<<

527 ARTIGO ARTICLE ------. Estigma social, Poluição am Estigma social, Poluição

Este estudo de abordagem qualitati estudoEste de abordagem

DOI: 10.1590/1413-81232017222.10582016 va buscava compreender significados de Segurança e NutricionalAlimentar (SAN) e contaminação ambiental por marisqueiras de San do município industriaise sólidos Resíduos Bahia. Amaro, to (principalmente e biológicos Chumbo), são lança comprometendodos no rio e no manguezal, Subaé a vida alimentares, fontes e a saúde da popula marisqueiras, ao tentaremAs comercializar ção. são estigmatizadas do mangue, pelaos produtos Recôncavo do outrose municípios deste população silenciam a origem sobre por isso, baiano dos e, mariscos o Compreende-se que vendem na feira. silêncio e a negação da contaminação como for da desi a naturalização mas de garantir a SAN, gualdade social da sobrevivência. e a favor Estas são observações que se inscrevem no cotidiano de viveque população desta pobreza em meio conà taminação por metais pesados e esgotos Palavras-chave alimentar Segurança e nutricionalbiental, Resumo , - - - - - Recôncavo Baiano Recôncavo . do not reveal do not the origin of shellfish Social pollu stigma, Environmental

This qualitative approach study seeks study This qualitative to approach 1 tion, and nutrition Food tion, security of this poor living amid heavy metals’ of this poor population living metals’ amid heavy and sewage contamination words Key by shellfishby gatherersmunicipality in the of Santo and industrial Solid Bahia. (mainly waste Amaro, lead) and biological released in the Sub are waste food aé river compromising and in the mangrove, Shell lifeand of population. the resources, fish gatherers selling their mangrove-derivedprod stigmatized uctsare people ofby municipality, this wellas otheras cities the in as a result, and, Silencesold in the market. and contamination de the ensure understood the FNS, to nial are as ways naturalization of social of inequality and in favor survival.These observations the daily portray Abstract Abstract understandNutritionand meaningsthe of (FNS) and environmental contamination tabu e estigmatabu : and nutrition securityFood and environmental taboo and stigma Segurança alimentar e nutricional e contaminação ambiental: Segurança ambiental: e nutricional alimentar e contaminação 1 Programa de Pós- de Programa Mércia Ferreira Barreto Barreto Ferreira Mércia Freitas de Carmo Soares do Maria gmail.com Federal da Bahia. Av. Araújo Av. Federal da Bahia. 40110-040 Canela. 32, Pinho Brasil. BA Salvador merciabarreto.pms@ Graduação Alimentos, Alimentos, Graduação e Saúde, Nutrição Departamento Ciência de de Escola da Nutrição, Universidade Nutrição, 1 528

Introdução reduzindo a renda das famílias de pescadores e marisqueiras, e gerando mais insegurança ali-

Barreto MF, Freitas MCS Freitas MF, Barreto O presente artigo objetiva compreender signi- mentar e nutricional nessa população. Esses mo- ficados da Segurança Alimentar e Nutricional radores considerados “comedores de Sururu”8 (SAN) para produtoras de mariscos sujeitas ao ficaram privados pelas autoridades sanitárias de passivo da contaminação ambiental por metais capturar, consumir e comercializar produtos do pesados (Chumbo-Pb e Cádmio-Cd) e por es- mangue acarretando danos sociais, econômicos gotos sanitários no município de Santo Amaro, e culturais. Bahia, Brasil. Pescadores e marisqueiras são ainda hoje, Como ponto fulcral para o entendimento das estigmatizados por viverem e trabalharem na re- questões aqui abordadas foi considerado o signi- gião contaminada. O termo estigma descrito por ficado político de SAN descrito na Lei Orgânica Goffman9, e mais tarde, com maior rigor reflexi- brasileira1. Conceito este de caráter transdiscipli- vo, por outros autores10, sinaliza a condição ma- nar por envolver questões biológicas, econômi- léfica de um grupo social ao ser discriminado e cas, ambientais, sociais e culturais do indivíduo e consequentemente desvalorizado semelhante ao do coletivo. É no mundo cotidiano que as ques- observado junto às marisqueiras de Santo Ama- tões relativas aos aspectos da SAN encontram-se ro, nomeadas de ‘povo do mangue’. simbolicamente representados por meio da cul- Como uma estratégia de sobrevivência para a tura: no trabalho, na aquisição dos alimentos, no venda dos mariscos, surge o tabu da palavra con- fazer culinário, no cuidado com as crianças etc. taminação. Este medo de falar sobre o assunto, E foi sobre os significados do alimento no coti- leva ao completo silenciamento sobre a contami- diano das mulheres e homens que analisamos a nação química do rio Subaé, da maré e do man- situação de SAN desse lugar. guezal. Esta uma das maiores contaminações por Em Santo Amaro, populações são vítimas do chumbo já registrada no país conforme diversos passivo socioambiental deixado pela Companhia estudos3-5,8. Brasileira de Chumbo – COBRAC, desde 1993, Nestas conexões estabelecidas, o vocábulo pelos efluentes líquidos da fábrica de papel e ce- tabu diz respeito ao temor em falar sobre o que lulose no rio Pitinga, afluente do rio Subaé e con- horroriza11. E a partir da observação do cotidia- taminação biológica dos esgotos domésticos nos no dessa população e de seus discursos e silêncios manguezais. pudemos compreender alguns dos significados Entre os subprodutos do processo metalúrgi- da SAN em relação à contaminação por metais co da produção dos lingotes de chumbo foram pesados (principalmente Chumbo) e esgotos sa- gerados arsênio (As), antimônio (Sb), cobre (Cu), nitários no manguezal e no rio. zinco (Zn), cádmio (Cd) e o próprio chumbo (Pb). Estes compuseram as escórias abandonados pela fábrica e, posteriormente, utilizados para a Metodologia pavimentação de ruas e casas do Município. O efeito carcinogênico foi referido por Baxtel et al.2 Trata-se de uma pesquisa qualitativa com utiliza- e no protocolo da Secretaria Estadual de Saúde3. ção de instrumentos como entrevista, observação Pesquisas4-7 e registros oficiais8 sobre essa tra- participante e registro das informações em diário gédia ambiental que contaminou a localidade re- de campo e análise do discurso. As marisqueiras velaram concentrações de chumbo, cádmio, cobre afrodesecententes são colaboradoras deste estu- e zinco em níveis superiores aos limites estabele- do, e discursam sobre a contaminação química e cidos pela Organização Mundial de Saúde – OMS. biológica e a SAN doméstica12. Ademais da contaminação química citada, os As famílias de marisqueiras tem o principal moradores às margens do rio Subaé estão expos- rendimento composto pela mariscagem de espé- tos de forma contínua à contaminação biológica cies como Sururu (Mytella sp.) e Mapé (Teria sp.) desde a década de 19708. Frequentemente, mau e complementação de renda por meio de progra- cheiro e a presença de ratos atraídos por resíduos mas governamentais assistenciais como Bolsa Fa- sólidos domésticos causam nojo, temor e adoe- mília e Seguro Desemprego da pesca em período cimentos. de defeso. O medo de adoecer, por contaminação por O trabalho de campo ocorreu entre janeiro chumbo, ocorreu desde o início das notícias na a outubro de 2014 (em dias não consecutivos), imprensa sobre o assunto. Com isso, ocorreu a cujas observações do cotidiano foram registradas proibição do consumo e da venda de mariscos, em diário de campo. A escolha dos sujeitos foi re- 529 Ciência & Saúde Coletiva, 22(2):527-534, 2017

alizada considerando a técnica conhecida como linguístico sobre a contaminação do marisco na snowball13, frequentemente empregada em estu- região. As rotulações, preconceitos, associações dos semelhantes14. Considerou-se idade superior classificatórias, desde o período da confirmação a 19 anos, ocupação de marisqueira e residência da contaminação em Santo Amaro, em 19968, na proximidade do mangue. Desse modo, foram tornaram negativa a imagem do produto, perma- entrevistadas 13 mulheres em suas atividades do- necendo presente na memória e no cotidiano de mésticos, no trabalho da mariscagem e em horá- marisqueiras e comerciantes do lugar. rios de descanso e lazer. Até os dias atuais, a proibição do consumo As entrevistas seguiram um roteiro de ques- e da comercialização resultou na formulação tões sobre o objeto de estudo15,16: o estigma e o do medo em falar sobre o problema da conta- tabu linguístico da contaminação e a SAN, Cada minação química. Este tabu no imaginário dos entrevista durou em média 60 minutos, com re- moradores é como uma força atrativa para maus torno aos sujeitos para acréscimo de informa- presságios, situações nefastas que prejudicam a ções ou verificação de novas questões relativas mariscagem e produz a privação das atividades ao objeto do estudo. Em seguida seus discursos cotidianas dessa população. Mas, apesar desse foram cuidadosamente transcritos, compilados medo, continuam produzindo, consumindo e sendo destacados os significantes que imprimi- comercializando os produtos. ram a noção de tabu e estigma de viver em meio Observou-se que na feira da sede do Municí- à contaminação ambiental e a relação com a SAN pio não se fala a origem real do marisco. Esse ve- doméstica. Para a análise do discurso e das ob- lamento é o tabu. Oculta-se sobre o lugar conta- servações de campo optou-se pelas técnicas uti- minado por resíduos industriais materiais, ainda lizadas por Michael Pêcheux17 e Eni Orlandi18 hoje, para que consigam vender seus produtos. aprofundando com os estudos de Paul Ricoeur19 Com o inominável, se distanciam do mal o que e Cecília Minayo15. a sua nomeação pode causar. Assim, sem falar no A análise do discurso da escola francesa arti- assunto nada mais se contamina. cula aspectos linguísticos com o contexto social e Sobre a contaminação biológica, há os que histórico. Trabalha os sentidos produzidos ao in- não a consideram prejudicial à saúde porque “es- vés do conteúdo do texto e guarda relação histó- tão acostumados” e entendem que a maré limpa rica e ideológica com esse. Para Pêcheux et al., o o manguezal. Outros, contrariamente, interpre- discurso nasce da interação entre o interdiscurso, tam que estão contaminados e podem adoecer. saberes constituídos pela coletividade, e do intra- Entretanto, esse tipo de contaminação é para eles discurso, o dito pelo sujeito (fala), sendo o inter- a marca social da pobreza, em que a falta de in- prete ou analista o responsável pela interpretação fraestrutura é justificada pela condição social. dos significados dados20. A semiótica corporal denuncia de forma sig- Cabe salientar que esta investigação seguiu as nificativa o incômodo causado pela abordagem normas descritas na legislação em vigor21 e teve à contaminação do mangue e do marisco. O si- aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da lêncio revela as expressões faciais como o olhar Escola de Nutrição da Universidade Federal da desviante, pelo temor da contaminação química Bahia. E criação de pseudônimos para preserva- e biológica. É o temor da fome, se não conseguir ção da identidade dos participantes. vender seus produtos do mangue. Assim, obser- O retorno das análises dos dados se deu na va-se em vários momentos da pesquisa a face conversa com marisqueiras e moradores após a cabisbaixa quando indagado sobre o assunto e a investigação. E as publicações geradas, sobre for- negação explícita sobre a contaminação química ma de artigos, serão encaminhados para as esco- e biológica. las do município. Para as marisqueiras falar sobre a contamina- Os temas selecionados, ou unidades de senti- ção do marisco é proibido. Melhor evitar. A con- dos para análise foram: a) O tabu linguístico da taminação biológica está evidente no manguezal, contaminação do marisco; b) O estigma de mo- mas, ainda assim, em geral, é considerada como rar no lugar contaminado. situação melhor quando comparada há cinco anos atrás. Já os esgotos sanitários de pessoas do Tabu linguístico da contaminação lugar ou “conhecidos”, não são algo grave como ambiental a química, amplamente veiculada pela mídia. Dessa maneira, ao pronunciar sobre o mangue e A frase, Só não venha dizer que o meu maris- espécies nativas, notou-se um silêncio sobre esse co está contaminado, mostra o problema e o tabu tema. 530

As linguagens corporais e o silenciamento re- problema “suja” a sobrevivência. Nesse sentido, velam a força das palavras que comprometem a compreende-se a contaminação como um mal

Barreto MF, Freitas MCS Freitas MF, Barreto segurança alimentar dessas pessoas, segundo des- que pode ser propagado. crito pelo prefeito reeleito do município: Nossa Não obstante, a ideia de contágio é contígua cidade é sofrida e pobre. Vivemos com essa situação ao aspecto temporal. De acordo com a interpre- há décadas. Acho que hoje depois de tantos estudos tação das falas das marisqueiras, existe associação chegamos a uma conclusão, que temos uma heran- entre o fator causal e o efeito ou a doença. Sem ça maldita22. fábrica funcionando, sem sintomas de doenças, De acordo com Andrade e Moraes4 as recor- não é possível entender o problema ambiental. O rentes pesquisas ao longo dos últimos quarenta tempo de adoecer por contaminação por chum- anos e a baixa qualidade da informação para os bo não é o tempo da ciência. No campo êmico moradores sobre os riscos à saúde pela intensa causa e efeitos estão conectados em um tempo contaminação química na região são retratos da imediato, como as doenças mais comuns para distorcida relação entre o uso do conhecimen- eles (gripe, leptospirose, diarreias, dengue etc.). to científico, suas consequências sociais e éticas. O fato de não haver evidências de adoecimentos Situação que provoca desconfiança entre os mo- entre contaminantes químicos gera dissociação radores, por sentirem-se enganados por pesqui- entre causalidade e efeitos. sadores que nem sempre retornam os resultados Sobre a contaminação biológica, segundo as das investigações sobre esta contaminação. marisqueiras, o adoecimento pode ser gerado Também há o receio em mostrar a contami- pelo contato com a urina do rato, pois, adoece nação do marisco, pois essa informação poderia e mata, conforme ocorrido, segundo Gina: Aqui interferir na comercialização dos produtos. O todo mundo construiu os muros para não deixar receio de qualquer pesquisa sobre a contamina- que o esgoto e os ratos entrem na casa, gente aqui já ção na região pode ser notícia na mídia televisi- morreu da urina de rato. va e comprometer os anseios de uma boa venda. As marisqueiras comem e preparam os frutos Quando estava tendo pesquisa de chumbo aqui em da maré para a família, certas de que não há mais Santo Amaro, que falavam do marisco contamina- contaminação. Para garantir o alimento aos fi- do acabavam com a gente. O povo não queria mais lhos é preciso negar a existência de contaminação comprar marisco (Ana). para si e para o outro e, com isso, acreditar que Para Almeida23, o silêncio sobre a contami- a comida está limpa, livre de perigo. Também, o nação é uma das maneiras dos moradores dessa silêncio sobre a contaminação simboliza o esque- região conviverem com o problema, sem que lhes cimento de uma série de transtornos advindos causem mal estar, pois está presa a contínua ex- desse problema, como já citado anteriormente. posição ao chumbo e outros metais pesados. E, Outra característica do tabu linguístico sobre sem alternativas concretas, a população se abs- a contaminação química do marisco é a ambi- tém ao assunto. valência. Ora sentem-se satisfeitas pelo ato de O silenciamento pode ser oportuno a depen- capturar, beneficiar e vender o marisco fruto do der dos interesses de quem ou do que se deseja seu trabalho, ora as denominações depreciativas encobrir. Como em Adrianópolis-PR, estigma- trazem dúvidas e questionamentos sobre a qua- tizados como “cidade de chumbo”, os morado- lidade do mesmo. Isto causa conflito entre ma- res sofreram preconceito, vergonha e prejuízos risqueiras e comerciantes. Quando os consumi- econômicos com notícias da contaminação14. A dores da feira questionam a origem do produto, quem interessa notícias da contaminação quí- elas negam o local de captura. Nesse sentido, esta mica? Por motivações de ordem econômica e/ou noção remete à denominação conceitual de estig- política esta é velada. Esses danos sociais e econô- ma, como se mostra adiante. micos também preocupam o Santamarense, em especial as marisqueiras. O estigma de viver em lugar “contaminado” A ameaça afeta a vida do lugar, o modo de ser marisqueiras. Com as notícias estas se sentem ‘Comedores de marisco’, são assim atribuí- como se também estivessem contaminadas e, por dos, em relatório oficial8, os pescadores e suas fa- isso, sofrem discriminação, como se tivessem mílias residentes em áreas próximas ao mangue uma doença contagiosa por viverem em um lo- e afetadas pela contaminação química. Utilizada cal condenado por metais pesados e por esgotos inicialmente para quantificar e identificar à ex- sanitários e resíduos sólidos e esgoto. A noção posição ao risco, esta rotulação é a origem para de contágio se associa ao estigma e a atração do análise da situação descrita como a caracteriza- 531 Ciência & Saúde Coletiva, 22(2):527-534, 2017

ção do estigma a esse grupo de pessoas afetadas rotulação aos produtos que afetam sua identida- pela contaminação química por metais pesados de como marisqueira e pescador do lugar. Rejei- nesta área a mais de vinte anos. tados, alguns vendem sua produção mais barato Relevante sob o ponto de vista social para este ou viajam para outros municípios para escoa-la. grupo, essa rotulação tem o papel central na di- Em geral, esta não é uma condição que afeta ape- ferenciação dos principais afetados. Observa-se nas os moradores desse lugar, mas a população que há, em geral, entre a população, os que creem Santamarense. nos danos à saúde3 (ainda que silenciem) e os que Em vários momentos, observou-se a dificul- não creem. Mesmo que, para alguns, haja confli- dade dos moradores em revelar seus sentimentos tos e dúvidas sobre esse assunto. sobre a contaminação. Um membro da Associa- Os que creem que a contaminação química ção de Marisqueiras e Pescadores local diz que e biológica pode afetar a saúde da população, se não é conveniente colocar os produtos da pesca referem ao assunto como um mal, e que podem na alimentação escolar porque reconhece a con- estar contaminados, pois tiveram contato direto taminação e sabe do risco do marisco para con- com partículas de Chumbo no ar, solo e outras taminar as crianças. Mas elas consomem em casa. fontes, como relatado pela marisqueira Eva: [...] Isso pode indicar que na escola estariam livres do Meu marido trazia o macacão e eu lavava. Eu pos- alimento contaminado, mas em casa não há outra so até ter esse negócio de chumbo (no corpo). solução. Mas, outros moradores não acreditam que Também, em outro estudo no município23 a estejam doentes pela contaminação química, via fala de uma moradora ilustra a deficiente infor- contato. Para estes, o mais comum são doenças e mação que tem sobre o tipo de contaminante acidentes do trabalho na maré e manguezal. As químico e seus mecanismos de ação. Aquilo que marisqueiras entrevistadas se queixam de dores contaminou a gente não sabia. Entrou no sangue relacionadas a distúrbios músculos-esqueléticos da gente aquele minério (Antônia)22. Contamina- e citam acidentes de trabalho como afogamento, ção é sinônimo de doença e antônimo de SAN, cortes e picadas de animais peçonhentos confor- saúde. Há os que negam e outros que confirmam me estudos em áreas semelhantes24-26. Para estes, a contaminação do lugar em que os sintomas são a contaminação química é invisível ou está limi- mesclados com a fadiga do cotidiano e outras for- tada aos rios Pitinga e Subaé. Esta contamina- mas de contaminação, como a biológica que não ção é daqui para lá (aponta o rio em direção à se valoriza, pois está amplamente naturalizada cidade), daqui para cá para frente é perna de mar, nas populações que não têm acesso aos serviços não tem contaminação de esgoto, nem de fábrica públicos de esgotamento sanitário. (Flor). Nesse sentido, por não ter cor, nem cheiro, Outra característica do estigma observada re- a contaminação pelos resíduos da COBRAC não fere-se à adoção de separação entre quem são os é concebida por eles, ainda que entendam a im- estigmatizados e os estigmatizadores. Ou confor- portância das pesquisas realizadas. Consideram me análise entre “nós” e “eles”10. O reconhecimen- que essa contaminação é diferente dos resíduos to da contaminação encontra-se contíguo à iden- da indústria de papel, que mudou o meio am- tificação dos contaminados e não contaminados. biente com o desaparecimento ou redução de vá- Para as marisqueiras são contaminados os ex-tra- rias espécies de mariscos. Antigamente era mais balhadores da COBRAC e os indivíduos identi- fácil encontrar marisco, agora tem esta poluição da ficados pelas pesquisas científicas5-7 e relatórios fábrica (Celulose) (Eva). técnicos8. Estes são estigmatizados pela identifi- Marcados pelo estereótipo, os moradores de cação e risco de adoecimento. Meu pai trabalhou área estudada se sentem estigmatizados pelos na fábrica... Foram chamadas algumas famílias, só impactos causados pela contaminação química de gente que trabalhou na fábrica (Diana). direta e indiretamente em suas vidas. Essa con- A experiência moral adquirida pela socializa- dição de estigmatização, depreciativa pelos efei- ção do estigma dá início à identidade estigmati- tos, sugerem deterioração da identidade desses zada. Goffman9 define essa fase como o momento moradores, por outros, em geral consumidores de consciência, em relação ao ponto de vista do da feira da cidade de Santo Amaro. Sentem a so- outro (que não tem o problema). Nesse aspecto, brevivência ameaçada permanentemente. Não por causa da contaminação química e biológica, conhecem os resultados das pesquisas e apenas as marisqueiras e moradores do mangue se sen- ouviram dizer que a imprensa noticiou o impac- tem apartados no município. Conforme revisão to da contaminação química na região. Como sobre a noção de estigma10 reflete-se a separação que perdidos, muitos moradores não entendem a entre ‘nós e eles’. Por esse motivo, para vender o 532

produto depara-se com a necessidade de ocultar A ausência de ações de vigilância à saúde dos a procedência deste e dizer que é originário de expostos e de estratégias de apropriação do tema

Barreto MF, Freitas MCS Freitas MF, Barreto outro lugar. O povo [comerciantes] daqui come- entre a população em geral contribuem para as çou a inventar que o marisco era de Acupe (Ana). dúvidas sobre os efeitos da contaminação quími- Com isso, percebe-se uma conivência racional ca. [...] Ele tem chumbo, mas o chumbo dele não entre os vendedores de mariscos, como um acor- está tão exagerado porque ele sua muito, ele traba- do ao omitir a origem do produto. lha muito (Eva). Santo Amaro é marcada como lugar de con- Segundo a crença, há uma eliminação da con- taminação química e por isso pode haver dificul- taminação química pela transpiração da pele, as- dades na comercialização dos produtos. Ao man- sim como de outras impurezas do corpo através ter o segredo a origem do produto, eles tentam do suor. Ademais, cabe destacar o conhecimento garantir a venda e, certamente, a sua sobrevivên- frágil e superficial sobre a real situação em ques- cia e de sua família. tão, pelos moradores: [...] Elas tomaram remédios É relevante o receio às perdas sociais pelos diferentes, não sei se era para combater o chumbo moradores. Via de regra, marisqueiras e suas no sangue ou pra prevenir (Gina). famílias têm diferentes oportunidades de acesso à Ainda hoje, moradores têm dúvidas sobre os educação, saúde, renda, quando comparado com efeitos da contaminação por chumbo (sempre a população urbana. Por isso, experiências rela- se referem a este metal) e são céticas quanto às cionadas a características indesejáveis aos pro- descobertas dos cientistas e dos relatórios técni- dutos como a contaminação química e biológica cos que denunciam a gravidade do acidente no podem levar à perda do status social, econômico Município. [...] Fizeram tantas pesquisas. E não e à discriminação do marisco e de forma correlata se viu resultado de nada (Ana). Também há des- às produtoras. Em conexão com a discriminação crenças da população, pelas ações descontínuas que sentem pela contaminação ambiental (tan- dos protocolos de atenção integral à saúde, pela to química quanto a biológica) que afeta a vida complexidade das questões que extrapolam o se- do lugar, há também outras formas de discrimi- tor saúde, e pela morosidade no cumprimento da nação A gente sofre discriminação do povo de lá de recuperação das áreas contaminadas4,14. cima, se falar que é daqui eles olham estranho, fala Apesar dos estudos4,14,28 identificarem a ne- da lonjura, do marisco e da violência (Gina). Ao cessidade da adoção de procedimentos de gover- afirmar a discriminação, a marisqueira expressa nança do risco e vigilância à saúde da população um sentimento de desvalorização e desvantagem em risco, até o momento foram contemplados em relação a “eles” (o povo de lá de cima), o que apenas projetos sociais de geração de renda, reforçam as relações de poder entre grupos, car- doação de cestas básicas, poucas indenizações e acterístico do processo de estigma10. programas sociais de moradia aos membros da Nesse sentido, para estes moradores, uma das Associação das Vítimas da Contaminação por maneiras de sobreviver no lugar é a sustentação Chumbo, Cádmio, Mercúrio e outros elementos da crença que a contaminação está no passado. A químicos (AVICCA)14. Mas, vale enfatizar que certeza é que o tempo e as forças naturais como: não há, até o momento, programas de recupera- vento, chuva, maré que, em vaivém, afastam a ção ambiental em áreas naturais de produção de contaminação. Sobre isso, um morador diz: A mariscos ou estudo de consumo alimentar desta água da maré, se renova todos os dias, duas vezes população de marisqueiras e pescadores, identi- no dia, e vai lavando e renovando (Virgílio). Re- ficada em situação de risco. força-se a crença que a maré tudo purifica, até mesmo a contaminação química25. Sem saída, negar é inerente ao próprio modo Conclusão de vida. E a negação da origem do produto traz vantagens aos grupos estigmatizados e estiguima- A partir de uma rede semântica de negações, in- tizadores, posto que os estereótipos podem rela- terdições e silêncios em suas falas, foi possível cionar-se a desigualdade de oportunidades den- compreender o estigma e o tabu linguístico das tro do contexto vivido por estas mulheres negras. marisqueiras em relação à contaminação ambien- Conforme estudos10,27, a precarização das formas tal (química e biológica). Ao negarem afirmaram o de vida permitem a manutenção das hierarquias medo de perder a venda dos mariscos pelo estigma sociais e do processo de introjeção da desigualda- conjugado, pois este deteriora suas identidades. de. Então, não seria o silêncio, também, o resulta- Inscritas na intersubjetividade das narrativas, do da naturalização da sobrevivência? os temas da contaminação química e biológica 533 Ciência & Saúde Coletiva, 22(2):527-534, 2017

que inundam o lugar aparecem como um tabu, e contagiosos. Neste sentido, contaminação am- as condições social e ambiental são representadas biental confunde-se com a desvalorização social, como formas de estigma. Questões estas perma- sendo ambos naturalizados para garantir a so- nentemente ameaçadoras da segurança alimen- brevivência no lugar. Essas representações afetam tar e nutricional. a produção de alimentos e compromete a SAN. As ações de ocultar, velar e negar a conta- As questões de SAN em Santo Amaro não se minação ambiental são manifestações morais e resumem à renda familiar apenas, mas à conta- éticas desses moradores investigados, para man- minação ambiental, à discriminação social que terem-se afastados da insegurança alimentar em fazem conexões com a condição de quilombola seus imaginários, pois não querem falar ou pen- enquanto identidade social. Situações que estão sar no pior. Desse modo, a necessidade de senti- na mesma teia semântica, sem separação: pobres, rem-se resguardados da fome é imperiosa, mes- negros e contaminados. Esta é a identidade que mo sendo o corpo ameaçado por enfermidades marca a incerteza alimentar permanente, cujas pelo excesso de metais pesados (principalmente dificuldades estão associadas à complexidade de o chumbo, conforme estudos) e verminoses. Vale viver as dimensões socioeconômicas e culturais recordar que as pesquisas anteriores que denun- descritas. ciaram a alta contaminação química não resul- Ao tentar relativizar as análises, este estudo taram em quaisquer ações governamentais para não teve a pretensão de dizer o que é certo ou restaurar o meio ambiente. errado sobre as marcas linguísticas identificadas, Alguns moradores preferem crer que não há pois, no contraponto entre as análises científicas mais contaminação química na região e que o e os tabus nativos, podem-se produzir equívocos tempo e a maré já limparam todo o lugar. Mas sobre os sentidos enunciados. Contudo, as in- um dos significantes que aparece colado ao coti- terpretações propostas, são significados consti- diano é o sentimento de discriminação e estigma. tuídos das crenças e vivências junto aos sujeitos Sentem-se isolados, apartados, como se fossem colaboradores deste trabalho.

Colaboradores

MF Barreto e MCS Freitas contribuíram igual- mente para a realização deste estudo.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia pela concessão de bolsa de apoio e ao Programa de Pós-graduação em Alimentos, Nu- trição e Saúde da Universidade Federal da Bahia. À Faculdade Devry Brasil. 534

Referências

Barreto MF, Freitas MCS Freitas MF, Barreto 1. Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o 16. Laplantine F. A descrição etnográfica. Paris: Armand Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricio- Colin; 2005. nal – SISAN com vistas em assegurar o direito humano 17. Pêcheux M. Semântica e discurso: uma crítica à afirma- à alimentação adequada e dá outras providências. Diá- ção do óbvio. Campinas: Unicamp; 1988. rio Oficial da União 2009; 18 set. 18. Orlandi EP. Análise do Discurso: princípios e procedi- 2. Baxter PJ, Cockcroft A, Durrington P, Harrington JM. mentos. 8ª ed. Campinas: Pontes; 2009. Hunter’s of occupations.10ªed. : Vital- 19. Ricoeur P. Teoria da interpretação. O discurso e o excesso source; 2010. de significação. Lisboa: Edições 70; 2005. 3. Bahia. Secretaria da Saúde. Protocolo de Vigilância e 20. Caregnato RCA, Mutti R. Pesquisa qualitativa: análise Atenção à Saúde da população exposta ao chumbo, cá- de discurso versus análise de conteúdo. Texto Contexto dmio, cobre e zinco em Santo Amaro, Bahia. Salvador: Enfermagem 2006; 15(4):679-684. CESAT, 2010. 21. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional 4. Andrade MF, Moraes LRS. Contaminação por chumbo de Saúde. Resolução nº 466, de 12 dezembro de 2012. em Santo Amaro desafia décadas de pesquisas e mo- Diário Oficial da União2012; 12 dez. rosidade do poder público. Ambiente & Sociedade2013; 22. Machado R. Depois de uma grande quantidade de es- 16(2):63-80. tudos o que falta é a solução. In: Chaves FR, Bertolino 5. Carvalho FM, Silvany Neto AM, Tavares MT, LC, Egler S, organizadores. Projeto Santo Amaro-Bahia. ACA, Chaves CD, Nascimento LD, Reis MA. Chum- Aglutinando ideias, construindo soluções. : bo no sangue de Crianças e passivo ambiental de uma CETEM; 2012. p. 15-18. fundição de chumbo. Rev Panam Salud Publica 2003; 23. Almeida MD. Significado da contaminação para feiran- 13(1):19-23. tes de Santo Amaro – BA [dissertação]. Salvador: Uni- 6. Magna GAM. Análise da exposição por chumbo e cádmio versidade Federal da Bahia; 2010. presentes em alimentos vegetais e gramíneas no municí- 24. Pena PGL, Freitas MCS, Cardim A. Trabalho artesa- pio de Santo Amaro-BA caso do passivo ambiental da nal, cadências infernais e lesões por esforços repetiti- COBRAC [dissertação]. Salvador: Universidade Federal vos: estudo de caso e uma comunidade de marisquei- da Bahia; 2011. ras na Ilha de Maré, Bahia. Cien Saude Colet 2011; 7. Santos LFP. Avaliação dos Teores de Cádmio e Chum- 16(8):3383-3391. bo em Pescado Proveniente de São Francisco do Conde, 25. Freitas MCS, Minayo MC, Pena PGL, Santos NMM. Bahia [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Un ambiente enfermo: significados de la contaminaci- Bahia; 2011. ón industrial em Isla de Maré, Bahia, Brasil. Desacatos 8. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Relatório de apresen- 2012; (39):73-88. tação dos resultados da avaliação de risco à saúde huma- 26. Pena PGL, Martins V, organizadores. Sofrimento Negli- na por metais pesados em Santo Amaro da Purificação genciado: doenças do trabalho em marisqueiras e pesca- para a Secretaria Estadual de Saúde e Secretaria Muni- dores artesanais. Salvador: EDUFBA; 2014. cipal de Saúde. Salvador: Secretaria de Saúde do Estado 27. Monteiro SS, Villela WV, Soares OS. É inerente ao ser da Bahia; 2003. humano! A naturalização das hierarquias sociais frente 9. Goffman E. Estigma: nota sobre a manipulação da iden- às expressões de preconceito e discriminação na pers- tidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar editores; 1982. pectiva juvenil. Physis 2014; 24(2):421-440. 10. Link BG, Pherlan JS. Conceptualizing stigma. Annual 28. Bueno PC, Rodrigues JC, Lemos AF, Malaspina FG, Review of Sociology 2001; 27:363- 385. Matsui CT, Rohlfs DB. Exposição humana a mercúrio: 11. Guérios RFM. Tabus lingüísticos. Rio de Janeiro: Si- subsídios para o fortalecimento das ações de vigilância mões; 1956. em saúde. Cad Saúde Coletiva 2011; 19(4):443-447. 12. Maluf RSJ. Segurança alimentar e Nutricional. Petrópo- lis: Vozes; 2007. 13. Atkinson RFJ. Assessing hidden and hard-to-reach po- pulations: snowboll research strategies. Guidord: Social Research Update; 2001. 14. Di Giulio GM, Figueredo BR, Ferreira LC, Dos Anjos JASA. Experiência brasileira e o debate sobre comuni- cação e governança do Risco em áreas contaminadas por Chumbo. Cien Saude Colet 2012; 17(2):337-349. Artigo apresentado em 21/11/2015 15. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qua- Aprovado em 07/06/2016 litativa em saúde. 13ª ed. São Paulo, SP: Hucitec; 2013. Versão final apresentada em 09/06/2016