, em encruzilhada difícil, recusa identificar-se com a derrota e toma a iniciativa, sabendo ou, pelo menos, intuindo que “o determinismo mecânico transforma-se em uma formidável força de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente eobstinada” (GRAMSCI, 1999, p. 106): Respondeu à afronta sofrida com o despedimento: que “iria verificar e depois informaria” (SEIXAS, 2002, p. XVII). Tarefa esta bem espinhosa, dado o pensamento sobre as mulheres e o seu papel na sociedade, largamente difundido pelo Estado Novo, tendo Salazar afirmado, em entrevista concedida em 1932, que na mentalidade que norteava o novo regime “a mulher casada, como o homem casado, é uma coluna da família, base indispensável de uma obra de reconstrução moral” (FERRO, 1933, p.130). Contudo, deixava-se “o homem a lutar com a vida no exterior, na rua” e “a mulher a defendê-la, a trazê-la nos seus braços, no interior da casa” (PIMENTEL, 2015, s/p). Na doutrina salazarista o núcleo da sociedade era a família, tida como ‘natural’ e ‘orgânica’ e, consequentemente, não era considerado o indivíduo, enquanto tal. É na distinção de funções e espaços que homem e mulher são considerados, numa aparência de igualdade do valor atribuído às funções de cada um (ibidem). Em relação à mulher eram ‘superiormente valorizadas’ as funções de mãe e esposa, derivadas da sua função “natural” – portanto biológica. Na realidade, a posição hierárquica da [mulher] (...) era inferior à do [homem], (...) “chefe de família”, ao qual ela devia obediência, fosse a filha ao pai, ou a esposa ao marido, conforme mandava o Código Civil (...) em vigor (ibidem, s/p). Este pensamento, enformado na própria lei, deu igualmente forma à ideologia do Estado Novo relativa à mulher, usando em sua defesa as que se deixaram impregnar pelo pensamento hegemónico do Estado Novo e, dessa forma, iam-se criando “micro-poderes” que replicavam o seu próprio poder - “esta coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda a parte, que se chama poder” (FOUCAULT, 1979, p.75). Ao limitar a mulher nos seus direitos e na ação pública ou privada, o pensamento e ideologia do regime tinha subjacente a conceção de que o destino da mulher era exclusivamente odo casamento e o de cuidadora da família. Ela era tida como ser inferior ao homem, pois a este pertencia o que era público, geral e coletivo, e àquela apenas o governo da casa (BEAUVOIR, 1967). Sempre obediente ao homem, a quem se uniu pelo casamento, sendo a sua missão a de mera reprodutora e servir, mesmo que com sacrifício, tal como a doutrina do Estado Novo 14

As mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 prescrevia. E, assim, o regime adquiria “uma nova dimensão de validade tornando-se aplicável também ao arsenal de violência” (ARENDT, 2004, p. 9), atirando para “lata do lixo da história [que] é o mais antigo artifício” (ARENDT, 2004, p.7) de neutralização dos sujeitos. Por seu turno Teresa Pizarro Beleza afirma que “ a ‘Mulher no Estado Novo’ não existe: existiam mulheres de muito diferente condição social, cultural e até sexual” (BELEZA, 2013, p.1), muito diferentes entre si, mas irmanadas nas limitações impostas, pelas leis, pelos hábitos, pelo pensamento hegemónico e ideologia do regime. A mulher do Estado Novo é“ artifício [que], sem dúvida, ajuda a esclarecer a teoria, mas [só] ao custo de removê-la para mais longe da realidade” (ARENDT, 2004, p. 7). Na verdade, como refere Baptista (2004),

o estereótipo social (como caso particular das representações sociais) permite organizar de forma significativa o real, influencia os processos de comunicação, predispõe para a ação e assume um papel relevante em fenómenos de diferenciação social (os quais por sua vez nos remetem para processos de categorização social e de construção da identidade (s/d, s/p).

A mulher tem sobre si mesma um enorme peso da história, pois socialmente, ao longo de muitos séculos, foi considerada como um ser inferior, um objeto e propriedade do homem, cuja função era, em primeira linha a de procriar e satisfazer as vontades e desejos do homem, devendo- lhe obediência e a ele inteiramente submissa. Trata-se de uma realidade que, apesar das mudanças dos tempos se mantém construída ou reconstruída (BEAUVOIR, 1967; BOURDIEU, 1999; IRIGARAY, 1993). Maria Lamas, no seu livro A Mulher no Mundo (1952), obra importante para a compreensão da História das Mulheres se refere e analisa a condição feminina, sublinhado que, através dos séculos o papel da mulher vai adquirindo novas vestes, porém nunca numa posição autónoma e independente. Os seus trabalhos e toda a sua actividade, por úteis, necessários e valiosos socialmente, não eram visíveis e reconhecidos como trabalho de valor económico. Desempenhando tarefas nunca remuneradas, a dependência da mulher era, desde logo, económica em relação ao homem que, ao ocupar o espaço público, auferia o rendimento ao sustento familiar. As duas Guerras Mundiais do século XX obrigaram à intervenção e trabalho da mulher fora da esfera privada, desempenhando papéis relevantes quer no âmbito dos próprios conflitos, como também na organização produtiva e na produção, na assistência na dor e sofrimento. No dizer de Mady Segal (1995) as mulheres desempenharam todas as funções de guerra, apenas com exceção do “combate direto”. A presença da mulher no espaço público, o seu contributo útil e ativo na sociedade, ao serviço da humanidade, conduziram a uma consciencialização das capacidades e potencialidades da mulher, dando-se em parte a desconstrução cultural da sua representação social. Em consequência, a seu favor, foram modificadas as leis. Muitos Estados viram-se obrigados a alterar a legislação (BEAUVOIR, 2001). Contudo, a situação das mulheres mantém-se inalterada no que respeita à situação construída em valores de dominação do homem sobre a mulher. Delphy (2001) refere que o sexoé simplesmente uma marca da divisão social, serve para se reconhecer e identificar os dominantes e dominados, é um “signo” (p. 252). Ao utilizar-se a natureza como justificação da diferença sexual, edifica-se uma verdadeira ‘censura’ sobre a mulher, ao encobrir a dominação que a opõe ao homem. É que a categoria hierárquica do homem como ser mais capaz e poderoso não é mais do que uma construção cultural, por criar divisões no plano material e económico geradoras de oposições e conflitos (IRIGARAY, 1993). 15

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Na verdade, antes do conflito (a revolta, a luta) não existem categorias de oposição a não ser unicamente categorias de diferença. É só quando a luta se instala, que se manifesta a violenta realidade das oposições e o caráter político das diferenças (WITTIG,1992, p. 23). Ora, o pensamento hegemónico da naturalização dos papeis da mulher na sociedade, da sua submissão hierárquica ao homem, é difundido pelo próprio homem e pelas instituições sociais que criou, mas, através dos tempos, foi também interiorizado pela própria mulher, que o assume eo transmite aos seus filhos (BOURDIEU, 1999; HOOKS, 2015). Os homens sabem bem que dominam as mulheres, sendo, até, educados nesse sentido. Ao deterem o domínio económico, possuem o poder dominante do pensamento e da ação. Como classe ou categoria dominante dita as regras da dominação(IRIG ARAY, 1993; BOURDIEU, 1999). É, deste modo, que o trabalho das mulheres é desvalorizado, bem como a própria função da maternidade que chega a excluí-la do mundo do trabalho , generalizando-se a indiferença perante a violência sobre as mulheres. O pensamento hegemónico encorpa toda a nossa mentalidade, com incidência tanto no espírito, como no corpo, de tal modo que não conseguimos pensar criticamente (GRAMSCI, 1999). Como nota Monique Wittig (1992), “por esta razão devemos destrui-la e começar a pensar para além dela se queremos começar a pensar realmente, do mesmo modo que devemos destruir os sexos como realidades sociológicas se queremos começar a existir” (p.28). Ao articularmos o pensamento de Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo e o de Maria Lamas em A Mulher no Mundo, constatamos que a mais significativa causa das desigualdades entre homem e mulher, reside na particularidade da estrutura e organização societárias estarem erigidas sob a ótica do pensamento, interesses, desejos e realização do homem, que coloca tudo e todos, em subordinação e inferioridade. Nesta lógica, a mulher, enquanto ser humano, é violenta e subtilmente atingida porquanto, o homem não lhe nega essa qualidade, mas em razão da maternidade naturalizou a sua posição social, atribuindo-lhe funções específicas afastadas das decisões que traçam os destinos das sociedades e da humanidade, utilizando-a como sua extensão. Apesar da sua invisibilidade e desvalorização, nem toda a mulher se satisfaz no aconchego material, nas particularidades do casamento e maternidade, à margem da sua própria identidade (IRIGARAY, 1985). Maria Lamas, no livro As Mulheres do Meu País transmite-nos que mesmo na ignorância e resignação com que enfrentavam a desventura da vida, as mulheres que conheceu eram possuidoras de forte resistência e determinação, o que o regime ditatorial então vigente bem sabia. Deixá-las exprimir na sua linguagem e identidade de mulheres, no coletivo ou com incidência nele, era caminho aberto para a destruição da hegemonia masculina e, por conseguinte, do próprio poder político vigente, pois, como sublinha Monique Wittig (1992).

quando alguém se converte num falante, quando diz“ eu”, ao fazê-lo reapropria-se da linguagem na sua totalidade, que atua a partir de cada um, com o tremendo poder de a usar, e é aí, ... que se produz a emergência da subjetividade na consciência. Quando começamos a falar, convertemo-nos num “eu”. Apesar da dura lei do género e da sua pressão sobre as mulheres, nenhuma mulher pode dizer “eu” sem ser para si própria um sujeito total, isto é, sem género, universal, global (p. 107).

Também é sabido que o pensamento que se funda no ascendente da diferença natural dos sexos, constitui um pensamento de dominação social exercida pelo homem, que impõe à mulher a exclusiva função de reprodução, que não é mais do que a apropriação pelo sistema económico

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As mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 do trabalho das mulheres não só com a gravidez e parto, como igualmente na educação e cuidados com os filhos e o serviço doméstico (BOURDIEU, 1999; BEAUVOIR, 1967; IRIGARAY, 1993). No entanto, muitas mulheres não têm a consciência de serem dominadas pelos homens e sempre que admitem tal hipótese ficam incrédulas e, mesmo, quando a realidade se lhes impõe nua e crua recusam-se a admitir essa dominação(BEAUVOIR, 1967). Então, a mulher acolhe em resignação, conforma-se. Porém, “quanto mais docilmente ela se conforma com esse ideal que lhe é imposto, quanto menos ela desenvolve as suas possibilidades pessoais, menos ela encontra recursos em si mesma” (BEAUVOIR, 2001, p.116). Ao remeter-se a uma atitude de aceitação do que lhes é oferecido“ o seu esforço consiste apenas em procurar o seu próprio lugar neste mundo” (BEAUVOIR, 2001, p.116). Com efeito, a experiência mostra-lhe que “aos olhos dos homens o seu sucesso não constitui um trunfo e, pelo contrário, ela corre o risco de os alienar”. (BEAUVOIR, 2001, p. 117). Só que a felicidade é a utopia a perseguir continuamente, mesmo que de modo inconsciente. Com avanços e recuos, desde que “não se abstrai[a] em cenas já jogadas, em frases já ouvidas e repetidas, em gestos já conhecidos. Em corpos já codificados. Tenta[r] estar atenta em si mesma. Para si. Sem se deixar distrair com a norma e o hábito” (IRIGARAY, 1976, p.23), a mulher alcançará a afirmação da sua própria identidade. O que pode vir a conseguir, ao deixarem de falar a linguagem dos homens (em sentido amplo – na fala propriamente dita, nos gestos, nas posturas e respostas). Falando a sua própria linguagem as mulheres não se perdem e abatem na subalternização a que estãopor agora sujeitas. Ficam libertas para o amor, pois que “o amor cura. Nossa recuperação está no ato e na arte de amar. (...) Expressamos amor através da união do sentimento e da ação” (HOOKS, 2000, p.535). É que, quando se ama, nada é esperado em devolução. Um nada deve ao outro, nem um é o mimo do outro. O desejo de amor, da mulher, é que numa relação amorosa em que esteja envolvida um nunca exclua o outro, de modo que a sua essência não se liquidifique e escoe. É um amor, aqui e agora, sem imposições culturalmente criadas. Como refere Luce Irigary (1976), “nenhuma família. Nenhum personagem, papel ou função– das suas leis reprodutivas (...) é bem o suficiente para nos sentirmos vivos” (p. 24). Este desafio impõe-se pela existência do corpo e espírito da mulher, sem manipulações. O gesto político e cultural que constitui o livro de Maria Lamas As Mulheres do Meu País poder- se- á considerar como uma diretriz indispensável para que a mulher conquiste asua independência, num processo em movimento, “(...) de modo que a sua associação com o homem [seja] de uma igualdade perfeita” (BEAUVOIR, 2001, p.117), em que a relação que se encontrem não signifique a anulação ou destruição do outro, antes seja uma relação de poder cooperativo. Para tal, é a resistência do homem “o maior obstáculo que a mulher tem de superar no mundo e no seu próprio coração” (BEAUVOIR, 2001, p.117). Embora pareça insana, é uma hipótese de luta, por sair dos cânones sociais hegemónicos. É uma possibilidade a não desprezar, antes a falar, “fala[r] de qualquer maneira (Irigaray, 1976,p.25). Muito assertivamente, Hélène Cixous (1967) afirma:

Culturalmente, as mulheres já choraram muito, mas uma vez que as lágrimas sequem, no lugar delas o que encontraremos em abundância é o riso. É o brilho, é a alegria, é um certo humor que nunca se espera encontrar nas mulheres, e é certamente a sua força, porque é o humor que vê o homem muito mais longe do que ele já viu (p. 15).

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No livro, como a autora retrata as mulheres

No contexto descrito, ao lermos As Mulheres do Meu País, não podemos deixar de pensar Maria Lamas a partir da sua própria excecionalidade: notável pensadora da condição das mulheres, pela observação, pelo conhecimento da realidade, pelo estudo, inclusive, de si própria; sem se afirmar feminista, mas declarando-se sempre lutadora; impulsionada pelos seus inquietantes pensamentos sobre a condição feminina; com a visão feminina da vida e vivendo no propósito da valorização e dignificação da mulher, entendeu o seu despedimento – gesto de extrema violência por parte do regime político do Estado Novo - como um repto e oportunidade para a denúncia das difíceis condições em que a mulher portuguesa vivia. Isto, ao mesmo tempo que, lançando mão da realidade, daquela que Salazar ocultava através do ‘manto das Mães’ contribuiria para desacreditar a doutrina emanada do Estado Novo sobre a mulher. Paralelamente, cumpriria o sonho “ir conhecer diretamente a realidade das mulheres do seu país, que algumas instituições governamentais dissimulavam e poetizavam um pouco à maneira de Júlio Dinis” (SOUSA, 2002, p. XIV). As Mulheres do Meu País, no modo como foi escrito, graficamente apresentado, em estético cruzamento de texto e fotos e na forma de distribuição utilizada (em 24 fascículos, ao longo de 2 anos, entre outras razões, para não passar pelo crivo da censura) não só representa um documento que procura dar visibilidade às mulheres e consciencializa-las da dimensão das suas próprias vidas, como também surge conforme ao elemento de autoridade irrefutável na denúncia da situação em que viviam as mulheres à época e de como a doutrina salazarista constituía uma verdadeira falácia. Ressalta das palavras e ambientes do livro, que as mulheres portuguesas do norte a sul do continente e ilhas são marcadas por situações e sentimentos comuns que as distinguem numa configuração identitária: trabalham infatigavelmente, desempenhando todo o tipo de trabalho, desde que daí possam extrair recursos, como forma de atenuarem a fome que as assalta e aos seus ou, então, para a prosperidade do casal; o trabalho que fazem é muito penoso e fatigante, no caso das camponesas, de sol a sol, e as outras que auferem salário, recebem-no sempre bastante menos do que o recebido pelo homem; se com maridos emigrantes, suportam com coragem as suas ausências; cuidam dos filhos, que as mais das vezes têm por instinto e tratam de tudo o que se relacione com a casa e família; a maternidade é vivida sem assistência e enlevo; possuem níveis de vida muito baixos, sofrem de um grande atraso e são ignorantes, sendo elevado o analfabetismo; entendem a vida como uma penitência que têm de cumprir. Tudo isto gera um “sentimento de impotência, impotência na mudança da sua condição e a inevitabilidade do seu destino” (SANTOS, 2016, p. 41). De acordo com Maria Lamas, apenas o período de amor (na juventude, antes do casamento) é um período da alegria e esperança. O casamento põe fim a essa esperança, não pelo casamento propriamente dito, mas porque lhes acrescenta grande cansaço. Sentem que lhes está vedado qualquer prazer da vida, pelo que recalcam sonhos, e quaisquer manifestações de alegria e, até, felicidade. O convívio familiar é sinónimo de mal-estar, aridez, discussões , até, maus tratos. Sofrem violência “e ninguém estranha se o homem a trata com desprezo ou a espanca (...). Ela própria lhe reconhece esse direito, suportando tudo como um desígnio que pesa sobre asua condição de mulher” (LAMAS, 2002, p. 40). Os seus atos e opiniões estão de acordo com os

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As mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 conceitos que lhes são transmitidos pelos pais e avós, pelas vizinhas e por todo o ambiente que as envolve. A fé religiosa, os velhos usos e superstições mantêm-se vivos, tal como a fadiga que lhes deforma o físico e a moral e contribui para o fatalismo com que encaram as suas vidas. O que, tudo articulado, resulta na sua falta de interesse pelo mundo e pelo que as rodeia, à exceção de questões muito concretas que as afetem de forma evidente. No livro prevalece o tema da camponesa, o que se compreende, por corresponder ao retrato da sociedade da época, predominantemente agrícola. A causa das mulheres levou Maria Lamas a denunciar a situação menorizada ou de pobreza, caracterizadora das suas vidas, sem deixar de exprimir que as mulheres, no seu coletivo, não se satisfazem nos aconchegos materiais, nas particularidades do casamento e da maternidade, como exclusiva realização da felicidade individual (IRIGARAY, 1985). É que ela (Maria Lamas) com elas (mulheres portuguesas) se identificava. Era uma delas. Em carta dirigida a Eugénio Monteiro Ferreira afirmou: “Não lhe falo em dificuldades, deceções e mesmo amarguras que tenho sofrido. Se eu conseguir que As Mulheres do Meu País sejam úteis às minhas irmãs, e o mesmo é dizer à Humanidade, darei tudo por bem empregado” (cit. por FERREIRA, 2004, p. 44). O ‘elas’, o ‘nós’ mulheres, em Maria Lamas, sobrepõem-se ao ‘eu’. O pretendido fim da sua luta era o de consciencializar e intervir positivamente, no reconhecimento e na transcendência das mulheres, estando estas abandonadas socialmente, como “vítimas milenárias de erros milenários, que, apesar de tudo, continuam a ser as obreiras da vida” (LAMAS, 2002, p.6). Nesta atenção e estima, “bem pequenos foram, afinal, os incalculáveis esforços, fadigas e obstáculos vencidos, que a sua [do livro] publicação representa”. (LAMAS, 2002, p.6). Na verdade, a obra é resultado das viagens da autora às diversas regiões do País, tidas em muitos casos por impossíveis, dadas as dificuldades de acesso, transportes, longas distâncias e condições climatéricas, ao encontro de mulheres que vivem isoladas, encerradas em limites físicos e geográficos, culturais e de classe. Na observação e comentários à vida feminina, no processo de consciencialização que subjaz à obra, implementa “a criação de uma plataforma estratégica de irmandade, um ‘nós’ eivado de reconhecimento e solidariedade perante a construção social e não o destino biológico chamado ‘mulher’” (FERREIRA, 2016, p.164). Isto é, Maria Lamas deu visibilidade às mulheres anónimas portuguesas, de norte a sul e ilhas, que vivem realidades várias e que, por reflexão, consciencializou a sua própria identificação com muitos dos problemas e sentimentos delas. Como afirmou, “já não duvidava: os meus problemas eram os problemas de todas as mulheres, embora alguns revestissem, para cada uma, aspetos diferentes” (LAMAS, 2002, p. 5). Porque todas, só por serem mulheres, são atingidas pela opressão. Com efeito, a autora constrói um “nós” que se opõe “a uma noção simplista de irmandade baseada na ideia de que todas as mulheres são biológica ou ‘naturalmente’ iguais e portanto se identificam entre si” (FERREIRA, 2016, p. 167). Por isso, defende a criação da “plataforma de irmandade necessária à luta anti- patriarcal que, neste caso concreto, não se pode distinguir da luta antifascista, posto que a política sobre a mulher e a família constitui uma das mais importantes bases do governo de Salazar” (FERREIRA, 2016, p. 167). Para além do relato circunstanciado, rigoroso e preciso da situação da mulher portuguesa em meados do século XX, em contraponto à propaganda do Estado Novo, neste livro, a autora, pela escrita, transcreve a oralidade predominante na época e, assim, grava opiniões de mulheres e o saber que transportam, adquirido pelas vivências e perceções que as acompanham nas suas duras vidas; inscreve sob o seu ponto de vista, com rigor e exatidão mas, em simultâneo, com doçura,

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As mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 beleza e rigor tudo quanto observa e analisa; regista para a memória, a vida e pensamento das mulheres anónimas portuguesas daquela época. Embora não declarado como intencional, o livro revela a existência de um inquérito ao trabalho e à condição feminina. A posição das mulheres como subalternizadas, inferiorizadas, dominadas, na sua maioria desprovidas de recursos económicos e todas elas desapossadas de uma dimensão simbólica que confira outros significados às suas vidas, é um ponto trabalhado com cuidado, ao mesmo tempo que nele a autora reflete um movimento no sentido da autonomia e independência pretendidas, o que se encontra evidenciado ao longo da leitura desta obra. Neste livro são abordados de maneira entrelaçada, também na perspetiva de género, temas inerentes à condição humana: trabalho, casamento, maternidade, capacidade física, doença, morte, religião, ser ou não objeto de caridade. A dimensão ontológica expressa no livro, traz à superfície, a necessidade da irmandade de mulheres que só naaceitação da diversidade de identidades, mas em solidariedade, podem resistir à ideologia hegemónica que ameaça e oprime a mulher e a própria família. Ana Paula Ferreira resumiu-o do seguinte modo:

Só declarando-se irmã de toda e qualquer mulher ... O que está em jogo não é identificar as mulheres como mães por motivos deterministas ou essencialistas, mas provar até que ponto as “mulheres portuguesas” são mães injustiçadas por um governo que não reconhece e quereria travar o trabalho produtivo das mesmas, incluindo ou não o papel maternal (FERREIRA, 2016, p. 175).

Com este brilhante documentário que Maria Lamas redigiu e divulgou na esperança da consciencialização das mulheres portuguesas, nos seu reconhecimento e promoção, pugnando pela melhoria das condições das suas vidas, mantém-se indissoluvelmente ligada às mulheres portuguesas “humildes ou desafogadas” (LAMAS, 2002, preâmbulo, s/p). Irmanada, assume a luta em defesa dos seus direitos e dignidade, colocando com sentido político o seu pensamento, as suas ideias em ação que, também, para si avocou. Maria Lamas pode ser considerada, pois, uma intelectual orgânica na conceção de Gramsci (1999) e tem igualmente perfeito enquadramento nesse mesmo conceito enunciado por bell hooks:

O intelectual não é apenas alguém que lida com ideias. (...) Intelectual é alguém que lida com ideias transgredindo fronteiras discursivas porque ele ou ela vê a necessidade de fazê-lo. Segundo, intelectual é alguém que lida com ideias na sua vital relação com uma cultura política mais ampla (HOOKS, 1995, p. 468).

Neste livro, Maria Lamas evidencia a rudeza de vida das “Mulheres a quem a vida pesa brutalmente [e] são todas as que suportam inconcebíveis trabalhos, rigores e angústias, seja nas aldeias, seja no turbilhão das cidades” (LAMAS, 2002, p.7). A obra resultou da observação direta que a autora fez ao longo de dois anos e da consideração justa e equilibrada do que viu e ouviu, sem abandonar a sensibilidade exigida, nem as suas próprias convicções. A realidade era bem dura. A existência das mulheres era ignorada. Condenadas a condições de vida e de trabalho desumanas, detendo um nível de vida muito baixo, enfrentavam ainda a emigração dos homens, ficando a cuidar dos filhos e a trabalhar as terras, nos arrozais e campos de trigo, na seca do bacalhau ou transporte do sal, tanto nas fábricas como na construção de estradas ou transporte do carvão, bem como noutras atividades. Trabalho pesado e duro, durante muitas horas seguidas, tantas vezes curvadas e de sol a sol, sob sol escaldante, ou percorrendo longas distâncias com carregos à cabeça. E, sempre recebendo um salário menor que o do homem 20

As mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 para trabalho igual, (no mínimo 1/3 para menos). Mulheres que, na generalidade, são analfabetas, arreigadas a tradições, supersticiosas. Mulheres que aceitam a submissão aos maridos. Tudo nas suas vidas é aceite com resignação, numa postura de reação ao infortúnio, sempre combativas nas situações de agravamento das suas condições, já de si precárias. Em permanente luta pela sua sobrevivência e, principalmente, da dos seus. Sempre numa atitude de resistência. Como sublinha a autora: “Nascem e crescem quase a par dos irracionais; amam, procriam, envelhecem e mirram-se no afã constante de ter milho nos espigueiros, farinha na masseira, palha para o gado, linho e lã que baste para o seu modesto arranjo” (LAMAS 2002, p. 31). Luta e resistência que acontece “desde uma infância abandonada a uma velhice quase sempre sem amparo” (idem, p. 105), já que“a vida encarrega-se de as maltratar” (ibidem, p. 126). Ao longo de toda a obra, vários aspetos narrados no livro revelam que as mulheres são “corajosas, a quem a economia do país tanto deve, trabalhadoras para quem não há descanso, desde a infância à velhice, elas são uma força e um valor mal apreciados ainda” (LAMAS, 2002, p.325). Com efeito, Maria Lamas, ao longo do livro As Mulheres do Meu País, vai notando toda a luta e resistência que acompanham as mulheres ao longo das suas vidas:

A mulher (...) tem, no nosso país, uma existência de nível baixíssimo, limitada a responsabilidades, encargos e sacrifícios. Conseguir viver – eis a batalha diária. Tudo o mais não tem sentido para elas, se o pão falta. Quanto ao espírito, atrofiado e deformado pela ignorância e pelas mais absurdas crendices, mantém-se, em pleno século XX, no mesmo obscurantismo de gerações e gerações atrás (LAMAS, 2002, p. 361).

A sua dura vida põe em evidência que“o que a impele e ampara é o instinto de sobrevivência, a dedicação aos que ama, a ânsia universal de felicidade (LAMAS, p.424), concluindo no final da obra que:

A resistência física e moral, que as contingências implacáveis de uma vida incerta, cheia de deficiências e sem pontos de apoio, exige à mulher do povo e, quase sempre à classe média, é incalculável. Perante estas contingências, a mulher desamparada, obscura, ergue-se à altura dos heróis (LAMAS, 2002, p. 469).

Todo o livro As Mulheres do Meu País está escrito com muita sensibilidade e de perfeição agradável, abrangendo, também, a descrição harmoniosa de espaços e paisagens, contéma inclusão de pequenos relatos de histórias e pormenores enriquecedores. Trata-se de uma descrição rigorosa de particularidades que são transmitidas na obra, numa escrita envolvida por muita ternura, num estilo simples e de grande beleza. Igualmente, não se fica indiferente à circunstância de que toda a violência sofrida pelas mulheres a autora opôs e impôs uma linguagem de amor, sem evitar a denúncia vigorosa e contundente.

Considerações finais: a atualidade do livro

Uma análise hermenêutica da obra As Mulheres do Meu País porá a descoberto o olhar e discurso contra-hegemónico revelado por Maria Lamas, não só pelo facto de ter sido escrito por uma mulher que deu visibilidade às mulheres e às suas duras condições de vida e ainda pelos traços repressivos e opressivos da organização e estrutura social, político e económico à época vigente, com sequelas ainda bem visíveis hoje em dia. Toda a obra, para além da denúncia, firma

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As mulheres do meu país: um estudo sobre mulheres Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 e funda um discurso de resistência à hegemonia do poder político e do de natureza masculina, o que se percebe no decorrer da sua leitura, expressa em linguagem terna mas assertiva. Com a elaboração e a publicação deste livro, Maria Lamas correu vários riscos, não só devido às dificuldades na recolha de dados e informação, riscos de natureza financeira que a colocaram em perigo de sobrevivência, mas também riscos de grande perda de liberdade, visto ter enfrentado o poder instituído, sendo até sua clara opositora. Esta obra representa igualmente um ato de resistência da própria autora. A situação de desigualdade gritante das mulheres, em pleno século XXI, embora com outras vestes, ainda está muito próxima e pouco difere da realidade evidenciada e retratada no livro. Na verdade, o permanente cansaço, dureza e e sobrecarga de trabalho imperam na vida da generalidade das mulheres; a sua autonomia e independência financeira é ainda diminuta; a desvalorização e não reconhecimento das suas ideias e trabalho é, até agora, uma constante; a não consideração da maternidade como valor eminentemente social é fator de exclusão no mundo do trabalho, onde as mais das vezes auferem salários inferiores para igual trabalho. O pensamento hegemónico de superioridade do homem sobre a mulher mantém-se, mantendo-se do mesmo modo, as condições propícias aos mais diversos tipos de violência sobre as mulheres. O que tudo interfere de forma significativa na igualdade de oportunidades e tratamento, apesar do que possa dispor a lei. E, influi negativamente na sua auto-estima.

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24 artigos

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Education and Neoliberalism: Presence and the Role of the State in Contemporary Brazilian EducationEducación y neoliberalismo: presencia y papel del estado en la educación brasileña contemporánea

Wéllia Pimentel Santos Doutoranda pela Universidade de Salamanca (USAL) [email protected]

Resumo O liberalismo nasce no século XVIII com as ideias burguesas de Adam Smith e se prolifera pelo mundo. Esse modelo de sociedade liberal entrou em decadência com a crise de 1929. Todavia, de 1970 a 1980, o modelo liberal é redefinido a partir do atual modelo neoliberal. Sendo assim, nesse contexto de recentes transformações do capitalismo, este artigo suscita discussões sobre a incursão do modelo neoliberal na educação brasileira, partindo de uma perspectiva histórica sobre ele, convergindo para a educação como aparelho ideológico do Estado e para o atual cenário educacional, além de um breve panorama acerca das políticas públicas educacionais vigentes. A metodologia aplicada ao trabalho se ateve a um estudo descrito, do tipo revisão bibliográfica, respaldando- se, especialmente, em literaturas científicas, trabalhos acadêmicos referenciados que trazem tais reflexões e cujos resultados obtidos respondem satisfatoriamente à proposta da pesquisa em foco.

Palavras-chave: Educação. Neoliberalismo. Estado.

Abstract Liberalism was born in the 18th century with the bourgeois ideas of Adam Smith and proliferated throughout the world since them. This model of liberal society fell into decay with the crisis of 1929. However, in the 1970s to 1980, the liberal model is redefined from the current neoliberal model. Thus, in this context of the recent transformations of capitalism, this article aims to provoke discussions about the incursion of the neoliberal model in Brazilian education, starting from a historical perspective on it, converging to and education as an ideological apparatus of the State, the current educational scenario , as well as a brief overview of current educational public policies. The methodology applied to the work was based on a described study of the type bibliographical revision, supporting, especially, in scientific literatures, academic papers referenced that bring such reflections, being that the obtained results respond satisfactorily to the proposal of the research in focus.

Keywords: Education. Neoliberalism. State.

Resumen El liberalismo nace en el siglo XVIII con las ideas burguesas de Adam Smith y se prolifera por el mundo. Este modelo de sociedad liberal entró en decadencia con la crisis de 1929. Sin embargo, de 1970 a 1980, el modelo liberal es redefinido a partir del actual modelo neoliberal. Por lo tanto, en el contexto de las recientes transformaciones del capitalismo, este artículo suscita las discusiones sobre la incursión del modelo neoliberal en la educación brasileña, partiendo de una perspectiva histórica sobre él, convergiendo hacia la educación como aparato ideológico del Estado y para el actual escenario educativo, además de un breve panorama sobre las políticas públicas educativas vigentes. La metodología aplicada al trabajo se atiene a un estudio descriptivo, del tipo revisión bibliográfica, respaldándose, especialmente, en literaturas científicas, trabajos académicos referenciados que traen tales reflexiones, siendo que los resultados obtenidos responden satisfactoriamente a la propuesta de la investigación en foco.

Palabras clave: Educación. Neoliberalismo. Estado.

Educação e neoliberalismo: presença e papel do estado na educação brasileira contemporânea Tecnia | v.4 | n.1 | 2019

Introdução

Um dos principais lapsos cometidos ao se analisar a educação, é analisar seus problemas como se fossem atuais, sem levar em consideração que estes estão frente a uma matriz histórica, claramente interligada ao momento presente. Nesta perspectiva, é possível assinalar que já nos anos 1980, os sistemas educativos estavam atravessados por uma crise geral da sociedade latino- americana e apresentava múltiplas funções. A educação destinada aos trabalhadores era desenhada por pedagogos dos séculos XIX e XX a partir do reflexo da ideia de fábrica. As aulas se constituíam na perspectiva de uma linha de montagem na qual se preparavam as crianças para enfrentar a vida. Todos detinham os mesmos postos de trabalho, se vestiam igualmente, cumpriam os mesmos horários e estudavam o mesmo conteúdo. A fábrica como microcosmo social praticamente desapareceu, entretanto, a educação continua organizando-se aos moldes da sociedade industrial do século XIX. Exemplos de disfunções a serem citados são inúmeros e se bem resultam evidentes que os sistemas escolares requeriam modificações. Em consequência aumentaram as desigualdades educativas e o impulso à educação privada cresceu rapidamente. Passou a existir uma vinculação direta entre os organismos financeiros com o Fundo Monetário Internacional, e o Banco Mundial com os programas educacionais da América Latina, trazendo, consequentemente, uma intervenção direta dos ministérios da economia na área pedagógica, sendo que suas imposições econômicas determinavam desde os salários docentes até a troca de estruturas do sistema de reformas de conteúdos. Nestes paradigmas, com muito atraso em relação às nações desenvolvidas, o Brasil veio traçando, a partir do início da década passada, metas ambiciosas no que tange à qualidade da educação no país, querendo chegar ao ano de 2022, bicentenário da independência, com todas as crianças tendo seu direito de aprender com qualidade, garantido. Os desafios são imensos, especialmente, devido ao modelo estatal, cujos princípios partem da perspectiva de uma educação liberalizante, tendo seus moldes traçados e condicionados, no que diz respeito à presença e papel do Estado na educação contemporânea, à subserviência aos ditames deste novo modelo socioeconômico. De tal modo, nesta pesquisa, serão consideradas algumas questões centrais que visam nortear esta temática, dentre elas: quais as características desse modelo liberal para a política pública de educação? Será que de fato esse modelo neoliberal de escola está trazendo algum tipo de benefício ou está simplesmente tolhendo as pessoas no sentido de se adequarem às ideias das classes dominantes? Como tem sido o apoio à escola e ao professor para que se consiga dar condições de cumprirem essa meta ousada? Nessas proposições, sem refutar toda a densidade teórica proposta, essa pesquisa se propõe a pensar epistemologicamente a presença do Estado na educação contemporânea, de modo a aproximar a discussão a partir dos pressupostos históricos que embasam o discurso neoliberal na educação. Convém assinalar a existência de vários tipos de liberalismo, contudo, todos eles dispõem basicamente de três grandes pilares: a liberdade individual, o direito de propriedade e o direito à vida. Trata-se de uma teoria de liberdade econômica que, na sua origem, clamava por liberdades básicas subjacentes aos aspectos ligados à política, à liberdade de expressão, de

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comércio, de indústria, liberdade religiosa, portanto, impossíveis serem imaginar no antigo regime. Por outro lado, o momento atual vivenciado pelos países ocidentais se pauta no modelo neoliberal, isto é, numa redefinição do liberalismo clássico, desencadeado em resposta à crise mundial vivenciada nos anos 1970, intervindo no ritmo de crescimento dos países industrializados, e isso se reflete nas políticas públicas, especialmente às de cunho social. De tal modo, torna-se mister a propositura de uma reflexão pautada nos ideários das políticas neoliberais no âmbito da educação.

1. Educação e Neoliberalismo

1.1 Perspectiva histórica do modelo neoliberal

Depois da Revolução Francesa, a luta pelo absolutismo e o antigo regime ainda ia se estender por muito tempo, até que os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade se tornassem universais. A burguesia aspirava um mundo no qual as liberdades básicas fossem possíveis e onde as pessoas não sofressem com os abusos e a tirania dos privilégios da nobreza. De tal modo, o século XIX ia ver o coroar de uma doutrina que visava legitimar essa nova ordem capitalista burguesa. Direitos de liberdade, propriedade e à vida foram inicialmente defendidos com maestria pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704), em seu ‘Segundo Tratado do Governo Civil’, obra na qual são elencados princípios garantidores do estado de natureza a que todos estão sujeitos; cuja razão basilar se deve ao fato de que todos são “obra do Criador onipotente e infinitamente sábio... enviados ao mundo por sua ordem e à seu serviço” (LOCKE, 1994, p. 16). Por natureza, todos os homens são “livres, iguais e independentes”, e nenhum homem pode estar “sujeito ao poder político de outro sem seu próprio consentimento”. Qualquer número de homens pode concordar em se juntar para se constituir em um corpo político, sem prejuízo dos outros, pois todos aqueles que não concordarem são meramente deixados de fora “na liberdade do estado da natureza” (LOCKE, 1994, p. 22). Considerando que o escopo do governo se pauta na garantia dos direitos naturais do homem, a razão apresentada por Locke baseia-se nos limites das ações dos indivíduos em relação aos demais e também do próprio governo em relação aos indivíduos. “Locke defende que estes direitos pertencem ao homem no estado de natureza, e anseia por provar que entre eles está o direito da propriedade” (LOCKE, 1994, p. 19). Tais direitos são também conhecidos como direitos negativos, ou seja, a liberdade de não sofrer coerção, seja por parte de terceiros ou do próprio governo. Nesta ótica, o século XIX surge com o amadurecimento das ideias liberais plenas, amparado nos ideais teórico-políticos, que partem desde Maquiavel (1469-1527), reconhecido pelo desenvolvimento de teorias do estado de sua época, cuja centralidade de reflexões se comprazem na alegação de que o indivíduo esteja fadado ao seu próprio destino, ou seja, baseia-se no imperativo de inutilidade de interferência estatal que possa reorganizar essa ideia; além da relação historicamente construída de que há uma racionalidade política que não coincide com a razão comum, ou seja, Maquiavel trata da impossibilidade de organização humana disposta da égide estatal (MAQUIAVEL, 1976; 2001). Segundo Botero (1992, p. 5), “O Estado é um domínio firme sobre povos e Razão de Estado é o conhecimento de meios adequados a fundar, conservar e ampliar um Domínio deste gênero”. A razão estatal se dá, em suma, sob a justificativa de 28

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conservação dos interesses governamentais. Para cumprir tal intento, tem-se ainda o mercado se auto regulamentado através da difundida expressão ‘mão invisível’, do economista escocês Adam Smith (1723-1790).

Como cada indivíduo, portanto, se esforça tanto quanto ele puder seja para empregar seu capital em suporte à indústria doméstica, seja para dirigir aquela indústria de modo que seu produto possa ser do maior valor; cada indivíduo necessariamente trabalha para tornar a renda anual da sociedade tão grande quanto ele possa. Ele geralmente, de fato, não pretende promover o interesse público, nem sabe o quanto ele o está promovendo. Ao preferir o apoio da indústria doméstica à estrangeira, ele pretende apenas sua própria segurança; e ao dirigir aquela indústria de tal maneira que seu produto seja do maior valor, ele pretende apenas seu próprio ganho, e ele é neste, como em muitos outros casos, levado por uma mão invisível a promover um fim que não era parte de sua intenção. E nem sempre é pior para a sociedade que não fosse parte dela. Ao perseguir seu próprio interesse ele frequentemente promove o da sociedade mais efetivamente do que quando ele realmente pretende promovê-lo (SMITH, 1976, WN IV.ii.9, grifos nossos).

O conceito central do termo se dá pela autossuficiência, inerente à condição humana,

Cada homem é, sem dúvida, por natureza, primeira e principalmente recomendado a seu próprio cuidado; e como ele é mais apto para cuidar de si do que de qualquer outra pessoa, é adequado e correto que assim o seja. Cada homem, portanto, é muito mais profundamente interessado no que quer que imediatamente lhe diga respeito, do que naquilo que diz respeito a qualquer outro homem (SMITH, 1976, TMS II.ii.2.1).

Sem almejar incorrer ao risco de reduzir grandes teóricos a um empreendimento pragmático, tanto na origem quanto em sua sistematização, ressalta-se, contudo, que estas doutrinas, inevitavelmente, exerceram grande repercussão ao modelo burguês e foram sendo construídas desde o século XVI ao XVII, perpassando ao século XVIII, sendo que à medida que a burguesia expandia seu poder econômico e também político, que até então era monopolizado pelo clero e pela nobreza, obteve como resultado último desse paradoxo a consolidação e expansão desse modelo ao mundo, de forma que no século XIX já se tem esse modelo liberal bem delineado, a partir de um liberalismo mais clássico. Não obstante, a historiografia elucida que a partir do século XIX se tornam mais acirrados os investimentos nas bolsas de valores com uma lógica de investimento que atua como pilar de proteção ao modelo liberal vigente. Vai sendo consolidada, neste momento, a ideia de que o indivíduo é o responsável pela sua própria sorte, inclusive tal argumento era sustentado na perspectiva de que os Estados Nacionais não devessem investir na vida das pessoas desvalidas socialmente, pois ao fazer isso estaria sendo mantida ‘ajuda aos piores’ da espécie, concatenando, assim, à lógica do darwinismo social, que se dá a partir da sobrevivência dos melhores de cada espécie aos solavancos ‘naturais’ do planeta, caso contrário, esses “piores” se misturariam aos ‘melhores’ e a sociedade estaria fadada ao fracasso. O desenvolvimento das espécies superiores se pauta por um progresso em direção a uma forma de existência capaz de buscar uma felicidade isenta de necessidades deploráveis. É na raça humana que essa felicidade se deve realizar. A civilização é a derradeira etapa em direção a essa realização. E o homem ideal, é o homem que vive sob as condições onde ela se realiza. Enquanto espera, o bem-estar da humanidade existente e o progresso em direção à perfeição final, são assegurados, tanto um como o outro, por uma disciplina benéfica mas severa à qual toda a natureza 29

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se encontra sujeita: disciplina impiedosa, lei inexorável que conduz à felicidade, mas, que jamais cede ante a possibilidade de infligir sofrimentos parciais e temporários. A pobreza dos incapazes, a angústia dos imprudentes, a nudez dos preguiçosos, o esmagamento dos fracos pelos poderosos que abandona um grande número ‘nas profundezas e na miséria’ são as determinações de uma bondade imensa e previdente. (SPENCER; LAVELEYE, 1885, p. 100-1). Esse modelo, da virada do século XIX para o século XX ainda era muito intenso no mundo inteiro, todavia, acaba sendo derrocado quando, em 1929, já no início do século XX, ocorre a queda da bolsa de valores em Nova York, comumente conhecida como “a grande depressão”, cujas causas principais se deram pela redução das exportações para a Europa e o consequente acúmulo de estoques de produtos que acarretaram na desvalorização das ações de muitas empresas. Os efeitos da crise de 1929 foram sentidos pelo mundo inteiro, sobretudo nos países industrializados que já estavam sob a égide liberal. Diante disso, os paradigmas constitucionais do modelo liberal, se mostraram insuficientes, pois o mercado gerenciado por ele mesmo consagra apenas liberdades formais, imbricando uma ideologia individualista e defensora de um Estado mínimo na qual é incapaz de promover o bem comum. No fundo, a política liberal era vulnerável porque sua forma de governo característica, a democracia representativa, em geral não era uma maneira convincente de governar Estados, e as condições da Era da Catástrofe raramente asseguraram as condições que a tornavam viável, quanto mais eficaz (HOBSBAWM, 1995, p. 113). Em um mundo polarizado, apresentando um cenário de crise devido ao modelo econômico do pós-guerra, em 1974, fez-se necessário um novo modo de pensar a política socioeconômica dos países, de tal modo, o economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946) veio a dar vazão às suas teorias se fundamentando no princípio de que o sistema capitalista tende a ser perpassado por crises cíclicas contínuas, não sendo possível o Estado não intervir na produção e na distribuição das riquezas, pois o setor empresarial estaria comprometido exclusivamente com a manutenção dos interesses individuais. Os ideais keynesianos se pautavam numa política econômica de estado intervencionista, de modo que a sociedade pudesse incidir de forma minimamente harmoniosa, com base na autorregulação dos mercados.

O século XX multiplicou as ocasiões em que se tornava essencial aos governos governar. O tipo de Estado que se limitava a prover regras básicas para o comércio e a sociedade civil, e oferecer polícia, prisões e Forças Armadas para manter afastado o perigo interno e externo, o “Estado-guarda-noturno” das piadas políticas, tornou-se tão obsoleto quanto o “guarda-noturno” que inspirou a metáfora (HOBSBAWM, 1995, p. 114).

A defesa da democracia representativa e da livre iniciativa levou então à transição do chamado welfare state, ou estado de bem-estar social, a um Estado que utilizando-se de medidas fiscais e monetárias deveria promover ações que proporcionasse uma vida minimamente digna às pessoas. Assim, por meio do welfare state, o estado passou a assumir a responsabilidade primária pelas políticas públicas passando a prover mínimos sociais às pessoas no que tange às políticas voltadas para saúde, moradia, assistência social, dentre outros, deixando de lado a ideia do darwinismo social imposto até então. Tal regime vigorou desde os anos 1930 até os anos 1970, com a crise do petróleo provocada pelo déficit de oferta do produto, além de ser desencadeada neste contexto,

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uma série de conflitos, tais como, a Revolução islâmica no Irã (1979), a guerra Irã-Iraque (a partir de 1980), a guerra dos Seis Dias (1967), etc. A fim de preceituar as vantagens do reformismo deste sistema de proteção social, especialmente em relação ao modelo socialista, os Estados Unidos assumem um papel mais contundente no sentido de disseminar inexoravelmente as diretrizes das classes hegemônicas, todavia, esse modelo econômico-social, no transcurso dos anos 1970, entra em crise, pois os gastos sociais por parte dos estados passam a apresentar um crescimento acima de suas possibilidades, acarretando no desmantelamento entre “capital x trabalho”. O acordo de Bretton Woods reuniu cerca de 45 nações aliadas em julho de 1944, no estado de New Hampshire, nos EUA, e veio a estabelecer as bases de funcionamento do sistema capitalista a partir do pós-guerra, legitimando a reconstrução da economia sob o viés de uma ‘adaptação’ do modelo liberal, doutrina esta comumente conhecida como modelo neoliberal. Nesse sentido, Carvalho (2004, p.51), afirma que: Tratava-se de criar regras e instituições formais de ordenação de um sistema monetário internacional capaz de superar as enormes limitações que os sistemas então conhecidos, o padrão- ouro e o sistema de desvalorizações cambiais competitivas, haviam imposto não apenas ao comércio internacional, mas também à própria operação das economias domésticas. Destarte, se até o século XX, a partir do modelo liberal, os valores se pautavam na promoção da liberdade individual e a não intervenção estatal na economia, após sua decadência, é dada uma redefinição ao liberalismo clássico, assumindo uma ideologia neoliberal, sujeita aos ditames da política norte-americana, na perspectiva de um estado que atua com uma nova ordem nas relações econômico-financeiras e sociais e isso acontece em todas as esferas da vida, inclusive no âmbito da educação.

1.2 Educação enquanto aparelho ideológico do Estado

É muito recorrente a disseminação, especialmente pelos meios midiáticos, do imaginário da ineficiência e dos altos níveis de insatisfação por parte da população em relação aos serviços públicos essenciais, dentre eles, a política pública de educação, sendo que alguns, inclusive, sugerem uma agravação do problema nos últimos anos. De tal modo, a escola liberal é apresentada por meios diversos, tais como: revistas, jornais, internet, inclusive no discurso estatal, cuja defesa aparece nas grandes mídias. As reflexões de Ianni convergem neste sentido, com os seguintes preceitos:

A mídia realiza limpidamente a metamorfose da mercadoria em ideologia, do mercado em democracia, do consumismo em cidadania. Realiza limpidamente as principais implicações da indústria cultural, combinando a produção e a reprodução cultural com a produção e reprodução do capital; e operando decisivamente na formação de “mentes” e “corações”, em escala global (IANNI, 1999, p. 17).

Os artifícios midiáticos liberais são dispostos massivamente em todos os espaços e apresentados à população por meio de um discurso ideológico carregado de atributos técnicos e de uma linguagem organizacional-empresarial, utilizando-se de termos como: descentralização privatização, flexibilidade de contratações, etc.

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Numa cultura da imagem dos meios de comunicação de massa, são as representações que ajudam a constituir a visão de mundo do indivíduo (...) consumando estilos e modos de vida, bem como pensamentos e ações sociopolíticas. A ideologia é, pois, tanto um processo de representação, figuração, imagem e retórica quanto um processo de discursos e ideias. Além disso, é por meio do estabelecimento de um conjunto de representações que se fixa uma ideologia política hegemônica (KELLNER, 2001, p. 82)

O imaginário da desqualificação do gratuito perpassa pelas representações de que tudo que é bom é pago e aquilo que é gratuito, necessariamente, não é bom. Essa composição público/privado, no que tange à educação, que se delineia atualmente, é extremamente desfavorável ao público. Todavia, a premissa do discurso de que o setor privado é mais eficiente do que o setor público é no mínimo equivocada, haja vista estarmos olhando cenários completamente diferentes. Esta linha de ação é apresentada como a única reforma possível, mas não são propostas soluções que tendem a melhorar a Educação, portanto, são propostas políticas de redução da responsabilidade estatal neste âmbito. Ressalta-se assim, que quando um profissional da área jornalística que tem como função, não somente informar, mas de formar a opinião pública em relação à educação pública, por exemplo, a tendência é de comparação com a educação privada, sendo esquecida a questão central: a educação privada só atende aqueles que têm capacidade de pagamento, diferente da educação pública que tem de atender a todos. Dessa maneira, acreditar na ideologia dominante na qual articula que os serviços educacionais têm de ser privatizados, faz parte do menu neoliberal, presente nos processos privatizantes dos sistemas públicos de educação. Nesse sentido, Eagleton preceitua:

Um poder dominante pode legitimar-se promovendo crenças e valores compatíveis com ele; naturalizando e universalizando tais crenças de modo a torná-las óbvias e aparentemente inevitáveis; denegrindo ideias que possam desfiá-lo; excluindo formas rivais de pensamento, mediante talvez alguma lógica não declarada, mas sistemática; e obscurecendo a realidade social de modo a favorecê-lo. [...] Em qualquer formação ideológica genuína, todas as seis estratégias podem estabelecer entre si interações complexas. (EAGLETON, 1997, p. 19)

A educação é o aparelho ideológico de Estado mais importante, pois é dele que é despontada a ideologia da classe dominante que será tomada a partir do ponto de vista gerencial. Assim, da mesma forma que um bom Estado é aquele que é viável economicamente, uma boa educação é aquele que é viável em termos administrativos. Conforme Saviani (1999), enquanto aparelho ideológico de estado, a escola cumpre duas funções básicas:

Contribui para a formação da força de trabalho e para a inculcação da ideologia burguesa. Cumpre assinalar, porém, que não se trata de duas funções separadas. Pelo mecanismo das práticas escolares, a formação da força de trabalho se dá no próprio processo de inculcação ideológica. Mais do que isso: todas as práticas escolares, ainda que contenham elementos que implicam um saber objetivo (e não poderia deixar de conter, já que sem isso a escola não contribuiria para a reprodução das relações de produção). São práticas de inculcação ideológica. A escola é, pois, um aparelho ideológico, isto é, o aspecto ideológico é dominante e comanda o funcionamento do aparelho escolar em seu conjunto. Consequentemente, a função precípua da escola é a inculcação da ideologia burguesa. Isto é feito de duas formas concomitantes: em primeiro lugar, a inculcação explícita da ideologia burguesa; em segundo lugar, o recalcamento, a sujeição e o disfarce da ideologia proletária (SAVIANI, 1999, p. 37).

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Por outro lado, há que destacar que existem muitas falhas dentro do modelo escolar vigente, falhas essas advindas de um modelo educacional positivista. A escola brasileira ainda visa legitimar a perspectiva voltada à tradição do ensino. Trata-se da postura do educador que exige um corpo inerte, um corpo que não tenha condições de transcender os limites de uma arquitetura que pede o silêncio, que é voltada para o mercado. Nessa perspectiva, Foucault (2010, p. 75) cita que com isso se vai ‘docilizando’ os corpos:

É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que poder ser transformado e aperfeiçoado. [...] Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações.

Não se cria um ambiente propício à reflexão, mas à imposição aos alunos desde cedo do respeito a uma hierarquia, no qual supostamente há um modo de se comportar em lugares determinados, e o respeito, supostamente, se deve àqueles que ‘sabem mais’, de modo a fazer com que a ordem prevaleça sobre as coisas no sentido de gerar um progresso em termos de conhecimento. É exigido ainda que estes alunos mantenham certos comportamentos anacrônicos, que, por sua vez, são entendidos como inadequados e sujeitos a represálias, cuja implicação se dá pela proibição de aparelhos celulares ou bonés nos espaços escolares, exigência de que todos façam orações preliminares às aulas (de cunho religioso excludente à diversidade de credos) de maneira disciplinada, dentre outros. Com essa lógica pedagógica se está ‘docilizando’ os corpos, fazendo com que estes, desde cedo, sejam adestrados para que sejam subservientes aos ditames de uma sociedade capitalista monopolista.

A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme a regra. É preciso vigiá-los durante todo o tempo da atividade de submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares. É assim que no exército aparecem sistemas de graus que vão, sem interrupção, do general chefe até o ínfimo soldado, como também os sistemas de inspeção, revistas, paradas, desfiles, etc., que permitem que cada indivíduo seja observado permanentemente (FOUCAULT, 2010, p. 106).

Temos, consequentemente, uma escola que não se propõe a gerar a reflexão no sentido de apresentar todas as políticas necessárias para discutir temais atuais e polêmicos, tais quais: gênero, sexualidade, drogas, violência, preconceito, religiões. Recentemente, inclusive, tem estado em voga a discussão do movimento “Escola sem partido” no qual alega representar pais e estudantes contra a chamada “doutrinação ideológica”. Portanto, temas polêmicos como estes são evitados de serem discutidos em sala de aula, haja vista que trazer essas realidades divulgaria quão falha é a sociedade capitalista neoliberal. Nesses preceitos, tudo isso corrobora o fato de ainda termos uma escola coligada ao modelo burguês, e que, ao determinar os seus conteúdos, inclusive, a partir do que é importante para determinado grupo social nos faz ficar cada vez mais ‘imbecializados’. Pierre Bordieu (1982), na sua Teoria da Reprodução Cultural, assevera que a partir do momento em que são utilizados, na educação, de argumentos que fazem parte de um determinado grupo social, estar-se-á reproduzindo a classe dominante àqueles que não fazem parte da classe dominante. Diante disso, o sociólogo francês afirma que:

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Todo sistema de ensino institucionalizado (SE) deve as características específicas de sua estrutura e de seu funcionamento ao fato de que lhe é preciso produzir e reproduzir, pelos meios próprios da instituição, as condições institucionais cuja existência e persistência (auto-reprodução da instituição) são necessários tanto ao exercício de sua função própria de inculcação quanto à realização de sua função de reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações entre os grupos ou as classes (reprodução social) (BOURDIEU, 1982, p.64).

Uma boa escola não deve ser pensada apenas sob o ponto de vista gerencial, a partir do Estado, contraditoriamente a isso, deve ser trabalhada no sentido de trazer temas relevantes e abordar à possibilidade de diálogos múltiplos, para que assim o aluno decida por si se almeja ser mais ou menos progressista. Sob esta ótica, o neoliberalismo pedagógico veio acompanhado de uma grande operação discursiva que apresentou as reformas educativas como uma modernização educativa necessária. Este se localiza no lugar do discurso donde se sentem as fraturas do sistema tradicional para os quais ainda não há respostas claras. No entanto, não criou um modelo alternativo que atendesse às necessidades sociais e, estrategicamente, são atribuídas culpas e responsabilidades à escola pública de questões que tem uma origem socioeconômica mais profunda, entretanto, convém ressaltar que o direito à educação é de responsabilidade de um Estado democrático de direito e não deve depender do poder de consumo do mercado.

1.3 Cenário educacional

É possível evidenciar que o atual cenário educacional reflete grandes dificuldades relacionadas ao diálogo entre o conhecimento científico e a origem da prática em educação. Compreende-se que essas dificuldades têm raízes sociais, mas que ainda hoje apresentam seus resquícios dentro do espaço escolar. Nesse sentido, é muito recorrente entre o corpo docente, o discurso de que a teoria se opõe à prática. Todavia, esse não é um problema puramente epistemológico ou de como o conhecimento educacional funciona ou se organiza. É também uma expressão de uma estruturação social da educação no Brasil e de como autenticamos essa forma de educação que ainda é reproduzida nas salas de aula. Convém salientar, de acordo com Libâneo, que a metodologia aplicada em salas de aula no período de 1950 a 1971 se constituía apenas em aulas expositivas de forma repetitiva e mecânica.

Na relação professor- aluno há o predomínio da autoridade do professor que exige uma atitude receptiva do aluno e impede qualquer comunicação entre os mesmos no decorrer da aula. O professor transmite o conteúdo na forma de verdade a ser absorvida, em consequência, a disciplina imposta é o meio mais eficaz para assegurar a atenção e o silêncio. A aprendizagem é receptiva e mecânica, garantida pela repetição. A avaliação se dá por verificações de curto e longo prazo e o reforço, em geral, é de uma forma negativa (punições, notas baixas) ou positivas com classificações (LIBÂNEO, 1986, p.24).

Atualmente, é possível evidenciar nas escolas públicas brasileiras a tendência à segmentação dos campos do conhecimento que necessitam interação, de forma a entrelaçar discussões e soluções para os problemas que são cotidianamente apresentados. A tendência ainda é de perpetuação do professor isolado na sua área de atuação, sem haver maior interlocução entre as disciplinas. Pessoa e Borelli (2011, 2011, p. 66) explicitam que, quando professores refletem 34

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conjuntamente, eles têm a oportunidade de exercer sua função de forma mais competente, trazendo para a situação reflexões, experiências pessoais e formativas, assim, “compartilhando experiências e pontos de vista, os professores têm a oportunidade de repensar sua prática, sua formação profissional e as forças que incidem sobre seu fazer docente”. Além disso, corrobora-se a importância de se ministrar conteúdos a serem trabalhados em sala de aula que estejam ligados à realidade dos alunos. O que implica que aquilo que é vivido pelos alunos deve ser considerado no interior da sala de aula, pois só assim a educação faz sentido. E nestes preceitos, o professor aprender junto com os alunos, conforme explicita Freire (1982) sem saber de antemão, o que resultaria disso, mas inventado o conhecimentos durante a aula, junto aos estudantes. “Esse é um momento complexo do estudo. O próprio hábito do estudo se desenvolve. O material de estudo se transforma. A relação entre professor e aluno é recriada” (FREIRE, 1982, p.108). Outro ponto a ser refletido se deve à desmotivação por parte de uma parcela massiva de educadores. As justificativas levantadas nesse texto indicam que o desprestígio que a docência vem sofrendo no Brasil, notadamente, os professores de escolas públicas (em especial professores com carga horária inferior: professor de artes, educação religiosa e língua inglesa) são fatores que estes vão se desmotivando ao longo de sua jornada, principalmente pelas condições de perda de prestígio na sociedade, o desrespeito que estes sofrem tanto por parte das autoridades, das famílias e também dos alunos. Deste modo, Jesus ressalta que:

[...] há necessidade de um novo sentido para escola, fundamentado num quadro teórico adequado para análise de suas funções e dos seus objetivos, para um aperfeiçoamento da comunicação e para um sentido pessoal e interpessoal da mesma, permitindo o desenvolvimento humano através das relações interpessoais agradáveis para os agentes mais diretamente envolvidos na educação escolar, os professores e os alunos. (JESUS, 2004, p. 45).

Tudo isso converge para outra questão, a necessidade de que tenhamos material didático da mais variada natureza não só escrito, mas também de outras formas de mídias que atendam às necessidades educacionais destes jovens que estão imersos no mundo tecnológico, sendo basilar, dessa maneira, que se consiga recuperar certa dimensão no que diz respeito ao ensino que vai além do livro, mas que confluam ao trabalho a partir de outras formas didáticas.

1.4 Políticas públicas educacionais brasileiras

No que tange a uma visão macro das políticas públicas educacionais brasileiras, é possível apontar a proposta de reforma do ensino médio, preconizada pelo presidente da República Michel Temer1 e aprovado no ano de 2017, através da medida provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016, que passará a entrar em vigor a partir do ano de 2018. Em resumo, pode-se entender que a reforma, via de regra, apresenta mudanças basilares que afetam conteúdo e formato das aulas, além da elaboração dos vestibulares e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), desmontando políticas e programas construídos historicamente a nível nacional. A proposta em pauta tende ainda à valorização do ensino técnico, ou seja, a educação tratada a fim de atender à demanda de mercado. A despeito disso, Deitos (2000, p. 55-56), alega ser explicitada a relação direta da

1 Empossado após o impeachment da titular, Dilma Rousseff, em 2016. 35

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educação profissional com as demandas do desenvolvimento econômico do Estado e do mercado de trabalho que, nas palavras do autor, “emerge da articulação com o desenvolvimento da economia e do mercado de trabalho no país e consequentemente com a reestruturação econômica em nível internacional (DEITOS, 2000, p. 55‐56). De tal modo, a formulação de políticas educacionais profissionalizantes deve ser apreendida com acuidade em termos de conteúdos, pois ao estimular a profissionalização no mercado, cujo conhecimento está voltado para o lado mais técnico do que reflexivo estarão sendo reproduzidas as forças hegemônicas que direcionam às novas exigências do mundo produtivo, a partir das políticas educacionais no país. Vale ainda considerar que outro ponto subjacente a essa ‘tecnificação’ do conhecimento se deve ao fato da redução dos custos com essa modalidade de ensino. Todavia, essa ‘mercadorização’ da educação também perpassa ao nível superior, tendo dado início, especialmente a partir dos anos de 1990, e isso se deve, conforme evidencia Azevedo (2015, p. 6):

[...] em grande medida, à expansão da educação superior no Brasil que aconteceu em ambiente de mercado dominado por empresas de serviços educacionais com finalidade de lucro e, para complexificar ainda mais o panorama, em momento em que a Organização Mundial do Comércio (OMC), criada 1995, passa a jogar papel importante na liberalização comercial, reforçando teses privatizantes da educação do Banco Mundial (1994), e em que empresas transnacionais e fundos de investimento lançam-se no mercado de educação superior no Brasil.

Por outro lado, a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), estabelecida para os ensinos infantil e fundamental, se encontra mais definida em relação aos anos finais e ao ensino médio, sendo que, as competências gerais do BNCC estabelecem que:

Na primeira etapa da Educação Básica, e de acordo com os eixos estruturantes da Educação Infantil (interações e brincadeira), devem ser assegurados seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento, para que as crianças tenham condições de aprender e se desenvolver: Conviver Brincar Participar Explorar Expressar Conhecer-se (BRASIL, 2017, p. 23).

No que tange ao Ensino Fundamental, a BNCC aponta que o mesmo está organizado em cinco áreas do conhecimento.

Essas áreas, como bem aponta o Parecer CNE/CEB nº 11/201025, “favorecem a comunicação entre os conhecimentos e saberes dos diferentes componentes curriculares” (BRASIL, 2010). Elas se intersectam na formação dos alunos, embora se preservem as especificidades e os saberes próprios construídos e sistematizados nos diversos componentes (BRASIL, 2017, p. 25).

Ainda conforme o documento, “cada área de conhecimento estabelece competências específicas de área, cujo desenvolvimento deve ser promovido ao longo dos nove anos. Essas competências explicitam como as dez competências gerais se expressam nessas áreas” (BRASIL, 2017, p. 26).

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O Plano de Desenvolvimento da Educação2 (lançado pelo MEC em 24 de abril de 2007) apresentava como base de sustentação uma visão sistêmica da educação efetivamente capaz de enfrentar a questão da qualidade do ensino das escolas de educação básica (SAVIANI, 2007). Conforme o autor, em sentido positivo,

A singularidade do PDE se manifesta naquilo que ele traz de novo e que, portanto, não fazia parte do PNE e também não se encontrava nos planos anteriores. Trata-se da preocupação em atacar o problema qualitativo da educação básica brasileira, o que se revela em três programas lançados no dia 24 de abril: o “Índice de Desenvolvimento da Educação Básica” (IDEB), o “Provinha Brasil” e o “Piso do Magistério” (SAVIANI, 2007, p. 1242).

Nesses preceitos, Saviani (2007, p. 1245) confere que “a infraestrutura de sustentação do PDE se assenta em dois pilares, o técnico e o financeiro, em correspondência com a dupla assistência”.

Do ponto de vista técnico, o PDE se apoia em dados estatísticos referentes ao funcionamento das redes escolares de educação básica e em instrumentos de avaliação construídos a partir de indicadores do aproveitamento dos alunos e expressos nas provas aplicadas regularmente sob coordenação do INEP, a partir dos quais foi elaborado o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)... Do ponto de vista financeiro, os recursos básicos com que conta o PDE são aqueles constitutivos do FUNDEB, aos quais o MEC se propõe a adicionar, em 2007, um bilhão de reais visando a atender prioritariamente os mil municípios com os mais baixos níveis de qualidade aferidos pelo IDEB (SAVIANI, 2007, p. 1245-1246).

Tudo isso evidencia que a sustentabilidade do plano consubstancia-se na lógica de mercado em que se guia a educação contemporânea:

É, pois, uma lógica de mercado que se guia, nas atuais circunstâncias, pelos mecanismos das chamadas “pedagogia das competências” e “qualidade total”. Esta, assim como nas empresas, visa obter a satisfação total dos clientes e interpreta que, nas escolas, aqueles que ensinam são prestadores de serviço; os que aprendem são clientes e a educação é um produto que pode ser produzido com qualidade variável (SAVIANI, 2007, p. 1253).

Dentre os fatores que agravam esse cenário é possível evidenciar os dados trazidos pelo PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2016), nos quais apontam que o Brasil conta atualmente com aproximadamente 40 milhões de adultos brasileiros com baixíssima escolaridade, além de uma média de 10 milhões de adultos que nunca frequentaram a escola. Vale ressaltar que aproximadamente 98% de crianças de 6 a 14 anos matriculadas na escola são filhos e filhas de uma geração de brasileiros que não tiveram direito à educação (PNAD/IBGE, 2016). Assim, o discurso corrente nos meios escolares de que o grande problema da educação diz respeito à omissão dos pais na formação educacional dos filhos é muito capcioso, pois os pais, ainda assumindo suas limitações, estão empenhados, seja matriculando seus filhos ou

2 O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) foi criado pelo MEC a partir de estudos elaborados pelo INEP para avaliar o nível de aprendizagem dos alunos. Tomando como parâmetros o rendimento dos alunos (pontuação em exames padronizados obtida no final das 4ª e 8ª séries do ensino fundamental e 3ª do ensino médio) nas disciplinas Língua Portuguesa e Matemática e os indicadores de fluxo (taxas de promoção, repetência e evasão escolar), construiu- se uma escala de 0 a 10. Aplicado esse instrumento aos alunos em 2005, chegou-se ao índice médio de 3,8. À luz dessa constatação, foram estabelecidas metas progressivas de melhoria desse índice, prevendo-se atingir, em 2022, a média de 6,0, índice obtido pelos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que ficaram entre os 20 com maior desenvolvimento educacional do mundo (SAVIANI, 2007, p. 1234). 37

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acompanhando a vida escolar dos mesmos, no entanto, vale considerar que o ambiente escolar ainda é desconhecido para muitos deles, ou pode, até mesmo, não ser um ambiente nos qual estes pais tiveram boas experiências.

Considerações finais

Diante do exposto, torna-se um imperativo categórico à escola uma busca mais tenaz no que diz respeito a uma aproximação entre educação e ética, no sentido de aprofundar reflexões sobre os paradoxos do mundo no qual estamos vivenciando, a partir da estimulação de um senso mais crítico nos jovens para que, assim, o próprio discente possa se sentir na liberdade de realizar suas escolhas, seja acerca do tipo de governo ao qual se almeja, questionando de forma racional a educação que lhe é dada, a saúde, o transporte, enfim, a forma com que se faz política. E, nesta perspectiva, tais questionamentos devem ser tecidos de forma coerente, com argumentos plausíveis, e não meramente através de ‘achismos’. Contudo, reconhece-se que a questão é mais complexa, pois não estamos diante de um problema apenas de currículo, é todo um desenho escolar que, cada vez menos, dialoga com essa juventude. De tal modo, implica à gestão escolar mais ousadia em relação não somente ao conteúdo, como também a forma. É preciso pensar uma escola do século XXI na qual seja criado o entusiasmo por parte dos educadores, no sentido de compartilharem do esforço de dialogar, e por isso a educação de jovens e adultos – EJA é muito importante, haja vista que a escolaridade dos pais apresenta um grande impacto no desempenho escolar do filho, sendo assim, faz-se necessário recuperar esses brasileiros para a educação escolar. Carecemos também de uma visão única da educação integrada que pense realmente em políticas e não em ações isoladas, pois, com isso, a formação acaba se dando de forma pontual e não exatamente uma política de desenvolvimento educacional que se fundamente no diálogo permanente com as famílias, não mais por meio de imposições. Destarte, a partir de todo o exposto, é possível refletir em que contexto estamos inseridos. A agenda de desenvolvimento faz com que as questões econômicas sejam superiores na condução das políticas do que a própria agenda da educação. A partir daí nos vem o sentimento de que quem batalha cotidianamente pela educação pública de qualidade deve ter um posicionamento de resistência, pois a gestão da educação se traduz cotidianamente como ato político, pois implica sempre uma tomada de posição dos atores sociais (profissionais da educação, discentes, docentes). E, nos dias de hoje, é imprescindível que tenhamos um gestor que conheça e atue de maneira mais articulada aos processos educativos, aos conselhos. Os desajustes socioeconômicos e culturais, desencadeantes em práticas neoliberais excludentes, geram uma nova realidade no âmbito da educação pública produzindo um panorama extremamente complexo: cada vez mais as pessoas são afetadas pelas crises econômicas que chegam à escola, que conta desde a sua concepção como instituição niveladora das desigualdades sociais. De tal modo, a escola não pode mais ser pensada enquanto espaço de transmissão de conteúdos e resistir bravamente a essas mudanças, pois com isso estamos desvalorizando as formas de conhecimento que esses jovens têm, entrando, assim, em descompasso a esse novo cenário. Portanto, fazem-se necessárias ainda serem traçadas mudanças muito radicais no cenário escolar atual. 38

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______Subjetividade docente em tempos de cultura da performatividade

Teaching subjectivity in times of culture of performativity Subjetividad docente en tiempos de cultura de la performatividad

Camila Carolina Alves Assis Universidade Federal de Jataí [email protected]

Laís Leni Oliveira Lima Universidade Federal de Jataí [email protected]

Resumo O presente artigo é um estudo sobre as práticas gerencialistas na Educação e suas consequências para a práxis e a subjetividade do professor. As reformas educacionais, pautadas pela implantação de um Estado avaliador, lançaram no campo da Educação a primazia das avaliações de desempenho, fazendo com que professores e estudantes tivessem como principal objetivo resultados nas avaliações de larga escala. Neste trabalho, refletimos sobre o impacto da cultura do desempenho sobre estudantes e trabalhadores da Educação. Foi utilizada a pesquisa bibliográfica sobre o Estado gerencialista e performatividade. A pesquisa revelou que as práticas estabelecidas levam a uma reforma da subjetividade. Palavras-chave: Gerencialismo. Cultura da performatividade. Trabalho docente.

Abstract This article is a study about the managerial practices in Education and the consequence of these for práxis and the subjectivity of the teacher. The educational reforms, based on the implantation of an evaluating State, have launched in the field of Education the primacy of performance evaluations, making teachers and students the main objective to achieve results suitable in the assessments at national level. The objective is to reflect on the impact of performance culture on students and education workers. We used the bibliographical research that brought as theoretical references the of Stephen Ball on the managerial state and the culture of performativity. Research has shown that established practices lead to a reform of subjectivity.

Keywords: Managerialism. Culture of performativity. Teaching work.

Resumen El presente artículo es un estudio sobre las prácticas gerencialistas en la Educación y la consecuencia de ésas para la praxis y la subjetividad del profesor. Las reformas educativas, pautadas por la implantación de un Estado evaluador, lanzaron en el campo de la Educación la primacía de las evaluaciones de desempeño haciendo con que profesores y estudiantes tuvieran como principal objetivo alcanzar resultados convenientes en las evaluaciones a gran escala a nivel nacional. Objetivamos reflexionar sobre el impacto de la cultura del desempeño sobre estudiantes y trabajadores de la Educación. Se utilizó la investigación bibliográfica con referenciales teóricos de Stephen Ball sobre el Estado gerencialista y la cultura de la performatividad. La investigación reveló que las prácticas establecidas llevan a una reforma de la subjetividad.

Palabras clave: Gerencialismo. Cultura de la performatividad. Trabajo docente.

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1. Gestão do desempenho na educação pública

1.1. Gerencialismo e performatividade

O papel do Estado para as políticas públicas sofreu uma mudança considerável após a chamada “Era do Bem-Estar Social”. As atividades antes consideradas responsabilidades diretas do Estado, passaram a ser apenas reguladas ou avaliadas por este. O Estado autoriza que entidades privadas ou outros tipos de organizações não governamentais excutem os serviços, exercendo um papel de auditor, avaliador, dirigindo tais atividades à distância. Os serviços sociais, nessa perspectiva, passam a ser alvo das empresas privadas na obtenção de lucro, instaurando assim, a gestão privada no ambiente público. O chamado Estado do Bem-estar sofre um esgotamento nos anos 1970, quando inicia-se o retorno de uma visão liberal de sociedade. Para Frigotto (2010), as teses keynesianas (de Keynes, que postula o Estado de Bem-estar social), propõem a intervenção do Estado como forma de regular a economia no momento de crise em que se encontrava, após 1929. A ideia de um Estado do Bem-estar social busca atingir estabilidade no emprego, previdência social, subsídios do Estado para saúde e educação, por exemplo. Tudo isso por meio de políticas sociais, na tentativa de uma recuperação da economia. O objetivo é conseguir conciliar produção e consumo em grande escala. Assim, alguns aspectos do que era considerado características de uma economia planejada socialista é cooptado pelo sistema do capital na tentativa de estancar crises. O investimento nas políticas públicas de cunho social constituem-se em um subsídio para que a população tenha condições de consumir bens, sentindo-se amparada pelas instituições públicas no suprimento de educação, saúde e previdência, por exemplo. Ball (2004) mostra que a saúde, a educação e outros serviços sociais foram os últimos campos de conquista do capital privado em busca de lucratividade. O mundo corporativo passou a enxergar a área da educação como mais uma possibilidade de operar e receber rendimentos, o que leva à inserção de uma lógica da produção privada (e todas as suas peculiaridades éticas) nas práticas educativas. No mundo todo, a agenda das reformas na Educação ganhou força após o fim do Estado de Bem Estar Social, com o objetivo de descentralizar o papel do Estado e adotar medidas de eficiência e eficácia, características da lógica empresarial privada (DAMBROS; MUSSIO, 2014). No Brasil, essas transformações ganharam fôlego no governo de Fernando Henrique Cardoso com a instauração de uma política neoliberal e a participação de organismos internacionais nas políticas educacionais. O Estado avaliador pressiona as escolas, gestores, docentes e estudantes por meio do controle avaliativo, responsabilizando exclusivamente a estes sujeitos pelos resultados das avaliações nacionais maciças. Tura (2012) afirma que dessa forma, o trabalho pedagógico é baseado no conteúdo das provas aplicadas pelo poder público com o objetivo de extrair índices de qualidade, e não pelas especificidades culturais de cada instituição. Modifica-se o ambiente educacional, inserindo nele o vocabulário das organizações privadas, reduzindo o processo de ensino e aprendizagem a medidas de desempenho e controle de

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“qualidade” (obviamente não se trata aqui da qualidade socialmente referenciada), na busca pela maximização da eficiência e da eficácia, conceitos empresariais (BALL, 2004). O trabalho humano complexo e criativo sofre uma violência e aqui se configura em uma forma de produção como outra mercadoria ou serviço qualquer. Para Ball (2004), a gestão no estilo privado incide sua preocupação maior no alcance de lucros, realocando a ética profissional para as situações nas quais representar possibilidade de ganho. Imagem e apresentação são mais valorizadas, tornando muitos trabalhadores diferentes, na tentativa de adaptar-se ao novo padrão e ainda assim, corre-se o risco de serem substituídos. O professor, sob o novo mecanismo de controle de sua atividade, individualiza-se, estranha a si mesmo e ao seu trabalho, é invadido em sua subjetividade. Ball (2005) define o gerencialismo como o pilar fundamental da reforma política do setor público: representa a inserção de uma nova forma de poder, na qual, o gerente ou gestor responsabiliza os trabalhadores pelo andamento da organização. O gerencialismo tem sido a nova forma de administrar os serviços públicos nos últimos anos, responsável por uma reforma cultural de substituição de antigos valores por “uma cultura empresarial competitiva” (BALL, 2005). Contribui para aumentar o controle sobre os professores, “busca incutir performatividade na alma do trabalhador” (p. 545). Para Amaro (2013) vivemos os tempos da avaliação: há mais de vinte anos no Brasil há uma valorização das avaliações em larga escala. Nos anos 1990, após a realização de empréstimos com o Banco Mundial, o sistema avaliativo adquire ainda mais força. Nos anos 2000, ocorre a criação da Prova Brasil, do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e a divulgação dos rankings avaliativos torna-se o critério para afirmar a “qualidade” da escola. As políticas de avaliação da Educação Básica são importadas de modelos similares encontrados nos países centrais e aplicadas nos países periféricos. Assim, de acordo com Silva (2018), no México a partir de 1992, a prática do ensino por competências foi introduzida, com o apoio de organismos internacionais, como o Banco Mundial que realizou empréstimos ao governo do país com o objetivo de melhorar a “qualidade” da educação. O México foi utilizado como modelo de introdução e adaptação de uma política educacional que posteriormente chegaria ao Brasil e a outros países. Sob o discurso de que as empresas dos países em desenvolvimento precisariam se adequar caso quisessem competir globalmente, os países centrais venderam todo um projeto de educação técnica e profissional de preparação de trabalhadores voltada a atender às demandas do sistema de produção. Os governantes dos países periféricos negociam com os organismos internacionais empréstimos. Estes, em troca, passam a determinar todo um modo de educação, de produção e de estilo de vida. A década de 1990 no Brasil é caracterizada pela expansão do neoliberalismo, influenciando sobremaneira a educação no país. Muitos autores problematizaram as questões relacionadas à nova concepção de Estado daquele momento histórico (SAVIANI, 2013). É o momento do que Saviani denomina de “pedagogia da exclusão”, pois não há lugar para todos:

Trata-se de preparar os indivíduos para, mediante sucessivos cursos dos mais diferentes tipos, se tornarem cada vez mais empregáveis, visando a escapar da condição de excluídos. E, caso não o consigam, a pedagogia da exclusão lhes terá ensinado a introjetar a responsabilidade por essa condição. Com efeito, além do emprego formal, 43

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acena-se com a possibilidade de sua transformação em microempresário, com a informalidade, o trabalho por conta própria, isto é, sua conversão em empresário de si mesmo, o trabalho voluntário, terceirizado, subsumido em organizações não governamentais etc. Portanto, se diante de toda essa gama de possibilidades ele não atinge a desejada inclusão, isso se deve apenas a ele próprio, a suas limitações incontornáveis. Eis o que ensina a pedagogia da exclusão (SAVIANI, 2013, p, 431).

A educação escolar constitui-se em ferramenta para o preparo do novo trabalhador, o qual deve ter destreza em áreas específicas, deve desenvolver as chamadas competências para conseguir uma posição no mercado de trabalho. Dessa forma, ao ingressar nos mais diversos cursos preparatórios desde muito cedo, o aprendiz estará conquistando sua chance de empregabilidade no futuro. Nessa perspectiva de educação escolar, aprende-se ainda a “criar” o próprio emprego, caso ele não apareça: é o já conhecido empreendedorismo, ensinado desde a educação infantil nas escolas mais abastadas. Caso não consiga, será responsabilizado por sua falta de empenho, energia e vontade.

2. Trabalho docente na cultura da performatividade

O trabalho docente que mencionamos aqui está localizado na sociedade cujo sistema de produção é o capitalismo, ocorre dentro de um contexto histórico e cultural, trazendo consigo múltiplas determinações. Raimann e Lima (2016) nos alerta que esse trabalho não ocorre de forma neutra ou isolada da realidade própria de sua época. Os discursos sobre o trabalho docente apresentam-se impregnados da ideologia vigente, da visão que as classes dominantes consideram pertinentes para o desenvolvimento de seu projeto de sociedade. O chamado “profissionalismo ou pós-profissionalismo”, conceito desenvolvido pelo professor Stephen Ball (2005), para o estilo de trabalhador requisitado pós Estado do Bem Estar, se caracteriza por obedecer a regras formuladas externamente, e é baseado em desempenho ou “performance” do trabalhador. As tecnologias do gerencialíssimo e da performatividade acabam por transformar as práticas profissionais, onde a ética e a cultura não têm espaço. O que é valorizado é a capacidade de medir a “eficácia”, dessa forma, o julgamento do desempenho é também feito por terceiros. A cultura da performatividade atua em todos os âmbitos da educação, internos e externos à escola incentivando todo o tipo de competição, pautada no resultado estatístico, desconsiderando tudo aquilo que não pode ser medido e apresentado numericamente (PARENTE, 2015). Amplia ainda mais a pressão e a carga de trabalho do professor, duvida o tempo todo de sua capacidade de ensinar, legitimando o controle social do Estado. Parente (2015) ainda afirma que a lógica do desempenho não leva em conta as particularidades de cada escola e região, visto que os indicadores competem nacionalmente. Além disso, dados estatísticos podem ser intencionalmente deturpados ou interpretados de acordo com determinados interesses ou forma de análise. Esses dados são sedutores e amplamente utilizados por veículos da mídia para evidenciar o interesse hegemônico de cada momento.

Nisso tudo as especificidades das interações humanas envolvidas no ensino e na aprendizagem são apagadas. A prática do ensino é reelaborada e reduzida a seguir regras geradas de modo exógeno e a atingir metas. Isso gera a 44

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lógica que permite substituir uma mão de obra e culturas institucionais especializadas por culturas e sistemas de gestão genéricos que visam a obter desempenho, melhoria da qualidade e eficácia (BALL, 2004, p.1117).

Dessa forma, o ensino dos conteúdos curriculares fica aprisionado no desenvolvimento de competências, com o foco na necessidade de os estudantes atingirem bons resultados nas avaliações. Aqui podemos ver o papel do professor reduzido à execução do trabalho. A importância do professor como intelectual se reduz dentro dessa perspectiva, e por outro lado, a responsabilização pelo mau desempenho dos alunos cresce. Assim, praticamente todos os países periféricos passaram a receber propostas de uma educação voltada para a competitividade, a performatividade, o alcance de resultados em avaliações de larga escala. Políticas educacionais gestadas e aplicadas por agências da ONU, Banco Mundial e outros organismos que ditaram, a partir de então, os rumos da educação no mundo. A perspectiva objetiva das reformas educacionais se materializa também em outra face: a subjetividade dos trabalhadores da educação. A identidade do professor, como ele concebe seu trabalho, o que ele entende por “ser professor”; são as dimensões subjetivas que também são reformadas (BALL, 2002). Vaz e Favaro (2010) apontam que a desvalorização do trabalho docente é uma das características da educação em uma sociedade capitalista. Nesta sociedade, a educação ou formação é voltada predominantemente para o mercado de trabalho, para as necessidades do mercado para a manutenção do sistema econômico e social. A consequência disto será uma formação esvaziada tanto dos estudantes, quanto dos professores.

Isso afeta também o professor e seu ato de ensinar. As responsabilidades que hoje são atribuídas ao professor ultrapassam o âmbito pedagógico, indo além do ensinar. Ele enfrenta questões político-sociais, tendo que se envolver em questões familiares, lidar com a drogadição, a violência e outros problemas que permeiam o espaço escolar. Deixa assim de ser um profissional cujo objetivo é ensinar, esvaziando-se de sua real função e perdendo- se em meio a situações que ultrapassam suas possibilidades de atuação. As próprias políticas educacionais apostam no protagonismo individual do professor, para solucionar os problemas escolares (VAZ; FAVARO, 2010, p. 512).

Dessa maneira, o professor se compromete com atividades distantes do ensino, da relação entre conteúdo e aprendizagem, para se ocupar de tarefas que não são essenciais nas atribuições do docente. É o que Saviani 2015 chama de fundamental e acessório no ato de ensinar. As escolas têm demonstrado uma confusão entre esses dois aspectos. Parecem privilegiar aspectos secundários, como semanas comemorativas, ensaios, entre outros. Deslocam a identidade do professor para aquele que resolve os problemas das mais diversas ordens, aquele que deve salvar o aluno, a escola, a comunidade para se tornar herói. No próximo título será abordada como a face subjetiva do trabalho do professor se encontra com o aspecto da objetividade do trabalho na sociedade do capital.

3. Trabalho performático e subjetividade docente

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A reforma gerencialista na educação ataca as subjetividades, criando um novo imaginário: os trabalhadores passam a internalizar a lógica do mercado, da gestão e da performatividade (HYPOLITO, 2011). Cria posições de sujeitos, disciplina e define novos valores para que a comunidade escolar se comporte para o bom desempenho das políticas educativas. Os trabalhadores funcionam sob a ameaça da avaliação do desempenho, sob a gestão da eficácia e eficiência, encorajados a empreenderem em suas funções (sob os moldes da cultura empresarial). Os discursos dominantes passam a constituir um modo de ser e fazer, defendendo a responsabilização ou “auto responsabilidade” pelo desempenho no trabalho, na formação profissional continuada, fabricando colaboradores empreendedores, assim como no discurso dos gestores das empresas privadas. Hypolito (2011) destaca que uma das consequências visíveis é a crescente precarização, seja por meio das formas contratuais flexíveis, salários achatados ou a intensificação deste com o professor assumindo cada vez mais atribuições, sob o pretexto da introdução de novas tecnologias no trabalho docente. Os professores são chamados a contribuírem com as avaliações no sentido de alcançar bons resultados na competição com outras escolas (HYPOLITO, 2011). Precisam atuar em programas impostos pela gestão, a qual não considera o professor como parte da implantação, mas lança mão de seu trabalho para a manutenção dos investimentos. Pois caso “a equipe” não alcance as metas e resultados, a escola sofre sanções e retirada de recompensas. Para Ball (2005) o professor perde a capacidade de falar sobre sua prática, senão em termos de desempenho. O pagamento é relacionado ao desempenho, com constantes avaliações de diferentes meios, por diferentes critérios, obrigando o profissional a estar sempre prestando contas do que faz. A insegurança na busca eterna por aperfeiçoamento sem saber se está atendendo às expectativas se fazem presentes. No entanto, as tecnologias políticas, da forma como são utilizadas, acabam por serem atraentes em substituição à educação centralizada no Estado.

A performatividade é uma tecnologia, uma cultura e um método de regulamentação que emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de controle, atrito e mudança. Os desempenhos de sujeitos individuais ou de organizações servem de parâmetros de produtividade ou de resultado, ou servem ainda como demonstrações de ‘qualidade’ ou ‘momentos’ de promoção ou inspeção. Eles significam ou representam merecimento, qualidade ou valor de um indivíduo ou organização dentro de uma área de julgamento (...) (BALL, 2005, p.543, destaques no original).

A reforma gerencial representa também a reforma da subjetividade e das relações dos trabalhadores. “A reforma não muda apenas o que fazemos. Ela também procura mudar aquilo que somos” (BALL, 2005, p. 546). Em cada mudança no trabalho, apresentam-se também novos valores, novos papéis e sistemas éticos.

A eficácia prevalece sobre a ética; a ordem, sobre a ambivalência. Essa mudança na consciência e na identidade do professor apoia-se e se ramifica pela introdução, na preparação do professor, de formas novas de treinamento não intelectualizado, baseado na competência (BALL, 2005, p. 548).

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As competências são pilares do percurso formativo do professor pós reforma da era gerencial: ensinar se reduz a uma gama de competências desejáveis. A criticidade e a capacidade de reflexão não são necessárias, basta aprender a técnica para ensinar. Os mecanismos da performatividade modelam o trabalhador para corresponder às expectativas externas para um trabalho que já foi pensado e planejado; cabe a ele, executar. A emergência do conceito de competência ocorre após as reestruturações do sistema produtivo nos países capitalistas em meados dos anos de 1980 e vincula-se à necessidade de reforçar a educação para fins mercadológicos. Ramos (2006) diz que o construtivismo (teoria pedagógica contemporânea) serve como mediador da noção de competência no ambiente escolar, pois ele representa o discurso educacional vigente, negligenciando as determinações histórico- culturais da educação. Essa teoria pedagógica se desenvolveu nos anos 1980, como um “canto da sereia”, iludindo os professores a se alinharem nessa perspectiva que parecia, pelo menos sem uma reflexão mais aprofundada, a salvação da educação. No entanto, o construtivismo apoia-se em uma visão liberal de ser, de mundo e de educação. Os discursos pós-reformas confirmados por relatórios de organismos internacionais, tais como UNESCO e Banco Mundial, defendem a importância do preparo de um novo homem para atuar na sociedade, um novo perfil de trabalhador (SHIROMA; TURMINA, 2011). Propagam as características de um trabalhador ideal para a reprodução do capital frente às suas mudanças. Assim, a educação entra nesse projeto para a “formação” desse sujeito. Parente (2015) diz que a identidade do professor brasileiro sofre golpes em função da lógica de mercado, criando um clima de disputa de poder e instabilidade, comprometendo o trabalho pedagógico que tenta individualmente, disfarçar dificuldades e realçar aspectos positivos da escola. Todo esse cenário estrategicamente preparado parece ter como objetivos qualificar mão de obra para atender às demandas do mercado e reduzir investimentos públicos na educação, sob o argumento de que os “pacotes prontos” ou assessorias privadas poderiam ser a saída para as necessidades da educação brasileira. Em meio a esse contexto, estão os professores cada vez mais desvalorizados, precarizados e sem grandes perspectivas de mudança.

As avaliações educacionais em larga escala possuem um viés performático de organização e interpretação de seus dados, sendo a redução de toda uma realidade complexa a um índice numérico, a expressão máxima desta opção. Embora a formação de rankings não seja assumida como objetivo último dessas avaliações, as comparações inevitavelmente ocorrem, estabelecendo um estado explícito ou implícito de concorrência e algumas de suas posturas peculiares, como, por exemplo, o uso de subterfúgios para a conquista de um melhor posicionamento nas tabelas comparativas, bem como a desistência frente a uma atestada, e então inegável, inferioridade (DAMETO; ESQUINSANI, 2015, p. 620).

Em nosso entendimento, “as avaliações que servem para ranquear, classificar, premiar ou punir e tornar escolas visíveis a partir da ótica mercadológica não fazem parte de nossa defesa como perspectiva de identificar e construir a qualidade do sistema público de educação” (AMARO, 2013, p. 40). Corroboramos a ideia de Amaro (2013) quando este autor conclui que “todas as escolas públicas devem ser visíveis, tanto nos aspectos que atendam a ideia de qualidade, como também, nas dificuldades que enfrentam em seu cotidiano” (p.40). 47

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Sabemos que essas avaliações não representam o que o discurso que as legitima defende. Elas aparecem como uma forma de restringir investimentos públicos, selecionar as instituições que receberão as verbas, já que não se pretende distribuir investimentos a todas as escolas. De acordo com Vaz e Favaro (2010) a afirmação do sistema de produção capitalista e as mudanças nas políticas educacionais afetaram o trabalho do professor, de modo que as responsabilidades atribuídas ao docente, atualmente, incluem questões que não fazem parte de sua função central, o que leva a um esvaziamento e estranhamento de seu trabalho. O professor, então, estranha a si mesmo, ao seu trabalho e aos colegas. Esse estranhamento é trabalho alienado, que não contribui para a humanização do homem, mas para o seu distanciamento e desistência. Ao se desdobrar em tarefas que não são ensinar, o professor pode se perder com relação à sua identidade profissional. Diversos segmentos da sociedade responsabilizam os professores por atividades relacionadas aos cuidados de saúde, higiene, prevenção de problemas familiares das crianças. Absorvendo tantas demandas externas, qual será então o papel do professor? Será que o próprio professor tem consciência de seu papel? A intensificação do trabalho docente, pode ser compreendida, de acordo com Garcia e Anadon (2009), como um processo de ampliação de responsabilidades e atribuições dos professores. Além disso, cobranças pelo desenvolvimento de habilidades, no sentido de se “auto reformarem” para atender às novas expectativas de formação dos alunos para as exigências do mercado de trabalho. Todas essas atribuições, dentre elas administrativas, de gestão (caso sejam requisitados) devem ser realizadas dentro do mesmo tempo de trabalho para o qual são destinadas as atividades pedagógicas. O novo modelo de gestão da educação se beneficia muito desse professor “mil e uma utilidades”, pois ele coopera com o Estado evitando “gastos” ou investimentos necessários, por meio de sua contribuição em outras atividades que não são atribuições da docência. Pode-se perceber isso quando a comunidade escolar se organiza para mutirões de limpeza e reparos da estrutura física da escola, por exemplo. Oliveira (2004) explica que, as reformas educacionais e todo o arsenal que a acompanha, empenham-se de modo a retirar a autonomia e a força coletiva dos professores, além de contribuir fortemente para a desqualificação e a desvalorização da categoria.

Considerações finais

A avaliação do trabalho ou do desempenho, associada ao alcance de metas, própria de um dispositivo de gestão tipicamente empresarial: a gestão por objetivos, contamina o ambiente de trabalho com uma competição generalizada, levando a um estranhamento de si e do colega no desenvolvimento do trabalho. As avaliações constantes são mais uma maneira de exercer controle sobre o trabalhador, intensificando a carga de trabalho. Somando-se a isso, há ainda sentimento de culpa e injustiça, de estar sempre defasado. Essa cobrança do desempenho parece ter mesmo a intenção do controle, pois sabemos que o essencial do trabalho não é passível de quantificações.

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Tura (2012) afirma que o Estado necessitou elaborar um discurso hegemônico para que o seu projeto político do gerencialismo fosse aceito, para isso, atuou na formação de novas subjetividades, afinadas com o seu novo papel. A educação passou a ser um campo de negócios, as políticas educacionais tornaram-se parte das políticas econômicas e o trabalhador, moldado às exigências do mercado. O trabalho docente passa a ser orientado com base na busca por “excelência” que se traduz em resultados quantitativos, esvaziando as possibilidades de criatividade, autonomia do professor ou sensação de sentido no trabalho. Sousa (2017) realizou uma análise de trinta editoriais dos principais jornais impressos no Brasil sobre a relação entre o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e a gestão escolar entre os anos de 2007 e 2016. A análise dos editoriais levou a perceber a opinião da mídia sobre gestão escolar: em todas as publicações, defendiam que a educação no país é de má qualidade devido à ineficiência do Estado para a gestão pública e o baixo desempenho dos estudantes. Sousa (2017) nos diz que os jornais apontaram como solução para o problema da educação as práticas do novo gerencialismo: gestão do desempenho, da eficácia, currículo padronizado, treinamento dos profissionais e avaliações para manejar a remuneração de acordo com os resultados. Essa “educação de qualidade” defendida pela mídia leva professores ao distanciamento de sua identidade, à manipulação de sua subjetividade, ao esgotamento no trabalho. Serve exclusivamente à manutenção dos sistemas econômico e políticos, pois não interessa ao mercado a transformação social por meio da formação integral do ser humano. Os contratos de governos com os dispositivos de regulação internacionais, sob uma política de “toma lá dá cá”, tem colocado os trabalhadores da educação submetidos à formas de trabalho alienantes. Os professores têm assumido funções e responsabilidades cada vez maiores: são vistos como os principais responsáveis pelo sucesso ou fracasso do alunado. Alunado este, que precisa ser preparado, “profissionalizado” para vender sua força de trabalho aos capitalistas. O trabalho docente, nessa perspectiva, se encarrega de fornecer ao mercado, indivíduos disciplinados, eficientes, empreendedores e tudo o mais que for valorizado para uma sociedade neoliberal. A educação como forma de autorrealização e emancipação humana só será alcançada se o sistema do capital for superado. Não há possibilidade de transformação nesse modo de produção posto, em que trabalho e capital estão em uma relação de subjugação. A sociedade e a educação que queremos, enquanto trabalhadores docentes passa pela emancipação política e subjetiva dos sujeitos. A superação das formas alienantes de trabalho, uma escola progressista e humana, capaz de formar o sujeito omnilateral somente terá condições de aparecer em uma sociedade que não seja capitalista.

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Perfis de Adoecimento mental dos servidores públicos federais assistidos pelo SIASS IFGoiano/IFG

Mental Illness profiles of the federal public workers assisted by SIASS IFGoiano /IFG Perfiles de enfermedad mental de los funcionarios públicos federales asistidos por el SIASS IFGoiano / IFG

Thais Camargo Oliveira Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás [email protected]

Resumo Este artigo avalia a prevalência de transtornos mentais e comportamentais nas instituições públicas federais Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano (IFGoiano), ambas assistidas pelo Subsistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor/SIASS IFGoiano/IFG. Busca-se compreender os principais perfis dos servidores adoecidos valendo-se de estudo do tipo descritivo-exploratório transversal, com a proposta de analisar os dados sobre afastamentos por motivo de problemas de saúde mental do sistema utilizado para registro e controle das perícias médicas – SIAPENET, dos anos de 2016 e 2017. Foram concedidos 1136 (mil cento e trinta e seis) afastamentos por licença saúde aos servidores dos dois IFs nesse período, sendo que desses, 269 (duzentos e sessenta e nove) foram motivados por transtornos mentais e comportamentais. Observou-se como perfil principal de adoecimento por motivos psicológicos as mulheres com idade entre 30 e 50 anos. Não houve diferenças significativas entre os cargos de docente e técnico-administrativo. O principal motivo de afastamento dentro do universo da saúde mental são os transtornos depressivos.

Palavras-chave: Saúde mental do Trabalhador, Servidor Público Federal, SIASS IFGoiano/IFG.

Abstract This article evaluates the prevalence of mental and behavioral disorders in the federal public institutions Federal Institute of Education, Science and Technology of Goiás (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás-IFG) and Federal Institute of Education, Science and Technology Goiano (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano-IFGoiano), both assisted by the Integrated Server Perfis de Adoecimento mental dos servidores públicos Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 federais assistidos pelo SIASS IFGoiano/IFG

Health Attendance Subsystem (Subsistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor - SIASS IFGoiano/IFG). The aim of this study is to understand the main profiles of the patients through the descriptive-exploratory cross-sectional study, with the proposal of analyzing the data on medical leaves by mental health problems from the system used to register and control medical examinations - SIAPENET, of 2016 and 2017. A total of 1.136 (one thousand, one hundred and thirty-six) medical leaves were granted to workers of the two FIs during this period, being 269 (two hundred and sixty nine) motivated by mental and behavioral disorders. The main profile observed for psychological reasons was that of women aged between 30 and 50 years. There were no significant differences between the positions of teacher and administrative technician. The main reason for medical leaves within the universe of mental health are depressive disorders.

Keywords: Mental Health of the Worker, Federal Public Workers, Siass IFGoiano/IFG.

Resumen En este artículo se evalúa la prevalencia de trastornos mentales y comportamentales en las instituciones públicas federales Instituto Federal de Educación, Ciencia y Tecnología de Goiás (IFG) e Instituto Federal de Educación, Ciencia y Tecnología Goiano (IFGO), ambas asistidas por el Subsistema Integrado de Atención a la Salud del Servidor - SIASS IFGoiano/IFG. Se busca comprender los principales perfiles de los servidores enfermos con el estudio del tipo descriptivo-exploratorio transversal, con la propuesta de analizar los datos sobre alejamientos por motivo de problemas de salud mental, desde el sistema utilizado para registro y control de las pericias médicas - SIAPENET, de los años de 2016 y 2017. Se concedieron 1136 (mil ciento treinta y seis) alejamientos por licencia de salud a los servidores de los dos IF en ese período, de los cuales 269 (doscientos sesenta y nueve) fueron motivados por trastornos mentales y comportamentales. Se observó como perfil principal de enfermedad por motivos psicológicos a las mujeres, con edad entre 30 y 50 años. No hubo diferencias significativas entre los cargos de docente y técnico- administrativo. El principal motivo de alejamiento dentro del universo de la salud mental son los trastornos depresivos.

Palabras clave: Salud Mental del Trabajador, Funcionarios Públicos Federales, SIASS IFGoiano/IFG.

Introdução Mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de depressão, de acordo com dados de 2015 da Organização Mundial de Saúde. No Brasil, em 2003, cerca de 3% da população necessitava de cuidados contínuos em saúde mental, acrescido de 9% da população que utilizavam os atendimentos psicológicos e psiquiátricos eventualmente, totalizando 20 milhões de pessoas (BRASIL, 2001). O impacto desses números se mostra na economia, nos índices de violência, suicídio, negligência familiar, produtividade e no futuro do país.

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As causas para o adoecimento mental são inúmeras e multifacetadas. Incluem questões sociais, econômicas, de relacionamento familiar, de clima organizacional, de história de vida, além de genéticas e fisiológicas. Mas não há como negar um nexo causal importante entre trabalho e adoecimento mental. Essa relação vem sendo discutida e estudada por diversos autores (DEJOURS, 1993; VIEIRA, 2009; SELIGMANN-SILVA, 2011; BORGES 2010). No âmbito do serviço público federal, a criação de uma Política de Atenção à Saúde do Servidor começou a ser debatida em 2005, resultando na instituição do Subsistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor Público Federal (SIASS), através do decreto nº 6.833, de 29 de abril de 2009 (BRASIL, 2009), cuja função é operacionalizar a Política de Atenção à Saúde e Segurança do Trabalho do Servidor Público Federal (PASS), através de programas nas áreas de assistência à saúde, perícia oficial, promoção, prevenção, vigilância e acompanhamento da saúde dos servidores públicos federais. Foram criadas 155 (cento e cinquenta e cinco) unidades do SIASS em todo o país. Dentre elas, a unidade SIASS IFGoiano/IFG, em funcionamento desde 2015. Para que seja possível operacionalizar a PASS, no que cabe à saúde mental, faz-se necessário conhecer o que tem adoecido e quem tem adoecido nos Institutos assistidos pelo SIASS IFGoiano/IFG. E a informação pode ser encontrada no próprio sistema de registro das informações e perícias do SIASS – SIAPE-Saúde. A presente pesquisa se propõe a sistematizar e organizar esses dados, de forma que possam ser visualizados, compreendidos e utilizados para a proposição de ações de promoção, prevenção e assistência em saúde mental.

Metodologia

A metodologia escolhida para levantamento e análise dos dados foi a abordagem quantitativa da incidência de afastamentos do trabalho motivados por transtornos mentais e comportamentais dos servidores dos dois Institutos Federais atendidos pelo SIASS IFGoiano/Goiás, no período de janeiro de

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2016 a dezembro de 2017. A pesquisa quantitativa geralmente procura seguir com rigor um plano previamente estabelecido, buscando enumerar e medir eventos, baseando-se em instrumental estatístico para a análise dos dados. Seu objetivo principal é evidenciar dados, indicadores e tendências observáveis. (MINAYO; SANCHES, 1993). Para tanto, foram obtidos dados no sistema de registro e controle das perícias médicas dos SIASS, gerenciado pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, o SIAPE-Saúde.

Resultados

No período pesquisado, entre 01 de janeiro de 2016 e 31 de dezembro de 2017, 855 servidores foram afastados do trabalho por motivo de saúde. Destes, 115 foram afastados por problemas de saúde mental, representando 20% dos afastamentos, conforme gráfico abaixo.

Servidores Afastados em 2017

0% 20%

80%

Servidores Afastados Servidores Afastados CID F

Ao olharmos separadamente para cada uma das duas instituições acompanhadas pelo SIASS IFGoiano/IFG, verificamos que houve crescimento no número de servidores afastados entre os anos de 2016 e 2017. A diferença de servidores entre as duas Instituições pode ser explicada ao relacionarmos esses dados com o número total de servidores ativos de cada

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uma. O IFG tem, em seu quadro, 2.538 servidores, enquanto o IFGoiano tem 1.747.

Afastamentos CID F 76 80 70 60 60 50 39 40 29 30 20 10 0 IFG IFGoiano

2016 2017

Mesmo levando em consideração a diferença entre a quantidade de servidores ativos dos dois Institutos, podemos ver, no gráfico abaixo, que o IFG teve, em 2017, mais servidores afastados por motivos de adoecimento psicológico do que o IFGoiano.

RELAÇÃO ENTRE O NÚMERO TOTAL DE SERVIDORES E DE AFASTAMENTOS POR CID F

IFGoianoIFG IFGoiano Servidores IFG Total de Afastados servidores 34% 59% 0% 0%

IFGoianoIFGTo Serv Afast tal de 66%

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Buscando identificar perfis de servidores adoecidos por motivos psicológicos, comparamos os dados dos afastamentos utilizando diferentes variáveis. A primeira é o sexo. O IFG tem 1298 servidores e 1240 servidoras, sendo bastante equilibrado quanto ao sexo dos servidores. Entretanto, as mulheres adoeceram mais do que os homens durante os dois anos pesquisados. No IFGoiano há uma maior diferença entre a quantidade de servidores (962) e de servidoras (785), e o número de servidoras afastadas é ainda maior do que os servidores.

Afastamentos CID F por sexo 50 40 41 30 36 35 32 20 24 10 16 13 7 0 IFGoiano IFGoiano IFG Mulheres IFG Homens Mulheres Homens

2016 2017

Ao olharmos para a idade, chama a atenção a diferença de número de servidores afastados nos três períodos de vida pesquisados. Os servidores e servidoras que tem entre 31 e 50 anos se afastam muito mais do que os colegas mais jovens (18 a 30 anos) e mais velhos (50 anos e acima).

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Afastamentos por Faixa Etária 120

100 107

80 87 60

40 38 20 30 30 25 0 18 a 30 anos 31 a 50 anos a partir de 50 anos

2016 2017

Os Institutos possuem em seu quadro de servidores duas carreiras diferentes. Os Docentes e os técnicos em educação. A diferença entre o número de servidores docentes e técnicos afastados por CID F em 2017 foi pequena, indicando que, apesar da diferença de atribuições e responsabilidades entre as duas carreiras, os servidores estão, da mesma forma, expostos ao risco de adoecimento mental. Entretanto, ao separarmos os técnicos entre aqueles de cargo de nível médio e de nível superior, encontramos uma diferença significativa, evidenciando os técnicos de nível médio como uma carreira com mais adoecimento mental em 2017.

Afastamentos por Cargo 50 40 10 30 34 33 20 10 0 Docente Técnico nível médio e superior

Técnico Médio Tecnico Superior

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Com relação aos motivos, dentre as muitas síndromes psicológicas que acometem os trabalhadores, identificamos, como principal motivo de afastamento em 2017, as síndromes depressivas com 32% do total, seguidas das síndromes maníacas, ansiosas e dos problemas mais diretamente relacionados ao trabalho, como transtorno de adaptação e stress.

Síndromes que motivaram os afastamentos em 2017

4%2% 16%2%3%16% 17%2%6%32%

Síndromes ansiosas Síndromes depressivas Síndrome mista de ansiedade e depressão Síndromes maníacas

Discussão e Considerações Finais

Dentre os 22 possíveis tipos de adoecimento previstos pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID 10), os Transtornos Mentais e Comportamentais (Representados, no manual do CID 10, pelo código CID F) foram responsáveis por 20% da quantidade de servidores adoecidos e afastados do trabalho nos Institutos Federais Goiano e de Goiás no período entre 2016 e 2017. Trata-se de um número expressivo e que merece atenção, assim como o fato de os afastamentos por CID F terem aumentado, quando comparados os dois anos analisados. Demyttenaere et al. (2004) indicam que os transtornos mentais estão entre as principais causas de perdas de dias de trabalho. Os casos leves causam

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perda de quatro dias de trabalho por ano e os graves, de cerca de 200 dias de trabalho por ano, em média. Mas o impacto causado por esses adoecimentos não é mensurável, pois vai além dos dias de afastamento e dos índices de aposentadorias por invalidez. Impacta nas relações de trabalho, na produtividade, na motivação, começando antes dos afastamentos e indo muito além do retorno ao trabalho. Observa-se, nos resultados apresentados acima, que os servidores do IFG adoeceram mais por motivos psicológicos do que os servidores do IFGoiano, mesmo considerando a diferença no número total de servidores ativos entre os dois Institutos. Seria necessária uma avaliação mais profunda, envolvendo a análise de documentos relativos à Gestão de Pessoas, do clima organizacional, para buscar mais elementos que expliquem a diferença. As mulheres se afastaram mais por diagnósticos dentro do espectro do CID F do que os homens. Lenon (1995) aponta como explicação para os sintomas de angústia psicológica e desordens depressivas serem mais recorrentes em mulheres a sobrecarga de trabalho da mulher com outras jornadas de trabalho, como as atividades domésticas e os cuidados com os filhos. Araújo, Pinho e Almeida (2005) observam que a mulher, mesmo após sua inserção no mercado de trabalho, permanece como a principal responsável por planejar e executar as atividades domésticas, sem receber ajuda substancial dos companheiros e filhos. Faz-se necessário acrescentar também a informação de que as mulheres estão mais suscetíveis a casos de assédio moral e sexual no ambiente de trabalho, além de terem de conviver com as dificuldades de uma cultura marcadamente machista, característica do estado de Goiás, que não proporciona a mesma voz e autonomia para homens e mulheres, sobretudo nas cidades do interior. A combinação de tantos fatores tende a levar quadros de ansiedade e depressão, que estão entre as principais causas de afastamentos no SIASS IFGoiano/IFG. Políticas que busquem a igualdade de gênero no ambiente de trabalho, com discussões sobre o tema, divulgação de informações, incentivo às mulheres para que assumam também cargos de decisão e de chefia, além do combate incansável do assédio moral e sexual em todas as instâncias, através de informação, treinamento, investigação e punição, são ações que tendem a

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trazer efeitos positivos para a promoção da saúde mental em todos os trabalhadores, sobretudo das mulheres. Os dois Institutos possuem, em diferentes níveis, ações nesse sentido, mas há potencial para ampliar os esforços e produzir melhorias nas duas Instituições. Outro dado importante para identificação do perfil de servidores que têm adoecido por motivos psicológicos no SIASS IFGoiano/IFG é a idade. A grande maioria dos servidores adoecidos está na faixa etária de 31 a 50 anos. Esse período costuma ser caracterizado pelo aumento das responsabilidades tanto no trabalho quanto na vida social e das pressões sociais, dos cuidados com a família, da cobrança pela realização profissional, pela construção de um patrimônio, podendo acarretar mais casos de depressão e ansiedade. Com relação aos motivos de afastamento por CID F, esta pesquisa confirma dados já indicados em diversas outras pesquisas (ANDRADE; VIANA; SILVEIRA, 2006; CAVALHEIRO; TOLFO, 2011; SCHLINDWEIN; MORAIS, 2014; OLIVEIRA, BALDAÇARA E MAIA, 2015) além de informações do Ministério da Saúde, todos apresentando as síndromes depressivas como principal causa de adoecimento mental no mundo, seguido pelas síndromes maníacas e ansiosas. Trata-se de uma tendência mundial, multicausal, mas relacionada sobretudo ao modo de vida da sociedade atual, à cultura, ao excesso de estímulos e informações e também às formas de organização do trabalho. Não há evidências que apontem para o trabalho como única causa de adoecimento, a não ser em casos muito específicos. São fatores a serem considerados ao avaliar o adoecimento as relações sociais, familiares, a história de vida, o repertório criado para lidar com frustrações e expectativas, carga genética, além das relações de trabalho, da organização do trabalho, da motivação, valorização, atribuição de sentido às atividades realizadas, entre outros. Os desdobramentos do adoecimento, entretanto, são facilmente observados no ambiente de trabalho. Não apenas no absenteísmo, mas no presenteísmo, nas dificuldades das relações de trabalho, na piora do clima organizacional, na queda da produtividade e motivação. Nunes e Lins (2009, p.56) chamam a atenção para a especificidade da carreira do serviço público brasileiro, ao afirmarem que

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No Brasil, o servidor público, apesar de possuir certa estabilidade no trabalho, com menor risco de demissão, está sujeito a outros determinantes que caracterizam a precarização do seu trabalho, como a ameaça constante de privatização das empresas públicas, a degradação das suas condições de trabalho, a responsabilização pelas deficiências dos serviços, a instabilidade devido a mudanças políticas, as ações descontinuadas, o acúmulo de funções, além do estereotipo de morosidade, aspectos que podem afetar a saúde do trabalhador.

Transtorno de adaptação, depressão, ansiedade, podem estar relacionados também a dificuldade de integração, sensação de não pertencimento, problemas de adaptação ao clima, à cultura, ruptura das relações sociais preexistentes, sobretudo no caso de servidores que se mudaram para cidades do interior de Goiás especificamente para assumirem seus cargos em um dos 25 campus dos IFs espalhados por todo o Estado de Goiás. Cabe aos Institutos, entretanto, independentemente de serem causa ou não do adoecimento, atuarem como potencializadores do adoecimento ou como fatores de proteção da saúde mental dos seus servidores. Dar mais atenção às relações de trabalho, preparar gestores para gerir pessoas e não apenas trabalho, para reconhecer talentos e competências, para motivar e criar sinergia. Políticas de reconhecimento e valorização do trabalho realizado, regras claras e efetivas para nortear políticas de gestão de pessoas, remoções e redistribuições, canais de denúncia e investigação de assédio moral e sexual. Divulgar posição firme e clara contra assédios, preconceitos raciais, sexuais ou de qualquer tipo.

Referências

ANDRADE, L.H.S.G., VIANA, M.C e SILVEIRA, C.M. Epidemiologia dos transtornos psiquiátricos na mulher. Revista de Psiquiatria Clínica, Santiago, v.33, nº2, pg.43-54, 2006.

ARAÚJO, T.M., PINHO, P. de S e ALMEIDA, M. M. G. Prevalência de transtornos mentais comuns em mulheres e sua relação com as características sociodemográficas e o trabalho doméstico. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, 5(3), 337-348, 2005.

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BRASIL. Doenças relacionadas ao trabalho: Manual de procedimentos para os serviços de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2001.

BRASIL. Decreto nº6.833, de 29 de abril de 2009. Institui o Subsistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor Público Federal – SIASS e o Comitê Gestor de Atenção à Saúde do Servidor. Diário Oficial – República Federativa do Brasil, Brasília, DF.

BORGES, L.H. Depressão. In GLINA, D.M.R.; ROCHA, L.E. (ed.) Saúde mental no trabalho: da teoria à prática. São Paulo Roca, 2010.

CAVALHEIRO, G., TOLFO, S.R. Trabalho e Depressão: um estudo com profissionais afastados do ambiente laboral. Psico-USF, Itatiba, v.16, nº2, pg.241-249, 2011.

DEJOURS, C. Uma nova visão do sofrimento humano nas organizações. O indivíduo na organização; dimensões esquecidas. São Paulo, Atlas, 1993.

DEMYTTENAERE et al. Prevalence, severity, and unmet need for treatment of mental disorders in the World Health. Organization World Mental Health Surveys. JAMA. 2004 Jun 2:291 (21):2581-90. LENON, M. C. Work conditions as explanations for the relation between socioeconômic status, gender and psychological disorders. Epidemiologic Reviews, 17(1), 120-127, 1995.

MINAYO, M.C.S; SANCHES, O. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? Caderno de Saúde Pública. 239-262, 1993.

NUNES, A.V.L. e LINS, S.L.B. Servidores públicos federais: uma análise do prazer e sofrimento no trabalho. Psicologia organização e trabalho. Brasília, V.9, n1, p.51-67, 2009.

OLIVEIRA, L.A.; BALDAÇARA, L.R.; MAIA, M.Z.B. Afastamentos por transtornos mentais entre servidores públicos federais no Tocantins. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, vol 40, nº 131, pg.156-169, 2015. Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho. São Paulo, Brasil.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Depressão e outros transtornos mentais comuns: estimativas globais de saúde. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2015.

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SCHLINDWEIN, V.L.C.; MORAIS, P.R. Prevalência de Transtornos Mentais e Comportamentais nas Instituições Públicas Federais de Rondônia. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho. Vol. 17 nº1 São Paulo, Jun. 2014.

SELIGMANN-SILVA, E. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 2011.

VIEIRA, C.E.C. O nexo causal entre transtorno de estresse pós-traumático e trabalho: controvérsias acerca do laudo de uma perícia judicial. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 34(120), 150-162, 2009.

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A EPISTEMOLOGIA DA PRÁXIS COMO BASE DO ENSINO CRIATIVO, COLABORATIVO E INOVADOR1

The epistemology of praxis as a basis of creative, collaborative and innovative teaching La epistemología de la práctica como base de la enseñanza creativa, colaborativa e innovadora

Solange Martins Oliveira Magalhães Universidade Federal de Goiás (UFG) [email protected]

Resumo A busca pelo ensino criativo, colaborativo e inovador tem sido uma demanda constante em cursos de formação de professores. No caso específico da Pedagogia, essa demanda faz parte da constituição do ser integral, o que envolve a consolidação de uma sólida base teórica associada à formação omnilateral. Os pressupostos dessa formação são sustentados pela epistemologia da práxis, a qual enfatiza concepções críticas, plurais, colaborativas, criativas, inovadoras, com posicionamento político e ideológico contra- hegemônico. A partir da epistemologia da práxis, cuja base teórica é o materialismo histórico e dialético, apresentamos os resultados parciais de uma pesquisa que tem como objetivo principal analisar e compreender as experiências formativas associadas à práxis e à emancipação. Os resultados referem-se as estratégias desenvolvidas no curso de Pedagogia, associadas à metodologia ativa de ensino. Identificou- se a importância da relação e interdependência entre afetividade e inteligência como parte constitutiva da práxis pedagógica na formação docente. Destacaram-se, ainda, aspectos que podem ser relacionados ao processo de ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador, sobretudo por melhorar os vínculos

1 Agências Financiadoras CNPq/FAPEG. A epistemologia da práxis como base do Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 ensino criativo, colaborativo e inovador

estabelecidos entre sujeitos-sujeitos, sujeitos-objetos de conhecimento, aspecto essencial à formação integral e humanizadora.

Palavras-chave: Ensino criativo; Ensino inovador; Práxis pedagógica.

Abstract The search for creative, collaborative and innovative teaching has been a constant demand in teacher training courses. In the specific case of Pedagogy, this demand is part of the constitution of the integral being, which involves the consolidation of a solid theoretical base, associated with omnilateral formation. The assumptions of this formation are supported by the epistemology of praxis, and emphasize critical, plural, collaborative, creative, innovative conceptions, with a political and ideological counter-hegemonic movement. From the epistemology of praxis, whose theoretical basis is historical and dialectical materialism, we present the partial results of a research whose main objective is to analyze and understand the formative experiences associated with praxis and emancipation. The results report strategies associated with active teaching methodology in the Pedagogy course in 2018. The importance of the relationship and interdependence between affectivity and intelligence as part of the pedagogical praxis in teacher education was identified. It was also highlighted aspects that can be related to the process of teaching-learning creative, collaborative and innovative, especially for improving the established links between subject- subjects, subjects-objects of knowledge, essential aspect to integral and humanizing formation.

Keywords: Creative teaching; Innovative teaching; Pedagogical praxis.

Resumen La búsqueda por la enseñanza creativa, colaborativa e innovadora ha sido una demanda constante en cursos de formación de profesores. En el caso específico de la Pedagogía, esa demanda forma parte de la constitución del ser integral, lo que implica la consolidación de una sólida base teórica, asociada a la formación omnilateral. Los presupuestos de esta formación son sostenidos por la epistemología de la praxis, y enfatiza concepciones críticas, plurales, colaborativas, creativas, innovadoras, con posicionamiento político contra hegemónico. A partir de la epistemología de la praxis, cuya base teórica es el materialismo histórico y dialéctico, presentamos los resultados parciales de una investigación que tiene como objetivo principal analizar y comprender las experiencias formativas asociadas a la praxis ya y a la emancipación. Los resultados relatan estrategias asociadas a la metodología activa de enseñanza, en el curso de Pedagogía, en 2018. Se identificó la importancia de la relación e interdependencia entre el afecto y la inteligencia, como parte de la praxis pedagógica en la formación docente. Se destacaron, además, aspectos que pueden ser relacionados al proceso de enseñanza-aprendizaje creativo, colaborativo e innovador, sobre todo por mejorar los vínculos establecidos entre sujetos - sujetos, sujetos-objetos de conocimiento, aspecto esencial a la formación integral y humanizadora.

Palabras clave: Enseñanza creativa; Enseñanza innovadora; Prácticas pedagógicas.

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A epistemologia da práxis como base do Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 ensino criativo, colaborativo e inovador

Introdução

A composição de um perfil de ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador tem sido bastante discutida no Brasil como um aspecto relevante na inovação dos cursos de formação. Embora já tenham sido descritas várias metodologias que ajudam a implementar novas estratégias e instrumentos na formação, ainda não se pode afirmar que tenham alcançado os resultados esperados, quer seja em função da estrutura e particularidade de cada curso, que se mostram bastante dinâmicos, quer seja em função da influência dos condicionantes sociais, políticos e ideológicos neoliberais, o que têm afetado desde as práticas pedagógicas até o perfil dos profissionais em formação (MARTINS, MOURA; BERNARDO, 2018; BACICH, MORAN, 2018; FAUSTO; DAROS, 2018; AURÉLIO, MOURA, 2018; SOUSA, et al, 2018). Evocar o processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador implica em necessariamente compreender as especificidades de cada curso, seus paradigmas, concepções e modelos de formação sustentados, o que pode ser bastante antagônico, uma vez que é comum a presença de uma perspectiva tradicionalista, como a base de um ideário pedagógico pragmático, valorizado por atender as demandas de competências do mercado capitalista. Nos termos de Marx (2001), superar o caráter antagônico e contraditório de uma formação tradicionalista, particularmente no caso de professores, que prioriza o domínio de conteúdos, como objetivo último da trajetória formativa, exige suplantar uma concepção de ensino fortalecida por uma racionalidade positivista, com vistas a uma posição crítica e omnilateral. O processo de mudança é bastante complexo, mas o que se destaca é o fato que a busca por um ensino-aprendizagem que tenha como princípio a inovação, a criatividade e a colaboração, necessita agregar a práxis para fundar uma concepção de formação cidadã e integral, o que passa obrigatoriamente por uma base epistemológica crítica e dialética. Para pensar as bases de um ensino criativo, colaborativo e inovador na formação docente, optamos por uma discussão que destaca a abordagem epistemológica, pois imbricada na construção de concepções e visões de mundo que expressam valores, regras, normas, princípios éticos e políticos, além de saberes que influenciarão na forma como os professores pensam e

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desenvolvem suas práticas educativas. Nesse sentido, quando o estatuto epistemológico fortalece concepções ligadas a hegemonia, por exemplo, tem- se a ênfase na construção de um sentido político, ético e ideológico, que se volta à manutenção de bases teóricas pragmáticas no campo formativo. Os princípios defendidos são mantenedores da ordem atual, muito embora se reforce um imagem de pseudoneutralidade de intenções e finalidades, como temos observado nas atuais políticas de formação docente. Circunscreve-se, assim, um sentido discursivo que favorecerá, ao longo do tempo, o “consenso ativo” entre os próprios docentes (NEVES, 2013). Neves argumentou que a produção do consentimento ou consenso ativo está associado a disseminação do novo padrão de sociabilidade neoliberal. Para tanto, gera-se na formação docente uma série de mecanismos de controle sustentados via políticas educativas, que produzem sérios impactos nas subjetividades dos professores. Gradativa e constantemente oblitera-se suas consciências, alienando-os. Conforme definiu Neves, a sistemática manutenção de mecanismos que reforçam o consenso ativo, visam dar legitimidade à ideologia neoliberal e aos princípios que regulam e controlam o social. Por outro lado, manter o consenso ativo sobre os princípios ideológicos postos ao social, exige a ação docente. Por isso os processos formativos, cujas diretrizes são difundidas pelos Organismos Internacionais, forjam e reforçam uma construção ideológica “poderosa” que padroniza uma base teórico- conceitual maléfica à formação docente. Ao longo da formação e da profissionalização docente, se fortalece o “convencimento” entre os professores sobre os preceitos neoliberais, fazendo-os aceitar e apoiar as diretrizes impostas pela lógica dominante. O mesmo movimento ideológico altera a função social do professor e da própria educação. Portanto, a promoção de um ensino criativo, colaborativo e inovador passa por reorientar ações formativas para que se vinculem a estatutos epistemológicos representativos de novas posições políticas e ideológicas. Esses ajudarão na compreensão, por exemplo, dos princípios hegemônicos que priorizam o treinamento afinado com uma perspectiva técnica e instrumental, que aliena. Novas bases epistemológicas voltadas à práxis, podem promover mudanças no atual posicionamento apolítico dos

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professores, no individualismo que se instalou entre os docentes, no consenso ativo e na manutenção do controle social pela ação docente e pela educação. Essa compreensão nos suscita várias inquietações que embasam uma pesquisa sobre experiências formativas associadas à práxis e à emancipação. A partir da epistemologia da práxis, sustentada pelo materialismo histórico dialético, buscamos compreender e analisar estratégias associadas à metodologia ativa de ensino, no curso de Pedagogia, em 2018. O foco desse artigo é a relação e interdependência entre afetividade e inteligência, como parte da práxis pedagógica na formação docente.

O processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador: concepções

Nossa referência é a epistemologia da práxis (MAGALHÃES; SOUZA, 2018), a partir da qual assumidos uma concepção de criatividade que aglutina dialeticamente aspectos sociais, cognitivos e afetivos, que afetam a esfera subjetiva dos sujeitos. A ação docente pode fazer emergir novas subjetivações por meio de estratégias, no sentido de Anastasiou e Alves (2004), relacionadas a fluência, flexibilidade, originalidade, novas capacidades e habilidades cognitivas, novas modalidades de percepção, formas de organização de conhecimento, de forma articulada e inseparável das motivações, valorações e afetos. Há ainda os aspectos relacionados a autorrealização, sensibilidade, expansão do pensamento divergente, capacidade de redefinição de análise e síntese das informações, o que torna os sujeitos mais criativos, capazes de enfrentar um mundo mutante e conviver com ele. Do ponto de vista histórico cultural, conforme Vigotski (1998), a criatividade depende prioritariamente da variedade e da riqueza das experiências prévias, sendo que o que influencia ato criativo são as pessoas, os grupos, o ambiente social, os fatores culturais, mas também as características pessoais, como as atitudes e as motivações. Vigotski afirmou que o processo criativo dever ser intencional e objetivamente desenvolvido. Para o autor, quanto mais ricas forem as experiências no processo educacional, maior será a possibilidade de desenvolver a autonomia, autodeterminação,

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imaginação e a criatividade dos estudantes nas suas ações e interações com a realidade. Portanto, o ensino criativo favorece estratégias que ajudam na solução de problemas, na superação do pensamento rígido de causa e efeito, das estruturas rígidas e imutáveis, das situações de autoritarismo e diretividade, dos julgamentos estereotipados, críticas severas, excesso de formalismo, indisciplina, medo de cometer erros, insegurança, falta de confiança na capacidade criativa, superação de preceitos e teorias dominantes, o que acaba favorecendo condições pedagógicas facilitadoras do desenvolvimento do potencial criativo. Ao final, tem-se a emergência de algo novo, original, cuja extensão se traduz ou através de uma produção potencialmente útil à sociedade, ou através das atitudes de um ser social que, ao sentir-se capaz de criar, sente-se capaz de transformar, de mudar, de melhorar. A partir da epistemologia da práxis, a concepção de colaboração está associada a Hargreaves (1988) que a implica ao compartilhamento, interação entre os pares, parcerias, troca de ideias, divisão de tarefas, num relacionamento solidário e sem hierarquias. A colaboração está associada a ação coletiva, a interação entre os membro do grupo, na medida em que se constitui uma atividade coordenada e sincronizada. Nesse sentido torna-se um princípio estratégico que tem poder político e que conquista no próprio fazer sua legitimação, frente uma comunidade educativa e acadêmica (FRANCO; MOROSINI, 2011). Do que se entende que o trabalho colaborativo e cooperativo exige investir na aceitação do outro, respeito, partilha de autoridade, coletividade na construção de objetivos em comum, consenso e ausência de competição. Como prenunciou Freire (1996), existe no ensino colaborativo uma vocação ontológica do ser-mais, da busca legitima de uma posição integrativa frente ao outro e ao conhecimento. Freire ajuda compreender que o processo de ensino-aprendizagem exerce uma força de atração, persistência e motivação para todos os envolvidos e, por isso mesmo, consegue ser contínuo, mantendo um trajeto que envolve sempre o repensar dialeticamente uma concepção compartilhada de um problema e sua solução. A partir da mesma epistemologia - da práxis, a concepção de inovação está relacionada a primazia da mudança, a ruptura com a forma tradicional de

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ensinar e aprender e/ou com os procedimentos pedagógicos inspirados nos princípios positivistas de ensino e aprendizagem. Significa assumir em sala de aula uma posição dialógica, que se consolida na gestão participativa a partir da qual alunos e professor tornam-se protagonistas das experiências, desde sua concepção até a avaliação dos resultados obtidos. Freire e Schor (1991) mostram que a inovação está diretamente relacionada à docência, ela a torna revolucionária da forma de ver a educação e seus agentes, pois como práxis exige a adoção de um acordo político com uma luta transformadora da vida social, buscando promover a compreensão crítica das condições sociais. O processo prepara o estudante, promovendo-o para a autonomia e tornando-o um cidadão crítico e construtor do seu conhecimento. Saviani (1995, p. 30) acrescenta que “a inovação educacional é processo de colocar a experiência educacional a serviço de novas finalidades". Logo, toda inovação educacional, perceptível ou implícita, reflete sobre a ação educativa, questionando a finalidade da mesma, e por meio da reflexão, desenvolve e busca novas estratégias pedagógicas que transformem o espaço educativo em democrático, atrativo, estimulante, propícios à aprendizagem por meio da práxis. Assim como a criatividade e a colaboração, a inovação gera mudanças e alterações subjetivas e intersubjetivas nos membros do processo educativo, faz com que cada sujeito experimente vários sentidos de pertencimento que se definem na dimensão individual e social de sua identidade, mudando capacidades pessoais, de conscientização, como autonomia e autocontrole, aprimorando ações individuais e relações sociais construtivas. Por estar relacionado a mudanças, o processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador está constantemente evoluindo, assegurando ambientes multidimensionais capazes de transformar o espaço educacional. Eles serão lugares de observação, protagonismo dos alunos e professor, de progressão, intencionalidade do pensar e realizar novas descobertas. O processo ainda promove alterações das relações unilaterais presentes em uma classe de aula tradicional, sobretudo porque exige estratégias de renovação que resultam em transformar e transformar-se.

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Respaldados nas contribuições de Freire (1996), portanto numa perspectiva político-social de educação, o ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador está articulado à docência inovadora e emancipadora, apresentando, resumidamente, as seguintes características: a) formação sólida teoricamente e de base multidisciplinar; b) manutenção da unidade entre teoria/prática, que assume o trabalho docente como práxis social; c) conscientização das relações de poder envolvidas no social; d) construção da capacidade de análises políticas sobre as lutas históricas pela superação da sociedade de classes; e) promoção do trabalho coletivo, solidário e interdisciplinar, como eixo articulador do conhecimento; f) formação continuada e profissionalização; g) avaliação permanente para melhoria dos processos de ensino-aprendizagem; h) formação ética, política e moral; g) desenvolvimento do raciocínio reflexivo e crítico, envolvendo dialogia, interatividade. No conjunto, essas características podem ajudar a superar o ensino formal e tradicional, com vistas a práxis. Teremos objetivos compartilhados, participação, desempenho, responsabilidade pelo trabalho conjunto, construção de conhecimento socialmente relevante. Dentre as mudanças esperadas nos processos de ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador nos cursos de formação docente, passamos a destacar a importância da relação entre afetividade e inteligência, como aspecto preponderante na práxis.

O processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador: a relação entre afetividade e inteligência

A partir da mesma base epistemológica - da práxis (MAGALHÃES, 2019a; 2019b), a afetividade refere-se as várias manifestações afetivas no interior do emaranhado das funções psicológicas superiores do indivíduo. Também está relacionada as formas de expressão mais complexas, como: afetos, emoções, sentimentos, paixões (GALVÃO, 1999; LEITE, TASSONI, 2010; 2012; SILVA LEITE, 2010; HAHN, FERRARO, 2018). Pensar uma ontogênese da emoção, como preponderante da práxis educativa, é entender que sua peculiar natureza perpassa a consciência e a personalidade, portanto que atua no funcionamento psíquico do ser humano, como um todo.

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Wallon (1971), trabalhou a questão das emoções construindo sua psicogênese para descrever que são o primeiro e mais forte vínculo entre os indivíduos. Para ele, a forma como exteriorizam a afetividade implica em reação fisiológica, componentes humorais e motores, ao mesmo tempo em que dizem de um “comportamento social” e da “função de adaptação do ser humano ao seu meio” (WALLON, 1995, p.143). Adaptação porque para Wallon, as emoções são instrumentos de sociabilidade que gestam meios de expressão dos sujeitos para que melhor interajam com os outros e o meio. Para Wallon, as emoções instituem um processo que ajuda o sujeito a fundir adequadamente as relações interindividuais, chegando até a uma participação mútua. Para tanto, as primeiras emoções criam estruturações cognitivas que, gradativamente, organizam a vida psíquica, culminando com a construção da pessoa, até que haja uma preponderância cognitiva da relação entre afeto e cognição. Trata-se de uma construção que ocorre por meio de estágios que foram assim pensados por Wallon: 1) estágio impulsivo-emocional que representa a etapa de indiferenciação entre eu e outro, as primeiras emoções fazem a comunicação e expressão das necessidades orgânicas; 2) estágio sensório-motor e projetivo, no qual a inteligência predomina e o mundo externo prevalece nos fenômenos cognitivos; 3) Estágio do personalismo no qual a criança faz uma diferenciação gradativa entre eu e outro, a criança aprende a se opor ao mundo, formação da personalidade e da autoconsciência; 4) estágio categorial no qual a criança toma posse de instrumentos cognitivos, há a exaltação da inteligência sobre as emoções; 5) estágio a adolescência, no qual há a representação e o pensamento racional utilizado para coordenar as emoções e para construir conhecimentos (GALVÃO, 2003; SOUZA, 2011). Do que resulta que as emoções acabam sendo, assim como em Vygotsky, entendidas como instrumentos de interação do sujeito com o mundo, fazendo parte direta da construção da personalidade, bem como das possibilidade de se aprender. A inteligência, por sua vez, assim como a emoção, faz parte das funções psíquicas superiores. Conforme tese defendia por Vygotsky, a inteligência ou o desenvolvimento cognitivo, depende das aprendizagens, pressupondo sua natureza social. O autor definiu dois níveis de desenvolvimento das

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aprendizagens: o nível de desenvolvimento real que está relacionado às aprendizagens concretas as quais o indivíduo realiza sem o auxílio de mediador, e o nível de desenvolvimento potencial que representa as aprendizagens que a criança é capaz de desenvolver, no entanto, com a ajuda de outra pessoa mais experiente culturalmente. A distância entre estes dois níveis, Vygotsky denominou de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), isto é, local onde a compreensão ainda está se processando, e onde deve atuar o professor enquanto mediador do conhecimento. Hahn e Ferraro (2018, p. 1330-1), citando Vygotsky, afirmam que para entender o desenvolvimento da inteligência ou cognitivo, é necessário considerar o sujeito psicológico em sua totalidade, isso implica na “superação da ruptura entre intelecto e afeto”, pois ao se separar desde o começo o pensamento do afeto fecha-se para sempre a possibilidade de explicar as causas do pensamento, isso seria

negar de antemão a possibilidade de estudar a influência inversa do pensamento no plano afetivo, volitivo da vida psíquica [...]”. Portanto, (...), a dissociação entre cognição e afeto representa um dos principais equívocos da Psicologia (...) ainda que tal separação permite que o pensamento“[...] se segregue de toda a plenitude da vida, dos impulsos, dos interesses e as inclinações vitais do sujeito que pensa [...].” . (HAHN, FERRARO, 2018, P. 1330-1).

Portanto, afetividade e inteligência estão em profunda correspondência com a conduta do sujeito social, e implicam em uma relação de causalidade e alternância, estruturante da sequência do desenvolvimento humano, o que reafirma que todos os sujeitos sentem, se abalam, comovem, e se perturbam, numa relação constitutiva de suas personalidades (TOASSA, 2010; 2011). Para Vygotsky a relação é de complementaridade pois estão no âmbito das funções mentais (funções psicológicas superiores), presentes na construção da personalidade, do pensamento e do conhecimento; para Wallon, a elação é de alternância, pois manifesta-se diferentemente ao longo do desenvolvimento. Mas ambos concordam que a afetividade está diretamente ligada à subjetividade e essa, por sua vez, irá sempre depender das interações que são permeadas e transformadas pela cultura. Resumidamente, Wallon e Vigotski conciliam afeto e intelecto, mantendo uma relação que ganha em complexidade na medida em que o indivíduo se

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desenvolve na cultura, passando a atuar no universo simbólico, ampliando e complexificando suas formas de manifestação. Daí o caráter social da afetividade e da inteligência como fundante do processo do desenvolvimento humano. Assim entendendo, assumimos que “a afetividade depende para evoluir de conquistas realizadas no plano da inteligência e vice-versa” (DANTAS, 1992, p. 90). Conforme explicaram Vygotsky e Wallon, teóricos da epistemologia da práxis, o processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador é simultaneamente, intelectual e volitivo, pois o sujeito conhece, pensa e sente, ao mesmo tempo. Destacar a relação entre afetividade e intelecto como parte importante do processo ensino-aprendizagem, permite inferir o como os sujeitos atingirem novos níveis de evolução, cada vez mais elevados. Passamos ao relato das informações coletadas no curso de Pedagogia, ano de 2018, com 37 estudantes, Disciplina Sociedade, Cultura e Infância, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, e os resultados parciais de pesquisa, cujo objetivo é analisar e compreender as experiências formativas associadas à práxis e à emancipação. As estratégias relatadas são associadas à metodologia ativa de ensino, com foco na importância da relação e interdependência entre afetividade e inteligência.

O processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador como práxis

A relação entre afetividade e inteligência é mobilizadora dos envolvidos no ato de conhecer, quando centrada numa metodologia ativa de ensino, com estratégias e processos autogestionários, solidários, voltados à emancipação, identifica-se com a práxis pedagógica. Conceitualmente, a ação docente como práxis é atenta e reflexiva, sua estrutura e funcionamento (metodologia) mantém a indissociável relação entre teoria e prática, que se determinam mutuamente, com a finalidade de gerar um saber que visa a transformação. Nessa lógica, o termo estratégias é posto no sentido dado por Anastasiou e Alves (2004), como ensinagem que gestem responsabilidade, criticidade, politicidade, autonomia, leitura crítica do mundo, interpretação, escrita, aspectos relacionados ao processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo

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e inovador. No Quadro 1 apresentamos as estratégias, conforme Anastasiou e Alves (2004), desenvolvidas para mobilizar os estudantes. Essa iniciativa retoma o estado afetivo e sensível dos sujeitos, sua corporeidade, suas vivências, seus conteúdos culturais, suas histórias de vida, o que modifica as experiências vividas na sala de aula, tornando os envolvidos “emotivados”.

Quadro 1 – Quadro com as definições de estratégias desenvolvidas no processo ensino-aprendizagem.

1. Aula expositiva É uma exposição do conteúdo, com a participação ativa dos estudantes, cujo dialogada conhecimento prévio deve ser considerado e pode ser tomado como ponto de partida. O professor leva os estudantes a questionarem, interpretarem e discutirem o objeto de estudo, a partir do reconhecimento e do confronto com a realidade. 2. Estudo de texto É a exploração de ideias de um autor a partir do estudo crítico de um texto e/ou a busca de informações e exploração de ideias dos autores estudados. 3. Portifólio É a identificação e a construção de registro, análise, seleção e reflexão das produções mais significativas de um objeto de estudo. 4. Tempestade É uma possibilidade de estimular a geração de novas ideias de forma espontânea Cerebral e natural, deixando funcionar a imaginação. Não há certo ou errado. Tudo o que for levantado será considerado, solicitando-se, se necessário, uma explicação posterior do estudante. 5. Mapa Consiste na construção de um diagrama que indica a relação de conceitos em uma Conceitual perspectiva bidimensional, procurando mostrar as relações hierárquicas entre os conceitos pertinentes à estrutura do conteúdo. 6. Estudo É o ato de estudar sob a orientação e diretividade do professor, visando sanar Dirigido dificuldades específicas. 7. Solução de É o enfrentamento de uma situação nova, exigindo pensamento reflexivo, crítico problemas e criativo a partir dos dados expressos na descrição do problema; demanda a aplicação de princípios estudados. 8. Philips 66 É uma atividade grupal em que são feitas uma análise e uma discussão sobre temas/problemas do contexto dos estudantes. Pode também ser útil para obtenção de informação rápida sobre interesses, problemas, sugestões e perguntas. 9. Seminário É um espaço em que as ideias devem germinar ou ser semeadas. Portanto, espaço, onde um grupo discuta ou debata temas ou problemas que são colocados em discussão. 10. Estudo de É a análise minuciosa e objetiva de uma situação real que necessita ser caso investigada e é desafiadora para os envolvidos.

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11. Painel É a discussão informal de um grupo de estudantes, indicados pelo professor (que já estudaram a matéria em análise, interessados ou afetados pelo problema em questão), em que apresentam pontos de vista antagônicos na presença de outros. 12. Oficina É a reunião de um pequeno número de pessoas com interesses comuns, a fim de (laboratório ou estudar e trabalhar para o conhecimento ou aprofundamento de um tema. workshop) 13. Ensino com É a utilização dos princípios do ensino associados aos da pesquisa: Concepção pesquisa de conhecimento e ciência em que a dúvida e a crítica sejam elementos fundamentais; assumir o estudo como situação construtiva e significativa. Fonte: Anastasiou e Alves (2004).

No relato que se segue, apresentamos os resultados das estratégias de sensibilização e das estratégias de número 5, 7, 10 e 12, conforme Quadro 1. O semestre foi iniciado com as três estratégias pensadas para sensibilização dos estudantes: a primeira foi a apresentação do acordo de trabalho coletivo, cujas características dizem dos objetivos das estratégias, formas de avaliação, necessidade de envolvimento dos estudantes num “trabalho de crescimento mútuo, com respeito e confiança, sendo necessário que eles observassem se lhes ocorria transformação. O contrato também descreve as normas básicas da boa convivência em sala de aula, como a simples necessidade boas maneiras até o respeito aos prazos para a realização de trabalhos, entrega, correções, presenças, participações, diálogos, princípios e regras que deveriam ser mantidos durante todo o semestre. O contrato foi bem aceito pelos estudantes. A primeira estratégia de sensibilização gerou reflexão e impulsionou a experiência - de parceria, respeito e cooperação. A segunda estratégia de sensibilização relacionou-se a entrega do material que foi utilizado durante todo o semestre. Realizamos uma compilação dos textos, tentando ajudar os estudantes a terem acesso a todo o material da disciplina. Constantemente, os estudantes se queixam do volume de cópias que precisam fazer, outros não têm realmente recursos, inviabilizando os estudos. Buscando recursos para elaboração do material, obtivemos a ajuda necessária para a superação do problema. Compomos uma apostila que foi entregue gratuitamente aos estudantes, ao mesmo tempo em que foi explicado o como obtivemos o recurso, informando que alguém os ajudou, mesmo sem conhecê-los; alguém dou a quantia necessária para a

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elaboração das apostilas para que pudessem ter um semestre de estudo tranquilo e com total apoio teórico. Essa prática, embora bastante difícil, teve resultados interessantes, os estudantes se questionaram sobre o porquê alguém os ajudaria sem conhecê-los? A reflexão impulsionou a experiência - de solidariedade e colaboração. A terceira estratégia de sensibilização estava relaciona ao olhar da infância. Como muitos estudantes são jovens e nunca tiveram contato com crianças, a estratégia exigiu que eles buscassem, conversassem e entendessem a infância real. Para tanto, foi solicitado um trabalho que envolveu conversar e fotografar uma criança. Eles deveriam solicitar autorização prévia (por escrito) dos responsáveis para a atividade, o que ampliou o diálogo com os pais e a criança ampliando a sensibilidade dos alunos. Eles ficaram atentos para anotar os relatos da criança e, por fim, ao buscar fotografá-la, tiveram que aceitar o que a criança queria de forma a representá-la no hoje, no presente e do modo como ela quis se expressar. Após o trabalho, os estudantes voltaram bastante admirados, afirmando que aprenderam a diferenciar o próprio “olhar no sentido de compreender melhor a infância”. Também relataram que a atividade gerou a aprendizagem de uma postura ética (pois precisam de autorização escrita para elaboração desse trabalho, além de respeitar a expressão dos desejos da criança entrevistada), a experiência bastante significativa, eles afirmaram isso. Enfim, os relatos dos estudantes foram bastante variados e, em comum acordo realizamos uma exposição das fotos e de trechos das entrevistas que foram debatidos e comentados em sala de aula, ao final do trabalho. O fato é que o semestre iniciou com todos efetivamente falando sobre a infância! A reflexão impulsionou a experiência - de autonomia e proatividade. A metodologia que se seguiu, envolveu a Estratégia 5 - Mapa Conceitual. O objetivo foi gerar as seguintes operações de pensamento: interpretação, classificação, crítica, organização de dados, e resumo. Ao final acrescentamos que ela foi criativa, colaborativa e inovadora. A dinâmica da atividade motivou: 1. Organização dos textos por parte do professor; 2. Identificação e seleção dos conceitos-chave; 3. Compartilhamento dos mapas conceituais, para comparação de conteúdo. A avaliação da estratégia se deu a partir do próprio mapa elaborado pelo grupo,

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segundo critérios preestabelecidos, como: conceitos claros, relação justificada, riqueza de ideias, criatividade, criticidade. A estratégia exigiu estudo do conteúdo relacionado, capacidade lógica, síntese, diálogo, coletividade, estruturando maior confiança entre os membros do grupo. A Figura 1 mostra a elaboração da estratégia.

Figura 1 - Conjunto de fotos que mostram a elaboração das Estratégias 5 – Mapa Conceitual

Fonte: Registros do cotidianos de trabalho na sala de aula - Disciplina Sociedade, Cultura e Infância.

Na sequência relatamos o desenvolvimento da Estratégia 7 - Resolução de Problemas - Charges, a qual exigiu o enfrentamento de uma situação problema nova. O objetivo dessa estratégia foi gerar as seguintes operações

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de pensamento: interpretação, crítica, capacidade de argumentação, e síntese. A estratégia mostrou motivadora de um processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador. A estratégia está representada na Figura 2. A estratégia 7 envolveu as seguintes operações de pensamento: identificação, obtenção e organização de dados, planejamento, imaginação, elaboração de hipóteses, interpretação e decisão. Na sua dinâmica foi possível visualizar: 1. Apresentação do problema (Charges); 2. Desenvolvimento das hipóteses; 3. Comparação das soluções obtidas; 4. Síntese, pela verificação de aplicabilidade, sua avaliação foi realizada por meio das ideias, soluções apresentadas (concisão, aplicabilidade).

Figura 2 - Conjunto de fotos que mostram a elaboração da Estratégia 7 – Charges

Fonte: Registros do cotidianos de trabalho na sala de aula - Disciplina Sociedade, Cultura e Infância.

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O desenvolvimento da Estratégia 12 - Oficinas Pedagógicas - Fanzines exigiu a reunião de um pequeno grupo, cuja função seria transportar o conteúdo estudado para outra linguagem. No caso, os alunos optaram pela construção de fanzines, que são um tipo de publicação impressa, cujo objetivo é expressar ideias através do “faça você mesmo”. A Figura 3 mostra registros da estratégia 12, o que exemplifica um processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador, culminando na apresentação e resultados obtidos na forma da revista fanzine. Abaixo alguns relatos dos estudantes sobre a estratégia:

A estratégia 12 – Oficinas no formato de Fanzine com o conteúdo Jean Jacques Rousseau transformou um texto clássico que seria cansativo e complicado, em algo. Penso que o fanzine foi o ideal, pois lemos o texto buscando quais informações poderiam estar na revista. Além disso, aplicar o aprendido em uma produção de grupo foi uma grande estratégia se o objetivo era viver o conteúdo. O pensamento sai do empírico para ser impresso no concreto, ressaltando a quantidade de atividades acadêmicas. O fanzine foi um trabalho pensado no aprender fazendo, e não só no produto, isso foi incrível! (Sujeito 12).

As portas estavam abertas, o semestre acontecia. Rousseau adentrou, grandiosamente, trazendo com ele sua criança natureza e com ele a estratégia Fanzine; ela nos ajudou a sistematizar o conteúdo, fez com que penetrasse nossas almas, entrando pelos nossos olhos deslumbrados com o talento e sensibilidade dos colegas na elaboração de suas revistas, o que acabou enchendo nossos corações (Sujeito 3).

A estratégia 12 – Oficinas no formato de Fanzine com o conteúdo Jean Jacques tornou o ensino bastante criativo, aprendi a pensar sobre o conteúdo a partir de uma nova proposta. Foi bastante instigador! (Sujeito 24).

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Figura 3 - Conjunto de fotos que mostram a apresentação da Estratégia 12 – Oficinas Pedagógicas - Fanzines

Fonte: Registros do cotidianos de trabalho na sala de aula - Disciplina Sociedade, Cultura e Infância.

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Na sequência da metodologia apresentamos a Estratégia 10 - estudo de caso que obteve um particular resultado. O processo mostrou-se criativo, colaborativo e inovador por exigir análise objetiva e colaborativa de um texto. O objetivo dessa estratégia foi gerar as seguintes operações de pensamento: interpretação, crítica, capacidade de argumentação, capacidade de superação de desafios, debate e síntese. Fez parte da estratégia a leitura e análise de texto retirado do Prefácio do livro de Phillipe Ariès (1981) - História Social da Família e da Infância. Foram dadas as seguintes orientações: leitura, análise e discussão em grupos, no sentido de refletir sobre o conteúdo, além de buscar identificar: o objetivo central do texto; a emoção do autor (um aspecto novo); dos estudantes; e a emoção envolvida no processo, sobretudo após o entendimento do conteúdo. O texto assim descreve:

Costuma-se dizer que a árvore impede a visão da floresta, mas o tempo maravilhoso da pesquisa é sempre aquele em que o historiador mal começa a imaginar a visão de conjunto, enquanto a bruma que encobre os horizontes longínquos ainda não se dissipou totalmente, enquanto ele ainda não tomou muita distância do detalhe dos documentos brutos, e estes ainda conservam todo o frescor. Seu maior mérito talvez seja menos defender uma tese do que comunicar aos leitores a alegria de sua descoberta, torna-los sensíveis – como ele próprio o foi – às cores e aos odores das coisas desconhecidas. Mas ele também tem a ambição de organizar todos esses detalhes concretos numa estrutura abstrata, e é sempre difícil para ele (felizmente!) desprender-se do emaranhado das impressões que o solicitaram em sua busca aventurosa, é sempre difícil conformá-las imediatamente à álgebra no entanto necessária de uma teoria. Anos depois, no momento da reedição, o tempo passou, levando consigo a emoção desse primeiro contato, mas trazendo por outro lado numa compensação: pode-se ver melhor a floresta” (Prefácio do livro - História social da criança e da família, de Philippe Ariés,1981).

Na elaboração dessa estratégia, o debate coletivo foi guiado pelas seguintes questões: Qual é o foco central do texto? É possível percebemos a emoção que perpassa o autor do texto? Podemos inferir sobre o porquê esse

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texto está colocado no prefácio do livro a ser estudado? O que vocês sentem no percurso da tentativa de interpretação e compreensão do texto? Essas questões foram guias importantes para a reflexão que se propunha. O resultado maximizou a aprendizagem ao mobilizar, conjuntamente, as dimensões mentais, emocionais, sensíveis, no contexto da sala de aula. A lógica assumida exigiu comprometimento dos estudantes, eles precisaram explicitar suas conclusões em vários aspectos, vejamos alguns relatos:

Não fazia a menor ideia do que se tratava o texto, fui obrigada a me aventurar no mundo das ideias, e isso foi muito bom (estudante 30).

Ao ler esse pequeno trecho, tentando perceber sobre o que ele estava falando, quais emoções estava me passando, percebi o quanto é difícil fazer isso! Ninguém me ensinou isso até agora. Precisei me imaginar como o autor, se ele sentia alegria, comprometimento, e esse movimento me exigiu tanto esforço que chego à conclusão de que nunca fui capaz de fazer uma interpretação com emoção (sujeito 21).

Tive muita dificuldade em entender e relatar o que havia compreendido e sentido com este pequeno texto. Acho que meu contexto nunca me propiciou essa interpretação. Até agora penso se realmente entendi (sujeito 14).

Incrível esse exercício de saber do que se trata – conteúdo, identificar o que o autor nos passa – emoção, e o que sentimos em relação a essa interpretação – o que eu sinto. Isso foi muito importante pois aprendia a traduzir o conteúdo em outra linguagem, e isso me mostrou o quanto posso ser mais sensível (sujeito 13).

As interpretações, como os exemplos relatados, foram apresentadas em plenária, geraram debates e maior envolvimento dos sujeitos na construção de significados. Não havia certo ou errado, um importante aspecto integrador e não-excludente, apenas a expressão do como eles entendiam o conteúdo e se posicionavam frente a ele. As conclusões explicitaram o como as emoções, suas mais variadas formas de expressão, estão presentes em sala de aula. Interpretamos que houve o aprimoramento de um olhar afetivo-sensível sobre si mesmo, sobre o texto e sobre os colegas (MAGIOLINO, 2010; MAHONEY e ALMEIDA, 1993).

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As avaliações da estratégias foram escritas pelos estudantes e entregues a professora no final do semestre. Os resultados reportaram à Vygotsky no que se refere a articulação e interdependência da afetividade e intelecto. Houve relatos de aprovação, de mobilização para o estudo, o que marcou a relação com o conhecimento. A articulação entre afetividade/inteligência ajudou a reorganizar os conceitos dos estudantes, numa relação de interfuncionalidade. Se inicialmente os estudantes disseram que não sabiam do que se tratava o texto do Prefácio do livro de Ariès (1981), conforme relato da Estratégia 10 - estudo de caso, após discussão em plenária, quando cada um colocou seu ponto de vista, o que pensou e sentiu, houve reformulações do pensamento e, com isso, gerou-se bem-estar emocional no grupo. Alguns expressaram surpresa da emoção sentida, outros expressaram suas dificuldades, resistências e descontentamento com a própria interpretação. No conjunto, destacaram a importância de no processo ensino-aprendizagem se ter espaço para o trato das emoções, sentimentos e afetos. Os estudantes também relataram:

Faz muito sentido o esforço intelectual para captar o sentido da proposta pedagógica, mas o mais importante foi ouvir os colegas, identificar o que sentiam. Essa compreensão fez mais sentido e me ajudou a reformular minhas conclusões (sujeito 1).

É impressionante quando buscamos acessar o conhecimento por outras vias. O texto parece não ter relação com o conteúdo do livro - infância, e muito menos suscitar nossas emoções. Gradativamente, identifiquei a fala da alegria do autor, vivenciada na construção da pesquisa e isso foi fantástico! (sujeito 20).

É bastante gratificante quando percebemos que podemos interpretar e entender as coisas a partir do que sentimos, e mais ainda quando podemos rever nossas emoções por meio de um espaço de debates (sujeito 4).

A estratégia mostrou que os fenômenos afetivos estão associados às experiências subjetivas, como mostram os relatos, mas também revelam a forma como cada sujeito é afetado, o como cada acontecimento reflete no íntimo de cada um, e o como esse reflexo relaciona-se ao que ele aprende,

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portanto, a inteligência. A figura 4 mostra a expressão do grupo ao finalizarem os trabalhos.

Figura 4 - Conjunto de fotos que mostram o resultados da estratégia - satisfação dos estudantes.

Fonte: Registros do cotidianos de trabalho na sala de aula - Disciplina Sociedade, Cultura e Infância.

As estratégias geraram um estado afetivo de despojamento e motivação, ajudando os estudantes a superarem os próprios limites, fragilidades de interpretação e compreensão do conteúdo, ao mesmo tempo em que

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ampliaram suas possibilidades e forças, tornando-os aptos a identificar e superar suas próprias dificuldades. Podemos afirmar que o ensino- aprendizagem criativo, colaborativo e inovador como práxis ajuda os estudantes a passarem de um estado de anestesiamento para um compreensivo, mais dinâmico e complexo - Figura 4. Os resultados da pesquisa mostraram que fortalecer a articulação dos processos intelectuais e volitivos no processo ensino-aprendizagem, amplia as possibilidade do desenvolvimento de um ser plural, capaz do exercício da flexibilidade, criticidade, criatividade, afetividade, intelectualidade. Ao final destacamos que a interlocução entre a afetividade e a inteligência é parte constitutiva do ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador, ou seja, da práxis pedagógica.

Algumas Considerações

A base teórica da epistemologia da práxis nos ajudou na construção de uma metodologia de ensino, com estratégias que resultaram na práxis pedagógica, e essa favorece a transformação dos sujeitos envolvidos. O processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador, a partir da base teórica aqui assumida, como afirmou Vygotsky (1998), favoreceu a natureza intelectual e emocional dos estudantes, suas consciências, afetando a forma como pensam e aprendem. As estratégias pensadas e executadas, sempre refletidas a partir da práxis pedagógica, ainda que componham uma pesquisa maior e em andamento, já nos mostram seu poder libertador e mais, referendam que por meio de um processo ensino-aprendizagem criativo, colaborativo e inovador, os futuros pedagogos podem fortalecer a certeza de que por serem emancipados, também poderão ajudar a emancipar. Acreditamos que a relação entre inteligência e afetividade se fez presente em todas as decisões assumidas em sala de aula, produzindo, continuamente, impactos na subjetividade dos alunos, e na consolidação de vínculos positivos entre os envolvidos. Ademais, ao ajudá- los a compreenderem o que pensavam, sentiam, qual era sua função social

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frente a educação, sustentou-se um ambiente absolutamente comprometido com o sucesso do processo de emancipação daqueles futuros professores.

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Literatura de cordel x mídia na alfabetização e a motivação do gestor escolar

Literature of cordel x media in literacy and the motivation of the school manager Literatura de cordel x media en la alfabetización y la motivación del gestor escolar

Valdecira Aparecida da Silva Moreira Rede estadual de Ensino de Rondônia/UDS Universidad de Desarrollo Sustentable [email protected]

Maria Valdete da Silva Bolsoni Rede estadual de Ensino de Rondônia/FAIPE-MT [email protected]

Aderson Ferreira de Araújo Rede Municipal de Ensino de Colorado do Oeste Rondônia [email protected]

Leopoldo Briones Salazar Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, Chile [email protected]

Resumo Este artigo analisa como ocorrem a motivação do gestor escolar e os procedimentos didáticos e midiáticos no trabalho pedagógico com a literatura de cordel na alfabetização. Como metodologia de investigação, optou-se por realizar pesquisa bibliográfica e de campo, confrontando teorias e práticas. Os principais autores estudados são: Abreu (1999), Fonsêca e Fonsêca (2008) Marinho e Pinheiro (2012), Silva (2016), Oliveira e SilvaFilho (2013), Pontuschka, (2004) e outros por abordarem o tema literatura de cordel com fins pedagógicos. Para realização da pesquisa de campo, utilizou-se entrevista com quatro professoras alfabetizadoras e uma gestora. As atividades escolares referentes à Literatura de Cordel ainda são pouco divulgadas no meio escolar na Região Norte. Ressalta-se que com a globalização e os diversos recursos tecnológicos da atualidade, aos poucos essa literatura emerge como recurso pedagógico de valor ímpar no trabalho docente com temas interdisciplinares na alfabetização.

Palavras chave: Motivação. Literatura de Cordel. Escola.

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Abstract This article aims to analyze how the motivation of the school manager and the didactic and mediatic procedures in the pedagogical work with the literature of cordel in literacy occurs. As a research methodology, we opted for bibliographical and field research, confronting theories and practices. The main authors studied are: Abreu (1999), Fonsêca & Fonsêca (2008) Marinho and Pinheiro (2012), Silva (2016), Oliveira e Silva Filho (2013), Pontuschka, (2004) and others, for pedagogical purposes. For the accomplishment of the field research was used an interview with four literacy teachers and one manager. The school activities related to literature of cordel are still little publicized in the school environment in the North Region of Brazil. It should be noted that, with globalization and the various technological resources of today, it gradually emerges as a pedagogical resource of unique value in labor, with interdisciplinary themes in literacy

Keywords: Motivation. Literature of cordel. School.

Resumen Este artículo analiza cómo ocurre la motivación del gestor escolar y los procedimientos didácticos y mediáticos en el trabajo pedagógico con la literatura de cordel en la escuela. Como metodología de investigación, se optó por realizar investigación bibliográfica y de campo, confrontando teorías y prácticas. Los principales autores son: Abreu (1999), Fonsêca y Fonsêca (2008), Marinho y Pinheiro (2012), Silva (2016), Oliveira y Silva Filho (2013), Pontuschka, (2004) y otros porque tratan la literatura de cordel con fines pedagógicos. Para la realización de la investigación de campo se utilizó entrevista con cuatro profesoras alfabetizadoras y una gestora. Las actividades escolares referentes a la Literatura de Cordel todavía son poco divulgadas en el medio escolar en la Región Norte. Se resalta que, con la globalización y los diversos recursos tecnológicos de la actualidad, poco a poco esa literatura emerge como recurso pedagógico de valor impar en la labor, con temas interdisciplinarios en la alfabetización.

Palabras clave: Motivación. Literatura de Cordel. Escuela.

Introdução

O objetivo da pesquisa é elucidar ações educativas colocadas em prática referentes ao uso da literatura de cordel e o apoio do gestor escolar referente à utilização deste gênero textual na escola em tempos de tecnologias midiáticas e as repercussões do mesmo. Neste artigo apresentam-se os resultados da pesquisa bibliográfica e estudo de campo realizado em uma escola da rede pública estadual da zona urbana de Colorado do Oeste Rondônia. A metodologia utilizada seguiu passos estruturados, de acordo com a pesquisa qualitativa, pautada na análise das respostas dos entrevistados.

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Optou-se pelo método narrativo, consistindo em entrevistas com um grupo de professores alfabetizadores e uma gestora da escola.

A pesquisa narrativa deve ser entendida como uma forma de compreender a experiência humana. Trata -se de um estudo de histórias vividas e contadas, pois “uma verdadeira pesquisa narrativa é um processo dinâmico de viver e contar histórias, e reviver e recontar histórias, não somente aquelas que os participantes contam, mas aquelas também dos pesquisadores” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p.18)

Um aspecto interessante a ser ressaltado é a quantidade de informações que aparecem nas entrevistas realizadas, o que se pode afirmar ser decorrente da metodologia utilizada. O método narrativo propicia que os sujeitos falem de suas constituições pessoais e profissionais, revelando suas subjetividades. Ressalta-se que a escola em pesquisa, segundo dados contidos no Projeto Político Pedagógico da Escola (2018), atende 492 alunos. Pertence a rede municipal de ensino do Município de Colorado do Oeste- Rondônia. Obteve média 6.6 no IDEB 2017. A Literatura de Cordel é uma arte considerada poesia, música e narrativa impressa. Chegou ao Brasil no século XVIII, trazida pelos portugueses à região Nordeste do Brasil, que é considerado o celeiro fértil do Cordel.

O cordel é conhecido como herança nordestina. A Literatura de Cordel traz em seus folhetos assuntos ligados à política, educação, história, problemas sociais de ordem pública temas que englobam aspectos de saúde e medicina preventiva dentre outros sempre focando em assuntos do cotidiano (OLIVEIRA; SILVA FILHO, 2013, p. 2)

O cordel apresenta motivação para a aprendizagem, uma vez que sempre aborda assuntos atuais e está sempre se recriando para atender as necessidades e expectativas da atualidade. Abreu (1999) defende que a vida nordestina é a inspiração para a produção dos folhetos. Embora não haja restrições temáticas, essa produção sempre esteve fortemente calcada na realidade social na qual se inserem os poetas e seu público. Ressalta-se que é de suma importância a motivação do professor, se ele não acreditar no cordel como estratégia de ensino, este não deve ousar a

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aplica-lo em sua sala de aula, Pontuschka (2004 p. 189) nos faz refletir a respeito da ousadia ao afirmar que:

O modo como o professor percebe a realidade pode se constituir em uma barreira, impedindo-o de ousar e experimentar alternativas pedagógicas, pois pode aceitar a realidade cotidiana de sua escola e de sua sala de aula como natural, ou pode concentrar esforços no intuito de romper com a rotina, buscando meios mais eficientes para atingir seus objetivos e encontrar soluções para os problemas e conflitos entre os sujeitos sociais (PONTUSCHKA, 2004 p. 189)

Na era digital, os amantes da literatura e o antenado mercado digital não poderiam deixar passar despercebido algo que desperta o prazer pela leitura, apresenta nova roupagem para cativar os nascidos digitais. Sobre o tema autores como Oliveira e Silva Filho defendem que:

O cordel começou a ganhar lugar no espaço virtual/digital a partir das mudanças inseridas pelos recursos tecnológicos, este novo processamento está renovando os meios de criação ou repaginação mudando também o modo como esses folhetos são vendidos e expostos. (OLIVEIRA; SILVA FILHO, 2013, p. 5)

Para os autores, um dos principais fios de condução para a expansão do cordel é a grande rede construída pela internet, que tem como papel principal fazer com que essa literatura se dissemine no mundo através de redes sociais, blogs, portais, entre outros. Com a velocidade das informações na era digital, a escola começa a ter avanços didáticos e pedagógicos significativos, por meios de trocas de experiências com educadores de todo o Brasil, formando assim novas tendências e roupagens pedagógicas para temas que antes eram pouco estudados. Em muitas escolas brasileiras, a busca pela qualidade educacional, de ensino, leva professores a procura de formas alternativas para facilitar a aprendizagem, com foco em atrair a atenção dos alunos e, com isso, torná-los mais participativos, neste caso a linguagem poética da literatura de cordel, surge como caminho a ser percorrido, não como fator principal para resolução do problema da qualidade de ensino, mas como recurso amenizador das dificuldades apresentadas. Sobre literatura de cordel Araújo defende:

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Ao fornecer meios para a interpretação e compreensão da sociedade, o cordel tem representado não só o Nordeste, mas também, o Brasil, através dos conteúdos que tematiza. Têm sido múltiplos os caminhos dos folhetos de cordel, porque elaboram desde histórias fantasiosas, passando por aquelas em que os poetas populares ainda se pautam numa visão mais conservadora da sociedade e da cultura, até outras que apresentam uma postura mais crítica do mundo e da vida (ARAÚJO, 2007, p. 214)

Por meio de histórias rimadas o cordel ao ser utilizado como ferramenta pedagógica, estimula a compreensão dos alunos, proporcionando aprendizagem significativa, capazes de gerar novos valores para a coletividade e de enriquecer a cultura humana. Segundo Resende (2006/7, p.12) A relação entre o cordel e a mídia no século XXI, existem sítios na Internet que publicam literatura de cordel, é na Internet que cordelistas da nova geração encontram espaço para divulgar e manter a tradição de um dos gêneros mais antigos da literatura popular.

Revisão da Literatura

Silva (2016) defende que o Cordel é indicado para trabalhar diferentes temas, destacando em especial algumas temáticas tais como: cômicos ou satíricos, ciclo social, temas políticos, de amor e fidelidade, recontos e histórias da literatura universal, lendas folclóricas, questão religiosa, entre outros. Em relação à história do Cordel no Brasil a autora esclarece:

No Brasil, a Literatura de Cordel chegou com os portugueses e permanece até a presente data no nordeste brasileiro e em outras regiões do país, tomando a forma de uma literatura confeccionada pelo povo e para o povo, com características próprias, possuindo seus próprios clássicos e mestres. Ela começa a traçar caminhos até se firmar na luta pela resistência e formação da identidade cultural do povo sertanejo e brasileiro. (SILVA, 2016, p. 2)

Ressalta-se que as produções dos cordéis podem e devem ser usados na sala de aula de forma interdisciplinar por sua amplitude e diversidade de temas abordados por eles. Segundo Marinho e Pinheiro (2012):

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No Brasil, Cordel é sinônimo de poesia popular em verso. As histórias de batalhas, amores, sofrimentos, crimes, fatos políticos e sociais do país e do mundo, as famosas disputas entre cantadores, fazem parte de diversos tipos de textos em versos denominados Literatura de Cordel. Como toda produção cultural, o Cordel vive períodos de fartura e de escassez. Hoje existem poetas populares espalhados por todo país, vivendo em diferentes situações, compartilhando experiências distintas. (MARINHO; PINHEIRO, 2012, p. 17)

Cabe ao gestor escolar o papel de incentivador e provedor de recursos materiais para que a literatura de cordel seja usada na alfabetização com temas interdisciplinares tais como: valores, identidades, tradições culturais. Em tempos de tecnologia, a alfabetização inicia-se antes do período de escolarização, por isso é muito importante trazer a cultura popular para dentro da escola, veja o que afirma Perez (2002, p. 66):

A alfabetização é um processo que, ainda que se inicie formalmente na escola, começa de fato, antes de a criança chegar à escola, através das diversas leituras que vai fazendo do mundo que a cerca, desde o momento em que nasce e, apesar de se consolidar nas quatro primeiras séries, continua pela vida afora. Este processo continua apesar da escola, fora da escola paralelamente à escola.

Alfabetizar exige antes de tudo dedicação, entusiasmo, rotina, encantamento, descoberta, não há como apontar o melhor caminho, existem vários, no entanto cabe ao docente e equipe pedagógica encontrar a melhor forma de produzir o conhecimento sistematizado. A literatura de cordel foi durante muito tempo um caminho adotado para alfabetizar muito eficiente. Segundo Fonsêca e Fonsêca (2008, p .2) o uso de versos de cordel como metodologia de ensino é recurso pedagógico importante nas disciplinas de estudo. Citando a Geografia para ilustrar o resultado de sua pesquisa, defendendo que a mesma aprimora a capacidade criativa do aluno e o conduz a uma reflexão sobre o seu lugar, melhorando a compreensão dos conteúdos Quando a escola consegue através de rimas, versos, estrofes, contar a história de um povo, o ensino deixa de ser mera reprodução ganha significado real, transformando a educação em algo prazeroso. Fato que não era comum no método tradicional de alfabetização. Veja a definição de Cagliari (1998) referente ao método tradicional de alfabetização:

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Alunos que são submetidos a um processo de alfabetização, seguindo o método das cartilhas (com livros ou não), são alunos que são expostos exclusivamente ao processo de ensino. O método ensina tudo, passo a passo, numa ordem hierarquicamente estabelecida, do mais fácil para o mais difícil. O aluno, seja ele quem for, parte de um ponto inicial zero, igual para todos, e vai progredindo, através dos elementos já dominados, de maneira lógica e ordenada. A todo instante, são feitos testes de avaliação (ditados, exercícios estruturais, leitura perante a classe), para que o professor avalie se o aluno “acompanha” ou se ficou para trás. Neste último caso, tudo é repetido de novo, para ver se o aluno, desta vez, aprende. Se ainda assim não aprender, repete-se mais uma vez, remanejam- se os alunos atrasados para uma classe especial, para não atrapalharem os que progrediram, até que o aluno, à força de ficar reprovado, desista de estudar, julgando-se incapaz. E a escola lamenta a chance que a criança teve e que não soube aproveitar. (CAGLIARI, 1998, p. 65)

Com o passar do tempo o termo alfabetização ganhou novo significado, não se resume apenas na aquisição da língua escrita, na transcrição dos mais variados sinais sonoros, na decodificação dos sinais, ganhou significado e alegria em aprender, cabendo ao docente a busca por ações metodológicas que encantam e despertam aprendizagem significativa. Na busca por metodologias de ensino significativo Marinho e Pinheiro (2012) apresentam sugestões para o trabalho didático com a Literatura de Cordel.

Atividades envolvendo toda a escola podem ser realizadas, uma boa estratégia é a realização de uma Feira de Literatura de Cordel. A Feira pode ser realizada em uma tarde, uma manhã, durante um dia; por exemplo, ser uma atividade específica, mas também figurar dentro de uma semana cultural, artísticas etc. Ela pode compreender diferentes atividades:  Folheteiros vendendo seus folhetos;  Emboladores e violeiros cantando, fazendo desafios, improvisado;  Exposição de xilogravuras e de folhetos antigos e/ou novos;  Murais com reportagens sobre cordelistas e literatura de cordel em geral;  Palestras e oficinas de criação de poemas de cordel, realizadas por poetas locais.(MARINHO; PINHEIRO, 2012, p.18)

Silva (2016), conclui que é possível afirmar que o ensino e a aprendizagem da oralidade ultrapassam os limites da sala de aula, levando o aluno a ser sujeito ativo no meio em que vive, por meio de pesquisas e conhecimentos de

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temas específicos. Por exemplo: se o objetivo do professor é trabalhar a escravidão, a Literatura de Cordel traz a história de Tereza de Benguela, (Cultura da região Norte do Brasil) a qual serve como suporte para a compreensão da temática de forma lírica. Em relação às constantes renovações do Cordel, advindas dos recursos tecnológicos, Oliveira e Silva Filho (2013, p. 3) esclarecem: “Ao contrário de que muitos pensam, a Literatura de Cordel está se renovando a cada dia”. Numa nova roupagem, o Cordel apresenta algumas modificações em relação aos recursos de publicação. Oliveira e Silva Filho (2013) esclarecem que as técnicas de xilogravura (figura talhada na madeira), técnica essa mais comumente usada entre os ilustradores e poetas da Literatura de Cordel está sendo substituída por outra técnica mais rápida e de mais fácil moldagem, que é a isopogravura (figura talhada no isopor) facilitando o manuseio na hora de ilustrar a capa dos folhetos. O Cordel tradicional desenvolveu importante papel na alfabetização da população nordestina Galvão (2001, p.186) registra:

A alfabetização por meio do cordel dava-se de maneira autodidata: através da memorização dos poemas, lidos ou recitados por outras pessoas, o “alfabetizando”, em um processo solitário de reconhecimento das palavras e versos, procedia, ele mesmo, à aprendizagem inicial da escrita. Em outros casos, o folheto aparece como o principal motivador para que os meios formais de aprendizado da leitura e da escrita fossem procurados.

Os cordéis tradicionais eram declamados por diversas vezes, encantando e informado a população, uma vez que eles funcionavam como tele novela da época, ou como jornal que informava e encantava ao mesmo tempo. Fato que fazia com que as pessoas se interessassem pela leitura dos mesmos. Sobre o tema Resende (2006/7) defende que: Com a expansão do sistema formal de ensino e com a ‘despopularização’ do cordel, essa função social relacionada à alfabetização e ao primeiro contato com a cultura letrada desaparece. Hoje se procura resgatar a utilização da literatura popular em sala de aula, não como auxiliar nas primeiras letras, mas como atividade de leitura e valorização da cultura nacional.

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Em se tratando de literatura de cordel, não basta que a escola imponha ao professor que ele realize o trabalho, para que haja o sucesso das atividades, faz-se necessário que o gestor escolar, sensibilize sua equipe evidenciando os pontos positivos em relação à metodologia utilizada. A respeito do tema veja:

É evidente que a viabilidade dessas contribuições de ensino que tem como base esses conteúdos, deve levar em consideração a postura teórico-metodológica do professor e da escola. Primeiro não basta o professor ter uma postura crítica frente aos conteúdos, é necessário que o professor redimensione sua prática na sala de aula e que a própria escola assuma essa postura para que todos saiam ganhando. Segundo, a implementação dos versos de cordel como metodologia de ensino passa efetivamente pelo domínio com segurança dos conteúdos propostos e discutidos com os alunos; terceiro, é necessário um planejamento adequado das proposições, no sentido da clareza da operacionalização dos trabalhos, ou seja, a escola deve oferecer as condições mínimas de estrutura e materiais necessários para a realização das aulas. (FONSÊCA; FONSÊCA, 2008, p. 9)

Na região Norte do Brasil, a Literatura de Cordel, não é comum ser usada como recurso metodológico de ensino na alfabetização, no entanto por meio das oficinas do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, em 2018, a Literatura de Cordel, começou a ganhar espaço e visibilidade como estratégias de ensino interdisciplinar.

A utilização do cordel e da tecnologia em uma escola da rede pública estadual de ensino no município de Colorado do Oeste-Rondônia

A fim de proteger a identidade e evitar exposição desnecessária dos entrevistados utilizar-se-á, letras maiúsculas do alfabeto para representá-los. A presente pesquisa foi realizada no último trimestre de 2017, em uma escola pública do município de Colorado do Oeste - Rondônia, por meio de agendamento prévio e perguntas semiestruturadas. Com foco na investigação sobre o trabalho referente à Literatura de Cordel na alfabetização e a motivação do gestor escolar, procederam-se as entrevistas e posterior análise à luz dos referencias bibliográfico da mesma. Ao se

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entrevistar uma professora, perguntou-se porque utilizar a Literatura de Cordel na alfabetização, na Região Norte do Brasil. A resposta foi:

Utilizo vários recursos para alfabetizar, no entanto, em 2012, ano que me encantei com o Cordel, todos os recursos pareciam não dar conta de alfabetizar meus alunos, foi quando a Supervisora sugeriu um vídeo de Cordel para trabalhar um conteúdo de estudo, neste momento as possíveis alternativas apareceram como passe de mágica. Lembrei-me de minha infância, e que meu pai havia me alfabetizado usando Cordel. Ele era apaixonado por esse tipo de literatura. (Professora alfabetizadora B)

Com o passar do tempo, o termo alfabetização ganhou novos significados e metodologia de trabalho, o método tradicional perdeu sua eficácia, exigindo do professor novas formas de ensinar, levando-o, a uma constante ação e reflexão sobre o trabalho pedagógico, Cagliari (1998, p. 15) afirma que:

Na antiguidade, os alunos alfabetizavam-se aprendendo a ler algo já escrito e depois copiado. Começavam com palavras e depois passavam para textos famosos, que eram estudados exaustivamente. Finalmente, passavam a escrever seus próprios textos. O trabalho de leitura e cópia era o segredo da alfabetização.

A entrevistadora perguntou para a professora de que região do Brasil seu pai era e a resposta foi: Nordeste. Fato que justifica o encanto por tal literatura, pois a mesma é, popularmente, nordestina. Na continuidade da entrevista indagou-se a professora sobre os objetivos curriculares de tais atividades e a mesma respondeu que foram vários:

Posso responder com propriedade que tal atividade foi valiosa para minha turma naquele momento uma vez que despertou o encanto pela leitura, melhorou consideravelmente a dicção, entonação, postura, melhoramento do processo de leitura, desenvolvimento da oralidade entre outros. (Professora alfabetizadora B)

A literatura de Cordel é um importante recurso pedagógico na alfabetização, para interagir na melhoria das expressões oral e escrita, por meio da morfologia, ou seja, por meio do processo de formação de palavra,

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além do aspecto da leitura como os citados pela professora “B”. Val (2006, p. 19), define alfabetização:

Pode-se definir alfabetização como o processo específico e indispensável de apropriação do sistema de escrita, a conquista dos princípios alfabético e ortográfico que possibilitem ao aluno ler e escrever com autonomia. Noutras palavras, alfabetização diz respeito à compreensão e ao domínio do chamado “código” escrito, que se organiza em torno de relações entre a pauta sonora da fala e as letras usadas para representá-la, a pauta, na escrita.

Na sequência a pergunta foi sobre a possibilidade de se trabalhar o Cordel na alfabetização de forma interdisciplinar. As respostas estão expressas abaixo:

Professora “A”: não gosto de cordel, por isso não posso responder sua pergunta. Nunca trabalhei este tipo de literatura com meus alunos.

Professora “B”: Com certeza, uma vez que o cordel possibilita a interação de vários saberes o qual permite argumentar que as práticas populares interajam com as dimensões da subjetividade inerente à produção das ciências sociais e humanas, proporcionando aspectos de grande importância para as relações referentes, ao saber cientifico e ao saber popular.

Professora “C”: Sim, pois o Cordel permite por meio de rimas, trabalhar com vários temas sociais, de maneira dinâmica e divertida.

Professora “D”: No ano passado realizei um projeto com meus alunos, eles fizeram Cordel envolvendo temas interdisciplinares, depois penduramos os livrinhos como chamados por eles nos varais e eles amaram ver suas publicações expostas e os outros alunos lendo e comentando. A experiência foi um sucesso.

Percebe-se, pelas respostas das professoras, que ao se experimentar o trabalho com o Cordel a aprendizagem desta forma de linguagem flui naturalmente. A este respeito Silva (2016, p.5) valida às respostas das professoras “B, C, D”:

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A leitura oral pode representar de início uma dificuldade tanto para o professor quanto para os alunos. No entanto, a Literatura de Cordel facilita a desenvoltura e o aprendizado dessa modalidade devido seu ritmo e da aproximação da poesia popular com os acontecimentos reais e por ser de uma linguagem próxima do cotidiano do aluno. Além do mais, a leitura oral de Cordéis possibilita também que os alunos percebam a beleza da cultura popular através da experiência concreta de leitura das mais variadas obras em vez de se apegar a modelos teóricos que futuramente são facilmente confrontados com outros estudos.

Silva (2016) defende que a utilização do Cordel no ambiente escolar deve explorar todas as possibilidades de sentidos oriundos do texto como as vozes sociais que tratam de vários temas. Ressalta-se que alguns docentes se assustam com o novo ou demonstram certa resistência, como foi o caso da professora “A” que, durante a entrevista, foi solicitado que relatasse sua trajetória profissional. A professora declarou:

Conclui o magistério há quase trinta anos e naquela época quem tinha o magistério estava habilitada para exercer a profissão. A educação hoje vive de modismo. Hora um autor parece o salvador da pátria, hora aparecem novas teorias e tendência e a aprendizagem que era boa, cada dia apresenta-se mais deficiente.

Percebe-se a necessidade da parceria e intervenção do Gestor Escolar no sentido de demonstrar que o trabalho com a leitura e escrita traz inúmeras possibilidades de recursos e suportes, visando sempre a aprendizagem dos alunos. Assim, o Cordel pode ser uma fonte de encantamento e aprendizagem pelo processo de leitura e escrita. Foi solicitado a uma professora que relatasse um trabalho com cordel que utilizou os recursos tecnológicos, que marcou sua vida profissional. A resposta da professora “B” foi:

Em 2012, meu primeiro trabalho com Cordel, realizado na semana da consciência negra que se baseou no vídeo “Literatura de Cordel Teresa de Benguela - Rainha do Quariterê" de Doca Brandão, publicado no blog da escola em 2012, no endereço eletrônico: http://escola16dejunhocolorado.blogspot.com.br/2012/

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A professora exibiu o vídeo, pelo blog da escola publicado em 24 de novembro de 2012. Ressaltou que era um tema difícil de se trabalhar, pois o texto era longo, as crianças tinham dificuldades de leitura, memorização, dicção e entonação, no entanto, para sua surpresa, conseguiram se organizar. Realizaram os ensaios em horários extraclasse e foram extraordinários, apesar da baixa qualidade da câmera que fez a gravação. Na reunião do último bimestre percebeu lágrimas nos olhos de alguns pais, ao verem o quanto seus filhos evoluíram em relação à aprendizagem curricular. Após a entrevista com as professoras, entrevistou-se a gestora da escola sobre o processo de alfabetização com o uso da Literatura de Cordel envolvendo os recursos tecnológicos. O que ela tinha a dizer sobre o tema em pesquisa e a resposta foi:

O Cordel é um recurso pedagógico educativo, na construção de conhecimento, e grandes autores tais como: Paulo Freire, Darcy Ribeiro, por conhecerem tal recurso o defendia e recomendava na alfabetização dos alunos. (Gestora da Escola)

Pelas palavras da diretora, descritas acima, percebe-se que ela é uma pesquisadora, amante da Literatura de Cordel. Perguntou-se qual sua formação acadêmica. A gestora respondeu que era Licenciatura em Letras, especialização em Literatura Infanto-Juvenil; Gestão Escolar e mestrado em Ciência da Educação, fato que justifica seu conhecimento teórico e autores que embasam o cordel como metodologia de ensino. O questionamento à gestora foi: Como ocorre o processo de exploração do cordel na escola e onde entra os recursos tecnológicos? A resposta está expressa abaixo:

Em todos os momentos, desde as pesquisas e impressão dos cordéis utilizados em sala de aula, apresentação do projeto aos pais, utilizando o projetor de imagens, até sua produção final e gravação de vídeos e exposição aos pais, de todo o processo do cordel na escola. (Gestora da Escola)

Percebe-se na fala da gestora, que a escola comunica os pais quando realiza um projeto diferente e a socialização das etapas mais importantes ao

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final do projeto, fazendo com que os alunos tornem-se responsáveis por uma boa produção uma vez que os pais estarão acompanhando o processo. Foi solicitado a gestora que relatasse uma experiência que marcou sua vida profissional, durante a produção de cordel e a resposta foi:

A Xilogravura é uma técnica de reprodução de imagens e textos que se utiliza de uma matriz de madeira. A matriz é entalhada à mão com um buril ou outro instrumento cortante. As partes altas que receberão a tinta é que vão imprimir a imagem no papel. No entanto, como seria impossível utilizar tal recurso na escola, no momento da produção do Cordel, uma professora teve a ideia: Vamos fazê-lo com batatas. Vi hoje na internet e o processo é bastante simples. (Gestora da Escola)

A gestora durante a entrevista relatou que a professora acessou o site: http://www.ehow.com.br/carimbo-batata-como_247332/ e mostrou como era simples o passo a passo. Bastava cortar a batata longitudinalmente, usar uma toalha de papel para secar o excesso de umidade da parte branca, usar a caneta permanente para fazer seu desenho favorito na parte branca da batata, depois recortar o desenho usando estilete, passar a tinta para serigrafia na parte elevada da batata usando um rolo de espuma. Depois era só usar o carimbo. No texto advertia para carimbar apenas uma vez e aplicar mais tinta e que para mudar a cor da tinta precisaria apenas lavar o carimbo de batata com água. Evidencia-se que técnicas simples e baratas podem e devem ser usadas nas produções de conhecimento dos alunos. Perguntou-se para a gestora como foi o processo de socialização e qual a reação dos pais:

Foi bastante empolgante, os pais relataram que algumas crianças pediram para que eles comprassem batatas para serem usadas na aula de língua portuguesa na escola, e que eles estranharam a princípio, o que batata tinha a ver com língua portuguesa, mas depois das explicações dos filhos, alguns pais se lembraram da apresentação do projeto e que a professora havia falado algo sobre construção de uma tal de Xilogravura. (Gestora da Escola)

Segundo a gestora, alguns pais pediram emprestado as produções, para posterior xerox, no intuito de guardá-las consigo e para também mostrarem

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para parentes e amigos as produções dos filhos na escola e declaram que a partir daquele momento, começaram a se interessarem por Literatura de Cordel. Salienta-se que as produções dos alunos foram doadas a Sala de Leitura da escola, visando oportunizar o acesso a outros alunos. Ressalta-se que quando a escola une a família aos objetivos educacionais, a aprendizagem passa a ser um prazer, momentos de aprendizagem em família.

Considerações finais

No entanto, percebeu-se que o retorno dos cordéis na literatura escolar, no século XXI, apesar da globalização, ocorre de forma tímida. Lembranças familiares por docente, ao planejarem suas atividades, incentivos dos gestores, grupos de estudos ou socialização de boas experiências envolvendo literatura de cordel contribuem para a efetivação e propagação do cordel na escola. Registra-se que a inclusão da Literatura de Cordel foi incentivada na Região Norte, por meio dos cursos de formação continuada nas escolas, ofertados pelo MEC – Ministério da Educação e por incentivo da equipe gestora. Por acreditar que o cordel deve ser trabalhado em sala de aula, em consonância com o Projeto Pedagógico Escolar. Resende (2006/7, p.19) alerta para o fato de que: “Para que o estudo do cordel possa articular conceitos faz- se necessário, antes de tudo, o abandono à visão romântica ou folclórica acerca desse produto cultural.” O advento da tecnologia representa avanços significativos para a divulgação do Cordel. No mundo virtual, ao propagar a literatura de folhetos, faz com que o Cordel chegue cada vez mais longe, rompendo fronteiras e levando arte de uma ponta a outra, por meio de uma linguagem cibernética, dando acesso fácil e rápido ao leitor. O cordel pode ser utilizado em sala de aula com diversos focos, dependendo do planejamento do professor entre eles nos estudos

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sociolinguísticos numa educação transversal, para alfabetizar, para contextualizar conteúdos de estudos dos diversos componentes curriculares. Por meio das entrevistas e análise das narrativas evidenciou que apesar das barreiras aparente no trabalhar com o cordel, quando se inicia as ações o encanto surge naturalmente com os bons resultados produzidos. Evidenciou por meio da prática vivenciada na escola que a mídia em especial a TV, vídeo e internet, tem forte influência no despertar de interesse pelo cordel na escola e nas famílias. No mundo globalizado não há espaço para culturas isoladas, mas sim conhecimentos compartilhados.

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Technologies in Primary Public Education from the teacher's perspective Tecnologías en la educación básica pública a partir de la visión del profesor

Arianny Grasielly Baião Malaquias Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Goiás [email protected]

Natalia Carvalhaes de Oliveira Instituto Federal Goiano [email protected]

Joana Peixoto Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Goiás [email protected]

Resumo O presente artigo se baseia em uma pesquisa cujo ponto de partida é necessidade de analisar as políticas educacionais que visam a integração de tecnologias à educação. O estudo foi realizado com 76 professores da rede pública estadual de educação em Goiás, com o objetivo de analisar suas percepções sobre o papel das tecnologias na educação e a trajetória de suas práticas pedagógicas. O corpus textual foi obtido por meio de entrevistas coletivas realizadas com os docentes e sua análise realizada à luz do materialismo histórico-dialético. O referido corpus, constituído pelos diários de acompanhamento do trabalho empírico e pelas entrevistas coletivas, foi estruturado em três unidades de análise, as quais serão discutidas neste artigo: 1) as práticas pedagógicas com uso de tecnologias, 2) formação para o uso, e 3) a visão do professor quanto ao uso de tecnologias. Os dados da pesquisa mostram que os docentes utilizam os objetos tecnológicos, em uma perspectiva tecnocêntrica e sem alcançar a práxis no sentido de atividade humana transformadora. O estudo evidencia a necessidade de uma análise aprofundada das políticas educacionais com enfoque no uso de tecnologias, como forma de superar a racionalidade instrumental que prevalece no tratamento do tema.

Palavras-chave: Tecnologia e educação. Prática Pedagógica. Práxis. Tecnocentrismo. Políticas educacionais para uso de tecnologias. Tecnologias na educação básica pública a partir da visão do professor Tecnia | v.4 | n.1 | 2019

Abstract This article is based on research that had as its starting point the need to analyze the educational policies that aim at the integration of technologies in education. The research was done with 76 teachers from the state school in Goiás, with the objective of analyzing the perceptions of these teachers about the role of technologies in education and the trajectory of their pedagogical practices. The textual corpus was obtained through collective interviews with these teachers and their analysis carried out in the light of historical-dialectical materialism. The mentioned corpus consisting of the diaries of monitoring the empirical work and the collective interviews, was structured in three units of analysis, such as will be discussed in this article: 1) pedagogical practices with use of technologies, 2) training for the use, and 3) the teacher's view regarding the use of technologies. The research data show that teachers use technological objects in a technocentric perspective and without achieving praxis in the sense of transforming human activity. The study highlights the need for a more in-depth analysis of educational politics focusing on the use of technologies as a way to overcome the instrumental rationality that prevails in the treatment of the subject.

Keywords: Technology and Education. Pedagogical practices. Praxis. Technocentrism. Educational politics for use of technologies.

Resumen El presente artículo se basa en la investigación que tuvo como punto de partida la necesidad de analizar las políticas educativas encaminadas a la integración de tecnologías a la educación. La investigación fue realizada con 76 profesores de la red pública estatal de educación en Goiás, con el objetivo de analizar las percepciones de los profesores sobre el papel de las tecnologías en la educación y la trayectoria de sus prácticas pedagógicas. El corpus textual fue obtenido por medio de entrevistas colectivas realizadas con esos docentes y el análisis fue realizado a la luz del materialismo histórico-dialéctico. El referido corpus, constituido por los diarios de acompañamiento del trabajo empírico y de las entrevistas colectivas, fue estructurado en tres unidades de análisis, que serán discutidas en este artículo: 1) las prácticas pedagógicas con uso de tecnologías, 2) formación para el uso, y 3) la visión del profesor en relación al uso de tecnologías. Los datos de la investigación muestran que los docentes utilizan los objetos tecnológicos, en una perspectiva tecnocéntrica y sin alcanzar la praxis en el sentido de actividad humana transformadora. El estudio evidencia la necesidad de un análisis más profundo de las políticas educativas con enfoque en el uso de tecnologías, como forma de superar la racionalidad instrumental que prevalece en el tratamiento del tema.

Palabras clave: Tecnologías y educación. Prácticas pedagógicas. Praxis. Tecnocentrismo. Políticas Educativas para el uso de tecnologías.

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Introdução

A escola, compreendida como um ambiente importante na formação social do indivíduo, é o cenário em que ele é preparado para o convívio e desempenho de tarefas cotidianas. Dentre as políticas públicas educacionais propostas a partir dos anos 1980, um tema recorrente é o uso de tecnologias; verifica-se com frequência a argumentação que os professores da educação básica devem ser preparados para usar objetos tecnológicos e, ao incorporá- los em sua prática, devem buscar promover uma melhora no processo de ensino e aprendizagem (EVANGELISTA, 2013; MAUÉS, 2009; MORAES, 1996). Para isso, objetos tecnológicos têm sido disponibilizados em escolas da rede pública de ensino, com a justificativa de melhorar o processo de ensino e aprendizagem e formar indivíduos preparados para lidar com eles em seu cotidiano. O Programa Nacional de Informática na Educação (ProInfo) é um importante exemplo dessa inserção na rede pública de ensino, sendo que em Goiás a formação de muitos professores para o uso dessas tecnologias foi realizada por meio de ações coordenadas pelos Núcleos de Tecnologia Educacional (NTE)1. O ProInfo, para além da aparente preocupação com a aprendizagem, tem forte viés economicista e objetivos que, embora expressos em diretrizes nacionais, vão de encontro a políticas internacionais. Tais políticas, sob o pretexto de incluir socialmente os alunos, por meio da inclusão digital, propõem que as ferramentas tecnológicas sejam adotadas como recursos pedagógicos (MORAES, 1996). Em busca de melhor compreender como tem ocorrido esse processo de inserção das tecnologias nas escolas públicas, ademais do que é apresentado em documentos oficiais, é necessário um olhar atento para os sujeitos ativos na implementação dessas políticas, seus contextos e a historicidade dos cursos

1 O NTE consiste em estrutura descentralizada, de nível operacional, vinculada a uma secretaria estadual ou municipal de educação e especializada em tecnologias de informação e comunicação. (TIC) aplicada à educação. Dentre as suas funções, destacam-se a capacitação de professores e técnicos e o suporte técnico e pedagógico às escolas. 110

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a eles oferecidos. Nesse sentido, fez-se pertinente uma pesquisa que propusesse a dar voz ao professor no intuito de compreender a sua visão acerca das ações formativas propostas por programas oficiais da área da tecnologia na educação no Estado de Goiás e analisar as implicações da formação recebida nas práticas docentes no que se refere ao uso de tecnologias digitais na educação.

A pesquisa e seu contexto

Este trabalho traz um recorte da pesquisa “Ecos e repercussões dos processos formativos nas práticas docentes mediadas pelas tecnologias: a visão de professores da rede pública de educação básica do estado de Goiás”2, realizada em 23 escolas públicas dos dez municípios do Estado de Goiás nos quais foram implantados os 12 primeiros NTE. Foram entrevistados 76 professores da rede pública estadual de educação, com o objetivo de analisar as suas percepções sobre o papel das tecnologias na educação e a trajetória de suas práticas pedagógicas. Os professores entrevistados foram selecionados, dentre aqueles que utilizam ou utilizaram tecnologias em suas aulas, a partir de sua participação em formações propostas pelo Ministério da Educação, em parceria com a Secretaria Estadual de Educação, ou em cursos promovidos pelos NTE do Estado de Goiás. O processo de análise dos dados, obtidos a partir das entrevistas, foi inspirado na análise de conteúdo (BARDIN, 1977). Primeiramente, fez-se uma pré-análise dos dados, por meio da escuta dos áudios das entrevistas, leitura dos diários de campo (material produzidos pelos pesquisadores após cada ida as escolas onde registravam suas observações acerca da visita) e relato dos pesquisadores sobre cada entrevista. Posteriormente, realizou-se a exploração e o tratamento do material, transcrevendo as entrevistas em forma de relatório. Após estas duas etapas, definiu-se três unidades de análise para o

2 Pesquisa realizada pelo Kadót - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as relações entre as tecnologias e a educação, com financiamento pelo CNPq: Edital Universal nº 14/2012. 111

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tratamento do corpus textual: 1) Práticas pedagógicas mediadas por tecnologias; 2) Formação e 3) Visão do professor. O depoimento dos professores entrevistados evidencia uma marcante vinculação entre as trajetórias formativas e as práticas docentes mediadas pelas tecnologias. Para orientar uma leitura contextualizada e histórica entre a visão do professor, seus processos formativos e a sua prática, adotou-se como referência o materialismo histórico-dialético. A contradição entre o empírico, o concreto e o abstrato foi tomada como categoria fundamental desta pesquisa. Além da contradição, a historicidade, a alienação e a práxis foram tomadas como referências para o estudo dos dados da pesquisa. Em relação às práticas pedagógicas, buscou-se compreender como as tecnologias estão presentes na prática docente, quais são suas principais finalidades de uso e como pode se relacionar sua prática pedagógica com o uso de tecnologias no âmbito da vida privada e profissional. Outro ponto importante também discutido nessa vertente é o processo de mediação associado ao uso desses objetos e como o professor percebe sua relação com o processo de ensino e aprendizagem. Com relação à visão do professor, procurou-se compreender como os professores percebem o papel pedagógico das tecnologias. Do discurso dos sujeitos entrevistados percebe-se três temas recorrentes: o uso de tecnologias na educação como uma fatalidade; o uso de tecnologias na educação como uma necessidade e, o uso de tecnologias na educação como inovação. Cada uma das unidades de análise será discutida a seguir.

Práticas pedagógicas mediadas por tecnologias

Durante as entrevistas os professores foram questionados sobre o uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC) em vários aspectos, tais como: se fazem uso de tecnologias - se sim, há quanto tempo; como é o planejamento para o uso e quais são as metodologias selecionadas; que atividades são propostas com as TIC; como avaliam estas experiências e quais as dificuldades encontradas.

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As falas dos professores a respeito de suas práticas mediadas por tecnologias foram organizadas de acordo com as finalidades de uso e com os recursos utilizados. De uma maneira geral, o recurso é utilizado com a finalidade de tornar a aula mais motivadora ou de facilitar a aprendizagem de um determinado assunto. Entre as finalidades de uso na prática profissional foram citadas: a) suporte para as aulas expositivas; b) apresentação de trabalhos; c) pesquisas realizadas por alunos; d) pesquisas realizadas pelos professores (planejamento e preparação de aulas); e e) instrumento mediador da aprendizagem e de comunicação. No que diz respeito ao uso na vida particular, a tecnologia foi citada como entretenimento (filmes, produção de vídeos pessoais, notícias do meio artístico), comunicação por redes sociais, compra de serviços (produtos, serviços bancários), formação por cursos a distância e acesso a notícias. Os recursos tecnológicos mais citados foram: celular, notebook, tablet, projetores multimídia e reprodutores (data-show). Esses recursos são utilizados como suporte à reprodução de imagens e vídeos, ao uso de redes sociais (Facebook, blogs, Whatsapp), de softwares educacionais (Geogebra, Winplot, CabriGeometre), ao acesso a páginas da internet para a utilização de jogos didáticos (Jogo Pinguim, Kha, Liga, Ponto, Labirinto, Lego) e repositórios educacionais. Entre os diversos fatores que definem as condições de uso foram mencionados aspectos relacionados à infraestrutura e aos equipamentos utilizados, às condições didático-pedagógicas e às políticas educacionais relacionadas ao uso de tecnologias na educação. Sobre a infraestrutura para o uso de tecnologias, a maioria dos professores entrevistados relata que esta é geralmente precária. O laboratório de informática foi majoritariamente citado como o local da escola destinado a esse uso, embora praticamente não seja disponibilizado suporte técnico, o que pode justificar o pouco acesso ao laboratório de informática. O acesso reduzido foi associado também a problemas da rede elétrica ou de acesso à internet, à má qualidade dos computadores disponibilizados e em

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quantidade menor do que é necessário para atender ao número de alunos por classe, à falta de compatibilidade dos softwares educacionais com o sistema operacional disponibilizado. Ao analisar a infraestrutura de algumas escolas contempladas pelo Programa Um Computador por Aluno (PROUCA), Echalar (2015) indica que diversos problemas observados nesse aspecto coincidem com os citados pelos professores na pesquisa apresentada neste trabalho, como a má qualidade dos equipamentos, problemas de rede elétrica e acesso a internet. Embora as questões estruturais não sejam por si as responsáveis pela eficiência do uso, como pode ser entendido a partir da leitura dos documentos norteadores dessa política pública, elas impactam diretamente na forma e disponibilidade para o uso desses objetos. Para os professores entrevistados, a lógica da escola – que se reflete na estrutura curricular, na organização didática, no projeto político pedagógico, bem como na organização de seu tempo e espaço – não se adequa a inserção das tecnologias nas escolas. Como consequência dessa incompatibilidade de rotina, uma entrevistada revela: “Só consigo levar os alunos no laboratório, quando tem duas aulas casadas, pois, na primeira aula, começo a organizar e, no finalzinho da primeira para segunda, é que consigo fazer alguma coisa”3 (P1). Uma outra professora aponta que muitos alunos acreditam que essa subutilização dos laboratórios se deve à falta de vontade dos professores, cobrando-os para o uso. Para alguns, a dificuldade de uso do laboratório de informática poderia ser amenizada com a presença de um dinamizador4, que poderia auxiliá-los na organização e condução da aula com a utilização do computador. Esses profissionais são apontados por vários professores como um auxílio importante para ajudá-los a organizar a prática pedagógica com as TIC,

3 As falas dos professores entrevistados aparecerão em itálico e entre aspas. Para preservação de sua identidade, eles estão aqui identificados pela expressão P1, P2, P3 e assim por diante. 4 O dinamizador é um professor responsável pelo laboratório de informática da escola. Segundo os entrevistados, o professor dinamizador cuidava da parte técnica operacional do laboratório e também auxiliava os demais professores no planejamento didático das aulas a serem realizadas no laboratório de informática. 114

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principalmente em termos operacionais. Para evitar essa dificuldade, muitos utilizam apenas recursos para exposição, como a televisão e projetor multimídia (data show). Apesar dos problemas relacionados à infraestrutura, o professor é cobrado para que utilize as tecnologias em sua prática, com o objetivo de tornar as aulas mais atrativas e assim colaborar para uma melhor aprendizagem. De toda maneira, os professores entrevistados reconhecem a necessidade de inserção das tecnologias em seu trabalho: “não adianta, na nossa prática, temos que colocar isso sim. Os meninos estão dentro das tecnologias ...” (P2). Essa centralidade nos objetos técnicos, como se a sua utilização em si mesma já fosse a resolução dos problemas do processo de ensino e aprendizagem, é característica de uma visão determinista-tecnocêntrica do uso das tecnologias (ECHALAR et al., 2015). Essa visão determinista da tecnologia a coloca como imprescindível na escola, uma vez que esta - como instituição educacional - deve atender a uma demanda social que indica a necessidade de uso (FEENBERG, 2010). Políticas educacionais se orientam nesta direção quando propõem o uso de tecnologias pelas suas funcionalidades técnicas em si. Esta proposição se assenta na ideia de uma autonomia das tecnologias em relação ao uso que delas é feito: como se elas fossem portadoras de um sentido que se transferisse automaticamente para as práticas pedagógicas por elas mediadas. Oliveira e colaboradores (2016), ao traçarem um paralelo entre documentos norteadores de políticas educacionais em níveis internacional, nacional e estadual (referindo-se a Goiás), evidenciam que existe um alinhamento de ideias da tecnologia como suposta responsável por melhoria na qualidade da educação (como acesso ao conhecimento, inovação do modelo educacional e gestão do processo educativo) e redução da pobreza. Para atingir tais objetivos é evidente a concepção determinista das tecnologias, como o “treinamento” de professores restrito aos aspectos técnicos, ainda assim insuficientes, colocado como condição primordial para alfabetizar os indivíduos tecnologicamente, sem aprofundamento teórico e reflexivo. Podem ser identificados discursos de ordem determinista-tecnocêntrica também em programas específicos para uso de tecnologias, na medida em que focam o seu uso para a transmissão de conteúdos como garantia de facilitação

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do trabalho docente e da aprendizagem dos alunos. Associam o uso de tecnologias a uma metodologia moderna e, portanto, adequada ao tempo contemporâneo, mas se apoiam nas funcionalidades técnicas tais como a interatividade e a colaboração e não em estratégias e procedimentos didático- pedagógicos. O discurso sobre a necessidade de uso das tecnologias pode ser evidenciado na fala dos sujeitos: “...não tem como preparar as nossas aulas fora disso, facilita também o nosso trabalho” (P3). Estes consideram as tecnologias contribuem com a sua prática, ao mesmo tempo que se constituem em obrigação que é a eles imposta. É necessário um olhar atento sobre o que essas práticas dizem além da simples utilização dos objetos tecnológicos, com o qual se possa melhor compreender os sentidos atribuídos a elas. Segundo Peixoto (2015, p. 328), “o contexto é parte integrante do uso, tanto ou mais que as funcionalidades técnicas”, sendo, portanto, fundamental considerá-lo para compreender a fala dos sujeitos e os processos individuais e coletivos que colaboram para a realidade em questão. Nesta perspectiva, foi realizada uma análise mais atenta das relações mediadas por tecnologias nas práticas pedagógicas dos professores entrevistados. Ao analisar os dados referentes ao uso didático-pedagógico que os docentes fazem das tecnologias pode-se constatar que eles utilizam rotineiramente objetos tecnológicos, tanto de forma pessoal quanto profissional, em uma perspectiva tecnocêntrica.

A formação do professor

Há de se fazer uma relação entre as práticas e a formação recebida pelos professores entrevistados. Os cursos recebidos não abordam especificamente a dimensão pedagógica pois são basicamente sobre técnicas de utilização dos recursos e equipamentos, focando no acesso à internet, e-mail, criação de sites e blogs, editores de texto, planilhas e imagens: “[...] o curso é voltado para o básico: entrar e desligar o computador, entrar na internet, formatar” (P3). Ainda conforme relato do professor: “Primeiro, os cursos estavam focados na preparação técnica; depois voltados para a educação” (P4). A

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separação entre os aspectos pedagógico e técnico, assim como a ênfase neste segundo, colocam a formação oferecida para uso educativo de tecnologias numa formação instrumental. Da mesma maneira que estes aspectos são dissociados, a formação é fragmentada em cursos de curta duração e com conteúdos desintegrados (ECHALAR et al., 2015). A pesquisa que serve de base ao presente artigo evidencia que os cursos de formação continuada oferecidos pelos programas oficiais do governo realizados pelos professores entrevistados – ao priorizarem a técnica em si em detrimento do uso pedagógico – não contribuem para a ressignificação da prática docente segundo o proposto por Nunes e Nunes (2014). Os autores apontam que a formação continuada é fundamental para a atividade docente no sentido de ressignificar a sua prática conforme as novas demandas sociais e há de se considerar o importante papel do formador, como um articulador e colaborador para a formação de um pensamento crítico e capaz de pensar em soluções adequadas a cada contexto. Impostas como condicionalidades para o financiamento de organismos multilaterais, as tecnologias são introduzidas na educação por meio de políticas, ações e programas que se alinham ao projeto econômico neoliberal. Trata-se de introduzir tecnologias na educação para melhorar o desempenho de alunos e professores com vistas ao atendimento de índices recomendados por instrumentos internacionais padronizados de avaliação (EVANGELISTA, 2013; MAUÉS, 2009; MORAES, 1996). Estas ações colocam o Brasil na dependência a interesses do capital estrangeiro, ao implementar programas educacionais que enfatizam a submissão às normas de mercado e não de produção científica e tecnológica autônomas (MORAES, 1996). É assim que a inserção de tecnologias na educação serve mais à ampliação de consumidores de parafernálias tecnológicas segundo padrões estrangeiros do que à implementação de metodologias didático-pedagógicas (ECHALAR, 2015). A prática docente compreendida como uma práxis social (CARNEIRO et al., 2014), em que a teoria e a prática estão essencialmente vinculadas, não é evidente na atividade docente a partir da descrição dos cursos realizados por eles e nem do que relatam de suas práticas. Por outro lado, é possível perceber

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os sujeitos que transformam os elementos recebidos e dão a eles um sentido próprio em seu uso, por uma necessidade de sua realidade.

Visão dos professores sobre o uso de tecnologias

Ao dar “voz, e também ouvido” aos professores se tornou possível investigar os sentidos atribuídos por eles à formação para o uso de tecnologias, analisando como essa formação se reflete em suas práticas e como retorna a sua própria visão sobre o uso de tecnologias na educação. O depoimento dos professores entrevistados evidencia que os cursos de formação continuada oferecidos pelos programas oficiais do governo se pautaram em uma lógica instrumental, segundo a qual a dimensão técnica e a pedagógica estão separadas, predominando a primeira. O objetivo das políticas educacionais para o uso de tecnologias está mais voltado para os interesses econômicos do que para o que se dizem ser. As formas de condução dessas políticas públicas também são apontadas como entraves: “A coisa está indo maravilhosamente bem, quando há mudança de governo, acontece um retrocesso. É sempre um novo começo, não é dada sequência ao trabalho feito até então” (P5). Apesar de mostrarem uma visão crítica quanto à implementação de políticas públicas para uso de tecnologias, porém de forma descontextualizada, alguns omitem o fato de não fazerem uso das tecnologias digitais. A possibilidade de não usar parece algo inaceitável, mesmo por aqueles que não se sentem muito à vontade quanto ao seu uso. É recorrente na fala dos entrevistados a crença de que uso de tecnologias digitais na educação está associado a uma pedagogia inovadora, permitindo entender que a tecnologia determina a orientação pedagógica do trabalho realizado pelo professor. No entanto, o professor, primeiramente, deve ter claro os objetivos a serem alcançados com os conteúdos abordados para depois escolherem o instrumento de mediação. A preocupação dos docentes em acompanhar as inovações e usar tecnologias é evidente em suas falas: “os meninos estão dentro das tecnologias” e “[as tecnologias] facilitam também o nosso trabalho”.

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Observa-se que o fato de os alunos utilizarem objetos tecnológicos e demonstrarem saber utilizá-los faz com que os professores queiram aprender a utilizá-los como uma forma de superar a diferença entre eles, enquanto usuário, e, ao mesmo, tempo aproximá-los. No entanto, se elo de ligação entre docente e aluno for centrada no objeto tecnológico e não o conteúdo pedagógico a prática do professor será esvaziada, implicando no empobrecimento da formação humana. Verifica-se a percepção da tecnologia como facilitadora do trabalho docente: “não tem como preparar as nossas aulas fora disso”; “facilita também nosso trabalho” e é um “economizador de tempo” (P6). Frente à sobrecarga de trabalho e às condições precárias para a realização do mesmo, o professor se vê diante da necessidade de otimizar suas atividades e considera que esta meta pode ser atingida por meio dos recursos tecnológicos, que facilitam o acesso a conteúdos e elaboração de material de apoio didático. Os entrevistados apresentam em seu discurso a marca de insatisfações que vão para além da tacanha formação que recebem. Eles ressaltam que os recursos tecnológicos estão postos em sua vida e na escola, quase como uma obrigatoriedade. Ao mesmo tempo que percebem as tecnologias como uma necessidade, um facilitador do trabalho docente capaz de motivar os alunos e despertar maior interesse em relação ao conteúdo estudado, os professores entrevistados se sentem intimidados por este objeto, do qual não pôde se apropriar de maneira crítica, em razão de uma formação inicial e continuada superficial, de caráter técnico e com poucas reflexões sobre o uso pedagógico das tecnologias. No discurso, os professores não conseguem se emancipar das visões de caráter determinista e instrumental (FEENBERG, 2010) fortemente presentes nos cursos de formação por eles vivenciados. Para que se possa romper essa lógica tecnocêntrica são necessárias ações voltadas para a formação de sujeitos e profissionais intelectuais-críticos, que se apropriem dos conhecimentos historicamente construídos na sociedade.

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Considerações Finais

A pesquisa que origina este artigo considera os professores da rede pública de educação básica do Estado de Goiás, em sua singularidade mas busca superar a percepção imediata e aparente de seus sujeitos de pesquisa, na tentativa de compreender o seu caráter universal. A perspectiva histórico-dialética – que orientou a pesquisa em tela – nos levou a considerar os professores como sujeitos ao mesmo tempo condicionados por seu contexto, mas também com certa autonomia diante dele. Isso nos indica a tomar as tecnologias como objetos culturais e históricos, cujo significado é fruto da construção coletiva dos sujeitos que os produzem e deles se apropriam. Outro aspecto fundamental da perspectiva aqui adotada é a consciência que nenhuma prática ou relação social humana é imediata. A pesquisa aqui tratada nos coloca então a questão da mediação, expressa “na forma pela qual os sujeitos se relacionam com a realidade por meio de seus objetos” (PEIXOTO, 2016, p. 369). Considerando as relações de professores e alunos com o saber, por meio de experiências com uso de tecnologias, coloca-se em questão as práticas docentes mediadas por tecnologias, seus processos formativos e a visão sobre tais relações. As condições de trabalho e os programas de formação de professores não se constituem em aspectos locais, mas se inserem em um contexto macroestrutural envolvendo politicas mercadológicas, políticas educacionais, políticas de valorização docente, condições didático-pedagógicas e políticas de formação inicial e continuada. O trabalho docente tem sido reduzido a operações instrumentais que são impostas ao professor. Estranho ao processo de objetivação de seu trabalho, o professor é dele alienado. O trabalho alienado resulta e cria contradição, uma vez que ainda há uma autonomia relativa do professor em relação ao ensino que desenvolve em sala de aula e que neste momento pode manifestar uma resistência às orientações e mesmo imposições governamentais. Foi possível perceber que, superando uma lacuna existente nos processos formativos promovidos pelos programas oficiais do governo para o uso de tecnologias na educação, muitos dos professores entrevistados encontram

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boas perspectivas para o uso de tecnologias digitais em suas práticas, configurando ações de resistência contra a alienação do trabalho docente. É evidente a necessidade de uma análise profunda das políticas educacionais com enfoque no uso de tecnologias, como forma de superar a racionalidade instrumental que prevalece no tratamento do tema. É preciso superar também a visão das TIC como capazes de suavizar desigualdades nos processos educacionais, já que “a tímida inclusão não oferece aos sujeitos meios para lidar com a realidade concreta da vida em sociedade, visto que não se busca discutir suas contradições, dilemas e incertezas e sim inserir de forma direta os aparatos técnicos” (OLIVEIRA et al., 2016, p. 352). Nos relatos dos docentes entrevistados observa-se que as práticas no uso de tecnologias não configuram uma práxis, ou seja, uma atividade humana capaz de transformar o próprio homem, não se reduzindo a uma atividade meramente prática ou teórica. No contexto educacional, a práxis implica em repensar a educação, ou seja, a prática docente deve ser reflexiva para que o educador transforme a si mesmo e seja capaz de modificar a realidade em que está inserido (VÁZQUEZ, 2011). Dentre os vários os fatores que contribuem para que a prática docente no uso de tecnologias na educação não se torne efetivamente práxis, podemos citar: formação inicial e continuada baseada na racionalidade instrumental, formação continuada aligeirada, modular, fragmentada e superficial dicotômica entre o teórico e o prático, motivação mercadológica e condições de trabalho e de infraestrutura desfavoráveis a utilização de tecnologias em sala de aula. Percebeu-se que, superando uma lacuna existente nos processos formativos promovidos pelos programas oficiais do governo para o uso de tecnologias na educação, entre os professores entrevistados encontrou-se boas perspectivas para o uso de tecnologias digitais em suas práticas, configurando ações de resistência contra a alienação do trabalho docente.

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Referências

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FEENBERG, A. O que é a filosofia da tecnologia? In: NEDER, R. T. (Org.). Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia. Ciclo de Conferências Andrew Feenberg. Brasília: Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina/ Centro de Desenvolvimento Sustentável. Série Cadernos: CCTS – Construção Crítica da Tecnologia & Sustentabilidade. v. 1, n. 3, 2010. p. 39-51.

MAUÉS, O. C. A Agenda da OCDE para a Educação. A formação do professor. In: GARCIA, D. M. F.; CECILIA, S. (Orgs.). Formação e profissão docente em tempos digitais. Campinas: Alínea, 2009, v. 1, p. 15- 39.

MORAES, R. de A. A Política de Informática na Educação Brasileira. Do Nacionalismo ao Neoliberalismo. 1996. 218f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996.

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VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2011

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Recuperação de áreas degradadas no Brasil: conceito, história e perspectivas

Recovery of degraded areas in Brazil: concept, history and perspectives Recuperación de Áreas Degradadas en Brasil: concepto, historia y perspectivas

Kárita de Jesus Boaventura Universidade Estadual de Goiás (UEG) [email protected]

Élida Lúcia da Cunha Universidade Estadual de Goiás (UEG) [email protected]

Sandro Dutra e Silva Universidade Estadual de Goiás (UEG) /Unievangélica [email protected]

Resumo Observando os problemas ambientais que assolam o planeta, e sentindo diariamente suas consequências, tem-se como de extrema importância a recuperação de áreas degradadas na contemporaneidade. Diante do exposto, o presente trabalho analisa como a recuperação de áreas degradadas tem sido tratada no Brasil, desde sua origem na história nacional até a atualidade, e as perspectivas para essa prática no futuro. Para tanto, foram consultadas obras, artigos, leis e decretos que tratam sobre o tema, sempre tendo em perspectiva o que seria ideal, dada a situação de degradação na qual o país se encontra e, o que seria possível fazer dada a realidade mostrada na literatura. Concluiu-se que o processo de degradação no Brasil é tão antigo quanto a sua própria história, assim como a preocupação pela recuperação e preservação em alguns setores, levando em consideração a história contada pelos europeus. Constatou-se também que o processo de recuperação é importante e necessário, e que há técnicas eficazes para a nucleação; transposição do banco de sementes; poleiros naturais ou artificiais; transplante de plântulas; estaquia; semeadura direta, plantio de mudas; adubação verde; plantio de espécies nativas e a utilização de fungos micorrizados arbusculares. Verificou-se a existência de uma política revestida de leis e decretos para assegurar a teoria e a legalidade das técnicas de recuperação, entretanto, conclui-se também que enquanto a recuperação ameaçar o lucro dos grandes latifundiários ou do próprio governo, tudo ficará só

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na teoria. Caso essas leis e decretos entrem em vigor, os resultados poderão ser inexpressivos, considerando o tamanho da necessidade de execução.

Palavras-chaves: Políticas públicas. Mais-valia. Gestão ambiental.

Abstract Observing the environmental problems that devastate the planet, and daily feeling its consequences, the recovery of degraded areas in the contemporaneity is of extreme importance. Therefore, the present work aims to analyze how the recovery of degraded areas has been treated in Brazil, from its origin in the national history to the present, and the perspectives for this practice in the future. In order to do so, we consulted works, articles, laws and decrees dealing with the subject, always having in perspective what would be ideal, given the degradation situation in which the country is and what could be done given the reality shown in the literature. It was concluded that the process of degradation in Brazil is as old as its own history, as well as the concern for recovery and preservation in some sectors, taking into account the history told by the Europeans; that the recovery process is important and necessary; that there are effective techniques for such as, for example, nucleation, seed bank transposition, natural or artificial perches, seedling transplantation, cuttings, direct sowing, planting of seedlings, green manuring, planting of native species and the use of fungi mycorrhizal arbuscular; and that there is a policy lined with laws and decrees to ensure the theory and legality of it. However, it is also concluded that as long as the recovery threatens the profit of the large landowners, or of the government itself, everything will remain in theory only, or may even come into force, however, with deadly results, if one considers the size of the need for execution.

Keywords: Public policies. Added value. Environmental management.

Resumen Observando los problemas ambientales que asolan el planeta, y sintiendo diariamente sus consecuencias, se tiene como de extrema importancia la recuperación de áreas degradadas en la contemporaneidad. En el presente trabajo, se analiza cómo la recuperación de áreas degradadas ha sido tratada en Brasil, desde su origen en la historia nacional hasta la actualidad, y las perspectivas para esa práctica en el futuro. Para ello, se consultaron obras, artículos, leyes y decretos que tratan sobre el tema, siempre teniendo en perspectiva lo que sería ideal, dada la situación de degradación en la cual el país se encuentra y, lo que sería posible hacer dada la realidad mostrada en la realidad de la literatura. Se concluyó que el proceso de degradación en Brasil es tan antiguo como su propia historia, así como la preocupación por la recuperación y preservación, en algunos sectores, teniendo en cuenta la historia contada por los europeos. Se constató también que el proceso de recuperación es importante y necesario, y que hay técnicas eficaces para la nucleación; transposición del banco de semillas; perchas naturales o artificiales; trasplante de plántulas; de corte; siembra directa; plantación de mudas; abono verde; la plantación de especies nativas y la utilización de hongos micorrizados arbusculares. Se verificó la existencia de una política revestida de leyes y decretos para asegurar la teoría y la legalidad de las técnicas de recuperación. Sin embargo, se concluye también que, mientras la recuperación amenaza el lucro de los grandes terratenientes, o del propio gobierno, todo quedará sólo en la teoría. En caso de que dichas leyes y decretos entren en vigor, los resultados pueden ser inexpresivos, considerando el tamaño de la necesidad de ejecución.

Palabras claves: Políticas públicas. Plusvalía. Gestión ambiental.

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Introdução

O mundo em que vivemos tem sofrido transformações ao longo do tempo, e boa parte dessas é em decorrência da ação humana. O homem desde a sua origem tem modificado a Terra. A princípio essas modificações foram discretas porque a intenção era apenas a subsistência. No entanto, com o passar do tempo, a subsistência passou a ser apenas mais um dos inúmeros objetivos que o moviam a “desbravar” o planeta. Esses objetivos, com o desenvolvimento da civilização, da política, da economia, da cultura, passaram a engendrar uma rede de conexões que tem como consequência a mais-valia. A busca incessante pelo lucro e acúmulo de capital tem trazido problemas à Terra que, provavelmente, um dia, irão inviabilizar a vida na mesma. Como afirmaram Kohlrausch e Jung (2015, p. 5), “falar de degradação ambiental e sua relação com o homem, é falar da história da humanidade”, ou seja, a interferência humana no meio natural é antiga, entretanto, as consequências dessa tem se mostrado vorazes agora na contemporaneidade. Exemplos dessas consequências são o aquecimento global, a poluição, a infertilidade dos solos, a falta de água, entre muitas outras. Como o ser humano tem sentido essas consequências e, as mesmas tem ameaçado não só a sua subsistência, mas também a mais-valia, tem se tentado tomar algumas atitudes a fim de amenizar esses problemas. No entanto, na prática, segundo Kohlrausch e Jung (2015), essas atitudes têm como prerrogativa não acabar com o avanço capitalista, e trazer o mínimo de prejuízo possível em capital. Pensando nesse processo de recuperação de ambientes antropizados e, por consequência, degradados, numa expectativa de colocá-lo em prática, a princípio deve-se classificar a área enquanto perturbada ou degradada, para depois decidir qual será a metodologia adotada. Sartori (2014, p.2) afirma que “área degradada é a área impossibilitada de retornar por uma trajetória natural a um ecossistema que se assemelhe a um estado conhecido antes, ou para outro estado que poderia ser esperado”. Por sua vez, “área alterada ou perturbada é aquela que após o impacto ainda mantém meios de regeneração biótica, ou seja, possui capacidade de regeneração natural”. Nesse trabalho, a ênfase são as áreas degradadas.

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Segundo o Decreto Federal 97.632/89 (Brasil, 1989), áreas degradadas são locais onde há danos ao meio ambiente causados por ações humanas. As consequências são a redução ou perda de propriedades e características naturais. Refletindo sobre esse conceito, as questões que se salientam são: Se essa degradação, esses danos ao meio ambiente são tão evidentes e catastróficos, porque se deixou chegar a esse status? Porque não se fez algo antes das perdas serem tão imensuráveis? E agora, ainda pode ser feito alguma coisa? E, se sim, qual a eficácia disso diante de tamanha devastação? Nesse sentido, segundo Kohlrausch e Jung (2015, p. 3), as principais atividades causadoras de impactos ambientais são: obras de saneamento, urbanização, extração mineral, agropecuária, comércio e serviços, usinas de geração de energia, indústrias de transformação e instalações terminais (portos, aeroportos, etc.). Nesse patamar tem-se a perspectiva de que “15% dos solos do mundo encontram-se degradados ou em processo de degradação. Na região tropical, a situação é ainda pior: mais da metade dos solos tropicais possuem algum grau de degradação”. Percebendo o mencionado, a sociedade como um todo tem procurado formas de propiciar a Recuperação de Áreas Degradadas (RAD). Para tanto, Ortis et al. (2012, p. 2) afirmam que o ideal para a recuperação das áreas degradadas “seria através do estudo do processo de sucessão ecológica ou secundária que é o desenvolvimento da comunidade ecológica pela ação da vegetação sobre o ambiente e que conduz ao estabelecimento de novas espécies na formação do novo ecossistema”. Esse processo de sucessão ecológica proporciona mudanças na estrutura das espécies e da comunidade, que culminam em transformações na natureza e nas relações que os seres vivos estabeleceram com ela e entre si. Por isso foram criados os “PRADs”, ou seja, Plano ou Projeto de Recuperação de Áreas Degradadas, “que tem como objetivo principal criar um roteiro sistemático, contendo as informações e especificações técnicas organizadas em etapas lógicas, para orientar a tecnologia de recuperação ambiental de áreas degradadas ou perturbadas para alcançar os resultados esperados” (ALMEIDA, 2016, p. 141). É necessário observar que o processo de recuperação ambiental, na maioria das vezes é lento, burocrático e caro. Isso, além de se precisar de muito conhecimento do contexto histórico da área

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degradada e as características detalhadas do local, o que nem sempre é fácil conseguir. Para tanto, “o PRAD deve ter inicialmente seus objetivos bem definidos, ajustando variáveis como: as necessidades legais, desejo do proprietário do terreno, aspectos sociais e econômicos” (ALMEIDA, 2016, p. 142). Tendo o descrito como base, de forma geral, tem-se os PRADs como instrumento legal para a realização da Recuperação de Áreas Degradadas. Isso pois é necessário se estabelecer normas, prioridades e limites tanto para a degradação, já que esta, em muitos casos, se torna inevitável e, principalmente, para a recuperação, na tentativa de não fazer desta última uma prática negligenciada. Para fazer a RAD é necessário um planejamento que, a priori, busque a solução mais rápida, eficaz e econômica a fim de se recuperar a área, lembrando que essa está condicionada à legislação e exigências dos órgãos ambientais. Para tanto, segundo Almeida (2016, p. 142), “é preciso conhecer o passado, analisar o presente e planejar o futuro das áreas a reabilitar”. Aqui as “receitas prontas” e de uso comum, provavelmente, não funcionarão, ou não surtirão o efeito desejado, isso pois “cada situação específica deve receber um tratamento adequado”. Pensando nessas situações específicas, se observa que existem várias técnicas para fazer a recuperação de áreas degradadas. Por isso em uma RAD o método empregado tem que ser fundamentado teoricamente e tecnicamente, prevendo ainda a possibilidade de alteração das técnicas estabelecidas, se elas não atingirem o efeito desejado. Dentre as diversas técnicas utilizadas, Sartori (2014) salienta: plantios de espécies nativas por mudas ou semeadura direta; transposição de solo orgânico ou serapilheira com propágulos; propagação vegetativa de espécies nativas; condução da regeneração natural; entre outras. Todavia, é importante salientar que parte das RADs planejadas e aprovadas não são executadas, por isso se faz necessário maior acompanhamento, fiscalização e punição aos negligentes. A partir do mencionado, é fato que a preservação do meio ambiente é de suma importância para a manutenção e qualidade da vida no planeta. Entretanto, também é fato que qualquer RAD planejada, aprovada e desenvolvida vai encontrar entraves com o avanço capitalista contemporâneo. Tendo então o objetivo de analisar como a recuperação de áreas degradadas

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tem sido tratada no Brasil, desde sua origem na história nacional até a atualidade, e as perspectivas para essa prática no futuro, o pretenso texto é dividido em três partes. A primeira faz uma contextualização histórica tanto da degradação ambiental no país quanto da prática da tentativa de sua recuperação. A segunda fala das políticas públicas que existem e corroboram com a RAD no Brasil, analisando suas perspectivas para o futuro ante o avanço capitalista sobre o meio ambiente. E, a terceira parte é um compêndio de análises das técnicas de recuperação de áreas degradadas mais utilizadas em terras nacionais.

1. Degradação ambiental e recuperação de áreas degradadas no Brasil: conceito e história

A degradação ambiental em terras brasileiras vem ganhando impulso desde a chegada dos portugueses durante a colonização. Não está se afirmando que os nativos, antes da colonização, não degradavam o ambiente em algum nível, mas também não é intenção desse trabalho levantar tal questão. Mas, independentemente dessa discussão, o fato é que quando os portugueses chegaram explorando todos os recursos naturais que podiam e impondo sua política, economia, sociedade e cultura aos nativos, eles começaram um processo de degradação ambiental que, com o tempo, vem trazendo o perigo de extinção a boa parte da biodiversidade do país. Analisando o contexto histórico do Brasil, é possível perceber que a degradação teve períodos de alta e baixa em diferentes níveis, sempre dependendo do interesse político, econômico, social e cultural que se tinha na terra. Quando os portugueses chegaram, em 1500, a prioridade era achar ouro, como esse não foi encontrado, a priori, o interesse português se voltou para a exploração do pau-brasil e, um ou outro recurso natural que eles foram encontrando pelo caminho. Em meio a essa exploração, foram abrindo clareiras na mata sem a mínima intenção ou preocupação com o que poderia acontecer com a terra. Depois, na metade do século XVII, quando o ouro foi encontrado, não só portugueses, mas muitos europeus de outras nacionalidades se voltaram para o Brasil. Nessa época o país foi “dilacerado” através de minas que formavam

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buracos no solo que eram simplesmente abandonados quando o ouro escasseava. Assim como as cidades que se formavam em meio à mata, ao redor dessas minas, mas que eram abandonadas quando a mina parava de produzir. Quando o ouro acabou vieram os ciclos das monoculturas. Plantou-se cana-de-açúcar, algodão, fumo, café, dentre outros. Isso além da constante procura de pasto para o gado. E, quando a colônia deu lugar para o império, em 1822, ainda havia a ambiciosa luta para fazer do país uma cópia da Europa quanto a pretensa “civilização” que essa tinha, e o Brasil não. Nesse processo há a construção desenfreada de estradas que ligavam cidades que pareciam “brotar” em meio a mata e, tudo o que estava no caminho “atrapalhando o desenvolvimento” ia sendo derrubado, morto ou retirado. Quando houve a proclamação da República, em 1889, essa “onda desenvolvimentista” dá lugar ao avanço dos grandes latifúndios, principalmente para a produção de café, carne e leite. O solo é então explorado ao máximo de sua capacidade, e como em muitos lugares não se fazia rotação de culturas, em pouco tempo esse solo se tornava infértil, por isso era abandonado. Depois da Revolução de 1930, Vargas, então presidente, dá início a um período de interiorização do país com o objetivo de “povoar” todo o Brasil e levar civilidade e modernização ao interior. Esse movimento se consagra com a Marcha para o Oeste, em 1937, e pelo mesmo, partes do país que ainda se mantinham longe dos “olhos cobiçosos” do pretenso progresso foram alcançadas. O processo de interiorização do país tem o seu ápice com a construção de Brasília, em 1960, no governo de Juscelino Kubitscheck. Quando a capital federal é colocada no “coração do Brasil”, os olhares políticos e econômicos se voltam para todas as direções e nada é perdido de vista, ou seja, a exploração da terra é potencializada agora por uma maior supervisão do governo federal. Durante a ditadura militar (1964-1985), os governos que se sucedem promovem planos de desenvolvimento que, entre suas metas, procuram formas de melhor se explorar a terra. Nesse interim, solos que antes eram ignorados, por causa da sua baixa fertilidade, como o Cerrado por exemplo, agora passavam por um processo de correção da acidez para poderem

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produzir. A partir daí a agropecuária invade esses territórios e a vegetação nativa e a biodiversidade tem perdas imensas. O período de redemocratização, pós ditadura militar, e a democracia atual ainda são marcados por essa busca incessante de tirar capital da terra. Ferreira et al. (2016) salienta que a consequência disso é um processo de degradação ambiental contínuo e progressivo. Por isso, as consequências dessa degradação têm sido sentidas por todo o mundo. No entanto, quando se fala em Recuperação de Áreas Degradadas, Almeida (2016) aponta que historicamente é possível perceber que em território nacional os esforços para tal são extremamente recentes, se pensado no processo de degradação e, muito morosos, se comparados a países considerados mais desenvolvidos na contemporaneidade. Pensando no processo de recuperação de áreas no Brasil, se observa que as primeiras tentativas foram tímidas e pouco eficientes. Isso tendo em vista que, por causa da exploração capitalista desenfreada, que tem gerado mais- valia desde o início, o interesse na preservação é bem inexpressivo, a priori. A isso, aliou-se a ignorância quanto ao tema e a falta de recursos para tanto:

Em nosso país, a primeira tentativa de recuperação de áreas ocorreu no século passado quando o Major Manuel Gomes Archer, por ordem do Imperador, iniciou, em 1886, o reflorestamento da floresta da Tijuca, neste plantio, foi utilizada uma mescla de plantas nativas e exóticas (incluindo eucaliptos) (...). Nesta fase inicial de recuperação ambiental, no Brasil, além do pouco conhecimento da dinâmica dos ecossistemas naturais, existia uma carência muito grande de áreas de produção de mudas nativas. Estas dificuldades levaram à implantação de muitos projetos com pequena variedade de espécies, eram utilizadas as mudas que se tinha disponível, em plantios aleatórios e, muitas vezes, espécies exóticas àqueles ambientes que estavam sendo recuperados (ALMEIDA, 2016, p. 19).

Em contrapartida, outras iniciativas chamam atenção como a criação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro em 1808, pelo príncipe regente Dom João, que representou um papel importante no contexto ambiental brasileiro e mundial. Bediaga (2007) cita que em 1861 esse jardim se tornou parte do Instituto Fluminense de Agricultura e, em 1991, foi considerado Reserva da Biosfera pela Unesco.

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Em 1911, o decreto nº 8.843 de 26 de julho (BRASIL, 1911) regulamentou a criação da primeira reserva florestal do Brasil no Território do Acre. E o decreto nº 4.421 de dezembro de 1921 (BRASIL, 1921) regulamentou o Serviço Florestal, ficando a cargo do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio a conservação, beneficiamento, reconstituição, formação e aproveitamento das florestas. Houve também a criação do primeiro parque nacional brasileiro em 1937, a partir do decreto 1.713 de 14 de junho, pela assinatura de Getúlio Vargas. Segundo Tavares (2015), esse é um ponto importante na história da estruturação das primeiras Unidades de Conservação Brasileiras. Atualmente existe um Sistema Nacional de Unidades de Conservação, regulamentado pela Lei 9.985/00. Hoje são várias as técnicas desenvolvidas em território nacional a fim de recuperar áreas degradadas, todavia, os entraves para tanto também são muitos. Almeida (2016) cita que há uma corrente ecológica de preservação crescente no Brasil que defende e ensina técnicas mais apropriadas de recuperação levando em consideração o histórico de degradação da área e a manutenção de espécies nativas. Entretanto, replicando essa ideologia preservacionista, está a lógica capitalista de mercado que, mesmo na constatação da necessidade de preservação e recuperação de áreas, fala mais alto quando o que está em voga é qualquer tipo de prejuízo financeiro. Parece controverso a ideia de mais- valia, mesmo esta tendo como consequência a extinção da vida no planeta, no entanto, pensando em Brasil, isso acaba tendo algum sentido aos detentores do poder e da terra. Por isso, é relevante atentar às novas tendências em que são considerados os fatores ecológicos, mas também os econômicos: Seguindo essa vertente, onde a mais-valia não é deixada de lado, ou até expurgada, para se preservar ou recuperar áreas, o êxito acaba sendo maior. Analisando o histórico de degradação ambiental no país, fica evidente a percepção de que há que se encontrar um consenso entre a recuperação de áreas e o capitalismo crescente, isso uma vez que todo o processo de degradação que o Brasil sofreu até agora é em decorrência da obtenção de lucro e acúmulo de capital. Uma abordagem enfática de cunho

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preservacionista pode até ter um impacto moral maior, contudo, provavelmente, pouco efeito prático real.

2. Recuperação De Áreas Degradadas: Políticas E Perspectivas

A legislação ambiental induz obrigatoriedade para recuperação de áreas degradas. O marco para tal é o Código Florestal, Lei nº 12.651 (BRASIL, 2012), com aprovação do primeiro texto em 1934 e do último texto em 2012. A legislação em si é de fundamental importância para o técnico que elabora projetos nesta área. Segundo Almeida (2016), novas exigências legais definem critérios para demarcação e recuperação de áreas de preservação permanente e reserva legal, além de estabelecer alguns mecanismos como a implantação do CAR (Cadastro Ambiental Rural) e do PRA (Programa de Regularização Ambiental). A seguir constam as principais leis aplicadas no Brasil, obedecendo a ordem cronológica: A lei nº 6.902/81 (BRASIL, 1981a) corresponde a criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental. Nessa, em seu primeiro artigo tem-se que as Estações Ecológicas são amostras de ecossistemas brasileiros, destinados às pesquisas sobre ecologia, à proteção do ambiente natural e ao desenvolvimento da educação ambiental. A lei federal nº 6.938/81 (BRASIL, 1981b) corresponde a Política Nacional de Meio Ambiente, foi a primeira lei que visou organizar as questões políticas do meio ambiente e toda a estrutura governamental em nível federal, estadual e municipal. A partir dessa lei constituiu-se o SISNAMA (Sistema Nacional do Meio Ambiente) e o CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente). Em seu art. 4º norteia-se a preservação e restauração dos recursos ambientais com ênfase na utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida. Ambas as leis nº 6.902/81 e nº 6.938/81 são regulamentadas pelo decreto nº 88. 351 de junho de 1983 (BRASIL, 1983). Em 1985 foi estabelecida a lei nº 7.347 (BRASIL, 1985) de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente e ao consumidor. Essa prevê ação civil pública e cria instrumentos para a defesa do meio ambiente

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em esfera jurisdicional e para recuperação de áreas degradas por meio de fundo específico e de licitação para contração de empresa para recuperação de áreas degradadas. O CONAMA estabeleceu na resolução nº 001/86 (BRASIL, 1986) a obrigatoriedade do EIA (Estudo de Impacto Ambiental) e respectivo RIMA (Relatório de Impacto Ambiental). Esses utilizados para determinados empreendimentos, tem foco na mitigação dos impactos ambientais. A Constituição Federal de 1988, no artigo 225 (BRASIL, 1988) estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, sendo do poder público e da coletividade o dever de preservá-lo para as presentes e futuras gerações. O § 1º, traz à responsabilidade do poder público preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas. O § 2º aponta a obrigatoriedade para aquele que degradar, recuperar o meio ambiente degradado, conforme a solução técnica exigida por órgão público competente. A Constituição Federal ainda fornece maior respaldo para os mecanismos já existentes. Estabeleceu-se em 1989, a partir do decreto nº 97.632/89 (BRASIL, 1989), a obrigatoriedade de recuperação de área degrada como parte do RIMA. Instituiu-se também o Plano de Recuperação de Áreas Degradas (PRAD), o qual pode ser empregado como forma preventiva ou corretiva por ações de mineradoras. Na Constituição de 1988 inclusive, é prevista a recuperação dado à mineração, todavia foram deixadas brechas na lei que hoje condicionam a degradação. A lei nº 9.605/98 (BRASIL, 1998), chamada lei de crimes ambientais, define as sanções penais e administrativas provenientes de condutas e atividades que danificam o meio ambiente. O seu art. 23 traz a execução de obras de recuperação de áreas degradadas. Em meio as penalidades constam a prestação de serviços à comunidade, suspensão total ou parcial das atividades, dentre outras. Almeida (2016) pontua que ao mesmo tempo foi criado o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) formalizado pelo órgão ambiental por meio do Ministério Público, nele são expressas ações para recuperar áreas degradadas, podendo o infrator, às vezes, reduzir em até 90% o valor da multa ambiental aplicada.

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O decreto nº 3.420 de 2000 (BRASIL, 2000a), criou o PNF (Programa Nacional de Florestas). Esse fomenta a restauração e recomposição de florestas de preservação permanente, de reserva legal e áreas modificadas. A lei nº 9.985/00 (BRASIL, 2000b), regulamenta o art. 225 da Constituição Federal e institui o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza). O mesmo estabelece critérios e normas para criação, implementação e gestão das unidades de conservação. A utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica é estabelecida pela lei nº 11.428 (BRASIL, 2006a), a qual dispõe que o poder público fomentará o enriquecimento ecológico da vegetação, o plantio e reflorestamento com espécies nativas. No art. 17 encontra-se que se houver retirada de vegetação primária ou secundária nos estágios médio e avançado de regeneração do bioma, autorizados por esta lei, fica condicionado a compensação ambiental. Essa, na forma de destinação de área equivalente a desmatada, com os mesmos caracteres ecológicos, na mesma bacia e sempre que possível na mesma microbacia. A resolução 387/06 do CONAMA (BRASIL, 2006b) estabelece os procedimentos para o licenciamento ambiental e projetos de assentamentos de reforma agrária. Também institui o PRA (Plano de Recuperação do Assentamento) para recuperação de área de reserva legal e de preservação permanente. Em 2008 foi regulamentado, a partir do decreto nº 6.660, dispositivos da lei nº 11.428 (BRASIL, 2008), que dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa. Esse traz em seu art. 4º a independência de autorização do órgão ambiental competente para o enriquecimento ecológico da vegetação secundária, por meio de plantio ou semeadura de espécies nativas, incluindo os plantios com finalidade de recuperação ambiental e para fins econômicos. A Lei nº 13.550 de 2009 (BRASIL, 2009a; BRASIL, 2009b) dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Cerrado no Estado de São Paulo, seguida da Resolução SMA-064 do mesmo ano, essas regulamentam diretrizes para restauração do Cerrado, imposta como compensação pelo seu desmatamento. O art. 5º desta resolução traz que a compensação deve ser realizada na mesma propriedade, por facilitação dos processos de regeneração natural do Cerrado.

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A portaria do Ibama nº 14 de 2010 (IBAMA, 2010) prevê o uso de herbicidas a base de ingredientes como triclopir éster butoxi etílico, imazapir e glifosato, para o controle de espécies exóticas, como o capim-gordura, braquiária etc., e até mesmo árvores invasoras como o pinus. Isso proporciona, segundo sua análise, maior sucesso nos processos de cuidados com replantio em áreas de recuperação. Importante destacar nesse ponto que o Ibama salienta isso como ação, no entanto, não está se defendendo aqui o uso de agrotóxicos, muito pelo contrário. Alternativas com métodos sem o uso dos mesmos são apontadas, abordadas e altamente recomendadas por correntes preservacionistas. Uma dessas correntes é a agroecologia, e essa defende que o uso de agrotóxico proporciona muito mais degradação ambiental do que recuperação de áreas. A instrução normativa nº 4 de 2011 (IBAMA, 2011), estabelece os procedimentos para elaboração de PRAD ou área alterada, traz em anexo Termos de Referência e diferencia dois tipos de PRAD (PRAD e PRAD simplificado). Na instrução é determinado que o PRAD deve propor diagnósticos, levantamentos e estudos que possibilitem a avaliação da degradação ou alteração, e a escolha adequada à recuperação da área em questão. A resolução CONAMA nº 429 (CONAMA, 2011) dispõe sobre a metodologia de recuperação das APPs (Áreas de Preservação Permanente). Os métodos estabelecidos no art. 3º são: condução da regeneração natural, plantio de espécies nativas, plantio de espécies nativas em conjunto a condução da regeneração natural de espécies nativas. Em 2012 foi estabelecida a lei nº 12.651 (BRASIL, 2012), conhecida como novo Código Florestal, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa e substitui o Código Florestal, trata em diversos artigos (e.g. artigos 1º-A, 7º, 17, 41, 44, 46, 51, 54, 58, 61-A, 64, 65 e 66) de medidas organizadas entre os setores público e a sociedade civil para promover a recuperação de áreas degradadas. No Distrito Federal, foi criado em 2013 a Instrução nº 174, de 26 de julho, a qual dispõe a maneira correta de uso e destinação final do topsoil (camada mais superficial do solo, rica em matéria orgânica e microrganismos) proveniente de supressão vegetal nativa (INSTITUTO DO MEIO

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AMBIENTE E DOS RECURSOS HÍDRICOS DO DISTRITO FEDERAL, 2013). Essa instrução foi estabelecida a partir de uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília em parceria com a Embrapa. O topsoil foi aplicado em uma região de pedreira abandonada, e após três anos várias espécies herbáceas, arbustivas e arbóreas foram identificadas, o que resultou num enorme potencial de restauração dos recursos genéticos de áreas de supressão vegetal importantes para o Cerrado (EMBRAPA, 2015). A partir da apresentação de todo este panorama da legislação ambiental para recuperação de áreas degradadas no Brasil, é possível observar que há uma preocupação legal com os aspectos ambientais desde antes da existência da Constituição Federal de 1988. Entretanto, é notório que há um número crescente de áreas degradadas no país, o que expressa um leque de problemáticas, que vão desde a ineficácia da aplicação das leis pelos órgãos ambientais responsáveis, até a falta de sensibilização das pessoas e/ou empresas que usufruem dos recursos ambientais.

3. Técnicas de recuperação de áreas degradadas mais utilizadas em terras tupiniquins

As ações antrópicas nos ecossistemas naturais, com a vasta exploração dos recursos, têm sido discutidas, segundo Tricart (1977), desde 1970. Mais de quarenta anos se passaram, e o Fundo Mundial para a Natureza (World Wide Fund for Nature, 2014) afirma que se tem entre 40% e 50% da superfície da Terra transformada em áreas de agricultura ou centros urbanos. E ainda, que os locais não diretamente explorados, sofrem impactos devido a fragmentação das áreas adjacentes. A WWF (2014) pontua nesse aspecto que a intervenção humana, em um processo de restauração, é necessária quando a área atinge um nível incapaz de retornar ao clímax naturalmente, ou seja, não é mais resiliente como correção de tentativas anteriores de recuperação que não foram bem- sucedidas. Seguindo essa linha, Filho et al. (2015) afirmam que os eventos e processos que acarretam a degradação ambiental são muitos e variados, por exemplo: os desmatamentos; a própria ação das chuvas, que tem se tornado escassas, mas quando precipitam, em muitos lugares, vem em forma de

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tempestades e deixam suas marcas; as queimadas provocadas indiscriminadamente pelo homem, dentre outros. Por isso, é necessário um diagnóstico amplo da área a ser recuperada, para identificar os corpos hídricos e nascentes, quais os agentes da degradação, levantamento florístico, avaliar se existe potencial para regeneração natural. Isso tudo antes de estabelecer uma técnica de recuperação a ser utilizada. Várias técnicas são utilizadas para recuperação de áreas degradadas e restabelecimento da biodiversidade. Dentre essas, o WWF (2014) cita: nucleação, transposição do banco de sementes, poleiros naturais ou artificiais, transplante de plântulas, estaquia, semeadura direta, plantio de mudas. Isso, além da adubação verde utilizando espécies nativas (priorizando as arbóreas), e a utilização de fungos micorrizados arbusculares. Caracterizando as técnicas citadas, temos: a. Semeadura direta: Alternativa ao método tradicional de plantio de mudas, além de ser menos onerosa. Ferreira et al. (2016) diz que essa pode ser usada para o plantio de espécies que promovem adubação verde. b. Plantio de mudas: Essa técnica é efetiva na ampliação do processo de nucleação. Martins (2007) explica que, por essa, as mudas podem ser plantadas ao acaso, sem espaçamento definido ou em linhas intercaladas entre espécies pioneiras e não pioneiras, com espaçamento definido. c. Adubação Verde: Essa, por sua vez, é realizada através do plantio de leguminosas e apresenta bons resultados na recuperação de áreas degradadas, além de ser mais viável por ser de baixo custo, já é amplamente utilizada na agricultura. Filho et al. (2015), enfatizam que, outra vantagem é que as leguminosas podem se associar com bactérias fixadoras de nitrogênio, além de fazerem simbiose com fungos micorrizos arbusculares. É pontuado que essas plantas podem recobrir as áreas degradadas de forma mais rápida, pois possuem grande capacidade de reprodução. d. Nucleação: Yarranton e Morrison (1974), explicam que a técnica de nucleação se baseia na capacidade de uma espécie para melhorar o ambiente, e facilitar a ocupação dessa área por outras espécies secundárias. Barros Júnior e Rizzo (2012) enfatizam que essa técnica é importante no processo de recuperação, porque propiciam a regeneração natural mais rápida, aumentando a biodiversidade em áreas perturbadas.

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e. Transposição de banco de sementes: Essa técnica também é conhecida como transposição de solo e consiste em transferir porções superficiais do solo e serapilheira, de uma área de sucessão mais avançada e colocá-las em faixas ou ilhas na área a ser recuperada (REIS e TRÊS, 2007; MARTINS, 2007). f. Poleiros naturais e artificiais: Esses são usados como área de pouso para aves e morcegos, a fim de atraí-los com intuito de disseminar as sementes e formar núcleos de vegetação. Segundo Martins (2007), podem ser feitos com o plantio de espécies com rápido crescimento ou serem construídos artificialmente com varas de bambu ou postes de eucalipto, por exemplo. g. Transplante ou resgate de plântulas: É uma técnica pouco usada e estudada no Brasil. A WWF (2014) afirma que a mesma consiste em coletar plântulas jovens e transportá-las à viveiros ou às áreas a serem recuperadas. Isso representa uma vantagem na obtenção de espécies nativas raras, endêmicas ou ameaçadas de extinção, que não estão disponíveis em viveiros. 8. Estaquia: É a técnica de multiplicar partes vegetais para gerar indivíduos idênticos a planta mãe. A WWF (2014) argumenta que é uma técnica pouco conhecida para fins conservacionistas e usada no cultivo de plantas medicinais e ornamentais. Promissora pra espécies do Cerrado, as quais possuem uma grande capacidade de rebrota. h. Plantio de espécie nativas: Filho et al. (2015), argumentam a importância de que as espécies nativas sejam parte do processo de recuperação. Isso porque as mesmas são capazes de atrair animais silvestres que espalham sementes de outras espécies, aumentando a biodiversidade e auxiliando o processo de sucessão. i. Utilização de fungos micorrizos arbusculares: Filho et al. (2015, p. 3) pontuam que os micorrizos agem “na qualidade dos ecossistemas, facilitando a revegetação, sucessão vegetal, agregação do solo e aumento da capacidade de absorção de nutrientes e água, auxiliam na resistência de plantas contra o ataque de patógenos e no desenvolvimento vegetal”. Nesse patamar, a importância desses fungos para a agricultura, e para os ecossistemas naturais, tem ficado em evidência nos últimos 30 anos por causa “do aumento da importância dos processos naturais na produção agrícola, e da necessidade de reabilitar ecossistemas destruídos pela atividade humana”.

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Tendo em voga todas as técnicas mencionadas acima, é necessário salientar que elas não são as únicas existentes, porém são as mais utilizadas, principalmente em território nacional. O maior uso das mesmas deve-se principalmente devido ao baixo custo da maioria, o que propicia sua utilização em larga escala e por pessoas, ou instituições, de diferentes níveis econômicos, além de sua comprovada eficácia na recuperação de áreas degradadas.

Considerações finais

Tendo como base tudo o que foi mencionado, é evidente que a degradação ambiental acompanha a história do homem no planeta. Desde o surgimento do homem, ele vem alterando o curso natural do meio em benefício próprio. Essa alteração, a princípio, era com o objetivo de sobreviver, porém com o “desenvolvimento” da civilização, as intenções humanas se voltaram ao lucro, a mais-valia. Com isso o processo de degradação foi intensificado e acelerado. No Brasil esse impulso acompanhou a colonização e toda a história política e econômica que se sucedeu. Sendo que, no decorrer da mesma, até novas formas de se explorar o solo foram estudadas e usadas com o objetivo de “melhor aproveitá-lo”. As consequências do uso e do abuso ao meio ambiente são claras, não só nacionalmente, mas em todo o mundo. Quanto a essas últimas podemos citar: o próprio aquecimento global, mudanças climáticas bruscas e intensas, empobrecimento abrupto do solo, escassez de água, dentre muitas outras. Na eminência de sua própria extinção, dado que o ser humano está sentindo intensamente todas as consequências citadas, vem se desenvolvendo técnicas de recuperar áreas degradadas. Hoje essas técnicas são muito variadas e estão ao alcance de diferentes níveis sociais e econômicos. No entanto, é observado que quando as mesmas pressupõem algum tipo de prejuízo econômico, elas são negligenciadas. Como visto, existem uma série de leis e decretos, no que tange ao Brasil, que regem o quanto a recuperação de áreas degradadas é importante e necessária. Essas leis e decretos, inclusive, preveem punições aos transgressores, no entanto, a falta de fiscalização tem esbarrado na falta de

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interesse em colocar as técnicas de recuperação em prática, dado a consequentes prejuízos financeiros e, por causa disso, muito se tem perdido no que tange ao meio ambiente e a biodiversidade. Em suma, o que se observa é que a recuperação de áreas degradadas é necessária à própria existência humana, se levado em consideração o grau de degradação em que o ambiente se encontra. Todavia, há que se encontrar um meio termo entre o processo de recuperação e o avanço capitalista, pois se a recuperação for radical quanto a diminuição da mais-valia, provavelmente só ficará na teoria.

Referências

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Análise de viabilidade econômica do aproveitamento energético do biogás e do biometano provenientes de dejetos de suínos: estudo de caso

Economic feasibility analysis of biogas and biomethane energy use from swine manure: a case study Análisis de viabilidad económica del aprovechamiento energético del biogás y del biometano provenientes de residuos de cerdos: estudio de caso

Fabrício Paiva Vieira Instituto Federal de Goiás – IFG [email protected]

Elder Geraldo Domingues Instituto Federal de Goiás – IFG [email protected]

Simone Souza Ramalho Instituto Federal de Goiás – IFG [email protected]

Luane Schiochet Pinto Instituto Federal de Goiás - IFG [email protected]

Daywes Pinheiro Neto Instituto Federal de Goiás – IFG [email protected]

Resumo Este artigo apresenta a análise, em quatro cenários, da viabilidade econômica da geração de energia elétrica e da produção de biometano a partir do biogás oriundo de dejetos de suínos. Cenário 1 (C1): o biogás é utilizado para gerar energia elétrica através de um grupo motor-gerador (GMG). Cenário 2 (C2): purifica-se o biogás e utiliza-se o biometano produzido para gerar eletricidade em um GMG. Cenário 3 Análise de viabilidade econômica do aproveitamento energético do biogás e do biometano provenientes de Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 dejetos de suínos: estudo de caso

(C3): o biometano é injetado na rede de distribuição de gás natural e vendido à concessionária. Cenário 4 (C4): o biometano é utilizado como combustível veicular na frota da granja. Utilizando-se três critérios de decisão (VPL, TIR e Payback descontado) para se analisar a viabilidade econômica dos cenários, concluiu-se que os mais rentáveis são: o C4, C1, C2 e C3, respectivamente.

Palavras-chave: Biogás. Energia Elétrica. Biometano Veicular. Análise Econômica.

Abstract This article analyzes the economic feasibility of the electric power generation and biomethane production from swine manure biogas in four scenarios. Scenario 1 (C1), biogas is used to generate electricity through a motor-generator set (GMG). Scenario 2 (C2), the biogas is purified and the biomethane produced is used to generate electricity in a GMG. Scenario 3 (C3), biomethane is injected into the natural gas distribution network and sold to the power distribution company. Scenario 4 (C4), biomethane is used as fuel in the farm vehicles. Using three decision criteria (NPV, IRR and Discounted Payback) to analyze the economic feasibility of the scenarios, it was concluded that the most profitable ones are: C4, C1, C2 and C3, respectively.

Keywords: Biogas, Electric Power, Vehicular Biomethane, Economic Analysis.

Resumen Este artículo presenta el análisis, en cuatro escenarios, de la viabilidad económica de la generación de energía eléctrica y de la producción de biometano a partir del biogás oriundo de desechos de cerdos. El escenario 1 (C1): el biogás se utiliza para generar energía eléctrica por medio de un grupo motor- generador (GMG). Escenario 2 (C2): se purifica el biogás y se utiliza el biometano producido para generar electricidad en un GMG. Escenario 3 (C3): el biometano se inyecta en la red de distribución de gas natural y se vende a la concesionaria. Escenario 4 (C4): el biometano se utiliza como combustible vehicular en la flota de la granja. Se utilizaron tres criterios de decisión (VPL, TIR y Payback descontados) para analizar la viabilidad económica de los escenarios, se concluyó que los más rentables son: el C4, C1, C2 y C3, respectivamente.

Palabras clave: Biogás, Energía Eléctrica, Biometano Vehículo, Análisis Económico.

Introdução

Segundo a Associação Goiana de Suinocultores (AGS), até o final de 2017 existiam, no estado de Goiás, 220 granjas cadastradas, totalizando mais de 100 mil matrizes suínas. As quais, juntamente com inúmeros suínos de outros tamanhos, geram uma quantidade enorme de dejetos. Nessas granjas há uma grande demanda por energia elétrica, e também um grande potencial de

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aproveitamento dos dejetos para gerarem sua própria eletricidade de forma sustentável e renovável. O biogás destaca-se entre as fontes promissoras e renováveis de energia por ser uma das mais abundantes em nosso planeta, sobretudo no Brasil, estando disponível em pequena e larga escala e acessível a uma boa parte da população. O biogás, além dos benefícios socioeconômicos, traz benefícios ambientais pois propicia destinações corretas aos resíduos urbanos e dejetos agrossilvipastoris, evitando assim a contaminação do solo, lençóis freáticos, rios e açudes. Existem diversos trabalhos acerca do tema biogás na literatura, dentre os quais pode-se destacar o estudo elaborado por Lira (2009), onde o autor analisou quatro alternativas de aproveitamento energético do biogás gerado a partir de dejetos de suínos: queima total do biogás no flare, geração de energia elétrica em GMG, aquecimento, e a combinação de geração de energia elétrica com aquecimento. O autor concluiu que a alternativa de utilização exclusiva do biogás para aquecimento apresentou um custo de uso do gás menor que a alternativa de aquecimento e geração de energia, tendo um período de retorno do investimento mais atraente e menor risco, sendo, portanto, a melhor alternativa. Silva (2009), em Portugal, analisou a venda da energia elétrica gerada em grupo motor-gerador (GMG) e a produção e venda do biometano (biogás purificado). Considerou como critério de decisão na análise econômica apenas o Payback simples, e concluiu que o cenário de produção do biometano é mais vantajoso do que o cenário de produção de energia elétrica. Garces Júnior (2010) analisou duas alternativas: as receitas com a venda dos créditos de carbono (CC) da queima do biogás em um flare e as receitas com a venda dos CC da queima do biogás em um grupo motor-gerador (GMG) e com a venda da eletricidade gerada por este. Neste estudo o autor concluiu que o cenário 2 tem uma rentabilidade maior do que o cenário 1. Neste contexto, este trabalho analisa a viabilidade econômica do biogás proveniente de dejetos de suínos para gerar energia elétrica e/ou biometano. Para tanto, foi necessário: levantar o potencial de produção de biogás, energia elétrica e biometano, a partir dos dejetos, estimar as receitas e economias provenientes desses dois últimos produtos; quantificar as emissões de carbono

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que podem ser evitadas com a implementação dos cenários de projeto propostos, estimando as receitas provenientes da venda dos créditos de carbono; e, por fim, analisar a viabilidade econômica de produção e utilização de energia elétrica e biometano oriundos do biogás suinícola.

Utilização do biogás de resíduos de suínos para geração de eletricidade e biomentano

O biogás é uma mistura de gases composta principalmente por metano e dióxido de carbono, obtida normalmente por meio do tratamento de resíduos domésticos, agropecuários ou industriais, via processo de biodigestão anaeróbia, ou seja, na ausência de oxigênio (CIBiOGÁS, 2016). Como o metano é o gás majoritário dessa mistura, ele confere ao biogás um importante valor energético. O mesmo é obtido na digestão anaeróbia realizada em um biodigestor, sendo que os modelos mais conhecidos no mercado são (SANTANA et al., 2012): a. O chinês (digestor de cúpula fixa); b. O indiano (digestor de tambor flutuante), e c. O canadense ou de fluxo tubular, que é o modelo taiwanês (digestor tubular de polietileno) melhorado. No Brasil, os mais utilizados são os modelos chinês e indiano, em pequeno e médio porte, sendo o indiano o mais difundido no país pela sua simplicidade e funcionalidade (CIVARDI, 2014). Atualmente o biodigestor canadense está sendo bastante utilizado em propriedades agrossilvipastoris (integração entre lavoura, pecuária e floresta), com o intuito, além de tratar os resíduos, de gerar energia elétrica, e em alguns casos, biometano. A Figura 1 representa o biodigestor modelo canadense (marinha) sem paredes divisórias internas em corte transversal.

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Figura 1 – Biodigestor modelo canadense sem paredes divisórias internas, corte transversal.

Fonte: BALMANT (2009).

Durante o processo de biodigestão anaeróbia e a conseguinte produção de biogás, constituído principalmente pelos gases metano e gás carbônico, formam-se também traços de outros componentes, como: hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, ácido sulfídrico, amônia ou amoníaco, monóxido de carbono, vapor de água, e outros (siloxanos, hidrocarbonetos) que, como o gás carbônico, também precisam ser removidos (SILVA, 2009). O processo de tratamento (limpeza e purificação) mais adequado a ser utilizado é escolhido dependendo da destinação final do biogás, gerando assim maior rentabilidade e eficiência energética na utilização desta fonte de energia renovável. Tal processo é constituído de duas etapas principais que tem com o intuito obter o biogás purificado ou biometano (BORSCHIVER; SILVA, 2014): 1. Processo de limpeza das impurezas (cleaning process);

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2. Processo de melhoria do poder calorífico do biogás (upgrading process). O biometano é o gás resultante do processo de purificação do biogás até que este atinja características similares à do gás natural. Para se chegar a esse estado, é necessário a remoção da umidade, do sulfeto do hidrogênio e do dióxido de carbono, resultando assim em um combustível de alto poder calorifico e que pode ser utilizado em substituição ao gás natural veicular (GNV) (ABIOGÁS, 2016). Para dimensionar o biodigestor é necessário conhecer a quantidade diária da biomassa que será tratada e o tempo de retenção previsto para a biodigestão (BLEY JR., 2015).

Fontes de receitas Com o intuito de ajudar os países signatários do Protocolo de Quioto a cumprirem as metas de redução de emissões de GEE’s acordadas, foram estabelecidos três mecanismos de flexibilização: implementação conjunta, MDL e comércio de emissões. Previsto pelo artigo 12 do Protocolo de Quioto, o MDL é o único mecanismo de flexibilização aplicável ao Brasil (FELIPETTO, 2007). Quando se implementa projetos que reduzem as emissões de gases causadores do efeito estufa (GEE), de acordo com o MDL, as empresas que os implementam recebem como contrapartida Certificados de Emissões Reduzidas (CER’s), popularmente conhecidos por Créditos de Carbono. Estes podem ser comercializados com os países desenvolvidos que assinaram o Protocolo de Quioto constituindo assim uma nova fonte de receita para essas empresas (GARCES JÚNIOR, 2010). Para quantificar as reduções de emissão de gases de efeito estufa (GEE), ou seja, os créditos de carbono, é necessário escolher uma das metodologias do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) existentes. A ACM0010 versão 8, intitulada de Redução das Emissões de GEE por meio de Sistemas de Gerenciamento de Dejetos é uma das metodologias utilizadas para se quantificar as emissões reduzidas. As quais são calculadas subtraindo-se das

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emissões do cenário de linha de base as emissões do(s) cenário(s) de projeto proposto(s) e as emissões de vazamento (UNFCCC, 2013). Para estimar a receita proveniente dos créditos de carbono, deve-se primeiramente determinar a quantidade de créditos de carbono a ser gerada pelo projeto, ou seja, as emissões reduzidas de gases do efeito estufa (GEE), as quais se tornarão receitas caso venham a ser comercializadas. Para tanto, necessita-se utilizar uma metodologia aprovada e consolidada pelo IPCC – International Panel on Climate Changes. Ademais, o aproveitamento energético do biogás pode gerar outras fontes de receitas, tais como: i) vender a energia elétrica excedente e o biometano (biogás purificado); ii) economizar com o uso da própria eletricidade gerada; iii) substituir os combustíveis tradicionais pelo biometano veicular; iv) utilizar o biofertilizante gerado na biodigestão anaeróbica para a adubação orgânica no lugar dos tradicionais adubos químicos.

Critérios de decisão econômica De acordo com Lira (2009), os critérios de decisão econômica mais utilizados em uma análise de viabilidade econômica são: a. VPL (Valor Presente Líquido): quando os valores líquidos, no caso deste trabalho, o saldo do fluxo de caixa no ano y para cada alternativa de projeto, são trazidos à data zero do projeto; b. TIR (Taxa Interna De Retorno): é a taxa de juros que faz o VPL igualar-se a zero; c. Payback (tempo de retorno do investimento) Descontado: é obtido quando, após se descontar o valor do dinheiro no tempo, o saldo do fluxo de caixa em um ano y se igualar ao investimento inicial realizado, para cada alternativa econômica.

Metodologia As etapas seguidas na metodologia estão apresentadas na Figura 2.

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Figura 2 – Fluxograma geral das etapas da metodologia

Fonte: Elaborada pelo autor, 2017.

A partir da quantidade de suínos da granja em estudo, calcula-se o volume total de dejetos produzidos diariamente (vazão). Esse volume permite dimensionar o biodigestor e o volume do biogás, bem como outros parâmetros deste trabalho. Para a geração e cálculo da quantidade de biogás, adotou-se o modelo de biodigestor de fluxo tubular (canadense ou da marinha brasileira) por causa de suas vantagens e por ser um tipo de biodigestor bastante utilizado em granjas.

O volume do biodigestor (푉푏푖표), ou seja, a quantidade de biomassa que ocupa a câmara de digestão do biodigestor, em m³, é estimado a partir do número de suínos (푁푠푢푖) necessários para a produção de dejetos em uma

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granja, por meio da expressão (1), o qual fornecerá o volume de biogás a ser consumido pelo grupo motor-gerador (MARTINS E OLIVEIRA, 2011).

푉푏푖표 = 푁푠푢푖 ∙ 푇푅퐻 ∙ 푉푑푒푗 (1)

Em que, 푇푅퐻 é o Tempo de Retenção Hidráulica, em dias; e 푉푑푒푗 é o volume médio diário de dejetos produzido por suíno na granja, em m³//dia. O volume de biogás, 푄퐵푖표푔á푠 퐷푖푎 , em m³ por dia, que alimentará o grupo motor-gerador (GMG), é estimado a partir do volume de biomassa, ou seja, volume do biodigestor (푉푏푖표), por meio da expressão (2), (MARTINS; OLIVEIRA, 2011).

푄퐵푖표푔á푠 퐷푖푎 = 푉푏푖표 ∙ 푘 (2)

Em que 푘 é o índice de eficiência de produção de biogás no biodigestor, em m³ biogás/m³ biomassa. O volume de biometano é estimado a partir da quantidade diária de metano contida no biogás de dejetos suínos, ou seja, é multiplicado o índice adotado de incidência de metano no biogás advindo da digestão anaeróbia, no valor de 0,65 (65%) pela quantidade diária de biogás produzido (SGC, 2012; GARCES JÚNIOR, 2010). Assim, a quantidade de biometano produzida por dia, em m³, é estimada multiplicando a quantidade diária de metano contida no biogás pelo teor mínimo de metano contido no biogás purificado para que o biometano possa ser utilizado como combustível veicular, no valor de 0,97 (97%), (SGC, 2012; PROBIOGÁS, 2016). Para determinar o potencial de energia elétrica, primeiramente, estima-se a potência elétrica gerada no ano y a partir do volume de gás (biogás e biometano) produzido por ano na granja por meio da expressão (3), adaptada de Garcez Júnior (2010).

(푄퐺á푠 ∙ 푃퐶퐼퐺á푠 ∙ Ɛ ∙ 휂) 푃푒푙 = 푦 (3) 퐺á푠 푦 31.536.000

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Em que, 푃푒푙퐺á푠 푦 é a potência elétrica no ano y, em MW, advinda da queima do gás; 푄퐺á푠 푦 é a quantidade de gás gerada no ano y em m³; 푃퐶퐼퐺á푠 é o Poder Calorífico Inferior do gás, em MJ/Nm³; Ɛ é a eficiência de coleta do gás, em %; η é a eficiência elétrica, rendimento do grupo motor gerador; e 31.536.000 é o fator de conversão de ano para segundo. Após estima-se a energia elétrica gerada pela queima do gás no ano y,

퐸퐸 퐺á푠 푦 , em MWh, levando em consideração a potência elétrica do ano y e tempo de geração de eletricidade no ano y em horas, conforme a expressão (4).

퐸퐸 = (푃푒푙 ∙ 푡 ) (4) 퐺á푠 푦 퐺á푠 푦 푔푒푟푎çã표 푦

O tempo de geração de eletricidade, 푡푔푒푟푎çã표 푦, adotado foi de 8030 horas no ano. Considerando o ano com 365 dias e o dia de 22 horas, devido ao tempo de manutenção e parada inesperada do GMG. Para o cálculo das emissões de linha de base e da redução de emissões de carbono (créditos de carbono), usou-se a metodologia ACM0010 versão 8, por se tratar de uma metodologia aprovada e consolidada pelo IPCC (2006) aplicável ao manejo de dejetos de grandes sistemas de criação animal (UNFCCC, 2013).

Cenários escolhidos

Com o intuito de analisar qual é a melhor forma de aproveitamento energético do biogás são apresentados quatro cenários, sendo que o 1º utiliza o biogás e os outros cenários o biometano. Adotou-se tanto para o cenário 1 quanto para o 2, a tecnologia de grupo motor-gerador a gás Ciclo-Otto para se realizar a conversão de gás em energia elétrica, por ter um bom rendimento elétrico, além de ser barata, e por ser uma tecnologia nacional.

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Para se estimar a potência elétrica do biogás e do biometano usou-se uma adaptação da expressão utilizada por Garces Júnior (2010). E, a partir dela foi possível calcular a energia elétrica gerada por esses dois gases conforme os cenários 1 e 2 a seguir.

Cenário 1 (C1) e Cenário 2 (C2) – Geração de energia elétrica a partir da queima do biogás e do biometano, respectivamente, no GMG A potência elétrica gerada no ano y foi estimada por meio da expressão (3), sendo que o Poder Calorífico Inferior, em MJ/Nm³, adotado para o biogás foi 23 e para o biometano 35,53; a eficiência de coleta, em %, adotada para o biogás foi 85 e para o biometano 100; e o rendimento adotado para o GMG foi de 40%. A energia elétrica gerada pela queima desses gases, no ano y,

퐸퐸 퐺á푠 푦 , em MWh, foi estimada pela expressão (4).

Cenário 3 (C3) – Injeção de biometano em uma rede fictícia de gás natural Neste cenário considerou-se que todo o biometano produzido no ano y é injetado em uma rede fictícia de distribuição de gás natural com o intuito de vendê-lo a uma suposta concessionária de gás do estado de Goiás.

Cenário 4 (C4) – Uso do biometano veicular Neste cenário considerou-se que todo o biometano produzido no ano y é utilizado como combustível veicular na frota da granja em substituição aos combustíveis tradicionais. Por meio da equivalência energética, ou seja, o valor energético (VE), de alguns combustíveis em relação ao biogás, foi possível chegar à equivalência energética desses combustíveis em relação ao biometano. Para determinar equivalência energética dos combustíveis em relação ao biometano, partiu-se da equivalência destes em relação ao biogás. Para tanto, foi necessário primeiramente calcular a equivalência energética do biometano

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em relação ao biogás, ou seja, a quantidade de biometano extraída de 1 m³ de biogás. Sabendo-se que, para este trabalho, no biogás suinícola há 65% de metano e que deste metano 97% torna-se biometano após o processo de purificação, multiplicando-se as duas porcentagens chega-se ao valor de 63,05%. Isto significa que 1 m³ de biogás equivale energeticamente a 0,6305 m³ de biometano. Invertendo-se esse valor obteve-se a equivalência energética do biogás em relação ao biometano, ou seja, a quantidade de biogás encontrada em 1 m³ de biometano. Assim, para se determinar o valor energético de um dado combustível em relação ao biometano, bastou dividir o valor energético do combustível a ser substituído em relação ao biogás, pelo valor energético do biometano em relação ao biogás, que neste trabalho vale 0,6305 m³. Para se quantificar as emissões reduzidas de gases de efeito estufa (GEE), primeiramente, foram calculadas as emissões de projeto, 푃퐸푌, no ano y, em t

CO2 e, de acordo com sua fórmula na ACM0010 versão 8 (UNFCCC, 2013). O cálculo das emissões dos cenários 3 e 4 foi igual ao das emissões calculadas para os cenários 1 e 2 com exceção das emissões de gás carbônico do projeto,

푃퐸퐺푀퐺, originadas da queima do metano na câmara de combustão interna do grupo motor-gerador. O presente trabalho considerou apenas o uso do biodigestor anaeróbio para os cenários de projeto. Segundo o IPCC (2006) o vazamento físico do digestor anaeróbio é de 15% do total de biogás produzido, valor este utilizado para o cálculo das emissões de projeto associadas ao vazamento na digestão anaeróbica durante a captura do metano no ano y, em t CO2 e/ano, 푃퐸퐴퐷,푦 , de acordo com a ACM0010 versão 8 (UNFCCC, 2013).

Para calcular as emissões de gás carbônico do projeto 푃퐸퐺푀퐺 , adotou-se para a densidade do metano (CH4) o valor de 0,00067 t/m³ a 1 atm. e 20 °C (UNFCCC, 2013). Com relação a viabilidade econômica, a mesma foi realizada de forma determinística aos cenários de projeto propostos por meio dos 3 (três) critérios

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de decisão (VPL, TIR e Payback descontado) para um período de 20 anos, que corresponde ao tempo de vida útil adotado para o grupo motor-gerador (GMG). Neste período é possível observar se houve ou não inversão do fluxo de caixa, tendo em vista que o tempo de vida útil adotado para o biodigestor foi de 10 (dez) anos, período em que se faz a revitalização deste. Para se realizar as projeções de fluxo de caixa, todas as receitas e economias bem como os custos e despesas operacionais dos 4 (quatro) cenários sofreram variações anuais a partir do 2º ano de projeto durante os 19 anos seguintes pela meta da taxa de inflação do Governo Federal para o ano de 2018 que é de 4,5% a.a., conforme resolução nº 4.499, de 30 de Junho de 2016. Escolheu-se como valor da taxa mínima de atratividade (TMA) o valor da SELIC de dezembro de 2017 que foi de 7% a.a., para se descontar os fluxos de caixa anuais e calcular os VPL’s, dos quatro cenários de projeto de investimento. Não considerou-se nas análises de viabilidade econômica deste trabalho o valor residual dos bens de capital, pois estes são reformados ou revitalizados ao final de suas vidas úteis. Resultados e discussão

Para efeitos de cálculo, foram adotados os dados de uma granja, cujo nome não foi mencionado neste trabalho por sigilo comercial, a qual é denominada doravante apenas de Granja. A Granja em estudo localiza-se no centro-oeste do Brasil, criando de forma intensiva 8.136 suínos com tipo de produção de ciclo completo. A Granja possui um biodigestor em funcionamento da marca Sansuy, modelo canadense (gasômetro de vinimanta: lona de PVC) e um grupo motor-gerador (GMG), da marca CUMMINS, de 150 kVA (96 kW), consumindo entre 50 a 60 m³ de biogás por hora, trabalhando em média 22 horas por dia, o qual não está interligado à rede de distribuição de energia da concessionária Quando, por algum motivo, não é possível gerar energia elétrica por meio do biogás, tem-se na granja uma PCH que é acionada imediatamente para substitui-lo, motivo este que possibilitou a não ligação com a concessionária

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local de energia elétrica. Mas, o GMG supre toda a demanda energética da granja. Para quantificar as emissões de gases de efeito estufa (GEE), foram utilizados os seguintes dados: o peso médio dos animais calculado pelo quociente do peso total dos animais, 583.499,80 kg, pela quantidade total de animais da granja, 8136, no valor de 71,72 kg e o peso médio padrão dos animais, no valor de 28 kg. Adotou-se como valor padrão para a excreção dos sólidos voláteis por dia, 0,3 kg/cabeça/dia, segundo o IPCC (2006), e o número de dias em que o sistema de tratamento estava operante no ano igual a 365 dias de acordo com a Granja. Utilizou-se como valor padrão anual para a excreção de nitrogênio por cabeça de uma determinada população 20 kg N/animal/ano, segundo o IPCC (2006). O biodigestor canadense foi dimensionado a partir da quantidade de suínos fornecida pela Granja, sendo esta igual a 8.136. O volume diário por animal adotado, com base no estudo de Garces Júnior (2010), foi de 0,0125 m³, e o tempo de retenção hidráulico conforme Martins e Oliveira (2011) igual a 30 dias. Com esses dados encontrou-se que o volume adequado do biodigestor é de 3.051,00 m³. Para se estimar a produção de biogás necessitou-se do índice de eficiência de produção de biogás, que pode variar de 0,35 a 0,60 m³ de biogás por m³ de biomassa, de acordo com Martins e Oliveira (2011). Para este trabalho, preferiu-se seguir o conservadorismo da SANSUY e adotar o limite inferior de k, ou seja, 0,35, para evitar problemas/reclamações futuras por parte de produtores e empreendedores com relação à produção de biogás. Com base nesses dados obteve-se a quantidade de biogás produzida diariamente e anualmente pelo biodigestor igual a 1.067,85 m³ e 389.765,25 m³ respectivamente. Atualmente, a Granja utiliza o biogás apenas para gerar eletricidade, aproveitando-se o digestato (resíduos da digestão anaeróbia) na fertirrigação da pastagem. O biogás é tratado na propriedade somente em nível de limpeza, ou seja, dessulfurização e secagem do gás, não ocorrendo a etapa de purificação, pois não se produz biometano no local.

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Portanto, para efeitos de cálculo dos cenários 3 e 4 foi necessário considerar, além da limpeza, as fases de purificação referente à remoção do dióxido de carbono (CO2) e à qualidade de gás natural. Estimou-se a produção de biometano a partir da quantidade diária de metano, contida e adotada para o biogás suinícola (65%), que foi de 694,10 푚³/푑푖푎 . O volume de biometano produzido diariamente, na granja de suínos em estudo foi de 673,28 푚³/푑푖푎, e anualmente igual a 245.747,20 푚³/푎푛표 . Para o cálculo da economia anual com a substituição dos combustíveis tradicionais pelo biometano veicular, utilizou-se os preços de compra direta da distribuidora, fornecidos pela Granja no mês de maio de 2017, que foram R$ 1,91/litro e R$ 2,83/litro para o etanol e o óleo diesel, respectivamente. Para melhor compreensão dos resultados a Tabela 1 apresenta um resumo dos quatro cenários.

Tabela 1 – Resultados dos cenários 1, 2, 3 e 4

Cenário Cenário Resultados Cenário 3 Cenário 4 1 2

Potência elétrica gerada no ano y (MW/ano) 0,09665 0,110748 X x

Energia elétrica gerada no ano y (MWh/ano) 776,10 889,31 X x

Quantidade de biometano produzido no ano y x x 245.747,20 245.747,20 (m³/ano)

Quantidade total de etanol substituível no ano x x x 48.300 y (litros)

Quantidade de biometano veicular que x x x 38.640 substitui o etanol no ano y (m³/ano)

Economia anual com a substituição do Etanol x x x 92.253,00 pelo Biometano (R$)

Quantidade parcial de óleo diesel substituível x x x 180.183,26 no ano y (litros)

Quantidade de biometano veicular que x x x 207.107,20 substitui o óleo diesel no ano y (m³/ano)

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Economia anual com a substituição do Diesel x x x 509.919,00 pelo Biometano (R$)

A partir da Tabela 1, percebe-se que a potência e energia elétrica geradas a partir da queima do biometano no GMG (cenário 2) foram 14,59% maiores do que as do biogás (cenário 1). E que, por meio da substituição parcial do óleo diesel pelo biometano veicular, a granja poderá reduzir sua compra daquele combustível para 634.760,74 litros por ano, obtendo, assim, uma economia de 22,11%. Ao se substituir todo o etanol e parte do óleo diesel consumidos, a Granja poderá obter uma economia anual de R$ 602.172,00. A Tabela 2 apresenta os resultados obtidos das emissões reduzidas de gases de efeito estufa (GEE) no ano y, em toneladas de CO₂ equivalente, para os quatro cenários de projeto propostos.

TABELA 2. –

Resultados das emissões reduzidas no ano y de GEE dos cenários 1, 2, 3 e 4, em t CO₂ e.

Gases de Efeito Estufa (GEE) Cenário 1 Cenário 2 Cenário 3 Cenário 4

Emissões anuais de Linha de Base, (퐵퐸푦) 7.116,05 7.116,05 7.116,05 7.116,05

Emissões anuais de Projeto, (푃퐸푦) 1.712,61 1.703,13 1.396,66 1.396,66

Emissões anuais de Vazamento, (퐿퐸푦) 283,09 283,09 283,09 283,09

Emissões Reduzidas no ano y (퐄퐑퐘) 5.120,35 5.129,83 5.436,30 5.436,30

Cada cenário de projeto analisado propôs evitar a emissão de certa quantidade de GEE na atmosfera, cujos valores estão apresentados na tabela 2. Desses valores, concluiu-se que os cenários que mais evitam a emissão de GEE foram os cenário 3 e 4, igualmente, uma vez que o biogás passa por um processo de tratamento mais completo, sendo elevado à qualidade de gás natural. Enquanto que o cenário que evitou menos a emissão de GEE foi o cenário 1, pois queima o biogás diretamente no GMG, passando apenas pelo

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processo de limpeza do gás. O cenário 2 evitou um pouco mais do que o cenário 1 a emissão de GEE, pois trata o biogás antes de queimá-lo no GMG. As tabelas 3 e 4 apresentam os valores dos principais componentes dos fluxos de caixa obtidos, e os saldos a partir do 2º ano, para os 4 (quatro) cenários de projeto propostos, considerando e desconsiderando o investimento inicial do projeto de MDL, respectivamente.

TABELA 3.

Valores dos principais componentes dos fluxos de caixa considerando as receitas dos créditos de carbono.

Parâmetros Cenário 1 Cenário 2 Cenário 3 Cenário 4

II com MDL R$ 799.056,00 R$ 1.116.277,00 R$ 806.743,00 R$ 822.233,00

RecEco R$ 331.953,00 R$ 375.312,00 R$ 278.364,00 R$ 637.246,00

CDO R$ 35.192,00 R$ 104.030,00 R$ 71.529,00 R$ 72.304,00

Saldo FC R$ 296.761,00 R$ 271.282,00 R$ 206.835,00 R$ 564.942,00

TABELA 4.

Valores dos principais componentes dos fluxos de caixa desconsiderando as receitas dos créditos de carbono.

Parâmetros Cenário 1 Cenário 2 Cenário 3 Cenário 4

II sem MDL R$ 645.954,00 R$ 963.175,00 R$ 653.641,00 R$ 669.131,00

RecEco R$ 327.140,00 R$ 370.490,00 R$ 273.254,00 R$ 632.136,00

CDO R$ 35.192,00 R$ 104.030,00 R$ 71.529,00 R$ 72.304,00

Saldo FC R$ 291.948,00 R$ 266.460,00 R$ 201.725,00 R$ 559.832,00

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O Quadro 1 apresenta os dados utilizados nos cálculos das análises de viabilidade econômica dos 4 (quatro) cenários de projeto.

QUADRO 1.

Parâmetros utilizados nos cálculos das análises de viabilidade econômica.

Parâmetros utilizados na análise econômica Valores Unidades

Vida útil do projeto*, adotou-se a mesma do GMG. 20 anos

Taxa de inflação utilizada para se projetar todas as receitas, economias, custos e despesas operacionais, dos fluxos de caixa foi 4,50 % a.a. a meta da taxa de inflação do Governo Federal para o ano de 2018.

TMA adotada (taxa global de juros) para se descontar os fluxos de 7,00 % a.a. caixa anuais foi a SELIC de dezembro de 2017.

Fonte: *Autor (2017), Governo Federal (2016).

As tabelas 5 e 6 apresentam os resumos dos resultados obtidos das análises de viabilidade econômica para os 4 (quatro) cenários de projeto propostos por este trabalho, para os 3 (três) critérios de decisão utilizados, considerando e desconsiderando o projeto de MDL e os créditos de carbono. Da análise dos cenários, confirmou-se que, normalmente, VPL’s maiores geram tempos de retorno do investimento (Payback’s) menores e produzem TIR’s maiores. Nota-se, pela análise das tabelas 5 e 6, que em todos os cenários, os VPL’s foram positivos e que as TIR’s foram maiores do que a TMA adotada (7%), portanto todos eles são viáveis economicamente.

TABELA 5.

Resumo dos resultados das análises de viabilidade econômica dos cenários com os créditos de carbono.

Considerando o Projeto de MDL e os Créditos de Carbono

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Análise de Viabilidade Resultados Econômica

Critérios de Cenário 1 Cenário 2 Cenário 3 Cenário 4 Decisão

VPL R$ 3.620.219,82 R$ 2.919.012,69 R$ 2.257.285,89 R$ 7.638.715,71

TIR 32,15% 19,82% 21,07% 61,84%

Payback 2,95 anos 4,59 anos 4,34 anos 1,57 anos descontado

TABELA 6.

Resumo dos resultados das análises de viabilidade econômica dos cenários sem os créditos de carbono.

Análise de Desconsiderando o Projeto de MDL e os Créditos de Carbono Viabilidade Econômica Resultados

Critérios de Cenário 1 Cenário 2 Cenário 3 Cenário 4 Decisão

VPL R$ 3.700.799,55 R$ 2.999.423,93 R$ 2.333.364,00 R$ 7.714.788,17

TIR 39,75% 23,09% 26,11% 75,83%

Payback 2,41 anos 4,01 anos 3,58 anos 1,28 anos descontado

E que, para todos os cenários, a não utilização dos créditos de carbono possibilitou um retorno financeiro maior para o empreendimento do que quando estes foram contabilizados na análise econômica, devido ao: a. Preço de implementação de um projeto de MDL onerar o investimento inicial; e b. Baixíssimo preço atual da tonelada de carbono equivalente no mercado internacional (receita ínfima). Devido à incongruência entre os critérios de análise de investimento dos cenários 2 e 3, realizou-se a análise incremental dos fluxos de caixa destes cenários, pelo método da taxa interna de retorno (TIR), que consistiu em

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calcular os critérios de decisão econômica para a diferença entre os fluxos de caixa 2 e 3 (FC 2 – FC 3). Desta análise, concluiu-se que o C2 foi mais viável economicamente do que o cenário C3, tanto considerando quanto desconsiderando os créditos de carbono. De acordo com as análises de viabilidade econômica e incremental verificou-se que em termos de rentabilidade a ordem decrescente dos cenários é C4, C1, C2 e C3. Em suma, os cenários de projeto mais atrativos economicamente em ordem decrescente de rentabilidade foram: C4, C1, C2 e, por último, C3, conforme demonstrado nas análises de viabilidade econômica e incremental.

Conclusão

Este trabalho apresenta outros cenários de projeto de investimentos também interessantes e mais rentáveis do que a “simples” geração de energia elétrica a partir do biogás. Do ponto de vista ambiental, é importante ressaltar que o tratamento de dejetos por meio do biodigestor possibilita que esse material seja estabilizado e utilizado como biofertilizante na propriedade. Vale destacar também que em termos de benefícios ambientais, a ordem decrescente dos cenários é C3 e C4, empatados, C2 e, por último, C1. Para todos os cenários, infelizmente, a não utilização dos créditos de carbono possibilita um retorno financeiro maior para o empreendimento do que quando estes são contabilizados na análise econômica. No entanto, caso o preço da tonelada de CO2 equivalente volte a subir isso beneficiará mais ainda os projetos analisados. A análise de viabilidade econômica mostrou que os cenários mais rentáveis são C4, C1, C2 e C3, respectivamente. C4 é o cenário mais viável, devido à grande quantidade de combustível utilizada na propriedade e ao altíssimo preço dos combustíveis tradicionais.

Agradecimentos

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Os autores agradecem aos gestores e colaboradores da Granja em estudo pelo fornecimento dos dados necessários para a realização da pesquisa, à FAPEG pela bolsa de mestrado concedida ao primeiro autor, e ao Instituto Federal de Educação e Tecnologia de Goiás (IFG) pelo incentivo à pesquisa.

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• Ensino de História e educação não formal: o fenômeno das videoaulas do YouTube João Oliveira Ramos Neto Júlya Pereira de Sá

Ensino de História e educação não formal: o fenômeno das videoaulas do YouTube

Teaching History and non-formal education: the YouTube video phenomenon Enseñanza de Historia y educación no formal: el fenómeno de as video clases de YouTube

João Oliveira Ramos Neto Instituto Federal Goiano [email protected]

Júlya Pereira de Sá Instituto Federal Goiano [email protected]

Resumo Este artigo é resultado de uma pesquisa que investigou o fenômeno das videoaulas de História do YouTube. O primeiro passo, portanto, foi descobrir em qual perspectiva se encaixa tal estudo, o que promoveu um introdutório debate teórico. Em seguida, fizemos uma pesquisa sobre a relação dos alunos dos cursos técnicos do Instituto Federal Goiano com as videoaulas de História do YouTube. E, por fim, na análise dos resultados encontrados, constatou-se que os estudantes conciliam videoaulas do YouTube com aulas tradicionais da escola e privilegiam as videoaulas que utilizam vários recursos midiáticos e interativos.

Palavras-chave: Ensino de História, Educação não formal, Videoaula, YouTube.

Abstract This article is the result of research that investigated the phenomenon of video class of History in YouTube. The first step, therefore, was to discover in which perspective such a study fits, prompting an introductory theoretical debate. Then we did a research about the relationship of the students of the technical courses of the Federal Institute Goiano (Instituto Federal Goiano) with the videos of History of YouTube. And, finally, the analysis of the results found. Students were found to reconcile YouTube video class with traditional school lessons and privilege video class that utilize various media and interactive features.

Keywords: History education, non-formal education, video class, YouTube.

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Resumen Este artículo es el resultado de una investigación que estudió el fenómeno de las video clases de Historia de YouTube. El primer paso, por lo tanto, fue descubrir en qué perspectiva se encaja tal estudio, lo que promovió un introductorio debate teórico. A continuación, hicimos una investigación sobre la relación de los alumnos de los cursos técnicos del Instituto Federal Goiano con los videos clases de Historia de YouTube. Y, por último, el análisis de los resultados encontrados. Se constató que los estudiantes concilian video clases de YouTube con clases tradicionales de la escuela y privilegian las que utilizan varios recursos mediáticos e interactivos.

Palabras clave: Enseñanza de Historia, Educación no formal, Video Clase, YouTube.

Introdução

Realizando nosso trabalho como docente de História, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano [IF Goiano], campus Urutaí, percebemos um fenômeno em crescimento: o consumo de videoaulas de História do YouTube pelos alunos, especificamente por adolescentes do Ensino Médio. Foi justamente do desejo de pesquisar esse tema para aprofundar sua compreensão que inicialmente nasceu este projeto de iniciação científica, cujo texto em curso é o seu relatório, que foi aprofundado posteriormente para divulgação. A primeira dúvida, porém, foi: qual o suporte teórico para estudarmos as videoaulas de História? Seria objeto do campo do ensino de História ou do campo de História Pública? Por essa dúvida, inicialmente, este projeto tinha como título provisório Ensino de História e História Pública: o fenômeno das videoaulas, pois o objeto de pesquisa eram as aulas de História disponibilizadas no sítio eletrônico YouTube. Este título, porém, se tornou insuficiente. O primeiro passo, portanto, foi descobrir em qual perspectiva se encaixa tal estudo, o que promoveu um introdutório debate teórico. Em seguida, fizemos uma pesquisa sobre a relação dos alunos com as videoaulas de História do YouTube. E, por fim, a análise dos resultados encontrados.

Discussão teórica

Muitos são os projetos de aulas de História na internet atualmente. Entre eles, destacamos canais como o Mundo Edu, Aula Livre, Se liga nessa História

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e até mesmo canais individuais, como da Débora Aladim, aluna do curso de História da UFMG que já tem 1.500.000 seguidores e seus vídeos de resumos de História costumam ter uma média de 1 milhão de visualizações. Em alguns casos, a História é evocada como argumentação e, nesses casos, cativa os adolescentes através de um ar de teoria da conspiração, como quem diz que eles estão sendo enganados pelos seus professores, que são, na verdade, doutrinadores comunistas e que, diante disso, os próprios youtubers seriam paladinos da verdade, fazendo revelações que livrariam o adolescente do obscurantismo. Nessa pegada que canais como Mamãe Falei, Movimento Brasil Livre e pessoas individuais, como Nando Moura, ensinam que Nazismo foi um movimento esquerdista, a ditadura militar não foi negativa para a História do Brasil, a crise de 1929 foi causada pelo Estado intervencionista e Karl Marx seria um teórico totalmente desqualificado para explicar a sociedade, afinal, a luta de classes jamais existiu. Os adolescentes, imaturos, não percebem o pertencimento ideológico desses autores que, ignorando seus lugares de fala, são apresentados como supostamente neutros. O YouTube foi criado por Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim, ex- funcionários do site de comércio on-line PayPal em 2005. Segundo Burgess e Green (2009), a inovação do YouTube não estava em ser uma plataforma de publicação de vídeos na internet, mas no fato de eliminar barreiras tecnológicas para os usuários: “O YouTube não estabeleceu limites para o número de vídeos que cada usuário poderia colocar on-line via upload” (BURGESS; GREEN, 2009, p. 17), sem contar que também permitia “que os vídeos pudessem ser facilmente incorporados em outros sites, um diferencial” (BURGESS; GREEN, 2009, p. 18). Os mesmos autores também informam que maioria das versões da história do YouTube “se encaixa no mito dos empreendedores de garagem do Vale do Silício, nos quais a inovação tecnológica e comercial brota de jovens visionários trabalhando fora das empresas já sedimentadas” (BURGESS; GREEN, 2009, p. 18). O sucesso mundial, então, explodiu em 2006, “quando o Google pagou 1,65 bilhão de dólares pelo YouTube” (BURGESS; GREEN, 2009, p. 18). A nossa pesquisa teórica, então, percebeu que a diversidade de vídeos de História que a plataforma do YouTube disponibiliza não permite restringi-los

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a um único campo de análise. Na verdade, depende do recorte que for feito pelo pesquisador, ou seja, de quais os tipos de vídeos que serão analisados. Vejamos algumas proposições abaixo. Primeiro grupo – vídeos de memória: quando se trata de vídeos de determinados grupos ou youtubers com considerável participação política, em que o objetivo principal não seja ensinar o saber histórico, mas usá-lo como prerrogativa para sustentar seus argumentos, então é recomendável que a pesquisa trabalhe com a consciência histórica. É o caso, por exemplo, de canais políticos, como o canal do MBL – Movimento Brasil Livre, Brasil Paralelo, ou do canal Ideias Radicais. Geralmente esses canais são revisionistas. O termo, vídeos de memória, é em alusão ao fato de serem vídeos baseados no uso das memórias. O canal Ideias Radicais, por exemplo, é apresentado por Raphaël Lima que, em um dos seus vídeos, faz uma revisão da crise de 1929 para sustentar que não foi um colapso do capitalismo liberal. A consciência histórica, definida introdutoriamente, seria “a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam a sua experiência de evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de tal forma que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo” (RÜSEN, 2001, p. 57). A consciência histórica está presente em toda pessoa e é construída tanto com o conhecimento oferecido na sala de aula como aquele oferecido fora dela. Por causa disso, consciente ou não, em cada pessoa a consciência histórica articula presente, passado e futuro. Entre esses três tempos, partimos do presente para então levantarmos questões e problemas que tendem a nos imergir no passado em busca de respostas. Identificando as possíveis respostas dadas pelo passado, construímos uma resposta para as questões atuais e, consequentemente, projetamos nossas expectativas de transformação e permanência para o futuro. Seja individualmente, seja em grupo, o que implica até mesmo a memória de um país, o passado é sempre acionado, não só como elemento interpretativo do presente, mas como orientador de futuros. Segundo grupo – vídeos de consumo: alguns canais são utilizados para divulgar o saber histórico para um público não iniciado. Neste caso, a análise poderá partir de conceitos da História Pública. De acordo com a literatura especializada, o termo Public History começou a ser utilizado nos Estados Unidos, em meados dos anos 1970, no âmbito da Universidade de Santa

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Bárbara, na Califórnia. Robert Kelley, então professor naquela instituição, passou a usar o termo para se referir à atuação de historiadores e do método histórico fora da academia. No Brasil, a História Pública conheceu um verdadeiro boom nos últimos cinco ou seis anos. Para isso, muito contribuiu o Curso de Introdução à História Pública, oferecido na Universidade de São Paulo, em 2011, pelo Núcleo de Estudos em História da Cultura Intelectual, então coordenado pela professora Sara Albieri. A História Pública, portanto, é uma forma do historiador profissional engajar diferentes públicos não especialistas com o conhecimento histórico, de forma crítica, participativa e emancipatória, utilizando para isso os mais diversos recursos tecnológicos e metodológicos. Sobre a História Pública existem as obras de Almeida e Rovai (2011) e Mauad e Almeida (2016). Neste grupo estão, por exemplo, canais como o Nostalgia, apresentado por Felipe Castanhari, que apresenta vários vídeos dinâmicos sobre temas históricos; Leitura Obriga História, que divulga livros acadêmicos de História e o canal Buenas Ideias, do jornalista Eduardo Bueno, que conta de forma sarcástica a história do Brasil. Neste grupo também estão aqueles canais que divulgam documentários, como Documentários em HD ou Portal Documentários. Interessante também destacar canais como Impérios AD e DGP Mundo, que divulgam o conhecimento histórico no YouTube por meio de desenho animado. Terceiro grupo - videoaulas: Aqui se encontram os canais cujo objetivo declarado é ensinar história, como as videoaulas em si, que é nosso objeto. Sobre videoaulas no YouTube, “os vídeos com conteúdo educacional disponibilizados no YouTube priorizam a combinação da linguagem verbal e textual, apresentando-se num formato de aula expositiva, onde o professor explica o conteúdo” (SCHNEIDER et all, 2012, p. 4). Entendemos que seria mais adequado usar os conceitos do ensino de História. Isso porque, neste caso, as videoaulas de História se encaixam no conceito de educação não formal. É o caso, por exemplo, do canal Nerdologia, que não alisamos nesta pesquisa. É importante explicitar, porém, que essas videoaulas não se configuram nem no campo de ensino EaD, nem no de E-learning. A videoaula veiculada pelo YouTube não pode ser confundida com a modalidade EaD, ou E-learning, por vários motivos. A modalidade EaD é

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institucional, segue um currículo e um regulamento que prevê formas de avaliação (MATTAR, 2009). A videoaula do YouTube não tem nenhum compromisso formal e também não é mediada por nenhuma instituição educacional. A não ser, é claro, quando é uma instituição que forma um canal no YouTube. Nesse caso, ela faz isso para divulgação, e não para formação. Ela passa informação sem o compromisso de gerar conhecimento. Além disso, na EaD há uma relação entre o professor e o aluno, que não há na videoaula. Alguém pode alegar que na videoaula do YouTube o professor interage por meio dos comentários. Porém, novamente, passa-se por alguns critérios. Na EaD o professor tem obrigação de fazer a mediação, até mesmo porque ele está recebendo pra isso. No YouTube, o professor responde e interage se quiser, podendo inclusive ignorar e deletar um comentário que não julgar pertinente. Além disso, na videoaula, não há compromisso financeiro, pois quem veicula os vídeos não tem um salário e age mais motivado em ficar conhecido do que em ter retorno financeiro propriamente dito. Por fim, na EaD há um critério para seleção do professor facilitador, que não acontece com aquele que grava uma videoaula. Dessa forma, enquanto a EaD (ou E-learning) é uma plataforma de ensino formal, oferecida por alguma instituição de ensino, e ministrada por professores devidamente habilitados para isso, o YouTube é um ambiente não formal, inclusive porque não é exigida nenhuma titulação daqueles que gravam vídeos se apresentando como professores. Por outro lado, isso não significa que não exista vídeo de EaD no YouTube, o que é diferente. O YouTube não é uma plataforma EaD, mas contem vídeos de EaD. É possível que uma instituição formal de ensino, como a Univesp, que às vezes está ligada à Universidade Aberta do Brasil, produza conteúdos de aula na modalidade EaD e, posteriormente, ela é divulgada no YouTube. Porém, ela não foi inicialmente produzida para o YouTube. Ela foi produzida para o programa institucional EaD e só depois ela foi divulgada YouTube. Os vídeos que se encaixam no terceiro grupo, videoaulas do YouTube, são aqueles vídeos produzidos por iniciativa individual – e não institucional – e que foram feitos, desde o início, com o propósito de serem divulgados no YouTube. Não se pode, portanto, agrupar todos os vídeos do YouTube que se utilizam da História de forma igual. É importante tal distinção. Além disso, por se tratar

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de vídeo, e por este ser também um produto, inclusive que proporciona retorno financeiro para seus produtores, é importante dialogar com conceitos típicos da História e Cinema, como aqueles propostos pelo historiador Marc Ferro (1983). Dessa forma, o título do projeto mudou para Ensino de História e Educação Não formal: o fenômeno das videoaulas do YouTube. Inclusive, acrescentamos que o objeto de pesquisa são as videoaulas do YouTube para não confundir com videoaulas da EaD, que, por sua vez, já se constitui em outro campo de estudo dentro do ensino, como os TICs ou o E-Learning. Dessa forma, no campo da História, o YouTube não pode ser automaticamente inserido no universo dos TICs. Quando se trata do segundo grupo, vídeos de consumo, que um determinado professor utiliza em sua aula como ferramenta de ensino - como as diversas animações que são disponíveis - ele pode, sim, ser incluído nos TICs. Mas, quando se trata da videoaula, ela não é uma ferramenta utilizada pelo professor, mas uma espécie de concorrente. Até porque, os alunos questionam a legitimidade da aula formal do professor como base no seu conteúdo adquirido na videoaula. Por fim, os vídeos de memória não são TICs, porque estão muito distantes do ensino de História. O conhecimento divulgado pelos vídeos de memória não torna o aluno que consome essas informações um protagonista no processo de aprendizagem, pois, neste caso, quando o conhecimento adquirido está errado, ou uma memória é dada como fato, ele não é um saber prévio, mas um preconceito. Ou seja, o YouTube contém vídeos que se caracterizam como TICs, mas o YouTube, em si, não pode ser totalmente englobado como ferramenta TIC.

Metodologia

Definida a questão teórica, realizamos uma pesquisa com os alunos do Instituto Federal Goiano, Campus Urutaí, para saber se eles consumiam essas videoaulas, quais os principais canais assistidos e com qual frequência. A pesquisa perguntou aos alunos se eles assistem ou não a videoaulas de História no YouTube, a frequência, e quais são os canais mais assistidos. Na segunda

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parte, questionou-se se eles confiavam no conteúdo consumido, a preferência, se ele já identificou conflito entre os conteúdos e a influência em sua vida escolar. A pesquisa encontrou as respostas abaixo. Quando questionados sobre assistirem a videoaulas de História no YouTube, o resultado ficou bem dividido. 49,37% responderam que assistem, contra 50,62% que responderam não consumi-las. Esse dado precisa levar em consideração que se trata de uma região rural e, portanto, muitos alunos não assistem por não terem acesso à internet. Na próxima pesquisa, deverá ser acrescentada uma questão indagando se os alunos que não assistem assim o fazem por opção ou por falta de opção. A segunda questão perguntava a frequência. 62,58% responderam que assistem a videoaulas de História somente em véspera de provas. 16,32% responderam que assistem muito raramente. E 31,08% responderam que assistem mensalmente, enquanto 6,8% responderam que assistem semanalmente. Nenhum aluno respondeu que assiste todos os dias. A soma apresenta resultado acima de 100% porque os alunos marcaram mais de uma alternativa na resposta, provavelmente sobrepondo mensalmente a semanalmente. A pergunta posterior quis saber quais os vídeos mais acessados. Novamente, a soma ultrapassa 100% porque os entrevistados marcaram mais de uma alternativa. Os seguintes canais lideraram as respostas: 30,61% disseram que assistem a videoaulas de História do canal Descomplica. 21,63% do canal Débora Aladim. 19,18% assistem ao canal Se Liga Nessa História. E, por fim, 28,75% marcaram outros canais, como Aula Livre, Mundo Edu e Nostalgia. Questionados sobre a confiabilidade dessas aulas, 49,36% responderam que as aulas são parcialmente confiáveis, enquanto 39,24% responderam que são totalmente confiáveis, contra 11,39% que afirmaram que as videoaulas não são confiáveis. E, então, uma pergunta polêmica: qual era a preferida? Videoaulas do YouTube ou as aulas da escola. 66,66% responderam que gostam das duas, 5,76% respondeu que não gosta de nenhuma, 10,89% responderam que gostam mais da aula do YouTube e 16,66% responderam que gostam mais da aula da escola.

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Os alunos também foram questionados se já identificaram conflitos entre as informações veiculadas pela aula ministrada pelo professor da escola e as informações veiculadas pelo YouTube. 7,59% responderam que sempre identificam conflitos. 60,75% responderam que às vezes identificam conflitos. 31,64% responderam que não identificaram conflitos. E, então, foi questionado se, quando identificam conflitos, em qual preferem confiar. 8,17% responderam que acreditam mais na aula do YouTube, enquanto 91,82% responderam que acreditam mais na aula do professor da escola. E a última pergunta queria saber: você já tirou nota alta em avaliações por ter assistido a uma videoaula antes da prova? 77,63% responderam afirmativamente, contra 22,36%. Como recorte, analisa-se a seguir os três canais com maior audiência: Descomplica, Débora Aladim e Se Liga Nessa História.

Análise

Como afirmamos, analisamos os três canais mais votados pelos alunos: Descomplica, Débora Aladim e Se Liga Nessa História. O número de vídeos postados por cada um é enorme, e seria impossível analisar todos eles. Por isso, escolhemos as videoaulas de temas em comum para os três que, também, estão entre os mais visualizados entre eles: Primeira Guerra Mundial, Segunda Guerra Mundial e Era Vargas. A plataforma Descomplica foi criada no ano de 2011 pelo professor Marcos Fisbhen, tendo como objetivo fazer do aprendizado contínuo uma estratégia de crescimento. O Descomplica acabou tornando-se uma das maiores salas de aula online do mundo, possuindo atualmente 2.081.653 inscritos na plataforma do YouTube e mais de 20.000 videoaulas gravadas. Nele é possível encontrar revisões de matérias escolares, vídeo aulas referentes aos mais variados tipos de conteúdos, além de um vasto material de estudo para o aluno obter êxito em vestibulares, com foco principal no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A equipe do canal é vasta e possui uma plataforma online avulsa ao YouTube, onde existem cursos pagos de preparatório para o ENEM. Com foco principal nos estudos, o Descomplica

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acabou criando cinco categorias de preparação: Escolas, Vestibulares, Universidades, Concursos e Pós-Graduação. Possuindo uma metodologia diferente daquelas vistas em escolas, o canal ensina de forma simplificada e divertida, o que acaba instigando o aluno a estudar por vontade própria, sendo estimuladas a aprender sobre cultura, diversidade e, claro, as matérias essenciais para se sair bem em exames decisivos para a vida acadêmica. O canal Descomplica é composto por uma vasta equipe de professores que ensinam pelo método virtual todos os dias durante o ano todo. Dentre as formas de ensino estão: textos simplificados, aulas ao vivo, videoaulas semanais e também com atendimento pessoal. O terceiro canal é da Débora Aladim, onde são disponibilizados vídeos semanais educativos e interativos ao mesmo tempo. Contando com conteúdos como "vlogs" de viagens, ajuda para escrever uma boa redação e conteúdos históricos, além de conteúdos descontraídos, ou conversas com os inscritos. Cinco anos após seu início na mídia educativa, a estudante de história já conta com 1.915.935 inscritos em seu canal, além de possuir o status de estar entre os cinco maiores canais educativos do Brasil. Aos quinze anos de idade, Débora Aladim iniciou sua jornada pela plataforma YouTube. Através de vídeo aulas gravadas por ela com o incentivo de ajudar seus colegas de classe, começou a atingir um público maior do que o esperado. Débora também criou um método inédito e eficaz para que qualquer pessoa possa escrever uma boa redação modelo ENEM. Já escreveu apostilas sobre o assunto e fez aulas para o Ministério da Educação em 2016, além de trabalhos com outras grandes marcas da educação e produtos voltados ao seu público. Por fim, o canal Se Liga Nessa História é um projeto educacional que atua em duas frentes: um canal no YouTube e a plataforma de estudos com um curso completo de Ciências Humanas (História, Filosofia, Sociologia e Geografia). No YouTube, são publicados vídeos sobre temas importantes das 4 disciplinas e áreas afins, além de orientações e dicas para os vestibulares e para o ENEM. Já na plataforma de estudos, é oferecido um curso completo, com videoaulas aprofundadas e recursos pedagógicos como materiais e exercícios. Cada vez mais o canal vem crescendo no YouTube, já contando com 939.218 inscritos e sendo considerada a maior sala de aula de ciências

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humanas do Brasil. A equipe do canal Se liga nessa história é formada por quatro professores que lecionam as disciplinas de História, Filosofia, Sociologia e Geografia. Dos quatro professores, o mais famoso é o professor Walter. Paulista, formou-se em História em uma universidade pública e logo após já iniciou sua carreira lecionando para crianças de onze a dezessete anos, mas percebia que não havia tanto interesse por parte dos alunos nas disciplinas de ciências humanas. Pensando nisso, ele começou a desenvolver uma nova forma de ensino com um antigo colega de faculdade. O projeto consistia em gravar aulas e publicar de forma gratuita na internet, então deram o nome de Se liga nessa história. Em seis meses mais de cinco mil estudantes já estavam inscritos no canal, e o objetivo de Walter foi atingido. Juntando-se a mais três profissionais da área, conseguiu alavancar seu trabalho, atingindo alunos no Brasil todo.

Discussão dos resultados

O primeiro tema analisado foi A Era Vargas. O canal Descomplica apresenta um método diferente dos outros dois, é desenvolvido um vídeo completamente interativo que utiliza desenhos, mapas mentais e memes, o que faz com que os jovens fixem sua atenção no conteúdo e relembrem do que foi falado de forma fácil. As informações são organizadas em mapas mentais bem coloridas e cheias de informações, com fotos, datas e movimentos destacados. Neste vídeo foram explicados os governos empregados na era Vargas, e também os acontecimentos desta época. Já o canal Débora Aladim possui um vídeo sobre este tema explicado de forma mais teórica que interativa. Neste canal, a qualidade visual é inferior, porém o conteúdo é completo, mas com menos edições e acessórios chamativos. Com uma aula completa sobre a Era Vargas, Débora consegue passar um conteúdo mais adequado para estudos visando a provas. Existem muitas informações que completam os outros canais, também estão presentes curiosidades e exemplos em fotografias, e leituras de livros.

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O canal Se liga nessa história, assim como o Descomplica, apresenta um conteúdo bem desenvolvido em pouco tempo, é notável que a concentração fixa-se melhor com formas de vídeo interativas, com edições chamativas e efeitos sonoros. O professor Walter passa bem seu conteúdo, oferecendo dicas e demonstrando objetos de forma descontraída. É bem presente a questão da didática em todos os vídeos, sendo possível aprender bem de forma rápida e interativa. Já o tema da Primeira Guerra Mundial não foi diferente. Novamente o canal Descomplica apresenta um método de interação criativo, apresentando mapas mentais com desenhos de soldados, tanques de guerra e dicas essenciais que fixam no pensamento. O método apresentado utiliza de sons, mapas mentais e conteúdos de fixação. São demonstradas datas, locais e figuras ilustrativas acompanhadas de uma narrativa descontraída e simples. O canal Débora Aladim, assim como no vídeo anterior, apresenta um conteúdo mais complexo e elaborado, descrevendo de maneira formal o assunto em questão. São demonstradas imagens ao longo da videoaula juntamente com as explicações orais redigidas pela mesma. Dicas e macetes são acrescentados às suas explicações, o que chama a atenção dos alunos que necessitam de uma aula mais elaborada. Assim como na maioria de seus vídeos, o canal Se liga nessa história procura formas de interagir com o público através do humor, fantasias e caracterizações são utilizadas para o entretenimento enquanto a explicação percorre caminhos de fácil entendimento ao aluno, trazendo como sempre o bom resultado proveniente das videoaulas. Por fim, o tema da Segunda Guerra Mundial é explorado no canal Descomplica através de elementos como efeitos sonoros, mapas mentais, desenhos ilustrativos e demonstrativos ainda fazem parte da composição do vídeo aulas desta plataforma. No vídeo sobre a Segunda Guerra Mundial, o canal buscou a complementação do vídeo sobre a primeira guerra dando uma continuação nos acontecimentos, levando o aluno a compreender o que se passava na época em questão. Assim como em seus outros vídeos, Débora Aladim persiste explicando os conteúdos de forma elaborada, fazendo com que seus vídeos tenham uma extensão maior, geralmente em torno de trinta minutos. Em suas aulas são

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demonstrados macetes e questões do ENEM, sempre buscando o aprendizado para vestibulares. Na videoaula sobre a Segunda Guerra Mundial, a apresentadora proporciona uma visão por trás dos fatos ocorridos com demonstração de imagens e explicações advindas de livros históricos. Já no canal Se liga nessa história, o conteúdo ainda é abordado com bastante humor, transformando o aprendizado em uma coisa divertida, unindo a contemporaneidade como super-heróis e também questões abordadas no ENEM. Neste canal é possível encontrar resoluções de exercícios de vestibulares de forma elaborada e bem explicada.

Considerações finais

O tema da tecnologia em sala de aula não é novidade. Ele tem sido objeto de investigação nas diferentes áreas. A maior parte das pesquisas, porém, é sobre o uso de vídeos nas aulas. Quando se trata da disciplina de História, fala-se muito na utilização de filmes como aporte para as aulas teóricas. Afinal, não faltam filmes de temas históricos variados. Por outro lado, não encontramos pesquisas sobre o fenômeno que tem sido a utilização de videoaulas por alunos. Cada vez mais professores, leigos e historiadores não profissionais disponibilizam aulas no YouTube, que são assistidas por alunos para se prepararem melhor para as provas. Dessa forma, o tema precisa ser investigado pela academia. Nesse sentido, essa pesquisa se propôs a ser o primeiro passo, e não uma resposta final, pronta ou acabada. Os professores de história, muitas vezes, privilegiam as pesquisas tradicionais, em que o texto escrito é o documento monumento. Essa pesquisa, porém, não é suficiente para o mundo atual, em que adolescentes consomem cada vez mais informações da internet. Uma característica dessa geração, portanto, tem sido a de consumir cada vez mais informações sobre diversos assuntos, mas de forma superficial, sem dominar com profundidade nenhuma delas. Alguns historiadores vêm esse fenômeno como positivo, pois ajuda a divulgar a História acadêmica para o público em geral. Outros historiadores, porém, vêm como negativo, em que são disseminados conteúdos equivocados como sendo verdadeiros.

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A nossa prática docente no cotidiano escolar tem demonstrado que nem sempre isso tem oferecido um resultado positivo. Em alguns casos, mensagens erradas são veiculadas como corretas. Alguns alunos, então, questionam o professor, que não considerou sua resposta como correta, uma vez que aquela resposta que o aluno questionador colocou na prova foi o argumento apresentado pelo professor da internet, e não explicada em aula. Existe uma noção de que o professor da internet, ainda que tenha uma formação inferior, domina melhor o conteúdo que o professor que está presencialmente na sala de aula. Por que isso acontece? Uma hipótese é que, na sala de aula, o aluno tem um primeiro contato com aquele conteúdo. Quando ele vai para a aula da internet, ele já tem um conhecimento prévio da sala de aula. Isso o ajuda a assimilar melhor o conteúdo. Por causa disso, ele passa a ter a impressão que o professor da internet é melhor que o seu próprio professor para explicar. O que se nota entre os canais mais assistidos é uma preocupação com o dinamismo, característico do período de superexposição à mídia que vivemos. As videoaulas oferecem recursos que uma aula tradicional, em geral, não oferece. Um professor de um canal do YouTube, geralmente, vive por conta de gravar uma única videoaula, que alcança milhares de pessoas, enquanto o professor escolar ministra dezenas de aulas por semana. Além disso, os canais que mais fazem sucesso contam com uma equipe especializada em edição de vídeos, que faz com que a videoaula tenha o dinamismo que uma aula tradicional não suporta. Até porque, um professor escolar também tem outras atividades – como elaboração e correção de provas – que um Youtuber não precisa se preocupar. Então, é provável que tentar reproduzir o dinamismo do YouTube em uma sala de aula tradicional iria levar o professor ao fracasso, já que são espaços completamente diferentes. Simplesmente desqualificá-las também não será o melhor caminho, já que os alunos continuarão consumindo tais informações, sem poder esclarecer os equívocos com o professor. O que, provavelmente, seja o melhor caminho, é a conciliação. Isto é, a possibilidade do professor trazer o conteúdo que os alunos aprendem nas videoaulas para serem debatidos na sala de aula tradicional, à luz da bibliografia especializada, que o professor domina. É interessante o professor

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conhecer para verificar o que ele pode aprender e para corrigir eventuais erros com seus alunos. Ao invés de criticar, pode debatê-las em sala de aula também. Portanto, possibilitar, na aula regular, um espaço para que o aluno compartilhe o conhecimento que adquiriu naquelas aulas. Ao invés de serem vistas como concorrentes, as duas modalidades podem trabalhar juntas.

Referências

ALMEIDA, Juniele Rabêlo de. ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Introdução à história pública. São Paulo: Letra e voz, 2011.

BURGESS, J. & GREEN, J. Youtube e a revolução digital: como o maior fenômeno da cultura participativa transformou a mídia e a sociedade. São Paulo: Aleph, 2009.

FERRO, Marc. A manipulação da História no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016,

MATTAR, João. Youtube na educação: o uso de vídeos em EAD. São Paulo: Universidade Anhembi Morumbi. Relatório de pesquisa. 2009.

RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora da UnB, 2001.

SCHNEIDER, Catiúcia Klug. CAETANO, Lélia. RIBEIRO, Luis O. M. Análise de vídeos educacionais no YouTube: caracteres e legibilidade. Revista novas tecnologias na educação. V. 10. N. 1. Julho de 2012.

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notas científicas

• Registro de morcego ameaçado de extinção em área de mineração no Cerrado Iasmin Reis Marcelo Kuhlmann Peres Leandro Santos Goulart Adriano Antônio Brito Darosci

• Predador de abelhas sem ferrão no Cerrado brasileiro: primeiro registro de Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Histeridae) em colônia de Melipona quadrifasciata Carlos de Melo e Silva-Neto Pedro Vale de Azevedo Brito Paulo Vitor Divino Xavier de Freitas

Registro de morcego ameaçado de extinção em área de mineração no Cerrado

Presence of endangered bat species from mining area at Cerrado Presencia de especies de murciélagos en peligro de extinción en un sitio de minería en el Cerrado

Iasmin Reis Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás-Formosa-GO [email protected]

Marcelo Kuhlmann Peres Centro de Pesquisa Agropecuária dos Cerrados (EMBRAPA) [email protected]

Leandro Santos Goulart Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás-Formosa-GO [email protected]

Adriano Antônio Brito Darosci Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás-Formosa-GO [email protected]

Resumo O Cerrado possui grande diversidade de quirópteros, alguns deles ameaçados de extinção. Registros dessas espécies em ambiente antropizado levantam discussões sobre as respostas com a perda de habitat e adaptações à heterogeneidade ambiental. Dessa maneira, redes de neblina foram dispostas no interior de sítio de mineração. Foram capturadas duas espécies, Lonchophylla dekeyseri (ameaçado de extinção) e Chropterus auritus, das quais foram obtidas fezes que apresentaram resto de frutas e artrópodes, respectivamente. Tanto a fidelidade aos locais de nidificação quanto o acesso ao alimento podem ser as causas desses registros, uma vez que cavernas e manchas de vegetação estavam presentes no local.

Palavras-chave: Conservação. Fragmentação. Frugivoria. Lonchophylla dekeyseri.

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Abstract In the Cerrado there is a high diversity of bats, including some endangered species. Records of those species in anthropized environment lead to discussion about habitat loss and adaptation to environment heterogeneity. In this way, mist nets were armed in mining site. Lonchophylla dekeyseri (endangered species) and Chropterus auritus were captured and they feces contained fruit and fragments, respectively. The fidelity to roost sites and the easy access to food can be responsible by those records since caverns and patches of forest were presents.

Keywords: Conservation. Frugivory. Habitat fragmentation. Lonchophylla dekeyseri.

Resumen El Cerrado posee gran diversidad de quirópteros, algunos de ellos en vías de extinción. Registrar especies de murciélagos amenazados en ambiente antrópicodel lleva a la discusión sobre posible pérdida de hábitat y adaptación a la heterogeneidad ambiental. Para ello, un área antrópica en el interior de un sitio de minería fue elegida para la recolección de murciélagos con el uso de redes de niebla. Fueron capturadas dos especies, Lonchophylla dekeyseri (especie en peligro) y Chropterus auritus, cuya deposición de excremento presentó pulpa de frutas y fragmentos de artrópodos, respectivamente. Tanto la fidelidad a los sitios de anidar, como el acceso facilitado al alimento pueden ser las causas de esos registros, una vez que las cavernas y las manchas de vegetación estaban presentes en el lugar.

Palabras clave: Conservación. Fragmentación. Frugivoria. Lonchophylla dekeyseri.

O Cerrado possui cerca 105 espécies de morcegos, o que equivale a 59% da fauna total de quirópteros do Brasil (NOGUEIRA et al., 2014). Tal valor ainda pode ser maior, haja vista que o Cerrado é a segunda ecorregião brasileira menos estudada em relação a fauna de quirópteros, com apenas 6% do seu território minimamente amostrado (BERNARD; AGUIAR; MACHADO, 2011). Mesmo com tamanha diversidade, a famigerada depredação do Cerrado continua em passos largos e as formações florestais, que possuem alta importância para a manutenção de populações de morcegos, ao prover abrigos, locais de nidificação e comida, estão entre os ambientes que mais sofrem. Entre as espécies afetadas está Lonchophylla dekeyseri Taddei, Vizotto e Sazima, 1983 (Família Phyllostomidae) que é conhecida popularmente como morceguinho-do-cerrado e está ameaçada de extinção. Ela ocorre principalmente no Cerrado (apenas recentemente registrada na Caatinga, LEAL et al., 2014) distribuída em seis populações nos Estados de Goiás, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e no Distrito

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Federal (AGUIAR et al., 2006), totalizando aproximadamente 2500 indivíduos (AGUIAR; BERNARD, 2016). Entre as ameaças para a extinção dessa espécie, estão o controle não instruído e seletivo da raiva (i.e., a espécie se torna vítima junto com Desmodus rotundus (E. Geoffroy, 1810, vetor da doença), a depressão por endogamia e a perda do habitat (AGUIAR; BRITO; MACHADO, 2010). Cidades, atividades agrícolas e empreendimentos (rodovias, hidrelétricas, mineradoras, entre outros) contribuem para a extinção dos morcegos ou o deslocamento deles para áreas antropizadas (PACHECO et al., 2010). Nestas áreas, a presença de locais de nidificação (i.e. cavernas) e alimentação (i.e. fragmentos florestais) pode contribuir para a manutenção dessas espécies (ZORTÉA; TOMAZ, 2006). A região na qual se situa a cidade de Formosa, Goiás, abriga algumas propriedades particulares que apresentam áreas antropizadas associadas a áreas de cavernas que são habitat para diversa comunidade de morcegos (BREDT; UIEDA; MAGALHÃES, 1999), incluindo L. dekeyseri (ESBÉRARD; MOTTA; PERIGO, 2005). Contudo, o registro nessa região de espécies de morcegos em ambiente antropizado é ainda escasso e não há registro publicado da espécie L. dekeyseri na cidade de Formosa, apesar da importância desses dados para as discussões sobre a perda de habitat e adaptação a heterogeneidade ambiental. Com isso, dentro da propriedade da Engebrita Calcário, empresa de mineração localizada na rodovia GO 430, Km 07, distrito do Bezerra, zona rural da cidade de Formosa (GO), duas redes (9 x 3 m; mist nets) foram montadas em área de clareira, margeada por mata de galeria e estradas locais e próxima à entrada de caverna natural e de continuo fragmento florestal (15°25'50,65"S; 47°02'45,36"O). As redes ficaram abertas durante 4 horas por noite (após às 18 horas), ao longo de seis meses (Janeiro a Junho de 2017, uma noite por mês), somando 24 horas de amostragem. As redes eram verificadas a cada 30 minutos e os morcegos capturados foram mensurados e fotografados para posterior identificação com auxílio de livros guia (REIS et al., 2013) e de especialista (Ludmilla Moura de Souza Aguiar, Universidade de Brasília).

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Após retirados da rede, os animais foram mantidos em sacos de algodão por 30 minutos e as fezes ali encontradas foram coletadas e analisadas em laboratório. As fezes foram diluídas em pequenas quantidades de água destilada, fracionadas em pequenas porções e observadas em estereoscópio de mesa. Vestígios alimentares (e.g. restos de frutas e artrópodes) foram registrados por fotografias. Foram capturados um indivíduo de L. dekeyseri e outro de Chropterus auritus (PETERS, 1856). Do primeiro, obteve-se registro de restos de fruta nas fezes (fezes pastosas) e do segundo, fragmentos de artrópodes (exoesqueleto em fezes sólidas) (Tabela1; Figura1). Além desses, um indivíduo que aparentou ser do Gênero Lonchophylla se prendeu a rede (13 de Maio de 2017, às 19 horas), porém, fugiu antes que registros fotográficos pudessem ser feitos e que o material fecal pudesse ser coletado. Os registros das espécies L. dekeyseri e C. auritus se tratam dos primeiros para Formosa, não sendo citadas entre as nove espécies amostradas por Chaves, Franco e Pereira (2012). A presença de L. dekeyseri em área antropizada já foi testemunhada por Bredt, Uieda e Magalhães (1999) e por Pacheco et al. (2010) e pode ser justificada pela fidelidade ao local de repouso e nidificação (PACHECO et al., 2010) que, no caso de L. dekeyseri, se trata das cavernas (ESBÉRARD; MOTTA; PERIGO, 2005). Essa espécie pode fazer uso da mesma caverna como abrigo por sete anos (AGUIAR et al., 2006). Além disso, a espécie já foi apontada por possuir plasticidade ambiental, tolerando áreas com nível intermediário de fragmentação (AGUIAR et al., 2006; AGUIAR; BERNARD; MACHADO, 2014). Nessas áreas, o alimento disponível pode estar mais acessível, algo que contribui para a presença de morcegos (CLARKE; PIO; RACEY, 2005). Contudo, a degradação ambiental também já foi apontada como motivo para a baixa captura de morcegos (TEIXEIRA; SÁ-JAYME; ZORTÉA, 2015). O registro de apenas três indivíduos na área de mineração do presente estudo, por exemplo, ficou bem aquém do esperado, mesmo considerando o esforço amostral baixo.

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Figura 1 – Morcegos capturados em área antropizada situada no interior de empresa de mineração em Formosa, Goiás: à esquerda, Chropterus auritus; e à direita, Lonchophylla dekeyseri. O conteúdo fecal analisado de cada uma das espécies está exibido nos círculos nos cantos da figura, destacando os fragmentos de artrópodes (de 0,1 a 0,5 cm de comprimento) em C. auritus e a polpa de frutas em L. dekeyseri. Fonte: os autores.

TABELA 1 Espécies de morcegos capturados em área situada no interior de empresa de mineração em Formosa, Goiás, discriminados quanto à data (ano 2017) e a hora da captura, o sexo, a envergadura das asas, o hábito alimentar e o material predominante encontrado nas fezes.

Espécie Data e Hora Sexo Envergadura Hábito alimentar Fezes

Lonchophylla dekeyseri 15/03 às 21:30 Macho 13 cm Néctar, frutos e Restos de frutas insetos

Chropterus auritus 06/04 às 19:00 Macho 40 cm Pequenos Fragmentos de vertebrados e insetos insetos

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A presença de restos de frutas evidenciada por esse trabalho nas fezes de L. dekeyseri é um bom indicativo do hábito frugívoro da espécie. A espécie geralmente consume frutos e insetos durante a estação chuvosa e recursos florais ao longo da estação seca, se adaptando a disponibilidade sazonal do alimento (COELHO; MARINHO- FILHO, 2002) e podendo contribuir, assim, tanto para a dispersão quanto para a polinização de espécies nativas. Já a presença de fragmentos de insetos nas fezes de C. auritus está de acordo com a dieta insetívora da espécie e atesta o papel dela como agente controlador desse grupo de animais. O registro de espécie ameaçada em áreas particulares de exploração ambiental atesta a importância da manutenção de sítios protegidos dentro dessas propriedades, contribuindo com o pouco do Cerrado que se encontra protegido por unidades de conservação (PINA; MEYER; ZORTÉA, 2013). Os remanescentes vegetais em meio às atividades humanas podem representar importantes áreas facilitadoras da conectividade (stepping stones) entre áreas florestadas e pontos de abrigo e forrageio para L. dekeyseri (AGUIAR et al., 2006). No entanto, é necessário, ainda, um estudo mais aprofundado da população local e também das interações dentro da comunidade, buscando averiguar a relação da atividade antrópica com a preservação de uma espécie ameaçada de extinção.

Referências

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Predador de abelhas sem ferrão no Cerrado brasileiro: primeiro registro de Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Histeridae) em colônia de Melipona quadrifasciata

Predator of bees without stings in the Brazilian Cerrado: First record of Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Histeridae) in colony of Melipona quadrifasciata Predador de las abejas sin aguijón en el Cerrado de Brasil: Primer registro de Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Histeridae) en la colonia de Melipona quadrifasciata

Carlos de Melo e Silva-Neto Instituto Federal de Goiás (IFG) | Câmpus Cidade de Goiás [email protected]

Pedro Vale de Azevedo Brito Universidade Federal de Goiás [email protected]

Paulo Vitor Divino Xavier de Freitas Universidade Federal de Goiás [email protected]

Resumo A ocorrência de inimigos naturais é relevante, uma vez que podem causar sérios danos as abelhas até mesmo a morte da colônia. Pouco se conhece sobre a relação entre besouros e abelhas sem ferrão. Assim, com este trabalho, foi realizado o primeiro registro de Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Histeridae) em colônia de Melipona quadrifasciata Lepeletier, 1836 no Cerrado brasileiro e foram descritas as condições da colônia e o comportamento da abelha contra o predador. Em novembro de 2015 foi verificado uma grande quantidade de mosca-do-favo (Pseudohypocera kerteszi (Enderlein) (Diptera: Phoridae) em uma colônia. A colônia foi isolada e aberta para limpeza mais detalhada, sendo observada Predador de abelhas sem ferrão no Cerrado brasileiro: primeiro registro de Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Tecnia | v.4 | n.1 | 2019 Histeridae) em colônia de Melipona quadrifasciata

a presença de um besouro adulto. Hololepta (Leionota) reichii foi encontrado em movimento dentro das estruturas da colônia entre áreas úmidas e o ninho, onde se encontram as larvas e pupas das abelhas. Hololepta (Leionota) reichii é um besouro predador de abelhas do gênero Melipona, incluindo a mandaçaia (Melipona quadrifasciata). A ação do predador, anteriormente descrito para a região do bioma Amazônico, é relatado para o bioma Cerrado.

Palavras-chave: Inimigo natural. Mandaçaia. Ninho racional.

Abstract The occurrence of natural enemies is important as it can cause serious harm to bees and even the death of the colony. Little is known about the relationship between and bees without stings. So this work is the first record of Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Histeridae) in colony of Melipona quadrifasciata Lepeletier, 1836 in the Brazilian Cerrado and describe the conditions of the colony and bee behavior with predator. In November 2015 it was observed one colony with large amount of fly-of-comb (Pseudohypocera kerteszi (Enderlein) (Diptera: Phoridae). The colony was isolated and open for further cleaning, and observed the presence of an adult . The Hololepta (Leionota) reichii was found moving within the colony structures, among wetlands and the nest, where the larvae and pupae of bees. Hololepta (Leionota) reichii is a beetle predator of the Melipona bees, including mandaçaia (Melipona quadrifasciata). The Predator action, anteriorly described for the Amazonian region, is reported to the Cerrado biome.

Keywords: Natural enemy. Mandaçaia. Rational nest.

Resumen La ocurrencia de enemigos naturales es importante ya que puede causar graves daños a las abejas incluso la muerte de la colonia. Poco se sabe sobre la relación entre escarabajos y abejas sin aguijón. Así que el objetivo de este trabajo es el primer registro de Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Histeridae) en la colonia de Melipona quadrifasciata Lepeletier de 1836 en el Cerrado brasileño y describir las condiciones del comportamiento de la colonia y la abeja versus el predador. En noviembre de 2015, se encontró una de las colonias con gran cantidad de mosca-delfavo (Pseudohypocera kerteszi (Enderlein) (Diptera, Phoridae). La colonia fue aislada y abierta para una limpieza más profunda, y se observó un escarabajo adulto. El Hololepta (Leionota) reichii se encontró en movimiento dentro de las estructuras de las colonias, entre áreas húmedas y el nido, donde quedan las larvas y pupas de las abejas. Hololepta (Leionota) reichii es un depredador escarabajo del género abejas Melipona, incluyendo mandaçaia (Melipona cuadrifasciata). La acción del predador, anteriormente descrito, para la región bioma Amazónico, se informa que es el bioma del Cerrado.

Palabras clave: Enemigo natural. Mandaçaia. Nido racional.

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Introdução

A criação de abelhas sem ferrão apresenta diversos desafios que dificultam o manejo das colônias. A ocorrência de inimigos naturais é um fator relevante, uma vez que pode causar sérios danos às abelhas, ou até mesmo a morte da colônia (PEREIRA, ALMEIDA-SOUZA E RÊGO-LOPES 2010; VIT, PEDRO e ROUBIK, 2013). Dentre os inimigos naturais das abelhas sem ferrão estão roedores, lagartos, aves, aranhas, ácaros, formigas e moscas da família Phoridae (Diptera), sendo que todos podem causar algum malefício seja para a abelha ou colônia como um todo (VILLAS-BOAS, 2012; WITTER e NUNES-SILVA, 2014). Até a pouco tempo, era desconhecida a relação entre besouros e abelhas sem ferrão, até que Peruquetti e Bezerra (2003) verificaram besouros Scotocryptus melitophilus Reitter, 1881 em ninho de Melipona quadrifasciata Lepeletier, 1836. Os autores verificaram que os besouros estavam em relação de forésia com as abelhas, vivendo nas partes úmidas do ninho, próximos ao depósito de lixo. Já Coletto-Silva e Freire (2006) observaram Hololepta (Leionota) reichii Marseul em intensa atividade predatória sobre larvas e pupas de Melipona seminigra merrillae e M. compressipes manausensis na Amazônia Central, próximo a Manaus, Amazonas, Brasil. Até então, era desconhecida a ação predatória de besouros em relação as abelhas sem ferrão, adicionando assim o besouro H. reichii como inimigo natural das abelhas sem ferrão, especialmente do gênero Melipona. Apesar de já relatada a presença do H. reichii em colmeias de abelhas sem ferrão do gênero Melipona, pouco se sabe sobre sua biologia e qual sua influência no comportamento e desenvolvimento das abelhas. Além disso, não existem relatos de relação predatória de H. reichii em Meliponas fora do bioma Amazônico. Assim, objetivou-se com este trabalho realizar o primeiro registro de Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Histeridae) em colônia de Melipona quadrifasciata Lepeletier, 1836 no Cerrado brasileiro e descrever as condições da colônia e o comportamento da abelha contra o predador.

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Material e métodos

O meliponário do presente estudo (16°35'16.09"S; 49°17'32.68"O) possuia 20 caixas racionais com diferentes espécies de abelhas sem ferrão, sendo dez ninhos-colônia de (M. quadrifasciata Lepeletier, 1836). As colônias eram alimentadas a cada 15 dias com 20 mL de xarope de açúcar: água (1:1), quando também era realizada a verificação semanal da sanidade das abelhas. Na verificação das colônias em novembro de 2015 foi constatado em uma das colônias com grande quantidade de mosca-do-favo (Pseudohypocera kerteszi Enderlein) (Diptera: Phoridae). Com o objetivo de eliminar as moscas-do-favo, a colônia foi isolada e aberta para limpeza mais detalhada. Durante a realização da limpeza foi possível notar a presença do exemplar de Hololepta (Leinota) reichii, que foi coletado com auxílio de pinça entomológica e depositados em coleção entomológica. A identificação do besouro adulto foi realizada com auxílio de chave de identificação (ABALLAY et al., 2013).

Resultados e discussão

Dentro da colônia de mandaçaia (Melipona quadrifasciata) foi encontrado um besouro adulto de Hololepta (Leionota) reichii. Muitas larvas de dípteros foram encontradas nas partes úmidas do ninho, próximas ao depósito de lixo onde são depositados os resíduos das abelhas. Dentro da colônia de mandaçaia (Melipona quadrifasciata) foi encontrado um besouro adulto de Hololepta (Leionota) reichii. Esse exemplar (Figura 01), foi encontrado em movimento dentro das estruturas da colônia, entre áreas úmidas e o ninho, onde se encontram as larvas e pupas das abelhas. Na tentativa de imobilizar o besouro, as abelhas M. quadrifasciata, depositavam resina e barro próximo ou sobre o H. reichii. Ainda assim, a quantidade de material depositado não se mostrava suficiente para impedir o besouro que apresentava grande mobilidade. Peruquetti e Bezerra (2003) verificaram que besouro Scotocryptus melitophilus, vivia em relação forésica

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com abelhas do gênero Melipona, utilizando apenas a colônia e os resíduos das abelhas para se alimentar, sem prejuízo para as abelhas.

Figura 1 – Vista do dorso e do ventre de Hololepta (Leionota) reichii Marseul (Coleoptera, Histeridae). Fonte: Autores (2018).

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É relevante destacar que no ninho em que foi encontrado o besouro H. reichii, havia muitos indivíduos da mosca-do-favo (Pseudohypocera kerteszi (Enderlein); Diptera: Phoridae), sendo encontradas nas paredes do ninho e nos potes de mel e pólen. A grande quantidade dos dípteros do ninho deixaram as M. quadrifasciata em intensa atividade na tentativa de controlar os invasores. Porém não está claro se o besouro H. reichii também poderia predar as larvas dos dípteros ou apenas se beneficiava-se da condição de estresse da colônia. A entrada do H. reichii na colônia provavelmente ocorre por pequenas aberturas ou frestas entre as seções da colônia. A morfologia do besouro parece facilitar o acesso a colônia, além dele facilmente se esconder entre as estruturas de potes de alimentos, geopropolis e barro assim como verificado por Coletto-Silva e Freire (2006). Alguns aspectos da biologia do H. reichii ainda não foram esclarecidos, como o desenvolvimento e reprodução, tornando relevante futuros estudos para melhor compreensão além de prevenir e combater um potencial inimigo natural das abelhas do gênero Melipona. O conhecimento dos inimigos naturais das espécies de abelhas sem ferrão no Cerrado é fundamental para estimular os meliponicultures da região, a continuarem e expandirem com as atividades de criação.

Conclusão

Hololepta (Leionota) reichii é um besouro predador de abelhas do gênero Melipona, incluindo a mandaçaia (Melipona quadrifasciata). A ação do predador, anteriormente descrita para a região do bioma Amazonico, é relatada para o bioma Cerrado.

Referências

ABALLAY, F. H.; ARRIAGADA, G.; FLORES, G. E.; CENTENO, N. D. An illustrated key to and diagnoses of the species of Histeridae (Coleoptera)

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