Flores raras (e banalíssimas): entre o documental e o ficcional

Reaching for the moon: between the documental and the fictional

Bianca Deon Rossato1 Elaine Indrusiak2

Escreve-se para contar, não para provar. Tito Lívio, Flores Raras e Banalíssimas (1995)

Abstract: This paper aims at analyzing the relationship between the book Rare and commomplace flowers (1995) by Carmem L. Oliveira and the feature film Reaching for the moom (2013), directed by Bruno Barreto. As Oliveira (re)tells the love story between and Lota de Macedo Soares during the 1950s and 1960s in , her text presents itself as both documental and fictional. The writer bases her production on personal archives and documents, historical sources, as well as in personal accounts by Lota’s and Bishop’s acquaintances. The film, on its turn, is based on Oliveira’s text. Considering that such works approach historical characters framed within a given time and space, both raise questions when it comes to conceptions such as historical past, relations between authors and characters, as well as those between reality and fiction, in addition to questions of appropriation and adaptation as they are understood by Adaptation Studies. In this sense, discussions on historiographic metafiction by Linda Hutcheon (1991), adaptation by Thomas Leitch (2007) and Hutcheon (2013), and biopics by George Custen (1992) contribute to the understaning of both works in their individuality, and the relationships that rise through the adaptation process. So far, the analysis reveals that although Oliveira bases her writing on document and approaches historical characters, her style and the use of literary techniques render the text a novel-like aspect. The book portrays a romantic triangle of sorts between Bishop, Lota and Flamengo Park, a project idealized by the Brazilian.The filmic production, however, replaces the park with Mary Morse, Lota’s life partner prior to Bishop’s arrival in Brazil, stressing the homoerotic and sentimental nature of the relationships of those women, a feature implied but only subtly tackled by Oliveira’s work. Keywords: historiographic metafiction, biopic, adaptation, Elizabeth Bishop, Lota de Macedo Soares.

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar a relação entre a obra Flores Raras e banalíssimas (1995), de Carmem L. Oliveira, e o filme Flores Raras (2013), dirigido por Bruno Barreto. Ao (re)contar a história de amor entre Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares, tendo como pano de fundo o Brasil dos anos 50 e 60, o texto de Oliveira pretende-se a um tempo documental e ficcional. A escritora fundamenta sua produção em documentos e arquivos pessoais, fontes históricas e relatos de pessoas do círculo de convivência de Lota e Bishop. A produção fílmica, a seu turno, é baseada no texto de Oliveira. Uma vez que as obras tratam de figuras históricas localizadas em determinado tempo e espaço, ambas suscitam questionamentos no que diz respeito a conceitos como o de passado histórico, de relações autor-personagem, de relações entre o real e o ficcional e a própria questão da apropriação e adaptação, conforme esses termos são entendidos nos Estudos de Adaptação. Nesse sentido, as discussões sobre metaficção historiográfica de Linda Hutcheon (1991), adaptação de Thomas Leitch (2007) e de Hutcheon (2013), e biopic ¬ - ou cinebiografia – de George Custen (1992) contribuem para a compreensão tanto de cada obra em seu caráter individual, como das relações existentes no processo adaptativo. O que se pode depreender desta análise, ainda em caráter parcial, é que embora trate de duas figuras históricas e se embase amplamente em documentos reais, a construção do texto de Oliveira, que se alimenta de elementos de uma narrativa literária, lhe confere um caráter de romance. Existe neste texto uma espécie de triângulo amoroso entre Bishop, Lota e o Aterro do Flamengo, obra idealizada pela brasileira. Já a adaptação fílmica substitui o parque por Mary Morse, companheira Lota antes da chegada de Bishop ao Brasil, enfatizando a natureza homoerótica e afetiva das relações entre tais mulheres, um traço implícito, mas apenas sutilmente abordado por Oliveira. Palavras-Chave: metaficção historiográfica, cinebiografia, adaptação, Elizabeth Bishop, Lota de Macedo Soares.

1 Doutoranda em Letras pela UFRGS. Professora EBTT no Instituto Federal Sul-rio-grandense – Câmpus Passo Fundo. E-mail: . 2 Doutora em Literatura Comparada, Professora do Departamento de Línguas Modernas e do Programa de Pós- Graduação em Letras da UFRGS. E-mail: .

37 1 Introdução O gênero biografia, assim como outros relatos de caráter histórico, já não carrega a força (ou o peso) de ser uma composição que revele apenas fatos verídicos e, portanto, não ficcionais. Isso se deve a duas questões distintas. Em um primeiro momento, obras voltadas à vida de personagens fictícias, como Robinson Crusoé e Moll Flanders – precursoras do romance no século XVIII -, e mais tarde Jane Eyre, por exemplo, apropriaram-se da técnica do relato da trajetória de vida de personagens ilustres presentes nas biografias de santos e reis ingleses. Nesse sentido, a ficção apropria-se daquilo que se considerava factual3. Já a partir da segunda metade do século XX, o caminho passou a ser o inverso: biografias apropriam-se de elementos da construção narrativa ficcional, deixando em segundo plano as pretensões de objetividade e a facticidade históricas. Tal tendência seria ainda mais intensificada com o pós- modernismo, momento histórico e cultural que questiona até mesmo a noção de história, considerando-a apenas mais uma das grandes narrativas que dão sustentação às concepções e instituições da civilização (LYOTARD, 1998). Ao enfatizar a natureza narrativa da História, o pós-modernismo acarreta não apenas o reconhecimento das relações de poder intrínsecas ao relato (quem narra o que, a quem e de que ponto-de-vista), mas traz à tona, também, seu caráter textual, linguístico e inescapavelmente intertextual. Com isso, ainda que história e ficção possam divergir em motivações e objetivos, seus relatos tornam-se perturbadoramente assemelhados em forma e conteúdo. Textos biográficos, sejam verbais ou audiovisuais, têm grande impacto tanto no contato com, quanto na compreensão que as pessoas têm dos eventos históricos. Conforme Custen (1992) informa, boa parte das cinebiografias produzidas por Hollywood até por volta dos anos 1980 privilegiava a representação de figuras históricas que continham algum elemento heroico em suas trajetórias. Figuras cotidianas e de trajetórias anti-heroicas passaram a ganhar espaço na mesma medida em que se passou a desconstruir as noções das grandes narrativas. Verifica-se que é por volta desse período que se expande o uso da expressão “baseado em fato real”4, especialmente no cinema e na televisão. Thomas Leitch (2007, p. 284) observa que tal rótulo parece se fazer necessário quando as produções fílmicas se dedicam a narrar “eventos esquecidos” ou “a história privada de cidadãos”, como é o caso de Lota de Macedo Soares, que se verá a seguir. Segundo o teórico, utilizar essa expressão é sempre uma questão “estratégica”, ou seja, não depende exclusivamente de questões históricas ou existenciais, uma vez que as representações de eventos históricos conhecidos prescindem dessa reivindicação (LEITCH, 2007, p. 284). Convém discutir, ainda, o paradoxo apontado por Leitch (2007): não se pode duvidar de uma produção que se diz “baseada em uma história real” justamente pelo fato de não haver um registro particular dos eventos em questão. Isso ocorre porque não há uma única autoridade ou fonte que se possa questionar como tendenciosa ou errônea. Ao contrário, uma produção baseada em um texto histórico específico, por apresentar voz e interferência autoral e/ou editorial reconhecíveis e imputáveis, é ao mesmo tempo potencialmente mais questionável. O rótulo “baseado em uma história real” se torna, portanto, ao mesmo tempo “uma marca mais vaga e mais poderosa de autoridade transcendental” (LEITCH, 2007, p. 289).

2 O processo adaptativo e as relações entre o real e o ficcional Este artigo busca, a partir das reflexões expostas, apontar desdobramentos de certas interpretações e representações originadas no processo de adaptação do texto verbal Flores Raras e Banalíssimas (1995), de Carmen L. Oliveira para o texto audiovisual Flores

3 Para saber mais, referir-se ao tópico “biografia” no The Routledge Dictionary of Literary Terms, organizado por Peter Childs e Roger Fowler, 2006. 4 “Based on a true story”. (Todas as traduções de citações estrangeiras são das autoras.)

38 Raras (2013), dirigido por Bruno Barreto. Entende-se adaptação a partir dos pressupostos teóricos de Linda Hutcheon (2013) segundo a qual tal fenômeno pode ser definido através de três perspectivas distintas, mas inter-relacionadas: a) como a transposição de uma obra em particular de um meio a outro, de um contexto a outro ou, ainda, de um sistema ontológico a outro; b) como um processo de criação que envolve tanto (re)interpretação quanto (re)criação; c) e como um processo de recepção, já que a adaptação é uma forma de intertextualidade que traz à tona lembranças de outras obras. A adaptação pode, portanto, ser entendida tanto como uma obra individual que possui sua própria aura, como em sua relação com os textos com os quais dialoga. Assim, a análise ora proposta reconhece o relato da vida das figuras históricas envolvidas em três narrativas distintas: aquela tomada como “fatos reais”, aquela construída no livro de Oliveira, e aquela representada no filme de Barreto. A primeira delas, mesmo que relatada pelas pessoas que a vivenciaram, poderia ser questionada, pois o ‘eu’ que viveu a experiência não é necessariamente o ‘eu’ que a relata. Além disso, tal relato se manifesta majoritariamente por meio do registro oral, ganhando materialidade apenas a partir da construção textual de Oliveira. Nesse sentido, a investigação se debruça apenas sobre as duas últimas narrativas, a verbal, de Carmen Oliveira (1995), e a audiovisual, de Barreto (2013). Flores raras e banalíssimas (1995), conforme seu subtítulo revela, apresenta a “história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop”, especialmente durante as décadas de 1950 e 1960 no Brasil. A primeira é uma aristocrata brasileira, educada na França e profunda conhecedora de arquitetura e botânica; a segunda, uma renomada poetisa estadunidense. Segundo o relato, Bishop chega ao Brasil em 30 de novembro de 1951 para passar alguns dias, mas acaba ficando por quase duas décadas. O que a faz ficar? “Aquela miúda e franzina criatura, toda nervos, toda luz, que se chamava Dona Lota”, como definida por por ocasião de seu falecimento (OLIVEIRA, 1995). As duas mulheres se conhecem através de Mary Morse, amiga da americana e companheira da brasileira. Conforme Oliveira (1995) apresenta, Bishop se sente confortável na companhia de Lota e acaba aceitando seu convite para ficar no Brasil, com ela, em sua residência de nome Samambaia, em Petrópolis, no . Estabelece-se entre elas uma relação amorosa e de intensa cumplicidade. Conforme a narrativa de Oliveira (1995), Bishop e Lota vivem alguns anos de vida cotidiana, uma escrevendo, viajando pelo Brasil e tendo eventuais crises devido ao alcoolismo, a outra ocupando-se da construção de Samambaia. Em 1956, Bishop ganha o prêmio Pulitzer por Norte e Sul, o que traz agitação ao casal. Em 1960, Carlos Lacerda, eleito governador da Guanabara, convida Lota para integrar seu governo e ela lhe sugere a construção de um parque, no Aterro do Flamengo, aos moldes do Central Park. Para Lota, não só o povo do Rio de Janeiro merece um espaço de lazer, como o governo Lacerda será sempre lembrado por tal construção. O relato de Oliveira (1995) enfatiza o grande desgaste físico e psicológico sofrido por Lota, já uma cinquentenária, em virtude da burocracia e das disputas políticas por trás da construção do Parque, fato que acarretaria o paulatino distanciamento entre ela e Bishop, culminando no agravamento do alcoolismo desta. Lota sofre pressões da Sursan – Superintendência de Urbanização e Urbanismo – tanto de ordem política quanto por não ser arquiteta formada, por ser mulher e por suas propostas urbanísticas revolucionárias5. Some-se a isso a instabilidade política no Brasil na década de 1960, fato que dificultou sobremaneira a execução do projeto, já que havia interesses distintos sobre aquela área. Valendo-se da correspondência entre Lota e o Governador Lacerda, Oliveira pontua os incontáveis desafios e desgostos que a criação do Parque impôs à arquiteta autodidata, tecendo, então, inferências quanto ao desgaste que o relacionamento entre as duas mulheres sofreu por conta de tal empreitada.

5 Carmen L. Oliveira apresenta sua compreensão das dificuldades enfrentadas por Lota assim como do fato de ela ter sido relegada ao ostracismo em um depoimento concedido ao projeto “O que Lota não viu” (2008). Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2017.

39 Percebe-se, através da narrativa verbal, que é o crescente e tumultuado envolvimento de Lota com o Parque que passa a dificultar sua relação com Bishop, que, por sua vez, entrega-se à bebida. Enquanto Lota nos é apresentada como irrequieta, ativa, autêntica e capaz de auxiliar Bishop a se estabilizar, a poetisa americana não parece possuir a mesma força. De caráter enfermo, disposição tímida e insegura, Bishop de Oliveira não consegue preencher o vazio imposto pelo trabalho de Lota, decidindo aceitar uma proposta que recebera para trabalhar como professora universitária em Seattle, nos Estados Unidos. Lá, envolve-se com uma aluna, com quem mantém correspondência quando retorna ao Brasil. Conforme Oliveira, quando Lota descobre tal relação, uma nova crise se instala, e ambas são internadas: Lota, devido a um colapso nervoso; Bishop, pelo alcoolismo. Os altos e baixos seguem até que, em 1967, ano em que o pai de Lota falece, uma nova carta da estudante americana chega, e Bishop decide voltar aos EUA por um tempo. Lota vai ao seu encontro, toma um medicamento em excesso, e seu corpo não resiste. Bishop não acompanha o retorno do corpo de Lota, visitando o Brasil meses depois. No texto de Carmem de Oliveira, ficção e realidade dialogam. Por um lado, trata-se de duas figuras históricas e de seus círculos de relações durante o período de aproximadamente duas décadas. Além daquilo que é narrado, elementos textuais como registros imagéticos e reproduções de documentos emprestam facticidade ao relato. Ademais, alguns elementos paratextuais também contribuem para a conexão da narrativa com a realidade como, por exemplo, o aviso que consta no verso da página da dedicatória: “Este livro é fundamentado em relatos orais e escritos. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é intencional. Ressalva-se, contudo, que Adrienne Collins, Do Carmo, Edileusa, Ismênia, Maria Amélia, Naná, e Zezé são nomes fictícios”. Ou, ainda, a lista de fontes consultadas, como relatos de pessoas que conviveram com Bishop e Lota, documentos pessoais e arquivos históricos, que consta após a conclusão do texto. Por outro lado, já nas informações constantes na orelha do livro – possivelmente escritas pela equipe de edição, pois não há autoria expressa – tem-se a revelação de que a escritora “criou uma obra, a um tempo documental e ficcional, onde convivem felicidade e tragédia, êxito público e desastres íntimos”. No que se refere ao caráter ficcional da obra, pode-se dizer que ele reside no fato de ser uma narrativa que, embora fundamentada em pesquisas documentais, foi elaborada por um indivíduo e, portanto, é apenas uma das possíveis narrativas acerca da vida em comum de Bishop e Lota. Esse é o argumento pós-modernista, estabelecido por Hutcheon (1991) ao discutir o conceito de metaficção historiográfica, que se aplica a textos ficcionais que problematizam essa sua condição ao mesmo tempo em que se apropriam de personagens ou acontecimentos históricos e desnudam seu potencial “narrativo”. É a autorreflexão produzida pelo questionamento das “verdades históricas” que diferencia essa nova abordagem da história – a metaficção historiográfica – do romance histórico consolidado no século XIX. Para além dos questionamentos sobre a narrativa histórica, há que se observar, também, que no caso de Flores Raras e Banalíssimas, o caráter ficcional é depreendido pela forma com que a história é revelada ao leitor, qual seja, através de uma estrutura narrativa e de recursos estilísticos característicos do romance. Embora o narrador relate os fatos de forma retrospectiva, comum tanto às biografias quanto ao romance, a construção do texto revela intenso uso de diálogos, o que presentifica os eventos narrados e aproxima o leitor do texto. Dentre as fontes de Oliveira, não há registros de gravações em áudio de diálogos que poderiam ter sido transcritos. Logo, a presença de conversas entre personagens, em discurso direto, é nada mais que a interferência da criatividade da autora. Além disso, o narrador nos dá acesso às percepções – pensamentos e sentimentos – das personagens através do discurso indireto livre. Um narrador pode ser onipresente e não chamar a atenção do leitor para a voz das personagens, mas o de Oliveira (1995) deliberadamente se apropria não só dos pensamentos das personagens, especialmente de Lota e Bishop, como de seus traços

40 estilísticos e registros linguísticos (“Joana chegou ao apartamento exausta. Arriou a americana grandona no sofá e foi preparar um banho” (p. 108) / “Realmente, Lota estava a sua espera. Com Mary Morse e a fedelhinha da Mônica ao lado” (p. 151) / “Lota afirmou que Bishop não tinha condições mínimas para ser professora, que era evidente que aquilo era um erro! uma besteira da grossa! (p. 154 [nossa ênfase]). Paradoxalmente, se isso serve para reforçar o realismo do relato, também acaba por enfatizar sua ficcionalidade, uma vez que não haveria como se ter acesso a certas informações e impressões relatadas. Ademais, como um texto com viés artístico/literário, a organização do tempo da narrativa é estabelecida como em uma trama de romance, com analepses (flashbacks) e prolepses (flashforwards). Os capítulos inicial e final intitulam-se “Boston, 1978” e apresentam brevemente a situação de Bishop aproximadamente dez anos após o falecimento de Lota. Outros dois capítulos de mesmo título, “Rio de Janeiro, 1994”, revelam elementos interessantes: primeiramente, como Bishop e Lota permanecem no imaginário das amigas de Lota; em seguida, uma metarreferência ao próprio livro, já que no texto as amigas se reúnem, em 1994, para ler as reportagens acerca da publicação de Flores Raras e Banalíssimas e rememorar suas vivências com Lota através dos álbuns de colagens e fotos de Ismênia, uma dessas amigas. Ocorre que o leitor não perde de vista o fato de que esse relato é apresentado por um narrador em terceira pessoa que não participa dos eventos narrados. Como pode ele, então, ter acesso aos diálogos e, especialmente, aos pensamentos e sentimentos das personagens? A resposta está nos elementos paratextuais já mencionados: a fidelidade aos fatos ocorridos a Bishop e Lota não é a preocupação primeira. Talvez, justamente porque não parece haver como produzir “a narrativa definitiva” da vida dessas pessoas ilustres, mas apenas “uma narrativa”. O jogo entre o real e o ficcional e, portanto, o desprendimento da noção de fato real, parece ser amparado por tais elementos paratextuais e pela técnica aplicada à escrita, que eximem a autora da responsabilidade de definir o gênero do texto àqueles que ainda se prendem à noção de que biografia e ficção sejam tipos excludentes. Já a narrativa audiovisual Flores raras (2013), dirigida por Bruno Barreto, é uma coprodução brasileira e estadunidense que se enquadra perfeitamente na categoria de cinebiografia, ou biopic, “gênero respeitável de péssima reputação”, segundo Dennis Bingham (2010). Nos papéis de Lota de Macedo Soares, Elizabeth Bishop e Mary Morse estão, respectivamente, a brasileira Glória Pires, a australiana Miranda Otto e a americana Tracy Middendorf. O foco da narrativa é a relação amorosa que se estabelece entre Bishop e Lota, e o que isso acarreta à relação anterior que esta mantinha com Mary Morse. Ao Parque do Flamengo, relega-se a posição de mero pano de fundo, assim como aos eventos históricos do Brasil dos anos 50 e 60. Nesse sentido, a produção fílmica propõe um revisionismo histórico que, mais do que recuperar a hoje apagada e desconhecida figura de Lota, explora aspectos de (homo)sexualidade e traços psicológicos das personagens retratadas em detrimento de seus feitos políticos e artísticos, tendência que Julianne Pidduck (2004) aponta como elemento destacado das cinebiografias contemporâneas. Para Cunha e Indrusiak,

[T]al tendência dá margem a um curioso paradoxo: por um lado, agrada ao conservadorismo, pois defende o resgate e a representação de “verdades históricas”; por outro, no entanto, desagrada a esse mesmo segmento, ao se valer da maior liberdade de expressão hoje conferida a minorias sexuais para revelar vozes e fatos tradicionalmente silenciados pela homofobia e as normas do patriarcado. (2017, p. 222-223)

Cientes da natureza potencialmente controversa de tal abordagem, no entanto, os produtores da versão brasileira em DVD apressaram-se em atenuar o caráter sexual da narrativa queer, apresentando-a, por meio de paratexto, como filme “baseado em uma história

41 de amor real” (nossa ênfase), como se a intensidade e a realidade da carga afetiva “justificasse” uma obra que celebra a vida, os feitos e o relacionamento de duas mulheres lésbicas extraordinárias. A contracapa, por sua vez, revela ainda um outro curioso disclaimer: “longa-metragem baseado no livro Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen Lúcia de Oliveira”. Embora tais informações pareçam menos relevantes ao serem apresentadas via paratexto (a capa do DVD), há que se observar uma possível contradição entre elas quando se leva em conta o que Leitch (2007) aponta acerca da expressão “baseado em história real”. O teórico constata o fato de que “uma história real” não tem registros cuja autoria/autoridade possa ser questionada. Flores Raras, no entanto, ao mesmo tempo em que alega basear-se no real, revela que, na verdade, está embasado no texto de autoria de Carmen L. Oliveira, cuja autoridade, assim como a de qualquer autor, pode ser questionada. Por ser baseado no texto de Oliveira (1995), em tese, o filme não teria necessidade de reivindicar sua relação com uma história real. Ao fazê-lo, no entanto, busca conferir facticidade a suas próprias elaborações ficcionais, reforçando, ainda que de forma indireta, o caráter documental da obra de Oliveira. Como visto, Oliveira atenua esse traço documental ao incorporar técnicas e estruturas narrativas romanescas, enfatizando a subjetividade de seu recorte e de sua abordagem dos fatos históricos. Barreto, por sua vez, nos apresenta um filme essencialmente ficcional, mas o ancora na “verdade histórica” por meio do paratexto. Ao centrar sua narrativa na relação queer que se desenrola em um contexto absolutamente conservador, opressivo e homofóbico, não seriam poucos os percalços, desafios e obstáculos de que o diretor poderia lançar mão para representar uma comovente história de “amor impossível”. Entretanto Flores Raras passa ao largo das questões de preconceito, deixando-as sutilmente subentendidas. Ainda assim, o desenrolar desse “amor real” não é, de princípio, harmônico. As primeiras impressões de Lota sobre Bishop não são favoráveis. A brasileira a considera esquisita, “blasé, nariz empinado, defensiva”, e a confronta dizendo: “você é metida, arredia e bebe bom uísque sozinha”. Sua opinião muda apenas quando Bishop se abre e revela sua insegurança e fragilidade, afirmando que nem todos conseguem ser autoconfiantes como a brasileira. Ao falar de sua poesia, Bishop diz que quando ouve um de seus poemas, sente-se “mortificada”. Tal revelação suaviza a expressão de Lota, o que marca sua mudança de comportamento em relação à americana. Curiosamente, essa tensão inicial lembra a fórmula dos romances de folhetim segundo a qual “a trama geralmente inicia com um conflito entre herói e heroína” em geral devido “a concepções erradas que um tem do outro” 6 (SILHOUETTE BOOKS apud KAPLAN, 2001, p. 177). A representação dos percalços amorosos em Flores Raras é acentuada pela situação de Mary Morse. Ao ser questionada por Bishop sobre seus pais, Mary conta que, para eles, ela está morta e acrescenta, referindo-se tanto a Samambaia quanto a Lota: “Esta é minha casa agora”. Esta é uma das poucas passagens do filme que aborda de forma direta a rejeição social aos relacionamentos lésbicos retratados. De qualquer forma, Mary tem de escolher entre a família e seu grande amor. A dramaticidade se acentua quando fica claro que Lota está apaixonada por Bishop e a convida para ficar em Samambaia. Lota, muito prática, deseja manter tanto o apaixonado relacionamento com Bishop quanto uma tranquila e assexuada convivência de roommates com Mary, o que, evidentemente, não é facilmente digerido por nenhuma das companheiras. Após um breve afastamento, Mary, sem opções, aceita a proposta de Lota de ficar na casa adjacente e de adotar uma menina, que era um desejo seu. O triângulo amoroso queer torna-se, assim, uma complexa família homoafetiva: mamãe Mary, vó Lota e tia Elizabeth. É interessante ressaltar que, na obra literária, Mary é presença constante apenas nos primeiros quatro capítulos. Depois, surge apenas em momentos críticos em que Bishop e/ou

6 “The story usually begins with a clash between the hero and the heroine. Often this has to do with misapprehensions each has about the other”.

42 Lota estão doentes ou é referida por outras personagens. Dessa forma, não fica claro como Mary adota a menina Mônica, o fato consumado sendo referido superficialmente: “Mary estava morando na casa de Lota e Bishop, enquanto terminava a construção da sua. Havia uma novidade: Mônica, um bebezinho que Mary tinha adotado” (OLIVEIRA, p. 104). Na produção fílmica, ao contrário, a adoção da criança não só ganha espaço, como acrescenta um teor dramático ao texto, já que apresenta a situação da mãe pobre que vende a criança a Lota e, ao mesmo tempo serve como gatilho para que Bishop relembre sua mãe, o que é representado em um flashback em que a menina Elizabeth presencia a traumática condução de sua mãe a um hospital psiquiátrico, fato referido de forma bastante atenuada na obra de Oliveira. Tais cenas denotam a sentimentalidade exacerbada com que o filme adapta a narrativa semidocumental de Oliveira. Ainda que se verifique um certo pudor na abordagem às questões sexuais envolvidas no relacionamento das três mulheres, o filme de Barreto é infinitamente mais audacioso do que a obra literária. As belas cenas de sexo e de intimidade entre Lota e Bishop revelam intensidade de desejo e de afeto. Embora Mary Morse seja representada como terceira ponta do triângulo, aquela que fora rejeitada, sabotando a relação entre Lota e Bishop, em especial durante a internação psiquiátrica da brasileira, as dificuldades e o desgaste do relacionamento em si são atribuídos ao esgotamento desta e ao alcoolismo de Bishop. A disfuncionalidade da família de Samambaia, portanto, não difere daquela verificada entre casais heterossexuais, o que reforça a adesão da obra não apenas a um certo revisionismo queer, mas também a uma visão mais humana, complexa e coerente das relações homoafetivas. Amor, afeto e ciúme são sentimentos de tal forma centrais à narrativa fílmica que Barreto os relaciona diretamente ao falecimento de Lota, representado como suicídio por overdose de comprimidos em função da relação amorosa entre Bishop e uma estudante americana. Embora o livro refira a mesma causa mortis, a autora prefere não se comprometer a estabelecer a intenção ou mesmo uma única causa à overdose de Lota. Sendo assim, diferentes interpretações para o trágico fim de Dona Lota são contempladas: para as amigas, foi Bishop a responsável; para quem trabalhou com Lota, foi o Parque do Flamengo; para Bishop, foi o Brasil. Em histórias de amor não se morre por stress, depressão e tais aflições; a Lota de Barreto, portanto, morre de e por amor. Não é apenas a vida profissional de Lota que se apaga na ênfase de Barreto ao relacionamento amoroso; também o trabalho de Bishop é relegado a um segundo plano. Ainda que o filme explore alguns dos poemas da incensada autora e acerte no tom ao retratar a criação poética como labor meticuloso, cansativo, muitas vezes obsessivo e frustrante, refutando a concepção romântica da inspiração em rompantes de criatividade, a inescapável comparação com a obra de Oliveira aponta uma riqueza literária que, tendo sido deixada à margem da narrativa fílmica, faz falta a públicos ávidos por poesia. Isso porque Oliveira não apenas incorpora ao seu texto passagens de diversas obras de Bishop, mas também investiga seu processo criativo e sugere uma rica rede intertextual ao referir canções da música popular brasileira e textos de outros poetas, como Carlos Drummond de Andrade e Manoel Bandeira, abrindo diversos caminhos investigativos quanto às influências, às apropriações e ao impacto geral da experiência brasileira na obra da poetisa norte-americana. Além disso, de um ponto de vista intermidiático, seria bastante enriquecedor explorar as possibilidades de apropriação e remediação, pela obra fílmica, de textos artísticos de gêneros diversos, algo que Oliveira logra obter não apenas com as referências literárias habilmente costuradas à sua própria prosa, mas também com a inventiva écfrase que seu narrador elabora na apresentação da casa Samambaia, a exemplo da própria Bishop, que cantou a casa nos versos de Song for the Rainy Season (1960), como apontado no estudo de Miriam Vieira (2017). Infelizmente, por razões desconhecidas, a amada casa idealizada por

43 Lota e projetada por seu amigo arquiteto Sérgio Bernardes não serve de cenário ao filme de Barreto. Ainda que elementos estéticos da arquitetura modernista brasileira, da qual Lota era entusiasta, estejam muito bem representados e explorados na casa Samambaia ficcional (a belíssima Casa Edmundo Cavanelas, projetada por Oscar Niemeyer e localizada em Petrópolis, RJ, em distrito próximo à propriedade dos Macedo Soares), a escolha de tal locação vai na contramão das homenagens rendidas ao gênio arquitetônico de Lota e, como se não bastasse, celebra os encantadores jardins de Roberto Burle Marx, célebre paisagista brasileiro que veio a se tornar desafeto de Lota após muitas desavenças em torno do projeto do Parque do Flamengo.

3 Considerações finais A despeito de tais liberdades ficcionais e poéticas, o que se pode verificar a partir da análise acima é que ambas as obras Flores Raras e Banalíssimas (1995) e Flores Raras (2013), ao se debruçarem sobre a história de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares, resgatam do ostracismo a figura histórica da brasileira. Apesar de ter sido uma mulher à frente de seu tempo, homossexual realizada em seus relacionamentos amorosos, idealizadora do Parque do Aterro do Flamengo sem formação formal em urbanismo, figura de grande influência política e companheira de uma das maiores poetas da língua inglesa, Lota foi esquecida pelos brasileiros. Na verdade, considerando o contexto patriarcalista, conservador, provinciano e homofóbico em que viveu, amou e produziu, talvez seu esquecimento se deva exatamente ao desconforto gerado por seus inegáveis predicados. As obras de Carmem Oliveira e de Bruno Barreto têm o grande mérito de ajudar a arrefecer tal desconforto, resgatando da obscuridade não apenas a figura da irrequieta Lota, mas também seu intenso, complexo e belo relacionamento amoroso com Bishop, experiência que marcou profundamente a produção poética da escritora. Para tanto, cada obra lança mão de recursos distintos, seja em função das especificidades de suas respectivas mídias, seja por escolhas de enfoque temático específicas. Oliveira desprende-se do biografismo pretensamente factual e objetivo para nos apresentar uma narrativa de traços romanescos em que a subjetividade autoral aflora a cada momento, permitindo um maior envolvimento do leitor. Bruno Barreto, a seu turno, propõe-se a construir uma narrativa baseada em uma história real e, com isso, conferir-lhe certa autoridade transcendental. Entretanto, ao basear sua obra no texto de Oliveira, o cineasta reforça o caráter adaptativo da cinebiografia e, com isso, sua condição de metaficção historiográfica, uma vez que desnuda os recursos narrativos e textuais empregados na transposição midiática de uma história que é, também, a História.

Referências: BINGHAM, Dennis. Whose Lives Are They Anyway? The Biopic as Contemporary Film Genre. New Brunswick, NJ: Rutgers University, 2010. BISHOP, Elizabeth. Song for the Rainy Season. Disponível em: . Acesso em: 26 out. 2017. CHILDS, Peter; FOWLER, Roger. The Routledge Dictionary of Literary Terms. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2006. CUNHA, Andrei; INDRUSIAK, Elaine. Serguei no México: Greenaway e a representação pós-moderna do artista queer. Ilha do Desterro. v. 70, n. 1, p. 221-232, jan.-abri., 2017. DOI: < 10.5007/2175-8026.2017v70n1p221>. CUSTEN, George. Bio/Pics: How Hollywood Constructed Public History. Rutgers University, 1992.

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