Food and Nutrition Security and Environmental Pollution: Taboo and Stigma
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DOI: 10.1590/1413-81232017222.10582016 527 Segurança alimentar e nutricional e contaminação ambiental: ARTICLE ARTIGO tabu e estigma Food and nutrition security and environmental pollution: taboo and stigma Mércia Ferreira Barreto 1 Maria do Carmo Soares de Freitas 1 Abstract This qualitative approach study seeks to Resumo Este estudo de abordagem qualitati- understand the meanings of Food and Nutrition va busca compreender significados de Segurança Security (FNS) and environmental contamination Alimentar e Nutricional (SAN) e contaminação by shellfish gatherers in the municipality of Santo ambiental por marisqueiras do município de San- Amaro, Bahia. Solid and industrial waste (mainly to Amaro, Bahia. Resíduos sólidos e industriais lead) and biological waste are released in the Sub- (principalmente Chumbo), e biológicos são lança- aé river and in the mangrove, compromising food dos no rio Subaé e no manguezal, comprometendo resources, life and health of the population. Shell- fontes alimentares, a vida e a saúde da popula- fish gatherers selling their mangrove-derived prod- ção. As marisqueiras, ao tentarem comercializar ucts are stigmatized by people of this municipality, os produtos do mangue, são estigmatizadas pela as well as other cities in the Recôncavo Baiano, população deste e outros municípios do Recôncavo and, as a result, do not reveal the origin of shellfish baiano e, por isso, silenciam sobre a origem dos sold in the market. Silence and contamination de- mariscos que vendem na feira. Compreende-se o nial are understood as ways to ensure the FNS, the silêncio e a negação da contaminação como for- naturalization of social inequality and in favor of mas de garantir a SAN, a naturalização da desi- survival. These observations portray the daily life gualdade social e a favor da sobrevivência. Estas of this poor population living amid heavy metals’ são observações que se inscrevem no cotidiano de and sewage contamination. pobreza desta população que vive em meio à con- Key words Social stigma, Environmental pollu- taminação por metais pesados e esgotos. tion, Food and nutrition security Palavras-chave Estigma social, Poluição am- biental, Segurança alimentar e nutricional 1 Programa de Pós- Graduação Alimentos, Nutrição e Saúde, Departamento de Ciência da Nutrição, Escola de Nutrição, Universidade Federal da Bahia. Av. Araújo Pinho 32, Canela. 40110-040 Salvador BA Brasil. merciabarreto.pms@ gmail.com 528 Introdução reduzindo a renda das famílias de pescadores e marisqueiras, e gerando mais insegurança ali- Barreto MF, Freitas MCS Freitas MF, Barreto O presente artigo objetiva compreender signi- mentar e nutricional nessa população. Esses mo- ficados da Segurança Alimentar e Nutricional radores considerados “comedores de Sururu”8 (SAN) para produtoras de mariscos sujeitas ao ficaram privados pelas autoridades sanitárias de passivo da contaminação ambiental por metais capturar, consumir e comercializar produtos do pesados (Chumbo-Pb e Cádmio-Cd) e por es- mangue acarretando danos sociais, econômicos gotos sanitários no município de Santo Amaro, e culturais. Bahia, Brasil. Pescadores e marisqueiras são ainda hoje, Como ponto fulcral para o entendimento das estigmatizados por viverem e trabalharem na re- questões aqui abordadas foi considerado o signi- gião contaminada. O termo estigma descrito por ficado político de SAN descrito na Lei Orgânica Goffman9, e mais tarde, com maior rigor reflexi- brasileira1. Conceito este de caráter transdiscipli- vo, por outros autores10, sinaliza a condição ma- nar por envolver questões biológicas, econômi- léfica de um grupo social ao ser discriminado e cas, ambientais, sociais e culturais do indivíduo e consequentemente desvalorizado semelhante ao do coletivo. É no mundo cotidiano que as ques- observado junto às marisqueiras de Santo Ama- tões relativas aos aspectos da SAN encontram-se ro, nomeadas de ‘povo do mangue’. simbolicamente representados por meio da cul- Como uma estratégia de sobrevivência para a tura: no trabalho, na aquisição dos alimentos, no venda dos mariscos, surge o tabu da palavra con- fazer culinário, no cuidado com as crianças etc. taminação. Este medo de falar sobre o assunto, E foi sobre os significados do alimento no coti- leva ao completo silenciamento sobre a contami- diano das mulheres e homens que analisamos a nação química do rio Subaé, da maré e do man- situação de SAN desse lugar. guezal. Esta uma das maiores contaminações por Em Santo Amaro, populações são vítimas do chumbo já registrada no país conforme diversos passivo socioambiental deixado pela Companhia estudos3-5,8. Brasileira de Chumbo – COBRAC, desde 1993, Nestas conexões estabelecidas, o vocábulo pelos efluentes líquidos da fábrica de papel e ce- tabu diz respeito ao temor em falar sobre o que lulose no rio Pitinga, afluente do rio Subaé e con- horroriza11. E a partir da observação do cotidia- taminação biológica dos esgotos domésticos nos no dessa população e de seus discursos e silêncios manguezais. pudemos compreender alguns dos significados Entre os subprodutos do processo metalúrgi- da SAN em relação à contaminação por metais co da produção dos lingotes de chumbo foram pesados (principalmente Chumbo) e esgotos sa- gerados arsênio (As), antimônio (Sb), cobre (Cu), nitários no manguezal e no rio. zinco (Zn), cádmio (Cd) e o próprio chumbo (Pb). Estes compuseram as escórias abandonados pela fábrica e, posteriormente, utilizados para a Metodologia pavimentação de ruas e casas do Município. O efeito carcinogênico foi referido por Baxtel et al.2 Trata-se de uma pesquisa qualitativa com utiliza- e no protocolo da Secretaria Estadual de Saúde3. ção de instrumentos como entrevista, observação Pesquisas4-7 e registros oficiais8 sobre essa tra- participante e registro das informações em diário gédia ambiental que contaminou a localidade re- de campo e análise do discurso. As marisqueiras velaram concentrações de chumbo, cádmio, cobre afrodesecententes são colaboradoras deste estu- e zinco em níveis superiores aos limites estabele- do, e discursam sobre a contaminação química e cidos pela Organização Mundial de Saúde – OMS. biológica e a SAN doméstica12. Ademais da contaminação química citada, os As famílias de marisqueiras tem o principal moradores às margens do rio Subaé estão expos- rendimento composto pela mariscagem de espé- tos de forma contínua à contaminação biológica cies como Sururu (Mytella sp.) e Mapé (Teria sp.) desde a década de 19708. Frequentemente, mau e complementação de renda por meio de progra- cheiro e a presença de ratos atraídos por resíduos mas governamentais assistenciais como Bolsa Fa- sólidos domésticos causam nojo, temor e adoe- mília e Seguro Desemprego da pesca em período cimentos. de defeso. O medo de adoecer, por contaminação por O trabalho de campo ocorreu entre janeiro chumbo, ocorreu desde o início das notícias na a outubro de 2014 (em dias não consecutivos), imprensa sobre o assunto. Com isso, ocorreu a cujas observações do cotidiano foram registradas proibição do consumo e da venda de mariscos, em diário de campo. A escolha dos sujeitos foi re- 529 Ciência & Saúde Coletiva, 22(2):527-534, 2017 22(2):527-534, & Saúde Coletiva, Ciência alizada considerando a técnica conhecida como linguístico sobre a contaminação do marisco na snowball13, frequentemente empregada em estu- região. As rotulações, preconceitos, associações dos semelhantes14. Considerou-se idade superior classificatórias, desde o período da confirmação a 19 anos, ocupação de marisqueira e residência da contaminação em Santo Amaro, em 19968, na proximidade do mangue. Desse modo, foram tornaram negativa a imagem do produto, perma- entrevistadas 13 mulheres em suas atividades do- necendo presente na memória e no cotidiano de mésticos, no trabalho da mariscagem e em horá- marisqueiras e comerciantes do lugar. rios de descanso e lazer. Até os dias atuais, a proibição do consumo As entrevistas seguiram um roteiro de ques- e da comercialização resultou na formulação tões sobre o objeto de estudo15,16: o estigma e o do medo em falar sobre o problema da conta- tabu linguístico da contaminação e a SAN, Cada minação química. Este tabu no imaginário dos entrevista durou em média 60 minutos, com re- moradores é como uma força atrativa para maus torno aos sujeitos para acréscimo de informa- presságios, situações nefastas que prejudicam a ções ou verificação de novas questões relativas mariscagem e produz a privação das atividades ao objeto do estudo. Em seguida seus discursos cotidianas dessa população. Mas, apesar desse foram cuidadosamente transcritos, compilados medo, continuam produzindo, consumindo e sendo destacados os significantes que imprimi- comercializando os produtos. ram a noção de tabu e estigma de viver em meio Observou-se que na feira da sede do Municí- à contaminação ambiental e a relação com a SAN pio não se fala a origem real do marisco. Esse ve- doméstica. Para a análise do discurso e das ob- lamento é o tabu. Oculta-se sobre o lugar conta- servações de campo optou-se pelas técnicas uti- minado por resíduos industriais materiais, ainda lizadas por Michael Pêcheux17 e Eni Orlandi18 hoje, para que consigam vender seus produtos. aprofundando com os estudos de Paul Ricoeur19 Com o inominável, se distanciam do mal o que e Cecília Minayo15. a sua nomeação pode causar. Assim, sem falar no A análise do discurso da escola francesa arti- assunto nada mais se contamina. cula aspectos linguísticos com o contexto social e Sobre a contaminação biológica, há os que histórico. Trabalha os sentidos produzidos ao in- não a consideram prejudicial à saúde porque “es- vés do conteúdo do texto e guarda relação histó- tão acostumados” e entendem que a maré limpa rica e ideológica com esse. Para Pêcheux et al., o o manguezal. Outros, contrariamente, interpre- discurso nasce da interação entre o interdiscurso, tam que estão contaminados e podem adoecer. saberes constituídos pela coletividade, e do intra- Entretanto, esse tipo de contaminação é para eles discurso, o dito pelo sujeito (fala), sendo o inter- a marca social da pobreza, em que a falta de in- prete ou analista o responsável pela interpretação fraestrutura é justificada pela condição social. dos significados dados20.