Judith Lauand E Jandyra Waters, Entre Concretismos
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Uma dupla exclusão: Judith Lauand e Jandyra Waters, entre concretismos, misticismos e possíveis feminismos A double exclusion: Judith Lauand and Jandyra Waters, between concretism, mysticisms and possible feminisms Talita Trizoli Como citar: TRIZOLI, T. Uma dupla exclusão: Judith Lauand e Jandyra Waters, entre concretismos, misticismos e possíveis feminismos. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 5, n. 1, p. 231–248, 2021. DOI: 10.20396/modos.v5i1.8663977. Disponível em: ˂https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/view/86 63977˃. Imagem: Jandyra Waters, S/título, 1978. Acervo MAC/USP. Fonte: ˂https://acervo.mac.usp.br/acervo/index.php/Detail/objects/20435˃. Uma dupla exclusão: Judith Lauand e Jandyra Waters, entre concretismos, misticismos e possíveis feminismos A double exclusion: Judith Lauand and Jandyra Waters, between concretism, mysticisms and possible feminisms Talita Trizoli* Resumo As narrativas já institucionalizadas sobre o movimento concretista no Brasil e suas reverberações abrangem referências internacionais para os artistas integrantes do movimento, e os conflitos de hegemonia cultural entre os dois polos econômicos do país na época: Rio de Janeiro e São Paulo. A considerável produção analítica sobre o período e seus agentes tem sido uma das mais férteis dentro da historiografia da arte brasileira, abarcando críticos, manifestos, obras, artistas e locais de circulação – e no entanto, apenas recentemente alguns pesquisadores e curadores têm apontado o caráter machista de alguns membros dos grupos, e as dificuldade de consolidação profissional das artistas mulheres que participavam dos projetos e reuniões. Nesse sentido, Judith Lauand, a única artista mulher a participar oficialmente do grupo Ruptura em São Paulo, é caso emblemático dos movimentos de revisionismo histórico feminista, mas junto a ela temos também Jandyra Waters ocupando um lugar ainda frágil no sistema, sem o devido cotejamento. Ainda que essas duas artistas tenham tido uma circulação considerável no meio artístico brasileiro, sua recepção crítica e inserção histórica não é a mesma de seus pares masculino, portanto, são casos que precisam ser revisitados a fim de esgarçar a malha historiográfica. Palavras-chave Arte concreta. Concretismo. Mulheres artistas. Misticismo. Feminismo. Abstract The already institutionalized narratives about the concrete movement in Brazil and its reverberations include international references for the artists who were part of the movement, and the conflicts of cultural hegemony between the two economic poles of the country at the time: Rio de Janeiro and São Paulo. The considerable analytical production about the period and its agents has been one of the most fertile within the historiography of Brazilian art, encompassing critics, manifestos, works, artists and places of circulation – and yet, only recently have some researchers and curators pointed out the sexism of some members of the groups, and the difficulties of professional consolidation of the female artists who participated in the projects and meetings. In this sense, Judith Lauand, the only female artist to officially participate in the group Ruptura in São Paulo, is emblematic of the feminist historical revisionist movements, but next to her, we also have Jandyra Waters occupying a still fragile place in the system, without due integration. Although these two artists have had a considerable circulation in the Brazilian artistic milieu, their critical reception and historical insertion is not the same as that of their male peers, therefore, they are cases that need to be revisited in order to tear the historiographic mesh. Keywords Concrete art. Concretism. Women artists. Mysticism. Feminism. Talita Trizoli 232 Premissas de análise É possível asseverar logo de antemão que, dentre os movimentos artísticos brasileiros já consolidados em nossa narrativa oficial historiográfica, o Concretismo, e sua relação no mínimo conturbada de parceria/paternalidade com o Neoconcreto, é território de uma das maiores disputas narrativas pela hegemonia de uma arte de vanguarda no transcorrer das décadas de 1950 e 1960. A condição de assertiva, e não de possibilidade sobre essa querela, se dá justamente pela constatação de que, ainda que no seio da historiografia da cena artística brasileira e nos recentes esforços de revisão e de resgate de trajetórias e propostas estéticas seja possível verificar a existência de outros conflitos de natureza formal e política que tomaram de sobressalto o cenário das artes via estratégias midiáticas, pouco se compara à virulência1 nas argumentações de defesa entre os agentes artísticos no calor da hora, os partidos estéticos de seus analistas, e mesmo a recepção desigual desses movimentos no cenário artístico internacional mais recente. No entanto, o que nos interessa nesse percurso de análise não é tanto o “ping-pong” hegemônico entre os grupos de São Paulo e Rio de Janeiro, ou a discussão sobre qual dos dois melhor representa e captura a anacrônica ideia de um “espírito do tempo” do projeto moderno nacional. São todavia pertinentes aqui as tentativas de consolidação do Concretismo como linguagem dominante durante o pós-guerra, seus conflitos e contradições formais e programáticos que permitiram o rechaço e exclusão de agentes hoje consideradas incontornáveis para uma constituição apurada da historiografia da arte do período, e que em alguma medida ajudam a compreender a ruptura neoconcreta deflagrada por agentes como Lygia Clark (1920-1988), Lygia Pape (1927-2004), Hélio Oiticica (1937-1980), Mario Pedrosa (1900-1981) e Ferreira Gullar (1930-2016). No caso, refiro-me aqui a presença de duas artistas mulheres, que, de maneiras específicas, integraram e incorporaram as premissas do movimento Concreto, mas também delas se afastam: Judith Lauand (1922), única mulher a integrar o grupo e Jandyra Waters (1921), que adere tardiamente ao vocabulário geometrizado e insere aspectos místicos nas composições. Nesse texto, além de apresentar a produção de ênfase concreta dessas duas artistas, serão salientados certos aspectos dessas poéticas que contribuíram para sua dificuldade de adesão aos processos de consagração das narrativas oficiais da história da arte brasileira. Dos concretismos eletivos e seus percursos Existe certa concordância no meio historiográfico da arte brasileira que o evento artístico de caráter concreto com maior consolidação narrativa na cena local é a criação do Grupo Ruptura (GR) em São Paulo no ano de 1952, sobre a égide de Waldemar Cordeiro (1925-1973), seguido de seu desdobramento carioca no Grupo Frente (GF) em 1954, tendo aí Ivan Serpa (1923-1973) como aglutinador entre os artistas, e Mário Pedrosa e Ferreira Gullar como articuladores intelectuais2 – ainda que a entrada de tais questões em território nacional não tenha acontecido inicialmente com o desenvolvimento desses grupos, mas sim via publicações da época, como o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e a revista Arte & Decoração, e via exposições tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo (Varela, 2017)3. Assim, constata-se que os GR e GF são marcos históricos mais por sua capacidade de divulgação das questões concretas4, do que por ineditismo do tema em território nacional. A ideia de uma arte concreta brasileira toma então corpo no meio artístico a partir de leituras e interpretações peculiares sobre as vanguardas de caráter geometrizante que se espalharam pelo MODOS revista de história da arte – volume 5 | número 1 | janeiro – abril de 2021 | ISSN: 2526-2963 233 território europeu – e ressalta-se aqui o caráter particular dessas interpretações em todo o espectro latino-americano, principalmente na Argentina e Uruguai, pois ocorre uma seletiva de preceitos e programas estéticos a fim de valorizar um determinado projeto de modernidade, ou seja, um devir de mundo pautado pela ideia de progresso, desenvolvimento industrial e alto investimento na lógica do capital, em detrimento de perspectivas críticas às modalidades de vida ocidental, e para dizer em outros termos por fim, da vertente espiritualista e reencantatória da modernidade. Assim, creio ser pertinente retomar de modo breve alguns aspectos pontuais das formações concretas na cena europeia e latino-americana, a fim de compreender os partidos estéticos de GR, e as dificuldades de adesão de Lauand e Waters nessa grande narrativa concreta nacional. Desse modo, partindo de manifestos, artigos e ensaios de Cordeiro5, Pedrosa (1996: 258) e Gullar (1959: 04-05), é possível verificar que as agrupações artísticas elegidas como referencial teórico e plástico para a cena artística brasileira são tanto o grupo holandês De Stijl quanto as ditas vanguardas russas – sendo que Max Bill ocupa a égide de herói individual6 nesses relatos da história concreta brasileira, como um último bastião dos preceitos modernos do gênero7. O grupo De Stijl e seu projeto estético fazem parte de um fluxo racionalizante e utópico no meio artístico que cruzava os principais centros culturais europeus no entreguerras, e tinha como um de seus motes o desvinculo da prática artística e seus produtos da égide romântica de certas vertentes estéticas. Dentre seus pares revolucionários constam o Construtivismo russo e o Suprematismo – ainda que sem o atravessamento marxista que complementa esses dois últimos – e as investigações formais cubistas e abstratas de Wassily Kandinsky (1866-1944). Em síntese, os artistas do grupo De Stijl, dentre eles Theo van Doesburg (1883-1931), Piet Mondrian (1872-1944) e Georges Vantorgerloo