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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

MARIA CLARA PIVATO BIAJOLI

ORGULHO E PRECONCEITO NO SÉCULO XXI: A AUSTENMANIA E A FANTASIA DO FINAL FELIZ

CAMPINAS,

2017

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MARIA CLARA PIVATO BIAJOLI

ORGULHO E PRECONCEITO NO SÉCULO XXI:

A AUSTENMANIA E A FANTASIA DO FINAL FELIZ

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Teoria e História Literária, na área de Teoria e Crítica Literária.

Orientador: Prof. Dr. Fabio Akcelrud Durão

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela aluna Maria Clara Pivato Biajoli e orientada pelo Prof. Dr. Fabio Akcelrud Durão.

CAMPINAS,

2017

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BANCA EXAMINADORA:

Fabio Akcelrud Durão

Antonio Alcir Bernárdez Pécora

Cristina Meneguello

Leandro Pasini

Rita Terezinha Schmidt

Jefferson Cano

Charles Albuquerque Ponte

Luana Saturnino Tvardovskas

IEL/UNICAMP 2017

Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

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Agradecimentos

Se devo agradecer a todas as pessoas que participaram do processo de escrever esta tese, fica a dúvida de quando realmente começou esse processo. Se na graduação ou no mestrado em História, nos quais aprendi o que era fazer uma pesquisa acadêmica, devo registrar meu carinho especial a todos os meus amigos e professores do IFCH/UNICAMP. Se na graduação em Letras, quando decidi atravessar a rua rumo à literatura, digo o mesmo para aqueles que me acompanharam no IEL/UNICAMP. Ou, se de fato o processo começou quando eu entrei no doutorado, devo então primeiro agradecer ao meu orientador Dr. Fabio A. Durão por ter se arriscado a me aceitar com um projeto que trazia um tema um pouco inusitado, digamos assim, e agradeço também a ele e ao seu grupo de orientandos pela leitura cuidadosa dos meus primeiros rascunhos e pelas opiniões e sugestões que me ajudaram muito. Preciso agradecer também aos amigos da Universidade McGill, no Canadá, que me receberam de braços abertos no Burney Centre para o meu doutorado sanduíche, em especial Jennifer Mueller e Megan Taylor, e o prof. Peter Sabor. Tanto o período que passei lá quanto a possibilidade de me dedicar exclusivamente a esta tese foi essencial para o seu desenvolvimento, e por isso devo agradecer ao CNPq e à CAPES pelas bolsas de pesquisa concedidas, sem as quais com certeza este trabalho não seria o que é. Fora da universidade, preciso agradecer ao meu marido Diego Porto Nieto, não só pelo apoio e paciência de aguentar meu estresse e mau humor, mas pela ideia original. Foi ele que, um dia, ao me ver rindo de alguma coisa em uma continuação de Austen, disse: ―mas por que você não estuda isso?‖. Realmente, por que não? Agradeço a meus pais também, José Roberto e Elisabete, pelo apoio incondicional enquanto eu tentava descobrir o que queria fazer da vida, e ao meu irmão André pela solidariedade de quem passou pelo mesmo processo. Por fim, o que somos nós sem amigos? Ana Claudia Chaves, Carol Meloto e Juliana Bulgarelli, pela amizade constante e reconfortante, mesmo estando, em um certo momento, cada uma em um país diferente. Maya Gasperini, Livia Carvalho, Luciana Pacheco e Mariana Ahnelli, pela torcida. O pessoal da História: JP Ferreira e Carol Gual, Luiz Estevam Fernandes e Aline Carvalho, Luis Kalil e Jacquelini, Felipe Vieira, Tadeu Dias e Andreia Nicioli – sempre juntos rindo muito de tudo, já que não tem outro jeito.

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Resumo

O presente trabalho apresenta uma reflexão a respeito da popularidade atual da escritora inglesa (1775-1817) a partir de uma análise de continuações e variações modernas de seu romance mais famoso, Orgulho e Preconceito (1813), produzidas por fãs da autora. Essas obras, chamadas de fan fiction, apresentam uma forte tendência de focar somente no relacionamento amoroso entre a heroína, Elizabeth Bennet, e o herói, Mr. Darcy, colocando em segundo plano outros temas presentes no romance de Austen mais críticos à sua sociedade da virada do século XVIII para o XIX. Em especial, o desconforto da autora em relação ao papel limitado da mulher naquela época é ignorado com a retomada do sentimentalismo pela fan fiction, que constrói e reproduz uma imagem de que os romances de Austen não passavam de histórias de amor inocentes cujo objetivo principal era o final feliz representado pelo casamento das heroínas. Essas continuações e variações, portanto, constituem um importante registro da recepção atual da obra de Austen e a forma como ela é ressignificada a partir de fantasias e valores contemporâneos.

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Abstract

This research presents a reflection on the current popularity of English author Jane Austen (1775-1817) through an analysis of modern sequels and variations, written by fans, of her most famous novel, Pride and Prejudice (1813). These works, called fan fiction, have a strong tendency to focus only on the romantic relationship between the heroine, Elizabeth Bennet, and the hero, Mr. Darcy, relegating to a secondary place other themes found in this novel that are critical to the society of the turn of the eighteenth to the nineteenth century. Primarily, the author‘s discomfort regarding the limited role allowed to women in her time is ignored with the comeback of sentimentalism carried out by fan fiction, which builds and reproduces the image that Austen‘s novels were only naïve love stories whose main purpose was the happy ending represented by the heroine‘s wedding. These sequels and variations, therefore, are important records of the current reception of Austen‘s work and the way it gains new meanings through contemporary fantasies and values.

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Lista de Figuras

 Fig. 1 – Imagem do túmulo de Jane Austen na Catedral de Winchester. http://news.bbc.co.uk/local/hampshire/hi/people_and_places/history/newsid_8622000/86 22369.stm Acessado em 01/03/16.  Fig. 2 – Placa de Bronze em homenagem à Jane Austen na Catedral de Winchester. http://austenonly.com/2012/07/18/jane-austens-memorials-in-winchester-cathedral/ Acessado em 02/03/16.  Fig. 3 – Vitrais em homenagem à Jane Austen na Catedral de Winchester. http://www.ancestraltrails.ca/walker%20for%20web-o/p1936.htm Acessado em 02/03/16.  Fig. 4 – Possível retrato de Jane Austen feito por Cassandra Austen, ca. 1810. Lápis e aquarela. National Portrait Gallery. Disponível em: http://www.jasna.org/info/pictures.html Acessado em 20/12/2016.  Fig. 5 – Aquarela de John Andrews baseada no retrato de Cassandra, 1869. Jane Austen Memorial Trust. Disponível em: http://www.jasna.org/info/pictures.html Acessado em 20/12/2016.  Fig. 6 – Gravura/litografia de Lizars para Memoir of Jane Austen, 1870. Disponível em: http://www.jasna.org/info/pictures.html Acessado em 20/12/2016.  Fig. 7 – Gravura/litografia para Portrait Gallery of Eminent Men and Women of Europe and America, 1873. https://austenblog.files.wordpress.com/2010/05/blue_wr.jpg Acessado em 20/12/2016.  Fig. 8 – Possível retrato de Jane Austen, conhecido como ―Rice Portrait‖. Ozias Humphry, óleo em tela, ca.1972-73. Coleção Privada. Disponível em: http://www.jasna.org/info/pictures.html Acessado em 20/12/2016.  Fig. 9 – Aquarela de Jane Austen por Cassandra Austen, 1805. Coleção Privada. Disponível em: http://www.jasna.org/info/pictures.html Acessado em 20/12/2016.  Fig. 10 – Capa do livro What Jane Austen Ate and Charles Dickens Knew, de Daniel Pool, 1993. Retirado de: http://www.amazon.com/What-Austen-Charles-Dickens- Nineteenth-Century/dp/B0027NHYMA/ref=sr_1_4?ie=UTF8&qid=1459199255&sr=8- 4&keywords=jane+ate+dickens+knew Acessado em 28/03/16.  Fig. 11 – Ilustração do local onde ficava a casa em que Jane Austen nasceu. Desenho de Ellen Hill para o livro de Constace Hill Jane Austen: Her Homes and Her Friends (1902). Retirado de Johnson, C. 2012, p.72.

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 Fig. 12 – Foto da placa localizada em Chawton Cottage (Jane Austen‘s House Museum) em homenagem ao Tenente Philip John Carpenter, morto durante a Segunda Guerra Mundial, cujo pai foi responsável pela compra da casa e respectiva doação para a Jane Austen Society em 1947. http://quillcards.com/blog/jane-austen-at-home-in-print-part-2- chawton-england/ Acessado em 20/04/16.  Fig. 13 – Representação de Austen como uma mulher moderna de sucesso na revista Entertainment Weekly, 1995. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Jane_Austen_Hollywood_Parody.jpg Acessado em 25/04/2016.  Fig. 14 – Ilustração de Elizabeth Bennet por Isabel Bishop para uma edição de Pride and Prejudice de 1976, p.199, com a legenda: ―The examination of all the letters which Jane had written to her‖. https://austenprose.com/2008/07/17/janeausten-illustrators-isabel- bishop/ Acessado em 03/05/2016.  Fig. 15 – Projeto da nova nota de dez libras anunciada pelo Banco Central da Inglaterra para 2017. http://www.bankofengland.co.uk/banknotes/Pages/characters/austen.aspx Acessado em 04/05/2016.  Fig. 16 – Cena final da adaptação para mangá: King, Stacy e Tse, Po. Manga Classics: Pride and Prejudice. Canada: UDON and Morpheus, 2014, p.368.  Fig. 17 – Sequência final da adaptação Pride and Prejudice, Dir.: Simon Langton, 1995, episódio 6, de 00:47:55 a 00:48:22.  Fig. 18 – Cena da carruagem na adaptação para mangá: King, Stacy e Tse, Po. Manga Classics: Pride and Prejudice. Canada: UDON and Morpheus, 2014, p. 366.  Fig. 19 – Cartaz de divulgação do filme Pride and Prejudice de 1940. Retirado de Auerbach, E. 2004, p.279.  Fig. 20 – Elenco da adaptação Pride and Prejudice, BBC, 1995. À esquerda, Mr. Darcy (Colin Firth) e Elizabeth Bennet (Jennifer Ehle) [http://www.dfiles.me/pride-and- prejudice-1995-wallpaper.html acessado em 20/12/2016]; à direita, Mr. Bingley (Crispin Bonham-Carter) e Jane Bennet (Susannah Harker) [http://www.earningourstripes.org/pride-and-prejudice-episodes/episode-4/ acessado em 20/12/2016].  Fig. 21 - Os atores que interpretaram Edward Ferrars de Razão e Sensibilidade: Hugh Grant (1995) e Dan Stevens (2008). http://www.fanpop.com/clubs/mr-edward- ferrars/images/31758924/title/edward-ferrars-photo e

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http://www.pbs.org/wgbh/masterpiece/senseandsensibility/characters.html Acessados em 20/12/2016.  Fig. 22 - Edward Ferrars (Dan Stevens) em cena de R&S de 2008 cortando lenha na chuva vestindo apenas calças e camisa branca. http://www.fanpop.com/clubs/mr-edward- ferrars/images/31758924/title/edward-ferrars-photo Acessado em 15/12/2016.  Fig. 23 - Colin Firth no papel de Mr. Darcy na famosa cena do lago da adaptação da BBC de 1995 para O&P http://junkee.com/rewatching-the-bbcs-pride-and-prejudice-twenty- years-later/67883; estátua de Mr. Darcy em Hyde Park http://www.huffingtonpost.co.uk/2013/07/08/colin-firth-statue-mr-darcy-pride-and- prejudice-lake_n_3560981.html; Elliot Cowan em cena de ―Lost in Austen‖ que reproduz a cena do lago https://mutantreviewers.wordpress.com/2011/11/14/eunice-does-lost-in- austen/. Acessados em 23/11/2016.  Fig. 24 - Cartazes e bolsa comercializados entre fãs de Mr. Darcy. Disponível nos sites: https://therebutforthegraceofkelly.wordpress.com/2013/07/15/waiting-on-mr-darcy-mark- darcy-or-even-a-daniel-cleaver-really/ ; https://br.pinterest.com/pin/486599934708942765/ https://www.bustle.com/articles/53298-10-jane-austen-gifts-for-the-completely-obsessed- austen-fan Acessados em 29/09/2016.  Fig. 25: Detalhe da capa do DVD do seriado Lost in Austen. Dir.: Dan Zeff, 2008.  Fig. 26: Cena do filme Orgulho e Preconceito e Zumbis que mostra as irmãs Jane e Elizabeth Bennet se arrumando para o baile em Meryton. ―Orgulho e Preconceito e Zumbis‖, 2016, dir. Burr Steers, 10min57‘.  Fig. 27: Tirinha de Kate Beaton, cartunista canadense, sobre apropriações da obra de Jane Austen. Sem data. http://www.harkavagrant.com/index.php?id=263 Acessado em 28 novembro 2016.  Fig. 28: Tirinha de Kate Beaton, cartunista canadense, sobre a imagem da obra de Jane Austen. Sem data. http://www.harkavagrant.com/index.php?id=4 Acessado em 28 novembro 2016.

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Abreviaturas

Obras de Jane Austen:  Juvenilia – J  Razão e sensibilidade – R&S  Orgulho e Preconceito – O&P  – MP  Emma – E  Persuasão – P  Northanger Abbey – NA  Manuscritos* – LM

Cartas e biografias:  The Letters of Jane Austen, ed. Lord Brabourne, 1884 – LB  Jane Austen’s Letters, ed. Deidre Le Faye, 2014 – Letters  Biographical Notice of the Author, Henry Austen, 1817** – BN  Memoir of Miss Austen, Henry Austen, 1833** – MMA  A Memoir of Jane Austen, James Edward Austen-Leigh, 1870/71** – Memoir  ―Recollections of Aunt Jane‖, Anna Lefroy, 1864** – RAJ  ―My Aunt Jane Austen. A Memoir‖, Caroline Austen, 1867** – MAJA

* Manuscritos inacabados ou não publicados como Lady Susan, Sanditon e The Watsons foram reunidos no volume Later Manuscripts, organizado por Janet Todd, Ed. Cambridge, 2006. **Todos esses relatos de memória estão reunidos em um só volume, editado por Kathryn Sutherland, com o título de A Memoir of Jane Austen. And Other Family Recollections. As referências seguem a paginação desse volume.

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Sumário

Introdução 13

Capítulo 1 – A trajetória de uma autora 20

Parte 1. Austens Múltiplas 22 1.1. Uma História de Família 22 1.2. Uma História Acadêmica 62 1.3. Uma História de Amor 78

Parte 2. Austen Heroína 95

Capítulo 2 – O romance 124

Parte 1. O romance, a realidade e a fantasia 124 1.1. Uma origem controversa 124 1.2. Questões morais entre realidade e ficção 140 1.3. Percepções diversas de realidade e ficção 152

Parte 2. A Fantasia do Coração 163 1.1. A superioridade do Sentimento 163 1.2. Sentimentalismo do Século XXI 183

Capítulo 3 – Reconstruções de Orgulho e Preconceito 219

Parte 1. O foco no amor: Darcy e Elizabeth 222 1.1. A Darcymania e o herói perfeito. 222 1.2. Elizabeth, feminismo e o final feliz 261

Parte 2. Austen e fan fiction, politização e zumbis 306

Conclusão 331

Referências 338  Obras de Jane Austen 338  Bibliografia 338  Fontes: lista de continuações e variações 351  Adaptações para Cinema e TV mencionadas 358

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Introdução

Em um pequeno passeio em uma livraria de um shopping me surpreendo com a quantidade e a variedade de edições disponíveis dos romances da escritora inglesa Jane Austen (1775-1817). São livros lançados por diversas editoras em versão de bolso, luxo, capa- dura, papel jornal, em coleções especiais ou volumes separados, em audiobook, ilustrados, resumidos, traduzidos, em inglês ou bilíngues, e apesar de acreditar que Austen mereça todo esse espaço, não consigo ver esse aumento crescente da exposição dos seus romances como simples acaso. Muito menos todos os produtos que vêm sendo lançados na esteira da sua popularização, especialmente após a década de 1990: seriados de televisão e filmes de Hollywood a Bollywood, a indústria cinematográfica indiana, camisetas, cadernos, canecas, marcadores de página (com os dizeres ―Keep Calm and Read Jane Austen‖), objetos de desejo de fãs que se organizam em inúmeros sites sobre a autora e clubes de leitura online. Austen parece ter se tornado uma mercadoria, uma marca global, como afirma Janet Todd (2013, p.xi), quase como Oprah ou Martha Stewart, o que tem sido chamado por alguns críticos de ―Austenmania‖. A mania de Austen, por assim dizer, parece ter fugido a qualquer tipo de controle. Ela se libertou dos seus romances e passou a envolver aquilo a que a imagem da autora vem sendo associada: o período regencial da Inglaterra visto de uma forma idílica como o último paraíso antes das mudanças da Revolução Industrial e o período histórico mais romântico de todos os tempos. Essa ―Regencymania‖ alimenta a produção de inúmeros romances modernos ambientados nesse período que são vendidos junto a todas aquelas edições de Austen mencionadas anteriormente. O sucesso de escritoras como Georgette Heyer (1902-1974) e Julia Quinn (1970-) prova que escrever histórias de amor que se passam na Inglaterra do início do século XIX é um ótimo negócio. E não podemos nos esquecer, claro, das continuações. Vários autores vêm construindo suas carreiras escrevendo histórias sobre o que aconteceria com as personagens de Austen após o último ponto final, e esse tipo de trabalho tornou-se um grande sucesso comercial, recebido com entusiasmo por uma legião de fãs da autora, chamados comumente de ―janeites‖ em alusão ao conto de Rudyard Kipling de mesmo nome. Esses livros se especializaram em uma exploração sem fim de um supersentimentalismo romântico, coroado por finais felizes gloriosos em que as heroínas encontram amor, dinheiro e orgasmos em seus casamentos. E todos esses anseios são personificados em apenas uma personagem: Mr. Darcy, de Orgulho e Preconceito. Surge então a ―Darcymania‖, que chegou até mesmo aos livros de autoajuda que ensinam mulheres

14 a medir o nìvel de ―potencial Darcy‖1 nos homens que conhecem para conseguirem localizar seu par perfeito. Como explicar todas essas manias atuais em torno de Jane Austen é a questão que inspirou esta tese. Mais especificamente, pretendo analisar a forma como elas incentivaram o surgimento de continuações e variações (chamadas, em inglês, de sequels e spin-offs ou variations) escritas a partir da obra de Austen com as mais diferentes abordagens possíveis. O objetivo aqui é refletir acerca do universo que esse tipo de produção de fãs constrói ao redor da autora e de seus romances para entender quais seriam os seus efeitos sobre os originais. Para tanto, selecionei o romance Orgulho e Preconceito, publicado em 1813, por ser a obra mais conhecida de Jane Austen e a mais utilizada na produção de continuações.

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Jane Austen atualmente é um símbolo cultural inquestionável da Inglaterra, sendo considerada uma das autoras mais significativas da língua inglesa. Como demonstração desse status, a sua mesa de escrever portátil, que faz parte da coleção da British Library, está exposta na mesma sala em que se encontra uma cópia da Magna Carta, o que, segundo Joan Ray, concede a Austen de forma simbólica a mesma importância para a história da literatura inglesa que a Carta detém para a história política desse país2. Essa imagem de símbolo nacional, no entanto, foi construída principalmente durante o século XX. Apesar de hoje ser considerada importante, a obra de Jane Austen não foi adorada de imediato. Após o período de publicação das suas primeiras edições, que terminou antes de 1820, até o lançamento da biografia A memoir of Jane Austen, escrita pelo seu sobrinho James Edward Austen-Leigh em 1870, costuma-se dizer que os leitores de Austen eram poucos, e a autora havia sido relativamente esquecida. Aqueles poucos que conheciam Jane Austen geralmente apreciavam muito seus romances, porém o sentimento contrário era, às vezes, tão forte quanto, e entre os críticos mais famosos de Austen encontram-se Charlotte Brontë e Mark Twain – esse último foi bem honesto ao escrever que toda vez que tentava ler Pride and Prejudice sentia vontade de desenterrar a autora para dar uma pancada em sua caveira usando o osso de sua canela3.

1Essa é promessa de Sarah Arthur em seu livro Dating Mr. Darcy. 2 Entrevista com Joan Ray, Past President of Jane Austen Society of North America, in ―Discovering The Real Jane Austen/Descobrindo a Verdadeira Jane Austen‖, extra no DVD de ―Becoming Jane/Amor e Inocência” Dir.: Julian Jarold, 2007, 3min18‘. 3 ―I haven‘t any right to criticise books, and I don‘t do it except when I hate them. I often want to criticise Jane Austen, but her books madden me so that I can‘t conceal my frenzy from the reader; and therefore I have to stop

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A maior popularização de seus livros ocorreu após o lançamento da mencionada biografia de seu sobrinho James Edward, combinada com o aparecimento de coleções da obra completa em edições comentadas e ilustradas já no final do século XIX. Na academia, Austen deve seu status canônico a R. W. Chapman e suas edições publicadas pela Universidade de Oxford, e a obras críticas importantes como a de Mary Lascelles e de F. R. Leavis. Após 1970, os estudos da obra de Austen ganharam novas abordagens a partir do movimento feminista, curiosamente ao mesmo tempo em que seus romances se consolidavam no gosto popular como histórias românticas ingênuas e ganhavam maior espaço no cinema e na televisão. Trata-se de uma concepção dual que perdura até hoje, sendo que os livros de Jane Austen parecem ser atualmente garantia de grandes bilheterias e de indicações ao Oscar. Toda essa produção cinematográfica alimenta a popularidade dos seus livros e pode ser responsável pelo enorme crescimento da produção de continuações e variações a partir de 1990. É interessante notar que essa popularidade de Austen é muito maior entre mulheres. Isso pode ser observado tanto pelo lado da produção, já que a esmagadora maioria das continuações de O&P levantadas para este trabalho foi escrita por mulheres, como pelo lado do consumo, pois se tomarmos um dos principais sites de ―janeites‖, o ―The Republic of Pemberley‖, dos 487 usuários registrados, apenas 34 são homens, menos de 7%4. Esta pesquisa, então, necessariamente passará por uma reflexão de gênero (gender) para entender os discursos construídos a respeito do casamento, do homem perfeito, da vida sexual perfeita, etc., que são voltados para mulheres e que estão presentes nessas continuações. Será importante também refletir sobre o gênero (genre) do romance, especificamente do romance inglês e da chamada ―domestic novel‖, que poderia ser traduzida como um tipo de romance inocente produzido para a leitura e instrução das mulheres de boa moral nos séculos XVIII e XIX, e que foi constantemente associado à obra de Austen. Além disso, a popularidade do gênero do romance em si precisa ser considerada como um dos incentivadores para a produção de continuações, uma prática que já era relativamente comum até na época da autora. Em relação às obras de Austen, a primeira continuação foi escrita em 1913 por Sybil Brinton, com o título de Old friends and New Fancies, mas com certeza a grande popularidade dessas histórias se deu a partir da última década do século XX.

every time I begin. Every time I read Pride and Prejudice, I want to dig her up and hit her over the skull with her own shin-bone‖. Carta de 13 de setembro de 1898 a Joseph Twichell. In LITTLEWOOD, 1998, vol.1, p.435. 4 Informação fornecida pelo comitê administrativo do site em 20/03/2015. Entre muitas outras ―atrações‖, o site abriga grupos de discussão sobre diversos temas, sendo que, no grupo a respeito de O&P, havia 55 usuários participando do debate, dos quais 45 eram mulheres (82%) e 10, homens (18%). http://pemberley.com/forum/list.php?4 Acessado em 20/03/2015.

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As diferentes abordagens utilizadas por essas continuações devem ser esclarecidas. Seria uma tarefa condenada ao fracasso tentar fazer um levantamento de todas as continuações dos romances de Jane Austen disponíveis, pela sua grande quantidade e pela sua variedade, mas é possível tentar agrupá-las em algumas categorias para facilitar o entedimento do universo que estamos analisando. A verdade é que uso o termo ―continuações‖ de forma um tanto generalizante, pois somente uma parte dos romances produzidos a partir da obra de Austen são continuações de fato, isto é, histórias que se passam após o fim do romance original. Estas podem ser tanto sobre as personagens principais como sobre as próximas gerações, e é muito comum encontrar histórias sobre as filhas e filhos de Mr. e Mrs. Darcy, ou até mesmo sobre algum parente distante. Temos, assim, a primeira categoria existente, cujo nome em inglês, ―sequel‖, ajuda a entender dois outros tipos: o ―prequel‖ (em português, o termo ―prequela vem ganhando força), que são romances que narram histórias que ocorrem antes do original, e o ―midquel‖, que narram histórias que se passam durante o original, geralmente tentando preencher alguns saltos temporais ou mostrar o que aconteceu com uma personagem específica que não aparece na história por um determinado tempo. ―Midquels‖ são bem comuns entre aqueles romances que querem narrar Orgulho e Preconceito pelo ponto de vista de Mr. Darcy, o que nos leva à segunda categoria, as chamadas ―retellings‖, romances que narram a mesma história a partir do olhar de outras personagens. No caso de O&P, obviamente Mr. Darcy é a escolha preferida, mas é possível encontrar também personagens secundárias sendo contempladas nesse tipo de abordagem. O caso mais curioso talvez seja Longbourn, de Jo Baker, o qual narra a vida de uma empregada doméstica da casa de Elizabeth Bennet entremeada com a história de O&P, na qual Sarah, a personagem principal, atua como uma testemunha distante. Um tipo outro tipo de categoria muito popular é a chamada ―variation‖ (variação). Aqui, geralmente o início da história original é mantido, mas o seu desenrolar é alterado a partir de um determinado ponto em um tipo de lógica baseado na pergunta ―what if?‖. E se Mr. Darcy não tivesse pedido Elizabeth em casamento pela primeira vez em Hunsford? E se ele tivesse pedido e ela tivesse aceitado? E se ela tivesse negado como no original mas nunca tivesse recebido a carta de Darcy em que ele explica seus motivos? E se eles não tivessem se reencontrado em Pemberley? Todas essas perguntas são base para romances que alteram o desenvolvimento da trama original mas nunca alteram o seu final, a união perfeita de Darcy e Elizabeth. Todas as categorias acima podem ser divididas em dois tipos mais gerais, aquelas que se atém ao universo de um só romance – no caso, O&P – ou aquelas em que personagens

17 dos outros romances de Austen fazem desde pequenas aparições até mesmo passam a dividir o espaço central da história, chamadas de ―mixed sequels‖. A primeira continuação para a obra de Austen, Old Friends and New Fancies, de Sybil Brinton, é uma ―mixed sequel‖ que traz basicamente todas as heroínas dos seis romances publicados. Ocasionalmente é possível encontrar também aparições de personagens de outros autores, como Charlote Brontë (o fato de que seus estilos eram totalmente diferentes, e até mesmo de que Brontë não apreciava os romances de Austen, é totalmente ignorado, e isso só mostra como seu romance mais famoso, Jane Eyre, também vem sendo absorvido pela leitura ultrarromântica atual). Essa mistura de autores, contudo, ainda não é o tipo mais curioso de ―mixed sequel‖ que encontramos. Em um subgênero comumente chamado de ―mash-up‖, cujas origens estão localizadas nas fan fictions online, O&P vem sendo misturado com várias outras personagens e gêneros literários bem mais estranhos ao mundo de Austen. É o caso dos romances que incluem vampiros, zumbis, lobisomens, alienígenas e todos os outros monstros disponíveis e populares no momento. Nem a própria Austen escapou ilesa. Em Jane Bites Back, de Michael Ford, encontramos Jane Austen ainda viva nos dias atuais tentando se tornar uma autora de sucesso e competindo com Lord Byron e Charlote Brontë, que, surpresa, também são vampiros de vida eterna. É muito comum, então, que ―sequels‖ ou ―retellings‖ sejam adaptados para incorporarem outros gêneros literários, desde histórias de detetives, em que Elizabeth e Darcy precisam resolver casos de assassinatos, até mesmo romances pornográficos. Este último também pode variar desde pequenas inserções mais detalhadas sobre o que ocorria no quarto do casal até mesmo ao outro extremo em que todas as personagens se veem envolvidas em relações sexuais com todas as outras em uma orgia coletiva extremamente explícita. Fifty Shades of Mr. Darcy, de William Thwackery, é uma paródia tanto do best-seller de E. L. James quanto dessa forma de continuação que vem se tornando cada vez mais comum, em especial no mundo online da fan fiction. Aproveito também para mencionar outro tipo de continuação nascida nas comunidades online, a ―Slash fiction‖, na qual as personagens principais são reescritas em aventuras homoeróticas, seja no período regencial como na contemporaneidade. O romance Pride and Modern Prejudice, de A. J. Michaels, por exemplo, traz Mr. Darcy como o CEO de uma empresa de sucesso que se apaixona pelo jovem Liam, estudante universitário. Por fim, temos também as ―Modern Retellings‖, uma outra categoria que abrange algumas continuações ―queer‖ mas que, na verdade, ganha o seu sucesso a partir da transformação de Darcy e Elizabeth em pessoas do nosso tempo, tornando a sua história de

18 amor algo ainda mais possìvel de ser ―vivenciada‖ pelos leitores pois eles se tornam pessoas comuns como qualquer um de nós. O apelo desse tipo de continuação é tão grande que achou seu caminho para o cinema, como pode ser visto na adaptação de Bollywood Bride and Prejudice (2004), ou na recente adaptação para o seriado veiculado no Youtube The Lizzie Bennet Diaries (2012/2013). Nós temos, portanto, um universo gigante de continuações e variações que levaram os protagonistas de O&P aos cenários mais inusitados, de piratas a reality shows, sempre em busca de seu final feliz, e o resultado, como afirmam Debra Bourdeau e Elizabeth Kraft, torna-se interessante não por ele mesmo, mas pelo o que pode nos ensinar sobre práticas e valores culturais do nosso século (Bourdeau e Kraft, 2007, p.17). Ou seja, o interesse dos leitores por esse tipo de obra é histórico (tanto pela obra de Austen como pelas suas continuações), e, portanto, tem algo a dizer mais sobre eles próprios do que sobre os romances originais. Dessa forma, as continuações e variações que serão estudadas nesta pesquisa devem ser analisadas como um produto da contemporaneidade que pode nos ajudar a entender quem nós somos hoje. Esta tese, portanto, tem o objetivo de refletir sobre a nossa sociedade a partir das fantasias que ela constrói sobre uma obra de duzentos anos atrás.

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Alguns aspectos práticos: apesar de existirem diversas comunidades online de fãs de Jane Austen em que eles podem publicar livremente suas histórias (chamadas de fan fiction, ou fanfic), para esta pesquisa era necessário um recorte e eu me restringi, então, apenas às continuações e variações que foram publicadas em livro – em papel ou formato eletrônico (ebook). O principal local de acesso a essas continuações é a livraria online Amazon, a qual disponibiliza esses livros em ambos os formatos a preços muito baixos, o que contribui para a sua popularização. Além disso, o site tem um espaço para que os leitores possam comentar suas opiniões sobre as continuações que leram, o que também se mostrou uma fonte de informações importante. Nesse site, uma pesquisa mais genérica com o termo ―Jane Austen Sequels‖ produz cerca de 580 resultados5. Até o fim desta pesquisa, consegui ler 125 dessas obras, buscando variar as categorias (continuações, variações, modern retellings, mash-up, etc), o que considero uma amostra significativa para este estudo. Além disso, procurei ler tanto livros

5 https://www.amazon.com/s/ref=nb_sb_noss_1?url=search-alias%3Daps&field-keywords=jane+austen+sequels 01/11/2016.

19 que receberam notas altas nas avaliações dos leitores quanto aqueles que foram criticados, para poder entender quais eram os aspectos apreciados pelos fãs e traçar uma tendência que foi depois analisada nesta tese. Em termos de estrutura, esta tese está dividida em três capítulos: o primeiro aborda a construção da imagem de Jane Austen ao longo de dois séculos para compará-la com a imagem da autora divulgada pelos fãs em obras fictícias em que a própria Austen é personagem. O segundo capítulo discute as origens e características do gênero do romance para tentar entender de que forma a produção de continuações está atrelada a esse gênero como resultado de suas fronteiras tênues entre realidade e fantasia; depois, ainda neste capítulo, será trabalhada a ideologia do sentimentalismo do século XVIII, a resposta de Austen a ela, e como as continuações dos fãs recuperam as suas convenções literárias. Por fim, o terceiro capítulo abordará, na primeira parte, a forma como as duas personagens principais de Orgulho e Preconceito – Elizabeth Bennet e Mr. Darcy – são modificadas para atender ao gosto dos fãs por histórias de amor. Na segunda parte, analiso algumas exceções à tendência analisada, tanto positivas quanto negativas, a partir da relação entre essas continuações e as convenções do universo da fanfic, o qual, ainda que não seja meu objeto específico de estudo, exerce uma forte influência sobre ele.

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Capítulo 1 – A Trajetória de uma Autora

O primeiro capítulo desta tese começa pelo fim. Não pela conclusão, mas pelo último assunto com o qual me deparei ao longo desta pesquisa de doutorado e que, agora, acredito ser essencial para iniciar a discussão proposta. O tema deste capítulo é a própria Jane Austen. Filmes recentes como Becoming Jane e Miss Austen’s Regrets e livros como The Man Who Loved Jane Austen e Jane by the Sea colocam uma questão que precisa ser tratada antes da análise do fenômeno das continuações dos romances de Jane Austen, já que os títulos que mencionei são apenas alguns exemplos de como a própria autora foi transformada em uma personagem que compete pela atenção do público com Elizabeth Bennet e Mr. Darcy e recebe o mesmo tipo de tratamento destinado a eles. Assim, este capítulo vai se concentrar em quem é essa personagem ―Jane‖, como ela foi construìda e como ela aparece em romances escritos por seus fãs e em filmes produzidos a partir deles. Para essa discussão, é necessário partir da ideia de que a própria figura da autora, a ―Jane Austen‖, também é uma construção. No momento seguinte após a sua morte em 1817, Jane Austen desapareceu e ficamos apenas com os relatos de seus irmãos e sobrinhos, e, como veremos a seguir, a posse pelo direito de afirmar ―eu sei quem foi A VERDADEIRA Jane Austen‖ passou a ser uma questão delicada para a família e uma certa contenda entre seus descendentes. Essa disputa se caracterizou pela difusão de imagens bem diferentes da autora, que se alternaram no imaginário popular com a grande difusão de sua obra e hoje estão combinadas nos filmes e romances sobre ―Jane‖, ora pendendo um pouco mais para um lado, ora para outro. Muito pouco é sabido da vida de Jane Austen. O registro material sobre ela é curiosamente escasso, mesmo sendo uma escritora – não mantinha diários, e seus parentes não se preocuparam em salvar suas cartas, muito pelo contrário. Claudia Johnson compara Austen a Shakespeare em termos de biografia: pouco sabemos, poucos fatos foram registrados, e a ausência de manuscritos originais de suas obras fazem com que ambos sejam instâncias preeminentes da tradição literária inglesa incrivelmente remotas (Johnson, 2012, p.2). As semelhanças não param aí. Como Shakespeare, Jane Austen está inexoravelmente envolta em uma aura, em uma lenda, da qual parece ser impossível destacá-la. Para Johnson, as lendas (no plural) que envolvem Jane Austen devem ser analisadas da mesma forma como críticos abordam hoje o processo de inserção de Shakespeare no mais alto cânone, não como um dado acabado mas como um processo histórico que se desenrolou através de muitas mudanças e que carregou em si diferentes significados culturais ao longo do tempo (Johnson, 2012, p.13).

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A imagem da autora se torna assim um assunto muito delicado por influenciar diretamente a forma como sua obra é vista ao longo do tempo, pois, como nota Katie Halsey, leitores não partem somente do texto para formar suas impressões: ninguém lê em um ―vácuo cultural‖, e a nossa leitura nunca é livre de influências de estruturas sociais, políticas e econômicas tanto atuais quanto do passado (Halsey, 2013, p.9). É por isso que os romances de Jane Austen, apenas seis em número, são muitos na prática. A autora já foi reivindicada pelo cânone tradicional e pelo movimento feminista, é a inventora do romance moderno e a mãe dos romances românticos baratos vendidos nas bancas de jornais, adorada por um exército de fãs que frequentam as convenções das ―Jane Austen Society‖ ao redor do mundo vestidos em trajes regenciais, e admirada dentro das instituições acadêmicas mais tradicionais. Já é um fato aceito pelos crìticos de sua obra que ―Jane Austen‖, ao longo desses dois séculos, veio a representar um grande número de posições diferentes e, não raro, opostas (Halsey, 2013, p.5), como enumera Katie Halsey: Austen pertence tanto a uma tradição de escritoras mulheres quanto ao oposto cânone patriarcal. (…) Ela é usada para representar saúde e integridade em comparação à ―sensation fiction‖ dos anos de 1860, para simbolizar uma identidade inglesa durante a década de 1920, para definir a perfeição de estilo, para tipificar (ainda que de forma anacrônica) um ideal vitoriano de domesticidade (...). Ela é a escritora que recebe reconhecimento da crítica e uma grande popularidade, reivindicada pela cultura da elite, da média e baixa classe da mesma forma, seus romances foram adaptados para televisão, Hollywood e Bollywood, ganhando as pesquisas como a escritora britânica preferida e ainda assim admirada dentro da academia. Seus seis romances foram submetidos à análise de todas as correntes e escolas de crítica literária. (HALSEY, 2013, p.6, tradução minha)

Tentar analisar Austen sem levar em consideração todas as ―Jane Austens‖ que existem parece ser, primeiro, um erro, e segundo, impossível. Concordo com Halsey quando ela afirma que se tentarmos pensar sobre o passado de Austen, nós percebemos que mitos, boatos e acasos históricos sobre a autora afetam o nosso julgamento literário, o que significa que estamos pensando através das percepções de outras pessoas, como se nossas opiniões fossem assombradas por aquelas dos leitores passados (Halsey, 2013, p. 212). Parece ser muito fácil para os críticos apontar essa subjetividade nos outros, nos fãs, nos não-iniciados, e não reconhecê-la em si mesmos. É uma atitude arrogante, como nos lembra Roger Sales, de acreditar que aqueles que ensinam ou estudam Jane Austen são intocados por esse processo cultural (Sales, 1996, p.26). A partir deste ponto de vista, este capìtulo abordará diversas ―Janes‖ que considerei relevantes para entender o fenômeno de sua popularidade hoje, a saber: as Janes de sua família, as Janes da academia, e as Janes dos fãs. Todas são necessárias para analisarmos

22 os romances e filmes atuais que trazem a autora como sua personagem principal. Afinal, citando um ensaio de Lionel Trilling de 1957, ―é possível dizer a respeito de Jane Austen, e talvez sobre nenhum outro escritor, que as opiniões que são proferidas sobre sua obra são quase tão interessantes, e quase tão importantes para serem analisadas, do que a sua obra em si‖ (Trilling, 2009, p.188, tradução minha).

Parte 1. Austens Múltiplas

1.1 – Uma história de família

Jane Austen morreu em Winchester no dia 18 de julho de 1817. Apesar da causa de sua morte ainda ser um tópico debatido – hipóteses variam desde câncer de mama, leucemia e tuberculose a Doença de Addison, de origem autoimune – certo é que Austen conviveu com os sintomas e o lento declínio da sua saúde por mais de um ano, e seus últimos meses, independente de qual doença tenha lhe tirado a vida, foram realmente de muito sofrimento. Contudo, em uma carta à sobrinha Fanny Knight em 20 de julho, Cassandra Austen relata as últimas horas de sua irmã e inicia o processo de reconstrução de Jane Austen, inserindo referências à doença mas insistindo na ausência de dor, na serenidade e resiliência da paciente e seu apego à fé: She felt herself to be dying about half an hour before she became tranquil & aparently unconscious. During that half hour was her struggle, poor Soul! she said she could not tell us what she suffered, tho she complained of little fixed pain. When I asked her if there was any thing she wanted, her answer was she wanted nothing but death & some of her words were ‗God grant me patience, Pray for me Oh Pray for me‘. (…) I cannot say how soon afterwards she was seized again with the same faintness, which was followed by the sufferings she could not describe, Mr. Lyford had been sent for, had applied something to give her ease & she was in a state of quiet insensibility by seven oclock at the latest. From that time till half past four when she ceased to breathe, she scarcely moved a limb, so that we have every reason to think, with gratitude to the Almighty, that her sufferings were over. (...) There was nothing convulsed or which gave the idea of pain in her look, on the contrary, but for the continual motion of the head, she gave me the idea of a beautiful statue, & even now in her coffin, there is such a sweet serene air over her countenance as is quite pleasant to contemplate.6 (Letters7, pp.360-361)

6 ―Ela mesma sentiu que estava morrendo cerca de meia hora antes de passar para um estado tranquilo e aparentemente inconsciente. Durante aquela meia hora qual não foi sua luta, pobre alma! Ela disse que não conseguia dizer do que sofria, apesar de que ela reclamou pouco de dor. Quando eu lhe perguntei se havia qualquer coisa ela queria, a sua resposta foi que queria apenas morrer e algumas de suas palavras foram ―Oh Deus, me dê paciência, reze por mim, oh reze por mim‖. (…) Eu não sei dizer quando depois disso ela foi tomada novamente pela mesma fraqueza, a qual foi seguida pelos sofrimentos que não conseguia descrever, tínhamos chamado o Mr. Lyford e ele tinha lhe dado alguma coisa para deixá-la mais confortável e ela permaneceu em um estado de total insensibilidade até às sete horas no máximo. Desse momento até às quatro e meia, quando deixou de respirar, ela não moveu sequer um membro, então temos razão para acreditar, com

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Cassandra insiste em passar à sobrinha uma imagem de uma morte tranquila. Segundo Park Honan, era prática comum entre os médicos da época de assegurar às mulheres das famílias de enfermos que seu parente tinha sentido pouca ou nenhuma dor na hora da morte (Honan, 1987, p.405), talvez mais uma prática condescendente de proteger o ―sexo frágil‖ de grandes emoções, como também na proibição de que participassem de funerais (Cassandra não viu sua irmã ser enterrada, apenas acompanhou pela janela a procissão que levou o caixão de sua casa até perdê-lo de vista). Além disso, muito provavelmente Mr. Lyford deu a Jane Austen uma boa dose de láudano, uma droga muito forte à base de ópio usada para controle da dor. O resultado foi que Austen passou o resto de suas horas praticamente desacordada e anestesiada. Cassandra, no entanto, acompanhou todo o período de convalescência da irmã e não poderia ignorar o sofrimento que assistira e que aparece aqui e ali em sua carta. A dúvida permanece se ela realmente acreditava na morte pacífica de Jane Austen, assegurada por Lyford, ou se estava apenas tentando tranquilizar uma sobrinha querida e que, diz a tradição familiar, era a preferida da sua ―querida tia Jane‖. De qualquer forma, sua carta parece ser a primeira instância (ainda privada) da transformação de Austen de uma pessoa real em uma imagem idealizada de devoção e serenidade. Enquanto Cassandra enviava cartas aos seus familiares com a triste notícia, outro irmão, Henry Austen, iniciava por sua vez outro processo de divulgação dessa mesma imagem de Jane Austen. Henry teria sido o responsável pelos obituários publicados nas semanas seguintes em diversos jornais, como Hampshire Chronicle, Salisbury and Winchester Journal, London Chronicle e Gentleman’s Magazine. Em todos esses obituários, Austen foi publicamente identificada pela primeira vez como a ―Autora de Emma, Mansfield Park, Orgulho e Preconceito e Razão e Sensibilidade‖ (Honan, 1987, p.406, tradução minha). Nenhum de seus livros havia sido publicado antes com o seu nome, Austen insistindo no anonimato – apesar de saber que Henry já havia divulgado seu segredo informalmente em ocasiões anteriores. A partir de sua morte, porém, a autora passou a ter seu nome associado à sua obra oficialmente. De forma contraditória a essa atitude de Henry Austen de divulgar sua irmã-autora, temos o epitáfio escrito por ele para o túmulo de Jane Austen na catedral de Winchester:

gratidão ao Todo-Poderoso, que os seus sofrimentos tinham acabado. (…) Não havia nada contraìdo ou que me desse a impressão de que ela sentia dor, ao contrário, a não ser pelo movimento contínuo de sua cabeça, ela me passava a imagem de uma bela estátua, e mesmo agora em seu caixão, há um ar tão sereno sobre seu semblante que é prazeroso admirar‖ (Tradução minha). 7 A grafia de todas as cartas citadas segue os originais conforme a edição de Deirdre Le Faye, portanto ocorrerão discrepâncias com as normas modernas de gramática e ortografia inglesas.

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In Memory of JANE AUSTEN, youngest daughter of the late Revd GEORGE AUSTEN, formerly Rector of Steventon in this County. She departed this Life on the 18th of July 1817, aged 41, after a long illness supported with the patience and the hopes of a Christian. The benevolence of her heart, the sweetness of her temper, and the extraordinary endowments of her mind obtained the regard of all who knew her and the warmest love of her intimate connections. Their grief is in proportion to their affection, they know their loss to be irreparable, but in their deepest affliction they are consoled by a firm though humble hope that her charity, devotion, faith and purity have rendered her soul acceptable in the sight of her REDEEMER. (itálicos meus)

Fig. 1 – Túmulo de Jane Austen8

O primeiro ponto que se destaca nessa homenagem de Henry é a ausência de qualquer menção à obra de Austen, citando apenas ―the extraordinary endowments of her mind‖, que poderia ser interpretado apenas como ―inteligente‖ por visitantes desavisados. Ao contrário, o texto se esforça por fixar a imagem de Jane Austen como uma pessoa devota, pura, caridosa, e que suportou com paciência a sua doença. Poderíamos até dizer que Henry de alguma forma posicionou sua versão para estar de acordo com o relato de Cassandra registrado naquela carta à Fanny Knight. De que forma podemos interpretar esse epitáfio? Como nota Claudia Johnson, simples decoro religioso não pode ser suficiente para explicar por que Henry decidiu omitir aqui o que ele fez questão de alardear em todos os outros lugares (Johnson, 2012, p.26). Seu texto parece um esforço em assegurar que todos reconheçam as virtudes pessoais de Jane Austen, já que mulheres escritoras ainda não eram vistas com bons olhos nessa época. A rápida menção aos ―extraordinários dotes de sua mente‖ garantem que, mesmo de importância significativa, a Jane Austen escritora não era a sua principal característica pessoal, e que esta perdia importância em relação a outros aspectos – religiosidade, doçura, benevolência, etc. O epitáfio, assim, não nega o talento de Austen, apenas o enquadra em seu devido lugar. Ao mesmo tempo, é muito provável que Henry também tenha sido o responsável por avisar o escritor John Britton de que Jane Austen havia acabado de ser enterrada na catedral, enquanto ele ainda estava preparando para publicação o seu guia History and

8 ―Em memória de JANE AUSTEN, filha mais nova do falecido Reverendo GEORGE AUSTEN, pároco aposentado de Steventon nesse condado. Ela deixou esta vida no dia 18 de julho de 1817, com 41 anos, após uma longa doença suportada com a paciência e a esperança de um cristão. A benevolência de seu coração, a doçura de seu temperamento, e os extraordinários dotes de sua mente obtiveram o maior carinho de todos aqueles que a conheceram e o mais tenro amor de suas conexões íntimas. O luto deles é em proporção a afeição que sentiam, eles sabem que se trata de uma perda irreparável, mas na sua dor profunda eles se consolam pela esperança firme, ainda que humilde, que a sua caridade, devoção, fé e pureza tornaram a alma dela aceitável frente à visão de seu REDENTOR‖ (tradução minha).

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Antiqueties of the Cathedral Church of Winchester, que foi lançado ainda em 1817. Como observa Claudia Johnson, Henry assegurou, assim, que Austen se tornasse um ponto turístico no mesmo ano de sua morte (Johnson, 2012, p.28) – mas talvez nem ele pudesse imaginar que, quase dois séculos depois, milhares de turistas procurariam essa catedral todo ano em busca apenas do túmulo de sua irmã. Além disso, Johnson nota também que a imagem da família de Austen não tinha nada a perder com a sua fama, ainda que mínima, já que era uma família que estava na beira da chamada aristocracia inglesa, com antecedentes nobres, porém de pouco sucesso financeiro. O epitáfio de Henry certifica não só o valor extraordinário de Austen, mas também o fato de que sua família tinha consciência dele (Johnson, 2012, p.28): Ao anunciar tão rapidamente o monumento de Austen na Catedral de Winchester, ele estava garantindo que o capital cultural dela aumentasse, e o seu próprio de forma conjunta, (...) de forma que o que Jane Austen perde em especificidade em seu caminho à santificação, sua família ganhou em celebridade. A inscrição, em outras palavras, situa ao mesmo tempo Austen em seu círculo familiar e usa Austen para situar a sua família. (JOHNSON, 2012, p.29, tradução minha)

Em 1870, a família de Austen faz uma nova adição ao seu monumento na catedral. O sobrinho James Edward Austen-Leigh (filho do irmão mais velho de Austen, James, e por isso visto como o chefe da família) decide instalar uma placa na parede ao lado do túmulo, financiada pelos lucros obtidos com a pequena biografia sobre ela que ele lançou naquele mesmo ano.

Jane Austen. Known to many by her writings, endeared to her family by the varied charms of her character and ennobled by her Christian faith and piety was born at Steventon in the County of Hants, December 16 1775 and buried in the Cathedral July 18 1817. "She openeth her mouth with wisdom and in her tongue is the law of kindness".

Fig. 2 – Placa de bronze9

Ao contrário do epitáfio, a placa de bronze de James Edward indica que Jane Austen era uma escritora e que através de sua obra ela poderia ser conhecida por muitos. O gênero não identificado de seus ―escritos‖ pode sugerir em parte uma relutância em admitir que ela escrevia romances. Se poesia ou textos morais, teria James Edward deixado de mencioná-los? Ainda assim, a placa não difere muito do túmulo: Austen continua uma cristã

9 ―Jane Austen. Conhecida por muitos por seus escritos, querida por sua famìlia pelos variados charmes de sua personalidade e enobrecida pela sua fé cristã e piedade, nasceu em Steventon, no condado de Hampshire, em 16 de dezembro de 1775 e foi enterrada na Catedral em 18 de julho de 1817. ‗Ela abre sua boca com sabedoria e em sua língua está a lei da bondade‘‖ (tradução minha).

26 exemplar, sábia e doce. A última citação ―Ela abre sua boca com sabedoria e em sua língua está a lei da bondade‖, parece também insistir em uma imagem de palavras inofensivas. Quando tratarmos da biografia escrita por James Edward mais à frente, vamos perceber como ele se esforçou por domesticar as palavras nem um pouco gentis de sua tia. Por fim, em 1900, a partir da iniciativa de admiradores, um conjunto de vitrais em homenagem à Jane Austen foi instalado na catedral logo acima de seu túmulo, custeado através de uma campanha pública de doações na Inglaterra e nos EUA. Em um pouco mais de um ano a quantia necessária para encomendar os vitrais fora alcançada pela contribuição de familiares, literatos e fãs em geral, e o resultado é a imagem abaixo:

Fig. 3 – Vitrais na Catedral de Winchester

O que há nos vitrais em relação à Jane Austen? Acima, a figura de St. Agostinho, que em inglês é comumente chamado de ―St. Austin‖ – talvez o projetista tenha achado a troca de uma vogal invocação suficiente. Abaixo, nos dois lados, o brasão da família Austen, finalmente consolidada em um lugar de honra. No centro do primeiro nível há São João segurando seu evangelho, com a frase em latim ―No princìpio era o verbo...‖, o que alguns acreditam ser uma referência muito distante à Austen escritora. Nas laterais, figuras bíblicas segurando trechos dos Salmos, indicando a sua religiosidade. Apesar de os vitrais terem sido

27 encomendados sob o argumento de que o túmulo e a placa de bronze não eram monumentos suficientes para uma figura tão importante da Inglaterra – e que adquiriu essa importância via seus romances publicados – a Jane Austen iluminada nessas janelas não é a escritora, mas a ―Saint Jane‖. Isso está claro no anúncio da sua instalação publicado no Winchester Diocesan Chronicle, que afirma que o objetivo das figuras e dos textos utilizados é demonstrar o valor moral e de ensino religioso das obras da autora (Johnson, 2012, p.42). O redator dessa notícia com certeza não leu os romances e, apesar de essa imagem da obra de Austen ser absolutamente errônea, ironicamente, como nota Claudia Johnson, os vitrais se relacionam inconscientemente com o tipo de admiração estabelecido em torno da figura de Austen naquele momento, que se refere à autora através de um vocabulário hagiográfico, e ilustram a etapa final da apoteose de Jane Austen (Johnson, 2012, p.42).

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No momento da sua morte, Austen possuía dois manuscritos prontos que ainda não tinham sido enviados para publicação. O primeiro havia sido escrito quase vinte anos antes como uma paródia aos romances góticos. Na época chamado de ―Susan‖, Austen conseguira vender o manuscrito a um editor, Crosby & Co., mas que nunca publicou o livro, frustrando muito a autora. Depois de treze anos, Austen conseguiu, em 1816, comprar ―Susan‖ de volta pelo mesmo preço que havia recebido por ele, e estava tentando prepará-lo para publicação com o tìtulo provisório de ―Catherine‖. A última menção a esse manuscrito foi feito em uma carta à sobrinha Fanny Knight em 13 de março de 1817, no qual ela diz: ―Miss Catherine is put upon the shelf for the present, and I do not know that she will ever come out; but I have a something ready for publication, which may, perhaps, appear about a twelvemonth hence‖ (Letters, p.348)10. O segundo manuscrito mencionado na carta era ―The Elliots‖, um romance que Austen finalizara meses antes e que, por ainda não ter sido enviado ao seu editor, provavelmente passaria por novas revisões. Após a morte da autora, Cassandra e Henry Austen – a primeira, na qualidade de herdeira de todos os manuscritos da irmã, e o segundo como seu agente – decidiram enviar ambos os manuscritos para serem publicados postumamente com novos títulos escolhidos por eles. Assim, no final de dezembro de 1817 (1818 na capa) saiu a edição conjunta de Northanger Abbey (―Catherine‖) e Persuasão (―The Elliots‖), os dois últimos romances de Jane Austen a serem publicados. Também nessa edição

10 ―Miss Catherine está na prateleira por ora, e eu não sei quando ela vai sair de lá; mas eu tenho algo pronto para publicação, o qual pode, talvez, aparecer daqui a um ano‖ (tradução minha).

28 havia um prefácio de Henry Austen apresentando finalmente sua irmã para seu público leitor, o Biographical Notice of the Author. No processo de construção da imagem de Jane Austen, esse pequeno resumo da sua vida pode ser considerado a pedra fundamental. ―Short and easy will be the task of the mere biographer. A life of usefulness, literature, and religion, was not by any means a life of event‖ (BN, p.137)11. Essa abertura é extraordinária. A vida de Jane Austen, segundo seu irmão, foi livre de eventos memoráveis. Ela não se casou, não teve filhos. Não foi estudar em universidades, não foi combater Napoleão. Não obteve uma profissão. Ela até escreveu uns romances e conseguiu publicá-los, mas nem isso parece ser importante o suficiente. Jane Austen não teve uma vida interessante, teria apenas assistido aos anos desfilarem na sua frente enquanto se dedicava às tarefas domésticas (―usefulness‖) e à religião. A contradição entre o que afirma e onde afirma parecem ter escapado a Henry – se os romances não fossem importantes, ele não estaria naquele momento escrevendo esse Biographical Notice para a publicação póstuma de dois deles. De qualquer forma, essa contradição escapou aos seus leitores também, e assim, como afirma Katie Halsey, a ideia de que Austen teve uma vida tranquila (as interpretações variam nos adjetivos – parada, monótona, pacífica, entediante?) passou a ser a base a partir da qual sua obra seria julgada no futuro, muitos críticos espantados com o conhecimento do mundo aparente nos romances apesar de sua autora ter vivido sempre ―confinada‖ ao interior da Inglaterra (Halsey, 2013, p.136). Se não há grandes eventos para narrar, a que se resume essa biografia então? Como afirma Claire Harman, era um pequeno problema descrever aquela vida sem acontecimentos marcantes, e Henry teve que recorrer à descrição das qualidades de sua irmã como uma mulher convencional e doméstica, alegre, sensível e benevolente, moderadamente compentente em música e desenho e (acima de tudo, acredito) satisfeita com tudo aquilo, feliz com a sua vida familiar (Harman, 2009, p.67). Henry também procura explicar como Jane Austen veio a ser uma escritora, fornecer detalhes de sua educação e personalidade para garantir que o público tenha a imagem ―correta‖ e respeitosa da autora. Em primeiro lugar, o papel da família, em especial do pai, Reverendo George Austen, teria sido essencial para a jovem Jane: ―Being not only a profound scholar, but possessing a most exquisite taste in every species of literature, it is not wonderful that his daughter Jane should, at a very early age, have become sensible to the charms of style, and enthusiastic in the cultivation of her

11 ―Curta e fácil será a tarefa do mero biógrafo. Uma vida de utilidade, literatura e religião não foi de nenhuma maneira uma vida de eventos‖ (tradução minha).

29 own language‖12 (BN, p.136). O gosto refinado pela literatura ―apropriada‖ foi ensinado a ela pelo pai, e o resultado foi que Jane Austen se tornou uma leitora de obras respeitadas pelo público e crìtica daquelas obras mais ―grosseiras‖: Her reading was very extensive in history and belles lettres; and her memory extremely tenacious. Her favourite moral writers were Johnson in prose, and Cowper in verse. It is difficult to say at what age she was not intimately acquainted with the merits and defects of the best essays and novels in the English language. [Samuel] Richardson's power of creating, and preserving the consistency of his characters (…) gratified the natural discrimination of her mind, whilst her taste secured her from the errors of his prolix style and tedious narrative. She did not rank any work of Fielding quite so high. Without the slightest affectation she recoiled from every thing gross. Neither nature, wit, nor humour, could make her amends for so very low a scale of morals.13 (BN, pp.139-140)

Henry Austen tem perfeita ciência de que as obras que ele listaria em seu prefácio como preferidas de Jane Austen teriam impacto direto na imagem que as pessoas fariam de sua irmã. Seguindo a lógica de que ―você é o que você lê‖, ele cita diretamente autores consagrados e indica claramente que sua irmã não apreciava o polêmico Henry Fielding. É importante também notar que ele insiste na sua formação mais ampla (―history and belles- lettres‖, o ensaìsta Samuel Johnson), já que não seria algo muito positivo que as pessoas pensassem que sua irmã lia apenas romances. A aptidão para apreciar boas obras também era reforçada pela capacidade de apreciar o belo, e Henry afirma que Austen era ―a warm and judicious admirer of landscape, both in nature and on canvass. At a very early age she was enamoured of Gilpin on the Picturesque14‖ (BN, p.140). Henry Austen escolhe ignorar, obviamente, os comentários irônicos de Austen em relação a essa moda do pitoresco presentes em mais de um romance, e espera que os leitores também não percebam essa contradição. O conceito chave em toda a sua descrição parece ser ―at a very early age‖. Henry Austen quer fazer com que enxerguemos Austen como uma jovem dotada de um talento natural, para a qual não foi necessário nenhum tipo de trabalho, ou de esforço, para que ela se

12 ―Sendo não apenas um estudioso profundo, mas possuindo um gosto ótimo para todos os tipos de literatura, não é de se espantar que sua filha Jane foi, desde uma idade muito tenra, sensível aos charmes de estilo e uma entusiasta no cultivo de sua própria lìngua‖ (tradução minha). 13 ―A sua leitura era extensiva em história e belles lettres, e sua memória extremamente tenaz. Seus escritores moralistas preferidos eram Johnson em prosa e Cowper em verso. É difícil dizer com qual idade ela não conhecia profundamente os méritos e defeitos dos melhores ensaios e romances de língua inglesa. O poder de criação de Richardson e a preservação da consistência de suas personagens (...) agradavam a discriminação natural de sua mente, enquanto o seu gosto a preservou dos erros de seu estilo prolixo e narrativa tediosa. Ela não valorizava nenhuma obra de Fielding. Sem nenhum tipo de afetação ela recuava frente a qualquer coisa baixa. Nem natureza, espìrito ou humor poderia atenuar tão baixa escala de moralidade‖ (tradução minha). 14 ―uma animada e sensata admiradora de paisagens, tanto na natureza quanto na tela. Desde cedo ela era enamorada por Gilpin sobre o Pitoresco‖ (tradução minha). William Gilpin é autor do livro Three Essays: on Picturesque Beauty; Picturesque Travel; and on Sketching Landscape (1792), o qual deu início a um novo conceito de estética em relação à admiração e pintura de paisagens na Inglaterra no fim do século XVIII. Seu livro tornou-se um ―guia de bom gosto‖ a viajantes sobre como analisar e o que considerar belo na paisagem natural da Inglaterra, influenciando não só a pintura mas também o paisagismo da época.

30 tornasse uma escritora, ao mesmo tempo em que, possuindo sem querer esse dom, seria um desperdício – e não algo condenável – se ela não tivesse feito bom uso dele. Embora relativamente frequente, e com importantes exemplos de escritoras renomadas na época, havia ainda uma condenação social em relação à ideia de uma mulher autora que Henry Austen parece querer mitigar. Ao insistir, por exemplo, que ―She became an authoress entirely from taste and inclination. Neither the hope of fame nor profit mixed with her early motives‖15 (BN, p.139), Henry procura justificar a escolha de sua irmã: seus gostos eram apropriados e refinados, seu talento era natural e não trabalhado, e sua modéstia a impedia de buscar fama e fortuna: It was with extreme difficulty that her friends, whose partiality she suspected whilst she honoured their judgement, could prevail on her to publish her first work. Nay, so persuaded was she that its sale would not repay the expense of publication, that she actually made a reserve from her very moderate income to meet the expected loss. She could scarcely believe what she termed her great good fortune when "Sense and Sensibility" produced a clear profit of about £150. Few so gifted were so truly unpretending. She regarded the above sum as a prodigious recompense for that which had cost her nothing.16 (BN, p.139)

Ao mesmo tempo, Henry havia lido os romances de Austen e bem sabia o que eles continham. Sua pequena biografia pode ser também uma tentativa de suavizar o riso sarcástico que ela havia deixado registrado: If there be an opinion current in the world, that perfect placidity of temper is not reconcileable to the most lively imagination, and the keenest relish for wit, such an opinion will be rejected for ever by those who have had the happiness of knowing the authoress of the following works. Though the frailties, foibles, and follies of others could not escape her immediate detection, yet even on their vices did she never trust herself to comment with unkindness. The affectation of candour is not uncommon; but she had no affectation. Faultless herself, as nearly as human nature can be, she always sought, in the faults of others, something to excuse, to forgive or forget. Where extenuation was impossible, she had a sure refuge in silence. She never uttered either a hasty, a silly, or a severe expression. In short, her temper was as polished as her wit. Nor were her manners inferior to her temper. They were of the happiest kind. (BN, pp.139-140, grifos meus)17

15 ―Ela se tornou uma escritora totalmente a partir de seu gosto e inclinação. A esperança por fama ou lucro não se misturarou com seus primeiros motivos‖ (tradução minha). 16 ―Foi com muita dificuldade que seus amigos, aqueles cuja parcialidade ela suspeitava enquanto honrava seu julgamento, puderam convencê-la a publicar sua primeira obra. Não, tão persuadida estava que a venda não iria pagar as despesas de publicação que ela até fez uma reserva de sua pequena renda para essa perda esperada. Ela quase não podia acreditar o que chamou de enorme boa sorte quando Razão e Sensibilidade produziu um lucro limpo de cerca de 150 libras. Poucos tão dotados eram tão verdadeiramente despretensiosos. Ela considerava a soma acima uma recompensa prodigiosa para o que não tinha lhe custado nada‖ (tradução minha). 17 ―Se existe uma opinião corrente no mundo, de que a perfeita calma de temperamento não é compatìvel com a imaginação mais viva e o gosto mais apurado para o humor fino, tal opinião será rejeitada por todos aqueles que tiveram a felicidade de conhecer a autora das obras que seguem. Apesar de que as fragilidades, fraquezas e falhas dos outros não escapavam à sua detecção imediata, ainda assim ela nunca confiou em si mesma para comentar de forma rude sobre esses vícios. O falso candor não é incomum; mas ela não tinha nenhum tipo de afetação. Ela própria sem falhas, tanto quanto é possível para a natureza humana, sempre buscou, nas falhas dos outros, algo para explicar, perdoar ou esquecer. Quando extenuação era impossível, ela tinha um refúgio seguro no silêncio. Nunca disse nenhuma palavra apressada, boba ou severa. Em suma, seu temperamento era tão polido

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Henry tem total consciência de que os romances de Austen estão recheados de ―frailties, foibles and folies‖. E mais, que o narrador de Austen não se escusou em nenhuma oportunidade de comentar sobre essas qualidades tão interessantes das personagens com total ―unkindness‖. Os romances, porém, ele deixa claro, são frutos de uma ―most lively imagination‖ e não refletem a personalidade da autora, que era gentil, piedosa, afável. Harman percebe o nervosismo de Henry por trás dessas passagens em que tenta explicar como essa mulher refinada e pia poderia ter compreendido tão bem as questões mundanas para representá-las de forma tão acurada em sua ficção (Harman, 2009, p.67). Além da inocência de suas palavras, Henry continua insistindo no caráter amador que Austen atribuía aos seus romances, e a sua recusa em se ver como uma autora profissional: Most gratifying to her was the applause which from time to time reached her ears from those who were competent to discriminate. Still, in spite of such applause, so much did she shrink from notoriety, that no accumulation of fame would have induced her, had she lived, to affix her name to any productions of her pen. In the bosom of her own family she talked of them freely, thankful for praise, open to remark, and submissive to criticism. But in public she turned away from any allusion to the character of an authoress18. (BN, p.140)

Essa imagem só pode ser acreditada porque as cartas de Austen foram publicadas quase setenta anos depois, e mesmo assim é surpreendente o seu poder. Como nota Katie Halsey, mesmo o olhar mais rápido sobre as suas cartas demonstra como a representação de Henry era falsa, mas mesmo assim a sua negação do profissionalismo de Austen seria ecoada na recepção dos leitores por um longo período (Halsey, 2013, p.136). Não só na dos leitores, mas também críticos e acadêmicos, na época e muito tempo depois da publicação das cartas, continuaram a tomar como verdade literal essa imagem idealizada divulgada por Henry, cuja repercussão foi muito duradoura, pois foi somente nos últimos trinta anos, como aponta

quanto seu espìrito. E suas maneiras não eram inferiores ao seu temperamento. Elas eram do melhor tipo‖ (tradução minha). 18 ―Muito gratificante a ela era o aplauso que de vez em quando chegava aos seus ouvidos daqueles que eram competentes para discriminar. Mesmo assim, apesar de tal aplauso, ela se encolhia tanto da notoriedade que nenhum tipo de acumulação de fama teria-na induzido, se tivesse vivido mais, a colocar seu nome em qualquer produção de sua pena. No seio de sua própria família ela falava de sua obra livremente, grata pelos elogios, aberta a qualquer opinião e submissa à crítica. Mas em público ela se afastava de qualquer alusão ao caráter de uma autora‖ (tradução minha). Não se sabe ao certo por que Jane Austen insistiu tanto no anonimato. A julgar pelas suas obras, as convenções sociais da época eram motivo de riso e não de medo para a autora. Críticos se recusam em acreditar na versão de Henry Austen sobre a sua mítica modéstia tanto em não querer parecer como uma ―mulher profissional‖ quanto em não acreditar na qualidade do que escrevia. Sendo assim, muitos preferem a explicação mais prática, a de que Austen simplesmente não gostaria de envolver o seu nome e o da sua família em uma atividade vista com maus olhos, ainda que ela mesma não acreditasse nesse julgamento. Curiosamente, Henry foi o primeiro a quebrar o segredo e revelar a identidade da autora para alguns contatos já em 1813, muitos acreditam para sua própria promoção.

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Halsey, que os críticos literários reconheceram e entenderam a profundidade do comprometimento profissional de Austen com sua escrita (idem). Para finalizar sua pequena biografia, Henry escolhe a questão religiosa que tanto destacou no epitáfio da catedral de Winchester: ―One trait only remains to be touched on. It make all others unimportant. She was thoroughly religious and devout; fearful of giving offence to God, and incapable of feeling it towards any fellow creature. On serious subjects she was well-instructed, both by reading and meditation, and her opinions accorded strictly with those of our Established Church‖19 (BN, p.141). Esse é o detalhe mais importante, afirma, todos os outros desaparecem – ou devem desaparecer – frente à devoção da autora a Deus, e a sua submissão à teologia da Igreja Inglesa. Nem mesmo frente à morte seu amor a Ele e sua aceitação de Sua vontade fraquejou. Henry insiste em uma descrição semelhante à de Cassandra à sobrinha Fanny, que Jane Austen ―supported, during two months, all the varying pain, irksomeness, and tedium (…) with more than resignation, with a truly elastic cheerfulness. She retained her faculties, (…) her temper, and her affections, warm, clear, and unimpaired, to the last. She made a point of receiving the sacrament before excessive bodily weakness might have rendered her perception unequal to her wishes‖20 (BN, p.137). Ou seja, não existe possibilidade alguma de que os romances escritos por essa mulher tão pura e boa sejam nada além de histórias para o divertimento inocente de seus leitores. Fim. Essa foi a Jane Austen que a Inglaterra conheceu em 1818. Em 1832 Henry voltou à sua biografia a pedido do editor Richard Bentley, que detinha os direitos autorais de todos os romances de Austen na época, e havia decidido publicá-los novamente numa coleção maior intitulada ―Standard Novels‖. Não houve grandes alterações no texto, republicado como ―Memoir of Miss Austen‖, porém a inserção de algumas anedotas para reforçar o que já havia sido dito anteriormente nos indica a preocupação de Henry com a imagem de sua irmã. Ele retorna mais uma vez ao ponto de que ela nunca almejou nem fama nem dinheiro e argumenta: In proof of this, the following circumstance, otherwise unimportant, is stated. Miss Austen was on a visit in London soon after the publication of 'Mansfield Park': a nobleman, personally unknown to her, but who had good reasons for considering her to be the authoress of that work, was desirous of her joining a literary circle at his

19 ―Apenas mais um traço permanece para ser abordado. Ele torna todos os outros triviais. Ela era totalmente religiosa e devota, temente a Deus e incapaz de ofender qualquer criatura. Tinha uma boa instrução sobre assuntos sérios, tanto através de leitura quanto de reflexão, e suas opiniões estavam totalmente de acordo com aquelas da nossa Igreja‖ (tradução minha). 20 ―suportou, durante dois meses, todas as várias dores, desconforto e tédio com mais do que resignação, com uma alegria verdadeiramente elástica. Ela reteve suas faculdades, seu temperamento, e suas afeições calorosas, claras e inalteradas até o ultimo momento. Ela fez questão de receber o sacramento antes que a fraqueza excessiva de seu corpo pudesse tornar sua percepção inadequada para seus desejos‖ (tradução minha).

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house. He communicated his wish in the politest manner, through a mutual friend, adding, what his Lordship doubtless thought would be an irresistible inducement, that the celebrated Madame de Staël would be of the party. Miss Austen immediately declined the invitation. To her truly delicate mind such a display would have given pain instead of pleasure.21 (MMA, p.149)

Além da famosa modéstia, Austen agora é delicada, frágil. A exposição ao público como uma escritora profissional poderia ser danoso a sua mente, e conviver com outros colegas artistas estava fora de cogitação tamanho o seu decoro e vontade de fazer apenas o que era considerado apropriado. Como coloca Kathryn Sutherland, Henry adequou sua irmã a uma série de expectativas sociais através de uma construção na qual dominam os parâmetros para uma vida respeitável de uma mulher no século XIX, a saber: retiro social, domesticidade e princípios cristãos ortodoxos (Sutherland, 2005, p.236). Uma outra informação importante que será retomada mais tarde é que Bentley na época pediu a Henry e Cassandra alguma imagem de Jane Austen para acompanhar a nova edição dos romances. Nenhuma foi fornecida sob a justificativa de que ninguém nunca havia feito um retrato seu. Jane Austen não tinha mais rosto nesse momento, não tinha mais corpo. Como afirma Claudia Johnson, paradoxalmente o efeito de revelar a autora de Persuasão e Northanger Abbey e dos quatro romances anteriores foi exatamente o de escondê-la, pois a biografia de Henry torna Austen uma mulher comum, genérica, sem características que pudessem destacá-la da mulher média inglesa (Johnson, 2012, p.25). A ironia da atitude de Henry não passou despercebida pelos críticos atuais, pois, como nos lembra Sutherland, enquanto Austen estava viva, o orgulho de Henry fez com que fosse impossível a ele preservar o seu anonimato, mas depois da sua morte havia muito pouco sobre a sua irmã que ele estava disposto a revelar publicamente (Sutherland, 2005, p.236). E assim Austen desapareceu na multidão e nas prateleiras das livrarias, sendo lembrada aqui ou ali por alguns admiradores e mencionada raramente por críticos. Contudo, em 1870 ocorreria uma mudança drástica nesse cenário, cuja consequência vivemos até hoje: Jane Austen seria descoberta pelo grande público. A década de 1860 viu a morte do último irmão de Jane Austen, o Almirante Sir Francis Austen, que viveu até os impressionantes 91 anos. Com exceção de Austen, todos os irmãos tiveram uma vida relativamente longa, até mesmo George Austen, que sofria de algum tipo não registrado de doença ou deficiência mental/física e que, por isso, fora enviado para

21 ―Como prova disso, a circunstância a seguir, de outra forma desimportante, é apresentada. Miss Austen estava visitando Londres logo após a publicação de ‗Mansfield Park‘: um homem nobre, desconhecido por ela, mas que tinha boas razões para acreditar que ela era a autora daquele romance, desejava que ela se juntasse a um círculo literário em sua casa. Ele comunicou seu desejo da maneira mais educada, através de um amigo em comum, acrescentando, o que sua Senhoria sem dúvida acreditava ser um incentivo irresistível, que a celebrada Madame de Stäel estaria presente. Miss Austen imediatamente rejeitou o convite. Para a sua mente verdadeiramente delicada, tal aparição pública seria dolorosa e não um prazer‖ (tradução minha).

34 ser cuidado por outra família desde criança. De qualquer forma, nessa década a geração de Austen desapareceu, e os sobrinhos que chegaram a conhecê-la também estavam ficando velhos. Para os irmãos, a biografia de Henry Austen havia dado conta do que eles poderiam e queriam dizer sobre Jane Austen. Para os sobrinhos, porém, algo deveria ser feito em um momento em que o nome de Austen começava a ser citado com mais frequência, e citado de uma maneira que eles não consideravam correta (Harman, 2009, p.98). Sendo os últimos que de fato conviveram com a autora, caberia a eles resgatá-la de ―rumores falsos‖ que começavam a circular sobre Jane Austen, como a de que ela não gostava de crianças e de animais. Além disso, havia também o medo de que outras pessoas tentassem escrever uma nova biografia que fugisse ao controle da família (ou pelo menos de uma parte da família). Como afirma a sobrinha Caroline Austen em seu pequeno relato de 1867: A memoir of Miss Jane Austen has often been asked for, and strangers have declared themselves willing and desirous to undertake the task of writing it - and have wondered that the family should have refused to supply the necessary materials. But tho' none of the nearest relatives desired that the details of a very private and rather uneventful life should be laid before the world yet I think they would not willingly have had her memory die (…).22 (MAJA, p.165)

James Edward Austen-Leigh, Caroline Austen e Anna Lefroy, filhos de James Austen, o irmão mais velho de Jane Austen, foram os sobrinhos que decidiram embarcar na tarefa de eles mesmos produzirem uma nova biografia. Segundo Kathryn Sutherland (2005, p.73), essa decisão foi tomada no início da década de 1860, antes mesmo até da morte de Frank Austen (o relato de Anna Lefroy é de 1864), talvez em uma tentativa de preservar a imagem da tia escritora para as próximas gerações. Contudo, muito provavelmente outras questões estavam em jogo naquele momento que tornou necessária e urgente essa tarefa, como podemos perceber em uma carta de Caroline para James Edward: ―I am very glad dear Edward that you have applied your-self to the settlement of this vexed question between the Austens and the Public. I am sure you will do justice to what there is – but I feel it must be a difficult task to dig up the materials, so carefully have they been buried out of our sight by the past generation‖23 (Memoir, p.183).

22 ―Um relato sobre Miss Jane Austen é frequentemente pedido, e desconhecidos têm declarado sua vontade e disponibilidade para tomar a tarefa de escrevê-lo – e têm estranhado por que a família se recusa a fornecer os materiais necessários. Mas apesar de que nenhum de seus parentes mais próximos desejaram que os detalhes de uma vida tão privada e de certa forma sem eventos fosse aberto para o mundo, ainda assim eu penso que eles não gostariam que sua memória morresse‖ (tradução minha). 23 ―Estou muito feliz querido Edward que você decidiu se dedicar à resolução dessa questão irritante entre os Austens e o público. Tenho certeza que você fará justiça ao que existe – mas eu sinto que deve ser uma tarefa difícil escavar os materiais, tão cuidadosamente enterrados longe de nossas vistas pela geração anterior‖ (tradução minha).

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Do que se tratava essa ―vexed question‖ que precisava ser corrigida? Claire Harman aposta nas imagens negativas que estavam sendo divulgadas sobre Austen, principalmente depois que a opinião da escritora Charlotte Brontë (1816-1855) foi reproduzida após a sua morte na biografia escrita pela amiga e também romancista Elizabeth Gaskell: ―Miss Austen sendo, como você diz, sem ‗sentimentos‘, sem Poesia, talvez SEJA sensìvel, real (mais REAL que VERDADEIRA), mas ela não pode ser grandiosa‖ (Gaskell, 1857, s/p, tradução minha). Dois ensaios de 1866 também insistiam na frieza de Austen, falta de entusiasmo e insuficiente feminilidade: ―O cérebro de Miss Austen não parece ter nenhum amor maternal pelos seus filhos [livros]: ele os trata de certa forma como um homem do mundo‖ (apud Harman, 2009, p.102, tradução minha). Aparentemente, esses ataques fizeram com que os sobrinhos decidissem que era hora de uma resposta à altura. Contudo, como Caroline atesta em sua carta, não era uma tarefa fácil encontrar materiais sobre Jane Austen. Segundo Claire Harman (2009, p.95), a família Austen estava dispersa nesse momento, dada a grande quantidade de filhos e netos descendentes dos irmãos Austen, e a pouca documentação deixada por Jane Austen – cartas e manuscritos – havia sido distribuída entre alguns sobrinhos por Cassandra perto de sua morte. Não havia, assim, um só membro da famìlia controlando todo o acervo da ―Aunt Jane‖, e ninguém sabia exatamente do que se tratava esse acervo, em especial as cartas. O que se sabia é que Lady Knatchbull (Fanny Knight, a filha mais velha de Edward Knight e tradicionalmente vista como a sobrinha preferida de Jane Austen) herdara de Cassandra, após sua morte em 1845, as cartas que ela havia decidido preservar. Caroline Austen se lembra da censura que Cassandra realizou sobre o que havia guardado, destruindo muitas cartas e cortando partes das que permaneceram: ―My Aunt looked them over and burnt the greater part, (as she told me), 2 or 3 years before her own death - She left, or gave some as legacies to the Nieces - but of those that I have seen, several had portions cut out‖24 (MAJA, p.173). Também as cartas que Frank Austen havia guardado durante toda a sua longa vida foram rapidamente destruídas por uma de suas filhas depois da sua morte em 1865. Os outros irmãos e cunhadas parecem não terem se importado em guardar as cartas que receberam. Como comenta Harman, É de se pensar sobre o quão rápido a família de Austen jogou fora suas cartas. Nenhuma sobreviveu de Jane para seus pais, nem para James, Edward ou Henry (uma grande perda, imagina-se, dada a vivacidade de Henry e o seu interesse particular na publicação dos romances). Caroline Austen atestou que sua tia ‗escrevia com frequência para seus irmãos quando estavam no mar, e se correspondia com muitos outros parentes‘, mas somente seis cartas para Frank

24 ―Minha tia inspecionou todas elas e queimou a maior parte (segundo ela) 2 ou 3 anos antes de ela mesma morrer – ela deixou algumas como herança para as sobrinhas – mas daquelas que eu vi, várias tinham pedaços cortados‖ (tradução minha).

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existem hoje, e só uma para Charles. Nenhuma carta para as esposas de seus irmãos sobrevieram. (HARMAN, 2009, p.105, tradução minha)

Ainda assim, em um esforço conjunto de memória com suas irmãs, e usando como base o Biographical Notice de Henry e algumas cartas e manuscritos localizados, James Edward conseguiu produzir a tão necessária biografia, que foi publicada em uma primeira versão em 1870. Seu sucesso foi tão grande que, em 1871, foi lançada uma segunda edição aumentada com excertos de cartas e dos manuscritos da juventude da autora. Estava pronta o que Kathryn Sutherland chamou de ―St. Aunt Jane of Steventon-cum-Chawton Canonicorum‖25, o retrato mais hagiográfico que o de Henry de uma tia idolatrada, a qual é uma figura confortável para a família, aquela filha-irmã-tia devota, que evita fama e status profissional enquanto permanence em casa e escreve somente nos intervalos de suas importantes tarefas domésticas (Sutherland, 2002, p.xv). Em se tratando de uma memória, James Edward (e, em menor grau, suas irmãs) está presente nesse relato de forma inexorável. A Jane Austen que vamos ler ali é a Jane Austen que ele se lembra, mas também a Jane Austen que ele quer se lembrar. Gabriel García Marquez observou na epígrafe de sua autobiografia que ―a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la‖ (2005), mas para James Edward, o seu relato é tão verdadeiro quanto um depoimento, que ele reforça dizendo ―To all this I am a living witness‖26 (Memoir, p.10). Tanto a abertura de seu texto (―Of events her life was singularly barren‖27, p.9) quanto na conclusão, ele reproduz de forma automática a visão de Henry Austen de que a vida de Jane Austen foi tranquila, de certa forma espelhando o caráter dessa tia: It has been said that the happiest individuals, like nations during their happiest periods, have no history. In the case of my aunt, it was not only that her course of life was unvaried, but that her own disposition was remarkably calm and even. There was in her nothing eccentric or angular; no ruggedness of temper; no singularity of manner; none of the morbid sensibility or exaggeration of feeling, which not unfrequently accompanies great talents, to be worked up into a picture.28 (Memoir, p.132).

25 Para explicar a referência: Jane Austen nasceu em Steventon, Hampshire, uma pequena vila do interior da Inglaterra. Morou ali até 1801, quando seu pai decidiu se aposentar da Igreja e se mudar para Bath com a esposa e as duas filhas solteiras – nem Cassandra nem Jane Austen se casariam. O pai, George Austen, morreu em 1805, deixando pouco apoio financeiro para as mulheres da família, que foram obrigadas a morar em residências temporárias em diversos locais ou hospedadas por parentes, tendo sua renda complementada com a ajuda dos irmãos. Apenas em 1809 o irmão enobrecido Edward Knight ofereceu para a mãe e irmãs o uso de uma pequena casa na vila de Chawton, também em Hampshire, na qual Austen morou até o ano da sua morte. 26 ―De tudo isso eu sou uma testemunha viva‖ (tradução minha). 27 ―Sua vida era singularmente estéril de eventos‖ (tradução minha). 28 ―Já foi dito que o indivìduo mais feliz, como nações durante seus perìodos mais felizes, não possui história. No caso da minha tia, não é apenas que o curso de sua vida não variou, mas que a sua própria personalidade era calma e constante. Não havia nada nela de excêntrico ou angular, nenhuma rudeza de temperamento, nenhuma

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James Edward praticamente afirma que sua tia não tem história, não só porque nunca viveu nenhum acontecimento marcante, mas porque sua própria personalidade era tão insossa que não merecia nem um retrato. Parece dizer ao público daquela ―vexed question‖, ―só estou escrevendo essa biografia por causa de vocês, porque se dependesse apenas da vida da autora, nunca haveria nada de interessante que valesse a pena ser relatado‖. O uso do termo ―barren‖ (estéril) na introdução parece significativo dado que Jane Austen nunca teve filhos, claramente associando o valor do que James Edward – e Henry antes dele – considerava importante nas vidas das mulheres. Caroline Austen, em seu já citado relato, também faz referência a essa ideia fixa de uma vida reclusa e tranquila. A crítica literária Juliet McMaster, porém, registrou seu desagrado com essa imagem em uma entrevista, afirmando que só porque uma mulher não se casa, ou não entra para o mercado de trabalho, a vida dela é considerada sem ter tido grandes eventos, mas esta é uma mulher que escreveu seis romances espantosos enquanto vivia em uma vila rural tranquila (apud Auerbach, 2004, p.28, tradução minha) – o que deveria ser mais do que suficiente para contrariar essa imagem de ―uneventful‖. James Edward se esforça em fornecer mais detalhes do que o seu tio havia feito para sustentar essa imagem. Jane Austen teria vivido toda a sua vida, em especial os últimos anos, em um retiro doméstico do qual nem mesmo seu grande talento conseguiu removê-la, pois, como nota Kahtryn Sutherland, ele desenha uma mulher ―cujo dever maior era para com a sua família e não a sua arte‖ (Sutherland, 2005, p.86, tradução minha), especialmente no período de 1809, quando Jane Austen foi morar no pequeno ―Chawton cottage‖ em Hampshire com sua irmã, mãe e uma amiga da família, Martha Lloyd, até a sua morte em 1817. Nesse cenário de perfeita harmonia doméstica, as mulheres se dedicavam às tarefas da casa e às atividades femininas como costurar e bordar. Mas um certo cuidado na descrição desse lar era necessário, pois, como nota Claire Harman, as mulheres de Chawton, com seu galinheiro e sua carroça puxada por um burro, sua pequena sala de estar e suas toucas caseiras, constituíam algo do qual os sobrinhos lembravam mais com uma certa vergonha do que com orgulho, e James Edward fez questão de incluir passagens em seu livro que explicavam as diferenças no modo de vida da época com a intenção clara de evitar que sua família fosse julgada como pobre ou vulgar (Harman, 2009, p.111, tradução minha). Era necessário ainda, segundo Harman, assegurar aos leitores que nenhum tipo de dever ou obrigação doméstica era negligenciado por Austen por conta de seu hábito (apenas um hobby) singularidade de maneiras, nada daquela sensibilidade mórbida ou exagero de sentimentos, os quais não raramente acompanham os grandes talentos, para ser colocado em um retrato‖ (tradução minha).

38 de escrever. Muito pelo contrário, cada irmã possuía seus talentos e grande prazer em desempenhar algumas atividades. Enquanto Cassandra gostava de desenhar, por exemplo, Jane teria sido habilidosa com uma agulha: ―Her needlework both plain and ornamental was excellent, and might almost have put a sewing machine to shame. She was considered especially great in satin stitch. She spent much time in these occupations, and some of her merriest talk was over clothes which she and her companions were making‖29 (Memoir, p.77). Em diversas passagens, por sinal, James Edward insiste na habilidade manual de Austen, e faz comparações entre tarefas domésticas e sua escrita: ―The same hand which painted so exquisitely with the pen could work as delicately with the needle‖30 (Memoir, p.79). Apesar de hoje muitos considerarem que, nessa passagem, ele se referia à caligrafia de Jane Austen, também elogiada em outras partes de seu texto, muitos críticos tomaram a frase como uma metáfora para as obras que ela escreveu, iniciando assim uma associação de seus romances com o universo feminino – inofensivo, pequeno e delicado como um ponto de bordado –, uma tradição crítica que, como nota Claudia Johnson, ―vai celebrar Austen por respeitar seus limites, por nunca ter usado sua pena para usurpar a agulha da mulher adequada‖ (Johnson, 2012, p.79, tradução minha). Trata-se de uma imagem reforçada pela publicação, desde o Biographical Notice, de um trecho de uma carta de Austen enviada ao próprio James Edward a respeito de alguns capítulos perdidos de um romance que ele estava escrevendo. Rindo da ideia de que ela própria poderia tê-los roubado para uso próprio, Jane Austen escreve ao sobrinho: ―What should I do with your strong, manly, vigorous sketches, full of variety and glow? How could I possibly join them on to the little bit (two inches wide) of ivory on which I work with so fine a brush, as produces little effect after much labour?‖31 (Letters, p.337). Enquanto o tom leve da brincadeira era facilmente percebido, muitos, inclusive James Edward, interpretaram de forma literal a definição de Austen da sua área de atuação como sendo amadora e miniaturista. E, na minha opinião, James Edward também não percebeu o tom indulgente com o qual ela descreve sua tentativa abandonada de romance. A ideia de uma Austen miniaturista e artesã é rapidamente aceita e raramente questionada dentre seus admiradores. James Edward a reforça com a sua afirmação de que

29 ―Seu trabalho com a agulha, tanto básico quanto ornamental, era excelente, e teria quase superado o de uma máquina de costura. Ela era considerada uma grande especialista em pontos na seda. Ela passava muito tempo nessas ocupações, e algumas de suas conversas mais alegres ocorreram enquanto ela e suas companheiras faziam roupas‖ (tradução minha). 30 ―A mesma mão que pintava tão maravilhosamente com a pena poderia trabalhar muito delicadamente com a agulha‖ (tradução minha). 31 ―O que faria eu com os seus rascunhos tão fortes, masculinos e vigorosos, cheios de variedade e brilho? Como eu poderia combiná-los ao pequeno marfim (de apenas cinco centímetros de largura) no qual eu trabalho com um pincel tão delicado, que produz pouco efeito após muito esforço?‖ (tradução minha).

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Jane Austen lived in entire seclusion from the literary world: neither by correspondence, nor by personal intercourse was she known to any contemporary authors. (…) so that her powers never could have been sharpened by collision with superior intellects, nor her imagination aided by their casual suggestions. Whatever she produced was a genuine home-made article.32 (Memoir, p.90, grifo meu) A insistência em um isolamento de Austen do mundo literário de sua época e em um confinamento doméstico voluntário negam o que Sutherland chama de ―atos de colaboração‖, sejam linguìsticos, intelectuais ou culturais, os quais moldam as obras literárias e seus textos desde muito cedo, e essa negação, segundo ela, acabou sendo o aspecto mais importante, durante todo o século XX, na reprodução crítica da obra de Austen como um objeto de estudo hermeticamente selado (Sutherland, 2005, p.270, tradução minha). Ou seja, a tentativa da família de transformar a obra de Austen em apenas um passatempo que deu certo impediu por muito tempo a sua existência como uma escritora atenta para a produção literária que a cercava e que certamente a influenciou. Ao mesmo tempo, James Edward teve o mesmo cuidado de Henry Austen em listar os autores que Jane Austen admirava para assegurar uma imagem positiva de sua educação e evitar a sua associação com escritores polêmicos como Fielding. She read French with facility, and knew something of Italian (...). In history she followed the old guides (…) Jane, when a girl, had strong political opinions, especially about the affairs of the sixteenth and seventeenth centuries. She was a vehement defender of Charles I and his grandmother Mary; but I think it was rather from an impulse of feeling than from any enquiry into the evidences by which they must be condemned or acquitted. As she grew up, the politics of the day occupied very little of her attention, but she probably shared the feeling of moderate Toryism which prevailed in her family. She was well acquainted with the old periodicals from the ‗Spectator‘ downwards. Her knowledge of Richardson‘s works was such as no one is likely again to acquire (…) Amongst her favourite writers, Johnson in prose, Crabbe in verse, and Cowper in both, stood high. Scott‘s poetry gave her great pleasure.33 (Memoir, p.70, grifos meus)

Notemos a forma como James Edward facilmente descarta as opiniões políticas de Jane Austen, bem como a sua interpretação da história. Em sua juventude, de fato Austen era uma grande defensora da dinastia Stuart, tendo escrito a sua própria versão satírica da história

32 ―Jane Austen viveu totalmente isolada do mundo literário: nem por correspondência, nem por encontros pessoais, ela era conhecida por qualquer autor contemporâneo (...) de forma que seus poderes não poderiam ter sido afiados pela colisão com intelectos superiores, nem sua imaginação auxiliada por suas sugestões casuais. Qualquer coisa que ela produziu era um artigo genuinamente caseiro‖ (tradução minha). 33 ―Ela lia francês com facilidade, e sabia alguma coisa de italiano. (…) Em história, ela seguia os antigos guias (…). Jane, quando menina, tinha fortes opiniões políticas sobre os acontecimentos dos séculos XVI e XVII. Ela era uma defensora veemente de Charles I e de sua avó Mary, mas eu acho que isso advinha mais de um impulso de sentimento do que de qualquer estudo das evidências pelos quais eles devem ser julgados ou perdoados. Conforme ela cresceu, a política da época ocupava muito pouco de sua atenção, mas ela provavelmente compartilhava a filiação de sua família de Torismo moderado. Ela conhecia bem os períodicos antigos, do ‗Spectator‘ em diante. Seu conhecimento das obras de Richardson era tal que provavelmente ninguém nunca vai superá-la. (…) Entre seus escritores preferidos, os mais importantes para ela eram Johnsom em prosa, Crabble em verso, e Cowper em ambos. A poesia de Scott também lhe era muito prazerosa‖ (tradução minha).

40 da Inglaterra que continha também pequenas ilustrações feitas por Cassandra. O título The History of England from the reign of Henry the 4th to the death of Charles the 1st. By a partial, prejudiced, & ignorant Historian nos mostra a rapidez de uma jovem de dezesseis anos em perceber o discurso histórico oficial também como parcial e preconceituoso. Katie Halsey observa que O leve tom defensivo com o qual James Edward aborda as leituras de sua tia e a rapidez com que ele parte para outro assunto sugerem algum disconforto com esse tópico em especìfico. (…) A impressão dada pelo Memoir, contudo, é que James Edward queria que seus leitores percebessem sua tia como alguém cuja genialidade natural não necessitava de estímulos externos, e cujas obras brilhantes não deviam nada à tradição literária da época. (…) Tanto Henry quanto James Edward construíram retratos idealizados de Jane Austen para apelar ao gosto do público. Ao fazer isso, eles escolheram mencionar, da extensa lista do que Jane Austen leu, apenas os livros que funcionavam como evidência da pessoa que eles afirmavam que ela tinha sido. (HALSEY, 2013, p.25, tradução minha)

James Edward dispensa a visão política de The History of England como fruto da imaturidade de uma menina, e garante que, depois de adulta, Jane Austen evoluiu para um posicionamento político mais conservador. Caroline Austen, no entanto, registra que a Austen adulta ainda mantinha as mesmas opiniões: ―Of her historical opinions I am able to record thus much - that she was a most loyal adherent of Charles the 1st, and that she always encouraged my youthful beleif in Mary Stuart's perfect innocence of all the crimes with which History has charged her memory‖34 (MAJA, p.173). Na verdade, James Edward vai além. Apesar de precisar os autores que sua tia lia – uma lista que, como observa Katie Hasley, poderia muito bem ter saído de um guia de boa conduta do século XIX – ele também tenta editar o que de fato Austen sabia. Após afirmar que ―She was always very careful not to meddle with matters which she did not thoroughly understand. She never touched upon politics, law, or medicine (…) But with ships and sailors she felt herself at home, or at least could always trust to a brotherly critic to keep her right‖35 (Memoir, p.18), James Edward precisa tomar cuidado com as cartas de Austen que ele vai apresentar. A título de explicação, ele diz: A wish has sometimes been expressed that some of Jane Austen‘s letters should be published. Some entire letters, and many extracts, will be given in this memoir; but the reader must be warned not to expect too much from them. (…) The style is always clear, and generally animated, while a vein of humour continually gleams through the whole; but the materials may be thought inferior to the execution, for they treat only of the details of domestic life. There is in them no notice of politics

34 ―De suas opiniões sobre História, eu sou capaz de lembrar pelo menos isso – que ela era uma leal defensora de Charles I, e que ela sempre encorajou minha crença juvenil na perfeita inocência de Mary Stuart de todos os crimes com os quais a História tinha acusado sua memória‖ (tradução minha). 35 ―Ela tinha muito cuidado para não mexer com assuntos que não entendia totalmente. Ela nunca abordava polìtica, direito, ou medicina (…) Mas em relação a navios e marinheiros ela se sentia confortável, ou pelo menos podia sempre contar com uma crítica de um irmão para corrigi-la‖ (tradução minha).

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or public events; scarcely any discussions on literature, or other subjects of general interest.36 (Memoir, p.51)

No entanto, as cartas estavam recheadas de declarações e referências que causariam muito embaraço e espanto frente ao retrato que James Edward estava construindo. Por esse motivo, os trechos das cartas que ele escolheu revelar foram selecionados e editados para deixar transparecer exatamente que Austen só falava sobre assuntos domésticos. Ao analisar as cartas citadas, Emily Auerbach encontrou vários exemplos da censura de James Edward, como na exclusão de comentários sobre obras literárias que Austen estava lendo, sobre o que ela estava escrevendo e sobre navios e guerras e os franceses (Auerbach, 2004, p.10). Novamente, as edições de James Edward foram absorvidas pela tradição crítica, e até mesmo R. W. Chapman, responsável pelas primeiras edições acadêmicas dos romances de Austen, acreditava que os irmãos e o pai da autora tiveram papel significativo na formação das suas habilidades e na revisão de seus manuscritos, como James Edward dá a entender sobre as referências de Austen a navios e marinheiros sendo corrigidas pelos irmãos Frank e Charles (Sutherland, 2005, p.237). O texto do Memoir vai retomar com muito cuidado também a ideia de que Jane Austen era uma pessoa doce, bondosa, virtuosa – uma santa. E vai responder àquelas acusações de que, por exemplo, não gostava de crianças. Sobre isso, Anna Lefroy afirma que ―Aunt Jane was the general favorite with children; her ways with them being so playful, & her long circumstantial stories so delightful!‖37 (RAJ, p.157) e Caroline Austen, por sua vez, insiste que Her charm to children was great sweetness of manner - she seemed to love you, and you loved her naturally in return (…) Everything she could make amusing to a child - Then, as I got older, and when cousins came to share the entertainment, she would tell us the most delightful stories chiefly of Fairyland, and her Fairies had all characters of their own - The tale was invented, I am sure, at the moment, and was sometimes continued for 2 or 3 days, if occasion served (…)38 (MAJA, p.169)

36 ―Ocasionalmente o desejo de que algumas cartas de Jane Austen fossem publicadas foi manifestado. Algumas cartas inteiras, e alguns trechos, serão fornecidos nesse memoir; mas o leitor deve ser avisado para não esperar muita coisa deles. (…) O estilo é sempre claro, e geralmente animado, enquanto uma veia de humor continuamente brilha através do conjunto; mas os materiais podem ser considerados inferiores em execução porque tratam apenas de detalhes da vida doméstica. Não há nada neles de política ou eventos públicos, quase nenhuma discussão de literatura ou outros assuntos de interesse geral‖ (tradução minha). 37 ―A tia Jane era a grande preferida entre as crianças, a sua maneira com elas, tão brincalhona, e as suas longas e detalhadas histórias tão encantadoras!‖ (tradução minha). 38 ―O seu encanto para as crianças era sua doçura de maneiras – ela parecia te amar, e você a amava naturalmente como resultado (...). Ela conseguia fazer tudo ser divertido para uma criança – Então, conforme eu cresci, e quando os primos vinham compartilhar do entretenimento, ela nos contava as mais encantadoras histórias da terra das fadas, e as suas fadas todas tinham personalidades próprias. Os contos eram inventados, eu tenho certeza, ali na hora, e de vez em quando continuavam por 2 ou 3 dias, se a ocasião servisse‖ (tradução minha).

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Ambas as irmãs, além de sustentarem a ideia de que todas as crianças da família adoravam a querida tia Jane, afirmam que ela também tinha muita habilidade e carinho para lidar com os sobrinhos, em especial com suas histórias improvisadas sobre fadas, o que é mais um testemunho de que Jane Austen sempre teve um talento natural para o mundo da ficção. Ao mesmo tempo, parece conectar os romances de Austen com essa ideia de entretenimento inocente – da mesma forma como ela inventava histórias para distrair as crianças, ela se ocupava também com romances para distrair adultos, ambos puros. Não há o que temer nesses romances. Não havia o que temer na própria tia Jane, as duas irmãs insistem, pois ela era uma pessoa que nunca faria nenhum comentário maldoso sobre quem quer que fosse: Her unusually quick sense of the ridiculous inclined her to play with the trifling commonplaces of every day life, whether as regarded people or things; but she never played with it's serious duties or responsibilities - when grave she was very grave (…)39 (RAJ, p.160)

I am sure my Aunt Jane had a regard for her neighbours and felt a kindly interest in their proceedings. She liked immensely to hear all about them. They sometimes served for her amusement, but it was her own nonsense that gave zest to the gossip - She never turned them into ridicule - She was as far as possible from being either censorious or satirical - she never abused them or quizzed them (…)40 (MAJA, p.172)

Uma Jane Austen tão diferente do que conheceríamos depois através de suas cartas, que comentou para sua irmã em 20 de novembro de 1800: ―Miss Debary, Susan & Sally all in black ... made their appearance & I was as civil to them as their bad breath would allow me‖41 (Letters, p.63). Claro que James Edward não poderia incluir esse tipo de referência, preferindo insistir que ―there was scarcely a charm in her most delightful characters that was not a true reflection of her own sweet temper and loving heart‖42 (Memoir, p.10). Novamente, como nota Claire Harman, James Edward entrelaça a vida e a obra de Jane Austen, procurando atestar para a inocuidade de ambos (Harman, 2009, p.108). Trata-se de um retrato que enfatiza a vida doméstica e o dever para com a família de uma tia querida, que viveu uma vida tranquila e que estava satisfeita com isso, e que apenas por um feliz acaso possuía uma capacidade literária que não perturbava nem a ela nem a outros (Harman, 2009,

39 ―O seu incomum e rápido senso de ridìculo a levava a brincar com as pequenas trivialidades da vida diária, tanto sobre pessoas ou coisas; mas ela nunca brincou com deveres ou responsabilidades – quando ela era séria, ela era muito séria‖ (tradução minha). 40 ―Tenho certeza de que minha tia Jane tinha um carinho por seus vizinhos e um genuíno interesse em suas vidas. Ela gostava imensamente de ouvir tudo sobre eles. De vez em quando eles serviam para a sua diversão, mas era o seu próprio humor que dava gosto à fofoca – ela nunca fazia deles objeto de ridículo – Ela estava tão longe quanto possível de ser severa ou satírica – ela nunca abusava deles ou brincava com eles‖ (tradução minha). 41 ―Miss Debary, Susan e Sally todas de preto (…) apareceram e eu fui tão educada com elas quanto o seu mau hálito me permitiu‖ (tradução minha). 42 ―Não existia sequer um encanto em suas maravilhosas personagens que não era um verdadeiro reflexo do seu próprio temperamento doce e coração amoroso‖ (tradução minha).

43 p.109). Ou, como ironizou a escritora Margaret Oliphant, ―a famìlia estava bem envergonhada de que as pessoas soubessem que ela não era só mais uma jovem moça como as outras, ocupada com seu bordado‖ (apud Auerbach, 2004, p.17, tradução minha). Mas o que fazer quando outras pessoas que conheceram Jane Austen produziam diferentes opiniões sobre a escritora? Na biografia de 1870 da escritora inglesa Mary Russel Mitford, a carta abaixo é citada: À propos to novels, I have discovered that our great favourite, Miss Austen, is my countrywoman; that mamma knew all her family very intimately; and that she herself is an old maid (I beg her pardon – I mean a young lady) with whom mamma before her marriage was acquainted. Mamma says that she was then the prettiest, silliest, most affected, husband-hunting butterfly she ever remembers; and a friend of mine, who visits her now, says that she has stiffened into the most perpendicular, precise, taciturn piece of ―single blessedness‖ that ever existed, and that, till ‗Pride and Prejudice‘ showed what a precious gem was hidden in that unbending case, she was no more regarded in society than a poker or a fire-screen (…) The case is very different now; she is still a poker – but a poker of whom every one is afraid.43 (MITFORD, 1870, p.235)

A descrição de Mitford era um problema sério, primeiro por colocar a jovem Austen como uma menina frívola, tola, apenas em busca de maridos, e segundo por colocar a adulta Austen como uma pessoa que todos temem por suas observações sarcásticas registradas em seus romances. Tais acusações não poderiam continuar sem serem refutadas. Na primeira edição do Memoir, James Edward inclui o seguinte post scriptum: Since these pages were in type, I have read with astonishment the strange misrepresentation of my aunt‘s manners given by Miss Mitford. (…) Certainly it is so totally at variance with the modest simplicity of character which I have attributed to my aunt, that if it could be supposed to have a semblance of truth, it must be equally injurious to her memory and to my trustworthiness as her biographer. (…) I am able to prove by a reference to dates that Miss Mitford must have been under a mistake, and that her mother could not possibly have known what she was supposed to have reported; inasmuch as Jane Austen, at the time referred to, was a little girl. (…) all intercourse between the families ceased when Jane was little more than seven years old. (…) All persons who undertake to narrate from hearsay things which are supposed to have taken place before they were born are liable to error, and are apt to call in imagination to the aid of memory: and hence it arises that many a fancy piece has been substituted for genuine history.44 (Memoir, pp.132-133)

43 ―Por falar em romances, eu descobri que a nossa grande favorita, Miss Austen, nasceu no mesmo condado que eu; que mamãe conhecia toda a sua família intimamente, e que ela mesma era uma velha solteira (eu peço desculpas – uma jovem moça) que minha mãe conheceu antes de se casar. Mamãe diz que ela era a mais bonita, boba e afetada borboleta caçadora de maridos que ela pode se lembrar, e uma amiga minha, que a visita agora, diz que ela se enrigeceu no mais perpendicular, preciso, taciturno tipo de ‗benção singular‘ que já existiu, e que, até ‗Orgulho e Preconceito‘ mostrar a gema preciosa que se escondia naquele caso rígido, ela não era vista na sociedade como algo diferente de um atiçador de fogo ou um protetor de lareira (...). O caso agora é muito diferente, ela ainda é uma atiçadora – mas uma atiçadora da qual todo mundo tem medo‖ (tradução minha). 44 ―Desde que estas páginas foram publicadas, eu li com espanto a estranha representação errônea das maneiras da minha tia dada por Miss Mitfod. (...) Certamente é tão diferente da modesta simplicidade de caráter a qual eu atribuí a minha tia, que se se pudesse supor alguma semelhança com a verdade, seria tanto uma injúria à memória dela quanto à minha confiabilidade como seu biógrafo. (...) Eu sou capaz de provas por referência a datas que Miss Mitford deve ter sido enganada, e que a sua mãe não poderia ter sabido o que ela supostamente relatou, visto que Jane Austen, no período aludido, era uma menina. (...) toda relação entre as famílias cessaram

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Irônico como James Edward reclama que ―many a fancy piece has been substituted for genuine history‖, quando seu Memoir parece ser exatamente o caso. Se as declarações de Mitford eram verdadeiras ou se eram erros de memória, certamente a Jane Austen que ela descreve parecia ser uma pessoa muito mais real e interessante do que a querida tia Jane de James Edward. Para ele, a sua doçura de caráter não falhou nunca, nem mesmo durante os últimos dolorosos meses antes de sua morte. No entanto, se levarmos em consideração a descrição de Mitford, podemos concordar com a escritora P. D. James quando ela afirma, ―ao contrário, falhou com frequência, e se não tivesse não teríamos os seus seis grandes romances‖ (apud Auerbach, 2004, p.7, tradução minha). Quem parece falhar com frequência no Memoir é o próprio James Edward em perceber a ironia de Jane Austen como algo muito mais profundo que apenas bom humor. Uma das passagens mais interessantes é a troca de cartas entre a escritora e o historiador real Rev. James Stanier Clarke, que havia descoberto a identidade da autora de O&P, R&S e MP. Em meio a convites para visitar a biblioteca real – porque, aparentemente, seus romances eram muito admirados pelo Príncipe Regente – Clarke decide fornecer conselhos para Jane Austen a respeito do que ela deveria escrever: ―I also dear Madam wished to be allowed to ask you, to delineate in some future Work the Habits of Life and Character and enthusiasm of a Clergyman – who should pass his time between the metropolis & the Country (...) Fond of, and entirely engaged in Literature – no man‘s Enemy but his own‖45 (Letters, p.309). A resposta de Austen, que claramente percebe que Clarke deseja um livro sobre si mesmo, é muito perspicaz: I am quite honored by your thinking me capable of drawing such a Clergyman as you gave the sketch of in your note of Nov:16. But I assure you I am not. The comic part of the Character I might be equal to, but not the Good, the Enthusiastic, the Literary. Such a Man‘s Conversation must at times be on subjects of Science & Philosophy of which I know nothing – or at least be occasionally abundant to quotations & allusions which a Woman, who like me, knows only her own Mother- tongue & has read very little of that, would be totally without the power of giving. (…) And I think I may boast myself to be, with all possible Vanity, the most unlearned, & uninformed Female who ever dared to be an Authoress.‖46 (Letters, p.319)

quando Jane não tinha mais do que sete anos de idade. (...) Todas as pessoas que tomam a tarefa de narrar por rumores coisas que supostamente aconteceram antes de nascerem estão propícias a erros, e são levadas a usar a imaginação para ajudar a memória: e portanto ocorre que muitos textos imaginados foram tomados por história genuìna‖ (tradução minha). 45 ―Eu também, cara senhora, gostaria que você me permitisse lhe pedir que delineasse em algum trabalho futuro os hábitos de vida e caráter e entusiasmo de um homem do clero – o qual passa seu tempo entre a metrópole e o campo. Que aprecia e está sempre engajado em literatura – inimigo de nenhum homem mas de si mesmo‖ (tradução minha). 46―Eu estou muito honrada por você ter me considerado capaz de desenhar tal homem do clero que me sugeriu na sua carta de 6 de novembro. Mas eu lhe garanto que não sou. Para a parte cômica da personagem eu talvez seja capaz, mas não para a boa, a entusiasta, a literária. A conversa de um tal homem deve ser vez ou outra sobre

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Pelas respostas seguintes de Clarke, podemos suspeitar que ele realmente acreditou no que Austen dizia porque insistiu ainda em uma segunda carta que Austen escrevesse, agora, um romance histórico. Como James Edward cita o pedido de Clarke e a resposta de Austen, não é difícil pensar que ele também gostaria que os seus leitores a interpretassem como um exemplo da total modéstia de Jane Austen, sua insegurança em relação à sua habilidade de escritora e a sua percepção de que ela era apenas uma amadora. Literalmente, ele diz, a resposta irá mostrar ―how unequal the author of ‗Pride and Prejudice‘ felt herself to delineating an enthusiastic clergyman of the present day‖47 (Memoir, p.94). A cegueira de James Edward não é uma surpresa se lembrarmos que ele também não havia entendido a ironia na própria carta que recebera quando Austen disse que trabalhava apenas com um pequeno pedaço de marfim que não se comparava aos seus capítulos fortes e masculinos. Um outro assunto delicado para James Edward é o fato de que Jane Austen nunca se casou e nunca teve filhos. O seu objetivo central, como vimos, é retratar uma pessoa que passou toda sua vida contente e satisfeita com o que essa vida lhe deu, e ao mesmo tempo uma pessoa amorosa com seus sobrinhos, em especial, para desqualificar o boato de que Austen não gostava de crianças. Seria esperado de uma pessoa detentora de um lado maternal tão natural que sentisse pelo menos um pouco de amargura por nunca ter se casado e constituído sua própria família, tido os próprios filhos? James Edward garante que não. Não haveria arrependimento em Jane Austen porque, durante toda a sua vida, seu coração nunca foi profundamente tocado. Ao contrário da irmã Cassandra, que decidira nunca se casar após perder seu noivo, Rev. Thomas Fowle, por conta de uma doença tropical contraída no Caribe, Jane Austen nunca teria passado por experiência semelhante. James Edward procura listar rapidamente os ―admiradores‖ de sua tia, indicando, no primeiro caso, o seu desinteresse, e no segundo, que a brevidade do relacionamento muito provavelmente não teria causado grandes sofrimentos: Of Jane herself I know of no such definite tale of love to relate. (…) In her youth she had declined the addresses of a gentleman who had the recommendations of good character, and connections, and position in life, of everything, in fact, except the subtle power of touching her heart. There is, however, one passage of romance in her history with which I am imperfectly acquainted (…) [Cassandra] said that, while staying at some seaside place, they became acquainted with a gentleman,

assuntos de ciência e filosofia, dos quais não sei nada – ou pelo menos ser ocasionalmente abundante em citações e alusões as quais uma mulher, como eu, que sabe apenas a sua língua materna e leu muito pouco disso tudo, estaria totalmente sem o poder de fornecer. (…) E acho que posso me gabar de ser, com toda a vaidade possível, a mulher menos estudada e menos informada que já se atrevou a ser uma autora‖ (tradução minha). 47 ―o quão inadequada a autora de ‗Orgulho e Preconceito‘ sentia-se para delinear um entusiasta homem do claro do presente‖ (tradução minha).

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whose charm of person, mind, and manners was such that Cassandra thought him worthy to possess and likely to win her sister‘s love. When they parted, he expressed his intention of soon seeing them again; and Cassandra felt no doubt as to his motives. But they never again met. Within a short time they heard of his sudden death. I believe that, if Jane ever loved, it was this unnamed gentleman; but the acquaintance had been short, and I am unable to say whether her feelings were of such a nature as to affect her happiness.48 (Memoir, p.29)

A primeira referência, de Jane Austen ter recusado um cavalheiro, depois foi revelada como sendo a proposta de casamento de Harris Bigg-Wither, de uma família rica próxima a Steventon e cujas irmãs eram grandes amigas de Cassandra e Austen. Ele a teria pedido em casamento em 1802 durante uma visita às suas irmãs, Jane Austen teria aceitado o pedido mas, no dia seguinte, voltara atrás em sua decisão. Em carta de 1869 ao seu irmão, Caroline Austen pede que ele não mencione no Memoir o nome das pessoas envolvidas nessa história em respeito às duas famìlias: ―My own wish would be, that not any allusion should be made to the Manydown story – or at least that the reference should be so vague, as to give no clue to the place or the person. Mr. Wither‘s children are still living & in the neighbourhood (…) Now I should not like the Withers to think that the Austen‘s had been so proud of her suitor, as to have handed down his name to all succeeding generations (…)‖49 (Memoir, p.187). Em uma carta de 1870, Catherine Hubback – filha de Frank Austen – também escreve a James Edward sobre essa história: ―I gathered from the letters that it was in a momentary fit of self-delusion that she, Aunt Jane, accepted Mr. Withers proposal, and that when it was all settled eventually, and the negative decisively given she was much relieved – I think the affair vexed her a good deal – but I am sure she had no attachment to him‖50 (Memoir, p.190). Obviamente James Edward preferiu omitir não só os nomes dos envolvidos mas também o

48 ―Sobre Jane eu não conheço nenhuma história de amor definitiva para relatar. (...) Em sua juventude ela tinha recusado a atenção de um cavalheiro que tinha a seu favor um bom caráter, conexões e posição na vida, tudo, na verdade, menos o poder sutil de tocar o seu coração. Existe, contudo, uma passagem de romance em sua história da qual eu conheço pouco. (...) [Cassandra] disse que, enquanto visitavam alguma cidade litorânea, elas conheceram um cavalheiro cujos charmes de personalidade, mente e maneiras eram tais que Cassandra o considerou digno de possuir e provavelmente de conquistar o amor de sua irmã. Quando eles se separaram, ele expressou seu desejo de logo se reencontrarem, e Cassandra não tinha dúvidas de seus motivos. Mas eles nunca se encontraram de novo. Dentro de um curto período elas ficaram sabendo de sua morte repentina. Eu acredito que, se Jane amou alguém em sua vida, foi esse cavalheiro desconhecido, mas a relação tinha sido curta, e eu não sou capaz de dizer se os seus sentimentos por ele eram de tal natureza a ponto de afetar a sua felicidade‖ (tradução minha). 49 ―O meu único desejo seria que nenhuma alusão fosse feita à história de Manydown – ou pelo menos que a referência fosse tão vaga a ponto de não dar nenhuma indicação sobre o lugar ou a pessoa. Os filhos de Mr. Wither ainda estão vivos e moram na vizinhança (…). Então eu não gostaria que os Withers pensassem que os Austens estavam tão orgulhosos de seu pretendente que entregaram seu nome para todas as futuras gerações‖ (tradução minha). 50 ―Eu entendi pelas cartas que foi em um lapso de auto-ilusão em que ela, tia Jane, aceitara a proposta de Mr. Withers, e que quando tudo tinha se acomodado, eventualmente, e a resposta negativa dada de maneira decisiva, ela ficou muito aliviada – eu acho que toda a história incomodou-a muito – mas eu tenho certeza que ela não tinha nenhum sentimento por ele‖ (tradução minha).

47 detalhe de que Jane Austen havia aceitado o pedido em um primeiro momento. Seus motivos para tal perderam-se no tempo, mas muito se especula sobre suas necessidades financeiras – naquele momento Austen morava em Bath com a irmã e os pais, vivendo com uma renda limitada e que seria ainda menor depois da morte do pai – um problema sério para o qual tornar-se a senhora de Manydown era a solução mais rápida, e a única oferecida às mulheres de seu grupo social, já que trabalhar era algo degradante. O motivo pelo qual Austen mudou de ideia no dia seguinte também é desconhecido – talvez o preço a se pagar por ser a Sra. Bigg-Wither fosse mais caro do que uma situação financeira ruim, talvez Harris Bigg-Wither não fosse uma pessoa agradável, talvez Austen não desejasse se casar sem algum sentimento, talvez não acreditasse que poderia continuar escrevendo se se tornasse uma senhora casada. De qualquer forma, James Edward não pode deixar que as pessoas pensassem que sua tia fosse mercenária, tendo aceitado a proposta apenas por conta do dinheiro. Na verdade, seria melhor evitar qualquer especulação sobre Austen, logo a história precisava ser contada para garantir que todos soubessem que ela não passou pela vida sem ser admirada, mas essa deveria ser a única mensagem ali. A segunda referência, a história do admirador que morreu, parece ter sido desconhecida por todos da família e narrada por Cassandra Austen a uma sobrinha pouco antes de morrer. James Edward ficou sabendo através de sua irmã Caroline Austen, que escreveu: During the few years my Grandfather lived at Bath, he went in the summer with his wife and daughters to some sea-side. They were in Devonshire, & in Wales - & in Devonshire an acquaintance was made with some very charming man – I never heard Aunt Cass. speak of anyone else with such admiration – she had no doubt that a mutual attachment was in progress between him and her sister. They parted – but he made it plain that he should seek them out again - & shortly afterward he died! – My Aunt told me this in the late years of her own life - & it was quite new to me then – but all this, being nameless and dateless, cannot I know serve any purpose of your‘s – and it brings no contradiction to your theory that she, Aunt Jane, never had any attachment that overclouded her happiness, for long. This had not gone far enough, to leave misery behind.51 (Memoir, p.187, grifo meu)

Interessante notar, para além da história, como Caroline indica o esforço de James Edward em editar a vida de Austen para ser o mais ―tranquila‖ possìvel. Pois, como ela

51 ―Durante os poucos anos em que meu avô morou em Bath, ele foi no verão com sua esposa e filhas para alguma cidade litorânea. Eles estavam em Devonshire e no País de Gales – e em Devonshire conheceram um homem muito charmoso – eu nunca ouvi a tia Cass falar de ninguém com tanta admiração – ela não tinha dúvidas que um sentimento mútuo estava em progresso entre ele e a sua irmã. Eles se separaram – mas ele deixou claro que iria procurá-los novamente – e logo depois ele morreu! – minha tia me contou isso nos últimos anos de sua vida – e era algo muito novo para mim então – mas tudo isso, sem nomes e datas, não pode ter nenhuma utilidade para você, eu sei – e não oferece nenhuma contradição para a sua teoria de que ela, tia Jane, nunca teve nenhum sentimento amoroso que atrapalhasse sua felicidade por muito tempo. Essa história não tinha ido longe o suficiente para deixar sofrimento para trás‖ (tradução minha).

48 afirma, apesar do homem em questão ter sido admirado, ela acredita que a sua morte não foi um abalo à felicidade de Jane Austen por eles terem convivido por muito pouco tempo e, portanto, não oferece nenhuma contradição à teoria de James Edward de que Austen nunca teve um sofrimento amoroso significativo. Catherine Hubback também corrobora essa teoria em sua carta, quando tenta lembrar essa mesma história mas acaba confundindo os nomes dos envolvidos: If she was in love, it was with Dr. Blackall52 (I think that was the name) whom they met at some watering place, shortly before they settled at Chawton – There is no doubt she admired him extremely, and perhaps regretted parting, but she always said her books were her children, and supplied her sufficient interest for happiness; and some of her letters, triumphing over the married women of her acquaintance, & rejoicing in her own freedom from care were most amusing.53 (Memoir, p.191)

James Edward empresta o tom da carta de Hubback em seu Memoir insistindo que os livros eram de fato suficientes para a felicidade de sua tia, porém omite sabiamente que ela se divertia à custa de mulheres casadas que conheciam. Em 1816 Jane Austen afirmou para sua irmã: ―I often wonder how you can find time for what you do, in addition to the care of the House; - And how good Mrs. West54 could have written such Books & collected so many hard words, with all her family cares, is still more a matter of astonishment! Composition seems to me Impossible, with a head full of Joints of Mutton & doses of rhubarb‖55 (Letters, pp.335-336) – o que fortalece a tese de que ela recusou Bigg-Withers para manter sua liberdade para escrever. No mesmo tema, poucos meses antes de morrer, escreve para a sobrinha Fanny Knight: ―Oh! What a loss it will be, when you are married. You are too agreable in your single state, too agreable as a Neice. I shall hate you when your delicious play of Mind is all settled down into conjugal & maternal affections‖56 (Letters, p.343). Emily Auerbach chega até mesmo a conjecturar se Austen não centra seus romances em jovens

52 Dr. Blackall foi um senhor apresentado à Austen bem antes da história em questão. Aparentemente ela não só não tinha nenhum sentimento por ele como o considerava pomposo e irritante. Carta à Cassandra Austen em 1798: ―There seems no likelihood of his coming into Hampshire this Christmas, and it is therefore most probable that our indifference will soon be mutual, unless his regard, which appeared to spring from knowing nothing of me at first, is best supported by never seeing me.‖ (Letters, p.20) 53 ―Se ela esteve apaixonada, foi pelo Dr. Blackall (eu acho que era esse o nome), o qual elas conheceram em algum lugar de banhos, um pouco antes de elas se instalarem em Chawton – não há dúvida de que ela o admirava extremamente, e talvez sentisse a separação, mas ela sempre disse que seus livros eram seus filhos, e forneciam a ela interesse suficiente para felicidade; e algumas de suas cartas, triunfando sobre as mulheres casadas que ela conhecia, e alegrando-se da sua própria liberdade dessas obrigações, eram muito divertidas‖ (tradução minha). 54 Jane West (1758-1852), autora de diversos romances, poesia e peças de teatro. 55 ―Com frequência eu me admiro como você consegue achar tempo para tudo o que faz, além do cuidado da casa – E como a boa Mrs. West poderia ter escrito tais livros e coletado tantas palavras difíceis com todas as obrigações familiares é ainda mais espantoso! A composição parece a mim impossível com a cabeça cheia de peças de carneiro e doses de ruibarbo‖ (tradução minha). 56 ―Oh! Que grande perda será quando você se casar. Você é muito agradável sendo solteira, muito agradável como sobrinha. Eu vou odiar quando os jogos deliciosos de seus pensamentos estiverem todos acomodados em afeições conjugais e maternas‖ (tradução minha)

49 mulheres em processo de transição entre adolescência e idade adulta – entre serem filhas e depois serem esposas – precisamente para celebrar aquele momento fulgaz de independência quando, como Fanny, suas heroínas demonstram uma deliciosa capacidade de pensamento (Auerbach, 2004, p.37), antes que tudo seja perdido em nome do casamento. Por último, James Edward menciona também a breve ―história de amor‖ com Thomas Lefroy, entre dezembro de 1795 e janeiro de 1796. Ele diz: At Ashe also Jane became acquainted with a member of the Lefroy family, who was still living when I began these memoirs, a few months ago; the Right Hon. Thomas Lefroy, late Chief Justice of Ireland. One must look back more than seventy years to reach the time when these two bright young persons were, for a short time, intimately acquainted with each other, and then separated on their several courses, never to meet again; both destined to attain some distinction in their different ways, one to survive the other for more than half a century, yet in his extreme old age to remember and speak, as he sometimes did, of his former companion, as one to be much admired, and not easily forgotten by those who had ever known her.57 (Memoir, p.48)

Novamente, nenhum detalhe é mencionado sobre a história ou sobre os sentimentos envolvidos, apenas que Thomas Lefroy, mesmo depois de muitos anos, ainda se lembrava com admiração de Jane Austen – transformando a passagem em mais um testemunho da grandeza da querida tia, inesquecível para todos aqueles que a conheceram. Caroline Austen também parece certa de que não houve uma grande tristeza depois da separação das duas pessoas envolvidas, ainda que ela indique a probabilidade de que Jane Austen tenha ficado decepcionada com isso. That there was something in it, is true—but nothing out of the common way—(as I beleive.) Nothing to call ill usage, & no very serious sorrow endured. (…) I have my story from my Mother, who was near at the time—It was a disappointment, but Mrs. Lefroy sent the gentleman off at the end of a very few weeks, that no more mischief might be done. If his love had continued a few more years, he might have sought her out again—as he was then making enough to marry on—but who can wonder that he did not? He was settled in Ireland, and he married an Irish lady—who certainly had the convenience of money—there was no engagement, & never had been.58 (Carta de Caroline Austen a JEAL,1869?, in Memoir, p.186)

57 ―Em Ashe Jane conheceu um membro da famìlia Lefroy, que ainda estava vivo quando eu comecei essas memórias alguns meses atrás; o Right. Honorável Thomas Lefroy, depois Chefe da Justiça da Irlanda. É necessário voltar mais de setenta anos para alcançar o momento em que esses dois brilhantes jovens estiveram intimamente ligados, por um curto período, e depois separados em seus caminhos diferentes, para nunca mais se encontrarem. Ambos destinados a obter alguma distinção em seus caminhos variados, um para sobreviver ao outro por mais de meio século, ainda assim, em sua avançada idade, para lembrar e falar, como fez ocasionalmente, de sua antiga companheira como uma pessoa muito admirada e dificilmente esquecida por aqueles que a conheceram‖ (tradução minha). 58 ―Que havia alguma coisa ali, é verdade – mas nada fora do normal (como eu acredito). Nada para chamar de abuso, e nenhuma tristeza muito séria foi vivida. (...) Eu ouvi essa história da minha mãe, que estava próxima na época – foi uma decepção, mas Mrs. Lefroy mandou o cavalheiro embora depois de algumas semanas para que nenhum mal ocorresse. Se o amor dele tivesse continuado depois de alguns anos, ele poderia ter procurado ela novamente – já que ele estava ganhando o suficiente para se casar – mas quem pode se espantar que ele não fez isso? Ele estava morando na Irlanda, e se casou com uma moça irlandesa – a qual com certeza tinha o conveniente de ter dinheiro – não havia um noivado entre eles, e nunca houve‖ (tradução minha).

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A falta de informações relativas a essas histórias ajuda tanto no seu enfraquecimento – na forma como James Edward prefere descartá-las como simples flertes, nada emocionalmente relevante – como no seu exagero atual: será tema da segunda parte deste capítulo a forma como essas anedotas são transformadas em romances românticos com Jane Austen como personagem principal. Durante muito tempo, contudo, a representação do Memoir foi vencedora e, assim como em outros aspectos da vida de Jane Austen, também teve seus efeitos na crítica literária. Como cita Kathryn Sutherland, um crítico em 1882 afirmou que ―se Miss Austen tivesse sentido mais profundamente, ela teria escrito de maneira diferente‖ (apud Sutherland, 2005, p.100, tradução minha), o que nos mostra que James Edward pode ter tentado responder à crítica de Charlotte Brontë de que Jane Austen sofria de ausência de sentimento, mas acabou solidificando por muitos anos a ideia oposta. Nada porém teve mais força a partir do Memoir do que a teoria de que Jane Austen teve dois períodos de escrita distintos separados por um longo intervalo. De fato, de acordo com um pequeno caderno de anotações de Cassandra, Austen produziu primeiro três romances, seguidos por um período sem apontamentos, e depois mais três. Na primeira ―fase‖: ―First Impressions‖ – 1796/1797 (revisado e publicado em 1813 como Orgulho e Preconceito), ―Elinor & Marianne‖ – 1797 (revisado e publicado em 1811 como Razão e Sensibilidade), ―Susan‖ – 1798 ou 1799 (revisado e publicado postumamente em 1818 como Northanger Abbey). Na segunda ―fase‖: Mansfield Park, de 1811 a 1813 (publicado em 1814), Emma, entre 1814 e 1815 (publicado em 1816), e Persuasion entre 1815 e 1816, publicado postumamente em 1818. Assim, se tomarmos que ―Susan‖ foi concluìdo o mais tardar em 1799, e que a revisão de Razão e Sensibilidade, o primeiro romance a ser publicado, provavelmente começou em 1809-10, temos então um intervalo de dez anos em que Austen, na teoria, não produziu nada. Essa separação em dois períodos de composição é importante por dois motivos: primeiro, porque associa a criatividade de Austen à sua vida no campo – o intervalo de dez anos coincide com a mudança de sua família para Bath e as residências temporárias até 1809. O primeiro período se localiza em Steventon e o segundo em Chawton, ambas pequenas vilas do interior de Hampshire. Segundo tradição familiar, Austen era tão apegada ao seu lar em Steventon que teria até mesmo desmaiado ao receber a notícia de que a família se mudaria para Bath59, e nunca foi realmente feliz nessa nova cidade. O ―trauma‖ dessa mudança teria

59 Citado por William Austen-Leigh e Richard Arthur Austen-Leigh em ―Jane Austen, Her Life and Letters. A Family Record‖, 1913. Disponìvel em http://archive.org/stream/janeaustenherlif22536gut/22536.txt Acesso em 15/03/2016.

51 afetado tanto a autora a ponto de deixá-la incapacitada para a escrita, e a ―cura‖ só seria alcançada com o retorno definitivo ao campo em 1809. Essa lenda ignora os indícios de que Austen passou os anos de Bath trabalhando nas chamadas histórias de Juvenilia – ela valorizava tanto essas composições que chegou a copiá-las com cuidado em três cadernos separados que ela mesma nomeou como ―Volume The First‖, ―Volume The Second‖ e ―Volume The Third‖, brincando com a estrutura dos romances publicados tradicionalmente em três volumes. Além disso, Austen iniciou um novo romance, The Watsons, que depois foi descartado. Em segundo lugar, a ideia dos dois períodos é importante porque, a partir da tradição criada pelo Memoir, o primeiro perìodo seria visto como a formação, a ―jovem Austen‖ – logo, mais de experimentação do que de produção de obras de valor –, e o segundo seria a Austen ―madura‖, que reescreveu parte da sua produção juvenil para publicação como romances ―adultos‖ antes de partir para a criação de novas histórias. Chawton may be called the second, as well as the last home of Jane Austen; for during the temporary residences of the party at Bath and Southampton she was only a sojourner in a strange land; but here she found a real home amongst her own people. (…) Chawton must also be considered the place most closely connected with her career as a writer; for there it was that, in the maturity of her mind, she either wrote or rearranged, and prepared for publication the books by which she has become known to the world.60 (Memoir, p.67, grifo meu)

Além do ―silêncio‖ em Bath, James Edward também tenta colocar a produção anterior de Austen, durante o período de Steventon, como histórias infantis e experimentais: But between these childish effusions, and the composition of her living works, there intervened another stage of her progress, during which she produced some stories, not without merit, but which she never considered worthy of publication. During this preparatory period her mind seems to have been working in a very different direction from that into which it ultimately settled. Instead of presenting faithful copies of nature, these tales were generally burlesques, ridiculing the improbable events and exaggerated sentiments which she had met with in sundry silly romances. Something of this fancy is to be found in ‗Northanger Abbey,‘ but she soon left it far behind in her subsequent course. (…) The family have, rightly, I think, declined to let these early works be published. (…) and it would be as unfair to expose this preliminary process to the world, as it would be to display all that goes on behind the curtain of the theatre before it is drawn up.61 (Memoir, p.43, grifos meus)

60 ―Chawton pode ser chamada de a segunda e última casa de Jane Austen, pois durante as residências temporárias da família em Bath e Southampton ela era apenas uma hóspede em uma terra estranha; mas aqui ela encontrou um verdadeiro lar entre o seu próprio povo. (...) Chawton deve ser também considerado o lugar mais conectado com a sua carreira de escritora, pois foi lá que, com a maturidade de sua mente, ela ou reescreveu ou rearranjou e preparou para publicação os livros pelos quais ela se tornou conhecida pelo mundo‖ (tradução minha). 61 ―Mas entre essas efusões infantis e a composição dos seus trabalhos permanentes, existiu um outro estágio de seu progresso durante o qual ela produziu algumas histórias, não sem mérito, mas as quais ela nunca considerou dignas de publicação. Durante esse período preparatório a sua mente parece ter trabalhado em uma direção muito diferente daquela na qual ela tomou por fim. Ao invés de apresentar cópias fiéis da natureza, esses contos eram geralmente burlescos, ridicularizando os eventos improváveis e sentimentos exagerados os quais ela tinha

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Podemos perceber que James Edward não considera o que hoje chamamos de Juvenilia – inúmeras histórias curtas, geralmente paródicas, escritas durante toda a sua adolescência – como algo relevante para ser publicado. Ao contrário, para ele trata-se de exercícios de uma mente em formação, que depois vai abandonar as paródias e o burlesco para assumir formas literárias mais maduras. Contudo, com o sucesso da primeira edição do Memoir, James Edward recebeu inúmeros pedidos para publicar mais material da escritora, e decidiu incluir algumas histórias da Juvenilia na segunda edição. Caroline Austen mostrou-se preocupada com isso por compartilhar da visão do irmão de que não eram manuscritos muito bons, apesar de considerar que alguns deles até poderiam ser utilizados: I have thought that the story, I beleive in your possession, all nonsense, might be used. (…) I have always thought it remarkable that the early workings of her mind should have been in burlesque, and comic exaggeration, setting at nought all rules of probable or possible – when of all her finished and later writings, the exact contrary is the characteristic. (…) What I should deprecate is publishing any of the ‗betweenities‘ when the nonsense was passing away, and before her wonderful talent had found it‘s proper channel.62 (Memoir, p.185)

O termo que Caroline usa, ―betweenities‖ – algo como ―intermediárias‖ – indica sua clara visão de dois períodos de produção, sendo o último superior ao primeiro. Além disso, ela mostra seu estranhamento frente à natureza dessas histórias, tão diferentes dos romances publicados, e culmina em um forte julgamento de valor: ―nonsense‖, besteira/bobagem, em oposição ao ―proper channel‖, a forma adequada e madura de composição que permitiu a manifestação de todo o talento de sua tia. As escolhas dessas palavras, como nota Clara Tuite, são fundadoras de um ato de classificação que será a base da formação do cânone da obra de Austen (Tuite, 2002, p.23). Elas indicam, nas suas palavras, O quão intimamemente relacionadas estão a prática e a linguagem de avaliação da interpretação literária com os interesses da formação do cânone e os seus imperativos de higiene de gênero e de consolidação da obra como um monumento. (...) A construção da obra de Austen como os seis romances acabados – os quais constituem, acredito, a expressão de Caroline Austen de ―canal adequado‖ – funcionou como uma ficção de entrada para o cânone e como um modus operandi enraizado da crítica literária sobre Austen. (TUITE, 2002, p.25, tradução minha)

encontrado em diversos romances bobos. Alguma coisa dessa brincadeira pode ser encontrada em ‗A abadia de Northanger‘, mas ela logo deixou isso para trás no seu caminho subsequente. (...) A famìlia, eu acredito que corretamente, não permitiu que esses primeiros trabalhos fossem publicados. (...) e seria tão injusto expor esse processo preliminar ao mundo quanto mostrar tudo o que ocorre por trás das cortinas de um teatro antes da peça começar‖ (tradução minha). 62 ―Eu penso que aquela história, acredito que em sua posse, toda besteira, poderia ser utilizada. (...) Eu sempre achei impressionante que os primeiros trabalhos da mente dela fossem burlescos e comédias exageradas, desprezando todas as regras de probabilidade ou possibilidade – quando em todos os seus textos posteriores concluídos há a característica exatamente oposta. (...) O que eu desaprovo é publicar qualquer uma das suas ‗intermediárias‘ em que as brincadeiras estavam morrendo e antes que o maravilhoso talento dela tivesse encontrado o seu canal adequado‖ (tradução minha).

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James Edward ainda tenta ―salvar‖ alguma coisa dessas histórias que considera ―fracas‖ e que, segundo ele, foram criadas com o propósito de serem ―nonsensical‖, mas que, apesar disso, ainda foram compostas com um inglês de excelente qualidade, puro e simples (Memoir, p.40). De resto, como aponta Katie Halsey, assim como a família, é evidente que os seus leitores também não sabiam muito bem o que fazer com a bagunça e anarquia dos seus primeiros manuscritos, a julgar tanto pelas críticas da época quanto pela resposta do público (Halsey, 2013, p.114). Obviamente, para a família era importante que a Juvenilia fosse entendida como brincadeira de criança. Caso contrário, se o tom afiado das paródias da jovem Jane Austen fosse levado a sério, cairia por terra a imagem da doce e querida tia, incapaz de falar mal de alguém – pois, se nos romances publicados Austen escolhe a ironia como sua arma preferida, o que coloca suas críticas nas entrelinhas, na Juvenilia o ataque é aberto e declarado, o riso discreto se torna gargalhada, e o que é pior, tudo absolutamente consciente por parte da autora adolescente. Logo, se James Edward achou necessário domesticar os romances de Austen para garantir sua inocência, com a Juvenilia não havia outra saída senão descartá-la como bobagens sem sentido. Essa atitude de James Edward relacionava-se também com a ideia iniciada por Henry Austen de que Jane Austen havia se tornado escritora puramente por acaso, sem qualquer tipo de ambição financeira ou por reconhecimento. Transformar a Juvenilia em pequenas histórias ridículas escritas apenas para o divertimento da família faz sentido em conjunto com a sua versão da tia que escrevia romances como hobby em seu tempo livre e não fazia questão de ser publicada. ―I do not think‖, afirma James Edward, ―that she was herself much mortified by the want of early success. She wrote for her own amusement. Money, though acceptable, was not necessary for the moderate expenses of her quiet home‖63 (Memoir, p.106). Contudo, como coloca Harman, mesmo se levarmos em conta as convenções sobre biografias do período vitoriano, e o fato de que o escritor era o sobrinho da pessoa estudada, essa é uma visão absolutamente imprecisa da atitude de Jane Austen em relação a sua profissão: ―Austen tinha ficado abalada pela humilhação da rejeição e atrasos que ela enfrentou na primeira metade de sua carreira, queria realmente ganhar dinheiro e não tinha nenhuma intenção de escrever apenas para seu próprio divertimento‖ (Harman, 2009, p.27, tradução minha). Realmente, em vista das cartas de Austen enviadas para diferentes familiares, fica impossível aceitar a versão de James Edward:

63 ―Eu não acredito que ela tenha ficado muito abalada pela ausência de sucesso imediato. Ela escrevia para o seu próprio divertimento. Dinheiro, ainda que aceitável, não era necessário para as despesas moderadas do seu lar tranquilo‖ (tradução minha).

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Para Cassandra Austen: ―I am never too busy to think of S&S. I can no more forget it, than a mother can forget her sucking child; … The Incomes remain as they were, but I will get them altered if I can‖.64 (Letters, p.190) Para Frank Austen: ―You will be glad to hear that every Copy of S&S is sold & that it has brought me £140 – besides the Copyright, if that should be of any value – I have now therefore written myself into £250 – which only makes me long for more.‖65 (Letters, p.226)

Para Fanny Knight: ―You will be glad that the first Edit: of MP is all sold. … I am very greedy & want to make the most of it; - but as you are much above caring about money, I shall not plague you with any particular. – The pleasures of Vanity are more within your comprehension, & you will enter into mine, at receiving the praise which every now & then comes to me, through some channel or other.‖66 (Letters, p.293)

Para Fanny Knight: ―People are more ready to borrow & praise, than to buy – which I cannot wonder at; but tho‘ I like praise as well as anybody, I like what Edward calls Pewter too.‖67 (Letters, pp.299-300)

Como nota Emily Auerbach, como essa escritora profissional, ambiciosa, preocupada com as questões relativas aos seus livros é diferente da querida tia Jane, a qual apenas escrevia humildemente como forma de recreação sem nunca pensar em dinheiro (Auerbach, 2004, p.38). Até mesmo a forma como Austen escrevia torna-se nas mãos de James Edward mais uma prova de sua modéstia: ―She was careful that her occupation should not be suspected by servants, or visitors, or any persons beyond her own family party. She wrote upon small sheets of paper which could easily be put away, or covered with a piece of blotting paper‖68 (Memoir, p.82). Contudo, como demonstra Kathryn Sutherland (2005, p.145), Austen escrevia em livretos que ela mesma produzia dobrando folhas de papel e costurando uma dentro da outra, um esforço para que seus manuscritos tivessem o máximo possível a aparência final de um livro, o que indica seu objetivo de ser publicada e não de esconder o que fazia. Os manuscritos que sobreviveram até hoje nos mostram também que a ideia de um talento natural, de uma pessoa que escrevia sem esforço ou preocupação também

64 ―Eu nunca estou ocupada demais para pensar em R&S. Eu não consigo esquecê-lo, não mais do que uma mãe esquece seu filho que amamenta... As rendas permanecem o que eram, mas eu vou alterá-las se puder‖ (tradução minha). 65 ―Você ficará feliz de saber que todas as cópias de R&S foram vendidas e que ele me rendeu 140 libras – além do direito autoral, se isso for de algum valor – Eu agora me escrevi no valor de 250 libras – o que me fez somente querer mais‖ (tradução minha). 66 ―Você ficará feliz que a primeira edição de MP está esgotada... Eu sou muito gananciosa e quero aproveitar o máximo dele – mas como você está acima de se importar com dinheiro, eu não vou atormentá-la com nenhum detalhe. – Os prazeres da vaidade estão mais dentro da sua compreensão, e você vai-me entender quando recebo os elogios que de vez em quando chega a mim através de um meio ou outro‖ (tradução minha). 67 ―As pessoas tendem mais a emprestar e elogiar do que comprar – o que não me surpreende; mas apesar de eu gostar de elogios tanto quanto qualquer pessoa, eu também gosto daquilo que Edward chama de cobre‖ (tradução minha). 68 ―Ela tomava cuidado para que a sua ocupação não fosse descoberta por empregados ou visitas ou qualquer pessoa fora do círculo da família. Ela escrevia em pequenas folhas de papel que poderiam ser facilmente guardadas ou encobertas por um papel mata-borrão‖ (tradução minha).

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é uma fabricação – as revisões, adendos, anotações, são provas de um trabalho intenso, de uma dedicação àquela obra, e revelam, como diz Sutherland, que a simplicidade do resultado final das suas histórias foram resultado, na verdade, de um árduo e doloroso trabalho de revisão e não de uma perfeição inconsciente (Sutherland, 2002, p.xvi). Ela conclui: ―Os manuscritos não publicados desafiam a imagem de Austen-Leigh da escritora que é, em primeiro lugar, a ‗querida tia Jane‘, cujos romances são extensões sem esforço de uma vida saudável e pacata vivida em um ambiente simples‖ (idem, tradução minha). A única coisa que James Edward parece admitir é que Austen ―certainly took a kind of parental interest in the beings whom she had created, and did not dismiss them from her thoughts when she had finished her last chapter‖69 (Memoir, p.118), certamente uma resposta àquele ensaio de 1866 que acusava Austen de não ter amor maternal por seus filhos – os livros. Entretanto, ainda assim ele fica longe de demonstrar o alto interesse que Austen tinha não somente por seus romances e personagens como suas criações, mas também com os aspectos burocráticos e financeiros das publicações. Por que dediquei tantas páginas à biografia de James Edward? A resposta é simples. Por um lado, como nota Auerbach, o Memoir exerceu uma grande influência nos subsequentes estudos sobre Austen, novas biografias e até verbetes de enciclopédia, e nós ainda hoje estamos sentindo os efeitos do mito que James Edward produziu em 1870 (Auerbach, 2004, p.7). Isso foi reforçado pelo fato de que demorou muito tempo para que críticos se debruçassem sobre o seu texto não em busca de informações sobre Jane Austen, mas em busca da forma como ela foi construída ali, deixando de enxergar o Memoir como um relato factual objetivo. Ainda assim, mesmo para biografias recentes, os relatos de Henry Austen, James Edward e de suas irmãs constituem a base do que se sabe sobre Jane Austen. Como observa Sutherland, o Memoir em especial É uma colcha de retalhos de fragmentos altamente cortados de cartas, digressões prosaicas sobre a vida doméstica da aristocracia rural na Inglaterra regencial, reminiscências familiares, e genealogias entendiantes. Mas é também a primeira biografia de Jane Austen de algum fôlego, e a sua importância duradoura se deve ao fato de que, independente das mudanças de visões, ele permanece como a principal autoridade para a tradição subsequente (....); o Memoir fornece o único testemunho documental (...). (SUTHERLAND, 2005, pp.70-71, tradução minha)

De uma forma geral, portanto, o que foi relatado no Memoir teve um efeito muito duradouro na crítica literária das obras de Austen. Não só fixando a autora como a figura da ―dear Aunt Jane‖ – que se tornou a querida tia de todos os seus fãs – mas uma forma de ler

69 ―certamente tinha um tipo de interesse paternal a respeito das personagens que ela criava, e não as removia de sua mente após ter terminado seu último capìtulo‖ (tradução minha).

56 seus romances a partir dessa figura e localizá-la, como observa Auerbach, em um canto literário respeitável para uma mulher, e não no panteão dos grandes escritores (Auerbach, 2004, p.16). É a partir desse lugar que, ao longo do século XX, Jane Austen vai se tornar a mãe dos romances românticos, a precursora da ―chick-lit‖70, a rainha da leitura feminina simples e boba. Ao mesmo tempo, como já foi falado, com a teoria de James Edward dos dois períodos de composição de Austen, a sua obra também vai ser irremediavelmente associada ao campo, ao mundo rural inglês pré-Revolução Industrial. O condado de Hampshire, com suas paisagens tranquilas, também adquire status simbólico de uma era perdida, cujo saudosismo já é possível sentir no Memoir. Logo, o fim do século XIX testemunhou a reconfiguração de Austen na querida tia Jane, ao mesmo tempo em que ela foi apropriada para simbolizar a glória de um passado perdido e, por que não, a própria alma da Inglaterra. Essa dupla imagem entraria o século seguinte absorvida tanto pelos fãs – agora detentores do nome ―Janeites‖ – quanto pelos acadêmicos da nascente disciplina de literatura inglesa nas universidades. A única voz discordante, em certa parte, do Memoir veio do outro ramo da família, os descendentes de Edward Knight, o irmão de Austen que havia sido adotado pela família Knight para se tornar o herdeiro da propriedade de Godmersham, no condado de Kent, entre outras. Sua filha Fanny Knight recebera de Cassandra Austen todas as cartas de Jane Austen que haviam sido preservadas, porém esse material não foi dado a James Edward na época da composição do Memoir. Mensagens das filhas de Fanny a ele indicam que a mãe estava senil e já não se lembrava das cartas, onde as havia colocado ou se estavam perdidas. Contudo, por uma coincidência talvez um pouco suspeita, em 1884, apenas dois anos depois da morte de Fanny, seu filho Lord Brabourne publica as cartas que a mãe havia deixado guardadas com muito cuidado e que não estavam nem um pouco ―perdidas‖. Em sua introdução, Brabourne faz questão de destacar, por exemplo, que ―a comparison of these letters with some quoted by Mr. Austen Leigh makes it abundantly clear that they have never been in his hands, and that they are now presented to the public for the first time‖. E ainda, que ―the letters which show what her own ‗ordinary, everyday life‘ was, and which afford a picture of her such as no history written by another person could give so well‖ (LB, s/p)71.

70 ―Chick-lit‖ – ―literatura de mulheres‖ (―chick‖ é uma gìria que significa mulheres, especialmente jovens), mas o termo se refere especificamente a um tipo específico de romance que traz mulheres jovens, urbanas e independentes como heroínas, porém com grandes dificuldades em suas vidas pessoais/profissionais e relacionamentos amorosos. Também é usado às vezes de forma pejorativa, ―literatura de mulherzinha‖. 71 ―uma comparação entre essas cartas e aquelas citadas por Mr. Austen Leigh deixa muito claro que elas nunca estiveram em suas mãos, e que agora elas são apresentadas ao público pela primeira vez‖ / ―as cartas que

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Assim, nessa edição o leitor poderia encontrar não apenas um material inédito de Jane Austen, mas também uma oportunidade de conhecê-la diretamente, e não através das mãos de um biógrafo. Os descendentes de Kent (Knight) então acenam para os de Hampshire (Austen- Leigh) que eles detêm a posse da verdadeira Jane Austen. Nesse momento, a geração que conheceu e interagiu com Jane Austen – irmãos, primos próximos e sobrinhos mais velhos – já havia morrido. Brabourne mesmo não conheceu a famosa tia escritora, e talvez seja por isso que ele não hesitou em publicar um material até então considerado privado: ―I am now able to present to the public entirely new matter, from which may be gathered a fuller and more complete knowledge of Jane Austen and her ‗belongings‘ than could otherwise have been obtained. (…) I attempt no ‗Memoir‘ that can properly be so called, but I give the letters as they were written, with such comments and explanations as I think may add to their interest‖72 (LB, s/p). Clara está a principal diferença entre as publicações de James Edward e Brabourne: o primeiro escreveu a biografia com um desejo contraditório de informar e censurar, ou de controlar o que o público poderia saber a respeito de Austen, enquanto o segundo decide levantar o véu que encobria a imagem da escritora. Isso não significa, no entanto, que Brabourne não tenha feito também um processo de censura das cartas. Sabemos hoje que a edição de 1884 não continha todas as cartas encontradas, que muitas não foram transcritas por completo, e que em algumas ocasiões Brabourne decidiu alterar as palavras de Austen. Por exemplo, naquela carta em que Jane Austen comenta sobre o mau hálito de duas jovens, Brabourne preferiu alterar a frase para ―Miss Debary, Susan & Sally all in black ... made their appearance & I was as civil to them as their bad breath would allow me circumstances would allow me‖73 (LB, s/p). Afinal, os Knight eram parte da alta aristocracia inglesa e não seria uma boa ideia ter uma tia, não importa o quão famosa, abertamente grosseira em plena era vitoriana. A própria Fanny Knight, em carta de 1869 – teoricamente já senil – escreve à sua irmã Marianne dizendo que Jane Austen was not so refined as she ought to have been from her talent & if she had lived 50 years later she would have been in many respects more suitable to our more more refined tastes. They [the Austens] were not rich & the people around with whom they chiefly mixed, were not at all high bred, or in short anything more than

mostram como era sua vida ordinária comum e que permitem criar um retrato dela como nenhuma história escrita por outra pessoa poderia ter criado tão bem‖ (tradução minha). 72 ―Eu posso agora apresentar ao público um material totalmente novo, do qual pode ser construìdo um conhecimento mais completo e detalhado de Jane Austen e de suas ‗coisas‘ que de outra forma não poderia ser obtido. (…) Eu não tento esboçar um ‗Memoir‘ que faça jus ao nome, mas eu forneço as cartas conforme elas foram escritas, com comentários e explicações que pudessem aumentar seu interesse‖ (tradução minha). 73 ―Miss Debary, Susan e Sally todas de preto… apareceram e eu fui tão educada com elas quanto o seu mau hálito me permitiu circunstâncias me permitiram‖ (tradução minha).

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mediocre (…) Both the Aunts (Cassandra and Jane) were brought up in the most complete ignorance of the World & its ways (I mean as to fashion &c) & if it had not been for Papa‘s marriage which brought them into Kent, & the kindness of Mrs. Knight, who used often to have one or other of the sisters staying with her, they would have been, tho‘ not less clever & agreeable in themselves, very much below par as to good Society & its ways.74 (LE FAYE[ed.], 2000, pp.38-39)

Obviamente a memória de Fanny, doente ou não, foi influenciada pelo tempo, pela sua posição social como Lady Knatchbull, e pela sensibilidade vitoriana. Contudo, é muito interessante observar como esse ramo da família acredita que teria sido a influência de Edward Knight e o tempo em que elas passavam em Kent responsável pela ―melhoria‖ das duas irmãs. A edição das cartas realizada por Brabourne pode ser entendida, então, como uma tentativa de mascarar a falta de refinamento de Jane Austen, e construir uma outra Jane Austen mais de acordo com os padrões daquela alta sociedade do fim do século XIX. De qualquer forma, mesmo com essas intervenções, a publicação de Brabourne, como nota Harman, foi algo inusitado na família porque apresentava Austen como um objeto legítimo de curiosidade e especulação, o que era muito diferente da atitude de James Edward que, apenas dez anos antes, procurava esconder mais do que revelar (Harman, 2009, p.120). Além disso, Brabourne foi o primeiro membro da família a perceber o potencial de mercadoria de todas as coisas relativas à Austen (Sutherland, 2005, p.3), tendo oferecido em 1891 dez cartas para um leilão da Sotheby‘s – indicando também seu pouco apego sentimental, pois ele definitivamente não precisava do dinheiro. Com sua morte dois anos depois, todas as outras cartas acabaram sendo leiloadas, marcando o fim do controle da família sobre o legado da autora (Sutherland, 2005, p.223). Podemos concluir, portanto, que o Memoir de James Edward produz uma ―Aunt Jane‖ especìfica de acordo com o seu ramo da famìlia, e que Brabourne tenta oferecer uma outra versão. Como nota Sutherland, a Jane Austen de Hampshire era amante da natureza, religiosa, doméstica e de classe média, enquanto a Jane Austen de Brabourne estava sempre em Kent (e sendo melhorada por isso) e tinha uma natureza mais emocional e introvertida (Sutherland, 2005, p.77). Sutherland nota ainda que é muito comum, em biografias atuais, uma ―leitura bipolar‖ das informações que temos sobre Austen: ―Jane odiava Bath; em recentes interpretações, Jane amava Bath. Jane tinha inveja de Godmershan e da sorte de

74 ―não era tão refinada quanto deveria dado o seu talento e se ela tivesse vivido 50 anos mais ela teria sido mais adequada aos nossos gostos mais refinados. Eles [os Austens] não eram ricos e as pessoas com quem eles se relacionavam não eram de educação elevada, ou, em suma, mais do que medíocre. (...) Ambas as tias (Cassandra e Jane) foram criadas em completa ignorância do mundo e suas maneiras (eu digo em relação à moda, etc) e se não fosse pelo casamento do papai que as trazia para Kent, e a gentileza da Mrs. Knight, que frequentemente costumava convidar uma ou outra irmã para ficar com ela, elas teriam sido, mesmo que não menos espertas e agradáveis em si mesmas, muito inferiores às maneiras da boa sociedade‖ (tradução minha).

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Edward e achava que ele não compartilhava sua fortuna o suficiente com sua mãe e irmãs; Jane adorava Godmershan e tinha em Edward um irmão amoroso e cuidadoso‖ (Sutherland, 2005, p.105, tradução minha). Essas interpretações opostas, segundo Sutherland, não seriam um fenômeno atual, mas têm suas origens nas versões rivais de James Edward e Lord Brabourne. De forma muito curiosa, essas duas versões opostas são ilustradas pelos retratos de Austen escolhidos por cada sobrinho para suas publicações. Devemos lembrar que na década de 1830, por ocasião da reedição das obras de Austen, seus irmãos Henry e Cassandra haviam dito que não existia nenhuma imagem da autora disponível. Contudo, quarenta anos depois, James Edward descobriu um pequeno desenho em aquarela de Jane Austen, a princípio feito por Cassandra, sem data e sem assinatura. A origem dessa aquarela não é definida, nunca tendo sido mencionada nas cartas e documentos da família que sobreviveram. No entanto, hoje é oficialmente considerada o único retrato autêntico de Jane Austen e está localizada na National Portrait Gallery desde 1948. Por estar inacabado, James Edward contratou um artista para finalizar o desenho – e melhorá-lo – antes de enviá-lo para o gravurista produzir a imagem que seria utilizada no livro. Todo esse processo pode ser visto abaixo:

Fig. 4 – ca.1810 Fig. 5 – 1869 Fig. 6 – 1870 Fig. 7 – 1873

A primeira imagem (Fig. 4) é o desenho inacabado de Cassandra, provavelmente feito no ano de 1810. Somente o rosto está relativamente trabalhado em aquarela, o resto do corpo é apenas um rascunho a lápis. A segunda imagem (Fig. 5) é a aquarela ―melhorada‖ de Mr. Andrews, de 1869. É possível observar algumas mudanças na postura de Austen – os braços não estão mais cruzados, as costas mais retas, e as feições foram bem suavizadas. Além disso, os trajes foram incrementados – tanto o vestido quanto a toca – ganhando babados e outros detalhes mais femininos. Até a cadeira foi promovida, provavelmente de

60 uma cadeira normal de cozinha para uma da sala de estar. A figura 6 mostra a gravura para o Memoir feita por Lizars em 1870 a partir da aquarela de Andrews. Os detalhes das roupas estão mais visíveis, e Jane Austen ganhou definitivamente um par de olhos grandes e arredondados, cuja expressão doce é um total contraste com o original de Cassandra, em que Austen parece estar claramente aborrecida por ter que ficar sentada ali para a irmã desenhá-la. O mais interessante é que esta é a imagem mais conhecida e mais utilizada hoje, apesar de uma total fabricação. Em carta a James Edward, outra sobrinha de Austen, Cassandra Esten, afirma: ―it is a very pleasing, sweet face, -tho‘, I confess, not thinking it much like the original; - but that, the public will not be able to detect‖75 (apud Johnson, 2012, p.37). A última figura, número 7, é uma gravura de 1873 produzida para ilustrar Austen no livro Portrait Gallery of Eminent Men and Women of Europe and America, de Evert A. Duyckinck. O artista cria o resto do corpo de Austen, melhora o cenário de fundo – definitivamente a sala de estar – e coloca um livro em sua mão. Mas o detalhe mais importante é a aliança de casamento na mão esquerda. Como observa Claudia Johnson, o artista com certeza não tinha a mínima ideia de quem era Jane Austen, apenas trabalhou com a gravura de 1870 e com as informações ―mulher‖ e ―escritora‖ (Johnson, 2012, p.44). Obviamente a junção dessas suas palavras significava, então, que ela deveria ser casada. Para a edição das cartas, no entanto, Lord Brabourne decidiu não utilizar essa imagem consolidada pelo Memoir de James Edward. Ele havia descoberto um (possível) retrato de Austen quando adolescente na posse de um primo, Morland Rice. Diversas cartas foram trocadas entre Brabourne e outros primos para tentarem, juntos, atestar a autenticidade desse retrato. Apesar de ninguém se lembrar dele, muitos se recordavam de terem ouvido falar da existência de um retrato feito na juventude da autora (Johnson, 2012, p.46). Isso foi suficiente para Brabourne, que colocou então na sua edição das cartas a imagem abaixo (Fig.8), hoje conhecida como o ―Rice Portrait‖ – altamente polêmico pois especialistas consideram que, apesar da tradição familiar, é muito provável que não seja Jane Austen:

75 ―É um rosto muito agradável e doce, mas eu confesso não achá-lo muito parecido com o original – mas isso o público nunca vai poder detectar‖ (tradução minha).

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Fig. 8 – ca.1792-93?

Para além do debate sobre a sua autenticidade, o efeito de sua publicação foi muito grande, pois, segundo Johnson, ele deu ao público vitoriano uma nova imagem de Austen, permitindo o início da sua desvinculação com a figura santa do Memoir e a sua associação com a autora da Juvenilia – satírica, enérgica, animada (Johnson, 2012, p.50). Da mesma forma como as cartas publicadas por Brabourne desafiavam o Memoir de James Edward, o retrato Rice não é de uma jovem doce e modesta, mas muito mais parecida com aquele relato de Mary Russel Mitford que James Edward se esforçou para desacreditar, de que Jane Austen era ―the prettiest, silliest, most affected, husband-hunting butterfly‖. Como coloca Johnson, essa jovem Austen nos parece vivaz, levada, absolutamente capaz de rir do mundo nas suas sátiras juvenis (Johnson, 2012, p.49). Brabourne inicia assim uma ―contra- tradição‖, fornecendo material para aqueles que se recusavam a acreditar na imagem construída por James Edward. A partir do Memoir e das Letters de Brabourne, duas versões de Jane Austen foram se consolidando, cada uma sendo aproveitada por um grupo diferente de leitores. A querida tia Jane de James Edward tornou-se a santa Jane dos Janeites, enquanto a afiada Jane Austen das cartas foi ganhando cada vez mais força no meio acadêmico, inegavelmente atraído muito mais pela ironia e riso sarcástico da autora do que pela sua lendária candura. Hoje parece necessário, quando se adentra as longas discussões sobre as obras de Austen, que uma ou outra versão seja escolhida, já que a interpretação dos seus romances parece indissociável de uma definição de que tipo de pessoa ela teria sido. Contudo, se é preciso que um retrato de Austen represente sua arte, então devemos ficar com a aquarela de Cassandra de 1805 (Fig.9) – essa sim, assinada e sem sombra de dúvidas autenticada – que mostra Austen sentada em um campo:

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Fig. 9 – 1805

Assim como esse desenho de Austen de costas para nós revela a sua existência, mas esconde para sempre quem teria sido a ―verdadeira‖ Jane Austen, os seus romances permanecem ambíguos pela sua ironia, incertos, objeto das mais variadas e muitas vezes opostas interpretações. Rachel Brownstein resume essa questão, dizendo: ―precisão era a sua forte armadura, ambiguidade e paradoxo suas ferramentas. Ela continua a nos interessar porque os posicionamentos que os romances desenvolvem sobre o que é conduta e sentimento ‗certo‘ e ‗errado‘, sobre assuntos como classe, gênero e nação – seus temas e também nossos, em parte porque seus romances formaram a nossa cultura – permanecem esquivos‖ (Brownstein, 2011, p.8, tradução e grifo meus). Da mesma forma, a vida de Jane Austen também permanece indefinida, mesmo depois de várias biografias. Estas serão escritas, como nos lembra Sutherland, com ou sem provas, criando obras que se definem como um cabo de guerra entre sonho e história (Sutherland, 2005, pp.56-58), alimentadas pela lembrança de Caroline Austen de Cassandra destruindo grande parte das cartas de Jane Austen. Seria isso indício de algum segredo na vida da autora? É dessa forma que, quase duzentos anos depois de sua morte, podemos encontrar Jane Austen como personagem principal de diversos romances, vivendo suas aventuras amorosas na certeza de que elas ficariam escondidas para sempre.

1.2 - Uma história acadêmica

Se a publicação do Memoir de James Edward e das cartas editadas por Lord Brabourne foi responsável pela popularização de Jane Austen no final do século XIX, ela

63 também teve grande peso na sua entrada ao cânone inglês que iria ser constituído durante as próximas décadas. Que Jane Austen hoje faz parte inconteste deste cânone nós já sabemos, mas é mais interessante procurar saber como ela foi parar lá do que discutir se ela deveria estar ali ou não. Claire Harman afirma, por exemplo, que a popularidade de Jane Austen entre alguns acadêmicos ingleses responsáveis pelo desenvolvimento da disciplina de Literatura Inglesa nas universidades, alguns declaradamente Janeites, fez com que esses mesmos professores, uma vez cientes do surgimento da ideia de cânone – obras essenciais ou exemplares de uma determinada cultura – colocassem Austen nessa seleta lista, de preferência em uma posição de destaque (Harman, 2009, p.162). Trata-se de um processo complexo de quase cem anos, durante o qual Austen vai ser transformada de apenas boa escritora para gênia, a responsável pela forma moderna do romance, sìmbolo maior da ―grande tradição‖ inglesa, para depois ser criticada, reconstruída e apropriada por teorias modernas de interpretação como os estudos de gênero e os pós-colonialistas. A segunda parte deste capítulo vai centrar-se na apresentação desse processo de forma cronológica. No período após a sua morte e antes da publicação do Memoir, Austen foi relegada a uma relativa obscuridade. Durante os anos de 1820 suas obras não estavam nem mais sendo impressas, e por isso é comum afirmar que, apesar de ter influenciado um outro tipo de romance da época, o ―silver fork novel‖, a autora era apreciada por poucos. Em 1833 uma nova edição de seus seis romances é publicada, e o editor Richard Bentley, apesar de não ter ganhado muito dinheiro com Austen, manteve durante os próximos vinte anos uma constância de novas mas pequenas edições. Segundo Harman, o fato de que essas edições eram acessíveis foi responsável pelo aumento gradual dos leitores de Austen nesse período em que ela não recebeu praticamente nenhuma atenção de críticos (Harman, 2009, p.83). De acordo com a coletânea de ensaios sobre Austen de Brian Southam76, nessas décadas somente seis deles foram publicados sobre a autora, que permanecia, nas palavras de Harman, muito elogiada porém pouco lida (Harman, 2009, p.94). Havia, claro, também aqueles que leram mas não gostaram de seus romances, como vimos anteriormente com Charlotte Brontë. A opinião de Brontë, aliás, é muito parecida com a de outra escritora, Elizabeth Barret Browning, que trocou diversas cartas com Mary Russell Mitford sobre Austen entre os anos de 1840 e 1845. Enquanto Mitford considerava Austen praticamente uma escritora perfeita, Browning concedia apenas que sua obra era

76 Jane Austen – The Critical Heritage, 2 vols. Ed.: Brian Southam, 1968 e 1987.

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―perfeita em seu estilo‖ (apud Halsey, 2013, p.158, tradução minha). Ela escreve em 1º de Junho de 1843: My very dear friend, I no more think of denying her perfection in her sphere, than I deny the rainyness of this May. (…) She is perfect in what she attempts (…) but the excellence lies, I do hold, rather in the execution than the aspiration. It is a narrow, earthly, & essentially unpoetical view of life: It is only half a true view. (…) We rise from her books, amused, pleased (…) but elevated & purified in soul, we never rise. (…) Conventional Life is not the Inward Life (…) and a writer who is not one-sided, must comprehend both in his view of Humanity; Jane Austen is one-sided – and her side is the inferior & darkest side.77 (apud Halsey, 2013, p.160-161)

Podemos perceber que, para Browning, a escrita de Austen é muito comedida, carece de sentimentos fortes – de paixão, como reclamava Brontë – e exatamente por isso é inferior, porque não aborda a totalidade do ser humano. Austen é, assim, divertida porém deficiente, e essa deficiência origina-se no seu bom-comportamento, no sentido de que, escrevendo como uma lady, uma mulher de respeito, ela nunca pode se aprofundar nas questões da alma: ―I mean however that her ladyhood is stronger than her humanity‖78 (apud Halsey, 2013, p.167). Essa ideia com certeza não ficou restrita às cartas trocadas entre essas duas escritoras, pois como mostra Halsey, mesmo muitos anos depois, era possível encontrar a mesma noção reproduzida na revista Englishwoman’s Domestic Magazine de 1866, na qual o escritor compara Brontë e Austen e escreve que ―Charlotte Brontë escreveu como uma mulher inspirada, Jane Austen como uma dama cultivada‖ e se torna axiomático em Virgina Woolf, que afirmou: ―se dissermos que Jane Austen era uma dama e que Chalotte Brontë não era, nós faremos o que era necessário ser feito em termos de definição‖ (apud Halsey, 2013, p.166, tradução minha). Possivelmente a questão da falta de sentimento tenha sido uma das imagens da obra de Austen que James Edward quis refutar em seu Memoir, apesar de essa representação de uma escritora refinada e respeitosa parece ser exatamente o que ele objetivava. Além disso, pós-Memoir, aqueles que não apreciavam as obras de Austen baseavam-se, primeiro, naquela imagem de uma escritora ―miniaturista‖, sobre a qual dificilmente algo sério poderia ser falado porque ela escrevia de forma muito clara e simples e numa escala muito pequena (Harman, 160). E, em segundo lugar, também viam Austen como uma autora ―incidental‖,

77 ―Minha querida amiga, eu não penso em negar a perfeição dela em sua esfera, da mesma forma como não penso em negar as chuvas desse maio. (...) Ela é perfeita no que tenta fazer, (...) mas a excelência está, eu defendo, mais na execução do que na aspiração. É uma visão de vida estreita, terrena e essencialmente sem poesia: é apenas uma meia visão. (...) Saìmos de seus livros divertidos, satisfeitos (…) mas elevados e purificados em alma, nunca saímos. (...) A vida convencional não é a vida interior (...) e um escritor que não vê apenas um lado deve compreender ambos em sua visão da humanidade; Jane Austen vê apenas um lado – e o seu lado é o inferior e mais escuro‖ (tradução minha). 78 ―Eu quero dizer contudo que a sua natureza como uma dama é mais forte que a sua humanidade‖ (tradução minha).

65 cujas obras foram escritas de forma inconsciente ou instintiva (Harman, 2013, p.161) – afinal, que tipo de análise poderia ser feita em um romance cuja qualidade é pura sorte? Até mesmo a escritora Margaret Oliphant, que no início considerava Austen o oposto da descrição de James Edward e defendia a representação de suas personagens como ―cruéis em sua perfeição, ou diábolicos‖ (apud Halsey, 2013, p.177, tradução minha), parece depois ter sido influenciada por aquela imagem da inocência que ganhava tanta força. Quando publicou, em 1882, seu Literary History of England, Oliphant também descreve Austen como escrevendo ―a partir de um instinto natural, preferindo essa maneira de se entreter ao bordado delicado, contando histórias por diversão, sem nenhum motivo secreto por trás disso‖ (apud Halsey, 2013, p.178, tradução minha). Infelizmente seus admiradores pareciam também não se libertar dessa imagem que vinha muito a calhar frente ao gênero da escritora. Henry Austen parecia muito orgulhoso ao citar, em seu Biographical Notice, o seguinte ―elogio‖ à sua irmã: ―When 'Pride and Prejudice' made its appearance, a gentleman, celebrated for his literary attainments, advised a friend of the authoress to read it, adding, (…) 'I should like to know who is the author, for it is much too clever to have been written by a woman‘‖79 (BN, p.149). Como nota Harman, críticos tomaram a qualidade da obra de Austen não como um sinal de que as mulheres poderiam ter um potencial maior do que normalmente se acreditava, mas que, na verdade, Austen era uma exceção, um tipo de ―homem honorário‖ (Harman, 2009, p.135). Ela completa: Não foi nenhum acaso que o apelo de Austen, reconhecido por esse grupo durante um período de crescente feminismo, a sua restrição verbal e a sua vida tranquila começaram a ser utilizados como exemplos do que o espectro da ―nova mulher‖ dos anos de 1890 ameaçava derrubar. (...) Jane Austen veio a calhar aqui como um modelo de mulher que conquistou muitas coisas em uma sociedade não reformada e que parecia perfeitamente contente com a sua vida, e que, longe de reclamar sobre as condições da sua existência ou sobre os direitos das mulheres em geral, exibia sua disposição alegre e satisfeita para todos e discretamente continuava escrevendo seus livros charmosos. (HARMAN, 2009, p.135, tradução minha)

A imagem da feminilidade, da modéstia e da inocência de Jane Austen, cujos efeitos são considerados prejudiciais hoje pois simplificam sua obra e fazem com que o leitor perca muito da sua complexidade, não parecia ser um problema naquela época nem mesmo para seus Janeites mais fervorosos. Como observa Emily Auerbach, Lord David Cecil escreveu em seu estudo sobre Jane Austen que o fato mais surpreendente sobre ela era que ela não tinha se dedicado ao seu trabalho ou o abordado de maneira séria. G. K Chesterton observou que ela escrevia uma ficção

79 ―Quando ‗Orgulho e Preconceito‘ foi publicado, um cavalheiro, celebrado por suas conquistas literárias, aconselhou um colega da autora a ler o livro, dizendo (…) ‗Eu gostaria de saber quem é o autor, pois é muito inteligente para ter sido escrito por uma mulher‘‖ (tradução minha).

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―tão doméstica quanto diários em intervalos de tortas e pudins, sem nem sequer olhar para fora da sua janela para notar a Revolução Francesa‖. Outros críticos do século XVIII e XIX se referiam à escrita de Austen como um bom passatempo, uma agradável distração, uma diversão privada, ou uma questão secundária. O crítico que escreveu a introdução de 1906 da edição de suas obras e cartas declarou que ela nunca trabalhou com nenhum texto, mas apenas ―encontrou a todos nas placas sensíveis da sua própria mente delicada‖. (AUERBACH, 2004, p.36, tradução minha)

O argumento contrário, de que Austen era uma escritora dedicada, que reescrevia e revisava suas histórias, que se preocupava com suas palavras, com correções nas edições, com a reação das pessoas quando liam seus romances, esse argumento demoraria muito para ser introduzido nesse cenário. É por isso que, após o Memoir, o público em geral, vivendo em um mundo agitado da ferrovia, redescobriu a autora e seus romances como representantes de uma perdida Era Pré-industrial da Inglaterra, e criaram então um novo rótulo para a autora: ―Austen como um tesouro nacional‖ (Todd, 2015, p.34, tradução minha). Ao mesmo tempo, a dupla imagem de Austen começaria a se bifurcar na prática: de um lado, temos a editora MacMillan que, em 1894, lançou uma nova edição dos romances ilustrados por Hugh Thomson, que incluía até querubins e crianças nas páginas (os quais, obviamente, não existem no texto) em um pacote visual, como observa Sutherland, que apelava para o gosto do público ao mesmo tempo em que alimentava a nostalgia por aquela época perdida80 (Sutherland, 2005, p.6), transformando Austen na autora querida de todos. Do outro lado, uma edição de 1892 de J. M. Dent que incluía comentários críticos indicava também que esses romances deveriam ser levados a sério e não como simples entretenimento, um posicionamento que era reproduzido por grandes nomes da época, como indica Halsey: ―um grande nome da literatura‖, por Richard Simpson, ―um clássico‖, por Mary Augusta Ward, e uma ―gênia‖, por Henry James em 1885 (Halsey, 2013, p.112). Os conflitos entre as duas imagens seriam inevitáveis. Em 1902 Henry James estava muito incomodado com a transformação de Austen em uma mercadoria qualquer pelas editoras, consumida por pessoas que não sabiam reconhecer sua ―verdadeira‖ qualidade literária: ―the body of publishers, editors, illustrators, producers of the pleasant twaddle of magazines; who have found their ‗dear‘, our dear, everybody‘s dear Jane so infinitely to their material purpose…‖81 (apud Sutherland, 2005, p.11). James estava assim dando voz a uma ideia que seria recorrente de que existiriam duas formas de se ler Jane Austen, a resposta

80 Não é nada diferente, completa Sutherland, do que as adaptações para cinema e TV das obras de Austen fizeram nos anos de 1990 com seus heróis galantes. ―O pacote engenhoso do passado como receptivo às nossas preocupações contemporâneas é essencial para o apelo ao consumidor nos dois casos‖ (2005, p.6, trad. minha). 81 ―o corpo de editores, ilustradores, produtores da prazerosa tagarelice das revistas, os quais consideram a sua ‗querida‘, a nossa querida, a Jane querida de todos tão infinitamente útil para seus objetivos materiais‖ (tradução minha).

67 refinada, a verdadeira percepção, do que ele sentia ser a indiscriminação prejudicial da idolatria Janeite (Sutherland, 2005, p.11). A grande aceitação de Jane Austen pelo público leitor seria resultado não da primeira forma de apreciação, obviamente, mas apenas da promoção comercial das obras de Austen desde 1870 (idem). Henry James estava desdenhando, como muitos outros críticos depois dele, da relação de adoração que muitas pessoas tinham com a autora naquela época, ou, em outras palavras, James tentava diminuir a forma ―Janeite‖ de se ler Jane Austen. Curiosamente, muitos acadêmicos também faziam parte dos Janeites, tornando as fronteiras entre os dois grupos mais porosas. Por exemplo, A. C. Bradley, o primeiro professor da cadeira de Inglês e História na University College em Liverpool, afirmou em 1911 que ―era meu destino apaixonar-me por ela [Elizabeth Bennet], e eu me apaixonei‖ (apud Sutherland, 2005, p.12, tradução minha), isso em uma palestra sobre Austen tradicionalmente considerada ―as marking the beginnings of a serious academic criticism‖ (idem). Interessante notar que um acadêmico, revestido da autoridade conferida por uma universidade tradicional, tenha admitido uma relação com uma personagem fictícia absolutamente semelhante à obsessão atual com Mr. Darcy. E ele não estava sozinho. Como nota Claudia Johnson, muitos críticos do fim do século XIX até meados do XX debatiam com qual heroína de Austen eles gostariam de se casar, a atrevida Elizabeth Bennet ganhando a maior parte das atenções, e quase nenhuma para a correta (Johnson, 2012, p.110). Essas aproximações e diferenças entre os Janeites desse período e os fãs atuais serão mais detalhadas na parte 1.3 deste capítulo. É interessante notar também que, nesse período em que Austen crescia tanto em popularidade quanto dentro da academia, a velha ordem do mundo que ela parecia simbolizar seria totalmente destruída depois da Primeira Guerra Mundial. Sutherland observa que apesar da Primeira Guerra marcar efetivamente a quebra entre o século XIX e o mundo moderno, paradoxalmente Austen, a romancista dos valores tradicionais, sobreviveu a ela – em outras palavras, enquanto a velha ordem desaparecia, a sua representante ascendia (Sutherland, 2005, p.16). Entendida como a retratista de um mundo tranquilo e da essência dos ingleses, é muito fácil entender porque, após uma guerra que deixou todos boquiabertos e traumatizados, Austen passou a ser muito valorizada nesse momento como ―cura‖, sendo literalmente receitada pelos médicos aos soldados que voltavam em choque das trincheiras. O resultado dessa nova valorização aparece em mais uma divisão entre duas interpretações, conforme apontado por Sutherland (idem). A primeira, presente no conto de Rudyard Kipling ―The Janeites‖, que se passa durante a Primeira Guerra, será retomada mais à frente. A segunda

68 interpretação virá da academia com Robert William Chapman, que desejava purificar Austen dos malefícios introduzidos pelos Janeites. Durante décadas, os romances de Jane Austen foram comercializados de forma sentimental – imagem adquirida, por exemplo, através das já mencionadas ilustrações de Hugh Thompson – e em muitas edições resumidas para leitura rápida, em especial na década de 1890. A junção dessas edições simplificadas com a imagem dos admiradores Janeites transformou Austen naquela ―everybody‘s dear Jane‖ que Henry James deplorava. No final da Primeira Guerra, porém, ela se transformou em símbolo de uma Inglaterra que quase deixou de existir por muito pouco, e precisava então ser restaurada, como uma relíquia de tempos passados. R. W. Chapman, um intelectual de Oxford que também trabalhava para a editora dessa universidade, decidiu então preparar novas edições das obras de Austen. Não seriam edições comuns. Chapman, classicista por formação, iria aplicar para os textos de Austen os mesmos rigores acadêmicos utilizados nos estudos de textos gregos e latinos antigos, procurando resgatar os originais da década de 1810 e eliminar toda a confusão criada pelas subsequentes edições baratas e resumidas. As novas edições da Clarendon Press82 de Jane Austen editadas por Chapman foram publicadas em 1923 e tiveram resultados muito importantes: primeiro, consolidaram Austen como uma autora ―clássica‖, significando aqui ―canône‖, o que, segundo Harman, foi responsável pelo reajuste mais agudo da reputação de Austen até hoje (2009, p.167); segundo, inauguraram uma nova fase nos estudos sobre a autora como uma questão séria, que necessita de método, de filologia e de história para ser entendida, e não mais do amor incondicional dos Janeites (Johnson, 2012, p.114). Terceiro, que, ao aplicar para romances – e mais importante, romances escritos por uma mulher – o mesmo rigor acadêmico dos estudos clássicos, Chapman foi responsável também por uma mudança na imagem do próprio gênero, de simples livros de entretenimento para alta arte (Johnson, 2012, p.117). A novidade que representava essa abordagem precisa ser destacada. Como afirma Claudia Johnson, uma coisa era intelectuais relaxarem após um longo dia de trabalho lendo Jane Austen – ―Edward Fitzgerald escreveu que Edward Byles Cowell ‗constantemente lê Miss Austen de noite depois do seu trabalho de filologia de sânscrito: ela o restaura, como um mingau‘‖ – outra coisa era conferir a ela a mesma importância da filologia do sânscrito (Johnson, 2012, p.116, tradução e grifo meus). Isso só foi possível porque, além da admiração desses intelectuais ingleses e da elite de uma forma geral, pós-Primeira Guerra a ideia de

82 Outro nome da época para a Oxford University Press.

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―clássicos ingleses‖ como patrimônio ganhou extrema força e aceitação (idem). Como nos lembra Sutherland, até mesmo antes da Primeira Guerra a descoberta da resistência da identidade inglesa estava ligada a uma volta à literatura, mas o que a guerra fez foi dar força a essa descoberta, transformando-a em necessidade. Como uma forma então de restauração, os Estudos Ingleses e o estabelecimento de um cânone se tornaram questões urgentes nos anos de 1920 e 1930 (Sutherland, 2005, p.52). A literatura passa a representar, assim, uma necessidade de recuperar uma comunidade perdida – afinal, quem somos nós, os ingleses? – e passa a ser revestida de um sentimento de orgulho nacionalista, de reconstrução de uma identidade absolutamente destruída pela guerra. Como coloca Claudia Johnson, em termos de recepção de Austen depois do conflito, as personagens nos romances ingleses criam o que Benedict Anderson chamou de uma ―comunidade polìtica imaginária‖ da nação, promovendo, por sua vez, um sentimento de pertencimento que não é limitado por classes ou pelo tempo. (Johnson, 2012, p.125). Da mesma forma como Chapman respondeu ao chamado da nação para lutar nessa mesma Guerra, ele agora estava cumprindo o seu dever novamente: não é à toa que, em um ensaio anônimo de 1919, Chapman afirmou que ―to restore, and maintain in its integrity, the text of our great writers is a pious duty‖83 (apud Sutherland, 2005, p.28). Mas, afinal, do que se trata essa edição de 1923? Na falta dos manuscritos originais de Austen, Chapman dirigiu-se às primeiras edições dos seus romances, acreditando serem elas a versão mais próxima do que a autora desejava. No caso dos romances que tiveram segundas edições durante a vida de Austen revisadas novamente pela autora – Razão e Sensibilidade e Mansfield Park –, a primeira edição foi descartada e a segunda edição passou a ser a definitiva, uma escolha que muitos críticos hoje contestam veementemente por acreditarem que muitas modificações foram feitas pelos editores ou tipógrafos e não por Austen. Uma outra característica muito importante dessas edições é a grande quantidade de notas e apêndices explicativos de Chapman. Essas anotações são responsáveis por estruturar a leitura, definir suas referências ―corretas‖ e transformar, assim, os romances de Austen em um material sério (Sutherland, 2005, p.43). Os apêndices também são curiosos por seus assuntos, que incluíam desde os tipos de carruagens da época a posições de dança e enfeites de cabelo. O seu modelo foi a edição de 1912 de Orgulho e Preconceito organizada por Katharine Metcalfe – futura esposa do próprio Chapman – que incluía diversas informações sobre o período de Jane Austen (Chapman nunca deu à esposa nenhum crédito por isso, nem mesmo na sua própria edição de O&P que, como apontam críticos hoje, é muito semelhante à de

83 ―restaurar e preservar em sua integridade os textos dos nossos grandes escritores é um dever sagrado‖ (tradução minha).

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Metcalfe). Essas explicações sobre os detalhes do universo do romance, como as diferenças entre uma carruagem barouche e uma cabriolé, indicam uma crença de que não seria possível entender a obra sem essas informações, e é muito curioso como hoje esses mesmos assuntos são abordados em diversos workshops em congressos sobre Jane Austen todo ano. De 1811 a 1923 pouco mais de cem anos se passaram, mas todos acreditavam na necessidade das notas de Chapman. Uma avaliação das edições dizia: the vocabulary of Jane Austen is superficially so like our own as to deceive the unwary into assuming an identity between things in fact as dissimilar as the Pyramids and the Marble Arch. The words are the same but no longer bear the same meaning. [Chapman‘s] notes…enable us to put ourselves in her place and, in reading, to recreate her work within ourselves… [but] we cannot obliterate the interval of time between the dead author and ourselves.84 (apud SUTHERLAND, 2005, p.358)

O ponto aqui é a exatidão no significado das palavras, é a eliminação de falhas, é ensinar aos leitores a maneira correta de se ler Austen. Chapman disse que ―those who have made it their business to reconstitute the texts of English classics know that the history of a text is the gradual accretion of error‖85 (apud Sutherland, 2005, p.28), logo a sua tarefa é corrigir esses erros e fornecer ao público uma nova e desconhecida Jane Austen. Em uma outra crítica sobre as novas edições, E. M. Forster afirmou que, entre seus méritos, está o impulso de despertar o Janeite, que antes lia com sua mente fechada: ―after reading its notes and appendixes, after a single glance at its illustrations, he will never relapse again into the primal stupor‖86 (apud Sutherland, 2005, p.34). Quais são os efeitos de todas essas anotações? Sutherland afirma que nós, críticos, conseguimos diferenciar o texto das notas explicativas, porém não é uma prática do leitor comum, que toma essas notas como verdades e, assim, é fortemente influenciado por elas (Sutherland, 2005, p.47). Mas os críticos também podem cair nessas armadilhas, e o caso de Mansfield Park é exemplar. Na primeira parte do romance, os jovens da família da propriedade de Mansfield Park estão ocupados em preparar um pequeno teatro doméstico, e a peça escolhida é ―Lovers‘ Vows‖ (Elizabeth Inchbald, 1778). Chapman, em sua edição de MP, incluiu o texto de ―Lovers‘ Vows‖ em um de seus apêndices, coroando assim a peça como essencial para a correta interpretação do romance, em especial das relações amorosas de

84 ―O vocabulário de Jane Austen é superficialmente tão parecido com o nosso que engana o desavisado que pressupõe a identidade entre coisas tão diferentes quanto as pirâmides e o arco de mármore. As palavras são as mesmas mas não têm mais o mesmo significado. As notas [de Chapman] permitem que nos coloquemos no lugar dela e, ao ler, recriar sua obra dentro de nós... [mas] não podemos apagar o intervalo de tempo entre a autora falecida e nós mesmos‖ (tradução minha). 85 ―Aqueles que tomaram como seu trabalho reconstituir os textos ingleses clássicos sabem que a história de um texto é a da gradual adição de erros‖ (tradução minha). 86 ―Depois de ler suas notas e apêndices, depois de um breve olhar sobre suas ilustrações, ele nunca mais irá retornar ao esturpor anterior‖ (tradução minha).

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Maria Bertram + Mr. Crawford e + Mary Crawford, posição crítica que foi adotada durante muito tempo. O fato de que Austen em sua juventude também participava desses pequenos teatros com sua família só corroborava a importância de se incluir ―Lovers‘ Vows‖ em qualquer análise de respeito. A seleção de Chapman do que deveria ser anotado e o que poderia ser deixado de lado não representa um desejo de uma explicação objetiva do passado, mas a sua escolha de um passado específico. Como nota Claire Harman, essa seleção acabou por remover Austen de seu universo particular, realocando-a em um ponto central do que o período regencial representava, especialmente do modo de vida de sua aristocracia – tranquilo e rural (Harman, 2009, p.158). Assim, da mesma forma como os Austens antes dele, e apesar de todo o seu rigor acadêmico, Chapman retorna à imagem da querida tia Jane. Ele sabia, obviamente, que no mesmo período em que Austen escrevia, a Inglaterra lidava com os processos de cercamentos das áreas rurais e com a sua industrialização, e que uma longa guerra contra a França se arrastava. Mas isso não aparece em seus romances, o que os tornava, para ele, provavelmente a última fotografia antes das mudanças que viriam (Sutherland, 2005, p.50). O botanista e Janeite Reginald Farrer comentou na época, ―all the anguish of her time is non- existent to Jane Austen, when once she has got pen in hand, to make us a new kingdom of refuge from the toils and frets of life. (…) it is not without hope or comfort for us nowadays, to remember that Mansfield Park appeared the year before Waterloo, and Emma the year after‖87 (apud Sutherland, 2005, p.48). Assim, podemos afirmar com tranquilidade que a edição de Chapman não efetua o seu objetivo inicial, um resgate e preservação da Jane Austen ―original‖, mas sim produz uma Jane Austen especìfica a partir, principalmente, de seus comentários editoriais. Para os críticos hoje, as histórias de Austen podem não abordar Napoleão ou a Revolução Industrial, mas a forma como as relações sociais foram expostas dentro da sala de estar em seus interesses mais básicos, a forma como a moralidade da época falha repetidamente frente à ganância e egoísmo, por exemplo, torna sua obra incrivelmente política, algo que Reginald Ferrer, quando a lê como um refúgio, não conseguiu perceber. Como conclui Claudia Johnson, Chapman acabou fazendo mais do que preservar os textos de Austen, ele preservou um senso de estabilidade e encanto da sua época e disponibilizou-o a si próprio e aos seus contemporâneos para ser retomado quando a modernidade se mostrasse muito dura, como na verdade já era (Johnson, 2012, p.23).

87 ―toda a angústia de sua época não existia para Jane Austen, quando ela tomava a sua pena para nos construir um reino de refúgio das aflições e durezas da vida. (…) Não é sem conforto ou esperança para nós, hoje, lembrarmos que Mansfield Park apareceu um ano antes de Waterloo, e Emma um ano após‖ (tradução minha).

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Esta é uma crítica atual a respeito da edição de 1923, porém por muito tempo ela foi utilizada como a versão definitiva das obras de Austen. Um contrassenso para Sutherland, pois a crítica literária naquele momento se apoiava fielmente a um método filológico para fazer suas análises, ao mesmo tempo em que ignorava todas essas entrelinhas históricas presentes no texto examinado (Sutherland, 2005, p.vi). Demorou muito também para que suas escolhas editoriais fossem questionadas, e mesmo edições posteriores continuaram usando Chapman como base. Em 2006, a Cambridge University Press lançou finalmente uma nova coleção completa das obras de Jane Austen organizada por Janet Todd, cada volume editado por professores tradicionais da área como Peter Sabor, Deirdre Le Faye, John Wiltshire and Edward Copeland. Mas ainda assim é possível afirmar que, durante oitenta anos, a edição da Clarendon Press era sinônimo de uma Jane Austen genuína, e Chapman permanecia invisível atrás da neutralidade do texto. Além dos seis romances, Chapman também, ao longo do tempo, publicou os manuscritos inacabados e de Juvenilia de Austen, bem como preparou uma nova edição para suas cartas. A Juvenilia em especial parecia constituir um problema. Chapman só publicou o sexto volume da sua coleção completa de Jane Austen em 1954 com o título de Minor Works, mas os cadernos de Austen haviam sido publicados anteriormente de forma independente: ―Volume The Second‖ em 1922, ―Volume The First‖ em 1933 e ―Volume The Third‖ somente em 1951. A história Love and Freindship, do ―Volume The Second‖, em especial, teve um grande sucesso de vendas, e parece ter sido responsável, pela primeira vez, por mostrar um outro lado de Jane Austen bem mais irreverente do que aquela imagem perpetuada pelo Memoir. Como argumenta Emily Auerbach, uma vez descoberta essa Jane Austen rebelde, desinibida e afiada, fica muito difícil voltar àquela querida tia de James Edward, mesmo para os leitores da década de 1920, e novas possíveis camadas de significados seriam encontradas nos seis romances publicados (Auerbach, 2004, p.42). As pequenas histórias desses cadernos oferecem ―uma visão única sobre o que Jane Austen rejeitava: convenções literárias separadas da vida real, costumes sociais aburdamente fingidos e hipócritas, ideias falsas, limitadoras ou degradantes sobre o sexo feminino‖ (Auerbach, 2004, p.65, tradução minha). Como já foi dito, o cuidado com que Austen preservou essas criações da sua juventude indicam que eram muito valorizadas pela autora, e não devem ser descartadas como queria James Edward – vários críticos inclusive já escreveram longos ensaios tentando provar que mais de uma história foi aproveitada nos romances posteriores.

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Os estudos sobre Jane Austen nas universidades foram consolidados ao longo dessa década de 1920. A coleção completa de Chapman, como vimos, tornou-se a base para uma análise séria dos seus romances e do gênero do romance de forma geral, e a descoberta da Juvenilia parecia indicar aos críticos que havia muito mais naqueles livros do que apenas um simples entretenimento para mulheres. Diversos nomes da área concordam hoje que o estudo de Mary Lascelles de 1939, Jane Austen and Her Art, é um marco para essa nova abordagem pois, segundo Harman, as especulações inteligentes de Lascelles sobre como Austen conduzia sua carreira e a sua análise do estilo da autora abriu novos caminhos tanto para a crítica quanto para biógrafos, e o resultado é que, após a publicação de seu trabalho, ninguém mais questionava se Austen deveria ser comparada com outros grandes romancistas como Dickens ou James, ao mesmo tempo em que o seu papel no processo de modernização do romance também passou a ser reconhecido de forma mais generalizada (Harman, 2009, p.182). A partir da década de 1940, portanto, Austen foi colocada em um lugar de destaque na academia, para nunca mais ser removida. Em 1948 o professor de Cambridge F. R. Leavis publicaria seu estudo The Great Tradition, que nada mais é do que uma institucionalização do cânone dos clássicos ingleses, dos filhos de Shakespeare, no qual Jane Austen faz parte como a pioneira. Já Ian Watt, em seu Rise of the Novel (1957), enxergaria Austen como a herdeira direta de Samuel Richardson, Henry Fielding e Daniel Defoe, a responsável por combinar seus estilos e criar o romance moderno maduro. Ao mesmo tempo, os Janeites continuavam tão fortes quanto no século XIX, disputando Austen com os acadêmicos e fazendo com que seus romances, como notou Rachel Brownstein, oscilassem constantemente entre os rótulos de ―clássico‖ e ―romântico‖, ―sério‖ e ―bobo‖, ―elitizado‖ ou ―popular‖ (Brownstein, 2011, p.60). Clara Tuite também confirma essa ideia ao defender que, enquanto Leavis promulgava o lugar de Austen no cânone institucional, a popularidade dos seus romances também aumentava significativamente, e foi nesse momento em que Austen se consolidou como o que Tuite chama de ―crossover phenomenon‖, a capacidade de pertencer ao mesmo tempo à alta literatura e a popular (Tuite, 2002, p.4). Não é à toa, afirma Claudia Johnson, que o primeiro capítulo de Leavis é uma crítica mordaz ao grande Janeite Lord David Cecil por considerar praticamente ofensiva sua leitura de Austen como um divertimento, incapaz de compreender a ―grande tradição‖ que ela inicia. Além de Leavis, outros críticos como David Daiches também descrevem Cecil como superficial, impreciso, infantil, sugerindo inclusive que esse ―entusiasmo feminizado‖ de Cecil é oposto à crítica literária séria, um trabalho masculino (Johnson, 2012, p.151). Da mesma forma como as capas

74 e ilustrações utilizadas por Chapman em suas edições pareciam reinscrever Austen em um universo feminino, críticos também não hesitavam em associar a admiração Janeite como algo irracional típico de mulheres – e daí vem o insulto a Lord Cecil – enquanto a análise objetiva de seus romances era um trabalho masculino. Parece inacreditável que críticos como Leavis ainda associassem irracionalidade ao gênero feminino ao mesmo tempo em que defendiam a obra de Jane Austen como formadora do cânone inglês. Paradoxos à parte, a obra de Leavis foi responsável por associar definitivamente Austen a um tipo de estilo, o qual, segundo Clara Tuite, era dependente de uma construção da imagem da autora como aristocrata, pertencente à elite agrária detentora de grandes propriedades anterior ao capitalistmo, as quais, por sua vez, representavam a Inglaterra e essa, a grande Bretanha (Tuite, 2002, p.5). Austen é sìmbolo de uma ―vida civilizada‖ que é obviamente a vida das elites. O fato de que Austen passou toda a sua vida adulta com uma renda muito limitada e dependendo da ajuda dos irmãos é totalmente esquecido nessa nova mística, que se apropria de sua obra e permanece com força até os dias de hoje, quando filmes baseados em seus romances se esforçam cada vez mais para mostrar mansões luxuosas, jóias finas, roupas elaboradas. A entrada de Austen no cânone literário, portanto, foi conquistada através da sua associação com a cultura da elite inglesa. Mas as versões de Leavis e Watt não eram as únicas vozes na academia. Na década de 1930, W. H. Auden mencionou Austen em seu poema Letter to Lord Byron da seguinte forma: You could not shock her more than she shock me; Beside her Joyce seems innocent as grass. It makes me feel uncomfortable to see An English spinster of the middle-class Describe the amorous effects of ―brass‖ Reveal so frankly and with such sobriety The economic basis of society.88 (AUDEN, 1977, p.79)

Antes dele, Reginald Farrer também havia declarado, em um ensaio comemorando o centenário da morte de Austen, de que a autora nada tinha de inocente, em oposição à sua própria afirmação anterior de que sua obra era um ―refúgio‖. Contudo, foi o ensaio do crítico D. W. Harding intitulado ―Regulated Hatred: An Aspect of the Work of Jane Austen‖ (1940) que ficou famoso por defender uma Jane Austen que possuìa uma relação com sua sociedade totalmente oposta da tradicionalmente atribuída a ela. Sem preâmbulos,

88 ―Você nunca poderia me chocar como ela me choca / Ao seu lado Joyce parece inocente como a relva / Eu fico desconfortável de ver / Uma mulher solteira inglesa da classe média / Descrever os efeitos amorosos do dinheiro / Revelar tão abertamente e com tanta sobriedade / A base econômica da sociedade‖ (tradução minha).

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Harding afirmava que os seus livros ―are, as she meant them to be, read and enjoyed by precisely the sort of people whom she disliked‖89 (Harding, 1940, p.347). Ao invés de símbolo da aristocracia inglesa, Harding estava defendendo o lado sarcástico e crítico de seus romances, enquanto criticava a adoração cega dos Janeites porque eles não eram capazes de perceber o tom irônico de Austen. Segundo Harman, ao invés de encontrar tranquilidade e requinte nos livros, Harding enxergou neles e nas cartas uma restrição incômoda que altera a leitura dos romances – por isso, somente ignorando-a deliberamente, seria possível desfrutá- los, concluindo então que a impressão popular da autora era totalmente falsa (Harman, 2009, p.184). Dentro do contexto da Segunda Guerra Mundial, é importante considerar também o lado psicológico trabalhado por Harding. Segundo Johnson, ao invés de defender Austen como uma escritora de obras tranquilas que deveriam ser receitadas como remédio para traumas de batalha, para Harding Jane Austen é importante exatamente porque ela, apesar de seu ódio, não destruiu o seu mundo, mas sim o transformou em arte: ―ela deve ser lida e respeitada, portanto, não porque é delicadamente satírica ou encantora, e com certeza não porque ela representa um tempo superior. Ao contrário, ela deve ser respeitada porque entende e pratica não o ódio, mas o ódio regulado‖ (Johnson, 2012, pp.146-147, tradução minha). De uma forma geral, portanto, dentro da academia havia a linha que defendia o posicionamento de Leavis e Watt, de que Austen era responsável pelo desenvolvimento do romance moderno, mas que, apesar disso, seus romances eram retratos domésticos da vida regencial – distanciados sim de acontecimentos políticos externos, porém não por isso menos preocupados com aspectos essenciais daquela sociedade. E havia o posicionamento inaugurado por Harding de que, por trás daquela pintura tranquila e rural, Austen havia deixado expostas as feridas de sua sociedade, principalmente através de um uso magistral da ironia. Nas décadas seguintes, novas abordagens iriam se conectar com essa última posição, abandonando de vez a imagem de uma autora apolítica. Por exemplo, o movimento feminista, especialmente na década de 1970, passou a enxergar a relação de Austen com a sociedade patriarcal como algo evidente em seus romances – de que lado ela estava era difícil determinar, mas neutralidade com certeza não era uma opção: enquanto para uns, segundo Janet Todd, Austen escrevia livros aparentemente conservadores para esconder dentro deles a sua duplicidade em relação a essa questão, quase como uma feminista radical que ri por trás de sua máscara, outros a acusavam de ser cúmplice do patriarcado por ter defendido o

89 ―são, como ela quis que eles fossem, lidos e aproveitados precisamente pelo tipo de pessoa que ela não gostava‖ (tradução minha).

76 romance heterossexual como superior à amizade feminina, por exemplo (Todd, 2015, pp.35- 36). Rachel Brownstein também observou que, apesar do movimento feminista daquele período ter sido associado à contracultura – a qual repudiava o cânone literário tradicional – havia uma grande valorização das escritoras de língua inglesa, em especial Austen, e o fato de ela também estar naquele cânone era um dos problemas em torno de seu nome (Brownstein, 2011, p.2). Também de forma polêmica, ainda na década de 1970 vários estudos foram publicados ligando Austen a correntes políticas de sua época, tanto progressistas quanto conservadoras, um debate que permanece até hoje. A forma como enxergo o posicionamento de Austen em relação a essas questões será abordada com mais detalhes nos capítulos seguintes. Na década de 1990, Jane Austen foi absorvida ainda por estudos pós-colonialistas depois que Edward Said, em Cultura e Imperialismo (1993), analisou o papel da escravidão e das colônias inglesas em Mansfield Park na sobrevivência da aristocracia. Como mostra Claire Harman, o silêncio entre as personagens principais após a pergunta de Fanny Price sobre os escravos de Sir se transformou no ponto principal de interpretação do romance, e o fato de que esse ponto era, até relativo pouco tempo atrás, a peça de teatro ―Lovers‘ Vows‖ valorizada por Chapman, indica, em suas palavras, ―o quão flexìvel Austen pode ser nas mãos de seus estudiosos‖ (Harman, 2009, p.191, tradução minha). Sobre isso, é interessante notar que, no final da década de 1990, o período mais rico de adaptações cinematográficas dos romances de Austen, Patricia Rozema lançou a sua adaptação de Mansfield Park na contramão da moda nostálgica, rural e apolítica do período regencial que caracterizaram todos os outros filmes. Rozema inclui o debate acadêmico, fazendo com que a personagem Fanny Price assuma a voz de Jane Austen, citando inclusive trechos de sua Juvenilia, e caracterizando Sir Thomas Bertram como um senhor de escravos cruel e estuprador (sendo também muito criticada por isso como um grande exagero). Além disso, Rozema também destaca cenas da residência pobre da família Price no seu modo de vida nada aristocrático em meio à sujeira, baratas, cômodos apertados e gritaria de todos os familiares. Talvez a única outra adaptação que, ainda que brevemente, tenha mostrado que a época de Jane Austen não era aquele mar de rosas idìlico seja a paródia ―Lost in Austen‖ de 2008. Nela, quando a personagem Pirhana, jovem negra, é convidada por sua amiga para voltar no tempo para o mundo de Orgulho e Preconceito, ela responde: ―Amanda, I‘m black‖90. Ou seja, não havia lugar para ela naquela sociedade.

90 ―Amanda, eu sou negra‖ (tradução minha) em ―Lost in Austen‖, 2008, dir. Dan Zeff. Min.: 2h35m26s.

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Mais recentemente, como enumera Janet Todd, as obras de Austen vêm sendo estudadas a partir de temas variados, como o Iluminismo inglês, o Romantismo, as traduções e recepção na Europa, religião, alimentação, educação, teatro, adaptações para o cinema, etc. Alguns acadêmicos também criticam perspectivas vistas como ideológicas, como o feminismo e o marxismo, para focarem somente no estilo da autora, especialmente sua ironia (Todd, 2015, p.37). De qualquer forma, e parodiando a autora, hoje é uma verdade universalmente reconhecida (por universo entenda-se a academia) que, se existe um tema que possui alguma conexão com Austen, ele deve ter a necessidade de ser estudado. Humor à parte, acredito que cada um desses estudos é importante e continuará assim enquanto for necessário defender Austen daquela imagem da querida tia de James Edward. Em 1927, Arnold Bennet escreveu sobre a autora: ―I like Jane. I have read several Janes... She was a great little novelist. But her world is a tiny one. She did not know enough of the world to be a great novelist. She had not the ambition to be a great novelist. She knew her place‖91 (apud Auerbach, 2004, p.30, grifo meu). Machista e condescendente? Sim. Se um livro, ao invés de cenas de batalhas, trouxer cenas de mulheres na sala de estar, este então não é um livro importante, ironizava Virginia Woolf (1995, p.97). Para aqueles que acham que esse tipo de crítica ficou no passado, eis a análise de John Leonard a respeito do estudo de Edward Said em 1993: ―See Jane sit… not much bothering her pretty head about …slave labor… a veritable Aunt Jane – naïve, complacent, and demurely without overt political opinions‖92 (apud Auerbach, 2004, p.30, grifo meu). Enquanto livros sobre a vida no século XIX continuarem sendo publicados com títulos como What Jane Austen Ate and Charles Dickens Knew, enquanto a mulher for sempre associada às tarefas domésticas e o homem ao trabalho intelectual (a imagem de Jane Austen na capa do livro segura um bolo, enquanto a de Dickens discursa), ainda que ambos sejam escritores talentosos, continuaremos precisando de estudos sobre Jane Austen. Ou, como comentou Auerbach, ―Eu espero ansiosamente pelo livro O que Jane Austen Sabia e Charles Dickens Usava!‖ (2004, p.34, tradução minha).

91 ―Eu gosto de Jane. Eu li várias Janes... Ela era uma grande escritorazinha. Mas o seu mundo era um mundo pequeno. Ela não conhecia o suficiente do mundo para ser uma grande escritora. Ela nem tinha a ambição de ser uma grande escritora. Ela sabia o seu lugar‖ (tradução minha). 92 ―Observe Jane sentada... sem preocupar a sua bela cabecinha com... o trabalho escravo... uma verdadeira tia Jane – inocente, complacente, e modestamente livre de qualquer opinião polìtica clara‖ (tradução minha).

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Fig.10 – Capa do livro What Jane Austen Ate and Charles Dickens Knew

Na parte seguinte, abordarei a popularidade de Jane Austen fora da academia, dos Janeites à Austemania atual, a qual é perpetuadora dessa imagem de uma autora inocente, uma imagem que alimenta e é alimentada pela indústria cinematográfica e editorial e prova de que ainda há uma grande distância entre a universidade e mundo lá fora desde os tempos em que Chapman e Leavis bradavam suas condenações aos apaixonados e ―ignorantes‖ Janeites.

1.3 - Uma história de amor

O crédito pela criação do termo Janeite é tradicionalmente dado a George Saintsbury, crítico inglês que, em seu prefácio para uma edição de Orgulho e Preconceito de 1894, confessou ser um ―Jane Austenite‖. O seu ―Janeismo‖ como uma prática identificável de culto a Jane Austen começou com a publicação do Memoir de Austen-Leigh, mas isso não significa que antes de não houvesse nenhum admirador fervoroso da autora. Em carta a sua irmã em 1831, por exemplo, o historiador e político Thomas Babington Macaulay relata um jantar no qual todos os presentes elogiavam muito Austen, e um deles, Sir James Mackintosh, ―disse que o teste de um verdadeiro Austeniano era Emma. Todas as pessoas gostam de Mansfield Park. Mas somente os verdadeiros crentes – os seletos – apreciam Emma‖ (apud Halsey, 2013, p.148, tradução minha). Menos de vinte anos depois da morte da autora, então, já era possível observar o nascimento de uma ideia de que apenas um grupo especial – os ―verdadeiros crentes‖ – tinha a capacidade de realmente apreciar Austen (idem). Contudo, uma outra anedota narrada por Deirdre Le Faye na sua edição de Jane Austen: A family record exemplifica o que era mais comum naquele período: segundo ela, por volta de 1850, o sacristão da catedral de Winchester achou curiosa a quantidade de visitantes que procuravam

79 pelo túmulo de Austen, e perguntou a um deles: ―Pray, sir, can you tell me whether there was anything particular about that lady; so many people want to know where she was buried?‖93 (Le Faye, 1989, p.275) – o que parece comum para um período em que a autora possuía defensores animados como Macaulay e Sir James Mackintosh mas que, mesmo assim, a grande maioria das pessoas, o sacristão de Winchester inclusive, desconheciam sua obra. Como sabemos, a biografia de James Edward Austen-Leigh mudou esse cenário e originou um interesse totalmente novo na autora. Mas algumas ideias foram retomadas, como a de que apenas os seletos seriam capazes realmente de entender sua obra e de se destacar do leitorado comum influenciado por táticas comerciais das editoras. O próprio James Edward sem querer traz um outro exemplo, quando reflete a respeito da primeira recepção morna dos livros de Austen: We had the satisfaction of believing that they were most admired by the best judges, and comforted ourselves with Horace‘s ‗satis est Equitem mihi plaudere‘ [it is enough if the knights applaud me]. So much was this the case, that one of the ablest men of my acquaintance said, in that kind of jest which has much earnest in it, that he had established it in his own mind, as a new test of ability, whether people could or could not appreciate Miss Austen‘s merits‘94. (Memoir, p.104)

O teste proposto por esse seu amigo, que sabemos hoje ser Mr. R. H. Cheney, lembra muito o que Sir James Mackintosh propunha décadas antes e serve como um sumário do que constituiu o fenômeno dos Janeites no final do século XIX. Cheney passa a usar Austen como determinante da qualidade de uma pessoa, e fica implícito que, para ele, aqueles que apreciam a autora devem ser superiores. Da mesma forma, os Janeites se consideravam exclusivos pelo seu entendimento de Austen, quase como uma irmandade formada por aqueles que têm a capacidade rara de admirá-la. Como coloca Claudia Johnson,

Ao fim do século XIX, os Janeites já eram uma comunidade de leitura discernível e decididamente (ainda que não exclusivamente) masculina de editores, professores, romancistas e literatos (...). Na Royal Society of Literature em especial os romances de Austen eram celebrados com um entusiasmo que pareceria louco se fosse demonstrado hoje nas salas de aula ou nas conferências. Esses Janeites ostentavam a sua devoção: Austen era a sua querida Jane, a sua Jane incomparável, e eles eram o seu culto, a sua seita, a sua pequena companhia (adequada porém de poucos), a sua tribo de adoradores que discutiam e rediscutiam o milagre de sua obra em termos extravagantes e evidentemente hiperbólicos. Como Montague Summers (...) afirmou em 1917 na sua palestra à Royal Society of Literature, ―hoje o mundo está dividido entre os eleitos e os profanos – aqueles que admiram Jane Austen e aqueles que (eu até estremeço ao falar essa frase) não‖. (JOHNSON, 2012, pp.8-9, tradução minha)

93 ―Por gentileza, senhor, pode me dizer se havia alguma coisa de importante sobre aquela dama, tantas pessoas querem saber onde ela está enterrada?‖ (tradução minha). 94 ―Nós tivemos a satisfação de acreditar que eles eram admirados pelos melhores juízes, e nos consolamos com Horácio ‗é o suficiente se os cavaleiros me aplaudem‘. Tanto era o caso, que um dos melhores homens que eu conheço disse, naquele tipo de brincadeira que carrega muita sinceridade, que ele tinha estabelecido em sua própria mente, como um teste de habilidades, se as pessoas conseguiam ou não apreciar os méritos de Miss Austen‖ (tradução minha).

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Difícil dizer se os Janeites estavam obcecados com ou possuídos por Jane Austen; seja qual for o caso, nenhum deles entendia ser necessário esconder ou disfarçar esse entusiasmo, e todos admitiam com orgulho fazer parte desse grupo que, como lembra Johnson, tinha também um toque de autoadmiração dentro dessa lógica de que o mundo inteiro não consegue entender o que há em Austen, mas nós conseguimos: antes de ela ser a autora preferida da cultura de massas, ser um Janeite era um emblema que proclamava um privilégio, o de ser membro de uma pequena minoria da alta cultura, aquele capaz de enxergar o que é invisível a todos os outros (Johnson, 2012, p.9). A superioridade desse grupo se baseava na ideia de que, como colocou Virginia Woolf muitos anos depois, ―dentre todos os grandes escritores, ela é a mais difícil de surpreender no ato da grandeza‖ (Woolf, 1924, s/p., tradução minha). Ou seja, entender a qualidade da obra de Austen não é para qualquer um. Os Janeites lidavam com essa admiração quase como uma religião – ou você está dentro, como um crente, ou fora dela; não há meio termo – solidificando ainda mais a imagem da Santa Jane. O crítico A. C. Bradley, por exemplo, falou para seus alunos que ―assim como eu, vocês pertencem aos fiéis‖, e em 1913, George Saintsbury, o mesmo que inventara o termo, declarou ser ele ―um Frei Austeniano, um cavaleiro (ou pelo menos um escudeiro) da ordem de Santa Jane‖ (apud Harman, 2009, p.129, traduções minhas). Como toda boa religião, a fé em Jane Austen também despertou romarias. Em 1902 Constance Hill publicou Jane Austen: Her Homes and Her Friends, um guia bem detalhado e ilustrado de todos os lugares na Inglaterra que poderiam ser associados à autora. Não importava, por exemplo, que a casa onde Jane Austen nascera em Steventon já havia sido demolida e a única coisa que sobrara da construção era uma bomba d‘água – esta merecia, obviamente, ser registrada em um desenho para o guia.

Fig. 11 ―The site of the old parsonage, Steventon‖

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Esse tipo de apego a pequenas coisas tão triviais quanto uma bomba d‘água lembra muito as relíquias católicas capazes de expurgar os pecados. Da mesma forma como possuir um pedaço de um manto de um santo era visto como capaz de aproximar o detentor da relíquia do respectivo santo e, de forma indireta, do próprio Deus, visitar, tocar e, por que não, possuir coisas relacionadas a Austen parecia indicar com muito mais força uma relação pessoal e exclusiva com a autora. O fato de que a grande maioria dos Janeites se referia a ela usando seu primeiro nome, ―Jane‖, indica também a familiaridade dessa relação. Apoiando-se fortemente nas informações do Memoir, os Janeites valorizavam a vida calma e tranquila de Austen no campo, associando-a uma típica forma de vida inglesa anterior ao caos da modernidade. A necessidade de visitar esse campo, de escapar da vida das grandes cidades, também era um grande incentivo para as peregrinações para os locais associados à autora. Os Janeites, contudo, seriam atacados em duas frentes. Como vimos, Henry James associava a obsessão janeite como resultado da transformação de Austen em mercadoria depois do interesse suscitado pelo Memoir que levou à publicação de dezenas de edições dos seus romances. Para James, esse interesse manipulado pelas editoras impedia que as pessoas apreciassem a autora em sua complexidade, já que estavam mergulhadas em uma leitura cultuadora. Do outro lado, também vimos que muitos acadêmicos, como Chapman e Leavis, também se esforçavam para criticar a forma Janeite de se ler Austen, e tentavam extirpá-la do que era visto como uma deturpação. Em meio a essas disputas, Rudyard Kipling – famoso hoje pelo poema imperialista ―O fardo do homem branco‖ – publicou um conto em 1924 chamado exatamente ―The Janeites‖, e surpreendeu a todos ao mostrar não um grupo de seletos acadêmicos, mas soldados em uma trincheira da Primeira Guerra. A história de Kipling se centra na narrativa de um ex-combatente chamado Humberstall que está explicando para um colega da maçonaria o que era a sociedade secreta para a qual ele entrou durante o tempo em que fez parte de um grupo da artilharia do exército inglês. Humberstall não é nem remotamente o que imaginaríamos por um Janeite, porém ele decidiu entrar para essa sociedade depois de ter presenciado um soldado de baixo ranque discordar de seus superiores e não sofrer nenhum castigo simplesmente porque eles pertenciam a essa sociedade. Percebendo as vantagens de entrar para o grupo, Humberstall conseguiu convencer um colega a iniciar-lhe no mesmo, apesar de nunca ter ouvido falar de ―Jane‖ antes. Sua primeira tarefa foi ler todos os romances e guardar os nomes das personagens e detalhes das tramas, as quais ele aprendeu a gostar. Humberstall foi até elogiado pelos membros mais antigos quando ele batizou os canhões da artilharia adequadamente com nomes de personagens de Austen (Lady Catherine de Bourgh, General Tilney e Mr. Collins), indicando que se tornara

82 de fato um Janeite. No final de história, porém, sua unidade foi bombardeada e ele foi o único sobrevivente. Na tentativa de recuar e embarcar em um trem já lotado, Humberstall é salvo por uma enfermeira também Janeite que o reconhece como um colega após ele comparar uma outra enfermeira tagarela à Miss Bates, personagem de Emma. A novidade de retratar um grupo de Janeites como pessoas comuns na guerra em oposição ao grupo de acadêmicos tradicionalmente associados à autora não é o único ponto interessante no conto. A começar pelo fim, Humberstall afirma que nunca foi tão feliz como naquele período em que conviveu com a sociedade secreta – mesmo com trincheiras e bombas, ―I was ‘appier there than ever before or since‖ – e com frequência relê os romances de Austen: ―I read all her six books now for pleasure ‘tween times in the shop; an‘ it brings it all back— down to the smell of the glue-paint on the screens. You take it from me, Brethren, there‘s no one to touch Jane when you‘re in a tight place. Gawd bless ‘er, whoever she was‖95 (Kipling, 1926, s/p). Humberstall ainda não sabe quem era ―Jane‖, e não lê os romances para escapar da memória da Guerra, por ter perdido os amigos ou por ter sido o único sobrevivente; ele lê Austen para retornar àquele período que considera o mais feliz de sua vida. Exatamente o contrário do que Austen havia se tornado no pós-guerra (literatura tranquila para acalmar soldados traumatizados ao proporcionar uma imersão em uma sociedade anterior mais calma e segura), Humberstall utiliza Austen para voltar para o caos. Como afirma Johnson, Ao contrário dos Janeites vitorianos, os Janeites de Kipling não conectam Austen de forma nostálgica a uma Inglaterra nobre cuja beleza e vulnerabilidade são aquilo que deve ser protegido pelos soldados. Por essa leitura, Austen ofereceria uma saída do horror da guerra em um lugar do passado mais confortável ou imaginário. Para os Janeites de Kipling, Austen já é violenta (caso contrário, por que seria julgado adequado nomear os canhões em homenagem a General Tilney, Lady Catherine e Mr. Collins?). Austen está com eles lá no front, oferecendo uma maneira de existir em um mundo absurdo e condenado que foge ao seu controle. (JOHNSON, 2012, p.104, tradução minha)

O segundo ponto interessante é a análise de Humberstall, homem de pouco estudo, dos romances. Para ele, Jane não era difícil, e ele só tinha que se lembrar de seis romances, mas o mais surpreendente, ele diz, é que ―there was nothin‘ to ‘em nor in ‘em. Nothin‘ at all, believe me‖, e as suas personagens, ―They was only just like people you run across any day‖96 (Kipling, 1926, s/p). A sua percepção dos romances como contendo ―nada‖, ao mesmo tempo em que suas personagens são pessoas ordinárias, é incrivelmente exata. Ao

95 ―Eu era mais feliz lá do que antes ou depois na minha vida‖ / ―Eu leio todos os seus seis livros agora por prazer nos intervalos da barbearia, e tudo volta – até o cheiro da tinta nas telas. Vai por mim, Irmão, não há nada que pode tocar Jane quando você está em um espaço apertado. Deus a abençoe, seja lá quem tenha sido ela‖ (tradução minha). 96 ―não havia nada demais sobre eles, ou neles. Nada, acredite em mim‖ / ―Elas eram iguais às pessoas que você encontra na rua todo dia‖ (tradução minha).

83 focar nos acontecimentos rotineiros de uma vida comum, Austen parece construir romances sem história porque recusa as convenções da sua época, especialmente do romance sentimental, que se apoiava em fugas e tragédias e duelos entre o herói e o vilão97. Mas, como analisa Sutherland, ―é claro que os seus romances têm tramas, mas as vidas privadas das personagens definem um espaço textual no qual a ação se converte em conversas, visitas, danças, jogos de baralho e outros encontros sociais, esses eventos padronizados da vida comum e aparentemente sem história. Somente quando o padrão se desenrola que passamos a buscar as marcas ou manchas deixadas pela trama‖ (Sutherland, 2005, p.256, tradução minha). Humberstall, assim, parece ter encontrado sem querer uma questão essencial na obra de Austen. É óbvio que, para os irmãos Janeites desse conto, a ausência de trama não era vista como um defeito. Muito pelo contrário, como aponta Claudia Johnson, ela é valorizada não pela sua tranquilidade idílica tão adorada pelos Janeites vitorianios, mas sim pelo prazer de não ter que interpretar os romances: ―os Janeites das trincheiras ignoram a trama com seus movimentos para frente, suas inevitabilidades, sua ‗maturidade‘ e fechamento – tudo isso soa como morte – e focam ao invés em aspectos atemporais da narrativa, detalhes descritivos menores, frases de efeito e, especialmente, a caracterização das personagens‖ (Johnson, 2012, p.102, tradução minha). ―Jane‖ era perfeita, ou como coloca Macklin, instrutor de Humberstall: ―Every dam‘ thing about Jane is remarkable to a pukka Janeite!‖98. A adoração é um aspecto importante para essa sociedade. Humberstall lembra que, tendo passado um tempo em um hospital militar em Bath, ele conhecia as ruas na qual ―Jane‖ tinha morado, e ―There was one of ‘em—Laura, I think, or some other girl‘s name—which Macklin said was ‘oly ground. ‗If you‘d been initiated then,‘ he says, ‗you‘d ha‘ felt your flat feet tingle every time you walked over those sacred pavin‘-stones.‘‖99 (Kipling, 1926, s/p.). As pedras do calçamento eram sagradas, e aquela rua era praticamente a Terra Santa dos Janeites – mas o interessante é que Jane Austen nunca morou na rua em questão, Laura Place, apenas a mencionou nos seus dois romances que se passam em Bath, Northanger Abbey e Persuasão, e neste último representando a futilidade de Sir Elliot de forma bem irônica. Tanto Humberstall

97 Essa característica de Austen é um dos pontos mais levantados por aqueles que, hoje, consideram seus livros entediantes e justificam a publicação de mash-ups como Orgulho e Preconceito e Zumbis. Ao mesmo tempo, como a maioria das continuações publicadas atualmente tenta reinserir o drama sentimental recusado por Austen, podemos concluir que até mesmo grande parte de seus fãs atuais consideram os originais muito serenos e buscam por versões mais emocionantes. Essa questão será discutida com mais detalhes no capítulo 3. 98 ―Qualquer coisa a respeito de Jane é notável para um verdadeiro Janeite!‖ (tradução minha). 99 ―Havia uma delas – Laura, eu acho, ou outro nome de menina – a qual Macklin disse que era solo sagrado. ‗Se você tivesse sido iniciado ali‘, ele diz, ‗você teria sentido seus pés formigarem toda vez que você andasse por aquele calçamento sagrado‘‖ (tradução minha).

84 quanto Macklin misturam a vida real da autora com a vida de suas personagens, algo que vai se tornar corriqueiro ao longo do século XX e culminar com a moda dos romances biográficos que serão analisados na segunda parte deste capítulo. O último ponto que gostaria de destacar não está relacionado ao conto em si, mas a dois poemas que Kipling escreveu para acompanhar a história. Para encerrar a versão publicada em 1926, o autor adicionou um poema intitulado ―Jane‘s Marriage‖:

Jane went to Paradise: That was only fair. Good Sir Walter followed her, And armed her up the stair. Henry and Tobias, And Miguel of Spain, Stood with Shakespeare at the top To welcome Jane -

Then the Three Archangels Offered out of hand Anything in Heaven's gift That she might command. Azrael's eyes upon her, Raphael's wings above, Michael's sword against her heart, Jane said: "Love."

Instantly the under- Standing Seraphim Laid their fingers on their lips And went to look for him. Stole across the Zodiac, Harnessed Charles's Wain, And whispered round the Nebulae "Who loved Jane?"

In a private limbo Where none had thought to look, Sat a Hampshire gentleman Reading of a book. It was called Persuasion And it told the plain Story of the love between Him and Jane.

He heard the question, Circle Heaven through - Closed the book and answered: "I did - and do!" Quietly but speedily (As Captain Wentworth moved) Entered into Paradise The man Jane loved!100 (Kipling, 1926, s/p.)

100 ―Jane foi para o Paraìso / Isso era apenas justo. / O bom Sir Walter a seguiu, e a escortou escada acima. / Henry e Tobias, e Miguel da Espanha, / Esperavam com Shakespeare no topo / Para recepcionar Jane - / Então os três arcanjos / ofereceram de repente / Qualquer coisa como presente do Céu / Que ela poderia desejar / Os olhos de Azreal nela / As asas de Rafael sobre / A espada de Miguel contra seu coração / Jane disse: ‗Amor‘. / Imediatamente o serafim compreensivo / colocou seus dedos em seus lábios / e saiu a procurá-lo. / Viajou através do Zodíaco / Arriou a Carroça de Charles / E sussurrou ao longo da Nebulosa / Quem ama Jane? / Em

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A primeira estrofe traz ―Jane‖ entrando no Paraìso e tendo a companhia de Walter Scott, Tobias Smollett, Henry Fielding, Miguel de Cervantes e William Shakespeare – Austen faz parte definitiva desse grupo seleto de grandes escritores. Ao mesmo tempo, o fato de ela ir para o Paraìso era óbvio (―that was only fair‖), afinal, Saint Jane havia vivido uma vida tranquila e devota. A segunda estrofe, porém, inicia a parte mais interessante do poema: ao receber dos três arcanjos o direito de realizar um pedido, Jane pede amor. Encontramos aqui a ideia de que a sua vida fora incompleta porque nunca se casara, o início da obsessão com a vida amorosa da autora. Para misturar novamente ficção e realidade, o anjo que sai em busca do grande amor de ―Jane‖ encontra o Capitão Wentworth, herói de Persuasão, livro que, segundo o poema, conta a sua história de amor com a autora. Wentworth, na última estrofe, é levado do limbo para o Paraìso, onde podemos inferir que ficou com ―Jane‖ para toda a eternidade. Nessa versão de 1926, o poema conta também com uma estrofe final que, em 1924, era a epìgrafe do conto, intitulado então como ―The Survival‖, uma ode à Austen (que continua sendo chamada de ―Jane‖) e a sua Inglaterra: Jane lies in Winchester—blessed be her shade! Praise the Lord for making her, and her for all she made! And while the stones of Winchester, or Milsom Street, remain, Glory, love, and honour unto England‘s Jane101 (Kipling, 1926, s/p.)

Além da homenagem, Kipling novamente combina a vida da autora (pedras de Winchester, onde passou seus últimos meses e está enterrada) com referências à sua obra (Milsom Street, outra rua de Bath que aparece em Northanger Abbey e Persuasão). O mais interessante, contudo, é o último verso, no qual Kipling associa Jane à Inglaterra, pois a sua obra traz glória, amor e honra para o país. Ele mesmo um Janeite, Kipling reforça a ideia de que Austen se transformou em um símbolo e patrimônio inglês. Se no entreguerras essa ideia ganhava cada vez mais força com o empenho combinado, ainda que rivais, dos Janeites e dos acadêmicos, com a explosão da Segunda Guerra Mundial isso ficou ainda mais necessário porque agora a pátria estava sendo atacada. A Inglaterra corria perigo, e ―Jane‖ também. Quando a Luftwaffe alemã bombardeou Bath em 1942, qual não teria sido o medo de ver as

um limbo privado / Onde ninguém tinha pensado em procurar / Sentava um cavalheiro de Hampshire / Lendo um livro. / Chamava-se Persuasão / E contava a simples / História de amor entre / Ele e Jane. / Ele ouviu a pergunta / Circular através do céu / Fechou o livro e respondeu: ‗eu amei – e amo!‘ / Silecionsamente mas rapidamente / (Conforme Capitão Wentworth se movia) / Entrou no Paraìso / O homem que Jane amava!‖ (tradução minha). 101 ―Jane descansa em Winchester – abençoada seja sua sombra! / Glória a Deus por tê-la feito, e a ela por tudo o que fez! / E enquanto as pedras de Winchester ou Milson Street permanecerem / Glória, amor, e honra sobre a Inglaterra de Jane‖ (tradução minha).

86 sagradas pedras de Milsom Street e Laura Place destruídas? Se na Primeira Guerra seus romances eram usados para escapar dos horrores do conflito, agora eles eram símbolo da resistência. Hoje, fãs fazem uma brincadeira com o cartaz do governo britânico que pedia para o povo manter a calma em caso de invasão alemã (―Keep Calm and Carry On‖) e o transformam em ―Keep Calm e Read Jane Austen‖. Faria um certo sentido na época. Claudia Johnson nos mostra que, durante a Segunda Guerra, de algo reconfortante Austen passou a ser encarada como o núcleo de uma versão da identidade inglesa conectada com a ideia de um lar sob ataque (Johnson, 2012, p.128). Mais ainda, as pessoas começaram a se lembrar de que Austen escreveu seus romances durante um longo esforço de guerra da Inglaterra contra Napoleão Bonaparte, e ela se torna então exemplo de como resistir e suportar o que estava acontecendo. Johnson cita, por exemplo, a escritora e tradutora Laura Ragg, que defendia os paralelos entre o período de Austen e a guerra que começava em 1939. Segundo ela, Austen conhecia a sólida compostura demonstrada pelos ingleses em mais de vinte anos de guerra, com suas privações e sofrimentos, e por isso o que antes parecia uma calmaria imperturbável nos seus romances era, na verdade, essa postura firme de uma nação que aguentava tudo em um esforço heroico da mente e da vontade (Johnson, 2012, p.129). Ragg compara a situação de guerra com a personagem Elinor Dashwood de Razão e Sensibilidade, que mantém seus sentimentos sob controle – tristeza pela situação financeira precária, desesperança por saber que o homem que ama está noivo de outra – tudo para poder apoiar sua mãe e irmãs. O silêncio de Elinor não significa ausência de emoções, muito pelo contrário. Da mesma forma, o silêncio de Austen sobre a guerra estaria na verdade permeado por sua presença (Johnson, 2012, p.129). É dentro desse discurso que Hollywood vai lançar, em 1940, o primeiro filme baseado em um romance de Austen, Orgulho e Preconceito, com Greer Garson e Laurence Olivier nos papeis principais. Entre outros aspectos que valem a pena ser comentados, devemos apontar para as semelhanças entre os cenários e vestimentas aos do filme ―E o Vento Levou...‖, lançado apenas um ano antes, uma forma talvez de conectar a Inglaterra com os EUA e apelar para o saudosismo do público norte-americano – alguns críticos acreditam que se tratava até de uma tentativa de mobilizar a opinião pública para que os EUA entrassem na guerra, o que só ocorre no final de 1941102. Além disso, já na abertura somos informados de que a história ―happened in Old England...‖103 (Pride and Prejudice, 1940, 0:52). Como o

102 Ver TROOST, Linda e GREENFIELD, Sayre (ed.). Jane Austen in Hollywood. USA: The University Press of Kentucky, 2001 e TURAN, Kenneth. ―Pride and Prejudice: And Informal History of the Garson-Olivier Motion Picture‖ in Persuasions 11, 1989, pp.140-143. 103 ―Aconteceu na Antiga Inglaterra‖ (tradução minha).

87 filme se distancia muito do romance original para criar uma comédia romântica leve, o efeito é a criação de uma ―Old England‖ tranquila e pacìfica, o oposto do cenário de guerra daquele momento, indicando então para seus espectadores não só que a Inglaterra corria perigo, mas que essa Inglaterra específica poderia ser perdida com a guerra. O filme, segundo Johnson (2012, p.128), parece funcionar em duas direções opostas, mas que não se contradizem: por um lado, como entretenimento ajudava o público a esquecer a guerra, mas por outro lado parecia convocá-los para resistir lembrando-os do que estava em jogo. É também durante a Segunda Guerra que um grupo de admiradores inicia uma campanha pública de coleta de fundos para a compra e preservação da última casa de Austen, Chawton Cottage, e a fundação da primeira Jane Austen Society (JAS) em 1940. O objetivo de adquirir Chawton para transformá-lo em um museu só foi atingido em 1947 pela caridade de um rico advogado chamado T. Edward Carpenter. Ele comprou a casa e a doou para a sociedade porque seu filho Philip John Carpenter, que havia morrido na guerra, era um grande admirador de Austen104. O museu hoje conta com uma placa em homenagem ao tenente Carpenter, e como nota Claudia Johnson, ―Chawton Cottage se tornou tanto o seu memorial quanto um museu dedicado a Austen (...). O monumento e o museu combinados sugerem que Austen é aquilo pelo que Philip John Carpenter lutou e morreu‖ (Johnson, 2012, p.141, tradução minha).

Fig. 12 – Placa em Chawton Cottage em homenagem a Philip John Carpenter

Chawton Cotttage se torna, assim, a representação perfeita de como Austen veio a se tornar patrimônio nacional inglês. Mas, como demonstra Deidre Lynch, a escolha da autora para representar a essência da Inglaterra significou a exclusão de tantas outras imagens: A criação da Sociedade de Austen, a proliferação de festivais de Shakespeare e a ascensão do ―Inglês‖ no currìculo foram muitos testemunhos do começo século XX da noção de que obras literárias seletas constituíam um repositório da verdadeira essência inglesa. Tal essência sofreu uma metamorfose entre 1918 e 1945. O idioma

104 Informação na página do museu: http://www.jane-austens-house-museum.org.uk/#!about/c1c32 Acesso em 20/04/16

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da identidade política se afastou da retórica épica adequada a missões imperialistas e seguiu em direção a uma ênfase no próprio ―interior, doméstico e privado‖ e a uma proposição de que a verdadeira base da história nacional estava na vida de uma mulher de classe média dentro de casa. (...) Essa história nomeou a Inglaterra rural – mais especificamente a paisagem dos condados ao redor de Londres (excluindo aqueles do centro e norte do país) – como o local de toda aquela essência nacional e tradicional perdida. (LYNCH, 1996, pp.159-169, tradução minha) Não só uma escolha geográfica, mas também uma escolha de classe. Para Clara Tuite, a redescoberta atual de Austen representa e divulga uma versão específica da Grã- Bretanha de uma forma geral, a saber, a de sua elite rural, construindo uma ficção de que aquele período histórico não era baseado em uma incrível desigualdade. As pessoas hoje não hesitam em tomar as grandes mansões que veem em filmes como patrimônio histórico representativo de toda a população e não apenas de um exclusivo grupo de aristocratas (Tuite, 2002, p.13). Tanto apego à Inglaterra não impediu que Austen se transformasse em heroína também nos Estados Unidos. Talvez até antes mesmo que os ingleses, os norte-americanos já haviam descoberto os encantos da autora e dos lugares turísticos associados a ela. Como narra Park Honan em sua biografia de Austen, o padeiro que morava, por volta de 1890, na casa onde Austen morreu em Winchester (Número 8, College Street), estava muito incomodado com os visitantes americanos: ―Will you put up a notice board outside my shop to say that Jane Austen died there?‘ asked Octo La Croix of a college master‘s wife when he was a pastry cook at No.8 College Street. ‗Americans come in and want to know if she died there; they never buy anything and they waste my time.‘ But latter he wanted to take the notice board down. ‗Why, Octo?‘, asked his patron. And Octo replied, ‗Because English people come in to know who Jane Austen was.‘105 (HONAN, 1987, p.407)

Talvez a maior admiradora de Austen do outro lado do Atlântico tenha sido Alberta Burke (1907-1975), que dedicou a sua vida a colecionar todo tipo de memorabilia da autora e registrar cuidadosamente, entre os anos de 1936 a 1975, qualquer tipo de referência que aparecesse sobre Jane Austen na imprensa – de artigos e notícias a anúncios de adaptações de teatro. Os cuidadosos volumes sob o tìtulo de ―References and Allusions to Jane Austen (not exhaustive) (Begun September 22, 1936)‖ são um registro valioso da ascensão de Jane Austen nos EUA. A coleção de Burke também continha raridades como um pequeno cacho do cabelo de Austen, depois doado para a JAS, cartas e primeiras edições raras – como bem definiu Juliette Wells, Alberta Burke era uma omnívora de todas as coisas

105 ―‗Você poderia colocar uma placa do lado de fora do meu negócio avisando que Jane Austen morreu ali?‘, pediu Octo La Croix à esposa de um professor quando ele era um padeiro no Número 8 Colllege Street. ‗Os americanos entram e querem saber se ela morreu ali; eles nunca compram nada e desperdiçam meu tempo.‘ Mas depois ele quis que a placa fosse removida. ‗Por que, Octo?‘, perguntou seu cliente. E Octo respondeu ‗Porque os ingleses entram para perguntar quem foi Jane Austen‘‖ (tradução minha).

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Austen (Wells, 2011, p.35). Em carta a um amigo em 1948, Burke descreve sua paixão: ―The J.A. collection is the perpetual pleasure of my life. I have bought each thing because I felt I could not live without it, and because Jane Austen is ‗St. Jane‘ in my private hagiology‖106 (apud Wells, 2011, p.43). Encontramos novamente a imagem de Jane Austen como uma pessoa superior, uma santa a ser adorada e com a qual Burke tenta se aproximar via relíquias. E ela não era a única. Em 1979 foi fundada a Jane Austen Society of North America (JASNA), que contou inclusive com a ajuda do marido de Alberta Burke. Hoje a JASNA é uma gigante na área, superando em muito o número de afiliados da JAS inglesa, e cuja reunião anual (AGM) é um evento disputadíssimo e curioso pela mistura de palestras e cursos com professores acadêmicos renomados (cujos artigos são publicados no periódico Persuasions enviado para todos os afiliados) com desfiles de roupas regenciais e cursos de dança e bordado. Como mulheres constituem hoje a maior parte dos membros, participar de uma reunião da JASNA é uma oportunidade única de perceber as mudanças que se operaram nos admiradores de Jane Austen, dos Janeites acadêmicos do século XIX às senhoras vestidas com roupas de época geralmente ridicularizadas pela imprensa107. Antes um grupo seleto de homens iniciados, os fãs de Austen atuais podem ser, em resumo, de qualquer tipo e estar em qualquer lugar (a criação de sociedades de Jane Austen na Austrália, Argentina, Espanha, Brasil e Paquistão são indicativos da disseminação da autora), porém geralmente serão mulheres, o que funciona como um ciclo: justifica cada vez mais a associação de Austen com um mundo feminino específico (tão antiquado quanto longos vestidos, xícaras de porcelana e bordados), e esse estereótipo garante que apenas mulheres se interessem pelos seus romances. Mas essa sua força nos EUA representada pela JASNA é um dos aspectos essenciais para entendermos a crescente publicação e sucesso das continuações dos romances de Austen – ainda que existam muitos escritores ingleses envolvidos no fenômeno, a grande maioria é norte-americana, e a grande maioria é mulher. A supremacia norte-americana talvez possa ser explicada não só pela extensa população ou poder do mercado editorial nesse país, mas pelo fato de que os Estados Unidos estejam muito mais abertos à mercadorização de Austen dado que, para eles, a autora não representa um patrimônio nacional a ser preservado como é vista na Inglaterra – na verdade, dos parques da Disney à Hollywood, é possível afirmar que os EUA possuem pouquíssimas restrições a esse tipo de exploração comercial. É certo que essa comodificação também ocorre

106 ―A coleção de J.A. é o perpétuo prazer da minha vida. Eu comprei cada item porque eu senti que não poderia viver sem ele, e porque Jane Austen é ‗Santa Jane‘ na minha hagiologia privada‖ (tradução minha). 107 Eu tive o prazer de participar da AGM de 2014 em Montreal e ser forçada a descartar meus preconceitos depois de assistir, surpresa, a várias palestras com professores de universidades tradicionais que não hesitaram em comparecer em trajes típicos e pareciam estar se divertindo bastante com isso.

90 entre os ingleses, ainda mais quando Austen passa a ser ressignificada em fenômeno pop através de filmes, seriados e romances como O Diário de Bridget Jones. Contudo, acredito que a associação de Austen com uma essência inglesa torna a atitude dos fãs ingleses paradoxal porque também é defensiva da autora. A título de exemplo, em 2013 a cantora norte-americana Kelly Clarkson adquiriu o anel de turquesa de Jane Austen (um dos seus apenas três itens de joalheria que sobreviveram até hoje) em um leilão da Sotheby‘s. Imediatamente o governo britânico emitiu uma proibição de que a agora proprietária retirasse o anel do solo inglês para levá-lo aos EUA por conta de sua importância simbólica para o país. Ao mesmo tempo, o Jane Austen House Museum iniciou uma campanha pública para levantar fundos para que o lance de Clarkson pudesse ser reembolsado (cerca de 250 mil dólares), o que foi rapidamente obtido e o anel passou, então, a ser propriedade do museu, onde hoje está em exibição108. A questão de gênero – por que a grande maioria dos fãs de Austen hoje são mulheres? – também merece ser explorada. A princípio, parece ser um resultado de como os romances da autora foram divulgados pela indústria cinematográfica da década de 1990, pois as adaptações desse período libertaram-se de uma necessidade de se prender ao original e passaram a recriar as histórias focadas no relacionamento amoroso das heroínas e na lapidação dos heróis, apagando seus defeitos e recriando-os como príncipes encantados dos filmes da Disney. Esse tema em particular será abordado com mais detalhes no capítulo 3, mas é importante registrar aqui que, a partir do momento em que Austen passou a ser vista como a criadora de homens perfeitos – como a criadora de Mr. Darcy – automaticamente iniciou-se uma identificação forte do público feminino com as suas obras, especialmente em uma década que assistiu ao nascimento da chamada ―chick lit‖. Rachel Brownstein acerta a questão em cheio quando diz que A onda popular dos anos de 1990 mudou a ênfase ao limitar o foco no romance. Ela reimaginou todas as protagonistas de Austen como tendo o único objetivo de promover o subestimado sexo feminino casando-se com status, com dinheiro, e com o melhor homem e o mais sexy (...). A crítica de Austen sobre o egoísmo e a ganância e sobre uma sociedade que media o valor humano e os seus relacionamentos em termos de terra e dinheiro de alguma forma se perdeu no meio disso tudo. (Brownstein, 2011, p.7, tradução minha)

É por isso que a adaptação de 1995 da BBC de Orgulho e Preconceito, com o ator inglês Colin Firth no papel de Mr. Darcy, é considerada hoje um marco importante na história da recepção de Austen, já que, segundo Claire Harman, essa série foi um combustível para a atual popularidade da autora tão forte quanto o Memoir em 1870 fora para a sua redescoberta

108 http://www.theguardian.com/books/2013/sep/23/kelly-clarkson-gives-up-jane-austen-ring Acesso em 25/04/16

91 naquele período (Harman, 2009, p.197). O resultado é uma nova geração de Janeites, uma nova ―Austenmania‖, que se combina e se confunde com a obsessão com os heróis perfeitos que essas adaptações divulgam. A chamada ―Darcymania‖, assim, é representante da forma como Austen é lida hoje. A década de 1990 pode ser vista então como a primeira vez em que a imagem da ―Saint Jane‖ perdeu quase toda a sua força, sendo substituìda pela ―Pop Jane‖, como a revista Entertainment Weekly a representou em 1995: ―She doesn‘t go to the see-and-be-seen parties. She‘s reticent with the press. There are nasty rumours that she engaged in an incestuous relationship with her sister, for God‘s sake. And frankly, she could use a makeover. But in this year alone, four of her novels have been adapted for the big and small screens (…). Not bad for a British broad who‘s been dead for 178 years.‖109

Fig.12 - Jane Austen representada na Entertainment Weekly, 1995

A perda da aura da Santa Jane pode também explicar a sua popularidade e o seu apelo especial ao público feminino porque possibilitou a identificação das mulheres com a autora. Juliette Wells publicou um estudo interessante sobre seus fãs durante o qual entrevistou vários visitantes do Jane Austen House Museum. Segundo ela, 75% dos seus entrevistados eram mulheres, e comenta: ―Os homens particularmente estão pouco presentes entre os amantes atuais de Austen, um fato que é especialmente impactante dado os partidários masculinos assumidos que ela tinha no passado‖ (Wells, 2011, p.4, tradução minha). Wells também transcreve algumas respostas dos visitantes a seu questionário. Por exemplo, à pergunta ―O que Jane Austen significa para você?‖, uma jovem norte-americana com menos de 18 anos respondeu: ―Jane Austen represents the ideal woman. Unusual of the time, she was able to create a life without a husband and felt no obligation to perform the

109 ―Ela não vai às festas da moda. Ela é reticente com a imprensa. Existem rumores malvados de que ela teve um relacionamento incestuoso com a sua irmã, pelo amor de Deus. E francamente ela precisa de um novo visual. Mas somente nesse ano, quatro de seus romances foram adaptados para a grande e pequena tela (...). Nada mal para uma mulher inglesa que está morta há 178 anos‖ (tradução minha). Disponìvel em http://www.ew.com/article/1995/12/29/1995-entertainers-2 Acesso em 25/04/2016.

92 expected female duties. I find her very inspiring‖110 (Wells, 2011, p.1). Obviamente, a Jane Austen que essa jovem admira não tem nada em comum com aquela representada pelo Memoir. Agora ela é vista como uma mulher moderna, que recusou o papel tradicional feminino de sua época tanto por se tornar escritora como não se casando. Da mesma forma como essa jovem norte-americana, Wells afirma que muitas mulheres (mas nenhum homem) que entrevistou afirmaram que Jane Austen é uma fonte de inspiração pessoal para elas: ‗She is a heroine of mine‘ - Woman, 50s, UK ‗Jane Austen‘s intellect, talent, wit, and writing are an inspiration to my life‘ - Woman, 20s, American. ‗She was an inspiration for me as a teenager. Her insight into society and people formed my worldview from an early age. I respect her and look up to her.‘ - American woman, 20s.111 (WELLS, 2011, p.74)

Wells conclui que, mesmo sendo respostas curtas que não fornecem maiores explicações, é possível perceber a importância de Austen como autora e como mulher para as leitoras hoje (Wells, 2011, p.74). Se Austen já era uma heroína para seus fãs, então o próximo passo seria naturalmente que ela própria fosse transformada em heroína de uma história. Além da associação com Elizabeth Bennet, Austen vai ganhar então, tanto em romances quanto no cinema, as mesmas aventuras de suas próprias personagens. Além disso, Austen também será apropriada pela indústria de livros de autoajuda, que esquadrinham seus romances em busca de conselhos para a mulher moderna sobre vários temas mas, em especial, sobre como encontrar o homem perfeito, como nos títulos disponíveis na Amazon.com: Jane Austen’s Guide to Dating (Lauren Henderson, 2005), Dating Mr. Darcy. The Smart Girl’s Guide to Sensible Romance (Sarah Faulman Arthur, 2005), Finding Mr. Darcy: Jane Austen’s Guide to Dating and Relationships (Amanda Hooton, 2012) e The Jane Austen Rules: A Classic Guide to Modern Love (Sinead Murphy, 2014). Como observa Wells, esses livros consideram os romances de Austen como manuais que só precisam ser decifrados para serem aplicados nos dias atuais. Nem a leitura de Austen é mais necessária, pois na contracapa do guia de Lauren Henderson somos informados de que ―no need to read Jane Austen… Jane Austen‘s Guide to Dating summarizes all the love stories in the books so you can dive right into the benefits of

110 ―Jane Austen representa a mulher ideal. Incomum na época, ela conseguiu criar uma vida sem um marido e não sentia nenhuma obrigação de fazer os deveres esperados de uma mulher. Eu a considero muito inspiradora‖ (tradução minha). 111 ―‗Ela é a minha heroìna‘ – mulher, aprox.50 anos, Reino Unido. ‗O intelecto, talento, humor e escrita de Jane Austen são inspirações para a minha vida‘ – mulher, aprox. 20 anos, americana. ‗Ela foi uma inspiração para mim quando eu era adolescente. A sua visão profunda da sociedade e das pessoas formou a minha visão de mundo desde cedo. Eu a respeito e admiro. – mulher americana, aprox.20 anos‖ (tradução minha).

93 her great advice‖112 (apud Wells, 2011, p.90). Parece contraditório que a popularidade de Jane Austen tenha crescido tanto que nem é mais necessário ler seus livros: a Austenmania atual, ao contrário dos Janeites do século XIX, já se descolou das obras, e é alimentada basicamente pela sua apropriação na TV e cinema. Tornou-se, assim, uma cultura visual e não mais das letras e o acesso à Austen é mediado pela imagem, como podemos observar em uma resposta ao questionário de Wells de uma jovem de 18 anos: ―I love her work, although I have never read her novels, the dramatizations are fantastic‖113 (Wells, 2011, p.1). Para esta jovem, não é nem um pouco estranho afirmar que ela admira o trabalho de Austen, apesar de nunca ter lido nada da autora. Os seriados e filmes são vistos como representações objetivas dos romances, uma simples e direta transposição do papel para a tela, descartando qualquer tipo de criação por parte de roteiristas, diretores e atores. Para além da obra, portanto, pelo menos desde a década de 1990 podemos afirmar que as adaptações são o alimento da Austenmania. Com um leve senso de humor, Shannon Hale descreve como sua personagem principal em seu romance Austenland se tornou viciada na adaptação de 1995 de O&P: Sure, Jane had first read Pride and Prejudice when she was sixteen, read it a dozen times since, and read the other Austen novels at least twice, except Northanger Abbey (of course). But it wasn‘t until the BBC put a face on the story that those gentlemen in tight breeches had stepped out of her reader‘s imagination and into her nonfiction hopes. Stripped of Austen‘s funny, insightful, biting narrator, the movie became a pure romance. And Pride and Prejudice was the most stunning, bite-your- hand romance ever, the kind that stared straight into Jane‘s soul and made her shudder.114 (HALE, 2008, p.2)

Importante notar como a autora admite nessa passagem que a versão para a TV retirou o narrador ―engraçado, perceptivo e ácido‖ de Austen da história, transformando-a em ―puro romance‖. É exatamente esse o ponto essencial dessa cultura visual da Austenmania. Ao contrário dos Janeites do século XIX, lembra Johnson, para quem Austen era difícil, elusiva, acessível apenas para poucos, que demandava uma exegese cuidadosa de sua obra, hoje as adaptações produzem uma ―absorção rápida e fácil‖ via algumas horas em frente à TV (Johnson, 2012, p.184), sendo que o principal desafio atual dos professores universitários que decidem trabalhar com os romances de Austen em sala de aula ―consiste em forçar esses

112 ―Não é necessário ler Jane Austen… o Guia de Jane Austen para Encontros resume todas as histórias de amor dos livros para que você possa mergulhar imediatamente nos benefìcios dos seus grandes conselhos‖ (tradução minha). 113 ―Eu amo a obra dela, apesar de nunca ter lido seus romances, as dramatizações são fantásticas‖ (tradução minha). 114 ―Claro, Jane leu primeiro Orgulho e Preconceito quando ela tinha dezesseis anos, leu mais uma dúzia de vezes desde então, e leu os outros romances de Austen pelo menos duas vezes, com exceção de A Abadia de Northanger (óbvio). Mas não foi até o momento em que a BBC colocou um rosto na história que aqueles cavalheiros em calças apertadas saíram de sua imaginação de leitora e entraram nas suas esperanças reais. Retirado o narrador engraçado, perceptivo e ácido de Austen, o filme se tornou puro romance. E Orgulho e Preconceito era o romance mais estonteante, morda-a-sua-mão de todos os tempos, o tipo que olhava direto para a alma de Jane e a fazia estremecer‖ (tradução minha).

94 leitores guiados pelo cinema e famintos por tramas para diminuir o ritmo e ler‖ (Johnson, 2012, p.185, tradução minha). Não estou afirmando, com isso, que os fãs atuais não leem mais Austen (afinal, este trabalho aborda um fenômeno gigante das continuações motivado por sua leitura), mas sim que, mesmo para aqueles que continuam apreciando sua obra, arrisco dizer que é impossível fazê-lo sem ser minimamente influenciado pelas adaptações cinematográficas. Parece-me, ao contrário, que essas adaptações, que filtraram a complexidade de Austen para produzir histórias românticas, de alguma forma também influenciam o mercado editorial alimentando o fenômeno das continuações e variações de seus livros. É como se o cinema e a TV tivessem inventado essa Austen sentimental, e os leitores que se deparassem com as histórias originais – lentas, irônicas, realistas – fossem surpreendidos por essa ausência de sentimentalismo e se voltassem, então, às continuações para encontrar a emoção que estavam procurando. De uma certa forma, portanto, essas continuações fazem o caminho inverso, colocam a transformação feita pelo cinema e TV de volta ao papel. Deidre Lynch aponta para o fato de que os filmes praticamente obscureceram os livros: vemos fãs passeando em mansões que Jane Austen nunca viu usadas como cenários e inspecionar roupas feitas para os filmes que as pessoas do século XIX nunca usaram (Lynch, 2005, p.117). Ou seja, para ela, ao construirmos esse território imaginário que constitui ―o mundo de Jane Austen‖, entre a nossa autoria e autoria de Austen o equilìbrio foi totalmente perdido em favor do primeiro. Rachel Brownstein é ainda mais categórica ao afirmar que essa Austenmania das últimas décadas combinou uma obsessão com a autora com uma dispensa, ou uma leitura superficial e arrogante e uma reescritura condescendente do que ela escreveu (Brownstein, 2011, p.4). Diz ainda que: Ao contrário da opinião popular corrente hoje, os romances de Jane Austen não são acima de tudo sobre jovens bonitas em vestidos longos esperando por amor e casamento, e eles não são acima de tudo ―ingleses‖ e ―patrimônios‖, pequenos e decorosos e educados e agradáveis. Lidos com qualquer grau de atenção, eles não funcionam bem como leitura escapista. (...) Obcecados com uma nostalgia sentimental e os prazeres autopresumidos da repetição, lucros reais e amantes ideais e seios, a Jane-o-mania do século XXI está muito longe dos romances, e na maior parte até os perdeu. (...) A Jane-o-mania, com seus enganos e banalidades, revela as nossas próprias inadequações: estupidez e ignorância, arrogância e ganância, as características que Jane Austen satirizava. (BROWNSTEIN, 2011, p.247, tradução minha)

Paradoxalmente, portanto, a Austenmania atual consiste em um fenômeno de ―under-reading‖ (leitura superficial), para usar o termo de Brownstein, provocado por uma superexposição da autora, ou uma ―over-reading‖ – nenhum dos dois tipos de leitura consistindo em uma análise cuidadosa, um ―close reading‖. Afinal de contas, como lembrou a

95 escritora inglesa Hilary Mantel, ―No one who read it closely was ever comforted by an Austen novel‖115 (Mantel, 2007, p.82). O que, obviamente, nunca impediu que ela fosse vista como a Saint Jane, a Dear Aunt Jane, a Divine Jane, ou a Pop Jane. Na segunda parte desse capítulo, examinaremos como a transformação de Austen em personagem de suas próprias histórias, convertidas, por sua vez, em biografias ficcionais, vem divulgando uma nova imagem da autora, a Romantic Jane, a que viveu um grande amor. Afinal de contas, argumentam seus fãs, ela nunca poderia ter escrito uma história de amor tão perfeita sem ter tido essa experiência.

Parte 2 – Austen Heroína

Kathryn Sutherland, citando uma obra de Adam Phillips sobre psicanálise e literatura, afirma: a biografia dá forma à vida, mas a vida em si não (Sutherland, 2005, p.57). Todo o processo de construção de diferentes Austens apresentado na parte anterior deste capítulo é exatamente isso, biografias dando forma a uma vida que, se não fosse a importância posterior dada a essa pessoa, ela seria apenas mais uma na multidão, uma vida sem roteiro definido, rapidamente esquecida e abandonada. Mas não é esse o caso. O que vemos hoje é uma Austenmania estabelecida, sem sinais de cansaço, a qual, como nota Rachel Brownstein, foi alimentada por forças complicadas e múltiplas da história e de mudanças sociais, pelas ambições de empreendores e a flutuações de negócios, pelas novas mídias, pela revolução da informação, e pelos modos de se apreender um mundo transformado também por todos esses fenômenos (Brownstein, 2011, p.6). Nesse mundo, Jane Austen se tornou uma celebridade. E como toda revista de fofocas sabe, as pessoas ―comuns‖ nutrem uma grande curiosidade por detalhes da vida íntima de celebridades. A pequena quantidade de registros e informações sobre Austen em teoria seria um problema sério a essa busca pela intimidade da autora, porém não é o que ocorre na prática: Cassandra Austen parece ter feito um grande favor quando decidiu destruir boa parte das cartas de sua irmã, pois autorizou o surgimento das mais variadas hipóteses sobre o que ela estava escondendo e, como bem disse Sutherland, nas mãos de um escritor habilidoso, vazios e silêncios são mais eloquentes até que evidências (Sutherland, 2005, p.59). É natural que o grande sucesso das adaptações dos romances de Jane Austen da década de 1990 tenha também impulsionado um interesse na vida da autora. Só em 1997 foram lançadas três biografias, e mais três apareceriam até 2001. Cada biógrafo, observa

115 ―Ninguém que tenha lido com atenção recebeu conforto de um romance de Austen‖ (tradução minha).

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Wells, imagina sua vida de novo, tirando vantagem do que John Wiltshire chama de forma híbrida da biografia, já que mistura fatos e faz de conta e está envolvida tanto com uma figura mítica um uma fantasia coletiva quanto com eventos históricos (Wells, 2011, p.144). Essas biografias, portanto, tentam conectar Austen com aquilo que os fãs atuais acreditam ser a sua obra, e diferem consideravelmente das biografias publicadas no fim do século XIX e começo do XX. Ao mesmo tempo, para aqueles que não tinham o desejo de ler páginas e páginas sobre a vida de Austen – que eram recheadas, na verdade, com informações sobre seus primos, tios, e qualquer outra referência distante –, documentários foram lançados na TV para que, em uma hora, fosse oferecido tudo o que o espectador precisasse saber. Em 2002, a BBC lançou o seu documentário intitulado The Real Jane Austen, apresentado pela atriz Anna Chancellor, que havia estrelado a amada versão de Orgulho e Preconceito de 1995 no papel de Caroline Bingley, e que, para garantir ainda mais autoridade ao conteúdo apresentado, também é uma sobrinha-neta de Jane Austen oito gerações depois. Baseado na biografia escrita por Claire Tomalin em 1997, esse documentário apresenta a sua opinião sobre alguns acontecimentos da vida de Austen, algumas bem aceitas, outras nem tanto. Por exemplo, Tomalin defende que Austen tinha um relacionamento complicado com sua mãe por conta de um trauma gerado na infância ao ter sido enviada quando bebê, assim como seus irmãos, para ser amamentada por uma ama-de-leite. Ou, em outra instância, ―confirma‖ que Jane Austen havia desmaiado quando sua mãe lhe contou a notícia de que a família iria deixar Steventon e se mudar para Bath. Como o documentário propõe trazer a Jane Austen ―real‖, essas especulações são rapidamente transformadas em fatos sobre a autora. A estrutura do documentário também auxilia nessa manipulação. Atores foram selecionados para interpretar Austen e membros de sua família não só para encenar a sua história, mas para sentarem frente à câmera e agir como se estivessem sendo entrevistados, incluindo a própria Jane Austen. Trechos de suas cartas e romances compõem as falas dessas personagens ―reais‖. No caso do irmão Henry Austen, fragmentos de seu Biographical Notice e do Memoir de James Edward Austen-Leigh aparecem igualmente nas suas falas como ―testemunhos‖ sobre Austen. Algumas escolhas curiosas também merecem ser mencionadas: o irmão deficiente/doente de Austen, George, é esquecido completamente, e o documentário inclusive menciona que Mr. e Mrs. Austen tiveram apenas sete filhos, apagando a existência desse irmão. Por outro lado, a bomba d‘água em Steventon, que indica o local em que ficava a casa em que Austen nasceu – a mesma que fora desenhada no guia de Constance Hill em 1902 – aparece com honras.

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O foco do documentário, no entanto, centra-se em duas questões: casamento e dinheiro. Combinando-as, apresenta Tom Lefroy como o grande amor de Austen que foi impedido de se concretizar por questões financeiras e influência de outras pessoas. Para mostrar a profundeza do sentimento dela após Lefroy ter deixado Hampshire, o documentário coloca a própria Austen falando diretamente para a câmera as palavras de uma das cenas mais famosas de Persuasão em que Anne Elliot indica como nunca esquecera seu amor por Captain Wentworth: We [women] certainly do not forget you [men] as soon as you forget us. It is, perhaps, our fate rather than our merit. We cannot help ourselves. We live at home, quiet, confined, and our feelings prey upon us. You are forced on exertion. You have always a profession, pursuits, business of some sort or other, to take you back into the world immediately, and continual occupation and change soon weaken impressions.116 (P, p.253)

É desta maneira que o documentário vai tecendo, aos poucos, as semelhanças entre os romances e a vida de Austen: quando compara a preocupação de Mrs. Austen de casar suas filhas à de Mrs. Bennet de O&P, e quando traça um paralelo direto entre a decepção com Tom Lefroy e a decepção da empobrecida Marianne Dashwood, de R&S, sendo trocada por Willoughby por uma rica herdeira. De uma forma geral, o documentário coloca um foco muito forte no episódio com Lefroy, como se sua perda tivesse acompanhado Austen para o resto de sua vida. Entretanto, as suas cartas do período que mencionam esse jovem o fazem de maneira leve e espirituosa, sendo difícil avaliar com certeza os seus sentimentos. Em 15 de janeiro de 1796, Austen escreve a Cassandra: ―I look forward with great impatience to it [a ball at Ashe], as I rather expect to receive an offer from my friend in the course of the evening. I shall refuse him, however, unless he promises to give away his white Coat. (…) Tell Mary that I make over Mr. Heartley & all his Estate to her for her sole use and Benefit in the future, & not only him, but all my other Admirers (…), as I mean to confine myself in the future to Mr. Tom Lefroy, for whom I donnot care sixpence. Friday. At length the Day is come on which I am to flirt my last with Tom Lefroy, & when you receive this it will be over – My tears flow as I write, at the melancholy idea.‖117 (Letters, pp.3-4)

116 ―Nós [mulheres] certamente não esquecemos vocês [homens] tão cedo quanto vocês se esquecem de nós. É, talvez, mais o nosso destino do que mérito. Nós não podemos evitar. Vivemos em casa, quietas, confinadas, e nossos sentimentos se alimentam de nós. Vocês são forçados ao exercício. Sempre têm uma profissão, objetivos, negócios de algum tipo ou outro, para forçá-los de volta ao mundo imediatamente, e ocupação contínua e mudanças logo enfraquecem as impressões‖ (tradução minha). 117 ―Eu o aguardo [o baile em Ashe] com muita impaciência, pois espero receber uma proposta do meu amigo ao longo da noite. Eu vou recusá-lo, contudo, a não ser que ele prometa doar seu casaco branco. (...) Diga à Mary que eu deixo para ela o Mr. Heartley e toda a sua propriedade para seu próprio uso e benefício no futuro, & não só ele, mas todos os meus admiradores (...) já que eu pretendo me confinar no futuro ao Mr. Tom Lefroy, por quem não tenho nenhum sentimento. Sexta. Finalmente o dia chegou no qual eu vou flertar pela última vez com Tom Lefroy, & quando você receber esta carta tudo terá acabado – Minhas lágrimas escorrem enquanto eu escrevo por causa dessa ideia melancólica‖ (tradução minha).

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Para muitos críticos, é impossível ignorar o tom jocoso da autora, que parece diminuir a sua afeição por Lefroy. Deidre Lynch, por exemplo, defende que Austen se coloca como uma observadora fora de si mesma, apresentando-se com um humor frio, como uma heroína em um dos romances sentimentais que ela gostava tanto de parodiar na Juvenilia (Lynch, 2007b, s/p). Para o documentário, porém, Jane Austen está tentando disfarçar sua imensa tristeza com pequenas brincadeiras ao longo da carta, e as lágrimas mencionadas são literais. Teria sido até por conta de esses seus sentimentos que ela teria recusado a proposta de Bigg-Wither, e a partir dessa experiência Austen teria tido seus olhos abertos para a verdadeira condição do ―mercado de casamentos‖ como um grande negócio financeiro, e transformado essa questão no ponto central de todos os seus romances. Jane Austen teria se lançado na sua escrita – como um consolo? – e ela era a única que tinha poder sobre o destino de suas heroínas, deixando implícito que o final feliz dos romances era uma projeção de um desejo ou frustração que ela ainda sentia. O outro foco do documentário é o impacto da mudança para Bath, definido como um grande tumulto em sua vida: seus pais não tinham ideia do mal que estavam causando ao levar Austen para um lugar estranho e afastando-a de tudo o que havia possibilitado a ela escrever. ―No wonder‖, diz a narradora, ―she became too depressed to write‖118. Nenhuma carta desse período sobreviveu à censura de Cassandra, o que reforçaria a hipótese de que elas estavam repletas de sua infelicidade. Da mesma forma, o retorno ao campo e a vida em Chawton teria tido um efeito positivo dramático: finalmente Austen seria capaz de escrever novamente, como se uma nuvem negra tivesse sido afastada dela. A partir desse momento, o caminho estava livre para ela se tornar a grande autora que conhecemos hoje. Cinco anos depois desse documentário, o objetivo de retratar a Jane Austen ―real‖ seria totalmente descartado no filme biográfico/fictício Becoming Jane (2007), com a atriz Anna Hathway no papel principal. A história se passa provavelmente entre 1795/1796, quando Austen conheceu Tom Lefroy (interpretado por James McAvoy), e adianta temporalmente outros acontecimentos como a morte do noivo de Casssandra (Anna Maxwell Martin), Thomas Fowle, e a proposta de Harris Bigg-Wither, adaptado no papel de um herdeiro chamado Mr. Wisley (Laurence Fox). Com certeza nesse filme o aspecto fictício ganha muito mais espaço que o biográfico, centrando-se totalmente na história de Jane Austen

.118 ―Não é nenhum espanto que ela tenha ficado muito deprimida para escrever‖ (tradução minha) em ―The Real Jane Austen‖, parte 6-8, 0:53‘. Disponìvel em https://www.youtube.com/watch?v=XX9l6jLMrzI&index=6&list=PLm4mb_jqYxRaYKnhcgoMhAcRZBQx8xe ha Acesso em 30/04/2016.

99 e Tom Lefroy. Seu argumento principal é que o romance Orgulho e Preconceito foi baseado nesse relacionamento. Para estabelecer esse paralelo, o filme constrói um antagonismo inicial entre Austen e Lefroy. Eles se conhecem quando ele chega atrasado a um almoço das duas famílias e interrompe a leitura de Jane Austen de uma pequena história que ela havia escrito em homenagem ao noivado de Cassandra e Tom Fowle. Para piorar a ofensa, ele dorme enquanto Austen termina de ler sua história e, quando questionado por um colega sobre o que havia achado da história, Lefroy responde: ―Well, accomplished enough, perhaps, but a metropolitan mind may be less susceptible to extended, juvenile self-regard‖119 (Becoming Jane, 19:40). Austen ouve seu comentário e assim a sua má opinião sobre o cavalheiro é estabelecida. Essa cena reescreve a forma como Mr. Darcy e Elizabeth Bennet se conheceram em O&P, e a forma como Darcy ofendeu Elizabeth ao se recusar a tirá-la para dançar em um baile e ainda falar para seu amigo, perto o suficiente para que ela o ouvisse, que ela não era bela o suficiente para tentá-lo. Obviamente ninguém poderia dizer que a atriz Anna Hathway não seria bela o suficiente para nada, portanto a ofensa inicial que baseia o antagonismo entre Darcy e Elizabeth foi transposta para o talento de Austen como escritora. De qualquer forma, o início do relacionamento de Lefroy e Austen começa da mesma forma tensa como o de Darcy e Elizabeth, apesar do que é relatado brevemente pela própria Austen em suas cartas a Cassandra. No filme, nesse momento inicial, Austen usa palavras para descrever Lefroy como ―grosseiro‖ e ―desagradável‖, adjetivos que aparecem na opinião geral sobre Darcy em O&P. Esse primeiro descontentamento mútuo seria a base então para ela começar a escrever, meses depois, um novo romance chamado ―First Impressions‖, o tìtulo original de O&P. A superação dessa rejeição inicial acontece, no filme, pelo reconhecimento de uma atração física que se torna imediatamente um grande amor. Infelizmente, Lefroy é pobre e depende totalmente, tanto para seu sustento quanto o de sua família na Irlanda, de um rico tio que proíbe o seu casamento com Austen. Nesse momento em que a autora tem todas as suas esperanças destruídas, ocorre também a morte de Tom Fowle, o noivo de Cassandra, deixando ambas as irmãs em uma situação semelhante de corações partidos. Em meio a esse sofrimento, Austen retoma a escrita de ―First Impressions‖, cuja história, ela explica para Cassandra, é sobre duas irmãs, que começa mal e depois fica pior. Mas, pergunta Cassandra, como a história termina? Austen responde: Austen: They both make triumphant, happy endings. Cassandra: Brilliant marriages?

119 ―Bem, talentosa o suficiente, mas uma mente urbana seria menos suscetìvel a uma extensa e juvenil presunção‖ (tradução minha).

100

Austen: Incandescent marriages… to very rich men… [elas riem]120 (Becoming Jane, 1:26:57)

O final feliz de O&P é colocado então como o final feliz desejado por Austen para ela mesma e para a sua irmã. Mas ele não ocorreria na vida real, já que nenhuma das duas se casou. Em um salto temporal, o filme deixa implícito que Austen escolheu permanecer solteira por ser fiel ao seu amor por Lefroy. Eles se reencontram depois de quase vinte anos, e Lefroy apresenta sua filha a Austen porque ela é uma admiradora da autora. Austen então aceita ler o seguinte trecho de O&P em voz alta para a jovem: She began now to comprehend that he was exactly the man who, in disposition and talents, would most suit her. His understanding and temper, though unlike her own, would have answered all her wishes. It was an union that must have been to the advantage of both. By her ease and liveliness his mind might have been softened, his manners improved, and from his judgment, information, and knowledge of the world, she must have received benefit of greater importance. But no such happy marriage could now teach the admiring multitude what connubial felicity really was.121 (Becoming Jane, 1:53:46)

Enquanto lê o trecho, Austen olha constantemente para Lefroy, que também parece muito emocionado. Ambos, assim, deixam claro que nunca esqueceram seu amor um pelo outro, e que o amor entre Darcy e Elizabeth é uma projeção deles mesmos. Após o fim do filme, algumas informações sobre a vida de Austen são fornecidas, e sobre Lefroy é dito que ele teve uma carreira de advogado e juiz de muito sucesso, e que batizou sua primeira filha com o nome de Jane. Como não há muitos documentos sobre o relacionamento de Austen e Lefroy na vida real, muitos tomam esse fato como prova de que Lefroy realmente amava Austen e fora impedido apenas por questões financeiras de se casar com a autora. Ninguém parece reparar que Jane era também o nome da mãe de sua esposa e que era tradição na época nomear filhos em homenagem a seus pais e avós. Outras semelhanças entre a vida de Austen e seus romances aparecem dispersas nesse filme, como Lady Gresham sendo o exemplo para Lady Catherine De Bourgh, e novamente Mrs. Austen como o modelo de Mrs. Bennet. A famosa frase ―it is a truth universally acknowledged‖, abertura de O&P, é dita por Mr. Wisley, e outras falas de outros romances são ditas por várias personagens aqui. É uma pena que os fãs, ávidos por esses

120 ―As duas conseguem finais felizes e triunfantes. / Casamentos brilhantes? / Casamentos incandescentes... com homens muito ricos...‖ (tradução minha). 121 ―Ela começava a compreender que ele era exatamente o homem, em termos de disposição de talentos, que mais lhe convinha. O temperamento e a compreensão que ele tinha das coisas, ainda que diferentes dos seus, teriam satisfeito todos os seus anseios. Tratava-se de uma união que teria sido vantajosa para ambos; a sua naturalidade e vivacidade haveriam de suavizar-lhe a mente, aprimorar-lhe os modos; e, com o discernimento, o conhecimento do mundo e o nível de informação dele, ela haveria de se beneficiar, adquirindo importância. Mas nenhum casamento feliz poderia agora ensinar à multidão admirada o que era a verdadeira felicidade conjugal‖ (trad. Alexandre de Souza, edição Penguim Classics Companhia das Letras, 2011, p.445).

101 paralelos, não percebam como isso diminui a genialidade da autora, que passa apenas a ser uma copiadora do que viu e viveu. Valores atuais também ganham seu espaço e reescrevem a história: o irmão deficiente George Austen, apagado no documentário The Real Jane Austen, aqui se torna o confidente e protetor da irmã, com quem possui uma relação íntima – afinal, não seria bem aceito hoje o fato de que seus pais o enviaram para viver com outra família distante e parecem tê-lo esquecido completamente (Mrs. Austen nem chegou a mencionar esse filho em seu testamento). A respeito da sua obra literária, Becoming Jane aborda a juventude de Austen como o período em que ela estaria aprendendo, arriscando e tornando-se uma grande escritora, e seu relacionamento com Lefroy, segundo o filme, teria sido essencial não apenas como inspiração, mas também para o seu desenvolvimento como autora. Por exemplo, ele lhe empresta Tom Jones, de Henry Fielding, sob o argumento de que ela era uma jovem mantida sob ―ignorância‖ em nome da sua respeitabilidade como mulher, mas que ela precisava variar suas leituras se quisesse ser uma escritora da mesma qualidade que os homens autores. Dessa forma, tanto a sua experiência amorosa quanto essas novas leituras seriam responsáveis pela formação da ―madura‖ Jane Austen, ambas advindas do contato com Lefroy. O próprio título já indica esse processo de ―tornar-se Jane‖. E quem é essa ―Jane‖? Primeiro, a Jane-autora, indicando uma separação de duas fases, a fase da juvelinia e a fase madura pós-Lefroy. Segundo, a Dear-Aunt-Jane, já que o filme narra a forma como, depois desse grande amor, Austen teria decidido nunca se casar. Um ano depois de Becoming Jane, a BCC inglesa lança Miss Austen’s Regrets (2008), que retrata a autora nos últimos anos de sua vida e após a publicação de três livros. O que fica implícito pelo título e que o filme parece retratar é que as escolhas que Austen fez em sua vida para se tornar essa escritora talvez tenha gerado alguns arrependimentos, e obviamente eles são amorosos. O centro dessa história é a forma como Austen aconselha sua sobrinha Fanny Knight a respeito de uma potencial proposta de casamento, e como pano de fundo vemos o relacionamento de Austen com Brook Bridges, o cunhado de seu irmão Edward Knight, já que alguns poucos biógrafos acreditam que Bridges tenha também pedido Austen em casamento e fora recusado. Em Miss Austen’s Regrets, eles se reencontram anos depois desse acontecimento na propriedade de Edward em Kent, Bridges já casado com outra mulher. Por um lado, o filme se esforça em mostrar a obra de Austen como algo mais profundo do que simples histórias românticas. Por exemplo, em um diálogo entre Austen, seu irmão e sua sobrinha, vemos a seguinte passagem:

102

Fanny: What if there is someone better? What if I marry Mr. Plumptre and I never meet him? Someone better, I mean. What if I pass him on the street and I never know that he was the one? Austen: And what if you do meet him and he doesn‘t have any money? Fanny: But if I loved him then nothing else would matter. Austen: In Heaven‘s name, what gave you that idea? Fanny: Well, it says so in all of your books. Edward: If that‘s what you think they say, my dear, perhaps you should read them again.122 (Miss Austen’s Regrets, 6:57)

A questão financeira que aparece rapidamente aqui também ganha força ao longo do filme, como na cena em que a mãe de Austen a acusa de ter sido egoísta e ignorar a segurança da família ao recusar o pedido do rico Harris Bigg-Wither, ou quando a própria Austen acredita que ela vai ter que sustentar sua mãe e irmã através de sua escrita. É uma questão que também incomoda seu irmão Edward, que acusa Austen de não ter se casado por ser muito orgulhosa e de não considerar as consequências para a boa imagem da família se o fato de que ela almeja ganhar seu sustento com seus livros for descoberto. Mas apesar dos problemas financeiros, fica claro que a história com Bigg-Wither não é um arrependimento para Austen, que define a situação em termos de ―sacrifìcio‖ ou de ―venda‖ de si mesma em nome do dinheiro. Já a sobrinha Fanny Knight, de certa forma, representa os futuros fãs de Austen. Ela admira e respeita a opinião de sua tia como uma pessoa infalível, lê seus livros como histórias românticas, busca conselhos para a sua vida amorosa em sua tia, e parece obcecada em descobrir tudo sobre os amores de Austen. Fanny inclusive considera Mr. Darcy o homem perfeito, como na passagem em que, ansiosa para que a tia conheça seu provável futuro marido, Fanny faz um alerta: ―Please don‘t expect a Mr. Darcy‖, ao qual Austen responde: ―My darling girl, this is the real world. The only way to get a man like Mr. Darcy is to make him up‖123 (Miss Austen’s Regrets, 10:57). Aliás, todos os comentários de Austen nesse filme a respeito de sua obra, de uma forma geral, são para lembrar as pessoas de que ela escreve ficção e não histórias reais, um alerta que caberia facilmente hoje. Finalmente, a última cena do filme, que ocorre durante o casamento de Fanny em 1820, mostra Cassandra Austen selecionando as cartas de Austen e queimando a maioria. Quando Fanny vê o que ela está fazendo, pede desesperada para não destrua as cartas de sua tia. Cassandra pergunta: ―You still believe there‘s a secret love story to uncover?‖, e Fanny responde: ―Maybe I still hope

122 ―Fanny: E se houver alguém melhor? E se eu me casar com Mr. Plumptre e eu nunca conhecê-lo? Alguém melhor, quero dizer. E se eu passar por ele na rua e nunca souber que ele era o meu destino? Austen: E se você realmente encontrá-lo e ele for pobre? Fanny: Mas se eu o amasse então nada mais importaria. Austen: Em nome de Deus, de onde você tirou essa ideia? Fanny: Bom, isso está em todos os seus livros. Edward: Se é isso que você acha que eles dizem, querida, então talvez você devesse lê-los novamente‖ (tradução minha). 123 ―‗Por favor, não espere por um Mr. Darcy.‘ / ‗Minha querida menina, esse é o mundo real. A única forma de conseguir um homem como Mr. Darcy é inventá-lo‘‖ (tradução minha).

103 there is‖124 (Miss Austen’s Regrets, 1:21:52). A esperança de Fanny é a esperança de todos os fãs, e como observa Juliette Wells, eles parecem lamentar mais a possibilidade de um mistério que nunca será desvendado do que a possibilidade de que Cassandra tenha destruído importantes registros do processo criativo da autora que eles tanto amam (Wells, 2011, p.166). Contudo, enquanto o filme tenta questionar a adoração dos fãs ao mostrar que Mr. Darcy é uma figura imaginária, e que a esperança de Fanny é uma ilusão, o relacionamento de Austen e Brook Bridges parece passar a ideia contrária. A primeira vez em que Bridges aparece, Austen está sozinha na casa do irmão e, apesar de estar escrevendo uma carta para Cassandra em que diz estar feliz com isso, o filme compõe a cena de forma que, na verdade, Austen pareça solitária. A forma acanhada com que Austen recebe Bridges parece indicar que ela ainda tinha sentimentos por ele, e essa situação é recíproca. No final, quando Austen começa a demonstrar os primeiros sintomas de sua doença, eles se encontram novamente e deixam isso claro no seguinte diálogo:

Bridges: I wouldn‘t have prevented you from your writing if that was your fear. Austen: How could I have written if we‘d been married? All the effort of mothering… we‘d been too poor. Bridges: You‘re poor anyway. [They laugh] Bridges: We would have made each other laugh. Austen: Is that what marriage is? Bridges: I suppose no man of flesh and blood would ever be worthy of the creator of Mr. Darcy. Austen: You are all quite wrong about him. He wouldn‘t have done for me at all. Bridges: If I had plucked up the courage after we danced at the ball… Austen: We‘d been too young. Bridges: And later, when I did ask you? Austen: I simply went off the whole idea of marrying anybody. Bridges: Tell me now you regret it. Tell me now that sometimes in the night you think of me. Tell me even if it isn‘t true. Austen: What on earth would be the point?125 (Miss Austen’s Regrets, 1:11:30)

A angústia de Brook Bridges na cena indica seus sentimentos por Austen, enquanto a teimosia dela em negar o que ele pede – de afirmar que se arrepende – é construída de forma a indicar o contrário, que ela sim se arrepende. O diálogo também dá a

124 ―Você ainda acredita que exista uma história de amor secreta para reveler?‖ / ―Talvez eu ainda tenho esperança que sim‖ (tradução minha). 125 ―‗Eu não teria te impedido de escrever se esse era o seu medo.‘ / ‗Como eu poderia escrever sendo casada? Todo o esforço da maternidade... e nós serìamos muito pobres.‘ / ‗Você é pobre de qualquer jeito.‘ [eles riem] / ‗Nós terìamos feito rir um ao outro.‘ / ‗É para isso que existe o casamento?‘ / ‗Eu imagino que nenhum homem de carne e osso poderia ser digno da criadora de Mr. Darcy.‘ / ‗Você está muito engando sobre ele. Ele não teria servido para mim de forma alguma.‘ / ‗Se eu tivesse tido coragem depois de termos dançado no baile...‘ / ‗Nós serìamos muito jovens.‘ / ‗E depois, quando eu te pedi? / ‗Eu simplesmente afastei a ideia em geral de me casar com alguém.‘ / ‗Diga-me agora se você se arrepende. Diga-me agora que de vez em quando, à noite, você pensa em mim. Diga-me se não é verdade.‘ / ‗E para que serviria isso?‘‖ (tradução minha).

104 entender que ela fez uma escolha, a sua escrita, e em nome dela abriu mão da felicidade conjugal. Contudo, é um arrependimento que oscila. Perto de sua morte, observamos o seguinte diálogo entre Austen e Cassandra: Cassandra: Harris Bigg, Brook Bridges, Tom Lefroy…. Austen: And all any one of those men might have done is make me quite happy. Quite happy is not enough. Quite happy is not the ending I want to write for my story. And quite poor is the absolute limit. … No… the only regret I have about not marrying Harris Bigg is that I‘m going to die. I‘m going to leave you and Mother with nothing… Cassandra: Because of me, you‘ve chosen loneliness and poverty. Austen: Because of you, I chose freedom…126 (Miss Austen’s Regrets, 1:17:13)

Várias coisas importantes estão sendo ditas aqui. Primeiro, que Austen escolheu recusar propostas de casamento para ficar com sua irmã. A sobreposição de um trecho de Persuasão (―She had given him up to oblige others‖127, p.66) em determinado ponto do filme, indicando que ela já havia começado a escrever esse romance, parece traçar mais um paralelo entre seus livros e sua vida real e sugere que Austen fez essa escolha de permanecer solteira no mínimo de forma relutante. O segundo ponto, porém, relativiza essa ideia. Pelo menos no momento em que está de frente para a morte, Austen valoriza a liberdade que teve e só lamenta a situação financeira restrita em que Cassandra e sua mãe continuarão a viver. Contudo, ainda mais interessante é o motivo pelo qual ela explica sua decisão para a irmã: com qualquer um desses homens, ela teria sido apenas ―quite happy‖, ou seja, feliz, mas não o suficiente. Esse ―quite happy‖ é diferente do final feliz sublime de seus romances, o final que ela gostaria para a própria história. Ela não quis, portanto, se conformar com uma versão morna de felicidade. Por um lado, isso parece ser mais um indício de que ela fez escolhas conscientes e não parece se arrepender delas. Por outro lado, parece indicar que ela mesma era presa do ideal do final feliz perfeito dos romances que ela tanto criticava, bem como da noção de se misturar realidade e ficção. O documentário The Real Jane Austen e os dois filmes apresentados aqui são importantes porque divulgam informações sobre a autora que influenciam a forma como os leitores interpretam a sua obra. Em uma pesquisa citada por Karen Gervitz (2010), alunos de graduação que leram os romances de Austen para um curso apenas após já terem visto os filmes demonstraram ter uma experiência muito diferente dos alunos que fizeram o contrário.

126 ―‗Harris Bigg, Brook Bridges, Tom Lefroy...‘ / ‗E tudo que qualquer um desses homens teria feito é me fazer bem feliz. E bem feliz não é suficiente. Bem feliz não é o fim que eu quero escrever para a minha história. E bem pobre é o limite absoluto. ...Não... o único arrependimento que eu tenho por não ter me casado com Harris Bigg é que eu vou morrer. Eu vou deixar você e a mãe sem nada...‘ / ‗Por minha causa, você escolheu solidão e pobreza.‘ / ‗Por sua causa, eu escolhi liberdade...‘‖ (tradução minha). 127―Ela abrira mão dele para agradar a outros‖ (tradução minha).

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Gervitz nota ainda que pessoas que compraram o romance após terem visto – e apreciado – uma adaptação para o cinema ou TV frequentemente não terminaram de ler o livro (Gevirtz, 2010, s/p), indicando uma certa decepção com o original em comparação com a adaptação. De uma forma geral, portanto, é possível afirmar que a figura pública (diferente da figura acadêmica) que Austen representa hoje está atrelada ao que é visto na televisão, tanto sobre ela quanto sobre seus romances. É um fenômeno interessante que parece estar conectado também ao fato de Austen ser uma mulher. Atitudes semelhantes foram observadas em relação a outras escritoras como Charlotte Brontë e Emily Dickinson, porém não em relação aos homens. A popularidade das ―biopics‖ [biographical movies] também chegou a eles, como no filme de grande sucesso Shakespeare in Love (1999), mas, nota Gevirtz, não é um detalhe sem importância o fato de que seu tìtulo não era ―Will in Love‖, enquanto o filme de Austen era ―Becoming Jane‖ e não ―Becoming Austen‖. Trata-se de uma abordagem que familiariza a autora e de alguma forma enxerga a sua importância para a história da literatura de forma secundária. Afinal, o uso do primeiro nome, tão corriqueiro no trato da autora fora da academia, parece torná-la uma pessoa comum da qual é possível aproximar-se – via seus romances ou sua vida –, o que justifica o seu uso como manual de namoro ou inspiração pessoal pelos fãs, mas que não ocorre com o ―Shakespeare‖ devidamente seguro no alto do pedestal da sua autoridade cultural. Gevirtz também observa que, enquanto Shakespeare in Love foi visto apenas como uma brincadeira a partir da ideia de que ―Romeu e Julieta‖ era baseado em uma história de amor do próprio Shakespeare, os filmes sobre Jane Austen parecem moldar o entendimento sobre a autora: O número crescente de biopics muda a percepção da obra de Austen de grande literatura para (na melhor das hipóteses) um artefato arqueológico ou um diário codificado (na pior). A alegação reiterada de que Austen escreveu sua vida quando escreveu seus romances obscurece importantes preocupações do texto – sobre gênero, classe, educação, imperialismo, amor e família, por exemplo – assim como a noção de que Austen, uma escritora mulher, envolveu-se com essas questões. (GEVIRTZ, 2010, s/p, tradução minha)

O mistério em torno da vida de Austen faz com que seus leitores incorporem o papel de detetives, esmiuçando seus romances em busca de pistas escondidas nas entrelinhas e transformando crítica textual em investigação biográfica. Ao mesmo tempo, quando essas investigações são transformadas em biografias fictícias, encontramos o que Juliette Wells chamou de projeção em Austen das crenças e esperanças dos próprios fãs, ainda que de forma totalmente anacrônica, pois cada retrato de Austen, tanto no cinema quanto na ficção, presume e satisfaz o desejo dos leitores de se sentirem pessoalmente conectados com a sua

106 amada autora (Wells, 2011, p.169). Para entender um pouco como isso vem ocorrendo, nas páginas a seguir analisarei quatro romances que trazem novas versões sobre a vida de Jane Austen em relação a sua obra: The Man Who Loved Jane Austen (Sally O‘Rourke, 2006), The Lost Memoirs of Jane Austen (Syrie James, 2007), Jane by the Sea: Jane Austen’s Love Story (Carolyn Murray, 2015) e The Authoress (Jane Lark, 2016). Desses quatro, apenas o último não baseia seu argumento em uma história de amor de Austen desconhecida até então. Os dois primeiros títulos buscam apresentar essa história de amor com um viés documental/factual. A trama de The Man Who Loved Jane Austen gira em torno de uma viagem no tempo, em que um homem dos tempos atuais, chamado Fitzwilliam Darcy, acaba sendo transportado para a época de Austen e apaixonando-se pela autora. Darcy, porém, logo retorna para o nosso presente e se dedica a localizar documentos sobre Austen que possam provar que tudo aquilo realmente aconteceu e que ele não estava louco. É dessa forma que ele conhece Eliza Knight, uma jovem artista que encontrou por acaso duas cartas inéditas de Austen. O suporte para o argumento do romance vem do próprio mundo acadêmico nessa história. Quando Eliza entrega suas cartas para serem autenticadas por uma especialista em Austen, temos o seguinte diálogo em que a professora Thelma Klein explica a sua teoria de que a personagem de Fitzwilliam Darcy deve ter sido uma pessoa real, mas que fora apagada dos registros sobre Austen:

The older woman leaned forward, her eyes sparkling with excitement. ―But I‘m talking Fitzwilliam Darcy here, a young, handsome and fantastically wealthy man with a vast estate. Now if such a person had been a force in Jane Austen‘s life, don‘t you think there‘d be at least one reference to him somewhere in all her papers or in the volumes that have been written about her?‖ Thelma shook her head and leaned back in her chair. ―But there‘s nothing at all in the official Jane Austen record.‖ (…) ―Did you know, for instance, that after Jane‘s death her sister, Cassandra (…) destroyed virtually all of the letters she had written?‖ Eliza shook her head in wonderment. ―It‘s a recorded fact,‖ Thelma said. ―Jane was already becoming recognized as a major literary figure by the time of her death, (…) so why do you suppose her family started destroying their most precious reminders of her?‖ ―To hide something?‖ Eliza speculated. Thelma slapped the desk with the flat of her hand. ―Bingo! Maybe to hide something potentially scandalous!‖ she declared.128 (O‘ROURKE, 2006, pp.63-64)

128 ―A mulher mais velha inclinou-se para frente, seus olhos brilhando com animação: ‗Mas eu estou falando de Fitzwilliam Darcy aqui, um homem jovem, bonito e muito rico com uma vasta propriedade. Agora, se uma tal pessoa tivesse sido uma força na vida de Jane Austen, você não acha que haveria pelo menos uma referência sobre ele em algum lugar em todos os seus papéis ou nos volumes escritos sobre ela?‘. Telma sacudiu a cabeça e encostou-se de volta na cadeira. ‗Mas não há nada nos registros oficiais de Jane Austen‘. (...) ‗Você sabia, por exemplo, que depois da morte de Jane, sua irmã Cassandra (...) destruiu quase todas as cartas que ela tinha escrito?‘ Eliza sacudiu a cabeça em espanto. ‗É um fato registrado‘, disse Thelma. ‗Jane já estava se tornando conhecida como uma figura literária importante na época da sua morte, (...) então porque você acha que a sua famìlia começou a destruir suas lembranças mais preciosas dela?‘ ‗Para esconder alguma coisa?‘, especulou Eliza. Thelma bateu na escrivaninha com a mão aberta. ‗Bingo! Talvez para esconder alguma coisa potencialmente escandalosa!‘, ela declarou‖ (tradução minha).

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O romance de O‘Rourke coloca, assim, esse tipo de especulação dos fãs como um objeto de estudo sério da academia, o que o declara como perfeitamente válido. As cartas de Eliza Knight seriam a prova documental dessa hipótese, alimentando a imaginação dos fãs que acreditam que de fato Cassandra destruiu registros importantes da vida amorosa de Austen e que, talvez um dia, outros documentos poderão ser descobertos que venham iluminar essa questão tão essencial. É o mesmo argumento que baseia o romance The Lost Memoirs of Jane Austen. Como o próprio título indica, trata-se das memórias da autora que estavam perdidas até então, mas que foram descobertas escondidas em um baú em uma das propriedades do seu rico irmão Edward Knight. O prólogo, fictício obviamente, consiste em uma introdução de uma pesquisadora acadêmica formada em Oxford, presidente da ―Jane Austen Literary Foundation‖, que explica as circumstâncias em que os manuscritos foram encontrados e como foram publicados: Although biographers have often pondered the question as to whether or not the author kept a memoir or a journal, no sign of any such documents had ever been found. Until now. A workman recently employed to repair the roof of the manor house, in an attempt to trap an errant family of mice, discovered an old seaman‘s chest bricked up behind a wall in a far corner of the immense, rambling attic. The chest, to the befuddlement of the entire work crew, was filled with what appeared to be old manuscripts. Incongruously, at the bottom of the chest, in a tiny velvet box, lay a delicate gold-and-ruby ring. The memoir you have before you, although it covers an earlier period in Jane Austen‘s life, was apparently written sometime between 1815 and 1817, when the author began to suffer from the illness that resulted in her death. Although it seems to be the final volume of her memoirs, it was selected for publication first, partly because of the immaculate physical state of the document itself and partly because of its surprising and revealing subject matter.129 (JAMES, 2007, posição Kindle 88-89, 92-95114-117)

O conteúdo ―surpreendente‖ revelado nesses manuscritos é a história de amor de Jane Austen com um homem chamado Frederick Ashford, herdeiro de uma grande propriedade chamada Pembroke Hall, e o anel encontrado junto com os manuscritos seria aquele que Ashford presenteou Austen quando a pediu em casamento. O livro também conta com diversas notas explicativas ao longo das memórias para elucidar referências de Austen, reconstruindo a aparência de um manuscrito editado e comentado por uma pesquisadora da área.

129 ―Apesar de os biógrafos terem sempre se perguntado se a autora mantinha ou não um diário ou memoir, nenhum sinal de documentos desse tipo foram encontrados. Até agora. Um operário recentemente empregado para consertar o telhado da mansão, em uma tentativa de capturar uma família fugitiva de ratos, descobriu um velho baú de marinheiro escondido atrás de uma parede de tijolos no canto mais distante do imenso sótão. O baú, para espanto da equipe de trabalho inteira, estava cheio de manuscritos antigos. De forma incongruente, no fundo do baú, em uma pequena caixa de veludo, estava um delicado anel de ouro e rubi. O memoir apresentado para você, apesar de cobrir um período anterior da vida de Jane Austen, foi aparentemente escrito em algum momento entre 1815 e 1817, quando a autora começou a sofrer da doença que a levou à morte. Apesar de este parecer ser o volume final das suas memórias, ele foi selecionado para ser publicado primeiro em parte por conta do imaculado estado de conservação do documento, e em parte por conta de suas revelações surpreendentes‖ (tradução minha).

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Diferente dos dois romances anteriores, Jane by the Sea não tenta se construir como algo factual, consistindo apenas em uma história sobre Austen, narrada em primeira pessoa, baseada naquele pequeno relato de Cassandra sobre sua irmã ter conhecido um homem interessante em uma cidade litorânea mas que ele morrera pouco tempo depois. No romance de Carolyn Murray, esse homem é o Sargento Frederick Barnes, que chega a pedir Austen em casamento, porém em seguida falece em uma missão da Marinha Britânica. Finalmente, o único dos quatro romances selecionados que não foca na vida amorosa da autora é The Authoress, que traz Austen no processo de se mudar de Bath para sempre e se redescobrir como escritora. Contudo, essa ―redescoberta‖, que ocorre enquanto está hospedada em Stoneleigh Abbey, uma grande propriedade de um parente distante, é simbolizada pelo seu trabalho de reescrever O&P, cuja história de amor é a preferida dos fãs. Assim, mesmo não criando uma relação amorosa para a autora, The Authoress acaba associando-a a esse tipo de história. Além disso, também não abre mão de um discurso de verdade, já que, através de uma carta de Mrs. Austen, é sabido que Jane Austen visitou Stoneleigh Abbey com sua mãe e irmã, e que ―the people Jane meets in this story and the places she visits are part of a true event that followed Jane‘s last days in the City of Bath, this period of her life created a tapestry of memories she drew on for inspiration for many years afterwards‖130 (Lark, 2016, posição Kindle 35-36). Rapidamente, o livro usa uma informação biográfica sobre a autora para sustentar sua suposição de que essa experiência foi utilizada em seus futuros romances. Em grande parte, o que justifica o foco dos outros romances na vida amorosa de Jane Austen é uma opinião corrente de que teria sido impossível escrever uma história de amor tão perfeita quanto a de Elizabeth Bennet e Mr. Darcy (ou, para alguns, de Anne Elliot e Frederick Wentworth) sem ter vivido algo semelhante. Sally O‘Rourke não poderia deixar isso mais claro quando colocou sua personagem acadêmica defendendo esse exato ponto: ―What I‘m about to tell you won‘t be found in the standard biographies,‖ Thelma began. ―Of course, Darcy‘s identity is one of the great unknowns of Austen‘s work. But every schoolgirl who‘s ever gotten hooked on P&P secretly suspects that the character must have been drawn from the author‘s personal experience.‖ Thelma shrugged theatrically and held out upturned palms in a no-brainer gesture. ―I mean, how else could Austen have so perfectly described that unforgettable and passionate relationship between Darcy and Elizabeth Bennet, right?‖131 (O‘ROURKE, 2006, p.63)

130 ―As pessoas que Jane conhece nesta história e os lugares que ela visita são parte de um evento real que aconteceu depois dos últimos dias de Jane na cidade de Bath, esse período da sua vida criou uma tapeçaria de memórias da qual ela retirou inspiração por muitos anos depois disso‖ (tradução minha). 131 ―‗O que eu vou te contar não pode ser encontrado nas biografias comuns‘, Thelma começou. ‗Claro, a identidade de Darcy é um dos grandes mistérios da obra de Austen. Mas toda menina de escola que já se viciou em Orgulho e Preconceito suspeita secretamente que a personagem deve ter sido inspirada na experiência pessoal da autora‘. Thelma ergueu os ombros teatricalmente e as mãos em um gesto de que isso era óbvio. ‗Quer

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Ainda mais forte é a sua própria Jane Austen admitindo para o Fitzwilliam Darcy viajante-no-tempo que ―Knowing you has been the most wonderful experience of my life.‖ (…) ―For now I know at least a little of those tender passions and emotions which I have so often and yet so poorly attempted to describe in prose‖132 (O‘Rourke, 2006, p.250). Ou seja, suas tentativas anteriores de escrever sobre emoções eram pobres em comparação com a verdadeira experiência, e fica implícito que, agora, ela conseguiria fazer melhor. A mesma ideia é escrita pela Jane Austen dos manuscritos perdidos, quando explica a sua decisão de registrar suas memórias: for there may, I think, be speculation when I am gone. People may read what I have written, and wonder: how could this spinster, this woman who, to all appearances, never even courted—who never felt that wondrous connection of mind and spirit between a man and woman, which, inspired by friendship and affection, blooms into something deeper—how could she have had the temerity to write about the revered institutions of love and courtship, having never experienced them herself? I did attempt to write of love—first, in jest, as a girl; then in a more serious vein, in my early twenties, though I had known only young love then [Tom Lefroy]; in consequence, those early works were of only passing merit. It was only years later that I met the man who would come to inspire the true depth of that emotion, and who would reawaken my voice, which had long lain dormant.133 (JAMES, 2007, posição Kindle 160-164, 169-173)

É um tipo de argumento que descarta totalmente o poder criativo de um autor – afinal, todos os escritores de ficção científica devem ter sido abduzidos, todos os escritores de mistérios são detetives ou policiais, Lewis Carroll seguiu um coelho para dentro de um buraco e J. K. Rowling frequentou uma escola de magia. Enquanto essas afirmações seriam consideradas absurdas por qualquer pessoa, por que apenas em histórias românticas é necessário que o autor tenha vivido algo semelhante? Na passagem acima, além dessa questão, podemos observar um ponto ainda mais questionável quando sugere que a fase ―madura‖ de Austen – em oposição aos seus escritos de juventude de apenas um ―passing merit‖ – não foi resultado só de um grande amor, mas de sua interação com um homem, o qual ―despertou‖ a sua voz de escritora. Se não fosse por ele, então, Austen não seria a Jane dizer, de que outra forma Austen poderia ter descrito de maneira tão perfeita aquela relação inesquecível e apaixonada entre Darcy e Elizabeth Bennet, certo?‘‖ (tradução minha). 132 ―Conhecer você foi a experiência mais maravilhosa da minha vida (…) Pois agora eu conheço ao menos um pouco daquelas paixões e emoções doces as quais eu tentei tão frequentemente, e ainda assim de maneira tão fraca, descrever em prosa‖ (tradução minha). 133 ―pois pode haver, eu acho, especulações depois da minha morte. As pessoas podem ler o que eu escrevi e pensar: como poderia essa solteirona, essa mulher que, aparentemente, nunca teve nenhum relacionamento – que nunca sentiu aquela maravilhosa conexão de mente e espírito entre um homem e uma mulher, a qual, inspirada por afeição e amizade, desabrocha em algo mais profundo – como ela poderia ter tido a temeridade de escrever sobre as reverenciadas instituições do amor e do relacionamento, nunca as tendo experimentado ela mesma? Eu realmente tentei escrever sobre amor – primeiro, como uma brincadeira, quando menina; depois, de uma forma mais séria, quando tinha por volta de vinte anos, apesar de ter conhecido apenas um amor juvenil até então [Tom Lefroy]; em consequência, aqueles primeiros trabalhos tinham apenas um mérito superficil. Foi somente anos mais tarde que eu conheci o homem que viria a inspirar a verdadeira profundidade daquela emoção, e que iria despertar a minha voz, a qual jazia dormente‖ (tradução minha).

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Austen? Isso se apresenta em termos práticos quando, muitos capítulos à frente, Mr. Frederick Ashford financia a primeira publicação de Razão e Sensibilidade já que Austen não tinha condições financeiras para isso. Mas o livro de Sally O‘Rourke vai além nessa questão quando coloca Austen ansiando por esse grande amor, como se ela de fato não fosse feliz até então. Afinal, ela escreve para o moderno Fitzwilliam Darcy, ―Do you not know that I of all women would gladly trade a single moment of love for a lifetime of wondering what such a moment might have been?‖134 (O‘Rourke, 2006, p.303). Quem é essa Jane Austen que trocaria tudo por um único momento de amor? É uma mulher, coloca O‘Rourke, que vez ou outra invejava a sua irmã por ter obtido esse amor, mesmo com o fato de seu noivo ter morrido tragicamente. Em comparação, a sua vida era vazia: She who had long since abandoned all hope of ever finding love. (…) he had reawakened her girlhood dreams of love and romance, all the lovely dreams she had so carefully preserved on countless sheets of neatly inscribed vellum that she kept hidden away in the deepest recesses of her closet. (…) For, in her mind, the risks she was taking to meet with her new-found lover tonight were as nothing compared to the dread she felt, of slipping into her old age without ever having tasted love.135 (O‘ROURKE, 2006, p.2)

A recompensa para esse Fitzwilliam Darcy, por ter dado algo a Austen tão precioso, foi ter sido transformado em uma das personagens românticas mais icônicas de todos os tempos. Afinal, até então ela se considerava ―an unremarkable spinster who lived an unremarkable life‖136 (O‘Rourke, 2006, p.2), mas tudo mudou com a chegada de Darcy. O seu livro se torna uma homenagem e uma tentativa de imortalizar o sentimento, ao mesmo tempo em que reverte a sua autoestima – uma vez publicada, Austen não se consideraria mais uma pessoa comum com uma vida ordinária. Infelizmente essa Jane Austen não existe somente no romance de O‘Rourke. Em 1991 ela já existia na peça ―The Novelist: A Romantic Portrait of Jane Austen‖, de Howard Fast, sobre a qual Emily Auerbach, observa que, apesar do tìtulo, essa romancista trocaria todas as suas obras por uma paixão, ainda que breve. Na peça, Austen diz: ―I constructed a life, my dear Thomas, that was filled with sensible and reasonable explanations for who I was and what I was. Jane Austen, a middle-aged spinster, who whiled her time away writing entertainments that were a substitute for life. But at least I

134 ―Você não sabe que eu, dentre todas as mulheres, trocaria feliz, por um único momento de amor, toda uma vida de especulações sobre como seria esse momento?‖ (tradução minha). 135 ―Ela que tinha abandonado há muito tempo qualquer esperança de encontrar o amor. (...) ele tinha despertado os seus sonhos de menina de amor e romance, todos os adoráveis sonhos que ela tinha preservado com todo cuidado em incontáveis folhas de velino que ela mantinha escondidas nos cantos mais profundos de seu armário. (...) Pois, em sua mente, os riscos que ela estava assumindo ao se encontrar com esse recém-descoberto amante esta noite não eram nada em comparação ao medo que ela sentia de envelhecer ser nunca ter experimentado o amor‖ (tradução minha). 136 ―uma solteirona qualquer que vivia uma vida qualquer‖ (tradução minha).

111 have this good fortune, that… in my love for you I found a quality that was all I had ever dreamed of‖137 (apud Auerbach, 2004, p.276). À beira da morte, Austen diz: ―There is only one medicine I need, and that‘s yourself‖138 (idem, p.277). É perturbador como essas Austens não hesitam em diminuir o valor de sua própria obra literária frente à importância do amor, e como ninguém parece se incomodar com isso. Como Jane Austen nunca se casou, apesar de todos os esforços para conceder a ela um grande amor, esses livros precisam respeitar esse dado biográfico e seus relacionamentos nunca têm um final feliz. Mas, como vimos nos biopics, esse ―problema‖ vai ser transformado em motivação para que todos os seus romances acabem muito bem. Em The Lost Memoirs of Jane Austen, Austen não consegue terminar O&P, que ela considera a sua história com Mr. Ashford. A pedido dele, o romance recebe um final feliz: ―it needs alteration and contraction, and—I have not the heart for it.‖ ―Why not?‖ ―Because I now know how it must end.‖ ―Do not accept that end. Play God. Give us another witty, romantic novel by Jane Austen, with the ending you choose‖139 (James, 2007, posição Kindle 3700-3703). Ao menos na ficção, pede Ashford, eles não terão que se separar, e assim será. Já em Jane by The Sea, o paralelo entre a vida real e a ficção fica ainda mais forte quando, além de Austen representar o seu desejo no casamento de Elizabeth e Darcy, ela ainda concede a mesma alegria para sua irmã Cassandra ao colocá-la como Jane Bennet, que se casa com Mr. Bingley. Para Austen, tanto ela como a irmã ―had [not] reached our wedding day, but we were widows all the same‖140 (Murray, 2015, p.187), e tiravam forças no apoio uma da outra. Esse era o final que ela tinha escrito para Elizabeht e Jane, mas decide mudá-lo quando tem uma visão das duas irmãs fictícias implorando por isso: ―Well … nothing is set in stone,‖ I conceded. Elizabeth and Jane Bennet clasped hands, pleading, hopeful. I reached behind myself and opened the chapel door. In strolled Darcy and Bingley in formal attire. They joined Elizabeth and Jane Bennet at the altar, now both in wedding gowns. There was a full church to witness the double nuptials. A pastor stood before the two couples. Elizabeth turned to give me a quick backward glance of deep gratitude. ―We are gathered here to join this man and this woman, and this man and this woman in the bonds of holy matrimony. Which is not a state to enter into lightly or wantonly, but reverently, soberly, and in the fear of God.‖ The pastor‘s eyes fixed on mine, and in an instant, I found myself right in front of him. I turned to face my handsome bridegroom, Lieutenant Frederick Barnes, who looked as proud and happy as I could ever imagine him.

137 ―Eu construi uma vida, meu querido Thomas, que era cheia de explicações sensìveis e racionais sobre quem eu era e o que eu era. Jane Austen, uma solteirona de meia-idade que passava seu tempo escrevendo divertimentos que eram um substituto da vida. Mas eu pelo menos tive essa grande sorte, que... em meu amor por você eu encontrei uma qualidade que era tudo aquilo que eu sempre sonhei‖ (tradução minha). 138 ―Existe apenas um remédio que eu preciso, e é você mesmo‖ (tradução minha). 139 ―é necessário alterações e cortes e – eu não tenho coragem para isso‘. ‗Por que não?‘ ‗`Porque eu agora sei como ele deve terminar.‘ ‗Não aceite esse final. Brinque de Deus. Dê a nós outro romance inteligente e romântico de Jane Austen, com o final a sua escolha‖ (tradução minha). 140 ―não alcançamos o nosso dia de casamento, mas éramos viúvas da mesma forma‖ (tradução minha).

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Beside us stood Cassie and her Thomas Fowle, both glowing with anticipation. How fitting that Cassie and I should share this day of joy.141 (MURRAY, 2015, p.197).

Claramente, o final de Orgulho e Preconceito é o final de Jane Austen e Cassandra Austen. Afinal, se Austen não pode criar uma história amorosa sem tê-la vivido, ela também não pode criar duas personagens irmãs/amigas sem baseá-las no relacionamento dela com Cassandra. Por isso, é fácil encontrar em outros livros Cassandra representada com as características de Jane Bennet (beleza, bondade), e ainda muito mais comum é a associação de Austen com Elizabeth. Em The Authoress, mais de uma vez Austen ―captura suas próprias emoções‖ para aplicá-las no papel como sendo as de Elizabeth enquanto escreve O&P (Lark, 2016, posição 1537/38), e faz comparações com a sua personalidade e da personagem, utilizando passagens do romance: ―When she arrived home from such walks [in the fields] she would have glowing cheeks and be smiling from the invigoration of a good swift ramble, and from the inspiration and wonder of nature too, and the hems of her petticoats would be six inches deep with mud beneath her dress; just as Lizzy had appeared at Netherfield‖142 (Lark, 2016, posição Kindle 289-91). Essa associação entre autora e personagem não é nenhuma novidade. Como observa Rachel Brownstein, uma admiração tão pessoal quanto a dos fãs por Austen demanda uma pessoa ―real‖ como objeto, porém a carência de dados biográficos sobre ela e o brilho do romance em si levaram as pessoas – até mesmo antes dos filmes – a ler Elizabeth Bennet, a qual rejeita convenções e pedidos de casamento prudentes, como um auto-retrato da autora (Brownstein, 2011, p.42). Assim, a ironia de Elizabeth e sua força em desafiar, até certo ponto, o que era esperado de uma jovem naquele período faz com que os fãs enxerguem nela uma projeção de Austen porque, conforme nota Juliette Wells, o público atual concebe a autora como uma mulher que estava à frente de seu tempo (Wells, 2011, p.158). Outros detalhes também parecem ajudar nessa identificação. Por exemplo, Austen era lembrada por seus sobrinhos como tendo um olhar inteligente e vivo, enquanto o primeiro aspecto que

141 ―‗Bom... nada é definitivo‘, eu concedi. Elizabeth e Jane Bennet bateram palmas, implorando, esperançosas. Eu pus a mão atrás de mim e abri a porta da capela. Entraram Darcy e Bingley em roupas formais. Eles se juntaram a Elizabeth e Jane Bennet no altar, ambas agora em vestidos de noiva. A igreja estava cheia de testemunhas para o casamento duplo. Um pároco estava em frente aos dois casais. ‗Nós estamos reunidos aqui hoje para unir este homem e esta mulher, e este homem e esta mulher, nos sagrados laços do matrimônio. O qual não é um estado para ser entrado de forma leve ou imoral, mas de forma reverente, séria e temente a Deus‘. Os olhos do pároco se fixaram sobre os meus, e em um instante me encontrei diretamente à sua frente. Eu virei meu rosto e vi meu belo noivo, Tenente Frederick Barnes, que parecia tão feliz e orgulhoso quanto poderia imaginá- lo. Ao nosso lado estavam Cassie e o seu Thomas Fowle, ambos brilhando de antecipação. Quão adequado era que Cassie e eu dividìssemos esse dia de alegria.‖ (tradução minha). 142 ―Quando ela chegava em casa depois dessas caminhadas, suas bochechas estariam brilhando e sorrindo pela revigoração de um bom e rápido passeio, e pela inspiração e maravilhas da natureza também, e suas anáguas teriam quinze centímetros de lama na barra embaixo do seu vestido, da mesma forma como Lizzy aparecera em Netherfield‖ (tradução minha).

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Darcy aprende a admirar em Elizabeth são seus olhos brilhantes. Elizabeth também parece ser a filha preferida de seu pai, Mr. Bennet, que provavelmente a encorajou a ler e estudar, o que geralmente é comparado com a influência que o Reverendo George Austen teve na formação de sua filha. O interesse que ele demonstrou nas suas histórias ao tentar publicar um dos manuscritos de Austen é visto como sinal de que ele tinha um relacionamento próximo a ela como o de Mr. Bennet e Elizabeth. Esse é um ponto importante que diferencia o que muitos críticos afirmam hoje serem duas grandes ondas de Austenmania: a primeira, depois da publicação do Memoir em 1870, e a segunda, depois da adaptação de O&P da BBC em 1995 (Harman, 2009, p.xx). A primeira Austenmania, como vimos, centrou-se no culto a uma Jane Austen santa, tomando o que fora apresentado por James Edward ao pé da letra. Na segunda Austenmania, porém, essa imagem não se encaixava mais em uma sociedade pós-feminismo, e foi substituída por uma Jane Austen moderna, que se rebelava contra os ditames de sua sociedade e arriscou tudo, inclusive felicidade conjugal e maternal, para perseguir seu sonho de ser uma escritora. Essa geração rompe com a ―Santa Jane‖143, cuja imagem era aquele desenho melhorado de Cassandra (fig.6), e, na falta de um retrato melhor, escolhe o culto à Jane-Austen-Elizabeth- Bennet, cuja nova imagem é representada por uma ilustração de Isabel Bishop para uma edição de O&P de 1976:

Fig.14 – Elizabeth Bennet por Isabel Bishop

Essa imagem, hoje parte da coleção da Pierpont Morgan Library em Nova York (que abriga diversos manuscritos de Jane Austen), foi utilizada na divulgação de uma

143 Uma observação é necessária sobre a sobrevivência da ―Santa Jane‖ em cìrculos especìficos, especialmente de fãs advindos de igrejas cristãs mais tradicionais. Estes grupos apreciam Austen por conta dos ―valores morais‖ que, segundo seu ponto de vista, podem ser encontrados em seus romances, como modéstia e castidade para as mulheres. Como observa Juliette Wells, esses fãs admiram a imagem de Austen construída por Henry e James Edward sobre uma autora religiosa e devota e, curiosamente, buscam em e sobre sua obra a mesma coisa que os fãs não-cristãos: guias de conduta, continuações, biografias, etc. (Wells, 2011, p.191). Existe até uma versão de Orgulho e Preconceito que foi adaptada para a cultura Mórmon dos Estados Unidos no filme ―Pride and Prejudice: A Latter Day Comedy‖ (dir.: Andrew Black, 2003).

114 exposição especial sobre a autora em 2009/2010. Segundo Juliette Wells, ao invocar Austen através de sua heroína, os curadores da biblioteca evitaram, de maneira muito esperta, questões de autenticidade e adicionaram mais uma instância a uma longa tradição de associar a autora com a inteligente e querida Elizabeth (Wells, 2011, p.150). É difícil precisar a origem dessa ―longa tradição‖, mas com certeza a influência da adaptação de 1995 da BBC, que trouxe muito mais erotismo e atração física à história, foi responsável pela rejeição final da ―Dear Aunt Jane‖ inocente e recatada e também desse tipo de interpretação de sua obra: os fãs hojes procuram muito mais ler nas entrelinhas sinais de uma atração irresistível entre Darcy e Elizabeth e recheiam as continuações e fanfics com cenas de sexo. Isso explica também porque um de seus romances mais aceitos em sua época, Mansfield Park, é pouco apreciado pelos fãs atuais por ser muito ―correto‖. Ninguém gosta mais da quieta e submissa Fanny Price, a tal ponto que, em sua adaptação de 1999, a diretora e roteirista Patricia Rozema incorporou a personalidade de Austen para compor essa Fanny no cinema e torná-la mais simpática aos olhos do público. Da mesma forma como Rozema recriou Fanny Price, essa geração de Austen-fãs reescreve a vida da autora em romances e filmes para ajustá-la ao que eles esperam de uma escritora que, a partir de seu ponto de vista, rompia com as regras de seu tempo. Essa reescritura não se resume apenas à vida e personalidade da autora. Sua aparência física também precisa ser trabalhada, afinal, o desenho de Cassandra não é nem um pouco atraente. No romance de O‘Rourke, Darcy descobre ―how extraordinarily attractive she was, bearing not the slightest resemblance to the poorly done sketch (…) that was the only known portrait of Jane Austen to have survived into his time‖144 (O‘Rourke, 2006, p.169). Essa Jane Austen possui uma ―firm but sensuous mouth, regular features framed by beautiful dark brown hair that gleamed with highlights of sunshine from the open window‖ (idem, p.127) e o seu vestido longo de cintura alta ―exaggerated the enticing swell of her breasts‖145 (idem, p.129). Darcy não poderia deixar de se sentir atraído por essa Austen que era muito mais bonita do que o esperado e também inocentemente erótica: ―He closed his eyes and envisioned her once again as he had watched her in the bedroom at Chawton Cottage, her dark eyes gleaming in the candlelight as she leaned over her writing. Something stirred within him

144 ―quão extraordinariamente atraente ela era, não tendo nenhuma semelhança com aquele desenho mau feito (…) que era o único retrato de Jane Austen que sobrevivera até o seu tempo‖ (tradução minha). 145 ―boca firme porém sensual, rosto regular enquadrado por um belo cabelo castanho escuro que brilhava com a luz do sol que entrava pela janela‖ / ―realçava o volume sedutor dos seus seios‖ (tradução minha).

115 as he recalled another, even more powerful image of her: naked behind the thin dressing screen, her slender, full-breasted figure limned in the dancing firelight‖146 (idem, p.207). The Lost Memoirs of Jane Austen também não hesita em descartar o desenho de Cassandra como não tendo nenhuma semelhança com Austen: ―Cassandra also took up her hobby of water-colour sketching. She cornered me one afternoon and absolutely forced me to sit for an informal portrait, the likeness of which (every one agreed, to my sister‘s mortification) was rather unflattering. No one has ever attempted to draw my portrait since‖147 (James, 2007, posição Kindle 2931-2933). Até mesmo no romance autoajuda de Patrice Hannon, Dear Jane Austen: A Heroine’s Guide to Life and Love, Austen conversa por cartas com suas fãs modernas e ela mesma analisa o efeito que o desenho de Cassandra teve sobre sua imagem: ―Do not tell Cass, but her sketch of me has given the world quite the wrong idea of my looks. (…) I was never conventionally pretty and yet those who knew me found my face quite attractive. I had a natural liveliness that brought colour into my cheeks, and my eyes sparkled with merriment more often than not. I believe my tall, thin figure – I was a pretty height – would quite fit to your era‘s fashion‖148 (Hannon, 2007, p.115). Todas essas descrições insistem na beleza dos olhos de Austen, a qual, como já foi dito, era a principal caracterìstica de Elizabeth Bennet: nas palavras de Darcy, ―I have been meditating on the very great pleasure which a pair of fine eyes in the face of a pretty woman can bestow‖149 (O&P, p.30). E se Jane Austen é Elizabeth, não é difícil que Elizabeth seja também Jane Austen. Na variação de O&P de L.S. Parsons intitulada How to Mend a Broken Heart, o final feliz de Darcy e Elizabeth é completado por uma outra informação curiosa: Her husband had opened the world to her by offering Elizabeth the gift of travel and the vast library at Pemberley. He also gave her the freedom and independence to be her own woman while providing the rock to anchor her when she needed security. (…) Later in life, she began to write novels based on her experiences with her family, friends, and the people she had met through her travels. When she presented one of her efforts to her husband, he was so proud of her talent that he asked

146 ―Ele fechou seus olhos e imaginou-a mais uma vez da forma como ele a tinha viso no quarto na casa de Chawton, seus olhos escuros brilhando na luz das velas conforme ela se debruçava sobre sua escrita. Alguma coisa se moveu dentro dele quando ele lembrou outra imagem ainda mais forte dela: nua atrás da fina tela do trocador, seu corpo esguio e seios fartos delineados na luz que dançava‖ (tradução minha). 147 ―Cassandra também começou o hobby de pintura de aquarela. Ela me encurralou uma tarde e absolutamente me forçou a posar para um retrato informal, cujo resultado (todos concordávamos, para desgosto da minha irmã) era muito pouco lisonjeiro. Ninguém nunca mais tentou desenhar meu retrato desde então‖ (tradução minha). 148 ―Não conte para Cass, mas o seu desenho de mim deu ao mundo uma ideia totalmente errada da minha aparência. (…) Eu nunca fui bonita de maneira convencional, e mesmo assim aqueles que me conheciam consideram meu rosto muito atraente. Eu tinha uma vivacidade natural que trazia cor às minhas bochechas, e meus olhos brilhavam com alegria frequentemente. Eu acredito que o meu corpo alto e magro – eu era bem alta – teria se enquadrado bem na moda da sua era‖ (tradução minha). 149 ―[eu estava] Meditando sobre como é verdadeiramente grande o prazer conferido por um belo par de olhos no rosto de uma mulher bonita‖ (trad. Alexandra Souza, p.131).

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whether he could submit it to a book publisher. Reluctantly, she agreed, making him promise that the author remain anonymous. Soon the publisher wrote back asking for more works by the same author, so the couple sent in another one. On their next trip to London, the Darcys found everyone in society excited about a celebrated new author, and speculation was great as to the identity of that person. And thus, Elizabeth became one of the most admired authoresses of her time, even if it was with anonymity.150 (PARSONS, 2016, posição Kindle 5885-5894)

Essa passagem traz referências àquela Austen criada pelo Memoir, como o seu desejo de anonimato e a sua relutância em ser publicada, mas também apresenta a ideia comum nas biografias fictícias de que Austen – agora como Elizabeth – escrevia a partir das suas experiências. Ainda mais importante, o trecho deixa claro que ela só passou a escrever graças ao amor e o apoio de seu marido, que expandiu seus horizontes por meio de viagens e de uma vasta biblioteca. Portanto, aqui vemos como Elizabeth, via Darcy, se tornou Jane Austen, ―one of the most admired authoresses of her time‖. Ainda mais complexo é o final de The Man Who Loved Jane Austen. Para seguir a biografia real de Austen de que ela nunca se casou, o Fitzwilliam Darcy dessa história retorna para o seu tempo atual e os dois são separados para sempre. Contudo, apesar de esse romance contar uma história ―desconhecida‖ sobre Jane Austen, as personagens principais são Darcy e a jovem Eliza Knight. Obviamente eles vão se apaixonar um pelo outro enquanto buscam resolver o mistério das cartas inéditas que Eliza encontrou no início do livro, e o seu final feliz é coroado pela ―benção‖ da própria Austen que diz, em uma dessas cartas endereçadas a Darcy: ―somewhere in that faraway world of yours, I know there awaits your one true love. Find her, dearest! Find her whatever else you may do… And when she is found, you must tell her she is your dearest and loveliest desire. Be happy, my love. Yours forever, Jane‖151 (O‘Rourke, 2006, p.303). As palavras ―dearest and loveliest‖ são as mesmas usadas por Darcy no final de O&P, e como ―Eliza‖ é o apelido de Elizabeth usado várias vezes no romance, fica implícito que as mesmas personagens se reencontram aqui. Contudo, o romance indica também que o sentimento de Darcy por Eliza é o mesmo que ele sentia por Austen (―as with

150 ―O seu marido tinha aberto o mundo a ela ao oferecer a Elizabeth o presente de viajar e da vasta biblioteca de Pemberley. Ele também deu a ela a liberdade e a independência para ser ela mesma enquanto também lhe fornecia uma rocha na qual pdoeria ancorar-se quando necessitasse de segurança. (...) Anos depois, ela começou a escrever romances baseados em suas experiências com sua famíia, amigos e as pessoas que ela tinha conhecido em suas viagens. Quando ela mostrou um de seus esforços ao seu marido, ele ficou tão orgulhoso de seu talento que perguntou se poderia submetê-lo a uma editora. Relutantemente, ela concordou, fazendo com que ele prometesse que o autor permaneceria anônimo. Logo o editor escreveu de volta pedindo por mais obras do mesmo autor, então o casal enviou mais um romance. Na sua viagem seguinte a Londres, os Darcys descobriram que todas as pessoas da sociedade estavam animadas em relação a um novo autor famoso, e as especulações sobre a sua real identidade eram enormes. E assim, Elizabeth se tornou uma das autoras mais admiradas de sua época, mesmo permanecendo anônima‖ (tradução minha). 151 ―Em algum lugar naquele seu mundo distante, eu sei que o seu verdadeiro amor te espera. Encontre-a, querido! Encontre-a não importa o que… e quando ela tiver sido encontrada, você deve dizer a ela que ela é o seu desejo mais querido e mais amado. Seja feliz, meu amor. Sempre sua, Jane‖ (tradução minha).

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Jane he seemed to have little or no control over his roiling emotions with Eliza and it scared him‖152 – O‘Rourke, 2006, p.276), e dada a tradição de associar a autora com sua personagem, parece que o romance fecha um círculo confuso em que Jane Austen é Elizabeth Bennet, Elizabeth é Eliza Knight, e Eliza é também Austen. Tudo isso para garantir que a autora tivesse seu final feliz junto de seu herói mais amado, Darcy. Além da associação de Jane Austen com Elizabeth Bennet, e de Cassandra Austen com Jane Bennet, outras personagens e romances também são constatemente invocados nessas biografias fictícias. O par romântico de Austen é sempre idealizado a partir de Darcy e, em segundo lugar ou de forma combinada, a partir do Capitão Frederick Wentworth de Persuasão – o mesmo que Rudyard Kipling colocou em seu poema como o grande amor de Austen. O hilário e pomposo Reverendo Mr. Collins de O&P aparece de forma quase literal tanto em Jane by the Sea quanto em The Lost Memoirs of Jane Austen, bem como a poderosa e impertinente Lady Catherine de Bourgh e sua filha doente Anne de Bourgh em The Authoress. A mudança da família de Austen de Steventon para Bath é relatada da mesma forma e com os mesmos sentimentos da saída das irmãs Dashwood de Razão e Sensiblidade de sua rica residência no campo, Norland Park, para uma pequena casa no distante condado de Devonshire. Em Jane by the Sea, Austen se pergunta sobre as consequências de sua cunhada e seu irmão assumirem a residência de Steventon: ―Can she ever love this place the way we have?‖ I ranted. ―Our crooked hills … our ancient trees … the crackle of dry leaves underfoot when strolling down the lane in autumn.‖ ―It is not everyone who has your passion for dead leaves,‖ Cassie responded, trying to conceal her smile. I glared at her. ―Our beautiful home. In her hands!‖153 (Murray, 2015, p.42). Em R&S, Marianne Dashwood vai se despedir do parque de Norland em termos muito parecidos: "Dear, dear Norland!" said Marianne, as she wandered alone before the house, on the last evening of their being there; "when shall I cease to regret you!—when learn to feel a home elsewhere!—Oh! happy house, could you know what I suffer in now viewing you from this spot, from whence perhaps I may view you no more!—And you, ye well-known trees!—but you will continue the same.—No leaf will decay because we are removed, nor any branch become motionless although we can observe you no longer!—No; you will continue the same; unconscious of the pleasure or the regret you occasion, and insensible of any change in those who walk under your shade!—But who will remain to enjoy you?"154 (R&S, p.32).

152 ―assim como com Jane, ele parecia ter pouco ou nenhum controle sobre suas emoções perturbadoras, e com Eliza isso o assustava‖ (tradução minha). 153 ―‗Pode ela amar esse lugar da mesma forma como nós?‘, eu reclamei. ―Nossas colinas ìngremes... nossas árvores antigas.... o barulho das folhas secas embaixo dos nossos pés quando caminhamos no outono‘. ‗Não é todo mundo que tem a sua paixão por folhas mortas‘, respondeu Cassie, tentando esconder seu sorriso. Eu encarei seu olhar. ‗O nosso lindo lar. Nas mãos dela!‘‖ (tradução minha). 154 ―‗Amada Norland!‘, disse Marianne, vagando sozinha diante da casa, na última tarde delas ali, ‗Quando deixarei de lamentar sua ausência? – Quando poderei me sentir em casa em outra parte? – Ah! Casa feliz, se soubese como sofro ao vê-la daqui agora, de onde talvez nunca mais volte a vê-la! – E vocês, minhas árvores tão

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Claramente, Carolyn Murray não percebeu a forma como Austen critica e satiriza a hipersensibilidade romântica de Marianne representada por passagens como esta, a qual Edward Copeland, relaciona até ao romance gótico de Ann Radcliffe Os Mistérios de Udolfo (Copeland, 2006, nota 8, p.445). Ao contrário, Murray decidiu projetar os sentimentos dessa personagem em sua autora a partir da informação do Memoir de que Austen era muito apegada à sua vida no campo e que teria odiado o tempo em que morou em Bath. Essa mesma ideia aparece em The Authoress quando as duas experiências de Austen em Bath – primeiro, como turista, depois como residente – são associadas a duas heroínas: Susan (Catherine) de Northanger Abbey e Anne Elliot de Persuasão. Bath had become a glum place. Jane thanked heaven for the carriage about to arrive and rescue her. Jane‘s character, Susan, thought Bath a paradise. She enthused and thrilled over every scrolled decorative carving and pale stone pilaster, and treasured the sophisticated friends she met. That had been Jane, when Jane had first come to Bath in the company of her mother (…) This time she would leave with a heavy sense that Bath could only be remembered with misery.155 (LARK, 2016, posição Kindle 185-191 e 196-197)

É importante notar que NA é considerado um romance ―juvenil‖ de Austen, apesar de sua data de publicação após a morte da autora, sendo associado aqui com a visão inocente de sua heroína que via Bath como um lugar prazeroso, enquanto que Persuasão, seu último romance e fruto da ―fase madura‖ da autora, teria sido escrito após a sua residência ―infeliz‖ naquela cidade, que só seria lembrada com sofrimento, como a experiência de Anne Elliot. Essa mesma personagem, por sinal, tem uma história muito semelhante com a de Elizabeth Wentworth, uma ancestral distante de Austen cuja história ela teria descoberto enquanto visitava Stoneleigh Abbey: ‗This lady, my Lady,‘ he bowed slightly to Lady Saye and Sele, once more, before progressing, ‗fell under the spell of romantic love at a very young age, and I am sad to say, with a man who her father and mother considered highly unsuitable. You see he was fortuneless, but worse still he was without family connections or expectation, nothing but a poor soldier born of a trivial family.‘(…) ‗The lady, I believe, was to be pitied, because she was truly devoted to the young man, and he to her. Yet with such strength of feeling, and such youth, foolish decisions are made in a moment. Decisions which might be regretted at leisure as youth turns to age and experience.‘ (…) ‗He returned years later. No longer a poor soldier of no account, without fortune or family or anything to recommend him, he returned a Captain, a man of rank, name, honour and fortune. A man Elizabeth‘s mother might have chosen as a conhecidas! – Vocês continuarão as mesmas. Nenhuma folha cairá porque estaremos longe, nenhum galho ficará imóvel porque não estaremos mais olhando! Não, vocês continuarão as mesmas; inconscientes do prazer e do remorso que ocasionam, insensíveis às mudanças de quem passa à sua sombra! Mas quem ficará para desfrutá- las?‖ (tradução de Alexandre Barbosa de Souza, Penguim/Companhia das Letras, 2012, pp.101-102). 155 ―Bath tinha se tornado um lugar deprimente. Jane agradeceu aos céus pela carruagem que estava por chegar para resgatá-la. A personagem de Jane, Susan, achava que Bath era um paraíso. Ela ficava entusiasmada e animada sobre qualquer escultura decorativa ou pilastra de pedra, e valorizava os amigos sofisticados que tinha conhecido. Aquela tinha sido Jane, quando Jane tinha vindo a primeira vez para Bath na companhia de sua mãe (...). Dessa vez ela iria embora com um forte senso de que Bath só poderia ser lembrada com sofrimento‖ (tradução minha).

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suitor.‘ ‗It is a truly beautiful tale of love,‘ Cassandra said. It was a story in life which could have been written for fiction. Stoneleigh Abbey was the most blessed treasure trove of inspirations.156 (LARK, 2016, posição Kindle 1847-1854, 1855- 1857, 1881-1883, 1898-1899).

Essa narrativa sobre Elizabeth Wentworth poderia até ser um resumo de Persuasão, no qual a jovem Anne Elliot rompe um noivado com o recém-Capitão Wentworth por influência de sua família porque ele não tinha posição social ou fortuna, mas viria a se arrepender quase imediatamente depois. Passados sete anos, eles se reencontram, o Capitão Wentworth retorna como ―a man of rank, name, honour and fortune‖, e depois de alguns contratempos, finalmente se casa com Anne – que se torna, então, Anne Wentworth. Na história de Jane Lark, portanto, a mudança de Bath e a visita a Stoneleigh Abbey não teria sido somente responsável pelo término e revisão final de Orgulho e Preconceito, mas também a inspiração direta para Persuasão, que se torna quase uma cópia. A importância dada a Bath de forma geral nesses romances reforça a tese de que houve de fato uma grande pausa no processo criativo de Austen associada a sua mudança para essa cidade. Austen é construída como uma mulher que prefere o campo e que precisa dele para escrever. Syrie James deixa claro quando sua Austen afirma que ―to me, Bath was a city of vapour, noise, shadow and smoke, populated by the itinerant and the insincere; its celebrated concerts and balls could never substitute for close friends, a home, and the beauty of natural surroundings‖157 (James, 2007, posição Kindle 217-219). Jane Lark é ainda mais incisiva quando coloca que a chama da inspiração de Austen havia morrido em Bath, juntamente com a tristeza de perder seu pai, ―the weight that had stolen her power to write. Life‘s hands pressed too heavily on her. The sadness inside her hung about her neck - a constantly wet cloak, which dampened her spirits, soaking into her soul158 (Lark, 2016,

156 ―‗Por aqui, minha Senhora‘, ele curvou-se levemente para Lady Saye e Sele, mais uma vez, antes de continuar, ‗[ela] caiu sob o feitiço do amor muito jovem, e eu sou obrigado a dizer, com um homem que seu pai e mãe consideravam muito inadequado. Entenda, ele não tinha fortuna, mas pior ainda ele não tinha conexões de família ou expectativas, nada além de um pobre soldado de uma família qualquer. (...) Da dama, eu acredito, deveria-se ter pena porque ela era verdadeiramente devota ao jovem, e ele a ela. E mesmo assim, com tal força de sentimento, e tal juventude, decisões tolas são feitas em um momento. Decisões que podem ser largamente lamentadas conforme a juventude se tranforma em idade e experiência. (...) Ele retornou anos depois. Não era mais um pobre soldado, sem fortuna ou família ou nada que o recomendasse, ele retornou um Capitão, um homem de ranque, nome, honra e fortuna. Um homem que a mãe de Elizabeth poderia ter escolhido como um pretendente para ela‘. ‗É uma bela história de amor‘, disse Cassandra. Era uma história real que poderia ter sido escrita para a ficção. Stoneleigh Abbey era o tesouro de inspirações mais abençoado‖ (tradução minha). 157 ―Para mim, Bath era uma cidade de vapor, barulho, sombras e fumaça, povoada por itinerantes e insinceros; os seus famosos bailes e concertos nunca poderiam substituir amigos próximos, um lar e a beleza da paisagem natural‖ (tradução minha). 158 ―O peso que tinha roubado seu poder de escrever. As mãos da vida a apertavam com muita força. A tristeza dentro dela permanecia em seu pescoço – uma capa úmida constante, que abafava seu espírito e atravessava até a sua alma‖ (tradução minha).

120 posição Kindle 131-133). Mas o futuro aparecia como uma luz no fim do túnel depois que Austen soube que ela, a irmã e a mãe iriam embora de Bath para sempre: Jane breathed out. It was so good to be thinking of characters again, about stories. By the grace of her brothers, her thoughts had been freed to wander back into fiction, and soon she would be back in the country and away from this town that had hemmed her in for far too long. (…) Perhaps that was why her characters had begun whispering to her again, because they knew she was about to return to the countryside where they had been born. She wrote mostly about country life, and the town life here in Bath had been like a wall to her inspiration. A wall she had been unable to pass through.159 (LARK, 2016, posição Kindle 228-229, posição 230-232)

No romance de Lark, uma vez ―libertada‖ das paredes de Bath que constrangiam a sua imaginação, Austen volta imediatamente a escrever, mas ela é agora uma pessoa diferente, capaz de perceber porque seus manuscritos foram recusados para publicação antes, já que faltava profundidade nessas histórias ―inocentes‖ de sua juventude. Essa nova Austen, da sua fase ―madura‖, vai reescrever suas histórias a partir da nova realidade que teve que enfrentar depois da morte de seu pai e das duras condições financeiras que se seguiram. Importante notar também no trecho acima como Lark alude a um processo de escrita de Austen realizado através dos ―sussurros‖ de suas personagens. Em vários momentos, a atividade da autora é descrita como uma espécie de transcrição do que essas personagens produzem em sua mente por conta própria, pois a história que ela escreve, diz Lark, ―related itself to Jane like a play on the stage of a theatre‖160 (Lark, 2016, posição Kindle, 2235-2236). Austen passa rapidamente de autora para espectadora de sua própria obra. Ao refletir sobre a recusa do manuscrito de ―First Impressions‖, ela pensa: When the lover Jane had created for Lizzy had been rejected by the publishers, long before Susan‘s acceptance, it had been a cutting blow to Jane‘s career as an authoress. Jane was a little in love with Darcy and his over-proud bearing (…). Of course Darcy had created himself in her head and written himself through her hand, so perhaps he had charmed her (…). [T]he publishers had broken Jane‘s confidence for a while, criticising her skill in creating characters, saying they lacked any depth, and the story was not rounded to any degree. The issue was, her characters wrote themselves, so how could she change and recreate them? When she began a story she knew a little of them, but as their stories commenced, they told her how they wished to feel, and what would become of them. It had been a very personal insult then, not only to their author, but to Lizzy and Darcy.161 (LARK, 2016, posição Kindle 215-221, 221-223, destaques meus)

159 ―Jane experou. Era tão bom pensar em personagens novamente, em histórias. Pela ajuda de seus irmãos, seus pensamentos foram libertados para voltar para a ficção, e logo ela estaria de volta ao campo e longe dessa cidade que a tinha circunscrito por tanto tempo. (...) Talvez seja por isso que as suas personagens tinham começado a sussurrar para ela de novo, porque elas sabiam que ela estava para retornar para o campo onde tinham nascido. Ela escreveu majoritariamente sobre a sua vida no campo, e a vida na cidade em Bath tinha sido como uma parede para a sua inspiração. Uma parede que ela não tinha conseguido atravessar‖ (tradução minha). 160 ―apresentava a si mesma para Jane como uma peça no palco de um teatro‖ (tradução minha). 161 ―Quando o amante que Jane tinha criado para Lizzy tinha sido rejeitado pelos editores, muito antes do aceite de Susan, isso havia sido um golpe agudo na carreira de Jane como autora. Ela mesma estava um pouco apaixonada por Darcy e sua atitude orgulhosa (...) Claro que Darcy tinha criado a si mesmo em sua cabeça e escrito a si mesmo através de sua mão, então talvez ele a tivesse encantado. (...) Os editores tinham quebrado a

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O processo de escrita descrito nessa passagem lembra muito o que foi falado por James Edward em seu Memoir, que sua tia escrevia por inclinação e talento, sem esforço, quase naturalmente. Escrever não era um trabalho para ela, não exigia a diligência de uma ocupação profissional, era apenas um hobby para passar o tempo de uma vida tranquila e sem eventos marcantes. Em The Authoress, Jane Lark coloca Austen ―tropeçando‖ sem querer nas reviravoltas de suas histórias, transformando manobras inteligentes na trama em pura sorte. Em The Lost Memoirs of Jane Austen, ela mesma diz que sempre escreveu ―for the pure enjoyment of the endeavour, and for a love of language; I had never sought nor expected fame‖162 (James, 2007, posição 1630-1636), totalmente de acordo com a sua imagem construída pelo Biographical Notice de Henry Austen, e considera que nunca foi aceita para publicação porque era ―too unworldly, too ignorant‖163 (James, 2007, posição 1639-1640), adjetivos que ela usou para se descrever nas cartas que enviara para James Stanier Clarke com grande ironia e sarcasmo. Essas biografias fictícias constroem, portanto, uma Jane Austen insegura com a sua escrita, muito modesta para mostrar seus manuscritos para pessoas de fora de sua família, e que necessita do encorajamento de seus diferentes pares românticos para voltar a acreditar em seu talento e insistir na sua publicação. The Authoress chega ao extremo de classificar a paródica The History of England, uma das criações mais interessantes e inteligentes de sua juvenilia, como ―ignorância da verdade histórica‖: Stoneleigh was a place her mother spoke of with pride in her voice and a look of wonder in her eyes, as others told of myths and legends like the story of King Arthur. It had always inspired awe in Jane‘s very sensitive spirit for things of make- believe - to have a claim upon the stories of heroes and heroines - from her own family - and for those tales of valour and intrigue to be true. They had inspired Jane to write her first book at the age of sixteen, The History of England, in which she had freely written, and claimed, the Leigh family‘s prejudice and ignorance of the historical truth, which she had inherited and adopted from her mother.164 (LARK, 2016, posição Kindle 433-439, destaque meu).

confiança de Jane por um tempo, criticando a sua habilidade de criar personagens, dizendo que faltava a elas profundidade, e a história não era de nenhuma forma desenvolvida. O problema era que as suas personagens escreviam a si próprias, então como ela poderia mudá-las e recriá-las? Quando iniciava um romance, ela sabia pouco delas, mas conforme as suas histórias começavam, elas lhe contavam como queriam sentir e o que iria acontecer. Tinha sido um insulto muito pessoal então, não apenas ao autor, mas a Lizzy e Darcy‖ (tradução minha). 162 ―pelo simples gosto da tarefa, e por um amor à lìngua. Eu nunca tinha buscado nem esperado fama‖ (tradução minha). 163 ―muito inocente, muito ignorante‖ (tradução minha). 164 ―Stoneleigh era um lugar do qual sua mãe falava com orgulho na voz e um olhar de encantamento, da mesma forma como outras pessoas contavam lendas e mitos como a história do Rei Arthur. Esse lugar sempre tinha inspirado espanto no espírito sensível de Jane para coisas de faz de conta – ter uma reivindicação sobre histórias de heróis e heroínas – da sua própria família – e para aquelas histórias de valor e intriga serem verdadeiras. Elas inspiraram Jane a escrever seu primeiro livro com apenas dezesseis anos, A História da Inglaterra, no qual ela tinha escrito e reafirmado de forma livre o preconceito e a ignorância da verdade histórica da família Leigh, os quais ela tinha herdado e adotado de sua mãe‖ (tradução minha).

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Depois de todo esse desdém para com sua escrita, não é à toa que o Fitzwilliam Darcy de The Man Who Loved Jane Austen diz a ela que ―For the rest of my life I‘ll remember only the beautiful and desirable woman‖165 (O‘Rourke, 2006, p.222). A Jane Austen autora é definitivamente colocada em segundo plano, o que é um paradoxo já que a popularidade responsável por essa transformação de Austen em heroína de romances é fruto de seus próprios romances. É como se a autora passasse a existir independentemente deles, uma entidade que flutua solta através de corredores de bibliotecas de universidades e estúdios de cinema sem ninguém conseguir discernir muito bem do que se trata. Quando o governo da Inglaterra tomou para si a tarefa de definir uma Jane Austen para compor a nova nota de dez libras (que entrará em circulação em 2017, aniversário de duzentos anos da morte da autora), o resultado não poderia ser mais ilustrativo dessa dificuldade:

Fig. 15 – Projeto da nova nota de dez libras

A imagem principal, o rosto de Jane Austen, vem do retrato do Memoir, aquele que nenhum sobrinho considerou muito semelhante a ela. Talvez o retrato original de Cassandra, o único oficialmente reconhecido, tenha sido considerado pouco simpático para representar uma heroína nacional. No fundo ao centro, a ilustração de Elizabeth Bennet por Isabel Bishop, eternizando a associação entre a autora e personagem. No fundo abaixo, um desenho de Godmersham Park, a rica propriedade de seu irmão Edward Knight, que simboliza mais a forma como seus romances são lidos hoje (aventuras da aristocracia detentora de terras) do que o estilo de vida econômico da própria Austen. E, como um grande toque de mestre, uma citação de O&P: ―I declare after all there is no enjoyment like reading!‖. De tudo o que Austen escreveu, os idealizadores da nota escolheram a fala de Caroline Bingley, personagem esnobe ridicularizada durante todo o romance, para representar a autora. Essa fala ocorre na seguinte passagem: When tea was over, Mr. Hurst reminded his sister-in-law of the card-table—but in vain. (…) Mr. Hurst had therefore nothing to do, but to stretch himself on one of the

165 ―Para o resto da minha vida, eu vou lembrar somente a bela e desejável mulher‖ (tradução minha).

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sofas and go to sleep. Darcy took up a book; Miss Bingley did the same (…). Miss Bingley's attention was quite as much engaged in watching Mr. Darcy's progress through his book, as in reading her own; and she was perpetually either making some inquiry, or looking at his page. She could not win him, however, to any conversation; he merely answered her question, and read on. At length, quite exhausted by the attempt to be amused with her own book, which she had only chosen because it was the second volume of his, she gave a great yawn and said, "How pleasant it is to spend an evening in this way! I declare after all there is no enjoyment like reading! How much sooner one tires of anything than of a book! When I have a house of my own, I shall be miserable if I have not an excellent library."166 (O&P, p.60)

Para todos aqueles que leram o romance, é óbvio que o significado da fala de Caroline Bingley é exatamente o oposto, ela não poderia de forma alguma gostar menos de ler, e sua atitude é apenas uma artimanha para atrair a atenção de Darcy evidente para todos os presentes – e para o leitor. Ainda que saibamos pouco sobre Austen, que pelo menos ela era uma grande leitora é indiscutível, e muito provavelmente ela acreditava de fato que não existia um entretenimento tão bom quanto a leitura. Contudo, citar uma personagem que expressa uma falsidade, ainda que para a autora tenha sido uma verdade, parece um erro estratégico de interpretação. A não ser que a intenção tenha sido capturar a ironia de Austen, sua marca registrada, o que não me parece o caso, o resultado do conjunto da nota acaba se tornando cômico: Jane Austen, a autora inglesa mais amada de todos os tempos, vai ser eternizada pela fala de uma de suas personagens mais odiadas.

*

166 ―Terminado o chá, o senhor Hurst lembrou a cunhada do carteado – mas em vão (...). O senhor Hurst não teria então nada a fazer além de se esticar em um dos sofás e dormir. Darcy pegou um livro; a senhorita Bingley fez o mesmo (...) A atenção da senhorita Bingley se dedicava, na mesma medida, a seu livro e a observar o progresso do senhor Darcy na leitura do livro dele; e estava sempre fazendo uma pergunta ou vendo a página em que ele estava. Não conseguia conquistá-lo, contudo, com nenhum conversa; e ele simplesmente respondia a suas perguntas e tornava a ler. Por fim, exausta de tentar se entreter com o próprio livro, que só escolhera por ser o segundo volume do livro dele, bocejou demoradamente e disse: ‗Como é agradável passar uma noite assim! Devo dizer que afinal não existe prazer maior que a leitura! De todo o resto, a pessoa se cansa mais depressa que de um livro! – Quando eu tiver uma casa só minha, quero morrer à míngua se não tiver uma excelente biblioteca‖ (trad. Alexande de Souza, p.161).

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Capítulo 2 – O romance

No capítulo anterior, procurei explicar de que forma a imagem da própria Jane Austen vem sendo reconstruída dentro do fenômeno atual da escrita de continuações e variações de seus romances, transformada em heroína de histórias biográficas/fictícias semelhantes à sua obra. Trata-se, como mencionei lá, do último tema com o qual me deparei ao longo desta pesquisa, e também, em uma comparação dentro do próprio fenômeno das continuações, algo muito mais recente – a primeira continuação de uma obra de Jane Austen é de 1913, enquanto a autora vai aparecer como personagem de ficção apenas noventa anos depois, dentro da nova Austenmania da década de 1990. Este segundo capítulo, no entanto, volta à ordem cronológica do fenômeno e fornece uma visão mais ampla para buscar entender de que forma o romance como um gênero literário se torna ―vìtima‖ de sua popularidade a qual leva à produção de continuações e adaptações. A primeira parte discute a origem do romance a partir do século XVIII e do seu relacionamento com as ideias de real versus ficção para entender como funciona essa produção de ―fantasias‖ consumidas pelos leitores, tanto da época de Austen como os atuais. Especificamente, a fantasia que estudo aqui é a do final feliz romântico167, o que levou também a uma pesquisa sobre as origens do sentimentalismo na literatura inglesa daquele momento. Na segunda parte, procurei mostrar, primeiro, como esse sentimentalismo se sobrepõe a Orgulho e Preconceito em diversas continuações atuais que focam somente no relacionamento e nas emoções de Mr. Darcy e Elizabeth, para depois pensar sobre as consequências desse foco para a forma como o original vem sendo interpretado hoje.

Parte 1. O romance, a realidade e a fantasia 1.1 – Uma origem controversa

A história do gênero do romance, para se dizer o mínimo, é um tema complexo, controverso e aparentemente inesgotável, que não cabe em apenas um capítulo de uma só tese. Contudo, desejo entrar rapidamente nesse tema porque, como vou argumentar mais a frente, a ideia de se continuar uma história aparentemente encerrada foi incorporada ao gênero do romance já em seu nascimento e um não pode mais ser separado do outro. O ponto final no

167 Com letra minúscula, ―romântico‖ é usado aqui no sentido de ―sentimental‖ ou de ―histórias de amor‖, enquanto que ―Romântico‖ com letra maiúscula se refere ao movimento literário do Romantismo.

125 papel talvez nunca tenha sido símbolo de um fim definitivo, ou pelo menos um impedimento para que outras pessoas, quando não o próprio autor, retomassem aquela história e suas personagens. Atualmente, essa ideia de uma ―história sem fim‖ já é tão aceita que continuações de filmes e livros de grande popularidade são altamente desejadas pelo seu público. O que pode parecer, em um primeiro momento, fruto apenas de um exacerbado oportunismo mercadológico contemporâneo por parte de estúdios e editoras, a existência de continuações é algo muito mais antigo, e a história do gênero do romance pode nos mostrar isso. Acredito ser impossível apontar um momento preciso na história e afirmar categoricamente ―foi ali, com este livro, que nasceu o romance moderno‖, mas este trabalho parte da ideia de que, a partir do século XVII, narrativas heroicas, de amor cortês e de cavalaria medieval foram sendo substituídas em uma longa transição para o que hoje chamamos de romance moderno, o que, ao mesmo tempo, também não significa que houve um descarte total das formas anteriores. Essa transição é localizada muitas vezes na publicação de Dom Quixote (1605), o qual seria o primeiro romance moderno se, como afirma Marthe Robert, ―entendermos por modernidade o movimento de uma literatura que, perpetuamente em busca de si mesma, se interroga, se questiona, fazendo de suas dúvidas e sua fé a respeito da própria mensagem o tema de seus relatos‖ (Robert, 2007, p.11). Outros teóricos preferem localizar esse nascimento na Inglaterra do século XVIII com autores como Daniel Defoe, Samuel Richardson e Henry Fielding, como fez Ian Watt em seu célebre estudo Rise of the Novel (1957). Os teóricos que, como Watt, defendem a primazia do romance inglês privilegiam em seu trabalho as diferenças entre o romance e as formas narrativas anteriores, argumentando que antes havia, utilizando os termos em inglês, o ―romance” (entendido como uma narrativa mais romântica ou fantasiosa, geralmente produzida na França, ou até mesmo outros tipos de romances ingleses do século XVII), e depois surgiu o que eles rotulam como ―novel” (que corresponderia ao romance moderno). Não é raro que esses dois posicionamentos se cruzem. Marthe Robert, mesmo defendendo a primazia de Quixote, concede que Robinson Crusoe de Defoe pode reivindicar um pioneirismo diferente daquele da obra de Cervantes, o de ser ―moderno‖ porque ―reflete com bastante clareza as tendências da classe burguesa e mercantil oriunda da Revolução inglesa‖ (Robert, 2007, p.11). Já Marina Mackay aponta como alguns críticos que se inserem no ―grupo‖ que reivindica o nascimento do romance para a Inglaterra, como Michael McKeon, até concordam que Cervantes possui uma posição importante nessa história, mas acreditam que Dom Quixote foi um início abortado pela Contra-Reforma da Igreja Católica, que eliminou as linhas de

126 questionamento cético as quais Cervantes – e outros autores – estavam desenvolvendo (Mackay, 2011, p.25), mostrando a importância dada também por esses críticos ao fato de que a Inglaterra, curiosamente por ser um país protestante, estava mais aberta para o desenvolvimento de uma cultura secular que possibilitava que o romance começasse a indagar, a pequenos passos, sobre o homem de forma independente de Deus. Não demorou muito para que surgissem outras teorias que discordassem dessa oposição romance x novel a partir de críticos que focalizavam não as diferenças mas as continuidades entre essas formas. Por exemplo, temos o posicionamento de Margaret Doody, que acusa os ingleses de usarem o termo novel para colocar a Inglaterra como a descobridora não só de algo novo, mas de algo superior, e apagar o que seria de fato uma longa tradição de formas narrativas que poderiam ser consideradas romances. Em sua obra, Doody afirma buscar conexões que vinham sendo abandonadas pela tradição consolidada por Ian Watt de focalizar as rupturas e trazer, para a crítica literária, a ideia de ―progresso‖ conforme o mundo industrial a concebe: o novel substitui assim o romance da mesma forma como a razão iluminista substitui a superstição e o Ford T substitui a carruagem e o cavalo (Doody, 1996, p.3). Como afirma Barbara Fuchs, esse posicionamento de Doody sugere que a oposição entre romance e novel implica em uma distinção qualitativa: ―o romance é primitivo, estático, simples, enquanto o novel é evoluído, articulado, complexo. Mais do que isso, ela aponta que nessa distinção há sempre uma teleologia implícita: o romance vai se tornar o novel quando finalmente crescer‖ (Fuchs, 2004, p.33, tradução minha). A visão de Doody, porém, também não escapou ilesa às críticas, pois o perigo do trabalho apenas com as continuidades entre as formas literárias é exatamente saber onde parar, e esse tipo de postura teórica levou à produção de estudos que debatiam o ―romance‖ no perìodo Elisabetano, na Idade Média ou até mesmo na Grécia e Roma clássicas. Para Lennard Davis, os argumentos que baseavam essas pesquisas eram fracos, como por exemplo na escolha do que deveria definir o gênero, concluindo com um certo humor: ―de fato, qualquer obra em prosa de um tamanho decente com um único herói é vìtima da definição de ‗romance‘‖ (Davis, 1983, p.25, tradução minha). Margaret Doody mesmo admite que, ao selecionar as obras que iria analisar, trabalhou com a ideia de que o conceito de romance deve incluir o tamanho – de preferência acima de quarenta páginas – e que, acima de tudo, deve ser em prosa; porém, ela diz, ―não prometo nunca mencionar contos, folclore, ou novelas antigas e modernas. Se alguém chamou, em algum momento, uma obra de romance, isto é suficiente‖ (Doody, 1996, p.10, tradução e destaque meus).

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Críticos como Lennard Davis e Homer Omed Brown questionam os posicionamentos apresentados acima e discordam, primeiro, dos trabalhos que traçam o nascimento do romance até os Gregos por considerarem-nos como mais uma tentativa de encontrar uma origem mítica e legitimadora para um aspecto da nossa cultura, e porque esses estudos são obrigados a serem tão abrangentes em suas análises que acabam perdendo de vista qualquer tipo de definição do gênero. Segundo, discordam daqueles que apontam para a Inglaterra do século XVIII como o seu ―berço‖ porque esse posicionamento geralmente ignora a variedade de formas narrativas circulando naquele momento a favor de uma visão ―em bloco‖. Como afirma Brown, as narrativas ficcionais que nós chamamos hoje de ―romance‖ eram atos variados e incipientes daquilo que, apenas muito tempo depois, poderia ser instituído coletivamente como um gênero integral (Brown, 1997, p.xviii). Obras como a de Watt e McKeon seriam então leituras teleológicas que agruparam a diversidade das formas narrativas existentes no século XVIII em torno de uma ideia posterior do que seria o ―gênero do romance moderno‖. Inclusive, para Brown, essa ideia também pode ser historicizada e percebida, por exemplo, em alguns discursos institucionalizantes da especificidade desse gênero a partir do século XIX com escritores como Walter Scott, que estavam muito preocupados em definir (ou seja, construir e legitimar) sua própria área de atuação. Obviamente, como nos lembra Marina MacKay, toda definição é, na verdade, um projeto de exclusão e contenção (MacKay, 2011, p.21), e a tentativa de todos esses teóricos de definir quando nasceu o romance passa necessariamente pela definição do que é um romance. William Warner aponta, por exemplo, para o fato de que, após o trabalho de Ian Watt, algumas características culturais associadas aos britânicos, como empirismo e o individualismo protestante, foram promovidas de particularidades secundárias que por acaso apareciam nos romances ingleses para a identidade primeira do gênero do romance (Warner, 1994, p.20), transformando então o surgimento do romance inglês no surgimento do gênero como um todo: ―com a obra A Ascensão do Romance de Ian Watt, o adjetivo ‗inglês‘ está implícito porém apagado. Agora a ascensão do ‗romance inglês‘ marca a ascensão ‗do romance‘, isto é, de todos os romances‖ (Warner, 1994, p.20). Retomando o argumento de Brown, essa definição que está presente em Watt parece enxergar o romance inglês como algo harmônico, a solução teleológica que afirma que as diferenças entre Defoe, Richardson e Fielding não eram métodos narrativos opostos, mas sim opções diferentes para os mesmos problemas. Segundo Watt, estas opções seriam reconciliadas por Jane Austen, a escritora que, para esse autor, soube unir as narrativas de Richardson e de Fielding iniciando uma nova e grande tradição, o romance moderno maduro

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(Brown, 1997, p.5). No entanto, a diversidade das formas narrativas daquela época apresentam, ao contrário dessa ideia de reconciliação, um obstáculo a qualquer exercício de definição, e isto, como afirma Marthe Robert, é um inconveniente grave pois, se o romance é indefinido ou indefinível, como pode ser discernido o que o constitui como um gênero diferente – e, por consequência, suas origens? (Robert, 2007, p.14). Como exemplo, ela cita o texto de Guy de Maupassant publicado junto com seu romance Pierre et Jean (1888), em que ele se baseia nessa variedade para questionar definições totalizantes: (…) o crítico que, depois de Manon Lescaut, Dom Quixote, Ligações perigosas, Werther, As afinidades eletivas, Clarisse Harlowe, Émile, Cândido, CinqMars, René, Os três mosqueteiros, Mauprat, O pai Goriot, A prima Bette, Colomba, O vermelho e o negro, Mademoiselle de Maupin, Notre-Dame de Paris, Salambô, Madame Bovary, Adolphe, Monsieur de Camors, A taverna, Sapho, etc., ainda ousa escrever ‘isto é um romance, aquilo não é’ parece-me dotado de uma perspicácia que lembra muito a incompetência... Se Dom Quixote é um romance, O vermelho e o negro é um outro? Se Monte Cristo é um romance, A taberna também é? Pode-se estabelecer uma comparação entre As afinidades eletivas, de Goethe, Os três mosqueteiros, de Dumas, Madave Bovary, de Flaubert, Monsieur de Camors, de O. Feuillet e Germinal, de Zola? Qual dessas obras é um romance? Quais são essas famosas regras? De onde vêm? Quem as estabeleceu? Em virtude de que princípio, de que autoridade, de que raciocínio? (MAUPASSANT, 2001, p.64-65, apud ROBERT, 2007, 15-16.)

Realmente, quais são essas famosas regras? Como afirma Lennard Davis, é necessário historicizar as nossas grandes categorias de ―taxonomia‖ literária, como as oposições entre fato e ficção, prosa e verso, impresso e oral, etc. Ao invés de tomá-las como formas lógicas e auto-evidentes de classificação, Davis afirma que elas são altamente subjetivas e contextualizadas, além de anacrônicas no sentido de que são posteriores às obras que querem julgar: ―longe de serem formas intrìnsecas e autóctones de avaliar a literatura, elas são parte de um sistema ideológico abrangente, um sistema, pode-se dizer, que era de modo geral desconhecido pelas pessoas dentro dele‖ (Davis, 1983, p.8, tradução minha). A partir desse último ponto de vista, este capítulo pretende analisar especificamente os discursos proferidos a respeito do romance no que toca a dois pontos. O primeiro refere-se ao debate moralista sobre os prováveis efeitos causados pela leitura de romances sobre as pessoas; o segundo, que em parte justificaria a preocupação presente no primeiro, refere-se à oposição entre real e ficção construída sobre esse novo gênero. Apesar de este ser um trabalho que estuda a popularidade de Jane Austen, uma escritora inglesa, parece ser propício que comecemos a nossa história com Dom Quixote para analisar esses dois pontos propostos, independente de esse ser visto como o primeiro romance moderno ou o último romance de cavalaria medieval. Aqui importa que, em seus primórdios, o romance já

129 era autorreflexivo ao mesmo tempo em que embaçava a definição entre real e fantasia e, essencial para este trabalho, já discutia também as consequências de se ler muitos romances. O fato de que Dom Quixote teve duas continuações – uma escrita por um outro autor, a outra por Cervantes – só torna essa obra ainda mais adequada para iniciar essa discussão. Todos sabemos o enredo da história: um velho fidalgo espanhol relativamente falido, depois de ler incontáveis romances de cavalaria, acorda um dia se achando cavaleiro, pega seu cavalo magro, uma armadura e espada velhas e recruta um escudeiro cético para partir em busca de aventuras pela Mancha as quais, na maior parte das vezes, acabam mal para ele. Depois de seu primeiro retorno forçado para casa, Quixote tem seu diagnóstico de loucura proferido pelo cura e pelo barbeiro de sua vila e ambos decidem, para cortar o mal pela raiz, empreender aquela famosa queima dos livros da biblioteca do pobre cavaleiro. Trata-se de um argumento interessante, ainda que não inédito168, cuja crítica recai sobre a profusão de livros de má qualidade que são produzidos por conta do sucesso da temática das aventuras de cavalaria. É interessante notar como esse critério de ―qualidade‖ salva alguns livros do destino das chamas, já que o cura seleciona algumas obras que julga boas, indicando, ironicamente, que ele próprio era um grande leitor desses romances. Mas o cura não estava sozinho em sua avaliação sobre a qualidade dessas obras. Um grande pensador espanhol da época, Juan Vives, apontava já em 1528 para os perigos da leitura desse tipo de ficção, em especial às mulheres, em seu tratado ―Sobre a educação da mulher cristã‖. Ele se pergunta, ―I wonder what it is that delight us in these books unless it be that we are attracted by indecency. Learning is not to be expected from authors who never saw even a shadow of learning‖, ou seja, a dificuldade de ele entender o apelo dessas obras passa pelo fato de elas não fornecerem qualquer oportunidade de aprendizado, e conclui que até mesmo como fonte de prazer não lhe parecem muito eficazes: ―As for their storytelling, what pleasure is to be derived from the things they invent, full of lies and stupidity? One hero killed twenty single-handed, another slew thirty, and still another hero left for dead with six hundred gaping wounds suddenly rises to his feet and the next day, restored to health and strength, lays two giants low in a single battle (…)169 (Vives, 2000, pp.75-76). É interessante

168 Martín de Riquer, em seu ensaio que abre a edição comemorativa do quarto centenário de Dom Quixote, lembra a existência de uma peça de teatro composta nas últimas décadas do século XVI chamada ―Entremés de los Romances‖, a qual trazia um pobre lavrador que enlouquece de tanto ler romances de cavalaria e decide imitar seus heróis (Riquer, 2004, p.LXVI). 169 ―Eu me questiono sobre o que é que nos encanta nesses livros, a não ser que estejamos atraìdos pela indecência. Educação não pode ser esperada de autores que nunca nem viram a sombra dela própria. Já sobre a sua narrativa, qual prazer deve ser obtido com as coisas que eles inventam, cheias de mentiras e estupidez? Um herói matou sozinho vinte, outro trinta, e ainda outro, deixado como morto com seiscentas feridas sangrentas, de

130 notar como a acusação de ser um gênero cheio de ―mentiras e estupidez‖ reflete uma preocupação com a verdade e a realidade, ou pelo menos com uma ideia de verossimilhança, já que como é possível um herói se recuperar da noite para o dia de mais de seiscentas feridas e ainda derrotar dois gigantes sozinho? No mesmo perìodo, Santa Teresa D‘Ávila também criticava os romances pois eles poderiam exercer uma influência perniciosa especialmente aos leitores mais frágeis, as mulheres e as crianças, e levá-los a ações pecaminosas. Em sua autobiografia (1565), Santa Teresa, que também era leitora de romances em sua infância, usa a sua própria experiência como exemplo para mostrar como, ao invés de obedecer a seu pai e sua mãe e fazer as tarefas que eles pediam, ela se escondia para ler seus livros (apud Fuchs, 2004, p.80). Santa Teresa e Juan Vives são dois exemplos dos muitos filósofos e moralistas espanhóis que atacaram os romances de cavalaria por considerarem-nos, como afirma Riquer, obras de pessoas ociosas que escreviam mal e eram inimigas da verdade, ao mesmo tempo em que encorajavam a preguiça e o pecado (Riquer, 2004, p.lxxiv). Todos eles pediam a proibição da leitura e da distribuição de livros de cavalaria, e que os existentes fossem lançados às fogueiras – não podemos nos esquecer de que a Espanha nesse período vivia sob o escrutínio da Inquisição, e não foram só livros que receberam esse destino. Mas, como afirma Riquer, os esforços dos críticos foram em vão e as pessoas continuavam imprimindo e lendo romances (Riquer, 2004, p. LXXIV). A popularidade dos romances de cavalaria era o combustível para essa proliferação tão criticada. As aventuras de um cavaleiro especialmente adorado pelos leitores poderiam ser continuadas em seu irmão, filho ou neto, o que levava a uma produção de continuações sem fim e que repetia incansavelmente a mesma fórmula, cada vez mais exagerada (Fuchs, 2004, p.78). Como aponta Barbara Fuchs, Amadís de Gaula, talvez o romance de cavalaria mais célebre naquele momento, foi reeditado quinze vezes ao longo do século XVI, e as aventuras de seu filho e depois de seu neto também tiveram muitas edições. Curiosamente, essa primeira era da imprensa, para Fuchs, parece muito moderna ao aproveitar a imensa popularidade de uma determinada obra para reproduzi-la em continuações e imitações: ―É possìvel argumentar que aqui se encontram as origens das nossas mais depreciativas associações com o romance como um ‗gênero de literatura‘, repetido infinitamente para satisfazer as demandas insaciáveis dos leitores‖ (Fuchs, 2004, p.79, tradução minha). Ao contrário do que poderíamos esperar, essa repetição e a previsibilidade desses romances podem ser vistos não como um empecilho mas sim como um motivo para a sua

repente se levanta e no dia seguinte com saúde e forças restauradas, e derrota dois gigantes em uma só batalha‖ (tradução minha).

131 popularidade pois, segundo Fuchs (2004, p.80), os leitores percebiam essa limitação mas não a consideravam uma falha. Muito pelo contrário, a repetição pode ser um aspecto desejado, até mesmo esperado pelo público, algo que, para Fuchs, permanece até hoje. Nas suas palavras, ―os romances de cavalaria se tornam, de uma certa forma, o primeiro gênero de massas, fornecendo grandes quantidades de prosa para uma audiência alfabetizada mas pouco estudada à procura de uma familiaridade reconfortante‖ (Fuchs, 2004, p.78, tradução minha). Talvez seja um pouco exagerada – e em parte motivada por uma busca pelas origens – a afirmação de Fuchs de que a popularidade dos romances de cavalaria o colocou como o primeiro gênero de massas em pleno século XVI. No entanto, não podemos descartar o papel que essa popularidade exerceu sobre a produção desses romances, levando até mesmo à publicação de uma continuação de Dom Quixote por outro escritor, o misterioso Alonso Fernández de Avellaneda, o que pode ter forçado Cervantes a matar o cavaleiro no final do seu Segundo Volume para evitar novos problemas170. Assim, para retomarmos o que foi dito até agora, podemos relacionar Dom Quixote ao surgimento do romance moderno pois, apesar de abarcar uma variedade infinita que o torna praticamente indefinível, uma característica desse gênero que se destaca é a sua capacidade, como afirma Anthony Cascardi, de re-arranjar e absorver gêneros literários que já circulavam anteriormente, e por isso a posição de Dom Quixote em relação às origens do romance não é a de invenção de algo totalmente novo, mas a de revelação de novas possibilidades de combinar elementos pré-existentes (Cascardi, 2002, p.59). Dessa forma, ao satirizar as novelas de cavalaria e incorporá-las em sua obra, Cervantes trouxe para o romance moderno a possibilidade da existência de continuações tão comuns para aquele gênero. Incorporou também, exatamente pela força de seu apelo popular, o temor dos moralistas sobre seus efeitos.

170 Um pequeno parênteses se faz necessário para relativizarmos a questão da popularidade dos romances de cavalaria. Segundo Eisenberg, a crítica em geral foi muito apressada em tomar a declaração do dono da taverna Juan Palomeque em Dom Quixote de que todos os agricultores ali sentavam em roda para escutar a leitura de livros de cavalaria como um exemplo de que esses romances eram muito populares entre todas as classes na Espanha. Isso não significa que a cultura da leitura em voz alta deve ser desconsiderada, mas Eisemberg e Maxime Chevalier acreditam ser muito dificil que mesmo uma só pessoa em uma simples aldeia tivesse condições de comprar um exemplar e ler essas narrativas, geralmente de estilo muito rebuscado, dado os altos índices de analfabetismo na época. Para esses autores, além de outros argumentos, somente o luxo das edições desses romances e, por consequência, seus preços proibitivos, seriam suficientes para indicar que o grande público leitor era a nobreza e, em alguns casos, homens da burguesia e clérigos. Para Eisenberg, o que determinou o início da popularidade desses romances entre a nobreza e a sua publicação relativamente constante foi a preferência dada a eles pelo rei Carlos V, e não um gosto geral da população. Podemos inferir que, apesar de ter sido um gênero de muito sucesso na Espanha no século XVI, o mercado editorial que estava se desenvolvendo ali ainda não tinha muito poder para definir o que seria consumido pelos leitores, ao contrário do que observaremos na Inglaterra do seculo XVIII, e seu papel naquele momento era mais o de satisfazer uma demanda do que de ajudar a criá-la. Cf.: Chevalier, M. Lectura y Lectores en la España del Siglo XVI y XVII, 1976 e Eisenberg, Daniel. Romances of Chivalry in the Spanish Golden Age, 1982.

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Ao passarmos dois séculos adiante e mudarmos nosso cenário para a Inglaterra, uma situação semelhante parece ter acometido os romances góticos, um gênero que, segundo Sandra Vasconcelos, reintroduziu os fantasmas que haviam sido expulsos pela chamada ―Era da razão‖ em uma mistura do ―romance medieval‖, que reabria o espaço para o fantasioso e o irreal, com o ―romance de vida‖, uma ―representação realista por meio da presença de personagens, hábitos, comportamentos e questões profundamente contemporâneos em seus enredos‖ (Vasconcelos, 2002, p.132). Trata-se de um gênero que também foi vítima da própria popularidade, a qual incentivou a produção de uma quantidade enorme de obras extremamente semelhantes que repetiam incansavelmente uma mesma fórmula que unia mistérios sobrenaturais e horror ao sentimentalismo que ganhara muita força com a publicação de Pamela (1740), de Samuel Richardson. Da mesma forma como em Quixote, encontramos, novamente, o alerta dado pela própria ficção para os riscos de uma leitura descuidada desses romances, dessa vez em Northanger Abbey, uma paródia da fórmula gótica escrita por Jane Austen em sua juventude, mas que só seria publicada em 1817. Seu enredo traz a heroína Catherine Morland, uma jovem detentora de nenhum especial intelecto, como adverte a própria autora, e totalmente encantada pelos romances góticos que vinha lendo, como Os mistérios de Udolpho (1794), de Ann Radcliffe. Essa quase obsessão faz com que Catherine passe a enxergar mistérios em todos os cantos da antiga abadia em que está hospedada com seus amigos. Por exemplo, em meio a uma tempestade noturna que apaga as velas de seu quarto, Catherine encontra um manuscrito envelhecido dentro de um armário antigo, o qual obviamente deveria conter algum segredo tenebroso sobre aquela abadia; porém, quando finalmente Catherine consegue lê-lo na manhã seguinte – já com a luz do sol de um belo dia –, descobre que se tratava apenas de uma lista de roupas para serem lavadas. Essas pequenas decepções são recorrentes ao longo da história mas não foram suficientes para aplacar a imaginação da heroína. A lição só foi aprendida, e da forma mais dura, quando Catherine é confrontada por Mr. Tilney, por quem ela nutria sentimentos amorosos, em suas buscas por mais pistas sobre a sua hipótese terrível de que o pai da família, General Tilney, tivesse assassinado ou emprisionado até a morte sua esposa, Mrs. Tilney: Catherine: ―(...) Her dying so suddenly - (slowly, and with hesitation it was spoken) -, and you, none of you being at home; and your father, I thought, perhaps, had not been very fond of her.‖ Mr. Tilney: ―And from these circumstances - he replied, his quick eye fixed on hers – you infer, perhaps, the probability of some negligence, some – involuntarily she shook her head – or it may be, of something still less pardonable (…) If I understand you rightly, you had formed a surmise of such horror as I have hardly words to… Dear Miss Morland, consider the dreadful nature of the suspicious you have

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entertained. What have you been judging from? (...) Dear Miss Morland, what ideas have you been admitting?‖ They had reached the end of the gallery; and with tears of shame she ran off to her own room.171 (NA, pp.202-203)

Catherine, inocente e pouco estudada, se torna assim uma vítima na literatura da excessiva leitura de romances ruins, e parece não ser a única. Não podemos nos esquecer, por exemplo, da pobre Emma Bovary, que sonhou em viver um grande amor e, encontrando apenas uma vida tediosa como esposa/mãe e amantes que a enganaram, acaba por fugir definitivamente em uma dose de arsênico. A influência dos romances sentimentais franceses também vai ser parodiada no livro de Charlotte Lennox, The Female Quixote (1752), o qual indica a pertinência da obra de Cervantes para esse debate mesmo depois de mais de um século. O tìtulo de Lennox parece ser autoexplicativo dentro desse contexto, e a ―Quixote mulher‖ é Arabella, filha única de um rico marquês inglês que vive sozinha e reclusa em sua grande mansão após a morte de sua mãe em seu nascimento. Detentora de uma grande paixão por leitura, ela encontra guardados na biblioteca de seu pai os livros preferidos de sua mãe, os romances franceses, e eis o resultado:

The surprising Adventures with which they were filled, proved a most pleasing Entertainment to a young Lady, who was wholly secluded from the World; who had no other Diversion, but ranging like a Nymph through Gardens, or, to say better, the Woods and Lawns in which she was inclosed; and who had no other Conversation but that of a grave and melancholy Father, or her own attendants. (…) Her Ideas, from the Manner of her Life, and the Objects around her, had taken a romantic Turn; and, supposing Romances were real Pictures of Life, from them she drew all her Notions and Expectations. By them she was taught to believe, that Love was the ruling Principle of the World; that every other Passion was subordinate to this; and that it caused all the Happiness and Miseries of Life.172 (LENNOX, 1989, p.7)

Arabella, então, passa a ver o resto do mundo como um romance sentimental, imaginando paixões e intrigas em todas as pessoas que conhece. Essas histórias se tornam,

171 ―‗A sua morte tão repentina (devagar, e com hesitação ela falou) – e você, nenhum de vocês em casa, e o seu pai, eu pensei, talvez, não gostasse muito dela‘. ‗E a partir dessas circunstâncias – ele respondeu, seu olhar rápido fixo nela – você infere, talvez, a probabilidade de alguma negligência, algum – involuntariamente ela sacudiu a cabeça – ou talvez, de alguma coisa ainda menos perdoável (...) Se eu a compreendo corretamente, você tinha concluído algo tão horrível que eu mal tenho palavras para... Querida Miss Morland, considere a natureza terrível das suas suspeitas. A partir de que você estava julgando? (...) Querida Miss Morland, quais ideias você estava recebendo?‘ Eles alcançaram o fim da galeria, e com lágrimas de vergonha ela correu para seu quarto‖ (tradução minha). 172 ―As surpreendentes aventuras que os recheavam se provaram um entretenimento muito prazeroso para uma jovem dama, a qual estava totalmente isolada do mundo, que não tinha nenhuma outra distração a não ser andar pelos jardins como uma ninfa, ou melhor, pelas florestas e gramados nos quais ela estava restrita, e que não tinha nenhuma outra conversa exceto pelo pai sério e melancólico, ou suas próprias empregadas. (...) As suas ideias, a partir desse modo de vida, e os objetos ao seu redor, tinham sofrido uma virada romântica e, pressupondo que romances eram retratos reais da vida, deles ela tirou todas as suas noções e expectativas. Por eles ela foi ensinada a acreditar que o amor era o princípio que regulava o mundo, e que todas as outras paixões eram subordinadas a ele, e que ele causava toda a felicidade e sofrimento da vida‖ (tradução minha).

134 para ela, livros didáticos que a ensinam como agir em todas as situações, muitas das quais são criaturas da sua própria imaginação. Quando, por exemplo, sua criada lhe entrega uma carta de um jovem que havia se encantado com a sua beleza, são esses romances que ensinam a Arabella que ela não deveria ler a mensagem: Arabella blushed at the Sight of the Letter‘ and tho‘, in Reality, she was not displeased, yet, being a strict Observer of Romantic Forms, she chid her Woman severely for taking it. … Lucy, however, suffered the Letter to remain on the Toilet, expecting some Change in her Lady‘s Mind; for she traversed the Chamber in great seeming Irresolution, often stealing a Glance to the Letter, which she had a strong Inclination to open; but, searching the Records of her Memory for a Precedent, and not finding, that any Lady ever opened a Letter from a unknown Lover, she reiterated her Commands to Lucy to carry it back…173 (LENNOX, 1989, p.13)

Por fim, apesar de as mulheres serem sempre o alvo principal da preocupação dos moralistas, Jane Austen retoma a questão da influência dos romances em seu último e inacabado livro, Sanditon, mas dessa vez aponta para seus efeitos sobre o outro sexo no ridículo Sir Edward – que, como um homem de família tradicional, ainda que falida, teria acesso à melhor educação possível da época, ao contrário do que vimos em Catherine Morland. Mas, alas! Ele também não conseguiu passar intocável pelos muitos romances que lera: The truth was that Sir Edward, whom circumstances had confined very much to one spot, had read more sentimental novels than agreed with him. His fancy had been early caught by all the impassioned and most exceptionable parts of Richardson‘s. And such authors as had since appeared to tread in Richardson‘s steps (so far as man‘s determined pursuit of woman in defiance of every opposition of feeling and convenience was concerned) had since occupied the greater part of his literary hours, and formed his character. With a perversity of judgement which must be attributed to his not having by nature a very strong head, the graces, the spirit, the sagacity and the perseverance of the villain of the story outweighed all his absurdities and all his atrocities with Sir Edward. With him such conduct was genius, fire and feeling. It interested and inflamed him. And he was always more anxious for its success, and mourned over its discomfitures with more tenderness, than could ever have been contemplated by the authors. (…) Sir Edward‘s great object in life was to be seductive. With such personal advantages as he knew himself to possess, and such talents as he did also give himself credit for, he regarded it as his duty. He felt that he was formed to be a dangerous man, quite in the line of the Lovelaces. The very name of Sir Edward, he thought, carried some degree of fascination with it.174 (LM, pp.183-184)

173 ―Arabella enrubesceu ao ver a carta, e apesar de não estar insatisfeita, ainda assim, sendo uma observadora estrita das formas românticas, condenou sua empregada severamente por ter aceitado a carta... Lucy, porém, deixou a carta na penteadeira, esperando alguma mudança na opinião de sua senhora, pois ela atravessava o quarto em uma indecisão aberta, frequentemente dando uma olhada rápida para a carta, a qual ela tinha uma forte inclinação de abrir; mas, procurando nos registros da sua memória por um precedente, e não encontrando nenhum, de uma dama abrindo uma carta de um amante desconhecido, ela reiterou sua ordem para Lucy devolvê-la‖ (tradução minha). 174 ―A verdade era que Sir Edward, cujas circunstâncias o tinham confinado muito no mesmo lugar, lera mais romances sentimenais do que era bom para ele. Sua atenção tinha sido atraída logo cedo por todas as partes emotivas e perfeitas de Richardson. E os autores que, desde então, apareceram para seguir o caminho de Richardson (em relação à perseguição determinada de um homem a uma mulher desafiando todas as oposições de sentimento e conveniência) ocupavam a maior parte de suas horas literárias e formavam seu caráter. Com

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Sir Edward parece repetir em parte a mesma atitude de Catherine Morland em relação aos livros góticos ou de Arabella em relação aos romances franceses, mas ao invés de compaixão pelas vítimas, o seu entendimento era tão fraco que ele acaba desenvolvendo uma identificação com os vilões das histórias. É muito interessante notar como Austen retoma a questão moralista dos perigos do romance, em especial do romance sentimental, mas inverte a tradicional ideia de que as mulheres eram suas vítimas, criando uma personagem masculina absolutamente ridícula e contrapondo-a com a heroína da história, Charlotte Heywood, que leu os mesmos romances que Sir Edward mas manteve uma atitude em relação a eles bem diferente. Em uma visita a uma biblioteca, por exemplo, observamos Charlotte optando por um caminho bem mais racional e prudente do que a heroìna de Frances Burney, Camilla: ―She took up a book; it happened to be a volume of Camilla. She had not Camilla‘s youth, and had no intention of having her distress, – so, she turned from the drawers of rings and brooches, repressed farther solicitation and paid for what she bought‖ 175 (LM, p.167). Charlotte não tem nenhuma vontade de ser uma heroína de um romance; Sir Edward, ao contrário, por se sentir ameaçado pela presença de Clara Brereton, uma prima distante que fora convidada como dama de companhia de sua rica tia Lady Denham, logo imagina que necessita se livrar da jovem nos moldes dos romances que lia. A presença de Clara ali era um obstáculo pois Lady Denham poderia muito bem deixar sua herança para ela ao invés de para Sir Edward, que necessitava muito desse dinheiro, e a única solução que a sua mente atrapalhada contemplava para esse problema advinha dos livros sentimentais, ou seja, seduzir e sequestrar Clara Brereton para arruiná-la e impedir que Lady Denham a escolhesse como herdeira. Afinal, depois de ler tantos livros, ele sabia o que estava fazendo:

(…) But it was Clara alone on whom he had serious designs; it was Clara whom he meant to seduce – her seduction was quite determined on. Her situation in every way called for it. She was his rival in Lady Denham‘s favour; she was young, lovely and dependent. (…) Clara saw through him and had not the least intention of being seduced (…). He was armed against the highest pitch of disdain or aversion. If she could not be won by affection, he must carry her off. He knew his business. Already had he had many musings on the subject. If he were constrained so to act, he must uma perversidade de julgamento que deve ser atribuída ao fato de ele não ter naturalmente uma cabeça muito forte, os charmes, o espírito, a sagacidade e a perseverança do vilão da história sobrepunham todos os seus absurdos e suas atrocidades para Sir Edward. Para ele tal conduta era gênio, fogo e sentimento, que lhe interessava e inflavama. E ele estava sempre mais nervoso pelo sucesso do vilão e lamentava suas frustrações com mais gentileza do que poderia ser imaginado pelos autores. (...) O grande objetivo de Sir Edward na vida era ser um sedutor. Com tantas vantagens pessoais que ele sabia possuir, e tais talentos que ele mesmo se dava crédito, pensava ser seu dever. Ele sentia que havia sido feito para ser um homem perigoso como na linha dos Lovelaces. O próprio nome de Sir Edward, pensava, carregava um certo tom de fascinação‖ (tradução minha). 175 ―Ela pegou um livro, que se mostrou ser um dos volumes de Camilla. Ela não tinha a juventude de Camilla, e não tinha intenção nenhuma de ter os seus problemas, então se afastou da gaveta de anéis e broches, recusou outros pedidos, e pagou pelo que tinha comprado‖ (tradução minha). No romance de Burney, ao longo da história Camilla gera várias dívidas por conta de sua ingenuidade e seu pai acaba sendo preso por isso.

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naturally wish to strike out something new, to exceed those who had gone before him; and he felt a strong curiosity to ascertain whether the neighbourhood of Timbuctu might not afford some solitary house adapted for Clara‘s reception. But the expense, alas! of measures in that masterly style was ill-suited to his purse; and prudence obliged him to prefer the quietest sort of ruin and disgrace for the object of his affections to the more renowned.176 (LM, pp.184-185)

A vaidade de Sir Edward é um aspecto destacado na parte em que ele pensa ser necessário, se de fato for forçado a agir em seu plano de sedução, a fazer algo novo, algo que ele não tinha lido ainda em seus livros e que os superasse, como se estivesse competindo com um Mr. B e um Lovelace reais. Mas, ao contrário dessas personagens, Sir Edward não tinha meios financeiros para realizar seus planos, e somente esse fator parece conectá-lo minimamente com a realidade. Já Clara Brereton, nós sabemos, não tinha nenhuma intenção de se deixar seduzir, de forma que Austen indica que essa personagem feminina também é muito mais equilibrada do que Sir Edward. Além disso, mais uma vez o seu comportamento é comparado com o da heroína Charlotte, a qual, apesar de se deixar levar por cinco minutos de imaginação fantasiosa, logo decide voltar à realidade:

Perhaps it might be partly owing to her having just issued from a circulating library – but she could not separate the idea of a complete heroine from Clara Brereton. Her situation with Lady Denham was so very much in favour of it! – She seemed placed with her on purpose to be ill-used. – Such poverty and dependence joined such beauty and merit seemed to leave no choice in the business. – These feelings were not the result of any spirit of romance in Charlotte herself. No, she was a very sober- minded young lady, sufficiently well-read in novels to supply her imagination with amusement, but not at all unreasonably influenced by them; and while she pleased herself the first five minutes with fancying the persecution with ought to be the lot of the interesting Clara, especially in the form of the most barbarous conduct on Lady Denham‘s side, she found no reluctance to admit from subsequent observation that they appeared to be on very confortable terms.177 (LM, 168-169, destaque meu)

176 ―Mas era apenas para Clara que ele tinha planos sérios, era Clara que ele pretendia seduzir – sua sedução estava muito decidida. A sua situação pedia por isso em todos os aspectos. Ela era sua rival nos favores de Lady Denham, era jovem, bela e dependente. (...) Clara via a verdade nele e não tinha a menor intenção de ser seduzida. (...) Ele estava armado contra a maior demonstração de desdém ou aversão. Se ela não pudesse ser conquistada por afeição, ele deveria sequestrá-la. Ele sabia o que estava fazendo. Já tinha muitas ideias sobre o assunto. Se ele fosse forçado a agir dessa forma, ele naturalmente desejaria fazer algo novo, para superar aqueles que o tinham precedido, e tinha uma grande curiosidade para verificar se a região de Timbuctu poderia fornecer uma casa solitária para a recepção de Clara. Mas as despesas, ai!, dessas medidas de um estilo de mestre não cabiam em seu bolso, e a prudência lhe obrigava a preferir a forma mais quieta de ruína e desgraça para o objeto de sua afeição do que as formas mais famosas‖ (tradução minha). 177 ―Talvez em parte ao fato de ter acabado de sair de uma biblioteca, ela não conseguia separar a ideia de uma heroína completa de Clara Brereton. A sua situação com Lady Denham era tão favorável a isso! – Ela parecia colocada ali com o propósito de ser mal-tratada. Tal pobreza e dependência combinadas com beleza e mérito pareciam não dar outra opção nessa questão. – Esses sentimentos eram resultado não de um espírito de romance em Charlotte. Não, ela era uma jovem muito responsável, que tinha lido romances o suficiente para suprir sua imaginação com divertimento, mas não para ser irracionalmente influenciada por eles, e enquanto ela se entretia nos primeiros cinco minutos imaginando a perseguição que deveria ser o destino de Clara, especialmente na forma de uma conduta bárbara de Lady Denham, ela não relutou em admitir a partir de observações subsequentes que elas pareciam estar em termos muito confortáveis uma com a outra‖ (tradução minha).

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Charlotte é um exemplo de como a leitura de romances pode ser prazerosa (―supply her imagination with amusement‖) sem ser perigosa (―unreasonably influenced by them‖), enquanto que Sir Edward incorpora, como mostra Katie Halsey, as deficiências tradicionalmente associadas às mulheres, de forma que Austen, portanto, convida os leitores a ver como, ao contrário da convenção tradicional, uma jovem ―sober-minded‖ pode ser uma leitora de romances muito melhor do que um homem sem uma ―strong head‖ (Halsey, 2013, p.45). Como afirma Park Honan, é interessante notar como, em seu último livro (ainda que isso não tenha sido planejado), Austen retoma o argumento do seu primeiro, revertendo a história de Catherine para mostrar como os homens também podem ser arruinados pela leitura de romances sentimentais e até pela poesia Romântica. Citando um trecho de uma carta de Austen para sua irmã Cassandra, Honan mostra como ela não compartilhava da veneração que Sir Edward nutria por esse tipo de poesia: ―Unimpressed by Romantic poetry Jane Austen had mocked it in Persuasion, and in a letter to her sister about a Byron poem: ‗I have read the Corsair, mended my petticoat, & have nothing else to do‘‖178 (Honan, 1987, p.390). Em Persuasion, a heroína Anne Elliot procura ajudar o melancólico Capitão Benwick afastando-o dessa mesma poesia e recomendando ―a larger allowance of prose in his daily study‖179 (P, p.108). Novamente, Halsey nota que Anne sente que sua mente a torna superior, invertendo a hierarquia tradicional em que Benwick, por conta de seu sexo, teria o direito de educá-la (Halsey, 2013, p.45). Isso não quer dizer que Austen não tenha criado personagens femininas tolas, mas não deixa de ser algo muito expressivo o fato de que as heroínas de seus dois últimos livros sejam exemplos tão fortes contra o discurso moralista que diminuía a possibilidade de um pensamento racional nas mulheres, ao mesmo tempo em que a sua ironia recai sobre homens comportando-se dessa forma. Infelizmente Sanditon não foi concluído, e nunca saberemos se Sir Edward chegou de fato a raptar Clara Brereton. Mas a sutil risada de Austen ficou registrada nesses últimos capítulos que escrevera já muito doente, nos delírios dessa personagem ―downright silly‖180 (LM, p.176) e na sua opinião a respeito dos lugares-comuns dos romances sentimentais da época como aventuras em países distantes, o vilão malvado, a heroína inocente, a necessidade de uma sedução. Para pessoas como Sir Edward que não possuíam, por natureza, ―a very strong head‖, esse tipo de história parecia ser mesmo algo perigoso.

178 ―Pouco impressionada pela poesia Romântica, Jane Austen tinha-na satirizado em Persuasão e em uma carta a irmã sobre um poema de Byron: ‗Eu li o Corsário, remendei minha anágua e agora não tenho mais nada para fazer‘‖ (tradução minha). 179 ―Uma maior dose de prosa em seus estudos diários‖ (tradução minha). 180 ―Totalmente tolo‖ (tradução minha).

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A preocupação com os malefícios advindos da leitura de romances incentivou muitos críticos da época a tentarem separar, por assim dizer, o joio do trigo. Por exemplo, a escritora Clara Reeve, em seu diálogo The Progress of the Romance, de 1785, tenta traçar uma história do ―novo‖ gênero para diferenciar romance e novel e assim distinguir os bons livros daqueles que poderiam ser perigosos aos leitores. Sobre The Countess of Pembroke’s Arcadia (1590), de Sir Philip Sidney, ela escreve a seguinte passagem entre a personagem Euphrasia, que é responsável por explicar a seus companheiros a história do romance, e sua amiga Sophronia: Soph: I shall come and awaken the Arcadia, in order to refresh my memory. I lov‘d this book in my youth, and shall not forsake it now. Euph: My friend, what you say is one of the strongest objections to books of this class. If read and liked early in life, they are apt to give a romantic turn to the reader‘s mind, unless she had as much discretion as Sophronia. Soph: I do not deserve the compliment, - I had really the [romantic] turn of mind you mention, till a little knowledge of the world, and my experience in it, corrected the absurd ideas I had conceived.181 (REEVE, 1930, p.79)

Sophronia, em sua juventude, é o exemplo de como a leitura de uma obra considerada exagerada pode, nas palavras de Euphrasia, ―give a romantic turn to the reader‘s mind‖ – curiosamente a mesma expressão usada por Lennox na passagem sobre Arabella. Mas Sophronia foi curada quando adquiriu um pouco mais de experiência e conhecimento do mundo para corrigir ―the absurd ideas I had conceived‖, e sorte sua, pois era algo comum os vários romances dessa época que discutiam esse problema trazerem, ao contrário, personagens que passavam por diversos sofrimentos advindos de sua inocência em relação aos livros ―inadequados‖ que liam. Esses alertas até podem parecer exagerados, frutos talvez de uma cultura extremamente moralista, e que hoje não fazem mais sentido. No entanto, se passarmos agora para a nossa época e retomarmos a proliferação de filmes, seriados, continuações e variações baseados em Orgulho e Preconceito, fica evidente que eles não estão muito distantes do que a própria Austen ridicularizava. A temática da ávida leitora que vai para ou se imagina no mundo de O&P, como Quixote e Catherine se imaginavam no mundo dos romances que liam, também aparece aqui. Com a diferença que, em nenhum momento, essa leitora é louca como Quixote ou inocente como Catherine, ela está apenas realizando um sonho que é o mesmo de todas as leitoras reais que estão acompanhando aquele livro. E, ao

181 ―‗Eu devo ir e despertar a Arcadia, para refrescar minha memória. Eu amava esse livro na minha juventude e não vou abandoná-lo agora.‘ ‗Minha amiga, o que você diz é uma das mais fortes objeções a livros desse tipo. Se lidos e apreciados cedo na vida, eles podem provocar uma virada romântica na mente da leitora, a não ser que ela tenha tanto discernimento quanto Sophronia.‘ ‗Eu não mereço o elogio, eu sofri a virada na mente que você menciona, até que um pouco de conhecimento do mundo, e minha experiência nele, corrigiu as ideias absurdas que eu tinha concebido‘‖ (tradução minha).

139 invés de se depararem com a realidade como Emma Bovary, geralmente essas personagens acabam conseguindo o que querem, o final feliz. A diferença na forma como Jane Austen lidou com a moda do romance gótico e a forma como o público hoje lida com a moda de Austen são completamente opostas. Para Sandra Vasconcelos, Northanger Abbey avisa as leitoras que o mundo pode até parecer às vezes, mas não é um romance gótico (Vasconcelos, 2002, p.118). Agora, ao observarmos as produções para cinema e TV e os romances publicados atualmente, quem avisa as mulheres hoje que o mundo não é um conto de fadas? A mensagem, na verdade, parece ser exatamente o contrário, e alimenta um grande número de mulheres infelizes que ficam em casa, sozinhas, assistindo cenas do ator inglês Colin Firth no seriado Pride and Prejudice (BBC, 1995) e esperando por seus príncipes encantados, como a personagem principal do best-seller O Diário de Bridget Jones (1996), cuja história sua autora Helen Fielding admitiu ser baseada no próprio O&P, fechando um círculo no mínimo curioso. Contudo, se é verdade que toda história tem dois lados, logo essas críticas ao gênero do romance precisam de réplicas. O próprio Dom Quixote, voltando ao início, talvez fosse menos um louco do que um sonhador, no sentido de que é possível que tenha decidido ser cavaleiro ao abrir os olhos uma certa manhã e não gostar em nada do mundo que viu a sua volta, pensando então que seria melhor para todos se a era de ouro da cavalaria voltasse, com seus preceitos de justiça e boas maneiras. Como afirma Mario Vargas Llosa, Quixote talvez fosse movido por uma incrível generosidade ao invés de um problema clínico, pois seu objetivo era ressuscitar o tempo – que na verdade nunca existira – dos cavaleiros andantes que socorriam os fracos, corrigiam erros e faziam reinar uma justiça para todas as pessoas comuns que de outro modo jamais haveria para elas (Llosa, 2004, p.xiii). Dessa forma, para Llosa Quixote representa uma recusa a um mundo em que ocorria exatamente o contrário daquela literatura, e o seu sonho, ao invés de ser uma reatualização do passado, pode ser visto como algo muito mais ambicioso: ―realizar o mito, transformar a ficção em história viva‖ (Llosa, 2004, pp.XII-XIV, tradução minha). Já Catherine Morland estava, sim, iludida e confusa ao procurar mistérios e terror na abadia de Northanger, mas estava também incrivelmente correta ao construir uma imagem do General Tilney, seu anfitrião, como um grande vilão. Ao invés de torturas e encarceramentos, o General se revela um pai tirano, um fortune-hunter que não hesita em expulsá-la de sua casa, no meio da noite e sem qualquer apoio, ao descobrir que se enganara em relação à fortuna que ela (não) possuía. Os romances góticos podem ter prejudicado o entendimento de Catherine, contudo Northanger Abbey deixa claro que é preciso sim tomar

140 cuidado, não com o sobrenatural mas com o horror real, e os instintos de Catherine de desconfiar do General acabaram sendo justificados. Para muitos críticos hoje, portanto, Catherine leu o mundo corretamente através da única ferramenta que tinha às mãos, o romance gótico, e o problema não era bem a sua interpretação, mas a sua linguagem: segundo Halsey, a habilidade de Catherine de ler o caráter do General Tilney foi eficiente, mas ela apenas traduziu o que percebeu em um idioma particular – o gótico – o que a levou a construir erros de situação, contudo não impediu ou invalidou o seu julgamento (Halsey, 2013, p.44). Mr. Tilney é obrigado a reconhecer isso quando, no final do romance, decide se casar com Catherine à revelia do desejo do General Tilney. A pomposidade com que ele condenou as suspeitas de Catherine a respeito de seu pai (―Remember the country and the age in which we live. Remember that we are English and that we are Christians.‖182 NA, p.203) são, em retrospectiva, também colocadas sob suspeita, já que a forma com que o General expulsou Catherine de sua casa, e a forma como manipulava e oprimia seus filhos não era nem um pouco ―cristão‖ ou digno da imagem que Henry tinha do que significava ser ―English‖. Como afirma Emily Auerbach, nós descobrimos então que Henry ainda tem muito que aprender e admitir que ele não foi criado em um doce lar. O seu pai é sim culpado, não de assassinato, mas de tornar a vida de sua esposa difícil, e não de torturar seus filhos, mas de oprimi-los diariamente (Auerbach, 2004, p.91). O final trágico tradicional dos livros moralistas sobre jovens moças que preferiam romances a livros mais ―racionais‖ é recusado por Austen (Halsey, 2013, p.44), e Catherine sai triunfante ao final tendo sua opinião sobre o General provada e conseguindo, como prêmio, o casamento com o homem que até então se considerava superior a ela. Vitória para esta mulher Quixote.

1.2 – Questões morais entre realidade e ficção

Nesse mesmo livro em que satiriza abertamente o gótico, Jane Austen também faz uma pausa na sua narrativa para empreender uma longa defesa do gênero do romance, tão comumente atacado: ―Yes, novels. For I will not adopt that ungenerous and impolitic custom, so common with novel writers, of degrading, by their contemptuous censure, the very performances to the number of which they are themselves adding: joining with their greatest

182 ―Lembre-se do país e da era em que vivemos. Lembre-se de que nós somos ingleses e de que somos cristãos‖ (tradução minha).

141 enemies in bestowing the harshest epithets on such works‖183 (NA, p.30). Austen critica abertamente a imagem negativa associada ao gênero e a atitude de seus próprios escritores de denegrirem-no. Ela faz referência ao hábito de os autores e autoras de romances escreverem prefácios debatendo as características desse gênero, seus problemas e suas vantagens, geralmente incluindo também um pedido de desculpas pela nova obra ser ela própria um romance, e justificando-a normalmente pelo seu caráter didático, algo como ―eu sei que romances são ruins, mas minhas intenções são boas‖. Tomemos o caso do prefácio que Frances Burney escreve para o seu romance epistolar Evelina (1778), no qual ela paradoxalmente lamenta a má fama dada aos ―humildes‖ escritores de romances ao mesmo tempo em que afirma que, se fosse possível ―to effect the total extirpation of novels, our young Ladies (…) might profit from their annihilation; but since the distemper they have spread seems incurable, since their contagion bids defiance to the medicine of advice or reprehension, (…) surely all attempts to contribute to the number of those which may be read, if not with advantage, at least without injury, ought rather to be encouraged than condemned‖184 (BURNEY, 2000, p.96).

Obviamente Burney considera o romance que está apresentando para o público como um exemplo daqueles que podem ser lidos, se não com benefícios, pelo menos sem correr o risco de produzir efeitos maléficos às leitoras. Essa preocupação de Burney, assim como a de muitos de seus colegas romancistas, parece ser uma resposta aos pensadores da época que, desde os tempos de Juan Vives e Santa Teresa D‘Ávila, alertavam para os efeitos dos romances sobre o leitor. É interessante que o mesmo argumento também era aplicado para continuações de romances já publicados. Como mostra Betty Schellemberg, críticos tanto do Critical Review quanto do English Review pareciam aceitar que o romance Eleonora: From the Sorrows of Werther (1785) poderia de alguma forma aplacar os perigos trazidos pelo original de Goethe às jovens leitoras, e ―o Critical, especialmente, observa que The Sorrows of Werther é um ‗veneno para uma mente doentia‘ e aprova a tentavia de fornecer um ‗antìdoto ao veneno‘ apesar de que, ‗como todos os antìdotos, pode chegar tarde demais‘‖ (Schellemberg, 2007, p.37, tradução minha). Rápidos em procurar avaliações positivas nesses periódicos, os próprios autores de continuações, também observa Schellemberg, apropriaram- se desse argumento do ―antìdoto‖ para tentar promover seus livros (idem, p.38).

183 ―Sim, romances. Pois eu não vou adotar esse costume mesquinho e impolítico, tão comum entre autores de romances, de denegrir, através de sua censura desdenhosa, as mesmas performances às quais eles estão adicionando: unindo-se com os seus maiores inimigos ao declarar os insultos mais duros sobre tais obras‖ (tradução minha). 184 ―efetuar a total extirpação de romances, nossas jovens damas (…) poderiam aproveitar dessa aniquilação; mas já que o destempero que eles espalharam parece incurável, já que o seu contágio desafia o remédio do conselho e da reprimenda, (...) certamente todas as tentativas de contribuir para o número daqueles que possam ser lidos, se não com vantagens, mas pelo menos sem prejuìzos, deve ser encorajado e não condenado‖ (tradução minha).

142

Aparentemente, todos os envolvidos com a produção de romances não queriam produzir romances, mas eram compelidos a tal com as melhores intenções possíveis. Contudo, como vimos, Jane Austen não concorda com esse posicionamento, não enxerga o romance como um ―veneno‖, e pede a seus colegas autores: ―Let us not desert one another; we are an injured body. Although our productions have afforded more extensive and unaffected pleasure than those of any other literary corporation in the world, no species of composition has been so much decried‖185 (NA, p.30). Que deixem essa atitude para os críticos, pede ela, que já são inimigos suficientes a essa forma literária que, além de ter qualidades impressionantes, trouxe muito mais prazer aos leitores do que qualquer outra: ―in short, some work in which the greatest powers of the mind are displayed, in which the most thorough knowledge of human nature, the happiest delineation of its varieties, the liveliest effusions of wit and humour, are conveyed to the world in the best chosen language‖186 (NA, p.31). A sua tradicional ironia não deixa escapar também a prática comum entre seus próprios leitores de condenar o gênero, de se negar a sua leitura, e de se sentir envergonhado caso seja surpreendido lendo um romance: ―‗I am no novel reader; I seldom look into novels; do not imagine that I read novels; it is really very well for a novel‘. Such is the common cant. ‗And what are you reading, Miss __? ‗Oh, it is only a novel!‘, replies the young lady; while she lays down her book with affected indifference, or momentary shame. ‗It is only Cecilia, or Camilla, or Belinda‖187 (NA, p.31). Se essa mesma moça estivesse lendo um volume do Spectator, afirma Austen, com que orgulho ela o teria mostrado! Ao contrário, afirma Walter Scott em um ensaio sobre Emma em 1816, o romance é um ―pão consumido em segredo‖, e até mesmo ―among the crowds who read little else, it is not common to find an individual of hardihood sufficient to avow his taste for these frivolous studies‖188 (Scott apud Halsey, 2013, p.119). E muito tempo antes do desabafo de Austen em Northanger Abbey, Richard Sheridan,

185 ―Não vamos abandonar um ao outro, nós somos um corpo ferido. Apesar de nossas produções terem fornecido o mais extenso e sincero prazer que qualquer outra corporação literária do mundo, nenhuma espécie de composição foi tão atacada‖ (tradução minha). 186 ―Em resumo, alguma obra na qual os maiores poderes da mente são mostrados, e na qual o mais completo conhecimento da natureza humana, a mais feliz delineação de suas variedades, a mais viva efusão de espírito e humor, são trazidas para o mundo na mais seleta linguagem‖ (tradução minha). 187 ―‗Eu não sou um leitor de romances, eu raramente leio romances, não imagine que eu leia romances, é até muito bom para um romance‘. Esses são o jargão comum. ‗E o que está lendo, Miss___? Oh, é somente um romance!‘ responde a jovem, enquanto coloca de lado seu livro com indiferença afetada, ou vergonha momentânea. ‗É somente Cecília, ou Camilla, ou Belinda‘‖ (tradução minha). Cecilia (1779) e Camilla (1776) são dois romances da escritora inglesa Francis Burney e Belinda (1801) foi escrito pela irlandesa Maria Edgeworth. Segundo as memórias de James Edward Austen-Leigh, Jane Austen admirava muito essas autoras, e o fato de ela ter mencionado aqui apenas obras de escritoras – sendo também, segundo a tradição, uma grande admiradora de Richardson, por exemplo – pode ser um indicativo de um posicionamento consciente e defensivo de Austen dentro de uma tradição de mulheres novelistas (Ver Tauchert, p.74). 188 ―Entre as multidões que não leem nada mais, não é comum encontrar um indivìduo corajoso o suficiente para declarar sua preferência por estudos frìvolos‖ (tradução minha).

143 na peça The Rivals (1775), também havia ironizado a importância das aparências quando se tratava de leitura: Here, my dear Lucy, hide these books. Quick, quick – Fling Peregrine Pickle under the toilet – throw Roderick Ramdon into the closet – put The Innocent Adultery into the Whole Duty of Man – thrust Lord Aimworth under the sopha – cram Ovid behid the bolster – there – put The Man of Feeling into your pocket – so, so, now lay Mrs. Chapone in sight, and leave Fordyce’s Sermon open on the table.189 (SHERIDAN apud HALSEY, 2013, p.118)

Essa condenação do romance à qual Austen responde circulou durante o século XVIII e adentrou o século XIX divulgando uma imagem de um gênero perigoso porque incentivava a frivolidade e o ócio, puro entretenimento do qual não se recebia nenhuma educação ou, pior ainda, do qual se recebia uma má educação associada, muitas vezes, à cultura popular. A principal preocupação dos seus críticos era a respeito dos efeitos dos romances sobre os leitores, indicando que acreditavam que esse gênero poderia afetar a moral e o comportamento das pessoas e provocar uma reação afetiva como a que vimos nos exemplos literários de Quixote, Catherine Morland, Arabella e Sir Edward. Talvez até essa preocupação não fosse totalmente descabida, se pensarmos nos jovens que imitaram o destino de Werther ou nas muitas mulheres atuais que, como Bridget Jones, sonham com o seu Mr. Darcy. Em outras palavras, aparentemente o romance tem um poder de borrar as fronteiras entre fantasia e realidade, algo que fora percebido muito rapidamente pelos seus críticos, e fazer com que as pessoas projetem uma na outra. Novamente, essa discussão parece ser datada e restrita a uma cultura puritana muito severa, porém ela se arrastou de forma insistente até meados do século XX, a ponto de o escritor americano Henry James se mostrar irritado com a continuidade desse debate moralista, que parecia não considerar o romance como arte, e desabafar em seu ensaio The Art of Fiction (1884): ―You wish to paint a moral picture or carve a moral statue? (…) We are discussing the Art of Fiction; questions of art are questions of execution; questions of morality are quite another affair‖190 (James, 1948, p.20). Segundo Marina Mackay, só podemos entender a força da reclamação de James se lembrarmos que ninguém nunca sentiu necessidade de justificar porque poesia é uma alta arte, enquanto que os escritores de romances desde o século XVIII eram obrigados a se justificar o tempo todo, alguns tentando

189 ―Vamos, querida Lucy, esconda esses livros. Rápido, rápido – jogue o Peregrine Pickle embaixo da penteadeira – jogue Roderick Ramdom dentro do armário – coloque The Innocent Adultery dentro de Whole Duty of Man – jogue Lord Aimworth embaixo do sofá – enfie Ovídio atrás da almofoada – isso – coloque The Man of Feeling em seu bolso – isso, isso, agora coloque Mrs. Chapone à vista, e deixe Fordyce’s Sermons aberto em cima da mesa‖ (tradução minha). 190 ―Você deseja pintar um quadro moral ou esculpir uma estátua moral? (…) Estamos discutindo a Arte da Ficção, questões de arte são questões de execução; questões de moralidade são outro assunto diferente‖ (tradução minha).

144 disfarçar e se afastar das acusações, outros respondendo a elas, como Austen fez em NA. Para Mackay, tentar provar que o romance era muito mais do que entretenimento para massas foi o objetivo de muitos críticos no século XX cujos estudos sobre o gênero se tornaram marcos na área, como The Craft of Fiction (1921) de Percy Lubbocks, Fiction and the Reading Public (1932) de Q. D. Leavis e The Great Tradition (1948), de seu marido F. R. Leavis (MacKay, 2011, p.10). As datas desses trabalhos mostram a longa duração da questão. Depois de traçarmos a sua permanência até meados do século XX, precisamos retornar para o século XVIII para tentar entender a base dessas acusações tão resistentes ao tempo. A resposta, como indiquei anteriormente, parece estar na capacidade do novo gênero de se relacionar com o real de uma forma diferente do que havia sido feito até então. Para Sandra Vasconcelos, até mesmo antes da publicação das obras de Daniel Defoe, Samuel Richardson e Henry Fielding, tradicionalmente vistos como iniciadores do romance moderno inglês graças principalmente ao estudo de Ian Watt, já era possível perceber na Inglaterra daquele perìodo ―uma exigência cada vez maior de verossimilhança na ficção, uma tendência crescente de aproximação com o mundo real e com o tempo presente. Há uma rejeição progressiva à idealização de personagens e situações (...) e uma busca de representação do mundo cotidiano e de personagens comuns‖ (Vasconcelos, 2007, p.165). Documentos da época parecem construir uma oposição entre o romance que nascia e as formas narrativas anteriores baseada nessa questão do trato com o real. Por exemplo, um panfleto que circulou anonimamente em 1751 a respeito de Tom Jones argumenta que Henry Fielding é o autor de um novo tipo de escrita muito diferente dos volumes que enfestavam o mundo, ―commonly known by the Name of Romances, or Novels, Tales, &c. fill‘d with any thing which the widest Imagination could suggest. In all these Works, Probability was not required: The more extravagant the Thought, the more exquisite the Entertainment. Diamond Palaces, flying Horses, brazen Towers, &c. were here look‘d upon as proper, and in Taste‖191 (‗An Essay...‘, 1962, p.13). Esses volumes, ―monstros estranhos‖, teriam sido gerados pela França, os quais a Inglaterra importara junto com tantas outras loucuras de seu vizinho, e poderiam ser chamados facilmente de ―Prose run mad‖192 (‗An Essay...‘, 1962, p p.14). Ao contrário, o novo tipo de escrita inventado por Fielding ―should be probable, and the Characters taken from common Life, the Stile should be easy and familiar, but at the same Time sprightly and

191 ―Comumente conhecidos pelo nome de romanescos, ou romances, ou lendas, etc., cheios de qualquer coisa que a imaginação poderia sugerir. Em todas essas obras, a probabilidade não era necessária: quanto mais extravagante o pensamento, melhor o entretenimento. Palácios de diamantes, cavalos voadores, torres de bronze, etc. eram considerados apropriados e de bom gosto‖ (tradução minha). 192 ―Prosa enlouquecida‖ (tradução minha).

145 entertaining‖193 (‗An Essay...‘, 1962, p 19). Essa escrita foi a cura para uma doença epidêmica, já que Fielding conseguiu mostrar ao mundo que ―pure Nature could furnish out as agreeable Entertainment, as those airy non-entical Forms they had long ador‘d, and persuaded the Ladies to leave this Extravagance to their Abigails with their cast Cloaths. Amongst which Order of People, it has ever since been observ‘d to be peculiarly predominant‖194 (‗An Essay...‘, 1962, pp.14-15). Importante notar como, já nessa época, os romances sentimentais e de aventuras, esses monstros franceses, eram associados às classes inferiores, como as ―abigails‖, empregadas pessoais das grandes damas. Além disso, podemos perceber que começa a ganhar força a metáfora da doença, da contaminação efetuada por esses romances – ainda que nesse panfleto o autor não diferencie romance, novels, e tales – e para a qual o novo tipo de escrita de Fielding seria a cura. Segundo William Warner, os romances foram classificados como fonte de prazeres ilegais que levaram à criação de um leitor do tipo ―culture-destroying pleasure seeker who haunts the modern era: the obsessive, unrestrained, closeted consumer of fantasy‖ (Warner, 1994, p.3). Para esse leitor doente, viciado nesses prazeres ilegais, Richardson e Fielding são a cura na medida em que, com o novo tipo de escrita que estavam desenvolvendo, ―they aimed to deflect and reform, improve and justify the pleasures of a new species of elevated form‖195 (Warner, 1994, p.3). Samuel Richardson parecia ter uma consciência desse seu papel. Em uma carta para Lady Echlin, Richardson afirma: ―Instruction, Madam, is the Pill; Amusement is the Gilding. Writings that do not touch the Passions of the Light and Airy, will hardly ever reach the heart‖196 (apud Warner, 1994, p.5). Segundo Marina MacKay, foi Richardson que conseguiu transformar o romance erótico do século anterior, extremamente popular e controverso, escrito por mulheres como Aphra Behn, Delarivière Manley e Eliza Haywood, no romance socialmente respeitável que narra o desenvolvimento de uma relação amorosa entre um homem e uma mulher (MacKay, 2011, p.7). E nas palavras de Warner, Richardson e Fielding conseguiram promover uma reavaliação do romance através da estratégia da metáfora do antídoto ou da vacina:

193 ―Deveria ser provável, e as personagens retiradas da vida comum, o estilo deveria ser fácil e familiar, mas ao mesmo tempo vivo e divertido‖ (tradução minha). 194 ―A natureza pura poderia fornecer um divertimento tão agradável quanto aquelas formas etéreas [non-entical] que eles têm há muito adorado, e convencido as damas a abandonar essa extravagância para as suas empregadas com suas/seus [cast Cloaths]. A qual, entre esse tipo de pessoa, sempre foi observado ser peculiarmente predominante‖ (tradução minha). 195 ―Aquele que busca o prazer destruidor da cultura, que assombra a era moderna: o obsessivo, ilimitado, escondido consumidor de fantasia‖ / ―Eles objetivavam bloquear e reformar, melhorar e justificar os prazeres em uma nova forma elevada de espécie‖ (traduções minhas). 196 ―Instrução, madame, é a pìlula, divertimento é o embelezamento. Escritas que não tocam as paixões do leve e etéreo, quase nunca alcançarão o coração‖ (tradução minha).

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Primeiro, um grande espectro de escritas anteriores – romanescos, novelas e histórias secretas, escritas no continente e na Bretanha – é caracterizado como essencialmente equivalente. Considerados licenciosos, cheios de fantasia, e baixos, eles foram acusados de ser uma doença cultural. Em seguida, Richardson e Fielding escreveram anti-romances, eles não escreveram não-romances. Assim como a vacina pode atingir sua função de antídoto somente pela introdução de uma forma fraca da doença no corpo do paciente, os seus romances incorporaram muitos elementos dos romances antigos e perigosos de Behn, Manley e Haywood nessa ―nova espécie‖ de ficção. Ao incluir um discurso familiar de melhoramento dos livros de conduta, biografias espirituais e ensaios periódicos, as ―histórias‖ de Richardson e Fielding puderam aparecer como radicalmente ―novas‖. (WARNER, 1994, p.6, tradução minha)

É interessante notar também que, na história do romance inglês construída pelos críticos do século XX, escritoras como Behn, Manley e Haywood não entraram para o cânone dos autores que ―inventaram‖ o romance moderno e receberam apenas o rótulo de ―Amatory Fiction‖ para separá-las talvez daquelas obras ―sérias‖. Contudo, para Warner, Richardson e Fielding se apropriaram de elementos desse romance anterior e os incorporaram em um proferido ―novo tipo de escrita‖ para assegurar a sua popularidade ao mesmo tempo em que promoviam uma elevação da cultura presente em seus romances e condenavam a forma anterior como inferior. Com isso, afirma Warner, eles simultaneamente absorveram e apagaram os romances que iriam suplantar (Warner, 1994, p.6), e um dos resultados desse apagamento é que, apesar de um grande numero de romances no fim do século XVII e durante todo o século XVIII ter sido escrito por mulheres, aquela mesma história do romance construída no século XX não as incluiu no centro de sua linha de desenvolvimento do gênero, pelo menos até Jane Austen, e relegou escritoras como Aphra Behn, Frances Burney e Ann Radcliffe às margens. Podemos observar então que nasce, junto com esses autores, um novo discurso que se preocupa em diferenciar o antigo romance do novo novel (um termo que tem em si a ideia de novidade). A nomenclatura durante todo o século XVIII será um problema, romance e novel serão usados como sinônimos tanto para a nova como para a forma antiga de narrativa, como vimos no panfleto An Essay..., em que romance, novel e tales são a mesma coisa e são diferentes desse novo tipo de escrita. No entanto, conforme o século se aproxima de seu último quarto, cada vez mais uma diferença entre o antigo romance e o novo novel começa a ser delineada, e o quesito escolhido para essa separação vai ser o trato com o real. No já citado prefácio de Evelina, Frances Burney trabalha com uma distinção muito clara ao alertar aqueles que esperam, com sua obra, serem transportados ―to the fantastic regions of Romance, where Fiction is coloured by all the gay tints of luxurious Imagination, where Reason is an outcast, and where the sublimity of the Marvellous, rejects all aid from sober Probability‖. Ao contrário, Burney afirma, sua heroìna é ―No faultless Monster, that the world

147 ne‘er saw‖197, mas sim, ela continua, ―the offspring of Nature, and of Nature in her simplest attire‖198 (Burney, 2000, p.96). A distinção então é clara: novels buscam suas histórias na Natureza, naquilo que existe de forma simples e sem exageros, enquanto que o romance produz monstros que nunca existiram, baseados na imaginação e no maravilhoso e não na probabilidade e na razão. A oposição entre novel e romance nesses termos vai ganhar cada vez mais força, até ser cristalizada pela escritora Clara Reeve naquele diálogo a respeito do romance escrito em 1785 e que, segundo J. Paul Hunter (1999, p.26), ainda que contenha algumas ambivalências, vai se transformar na base para o debate posterior sobre a natureza do gênero do romance moderno. Nesse diálogo, encontramos uma definição muito citada pelos críticos posteriores: Euphrasia: I will attempt this distinction, and I presume if it is properly done it will be followed, - if not, you are but where you were before. The romance is an heroic fable, which treats of fabulous persons and things. – The novel is a picture of real life and manners, and of the times in which it is written. The romance in lofty and elevated language, describes what never happened nor is likely to happen. – The novel gives a familiar relation of such things, as pass every day before our eyes, such as may happen to our friend, or to ourselves; and the perfection of it, is to represent every scene, in so easy and natural a manner, and to make them appear so probable, as to deceive us into a persuasion (at least while we are reading) that all is real, until we are affected by the joys or distresses, of the persons in the story, as if they were our own.199 (REEVE, 1930, p.111)

Essa definição aparece quase no final do primeiro volume, porém já no começo do diálogo é possível encontrar pistas da opinião de Reeve sobre o romance anterior, quando a personagem Hortensius fala que ―By Romance I understand a wild, extravagant, fabulous Story‖ e Sophronia concorda dizendo que ―I understand it to mean all those kind of stories that are built upon fiction, and have no foundation in truth‖200 (Reeve, 1930, p.6). E mesmo a designação de ―heroic fable‖ aparece antes como ―a fabulous story of such actions as are commonly ascribed to heroes, or men of extraordinary courage and abilities. – Or if you

197 Citação que Burney faz de John Sheffield, Duke of Buckingham and Normandy, a partir de seu estudo An Essay on Poetry (1682). 198 ―para as fantásticas regiões do romanesco, na qual a ficção é colorida com todas as cores alegres da imaginação luxuosa, na qual a razão foi descartada, e na qual a grandeza do maravilhoso rejeita toda ajuda da sóbria probabilidade‖ / ―Nenhum monstro perfeito, que o mundo nunca viu‖ / ―o produto da natureza, e da natureza em sua roupagem mais simples‖ (tradução minha). 199 ―Euph: Eu tentarei fazer essa distinção, e presumo que se for feita corretamente será seguida, senão, vocês estarão onde estão agora. O romanesco é uma fábula heróica, a qual trata de pessoas e coisas fabulosas. O romance é um retrato da vida e das maneiras reais, e dos tempos nos quais foi escrito. O romanesco, em linguagem elevada e eminente, descreve o que nunca aconteceu e nem é provável que aconteça. O romance constrói uma relação familiar entre as coisas, como ocorrem todo dia por nossos olhos, tais como podem acontecer com um amigo ou com nós mesmos, e a perfeição disso é representar cada cena de maneira tão natural, e fazê-las parecer tão provável, que nos engana e convence (pelo menos enquanto estamos lendo) de que tudo é real, a ponto de sermos afetados pelas alegrias ou sofrimentos das pessoas na história como se fossem nossas‖ (tradução minha). 200 ―Por romanesco eu entendo uma história selvagem, extravagante e fabulosa‖ (tradução minha).

148 would allow of it, I would say an Epic in prose‖201 (Reeve, 1930, p.13). É interessante notar que, para Euphrasia, que pode ser a voz de Reeve no diálogo, esses romances ou fábulas heróicas são muito antigas e universais, podendo ser encontradas em todos os países e em todos os tempos, ainda que existam diferenças entre eles, sendo o divertimento preferido tanto dos selvagens quanto dos povos civilizados (Reeve, 1930, p.13-14). A inferência não dita dessa afirmação é que o romance moderno, por oposição, seria restrito à Inglaterra, dando origem ainda no século XVII àquela escola que reivindica para os ingleses o pioneirismo no ―rise of the novel‖. Se retomarmos a definição de Reeve no ponto em que ela afirma que o romance nos engana, nos leva a pensar que a história que estamos lendo é real e nos faz sofrer ou se alegrar com as personagens, chegamos finalmente à questão central que preocupava moralistas e pensadores como o conceituado Samuel Johnson: os romance são tão reais, ou tão próximos da vida real, que os leitores são afetados da mesma forma que as personagens, como se eles próprios vivessem aquela história, e são, ainda que momentaneamente, convencidos de que tudo o que leem ocorreu de fato. Quase vinte anos depois encontramos o mesmo argumento no artigo escrito em outubro de 1804 sobre a obra de Richardson pelo crítico escocês Francis Jeffrey. Para ele, os escritores anteriores a Richardson não se importavam em apresentar aos leitores os detalhes das vidas das personagens, e como nós só as conhecemos apenas em situações formais, como uma visita com horário marcado em que sabemos que o que estamos vendo nos foi preparado, a consequência é que ―we are never deceived into any belief of their reality, and contemplate the whole as an exaggerated and dazzling illusion‖202 (Jeffrey, 1852, p.128). O máximo que essas histórias podem produzir em nós é uma espécie de simpatia, como quando ficamos sabendo do sofrimento de uma pessoa distante, relativamente desconhecida. Richardson, segundo Jeffrey, pode até cair no outro extremo com suas longas descrições, muitas vezes fatigantes, que consomem muitas páginas e que não parecem desenvolver em nada o progresso da história. Contudo, o resultado desse seu trabalho minucioso é que nós nos tornamos amigos íntimos das personagens, ―we slip, invisible, into the domestic privacy of his characters, and hear and see everything that is said and done among them, whether it be interesting or otherwise, and whether it gratify our curiosity or disappoint it‖, e, por isso, quando algo acontece a elas, nós nos condoemos como se elas fossem velhas amigas, e, mais importante, nós somos ―irresistibly led to as lively a

201 ―Eu entendo que significa todas as histórias construídas sobre ficção e que não têm nenhuma fundação na verdade‖ / ―uma história fabulosa de tais ações comumente atribuìdas aos heróis, ou a homens de habilidades e coragem extraordinárias. Ou, se você permitir, eu diria um Épico em prosa‖ (tradução minha). 202 ―nós nunca somos enganados para acreditar na sua realidade, e contemplamos tudo como uma ilusão exagerada e deslumbrante‖ (tradução minha).

149 conception of their sensations, as if we had been spectators of a real transaction‖203 (Jeffrey, 1852, p.128). Podemos perceber então que, tanto para Reeve quanto para Jeffrey, o traço que mais se destaca nesse novo romance é que ele se torna familiar. As personagens passam a ser mais próximas da realidade que os leitores conhecem, deixam de ser distantes e perfeitas como no romance anterior, tornam-se ―nossos amigos‖. Uma nova característica a respeito desse novo romance e que seria advinda de sua aproximação com o real, portanto, aparece aqui: a identificação do leitor com a personagem. Obviamente, depois de reconhecida, essa identificação foi imediatamente apontada como um problema. Samuel Johnson, talvez um dos mais conhecidos moralistas da época, deixa sua opinião bem clara a esse respeito no artigo que escreveu para o Rambler em março de 1750 após o sucesso de Tom Jones de Henry Fielding. Narrativas de ficção, as quais Johnson chama de romance e não novel, e que são o grande deleite desta geração, ele diz, exibem a vida em seu estado verdadeiro, ―diversified only by accidents that daily happen in the world, and influenced by passions and qualities which are really to be found in conversing with mankind‖204 (Johnson, 1968, p.9). Ele diferencia essa nova ficção das formas anteriores ao afirmar que ela não pode ―neither employ giants to snatch away a lady from the nuptial rites, nor knights to bring her back from captivity; it can neither bewilder its personages in deserts, nor lodge them in imaginary castles‖205 (Johnson, 1968, p.9). Nesses romances anteriores, Johnson argumenta, as histórias eram tão diferentes daquilo que realmente ocorre entre os homens que não havia o risco de que o leitor pensasse que ela poderia ser real e elas poderiam ser lidas tranquilamente apenas como entretenimento (parece ignorar o caso de Quixote). No entanto, no novo romance o herói é construído de forma a pertencer ao nosso mundo, e quando seus dramas se tornam universais, os leitores começam a prestar mais atenção e esse herói passa a ser visto como um exemplo. Surge assim o problema: como esses livros são escritos principalmente para a diversão dos jovens, dos ignorantes e dos ociosos, aqueles que não possuem princípios sólidos, é necessário ser cuidadoso com o que vai ser apresentado, pois eles serão utilizados como guias de conduta. Johnson aqui aponta para a questão de que, se histórias familiares podem ser eficazes em divulgar as virtudes e condenar

203 ―nós escorregamos, invisìveis, para dentro da privacidade doméstica de suas personagens, e escutamos e vemos coisas que são ditas e feitas entre eles, não importando se interessantes ou não, e se gratificam ou desapontam a nossa curiosidade‖ / ―irresistivelmente levados a uma concepção tão viva de suas sensações, como se nós fôssemos espectadores de uma transação real‖ (tradução minha). 204 ―diversificada somente por acidentes que acontecem diariamente no mundo, e influenciados pelas paixoes e qualidades que são realmente encontradas no diálogo com a humanidade‖ (tradução minha). 205 ―nem empregar gigantes para raptar a dama de seu casamento, nem cavaleiros para trazê-la de volta de seu emprisionamento, não pode desconcertar suas personagens nos desertos, nem abrigá-los em castelos imaginários‖ (tradução minha).

150 os vícios, o contrário também pode facilmente ocorrer. Por isso, conclui, os escritores são mais do que justificados em seu desejo de imitar a natureza, mas eles devem distinguir ―those parts of nature which are most proper for imitation‖206 (Johnson, 1968, p.12). Advém dessa precaução a condenação de Johnson ao livro de Henry Fielding. Muitos escritores, ele afirma, sob a justificativa de imitarem a natureza, misturam qualidades boas e ruins em suas personagens de forma que ambas são igualmente visíveis, e o resultado é que ―as we accompany them through their adventures with delight, and are led by degrees to interest ourselves in their favour, we lose the abhorrence of their faults, because they do not hinder our pleasure, or, perhaps, regard them with some kindness for being united with so much merit‖207 (Johnson, 1968, p.13). Por que, Johnson se pergunta, não podemos fazer o oposto, e exibir nas personagens a mais perfeita virtude? Mas ele alerta: não uma virtude angelical, nem acima da probabilidade ―for what we cannot credit we shall never imitate, but the highest and purest that humanity can reach‖208 (Johnson, 1968, p.14). Clara Reeve parece concordar quando afima que Fielding ―certainly painted human nature as it is, rather than as it ought to be‖209 (Reeve, 1930, p.141). O autor passa assim a ser responsabilizado pelos efeitos provocados pelo seu romance, e Fielding, no caso, estava sendo condenado por ter escolhido a forma errada de representar o homem, ao contrário de outros escritores de ―excelentes princípios‖ que fizeram de ―entertaining stories their vehicle to convey to the young and flexible heart, wholesome truths, that is refused to receive under the form of moral precepts and instructions, thus they tempered the utile with the dulce, and under the disguise of Novels, gave examples of virtue rewarded, and vice punished‖210 (Reeve, 1930, vol2., p.40-41). Começa, assim, o discurso de defesa do uso do romance como instrumento didático, pois se ele pode facilmente corromper a moral dos leitores, como os críticos desde o século XVI apontavam, ele pode também melhorá-la. Uma oportunidade é vislumbrada aqui: se a educação formal na Inglaterra naquele momento estava restrita ao pequeno grupo de jovens que podiam frequentar Oxford e Cambridge, os romances, por prescindirem de qualquer formação erudita ou clássica e por serem extremamente populares, poderiam ser utilizados para o ensino daqueles que não tinham acesso àquela educação formal, em especial

206 ―aquelas partes da natureza que são as mais adequadas para imitação‖ (tradução minha). 207 ―conforme nós os acompanhamos em suas aventuras com prazer e somos aos poucos levados a nos interessarmos por eles, perdemos o incômodo causado por seus defeitos, porque eles não atrapalham nosso prazer, ou, talvez, e olhamos para eles com bondade por serem unidos com tanto mérito‖ (tradução minha). 208 ―pois àquilo que nós não podemos dar crédito não devemos nunca imitar, e sim apenas o mais alto e mais puro que a humanidade pode alcançar‖ (tradução minha). 209 ―certamente pintou a natureza humana como ela é, ao invés de como ela deveria ser‖ (tradução minha). 210 ―histórias divertidas o seu veìculo para levar ao coração jovem e flexìvel verdades saudáveis, que são recusadas sob a forma de preceitos morais e instruções, logo eles temperaram o útil com o doce, e sob o disfarce de romances, dão exemplos de virtudes recompensadas e vìcios punidos‖ (tradução minha).

151 as mulheres. Muitos críticos, então, ao perceberem que o apelo para limitar ou extinguir essa nova forma literária não produzia efeito algum, logo voltaram seus discursos para defender seu uso como instrumento pedagógico, como vimos no prefácio de Evelina de Frances Burney. É também a oposição que encontramos entre as personagens de Hortensius e de Euphrasia no diálogo de Clara Reeve. Hortensius tem uma opinião decididamente contra os romances, pois ―From this kind of reading, young people fancy themselves capable of judging of men and manners, while involved in the profoundest ignorance. They believe themselves wiser than their parents and guardians: Thus armed with ignorance, conceit, and folly, they plunge into the world and its dissipations, and who can wonder if they become its victims‖211 (Reeve, 1930, vol.2, p.79-80). Euphrasia discorda, pois acredita ser possível encontrar, em meio à profusão de maus romances, aqueles que poderiam fornecer ao seu leitor ao mesmo tempo prazer e educação. Hortensius, porém, é taxativo: ―I would serve them as the Priest did Don Quixote‘s library, burn the good ones for being found in bad company‖212 (Reeve, 1930, vol.2, p.79-80). Cabe à personagem de Sophronia oferecer um argumento para convencer Hortensius, pois para ela os defeitos que ele aponta nos maus romances podem ser encontrados em qualquer gênero de escrita, seja ensaio, peças de teatro, ou memórias, e não é o seu desejo proibir a leitura desses materiais. Euphrasia então conclui, apontando para o papel dos pais ou tutores na formação dos jovens: ―Selection is to be strongly recommended, and good books to be carefully chosen by all that are concerned in the education of youth‖213 (Reeve, 1930, vol. 2, p.97), especialmente em relação às jovens moças que, por lerem mais romances do que os homens, teriam muito mais chances de serem prejudicadas por essa prática. Idealmente, aponta Katie Halsey, uma jovem deveria ler apenas junto de um pai ou tutor – e não isolada em seu quarto – para que tanto o que ela lê como a forma como ela interpreta seja monitorada, e para que ela possa discutir suas impressões com eles e receber orientações em caso de dificuldades (Halsey, 2013, p.33). Uma outra solução seria oferecer para as mulheres uma educação de qualidade igual a oferecida aos homens, talvez até mesmo enviá-las para a universidade, mas essa ideia absurda realmente só ocorreu a alguns poucos pensadores como Mary Wollstonecraft, restando mesmo apenas a recomendação de vigiar os livros que as jovens liam.

211 ―A partir desse tipo de leitura, os jovens se julgam capazes de avaliar os homens e as maneiras, enquanto envolvidos na mais profunda ignorância. Eles se consideram mais sábios que seus pais e guardiões: assim armados com ignorância, prepotência e tolice, eles mergulham no mundo e nas suas dissipações, e quem pode se surpreender se se tornam suas vìtimas‖ (tradução minha). 212 ―Eu faria com eles como fez o cura com a biblioteca de Dom Quixote, queimar os bons por terem sido encontrados em más companhias‖ (tradução minha). 213 ―Seleção deve ser fortemente recomendada, e bons livros devem ser cuidadosamente escolhidos por todos aqueles preocupados com a educação dos jovens‖ (tradução minha).

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1.3 – Percepções diversas de realidade e ficção

Se toda aquela preocupação a respeito das implicações morais dos romances era resultado de sua proximidade com o real, é necessário então refletir sobre essa característica atribuída ao gênero. Em primeiro lugar, temos a posição de críticos como Ian Watt, para quem o conceito nascente de realismo ali não significava uma obrigação de representar aquilo que de fato existia, mas sim se tratava de uma ideia que se relacionava com outro conceito que surgia na época, o do indivíduo moderno. Para Watt, o desafio principal do novo romance era ―a fidelidade à experiência individual‖ (Watt, 2010, p.13). Por que isso poderia ser diferente das formas literárias anteriores? Para John Richetti, o romance moderno inova ao tomar como foco uma pessoa específica, em seu ―imediatismo individualizado‖, e apresentá-la como mais importante do que a comunidade ou a tradição em que está inserida. Não é raro, aliás, que romances frequentemente mostrem o choque entre esse indivíduo e as grandes unidades sociais que o produzem (Richetti, 1994, p.xii). Para Nancy Armstrong, nada pode ser mais claro do que essa associação entre a história do sujeito moderno e a história do romance moderno: The British novel provides the test case. It came into being, I believe, as writers sough to formulate a kind of subject that had not yet existed in writing. Once formulated in fiction, however, this subject proved uniquely capable of reproducing itself not only in authors but also in readers, in other novels, and across British culture in law, medicine, moral and political philosophy, biography, history, and other forms of writing that took the individual as their most basic unit. Simply put, this class- and culture-specific subject is what we mean by ―the individual‖.214 (ARMSTRONG, 2005, p.3)

O investimento que o novo romance faz em retratar a experiência individual seria então responsável pela sua imagem de realista, ou como Watt coloca, é uma oposição às formas literárias anteriores que trabalhavam com ―tipos humanos genéricos atuando num cenário basicamente determinado pela convenção literária adequada‖ (Watt, 2010, p.16). Essa nova abordagem seria responsável pela produção daquilo que Clara Reeve e Francis Jeffrey consideravam como uma característica essencial do romance, a empatia, ou a identificação do leitor com a personagem, questão que será retomada por J. Paul Hunter em seu estudo sobre a origem do romance. Ao listar algumas das características desse gênero que considera mais consolidadas (a partir de uma análise, diga-se de passagem, que tende a generalizar traços de

214 ―O romance inglês fornece o caso teste. Ele veio a existir, eu acredito, conforme escritores buscaram formular um tipo de sujeito que ainda não existia na escrita. Uma vez formulado na ficção, contudo, esse sujeito provou-se unicamente capaz de reproduzir a si mesmo não só em autores mas nos leitores, em outros romances e através da cultura britânica na lei, medicina, filosofia moral e política, biografia, história e outras formas de escrita que tomaram o individual como a sua unidade mais básica. Resumindo, esse sujeito de uma classe e cultura especìfica é o que nós chamados de ‗o indivìduo‘‖ (tradução minha).

153 obras canonizadas dos séculos XVIII e XIX), Hunter chama a atenção para o trato muito mais aprofundado do indivíduo e da sua consciência: ―A diferença crucial entre indivìduos no romanesco e no romance envolve o grau e a qualidade da auto-consciência nos romances, uma percepção totalmente diferente dos processos de pensamento e sentimento que afetam os indivìduos na sua relação com o mundo e suas experiências nele‖ (Hunter, 1990, p.21, tradução minha). A consequência seria uma sensação de familiaridade produzida no leitor que advém do trabalho do romance com personagens comuns e seu cotidano, e também um processo de empatia e de identificação do leitor em relação a personagem, pois, como argumenta Hunter, Porque os romances investigam tão profundamente e de maneira sensível (no melhor caso) a subjetividade de um indivíduo, eles tipicamente dão aos leitores a sensação de como seria ser outra pessoa, de como seria ter outra identidade. Leitores de romances, especialmente os leitores ―comuns‖ que leem por prazer e não para melhoria profissional, regularmente reportam que eles se ―identificam‖ e ―empatizam‖ com os heróis e heroìnas dos romances (e ficam anxiosos com seus conflitos) de modo a sugerir uma proximidade maior entre leitores e personagens de romances do que entre leitores e personagens de outros tipos de ficção. (HUNTER, 1990, pp.21-22, tradução minha)

Assim, o fato de o romance abordar assuntos muito mais próximos aos leitores e aprofundar sua introspeção na personagem, que não é mais o herói perfeito e distante mas uma pessoa comum, criou as condições para que o leitor passasse a se enxergar no que lia. Essa identificação não significava pensar que era a sua vida, em específico, sendo contada em determinado livro, mas sim a possibilidade de ter aquela vida, de reconhecê-la como possível, e até mesmo de vivê-la indiretamente ao se colocar no lugar da personagem durante a leitura. De certa forma, a partir dessa possibilidade de identificação entre leitor e personagem, a ficção passa a ser experienciada como uma realidade em potencial. A instabilidade e o intercâmbio entre os conceitos de fato e ficção que ocorriam durante o século XVIII só tornavam as fronteiras entre realidade e fantasia ainda mais permeáveis, assim como uma prática corrente naquele momento de o autor de um romance afirmar em seu prefácio que a história que iria ser narrada ali era real. Essa prática, que Lennard Davis chama de ―authorial disavowal‖, pode ser encontrada já em Dom Quixote, pois, segundo Cervantes, estaríamos lendo uma história verídica narrada pelo mouro Cide Hamete Benengeli. Cervantes, dentro dessa lógica, não seria um autor, mas sim apenas aquele que transcreve a história, como um tradutor e editor. Segundo Barbara Fuchs, esse discurso era relativamente comum nos romances de cavalaria que, apesar de uma artificialidade escancarada em aventuras que mencionavam dragões, gigantes e feiticeiros, apresentavam-se mais como crônicas do que como fábulas em uma tentativa de legitimação (Fuchs, 2004, p.79). O mesmo

154 tipo de posicionamento é tomado por Samuel Richardson em Pamela, no qual afirma apenas transcrever as cartas da personagem que haviam sido recuperadas, e por Daniel Defoe, que aparece em seu prefácio como aquele que publica o diário de Robinson Crusoe. Mas essa prática de ―negação de autoria‖ é muito mais complexa do que uma simples afirmativa no início de um livro. A começar, como aponta Lennard Davis, para a diferença entre as posições assumidas, por exemplo, entre Cervantes e Defoe. Davis afirma que, apesar de explicar no início do romance que a história havia sido originalmente escrita por Benengeli, em seu primeiro prefácio Cervantes admite que seu trabalho é um relato de ficção fruto de sua imaginação, o que deixaria claro que a figura do mouro narrador também faz parte dessa história. Defoe, ao contrário, insiste na veracidade das histórias que narra, a ponto de escrever, no prefácio de Roxana, que esse romance é baseado ―in truth of fact; and so the work is not a story, but a history‖215 (Defoe, 1996, p.1). O autor assim acaba por se distanciar do papel de criador daquela obra e, em ultima instância, quebra a sua própria conexão com ela, centralizando o foco então apenas no protagonista da história (Davis, 1983, p.16). O efeito, para Davis, é que a leitura da obra será sempre afetada por esse duplo enquadramento, o primeiro, dito, de que a história é real, e o segundo, anterior mas não-dito, de que aquela história é ficção, mergulhando o leitor em um estado de ambivalência do qual não há saída: ―É essa reação ambivalente – uma incerteza sobre a realidade factual ou ficcional da obra – que eu defendo ter sido um dos principais componentes na fenomenologia da leitura durante o início do século XVIII e a qual estava largamente ausente quando Cervantes escreveu‖ (Davis, 1983, p.24, tradução minha). Contudo, essa prática não era exatamente uma novidade quando Defoe resolveu adotá-la. Baladas satíricas e relatos de memória de criminosos que circulavam no século anterior já faziam esse tipo de afirmação, e mesmo Aphra Benn já afirmava em Oroonoko, publicado em 1688, que sua narrativa não trazia um herói falso nem uma história verdadeira enfeitada, apenas o relato simples que ela disponibilizava para o mundo, ―there being enough of reality to support it, and to render it diverting, without the addition of invention‖216 (Behn, 1992, p. 75). Mary Delarivière Manley também parece se preocupar com aquele mesmo problema, cinquenta anos antes de Samuel Johnson, sobre o paradoxo de se escrever a verdade, porém com cuidado sobre seus efeitos morais, ao afirmar que ―… there are truths that are not always probable; as for example, ‗tis an allowed truth in the Roman history that Nero put his mother to death, but ‗tis a thing against all reason and probability that a son

215 ―na verdade do fato, logo o trabalho não é uma estória, mas uma história‖ (tradução minha). 216 ―contendo realidade o suficiente para apoiá-lo e para torná-lo divertido, sem a adição de invenções‖ (tradução minha).

155 should embrue his hand in the blood of his own mother‖217 (Manley, 1971, p.5). Para Davis, Manley está dizendo que existem dois tipos de verisimilitude, uma de fato e uma moral, e o escritor deveria se preocupar então mais com a segunda do que com a primeira (Davis, 1983, p.111). O posicionamento de Daniel Defoe de se colocar como editor de uma história verídica não pode ser considerado, portanto, uma novidade. Mas é interessante notar que essa questão começava a incomodar algumas pessoas pelo fato de Defoe ter sido abertamente questionado sobre essa sua afirmação por um certo Charles Gildon em 1719, mostrando uma mudança que nascia a respeito dessa ―negação de autoria‖ que, como vimos, parecia ser uma convenção da época. Lennard Davis afirma que o livro de Gildon foi um dos poucos que ele encontrou que especificamente ataca uma obra com a acusação de que é fictícia – não que de é uma mentira, uma difamação ou uma distorção, mas simplesmente uma ficção (Davis, 1983, p.156). A resposta de Defoe a Gildon apenas complica ainda mais esse cenário, pois no prefácio para a segunda continuação das aventuras de Robinson Crusoe, ele coloca a própria personagem se defendendo daquelas acusações: ―I, Robinson Crusoe, being at this time in perfect and sound mind and memory, thanks be to God therefor, do hereby declare their objection is an invention scandalous in design, and false in fact; and do affirm that the story, though allegorical, is also historical; and that it is the beautiful representation of a life of unexampled misfortunes…‖218 (Defoe, 1974, p.ix). Como afirma Davis, o tom legal dessa passagem é tão mais impressionante se pensarmos que a personagem que está afirmando a sua veracidade é, ela mesma, ficção (Davis, 1983, p.158). Uma ambiguidade semelhante também envolveu a publicação de Pamela, em 1740, de Samuel Richardson. Apresentando-se apenas como o editor das cartas reais da personagem principal, Richardson usou também daquela prática de negação de autoria em sua obra e acabou abrindo espaço para outros escritores se aproveitarem do sucesso de Pamela e desse enquadramento ambivalente sobre a história ser verídica ou não. Por exemplo, logo em 1741 foi publicado um livro sobre a vida de Lady Hesilrige como sendo a verdadeira Pamela, e uma continuacão para o livro de Richardson foi publicada por dois livreiros, Chandler e Kelley, que afirmavam ter a posse das cartas e outros documentos ―originais‖ de Pamela. Para

217 ―existem verdades que não são sempre prováveis, como, por exemplo, é uma verdade reconhecida na história romana que Nero matou sua mãe, mas trata-se de algo contra toda a razão e probabilidade que um filho manche suas mãos com o sangue de sua própria mãe‖ (tradução minha). 218 ―Eu, Robinson Crusoe, estando neste momento perfeitamente são de mente e memória, graças a Deus, declaro por meio desta que as suas objeções são uma invenção escandolosa na formação, e falsa no fato, eu afirmo que, ainda que alegórica, a estória é também histórica, e que é uma bela representação de uma vida de infortúnios sem precedentes‖ (tradução minha).

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Lennard Davis, Richardson estava preso a uma situação sem solução, pois ao afirmar que seu livro narrava uma história verdadeira a partir de documentos existentes, ele não tinha como impedir que outras pessoas afirmassem ter a posse desses mesmos documentos e escrever suas versões e continuações para a sua obra. Ao mesmo tempo, se Richardson quisesse se colocar como o autor original e central de Pamela, ele teria que admitir que se tratava de uma obra de ficção conectada somente com a sua imaginação (Davis, 1983, p.181). Para complicar ainda mais esse cenário, temos também o caso de Henry Fielding, uma exceção porque em nenhuma de suas obras ele afirma estar narrando uma história verdadeira ou ser o editor de algum documento, porém inclui abertamente em seus livros acontecimentos reais conhecidos pelos leitores. Por exemplo, em Tom Jones, eventos da Rebelião Jacobita de 1745, que ocorria enquanto Fielding escrevia esse romance, são entrelaçados com os destinos de suas personagens. Os detalhes são tão minuciosos que é possível conectar datas com o que é mostrado no livro, como uma lua cheia de uma semana específica que foi utilizada para iluminar a fuga da personagem Mrs. Water (Davis, 1983, p.201). A consequência irônica desse ―novo tipo de escrita‖ criado por Fielding é que, segundo Davis, os leitores consideravam seu livro muito ―jornalìstico‖ para ser considerado um romance, apesar de ele se colocar abertamente como um autor de ficção. As incongruências aparecem também na crìtica de Samuel Richardson ao seu trabalho, ―too verisimilitudinous and therefore not artistic enough‖219, acusando Fielding de copiar demais a vida sem a intervenção da invenção (Davis, 1983, p.208). A maneira correta para Richardson parecia ser então escrever ficção, chamá-la de real, mas não utilizar o real. Não é à toa que o gênero do romance confundia as pessoas sobre a sua natureza, e continuou fazendo-o por muitas décadas ainda. Quase quarenta anos depois da publicação de Tom Jones e sessenta da acusação de Charles Gildon contra Daniel Defoe, a ambiguidade relativa à prática da ―negação de autoria‖ ainda ocorria, como pode ser observado no prefácio de Evelina. Como vimos, Frances Burney defende os autores de romances, grupo no qual parece se incluir, ao mesmo tempo em que questiona os efeitos morais desse gênero. Contudo, mais a frente, Burney afirma que ―The following letters are presented to the public with a very singular mixture of timidity and confidence, resulting from peculiar situation of the editor (…). To draw characters from nature, though not from life, and to mark the manners of the times, is the

219 ―verossimilhante demais e portanto não artìstico o suficiente‖ (tradução minha).

157 attempted plan of the following letters‖220 (Burney, 2000, p.95). Essa passagem nos mostra a posição oscilante de Burney, que se coloca como editora das cartas que apresenta no livro ao mesmo tempo em que parece indicar que elas são criação sua e não de uma Evelina real, por exemplo, ao explicar os seus objetivos. Após todos esses exemplos, podemos concluir, como coloca Lennard Davis, que os leitores no fim do século XVII e durante o século XVIII não tinham como presumir de forma rotineira, como os críticos modernos fazem, que as obras que eles liam eram ficção (Davis, 1983, p.23). Essa ambivalência não ficou restrita aos romances, e atingia também os gêneros de escrita tradicionalmente associados com o real, como o Jornalismo e a História, pois se a ficção pode ser factual, então relatos factuais também poderiam ser fictícios. A título de exemplo, vimos anteriormente Defoe afirmar a veracidade de sua obra de ficção ao declará-la não story, mas history. Antes de comentar essa oposição, observemos como ela aparece em outros termos em Northanger Abbey em um diálogo entre Catherine Morland, aquela heroína de Jane Austen que adorava romances góticos, e o jovem Mr. Tilney:

Catherine: But you never read novels, I dare say? Mr. Tilney: Why not? Catherine: Because they are not clever enough for you; gentleman read better books. Mr. Tilney: The person, be it gentleman or lady, who has not pleasure in a good novel, must be intolerably stupid. (…) Catherine: I‘m very glad to hear it, indeed; and now I shall never be ashamed of liking [The mysteries of] Udolpho myself. But I really thought before, young men despised novels amazingly. Mr. Tilney: It is amazingly; it may well suggest amazement if they do, for they read nearly as many as women. I, myself, have read hundreds and hundreds. Do not imagine that you can cope with me in a knowledge of Julias and Louisas. (…) [Udolpho] It is a most interesting work. Are you fond of that kind of reading? Catherine: To say the truth, I do not much like any other. Mr. Tilney: Indeed! Catherine: That is, I can read poetry and plays, and things of that sort, and I do not dislike travels. But history, real solemn history, I cannot be interested in. Can you? Mr. Tilney: Yes, I am fond of history. Catherine: I wish I were too. I read it a little as a duty; but it tells me nothing that does not either vex or weary me. The quarrels of popes and kings, with wars or pestilences in every page; the men are all so good for nothing, and hardly any women at all, it is very tiresome; and yet I often think it odd that it should be so dull, for a great deal of it must be invention. The speeches that are put into the heroes‘ mouths, their thoughts and designs: the chief of all this must be invention and invention is what delights me in other books.221 (NA, pp.95-97)

220 ―As cartas a seguir são apresentadas ao público com uma mistura singular de timidez e confiança, resultado de uma situação peculiar do editor (…). Retirar personagens da natureza, ainda que não da vida, e marcar as maneiras do tempo, é o plano objetivado das cartas a seguir‖ (tradução minha). 221 ―‗Mas eu arrisco dizer que você nunca lê romances?‘ ‗Por que não?‘ ‗Porque eles não são inteligentes o suficiente para você; um cavalheiro lê livros melhores.‘ ‗A pessoa, seja ela cavalheiro ou dama, que não tem prazer em um bom romance, deve ser intoleravelmente estúpida.‘ ‗Estou muito feliz de ouvir isso, e agora eu nunca vou ter vergonha de gostar de [Os mistérios de] Udolpho. Mas eu realmente pensava antes que homens jovens desprezavam romances surpreendentemente.‘ ‗É surpreendente, e pode até sugerir surpresa se eles desprezam, pois eles leem tantos quanto as mulheres. Eu mesmo já li centenas e centenas. Não imagine que você possa me superar no conhecimento de Julias e Louisas. [Udolpho] é uma obra muito interessante. Você gosta

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Austen inicia o diálogo novamente defendendo o bom romance: aquela pessoa que não acha prazer nesse tipo de leitura deve ser estúpido. Depois coloca Mr. Tilney afirmando sem qualquer traço de vergonha ou autocondenação que ele próprio é um grande leitor de romances (―hundreds and hundreds‖), sendo ele um jovem pároco, de rica família e formado em Oxford, o qual, segundo a visão de Catherine, deveria ler livros mais inteligentes. A própria Catherine, então, participa da imagem negativa dos romances como livros ruins (―not clever enough‖), mesmo sendo uma leitora ávida. E Tilney a deixa ainda mais chocada com a afirmação de que os homens leem tantos romances quanto as mulheres – aparentemente, apenas negam isso. Depois o diálogo segue para uma discussão sobre outras formas de literatura, e a visão de Catherine sobre livros de História apresenta dois pontos muito importantes: primeiro, que ela não consegue encontrar interesse nessa leitura. Vale lembrar a forma como Austen questionou os registros oficiais em seu manuscrito de Juvenilia The History of England, o qual é comumente tomado como brincadeira de criança por conta do seu tom jocoso e das ilustrações caricatas feitas por Cassandra Austen. Mas ao se colocar como uma historiadora parcial, preconceituosa e ignorante, Austen estende os adjetivos aos autores que quer contrariar. Nessa passagem de NA, além de apontar para o caráter tendencioso da história oficial, ela também registra a ausência de mulheres nesse gênero de escrita – ―hardly any women at all‖, a História até então, e por muitos anos ainda, seria apenas masculina, sobre papas e reis e suas guerras. O segundo ponto importante é o descontentamento de Catherine com o gênero da História pois, se a maior parte dele é invenção, como pode ser tão chato se a invenção é o que mais a agrada nos romances? Chegamos então novamente na questão de que, até pelo menos o século XIX e o positivismo de Leopold Von Ranke, a História não era um discurso que se pensava baseado estritamente em fatos ou no relato do que verdadeiramente aconteceu222. Logo, a percepção de Catherine condiz com seu tempo e nos mostra como realidade e fantasia se misturavam tanto na Literatura quanto na História, e não podemos afirmar que havia um desse tipo de leitura?‘ ‗Para dizer a verdade, não gosto muito de nenhuma outra.‘ ‗É mesmo?‘ ‗Quer dizer, eu posso ler poesia e peças e coisas desse tipo, e relatos de viagens não me desagradam. Mas história, real e solene história, eu não consigo me interessar. E você?‘ ‗Sim, eu gosto muito de história.‘ ‗Eu gostaria de gostar também. Eu li um pouco como dever, mas história não me diz nada que não me atormenta ou me cansa. As brigas de papas e reis, com guerras ou pestilências em todas as páginas, os homens não servem para nada, e quase nenhuma mulher, é muito cansativo. E ainda assim eu penso que é estranho que seja tão chata, pois a maior parte da história deve ser invenção. Os discursos que são colocados nas bocas dos heróis, seus pensamentos e planos: a maior parte disso tudo deve ser invenção e invenção é o que me dá prazer em outros livros‘‖ (tradução minha). 222 A percepção de Catherine, na verdade, parece até muito próxima de posições recentes a respeito do discurso histórico. Sobre isso, cf. White, Hayden Trópicos do Discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 2001; JENKINS, Keith A História Repensada. São Paulo: Contexto, 2001; e GAGNEBIN, Jeanne Marie ―O inìcio da História e as lágrimas de Tucìdides‖ in Sete aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago, 2005, pp.13-36.

159 consenso sobre o que as pessoas da época esperavam de cada gênero. Quando Defoe chama sua obra de ficção history e não story, ele está contribuindo para essas fronteiras nebulosas entre gêneros nascentes de escrita. Para Lennard Davis, mesmo durante o século XVI os relatos históricos ou o que chamaríamos hoje de jornalísticos importavam mais pelas lições que eles poderiam ensinar do que pela sua autenticidade. Na verdade, Davis afirma, se eles não fossem novos ou exatos ou mesmo se fossem até totalmente fabricados, ainda poderiam servir a esse propósito pois, na verdade, quanto mais um evento fosse examinado, mais rapidamente seu exemplo moral seria divulgado (Davis, 1983, p.69). No século seguinte, os romances franceses se preocupavam em seguir uma regra de ―vraisemblance‖, segundo a qual, apesar de a obra ser fictìcia, as suas fundações deveriam ser verdadeiras e as personagens deveriam estar de acordo com a realidade histórica, mesmo que suas aventuras fossem inventadas (Davis, 1983, p.28). Essa teoria de vraisemblance não pode ser confundida com uma teoria de realismo, e nem mesmo com o tipo de realismo que Defoe, Richardson ou Fielding buscavam, pois, segundo Davis, o objetivo era apenas construir um cenário localizado no período clássico, a partir do qual, o protagonista teria suas aventuras e conquistas amorosas, ainda que irreais, indicando que o compromisso do autor era com uma exatidão ―histórica‖ mas não em relação à ação, pensamento, etc. (Davis, 1983, p.32). Assim, Davis conclui, enquanto o romance afirma que seu herói existiu no passado, mas as aventuras narradas são inventadas, o novel afirma que suas histórias são reais, porém os heróis nunca existiram de fato (Davis, 1983, p.35). Como colocou a escritora Clara Reeve, os romances – aqui ela se refere principalmente aos romances franceses do século XVII – ao usar como base partes obscuras da verdadeira história para construir histórias ficcionais sobre ela, conseguiram misturar verdade e ficção de tal forma que o leitor comum não consegue mais distingui-las (Reeve, 1930, p.64). O século XVIII testemunhou, portanto, muitos conflitos que surgiram a partir da tentativa de separar os gêneros e criar o que viria a ser a História, o Jornalismo e o Romance. A disseminação da tecnologia da imprensa foi mais um fator que contribuiu para a instabilidade de distinções entre esses gêneros naquela época, como aponta Michael Mckeon. Para esse autor, a imprensa contribuiu para reforçar uma ideia de verdade objetiva associada ao texto impresso porque o seu potencial de verificação era muito poderoso e era apoiado pela própria historicidade do ato de imprimir, o qual, por sua vez, emprestava historicidade à informação contida no papel (McKeon, 2002, p.46). A existência de algo impresso passa a ser garantia de sua autenticidade, mas como McKeon coloca, essa importância atribuída ao papel impresso também é histórica. Somente a partir da segunda metade do século XVII, aponta

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Lennard Davis, podemos encontrar o nascimento dessa legitimação, culminada, por exemplo, na prática de o Banco da Inglaterra passar a imprimir papel-moeda no fim desse século e as pessoas aceitarem esse papel como símbolo e garantia da autoridade daquela instituição (Davis, 1983, p.138). Contudo, para Davis, o principal efeito da imprensa sobre o romance foi a possibilidade de que relatos sobre eventos fossem publicados de forma relativamente instantânea, fazendo com que a narrativa pudesse incorporar, em suas palavras, um sentimento de ―recentness‖, de registrar o que era novo, ou ―novel‖ (Davis, 1983, p.48). Essa percepção de uma certa imediatez é mais uma característica que vai ser incorporada pelo romance moderno que aproxima o leitor da história que está sendo narrada, contribuindo com o efeito de vicariedade entre leitor e personagem. Apesar de existir, em culturas de narrativas orais, uma proximidade física entre o narrador e aqueles que o escutam, o romance impresso torna-se mais poderoso ao permitir, como diz J. Paul Hunter, que o leitor responda sozinho, como indivíduo, aos dramas vividos pelas personagens, e não mais como um grupo formado pelas mesmas premissas sociais e morais que criavam um tipo de expectativa comum (Hunter, 1999, p.41). É o romance impresso que permite, por exemplo, que os leitores leiam as cartas de Clarissa e Pamela em uma espécie de voyeurismo não muito diferente daquele praticado pelos seus sedutores Lovelace e Mr. B e esse voyeurismo, para Davis, é mais um traço essencial do romance e da sua prática de trazer para o público o mundo privado (Davis, 1983, p.188). O que podemos observar a partir dessa discussão sobre as origens do romance e o seu realismo é que a dicotomia construída entre romance e novel é frágil e muitas vezes resultado de uma história literária que apaga as conexões entre essas formas e que, como afirma John Richetti, foi construída como a vitória de um realismo iluminista sobre um romanesco reacionário em uma linha evolutiva forçada (Richetti, 1992, p.2). Mas as diferenças entre o romance moderno e o anterior podem ser tão simples como a descrição irônica do jovem George Canning, futuro Primeiro-Ministro da Inglaterra, publicada em um ensaio em 1787. Ele afirma que o primeiro fora modernizado, em certo ponto, ―by the transformations of merciless giants into austere guardians, and of she-dragons into maiden aunts. We must be contented also that the heroine, though retaining her tenderness, be divested of her royalty, and in the hero we must give up the knight-errant for the

161 accomplished fine gentleman‖223 (Canning, 1787, p.342.). As diferenças, portanto, não são tão grandes como alguns críticos as queriam. Para J. Paul Hunter, essa é uma das consequências da rápida aceitação da distinção proposta por Clara Reeve, apesar de ela não ser diretamente responsável por isso, que disseminou a ideia de que a relação entre romance e novel é a de uma ligação pai-filho. Segundo Hunter, essa ligação foi construída teleologicamente, e se o primeiro precisa ser diferenciado do último, ou mesmo se ele realmente foi visto como uma alternativa, não é uma conclusão automática que o novel é descendente do romance, ou que nós devemos procurar por suas raízes ali, ou até mesmo que a história do novel esteja necessariamente localizada na ficção anterior (Hunter, 1999, p.28). Como mencionei brevemente, um dos responsáveis por essa distinção foi o escritor Walter Scott, o qual, segundo Nancy Armstrong, como autor de romances históricos que ajudaram a construir a ideia da nação britânica, ele sentia a necessidade de distinguir suas obras das formas narrativas anteriores, entre elas especialmente o gótico, que continuava, ainda na primeira década do século XIX, a manter um relativo sucesso de público (Armstrong, 2005, p.7). Scott, assim, empreendeu a fazer a sua própria história do novo gênero do romance, localizando a sua modernização ou maturação em Jane Austen – dando o primeiro passo para a análise de críticos como F. R. Leavis e Ian Watt que apareceria um século depois. No ensaio que escreveu sobre Emma, Scott mostra a sua ideia de um novo parâmetro para se avaliar romances a partir da sua arte ―of copying from nature as she really exists in the common walks of life‖224 (Scott, 1968, p.230), a qual seria o oposto de uma narrativa anterior recheada de situações exóticas e sentimentalismo extravagante. Ele consolida, então, aquela tradição de diferenciar o romance moderno e as narrativas anteriores a partir de seu compromisso com a verdade e com a probabilidade. Contudo, surge agora uma pergunta muito importante para este trabalho: como o romance moderno pulou então desse querer ―ser real‖ no século XVIII para trazer o ―ideal‖, o sonho, as fantasias impossìveis nos séculos XX e XXI? A primeira hipótese que podemos levantar é a respeito do ―esquecimento‖ da ambivalência inerente ao romance apontada por Lennard Davis. Para esse autor, romances são necessariamente obras enquadradas em algum tipo de imagem ou moldura (como aquele alerta ―este livro é baseado em fatos reais‖), mesmo se essas imagens não são aparentes, e tratam a oposição entre fato e ficção de forma incerta, oscilante. No entanto, perceber essa

223 ―pelas transformações de gigantes cruéis em guardiões austeros, e de dragões em tias solteiras. Nós devemos nos contentar também que a heroína, apesar de reter sua gentileza, foi despida de sua realeza, e do herói nós abrimos mão do cavaleiro errante pelo cavalheiro belo e talentoso‖ (tradução minha). 224 ―de copiar da natureza o que ela realmente existe nos caminhos comuns da vida‖ (tradução minha).

162 ambivalência não significa extirpá-la, e para Davis, o leitor moderno não está mais livre dessa confusão do que um leitor do século XVIII. O leitor moderno está, em suas palavras, apenas mais aculturado com as regras básicas dessa ambivalência como parte do discurso da leitura, o que tornou as contradições dos ―factual fictions‖ tão evidentes a ponto de serem triviais e, portanto, invisíveis (Davis, 1983, p.222). Essa invisibilidade pode ser a base para uma leitura da ficção não como fato, mas como possibilidade. Era necessário somente um pequeno passo a mais para que a possibilidade se transformasse então em desejo. A segunda hipótese está relacionada com uma crítica à história da origem do romance que associa a fantasia ao romance e a realidade ao novel. Se concordamos com a presença de uma ambivalência entre fato e ficção no gênero, por que não aceitar também a permanência da fantasia e do improvável, apesar dos esforços de muitos escritores do século XVIII para extingui-los? Dessa forma, é possível considerar que a mistura do real, do cotidiano e do familiar com a fantasia fez com que esta se tornasse real, ou pelo menos possível, e não o contrário, ter a sua improbabilidade escancarada. Como, segundo Richetti, ambas as formas, romance e novel, são responsáveis pela emergência de uma ―arte de massas‖ que fornece uma identificação prazerosa e repetitiva entre as personagens a um largo público (Richetti, 1992, p.5), o seu resultado é a produção incansável de romances ultrarromânticos, hoje e naquela época, que, ao invés de serem lidos como ficção, são lidos com esperança: em outras palavras, parece que a presença do real, de uma forma legitimadora, possibilita a crença na fantasia. E quanto mais livros você lê com essa fórmula, mais você acredita nela. Ian Watt percebeu esse aspecto ao analisar o sucesso de Pamela de Samuel Richardson e afirma que a combinação de fantasia e do que ele chama de realismo formal ―satisfaz as aspirações românticas do leitor num roteiro literário que apresenta um cenário tão completo e um relato tão detalhado das ideias e dos sentimentos que faz parecer verdade literal o que não passa de gratificação irreal dos sonhos do leitor‖, tendo, como resultado, o poder de confundir ―realidade e sonho mais insidiosamente que qualquer gênero de ficção anterior‖ (Watt, 2010, p.216). Se tomarmos como exemplo as continuações de O&P, ou até mesmo essa Regencymania percebida pelos críticos atuais, perceberemos que nelas não há um trabalho com a realidade, mas sim uma fonte de escapismo. O romance Confessions of a Jane Austen Addict pode ser uma boa ilustração para esse ponto. Nele encontramos uma fuga literal quando a personagem principal, Courtney Stone, viaja no tempo trocando de corpo com uma jovem da época de Austen, Miss Jane Mansfield. O funcionamento da troca não é explicado,

163 mas parece estar relacionado com um momento de crise vivido por Courtney após o rompimento de seu noivado, em que busca consolo nos romances de Austen:

That‘s when I decided to order myself a large clam-and-garlic pizza and reread Pride and Prejudice. I would self-medicate with fat, carbohydrates, and Jane Austen, my number one drug of choice, my constant companion through every breakup, every disappointment, every crisis. Men might come and go, but Jane Austen was always there. In sickness and in health, for richer, for poorer, till death do us part.225 (RIGLER, 2008, p.33)

Há nesse romance uma nostalgia por um período anterior da história que é visto como mais simples do que a vida caótica atual, e os romances de Austen são a porta para uma viagem – magicamente literal nesse caso – a esse mundo sonhado da era regencial inglesa. A fantasia é o centro dessas continuações, e apesar de parecer se chocar com a proposta do gênero que queria ser real/realista, muitos críticos apontam para as continuidades das formas literárias anteriores, ou como o romance se infiltrou dentro do novel, e cujo maior produto talvez tenha sido o romance gótico. De qualquer forma, segundo Vasconcelos, essa permanência explica muitos aspectos que não se encaixam dentro do argumento que vimos em Reeve do real versus fantasia, como, por exemplo, ―a reatualização do mito da Cinderela em um romance como Pamela”, que nos mostra que, ao invés de uma ―forma pura‖, o romance moderno é, na verdade, um vira-lata, uma forma ―desprovida de regras fixas e imutáveis‖ (Vasconcelos, 2002, p.29).

Parte 2. A Fantasia do Coração 2.1 – A superioridade do sentimento

A primeira grande obra de Samuel Richardson, Pamela, or The Virtue Rewarded, já foi mencionada aqui algumas vezes. Sua importância não está restrita ao seu papel na história do gênero ou, mais especificamente, no surgimento do romance moderno inglês, mas também aparece como a fundadora de uma febre por histórias sentimentalistas cuja fórmula basicamente trazia uma heroína, de condição relativamente mais pobre, que supera os mais diversos obstáculos para alcançar a felicidade eterna casando-se com o herói rico e cavalheiro. No primeiro romance de Richardson, esse desfecho é ainda mais satisfatório na medida em que, por sua constante conduta moral impecável, Pamela, uma simples empregada doméstica,

225 ―Foi quando eu decidi pedir uma pizza grande de mexilhões e alho só para mim e reler Orgulho e Preconceito. Eu iria me automedicar com gordura, carboidratos e Jane Austen, minha droga preferida, minha constante companhia em todas as separações, decepções, crises. Homens podiam ir e vir, mas Jane Austen estava sempre lá. Na saúde e na doença, na riqueza ou na pobreza, até que a morte nos separe‖ (tradução minha).

164 consegue ―reformar‖ o aristocrata e sedutor Mr. B, salvando-o de uma vida pecaminosa e transformando-o no herói romântico da história. Daì o subtìtulo: ―a virtude recompensada‖. O fato de ter sido escrito como cartas é uma das suas características que mais contribuíram para o seu sucesso na época, pois o gênero epistolar fornecia a Richardson a possibilidade de retratar aquele momento no qual ―o coração é agitado por esperanças e medos‖ (Richardson, 1972, p.4, tradução minha). Os leitores foram arrebatados então pela espontaneidade e pela sinceridade que encontraram nas cartas, o que, como nos lembra Ian Watt, fez com que eles encontrassem nesse romance ―o registro completo dos próprios sentimentos e o mesmo mergulho num mundo imaginário vibrante de relacionamentos pessoais mais satisfatórios que os da vida real‖ (Watt, 2010, 206). A identificação dos leitores era resultado, portanto, da abertura total da consciência e dos sentimentos das personagens, que se tornavam assim pessoas tão reais ao ponto de vários colegas de Richardson afirmarem em cartas enviadas ao autor que estavam literalmente apaixonados pela heroína. Para Euphrasia, a personagem de Clara Reeve em The Progress of Romance, as belas maneiras e a simplicidade da linguagem usada pela jovem empregada ―find a short way to the heart, which it engages by its best and noblest feelings‖, e tamanha é a força com que essa história conversa com o seu coração que a faz afirmar ―I should want no other criterion of a good or bad heart, than the manner in which a young person was affected, by reading Pamela‖226 (Reeve, 1930, p.135). Podemos perceber nesses trechos de Reeve a importância do coração para a avaliação do caráter de uma pessoa. Tudo pode ser perdoado se o coração for bom, como foi provado pela mudança radical que Pamela provocou em Mr. B. Ela perdoou todos os sofrimentos que ele lhe causara, as perseguições e as ameaças de abuso sexual, para se casar com ele depois que ele se arrependera de tudo o que tinha feito. O coração, portanto, é mais importante, ou guarda a verdade mais pura sobre uma pessoa, do que qualquer atitude que ela possa ter. Trata-se, claro, de uma ideia divulgada pelo sentimentalismo que Richardson ajudou a criar com Pamela. Para Janet Todd, a ficção sentimental que foi tão popular durante as décadas de 1740 até 1770 nasceu em parte da literatura amorosa anterior, a ―Amatory Fiction‖, de escritoras como Aphra Behn, Mary Delarivière Manley e Eliza Haywood, a qual opunha a inocência e sensibilidade femininas à libertinagem e poder econômico dos homens aristocratas, abordando questões complexas sobre desejo sexual, sedução e até estupro de forma eufemística dentro de uma já convencional trama de intrigas amorosas que leva a um

226 ―encontra um atalho para o coração, o qual engaja pelos seus melhores e mais nobres sentimentos‖ / ―Eu não precisaria de nenhum outro critério para definir um bom ou mau coração além da maneira pela qual um jovem é afetado ao ler Pamela‖ (tradução minha).

165 casamento ou à morte (Todd, 1986, p.65). Como vimos na parte anterior, escritores como Richardson e Fielding incorporaram essa literatura, tornando-a respeitável e moralizante, condenando os prazeres ilícitos que ela divulgava ao mesmo tempo em que se alimentavam das intrigas amorosas que faziam o seu sucesso. Richardson, porém, foi ainda mais longe ao criar personagens que possuíam uma natureza sentimental que as tornava, por um lado, excluídas da sociedade cruel em que viviam e, por outro, detentoras de uma virtude que resistia inabalável frente a qualquer obstáculo que essa sociedade poderia lançar em sua direção. A febre de Pamela deve ser explicada não só pela popularidade da fórmula criada por Richardson, mas também pela controvérsia que a sua trama gerou. Segundo Thomas Keymer e Peter Sabor, rapidamente as pessoas se dividiram em ―Pamelists‖ – aqueles que acreditavam na pureza da heroína, em sua honestidade e virtude e no final feliz como merecido – e os ―Anti-Pamelists‖, que defendiam que a sua pureza era na verdade um artifício, uma forma de seduzir Mr. B e fazer com que ele se casasse com ela (Keyner e Sabor, 2001, p.xvii). A controvérsia, que abrangia diferenças ideológicas sérias, alimentou a popularidade da obra, obviamente, e gerou várias continuações e variações que defendiam um ou outro lado. A mais famosa com certeza é Shamela (1741), de Henry Fielding, um burlesco ridículo e rápido da narrativa da heroína, que obedece à linha básica da trama de Richardson enquanto reverte de forma caricata a sua premissa central, a paródia de Fielding definiu os termos predominantes para outras interpretações hostis que iriam aparecer em seguida: Mr. B, o predador sexual de Richardson, se torna o domesticado e maleável Squire Booby, enquanto a verdadeira predadora é a própria Shamela, não mais o exemplar pio de Richardson mas um modelo de perfeição falso que planeja esquemas e abre seu caminho para a riqueza e o status social com sexo. (KEYMER e SABOR, 2001, p.LI, tradução minha)

O sucesso de Pamela, dessa forma, parece estar ligado tanto à moda do sentimentalismo quanto à sua condenação. E de forma colateral, o mercado editorial foi o que mais se beneficiou da controvérsia, já que, como notou um vizinho de Richardson, Solomon Love, a obra inspirou um sem número de cópias, apropriações, ensaios, críticas e paródias (Keymer e Sabor, p.xiii), uma onda de apropriações não-autorizadas, um festival para Grub Street no qual um exército faminto de oportunistas e parasitas se alimentava (―these poachers in literature‖, segundo a declaração de um amigo de Richardson) 227 (idem). Para Keyner e Sabor, toda essa produção literária foi um evento importante para a história da imprensa, para

227 ―Grub Street‖ é o nome da rua na qual funcionavam pequenas casa de impressão e livreiros, e na qual moravam escritores pobres em início de carreira ou que eram contratados para escrever sobre qualquer coisa (os ―hack writers‖), tornando-se um termo pejorativo para indicar o mercado literário da Inglaterra no período. Por exemplo, se uma obra fosse considerava ―grubstreet‖, ela era de má qualidade literária. Já a expressão ―these poachers in literature‖ pode ser entendida como os ―ladrões de literatura‖, já que o termo ―poacher‖ indicava os caçadores ilegais que invadiam as propriedades aristocratas no campo.

166 a história da cultura de consumo e para a história do gênero do romance, ilustrando o dinamismo, a receptividade e o vigor da Grub Street do século XVIII (idem, p.xvii). O que nos leva a outro ponto importante sobre a disseminação da fantasia da ficção amorosa e sentimental: a transformação gradual do livro de um artigo de luxo com valores proibitivos, presente somente nas bibliotecas das grandes mansões, para mercadorias que poderiam ser facilmente consumidas pela classe média inglesa. Isso se deve a muitos fatores, porém gostaria de destacar dois deles: O primeiro, como vimos aqui, é a força do romance como gênero popular que suplantou outras formas literárias que necessitavam de uma educação formal para serem compreendidas. O segundo é o surgimento das chamadas circulating libraries, que permitiu que as pessoas não precisassem mais comprar os livros, apenas pagar uma taxa anual de adesão relativamente barata para poderem ter acesso ao acervo dessas bibliotecas. As circulating libraries começaram a surgir no começo do século XVIII, mas se multiplicaram substancialmente na década de 1740 (Todd, 1986, p.12). O discurso proferido para a instituição dessas bibliotecas era muitas vezes cheio de nobres intenções – segundo Towsey, eram divulgadas como um veículo para a transmissão de ideias superiores a uma audiência maior e mais espalhada (Towsey, 2010, p.92) – mas o fato é que muito facilmente o livro foi percebido pelos editores, livreiros e donos dessas bibliotecas como uma mercadoria a ser consumida e descartada rapidamente. A diferença em relação à literatura ―superior‖ cultivada pelas elites em suas bibliotecas privadas não poderia ser mais gritante. Como afirma William Warner, os romances, publicados de forma anônima ou por autores emergentes sem patronos ou status social, apareciam como criações irresponsáveis, concebidas somente para satisfazer qualquer desejo que levasse a vendas (Warner, 1994, p.4). Nesse sentido, o romance foi o primeiro livro ―descartável‖, escrito e produzido de forma consciente para se tornar obsoleto rapidamente e sem qualquer pretensão de contribuir para a ―alta‖ cultura. Em outras palavras, o romance removeu a santidade do livro (Warner, 1994, p.4). O fato de o romance moderno inglês ter surgido junto com o aumento gradual dos leitores, associado à disseminação do hábito da leitura e à possibilidade de acesso ao livro pelas classes mais baixas, permitiu, com seu apelo popular, que o mercado entrasse com um grande poder para definir o que as pessoas iriam ler, produzindo histórias de qualidade muito ruim apenas para serem vendidas rapidamente, atendo-se às formulas e gostos de sucesso. E o alvo principal desse mercado era as mulheres. Segundo Anne Mellor, já no começo do século XIX as mulheres dominavam tanto a produção quanto o consumo de romances, incentivadas pelas editoras e pelas circulating libraries que se especializavam em oferecer esse tipo de

167 obra (Mellor, 1994, p.327). Críticas, claro, não demoraram a surgir. Além daquele discurso a respeito dos efeitos morais que os romances poderiam infligir aos seus leitores, a transformação do livro em mercadoria e a consequente produção de romances muito ruins alimentavam as reclamações. Esse discurso moralista não escapou à Jane Austen que, como vimos em Northanger Abbey, não hesitou em defender o gênero do romance, mesmo ela produzindo paródias extremamente perceptivas dos clichés sentimentalistas desde a sua juventude, e tendo sido membro de algumas circulating libraries durante a sua vida. Sobre isso, escreveu para Cassandra em 18 de novembro de 1798: I have received a very civil note from Mrs Martin requesting my name as a Subscriber to her Library which opens this 14th of January, & my name, or rather Yours is accordingly given. (…) As an inducement to subscribe Mrs Martin tells us that her Collection is not to consist only of Novels, but of every kind of Literature &c &c – She might have spared this pretension to our family, who are great Novel- readers & not ashamed of being so; – but it was necessary I suppose to the self- consequence of half her Subscribers.‖228 (Letters, p.27)

Podemos perceber que Austen, ainda que totalmente consciente da forma como o mercado do romance funcionava baseado em repetições de fórmulas de sucesso, escancarava o discurso contra os romances como mera pretensão de superioridade, muitas vezes hipócrita, por parte de fervorosos moralistas. Em Orgulho e Preconceito, a personalidade arrogante de Mr. Darcy na primeira parte do livro é demonstrada, entre outras situações, através de um comentário que ele faz a respeito de sua biblioteca particular em Pemberley e do que observa como uma negligência em relação a livros: ―I am astonished,‖ said Miss Bingley, ―that my father should have left so small a collection of books. – What a delightful library you have at Pemberley, Mr. Darcy!‖ ―It ought to be good,‖ he replied, ―it has been the work of many generations.‖ ―And then you have added so much to it yourself, you are always buying books.‖ ―I cannot comprehend the neglect of a family library in such days as these.229‖ (O&P, p.41)

Mr. Darcy, o representante da aristocracia aqui, vem de uma tradição na qual livros são artigos de luxo adquiridos apenas por famílias ricas para formarem suas bibliotecas pessoais, que seriam transmitidas de geração em geração. O fato de o pai de Miss Bingley não ter deixado uma grande coleção está atrelado à imagem que homens de negócios, como

228 ―Eu recebi uma mensagem muito educada da Mrs. Martin pedindo meu nome como assinante de sua biblioteca, a qual abre agora dia 14 de janeiro, e o meu nome, ou melhor, o seu, foi dado de acordo. (...) Como um estímulo para a nossa inscrição Mrs Martin nos explica que a sua coleção não vai consistir somente de romances, mas de todos os tipos de literatura etc etc. Ela poderia ter poupado essa pretensão para a nossa família, a qual é uma grande leitora de romances e não tem vergonha de admiti-lo – mas era necessário, imagino, para o orgulho de metade de seus assinantes‖ (tradução minha). 229 ―‗Espanta-me‘, disse a senhorita Bingley, ‗o meu pai ter deixado uma coleção de livros tão pequena. – Que maravilhosa biblioteca você tem em Pemberley, senhor Darcy!‘ ‗Não podia ser diferente‘, ele respondeu, ‗é resultado do trabalho de muitas gerações.‘ ‗E você também acrescentou muito a ela, está sempre comprando livros.‘ ‗Não consigo entender como se pode negligenciar uma biblioteca de famìlia em tempos como estes em que vivemos‘‖ (trad. Alexandre de Souza, p.142).

168 comerciantes, possuíam uma educação inferior à aristocracia e não davam muita importância para a ―cultura‖, apenas para o ―dinheiro‖, mesmo depois de terem alcançado fortuna. Nesses ―dias atuais‖ da história, porém, Darcy parece incomodado com a negligência das pessoas em relação às suas coleções, o que pode muito bem ser interpretado como uma crítica indireta ao crescimento das bibliotecas circulantes, que permitiam que as pessoas lessem sem o custo de comprar os livros – a própria Jane Austen só conseguiu manter sua leitura dessa forma após a morte de seu pai. E, obviamente, as bibliotecas familiares que Darcy defende possuíam obras consideradas eruditas, poesia, tratados, história, cultura greco-romana, enquanto os romances eram o produto principal das bibliotecas circulantes, por mais que a vizinha de Austen, Mrs. Martin, insistisse o contrário. É possível então que, nas entrelinhas de seu comentário, Darcy também estivesse condenando esse gênero e, na opinião de Austen, condenando a si próprio: como notou Katie Halsey, é frequente a associação de personagens com livros para demonstrar suas personalidades, pois elas repetidamente se revelam através de suas respostas à literatura (Halsey, 2013, p.25). Um bom exemplo disso é aquela fala de Caroline Bingley sobre o seu (falso) prazer da leitura registrada na nova nota de dez libras (―I declare after all there is no enjoyment like reading!‖). Mas mais contundente ainda é a cena em que o formal e absurdo Mr. Collins é convidado para ler em voz alta para as irmãs Bennet: Mr. Collins readily assented, and a book was produced; but on beholding it, (for every thing announced it to be from a circulating library,) he started back, and begging pardon, protested that he never read novels. – Kitty stared at him, and Lydia exclaimed. – Other books were produced, and after some deliberation he chose Fordyce´s Sermons.230 (P&P, p.76).

A forma como Mr. Collins é descrito, praticamente pulando para trás para nem sequer tocar em um romance, é com certeza muito engraçada. E já tendo dito que o pároco não era um homem sensível e com uma cabeça fraca, a sua recusa em ler o livro produzido por seus anfitriões, além de soar um pouco como grosseria, é uma indicação para o leitor que Collins é, definitivamente, estúpido (para usar as mesmas palavras de Mr. Tilney em NA). Como aponta Halsey, a cena tem um nível alto de complexidade: Em um nível nós só precisamos entender que Collins escolheu um texto chato e pomposo que representa sua própria afetação, enquanto Lydia e Kitty não estão acostumadas com nenhum tipo de leitura que não seja um romance frívolo e, por isso, são incapazes de prestar atenção a um livro de um ―assunto sério‖. Esse seria apenas mais um exemplo do uso de Austen da leitura para denotar o caráter das personagens. Contudo, a sua piada tem muitas camadas e está profundamente embuída nos preconceitos e concepções da época sobre livros e leitura. A escolha de Mr. Collins de Fordyce’s Sermons sugere que ele conhece os conselhos dos livros de

230 ―Mr. Collins assentiu de pronto e buscou um livro; mas, ao erguê-lo para ler (tudo indicava que pertencia a uma biblioteca circulante), refreou-se, e desculpando-se declarou que jamais lia romances. – Kitty encarou-o incrédula, e Lydia mostrou-se perplexa. – Outros livros foram abertos, e após alguma deliberação ele escolhou os Sermões de Fordyce‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.177-178).

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conduta sobre o que uma jovem deveria e não deveria ler, enquanto a sua reação ao ver um livro de uma biblioteca circulante é perfeitamente criada para mostrá-lo como um tolo preso a uma convenção, que está familiarizado com a reputação dessas bibliotecas, mas sem saber do que realmente se tratavam. (...) Em um romance no qual perceber a importância de se desconfiar de primeiras impressões é vital para o autoconhecimento e amadurecimento, Mr. Collins nos fornece então a demonstração mais literal possível do que é julgar um livro pela sua capa, e mostra simultaneamente sua aderência estrita e extrema aos códigos morais e a sua recusa a formar uma opinião por si mesmo. (HALSEY, 2013, p.41, tradução minha)

De uma certa forma, então, e pelo menos no início, Collins e Darcy – os dois homens que pediriam Elizabeth Bennet em casamento – aparentam ter mais em comum do que todos nós gostaríamos de admitir. Enquanto Collins condena romances em termos morais, Darcy parece mais incomodado com a associação dos romances ao mercado, mas ambos os problemas caminham juntos, como lembra William Warner, pois ambos produzem imitações, gratificam desejos e ignoram seus efeitos morais (Warner, 1994, p.4). Os críticos de periódicos especializados em resenhas como o Montlhy Review e o Critical Review não disfarçavam seu desgosto com esses romances. Ao mesmo tempo, suas críticas tornam-se importantes registros históricos do que era esperado do novo gênero, pois é possível perceber que seus julgamentos eram proferidos a partir de uma imagem muito bem definida do que um bom romance deveria trazer, e entre esses quesitos era imperativo evitar extravagâncias e o exagero (Vasconcelos, 2002, p.158). No trecho abaixo, do segundo volume do diálogo de Clara Reeve The Progress of Romance, encontramos uma referência a esse cenário: Euph: The Female Quixote was published in the year 1752. – In this ingenious work the passion for the French Romances of the last Century, and the effect of them upon the manners is finely exposed and ridiculed…. Soph: … if I venture to remark, that the Satire of the Female Quixote seems in a great measure to have lost its aim, because at the time it first appeared, the taste for those Romances was extinct, and the books exploded. Hort: You are in the right Ladies. – Romances at this time were quite out of fashion, and the press groaned under the weight of Novels, which sprung like Mushrooms every year. Euph: They did but now begin to increase upon us, but ten years more multiplied them tenfold. Every work of merit produced a swarm of imitators, till they became a public evil, and the institution of Circulating libraries, conveyed them in the cheapest manner to every bodies hand. Hort: I rejoice that you do not defend Circulating libraries… Euph: I am entirely of your opinion, they are one source of the vices and follies of our present times …231 (REEVE, 1930, vol 2, pp.6-7)

231 ―O Female Quixote foi publicado no ano de 1752. Nessa obra engenhosa, a paixão por romanescos franceses do século passado e seus efeitos sobre as maneiras é exposto com elegância e ridicularizados...‘ ‗Se eu arrisco a comentar, a sátira de Female Quixote parece em grande medida ter perdido seu alvo, porque naquele momento em que apareceu, a preferência por romanescos estava extinta, e os livros destruìdos.‘ ‗Vocês estão corretas, senhoras. Romanescos nesse período estavam fora de moda, e a prensa gemia sob o peso dos romances, que brotavam como cogumelos todo ano.‘ ‗Eles começaram apenas a crescer, mas dez anos depois se multiplicaram dez vezes mais. Toda obra de mérito produziu um enxame de imitadores, até que eles se tornaram um problema público, e a instituição de bibliotecas circulantes distribuíam-nos de maneira barata para todas as pessoas.‘ ‗Eu fico feliz que você não defenda as bibliotecas circulantes...‘ ‗Eu concordo totalmente com você, elas são a fonte dos vícios e tolices da nossa presente época‘‖ (tradução minha).

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Nesse trecho vemos que Reeve retoma a sua diferença entre romance e novel, sendo que o primeiro, satirizado por Charlotte Lennox em The Female Quixote, já não estava mais em voga, mas o segundo ganhava cada vez mais popularidade, ―sprung like mushrooms every year‖, e estes romances que se multiplicavam não eram os bons romances que ela gostaria de recomendar. Muito pelo contrário, eram aquelas imitações de má qualidade disseminadas pelas circulating libraries, uma das fontes dos vícios e loucuras de seu tempo. Qualidade e popularidade parecem, então, serem características inversamente proporcionais nos romances criticados e havia uma diferença enorme entre o cânone que esses críticos contemporâneos construíam pouco a pouco e o que era consumido pelo público leitor. Esse último lia os ―bons‖ romances – ninguém pode negar, por exemplo, a popularidade de Robinson Crusoe, que ganhou depois mais duas continuações escritas pelo próprio autor – mas estava particularmente aberto e ávido para receber aquela enxurrada de ―maus‖ romances. Esse mesmo fenômeno seria novamente observado com o boom dos romances góticos no final do século XVIII. Para Barbara Fuchs, era a sua repetição quase ritualística de um mesmo tema que os tornava tão familiares, pois haveria algo de reconfortante na limitada variação de um ―único e imutável mito cultural‖ (Fuchs, 2004, p.126). Ao mesmo tempo, a crítica aos romances se aproveita desse fenômeno para reiterar os perigos do gênero e comprovar a sua má qualidade, mas sem muito resultado. Nas suas palavras, o que muitos críticos deploravam era exatamente aquilo que os leitores apreciavam, e ambos os grupos sabiam exatamente, em um entendimento codificado, o que eles encontrariam nesses romances (Fuchs, 2004, p.128). Os autores, reconhecendo esse jogo, exploraram esses temas até a exaustão, transformando-os em convenções necessárias (e esperadas) ao gênero ao mesmo tempo em que o associavam cada vez mais com uma decadente ―literatura de massa‖ (Fuchs, 2004, p.122). Como Ian Watt observa, tanto o sentimentalismo quanto o gótico do fim do século XVIII revelam apenas, e de forma muito clara, ―as pressões exercidas pelos livreiros e administradores de bibliotecas circulantes (...) a fim de atender às expectativas do público leitor, que em geral procurava nos romances fantasia e sentimentalismo‖ (Watt, 2010, p.310). Dessa forma, podemos observar que, com o surgimento dos livreiros, das primeiras editoras e das bibliotecas circulantes, a identificação promovida pelo romance entre leitor e personagem, que era baseada na experiência de uma fantasia, foi apropriada para usos comerciais. Iniciou-se assim um ciclo de reprodução: um livro é publicado porque narra a fantasia que os leitores querem viver, e os leitores desejam cada vez mais essa fantasia porque

171 leem livros sobre isso. Se contextualizarmos esse fenômeno e o colocarmos junto com todas as mudanças sociais que estavam sendo promovidas pela ascensão do capitalismo industrial, podemos perceber como poderia ser prazerosa uma fantasia que se realizava em tempos mais antigos que nunca voltarão e serão sempre lembrados com nostalgia. Como vimos com o trecho de Confessions of a Jane Austen Addict, esse é um cenário que continua com muita força até hoje. A crítica do século XVIII sobre a qualidade dos romances publicados em massa pode muito bem ser aplicada para as produções contemporâneas dos romances de banca das editoras Harlequin e Avon232, sem mencionar as inúmeras continuações das obras de Jane Austen. Ironicamente, as críticas atuais, excetuando periódicos acadêmicos ou outros veículos mais sérios, costumam fazer parte da lógica desse mercado editorial e trazer sempre elogios e rótulos como ―brilhante‖, ―criativo‖ e ―inovador‖ para obras que repetem de forma escancarada o mais do mesmo. O sentimentalismo do século XVIII, contudo, sobreviveu às acusações de ser comercial, moralmente corrupto, ou simplesmente falso, como pregavam os ―Anti-Pamelists‖. A controvérsia, ao contrário, só concedeu mais força ao fenômeno, que gerou outras obras importantes ao longo das décadas seguintes. Além de Richardson, os romances de Laurence Sterne e Henry Mackenzie, com os sugestivos títulos, respectivamente, de A Sentimental Journey (1768) e The Man of Feeling (1771), consolidaram a sua popularidade. O sucesso desses escritores dos dois lados do canal da Mancha provocou um verdadeiro dilúvio de ficção sentimental que ensinava os leitores a valorizar o sentimento em detrimento da razão, ao mesmo tempo em que consolidava na França a moda da sensiblerie, um culto ao sentimento em prejuízo da análise racional. Para Janet Todd, essa fição ensinava às pessoas como agir no mundo e como responder a ele, e diversas gerações de jovens mulheres escreveram para suas amigas íntimas nesse modo sentimental, e se orgulhavam da sensibilidade que Pamela lhes havia ensinado a demonstrar física e verbalmente (Todd, 1986, p.66). O seu objetivo era, sempre, levar o seu leitor às lágrimas, que foram transformadas na resposta esperada frente ao sofrimento apresentado diante dele. Como afirma Todd, manifestações físicas como lágrimas, suspiros e desmaios são ressignificados em uma linguagem do coração, já que palavras nunca serão suficientes para explicá-lo (Todd, 1986, p.77). E é através dessa linguagem que é possível avaliar a bondade e a honestidade do coração do outro.

232 Essas editoras especializaram-se em publicar os romances que, no Brasil, ficaram conhecidos como as séries ―Júlia‖ e ―Sabrina‖. Sobre a popularidade desse subgênero, vale a pena conferir RADWAY, Janice Reading the Romance. Women, Patriarchy, and Popular Literature. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1984 e GRESCOE, Paul Merchant of Venus. Inside Harlequin and the Empire of Romance. US: Raincoat Books, 1997.

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Além dessas manifestações físicas, as referências literárias poderiam ser usadas para reconhecer em outras pessoas uma personalidade sensível. Quando, em Mansfield Park, encontramos a jovem Maria Bertram citando uma passagem de A Sentimental Journey para , várias mensagens são transmitidas ali. Os dois estão visitando a propriedade de Mr. Rushworth, noivo de Maria, junto com a famíia dela, e ao passear pelo jardim encontram um portão que impede o seu progresso. Mr. Rushworth sai para buscar a chave, deixando Maria e Henry com a companhia apenas da heroína Fanny Price, que presencia o diálogo dos dois como se fosse invisível para eles: [Henry Crawford] ―You have a very smiling scene before you.‖ [Maria Bertram] ―Do you mean literally or figuratively? Literally, I conclude. Yes, certainly, the sun shines, and the park looks very cheerful. But unluckily that iron gate, that ha-ha, give me a feeling of restraint and hardship. ‗I cannot get out,‘ as the starling said.‖ As she spoke, and it was with expression, she walked to the gate; he followed her. ―Mr. Rushworth is so long fetching this key!‖233 (MP, pp.115-116)

Maria Bertram, presa pela promessa de seu casamento com Rushworth, um jovem tolo mas muito rico, sente-se aprisionada agora que descobriu sua atração por Crawford. Apesar de seu futuro parecer ótimo, representado pela riqueza da propriedade (―a very smiling scene‖), Maria admite seu sentimento de restrição e, ao citar a fala do pássaro ―I cannot get out‖, deixa claro que também não vê saída para si mesma. Porém, mais do que isso, Halsey nota que Maria possibilita que Crawford assuma o papel de seu libertador e, ao demonstrar seu conhecimento de um texto o qual aprova totalmente a paixão e os frequentes lapsos de decoro com o argumento de que o sentimento deve ser superior ao código moral, ela se revela como uma mulher aberta ao flerte impune de Henry (Halsey, 2013, p.76). O sucesso das obras de Richardson, Sterne e Mackenzie consolidaram os dois tipos de heróis preferidos para esse tipo de ficção, a jovem casta e sofredora que é elevada, ou pelo casamento (Pamela), ou por uma morte redentora (Clarissa), e o homem cujos sentimentos são tão sensíveis que nunca pode encontrar um lugar nesse mundo vulgar e egoísta (Yorick, de A Sentimental Journey) (Todd, 1986, p.4). Porém, por mais que a personagem do homem de sentimento também tenha conquistado seu espaço, as heroínas sentimentais eram mais facilmente aceitas porque a mulher era vista como naturalmente mais sensível, logo lágrimas e desmaios pareciam mais adequados a ela. Podemos até pensar que a moda do sentimentalismo pregava uma inversão dos valores da sociedade naquele momento,

233 ―‗A senhora tem um risonho panorama pela frente‘ ‗Está falando no sentido literal ou figurado? No literal, suponho. Sim, com certeza; brilha o sol, o parque parece cheio de vida. Mas infelizmente aquele portão de ferro, aquele valado me dão uma sensação de confinamento e opressão. Não posso sair, como disse o estorninho.‘ Enquanto falava, ela se dirigiu ao portão; ele a seguiu. ‗O sr. Rushworth está demorando muito para trazer a chave!‘‖ (tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014, p.187)

173 pois, como mostra G. A. Starr, esses romances trabalham com a ideia de que a sensibilidade e o comportamento considerados traços femininos fossem vistos não só como iguais mas como preferíveis a traços considerados masculinos como força e determinação (Starr, 1994, p.194). Nesse sentido, as personagens femininas nesse tipo de ficção reforçavam uma ideia já difundida sobre as mulheres, mas as personagens masculinas questionavam de certo modo esses estereótipos de gênero porque o herói sentimental não só era elogiado nos romances por sua sensibilidade, demonstrada frequentemente por suas lágrimas, mas era motivo de orgulho. No entanto, essa imagem não foi aceita de forma tranquila, pois esse tipo de característica em um homem continuava sendo visto por muitos como fraqueza. Como mostra Starr, o herói sentimental é chamado pelo mundo a renunciar virtudes infantis por masculinas, e escolhe não fazer isso pois a transição de menino para homem é vista, pela sua perspectiva, como uma queda, ainda que pela perspectiva da sociedade é uma mudança drástica necessária (Starr, 1994, p.195). Trata-se de um paradoxo que não acometia a heroína sentimental, já que a continuidade entre a menina e a mulher em termos de sensibilidade era uma ideia bem aceita. A menina não precisava ―crescer‖ ou ―amadurecer‖ para entrar no mundo público já que continuaria restrita à esfera doméstica quando mulher. O paradoxo que envolve o herói sentimental é um dos aspectos do debate entre a razão e o sentimento, em que o coração passa a ser considerado a fonte do que era mais nobre e moral enquanto o cérebro garante o cumprimento dos deveres e regras sociais. Essa oposição não passou despercebida por Austen, que em sua juventude criara pequenas histórias com referências à moda da sensiblerie. Como afirmam Sandra Gilbert e Susan Gubar, aos quinze anos de idade Austen já ridicularizava as convenções desse gênero ao mesmo tempo em que deixava implícito como as histórias sentimentais criavam concepções absurdas nas leitoras, como os clichês de amor à primeira vista, o herói cavalheiro, a vulnerabilidade da heroína, a indiferença dos amantes para com dinheiro, etc (Gilbert e Gubar, 2000, p.115). Mas uma crítica muito mais contundente a essa sensiblerie talvez esteja nas diferenças entre as personalidades das duas irmãs Dashwood em Razão e Sensibilidade. Enquanto Elinor sofre calada o empobrecimento da família e a decepção de um amor impossível, procurando sempre manter-se forte e prática, Marianne chora, suspira lendo poesia e fica doente por ter seu coração partido. Em paralelo, a história da sedução das duas Elizas, mãe e filha, narrada pelo Coronel Brandon, nega duplamente a morte enaltecedora ao estilo de Clarissa que também havia se tornado um lugar comum (Todd, 1986, p.144). Para Vasconcelos, R&S é ―uma crìtica leve e equilibrada dos absurdos e dos efeitos da ficção sentimental‖ (Vasconcelos, 2007, p.112), da mesma forma como NA escancarava o mesmo problema em relação aos

174 romances góticos, que viria a substituir o sentimentalismo no gosto do leitor ao mesmo tempo em que garantiria a sua continuidade. Contudo, assim como NA, R&S não era um livro didático. Há sim, nele, uma análise do sentimentalismo, porém não nos termos em que os leitores estavam acostumados. Isso não significa, no entanto, que Jane Austen estava escrevendo algo totalmente novo; como observa Copeland, há tempos já foi notado como o romance se relaciona com as obras de boa conduta da época, até na trama, muito semelhante à Letters of Julia and Caroline (1795) de Maria Edgeworth (Copeland, 2006, p.li). As duas irmãs na obra de Edgeworth se assemelham a Elinor e Marianne, uma é só racionalidade, a outra só sentimento. A primeira, ao final, encontra sua recompensa no amor e na riqueza material, enquanto a outra toma uma série de más decisões e sofre com decepções e castigos (Copeland, idem). Austen obviamente recusa esse final em sua obra: as duas irmãs terminam o romance em casamentos felizes e com segurança financeira (o grande problema na abertura da história), independente da racionalidade ou sentimentalismo em ambas. Agora, se o que Austen escrevou foi realmente um final feliz, isso está em debate até hoje. Nas críticas após a sua publicação, vemos que a sua inovação passou despercebida e Austen foi elogiada pela bela obra ―moralista‖: ‗A most excellent lesson to young ladies to curb that violent sensibility which too often leads to misery, and always to inconvenience and ridicule.‘ Critical Review ‗We will, however, detain our female friends no longer than to assure them, that they may peruse these volumes not only with satisfaction but with real benefits, for they may learn from them, if they please, many sober and salutary maxims for the conduct of life, exemplified in a very pleasing and entertainment narrative‘. The British Critic.234 (apud COPELAND, 2006, p.xxx)

Mesmo a moda do sentimentalismo tendo decaído consideravelmente desde o início do século XIX, os críticos desses periódicos ainda consideravam necessário que as mulheres fossem educadas nessa questão. É muito provável que Austen tenha pensando o romance como uma resposta ao debate, inclusive político, que perdurava a respeito da questão da sensibilidade, especialmente por ter sido escrito originalmente por volta de 1797. Associada ao radicalismo jacobino da Revolução Francesa, a indulgência em sentimentos em detrimento da razão era considerada o combustível para o turbilhão que tomou a França de assalto desde 1789. A condenação dos moralistas ingleses ao sentimentalismo, portanto,

234 ―‗Uma lição excelente para as jovens controlarem sua sensibilidade violenta a qual leva muito frequentemente ao sofrimento, e sempre a inconveniências e ao ridìculo‘ Critical Review. ‗Nós não vamos, contudo, continuar segurando as nossas amigas, a não ser para assegurá-las de que elas podem olhar esses volumes não apenas com satisfação mas com benefícios reais, pois podem aprender com eles, se lhes convém, muitas máximas sérias e salutares para a conduta da vida, exemplificadas em uma narrativa muito prazerosa e divertida‘. The British Critic‖‘ (tradução minha).

175 passava em grande parte pelo medo de que a experiência francesa atravessasse o canal e contaminasse a população da Inglaterra. O fato de que Austen batizou sua heroína sensível de Marianne, o mesmo nome dado à figura feminina que passou a representar a República Francesa, parece ser mais um indício delicado dos seus interlocutores e referências. Em termos literários, Clara Tuite defende que R&S também pode ser visto como uma alegoria de como o romance inglês finalmente se libertou do sentimentalismo através do realismo de Austen ou, em suas palavras, Marianne Dashwood provoca o renascimento da ficção inglesa separada da escandalosa ameaça francesa e dos clichés da sensibilidade, mostrando de forma simbólica como a Inglaterra evitou sua própria revolução (Tuite, 2002, p.88). Do outro lado, a sensata Elinor Dashwood também foi orgulhosamente associada ao caráter ―racional‖ da cultura inglesa, que vimos também na repreensão de Mr. Tilney à Catherine (―Remember that we are English‖), porque os ingleses, cheios de bom senso, nunca se entregariam ao gótico ou ao sentimentalismo francês, muito menos a uma revolução. Tuite mostra como a construção desse discurso de identidade nacional se apoiou na literatura, mas foi questionado, por exemplo, pelo Marquês de Sade que, em seu Idées sur le Roman, de 1800, ameaça a narrativa perfeita de separação do cânone inglês do romance francês ao identificar, ao contrário, que os piores excessos de sentimento eram originários da Inglaterra, com Richardson e Fielding, mostrando então que o gênero do romance sentimental nasceu de uma influência mútua entre os dois países (Tuite, idem). Quando foi escrita, a trama de R&S fazia sentido dentro desse debate. O livro, porém, só foi revisado e publicado em 1811. Quinze anos depois, a obra de Austen, ainda que bem recebida pelos moralistas, nunca se tornou uma preferida entre os críticos, por sua relação muito próxima com a questão do sentimentalismo. Era muito fácil associá-lo a esse debate e classificar cada irmã de acordo com a sua personalidade. Mais ainda, como Marianne é obrigada a rever a sua atitude ao final e tentar ser mais como Elinor, a mensagem parecia ser clara o suficiente: sentimentalismo não, racionalidade sim. Não faz muito tempo que os estudiosos contemporâneos decidiram voltar a essa obra tentando enxergar outros aspectos, e muito vem sendo dito sobre o que ficou tanto tempo ―invisìvel‖. A abordagem dos estudos feministas, por exemplo, sugeriu que a tradicional oposição entre Marianne e Elinor atrapalha a percepção de sua situação como jovens mulheres solteiras e sem dinheiro, enquanto que a teoria marxista apontava para a ganância como a força motriz por trás da história. Edward Copeland, por sua vez, defende que o romance apresenta diferentes tipos de narrativa dentro de si, que ele atribuiu à característica de R&S de portar indícios da Jane Austen escritora jovem, que produziu um romance epistolar em 1797, e da Jane Austen

176 escritora madura, que o revisou e modificou para a edição que conhecemos hoje. Por isso, nas suas palavras, é possìvel perceber em R&S uma ―dureza de julgamento‖ que parece conectar a obra mais com uma ―unpolished, uncensored Jane Austen‖ presente nos fragmentos inacabados como The Watsons, do que é possível encontrar nos seus romances posteriores (Copeland, 2006, p.lii). R&S traria, assim, indícios do estilo da Juvenilia de Austen, bem como traços mais espontâneos da autora madura antes das revisões finais que ela mesma realizava antes de enviar seus manuscritos para publicação. E mesmo se mantivermos o enfoque do sentimentalismo, a interpretação tradicional é considerada hoje muito ingênua. Jan Fergus, por exemplo, já argumentava que os crìticos erraram por muito tempo ao entender ―sensibility‖ como sinônimo de sentimento. Para ele, esses críticos ignoram a definiçao cuidadosa de Austen de que sensibilidade não é apenas a capacidade de sentir mas um conjunto de atitudes em relaçao ao sentimento, o qual é valorizado e estimado, procurado e consumido em excesso (Fergus, 1983, p.44). A consequência desse erro, por exemplo, é considerar que Elinor não possui nenhum tipo de sentimento, ou que ter sentimentos é algo negativo. Ao contrário, Austen está preocupada com os efeitos dessa indulgência e a forma como isso torna as pessoas egoístas e cegas aos problemas alheios: ―o conflito central no romance não se localiza entre razão e sentimento, e sim entre o comportamento sensível e insensível que pessoas essencialmente boas e de bom senso são capazes de demonstrar‖ (Fergus, 1983, p.45, tradução minha). A atitude oposta, a de Elinor, que procura ao máximo ajudar sua mãe e irmã, é recompensada apenas com incompreensão, estranheza e condenação, pois a sua consideração para com o sentimento delas permite que elas sejam insensíveis ao seu sofrimento por julgá-lo inexistente, já que Elinor não o demostra da mesma forma que Marianne: Elinor did not adopt the method so judiciously employed by Marianne, on a similar occasion, to augment and fix her sorrow, by seeking silence, solitude, and idleness. Their means were as different as their objects, and equally suited to the advancement of each. (…) Such behaviour as this, so exactly the reverse of her own, appeared no more meritorious to Marianne, than her own had seemed faulty to her. The business of self-command she settled very easily; - with strong affections it was impossible, with calm ones it could have no merit. That her sister‘s affection were calm, she dared not deny, though she blushed to acknowledge it; and of the strength of her own, she gave a very striking proof, by still loving and respecting that sister, in spite of this mortifying conviction.235 (R&S, pp.120-121)

235 [Elinor] ela não adotou o método criteriosamente empregado por Marianne em ocasiões semelhantes, de exagerar e fixar a tristeza, buscando o silêncio, a solidão e o ócio. Seus meios eram tão diferentes quanto seus fins, e igualmente adequados ao desenvolvimento de cada um. (...) Tal comportamento, tão oposto ao seu próprio, não parecia muito meritório a Marianne, assim como o seu devia parecer falho à irmã. A questão do autocontrole ela resolvia facilmente – com afetos mais intensos era impossível; com afetos amenos, não era mérito nenhum. Que os afetos da irmã eram amenos, ela não ousaria negaar; embora tenha corado ao reconhecê- lo; quanto à força dos seus, dera uma prova impressionante ao continuar amando e respeitando a irmã apesar dessa mortificante convicção (Trad. Alexandre de Souza, pp.185-186).

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De uma certa forma, então, R&S é sobre o egoísmo, comparando a sua presença em pessoas essencialmente boas – Mrs. Dashwood, Marianne, e até o jovem herói Edward Ferrars – com pessoas essencialmente gananciosas, como Mrs. Ferrars, Fanny e John Dashwood, e Lucy Steele. Essas questões tão interessantes foram, portanto, esquecidas no afã de rotular o romance como mais uma obra moralista. Contudo, mais interessante ainda foram as tentativas de transformá-lo ele próprio em uma história sentimental. Ainda que, segundo Janet Todd, o sentimentalismo tenha começado a se esgotar e a ser usado como um termo pejorativo em meados da década de 1770 (Todd, 1986, p.8), ele não desapareceu da cena literária. Um bom exemplo é a primeira tradução para o francês de R&S236, publicada em 1815, na qual é evidente como o livro foi modificado para receber todo um vocabulário sentimental, algo que, na teoria, já tinha saído de moda há muito tempo. No trecho abaixo, Edward Ferrars se declara livre de seu noivado anterior com a rival e fortune-hunter Lucy Steele e finalmente pede Elinor em casamento: [Marianne] ‗Ô Edward! Ô mon ami! Mon frére! Dites, répétez encore que vous étes libre, que Lucy est marieé, et que ce n‘est pas avec vous! [Edward] ‗Ah! Non, non, grâce au ciel! Pas avec moi… Mais Elinor? dit-il en regardant vers la porte avec inquiétude. ‗Ah! Marianne, s‘il est vrai que je suis votre ami, votre frère, conduisez-moi aux pieds d‘Elinor e de votre mère.‘ (...) Ils passèrent dans la salle à manger, où la mère et la fille pleuraint de joie dans le bras l‘une de l‘autre: [Edward] ‗Ô ma mère! Ô mon Elinor!‘ Dit Edward à genoux devant elles. [Mrs. Dashwood e Elinor] ―Mon fils! Mon cher Edward!‘ répondirent-elles toutes les deux en même temps. Ces mots lui suffirent. Il se releva pour embrasser Marianne e Margaret; il revint auprès de son Elinor. Pendant longtemps il n‘y eut entre eux que des acclamations de bonheur et the joie. À quatre heures, le dèjeuner fut servi, et l‘heureuse famille, réunie autour de la table, mangea peu, mais but de bon couer à l‘engagement d‘Edward et d‘Elinor; on ne savait quit était le plus contente.237 (AUSTEN, Raison et Sentiments, pp.417-418)

A comparação com o mesmo trecho no original de Austen surpreende pela sua economia e estilo oposto ao da tradução francesa: Unaccountable, however, as the circumstances of his release might appear to the whole family, it was certain that Edward was free; and to what purpose that freedom would be employed was easily predetermined by all; - for after experiencing the blessings of one imprudent engagement, contracted without his mother‘s consent, as

236 Tradução – ou adaptação – de Jeanne Isabelle Pauline de Montolieu. Primeira edição publicada em 1815, depois revista e corrigida em 1828. 237 ‗Oh Edward! Oh meu amigo! Meu irmão! Diga, repita mais uma vez que você está livre, que Lucy está casada, e que não é com você!‘ / ‗Ah, não, não, graças aos céus! Não comigo... Mas, Elinor?‘ – disse ele inquieto olhando para a porta. ‗Ah, Marianne, se é verdade que eu sou seu amigo, seu irmão, me conduza aos pés de Elinor e de sua mãe.‘ (...) Eles passaram à sala de jantar, onde mãe e filha choravam de alegria nos braços uma da outra: ‗Oh, minha mãe! Oh minha Elinor‘ disse Edward ajoelhando-se aos pés delas. ‗Meu filho! Meu querido Edward!‘ responderam as duas ao mesmo tempo. Essas palavras eram suficientes para ele. Ele se levantou para abraçar Marianne e Margaret, e voltou para a sua Elinor. Durante muito tempo não havia nada entre eles a não ser exclamações de felicidade e alegria. Às quatro horas, o jantar foi servido, e a família feliz, reunida ao redor da mesa, comeu pouco, mas bebeu de bom coração ao noivado de Edward e Elinor, e não sabemos quem estava mais contente (tradução minha).

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he had already done for more than four years, nothing less could be expected of him in the failure of that, than the immediate contraction of another. His errand at Barton, in fact, was a simple one. It was only to ask Elinor to marry him; - and considering that he was not altogether inexperienced in such a question, it might be strange that he should feel so uncomfortable in the present case as he really did, so much in need of encouragement and fresh air. How soon he had walked himself into the proper resolution, however, how soon an opportunity of exercising it occurred, in what manner he expressed himself, and how was he received, need not be particularly told. This only need be said: - that when they all sat down to table at four o‘clock, about three hours after his arrival, he had secured his lady, engaged her mother‘s consent, and was not only in the rapturous profession of the lover, but in the reality of reason and truth, one of the happiest of men.238 (R&S, pp.409)

Aparentemente, a única semelhança entre as duas cenas é que a família se sentou para uma refeição às quatro horas. Além da inserção dos diálogos por Mme. Montolieu no lugar do discurso indireto, o que mais chama a atenção é o esforço da tradutora para tornar a cena sentimental, o coroamento melodramático para o relacionamento impossível que se arrastou durante todo o livro: com interjeições, exclamações e lágrimas, Edward se ajoelha e pede perdão e aceitação. Como nos lembra Janet Todd, a escrita da ficção sentimental não pode confiar nas palavras para demonstrar toda aquela emoção por si próprias, então as páginas dos livros serão recheadas de pontos de exclamação, colchetes, itálicos, letras maiúsculas e constantes quebras nas frases para demonstrar como o discurso é interrompido pelo fluxo de sentimentos (Todd, 1986, p.5). Enquanto Austen, ao invés de presentear seus leitores com esse sentimentalismo – ela conscientemente exclui qualquer declaração de amor aqui e na maioria de seus romances –, aproveita a ocasião para debochar do pobre Edward e da sua pressa em contrair um novo noivado que também não seria aceito por sua mãe e que o manteria em uma situação de relativa pobreza. Da mesma forma como na tradução de Mme. Montolieu, e apesar de todas aquelas ―novas‖ interpretações da academia sobre R&S (em debate pelo menos há trinta anos), a associação pura de Elinor com razão e Marianne com sensibilidade permanece para o leitor atual principalmente através das adaptações cinematográficas. Por exemplo, o filme de 1995 de Ang Lee, com roteiro de Emma Thompson, incorpora o sentimentalismo na exploração das

238 ―Por mais inexplicáveis que pudessem parecer, para toda a família, as circunstâncias de sua liberação, o certo era que Edward estava livre; e o propósito em que essa liberdade seria empregada foi facilmente predeterminado por todas elas; - porque, depois de experimentar as bênçãos de um noivado imprudente, contraído sem o consentimento da mãe, como ele já havia feito durante mais de quato anos, nada poderia se esperar dele com o fracasso daquele compromisso, senão que logo em seguida contraísse outro. Sua ida a Barton, em verdade, fora algo muito singlo. Queria apenas pedir que Elinor se casasse com ele; - e, considerando que não era inexperiente no assunto, talvez fosse estranho que se sentisse tão incomodado com a situação presente como realmente se sentia, tão desprovido de coragem e necessitado de ar fresco. Como ele logo se encaminhara rumo à decisão apropriada, todavia, como rapidamente surgiu uma oportunidade de tomá-la, o modo como ele se expressou, e como foi recebido, não precisa ser contado em detalhes. Basta que se diga o seguinte; que quando sentaram à mês, às quatro da tarde, cerca de três horas depois de sua chegada, ele havia conquistado dua dama, obtido o consentimento de sua mãe, e era, não apenas na enlevada profissão de amante, mas na realidade da razão e da verdade, um dos homens mais felizes do mundo‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.461-462).

179 emoções de Marianne após ser enganada por Mr. Willoughby e na ―condenação‖ da atitude de Marianne, que só obtém o seu final feliz com o Coronel Bradon após perceber os erros da sensibilidade. O filme apaga a forma como Austen torna a questão muito mais complexa, indicando, por exemplo, que Marianne estava certa em alguns de seus sentimentos (da mesma forma como Catherine Morland em relação ao General Tilney). Emily Auerbach aponta, por exemplo, para a forma como Austen parece rir da linguagem efusiva de Marianne quando se despede de sua casa, Norland239, mas ao mesmo tempo mostra que os seus sentimentos são reais e justificados: Marianne realmente aprecia a natureza mais do que os novos moradores, e a resposta a sua pergunta de quem ficará para aproveitar Norland é ninguém, pois depois descobrimos que John e Fanny Dashwood, os novos donos, mandaram cortar os carvalhos antigos para construir uma estufa (Auerbach, 2004, p.106). Auerbach continua sua defesa mostrando que, em meio a uma sociedade cheia de pessoas hipócritas, gananciosas e manipuladoras, a sinceridade de Marianne é uma novidade: ―Que mulher doce é Lady Middleton‘, disse Lucy. Marianne ficou em silêncio; era impossível para ela dizer o que não sentia, não importando quão trivial a ocasião, e sobre Elinor portanto sempre recaía a responsabilidade de dizer mentiras quando a boa educação demandava‖. A recusa de Marianne de mentir é um sinal bem-vindo de sua integridade, que merece a nossa admiração? Ou é um sinal de que ela não aprendeu ainda como ser um membro adulto daquela comunidade? Talvez ambos: Austen simultaneamente elogia e censura a ênfase romântica na emoção espontânea e sem limites. (AUERBACH, 2004, p.108, tradução minha)

Fica o dilema, então, segundo Auerbach (2004, p.109), se devemos admirar Elinor por sua capacidade de mentir e manter um comportamento bem educado, ou se devemos condená-la por participar da óbvia falsidade de Lucy Steele. E Marianne, ela deve ser premiada pela sua honestidade, ou sua insistência em honestidade é mais um sinal de egoísmo por delegar totalmente a tarefa de ser civil em sociedade à sua irmã? Obviamente as respostas ainda estão em aberto, mas a existência dessas perguntas nos indica que R&S é muito mais do que o binômio presente em seu título, algo que o renascimento atual do sentimentalismo aplicado a Austen ignora, neste e em todos os seus outros romances. Se voltarmos a Northanger Abbey, por exemplo, podemos usar o momento em que Henry Tilney se declara para Catherine como mais um contraponto a esse sentimentalismo. A voz de Austen aparece no narrador que explica que ―though Henry was now sincerely attached to her - though he felt and delighted in all the excellencies of her character and truly loved her society - I must confess that his affection originated in nothing

239 "Dear, dear Norland!" (…) ―but you will continue the same.—No leaf will decay because we are removed, nor any branch become motionless although we can observe you no longer!—No; you will continue the same; unconscious of the pleasure or the regret you occasion, and insensible of any change in those who walk under your shade!—But who will remain to enjoy you?" (R&S, 32). Ver capítulo 1, página 116.

180 better than gratitude, or, in other words, that a persuasion of her partiality for him had been the only cause of giving her a serious thought‖240 (NA, pp.252-53). Nada de amor à primeira vista, nada de lágrimas, suspiros, desmaios, e o sentimento do herói não deixa de ser menos verdadeiro por ter nascido apenas de gratidão. Mas, como o narrador mesmo concede, ―It is a new circumstance in romance, I acknowledge, and dreadfully derogatory of an heroine‘s dignity; but if it be as new in common life, the credit of a wild imagination will at least be all my own‖241 (NA, idem). Sem todo aquele sentimento arrebatador, a dignidade da sua heroína estaria em risco, coloca Austen, como se ela não fosse merecedora o suficiente para provocar esse tipo de reação. Ela se desculpa, então, mostrando que um desfecho assim, tão simples, é fruto de sua ―wild imagination‖. A oposição entre os adjetivos common e wild mostra a ironia de Austen nessa frase, pois o clichê do sentimentalismo era tão forte que somente a mais louca imaginação poderia criar um desfecho tão ordinário. Para o público que estava acostumado com a ficção sentimental, a simplicidade da obra de Austen seria de estranhar mesmo, pois que graça teria uma história que não traz nada mais do que o comum? Afinal, o sucesso dessa ficção estava baseado não só na divulgação da virtude dos sentimentos, mas também por ser uma forma de escapismo da vida real, do mundo cruel e egoísta com o qual os heróis se deparavam em todos os capítulos. Com esses livros, como afirma Ian Watt, o tédio da vida real poderia ser momentaneamente esquecido e substituído por aventuras emocionantes que pareciam reais mas que eram, na verdade, tão impossíveis quanto o que era narrado pelos contos de fada (Watt, 2010, p.216). Os dois gêneros parecem se encontrar em Pamela, cuja referência automática é Cinderela, e que criou um certo padrão que foi revivido então por muitas outras heroínas que seguiram o caminho aberto por ela. E apesar de Pamela vir realmente de uma família pobre, tornou-se um motivo comum nesses romances suas heroínas, por mais humildes que pudessem parecer no começo, revelarem-se de origem nobre ao fim da história (Todd, 1986, p.119). Em Emma, Austen ironiza também essa convenção quando faz Emma criar uma fantasia em torno de sua nova amiga Harriet Smith. Criada em uma casa para educação de meninas e moças, ninguém sabe a verdadeira origem de Harriet, quem são seus pais verdadeiros, ou o quanto de dinheiro ela possui. Para Emma, Harriet só pode ser a filha de um gentleman, o que justifica a sua

240 ―ainda que Henry agora gostasse sinceramente dela – ainda que ele apreciasse e sentisse prazer em todas as qualidades de seu caráter e realmente amasse a sua companhia – eu devo confessar que sua afeição originou-se a partir de nada melhor do que gratitude, ou, em outras palavras, a persuasão de que ela lhe era parcial foi a única causa para ele pensar seriamente sobre ela‖ (tradução minha). 241 ―É uma circunstancia nova em um romance, eu reconheço, e muito depreciativo da dignidade de uma heroìna; mas se for tão novo também na vida comum, o crédito por essa imaginação selvagem vai ser pelo menos todo meu‖ (tradução minha).

181 interferência para que a amiga recuse o pedido de casamento de Mr. Martin, um fazendeiro honesto mas de status ―inferior‖, e passe a se imaginar apaixonada pelo ambicioso pároco Mr. Elton. Apesar de não ser dito de forma explícita no romance que Emma lia ficção sentimental, parece claro que ela se deixa levar pelo argumento comum divulgado por aqueles livros, e o mais curioso é que a pobre Harriet, que recebera uma educação em muitos pontos inferior a de Emma, gostava de ler romances góticos, mas não se deixava influenciar por eles em termos práticos – talvez ela até sentisse algum prazer na fantasia presente nesses romances de que ela poderia ser, na verdade, uma rica e nobre herdeira, porém estava muito satisfeita em aceitar o pedido de Mr. Martin, como de fato acontece no fim da história. A crítica ao sentimentalismo e aos clichés dos romances de sua época parece uma constante nos escritos de Austen, possivelmente até foi o primeiro tema sobre o qual ela escreveu publicamente: uma carta enviada ao periódico The Loiterer, produzido pelos seus irmãos James e Henry Austen durante um pouco mais de um ano em Oxford, muito provavelmente foi escrita pela jovem Austen com apenas 13 anos242 e assinada como ―Sophia Sentiment‖: ―I am sorry, however, to say it, but really, Sir, (…) your subjects are so badly chosen, that they never interest one. – Only conceive, in eight papers, not one sentimental story about love and honour, and all that. (…) As for your last paper, indeed, the story was good enough, but there was no love, and no lady in it, at least no young lady; and I wonder how you could be guilty of such an omission, especially when it could have been so easily avoided. Instead of retiring to Yorkshire, he might have fled into France, and there, you know, you might have made him fall in love with a French paysanne, who might have turned out to be some great person. Or you might have let him set fire to a convent, and carry off a nun, whom he might afterwards have converted, or any thing of that kind, just to have created a little bustle, and made the story more interesting. (…) let us see some nice affecting stories, relating the misfortunes of two lovers, who died suddenly, just as they were going to church. Let the lover be killed in a duel, or lost at sea, or you may make him shoot himself, just as you please; and as for his mistress, she will of course go mad; or if you will, you may kill the lady, and let the lover run mad; only remember, whatever you do, that your hero and heroine must possess a great deal of feeling, and have very pretty names.‖243 (J, pp.361-362)

242 Peter Sabor, na sua edição de 2006 da Juvenilia (Cambridge Editions of the Works of Jane Austen), acrescentou uma explicação detalhada sobre o contexto da publicação da carta, os argumentos em favor da autoria de Austen e os argumentos contra. Em sua opinião, a análise do estilo da carta traz fortes indícios de que Austen seja sua autora. Cf.: AUSTEN, J. Juvenilia. (ed. Peter Sabor). Cambridge UP, 2006. 243 ―Eu sinto dizer, contudo, mas realmente, senhor, (...) os seus assuntos são tão mal escolhidos, que eles não interessam a ninguém. Imagine, em oito números, nenhuma história sentimental sobre amor e honra, e tudo isso. (...) Sobre o seu último número, realmente, a história era boa o suficiente, mas não havia nada de amor, e nenhuma dama, pelo menos uma jovem dama, e eu fico pensando como vocês podem ser culpados de tal omissão, especialmente quando ela poderia ter sido evitada tão facilmente. Ao invés de se retirar para Yorkshire, ele poderia ter fugido para a França, e lá, você sabe, você poderia tê-lo feito se apaixonar por uma camponesa francesa, a qual se revelaria uma pessoa importate. Ou você poderia ter deixado que ele ateasse fogo em um convento, ou qualquer coisa do tipo, somente para criar um pouco de confusão, e tornar a história mais interessante. (...) Deixe-nos ver algumas histórias encantadoras, sobre a infelicidade de dois amantes, que morreram de repente quando iam para a igreja. Deixe o homem ser morto em um duelo, ou perdido no mar, ou você pode fazê-lo atirar em si próprio, à sua escolha. E sobre sua amante, é claro que ela vai enlouquecer, ou se

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A carta é uma reclamação de que o Loiterer vem ignorando suas leitoras femininas e sugere então o que seria uma história, em sua opinião, que atenderia ao gosto delas. Como podemos observar, suas sugestões estão cheias dos eventos melodramáticos que faziam o sucesso do gênero sentimental. Obviamente trata-se de uma brincadeira que seus irmãos reconheceriam a partir de manuscritos que Austen estava escrevendo (e lendo para toda a família) na mesma época e que também satirizavam as convenções do sentimentalismo. Tanto essa carta quanto a Juvenilia nos mostram como Austen, desde muito cedo, foi uma leitora perceptiva e crítica, e as suas paródias possibilitaram que ela dominasse a linguagem do romance para criar o seu próprio estilo. Trinta anos depois, esse mesmo tema ainda ocupava e divertia Austen. Tendo recebido inúmeras vezes sugestões de conhecidos para novos livros a partir das fórmulas do sentimentalismo, em especial de James Stanier Clarke244, a autora decidiu coletá-las em um cômico manuscrito intitulado ―Plan of a novel according to hints from various quarters‖. Interessante notar como várias das ―recomendações‖ recebidas parecem ter encontrado o seu caminho nas percepções ridículas de Sir Edward de Sanditon, citado aqui nas páginas 134- 135, como, por exemplo, a necessidade de um lugar geograficamente exótico para uma aventura – lá, Timbuctu, aqui, Kamchatka: Scene to be in the Country, Heroine the Daughter of a Clergyman, one who after having lived much in the World had retired from it, & settled on a Curacy, with a very small fortune of his own. – He, the most excellent Man that can be imagined, perfect in Character, Temper, & Manners – without the smallest drawback or peculiarity to prevent his being the most delightful companion to his Daughter from one year‘s end to the other. – Heroine a faultless Character herself, – perfectly good, with much tenderness & sentiment, & not the least Wit – very highly accomplished (…) Book to open with the description of Father and Daughter – who are to converse in long speeches, elegant Language – & a tone of high serious sentiment. (…) From this outset, the Story will procede, & contain a striking variety of adventures. Heroine & her Father never above a fortnight in one place, he being driven from his Curacy by the vile arts of some totally unprincipled and heart-less young Man, desperately in love with the Heroine, & pursueing her with unrelenting passion. (…) the scene will be for ever shifting from one Set of people to another, – but all the Good will be unexceptionable in every respect – and there will be no foibles or weaknesses but with the Wicked, who will be completely depraved and infamous, hardly a resemblance of Humanity left in them. (…) Often carried away by the anti-hero, but rescued either by her Father or the Hero – often reduced to support herself and her Father by her Talents, & work for her Bread; – continually cheated & defrauded of her hire; worn down to a skeleton, & now & then starved to death. – At last, hunted out of civilised Society, denied the poor Shelter of the humblest Cottage, they are compelled to retreat into Kamtschatka. (…) [morre o pai] Heroine inconsolable for some time – but afterwards crawls back towards her former Country – having at least 20 narrow escapes of falling into the hands of Anti-hero – & at last, in the very nick of time, turning a corner to avoid him, runs into the arms of the Hero himself, who having just shaken off the scruples which fetter‘d him quiser, você pode matar a dama, e deixar o homem enlouquecer. Apenas lembre, não importa o que faça, que o seu herói e heroìna devem possuir muito sentimento, e ter nomes muito bonitos‖ (tradução minha). 244 Ver capítulo 1, p.43.

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before, was at the very moment setting off in pursuit of her. – The tenderest & completest Eclaircissement takes place, & they are happily united. – Throughout the whole work, Heroine to be in the most elegant Society, and living in high style.245 (AUSTEN, LM, pp.226-229)

Austen delineia assim uma fórmula, quase uma receita que foi seguida passo a passo por muitos autores de ficção sentimental e romântica e que continuaria ao longo dos séculos XIX e XX recicladas em outros gêneros. A ironia dessa história é que essa fórmula registrada no manuscrito ―Plan of a novel...‖ iria ser aplicada às suas próprias obras duzentos anos depois.

2.2 Sentimentalismo do século XXI

A apropriação de Austen pelo sentimentalismo não ficou restrita ao início do século XIX, muito menos à tradução de Mme. Montolieu. Como já afirmei a respeito do filme Razão e Sensibilidade de 1995, o sentimentalismo parece ter tomado conta das representações da obra de Austen, e não só no cinema: o que a maioria das continuações e variações publicadas hoje procura oferecer para seus leitores é aquilo que foi negado por Austen, mas que retroativamente acaba incidindo sobre seus livros. Na parte anterior deste capítulo, levantei duas hipóteses para tentar responder sobre de que forma o gênero do romance mudou de um discurso ―realista‖ do século XVIII para trazer a fantasia nos dias atuais. A mesma pergunta pode ser feita sobre como essa mudança ocorreu na recepção da obra de Austen.

245 A cena se passa no campo, heroína filha de um clérigo, que depois de viver muito no mundo tinha se afastado e se fixado em uma paróquia com uma pequena fortuna. Ele, o melhor homem que pode ser imaginado, perfeito em caráter, temperamento e maneiras – sem o menor obstáculo ou peculiaridade para impedir que ele fosse a mais prazerosa companhia para a sua filha ano após ano. A heroína é uma personagem perfeita, perfeitamente boa, com tanta gentileza e sentimento, e nem um pouco de esperteza, muito talentosa (...). O livro abre com uma descrição do pai e filha – que devem conversar em longos discursos e linguagem elegante – e em um tom de sentimento elevado. (...) A partir daí, a história vai prosseguir, e conter uma variedade enorme de aventuras. Heroína e seu pai nunca mais de quinze dias no mesmo lugar, ele sendo expulso de sua paróquia pelas artes vis de um jovem homem totalmente sem princípios e sem coração, desperadamente apaixonado pela heroína, e perseguindo-a com paixão implacável. (...) A cena sempre vai mudar de um grupo de pessoas para outro, mas todas as boas serão excepcionais em todos os aspcetos – e não haverá nada a não ser falhas e maldade nos maus, que serão totalmente depravados e infames, sem nenhum traço de humanidade neles. (...) Sempre raptada pelo anti-herói, mas resgatada pelo pai ou herói – frequentemente reduzida a se sustentar e a seu pai com seus talentos e trabalhar por seu pão – continuamente enganada e roubada de seu dinheiro, esgotada até o esqueleto, e uma vez ou outra faminta até a morte. Finalmente, sendo obrigados a fugir da sociedade civilizada, negados o abrigo pobre do mais humilde chalé, eles são forçados a se retirar para Kamchatka. (...) [morre o pai] heroína inconsolável por algum tempo – mas depois ela volta com dificuldade ao seu antigo condado – tendo escapado pelo menos 20 vezes de cair nas mãos do anti-herói – e finalmente, no último minuto, ao dobrar uma esquina para evitá-lo, ela cai nos braços do herói, que tendo apenas se livrado dos escrúpulos que o impediam antes, estava naquele exato momento procurando-a – o esclarecimento mais carinhoso e completo ocorre, e eles são unidos com felicidade. Ao longo de toda a obra, a heroína deve estar na sociedade mais elegante, e vivendo no melhor estilo‖ (tradução minha).

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Como vimos anteriormente, os romances de Austen foram considerados pelos críticos da época, Walter Scott entre eles, como uma nova forma de escrita diferente do que havia antes, pelo menos na área da ficção. Clara Tuite defende, por exemplo, que durante a década de 1790, quando Austen começou a escrever, o gênero do romance estava tão fortemente identificado com o romance sentimental que as duas categorias passaram a ser tratadas como sinônimos, ou seja, que essa forma de romance específico passou a ser vista como a forma paradigmática do gênero como um todo, ao mesmo tempo em que simbolizava os excessos e os perigos que ele poderia trazer para seus leitores (Tuite, 2002, p.8). É por isso que o estilo livre de exageros de Austen produziu algumas respostas positivas, como a de William Gifford citado por Rachel Brownstein: ‗Eu li Orgulho e Preconceito pela primeira vez, e é realmente uma coisa bonita‘, um de seus críticos literários escreveu ao editor John Murray in 1815, quando ele estava considerando o manuscrito de Emma. ‗Nenhuma passagem secreta‘, William Gifford continua aprovando, ‗nenhum quarto secreto, vento uivando em longas galerias, gotas de sangue em uma adaga enferrujada - coisas que deveriam ser deixadas para as empregadas e as lavadeiras‘. (...) O comentário de Gifford nos lembra de que, para os seus primeiros leitores, Orgulho e Preconceito oferecia um notável distanciamento das ficções românticas que ainda eram populares e esperadas de mulheres escritoras. Ele também nos lembra da marcante e simples superioridade desse romance, e da confiança com a qual faz seus julgamentos críticos. (BROWNSTEIN, 2008, p.49, tradução minha)

A simplicidade do argumento de Orgulho e Preconceito que foca nas mudanças que se operam em Elizabeth – e, com menos atenção, em Darcy – a partir do que ela observa no dia a dia, nas coisas simples e tangíveis de sua realidade, é realmente inovador nesse sentido. É visitando a casa de Darcy, por exemplo, que Elizabeth começa a descobrir o verdadeiro caráter do herói e como estava enganada em sua primeira impressão. Não há esqueletos encobertos nos armários de Pemberley, apenas uma propriedade aberta a visitantes em plena luz do dia sem nada a esconder. Como diz Brownstein, William Gifford deve ter apreciado muito o anti-gótico na cena em que a heroína caminha pelos cômodos bonitos e espaçosos da mansão (Brownstein, 2008, p.59). Outra admiradora de Austen que compartilhou a mesma reação de Gifford foi a esposa de Lord Byron, Annabella Milbanke, a qual, segundo Claire Harman, teria escrito para a sua mãe afirmando que O&P era uma obra superior porque ―it depends not on any of the common resources of novel writers, no drownings, no conflagrations, not runaway horses, nor lap-dogs and parrots, nor chambermaids and milliners, nor rencontres and disguises‖246 (Milbanke, apud Harman, 2009,

246 ―ele não depende dos recursos comuns dos autores de romances, não há afogamentos, conflagrações, cavalos disparados, cachorros e papagaios, empregadas e modistas, encontros e disfarces‖ (tradução minha).

185 p.44). Austen era reconhecida assim por sua habilidade em manter o interesse do leitor sem precisar cair nos clichés do gênero. A entrada de Austen no cânone inglês realizada cem anos depois por R. W. Chapman e F. R. Leavis consolidou essa imagem da autora e de sua obra, que passou a exemplificar uma definição do romance moderno. Para Tuite, o que esses críticos valorizavam era a passagem que Austen fez da sua Juvenilia, engajada criticamente com uma forma particular do romance – de sentimento e sensibilidade – a qual passou a significar o gênero do romance (Tuite, 2002, p.27) para uma outra forma de romance ―doméstico-realista‖ que eles próprios transformaram em modelo em substituição àquela forma anterior: ―a legitimação do gênero do romance foi altamente dependente da figura de Austen, a qual por sua vez ganhou status de cânone desde que ela pudesse ser posicionada como a produtora de um tipo específico de romance que depois foi identificado como o próprio gênero do romance pelo mesmo cânone‖ (Tuite, 2002, p.26, tradução minha). Esse círculo de autodefinição, porém, não fez um salto temporal de Scott direto para Chapman, tendo sido muito influenciado também pela forma como os ingleses vitorianos liam Austen. Seus detratores, lembra Claudia Johnson, reclamavam da ausência de uma paixão arrebatadora na autora, e até mesmo de imaginação. A principal porta-voz dessa opinião, Charlotte Brontë, estabeleceu uma tendência de entender o método de Austen como uma transcrição ―fotográfica‖ e igualá-lo com um fracasso de criação – nas suas palavras, Austen apenas apresentava ―um daguerreótipo acurado de um rosto comum‖ (Johnson, 2012, p.86). Johnson nota que os críticos dessa época associavam a fotografia com algo mecânico e literal (portanto, classificar a obra de Austen como fotográfica estava longe de ser um elogio), e cita ainda um ensaio publicado na Westminster Review, provelmente por George Eliot, que insistia que Austen não tinha ―imaginação, profundidade de pensamento, de experiência vasta‖, e que ela estava absorvida ―pelas pequenas trivialidades da vida‖. De novo e de novo, até mesmos seus admiradores descrevem as personagens de Austen como ―transcrições fiéis da natureza humana‖, e seus romances como ―divertidos mas retratos fiéis...da sociedade contemporânea‖, ―espelhos fiéis de uma geração passada‖, representando ―coisas intensamente reais, intensamente prosaicas... sem exageros, ou deficiências, ou alterações‖. (JOHNSON, 2012, p.86, tradução minha)

O que esses críticos não notaram, ao acusar Austen de ser comedida e séria demais, foi o fato de que a autora rejeitou o que eles chamavam de ―poesia‖ não por uma falta intrínseca de sentimento, ou um puritanismo forte (Harman, 2009, p.100), mas por uma escolha consciente do que ela considerava ser literatura de qualidade. Uma breve análise das

186 paródias da Juvenilia já seria suficiente para provar esse ponto. Reginald Farrer, em seu ensaio de 1917, defende essa questão ao argumentar que Nos momentos supremos... a humanidade se torna inarticulada, e portanto não consegue mais fornecer material para a arte. Jane Austen, sabendo disso, é muito honesta para nos forjar novas frases clichés, e muito artista para rechear suas linhas com asteriscos e barras e exclamações... É notório como ela evita detalhes em suas cenas de pedidos de casamento, certamente não por uma covardia ―feminina‖ ou de uma dama, nem por nenhum tipo de incapacidade, mas meramente por sua certeza de artista de que os instantes épicos da vida não podem ser adequadamente expressados em palavras. (FARRER, apud JOHNSON, 2012, p.106, tradução minha)

Jane Austen portanto não é covarde, não é ―ladylike‖, é simplesmente honesta e incrivelmente perceptiva. Essa característica, tão condenada durante o século XIX, surpreenderia Charlotte Brontë por ser exatamemte aquilo que encantou os Janeites posteriores e os críticos do século XX. Como diz Farrer, ela não caiu nas armadilhas do sentimentalismo recheando suas linhas com asteriscos, barras e interjeições, ela simplesmente se ateve à vida. Chegamos, portanto, ao ponto em questão aqui: de acordo com essa visão, os romances de Austen, principalmente em comparação com a ―sensational fiction‖ em voga no período vitoriano, parecem destacar-se na multidão das prateleiras precisamente porque, segundo Johnson, o mundo que eles representam é tão comum, tão pouco intensificado a ponto de não parecer nem um pouco fictício (Johnson, 2012, p.88). O resultado? As fronteiras entre real e ficção são mais difíceis de detectar em sua obra (idem). Além disso, a própria Austen brinca com essas fronteiras dentro de suas histórias, como em Northanger Abbey quando, ao mesmo tempo em que o narrador insiste que estamos lendo ficção e deveríamos estar cientes disso, ele parece mudar de lado ao indicar o seu próprio contentamento com o casamento de Eleanor Tilney, como se fosse vida real (Todd, 2015, 28). Johnson argumenta que, ao contrário das formas narrativas anteriores, imaginativas e abertamente baseadas no maravilhoso, o romance moderno, ao qual Austen foi associada, não ataca a nossa credulidade, não exige uma ―suspensão da nossa descrença‖ para ser apreciado e não convida o leitor a acreditar na existência literal de suas personagens. Ao contrário, ele é atraído pelo seu potencial de ser plausível, aceitando as representações fictícias sem acreditar nelas, e ―extends credit without becoming credulous”247 (Johnson, 2012, p.87). Os leitores de Austen, assim, são graciosamente apanhados em uma armadilha, e apesar de nunca esquecerem, como aponta Johnson, que suas personagens não são reais, essa percepção não faz com que o seu poder seja menos forte sobre eles; ao contrário, é até divertido sentir que nós ajudamos a

247 ―extende crédito sem se tornar crédulo‖ (tradução minha).

187 fabricar um mundo, que sabemos não ser O Mundo, tendo em vista os prazeres específicos da narrativa que podemos obter desse processo (Johnson, 2012, pp.87-88). Em uma contínua briga entre crença e resistência, é formado então o prazer da leitura, e esse prazer será tanto maior quanto maior for a capacidade da obra de mostrar-se possível. É por isso que, para Kathryn Sutherland, o nosso prazer em um livro está associado à forma como nos sentimos em relação às personagens, como lidamos com elas como se fossem colegas reais, e esse foi um ponto essencial para os Janeites desde sempre, pois, como colocou A. C. Bradley em 1911, o poder da obra de Austen ―is to be found in characters who exhibit a habit of life beyond the function of the plot‖248 (apud Sutherland, 2005, p.15). Portanto, essa relação de amizade ou identificação com as personagens é muito importante para explicar por que lemos romances por prazer, e, especificamente em relação a Austen, a sua simplicidade elimina os indícios de que se trata de obra de ficção, funcionando como uma arte que nos convence da sua própria existência para além do papel. Nós somos assim tomados por uma fé, como diz Sutherland, de que não vemos tudo o que há ali (Sutherland, 2005, p.16). Segundo Janet Todd, ainda que os leitores do século XVIII tratassem Pamela e Clarissa de Richardson como pessoas fora dos livros, Austen é a primeira romancista desse período cujas personagens principais estão vivas para os leitores modernos e com as quais eles podem se identificar e fantasiar, e até mesmo quando, dentro de seus romances, o narrador se distancia ou brinca com o leitor por tomar a heroína como ―real‖, ainda assim é difícil abrir mão dessa crença (Todd, 2015, p.28). Não é à toa, portanto, que os romances de Austen tenham sido encarados como terapia para soldados, como aponta Ashley Tauchert, pois transfere o alívio do final feliz das páginas para a consciência do leitor, como se fosse o seu próprio destino – como foi dito por um membro de uma mesa de debate da BBC, Jane Austen é melhor até mesmo que Prozac (Tauchert, 2005, p.86). Se tomarmos esse aspecto da obra de Austen e o combinarmos com o foco dado, pelo menos desde a década de 1990, à relação amorosa entre heroína e herói na recepção de seus romances, podemos começar a entender de que forma eles foram reapropriados pelo sentimentalismo. Em primeiro lugar, devemos ressaltar a importância das adaptações cinematográficas desse período pois, como afirma Tamara Wagner, Foi com o surgimento de uma Austenmania reivigorada pelo seriado Pride and Prejudice da BBC que continuações, prequelas e reescritas de seus romances – muitas vezes com referências ao seriado assim como aos filmes de Sense and Senbility e Persuasion do mesmo ano – que uma abertura geral para oportunidades comerciais criaram um boom de continuações sentimentalizantes. No final dos anos noventa e nos primeiros anos do novo século, mais continuações inundaram o

248 ―deve ser encontrado em personagens que exibem um hábito de vida para além da função da trama‖ (tradução minha).

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mercado, atendendo a um aparente desejo por romances de Austen ―ressentimentalizados‖, com ênfase na trama romântica e nos heróis que continuam tão discretos nos originais mas tão tangivelmente atraentes nas telas. (WAGNER, 2007, p.220, tradução minha)

De alguma forma, portanto, essa Austen ―ressentimentalizada‖ que Wagner detecta atendeu a uma necessidade do público leitor de se identificar com histórias românticas com finais felizes, uma necessidade cega que passou por cima da forma como Austen parodiava esse tipo de obra e colocou a autora, ironicamente, em um altar para ser adorada por algo que ela nunca escreveu. É claro que a academia, do outro lado, se esforçava para chamar a atenção para esse ponto. O estudo clássico de Marilyn Butler, Jane Austen and the War of Ideas (1975), muito antes da Austenmania já argumentava que seus romances eram ―anti-Jacobinos‖ (ou seja, contra os excessos associados aos franceses), e Razão e Sensibilidade era um ataque a esse pensamento que era considerado perigoso à Inglaterra. É fato que a visão de Butler de que Austen era uma defensora do conservadorismo inglês Tory já foi muito debatida, mas ninguém até hoje ousou afirmar que Austen era, na verdade, uma apoiadora do sentimentalismo. Muito pelo contrário, ela é destacada pela sua distância de outras autoras que foram altamente influenciadas pela polarização do pensamento depois da Revolução Francesa, recusando sacrificar probabilidade em nome de um fim didático (Todd, 2015, p.23). Em comparação com Frances Burney, Janet Todd nos mostra como essas diferenças são claras: Os romances de maneiras [de Burney], particularmente Evelina (1778), Cecilia (1782) e Camilla (1796), trazem as aventuras de jovens mulheres de bons princípios mas pouco entendimento do ‗mundo‘. Elas entram na sociedade e aprendem a se comportar de uma ‗boa maneira‘ e a separar o falso do genuìno, e no processo de serem treinadas, quase sempre até perto da morte, elas encontram o verdadeiro amor, geralmente com o homem que havia sido seu mentor ou modelo – e algumas vezes o seu tormento. Austen certamente utiliza essa trama de entrada, mas ela a usa de forma mais sutil do que o geralmente didático e sensacional romance de Burney. Ela permite que os momentos de descobertas de suas heroínas surjam de eventos ordinários dentro de um mundo normal, enquanto que as jovens de Burney são rotinamente sujeitadas a experiências extremas de desgraça social e sexual, suas próprias ou de outras pessoas. Elas enfrentam loucura e chegam perto da morte, e elas se aproximam de um colapso psicológico antes de serem permitidas a descobrir seus erros. (TODD, 2015, p.22, tradução minha)

Austen recusa então experiências extremas, tragédias, loucura, em nome de uma apresentação simples do crescimento de suas heroínas. Em uma primeira leitura, isso parece ser suficiente. Contudo, para o leitor que quer repetir de novo e de novo a mesma sensação de acompanhar essa heroína em direção ao seu final feliz, parece que o ―simples‖ começa a ficar morno. Como um usuário de drogas que precisa aumentar a dose para obter o mesmo efeito, os leitores, para reviver aquela emoção, partem em busca das continuações cada vez mais

189 exageradas e que inserem na obra de Austen aquelas experiências extremas, tragédias e loucuras para atingir o seu objetivo. Um ciclo se completa, portanto, aprisionando os romances originais dentro de um universo criado pelos fãs do qual dificilmente eles conseguirão sair. *

Do ponto de vista estrutural do gênero do romance romântico, o sentimento vem ganhando uma posição cada vez mais central no desenvolvimento da história. De acordo com o estudo de Pamela Regis, todo romance desse tipo precisa passar por oito estágios: 1 – o estágio inicial da sociedade na qual a heroína e o herói devem cortejar; 2 – o encontro entre heroína e herói; 3 – a barreira à união da heroína e herói; 4 – a atração entre a heroína e herói; 5 – a declaração de amor entre heroína e herói; 6 – o ponto da morte ritual [quando a união parece totalmente impossível]; 7 – o reconhecimento pela heroína e pelo herói dos meios para superar a barreira; e 8 – o noivado. (REGIS, 2003, p. 30, tradução minha)

Duzentos anos atrás, quando diferenças de classe, status social ou de fortuna eram impedimentos sérios para uma união, tanto o item 3 quanto o item 6 eram comumente baseados nesse tipo de barreira. Na obra de Austen, por exemplo, são essas diferenças que previnem, até um certo ponto na narrativa, que Mr. Darcy se declare a Elizabeth e que faz com que ele afaste Mr. Bingley de Jane Bennet; ou que separam Elinor Dashwood e Edward Ferrars (R&S) e que rompem o primeiro noivado de Anne Elliot e Captain Wentworth (P). Essas barreiras, contudo, hoje não fazem muito sentido dentro de nossa sociedade. Ainda que muitos apreciem e valorizem o ―poder‖ de um amor que superou esses obstáculos ―tradicionais‖, os itens 3 e 6, nas continuações e variações estudadas aqui, passaram a ser sobre sentimentos, ou sobre os desentendimentos e a falta de comunicação a respeito dos sentimentos alheios. A consequência, como nota Pamela Regis é que, ao narrar o relacionamento através dos oito elementos essenciais do gênero, o romance do século XX foca em emoções, e literatura que foca em emoções e termina com finais felizes acaba se dirigindo para o aspecto sentimental (Regis, 2003, p.206). Os sentimentos, portanto, passam a exercer um papel essencial na trama como aquilo que deve ser esclarecido e/ou alterado para que a heroína encontre o seu final feliz junto com o seu herói. Além disso, esse novo foco fez com que outras características do romance sentimental fossem inseridas conjuntamente, como um ―pacote fechado‖, em continuações e variações atuais de Orgulho e Preconceito, como vou demonstrar em diversos exemplos a seguir. A primeira característica usada com muita frequência pelos autores atuais parece ter sido retirada do manuscrito de Austen ―Plan of a Novel‖, e lembra muito os planos

190 ridículos de Sir Edward para raptar e seduzir Clara Brereton em Sanditon. Trata-se de um uso indiscriminado de situações clichés dos romances sentimentais que colocam as personagens em perigo e, também muito comumente, que abrem espaço para o herói demonstrar toda a sua coragem e valor. No romance Compromised! the Dawn J. King, uma Caroline Bingley muito invejosa e inconformada com o noivado de Darcy e Elizabeth trama o sequestro dessa última e a sua ruìna nas mãos de ninguém menos que Mr. Collins: ―She was to distract Darcy while Collins grabbed Elizabeth. There would be no wedding. While she stayed at Netherfield Park, Mr. Collins would take the carriage north towards Gretna Green. It was a hired coach with a driver who was reputed to not ask many questions. Darcy would never want Elizabeth Bennet after Mr. Collins was finished with her‖249 (King, 2015, posição Kindle 2356-2359). Nesse romance e em todos os outros que usam o artifício do sequestro para aumentar a emoção da trama, geralmente é o próprio Darcy que aparece para resgatar Elizabeth. Na cena abaixo, do primeiro volume das duas continuações escritas por Linda Berdoll, Elizabeth não só foi sequestrada por um antigo empregado decidido a se vingar de Mr. Darcy, como também necessita escapar de ser estuprada. Em meio a sua luta, Darcy chega para salvá-la mais uma vez, e a sua força como o herói perfeito aparece na forma como ele não hesita em matar a sangue frio o homem que ameaçava a sua esposa: Dragging her back across the bed by her feet rendered her splayed and skirt up. The perfect position for violation. She kicked at him with her bare feet, but he just elicited a strange lewd giggle as he held her down. ‗When aye‘m done w‘ye, d‘ye think aye oughter ‘ave mercy and kill ye with one cut or make it last longer?‖. ―Pig!‖ she spat at him. He would make it last longer. The roaring panic in Elizabeth‘s head almost drowned out the sound of the door as it was kicked opened and smashed against the wall. But it startled Reed, who looked thither from attempting to pintle Mrs. Darcy, to be greeted by the unthinkably harrowing sight of Mr. Darcy himself. And he did not appear to be in a forgiving mood (…) and to Reed‘s obvious and decided horror, Darcy drew a sabre. (…) With not a moment of contemplation, and in the space of two long steps, Darcy ran Reed through. With such force did he render the puncture, his sword by-passed Reed‘s backbone and pinned his body to the wall. His hand on the hilt, and the hilt at Reed‘s gut, Darcy looked directly in Reed‘s gaping eyes as he ground the blade deeper. The stabee opened his mouth as if to speak, but he produced nothing more than a trickle of frothy blood and a gagging sound.250 (BERDOLL, 2004, pp.201-202)

249 ―Ela deveria distrair Darcy enquanto Collins agarrava Elizabeth. Não haveria nenhum casamento. Enquanto ela permaneceria em Netherfield Park, Mr. Collins iria levar a carruagem para Gretna Green. Era uma carruagem de aluguel cujo cocheiro tinha a reputação de não fazer muitas perguntas. Darcy nunca iria querer Elizabeth Bennet depois que Collins a arruinasse.‖ (tradução minha). 250 ―Arrastando-a de costas na cama pelos pés deixou-a esticada e com suas saias levantadas. A posição perfeita para ser violada. Ela o chutou com seus pés descalços, mas ele só soltou uma risada lasciva enquanto a segurava. ‗Quanto eu terminar com você, você acha que eu devo ter misericórdia e te matar com um corte ou aos poucos?‘ ‗Porco!‘, ela cuspiu nele. Ele iria deixar ela morrer aos poucos. O pânico que rugia na mente de Elizabeth quase abafou o som da porta que foi chutada aberta e se despedaçou contra a parede. Mas sobressaltou Reed, que desviou os olhos da tentativa de penetrar Mrs. Darcy e foi recebido com a impensável e perturbadora imagem do próprio Mr. Darcy. E ele não parecia estar num humor de perdão (...) e para o óbvio e definitivo terror de Reed, Darcy puxou uma espada. (...) Sem nenhum momento de contemplação, e no espaço de dois longos passos, sua espada atravessou as costelas de Reed e prendeu seu corpo à parede. Sua mão no punho, e o punho nos intestinos

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A descrição da entrada de Darcy é praticamente retirada de um roteiro de cinema: a porta escancarada com um chute, a espada desembainhada e atravessando o corpo do inimigo, o sangue espumante escorrendo pela sua boca, e o herói contemplando a sua morte sem pestanejar. Tamara Wagner comentou como, em contraste com o estilo de Austen, os autores de continuações recusam qualquer limite para adicionar sempre à trama do relacionamento amoroso sexo, crime ou subtramas tortuosas (Wagner, 2007, p.224), mas parece que, ao invés de apenas não se limitar ao tipo de trama que Austen preferia, essas continuações transformaram em necessidade a inserção desse tipo de cliché. Em uma comparação que reforça ainda mais esse ponto, acredito ser importante deixar claro que a única exceção para esse tipo de cena comum não foi encontrada em nenhuma continuação de O&P estudada nesta pesquisa, mas na versão de Sanditon completada por Marie Dobbs (que assina apenas como ―Another Lady‖) em 1975. Nessa versão, Sir Edward de fato planeja o sequestro de Clara Brereton, mas por um mal-entendido entre várias personagens acaba sequestrando a heroína Charlotte Heywood. Em sua fuga, Sir Edward escolhe passar, sem saber, pela estrada que margeia a propriedade dos pais de Charlotte, e a conclusão de toda essa situação é absolutamente diferente do que vimos até agora: Both Sir Edward and his horse were showing definite signs of fatigue by this time; and the gig began climbing a long hill, the tired horse slowed his walking pace even further. Charlotte could have descended from it with ease at almost any point over the last few miles. But she saw no reason to start walking sooner than necessary. Any part of the present slope would be convenient for her but she decided she might as well wait till they were farther up the crest of the hill. She was also determined to avoid any undignified scuffling and recriminations; so she watched the figures of two yeomen-labourers advancing through the slanting rays of the setting sun downhill towards them. She chose her moment very carefully: the figures were almost abrest of the gig when she sprang nimbly down into the road. (…) The weary horse had stopped involuntarily, adding a final corroborating touch of normality to this seemingly prosaic homecoming. Sir Edward stared down from the gig, too stupefied to interfere. Even to his weak understanding, it was clear that Miss Heywood, pleasantly greeting two stalwart farm labourers, was a personage of some note in this district. He heard cheerful words passing between them; he even heard words addressed to himself (…) ‗I thank you for your kindness, sir,‘ Charlotte was saying, turning back to the gig and regarding Sir Edward calmly. ‗It was extremely kind of you to come so far out of your way on my account. But I need not trouble you any further. It is only a step for me from here. I will be home in a very few minutes now. I wish you good evening.‘251 (ANOTHER LADY, 1998, pp.296-297, destaques meus) de Reed, Darcy olhou diretamente para os olhos esbugalhados de Reed conforme ele empurrava a espada mais fundo. O atacado abriu sua boca como se fosse falar, mas produziu nada mais do que umas gotas de sangue espumante e um som engasgado‖ (tradução minha). 251 ―Tanto Sir Edward e seu cavalo estavam mostrando sinais de fadiga a essa altura, e conforme a charrete começou a subir uma longa colina, o cavalo cansado diminuiu seu passo ainda mais. Charlotte poderia ter descido com facilidade em quase qualquer ponto nas últimas milhas. Mas ela não viu razão para começar a andar mais cedo do que era necessário. Qualquer parte da presente subida seria conveniente para ela, mas decidiu que ela poderia muito bem esperar até que estivessem mais perto do topo. Ela também estava determinada a evitar qualquer briga e recriminações indignas, então observou as figuras de dois camponeses caminhando, através dos raios do sol que se punha, em sua direção. Ela escolhou seu momento com cuidado: as figuras estavam quase ao

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Ao contrário do que aparece com frequência nas continuações, portanto, temos uma heroína, Charlotte Heywood, que manteve a calma e sua racionalidade e aguardou apenas a melhor oportunidade para ela mesma escapar, sem a ajuda do herói, de seu sequestrador. Não há desmaios, ataques de nervos, histeria, choro, apenas uma jovem que percebe o quão ridículo é o homem sentado ao seu lado e decide esperar tranquilamente pelo momento mais conveniente para descer da charrete e caminhar para a casa de seus pais. O toque final é a maneira como ela, educadamente, agradece Sir Edward pela ―carona‖ até lá. Por sua vez, para o herói da história, Sidney Parker, foi relegado apenas o papel de mensageiro, que correu para a casa dos Heywood para avisar os pais de Charlotte que ela havia sido sequestrada, tendo então recebido por acaso a notícia de que ela estava ali sã e salva, como narra a irmã de Charlotte: ―We were so surprised! He seemed most upset about something; and when Mama told him you were here, he just said ‗Thank God!‘ and sat down in a chair for so long, without saying anything at all, that Mama said she would go and find Papa (…)‖252 (Another Lady, 1998, p.302). Essa inatividade de Mr. Parker é bem diferente do esforço de Darcy para salvar Elizabeth das garras de seu inimigo no trecho de Linda Berdoll. Toda essa normalidade dentro de uma situação absurda nessa continuação pode indicar duas coisas importantes. A primeira, que Marie Dobbs realmente leu Sanditon e entendeu que Austen estava ridicularizando os clichés da ficção sentimental na figura de Sir Edward, e decidiu sabiamente manter essa posição até o final. O segundo ponto é que essa continuação da década de 1970 pode, em comparação, ser mais um indìcio de que a ―ressentimentalização‖ da obra de Austen em larga escala de fato só ocorreu após a década de 1990 e as suas muitas adaptações cinematográficas. Algumas continuações produzidas nas décadas anteriores, como a de Alice Cobbett para Sanditon em 1932, também adotaram clichés do romance sentimental ou gótico, porém, até 1990, isso nunca foi o imperativo que podemos observar atualmente. Ao contrário de Dobbs, porém, os fãs atuais parecem concordar com a reclamação de Charlotte Brontë de que Austen não trazia emoção suficiente em sua obra, e Rose Fairbanks deixaria essa escritora muito honrada por ter usado um de seus romances como lado da charrete quando ela pulou com agilidade na estrada. (...) O cavalo exausto parou involuntariamente, adicionando um toque final de corroboração de normalidade a esse aparente prosaico retorno para casa. Sir Edward olhou fixamente da charrete, chocado demais para interferir. Mesmo para o seu fraco entendimento, estava claro que Miss Heywood, cumprimentando com prazer dois trabalhadores de fazenda, era uma pessoa de alguma importância nesse distrito. Ele ouviu palavras alegres trocadas entre eles, e ouviu até palavras direcionadas a si próprio (...) ‗Eu agradeço a sua gentileza, sir‘, Charlotte disse, voltando-se para a charrete e olhando Sir Edward calmamente. ‗Foi extramemente bondoso da sua parte sair tão longe de seu caminho por minha causa. Mas eu não preciso incomodá-lo mais. É só um passo para mim a partir daqui. Estarei em casa em apenas alguns minutos. Eu desejo ao senhor uma boa noite‘‖ (tradução minha). 252 ―Nós ficamos tão surpresas! Ele parecia muito abalado com alguma coisa, e quando mamãe disse que você estava aqui, ele disse apenas ‗Graças a Deus!‘ e sentou na poltrona por tanto tempo, sem falar mais nada, que mamãe disse que ela iria procurar papai‖ (tradução minha).

193 inspiração. Em A Sense of Obligation, por exemplo, Fairbanks escreveu em uma de suas variações a personagem Anne de Bourgh sofrendo de uma loucura semelhante à de Bertha Rochester, a famosa ―madwoman in the attic‖ do romance Jane Eyre de Brontë. A cena em que Anne destrói o chapéu de Elizabeth ao saber de seu casamento com Darcy é uma referência facilmente detectável ao momento em que Bertha rasga o véu de noiva de Jane Eyre e ao seu comportamento insano de uma forma geral: ―Miss de Bourgh stood half hidden behind her imposing mother, oddly jerking her hands, but roused to action after Elizabeth‘s last words. She shrieked and lunged for the wedding bonnet lying on a nearby chair. She tried to rip off the layers of lace, laughing maniacally‖253 (Fairbanks, 2015b, posição Kindle 6618- 6621). Esse tipo de loucura que acomete Anne aqui geralmente aparece em personagens secundárias nas variações de O&P como resultado de sentimentos negativos exarcebados em relação às personagens principais. Ou seja, as ―vìtimas‖ mais comuns desse destino são a invejosa Caroline Bingley e o sedutor mercenário George Wickham, as figuras opostas, respectivamente, à Elizabeth e Darcy na trama original. Vez ou outra, a aristocrática tia de Darcy Lady Catherine de Bourgh também perde a razão em suas tentativas frustradas de forçar o casamento de Darcy com sua filha Anne, e na passagem acima vimos a própria Anne afetada pelo mesmo motivo. Nessas continuações, a loucura acaba sendo um ―castigo‖ para os vilões ao mesmo tempo em que também revela a sua ìndole ―má‖, pois é muito comum que as personagens antagonistas sejam transformadas em vilões clássicos, sem qualquer vestígio de humanidade ou complexidade. No romance sentimentalista, contudo, a loucura também aparecia como um resultado da sensibilidade, sem ser algo necessariamente negativo. A exposição às tristezas da vida poderia levar uma personagem com alto grau de empatia a um estado de insanidade mental por conta do sofrimento que testemunhara no mundo e que era incapaz de suportar. A capacidade de sentir a emoção do outro como se fosse sua também era percebida, então, como algo positivo, e reaparece nas continuações atuais. Em Darcy Chooses, de Gianna Thomas, é mostrado com frequência como Elizabeth e Darcy são pessoas inerentemente boas pela sua habilidade de se comover com o sofrimento alheio. Na passagem abaixo, as duas irmãs mais novas de Elizabeth foram espancadas por Wickham, e a reação dos protagonistas é de empatia profunda, de Elizabeth por suas irmãs, e de Darcy por Elizabeth: Unfortunately, Darcy did not think to apprise Elizabeth of all the discoloration caused by the injuries sustained from the beatings. Lydia's broken nose had

253 ―Miss de Bourgh permaneceu parcialmente escondida atrás de sua imponente mãe, sacundindo suas mãos de forma estranha, mas foi despertada para a ação depois das últimas palavras de Elizabeth. Ela gritou e correu em direção ao chapéu do casamento que estava em uma cadeira ali perto e tentou rasgar as camadas de renda, rindo de forma manìaca‖ (tradução minha).

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escalated into two black eyes and there were bruises all over her arms. Kitty also had a large bruise on her cheek and similar bruising on both arms. When Elizabeth saw the evidence of what they had undergone at Wickham's hand, she cried, "No! I'm to blame, I'm to blame." And she began crying, with great choking sobs, as if her heart were being torn in two. Darcy picked her up, drew her head to his chest and quickly left the room. He'd never seen or heard a woman cry as Elizabeth was doing, and it was breaking his heart.254 (THOMAS, 2016, posição Kindle 5450-5455)

E Darcy, como um herói sentimental ideal, também demonstra toda a sua dor pelo o que viu na famìlia de Elizabeth e pelo o que ele mesmo viveu: ―As he sat down on his bed, Darcy groaned in body and spirit, and after Jenkins left, he bowed his head and sobbed for the first time since the death of his mother. He grieved for the loss of both his parents and for the trouble plaguing his beloved and her family. When he'd exhausted all his tears, he laid down to fall into a troubled sleep‖255 (Thomas, 2016, posição Kindle 5538-5541). A forma como Darcy reage ao sofrimento de Elizabeth e vice-versa é frequentemente usada para demonstrar a profundidade do amor que eles sentem um pelo outro. O compartilhamento de suas emoções aparece como mais um indício de que eles são o casal perfeito, como na história de Dawn King, Yes, Mr. Darcy: [Darcy:] ―When we lost my mother, my father lost his way.‖ Pain resonated in his voice. ―When my father died, I understood why he reacted as he did. I was bereft.‖ He felt the tightness of her hands grasping his. A tear started from the corner of her eye and moved slowly down her cheek. He longed to move his thumb across the surface to capture that drop of moisture, removing any sadness from the woman in front of him. With surprise, he realized that she was feeling his agony in her own heart and he was feeling a responding depth of emotion. My pain in her heart and her pain in mine.256 (KING, 2016, p.50)

Finalmente, a empatia como valor deve ser estendida não apenas às pessoas amadas, mas também a pessoas distantes ou até estranhas, pois a verdadeira personalidade sentimental percebe o sofrimento do mundo todo com a mesma gravidade que o seu próprio sofrimento. Georgiana Darcy, no citado romance de Gianna Thomas, demonstra sua natureza

254 ―Infelizmente, Darcy não pensou em alertar Elizabeth de toda a descoloração causada pelos ferimentos do espancamento. O nariz quebrado de Lydia tinha aumentado para dois olhos roxos e havia hematomas ao longo de seus braços. Kitty também tinha um grande machucado em sua bochecha e ferimentos similares nos dois braços. Quando Elizabeth viu a evidência do que elas tinham sofrido nas mãos de Wickham, ela gritou ‗Não! Eu sou a culpada, eu sou a culpada!‘ E começou a chorar, com grandes soluços engasgados, como se seu coração estivesse sendo rasgado em dois. Darcy a abraçou e trouxe sua cabeça para seu peito e rapidamente saiu do quarto. Ele nunca tinha visto uma mulher chorar como Elizabeth estava fazendo, e isso estava partindo seu coração‖ (tradução minha). 255 ―Quando sentou em sua cama, Darcy gemeu em corpo e espìrito, e depois que Jenkins foi embora, ele abaixou sua cabeça e chorou pela primeira vez desde a morte de sua mãe. Ele sentia pela perda de seus pais e pelos problemas que atormentavam sua amada e a famìlia dela‖ (tradução minha). 256 ―Quando nós perdemos minha mãe, meu pai se perdeu‘. Dor ressoava em sua voz. ‗Quando meu pai morreu, eu entendi porque ele tinha reagido daquele jeito. Eu estava de luto.‘ Ele sentiu a força das mãos dela apertando as suas. Uma lágrima formou-se no canto do olho dela e desceu devagar pelo seu rosto. Ele queria mover seu polegar pela superfície para capturar aquela gota de umidade, remover toda tristeza dessa mulher a sua frente. Com surpresa, ele percebeu que ela estava sentindo a agonia dele no seu coração e ele estava sentindo uma profundidade de emoções em resposta. Minha dor no coração dela, e a dor dela no meu‖ (tradução minha).

195 inerentemente boa ao chorar após um incêndio que destruiu algumas fazendas ao redor de Pemberley: "Sit down, Georgie." His sister sat but with trepidation. Was something wrong? Darcy paused and determined how to tell her. "Only three homes were lost, but several people were injured with one severely, a larger number suffered from the heat, and…there was one death." "Oh, no! Who died?" "The fire frightened Jenny Baker so much that her babe came early. Mrs. Baker is recuperating, but the babe was lost. The midwife…never could get the child to breathe. The Bakers, of course, are bereft." With that, Georgiana burst into tears. "But that was her first child, and she so looked forward to it. She and her husband were both so happy. I can't imagine how sad they must be." Finally, when her tears had ceased, she sniffled and made plans to take food and some flowers to help comfort her friend. A true Darcy, she knew and loved all the tenants and their children.257 (THOMAS, 2016, posição Kindle 6613-6621)

Muito importante nesse trecho também, além da demonstração de empatia, é o espírito solidário que leva a pessoa sensível a tentar ajudar o máximo possível o outro para minimizar o sofrimento alheio. Além, claro, da construção da família Darcy como tradicionalmente reconhecida por sua bondade para com todos os que trabalhavam em sua propriedade. Georgiana era, afinal de contas, uma ―true Darcy‖. Como foi dito, porém, era comum no romance sentimentalista que a empatia e a sensibilidade, ao invés de produzir uma atitude prática solidária, tornassem a personagem sensível incapacitada. É claro que Austen satirizou esse cliché ao mostrar Marianne, de Razão e Sensibilidade, entregando-se à sua dor de forma absolutamente consciente – não pela necessidade do sentimento, mas pela necessidade da convenção sentimental: Marianne would have thought herself very inexcusable had she been able to sleep at all the first night after parting from Willoughby. She would have been ashamed to look her family in the face the next morning, had she not risen from her bed in more need of repose than when she lay down in it. But the feelings which made such composure a disgrace, left her in no danger of incurring it. She was awake the whole night, and she wept the greatest part of it. She got up with a headache, was unable to talk, and unwilling to take any nourishment; giving pain every moment to her mother and sisters, and forbidding all attempt at consolation from either. Her sensibility was potent enough!258 (R&S, p.96)

257 ―‗Sente-se, Georgie.‘ Sua irmã sentou-se com trepidação. Havia alguma coisa de errado? Darcy parou e decidiu contar a ela. ‗Somente três casas foram perdidas, mas muitas pessoas se machucaram, uma gravemente, um grande número sofreu com o calor e... houve uma morte.‘ ‗Oh não! Quem morreu?‘ ‗O fogo assustou tanto Jane Baker que ela teve seu bebê prematuro. Mrs. Baker está se recuperando, mas o bebê morreu. A parteira... não conseguiu fazê-lo respirar. Os Bakers, claro, estão enlutados.‘ Com isso, Georgiana começou a chorar. ‗Mas esse era o seu primeiro filho, e ela queria tanto. Ela e seu marido estavam tão felizes. Eu não consigo imaginar quão tristes eles devem estar.‘ Finalmente, quando suas lágrimas secaram, ela respirou e fez planos para levar comida e flores para ajudar confortar seus amigos. Uma verdadeira Darcy, ela conhecia e amava todos os inquilinos e suas crianças‖ (tradução minha). 258 ―Marianne teria considerado imperdoável dormir na primeira noite depois da partida de Willoughby. Sentiria vergonha de encarar a família na manhã seguinte se não levantasse da cama precisando de repouso mais do que quando fora se deitar. De qualquer forma, os sentimentos que tornavam a perspectiva do sono uma desgraça não permitiriam que ela adormecesse. Ficou a noite toda acordada, chorando a maior parte do tempo. Levantou-se com dor de cabeça, sem conseguir falar, indisposta a comer o que quer que fosse, enervando a todo instante a mãe e as irmãs, e as proibindo de tentar consolá-la. Sua sensibilidade tinha esse poder‖ (trad. Alexandra de Souza, p.163).

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Em casos extremos, essa incapacidade de lidar com o sofrimento poderia levar a personagem à loucura, já que ela não era apta para agir de forma racional frente a alguma tragédia que ela mesma vivenciara. Novamente, essa convenção do gênero não passou despercebida pela jovem Austen, que a retratou de maneira muito divertida na paródia Love and Freindship, quando as amigas Sophia e Laura testemunham o acidente com a charrete de seus maridos que acaba matando a ambos. As duas jovens, agora viúvas, reagem de forma adequada às suas personalidades sensíveis que elas tanto prezaram ao longo da história: Sophia só desmaia, e Laura enlouquece. Two Gentlemen most elegantly attired but weltering in their blood was what first struck our Eyes—we approached—they were Edward and Augustus—. Yes dearest Marianne they were our Husbands. Sophia shreiked and fainted on the ground—I screamed and instantly ran mad—. We remained thus mutually deprived of our senses, some minutes, and on regaining them were deprived of them again. For an Hour and a Quarter did we continue in this unfortunate situation—Sophia fainting every moment and I running mad as often. At length a groan from the hapless Edward (who alone retained any share of life) restored us to ourselves. (…) we hastily ran to the Dear Youth and kneeling on each side of him implored him not to die—. (…) "Oh! tell me Edward (said I) tell me I beseech you before you die, what has befallen you since (…) we were separated—" "I will" (said he) and instantly fetching a deep sigh, Expired—. Sophia immediately sank again into a swoon—. My greif was more audible. My Voice faltered, My Eyes assumed a vacant stare, my face became as pale as Death, and my senses were considerably impaired—. "Talk not to me of Phaetons (said I, raving in a frantic, incoherent manner)—Give me a violin—. I'll play to him and sooth him in his melancholy Hours— (…) They told me Edward was not Dead; but they deceived me—they took him for a cucumber—" Thus I continued wildly exclaiming on my Edward's Death—. For two Hours did I rave thus madly and should not then have left off, as I was not in the least fatigued, had not Sophia who was just recovered from her swoon, intreated me to consider that Night was now approaching and that the Damps began to fall.259 (J, pp.129-130)

Peter Sabor argumenta que essa sucessão de frases sem sentido de Laura (―talk not to me of Phaetons... cucumber‖) aparece de forma semelhante em Laura and Augustus

259 ―Dois cavalheiros muito elegantemente vestidos mas mergulhados em seu sangue foi o que vimos primeiro – nós nos aproximamos – eram Edward e Augustus –. Sim, querida Marianne, eles eram nossos maridos. Sophia gritou e desmaiou no chão – eu gritei e instantaneamente enlouqueci. Nós permanecemos assim, mutuamente privadas de nossos sentidos, por alguns minutos, e ao recobrar nossas consciências, perdíamo-nos novamente. Por uma hora e quinze nós continuamos nessa situação infortúnia – Sophia desmaiando a todo momento e eu enlouquecendo com a mesma frequência. Então um gemido do desafortunado Edward (que sozinho retinha qualquer resquício de vida) restaurou-nos a nós mesmas. (...) nós corremos para o querido jovem e ajoelhando ao seu lado imploramos que não morresse (...) / ‗Oh! Diga-me Edward (disse eu), diga-me, eu imploro antes que você morra, o que aconteceu com você desde que nos separamos‘ / ‗Eu direi‘ (disse ele) e instantaneamente, respirando profundo, expirou. – Sophia imediatamente desmaiou de novo. A minha dor era mais audível. Minha voz falhava, meus olhos assumiram um olhar vazio, minha face ficou tão pálida quanto a morte, meus sentidos foram consideravelmente prejudicados. – ‗Não fale comigo de carruagens (disse eu, delirando em uma maneira agitada e incoerente) – Me dê um violino – Eu vou tocar para ele e confortá-lo em seus momentos de melancolia – Eles me disseram que Edward não estava morto, mas eles me enganaram – eles o confundiram com um pepino‘. E assim eu continuei exclamando selvagemente sobre a morte do meu Edward – Por duas horas eu delirei dessa forma louca e não teria parado, porque não estava nem um pouco cansada, não tivesse Sophia acordado de seu desmaio e me pedido para considerar que a noite se aproximava e que o orvalho começava a cair‖ (tradução minha).

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(1784) de Eliza Bromley (com o qual Austen compartilha os nomes das personagens principais) e na peça The Critic (1779), de Richard Sheridan, que por sua vez traria uma paródia da fala de Ophelia em Hamlet, enquanto que R. W. Chapman defendia que esse trecho de Austen era uma paródia de uma das falas do rei em O Rei Lear. Parte da comédia e da sagacidade de Austen é que, no caso de Love and Freindship, Laura está narrando com detalhes a própria loucura – como se, ao invés de ter perdido a razão, estivesse consciente o suficiente para se lembrar, muitos anos depois, de seus ―delìrios‖ (Sabor, 2006, nota 91 p.441). Além disso, vemos a ironia da autora na forma como ela relata que, com a mesma facilidade com que Laura e Sophia se entregaram à loucura e aos desmaios, elas se recuperaram rapidamente para resolver uma questão prática de onde passar a noite, sem dinheiro e sem nenhuma pessoa conhecida por perto, e parecem simplesmente abandonar os corpos de seus maridos na estrada. Elas acabam encontrando um chalé para se abrigarem, porém infelizmente Sophia fica muito doente e morre em poucos dias. A causa de sua doença foi o seu desmaio, que fez com que ela ficasse deitada por muito tempo exposta ao clima e ao sereno. Suas últimas palavras para Laura foram: "My beloved Laura (said she to me a few Hours before she died) take warning from my unhappy End and avoid the imprudent conduct which had occasioned it... Beware of fainting-fits... Though at the time they may be refreshing and agreable yet beleive me they will in the end, if too often repeated and at improper seasons, prove destructive to your Constitution... My fate will teach you this… I die a Martyr to my greif for the loss of Augustus... One fatal swoon has cost me my Life... Beware of swoons Dear Laura.... A frenzy fit is not one quarter so pernicious; it is an exercise to the Body and if not too violent, is I dare say conducive to Health in its consequences—Run mad as often as you chuse; but do not faint—"260 (J, pp.132- 133)

Desmaios são perigosos, diz Sophia, mas ataques de loucura podem até melhorar a saúde, pois foi esse ataque de Laura depois da morte de seu marido que impediu que ela também ficasse deitada exposta ao clima. Da mesma forma como Laura recusa a aceitar qualquer tipo de reprimenda em relação ao seu comportamento com a justificativa de ser uma pessoa de extrema sensibilidade (logo, seu coração estaria sempre certo), a sua loucura segue autorizada; os demaios, contudo, ela jura ter evitado desde então. Esse tipo de perda de sanidade aparece como o tema central em Fitzwilliam Darcy, an Honourable Man (2014), de Brenda Webb. Nele, Elizabeth Bennet é vendida por

260 ―Minha querida Laura (disse ela a mim poucas horas antes de morrer), aprenda uma lição a partir do meu triste fim e evite a conduta imprudente que o causou... Tenha cuidado com ataques de desmaios... Apesar de no momento eles parecerem refrescantes e agradáveis, ainda assim acredite em mim, no final eles serão destrutivos de sua saúde se repetidos com frequência e em estações do ano impróprias. Meu destino vai te ensinar isso... eu morro como uma mártir pelo meu luto pela perda de Augustus... um desmaio fatal me custou a vida... Tome cuidado com desmaios, querida Laura... um ataque de loucura não é nem um quarto tão pernicioso, é um exercício do corpo e se não for muito violento, eu arrisco dizer até que promove a boa saúde como consequência. Enlouqueça com a frequência que quiser, mas não desmaie‖ (tradução minha).

198 sua mãe para ser forçada a se casar com um conde de origem italiana, que a mantém prisioneira. Um incêndio na propriedade possibilita que Elizabeth seja resgatada, mas o trauma foi muito grande e ela vive em um estado de apatia e alheia a qualquer coisa do mundo exterior desde então, escondida por sua irmã Jane, agora esposa de Mr. Bingley. Quando Mr. Darcy descobre o estado de Elizabeth, ele decide levá-la para Pemberley e cuidar de sua saúde. No papel do herói que resgata a donzela em perigo, Darcy não só derrota o conde de uma vez por todas como ele é o único capaz de fazer com que Elizabeth saia de seu estado de insensibilidade e loucura: Elizabeth began flailing at him, trying to escape his grasp, which induced him to tighten his grip and try soothing her as he had a young Georgiana when she had nightmares, whispering in her ear. ‗Shhh, Elizabeth. It is Fitzwilliam. I will not hurt you. Hush, Lizzybet, calm yourself. All will be well. You are safe, sweetheart.‘ He continued his soothing words, and as they reached the terrace, something seemed to register in Elizabeth‘s subconscious. She quit fighting him, looking up as if she were seeing him for the first time. Then her arms went around him, and she hid her face in the crook of his neck and sobbed as if her heart would break. (…) He held her tightly to his chest, rocking her gently back and forth, continuing to whisper words of comfort (…).261 (WEBB, 2014, pp.40-41)

Ainda que abertamente satirizadas em sua Juvenilia, nenhum dos romances publicados de Austen traz personagens que perderam a razão dessa forma – e, desnecessário dizer, ninguém precisou sobreviver a tragédias tão graves quanto ser sequestrada e mantida prisioneira por um conde italiano. Austen deixou de lado essa convenção sentimental, mas manteve, como observamos em Marianne, o seu riso em relação ao sentimentalismo de uma forma geral, inclusive mostrando que a entrega ao sofrimento não era exclusividade das mulheres através da personagem do Capitão Benwick, de Persuasão, aquele mesmo a quem Anne Elliot recomendou uma boa dose de prosa para combater os efeitos depressivos da poesia Romântica que ele vinha lendo. A crítica mais comum de Austen, contudo, está em relação àquelas pessoas que fingiam esse tipo de sofrimento – físico ou psicológico –, o que pode ser observado na sua pouca paciência com personagens hipocondríacas. Em Orgulho e Preconceito, quando Lydia Bennet foge para se casar com Mr. Wickham, a reação de sua mãe é se trancar em seu quarto, choramingar e fazer com que todos cuidem dela: ―what a dreadful state I am in,—that I am frightened out of my wits; and have such tremblings, such

261 ―Elizabeth começou a espancá-lo, tentando escapar de seu controle, o que o induziu a apertar seu abraço e tentar acalmá-la como ele fazia quando a pequena Georgiana tinha pesadelos, sussurrando em seu ouvido: ‗Shhhhhh, Elizabeth, é o Fitzwilliam. Eu não vou te machucar. Pare, Lizzybet, se acalme. Tudo ficará bem. Você está segura, querida‘. Ele continuou com essas palavras de conforto, e conforme alcançaram o terraço, alguma coisa parecia ter se registrado no subconsciente de Elizabeth. Ela parou de brigar, olhando para ele como se o visse pela primeira vez. Então seus braços o abraçaram, e ela escondeu seu rosto no canto de seu pescoço e chorou como se o seu coração fosse quebrar (...). Ele a segurou firme contra seu peito, balançando-a gentilmente, continuando a sussurar palavras de conforto‖ (tradução minha).

199 flutterings, all over me, such spasms in my side, and pains in my head, and such beatings at heart, that I can get no rest by night nor by day‖262 (O&P, p.318). E apesar de tudo isso, Mrs. Bennet na frase seguinte já revela seu ato ao acrescentar, ―tell my dear Lydia, not to give any directions about her clothes, till she has seen me, for she does not know which are the best warehouses‖263 (O&P, p.318), mudando do sofrimento para um enxoval com a mesma rapidez com que Laura e Sophia abadonaram seus maridos. Mr. Bennet, claro, não perde a oportunidade de criticar sua esposa com muita ironia, provavelmente ecoando a autora: ―‗This is a parade,‘ cried he, ‗which does one good; it gives such an elegance to misfortune! Another day I will do the same; I will sit in my library, in my night cap and powdering gown, and give as much trouble as I can‘‖264 (O&P, p.330). Até a doce e plácida Jane Bennet deixa escapar uma leve crìtica quando fala, sobre sua mãe, ―could she exert herself it would be better, but this is not to be expected‖265 (O&P, p.303). Da mesma forma como em Razão e Sensibilidade, a personagem de Mrs. Bennet nos mostra que as pessoas que se entregam às suas emoções são, na verdade, egoístas. E, ao contrário da ficção sentimental da época, não há grandes traumas em Austen, dramas sérios, eventos terríveis que marcam viradas na história. Não há motivos para se entregar ao desespero e à loucura. Há somente hipocondria, hipersensibilidade e egocentrismo. Além da loucura, há outras manifestações físicas do sentimentalismo que são retomadas nas continuações de O&P. Apesar do alerta de Sophia sobre o perigo de desmaios, esses aparecem com frequência para mostrar a fragilidade das mulheres, Elizabeth em especial, nas mais variadas situações de sustos e medo:

Elizabeth stood in the doorway, frozen in place at the sight of Georgiana holding a screaming Millie, who sported red stains over her hands, face and gown. Before Georgiana could utter anything in the way of explanation, Elizabeth fainted. The sound of her hitting the floor with a sickening thud caused Georgiana to scream as well, and servants began rushing toward them from every direction.266 (WEBB, 2016, p.162)

262 ―o estado lastimável em que estou – que estou perdendo a cabeça de tão apavorada; com tremores, palpitações por todo o corpo, espasmos pelos flancos, dores de cabeça e o coração tão apressado que não consigo dormir de noite ou de dia‖ (trad. Alexandre de Souza, p.419). 263 ―diga à minha querida Lydia para não decidir nada sobre o enxolval até me encontrar, pois ela não conhece as melhores lojas‖ (tradução Alexandra de Souza, p.419). 264 ―‗Eis aì uma encenação‘, exclamou ele, ‗que faz bem; confere elegância ao infortúnio! Um dia desses farei o mesmo; sentarei em minha biblioteca, de touca e camisola, e darei o máximo possível de trabalho que puder a vocês‘‖ (trad. Alexandra de Souza, p.431). 265 ―Se ela pudesse fazer um esforço, seria melhor, mas isso não deve ser esperado‖ (tradução minha). 266 ―Elizabeth parou na soleira da porta, congelada no lugar pela visão de Georgiana segurando Millie que gritava e tinha manchas vermelhas nas mãos, rosto e vestido. Antes que Georgiana pudesse falar qualquer coisa para explicar, Elizabeth desmaiou. O som de sua cabeça atingindo o chão com um nauseante baque fez com que Georgiana gritasse também, e empregados começaram a correr em direção a elas de todos os lugares‖ (tradução minha).

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―Would she kidnap our baby?‘ Elizabeth fainted for the first time in her life. ‗Elizabeth!‘ Darcy exclaimed. ‗Mrs. Reynolds!‘. Soon Darcy laid Elizabeth gently on the sofa. Mrs. Reynolds and her smelling salts quickly revived Elizabeth. Tears streamed from Elizabeth‘s eyes. ‗Our baby‘267 (MASON, 2014, p.392).

(…) they heard the sound of gunfire and the carriage jerked to a halt. Georgiana never finished her thought as a man‘s strong voice yelled to the coachman. ‗Stand and deliver!‘. A lone horseman rode to the side of the carriage and rapped on the door with the butt of his pistol. ‗Get outside the carriage, all of you!‘. (…) The highwayman‘s pistol was pointed directly at the side of Georgiana‘s head. As his horse moved closer, his face came into view. It was the older Darcy brother, George Wickham. Georgiana screamed and fainted.268 (KING, 2014, p.71)

Nas passagens acima, o desmaio é a resposta da mulher delicada a uma situação dramática – uma criança machucada que dispara o gatilho de um trauma, um possível sequestro, um assalto na estrada. Afinal, já disse Laura em Love and Freindship, frente a uma situação tão terrìvel, ―Ah! What could we do but what we did! We sighted and fainted on the sofá‖269 (J, p.117). Ao contrário, nenhuma personagem desmaiou nos romances de Austen, nem mesmo a pobre Harriet Smith acuada por um bando de ciganos em Emma. Se tomarmos outra manifestação física de sensibilidade tão importante quanto o desmaio, as lágrimas, sabemos que apenas as heroínas Marianne Dashwood, Catherine Morland e Fanny Price choraram em seus respectivos romances: a primeira, em grande quantidade e sofrimento, como era de se esperar, e as duas últimas sem muitos detalhes. Nas continuações, contudo, tanto Darcy quanto Elizabeth frequentemente derramam lágrimas, às vezes uma só gota discreta, outras vezes um rio, e pelos mais variados motivos. Na passagem abaixo de Jeanne Ellsworth, por exemplo, vemos Darcy pedindo a Deus inspiração para a carta que ele iria escrever para Elizabeth explicando seus atos: ―I will do anything, go through anything, or pay whatever price you ask, but help her to love me. I am begging, begging from my broken heart. I cannot see a happy life without her, only one of drudgery and misery. She has influenced my life in such a permanent way that I cannot go back. I will never be the same. I beg of you to guide my hand to write what it is she needs to read.‖ He wiped away the tears in his eyes and whispered, ―Amen‖270 (ELLSWORTH, 2014, p.5).

267 ―‗Ela raptaria nosso bebê?‘ Elizabeth desmaiou pela primeira vez na sua vida. ‗Elizabeth!‘, Darcy gritou. ‗Mrs. Reynolds!‘ Logo Darcy deitou Elizabeth gentilmente no sofá. Mrs. Reynolds e seus sais rapidamente a reavivaram. Lágrimas escorriam dos olhos de Elizabeth. ‗Nosso bebê‘‖ (tradução minha). 268 ―Eles ouviram o som de um disparo e a carruagem parou abruptamente. Georgiana nunca terminou o seu pensamento pois a voz forte de um homem gritou ao cocheiro. ‗Renda-se e entregue tudo!‘ Um homem a cavalo sozinho veio para o lado da carruagem e bateu na porta com a coronha de sua pistola. ‗Saiam da carruagem, todos vocês!‘ (...) A pistola do ladrão estava apontada diretamente para o lado da cabeça de Georgiana. Conforme seu cavalo chegou mais próximo, seu rosto ficou visível. Era o irmão mais velho de Darcy, George Wickham. Georgiana gritou e desmaiou‖ (tradução minha). 269 ―Ah! O que poderìamos fazer a não ser o que fizemos! Nós suspiramos e desmaiamos no sofá‖ (tradução minha). 270 ―‗Eu farei qualquer coisa, enfrentarei qualquer coisa, ou pagarei qualquer preço que você pedir, mas ajude-a a me amar. Eu estou implorando, implorando a partir do meu coração quebrado. Eu não consigo enxergar uma vida feliz sem ela, somente uma vida de esforço e sofrimento. Ela influenciou a minha vida de forma tão permanente que eu não posso voltar atrás. Eu nunca serei o mesmo. Eu imploro a você que guie minha mão para

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É muito comum que as lágrimas sejam usadas para simbolizar a força dos sentimentos de Darcy por Elizabeth, transformando-o no herói sentimental do século XVIII. Darcy é sempre retratado como um homem corajoso e honrado, mas esse retrato precisa ser completado pela necessidade de ele ser também um homem de emoções profundas que não consegue controlar o amor que sente por Elizabeth – o que, em última instância, o torna dependente dela: ‗Oh, no!‘ he said aloud. ‗Elizabeth will have to go through labor. The pain she will suffer will be unbearable.‘ Then a terrifying thought suddenly struck him, almost knocking him from his chair. She might die! The baby might die! ‗Oh, no!‘ he shouted out loud. (…) Darcy dropped his head into his hands, his elbows resting on the desk. Anguish filled his very soul. (…) Time passed. Darcy sat stiffly in his chair. His body was taut with pain, his mind mesmerized with fear. A light tap sounded on the door. ‗Fitzwilliam, please, may I come in? Please, my love.‘ Darcy rose from his chair, tears now welling in his eyes. He crossed the room and opened the door. A single tear rolled down his cheek. ‗Come in, Elizabeth.‘ ‗Fitzwilliam, what has happened? My love, what is it?‘ He clasped her in his arms, oh, so tightly. ‗Don‘t leave me, Elizabeth.‘ ‗Leave you, Fitzwilliam?‘ ‗I love you so. I couldn‘t bear it. I‘ll just die without you.‘271 (MASON, 2014, p.368)

As lágrimas de Elizabeth também aparecem como manifestações da sua dor, da sua felicidade, das suas inseguranças, e, na maioria das vezes, Darcy está sempre perto para ajudá-la, compartilhando os sentimentos e acalmando o choro. Em Bluebells in the Mourning, de KaraLynne Mackrory, essa comunhão acontece logo no começo da narrativa após a notícia da morte de Lydia Bennet, e serve como ponto de partida para as duas personagens iniciarem uma conexão mais profunda: She closed her eyes and let the tears roll gently down her cheeks. The sway of the carriage matched the waves of pain surging in her breast. She opened her eyes when she felt a gentle pressure on her hands. Maria and Colonel Fitzwillaim had both fallen asleep, and Mr. Darcy as again handing her his handkerchief. (…) She swallowed thickly as she accepted it with a faint ‗Thank you.‘ His eyes were kind, and his face softened in sympathy as he nodded to her. Mr. Darcy was at a loss to describe what he felt when he saw her thus pained. He felt powerless in bringing her relief. If he could take away her agony and carry it himself – if only to see her smile and the light in her eyes return – he would do so in an instant.272 (MACKRORY, 2013 p.130) escrever aquilo que ela precisa ler‘. Ele enxugou uma lágrima de seus olhos e sussurrou, Amém‖ (tradução minha). 271 Ó não!, ele disse em voz alta. ‗Elizabeth vai ter que enfrentar um parto. A dor que ela vai sofrer será impossìvel de aguentar‘. Então um pensamento aterrorizante lhe ocorreu de repente, quase derrubando-o de sua cadeira. Ela pode morrer! O bebê pode morrer! ‗Ó não!‘, ele gritou alto. (…) Darcy segurou sua cabeça caìda com as mãos, seus cotovelos apoiados na escrivaninha. Angústia enchia toda a sua alma. (…) Um tempo passou. Darcy sentou-se duro na cadeira. Seu corpo estava rídigo de dor, sua mente hipnotizada pelo medo. Uma leve batida na porta soou. ‗Fitzwilliam, posso entrar? Por favor, meu amor‘. Darcy levantou de sua cadeira, lágrimas acumulando em seus olhos. Ele cruzou o cômodo e abriu a porta. Uma única lágrima escorreu em seu rosto. ‗Entre, Elizabeth‘. ‗Fitzwilliam, o que aconteceu? Meu amor, o que foi?‘ Ele a apertou em seus braços, oh, tão forte. ‗Não me deixe, Elizabeth.‘ ‗Deixá-lo, Fitzwilliam?‘ ‗Eu te amo tanto. Eu não poderia aguentar. Eu simplesmente morrerei sem você‘ (tradução minha). 272 ―Ela fechou os olhos e deixou as lágrimas escorrerem em seu rosto. O balanço da carruagem acompanhava as ondas de dor que se movimentavam em seu peito. Ela abriu os olhos quando sentiu uma pressão gentil em suas mãos. Maria e Coronel Fiztwilliam estavam ambos dormindo, e Mr Darcy novamente oferecendo-lhe seu lenço.

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A demonstração de sentimentos via lágrimas tornou-se assim quase uma obrigação nas continuações atuais, tão forte quanto a sua presença na literatura sentimental de duzentos anos atrás, e se sobrepõe ao texto de O&P original. Na história de Sally O‘Rourke, The Man Who Loved Jane Austen, analisada no capítulo anterior, acompanhamos o drama de um Fitzwilliam Darcy real que viaja no tempo e conhece a escritora. De volta à nossa época, ele se apaixona por Eliza Knightley, a qual eu argumentei que representa tanto a personagem Elizabeth Bennet quanto a própria Austen. Na cena final, contudo, quando Darcy finalmente se declara para Eliza, ele utiliza a fala do Mr. Darcy de O&P, mas a cena é acrescida de um detalhe: ―At length Darcy smiled and there were tears in his eyes as he lowered his face to hers and whispered, ‗Dearest, loveliest Eliza…‘‖273 (O‘Rourke, 2006, p. 303, destaque meu). É como se a cena original de Austen precisasse ser melhorada, como se fosse um ponto incontestável que Mr. Darcy, após receber a aprovação de Elizabeth para seu segundo pedido de casamento, tinha de fato os olhos cheios de lágrimas de felicidade, um detalhe que Austen só não registrou. Essa percepção de que os romances de Austen estão permeados de emoção nas entrelinhas, na verdade, contraria o que todos os estudiosos vêm dizendo há pelo menos três décadas, que a autora leu, utilizou, manipulou a ficção sentimental de sua época de acordo com a sua visão de como um bom romance deveria ser, mas que ela, na verdade, nunca escreveu um romance sentimental apesar de todas as suas histórias serem sobre relacionamentos amorosos com finais felizes. Muito pelo contrário, como nos lembra Janet Todd, Austen evitou conscientemente toda a linguagem típica da sensibilidade vinda da poesia que se tornou a matéria-prima básica dos romances góticos e sentimentais (Todd, 2015, p.21). O estilo de Austen é completamente diferente, afirma Todd, principalmente a partir do uso do discurso indireto livre, o qual muitos autores consideram, se não uma invenção sua, pelo menos dominado totalmente, pela primeira vez, por ela: Discurso indireto livre é uma técnica no limite entre fala e discurso narrativo, empregado em passagens, geralmente sem aspas, as quais não são mostradas como discurso direto mas que representam as expressões das personagens ao empregar seu vocabulário, frases, estruturas de frases e inflexões idiomáticas. Os discursos direto e indireto, assim como a subjetividade e a objetividade, se combinam, e o narrador, permitindo uma distância da personagem, imita seu estilo. Quando usado para uma consciência central, o leitor tanto se identifica com essa consciência quanto suspeita de que não seja necessariamente autêntica. O que é mostrado pode ser um ponto de

(...) Ela engoliu com dificuldade e aceitou com um leve ‗Obrigada‘. Seus olhos eram gentis, e sua face suavizada em simpatia quando acenou para ela com a cabeça. Mr. Darcy não sabia como descrever o que ele sentia quando a via com tanta dor. Ele se sentia impotente para oferecer qualquer alívio. Se apenas pudesse tomar a sua agonia e carregá-la por ela – somente para ver ela sorrir e a luz retornar aos seus olhos – ele faria isso num piscar de olhos.‖ (tradução minha). 273 Finalmente Darcy sorriu e havia lágrimas em seus olhos quando ele aproximou-se de seu rosto e sussurrou ‗Querida, amada Eliza...‘‖ (tradução minha).

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vista e não um fato objetivo, ou pode ser uma mistura dos dois. (TODD, 2015, p.32, tradução minha)

O uso do discurso indireto livre, em oposição ao discurso direto, permitiu a Austen ―limpar‖ o sentimentalismo do romance. Se voltarmos aos dois trechos apresentados nas páginas 176-177, a cena original de Austen do pedido de casamento de Edward Ferrars em R&S e a versão de Mme. Montolieu, podemos perceber dois pontos importantes: que os sentimentos de Ferrars, não menos ―arrebatadores‖ do que na versão de Montolieu, não precisam ser mostrados e, na verdade, são ironizados – não como condenção, mas como se o narrador olhasse para a cena com indulgência. O segundo ponto, que a descrição da cena pelo narrador, o qual, segundo Todd, é ciente mas não omnisciente, nos poupa de testemunhar qualquer tipo de discurso sentimental que surgiria nesse tipo de cena, o que rende no mínimo uma grande economia em interjeições e pontos de exclamação. Outra característica muito importante do estilo de Austen resultante do seu discurso indireto livre é a dificuldade em se definir quem realmente está falando. Como observa Janet Todd, (2015, p.33), às vezes não fica claro se uma frase é um comentário ou discurso indireto livre, se pertence ao narrador ou à personagem – ou seja, nem tudo pode ser confirmado. Em carta para Cassandra em 29 de janeiro de 1813, Austen celebra a chegada de Orgulho e Preconceito, ―my own darling Child‖, mas reclama de seu editor que inseriu algumas palavras para tentar deixar claro esse tipo de indefinição: ―There are a few Typical erros, –& a ‗said he‘ or a ‗said she‘ would sometimes make the Dialogue more immediately clear – but ‗I do not write for such dull Elves‘‖274 (Letters, p.210). Podemos perceber, portanto, que embora tenha incidentalmente gerado o fenômeno das suas continuações, a obra de Austen mantém um tipo de complexidade que foge a toda tentativa de enquadramento. Essa complexidade é percebida pelos leitores atuais como algo que diferencia a sua obra, mas que não significa, necessariamente, que isso seja visto de maneira positiva. Como nos mostra Janice Radway a respeito das leitoras de romances Harlequin na década de 1980, Ao discutir os romances de Jane Austen, muitas das mulheres admitiram que apesar de elas terem gostado das heroínas e terem achado as histórias intrigantes, elas só conseguiam ler Austen se não estivessem cansadas, e se estivessem sozinhas. ―As frases delas são tão confusas‖, lamentou Joy, ―que eu realmente preciso me esforçar para entender o que ela está dizendo. Eu não posso ler seus romances e fazer outra coisa ao mesmo tempo. É um trabalho duro‖ (RADWAY, 1984, p.197, tradução minha)

Em comparação, os romances apreciados por essas leitoras, os quais compartilham muitas características com as continuações atuais, apresentam tipicamente uma

274 ―meu próprio querido filho‖ / ―Existem alguns erros tìpicos – e um ‗disse ele‘ ou ‗disse ela‘ faria de vez em quando os diálogos mais imediatamente claros – mas eu não escrevo para esses Elfos chatos‖ (tradução minha).

204 redundância e repetição intertextual e de vocabulário que, segundo Radway (1984, p.195), constrói descrições e caracterizações típicas que repetidamente confirmam as expectativas do leitor, sem qualquer tipo de desafio interpretativo: A redundância do discurso permite ao leitor continuar com um mínimo esforço de trabalho interpretativo depois de seu encontro inicial com a forma romântica. Cada aparição subsequente do adjetivo padrão pode invocar uma caracterização inteira e disparar a resposta emocional usual do leitor como resultado de sua ligação anterior formulaica com todo um conjunto de descrições e reações de atos de leitura anteriores. Os romances ajudam a prevenir a necessidade por uma interpretação auto-consciente ao raramente considerarem que seus leitores são capazes de inferir algum significado, traçar conclusões ou suprir ―molduras‖. Tipicamente, depois de descrever uma resposta verbal que qualquer leitor poderia entender como causada por raiva, o escritor revela que ―ela estava com raiva‖. A repetição é a regra, não a exceção, que governa esses romances. Mesmo em passagens obviamente pretendidas para invocar um certo humor, os escritores de romances não conseguem evitar a tentação de ajudar o leitor nos seus esforços de interpretação. (RADWAY, 1984, p.196, tradução minha)

A adição de um ―ela estava com raiva‖ lembra muito o comentário de Austen sobre a adição de ―he said‖ ou ―she said‖ em seus diálogos, e a sua referência ao poema Marmion (1808), de Walter Scott, ―I do not write for such dull Elves‖, deixa claro que ela não escrevia para leitores que necessitavam desse tipo de ajuda. Mas, como vimos, as continuações de seus romances não conseguem atingir o mesmo nível de complexidade e se restringem a trazer apenas uma leitura fácil de uma mesma história travestida em diferentes cenários e situações. Temos então mais um círculo vicioso que parece alimentar o fenômeno: de um lado, a leitura simplista das obras de Austen, que não consegue penetrar na sua profundidade, foca apenas na trama romântica e produz, depois, o desejo pela repetição dessa trama atendido pelas continuações; do outro lado, o crescimento do fenômeno e da popularidade das continuações forma leitores que procuram no original apenas aquela trama romântica e não conseguem ir além dessa leitura simplista. Finalmente, como estamos tratando de um processo de ―ressentimentalização‖ de Austen e de uma leitura que busca apenas pelo romântico, é necessário falar sobre como o amor aparece nas continuações aqui estudadas. Especificamente a respeito de Orgulho e Preconceito, devemos lembrar que a autora retrata o desenvolvimento do relacionamento das duas personagens principais de maneira crua, ou, como observa Gabriela Castellanos, sem qualquer tipo de idealização e com uma boa dose de humilhação para os dois lados, mostrando um processo de apaixonar-se totalmente dessacralizado, muitas vezes cômico e mundano (Castellanos, 1994, p.127). Essa abordagem de Austen era muito diferente do amor ideal retratado pela ficção sentimental e que vai ser recuperado pelas continuações. Em For All The Wrong Reasons, de Mary Lydon Simonsen, Georgiana Darcy pede para seu irmão

205 ignorar seu dever de se casar com uma mulher da aristocracia e procurar, ao contrário, um verdadeiro amor: Georgiana took his hand in hers. ―Will, I remember so little of our mother. But what I do recall is that she was deeply in love with Papa, and when you marry, I want you to be profoundly in love with your wife. So, you must put away that list as there is no one on it who is worthy of you, and you must look elsewhere. (…) So you must promise me that you will not settle and that you will marry for love.‖275 (SIMONSEN, 2011, p.18)

No original, Darcy acaba vencido pelos seus sentimentos e decide pedir Elizabeth em casamento, mas não sem antes deixar claro como enxergava essa união: ―he was not more eloquent on the subject of tenderness than of pride. His sense of her inferiority—of its being a degradation—of the family obstacles which judgment had always opposed to inclination, were dwelt on with a warmth which seemed due to the consequence he was wounding, but was very unlikely to recommend his suit‖276 (O&P, p.211). É fácil entender porque a declaração de Darcy é usada como um argumento ―pró-amor‖, como se ele tivesse escutado o conselho de Georgiana na passagem de Simonsen. Contudo, não podemos ignorar o peso do dever social que fez com que Darcy lutasse contra o seu sentimento até o último momento, e na sua fala podemos perceber um tom de decepção consigo mesmo: ―In vain have I struggled‖277 (idem), ele diz na abertura de seu pedido, quase como uma relutante admissão de derrota. Darcy não é uma pessoa sentimental, ele enxerga a vitória do seu amor por Elizabeth sobre a sua resistência como um problema, ou no mínimo uma inconveniência. Essa sua visão é reforçada na discussão que se segue entre os dois após a recusa de Elizabeth: "And this is all the reply which I am to have the honour of expecting! I might, perhaps, wish to be informed why, with so little endeavour at civility, I am thus rejected. But it is of small importance." "I might as well enquire," replied she, "why with so evident a design of offending and insulting me, you chose to tell me that you liked me against your will, against your reason, and even against your character? Was not this some excuse for incivility, if I was uncivil? (…) "But perhaps," added he, stopping in his walk, and turning towards her, "these offences might have been overlooked, had not your pride been hurt by my honest confession of the scruples that had long prevented my forming any serious design. These bitter accusations might have been suppressed, had I with greater policy concealed my struggles, and flattered you into the belief of my being impelled by unqualified, unalloyed inclination; by reason, by reflection, by every thing. But

275 ―Georgiana tomou suas mãos nas dela. ‗Will, eu me lembro tão pouco de nossa mãe. Mas o que eu lembro é que ela era profundamente apaixonada por papai, e quando você se casar, eu quero que você esteja profundamente apaixonado pela sua esposa. Então, você deve deixar de lado aquela lista pois não há ninguém nela digno de você, e deve procurar em outro lugar. (...) Então você deve me prometer que você não vai se acomodar e que você vai se casar por amor‖ (tradução minha). 276 ―ele não era tão eloquente no campo da ternura quanto no de orgulho. A noção que tinha da inferioridade dela – de que ele estava se rebaixando – dos obstáculos familiares que o juízo sempre opusera à inclinação, foram abordados com um ardor que parecia ser um dever ao seu status que estava ferindo, mas era improvável que recomendasse seu pedido‖ (tradução Alexandre de Souza, p.313 com alterações minhas). 277 ―Em vão tentei lutar contra isso‖ (trad. Alexandre de Souza, p.313).

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disguise of every sort is my abhorrence. Nor am I ashamed of the feelings I related. They were natural and just. Could you expect me to rejoice in the inferiority of your connections? To congratulate myself on the hope of relations, whose condition in life is so decidedly beneath my own?"278 (O&P, pp.212-215, grifo meu)

Na passagem acima, Elizabeth mostra para Darcy como seu discurso a ofendeu, e a sua resposta é que ele tinha perfeita razão em relutar contra seus sentimentos, afinal, ela não poderia esperar que ele simplesmente acolhesse e celebrasse a sua inferioridade. Mas não só isso. Quando ele afirma que talvez a resposta de Elizabeth tivesse sido diferente caso ele tivesse escondido essa relutância e citado apenas um amor ―impelled by unqualified, unalloyed inclination; by reason, by reflection, by every thing‖, ele acusa Elizabeth de ser ela própria uma pessoa sentimental (ou seja, ingênua), que teria aceitado seu pedido se ela tivesse ouvido apenas ele falar sobre um amor ideal, arrebatador, vindo de romances. A resposta de Elizabeth, uma das suas falas mais afiadas em todo o livro, refuta essa acusação e ainda destrói qualquer ilusão de Darcy naquele momento: ―"You are mistaken, Mr. Darcy, if you suppose that the mode of your declaration affected me in any other way, than as it spared me the concern which I might have felt in refusing you, had you behaved in a more gentleman- like manner. (…) I had not known you a month before I felt that you were the last man in the world whom I could ever be prevailed on to marry"‖279 (O&P, p.215). Toda essa discussão acalorada entre os protagonistas nos mostram que o amor ideal da ficção sentimental estava bem longe dali. Nas continuações, porém, ele passa a ser o centro. Um dos pontos marcantes dessa retomada do amor ideal é a frequência com que os protagonistas são tomados de surpresa pelo ―amor à primeira vista‖, ainda que no começo haja alguma resistência em admiti-lo. Mr. Darcy, por exemplo, frequentemente sente-se atraído e interessado em Elizabeth Bennet no momento em que a conhece pela primeira vez, ainda que, no original, tenha falado apenas

278 ―‗E essa é a unica resposta pela qual terei a honra de esperar! Talvez eu desejasse saber por que, se não for abusar da sua cortesia, fui assim rejeitado. Mas isso não tem tanta importância.‘ ‗E eu também poderia desejar saber‘, respondeu ela, ‗por que com tão evidente intuito de me ofender e insultar preferiu contar que gostava de mim contra a sua vontade, contra o seu juízo, e mesmo contrariando seu próprio caráter? Não seria razão suficiente para alguma falta de cortesia da minha parte, se é que lhe faltei com a educação?‘ (...) ‗Mas talvez‘, acrescentou ele, detendo-se a meio caminho, e virando-se para ela, ‗tais ofensas pudessem ter sido relevadas, não tivesse sido o seu orgulho ferido pela minha honesta confissão dos escrúpulos que evitaram há tempos qualquer decisão séria da minha parte. Tais acusações amargas talvez tivessem sido suprimidas se eu tivesse disfarçado com mais cuidado meu conflito – e a levasse galantemente a acreditar que eu estivesse sendo impelido por uma inclinação descabida e ingênua – com a razão, com a reflexão, com tudo. Mas tenho aversão a toda sorte de disfarces. Nem tenho vergonha dos sentimentos que lhe confessei. São naturais e justos. Esperava que eu me alegrasse com a inferioridade da sua família? Que eu me felicitasse pela perspectiva de me relacionar com pessoas cuja posição na vida é tão decididamente abaixo da minha?‘‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.315-317) 279 ―Está enganado, senhor Darcy, ao supor que o modo da sua declaração me afetou de alguma forma além de me haver poupado da preocupação que eu poderia sentir por rejeitá-lo se o senhor houvesse se comportado de modo mais cavalheiresco. (...) e menos de um mês depois de havê-lo conhecido eu já achava que seria o último homem do mundo com quem aceitaria me casar‖ (trad. Alexandre de Souza, p.517).

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"She is tolerable; but not handsome enough to tempt me‖280 (O&P, p.12) quando Mr. Bingley sugere Elizabeth como sua parceira para uma dança. Elizabeth, tendo escutado seu comentário, fica com ―no very cordial feelings towards him‖, mas depois contou o acontecido para seus amigos porque ela tinha ―a lively, playful disposition, which delighted in any thing ridiculous‖281 (O&P, p.12), ou seja, ao invés de ficar ofendida, Elizabeth decide rir de Darcy. Mas essa situação não pode ficar assim. É necessário consertar a cena, como na versão de Pamela Aidan, An Assembly Such as This, em que Darcy se pega observando Elizabeth: What was she thinking? Intrigued, he allowed himself to examine her. At that moment, his object turned toward him, the smile still gracing her face, but now with one delicate brow arched in question at his blatant scrutiny. He hastily turned away, his discomposure with her discovery of him setting him further at odds with his companion. If Bingley imagined he would be content with what other men overlooked while he enjoyed the company of the only passable young woman present, he must think again! ‗She is tolerable, but not handsome enough to tempt me,‘ he objected sharply. ‗You had better return to your partner and enjoy her smiles, for you are wasting your time with me.‘ Leaving Bingley to make of his advice what he would, Darcy turned abruptly and walked as far from the vicinity of the disturbing female as he could.‘282 (AIDAN, 2006a, pp.6-7)

Como podemos observar, Darcy não quer reconhecer o seu interesse por Elizabeth, e somente a chama de ―tolerable‖ para se livrar da insistência de Bingley e manter uma espécie de orgulho próprio porque ele não poderia sucumbir a essa ―disturbing female‖. No fim do baile, porém, Darcy vê Elizabeth de longe e não consegue resistir à atração que sente: ―A low, delightful laugh escaped from one of the ladies, drawing Darcy forward to seek out its source. There, beneath the crackling torch, he found it and, with a tingling jolt, saw that is was the young woman of the enigmatic smile who had so discomposed him earlier. He watched as she gently refused the arm of the young officer and montioned him off to assist one of her sisters. Then, with a sigh of pleasure, she gracefully adjusted her wrap and lifted her face to the beauty of the night sky. The simplicity of her joy caught him, and as the carriage lurched forward, Darcy found that he could not take his eyes from her.283 (idem, pp.7-8)

280 ―Ela é tolerável, mas não bonita o suficiente para me tentar‖ (tradução minha). 281 ―sentimentos não muito cordiais em relação a ele‖ / ―um gênio divertido e entusiasmado, que se deliciava com qualquer coisa de ridìculo‖ (trad. Alexandre de Souza, p.113). 282 ―O que ela estava pensando? Intrigado, ele permitiu a si mesmo examiná-la. Naquele momento, seu objeto virou em sua direção, o sorriso ainda agraciando sua face, mas agora com uma delicada sobrancelha arqueada questionando o seu escrutínio evidente. Ele olhou para outro lado rapidamente, seu embaraço com ela flagrando- o o deixando ainda mais irritado com seu companheiro. Se Bingley imaginava que ele iria se contentar com o que outros homens descartavam, ele deveria pensar de novo! ‗Ela é tolerável, mas não bonita o suficiente para me tentar‘, ele negou bruscamente. ‗É melhor você retornar para a sua parceira e aproveitar os seus sorrisos, pois está perdendo o seu tempo comigo.‘ Deixando Bingley fazer do seu conselho o que quisesse, Darcy virou-se abruptamente e distanciou-se da vizinhança daquela mulher perturbadora tanto quanto possìvel‖ (tradução minha). 283 ―Uma risada baixa e encantadora escapou de uma das damas, atraindo Darcy em sua direção para localizar sua fonte. Lá, embaixo da tocha que estalava, ele a encontrou e, com um choque de energia, percebeu que era a jovem mulher do sorriso enigmático que tinha lhe embaraçado antes. Ele observou enquanto ela gentilmente recusou o braço de um jovem soldado e moveu-o para que ajudasse uma de suas irmãs. Então, com um suspiro de prazer, ela ajustou seu xale com delicadeza e ergueu seu rosto para a beleza do céu noturno. A simplicidade

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Finalmente, no dia seguinte, ele tem seus pensamentos invadidos por ela contra a sua vontade: ―As he strode toward the door and the stables beyond, the picture of a quite different young woman, her eyes lifted to the night sky, formed in his mind, catching him in midstride. Shaking his head, he resumed his way to the stables‖284 (idem, p.12). Nesse momento o leitor sabe que já não adiantava mais lutar, Darcy já estava preso por Elizabeth mesmo que ele ainda não quisesse, por orgulho, admitir isso. Outras adaptações preferem modificar totalmente a forma como as personagens se conheceram e evitar a ofensa inicial de Darcy. Em A Father’s Sins, Dawn King faz com que um jovem Mr. Darcy encontre por acaso uma adolescente Elizabeth Bennet em uma livraria, e ambos saem impressionados um com o outro. Eles se reencontram seis anos depois, e Darcy é imediatamente tomado por uma emoção que ele ainda não reconhece: ―Yes, here was the young lady from the bookstore with the chocolate-brown hair just peeking out from her bonnet and the sparkling hazel eyes rimmed with dark, thick lashes that he had kept in the part of his mind reserved for the most pleasant of memories. She now had deep wisdom reflected in those eyes and he pondered what her life had been the past six years. His own life had changed so greatly that he wondered if she possibly recognized him from their brief encounter at Hatchard Book Sellers. Darcy was unaware that he still held her hands in his grasp until she stared to pull away. He knew the accepted rules of society required that he let her go, but his heart indicated that he not. His heart rarely made demands on him; in fact, it was possible that this was the first time in years that his heart felt more than a flutter.‖285 (KING, 2014, p.27)

Está claro que, mesmo que Darcy ainda não tivesse consciência disso, Elizabeth era o seu destino, já que o seu coração a reconheceu como tal – lembremos como a moda do sentimentalismo determinou que o coração indicava a natureza do indivíduo e estava acima de qualquer pensamento racional. Darcy segurava a mão de Elizabeth ―sem perceber‖, mas o seu coração sabia o que estava fazendo. No original, porém, sabemos que Darcy não ficou impressionado pela aparência de Elizabeth, já que no baile ele tinha visto apenas ―a collection of people in whom there was little beauty and no fashion, for none of whom he had felt the

da sua alegria o capturou, e enquanto a sua carruagem seguia em frente, Darcy descobriu que não conseguia tirar seus olhos dela‖ (tradução minha). 284 ―Conforme ele caminhou em direção à porta e aos estábulos além, a figura de uma mulher totalmente diferente, seus olhos voltados para o céu noturno, formou-se em sua mente, surpreendendo-o no meio da passada. Sacundindo a cabeça, ele continuou seu caminho para os estábulos‖ (tradução minha). 285 ―Sim, aqui estava a jovem moça da livraria com o cabelo castanho chocolate olhando por seu chapéu e os olhos avelã contornados com cílios longos e escuros que ele tinha guardado na parte de sua mente reservada apenas para as memórias mais prazerosas. Ela agora tinha a sabedoria profunda refletida naqueles olhos e ele indagou-se o como tinha sua vida nesses últimos seis anos. A sua própria vida tinha mudando tanto que ele pensava se era possível que ela o reconhecesse de seu breve encontro na Livraria Hatchard. Darcy não percebeu que ele ainda segurava suas mãos nas dele até que ela começou a puxá-las. Ele sabia que as regras da sociedade exigiam que ele a deixasse ir, mas seu coração indicava que ele não deveria. Seu coração raramente fazia exigências dele; na verdade, era possível que essa fosse a primeira vez em anos em que seu coração sentia mais do que uma palpitação‖ (tradução minha).

209 smallest interest‖286 (O&P, p.18), e não há forma mais clara para Austen rejeitar a convenção do amor à primeira vista. Mas, para garantir, ela vai repetir essa ideia depois do segundo pedido de casamento ter sido aceito, em que Darcy explica que ―I cannot fix on the hour, or the spot, or the look, or the words, which laid the foundation [para ele se apaixonar]‖287 (O&P, p.421). Como comenta Auerbach (2004, p.154), é difícil encontrar uma passagem como essa em outra obra literária anterior, e parece tratar-se de uma rejeição deliberada da parte de Austen da fórmula do ―love at first sight‖ esperada de romances sobre relacionamentos amorosos. A autora escolhe focar, ao invés, no desenvolvimento gradual da relação entre Elizabeth e Darcy. Uma comparação interessante seria o amor de Mr. Bingley por Jane Bennet, o qual, tudo indica, foi imediato após eles se conhecerem naquele mesmo baile, porém não foi forte o suficiente para Bingley contrapor a influência negativa de suas irmãs e do amigo. Da parte de Elizabeth, mudanças semelhantes também são aplicadas aos seus sentimentos. Se na passagem acima o coração de Darcy reconheceu Elizabeth como seu destino, em Haunting Mr. Darcy é a alma de Elizabeth que está irremediavelmente presa a Darcy. Após sofrer um acidente de carruagem, ela entra em coma e a sua alma se desprende de seu corpo e ―acorda‖ na casa de Mr. Darcy em Londres. Obviamente, ele é o único que consegue enxergá-la. O elo entre os dois é tão forte que a ―Elizabeth-fantasma‖ não consegue se afastar mais do que alguns metros de Darcy, sendo obrigada, ou ―puxada‖ a segui-lo por toda parte. Como isso ocorre antes de Elizabeth desenvolver a consciência de ter qualquer sentimento por ele, fica claro que a sua alma sempre esteve ligada a Darcy, deixando implícita a ideia de que eles são, de fato, almas gêmeas. Contudo, para a história ter um final feliz, é necessário que a alma de Elizabeth retorne ao seu corpo, que ela acorde do seu coma. Darcy viaja até Longbourn e consegue entrar escondido na casa dos Bennet à noite para que eles possam tentar essa reconexão entre corpo e alma. Após vários experimentos, por acaso Darcy descobre que a única coisa que pode acordar Elizabeth é um beijo: His heart was beating as he paused just above her angelic face. Closing his eyes, he drew a slow breath and lowered to press his lips to hers. The warmth and softness of them entranced him, and he at once was devoured by the multitude of sensations coursing through him. As he pressed his lips to hers, slowly the feeling that grew in prominence against all the other exquisite sensations was that of extreme rightness. It was as if he was destined to this end. Though the kiss was brief, it was no less powerful to the gentleman, who found himself quite breathless as he lifted his head. He looked down at the lady and was astonished, paralyzed suddenly in shock, as he felt her stir beneath the hand still resting tenderly on her cheek. ―William!‖

286 ―um grupo de pessoas sem a mìnima beleza ou estilo, pelas quais não sentira o menor interesse‖ (trad. Alexandre de Souza, p.119). 287 ―Não sei precisar a hora, ou o lugar, ou o olhar, ou as palavras, que lançaram as bases‖ (trad. Alexandre de Souza, p.522).

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Elizabeth‘s voice drew his attention to her ghostly self. She had turned herself during the kiss, and her hand was resting unbelievingly upon her lips. ―I feel something. I . . . Something is happening.‖ Wide-eyed, Darcy watched as her vision wavered before him. (…) Again, the cheek resting in his hand stirred, and he was seized with a hope that drove him to bend over her lips again. (…) This time he poured forth all the love he felt in his heart and allowed it to manifest skin to skin as he connected his very soul to hers. (…) Quietly he called her name. Laughing tears of profound happiness and relief then rumbled up and out of his chest as he saw her eyes flutter and open to look at him. (...) ―Welcome back, Elizabeth.‖288 (MACRORY, 2014, posição 3954-3975, grifos meus).

Como uma perfeita releitura de ―A Bela Adormecida‖, é apenas o beijo de seu príncipe encantado que tem o poder de despertar Elizabeth. E o que antes era apenas sugerido, após essa passagem não há mais dúvidas: as suas almas estão conectadas e é o seu destino ficarem juntos. Em comparação com esse tipo de ligação cósmica ou celestial, podemos suspeitar que a forma como Elizabeth se apaixona por Mr. Darcy no romance original deve ser no mínimo frustrante para os leitores atuais, e vista como algo inusitado até mesmo para os leitores acostumados com ficção sentimental do século XIX, como a própria Austen parece indicar: If gratitude and esteem are good foundations of affection, Elizabeth‘s change of sentiment will be neither improbable nor faulty. But if otherwise, if regard springing from such sources is unreasonable or unnatural, in comparison of what is so often described as arising on a first interview with its object, and even before two words have been exchanged, nothing can be said in her defence, except that she had given somewhat of a trial to the latter method, in her partiality for Wickham, and that its ill success might perhaps authorize e her to seek the other less interesting mode of attachment.289 (O&P, p.308)

Austen ironiza a forma como os sentimentos de Elizabeth mudaram de repulsa a amor por apenas ―gratitude and esteem‖, comparando-o com aquele derivado ―on a first

288 ―O seu coração estava batendo forte quando hesitou apenas acima da sua face angelical. Fechando seus olhos, ele soltou a respiração lentamente e baixou seus lábios para pressionar os dela. O seu calor e maciez o hipnotizaram, e ele foi imediatamente devorado por uma multidão de sensações que corriam em seu corpo. Conforme ele apertou seus lábios nos dela, lentamente o sentimento que cresceu em proeminência contra todas as sensações maravilhosas era a de extrema certeza. Era como se ele estivesse destinado para isso. Apesar do beijo ter sido breve, não foi menos poderoso para o cavalheiro, que se encontrou quase sem ar conforme levantou sua cabeça. Ele olhou para a dama e ficou assombrado, paralisado de repente em choque, ao sentir ela se mexer sob a sua mão que ainda descansava em seu rosto. ‗William!‘ a voz de Elizabeth atraiu sua atenção ao seu ser fantasma. Ela tinha se virado durante o beijto, e sua mão incrédula tocava seus lábios. ‗Eu senti alguma coisa... eu… alguma coisa está acontecendo.‘ De olhos arregalados, Darcy assistiu a imagem dela oscilar perante ele. (…) Novamente, a face que encostava sua mão se mexeu, e ele foi tomado por uma esperança que o fez dobrar-se sobre seus lábios novamente. (...) Dessa vez ele derramou todo o amor que sentia em seu coração e permitiu que ele se manifestasse pele à pele conforme ele conectava suas almas. (...) Em um tom baixo ele chamou seu nome. Lágrimas de alegria e de felicidade profunda e alívio reverberavam em seu peito e para fora dele assim que ele viu os olhos dela estremecerem e abrirem para vê-lo. (...) ‗Bem-vinda de volta, Elizabeth‘‖ (tradução minha). 289 ―Se a gratidão e a estima são bons fundamentos para o afeto, a mudança dos sentimentos de Elizabeth não poderia ser considerada improvável ou falha. Mas, se fosse de outro modo, se ao afeto que brotava dessas fontes faltasse razão ou naturalidade, em comparação com o que muitas vezes é descrito como o que surge no primeiro encontro, e antes mesmo de trocar duas palavras, nada pode ser dito em sua defesa senão que ela de algum modo se submetera ao último método em sua preferência por Wickham, e que o insucesso talvez a autorizasse a buscar agora o outro modo, menos interessante, de se afeiçoar‖ (trad. Alexandre de Souza, p.409).

211 interview with its object‖ – ou seja, amor à primeira vista –, e espera que os leitores considerem essa mudança de Elizabeth ―unreasonable or unnatural‖. Mas, em sua defesa, Austen argumenta que a atração de Elizabeth por Mr. Wickham tinha sido de fato à primeira vista, porém sem resultados positivos para ela, o que a levou, portanto, a adotar esse modo ―less interesting‖ de se apaixonar. É claro que Austen está satirizando tanto a convenção do amor sentimental quanto a expectativa dos leitores a esse respeito, da mesma forma como fez em Northanger Abbey (o amor de Mr. Tilney por Catherine também nasceu de gratidão) e em Mansfield Park (Edmund Bertram precisou esquecer Mary Crawford antes de se apaixonar por Fanny). E, depois, quando Jane pede para Elizabeth explicar como e quando ela se apaixonou por Darcy, ela responde: ―It has been coming on so gradually, that I hardly know when it began. But I believe I must date it from my first seeing his beautiful grounds at Pemberley‖290 (O&P, p.414). ―Coming on gradually‖ é exatamente o oposto de amor à primeira vista, e a brincadeira com a referência a Pemberley, como se Elizabeth estivesse de fato apenas se casando por interesse, deixa a sua declaração ainda mais anti-romântica. Para as continuações, contudo, é importante que Elizabeth também seja de alguma forma afetada por Mr. Darcy quando o conhece pela primeira vez, seja uma atração física, uma curiosidade de conhecê-lo melhor, ou até a admissão posterior que ela tinha se apaixonado por ele já no baile em Meryton, e por isso a ofensa de ele chamá-la de apenas tolerável tinha sido tão forte. É exatamente esse o argumento em Fiztwilliam Darcy, an Honourable Man, no qual Elizabeth recorda ―The night in Meryton when she had fallen in love at first sight, against her better judgment and her will, with a man she knew was far above her station‖291 (Webb, 2014, p.420), e explica que o seu desdém por Darcy era uma farsa: I confess that I cared for you from our earliest acquaintance, and your statement that I was merely ―tolerable‖ hurt me deeply. Thus wounded, I set out to find fault with your every deed. But no matter the number of imperfections that I laid at your feet, you always conducted yourself like a gentleman—even when you realised that I had heard the remark and apologised with kindness.292 (WEBB, 2014, p. 390)

Essa convenção do amor à primeira vista parece ser usada sem qualquer tipo de limites nas continuações, e, vez ou outra, esse saturamento gera desagrado. Em uma avaliação do romance Chosen (2014), de Sarah Johnson, um leitor classificou o livro como ―piegas‖,

290 ―Foi acontecendo de modo tão gradual, mal sei dizer quando começou. Mas creio que a data precisa seja a primeira vez em que vi sua bela propriedade em Pemberley‖ (trad. Alexandre de Souza, p.516). 291 A noite em Meryton quando ela tinha se apaixonado por ele à primeira vista, contra seu melhor julgamento e vontade, por um homem que ela sabia ser acima de sua situação‖ (tradução minha). 292 ―Eu confesso que eu me interessei por você desde que nos conhecemos, e a sua declaração de que eu era apenas ‗tolerável‘ me machucou profundamente. Assim ferida, eu parti para encontrar falhas em tudo o que você fazia. Mas não importa o número de imperfeições que eu lhe atribuía, você sempre se portou como um cavalheiro - mesmo quando você percebeu que eu tinha ouvido seu comentário e pedido desculpas com gentileza‖ (tradução minha).

212 observando que as personagens ―are either too good to be true or too sinister to be free of a mental institution. Everyone seems to fall in love at first sight (…). The most unbelievable situation put forward by the author is the Viscount Primrose (Darcy's cousin) falls in love with Mary Bennett. Again almost love at first sight‖293 (por ―Read Right‖, 31/05/2014)294. O leitor registra sua insatisfação com o ―abuso‖ dessa convenção romântica, que torna a história ―unbelievable‖. Mas essa reclamação é uma exceção. De uma forma geral, Chosen foi avaliado com uma média de quatro estrelas (de um total de cinco), apesar de o livro de Johnson ser de fato uma das continuações mais sentimentais (e, por que não, piegas) dentro do conjunto analisado aqui. A média geral positiva indica que a maioria das pessoas aprecia essa característica, como nas avaliações abaixo: ―I just finished it last night, and loved every word of it. The author has an amazing understanding of the era and creates a world that is beautifully in keeping with what we know and love about Regency England.‖ (Joana Starneson, 01/10/2014).295

―What a wonderful story! Who does not want to believe in love at first sight... (…)‖ (DCookon 05/12/2014).296

―A poinent [sic] love story of days gone by. Sweet, pure and simple when gentler time existed. Values and respect were the norm in this society. Sweet, grab some tissues!!!‖ (Bynbpkon, 13/04/2015).297

Como podemos observar, além do amor à primeira vista ser valorizado como algo que torna essa continuação uma história ―maravilhosa‖, o sentimentalismo de uma forma geral se relaciona com a imagem absolutamente romantizada que os leitores têm do período regencial inglês. A visão nostálgica de um período considerado mais simples, mais ético e também mais romântico exige uma história de amor à altura dessa fantasia. Mesmo O&P, um romance que se assemelha em certo ponto com a fórmula do conto da Cinderela e que a

293 ―são ou muito boas para ser verdade ou muito sinistras para não estarem presas em uma instituição mental. Todo mundo parece se apaixonar à primeira vista. (...) A situação mais inacreditável apresentada pelo autor é o Visconde Primrose (primo de Darcy) se apaixonar por Mary Bennet. De novo quase amor à primeira vista‖ (tradução minha). 294Disponível em: https://www.amazon.com.br/Chosen-Leaving-Bennet-Behind-English- ebook/dp/B00K5QG4HC/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1469207042&sr=1-1&keywords=chosen+bennet Acesso em 20/07/2016. 295 ―Eu acabei de terminá-lo noite passada, e amei cada palavra. O autor tem um entendimento impressioanente da era e cria um mundo que é lindo ao manter o que sabemos e amados da Inglaterra regencial‖ (tradução minha). Disponível em:https://www.amazon.com/product- reviews/B00K5QG4HC/ref=cm_cr_getr_d_paging_btm_1?k=Chosen+%28Leaving+Bennet+Behind+Book+1%29+%28Engl ish+Edition%29&showViewpoints=1&filterByStar=five_star&pageNumber=1 Acesso em 20/07/2016. 296 ―Que história maravilhosa! Quem não quer acreditar em amor à primeira vista?‖ (tradução minha) Disponível em:https://www.amazon.com/product- reviews/B00K5QG4HC/ref=cm_cr_getr_d_paging_btm_1?k=Chosen+%28Leaving+Bennet+Behind+Book+1%29+%28Engl ish+Edition%29&showViewpoints=1&filterByStar=five_star&pageNumber=1 Acesso em 20/07/2016. 297 ―Uma história de amor comovente de tempos passados. Doce, pura e simples, quando tempos mais gentis existiam. Valores e respeito eram a norma nessa sociedade. Doce, pegue alguns lencinhos‖ (tradução minha). Disponível em: https://www.amazon.com/product- reviews/B00K5QG4HC/ref=cm_cr_getr_d_paging_btm_2?k=Chosen+%28Leaving+Bennet+Behind+Book+1%29+%28Engl ish+Edition%29&showViewpoints=1&filterByStar=five_star&pageNumber=2 Acesso em 20/07/2016.

213 própria Austen considerou ―too ligth & bright & sparkling‖298 (Letters, p. 212), parece não contentar mais os leitores. O segundo pedido de casamento de Mr. Darcy não satisfaz a necessidade por esse tipo de amor arrebatador, e a resposta de Elizabeth, que não aparece no original, também precisa ser aumentada. A cena de Austen é esta: [Mr. Darcy] ―You are too generous to trifle with me. If your feelings are still what they were last April, tell me so at once. My affections and wishes are unchanged; but one word from you will silence me on this subject for ever.‖ Elizabeth feeling all the more than common awkwardness and anxiety of his situation, now forced herself to speak; and immediately, though not very fluently, gave him to understand, that her sentiments had undergone so material a change, since the period to which he alluded, as to make her receive with gratitude and pleasure, his present assurances.299 (O&P, p.406)

Assim como gratidão foi a base da mudança nos sentimentos de Elizabeth, ela aparece aqui novamente na forma como aceita o novo pedido de Darcy. Nada de lágrimas, suspiros, beijos apaixonados. Podemos inferir que Elizabeth estava emocionada apenas pelo fato de que ela respondeu ―not very fluently‖, mas essa com certeza não era a reação desejada pelos fãs. O que eles querem aparece, por exemplo, na forma como Abigail Reynolds (autora de mais de dez variações baseadas somente em O&P) reescreve a cena em To conquer Mr. Darcy: With a feeling of exultation, he took both of her hands in his. He pressed the lightest of kisses inside of her wrist first on one hand, then the other, leaving Elizabeth feeling barely able to think, much less to be coherent. ―Miss Bennet, will you do me the infinite honor of agreeing to be my wife?‖ She took a deep breath. ―The honor would be mine, sir‖ There was a moment of stillness, then he said, ―Say that again.‖ She smiled at him impishly. ―Yes. Yes, I will marry you. Yes, I will be your wife. Yes, I will spend my life with you. Yes, I will be the mother of your children. Yes.‖ ―Please feel free to continue, Miss Bennet. I could listen to this for a long time.‖ ―Such vanity! No, sir, I believe that it is your turn to speak; I have upheld my end of the conversation.‖ His eyes, lit by heartfelt delight, locked with hers. ―There are no words for how I feel at this moment, my love.‖ He brought out of his pocket a small box, from which he removed a sapphire ring that he slipped onto her finger.300 (REYNOLDS, 2010, pp.159-160)

298 ―Muito leve e iluminada e brilhante‖ (tradução minha). 299 ―‗Você é generosa demais para brincar comigo. Se os seus sentimentos ainda são como eram em abril, diga- me uma vez. Minha afeição e meu desejo permanecem inalterados, mas diga-me uma palavra e me calarei para sempre sobre esse assunto.‘ Elizabeth, sentindo toda a compreensìvel estranheza e a aflição da posição dele, então forçou-se a falar; e imediata ainda que não tão fluentemente fez com que entendesse que os sentimentos dela haviam passado por uma transformação essencial desde o período a que ele aludira, de modo a receber com gratidão e prazer a presente confirmação‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.506-507) 300 ―Com um sentimento de júbilo, ele tomou as suas mãos nas suas. Deu-lhe o beijo mais suave na parte interior do seu pulso primeiro em uma mão, depois na outra, deixando Elizabeth praticamente incapaz de pensar, muito menos de ser coerente. ‗Miss Bennet, você me dá a honra infinita de ser a minha esposa?‘. Ela respirou fundo. ‗A honra é minha, senhor‘. Houve um momento de pausa, e então ele disse ‗Diga isso de novo‘. Ela sorriu para ele de forma travessa. ‗Sim. Sim, eu me casarei com você. Sim, eu serei sua esposa. Sim, eu vou passar minha vida com você. Sim, eu serei a mãe dos seus filhos. Sim.‘ ‗Por favor, fique à vontade para continuar, Miss Bennet. Eu poderia ouvir isso por um longo tempo.‘ ‗Quanta vaidade! Não, senhor, eu acredito que é a sua vez de falar, eu já cumpri o meu lado da conversa.‘ Seus olhos, iluminados por um encanto sincero, fixaram-se nos dela. ‗Não há palavras para como eu me sinto nesse momento, meu amor‘. Ele tirou de seu bolso uma pequena caixa, da qual ele removeu um anel de safira que ele colocou em seu dedo‖ (tradução minha).

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Como mais esse exemplo nos mostra, a maioria das continuações de O&P procura inserir, no anseio de trazer a novidade, muito do drama exagerado e daquela sensiblerie que Austen tanto ironizou, e acabam resultando em celebrações de um estilo diretamente contraditório ao original. Segundo Deidre Lynch, a consequência é que essas narrativas frequentemente soam como retornos ao gótico e ao romance sentimental que Austen adorava parodiar, e em seu sensacionalismo sempre parecem ser pré e não pós-Austen (Lynch, 2007a, pp.164-165). A referência discreta à emoção de Elizabeth está longe de ser suficiente para os leitores que querem que esse amor seja escancarado, seja gritado, seja tudo menos circunspecto: Darcy walked over to the edge of the ridge looking down on Pemberley. He cupped his hands around his mouth and began to shout, ―I AM GOING TO MARRY ELIZABETH BENNET!‖301 (LOUISE, 2011, p.336)

―Must I say it?‖ She stood from the stump, facing away from him. ―I love Fitzwilliam Darcy,‖ she said in a forthright voice. Then more loudly, ―I love Fitzwilliam Darcy!‖ She gathered a deeper breath and stood to shout with great force and anger, ―I love Fitzwilliam Darcy!‖ She cried to the heavens as if it would cast the feelings from her heart and soul. Darcy stood behind her, his bare hands clutching her upper arms. To provide counterpoint to her frustrated exclamations, he whispered, with his lips at her ear, ―I love Elizabeth Bennet.‖302 (BEUTLER, 2015, posição Kindle 3344-3348)

Por conta desse amor poderoso que os dois protagonistas sentem um pelo outro, o seu sofrimento durante o período em que acreditam estarem separados para sempre também é aumentado. Os empecilhos ficam mais complicados e mais dramáticos, o que está de acordo com a norma da ficção sentimental mas também com uma necessidade dos leitores de repetir a sensação de alívio e alegria trazida pela sua resolução. Os conflitos crescem e se complicam para que essa sensação seja experimentada da mesma forma, ou até mesmo incrementada. Em Darcy’s Denial (2015), o primeiro de dois volumes de Carolyn White, Elizabeth se apaixona pelo primo de Darcy, Colonel Fitzwilliam. Darcy é obrigado a testemunhar seu casamento, apesar de implorar a seu primo que o libere da obrigação: "Richard, I cannot stand up with you, in front of God, Georgiana, your parents and half Meryton, and watch Elizabeth walk up the aisle to you! (…) Do you not know how I have dreamed that it would be my place, that

301 ―Darcy caminhou em direção à beira das colinas olhando para Pemberley lá embaixo. Ele levou as mãos à boca e começou a gritar: EU VOU ME CASAR COM ELISABETH BENNET!‖ (tradução minha). 302 ‗Devo dizer?‘ Ela levantou do tronco, olhando para o outro lado. ‗Eu amo Fitzwilliam Darcy‘, ela disse com uma voz decidida. Depois, mais alto, ‗Eu amo Fitzwilliam Darcy!‘. Respirou mais fundo e gritou com toda força e raiva, ‗Eu amo Fitzwilliam Darcy!‘. Ela gritou para os céus como se fosse arrancar seus sentimentos do seu coração e da sua alma. Darcy estava parado atrás dela, suas mãos nuas segurando os braços dela. Para oferecer um contraponto para as suas exclamações, ele sussurrou, os lábios dele na orelha dela, ‗Eu amo Elizabeth Bennet‘ (tradução minha).

215 she would walk up the aisle and take my hand, smile up at me and become Mrs Darcy?"303 (White, 2015, posição Kindle 4382-4385). O pedido foi em vão, e após a cerimônia Darcy decide deixar a Inglaterra para poder lidar com a dor de perder o seu verdadeiro amor e manter o respeito pelo seu primo e pela sua nova esposa: Leaning on the rail at the stern of the ship as the lights of Portsmouth receded into the dark, the gentleman watched the shore of England fade as the vessel advanced steadily into the unknown. In his hands he held an unsealed letter, several sheets of paper written in his bold, masculine hand, words of love and devotion addressed to a woman who would never read them. After some time, he began to slowly tear the pages into small pieces, letting them go from his hand in clumps. "Good-bye, Elizabeth," Mr Darcy whispered, the salty breeze carrying away his words, both spoken and written, to be swallowed up by the dark ocean.304 (WHITE, 2015, posição Kindle 4741-4746)

Apesar de a resolução desse conflito necessitar a morte de Colonel Fitzwilliam para que Elizabeth, agora viúva, possa descobrir seu amor por Darcy, o final feliz completo das personagens não é maculado por essa perda, ainda que lamentada e sentida profundamente. O amor de Darcy e Elizabeth segue sem culpa e sem entraves para se concretizar e desabrochar no casal perfeito que todos esperam. As continuações, de uma forma geral, acabaram desenvolvendo outras convenções que definem o que é esse final perfeito, e procuram mostrar como foi a longa vida dos dois protagonistas, mencionando filhos, netos, amigos e familiares, viagens, e o amor eterno, inabalável mesmo com o passar dos anos. O laço é sempre tão forte, entre almas e corações, que um não pode sobreviver sem o outro: Sadly, at the age of four and eighty, Elizabeth fell ill and died after two months. William was found with Elizabeth in his arms. When her heart stopped beating, his did as well. He was two and ninety. True to the slightly unconventional nature of their marriage, and their lives afterward, Darcy and Elizabeth were buried in a common coffin to spend eternity together. Once married, the lovers were never parted, even in death.305 (THOMAS, 2016, posição 8157-8160)

Darcy e Elizabeth, nós somos informados, ficarão juntos por toda a eternidade e nunca serão separados. A convenção final dos contos de fada ―e eles viveram felizes para

303 ―‗Richard, eu não posso ficar em pé com você, em frente de Deus, Georgiana, seus pais e metade de Meryton e assistir Elizabeth caminhar até o altar até você! (...) Você não sabe como eu sonhei que esse seria o meu lugar, que ela iria caminhar até mim e pegar a minha mão, sorrir para mim e se tornar Mrs. Darcy?‖ (tradução minha). 304 ―Apoiado na beira da popa do navio com as luzes de Portsmouth desaparecendo na escuridão, o cavalheiro assistiu a costa da Inglaterra desbotar conforme a embarcação avançava firme em direção ao desconhecido. Em suas mãos segurava uma carta aberta, diversas folhas de papel escritas na sua caligrafia masculina e forte, palavras de amor dirigidas a uma mulher que nunca as iria ler. Depois de um tempo, ele começou a rasgar as páginas em pedaços pequenos, deixando-os cair aos poucos. ‗Adeus, Elizabeth‘, Mr. Darcy sussurrou, a brisa salgada carregando suas palavras, as escritas e as faladas, para serem engolidas pelo oceano escuro‖ (tradução minha). 305 ―Infelizmente, com a idade de oitenta e quatro anos, Elizabeth ficou doente e morreu em dois meses. William foi encontrado com Elizabeth em seus braços. Quando o coração dela parou de bater, o dele também o fez. Ele tinha noventa e dois anos. Fiéis à levemente inconvencional natureza de seu casamento e de sua vida depois, Darcy e Elizabeth foram enterrados em um só caixão para passar a eternidade juntos. Uma vez casados, os amantes nunca mais se separaram, nem mesmo na morte‖ (tradução minha).

216 sempre‖ também é empregada constantemente, aumentando consideravelmente a aura de fantasia que cerca O&P. É certo que a própria Austen escreveu algumas páginas sobre o futuro das personagens, como Jane e Bingley se mudando para uma propriedade mais próxima de Pemberley, ou Lydia e Wickham vivendo à custa das duas irmãs, como era de se esperar. A união de Darcy e Elizabeth, fica claro, é uma união feliz, porém a última frase do romance não é uma declaração de sua felicidade eterna, mas sim sobre a gratidão que ambos sentem para com os tios de Elizabeth, Mr. e Mrs. Gardiner, que possibilitaram o seu reencontro. O romance termina, então, com aquela mesma palavra que definia os sentimentos de Elizabeth de forma tão insuficiente para os fãs: gratidão. Vimos, assim, que em diversos momentos essenciais de O&P, o sentimento de gratidão aparece com grande importância, mas nas continuações ele é relegado ao segundo plano. Por exemplo, na adaptação para os quadrinhos japoneses, o mangá, na pequena caixa de texto a referência a Mr. e Mrs. Gardiner é apagada, enquanto que a ―longa e feliz‖ vida de Darcy e Elizabeth juntos é enfatizada no texto e, principalmente, no desenho: na cena final, encontramos o retrato da família perfeita, todos reunidos em Pemberley, felizes, e com uma pequena criança:

Fig.16: Cena final de Orgulho e Preconceito adaptado para mangá. ―Blessed with happiness and family, love and friendship, Elizabeth and Darcy enjoyed a long and joyful life together, remembering to be grateful always for the curious mishaps which had brought them together‖306. (KING, Stacy e TSE, Po, 2014, p.368)

Um outro ponto interessante nesse mangá é a forma como reaparece praticamente igual a cena final da adaptação da BBC de 1995, cujo último episódio termina com Darcy e Elizabeth partindo para sua lua de mel em uma carruagem. Nesse momento, o casal tem o seu primeiro beijo mostrado para o público, algo que fora omitido durante a segunda proposta de casamento e na própria cerimônia:

306 ―Abençoados com felicidade e famìlia, amor e amizade, Elizabeth e Darcy aproveitaram uma longa e alegre vida juntos, sempre se lembrando de serem gratos por todos os contratempos que os aproximaram‖ (tradução minha).

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Fig.17: Cena final da adaptação de 1995 em que Elizabeth e Mr. Darcy partem para seu final feliz em uma carruagem. O beijo dos protagonistas permanece congelado na tela enquanto os primeiros créditos aparecem. (Pride and Prejudice, Dir.: Simon Langton, 1995. Episódio 6, de 00:47:55 a 00:48:22)

Na adaptação para mangá, a cena é reproduzida assim:

Fig.18: ―And so, despite his pride and her prejudice, Elizabeth and Darcy found their perfect match in one another.‖307 (KING, Stacy e TSE, Po, 2014, p.366)

O poder da adaptação da BBC de criar convenções que não estão no original mas que se tornarão parte fixa do universo das fan fictions será debatido no capítulo 3, mas a cena da carruagem é um bom exemplo para mostrar por ora como uma invenção de uma adaptação acaba se tornando, via repetição, parte do universo que circunda a obra original. Tanto em One False Step (2015) e Prevailed On To Marry (2016), por exemplo, o final parece ser uma descrição do que foi mostrado no seriado de 1995, indicando a sua permanência no imaginário dos fãs mesmo vinte anos depois de transmitida na televisão pela primeira vez: Mr. Bennet attempted to make light of the moment, but words failed him utterly, and he settled instead for insisting on being the one to hand Jane and Elizabeth into their respective carriages. The husbands followed their wives and the carriages started off, waving until they were out of sight of Longbourn and each other. (…) Smiling broadly, Darcy kissed her again and Elizabeth sighed in contentment as she returned his gesture. The carriage, with its two inhabitants blissfully unaware of their surroundings, continued on its way. In the brilliant sunlight of the new day it turned onto the London road, away from Longbourn, and into the beginning of a happy union (…).308 (OWEN, 2015, posição Kindle 5659-5693)

307 ―E assim, apesar do orgulho dele e do preconceito dela, Elizabeth e Darcy encontraram o par perfeito um no outro‖ (tradução minha). 308 ―Mr. Bennet tentou suavizar o momento, mas palavras lhe falharam totalmente e ele se conformou ao invés em insistir a ajudar Jane e Elizabeth a entrar em suas respectivas carruagens. Os maridos seguiram suas esposas e

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They emerged from the church in a shower of confetti made of fresh rose petals and then went over to Mr Darcy‘s sumptuous carriage, which was pulled by four white horses. He handed Elizabeth in and then climbed in beside her. They waved to their friends and family as the carriage pulled away (…). Their lips met and their kiss was the start of a long and happy life together309. (CARTER, 2016, posição Kindle 1498- 1500).

Podemos perceber que as duas autoras das passagens acima reproduzem uma imagem divulgada pela adaptação da BBC, e isso não é um problema, nem para elas, nem para seus leitores. A originalidade não é um pré-requisito para a qualidade de uma continuação, segundo os fãs, mas sim as emoções que elas produzem. Nesse sentindo, Janice Radway estava certa quando argumentou que a repetição confirma e satisfaz as expectativas dos leitores, os quais, ao invés de se sentirem cansados com isso, apreciam a apresentação constante de ―mais do mesmo‖. O resultado, como venho afirmando ao longo deste capítulo, é a transformação de O&P em algo novo, em uma outra obra diferente do original de Austen. Esse novo O&P vem embrulhado em uma embalagem sentimental que divulga o romance como a realização de uma fantasia. Em um primeiro momento, essa fantasia poderia até parecer benéfica para a obra na medida em que a divulga, faz com que as pessoas leiam o livro e o apreciem. Afinal, quantos outros romances da mesma época de Austen não estão confinados aos arquivos e às bibliotecas universitárias, excluídos provavelmente para sempre das prateleiras das grandes livrarias? Contudo, é difìcil manter o foco nesse ―lado positivo‖, já que o O&P que está sendo consumido atualmente está muito longe de fazer jus à obra de Austen. A leitura simplista incentivada pela fantasia infelizmente apaga os aspectos complexos do romance, a sagacidade e a ironia da autora na incorporação de questões sociais e de gênero, por exemplo, os quais constituem a verdadeira riqueza da obra. Portanto, parece-me adequado afirmar, por enquanto, que não é O&P o que está na moda atualmente. É outro romance, a definir.

*

as carruagens começaram a se mover, eles acenando até que estavam fora de vista de Longbourn e um casal do outro. (...) Sorrindo largamente, Darcy beijou Elizabeth novamente e ela suspirou contentemente quando retribuiu o gesto. A carruagem, com seus dois habitantes felizes e inatentos à sua localização, continuou seu caminho. Na luz do sol brilhante do dia ela tomou a estrada de Londres, afastando-se de Longbourn, em direção ao começo da sua união feliz‖ (tradução minha). 309 ―Eles saìram da igreja em uma chuva de confetes feitos de pétalas frescas de rosas e seguiram para a luxuosa carruagem de Mr. Darcy, a qual era puxada por quatro cavalos brancos. Ele ajudou Elizabeth a entrar e então sentou ao seu lado. Eles acenaram para seus amigos e famílias conforme a carruagem partia. (...) Seus lábios se encontraram e seu beijo foi o começo de uma vida junta longa e feliz‖ (tradução minha).

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Capítulo 3 – Reconstruções de Orgulho e Preconceito

Em janeiro de 1813, o romance Orgulho e Preconceito foi finalmente publicado, depois de um longo tempo de espera para a autora que havia escrito a versão inicial mais de quinze anos antes com o tìtulo ―First Impressions‖. Em carta a Cassandra em 29 de janeiro de 1813, Austen escreveu: I want to tell you that I have got my own darling Child from London (…) The Advertisement is in our paper to day for the first time – 18s – He shall ask £1 – 1 – for my two next, & £1 – 8 – for my stupidest of all. (…) Miss Benn dined with us on the very day the Books coming, & in the evening we set fairly at it & read half the 1st vol. to her – prefacing that having intelligence from Henry that such a word wd soon appear we had desired him to send it whenever it came out - & I believe it passed with her unsuspected. – She was amused, pour soul! that she cd not help you know, with two such people to lead the way; but she really does seem to admire Elizabeth. I must confess that I think her as delightful a creature as ever appeared in print, & how I shall be able to tolerate those who do not like her at least, I do not know.310 (Letters, p.210)

Ao contrário da imagem da escritora indiferente, Austen está muito feliz com a publicação, brinca com o valor cobrado pelo livro, e se mostra satisfeita com a aprovação de Miss Benn, colega da família, depois de uma sessão de leitura em voz alta. Jane Austen também registra sua admiração pela sua heroína, e poderia descansar tranquila sobre a questão de não saber nem como tolerar aqueles que não gostam dela: desde a idolatria Janeite do fim do século XIX até a Austenmania atual, Elizabeth Bennet segue na liderança confortável como a sua heroína preferida dos leitores e, como vimos no capítulo 1, tornou-se a representação da própria autora escolhida pelos fãs. Com o assunto do novo livro ainda longe de ser encerrado, cinco dias depois Austen escreve de novo para Cassandra sobre o seu ―querido filho‖: Your letter was truely welcome & I am much obliged to you all for your praise; it came at a right time, for I had had some fits of disgust; - our 2d evening‘s reading to Miss Benn had not pleased me so well, but I beleive something must be attributed to my Mother‘s too rapid way of getting on - & tho‘ she perfectly understands the Characters herself, she cannot speak as they ought. – Upon the whole however I am quite vain enough & well satisfied enough. – The work is rather too light & bright & sparkling; - it wants shade; - it wants to be stretched out here & there with a long Chapter – of sense if it could be had, if not of solemn specious nonsense – about something unconnected with the story; an Essay on Writing, a critique on Walter Scott, or the history of Buonaparté – or anything that would form a contrast & bring

310 ―Eu quero te dizer que eu recebi o meu próprio querido filho de Londres (...) O anúncio está no jornal de hoje pela primeira vez - 18s – Ele deve pedir £1 – 1 – pelo meu próximo, e £1 – 8 pelo mais estúpido de todos. (...) Miss Benn jantou conosco no mesmo dia em que os livros chegaram, e de noite nós no dedicamos a ele e lemos metade do primeiro volume para ela – antevendo que teria notícias de Henry que tal notícia logo apareceria, nós pedimos a ele que nos enviasse assim que saísse – e eu acredito que passou por ela sem suspeitas. Ela se divertiu, pobre alma! O que ela não podia evitar, você sabe, com duas tais pessoas para guiar o caminho, mas ela realmente parecia admirar Elizabeth. Eu devo confessar que eu a considero a criatura mais encantadora que já apareceu impressa, e como serei capaz de tolerar aqueles que pelo menos não gostam dela, eu não sei‖ (tradução minha).

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the reader with increased delight to the playfulness & Epigrammatism of the general stile.311 (Letters, 211-212).

Austen lamenta que o segundo dia de leitura em voz alta de O&P para Miss Benn não tenha sido o sucesso esperado, e responsabiliza sua mãe por não saber interpretar as personagens da maneira correta. Por isso ela agradece a carta de sua irmã que, imaginamos, deveria conter muitos elogios ao romance. Mas Austen mesmo admite ser vaidosa e estar satisfeita com a obra, partindo para uma autocrítica bem irônica de que a história talvez fosse muito leve e ―brilhante‖ demais. Era necessário um pouco de escuridão, talvez um capìtulo moralista ou de crìtica literária ou de história, assuntos ―sérios‖ que iriam obviamente contrastar com o estilo geral do romance – o que só iria aumentar o prazer do leitor. Novamente, a preocupação (ainda que jocosa) se provaria desnecessária frente à recepção da obra, especialmente nos últimos vinte anos, já que O&P é o romance mais lido, mais famoso e mais adaptado da autora e é o que mais tem continuações, variações e fan fiction escritas312 – em muito auxiliado pela sua caracterìstica ―light, bright and sparkling‖. O romance é uma comédia que brinca e se apropria das convenções sentimentais da época ao mesmo tempo em que lida com aspectos importantes das relações ali retratadas (sociais, econômicas e de poder) dentro de uma parcela específica da sociedade inglesa: a aristocracia rural, ou ―gentry‖. Várias questões são apresentadas de forma entrelaçada com o mote principal da história: a necessidade de cinco irmãs encontrarem maridos antes da morte de seu pai, já que a herança da propriedade da família só pode ser passada pela descendência masculina – ou, como diz Mr. Bennet, o seu herdeiro ―may turn you all out of this house as soon as he pleases‖313 (O&P, p.68). A favor de Jane Austen está o seu domínio magistral da ironia como instrumento principal para evitar que o romance se tornasse panfletário ou moralista, de um lado, ou apenas ingênuo, do outro, como demonstrado já na famosa abertura do primeiro capítulo:

311 ―A sua carta foi verdadeiramente bem-vinda e eu me sinto muito em dívida com você por todo o elogio, veio no momento certo pois eu tinha tido alguns ataques de desgosto – a nossa segunda noite de leitura para Miss Benn não me agradou tanto, mas eu acredito que alguma coisa deve ser atribuída ao jeito muito rápido de minha mãe de ler – e apesar de ela entender perfeitamente as personagens em si, ela não consegue falar como deveria. No todo, contudo, eu sou vã o suficiente e satisfeita o suficiente. A obra é muito leve e iluminada e brilhante – necessita sombra – necessita ser esticada aqui e ali com um capítulo longo – de bom senso se puder ser obtido, se não, de besteiras solenes chamativas – sobre alguma coisa desconectada com a história, um ensaio sobre Escrita, uma crítica sobre Walter Scott, ou a história de Bonaparte – ou qualquer coisa que formaria um constraste e traria ao leitor com um encanto maior à jovialidade e epigramatismo do estilo geral‖ (tradução minha). 312 A diferença é gritante, pelo menos entre as continuações e variações publicadas – não avancei essa questão em comunidades de fan fiction online. Em pesquisa no site da Amazon.com no dia 21 de setembro de 2016, o termo ―pride and prejudice sequels‖ gera mais de 500 resultados, enquanto que a mesma pesquisa com outros tìtulos (―emma sequels‖ ou ―persuasion sequels‖, etc.) mostra que nenhum outro romance de Austen conseguiu ter mais do que dez continuações, Northanger Abbey tendo apenas uma. 313 ―pode tirar de vocês a posse desta casa quando quiser‖ (trad. Alexandre de Souza, p.170).

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It is a truth universally acknowledged, that a single man in possession of a good fortune, must be in want of a wife. However little known the feelings or views of such a man may be fixed on his first entering a neighbourhood, this truth is so well fixed in the minds of the surrounding families, that he is considered as the rightful property of some one or other of their daughters.314 (O&P, p.3)

Logo no início o leitor é incomodado por uma desconfiança: deve ele levar a sério essa afirmação ou não? Ela deve ser tomada literalmente, ou existe alguma outra implicação ali? Críticos se debruçam sobre essa primeira frase há tempos, oferecendo interpretações que variam desde uma leitura oposta (uma mulher solteira, sem qualquer fortuna, é que deve estar necessitada de um marido), uma sátira de Austen às verdades vazias do senso comum repetidas à exaustão como algum tipo de autoridade, uma crítica às (mães e filhas) caçadoras de fortunas, ou até mesmo uma projeção do que pensa Mrs. Bennet, a mãe das cinco jovens, já que ela passa o livro todo obcecada em encontrar maridos para suas filhas e é muito óbvio que ela acredita que Mr. Bingley, o jovem rico que chega à vizinhança, deve se casar com uma delas (ou seja, ele é sua ―rightful property‖). Como o parágrafo seguinte traz uma fala de Mrs. Bennet perguntando para seu marido se ele sabia que a mansão de Netherfield Park havia sido finalmente alugada, somos levados a acreditar nessa última interpretação, ainda que – e essa é a grandeza aqui – não precisemos descartas as outras, já que Mrs. Bennet é de fato uma fortune-hunter cheia de senso comum, mas correta em sua percepção de que suas filhas, sem nenhum dote, precisam encontrar maridos urgentemente. Só não podemos afirmar que a frase saiu diretamente de sua mente por conta do domínio de linguagem demonstrado ali: a contradição entre a beleza da frase e o que ela convém, nota Gabriela Castellanos, em si própria é irônica pois somente uma mente estudada poderia se expressar dessa forma, contudo o seu conteúdo banal nega esse mesmo estudo (Castellanos, 1994, p.57). A fama de O&P e de Jane Austen resultou no uso indiscriminado e frequente dessa frase como uma espécie de pílula de sabedoria, totalmente alheia à ironia contida ali. Além disso, tornou-se um molde para qualquer pessoa expressar qualquer tipo de ―verdade‖. Nas palavras de Claire Harman, a clareza matemática da sentença produz essa apropriação: ―It is a truth universally acknowledge that a [espaço] in possession of a [espaço] must be in want of a [espaço]‘‖ (Harman, 2009, p.xvii). Mas a frase é obviamente mais usada para se referir à própria Jane Austen, como no artigo do The New York Times: ―It‘s a truth universally acknowledged that many a writer in want of a good romantic comedy plot has turned to Jane

314 ―É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, de posse de boa fortuna, deve estar necessitado de uma esposa. Por mais desconhecidos que sejam os sentimentos e as opiniões desse homem no momento em que chega a uma nova vizinhança, tal verdade está tão bem entranhada na mente das famílias da região que ele é considerado por direito propriedade de uma ou outra de suas filhas‖ (trad. Alexandre de Souza, p.103 com alterações minhas).

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Austen‖315. É ainda mais verdade, como já apontei, que a busca por essa ―trama romântica‖ levou as pessoas não à Jane Austen, mas a Orgulho e Preconceito, e não ao O&P do mundo acadêmico, valorizado, entre outros aspectos, pelas suas caricaturas, ironia e atenção aguçada à questão de gênero, mas a um O&P construído como a mais perfeita história romântica já escrita. Nesse sentido, no capítulo anterior vimos como o sentimentalismo foi reincorporado a essa obra nas continuações e variações. Este capítulo irá trabalhar com outros aspectos presentes em diversos casos de apropriação desse romance específico por fãs e também por outros escritores para refletir, em termos gerais, sobre como a recepção popular de uma obra pode facilmente consolidar uma forma única (muitas vezes, depreciadora) de se enxergá-la, ao mesmo tempo em que, no caso de O&P, garante a sua permanência no imaginário e nas estantes das pessoas, o que ocorre com pouquíssimas obras do início de século XIX.

Parte 1. O foco no amor: Darcy e Elizabeth 1.1 – A Darcymania e o herói perfeito

Durante a década de 1990, sete adaptações para cinema e TV das obras de Austen foram produzidas, sendo consideradas hoje responsáveis pelo processo de ―redescoberta‖ de uma Austen romântica nas últimas décadas. Contudo, a imagem de uma autora apolítica/inocente, como vimos, é muito anterior, e possibilitou a colagem aos seus romances do rótulo de ―histórias de mulheres-procurando-maridos‖. Esse rótulo pode ser visto já na versão de O&P de 1940 para o cinema, aquela mesma versão que buscava mostrar Austen como símbolo de uma Inglaterra antiga para incentivar o sentimento de nostalgia e de proteção de um patrimônio em risco pela guerra. Ela também foi a primeira a divulgar para o mundo que as suas personagens estavam ―famintas por amor‖316 e gritavam ―Nós queremos um marido!‖:

315 ―É uma verdade universalmente reconhecida que muitos escritores em necessidade de uma boa trama de comédia romântica se voltaram para Jane Austen‖ (tradução minha). Disponìvel em: http://www.nytimes.com/2016/04/12/books/-2016-04-12-books-eligible-curtis-sittenfeld-review.html?_r=0 Acessado em 13/09/2016. 316 Frase divulgada no trailer (0min54s), disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sk4hAHHB7L8 Acesso em 22/09/2016.

223

Fig. 19 – Cartaz do filme Pride and Prejudice, 1940.

O cartaz de divulgação do filme aconselha às jovens de 1940 aprenderem uma lição com as irmãs Bennet, essas ―caçadoras de marido‖, limitando o escopo do romance a essa importante tarefa para as mulheres (tanto para as de 1800 como às de 1940, como nota Auerbach, 2004, p.279) e incentiva as pessoas a irem ao cinema para descobrir qual foi a resposta de Elizabeth ao pedido de Mr. Darcy: ―Yes? No? Perhaps?‖317. Dentro da mesma lógica, o filme ainda esforçou-se bastante para eliminar os conflitos entre as personagens e transformar a história em uma comédia romântica leve, reescrevendo até mesmo a temida personagem de Lady Catherine de Bourgh como uma casamenteira amável. Esse tipo de crítica feita à versão de 1940 (e que vai se estender a muitas das adaptações posteriores) não está baseada em uma ideia de fidelidade ao original, no sentido de que um filme que reproduz os diálogos de um livro o mais semelhante possível seria necessariamente melhor do que um outro filme que os reinventa. Obviamente, uma adaptação de uma obra literária está longe de trazer meramente a mesma história através de uma tecnologia diferente. O papel dos roteiristas, diretores, produtores e compositores, para nomear apenas alguns, fazem desse processo de adaptação algo muito mais complexo do que uma simples substituição do papel pela tela do cinema enquanto o original permanece intocado. Ao contrário, nós podemos concordar hoje que uma adaptação fílmica é uma obra de arte em si mesma e deve ser avaliada de forma independente do romance original e não em termos de fidelidade, sendo muito produtivo enxergar um filme como uma tradução (transposição, apropriação e engajamento intertextual) entre culturas, como das letras para a visual, por exemplo, ou, como coloca Linda Hutcheon (2013, p.28), como uma obra inerentemente dupla ou multilaminada. Isto é ainda mais verdade quando tentamos adaptar um romance de duzentos anos atrás para o século XXI. Em poucas palavras, essa tradução,

317 ―Sim? Não? Talvez?‖ (tradução minha). Trailer, Pride and Prejudice, 1940, 1min54s. disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sk4hAHHB7L8 Acesso em 22/09/2016.

224 utilizando as palavras de Rosemary Arrojo, ―será fiel não ao texto original, mas àquilo que consideramos ser o texto original, àquilo que consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos‖ (Arrojo, 1986, p.41). É por isso que Linda Troost e Sayre Greenfield afirmam que as adaptações da obra de Austen têm mais a dizer sobre o nosso momento do que sobre a escrita de Austen – ao assisti-las, nós assistimos a nós mesmos (Troost e Greenfield, 2001, p.11). Por mais importante que tenha sido o filme de Hollywood de 1940, porém, no caso de Orgulho e Preconceito é indiscutível o papel marcante da adaptação para a TV do roteirista Andrew Davies produzida em 1995 pela BBC na reconfiguração dessa obra no imaginário popular e no tipo de luz que os fãs, especialmente aqueles que escrevem e leem fan fiction, passaram a projetar sobre a história. O meu argumento é que essa adaptação atua como um portal através do qual o romance de Austen ganhou novos significados, pois uma vez que o romance o atravessou, ele foi modificado para sempre em algo diferente do que era anteriormente. Em primeiro lugar, vale notar que a adaptação de 1995, mas não só ela, apresenta novamente aquela imagem nostálgica do mundo de Austen, entendido como uma ―antiga Inglaterra‖ gentil e educada, cujos códigos de conduta eram superiores e a vida muito melhor do que a que temos hoje. Essa adaptação, como observam Troost e Greenfield, faz uso constante de tomadas externas do interior do país que ilustram um campo inglês remoto que torna os filmes de Austen visualmente atraente para nós, e alimenta um desejo por esse passado ilustre como um retiro da realidade através da exclusão, por exemplo, de outras partes da sociedade que possuíam maneiras e gostos mais grosseiros (Troost e Greenfield, 2001, p.4). Assim, o foco da adaptação centra-se no tranquilo chá da tarde na sala de estar e ignora os empregados domésticos, a pobreza e a sujeira nas ruas das cidades e as camadas sociais mais pobres, contribuindo para que o período Regencial inglês se transforme em um paraíso que tivemos mas que foi destruído pela Revolução Industrial. A única adaptação dessa década que parece ser uma exceção é Mansfield Park (em português, ―Palácio das Ilusões‖, 1999) de Patricia Rozema, que busca criticar a aristocracia representada pela família Bertram e se recusa a glamourizar o campo, o qual foi feito deliberadamente, nota Johnson, para parecer frio, pouco mobiliado e em evidente estado de degradação (Johnson, 2012, p.160). Não é coincidência que MP seja pouco apreciado pelos fãs atualmente – disputando o último lugar com Northanger Abbey – exatamente pela sua falta de ―romance‖, e o filme de Rozema, provavelmente pelo mesmo motivo, também não foi bem recebido pelo público. Nem mesmo a transformação da heroína Fanny Price (quieta, isolada e assustada) em uma representação da

225 própria Jane Austen (esperta, levada, criativa) foi o suficiente para garantir a aceitação do público. A crueza desse filme aparece também nos cenários internos e no foco dado à mobília e objetos de uso doméstico, por exemplo. Todas as outras adaptações, nota Claudia Johnson, foram elogiadas pelos seus jogos de chá, pela decoração dos ambientes e pelos trajes dos atores, enquanto Austen, em seu texto, não se preocupa em mencionar nada disso. Na verdade, de acordo com Johnson, avaliar o valor das coisas (que Austen faz) é muito diferente de descrever as coisas, o que ela faz raramente – nenhum romancista realista é tão desinteressado quanto Austen em minúcias de descrição física (Johnson, 2012, p.13). E, ainda assim, as adaptações buscam apresentar esses objetos como provas de ―aqui está a verdadeira Jane Austen‖. Voltando à adaptação de 1995 de O&P, é necessário notar também como ela aumentou o nível de sensibilidade e romantismo da história ao focar somente nos sentimentos de Elizabeth e Mr. Darcy. Mesmo que os romances de Austen terminem em casamentos felizes – o que, para Patrice Hannon, é apenas uma convenção do gênero da comédia (Hannon, 1996, p.32), isso não significa que o casamento em si era o objetivo principal no desenvolvimento da trama e, por consequência, de suas personagens. Se tomarmos a forma como Austen se recusa a escrever longas ou explícitas declarações de amor, e como ela até parecia rir de seus matrimônios, podemos concluir que esse aspecto ―romântico‖ de seu livro advém mais de nossos olhos atuais do que de sua pena de duzentos anos atrás. Por exemplo, em O&P Austen inicia o último capítulo do livro, que traz o duplo casamento de Darcy/Elizabeth e Bingley/Jane, dizendo: ―Happy for all her maternal feelings was the day on which Mrs. Bennet got rid of her two most deserving daughters‖318 (O&P, p.297, destaque meu). Só essa passagem já seria suficiente para questionarmos essa pintura de um final feliz, afinal a ironia de Austen se apresenta mais uma vez ao justapor a ideia do sentimento maternal de Mrs. Bennet com o verbo ―se livrar‖, que questiona esse sentimento mencionado antes e também o adjetivo ―deserving‖ sobre as duas filhas. Mas o tom desse capìtulo como um todo é completamente diferente da cena do seriado em que podemos compartilhar da felicidade dos dois casais e nos emocionar com o beijo – não-existente no original – entre Darcy e Elizabeth depois que eles entram em sua carruagem para seguir para o tão esperado final feliz, aquela mesma cena tão reproduzida pelos fãs analisada no capítulo anterior. De uma forma geral, é possível observar a mesma tendência nas outras adaptações da década de 1990, nas quais, nas palavras de Kathryn Sutherland, fica claro um acordo tácito com o

318 ―Feliz para seus sentimentos maternais foi o dia em que a senhora Bennet se viu livre das duas filhas mais meritórias‖ (trad. Alexandre de Souza, p.527).

226 espectador para que a trama amorosa (e sexual) seja apresentada, o qual, por sua vez, explica porque as soluções narrativas rápidas de Austen não se traduzem bem para a representação fílmica (Sutherland, 2005, p.248). O filme Razão e Sensibilidade (1995) de Emma Thompson e Ang Lee, por exemplo, passa por cima da crítica à moda do sentimentalismo e inclui cenas dramáticas – um desmaio na chuva, um resgate, um homem atormentado – que, como nota Auerbach, celebram aquelas mesmas convenções que o romance de Austen satiriza, o que é uma pena porque, mesmo que muitas adaptações consigam capturar os diálogos brilhantes de Austen e seus inesquecíveis conflitos dramáticos, elas ainda assim tendem a focar no romance à custa de outros temas (Auerbach, 2004, p.279-280). As adaptações produzidas na década de 1990, portanto, poderiam ser responsáveis pela (re)disseminação (ou reforço e cristalização) da ideia de que Jane Austen era uma escritora de romances inocentes para mulheres e a inventora da moderna ―chick-lit‖. O livro mais exemplar desse subgênero moderno é O Diário de Bridget Jones (1996), de Helen Fielding, a qual declarou abertamente que se baseou em O&P e, mais do que isso, que tinha o ator Colin Firth como modelo para criar o seu herói Mark Darcy. Isso nos indica, como observou Suzanne Ferris, que o romance de Fielding (e suas continuações e adaptações para o cinema) é devido tanto ao roteiro de Andrew Davies quanto ao romance de Austen (Ferris, 2006, p.71). Como Bridget Jones é considerado também o romance ―fundador‖ da chick-lit, não é de se estranhar a associação de Austen com esse subgênero, mas gostaria de corrigir o argumento de Suzanne Ferris porque, ao meu ver, a Austen que serviu de inspiração para Fielding é especificamente aquela da adaptação da BBC, portanto a moda da chick-lit deveria agradecer muito mais ao roteirista Davies do que a Austen pela sua existência. Muito antes da explosão da chick-lit, críticos já notavam um fenômeno semelhante que eles chamaram de ―harlequinização‖ da obra de Austen, ou seja, como ela se tornou o modelo para todos os romances de bolso baratos produzidos por editoras como Harlequin, Silhouette e Mills & Boon. De acordo com Deborah Kaplan, Por ―harlequinização‖ eu entendo que, assim como no romance de cultura de massa, o foco está no relacionamento do herói e heroína à custa de outras personagens e outras experiências, as quais são representadas de forma rascunhada. (...) [A harlequinização] necessita uma atenção total nos desejos do herói e da heroína um pelo outro e uma tendência de representar esses desejos em formas óbvias, até clichés. (...) Finalmente, a harlequinização é tipificada pela atenção à aparência física, o herói e a heroína precisam ser ambos bonitos e sexy. (KAPLAN, 2001, p.178)

Assim, na adaptação de 1995, os espectadores não puderam deixar de notar como a atriz que interpretava Elizabeth, Jennifer Ehle, estava vestida de uma forma voluptuosa, com

227 um decote muito mais generoso do que era considerado apropriado na época. Se compararmos a produção de Jennifer Ehle com a de Susannah Harker, que interpretava Jane Bennet, é possível perceber que as duas irmãs foram construídas de forma oposta à do romance, no qual Jane é na verdade muito mais bela do que todas as suas irmãs. Na adaptação, porém, é Elizabeth que se destaca. Este é somente um detalhe que ilustra a maneira como as produções de cinema e TV influenciam a forma como o romance original é alterado e sofre mudanças de entendimento por quem o lê depois de ter assistido a essas adaptações.

Fig 20. À esquerda, Mr. Darcy (Colin Firth) e Elizabeth Bennet (Jennifer Ehle); à direita, Mr. Bingley (Crispin Bonham-Carter) e Jane Bennet (Susannah Harker) na adaptação de 1995.

Contudo, o efeito mais importante da adaptação de 1995, em minha opinião, é a transformação efetuada na personagem de Mr. Darcy, interpretado por Colin Firth. Em geral, o roteiro de Andrew Davies é considerado relativamente próximo ao original, mas ele incluiu algumas cenas que não estão presentes no romance para ilustrar eventos – e sentimentos – relacionados basicamente a Darcy (Hopkins, 2011, p.115). Em uma entrevista, Davies explica suas escolhas da seguinte forma: ―I restrain myself to writing the scenes that [Austen] didn‘t write, really… [But] I thought that could help a lot, especially since I was writing such a pro-Darcy adaptation in ‗Pride and Prejudice‘. If they saw him suffering or just doing something very physical, the audience would treat him more like a real person, and not just have Elizabeth‘s view, where she only sees him when he‘s in a bad mood all dressed up in evening dress.‖319 (Entrevista concedida a CARTMELL e WHELEHAN, 2007, p.244)

Essas cenas mostram Darcy em uma banheira, Darcy observando Elizabeth brincando com um cachorro a partir de uma janela distante, Darcy lutando esgrima, cavalgando ou jogando bilhar, Darcy andando de um lado para o outro de seu quarto tentando

319 ―Eu evito escrever cenas que [Austen] não escreveu, realmente... [mas] eu pensei que poderia ajudar bastante, especialmente porque estava escrevendo uma adaptação tão pró-Darcy em Orgulho e Preconceito. Se eles o vissem sofrendo ou somente fazendo alguma coisa física, a audiência o trataria mais como uma pessoa real, e não só segundo a visão de Elizabeth, na qual ela apenas o vê de mau humor todo arrumado para jantar‖ (tradução minha).

228 escrever a carta para Elizabeth, Darcy caminhando de forma determinada no bairro mais pobre de Londres para resgatar Lydia Bennet. De acordo com Lisa Hopkins, essa versão de O&P não tem nenhuma vergonha em apelar para as mulheres, emoldurando Darcy como um fetiche ao oferecê-lo para o olhar feminino (Hopkins, 2001, p.122). Davies construiu, então, um Darcy mais real, mais aberto à interpretação, de tal forma que mesmo se Elizabeth se mostre surpresa com o seu primeiro pedido de casamento, nós não estamos porque assistimos a Darcy olhar fixamente para ela durante três episódios, e depois da sua recusa até sentimos pena dele. Ninguém parece lembrar que ele foi muito rude em seu pedido ao apontar para a sua condição inferior e família desregrada. O que temos aqui, então, nas palavras de Louis Menand (1996, s/p), é uma adaptação que adiciona uma ―pitada‖ – eu diria até uma grande dose – de ―extra-Darcy‖ à história. O resultado, de acordo com Cheryl Nixon, é a reconfiguração do herói de Austen porque nós não gostamos dele da forma como é retratado no romance, logo a adaptação deve adicionar cenas para tornar seu protagonista mais desejável (Nixon, 2001, p.27), e essa adição é em grande parte responsável pelo sucesso da adaptação. Vale lembrar que essa reconstrução do herói é mais uma característica em comum das adaptações da década de 1990 e que continuou na década seguinte. A título de exemplo, podemos tomar Edward Ferrars, o par romântico de Elinor Dashwood em Razão e Sensibilidade. Ele aparece tão pouco no romance que é até difícil chamá-lo de herói da história, o que é reforçado pela sua personalidade introvertida e de pouca determinação. No livro, Austen o descreve assim: ―Edward Ferrars was not recommended to their good opinion by any peculiar graces of person or address. He was not handsome, and his manners required intimacy to make them pleasing‖320 (R&S, p.18). No entanto, os atores que representam Edward no filme de 1995 e na série de 2008 são exatamente o seu oposto:

Fig.21 Hugh Grant (1995) e Dan Stevens (2008) no papel de Edward Ferrars

320 ―Edward Ferrars não tinha nenhuma graça peculiar em sua pessoa ou sua conversa que o recomendasse a uma boa opinião. Não era bonito, e seus modos exigiam intimidade para serem agradáveis‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.87-88).

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Além da transformação de Ferrars em um ―galã‖ de cinema tradicional, há ainda a exploração dos sentimentos desse herói, os quais, pela timidez e relativo pouco espaço no romance dado a essa personagem, não são facilmente percebidos pelo leitor. Para o espectador das adaptações, porém, ocorre o contrário. Por exemplo, na adaptação de 2008, também escrita por Andrew Davies, há uma cena de Ferrars cortando lenha na chuva para o chalé da família Dashwood. Para o espectador, várias mensagens são transmitidas nesse momento: a sua masculinidade (força), a sensualidade de estar semi-vestido e molhado (a camisa branca é uma referência a ser explicada mais à frente), e a sua frustração por não poder se declarar para Elinor, tornando-o mais um herói atormentando pelos seus sentimentos:

Fig. 22: Edward Ferrars (Dan Stevens) em cena de Razão e Sensibilidade de 2008

Esse herói é recriado assim de forma muito mais emotiva e sentimental, da mesma maneira como Darcy foi recriado por Davies em 1995. E, como Nixon nos lembra, essa modificação é inconsistente com o desenvolvimento da personagem e, ainda mais importante, com a crítica de Austen a respeito da sensibilidade (Nixon, 2001, p.26). Em O&P, enquanto Darcy aparece no romance sempre controlado e sério, na adaptação nós o vemos torturado pelo excesso de emoção que sente porém que não consegue expressar em palavras, logo necessita de uma válvula de escape. Assim, para Nixon, Darcy realiza diversas atividades físicas que não aparecem no livro mas que expressam suas batalhas internas para o espectador, criando uma forma cinematográfica de diálogo entre seu corpo e sua mente ao longo de todo o seriado que está totalmente ausente do original (Nixon, 2001, p.31). Segundo Sutherland, a forma como essas adaptações lidam com o papel do herói é um dos principais problemas na transposição atual de Austen do romance para o cinema, porque, enquanto no original há uma ambivalência sobre sua importância, localizado de forma jocosa em algum lugar entre mero detalhe e ingrediente principal para o amuderecimento da heroína, os filmes, ao contrário, insistem em inverter essa característica e apagar um sistema complexo de

230 relações de gênero, colocando o herói em primeiro plano e como essencial para todo o conjunto (Sutherland, 2005, p.348). O melhor exemplo que parece conter em si toda essa polêmica em torno do herói é a hoje clássica cena escrita por Davies para a adaptação de 1995 em que Darcy mergulha em um lago em Pemberley e aparece depois com sua camisa molhada e transparente e grudada em seu corpo. É exatamente nesse momento que ele reencontra Elizabeth pela primeira vez desde o seu pedido de casamento que ela recusara, e o que era uma situação desconfortável para ambos dado esse histórico, no seriado isso é aumentado pela informalidade das roupas de Darcy. Davies descreve a cena como um ‗acidente‘ ―because I wanted him to dive in totally naked which was part of my scheme to getting the leading characters out of their posh tight restricting clothes as often as possible, but for some reason, he dived in with his shirt on and so gave us this scene. And I didn‘t realise how erotic it was going to be. (…) But that wet shirt moment is really the first time Elizabeth has seen Darcy as natural man, as it were. She has always been thrust into rooms with this rather daunting, beautifully turned-out guy and here he is all wet and tousled and mysteriously more fascinating than ever.‖321 (Entrevista concedida a CARTMELL e WHELEHAN, 2007, p.246)

A cena então é a representação total de um Darcy não só real mas muito, muito sexy322. Ela se tornou uma espécie de ―clássico‖, sendo reproduzida ou mencionada muitas vezes em romances ou produções de TV posteriores. Como vimos, até Davies reaproveitou a ideia em sua adaptação de R&S colocando o ator Dan Stevens na chuva com uma camisa branca. Outros exemplos são muito fáceis de serem encontrados: Bridget Jones, a personagem do romance de Helen Fielding, é obcecada com a cena e a assiste constantemente com suas amigas: ―We fell silent then, watching Colin Firth emerging from the lake dripping wet, in the see-through white shirt. Mmm‖323 (Fielding, 1999, p.35). Amanda Price, na adaptação ―Lost in Austen‖, pede um pequeno favor para o seu Mr. Darcy, e este favor é exatamente mergulhar em um lago usando somente calça e camisa. Jane Hayes, a personagem principal de Austenland, explica a sua obsessão com O&P devido a essa cena: ―I don't think I could explain it to a man. If you were a woman, all I'd have to say is 'Colin Firth in a wet shirt' and

321 ―Porque eu queria que ele mergulhasse totalmente nu, o que era parte do meu plano para tirar os protagonistas das suas roupas esnobes e restritas tanto quanto possível, mas por alguma razão, ele mergulhou com a camisa e então nos deu essa cena. E eu não tinha percebido o quão erótico iria ser (...). Mas aquele momento da camisa molhada é a primeira vez realmente que Elizabeth vê Darcy como um homem natural, como era. Ela sempre era colocada em salas com esse homem assustador e bonito e aqui ele está todo molhado e bagunçado e misteriosamente mais fascinante do que nunca‖ (tradução minha). 322 Andrew Davies hoje, após muitas outras adaptações de obras literárias para o cinema e TV, parece orgulhoso de sua fama de que ele é capaz de transformar até o mapa do metrô em algo sexualmente atraente. http://www.radiotimes.com/news/2016-09-18/war--peace-writer-andrew-davies-people-say-i-could-sex-up-the- tube-map Acesso em 22/09/2016. 323 ―Nós ficamos quietas então, assistindo a Colin Firth sair do lago todo molhado, com a camisa branca transparente. Hummm‖ (tradução minha).

231 you'd say, 'Ah'‖324 (Hale, 2008, p.77). E ela foi eleita a cena mais importante da história da TV inglesa, fato celebrado com a instalação de uma estátua imensa de Mr. Darcy no meio do lago do parque de Hyde Park em Londres.325

Fig.23: Acima à esquerda, Colin Firth no papel de Mr. Darcy na famosa cena do lago de 1995; à direita, a estátua em Hyde Park. Abaixo, o ator Elliot Cowan como Mr.Darcy atendendo ao pedido de Amanda Price em ―Lost in Austen‖, 2008.

Uma cena tão marcante não poderia deixar de ser absorvida nas continuações escritas por fãs, da mesma forma como vimos com a sequência final do casamento no capítulo anterior. Em Yours Forevermore, Darcy, Karalynne Mackrory incorpora a cena de forma muito semelhante à adaptação e usa a situação inusitada para indicar a atração que Elizabeth começava a sentir por Darcy, seguindo os objetivos de Andrew Davies de forma literal: It was with this delight unmistakably upon her face that she walked around a hedge in the garden and right into the broad chest of its owner. Mr. Darcy was at home! And from the looks of him, not expecting to encounter anyone. He had removed his jacket, now draped across one arm, his waistcoat was unbuttoned, his cravat missing, and his shirt collar open at the neck. His hair was slightly damp, and dark curls danced across his brow in the slight summer breeze. In a word, he was devastating. Devastatingly handsome, she thought. Suddenly shy, she dropped her eyes again to her belongings on the ground. As she bent to retrieve them, the gentleman did too. (…) Indeed, he felt utterly exposed and cursed himself for stopping along the way at the forest lake that Colonel Fitzwilliam had mentioned.326 (MACKRORY, 2015, posição Kindle 3772-3805)

324 ―Eu não acho que conseguiria explicar isso para um homem. Se você fosse uma mulher, tudo o que eu precisaria dizer era ‗Colin Firth em uma camisa molhada‘ e você diria ‗Ahh‘‖ (tradução minha). 325http://www.huffingtonpost.co.uk/2013/07/08/colin-firth-statue-mr-darcy-pride-and-prejudice- lake_n_3560981.html Acesso em 15/08/2016. 326 ―Foi com um imenso prazer marcado em seu rosto que ela caminhou ao longo de uma sebe no jardim e diretamente em frente ao peito de seu proprietário. Mr. Darcy estava em casa! E pela sua aparência, não estava esperando encontrar ninguém. Ele tinha removido seu casaco, carregando-o em um dos seus braços, seu colete desabotoado, sua grava desaparecida e o colarinho de sua camisa aberto no pescoço. Seu cabelo estava levemente molhado, e cachos escuros dançavam sobre sua testa na leve brisa de verão. Em uma palavra, ele estava devastador. Devastadoramente lindo, ela pensou. De repente tímida, ela abaixou seu olhos para seus objetos no chão. Conforme ela se abaixou para recuperá-los, o cavalheiro fez a mesma coisa (...). Realmente, ele

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O poder de reprodução da cena do lago é tão forte que uma leitora declarou, em entrevista, que havia lido O&P algumas vezes, ―but it never occurred to me the lake scene wasn‘t in the book. Guess it just goes to show how a great movie scene (or a lot of hype) can leave an indelible impression on the mind, and change the perception of reality (or fiction)‖327 (apud Harman, 2009, p.214). É o mesmo tipo de promoção que fez com que o ator Colin Firth passasse a ser irremediavelmente associado à personagem pelos fãs. Nas continuações de O&P não há muitas divergências na descrição da aparência de Mr. Darcy, que tem sempre os cabelos castanhos e desarrumados de Firth, por exemplo, apesar de a própria Austen ter falado apenas sobre ―his fine, tall person, handsome features, noble mien‖328 (O&P, p.10). Podemos até encontrar um Darcy gay no universo da fan fiction, mas um Darcy loiro é impossível! A imagem do ator, portanto, faz parte do fanon (fan + canon) de Orgulho e Preconceito, ou seja, o cânone construído pelos fãs em um processo no qual, segundo Bronwen Thomas, certos elementos da trama ou personagens se tornam estabelecidos dentro da comunidade de fãs, mesmo se esses elementos nunca apareceram no texto fonte, ou até mesmo se são diferentes dele (Thomas, 2011, p.8). De uma forma geral, toda essa atenção dada a Mr. Darcy como ―o herói‖ vem transformando-o na personagem principal de O&P. O problema é que ele não está tão presente assim no romance original, e quando está, geralmente aparece distanciado do que acontece, representado em pé próximo a uma janela, por exemplo, quieto e observador. Logo, se voltarmos agora às continuações de O&P, os ―janeites‖ atuais vão solucionar esse ―problema‖ reescrevendo a mesma história a partir do ponto de vista de Darcy. Não é coincidência, como nota Lisa Hopkins, que menos de um ano depois da estreia da série da BBC, Janet Aylmer publicou uma continuação de muito sucesso chamada Darcy’s Story, na qual ela usa o texto original de Austen com algumas modificações para tentar mostrar ao leitor como seria o romance a partir do olhar de Darcy (Hopkins, 2001, p.122). Muitas outras continuações seguiram essa nova abordagem, trazendo então não somente o ponto de vista de Darcy mas os seus sentimentos, cada vez mais fervorosos e apaixonados. Esse foco total em Mr. Darcy parece ter atingido seu ápice na recente continuação de Lilly Granson intitulada Mr. Darcy’s Sorrow and Redemption, a qual traz Darcy como viúvo após a morte de Elizabeth durante o parto de sua primeira filha, não muito

se sentia totalmente exposto e amaldiçoou a si mesmo por ter parado no meio do caminho no lago da floresta que o Coronel Fitzwilliam tinha mencionado‖ (tradução minha). 327 ―mas nunca tinha me ocorrido que a cena do lago não estava no livro. Acho que serve para mostrar como uma grande cena de um filme (ou muita publicidade) pode deixar uma impressão indelével na mente e mudar a nossa percepção da realidade (ou ficção)‖ (tradução minha). 328 ―seu porte distinto, alto e bonito de nobre‖ (trad. Alexandre de Souza, p.111).

233 tempo depois do casamento. Elizabeth nem mesmo aparece nessa continuação, e nós vemos somente Darcy tentando reparar seu coração partido para tentar encontrar o amor novamente com outra mulher. E como ele consegue, a impressão que fica desse romance é que Elizabeth se tornou secundária, ou ainda desnecessária, não sendo importante nem mesmo para o final feliz de Darcy. Ao mesmo tempo, pela quantidade de livros de autoajuda que prometem guiar mulheres modernas em sua busca pelo seu próprio Mr. Darcy, começo a pensar que Elizabeth na verdade pode às vezes ser percebida como um obstáculo na fantasia da leitora de se tornar ela mesma a Mrs. Darcy. Isso é facilmente observável na mencionada adaptação para a TV ―Lost in Austen‖ (2008). Amanda Price é uma moderna jovem inglesa fã de Jane Austen e infeliz com a sua vida, principalmente com o seu namorado bêbado e nem um pouco perfeito. Logo depois que ele a pede em casamento por simples comodidade, Amanda encontra uma porta mágica em seu banheiro que a leva para o mundo de O&P, seu romance preferido, e acaba trocando de lugar com Elizabeth, que vai viver na Londres atual, corta seu cabelo bem curto e passa a trabalhar como babá. Amanda fica presa em Longbourn e provoca muitos problemas ao tentar forçar as personagens a se comportarem exatamente como no livro, o que é responsável por boa parte do lado cômico da adaptação. Entretanto, o final é muito interessante pois Amanda consegue fazer com que Darcy se apaixone por ela, e ela decide então permanecer nesse universo paralelo enquanto Elizabeth decide permanecer em Londres – como um obstáculo removido para a união de Amanda e Darcy. No início, Amanda justifica sua preferência por Austen por conta de um certo sentimento nostálgico que faz com que a leitura de O&P, para ela, seja uma forma de escapismo. Nesse momento, ela não destaca a figura de Mr. Darcy, muito pelo contrário, parece criticar as mulheres modernas obcecadas por Colin Firth: ―I‘m not hung up about Darcy. I do not sit at home with the pause button and Colin Firth in clingy pants. I love the love story. I love Elizabeth. I love the manners and the language and the courtesy‖329 (―Lost in Austen‖, 2008, 6min). Com o desenrolar da história, no entanto, e após Darcy declarar seu amor por ela, Amanda admite para ele que ―I love you and I didn‘t know that... I have always loved you. Every time I have fallen for a man, I close my eyes, it‘s been you‖330 (―Lost in Austen‖, 2008, 124min). Amanda dá voz então a uma fantasia comum às fãs atuais de querer encontrar o seu Mr. Darcy:

329 ―Eu não sou viciada em Darcy. Eu não sento em casa com o botão de pausar e Colin Firth em calças apertadas. Eu amo a história de amor. Eu amo Elizabeth. Eu amo as maneiras e a linguagem e a cortesia‖ (tradução minha). 330 ―Eu amo você e não sabia... eu sempre te amei. Toda vez em que eu me apaixonava por um homem, eu fecho os olhos, era você‖ (tradução minha).

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Fig.24: Bolsa e cartazes comercializados entre fãs de Mr. Darcy

A transformação de uma personagem fictícia em modelo do homem ideal a ser encontrado e conquistado para garantir a felicidade da mulher parece incrível em tempos de grande disseminação de ideias feministas e de questionamento de paradigmas de gênero. Ashley Tauchert observa que nós parecemos ainda querer o nosso Mr. Darcy, apesar de possuir diversas ferramentas críticas para desmistificar esse objeto ilusório do desejo romântico ultrapassado, e esse desejo, que sobreviveu à crítica à ideia de uma subjetividade feminina única atrelada a uma heterossexualidade normativa, permanece como um marco no nosso entendimento cultural e estético de Austen e evidencia a força e resistência desse sonho nos gostos de leitura e de programas de TV (Tauchert, 2005, 23-24). O final de ―Lost in Austen‖ é, portanto, uma fantasia sobre a fantasia, pois em algum universo paralelo finalmente foi possível que a fã de Jane Austen se tornasse a nova Mrs. Darcy. Como Ariane Hudelet observa, Amanda Price também muda o final do original, a fantasia completa o círculo, a apropriação é absoluta, e O&P na verdade se tornou a sua história (Hudelet, 2012, p.261). Não por acaso, a capa do DVD traz a atriz que interpreta Amanda, Jemima Rooper, segurando uma cópia de O&P, e na sua capa, ao invés das ilustrações regenciais comumente utilizadas, vemos uma foto da própria Amanda. Ela não só está no livro, como o livro agora é sobre ela, sobre a sua história com o seu Mr. Darcy, o qual, para a sua alegria e para a inveja de todas as outras ‗darcymanìacas‘, é, magicamente, o original!

Fig.25: Detalhe da capa do DVD do seriado ―Lost in Austen‖.

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De uma certa forma, encontramos a mesma fantasia também no romance Austenland, de Shannon Hale, o qual foi adaptado para o cinema em 2013. Nessa história, temos a personagem de Jane Heyes, outra fã de Darcy incapaz de curar essa sua obsessão que atrapalha a sua vida, como acusa sua tia: ―‗I‘ve seen the movie. I know who Colin Firth is, my dear. And I think I know what you‘ve put your life on hold to wait for.‘ ‗Listen, I don‘t actually believe I can somehow end up married to Mr. Darcy. I just … nothing in real life feels as right as … oh, never mind, I don‘t want you believing your great-niece is living in a fantasyland‘‖331 (Hale, 2008, p.6). Nesse diálogo com sua tia-avó, Jane tenta explicar que a vida real não se compara com o que ela vê no seriado, ao mesmo tempo em que não admite estar vivendo em uma ―terra de fantasia‖, ainda que o seu desejo fosse encontrar alguém como Mr. Darcy, ―Someone who made me feel all the time like I felt when I watched those movies‖332 (Hale, 2008, p.189, grifo meu). Para efetuar uma cura, essa tia envia Jane para passar um perìodo em um tipo de ―resort‖ na Inglaterra que imita o modo de vida (roupas, alimentos, passatempos) da aristocracia do período Regencial. Nesse resort, Jane se envolve com dois homens, que seguem cada um o modelo de George Wickham (sedutor) e de Mr. Darcy (distante, mal-humorado). Ao final, ela acaba desiludida com esse mundo do século XIX (que existia, desse jeito perfeito e cor-de-rosa, somente na sua cabeça) e retorna aos EUA com uma nova percepção: ―She believed now in earnest that fantasy is not practice for what is real—fantasy is the opiate of women‖333 (Hale, 2008, p.180). Seria até um final interessante se não fosse pelo fato de que o seu Mr. Darcy do resort, chamado Mr. Nobley, a acompanhou até os EUA para eles poderem ficar juntos, contradizendo totalmente o que seria a ―moral da história‖ aqui. Jane até mesmo fala que ―Mr. Nobley had helped her say no to Mr. Darcy‖334 (idem), mas uma análise simples mostra que isso não ocorreu na verdade: ela não disse não para Mr. Darcy, ela apenas encontrou alguém à sua imagem para substitui-lo na vida real, que era o que ela queria desde o começo. Por que Mr. Darcy se tornou esse objeto de desejo? Ainda que haja um certo debate entre as fãs sobre qual seria o melhor herói de Austen (Capitão Wentworth de Persuasão e Mr. Knightley de Emma geralmente são as outras escolhas mais populares),

331 ―‗Eu vi o filme. Eu sei quem é Colin Firth, minha querida. E eu acho que eu sei pelo o que você colocou sua vida em espera.‘ ‗Escute, eu não acredito na verdade que eu possa de alguma forma me casar com Mr. Darcy. Eu só... nada na vida real causa essa sensação tão certa quanto... ah, deixe para lá, eu não quero que você acredite que a sua sobrinha-neta vive na terra da fantasia‘‖ (tradução minha). 332 ―Alguém que me fizesse sentir o tempo todo como eu me sinto quando eu assisto a todos aqueles filmes‖ (tradução minha). 333 ―Ela acreditava agora sinceramente que fantasia não é prática para aquilo que é real – fantasia é o ópio das mulheres‖ (tradução minha). 334 ―Mr. Nobley tinha a ajudado a dizer não para Mr. Darcy‖ (tradução minha).

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Darcy continua sempre em primeiro lugar. Se o motivo que leva as mulheres de hoje a buscar o seu Darcy fosse somente o fato de ele ser bonito, rico e de alto status social, não haveria nenhuma diferença entre elas e Caroline Bingley, por exemplo. Mas a verdadeira fantasia que envolve essa personagem é a utopia, nas palavras de Janet Todd, de um poder erótico feminino que pode fazer o monstro se ajoelhar com um esforço mínimo (Todd, 2013b, p.153), ou seja, que a principal fantasia que O&P não é tanto a da Cinderela (mulher pobre conquista o homem rico), mas a da jovem simples e de valor que conquista ou doma um nobre deliciosamente arrogante (idem). Assim, Darcy inicia a história rude e arrogante (―he was discovered to be proud; to be above his company, and above being pleased‖335 O&P, p.10), e contra seus próprios princípios se apaixona por Elizabeth, uma mulher de família inferior e nenhuma fortuna. Ainda assim, ele acredita em sua superioridade e tem certeza de que ela vai aceitar a sua proposta de casamento. A recusa de Elizabeth e a forma como ela responde às suas ofensas apontando os seus defeitos promove uma mudança em Darcy (que deve continuar para além do fim da história pois, somos informados, ―he had yet to learn to be laughed at‖336, O&P, p.412). Mas Darcy aprende a reconhecer seus erros e, no final, quando pede Elizabeth em casamento pela segunda vez, aí sim é digno dela. Como nota Emily Auerbach, a habilidade de Darcy de superar seu senso de superioridade esnobe para aceitar Elizabeth como seu igual e a julgar a família dela pelo valor e não por nascimento marca, talvez, a maior evolução pessoal que sofre um herói de Austen (Auerbach, 2004, p.160). Assim, dentro de uma tradição de homens que foram ―domesticados‖ pelas heroìnas de romances (desde Mr. B, de Pamela, até Rochester, de Jane Eyre), Darcy acaba se destacando como a mistura ideal de um herói romântico misterioso e um cavalheiro gentil que é colocado de joelhos frente a uma mulher que se recusou a ser dominada por ele e pela sua visão de mundo que determinava que ela tinha que aceitar o seu pedido de casamento e ainda sentir-se eternamente grata por isso. Darcy, assim, é o exemplo final do homem que muda por amor, e não há nenhuma fantasia mais satisfatória ou mais empoderadora para uma mulher, talvez nem mesmo a ideia de amor à primeira vista (as quais, lembremos, não são fantasias mutuamente excludentes). A esse respeito, Janet Todd afirma que, conforme Darcy se consolida no imaginário popular como um homem que ama uma mulher apesar de seu controle racional a partir da criação –especialmente via adaptações, acredito eu – de uma transparente vida privada mais passional, ele se torna o modelo para inúmeros romances que apresentam

335 ―pois se descobriu que era orgulhoso, superior ao grupo, e impossìvel de agradar‖ (trad. Alexandre de Souza, p.112). 336 ―ele ainda precisava aprender a ser o alvo de risadas‖ (tradução minha).

237 repetidamente essa figura do homem poderoso curvando-se frente à garota simples (Todd, 2013b, pp.157-159). É uma fórmula que traz satisfação para a leitora porque ela já sabe o final e não precisa sofrer, como a heroína, com o comportamento confuso e às vezes até violento do herói no início da narrativa, ao mesmo tempo em que, segundo Todd, essa fórmula, pode guiar mulheres a aceitarem e interpretarem comportamentos enigmáticos dos homens de uma maneira reconfortante e acalmar assim as ansiedades femininas sobre eles, concluindo então que o tipo de romance que O&P ajudou a proliferar alimenta as leitoras, largamente impotentes na vida real, com a fantasia duradoura da realização total via o amor heterossexual (idem, p.160). Darcy, assim, se torna mais importante que Elizabeth na leitura atual de O&P, e Todd registra seu inconformismo ao refletir como duas ondas consecutivas de feminismo não foram capazes de combater o fenômeno de massa da ideia do ―amor verdadeiro‖, o desejo utópico das mulheres por um tipo específico de romance e um tipo específico de herói que, poderia até argumentar-se, conquistou o globo (idem, p.157). No universo das continuações, existem dois exemplos muito fortes dessa fantasia. Tanto The Coming Age of Elizabeth Bennet (2016), de Caitlin Williams, e Obligation and Redemption (2016), de Georgia McCall, têm em comum um Darcy ―piorado‖, com seu orgulho e senso de superioridade elevados ao extremo. Os dois livros colocam Darcy e Elizabeth casados por obrigação, contra a vontade de ambos, por causa de uma situação que os envolve em um escândalo. Nos dois livros, Darcy demora para superar o seu ressentimento por ter sido forçado a essa posição (pois, como ele mesmo admite relutantemente no original, ―my temper would perhaps be called resentful‖337, O&P, p.63) e a união dele com Elizabeth parece condenada à infelicidade. De uma certa forma, portanto, nessas duas variações Darcy é transformado no estereótipo do homem poderoso, desconfiado e perigoso que o próprio O&P ajudou a criar. Contudo, com o tempo ele aprende a reconhecer suas falhas e admitir o seu amor por Elizabeth – é imperativo para a fórmula funcionar que ele se apaixone primeiro e que seja obrigado a conquistá-la. Assim, a ―domesticação‖ efetuada por Elizabeth é ainda mais satisfatória porque é inconsciente, Darcy sendo finalmente derrotado pelas características que Elizabeth sempre teve mas para as quais ele estava cego até então. Na cena abaixo, vemos o momento em que Darcy é finalmente prostrado por Elizabeth sem que ela perceba e nem o deseje (ainda): Then he opened the parlour door and fell in love. Though he had never experienced it before, he knew it straight away. It was the surest emotion he had ever felt. He had burned for her before, been desperately attracted to her since the day he had returned to Pemberley. He constantly wanted to be near her and she had certainly ignited that basest, most beastly part of him, his needs and his passions. This was an entirely

337 ―meu temperamento talvez seja considerado rancoroso‖ (tradução minha).

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new emotion, however. It made him shake; such was the force with which it took hold of him. He didn‘t just adore the sight of her, he realised, he adored everything about her, who she was, what she had become. Elizabeth was sat with a small child on her lap, a fork full of cake poised in mid-air, laughing at the boy‘s cries for more. When Darcy entered, she turned her head his way, but her smile, which usually faltered or disappeared upon seeing him, remained, and its breadth and warmth, the joy in it, sent him spiralling. To think he had just been saying that he did not know what he wanted. Her! Of course, what else was there? Only her. If it took him the next ten years, he would work to win her over. Day by day he would endeavour to strip away her aversions and prejudices.338 (WILLIAMS, 2016, posição Kindle 6126-6135)

Como podemos observar no trecho acima, Darcy, depois de anos casado com Elizabeth – muitos dos quais ele passa viajando sozinho –, reconhece primeiro um forte desejo físico por ela, para depois ser totalmente consumido, como se atingido por um raio, pelo amor, enquanto Elizabeth senta com uma visita na sala de estar totalmente alheia ao que acontecia com seu marido, sem precisar fazer nada para produzir nele esse sentimento. Trata- se então de uma vitória de Elizabeth que ela obteve sem qualquer esforço de sua parte, ilustrando o desejo da mulher moderna de ser reconhecida e valorizada pelas suas características intrínsecas. Uma vez que O&P é transformado em um conto de fadas ―à la Disney‖, principalmente pela sobreposição daquele ―supersentimentalismo‖ analisado no capìtulo 2, podemos afirmar que Mr. Darcy passa a ser visto como o verdadeiro príncipe encantado, o homem perfeito, aquele que muda por amor. Dentro dessa fantasia da ―domesticação‖ do herói, Darcy é quase como um príncipe que inicia a história como sapo – arrogante, orgulhoso, cheio de si e de sua superioridade – para depois ser transformado por uma saudável recusa ao seu pedido de casamento no herói charmoso e agradável que conquista o amor de sua dama, Elizabeth Bennet, e a salva – e também a sua família – do grande perigo do escândalo sexual causado pelo malvado Mr. Wickham. Ao final, para deleite do leitor, o casal vai viver na grande propriedade de Pemberley, ou o castelo encantado, e serão felizes para sempre já que não podia ser diferente. É a partir dessa imagem que temos, por exemplo, a transformação da grande propriedade de Chatsworth, na Inglaterra, em um importante ponto

338 ―Então ele abriu a porta da sala e se apaixonou. Apesar de ele nunca ter experimentado isso antes, ele sabia imediatamente. Era a emoção mais certa que já tinha sentido. Ele tinha ardido por ela, estava desesperadamente atraído por ela desde que tinha retornado a Pemberley. Ele constantemente queria estar perto dela e ela tinha certamente acendido aquela sua parte mais basal, mais animal, suas necessidades e paixões. Contudo, essa era uma emoção totalmente nova, que o fazia tremer, tal era a força com que tomou conta dele. Ele não só adorava vê-la, ele percebeu, ele adorava tudo sobre ela, quem ela era, o que ela tinha se tornado. Elizabeth estava sentada com uma pequena criança em seu colo, um garfo cheio de bolo parado no meio do caminho, rindo dos gritos do menino por mais. Quando Darcy entrou, ela virou sua cabeça em direção a ele, mas seu sorriso, o qual geralmente falhava ou desaparecia quando o via, permaneceu, e a sua largura e calor, a sua alegria, afetou-o profundamente. E pensar que ele tinha acabado de dizer que ele não sabia o que queria. Ela! Claro, o que mais? Somente ela. Mesmo se levasse os próximos dez anos, ele iria se esforçar para conquistá-la. Dia a dia ele iria trabalhar para remover todas as aversões e preconceitos dela‖ (tradução minha).

239 turístico para todos os fãs atuais por ser visto como o local em que Darcy e Elizabeth teriam vivido seu longo e perfeito casamento, como aparece em muitas das continuações. Isso porque, como afirma Park Honan, existe um mito de que Austen teria usado Chatsworth, então residência dos Duques de Devonshire, como modelo para Pemberley, e esse grande palácio já foi utilizado como cenário em duas adaptações de O&P. O que poucos parecem considerar é que Chatsworth pertencia na verdade a uma das principais famílias nobres da Inglaterra, de status muito superior a Mr. Darcy que nem título de nobreza tinha, e cuja renda de dez mil libras por ano não seria suficiente para manter tal propriedade (Honan, 1987, pp.320-321). Mas sendo hoje o grande herói romântico, Mr. Darcy precisa ser apresentado com um castelo digno de um príncipe pois, como bem coloca Michael Kramp, os heróis dos romances de Austen foram reconstruídos para retratar ícones culturais de masculinidade (Kramp, 2007, p.6), e não há nada que grite mais alto ―homem de sucesso‖ do que uma bela propriedade imobiliária, seja um castelo, seja uma cobertura duplex no coração de uma metrópole. Contudo, ainda que essa fantasia do ―homem transformado por amor‖ seja poderosa e tenha encontrado muito espaço nas continuações de O&P, observei uma outra tendência, ainda mais forte, que parece caminhar na direção oposta: a correção das falhas de caráter desse herói. Temos com frequência um Darcy ―melhorado‖, e o poder de Elizabeth não efetua mudanças (agora desnecessárias) nele mas apenas o convence a superar obstáculos sociais (família de status inferior, sem dinheiro, de comportamento impróprio, etc.). De uma certa forma, então, esse poder da mulher sobre o homem é diminuído consideravelmente, ao mesmo tempo em que Darcy é alçado ao posto de homem perfeito desde a primeira página da história. Como vimos, os defeitos da personalidade de Darcy em O&P consistem em um temperamento rancoroso, senso de superioridade e um orgulho escancarado que fazem com que ele seja rude e egoísta com as pessoas que considera inferiores. Essas falhas aparecem durante os dois primeiros volumes do romance, e como nota Todd, Darcy tem tantos defeitos nas primeiras páginas que é quase cômico (2013b, p.153). Ele é incapaz de manter uma conversa agradável, está sempre distante, com um olhar taciturno e crítico. Quando fala, seu discurso geralmente ofende as pessoas ou demonstra claramente a sua arrogância. Essas falhas são ilustradas principalmente em dois momentos da história: logo no início, quando ele se recusa a dançar com Elizabeth em um baile, declarando, perto o suficiente para ela mesma ouvir, que a sua aparência era apenas tolerável; e, depois, quando Elizabeth descobre que

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Darcy afastou Mr. Bingley de sua irmã Jane. Essas duas situações serão ou justificadas ou eliminadas nas continuações. No capítulo anterior, vimos como a primeira cena, a do baile de Meryton, é transformada em algumas continuações para que Darcy, ao invés de achar Elizabeth somente tolerável, na verdade tenha se sentido atraído por ela desde aquele momento – ou até se apaixonado à primeira vista. Veremos agora como as continuações tentam justificar o primeiro momento em que Darcy age de acordo com a sua personalidade arrogante. A cena original, em que Mr. Bingley tenta convencer seu amigo a dançar no baile, é esta: "Come, Darcy," said he, "I must have you dance. I hate to see you standing about by yourself in this stupid manner. You had much better dance." "I certainly shall not. You know how I detest it, unless I am particularly acquainted with my partner. At such an assembly as this it would be insupportable. Your sisters are engaged, and there is not another woman in the room whom it would not be a punishment to me to stand up with." "I would not be so fastidious as you are," cried Mr. Bingley, "for a kingdom! Upon my honour, I never met with so many pleasant girls in my life as I have this evening; and there are several of them you see uncommonly pretty." "You are dancing with the only handsome girl in the room," said Mr. Darcy, looking at the eldest Miss Bennet. "Oh! She is the most beautiful creature I ever beheld! But there is one of her sisters sitting down just behind you, who is very pretty, and I dare say very agreeable. Do let me ask my partner to introduce you." "Which do you mean?" and turning round he looked for a moment at Elizabeth, till catching her eye, he withdrew his own and coldly said: "She is tolerable, but not handsome enough to tempt me; I am in no humour at present to give consequence to young ladies who are slighted by other men. You had better return to your partner and enjoy her smiles, for you are wasting your time with me."339 (O&P, pp.11-12)

Além de ofender Elizabeth, que escuta todo o diálogo, Darcy demonstra seu senso de superioridade ao afirmar não só que dançar em um baile como aquele seria insuportável (já que as pessoas presentes não fazem parte da alta elite inglesa), mas que dançar com qualquer mulher ali seria para ele algum tipo de punição. Mais à frente na história descobrimos que Darcy valoriza essa sua honestidade, pois para ele ―disguise of every sort is my abhorrence‖340 (O&P, p.215), mas, como observa Todd, o que Austen está nos mostrando aqui é que algum tipo de fingimento é necessário para se conviver em sociedade (Todd,

339 ―‗Venha, Darcy‘, disse ele, ‗tenho que fazer você dançar. Odeio vê-lo parado sozinho feito um idiota. Seria muito melhor se você dançasse. ‗Seguramente não. Você sabe como detesto isso, a não ser que eu conheça bem minha parceira. Em uma reunião como esta, seria insuportável. Suas irmãs já têm par, e não há no salão nenhuma mulher cuja companhia não seria um castigo.‘ ‗Eu não seria tão exigente assim‘, exclamou Bingley. ‗Santo Deus! Juro pela minha honra que nunca vi tantas garotas bonitas na vida como esta noite; muitas delas são de uma beleza rara.‘ ‗Voce está dançando com a única garota bonita do baile‘, disse o senhor Darcy, olhando para a mais velha das irmãs Bennet. ‗Oh! É a criatura mais bela que já vi! Mas uma das irmãs dela está sentada logo atrás de você, e é muito bonita, e, ouso dizer, muito simpática. Deixe que eu peça a ela que o apresenta à irmã.‘ ‗De quem está falando?‘, e virando-se, olhando para Elizabeth por um momento até cruzarem o olhar, ele baixou a vista e disse com frieza: ‗É razoável; mas não é bonita o bastante para me tentar; e no momento não estou disposto a me envolver com moças desdenhadas pelos outros homens. É melhor você voltar para a sua parceira e desfrutar dos sorrisos dela, pois está perdendo seu tempo comigo‘‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.112-113) 340 ―tenho aversão a toda sorte de disfarces‖ (trad. Alexandre de Souza, p.517).

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2013b, p.154). Assim, mesmo com toda a melhor educação que Darcy recebera (Elizabeth o provoca perguntando ―why a man of sense and education, and who has lived in the world, is ill qualified to recommend himself to strangers?‖341 – O&P, p.196), ele se mostra inepto a participar nessa sociedade sem distribuir ofensas a todas as pessoas que encontra. Obviamente, um herói que deve ser o modelo de homem perfeito não pode ter essa falha, logo as continuações vão tentar justificar o que ocorreu no baile em Meryton de diversas formas pois, como argumenta a Elizabeth da variação de Karen Cox, Darcy foi grosseiro com ela e várias outras pessoas, mas ―there were extenuating circumstances‖, e Darcy confirma isso ao pedir desculpas afirmando ―I wasn‘t myself really during that period‖342 (COX, Karen, Undeceived, posição Kindle 3454-3457). Vejamos algumas outras instâncias:

"Although Mr. Darcy seems shy, I do believe he may be a good man. He has been very courteous to all in the area with the exception of the Meryton Assembly. Mr. Bingley said Mr. Darcy had traveled from London just the day before, and he may have been fatigued." "And he may have also been still suffering effects from the accident. Jane, I need to think more about adopting your loving attitude toward everyone. It seems I may have become a little judgmental."343 (THOMAS, 2016, posição Kindle 3147-3151)

―No, I do enjoy dancing if it is with an agreeable partner, but I had just experienced a very distressing event, and coming to Netherfield with Bingley was meant to be restful for me. I came with no intent to socialize with the neighborhood but to help Bingley acclimatize himself to running an estate. I was also weary from traveling most of the day in the same closed conveyance with Miss Bingley and Mr. and Mrs. Hurst and had no plans to mingle with society so shortly after my arrival.‖344 (KAUER, 2016, posição Kindle 371-376)

―I dislike being the object of such scrutiny, and taking my turn on the dance floor invites even more. When Bingley approached me I was already fatigued from the evening's activities, and had no desire to invite more attention, yet he persisted in his efforts. I could think of no other way of discouraging him than saying that nobody there was tempting enough for me. (…) And the main reason I could not bring myself to simply state that I was fatigued, or that I did not care to dance, was because of my abominable pride and temper. Both get the better of me at times, and

341 ―por que um homem de bom senso e educação, que conhece o mundo, não teria capacidade para se mostrar agradável a estranhos?‖ (tradução minha). 342 ―havia circunstâncias atenuantes‖ / ―Eu realmente não era eu mesmo durante aquele perìodo‖ (tradução minha). 343 ―‗Apesar de Mr. Darcy parecer tìmido, eu acredito que ele possa ser um bom homem. Ele foi muito cortês com todos na região com exceção do baile de Meryton. Mr. Bingley disse que Mr. Darcy tinha viajado de Londres apenas no dia anterior, e ele poderia estar cansado.‘ ‗E ele também poderia estar sofrendo ainda dos efeitos do acidente. Jane, eu preciso pensar mais sobre adotar a sua atitude terna para com todas as pessoas. Parece que eu me tornei um pouco crìtica‘‖ (tradução minha). 344 ―Não, eu gosto de dançar se for com uma parceira agradável, mas eu tinha acabado de passar por um evento perturbador, e vir até Netherfield com Bingley era para ser um descanso para mim. Eu não vim com nenhuma intenção de socializar com a vizinhança mas ajudar Bingley a se aclimatar com a administração de uma propriedade rural. Eu também estava cansado da viagem que durou a maior parte do dia no mesmo espaço fechado com Miss Bingley e Mr. e Mrs Hurst e não tinha nenhum plano de me misturar com a sociedade tão cedo após a minha chegada‖ (tradução minha).

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I let them do so that evening. I did not behave in a gentlemanly way, and for that I must beg your pardon."345 (OWEN, 2014, p.9)

No primeiro exemplo, da variação de G. Thomas, são criadas circunstâncias atenuadoras para Darcy, como um cansaço da viagem de Londres para Hertfordshire e efeitos do acidente de carruagem que ele sofrera antes. A lógica se inverte quando Elizabeth (que sofreu o mesmo acidente e nem por isso foi grosseira com as pessoas) declara que ela é que estava errada em ter se ofendido com o comentário de Darcy e que deveria ser mais como Jane, menos propensa a julgar as pessoas. No segundo exemplo o próprio Darcy, agora reconhecendo sua grosseria, tenta justificar-se citando o cansaço da viagem, o desejo de apenas ajudar o seu amigo e não de ―socializar‖ com a vizinhança, indicando que Bingley o forçara a ir ao baile, e também que ele ainda estava abalado com um evento perturbador que ocorrera antes de ir para Meryton. Frente a essas explicações, Elizabeth o perdoa. No último exemplo, Darcy também pede desculpas e admite seu temperamento como responsável pelo comentário maldoso, mas tenta mostrar que a culpa era de Bingley, por ter forçado a situação, e das pessoas no baile que ficavam analisando-o e fofocando sobre a sua riqueza, aumentando o seu desconforto e irritação. O segundo momento em que Darcy demonstra seu caráter, quando ele separa Bingley de Jane Bennet, também deve ser trabalhado pelas continuações. Em muitas, a sua participação é apagada e a culpa é colocada somente em Caroline Bingley. Em algumas outras, como Behind the Mask, the Bronwen Chisholm, a separação era necessária não para proteger Bingley de uma mulher que Darcy via como uma fortune hunter, mas sim para proteger as irmãs Bennet de um perigo maior – nesse caso, novamente Caroline Bingley: ―You may be surprised to learn that your sister, Miss Bingley, encouraged your staff to gossip and explored ways to use them to spread rumours which would ruin the Bennets. (…) I could not allow her to remain behind without one of us there to stop any plans she may have.‖ (…) ―On the morning we left, Miss Bingley found me alone in the breakfast-parlour and announced her concerns that you would propose to Miss Bennet upon your return to Netherfield. She insisted I find a way to keep you in London. I simply suggested you may be less likely to return if your family were in town. Please believe me I have no desire to keep you from returning to Hertfordshire. I was simply thinking of the Misses Bennet and their reputations. If Jackson is correct, and he is rarely wrong, Miss Bingley would have taken actions to make it impossible for you to offer for Miss Bennet.‖346 (CHISHOLM, 2015, p. 222)

345 ―Eu não gosto de ser o objeto de tal escrutìnio, e participar da dança o encoraja ainda mais. Quando Bingley me abordou eu estava já cansado das atividades da noite, e não tinha nenhum desejo de convidar mais atenção, ainda assim ele persistiu em seus esforços. Eu não consegui pensar em nenhum outro modo de desencorajá-lo a não ser dizendo que ninguém ali era tentadora o suficiente para mim. (...) E a razão principal pela qual eu não consegui admitir simplesmente que estava cansado, ou que não queria dançar, foi por conta do meu orgulho e temperamento abominável. Ambos me dominam de vez em quando, e eu deixei isso acontecer naquela noite. Eu não me comportei como um cavalheiro, e por isso eu devo implorar seu perdão‖ (tradução minha). 346 ―Você pode se surpreender ao descobrir que a sua irmã, Miss Bingley, encorajou os seus empregados a fofocarem e explorou formas de usá-los para espalhar rumores que poderiam arruinar os Bennets. (...) Eu não podia permitir que ela ficasse para trás sem um de nós lá para parar qualquer planos que ela tivesse. (...) Na

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De uma forma geral, contudo, a manipulação de Darcy é justificada como uma ação necessária para proteger seu amigo, de forma que, ainda que a sua interferência tenha sido um erro, ela foi feita com a melhor das intenções. Novamente observamos uma inversão aqui do que ocorre no original. Em O&P, temos primeiro Darcy tentando explicar suas ações em uma carta à Elizabeth, afirmando que ele havia estudado as expressões de Jane Bennet e concluído que ela não tinha nenhum sentimento pelo seu amigo, acrescentando ainda que ele se considerava um juiz imparcial: ―that I was desirous of believing her indifferent is certain— but I will venture to say that my investigation and decisions are not usually influenced by my hopes or fears. I did not believe her to be indifferent because I wished it; I believed it on impartial conviction, as truly as I wished it in reason‖347 (O&P, 220). Conhecendo a ironia usual de Austen, só essa afirmação coloca em cheque a imparcialidade de Darcy nesse caso. Depois, ele completa a sua justificativa enumerando as suas objeções à famìlia Bennet: ―the situation of your mother's family, though objectionable, was nothing in comparison to that total want of propriety so frequently, so almost uniformly betrayed by herself, by your three younger sisters, and occasionally even by your father‖348 (idem). Essas objeções, portanto, levaram-no a convencer seu amigo a se afastar de Jane Bennet e evitar o que seria ―a most unhappy connection‖349 (O&P, 221). Darcy conclui, ―it was done for the best (…) and though the motives which governed me may to you very naturally appear insufficient, I have not yet learnt to condemn them‖350 (O&P, 222). Ou seja, mesmo tendo Elizabeth declarado que ele havia causado sofrimento à sua irmã, que estava de fato apaixonada por Bingley, Darcy não se arrepende do que fez. Somente no final do livro, depois que ele e Elizabeth já estão noivos, Darcy admite que ―my former interference in his affairs [were] absurd and impertinent‖351 (O&P, 411). Essa conclusão é irônica porque, primeiro, Bingley só pediu Jane Bennet em

manhã em que partimos, Miss Bingley me encontrou antes sozinho da sala de café da manhã e anunciou suas preocupações de que você iria pedir Miss Bennet em casamento quando retornasse a Netherfield. Ela insistiu que eu encontrasse um jeito de manter você em Londres. Eu simplesmente sugeri que você estaria menos inclinado a retornar se toda a sua família estivesse na cidade. Por favor acredite que eu não tinha nenhum desejo de impedir o seu retorno a Hertfordshire. Eu estava simplesmente pensando nas Misses Bennet e nas suas reputações. Se Jackson estiver correto, e ele quase nunca está errado, Miss Bingley teria tomado atitutes para tornar impossível para você se casar com ela‖ (tradução minha). 347 ―Que eu desejava acreditar na indiferença dela é um fato certo – mas ouso dizer que minhas investigações e decisões não são geralmente influenciadas por meus medos e esperanças. – Não conclui que ela era indiferente por mera vontade minha; - passei a acreditar nisso mediante uma convicção imparcial, tão sincera quanto eu a desejava racionalmente‖ (trad. Alexandre de Souza, p.322). 348 ―A situação da família da sua mãe, embora censurável, nada seria se comparada à total falta de educação quase sempre revelada por ela mesma, por suas três irmãs mais novas e eventualmente pelo seu pai‖ (trad. Alexandre de Souza, p.322). 349 ―uma aliança muito infeliz‖ (trad. Alexandre de Souza, p.323). 350 ―está feito, e com a melhor das intenções (...) e embora os motivos que me guiaram possam naturalmente lhe parecer insuficientes, não consigo ainda condená-los‖ (trad. Alexandre de Souza, p.524). 351 ―Minha interferência em seus assuntos [foi] absurda e impertinente (tradução minha).

244 casamento depois que Darcy confessou o que havia feito, o que, de certa forma, mostra que ele estava novamente influenciando seu amigo, e, segundo, porque Elizabeth percebe isso mas ―could not help smiling at his easy manner of directing his friend‖352 (idem) – a interferência agora era bem-vinda. Nas continuações, porém, temos primeiro a condenação da interferência e depois a sua justificativa pela própria Elizabeth como ―bem-intencionada‖, ou até útil em certo ponto como na variação moderna de Ruby Cruz em que a própria Jane Bennet defende o que Darcy havia feito: ―It took months before Charlie [Bingley] and I worked things out between us, remember?‖ ―No thanks to Will [Darcy].‖ (…) ―True, he was the one who broke us up in the first place, but it was for the better because it forced Charlie to mature and come out from his father‘s thumb. Will was a strong influence, but his father was an even stronger one.‖353 (CRUZ, 2016, posição Kindle 4005-4008)

The truth is that his interference was not so officious; it was kindly meant. The truth is that he was arrogant in his opinion and presumptuous about Jane, but he cares deeply for Mr. Bingley, has admitted his wrongdoing, and vows to make amends. I saw the genuine look in his eyes, the pain on his face. Perhaps yesterday I could label it officious, but now I am beginning to see he is not quite what I thought.354 (FAIRBANKS, R., 2015a, posição Kindle 437-440)

He was even, she admitted, a good friend, for although she still resented him for having parted Mr Bingley and her sister, she could see that he had done what he thought was for the best. He had been wrong – very wrong – but his crime was being mistaken, not being hard and cruel as she had at first thought.355 (CARTER, 2016, posição Kindle 721-724)

Vimos, assim, como dois momentos cruciais de O&P para construir a personalidade de Darcy como complexa e longe de ser perfeita são alteradas e retificadas pelos fãs. Além dessas duas instâncias, de uma forma geral os defeitos de Darcy são apagados um a um, pois, como afirma Elizabeth na variação de Nicole Clarkston, ―how could such an arrogant man have altered so abruptly? Of course, she knew the truth now. He never was

352 ―Não conseguiu segurar o riso diante da facilidade com que ele direcionava seu amigo‖ (trad. Alexandre de Souza, p.512). 353 ―Demorou meses para que Charles e eu acertássemos as coisas entre nós, lembra?‘ ‗Não graçar a Will‘. (...) ‗Verdade, foi ele que nos separou em primeiro lugar, mas foi para o melhor porque forçou Charles a amadurecer e sair do controle do seu pai. Will foi uma influência forte, mas o seu pai foi uma ainda mais forte‘‖(tradução minha). 354 ―A verdade era que a sua interferência não tinha sido tão importuna, foi feita com as melhores das intenções. A verdade era que ele foi arrogante e presunçoso em sua opinião sobre Jane, mas ele se importa muito com Mr. Bingley, admitiu seus erros, e jurou consertá-los. Eu vi o olhar genuíno em seus olhos, a dor em seu rosto. Talvez ontem eu poderia tê-lo chamado de importuno, mas agora eu estou começando a ver que ele não é exatamente aquilo que eu pensei‖ (tradução minha). 355 ―Ele era até mesmo um bom amigo, ela admitiu, pois apesar de que ela ainda estava ressentida por ele ter separado Mr. Bingley e sua irmã, ela podia ver que ele tinha feito o que pensara ser o melhor. Ele tinha errado em seu julgamento – errado muito – mas seu crime era estar errado e não ser duro e cruel como ela tinha pensado a priori‖ (tradução minha).

245 arrogant‖356 (Clarkston, 2015, posição Kindle 6677-6678). Ou, em Sense of Worth, de Deborah Kauer, onde Elizabeth percebe que ―his aloofness was a sign of shyness and reserve that he experienced when in the company of people he did not know or were only minimally acquaintances. Since he was not as aloof as she first suspected, it also made her accept the fact that he was not as proud as he first appeared; at least not proud in the sense that he felt himself above everyone around him‖357 (Kauer, 2016, posição Kindle 2813-2816). Essas e outras autoras usam o espaço da fanfic como uma oportunidade para corrigir os defeitos do herói: seu orgulho de torna timidez, sua grosseria se torna insegurança, e mesmo se Darcy afirma no original que Elizabeth não era bonita o bastante para deixá-lo tentado, na verdade ele já estava absolutamente apaixonado por ela porque fora amor à primeira vista. Ele se torna assim o homem perfeito, e poderíamos até imaginar a risada de Austen se ela pudesse presenciar o que foi feito de sua personagem, já que ela mesma disse que ―pictures of perfection make me sick & wicked‖358 (Letters, p.335). Além dessas correções, outras características são adicionadas a Darcy, transformando-o em um homem exemplar segundo os padrões tanto do séc. XIX quanto do séc. XXI. Por exemplo, por um lado é comum variações como a de Glenna Mason, na qual Darcy era ―the scion of the descendants of the Norman dynasty, the powerful and influential master of an enormous estate‖359 (Mason, 2014, posição Kindle 1396-1398), ou em Jennifer Lang, que afirma que ―Mr Darcy (…) was the epitome of an English gentleman‖360 (Lang, 2015, posição Kindle 469-470), que colocam Darcy – ainda que sem nenhum título de nobreza – como um aristocrata de alto nível. Por outro lado, é necessário também que Darcy seja uma pessoa humilde, e muitas vezes o seu status social é visto como um impedimento para isso, especialmente porque em tempos atuais esse tipo de distinção de classe baseado em nobreza parece muito antiquado. Assim, ainda que Darcy tenha sua fortuna e poder preservados, ele também aparece como modesto e aberto para se relacionar com qualquer pessoa baseado em caráter e não em berço: ―My uncle is an earl, Bingley,‖ said Darcy, ―though I have never aspired to gain such social prominence myself.‖ ―I almost think you might be successful should you wish it.‖ Darcy nodded but did not elucidate. There had been occasions in the past

356 ―Como poderia um homem tão arrogante ter mudado tão abruptamente? Obviamente, ela sabia a verdade agora. Ele nunca tinha sido arrogante‖ (tradução minha). 357 ―a sua indiferença era um sinal de timidez e reserva que ele experimentava quando em companhia de pessoas que ele não conhecia ou só minimamente. Como ele não era tão indiferente quanto ela suspeitou primeiro, isso também a fez aceitar o fato de que ele não era tão orgulhoso quanto parecia a princípio, pelo menos não orgulhoso no sentido de que ele se sentia superior a todas as pessoas a sua volta‖ (tradução minha). 358 ―Figuras perfeitas me deixam doente e malvada‖ (tradução minha). 359 ―o descendente maior da dinastia normanda, o mestre poderoso e influente de uma enorme propriedade‖ (tradução minha). 360 ―Mr. Darcy era a epìtome do cavalheiro inglês‖ (tradução minha).

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when prior Darcys had refused titles. The Darcy name was not defined by a title; it was built upon generations of hard work, fair management of their land, and unshakable integrity.361 (ROWLAND, 2016b, posição Kindle 3331-3335)

Darcy did not seek notice of London‘s social elite even though it was his rightful due.362 (KAUER, 2016, posição Kindle 1794-1794)

―I will not scruple to suggest that I am completely devoid of pride, but I hope that I am not more afflicted by the vice than any other gentleman. The fact of the matter is that I count among my closest friends a man who comes from a similar background as you, Mr. Gardiner. The only difference between you and Bingley is that he is in the happy position to seriously consider purchasing an estate. All men try to rise above their origins, Mr. Gardiner, and I try not to discriminate against any man, no matter where on that ladder he finds himself. Honesty, integrity, morality—these are all more important than a man‘s position in life.‖363 (ROWLAND, 2016a, posição Kindle 615-620)

O primeiro exemplo constrói a imagem da família Darcy como separada voluntariamente da nobreza inglesa, valorizando, ao invés de títulos, o trabalho duro em suas terras e a integridade de um homem. No segundo, vemos mais uma vez Darcy se isolando da aristocracia ou ―ton‖ inglesa porque ele enxergava essa elite como frívola, e no último Darcy usa sua amizade com Bingley (cuja fortuna foi herdada de atividades de comércio) para indicar para Mr. Gardiner que ele não tinha problemas em se associar com a burguesia inglesa. Mais do que isso, ―Darcy was not in the habit of surrounding himself with those who believed themselves to be above their company‖364 (Rowland, 2016b, posição Kindle 3322- 3324), o que não poderia ser mais diferente do original, já que o próprio Darcy era um homem que se considerava superior ao resto das pessoas, e só era amigo de Bingley porque este último tinha herdado uma fortuna suficiente para não precisar trabalhar e poder comprar sua propriedade rural e entrar, finalmente, para o grupo da gentry inglesa. Já Mr. Gardiner, tio de Elizabeth ―who lived by trade, and within view of his own warehouses‖365 (O&P, p.158), era visto por Darcy como um obstáculo em sua união com Elizabeth: ―Could you expect me to rejoice in the inferiority of your connections?—to congratulate myself on the hope of

361 ―‗Meu tio é um conde, Bingley‘, disse Darcy, ‗apesar de eu nunca ter aspirado a ganhar tal proeminência social‘. ‗Eu quase penso que você seria bem sucedido caso desejasse‘. Darcy concordou com a cabeça mas não explicou. Houve ocasiões no passado em que outros Darcys tinham recusado títulos. O nome Darcy não era definido por um título, era construído por gerações de trabalho duro, administração correta de sua propriedade, e uma integridade inabalável‖ (tradução minha). 362 ―Darcy não procurava a atenção da elite social de London apesar de ser o seu direito‖ (tradução minha). 363 ―Eu não vou sugerir que eu sou totalmente livre de orgulho, mas eu espero não ser mais afetado por esse defeito do que qualquer outro cavalheiro. O fato é que eu conto entre os meus amigos mais próximos um homem que vem de um passado similar ao seu, Mr. Gardiner. A única diferença entre você e Bingley é que ele está na feliz posição de considerar seriamente a compra de uma propriedade. Todos os homens tentar subir acima de suas origens, Mr. Gardiner, e eu tento não discriminar nenhum homem, não importa o lugar da escada em que ele se encontra. Honestidade, integridade, moralidade – isso é mais importante do que a posição de um homem na vida‖ (tradução minha). 364 ―Darcy não tinha o hábito de cercar-se de pessoas que acreditavam ser superiores às outras‖ (tradução minha). 365 ―Vivia do comércio e morava perto dos seus armazéns‖ (tradução minha).

247 relations, whose condition in life is so decidedly beneath my own?"366 (O&P, p.215). No entanto, como esse tipo de diferenciação social não faz mais sentido hoje, Darcy precisa ser higienizado de suas noções aristocratas, a ponto de surpreender Elizabeth quando ―the great master of the grand estate of Pemberley had asked a groomsman to share his repast, and not just any repast, one with guests‖367 (Mason, 2014, posição Kindle 509-510). Darcy, por extensão, também não pode ser o tìpico ―man of leisure‖ da aristocracia, aquele que não trabalha e apenas vive da renda coletada de suas propriedades. Esse tipo de ócio não é característico de um homem responsável e trabalhador e que sabe que ―lives, property and the land demanded his time and preparation‖368 (Thomas, 2016, posição Kindle 6636-6638): ―So, do you spend much time working? I was always under the assumption that the benefit of being a master was that you could direct others to do your work for you, leaving a gentleman to his leisure‖. ―Many do give over responsibilities to their stewards, it is common enough. But I could not in good conscience abdicate all of my own responsibilities to a man under my employ. (…) I have hundreds of people wholse livelihoods depend upon the dependable management of not just Pemberley, but my other holdings as well. It is my responsibility to ensure that they have a secure future, just as it is my obligation to secure my family‘s.‖ (…) ―I‘ll have you know that I find your commitment to all of your responsibilities admirable. My own father rarely stirs to do anything outside of the necessary. I just assumed that was standard behaviour, but you seem to be involved in the minutiae of anything within your purview. (…) I feel safe and secure here at Pemberley with you in charge. I know that my future is in good hands.‖369 (MCCALL, 2016, posição Kindle 11951- 11980)

No diálogo acima, Darcy demonstra a consciência que tem da responsabilidade para com todos os camponeses que trabalham nas suas propriedades e também para com a sua própria família, e Elizabeth admite o seu papel como seu protetor. Talvez esse ponto não seja tão diferente assim do original, no qual Darcy é elogiado pela sua governanta como ―the best landlord, and the best master that ever lived; not like the wild young men nowadays, who think of nothing but themselves. There is not one of his tenants or servants but will give him a

366 ―Esperava que eu me alegrasse com a inferioridade da sua família? Que eu me felicitasse pela perspectiva de me relacionar com pessoas cuja posição na vida é tão decididamente abaixo da minha?‖ (trad. Alexandre de Souza, p.317). 367 ―o grande senhor da grande propriedade de Pemberley tinha pedido a um empregado que compartilhasse de sua refeição, e não de qualquer refeição, mas de uma com convidados‖ (tradução minha). 368 ―vidas, propriedade e a terra demandavam seu tempo e preparação‖ (tradução minha). 369 ―‗Então, você gasta muito tempo trabalhando? Eu sempre tive a impressão que o benefìcio de ser o senhor era que você poderia delegar a outros para fazer o seu trabalho por você, deixando um cavalheiro para seu lazer‘. ‗Muitos realmente repassam as responsabilidades para os seus administradores, é muito comum. Mas eu não posso de boa consciência abdicar de todas as minhas responsabilidades para um empregado. (...) Eu tenho centenas de pessoas cujas vidas dependem de uma administração segura não só de Pemberley, mas de minhas outras propriedades também. É a minha responsabilidade assegurar que eles tenham um futuro garantido, assim como é a minha obrigação assugurar o futuro da minha famìlia.‘ (...) ‗Eu lhe digo que considero o seu compromisso com todas as suas responsabilidades admirável. Meu próprio pai raramente se mexe para fazer alguma coisa além do necessário. Eu só achava que era um comportamento padrão, mas você parece estar envolvido em todos os detalhes de tudo sob o seu alcance. (...) Eu me sinto segura aqui em Pemberley com você em comando. Eu sei que o meu futuro está em boas mãos‘‖ (tradução minha).

248 good name‖370 (O&P, p.276), mas nas continuações Darcy é transformado de um proprietário responsável para um trabalhador incansável e dedicado. As recompensas pelo seu esforço são sempre um ganho na sua fortuna, a qual não pode ser ―apenas‖ as suas dez mil libras por ano371. Gianna Thomas, por exemplo, coloca Darcy como um grande homem de negócios, com uma renda absolutamente improvável: ―he needed to finalize the purchase of the property bordering Pemberley (…). With an annual income of about £6,100, Hemsley Manor would increase Darcy's income to nearly £35,000 per anum‖372 (Thomas, 2016, posição Kindle 1066-1070). Além de humilde, trabalhador e íntegro, Darcy também aparece como muito bem educado, conhecedor de artes e história, capaz de nutrir sentimentos profundos e detentor de um alto valor moral. Acima de tudo, porém, Darcy é sempre aquele que salva Elizabeth não importa o problema, desde um sequestro até uma destituição financeira, seja no século XIX ou nos dias atuais: ―He does sort of have that hero complex going, doesn‘t he?‖ She smiled. ―He does truly enjoy saving people, you‘re right. His patients, his family, his friends…you. He doesn‘t know how to do anything else.‖ ―Why does he have to be so damn selfless?‖373 (Cruz, 2016, posição Kindle 3241-3243). Se um herói deve ser sempre altruísta, por outro lado ele também deve ser perigoso e temido pelos seus inimigos, disposto a fazer qualquer coisa para proteger aqueles que ama: ―in this as in many other things, Wickham underestimated his former friend, for under the surface of Darcy‘s being lived a cobra that would not hesitate to strike at any man who remained a potential threat to his family‖374 (Covey, 2016a, posição Kindle 2156-2157). Infelizmente a produção desse estereótipo, como na continuação de Covey, cai frequentemente em exageros (alguns muito divertidos, por sinal). Finalmente, é necessário que a masculinidade de Darcy seja reforçada também em termos físicos. Assim como é mostrado na série da BBC de 1995, ele frequentemente pratica

370 ―Ele é o melhor proprietário, e o melhor patrão, disse ela, que já existiu. Não como esses rapazes amalucados de hoje em dia, que só pensam em si mesmos. Nennum arrendatário ou criado daqui diria nada contra seu bom nome‖ (trad. Alexandre de Souza, p.377). 371 Entre todos os heróis de Austen, Darcy é o mais rico. Contudo, ele não é o homem mais rico em seus romances, perdendo a posição para o tolo Mr. Rushworth, de Mansfield Park, cuja renda é de 12 mil libras por ano. 372 ―Ele precisava finalizar a compra de uma propriedade vizinha a Pemberley (...). Com uma renda anual de cerca de £6.100, Hemsley Manor aumentaria a renda de Darcy para aproximadamente £35.000 por ano‖ (tradução minha). 373 ―‗Ele tem mesmo um tipo de complexo de herói, não é?‘ Ela sorriu. ‗Ele realmente gosta de salvar pessoas, você está certa. Os seus pacientes, sua famìlia, seus amigos… você. Ele não sabe fazer diferente‘. ‗Por que ele tem que ser tão infernalmente altruìsta?‘‖ (tradução minha). 374 ―nesse aspecto, assim como em muitos outros,Wickham subestimou seu antigo amigo, pois sob a superfìcie de Darcy vivia uma naja que não hesitaria em atacar qualquer homem que permanecesse como uma ameaça potencial à sua famìlia‖ (tradução minha).

249 atividades físicas com perfeição, especialmente esgrima, algo que pode ser diretamente conectado à adaptação. Jodi Covey se aproveita dessa imagem novamente para indicar a profundidade dos sentimentos do herói: ―After the first bout, he felt excessively exercised and exhilarated; for fencing was the only public activity where Darcy was able to lose himself completely, where he felt free to unleash the beast within, so to speak‖375 (Covey, 2016b, posição Kindle 2572-2574). Um homem que se exercita frequentemente deve ter necessariamente um corpo esbelto e forte, o qual também é importante para a atração física que Elizabeth deve sentir por ele: ―he had removed his coat, and I could not help but notice his excellent form. He was handsome — there was no denying it — and through the long sleeves of his white shirt, I could see the span of his shoulders and the manner in which his strong arms filled out his clothing. I wondered what it would feel like to touch those arms, to experience their strength‖376 (Hahn, 2011, posição Kindle 1072-1074). Até a sua caligrafia deve ser admirada, e quando Elizabeth recebe uma carta de Darcy, ela reflete sobre ―the man who wrote it as she considered his strong, masculine, yet elegant hand that seemed to fit him perfectly‖377 (Mackrory, 2015, posição Kindle 532-533). Karalynne Mackrory provavelmente não ouviu o riso de Austen na cena em que Caroline Bingley tenta fazer exatamente a mesma coisa: The perpetual commendations of the lady, either on his handwriting, or on the evenness of his lines, or on the length of his letter, with the perfect unconcern with which her praises were received, formed a curious dialogue, and was exactly in union with her opinion of each. "How delighted Miss Darcy will be to receive such a letter!" He made no answer. "You write uncommonly fast." "You are mistaken. I write rather slowly." "How many letters you must have occasion to write in the course of a year! Letters of business, too! How odious I should think them!" "It is fortunate, then, that they fall to my lot instead of yours." "Pray tell your sister that I long to see her." "I have already told her so once, by your desire." "I am afraid you do not like your pen. Let me mend it for you. I mend pens remarkably well." "Thank you—but I always mend my own." "How can you contrive to write so even?" He was silent.378 (O&P, 51-52)

375 ―Depois da primeira rodada, ele se sentiu excessivamente exercitado e animado, pois esgrima era a única atividade pública em que Darcy podia se soltar completamente, na qual ele se sentia livre para libertar o monstro dentro de si, por assim dizer‖ (tradução minha). 376 ―Ele tinha removido seu casaco, e eu não podia deixar de notar sua forma excelente. Ele era bonito – não havia como negar – e através das mangas longas de sua camisa branca eu podia ver a extensão de seus ombros e a maneira como seus braços fortes preenchiam sua roupa. Eu fiquei imaginando como seria sentir o toque daqueles braços e experimentar a sua força‖ (tradução minha). 377 ―o homem que a escreveu enquanto considerava sua caligrafia forte, masculina e ainda assim elegante que parecia combina com ele perfeitamente‖ (tradução minha). 378 ―Os insistentes comentários da dama ora à caligrafia, ora sobre a linha que estava torta ou à extensão da carta, e a perfeita indiferença com que eram recebidos formavam um diálogo curioso, e em exato uníssono com as

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Se Darcy é visivelmente forte e masculino, ele deve ter também um traço físico que mostre a sua sensibilidade e as suas emoções. Talvez por conta do ator Colin Firth, uma das características mais comuns nas continuações é que Darcy possui covinhas em seu rosto. Como elas só aparecem quando ele sorri, e ele sorri pouco, apenas Elizabeth é testemunha dessa característica tão cativante. O sisudo Dr. Darcy de First Impressions, de Ruby Cruz, finalmente sorri para a enfermeira Elizabeth quando eles admitem seus sentimentos um pelo outro: ―I have no idea how long we stood in the cool night air, or how long we clung to each other with no regard for propriety, but I do know that when we finally released each other and he smiled at me that rare and gorgeous smile, I noticed the dimple at the corner of his mouth for the first time‖379 (Cruz, 2014, p.240). Em Sense of Worth, o sorriso que faz aparecer as covinhas de Darcy não precisa ser necessariamente de felicidade, mas de sedução; em Rainy Days Elizabeth está atraída pelas pequenas marcas; e em Progression (Vol. 1) ela entende como é especial o momento em que estão visíveis: In response to her gesture, he took her hand but instead of shaking it, as he knew she meant, he turned her hand over, slid her glove down to reveal her wrist, and lightly kissed it. He watched as his action caused a deep blush to rise up from her exposed neck and permeate her entire face. ―I believe in binding my agreements with a kiss,‖ he explained with that delightful smile that caused his dimples to appear.380 (KAUER, Sense of Worth, 2016, posição Kindle 1464-1467)

(…) he stopped, feeling her little finger pressing his cheek. ―What is this?‖ ―I do not know. What does it looks like? Is my face dirty?‖ ―No, it is something very funny indeed. What is it?‖ Clueless, he turned to Elizabeth, asking her opinion, Becky‘s little finger still puncturing his face, but Lizzy was flustered and tried not to look directly at the spot to which the girl pointed. Eventually, she managed to articulate an answer, wondering if she could possibly be more embarrassed. ―It is a dimple,‖ came the answer that took him quite unprepared. Becky was only half content, though, and needed further explanation. ―Dimple is good?‖ ―I do not know,‖ laughed Mr. Darcy again. ―It is not for me to say.‖ She turned naturally to her cousin. ―Lizzy, dimple is good?‖ She closed her eyes, breathing deeply and, trying to avoid his eyes, suddenly she looked straight at Becky with Darcy in the corner of

opiniões dela sobre ambos. ‗A senhorita Darcy vai adorar receber esta carta!‘ Ele nada respondeu. ‗Você escreve com uma velocidade que nunca vi.‘ ‗Você está enganada. Eu escrevo muito devagar.‘ ‗Quantas cartas não deve escrever ao longo de um ano! Cartas comerciais! Como deve ser horrível ter de escrevê-las!‘ ‗Sorte sua, então, caber a mim, e não a você, fazê-lo.‘ ‗Por favor, não esqueça de dizer a sua irmã que eu quero muito encontrá-la.‘ ‗Eu já disse uma vez, como me pediu‘. ‗Acho que você não está gostando da sua pena. Permita-me arrumá-la. Sei preparar penas muito bem.‘ ‗Obrigado – mas sempre preparo as minhas‘. ‗Como consegue escrever tão reto?‘ Ele ficou em silêncio‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.152-153). 379 ―Eu não tenho nem ideia de quanto tempo ficamos parados no ar frio da noite, ou por quanto tempo nós ficamos abraçados sem nenhuma preocupação com as aparências, mas eu sei que quando finalmente nos soltamos e ele sorriu para mim com aquele sorriso lindo e raro, eu perebi uma covinha no canto de sua boca pela primeira vez‖ (tradução minha). 380 ―Em resposta ao gesto dela, ele tomou sua mão mas, ao invés de apertá-la, como ele sabia que ela intencionava, ele a virou, abaixou sua luva para revelar seu pulso, e beijou-o levemente. Ele observou enquanto a sua reação causou um profundo rubor subir do pescoço exposto dela até cobrir toda sua face. ‗Eu acredito em consolidar acordos com um beijo‘, ele explicou com aquele sorriso encantador que fazia suas covinhas aparecerem‖ (tradução minha).

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her eye. ―Yes, Becky, dimple is very good,‖ she responded emphatically, causing Mr. Darcy to redden unexpectedly.381 (LILIAN, Rainy Days, 2009, p.151)

He took long strides on their way to the registry, forcing Elizabeth into a jog to stay by his side, her laughter coercing a smile from him wide enough to reveal the two handsome dimples she first noticed upon visiting Netherfield last year when her sister fell ill. (…) Lizzy now understood that those dimples meant a rare and wonderful moment had occurred. She would enjoy the challenge of making them appear as often as possible.382 (COVEY, Progression Vol. 1, 2016a, posição Kindle 91-95)

Dezenas de outros exemplos dessa pequena característica física de Darcy poderiam ser elencados aqui, mas é importante notar o seu papel dentro de cada continuação (sedução, felicidade, intimidade) e como ela é mais uma instância do cânone construído pelos fãs. Nenhum detalhe é pequeno demais para ser deixado ao acaso pelo fanon, o que indica também o seu controle rígido sobre esse universo. Uma vez devidamente corrigido, melhorado e fisicamente definido, Mr. Darcy está pronto então para assumir o papel principal dentro do universo dos fãs de Orgulho e Preconceito. Trata-se de um processo complexo e de longa duração de transformação de Darcy no centro de O&P o qual pode ter sido iniciado com Hollywood transformando o romance em um filme sobre caçar maridos em 1940, ainda que atualmente o foco esteja muito mais na ―caça‖ do que na ―caçadora‖. De qualquer modo, gostaria de ressaltar o ―pioneirismo‖ da adaptação da BBC de 1995 nessa tendência de se adicionar um ―extra Darcy‖ a O&P, especialmente nas continuações e variações dos fãs, aumentando em muito a obsessão com essa personagem e consolidando a hoje famosa ―Darcymania‖. Essa adaptação ajudou a transformar o romance em uma história sobre os sentimentos de Darcy, sobre sua conquista de Elizabeth e, em última instância, sobre o seu final feliz. O ponto curioso nisso tudo é que, apesar do fato de ele ser mesmo o herói do romance, a história não é sobre ele tanto quanto é sobre Elizabeth, logo nós assistimos a uma grande inversão de importância. No original nós vemos tudo através dos olhos de Elizabeth e acompanhamos a sua transformação

381 ―Ele parou, sentindo seu pequeno dedo apertar sua bocheca. ‗O que é isso?‘ ‗Eu não sei. Como se parece? O meu rosto está sujo?‘ ‗Não, é alguma coisa muito engraçada mesmo. O que é isso?‘ Sem ideia, ele se virou para Elizabeth, perguntando sua opinião, o dedinho de Becky ainda apertando seu rosto, mas Lizzy enrubeceu e tentou não olhar diretamente para o lugar que a menina apontava. Eventualmente, ela conseguiu articular uma resposta, imaginando se ela poderia ficar ainda mais envergonhada. ‗É uma covinha‘, veio a resposta que o pegou totalmente despreparado. Becky estava só parcialmente satisfeita, porém, e precisava de mais explicações. ‗Covinha é bom?‘ ‗Eu não sei‘, riu Mr. Darcy de novo. ‗Não cabe a mim dizer‘. Ela se virou naturalmente para sua prima. ‗Lizzy, covinha é bom?‘ Ela fechou os olhos, respirando profundamente e, tentando evitar os olhos dele, olhou de repente direto para Becky com Darcy no canto dos olhos. ‗Sim, Becky, covinha é muito bom‘, ela respondeu enfaticamente, fazendo com que Mr. Darcy enrubecesse inesperadamente‖ (tradução minha). 382 ―Ele deu largos passos em direção ao cartório, forçando Elizabeth a correr para acompanhá-lo, a risada dela forçando um sorriso nele largo o suficiente para revelar duas belas covinhas que ela tinha notado antes na visita a Netherfield ano passado quando sua irmã tinha ficado doente. (...) Lizzy agora entendia que aquelas covinhas significavam que um momento raro e maravilhoso tinha acontecido. Ela iria gostar do desafio de fazer com que elas aparecessem o mais frequentemente possìvel‖ (tradução minha).

252 e o reconhecimento dos seus erros. Nós vemos as mudanças que se operam nessa heroína mas não as de Darcy porque ele reaparece em Pemberly já transformado. Não sabemos o que aconteceu e como essa mudança se deu, e isso é uma das grandes curiosidades dos leitores que embarcam na ―Darcymania‖. A adaptação de 1995 tenta preencher esses vazios da história original, e as continuações vão explorá-los à exaustão, ao ponto de que não acredito ser mais possível para uma pessoa ler o romance hoje sem ser tocado, ainda que minimamente, por essa noção de que tudo gira em torno de Mr. Darcy, ou pelo rótulo mais genérico de ―Regency chick-lit‖ atribuìdo, talvez de forma irreversìvel, a O&P. Em última instância, como observa Claire Harman, se O&P é regularmente distribuído de graça com jornais e se é eleito como o livro preferido da Grã-Bretanha e um tesouro literário sem o qual não podemos viver, isso se deve em grande parte porque ele é hoje o livro do filme (Harman, 2009, p.208). Essa relação entre obra e adaptação foi chamada por Kathryn Sutherland de ―vampiresca‖ pois, através dela, o filme ao mesmo tempo consome e traz à vida (destrói, habita e reanima) o romance (Sutherland, 2005, p.355). Ainda que seja muito difícil relacionar o surgimento da fanfic de Austen somente às adaptações e ao período da década de 1990, a sua influência é inegável e chega a ser registrada por muitas autoras-fãs. Rebecca Ann Collins já em 1997 explicava a sua obsessão em escrever continuações para O&P por causa da ―BBC‘s magnificent production – which brought Jane Austen brilliant, witty story and characters so dramatically alive in a stunning visual context‖ e indicava para o leitor que, se ele, como ela, ―watched spellbound as millions did as it unfolded on your television screen and, seeing the two couples drive away as the closing credits and that magic music rolled, you wondered where life would have taken them‖383, então o seu livro (The Pemberley Chronicles, 1997) é para ele. Sally O‘Rourke, que escreveu The Man Who Loved Jane Austen, dedica seu livro para ―Jane Austen, Jennifer Ehle e Colin Firth‖ (O‘Rourke, 2006, posição Kindle 14-15), dando a mesma importância para a autora do romance e para os atores da adaptação. Finalmente, Bronwen Chisholm, em Behind the Mask, agradece Jane Austen como a grande ―mestra‖, mas acrescenta ―a warm thank you to my friend, Tomasa, who introduced me to Pride and Prejudice via the 1995 BBC version. Without your high recommendations, I may never have stumbled upon the wonderful world

383 ―produção magnìfica da BBC a qual trouxe a história brilhante e inteligente de Jane Austen e suas personagens de forma tão dramaticamente viva em um contexto visual impressionante‖ / ―assistiu hipnotizado, assim como milhares de outras pessoas, conforme ela se desenrolava na tela da sua televisão e viu os dois casais partirem em suas carruagens nos créditos finais e com aquela música mágica tocando, você imaginou como seria a vida que eles teriam‖ (tradução minha).

253 of JAFF [Jane Austen Fan Fiction]‖384 (Chisholm, 2015, posição Kindle 25-29). Obviamente, portanto, o mundo da fanfic é o principal expoente da Darcymania atual. Dentre as continuações e variações listadas nessa pesquisa, é comum encontrar o seu nome no título ou subtítulo, e pouquíssimas optam por não trazer o seu ponto de vista da história, seja colocando-o como personagem principal, seja dividindo o foco do narrador com Elizabeth. É esse tipo de abordagem que encontramos na trilogia escrita por Pamela Aidan, A novel of Fitzwilliam Darcy, gentleman. Trata-se de uma ―retelling‖ de Orgulho e Preconceito a partir do ponto de vista de Mr. Darcy, porém não em primeira pessoa como já existe em adaptações no formato de diários pessoais. Há uma tentativa de criar um narrador em terceira pessoa como o usado por Jane Austen mas que, ao contrário do original em que conhecemos apenas a visão e os pensamentos de Elizabeth Bennet, Aidan coloca o foco somente em Mr. Darcy e Elizabeth passa para o segundo plano. Como em O&P existem grandes espaços temporais em que as duas personagens principais não se encontram e, portanto, não sabemos por onde anda, o que faz ou o que pensa Mr. Darcy nesses ínterins, há muito material a ser explorado. Os três volumes estão divididos nos seguintes títulos: An Assembly Such As This, que narra a ida de Darcy à Hertfordshire e o seu encontro com Elizabeth até o momento em que ele e seu amigo Bingley deixam o condado em novembro; o segundo volume, Duty and Desire, centrado no espaço de tempo em que Darcy desaparece totalmente do original, e Pamela Aidan decide colocá-lo em uma viagem ao norte da Inglaterra em busca de uma mulher que pudesse fazer com que ele esquecesse Elizabeth; e o terceiro volume, These Three Remain, inicia-se com o reencontro de Darcy e Elizabeth em Kent em abril e termina com o casamento dos dois juntamente com o de Mr. Bingley e Jane Bennet em dezembro. O primeiro ponto que chama a atenção é como Pamela Aidan conseguiu transformar um romance relativamente curto em uma trilogia. Isso foi obtido em maior parte com o segundo livro, uma ―midquel‖, mas também com uma linguagem extremamente prolixa e uma cansativa análise dos pensamentos e dos sentimentos de Darcy em cada situação que beira a autorrepetição. Há também a criação de outras personagens secundárias como Lord Dy Brougham, amigo íntimo de Darcy, o qual acaba se revelando depois um espião da coroa inglesa para investigar a participação de pessoas da alta classe em casos de traição, como o apoio à luta de independência da Irlanda ou o assassinato do primeiro ministro inglês, eventos nos quais Darcy se vê envolvido de maneira tangencial. Nem é preciso dizer que essa trama secundária não poderia ser mais estranha a um romance que tenta

384 ―Um agradecimento caloroso ao meu amigo(a) Tomasa, que me apresentou a Orgulho e Preconceito através da versão da BBC de 1995. Sem as suas altas recomendações, eu talvez nunca teria esbarrado com o maravilho mundo da JAFF‖ (tradução minha).

254 imitar Jane Austen e parece indicar o oposto, que a área de atuação da autora, que ela mesma definiu como ―three or four families in a country village‖385 (Letters, p.287), não é mais suficiente para prender a atenção do leitor, sendo necessário inserir um pouco de James Bond para deixar o resultado mais atraente. A caracterização de Aidan para Mr. Darcy segue a convenção apresentada do herói perfeito: cavalheiro exemplar, corajoso, anda armado para se defender. Ao mesmo tempo é doce com seus animais, em especial com um pequeno filhote de cachorro com o qual adora brincar. Possui um forte senso de honra, do seu dever de chefe de família, é protetor de sua irmã mais nova, é caridoso com os parentes em necessidade financeira. Também possui um lado sentimental, representado por uma lágrima derramada após a primeira briga com Elizabeth. A tudo isso Aidan adiciona uma descrição de um físico atraente, como na cena abaixo em que ele se despe enquanto pensa em Elizabeth: Once back in his chambers, he shrugged off his coat and threw it onto one of his chairs. His waistcoat and neckcloth soon followed, forming a negligent leap. (...) Running a hand distractedly through his hair, he sat down on the bed and set about removing his boots. That finished, he lay back and stretched his frame, working his muscles from the tips of his fingers down to his toes until the tension of the evening faded. He pulled himself up then and strode over to the window, looking out into the night.386 (AIDAN, 2006a, p.106)

É interessante notar como essa cena é muito semelhante à explicação de Janet Todd a respeito do homem sentimental ideal, aquele que tem o ―bom coração‖ mas ainda o controla de certa forma para não demonstrar fraqueza: ―os homens enxugam suas lágrimas e se acalmam caminhando para uma janela ou escondendo o seu estado emocional, seus gestos frequentemente permanecem sem explicações‖ (Todd, 1986, p.78, tradução minha). Posicionar-se perto da janela e esconder suas emoções é a característica mais comum de Darcy, o que só o coloca como um homem sentimental ―em potencial‖ a ser explorado na fanfic. Há também no terceiro volume da trilogia um destaque para a forma como Darcy salva a família de Elizabeth ao arranjar o casamento de sua irmã Lydia com Wickham. Em O&P, esse evento é totalmente escondido dos leitores, revelado somente em alguns pontos pela carta da tia de Elizabeth, Mrs. Gardiner, porém em Aidan essa parte pode ser narrada em detalhes por ser escrita a partir da visão de Mr. Darcy. Essa personagem ganha assim uma construção que o condecora como o corajoso e inteligente herói, que entrou no submundo de

385 ―três ou quatro famìlias em uma vila do campo‖ (tradução minha). 386 Depois de voltar ao seu quarto, ele tirou seu casaco e atirou-o sobre uma das cadeiras. Seu colete e gravata logo seguiram, formando uma pilha negligente (...). Passando as mãos pelos cabelos de forma distraída, ele sentou na cama e começou a remover suas botas. Isso terminado, ele deitou e alongou seu corpo, trabalhando cada músculo da ponta dos dedos até os dedos dos pés até que a tensão da noite diminuísse. Ele se levantou então e caminhou para a janela, olhando para a noite lá fora‖ (tradução minha).

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Londres para salvar a irmã de sua amada de forma totalmente altruísta porque ainda não sabia que Elizabeth já o amava também. Contudo, devemos perguntar: totalmente altruísta? No original, no momento em que Elizabeth tenta agradecê-lo pelo o que fez por sua irmã, Darcy responde: ―If you will thank me,‘ he replied, ‗let it be for yourself alone. That the wish of giving happiness to you might add force to the other inducements which led me on, I shall not attempt to deny. But your family owe me nothing. Much as I respect them, I believe I thought only of you‖387 (O&P, p.406). Darcy, nessa segunda declaração de amor, que não falha em provocar suspiros, parece admitir que, se não estivesse apaixonado por Elizabeth, nada teria feito por Lydia. E por mais que ele estivesse passando por cima de convenções sociais para se casar com Elizabeth, podemos inferir que, se um casamento com uma jovem detentora de conexões familiares tão inferiores era difícil, um casamento com uma jovem cuja irmã tinha fugido com um amante e ainda encontrava-se perdida em Londres era impossível (a própria Elizabeth sabe disso ao lamentar que havia perdido Darcy para sempre). Darcy agiu então para garantir não só a tranquilidade de Elizabeth, mas também a possibilidade de eles ficarem juntos. Afinal, podemos indagar, quantas outras mulheres Wickham seduziu e abandonou antes de Lydia as quais Darcy não se sentiu na obrigação de ajudar? Ele mesmo parece perceber esse problema. De acordo com a carta de Mrs. Gardiner para Elizabeth, somos informados da forma como ele justificou sua interferência em um assunto familiar: The motive professed was his conviction of its being owing to himself that Wickham‘s worthlessness had not been so well known as to make it impossible for any young woman of character to love or confide in him. He generously imputed the whole to his mistaken pride, and confessed that he had before thought it beneath him to lay his private actions open to the world. His character was to speak for itself. He called it, therefore, his duty to step forward, and endeavour to remedy an evil which had been brought on by himself.388 (O&P, p.356)

De um certo modo, então, Darcy parece se lembrar de que ele poderia ter feito algo para impedir as ações de Wickham, e somente Elizabeth o despertou para essa realidade, como ele mesmo admite após o seu segundo pedido de casamento: I have been a selfish being all my life, in practice, though not in principle. As a child I was taught what was right, but I was not taught to correct my temper. I was given good principles, but left to follow them in pride and conceit. Unfortunately an only son (for many years an only child), I was spoilt by my parents, who, though good themselves (my father, particularly, all that was benevolent and amiable), allowed,

387 ―Se você quer me agradecer‘, respondeu ele, ‗que seja apenas por si mesma. Que o desejo de fazê-la feliz pode ter sido um estímulo que me levou a agir, não haverei de negar. Mas a sua família não me deve nada. Por mais que os respeite, creio, pensei apenas em você‖ (trad. Alexandre de Souza, p.506). 388 ―O motivo confessado era sua convicção de se dever a ele o fato de a sordidez de Wickham não haver se tornado pública para que fosse impossível que qualquer moça de caráter o amasse e nele confiasse. Generosamente, atribuiu tudo ao seu orgulho equivocado, e confessou que antes achara indigno de si expor suas ações privadas aos olhos do mundo. Seu caráter devia falar por si. Considerou, portanto, ser seu dever intervir e tentar remediar um mal ocasionado por sua culpa‖ (trad. Alexandre de Souza, p.456 com alterações minhas).

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encouraged, almost taught me to be selfish and overbearing; to care for none beyond my own family circle; to think meanly of all the rest of the world; to wish at least to think meanly of their sense and worth compared with my own. Such I was, from eight to eight and twenty; and such I might still have been but for you, dearest, loveliest Elizabeth!389 (O&P, p.409-410)

Se Darcy tivesse conquistado seus sentimentos em relação à Elizabeth, podemos acreditar que ele continuaria sendo essa pessoa egoísta e orgulhosa, e Lydia estaria perdida para sempre. Como vimos anteriormente, as continuações tendem a suavizar essas falhas que Darcy admite abertamente, tentando justificá-las, por exemplo, como timidez, como parece ser o caso de sua irmã Georgiana390, construindo-o como um homem deslocado ou que não se sente à vontade dentro da alta classe social a que pertencia. Mas colocar Darcy como uma pessoa normal e complexa, que age vez ou outra também de forma egoísta – sem torná-lo necessariamente mau – parece impedir o seu retrato de príncipe encantado, o homem perfeito a ser encontrado por todas as mulheres. E se Darcy conseguiu se tornar a personagem principal de O&P, ele também conseguiu se tornar a figura principal na vida de Jane Austen. Como vimos no capítulo 1, muitos romances biográficos/fictícios procuram narrar uma história de amor perdida no tempo entre Austen e um homem que teria sido a inspiração para o herói. Mas mais surpreendente foi a forma como a história de Darcy se sobrepôs à da própria Jane Austen em The Authoress, de Jane Lark, que conta a história da saída definitiva de Austen e sua família de Bath e uma visita a Stoneleigh Abbey, durante a qual ela consegue terminar de escrever O&P. Aos poucos, a vida de Austen vai sendo deixada de lado conforme a narrativa do livro que ela está escrevendo avança, com destaque especial para o ponto de vista de Darcy. Os últimos capítulos de The Authoress tornam-se, assim, quase uma ―retelling‖ de O&P. Ainda que a premissa seja Jane Austen escrevendo O&P, ao invés de retratar o Darcy da história – complexo, com falhas – esse Darcy também vai ser corrigido, e dessa vez pela sua própria autora. Como não poderia deixar de ser, o baile de Meryton e a interferência no relacionamento de Bingley são abordados aqui. No primeiro caso, conforme ―escutamos‖

389 ―Fui a vida inteira um egoìsta na prática, ainda que não em princípio.Quando criança, ensinaram-me o que era certo, mas não fui ensinado a corrigir meu temperamento. Deram-me bons princípios, mas me deixaram segui- los com orgulho e arrogância. Infelizmente, primogênito (e por muitos anos filho único), fui mimado por meus pais, que embora fossem bons (especialmente meu pai, pura benevolência e afabilidade), permitiram, encorajaram e praticamente me ensinaram a ser egoísta e autoritário, a não me importar com qualquer pessoa fora do meu próprio círculo familiar, a pensar mal de todo o resto do mundo, a desejar pelo menos pensar mal da razão e do valor dos demais se comparados aos meus. Fui assim dos oito aos vinte e oito; e poderia ter continuado a ser assim se não fosse por você, minha querida e adorável Elizabeth!‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.509-510). 390 ―(…) she had heard that Miss Darcy was exceedingly proud; but the observation of a very few minutes convinced her that she was only exceedingly shy‖ (O&P, p.288) / ―Ela tinha escutado Miss Darcy ser chamada de excessivamente orgulhosa, mas a observação de alguns minutos a convenceu de que ela era apenas excessivamente tìmida‖ (tradução minha).

257 os pensamentos de Darcy, ficamos sabendo que ―he was not in good spirits, he did not feel comfortable, and he was in no mood to spend time with a woman whom other men must judge too difficult to partner. Certainly she was pretty enough. But no woman here would tempt him to dance‖391 (Lark, 2016, posição Kindle 1930-1935). Mais uma vez, Darcy estava de mau-humor e desconfortável no baile. Seu comentário sobre Elizabeth ser apenas tolerável, ―it was not a particular insult‖392 (Lark, 2016, posição Kindle 1918-1921), era apenas uma forma de afastar seu amigo, já que na verdade ele não queria dançar com nenhuma mulher ali, apesar de Elizabeth ser ―pretty enough‖. Já sobre Bingley e Jane Bennet, Darcy reforça seu ponto de vista de que os interesses financeiros envolvidos nessa união eram a principal motivação ali, senão da jovem, com certeza de sua mãe: ―Bingley was being lured into a snare and neither of them would allow it to happen to a man of such a happy nature. Bingley would never endure a marriage which turned out to be false‖393 (idem, posição Kindle 2311-2315). Novamente Darcy tem a sua manipulação justificada como uma tentativa de fazer o melhor para ajudar seu amigo, ainda que partindo de uma percepção errada sobre Jane Bennet. De uma forma geral, esse Darcy é descrito por Austen como usando uma máscara em público, que escondia a sua real personalidade até mesmo de Elizabeth. O encontro dos dois em Pemberley é importante porque, ―in taking the reader to his home, she was able to let the reader glimpse the man behind the façade he had used as his shield in public, and until then, her readers had only seen his façade—just as Lizzy had‖394 (Lark, 2016, posição Kindle 1643-1645). Essa máscara da arrogância e da superioridade escondia, portanto, a natureza de Darcy, a qual Elizabeth descobre finalmente como ―a man who might be trusted. A man known for his honour, integrity and upstanding nature. She also knew (…) that what many called proud was instead intense shyness, both in the sister and the brother, though it was expressed in a different manner by each‖395 (Lark, 2016, posição Kindle 3335-3338). Do lado de Darcy, quando vê Elizabeth em Pemberley, ele é tomado pela esperança de poder mostrar para ela as suas verdadeiras características e tentar, assim, mudar a imagem negativa que ela havia construído dele:

391 ―Ele não estava de bom humor, ele não se sentia confortável, e não estava no espìrito de passar tempo com uma mulher que outros homens deveriam ter considerado como uma perceira muito difìcil‖ (tradução minha). 392 ―não era um insulto pessoal‖ (tradução minha). 393 ―Bingley foi atraìdo para uma armadilha e nenhum dos dois iria permitir que isso acontecesse com um homem de natureza tão feliz. Bingley nunca suportaria um casamento que se provasse depois falso‖ (tradução minha). 394 ―ao levar o leitor para a sua casa, ela tinha permitido a ele ver o homem por trás da máscara que ele usava para um escudo em público e, até então, seus leitores tinham visto somente essa fachada, assim como Lizzy‖ (tradução minha). 395 ―um homem confiável. Um homem conhecido pela sua honra, integridade e natureza superior. Ela também sabia que o que muitos chamavam de orgulho era na verdade timidez intensa, tanto na irmã quanto no irmão, mas eles a expressavam de formas diferentes‖ (tradução minha).

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Darcy had retreated to his rooms, shock besieging him in waves like a repeated cavalry charge. There was a second chance. A moment to redeem himself. He did not hold her outburst following his ill-judged proposal, against her. Everything she had said about him was true. He did not have an easy manner. He was not open to general conversation, and yet that was only his way. He had never intended to appear rude, or arrogant, as she had accused. He may have gone astray, since his father‘s death—lost himself amongst the responsibilities of his formal role, and yet at heart he was the same man. He was not the monster she had painted. He wished for her to see that, at least.396 (LARK, 2016, posição Kindle 1593-1599)

Esse Darcy justifica seu temperamento difícil como sendo apenas o seu jeito de ser, sem nunca ter tido a intenção de ofender ninguém. Além disso, ele ainda estava afetado pela morte de seu pai e por todas as responsabilidades que fora obrigado a assumir depois disso e que fizeram com que ele ―se perdesse‖, mas, no fundo, ainda era um homem bom. Ele não era o ―monstro‖ que Elizabeth descrevera. Quando ela o rejeita pela primeira vez, Darcy novamente se justifica pensando que o problema é que ―he was not a vibrant man. He did not have the skills to charm women, not as Wickham did. His nature was awkward in comparison; reticent and reserved. Those emotions held him back. Damn‖397 (Lark, 2016, posição Kindle 3211-3223). O problema então era Elizabeth, que fora enganada pelo charme de Mr. Wickham e, por isso, era incapaz de enxergar para além da máscara que Darcy usava. É interessante observar ainda a forma como essa Jane Austen de The Authoress, apesar de estar escrevendo O&P, passa muito tempo imaginando os pensamentos de Darcy, a ponto de recriar até mesmo a linguagem que ele usaria em determinadas situações que nunca foi registrada no romance. Por exemplo, quando Elizabeth se recusa a dançar na casa de Sir Lucas, nós escutamos o choque de Darcy: ―Good Lord the woman had cut him‖398 (Lark, 2016, posição Kindle 1961-1968). Ou quando ele reencontra Mr. Wickham pela primeira vez, escutamos a sua surpresa e raiva, que ecoa na cabeça da própria Austen: ―Oh my good Lord. Bloody Hell. The Devil. The devil it was… The words flowed through Jane‘s head, in Darcy‘s deep tone. Heat invaded Darcy‘s skin‖399 (idem, posição Kindle 2883-2886). Finalmente, essa Austen também imagina a conversa em que Lady Catherine de Bourgh tenta convencer Darcy a não se casar com Elizabeth, depois de uma tentativa frustrada de persuadir

396 ―Darcy recuou para seu quarto, o choque tomando-o em ondas como um ataque contínuo de uma cavalaria. Havia uma segunda chance. Um momento de se redimir. Ele não estava ressentido com a explosão dela depois da sua proposta ruim. Tudo o que ela tinha dito a seu respeito era verdade. Ele não tinha um temperamento fácil. Ele não era aberto para a conversa em geral, e ainda assim esse era o seu jeito. Ele nunca tinha tido a intenção de parecer rude ou arrogamente como ela acusara. Ele pode ter se perdido desde a morte de seu pai – se perdido entre as responsabilidades do seu papel formal, mas no coração ele era ainda o mesmo homem. Ele não era o monstro que ela tinha pintado. Ele desejava que ela visse isso, pelo menos‖ (tradução minha). 397 ―ele não era um homem vibrante. Ele não tinha as habilidades de encantar as mulheres, não como Wickham. A sua natureza era estranha em comparação, reticente e reservada. Essas emoções o seguravam. Droga‖ (tradução minha). 398 ―Senhor amado, a mulher o tinha ignorado‖ (tradução minha). 399 ―Oh meu Deus. Merda. Que diabos. Que diabos ele estava... as palavras fluìam através da cabeça de Jane, no tom profundo de Darcy. Calor invadia a pele de Darcy‖ (tradução minha).

259 a própria Elizabeth a nunca aceitar Darcy. A conversa de Lady Catherine e Elizabeth está no original e, na minha opinião, é o segundo melhor diálogo do romance. Contudo, a conversa com Darcy não aparece, sendo apenas relatada da seguinte forma: She [Elizabeth] soon learnt that they were indebted for their present good understanding to the efforts of his aunt, who did call on him in her return through London, and there relate her journey to Longbourn, its motive, and the substance of her conversation with Elizabeth; dwelling emphatically on every expression of the latter which, in her ladyship's apprehension, peculiarly denoted her perverseness and assurance; in the belief that such a relation must assist her endeavours to obtain that promise from her nephew which she had refused to give. But, unluckily for her ladyship, its effect had been exactly contrariwise. "It taught me to hope," said he, "as I had scarcely ever allowed myself to hope before. I knew enough of your disposition to be certain that, had you been absolutely, irrevocably decided against me, you would have acknowledged it to Lady Catherine, frankly and openly."400 (O&P, p.407)

Mas, em The Authoress, nós temos uma reconstituição detalhada desse encontro, apesar de fato de que ―the following scene—Darcy‘s conversation with his aunt—remained only in Jane‘s mind‖401 (Lark, posição Kindle 3560-3560). Se a cena não pertence ao romance, por que então narrar essa conversa, senão para saciar a curiosidade dos fãs sobre o que teria dito Lady Catherine, o que teria respondido Darcy, quais teriam sido seus sentimentos? Lord. His heart had stopped beating. He was too stunned to respond, and the emotion inside him rose too high, silencing him for a moment. He finally answered. ―Miss Elizabeth Bennet…‖ His pitch might have been perceived as carrying incredulity. That was not true. His words carried on a wave of shock and surprise only because within him what he had given up as impossible roared into opportunity. ―Of course Miss Elizabeth Bennet. Please tell me this infernal rumour is not true? You would not reject my daughter for such a woman?‖ Elizabeth Bennet had not denied it. He wished to shout with rapture. How quickly might he reach Longbourn? ―Will you not deny it, Nephew.‖ He swallowed. No. He did not wish to. He had no desire to deny Elizabeth. He had longed for Elizabeth for far too long. ―I am sorry, I cannot.‖ He spoke the truth—as he hoped Elizabeth had. Lord. Damn. He hoped. The sensation roared inside him; a lion with its jaw wide. He hoped with every particle of his being.402 (LARK, 2016, posição Kindle 3630-3640)

400 ―Ela logo ficou sabendo que deviam aquele bom entendimento aos esforços da tia dele, que o visitara de fato ao passar por Londres, e lá lhe contara da viagem feita a Longbourn, do propósito e do conteúdo da conversa com Elizabeth; detendo-se enfaticamente nas expressões desta última, que, segundo apurou a senhora, denotavam peculiar perversidade e segurança, acreditando que isso a ajudaria em sua tentativa de obter do sobrinho uma promessa que ela se recusara a fazer. Mas, para a infelicidade daquela senhora, o efeito disso fora exatamente o contrário. ‗Isso me fez sentir esperança‘, disse ele, ‗como eu nunca me permitira sentir antes. Conhecia o seu temperamento bem o bastante para ter certeza de que, se estivesse absoluta e irrevogavelmente decidida contra mim, você o teria admitido a Lady Catherine, franca e abertamente‘‖ (trad. Alexandre de Souza, p.507). 401 ―A cena seguinte – a conversa de Darcy com sua tia – permaneceu apenas na mente de Jane‖ (tradução minha). 402 ―Deus. Seu coração tinha parado de bater. Ele estava chocado demais para responder, e emoções subiam dentro dele muito alto, silenciando-o por um momento. Ele finalmente respondeu. ‗Miss Elizabeth Bennet...‘ Seu tom poderia ter sido percebido como carregando incredulidade. Isso não era verdade. Suas palavras carregavam uma onda de choque e surpresa e somente porque dentro dele aquilo de que ele tinha aberto mão como impossìvel ressoava como oportunidade. ‗Claro que é Miss Elizabeth Bennet. Por favor me diga que esse rumor infernal não é verdade? Você não iria rejeitar minha filha por uma tal mulher?‘ Elizabeth Bennet não tinha

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Como afirmei anteriormente, no O&P original há muita coisa não explorada em relação a Darcy, e cada um desses ―buracos‖ são histórias em potencial para os fãs desenvolverem. No caso dessa cena, Jane Lark dedica um capítulo inteiro para mostrar a conversa entre Darcy e Lady Catherine, uma conversa que a sua Jane Austen não iria escrever no livro mas que é uma oportunidade muito boa para detalhar os sentimentos de Darcy: ―Darcy…‖ She looked up at him from under the brim of her bonnet. The pupils at the centre of her eyes were wide in the shadow of the fabric, making her eyes darker and more challenging. ―If you dare to marry that girl, you shall not be welcome at Rosings ever again.‖ The threat was supposed to send fear running through him. (…) He bowed his head, and merely said, ―Aunt.‖ She huffed at him, expressing her disgust in sound as well as the look contorting her face. Then she turned with her particular style of cut, and strode out, the rustle of the crepe fabric of her dress announcing the haste of her departure. Darcy sucked in a liberating breath that swelled his chest. It felt as though he was rising from under the water of the still, glass-like lake before Pemberley, sending ripples out across it as all the glory of his home and the happiness he knew to be within it stood before him; when he climbed out onto the bank, the water dripped free from his body. When the sound of the front door closing echoed into the drawing room, Darcy laughed. Actually, bloody, laughed. The deep sound resonated about the room. It came from low in his stomach. A gut emotion. He had never had so much to thank Lady Catherine for, and he had not shown his gratitude accordingly. He would.403 (LARK, 2016, posição Kindle 3641-3659)

E, nada surpreendente, aparece aqui também uma referência à cena do lago da adaptação de BBC de 1995, agora como uma prática comum de Darcy de nadar ali, para explicar ainda mais as emoções que esse herói sente. Uma cena escrita por um roteirista com o objetivo de deixar a personagem mais exposta ao escrutínio do espectador acaba se tornando uma ideia da própria autora, por que não? The Authoress, portanto, começa como uma biografia de Austen, sobre como ela teria se ―curado‖ de seu bloqueio de escritora depois da mudança definitiva de Bath e a visita a Stoneleigh Abbey, para depois ser combinada com as alterações que Austen faz no manuscrito original de ―First Impressions‖ para transformá-lo

negado. Ele queria gritar com euforia. Quão rápido ele conseguiria chegar em Longbourn? ‗Você não vai negar, sobrinho?‘ Ele engoliu. Não. Ele não tinha nenhum desejo de negar. Ele não tinha nenhum desejo de negar Elizabeth. Ele tinha ansiado por Elizabeth por muito tempo. ‗Eu sinto muito, mas não posso‘. Ele falou a verdade – como esperava que Elizabeth também tinha feito. Deus. Merda. Ele tinha esperanças. A sensação rugia dentro dele, um leão com a sua boca aberta. Ele tinha esperanças com todas as forças de seu ser‖ (tradução minha). 403 ―‗Darcy…‘ Ela olhou para ele por sobre a aba de seu chapéu. As pupilas no centro de seus olhos estavam grandes sob a sombra do tecido, tornando seus olhos ainda mais escuros e desafiadores. ‗Se você ousar casar com aquela menina, você nunca mais será bem-vindo a Rosings‘. A ameaça era feita para assustá-lo. Ele acenou com a cabeça e disse simplesmente, ‗Tia‘. Ela insultou-o, expressando seu desgosto na voz assim como na aparência de seu rosto. Então se virou com o seu estilo particular e foi embora, o barulho do tecido de crepe do seu vestido anunciando uma partida apressada. Darcy segurou um suspiro aliviado que enchia seu peito. Ele sentia como se estivesse subindo para a superfície da água do lago tranquilo e espelhado perto de Pemberley, formando ondas ao longo dele conforme toda a glória de sua casa e da felicidade que ele sabia estar lá dentro estava a sua frente, quando ele saía para a margem, a água escorrendo livremente sobre seu corpo. Quando o som da porta de frente se fechando ressoou em sua sala, Darcy deu risada. Deu muita risada. O soom profundo ressoava sobre o cômodo. Vinha de dentro de seu estômago. Uma emoção gutural. Ele nunca tinha tido tanto para agradecer a Lady Catherine, e ele não tinha demonstrado sua gratidão de maneira adequada. Ele iria fazê- lo‖ (tradução minha).

261 em O&P, o qual, por fim, acaba afunilado em seu foco e narrado pela própria autora- personagem como mais uma história sobre Mr. Darcy. Não parece um exagero, portanto, concluir que de fato tudo gira em torno desse herói, os fãs, as continuações, as adaptações, a vida da autora. Como consequência disso, precisamos refletir também sobre o que acontece então com Elizabeth Bennet, a personagem principal de O&P original, nas continuações e variações produzidas pelos fãs. Se Darcy conquistou todos os holofotes, qual papel foi relegado a Elizabeth? Esse é o tema da próxima parte.

1.2 – Elizabeth, feminismo e o final feliz

Quando direcionamos a nossa atenção para a heroína mais impertinente de Jane Austen, inevitavelmente somos levados a adentrar também a discussão sobre o lugar da mulher na sua obra e outras questões de gênero levantadas principalmente a partir do fim da década de 1970 pela crítica literária feminista. Até agora, argumentei que as muitas continuações ou apropriações de O&P centram-se na exploração até os últimos detalhes da história de amor entre Darcy e Elizabeth, a partir especialmente dos sentimentos do herói, e essa exploração acaba por gerar pelo menos dois efeitos muito prejudiciais sobre a obra de Austen de uma forma geral: o primeiro, a classificação de seus romances como livros românticos ingênuos apreciados somente por mulheres, ou o famoso ―chick lit‖; e o segundo, quase como consequência do primeiro, de colocar no esquecimento um conteúdo político e de crítica social, especialmente em relação ao papel da mulher em sua sociedade, que Austen soube incluir – e disfarçar – de maneira incrivelmente hábil em suas histórias. Como afirmei no capítulo 1, a crítica literária voltada para os estudos feministas foi a primeira a propor interpretações das obras de Austen que contrariavam uma imagem muito aceita até então de que seus romances reforçavam a moral conservadora de sua época e podiam ser lidos como ―conduct books‖ na ficção. Já em 1979 Sandra Gilbert e Susan Gubar publicaram a grande obra de referência The Madwoman in the Attic, na qual argumentavam que aqueles que condenam Austen pela sua aceitação aparente dos limites impostos pela sua sociedade não estão conseguindo enxergar um traço subversivo constante em suas histórias pois, apesar de ela ter se tornado um símbolo de uma cultura, é surpreendente a frequência com que Austen demonstra o seu desconforto com a sua própria herança cultural, especificamente a sua insatisfação com o pequeno e limitado lugar atribuído às mulheres no patriarcado (Gilbert e Gubar, 2000, p.112). Para essas autoras, a preocupação central de

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Austen se localiza com a impossibilidade de as mulheres escaparem das convenções e categorias que as diminuíam em todos os sentidos (idem), e não, como a tradição havia afirmado até então, mostrando exemplos de comportamento adequado para elas. Ainda que essa interpretação tenha sido criticada posteriormente, inclusive por estudiosas feministas que enxergavam o final feliz de Austen via casamento heterossexual tradicional como indício de um posicionamento conservador da autora, a sua associação com um questionamento dos papéis de gênero da época (que ganha, vez ou outra, até a alcunha de ―proto-feminista‖) foi muito mais forte. Dada a característica principal de sua escrita – a ironia – parece-me impossível aceitar qualquer aspecto de suas histórias sem questioná-lo, nem mesmo o polêmico final feliz, e é por isso que sigo aqui uma leitura de Austen não como uma ―feminista avant garde‖, mas como uma escritora que retratou de forma simples e direta a condição da mulher (mesmo que de uma classe social específica) em sua sociedade em todas as suas limitações, deixando para trás a glamurizaçao da donzela do romance sentimental. Essa visão possibilita que nós analisemos sua obra em busca desses retratos de gênero do período e que a utilizemos também para problematizar os nossos papéis de gênero atuais, ainda mais quando os romances de Austen continuam sendo utilizados com muita força na reprodução da fantasia da felicidade eterna via casamento heterossexual para as mulheres contemporâneas. Para entendermos, então, a forma como Austen se posiciona em relação ao lugar da mulher em sua sociedade, é necessário voltar ao surgimento do romance inglês e, mais especificamente, a um outro subgênero que, assim como o romance sentimental, também foi originado com Pamela e que fez muito sucesso naquele momento: o ―domestic fiction‖. Tratava-se de obras didáticas voltadas para a instrução das mulheres, sempre centradas em personagens femininas de valor moral impecável, protetoras da família e dos bons costumes, que resistiam às mais variadas situações – abusos, tentações não só de natureza sexual, pobreza, tragédias – para saírem vitoriosas no final com um casamento que unia amor e dinheiro. Possuíam um público-alvo bem específico, mulheres de determinado status social, de classe média e alta, e apresentavam uma mensagem didática clara sobre o que era esperado e o que era proibido ao chamado sexo frágil. É interessante notar também o grande número de mulheres escrevendo esse tipo de ficção, pois, como coloca Janet Todd, no século XVIII as mulheres entraram no mercado de livros tanto como consumidoras – somente mulheres de classes muito baixas não liam livros – quanto como produtoras. Ao apresentarem-se como tais, as escritoras eram então influenciadas pelas imagens correntes da virtude passiva e aprenderam a retratar a si próprias como damas impotentes, vigilantes da moral e

263 fornecedoras de um divertimento inocente e casto (Todd, 1986, p.21). As mulheres pareceram se especializar, portanto, na produção de obras deliberadamente didáticas, como afirma Rachel Brownstein, que indicavam de forma clara quais eram os valores morais e de bom comportamento esperados das jovens: a crítica aos interesses materiais, a valorização das maneiras polidas e educadas, o casamento com afeto e, acima de tudo, uma superioridade íntegra de seu ser (Brownstein, 2008, p.35). Segundo Claudia Johnson, esse tipo de história tornou-se popular em um momento de grandes questionamentos sociais encorajados, em especial, pela Revolução Francesa. Ao lembrarmos que Austen nasceu em 1775 e faleceu em 1817, podemos perceber que toda a sua vida, em especial seus anos como escritora, ocorreu em paralelo a esses acontecimentos políticos, e não há motivos para acreditar que seus efeitos não a alcançaram, mesmo em uma pequena paróquia no interior da Inglaterra404. Os relatos de Edmund Burke (Reflections on the Revolution in France, de 1790, e Letter to a member of the National Assembly de 1791) a respeito dos acontecimentos na França, por exemplo, mostram as reações conservadoras que foram sentidas do outro lado do canal, e os romances didáticos para as mulheres foram produzidos em um momento em que, segundo Johnson, a modéstia feminina se torna um assunto de segurança nacional (Johnson, 1990, p.14). Segundo essa autora, surge nesse período uma ideia de que a estabilidade do reino dependia do comportamento adequado das mulheres, em especial das jovens em época de se casar, e a sua conduta poderia definir tanto o sucesso quanto a destruição da ordem política, já que a família é a base do Estado e da nação (Johnson, 1990, pp.3-4). As mulheres deveriam, então, ser obedientes aos seus pais, irmãos, maridos e/ou tutores, e deveriam aceitar a guarda destes enquanto ficam em casa, protegidas e ao mesmo tempo distanciadas dos acontecimentos externos. Na pequena história Catharine, or The Bower, escrita em 1792 mas alterada posteriormente, Austen indicou o que pensava dessa ideia ao colocá-la na boca da personagem de Mrs. Percival, uma mulher absolutamente rígida em sua moralidade e opressora de sua sobrinha, Catharine. Quando Mrs. Percival a surpreende conversando com um jovem, a sua censura parece ter saído diretamente

404 Claudia Johnson defende que Jane Austen teve contato com materiais considerados ―revolucionários‖, em especial sobre a igualdade das mulheres como a obra de Mary Wollstonecraft, e que leu muitos dos romances didáticos escritos em resposta a essas ideias. Peter Knox-Shaw vai ainda mais longe ao associar Austen ao Iluminismo Anglo-Escocês a partir do estudo da bilioteca de seu pai, o reverendo George Austen, o qual, ao contrário do que muitos pensam por conta de sua profissão, era ―a true son of the Enlightenment‖ (Knox-Shaw, 2004, p.8) e incentivava muito a jovem Jane a escrever. Sobre Wollstonecraft, Knox-Shaw afirma que há registros de que Jane Austen possuía um exemplar do romance Hermsprong, de Robert Bage, o qual cita frequentemente o Vindication ao longo de debates sobre educação igualitária entre os gêneros e resume seus argumentos, o que o leva a concluir que só por esse romance era possível então que Austen tivesse uma ideia muito clara daquilo que Wollstonecraft defendia, mas para ele há poucas dúvidas de que ela também tinha lido o seu livro (Knox-Shaw, 2004, p.102).

264 da obra da moralista Hannah More, autora do romance Coelebs in Search of a Wife mencionado na passagem abaixo: "Such Impudence, I never witnessed before in such a Girl! And this is the reward for all the cares I have taken in your Education (…). I bought you Blair's Sermons, and ‗Coelebs in Search of a Wife‘, I gave you the key to my own Library, and borrowed a great many good books of my Neighbours for you, all to this purpose. But I might have spared myself the trouble (…) I am glad however (…) to see that you have some shame for what you have done, and if you are really sorry for it, and your future life is a life of penitence and reformation perhaps you may be forgiven. But I plainly see that every thing is going to sixes and sevens and all order will soon be at an end throughout the Kingdom." "Not however Ma'am the sooner, I hope, from any conduct of mine, said Catherine in a tone of great humility, for upon my honour I have done nothing this evening that can contribute to overthrow the establishment of the kingdom." "You are mistaken Child, replied she; the welfare of every Nation depends upon the virtue of it's individuals, and any one who offends in so gross a manner against decorum and propriety, is certainly hastening it's ruin.‖405 (J, p.287)

Como observa Katie Halsey, o tom de ―great humility‖ de Catharine pode ser lido também como ensaiado e, portanto, jocoso, e ela recusa a lógica de sua tia – e, consequemente, dessa associação entre virtude feminina e sobrevivência da nação – ao não enxergar nada em sua conduta que poderia colocar o reino em perigo (Halsey, 2013, p.46). Essa diversão de Austen com personagens moralistas ridículas iria continuar em seus romances posteriores, indicando no mínimo um posicionamento questionador da autora sobre esse discurso da época. De certa forma, porém, a obra de Austen parecia se encaixar dentro da fórmula da ―domestic fiction‖, o que garantiu pelo menos uma boa aceitação pelo público leitor do inìcio do século XIX. É somente com o Madwoman de Gilbert e Gubar, quase cento e cinquenta anos depois, que temos uma interpretação crítica dessa fórmula aplicada a Austen, e as autoras sugerem que havia questões muito mais complexas em seu texto disfarçadas sob aquele manto da moralidade correta. Elas lembraram, por exemplo, a forma como, no Memoir, James Edward Austen-Leigh afirmou que Jane Austen usava um tipo de papel mata- borrão para cobrir seus textos enquanto escrevia na sala de estar de sua casa, para o caso de alguém entrar de repente e surpreendê-la nessa atividade que, ainda que relativamente comum, continuava criticada para as mulheres. Para Gilbert e Gubar, a história de amor

405 ―‗Tanta impudência eu nunca vi antes em uma moça! E essa é a recompensa por todos os cuidados que eu tomei com a sua educação. Eu comprei para você os Sermões de Blair, e Coelebs in Search of a Wife, eu te dei a chave da minha própria biblioteca e te emprestei muitos livros dos meus vizinhos, tudo para esse objetivo. Mas eu poderia ter me poupado desse trabalho. Eu estou feliz, contudo, de ver que você tem alguma vergonha do que fez, e que você está realmente arrependida, e se sua vida futura for uma vida de penitência e reforma talvez você seja perdoada. Mas eu vejo claramente que todas as coisas estão ficando loucas e toda a ordem logo vai acabar em todo o reino‘. ‗Não muito mais cedo, madame, eu espero, por nenhuma conduta minha‘, disse Catherine em um tom de grande humildade, ‗pois eu juro que não fiz nada essa noite que possa contribuir para a queda da estrutura do reino.‘ ‗Você está errada, criança‘, respondeu ela, ‗o bem-estar de cada nação depende da virtude de seus indivíduos, e qualquer um que ofenda de maneira tão grosseira contra o decoro e o correto está certamente apressando a sua ruìna‘‖ (tradução minha).

265 tradicional dos romances de Austen seria o mata-borrão superficial, a estratégia paródica que disfarçava outras camadas de significado em seus textos mais críticas à sua sociedade. Assim, em uma primeira leitura, seus romances reforçariam valores conservadores ao narrar histórias em que as mulheres pareciam se adequar para garantir o casamento almejado, como, por exemplo, podemos ver em sua reflexão sobre o romance Northanger Abbey: Ao dramatizar a necessidade da submissão feminina para a sobrevivência feminina, a história de Austen é especialmente bajuladora aos leitores homens porque descreve a domesticação não de qualquer mulher mas especificamente de uma jovem rebelde e imaginativa que é amorosamente dominada por um homem sensível. Nada mais do que o mata-borrão literalmente colocado sobre o manuscrito de sua mesa de escrever, a ―história-disfarce‖ de Austen da necessidade de silêncio e submissão reforça a posição subordinada da mulher na cultura patriarcal (GILBERT e GUBAR, 2000, p.154)

Não há como negar que essa ―cover story‖ foi um bom disfarce para Austen em sua época, pois, ainda que não tenha imediatamente conquistado o destaque que possui hoje, também nunca chegou a ser considerada inapropriada. Park Honan lembra que O&P, por alguns meses, foi muito discutido e lido avidamente por romancistas e por suas famílias (Honan, 1987, p.320), o que garantiu uma segunda edição ainda em 1813 e uma terceira em 1817. Isso não significa, no entanto, que alguns críticos não ficaram desconfiados a respeito daquela história que mostrava uma jovem inteligente e independente que ria – e faz o leitor rir junto – das pessoas ―superiores‖ a ela, como Lady Catherine de Bourgh (Honan, 1987, p.320). No entanto, de uma forma geral, O&P foi entendido como bem tradicional, como indica o texto abaixo do Critical Review citado por Honan: The theme of the reviewer is that the author, while writing a lucid, agreeable tale and dotting her i‘s and crossing her t‘s, has offered only very suitable moral instructions: ‗An excellent lesson may be learned from the elopement of Lydia: - the work also shows the folly of letting young girls have their own way, and the danger which they incur in associating with the officers, who may be quartered in or near their residence.‘ Indeed ‗the sentiments, which are dispersed over the work, do great credit to the sense and sensibility of the authoress. The line she draws between the prudent and the mercenary in matrimonial concerns, may be useful to our fair readers,‘ concludes the critic. ‗Nor is there one character which appears flat, or obtrudes itself upon the notice of the reader with troublesome impertinence.‘406 (HONAN, 1987, 317)

Como afirma Michael Kramp, diversos críticos, desde F. R. Leavis até a década de 1980, continuaram enxergando na obra de Austen a mensagem da necessidade da

406 ―O tema da crìtica é que a autora, enquanto escreve uma história lúcida e agradável e cuida de todos os detalhes, também oferece muitas instruções morais adequadas: ‗Uma lição excelente pode ser aprendida com a fuga de Lydia – a obra também mostra a loucura de se deixar que jovens moças tenham tudo o que quiserem, e o perigo que incorre ao se associar com soldados, que podem estar acampados perto de suas residências. De fato, ‗os sentimentos, que são espalhados ao longo da obra, fazem jus à razão e sensibilidade da autora. As linhas que ela traça entre prudência e interesses mercenários no casamento podem ser úteis às nossas leitoras‘, conclui o crìtico. ‗Também não há nenhuma personagem que pareça superficial, ou que se force à atenção do leitor com uma impertinência perturbadora‘‖ (tradução minha).

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―regulação‖ da mulher como um componente vital tanto para o desenvolvimento de seu caráter como preparação para o casamento (Kramp, 2007, p.153), uma forma de entender a trama do casamento como o objetivo final em cuja direção a narrativa se move desde a primeira página (Johnson, 1997, p.211), ou, como aponta Eve Kosofsky Sedgwick, uma forma de resumir as heroìnas de Austen com a frase ―a Girl Being Taught a Lesson‖407 (1991, p.833). No entanto, após os questionamentos de Kramp, Johnson e Sedgwick, entre muitos outros, seria ingênuo de nossa parte continuar a ler os romances de Austen a partir dessa perspectiva, pois o que separa o seu trabalho dos romances em voga daquele período é a sua consciência dos limites desse gênero que ela teve que incorporar e o seu consequente trabalho para escapar deles. A produção de Austen é muito mais do que histórias sobre mulheres à procura de maridos, é um retrato rico e irônico de sua sociedade e do que era esperado de cada gênero sexual, que escancara mais as falhas dos homens em seus papéis de heróis protetores do que ensina as mulheres sobre como se portarem. A esse respeito, Brownstein afirma que todos os romances de Austen possuem uma percepção brilhante a respeito de serem elas mesmas ―domestic fictions‖, porém são histórias que satirizam esse subgênero ao parodiar suas premissas como metáforas para as convenções e valores daquela cultura (Brownstein, 2008, p.35). Segundo Gilbert e Gubar, as heroínas de Austen poderiam parecer, à primeira vista, muito semelhantes às personagens desses livros didáticos, mas uma análise mais profunda pode revelar os incômodos que a autora deixou registrado ali. Por exemplo, a personagem Mary Bennet em O&P, que dá voz ao moralismo da época especialmente em relação ao comportamento das mulheres, ao invés de ser respeitada pela sua conduta, é constantemente criticada ou ignorada por sua família por ser, em última instância, tola. Mr. Bennet, por exemplo, observa ironicamente que Mary é ―a young lady of deep reflection I know, and read great books, and make extracts‖, mas o narrador complementa ―Mary wished to say something very sensible, but knew not how‖408 (O&P, p.7). Mesmo com toda a sua dedicação aos estudos dos pensadores mais adequados às mulheres, Mary é incapaz de pronunciar sequer uma frase de bom senso. Se tomarmos as suas poucas falas e a forma como ela é ridicularizada, podemos perceber que Austen era extremamente crítica a esse tipo de didatismo fervoroso distanciado da realidade. A cena mais ilustrativa dessa questão é o reencontro das irmãs Bennet após a fuga da caçula Lydia com Mr. Wickham:

407 ―Uma jovem a quem é ensinada uma lição‖ (tradução minha). 408 ―uma moça dada a reflexões profundas, que lê grandes livros e copia trechos deles‘. Mary quis dizer algo sensato, mas não soube o quê‖ (trad. Alexandre de Souza, p.108).

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As for Mary, she was mistress enough of herself to whisper to Elizabeth with a countenance of grave reflection, soon after they were seated at table, "This is a most unfortunate affair; and will probably be much talked of. But we must stem the tide of malice, and pour into the wounded bosoms of each other, the balm of sisterly consolation." Then, perceiving in Elizabeth no inclination of replying, she added, "Unhappy as the event must be for Lydia, we may draw from it this useful lesson; that loss of virtue in a female is irretrievable—that one false step involves her in endless ruin—that her reputation is no less brittle than it is beautiful,—and that she cannot be too much guarded in her behaviour towards the undeserving of the other sex." Elizabeth lifted up her eyes in amazement, but was too much oppressed to make any reply. Mary, however, continued to console herself with such kind of moral extractions from the evil before them.409 (O&P, pp.318-319)

Mary expressa uma rigidez e frieza na situação que contradiz o que ela mesma propõe, de as irmãs derramarem sobre suas feridas ―the balm of sisterly consolation‖, o que, na verdade, exigiria um afeto que Mary não sente, já que não demonstra nenhuma preocupação com Lydia, não alterou sua rotina para ajudar na casa abalada pelo acontecimento, e não hesita também em condenar sua irmã a uma ―ruìna eterna‖, reproduzindo sem qualquer tipo de reflexão trechos encadeados de moralistas que lia. Para Castellanos, nessa crítica tranquila de Mary, Austen revela o caráter cruel das condenações moralistas das condutas femininas erradas, mesmo quando acompanhadas de um sentimento de amor, e mostra como todo o estudo de Mary, que deveria ser a base de sua força intelectual, apenas a expôs a um discurso misógino (Castellanos, 1994, p.130). Ela não sabe lidar com isso a não ser através da repetição de citações ―importantes‖ decoradas e que, paradoxalmente, a afasta do ideal pregado pelos mesmos moralistas, que é a relação afetuosa entre irmãs. Castellanos observa ainda que essa contradição também aparece em Mr. Collins, quando ele aconselha a Mr. Bennet a exercer o perdão cristão para Lydia e Mr. Wickham ao mesmo tempo em que não deve nunca ―admit them in your sight, or allow their names to be mentioned in your hearing‖, e Mr. Bennet comenta acidamente: ―That is his notion of Christian forgiveness!‖410 (O&P, p.403). Mr. Collins é certamente a personagem mais moralista e também a mais estúpida de O&P, aquele que tem medo de romances e quer ler Fordyce’s Sermons para suas primas, e Austen acrescenta mais uma risada quando fala que,

409 ―Quanto a Mary, mostrava-se se senhora de si o bastante para sussurrar a Elizabeth com uma expressão de grave reflexão, assim que se sentaram à mesa: ‗Trata-se de um caso deveras infame; e sobre o qual provavelmente muito se falará. Mas devemos resistir à maré da maldade e verter sobre os peitos feridos de cada uma de nós o bálsamo do consolo fraternal.‘ Então, percebendo que Elizabeth não fazia menção de responder, ela acrescentou: ‗Por mais infeliz que o caso seja para Lydia, podemos tirar disso uma lição proveitosa; que a perda da virtude para a mulher é irreversível – que um passo em falso a envolve em uma ruína sem termo – que sua reputação é tão frágil quanto sua beleza – e que sua cautela contra um indivíduo desmerecedor do outro sexo nunca é demasiada.‘ Elizabeth ergueu os olhos de espanto, mas estava aflita demais para retrucar. Mary, todavia, continuou a se consolar com tais máximas morais extraìdas do mal diante delas‖ (trad. Alexandre de Souza, p.420). 410 ―jamais recebê-los, ou permitir que seus nomes fossem mencionados na sua frente‘. Isso é o que ele chama de perdoar como cristão!‖ (trad. Alexandre de Souza, p.503).

268 após a recusa de Elizabeth de se casar com Collins, Mary poderia ter sido convencida a aceitá- lo porque ―she rated his abilities much higher than any of the others; there was a solidity in his reflections which often struck her, and though by no means so clever as herself, she thought that if encouraged to read and improve himself by such an example as her's, he might become a very agreeable companion‖411 (O&P, p.139). Mr. Collins e Mary, portanto, são produtos do mesmo discurso, duas faces da mesma moeda cuja união Austen sabiamente não efetivou. Mr. Collins é um exemplo do que um olhar mais atento às outras personagens masculinas de Austen, para além dos heróis, pode nos mostrar. Encontramos na obra dela não só o tolo, mas também figuras fracas e defeituosas em outros aspectos, geralmente retratadas de forma discreta: pais negligentes ou tirânicos, irmãos irresponsáveis ou ausentes, e tutores cegos para a realidade à sua frente como é o caso de Sir Thomas Bertram e a sua insistência de que sua sobrinha Fanny Price, em Mansfield Park, se case com Mr. Henry Crawford. Fanny é incapaz de aceitar esse pedido porque assistiu de longe a Crawford flertar e seduzir suas duas primas, Maria e Julia, e portanto não tem nenhuma ilusão sobre o caráter desse homem. Sir Thomas, porém, só enxerga a possibilidade de um casamento com um aristocrata rico e de status muito acima de Fanny. A sua recusa gera a ira de seu tio, que a acusa de ser ingrata e ignorar seu dever, porém, como nota Katie Halsey, a verdade é que Sir Thomas Apesar de honrado e bom, não tem discernimento. Ao contrário de Fanny, ele vê Henry Crawford não como um sedutor sem princípios mas sim como um ―jovem de senso, caráter, bom temperamento, maneiras e fortuna‖. Fanny é mais inteligente e tem uma capacidade de entendimento maior que seu tio, uma situação que os escritores de livros de conduta não anteveram, e o resultado é que ela é acusada de vícios que não possui. (HALSEY, 2013, p.52, tradução minha)

Assim, ao invés de ilustrar como a autoridade masculina detém a superioridade moral e intelectual para guiar suas mulheres, Austen escreve como essa autoridade é falha e, ao contrário de proteger, é a causadora do sofrimento da heroína. Ainda que Austen admirasse escritores como Samuel Johnson, em suas obras a voz da autoridade masculina, ou do moralista superior, está ausente, como observa Enit Steiner, ou simplesmente foi silenciada, pois se esperamos por exemplos morais de figuras paternas, da nobreza, do clero, ou simplesmente masculinas, nós devemos nos voltar para outra romancista (Steiner, 2012, p.40). Um bom exemplo de como Jane Austen denuncia de forma discreta as falhas da sociedade patriarcal e como elas geralmente acabam prejudicando o seu lado mais fraco, as

411 ―Ela estimava suas qualidades muito mais do que qualquer uma das outras; havia uma solidez em suas reflexões que muitas vezes a impressionava e, ainda que não fosse tão inteligente, ela pensou que, se estimulado a ler e a se aperfeiçoar tomando-a como exemplo, ele poderia se tornar uma companhia agradável‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.239-240).

269 mulheres, está no livro Razão e Sensibilidade, publicado dois anos antes de O&P. A história é centrada nas irmãs Elinor e Marianne, que se apaixonam por homens que não são exatamente o modelo do cavalheiro exemplar imaginado por Burke e outros conservadores da época: Willoughby, por ser um galã sedutor e por preferir o dinheiro ao amor de Marianne, e Edward Ferrars, por ser, em última instância, fraco – uma característica que muitos leitores não enxergam frente à ―maldade‖ de Willoughby e o seu final feliz com Elinor. O fato de que muitas adaptações constroem Ferrars como um ―galã‖ de cinema, como argumentei na parte anterior, e o colocam como uma vítima de suas circunstâncias não parece incentivar muito esse posicionamento crítico. Como vimos no capítulo 2, Razão e Sensibilidade apresenta uma crítica ao sentimentalismo da época, e por isso o romance acaba sendo lido geralmente como uma lição de que a razão deve prevalecer sobre o sentimento, mas está claro hoje que ele não é tão binário assim. Ainda que a crítica ao sentimentalismo não possa ser negada, também não é possível afirmar categoricamente, segundo Claudia Johnson, que R&S é um livro de boas maneiras, que mostraria que o comportamento adequado é o silêncio de Elinor e não a profusão de emoções de Marianne. Para Johnson, existe nesse romance um retrato muito mais complexo que mostra que nenhuma das duas irmãs, detentoras de atitudes e comportamentos quase opostos, conseguiu escapar dos males infligidos por uma sociedade patriarcal. Diz Johnson que esse romance, na verdade escuro e desencantado, expõe como as instituições ―benevolentes‖ que serviriam para garantir a ordem (casamento, famìlia e propriedade) na verdade reforçam a avareza, o comodismo e uma mediocridade opressiva (Johnson, 1990, p.49). A desordem escancarada da família, vista como base da estabilidade da nação, a crueldade e ao mesmo tempo a tranquilidade de todos frente à sucessão de propriedade somente pela linha masculina, que empobrece as mulheres do dia para a noite, a tirania e a indulgência dos que eram vistos como os protetores dessas mulheres (Johnson, 1990, p.50), tudo isso é mostrado nas suas entrelinhas, denúncias escondidas sob o mata-borrão dos conflitos amorosos vividos pelas duas irmãs e da pretensa crítica somente ao comportamento da mais jovem, Marianne. Sim, Marianne se expôs, mostrou a todos seus sentimentos, entregou seu coração de forma aberta para Willoughby sem qualquer tentativa de discrição, mas Elinor, que não fez nada disso, sofreu tanto quanto ela e também se iludiu sobre o homem que amava. Quando Edward Ferrars aparece com um anel na casa das Dashwood, Elinor ―sabe‖ instintivamente que o cacho de cabelo que ele contém é seu, mas não poderia estar mais enganada. Ela apenas projeta o seu desejo de forma contrária à ―razão‖ que essa personagem deveria representar. E como nota Auerbach, como Marianne, Elinor também tem

270 seus momentos de sentimento espontâneo, e como sua irmã, ela também faz julgamentos errados – afinal, o cabelo no anel não é dela, e Edward também não está livre para pedi-la em casamento (Auerbach, 2004, p.110). Para Johnson, Razão e Sensibilidade é o livro de Austen mais conectado com uma crítica social progressiva, pois, comparando-o com os livros didáticos de bons costumes, enquanto estes ensinam às mulheres os códigos que elas precisam adotar para serem boas esposas e filhas, R&S questiona esses códigos para mostrar que o que está em risco ali para essas duas jovens não é a sua honra, mas a sua sobrevivência (Johnson, 1990, p.50). Gilbert e Gubar (2000, p.136) já observaram que esta é uma questão que passa necessariamente pelo controle da sociedade patriarcal sobre as mulheres, o qual, em última instância, depende da negação ou impedimento dessas mulheres de seus direitos de poder receber seu próprio dinheiro, tanto via herança como via trabalho. Em R&S, o testamento do Mr. Dashwood sênior é revelado na mais perfeita tranquilidade – não há nenhum vilão cruel tentando roubar a herança das irmãs Dashwood, um lugar comum na ficção sentimental do fim do século XVIII; ao contrário, observa Edward Copeland, isso é feito de acordo com as leis mais comuns da Inglaterra e, exatamente por isso, é ainda mais assustadora essa exclusão brutal de pelo menos um mínimo de sua herança absolutamente sancionada pela lei e costumes ingleses, além, claro, da perda de qualquer esperança de que sua situação seja melhorada com ajuda do irmão baseado em um senso de justiça (que ele não tem) (Copeland, 2006, p.liv). Como apontam Gilbert e Gubar, Austen explora detalhadamente essas formas de controle, e concluem que ela continuamente examina a impotência feminina que sustenta a preocupação para se casar, a injustiça das leis de herança, a ignorância das mulheres que não recebem uma educação formal, a vulnerabilidade psicológica da jovem herdeira ou da viúva, a exploração da dependência da solteirona e o tédio da vida da grande dama que não tem nada para fazer (Gilbert e Gubar, 2000, p.136). Essas mulheres aparecem em todos os romances de Austen, sem exceção: em Georgiana Darcy, rica herdeira, sendo enganada por Wickham (O&P); em Lady Bertram, que vive uma vida monótona (MP); no empobrecimento de Elinor e Marianne por não poderem ficar com a herança de seu pai (R&S); na dependência da ―solteirona‖ Miss Bates da caridade de outros (E); na superficialidade das irmãs Musgrove (P) e nas intenções mercenárias de Isabella Thorpe (NA); na decisão – desesperada? – de Charlotte de se casar com o ridículo Mr. Collins porque já estava ficando velha demais (O&P). Para Claudia Johnson, essa é uma das formas que Austen encontra para mostrar que a vida doméstica e a dependência das mulheres de seus familiares homens não era, em

271 geral, algo tão eficiente e harmonioso como queriam os romances didáticos. Ela afirma que sugerir, como Austen faz, que pais, filhos e irmãos podem ser egoístas, opressores e inescrupulosos, e que os laços domésticos e de família não são tão doces assim, é um ataque às instituições que tornam uma certa moralidade possível e contribui então para a dissolução do governo (Johnson, 1990, p.10). Anne Mellor concorda com esse posicionamento ao afirmar que, ao contrário do que a crítica tradicional estabeleceu a respeito de muitas mulheres escritoras do fim do século XVIII até o primeiro quarto do XIX, nem todas se restringiram a reproduzir uma ideologia hegemônica idealizada na família da classe média, e sim usaram a sua escrita como um veículo de contestação ideológica e de subversão, explorando a capacidade dos romances para um humor perturbardor e para uma interrogação constante dos códigos sociais existentes (Mellor, 1994, p.328). Isso aparece, por exemplo, no uso de personagens femininas que se comportam de maneira racional e que não se deixam tomar por uma enxurrada de sentimentos, o comportamento ―natural‖ ou estereotipado das mulheres, o que, para Mellor, era uma forma indireta de apoiar as ideias divulgadas por Mary Wollstonecraft a respeito da capacidade de desenvolvimento das mulheres de forma igualitária a dos homens. Ou seja, ao trazer heroínas que pensam ao mesmo tempo em que sentem, que agem com prudência, e que aprendem com seus erros, Mellor acredita que essas autoras estavam contestando abertamente a tradição da ―domestic fiction‖ e da inocente ―heroìna reformada‖ pelo homem superior que age como seu guia moral (Mellor, 1994, p.332). Ela afirma que romancistas como Maria Edgeworth, Mary Hays, Susan Ferrier e Jane Austen transformaram essa tradição ao trazer uma crítica sutil à masculinidade, iluminando as falhas de inteligência e virtude moral nas suas personagens masculinas e femininas, assim como os perigos da paixão desregrada, da sensibilidade e de uma imaginação exagerada para ambos, homens e mulheres (idem). Em seu A Vindication of the Rights of Woman (1792), por exemplo, Mary Wollstonecraft insiste que a mulher deve ser tratada como um ser racional assim como o homem e, por isso, deve receber a mesma educação que ele: (...) eu ainda insisto que não apenas a virtude, mas o conhecimento dos dois sexos deveria ser da mesma natureza, se não em grau, e que as mulheres, consideradas não apenas como criaturas morais, mas racionais, devem empenhar-se na aquisição de virtudes humanas (ou perfeições) pelos mesmos meios que os homens, em vez de serem educadas como um tipo de ser (pela metade) extravagante – uma das quimeras selvagens de Rousseau. (Wollstonecraft, 2015, p.87, grifo meu).

Em O&P, é possível escutar um eco dessa ideia quando Elizabeth Bennet tenta convencer Mr. Collins que realmente está recusando o seu pedido de casamento, e não, como ele afirma, seguindo ―the established custom of your sex to reject a man on the first

272 application, (...) as would be consistent with the true delicacy of the female character‖412 (O&P, p.121). Exasperada pela insistência cega de Collins, Elizabeth responde por fim: "I do assure you, Sir, that I have no pretension whatever to that kind of elegance which consists in tormenting a respectable man. I would rather be paid the compliment of being believed sincere. I thank you again and again for the honour you have done me in your proposals, but to accept them is absolutely impossible. My feelings in every respect forbid it. Can I speak plainer? Do not consider me now as an elegant female intending to plague you, but as a rational creature speaking the truth from her heart."413 (O&P, p.122, grifo meu)

O pedido de Elizabeth é para que Collins a enxergue como uma criatura racional, a mesma expressão que Wollstonecraft usa frequentemente em seu Vindication, e aceite a sua resposta como uma decisão consciente e não como uma artimanha para conquistar os sentimentos de um homem – uma ―convenção das mulheres‖ que Collins, mesmo afirmando anteriormente não aprovar romances, só pode ter aprendido nos romances sentimentais da época. Austen então mostra o absurdo divulgado por essa literatura, algo que ela percebera muito jovem e tinha registrado nas suas heroínas da Juvenilia que agiam de forma independente e espontânea, ao mesmo tempo em que parodiava as fórmulas do sentimentalismo. Ao mesmo tempo, como coloca Enit Steiner, o desaparecimento de um tipo de violência escancarada na Juvenilia, como assassinatos, suicídios e espancamentos, na passagem para os romances ―adultos‖ mostra como Austen realiza uma mudança da violência física para a verbal, de uma agressividade aberta para uma mais velada, pois não há quase exemplos de expressão física de hostilidade, porém os abusos são presentes, irrestritos e apresentados sob uma máscara de civilidade (Steiner, 2012, p.35). Assim, Mr. Collins não é o típico vilão sentimental ou gótico, não vai raptar Elizabeth e trancafiá-la na torre mais alta de seu castelo nos Pirineus, mas a sua incapacidade de realmente escutar Elizabeth, e a sua certeza de que ela iria acabar aceitando sua proposta, especialmente após ―the express authority of both your excellent parentes‖414 (O&P, p.122) – ou seja, com a autoridade paterna obrigando-a a isso –, indicam claramente o lugar de inferioridade que Collins a coloca e isso também é uma forma de violência ou opressão. Ainda que essa imagem de uma Jane Austen crítica aos valores de sua sociedade tenha sido consolidada – pelo menos em meios acadêmicos – após três décadas de crítica

412 ―sei que é um costume estabelecido do seu sexo rejeitar a primeira abordagem de um homem (...) segundo os ditames da verdadeira delicadeza do sexo feminino‖ (trad. Alezandre de Souza, p.221). 413 ―Posso lhe garantir, senhor, que não tenho nenhuma pretensão a um tipo de elegância que consiste em atormentar homens respeitáveis. Preferiria o elogio de me acreditar uma pessoa sincera. Agradeço mais uma vez pela honra que foi para mim a sua proposta, mas aceitá-la é absolutamente impossível. Todos os meus sentimentos dizem não. Como posso ser mais clara? Não me considere neste momento um exemplo de elegância feminina desejando enfeitiçá-lo, mas uma criatura racional falando a verdade de seu coração‖ (trad. Alexandre de Souza, p.222). 414 ―a autoridade expressa de seus excelentes pais‖ (trad. Alexandre de Souza, p.222).

273 feminista, um dos pontos que permanece em debate é o casamento como parte do final feliz que encerra todos os seus romances, o que rendeu à escritora algumas acusações de apoiar ou no mínimo de ser conivente com esse grande projeto conservador para as mulheres. As respostas a essas acusações centram-se, em primeiro lugar, no questionamento de se ler esse padrão nos romances de Austen como uma mensagem didática, ou, como afirma Claudia Johnson, nós devemos ser cautelosos com esse entendimento de que os casamentos que concluem seus romances constituem uma declaração ideológica inequívoca sobre essa instituição como um objetivo final para as mulheres ou uma dádiva para a sociedade (Johnson, 1990, p.91). Segundo, se lembrarmos que já em sua Juvenilia Austen não hesitava em ridicularizar os elementos da ficção sentimental como fuga de amantes, grandiosos bailes e inesquecíveis pedidos de casamento, o seu silêncio em relação ao casamento que encerra seus romances seria proposital e teria uma implicação clara: para Gilbert e Gubar, este seria a única forma aceitável e acessível para uma jovem ter algum tipo de sucesso naquela sociedade, o que mostra mais uma vez como suas vidas eram deficientes. Dizem as autoras: Muitos críticos já notaram a duplicidade no ―final feliz‖ dos romances de Austen na qual ela traz seus casais para a felicidade com tanta pressa, ou através de tantas coincidências improváveis, ou com tanto sarcasmo que a mensagem parece diminuída: a implicação permanece de que uma jovem sem a ajuda de um narrador benevolente nunca vai encontrar um caminho para longe de suas mortificações ou da casa de seus pais. (GILBERT e GUBAR, 2000, p.169)

Como exemplo do que as autoras afirmam, podemos voltar a Razão e Sensibilidade. O casamento de Elinor e Edward Ferrars só acontece porque sua noiva, Lucy Steele, decide trocá-lo pelo seu irmão mais novo, Robert, depois que Edward fora deserdado por sua mãe. À primeira vista parece ser uma solução muito inusitada, criada somente para garantir o final feliz daquela personagem, e que reforça a mensagem da superioridade da razão sobre o sentimento, já que, em última instância, Elinor consegue se casar com o homem que amava e Marianne, não. Mas isso não é consequência de seu comportamento, e sim um mero acaso advindo do fato fortuito, quase inacreditável, de Lucy Steele decidir trocar um irmão pelo outro por causa do dinheiro. A ―artificialidade‖ desse final, conquistado por conta de um narrador benevolente, como colocam Gilbert e Gubar, só escancara a improbabilidade do final feliz. Como nos mostra Enit Steiner (2012, p.85), a justificativa de Edward para ter ficado tanto tempo com Elinor em Norland mesmo estando secretamente comprometido com outra mulher só mostra que, mesmo amando-a, ele não conseguia enxergar nada além de si mesmo e ignorava totalmente o sofrimento que provocou: ―‗The danger is my own: I am

274 doing no injury to anybody but myself.‘ - Elinor smiled, and shook her head‖415 (R&S, p.323). Visto pelos conservadores como um dever social das jovens de boa família, o casamento não era uma união realizada com vistas à felicidade do futuro casal, mas sim, novamente, uma garantia do futuro e da estabilidade da nação. Dentro desse discurso, autoras de livros didáticos para mulheres como Jane West (1758-1852) condenavam a ideia do casamento por amor, por incentivar as jovens a se rebelarem contra as escolhas de seus pais ou tutores. O nascimento do ideal do amor romântico junto com a ficção sentimental instituiu um novo código a respeito do casamento, mas que, para muitos, tratava-se apenas de uma fantasia, e mesmo a sua divulgação a partir da literatura sentimentalista foi altamente criticada. Se retomarmos o diálogo de Clara Reeve de 1785, The Progress of Romance, vamos encontrar a personagem de Hortensius reclamando exatamente desse ponto ao apontar para os perigos da leitura de romances: Hort: There are yet more and greater evils behind. – The seeds of vice and folly are sown in the heart, - the passions are awakened, - false expectations are raised. – A young woman is taught to expect adventures and intrigues, - she expects to be addressed in the style of these books, with the language of flattery and adulation. – If a plain man addresses her in rational terms and pays her the greatest of compliments, - that of desiring to spend his life with her, - that is not sufficient, her vanity is disappointed, she expects to meet a Hero in Romance.416 (REEVE, 1930, vol.2, pp.77-78)

Em Love and Freindship, por exemplo, Laura e Sofia, as duas heroínas de Austen que se alternavam para desmaiar, convencem uma jovem a recusar um pedido de casamento de um homem ―sensible, well-informed and, agreeable‖ porque, segundo elas, ―[he] had never read the Sorrows of Werther, and that his hair bore not the least resemblance to auburn‖ e, por conta disso, ―we were convinced he had no soul‖417 (J, p.122). De uma certa forma, portanto, Austen parece concordar com Hortensius sobre os efeitos negativos que a literatura sentimentalista poderia exercer sobre as jovens. Contudo, Claudia Johnson nota uma característica das obras de Austen que passou despercebida pelos seus críticos: todos os casamentos das personagens principais foram feitos por amor, e alguns inclusive contra o desejo (inicial) dos pais, o que colocaria a autora em direto conflito com essa moral

415 ―O risco é todo meu; não estou fazendo mal a ninguém além de mim mesmo‖ (trad. Alexandre de Souza, p.469). 416 ―Há ainda mais e maiores males por trás – as sementes do vício e da tolice são semeadas no coração – as paixões são acordadas – expectativas falsas são levantas – uma jovem é ensinada a esperar aventuras e intrigas, ela espera ser abordada no estilo desses livros, com a linguagem da bajulação e adulação. Se o homem simples a aborda de uma maneira racional e dá a ela o maior dos elogios – de desejar passar sua vida com ela – isso não é suficiente, a sua vaidade é decepcionada, ela espera encontrar um herói de um romance‖ (tradução minha). 417 ―sensìvel, bem informado e agradável‖ / ―ele nunca tinha lido Os sofrimentos do jovem Werther, e seu cabelo não tinha o menos traço de ser castanho‖ / ―nós estávamos convencidas de que ele não tinha alma‖ (tradução minha).

275 conservadora da época, inclusive com Jane West, que minimizava ou até mesmo descartava totalmente o amor como precondição para uma união, enquanto que Austen, ao contrário, o premia (Johnson, 1990, p.89). Para G. A. Starr, convenções da ficção sentimental, como o amor à primeira vista e o casamento por amor não eram somente vistas como ―bobagens‖ de jovens tolas, mas eram perigosas pois atravessam barreiras de classe, contornam as convenções do namoro e permitem que a relação entre os indivíduos seja superior à relação econômica e política entre famílias (o que sempre foi a base para o casamento das classes mais altas) (Starr, 1994, p.191). Ou seja, as diferenças de classe existem, mas elas podem ser destruídas pela força de um olhar emocionado (idem). Talvez o maior exemplo disso seja Pamela, que abre o precedente de um gentleman casando-se com uma empregada. O próprio Richardson parece não ter ignorado essa questão, e em um diálogo interessante de Mr. B com sua irmã, mostra que ele já havia pensando sobre o assunto, justificando o seu final dentro da própria obra da seguinte forma: ―Where can the difference be between a beggar‘s son married by a lady, or a beggar‘s daughter made a gentleman‘s wife?‖ ―Then I‘ll tell you,‖ replied he: ―the difference is, a man ennobles the woman he takes, be she who she will; and adopts her into his own rank, be it what it will; but a woman, though ever so nobly born, debases herself by a mean marriage, and descends from her own rank, to that of him she stoops to marry.‖418 (RICHARDSON, 2003, p.441)

Segundo Mr. B, portanto, o homem que se casa com uma mulher de status inferior ao seu não se rebaixa, e sim a promove ao seu nível, o que é bem menos problemático do que uma mulher que se casa com um homem inferior a ela porque vai ser rebaixada ao status dele. Mas mesmo assim, o fato de Mr. B decidir finalmente deixar todas as convenções de lado e se casar com Pamela mostra que o seu desejo individual é superior aos princípios da sociedade em que está inserido, e não há nada mais revolucionário que isso. Como coloca Starr, essa inversão subverte os modelos de conduta e os deveres que sustentam as intituições daquela sociedade, como a família e a igreja, e colocam-nos em perigo: a manutenção da ordem depende da subordinação do indivíduo às considerações sociais, e do sentimento ao julgamento. Ao inverter essas prioridades, o sentimentalismo parece igualar ou reverter um esquema hierarquizado e estabelecido do funcionamento de todas as coisas (Starr, 1994, p.191-192).

418 ―Onde está a diferença entre o filho de um mendigo se casar com uma dama, ou a filha de um mendigo se casar com um cavalheiro?‘ / ‗Então eu lhe direi‘, respondeu ele, ‗a diferença é que um homem enobrece a mulher que ele toma, seja ela quem for, e a adota para seu ranque social, seja ele qual for, mas uma mulher, mesmo se nascida nobre, se rebaixa com um casamento ruim, e cai de seu próprio ranque para o daquele com quem ela se submete a se casar‖ (tradução minha).

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Essa ideia coloca uma nova luz sobre o primeiro pedido de casamento de Mr. Darcy a Elizabeth. Geralmente lido como uma fala de uma pessoa arrogante, aquele Darcy esnobe que todos parecem esquecer quando o constroem como o homem perfeito, esse pedido mostra na verdade a seriedade dos argumentos levantados por ele que justificariam, em seu ponto de vista, a tentativa de controlar seus sentimentos para não se casar com Elizabeth. Darcy se viu na posição de ter que escolher entre os seus deveres para com a sociedade e o seu sentimento, e errou ao achar que Elizabeth iria enxergar um elogio no fato de um homem de sua posição ter escolhido ela, uma mulher de status inferior e de família de comerciantes, ao invés de uma jovem da alta sociedade a qual ele pertencia. Mas após a recusa de Elizabeth, ele argumenta: ―disguise of every sort is my abhorrence. Nor am I ashamed of the feelings I related. They were natural and just. Could you expect me to rejoice in the inferiority of your connections? To congratulate myself on the hope of relations, whose condition in life is so decidedly beneath my own?‖419 (O&P, p.215). Darcy afirma que as suas reservas para com Elizabeth advinham de sentimentos ―naturais e justos‖, indicando que a sua união de fato contrariaria os preceitos daquela sociedade. Os mesmos argumentos serão repetidos pela sua tia Lady Catherine, que tenta convencer Elizabeth a não se casar com Darcy por este ter sido prometido a sua prima Anne De Bourgh porque ambos ―are descended, on the maternal side, from the same noble line; and, on the father's, from respectable, honourable, and ancient - though untitled - families. (…) They are destined for each other by the voice of every member of their respective houses; and what is to divide them? The upstart pretensions of a young woman without family, connections, or fortune‖420 (O&P, p.394). Tanto a resposta de Elizabeth a Darcy no primeiro pedido de casamento, quanto, nesse momento, a sua resposta para Lady Catherine nos mostram que esse tipo de dever social não era uma imposição para ela: [Elizabeth] ―But what is that to me? If there is no other objection to my marrying your nephew, I shall certainly not be kept from it by knowing that his mother and aunt wished him to marry Miss De Bourgh. (…) If Mr. Darcy is neither by honour nor inclination confined to his cousin, why is not he to make another choice? And if I am that choice, why may not I accept him?' [Lady Catherine] Because honour, decorum, prudence, nay, interest, forbid it. Yes, Miss Bennet, interest; for do not expect to be noticed by his family or friends, if you wilfully act against the inclinations of all. You will be censured, slighted, and

419 ―tenho aversão a toda sorte de disfarces. Nem tenho vergonha dos sentimentos que lhe confessei. São naturais e justos. Esperava que eu me alegrasse com a inferioridade da sua família? Que eu me felicitasse pela perspectiva de me relacionar com pessoas cuja posição na vida é tão decididamente abaixo da minha?‖ (trad. Alexandre de Souza, p.317). 420 ―descendem pelo lado materno da mesma linhagem nobre; e, do lado do pai, de famìlias respeitáveis, honradas e antigas, ainda que sem título. Eles são destinados um para o outro segundo o desejo manifesto de cada membro das duas casas; e quem pretende separá-los? As pretensões arrivistas de uma moça sem berço, relações ou fortuna‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.494-495).

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despised, by every one connected with him. Your alliance will be a disgrace; your name will never even be mentioned by any of us.''421 (O&P, p.393-394)

Assim, do ponto de vista de Lady Catherine, e até mesmo de Mr. Darcy, por mais que ele tenha mudado de atitude na segunda metade do romance, o seu casamento com Elizabeth era algo muito subversivo às regras sociais da época. Contudo, mais subversivo ainda é a recusa de Elizabeth de se casar com seu primo Mr. Collins logo no início do livro. Se ao se casar com Darcy ela não parece se preocupar com os deveres sociais dele, ao recusar Collins Elizabeth também não se preocupa com os seus próprios deveres. Sendo ele o herdeiro da propriedade de seu pai, Elizabeth poderia salvar a família de um futuro estado de relativa pobreza após a morte de Mr. Bennet, uma questão muito séria mas que, estranhamente, só preocupa a Mrs. Bennet, sua mãe. O fato de Mrs. Bennet ser ridicularizada no romance parece colocar em segundo plano o seu temor para com o futuro das cinco filhas, e hoje Mr. Bennet é visto como um herói porque não obrigou Elizabeth a se casar com Collins. No entanto, Mr. Bennet é o responsável pela situação em que a família se encontra, nunca tendo poupado nenhuma quantia de sua renda para o sustento de sua esposa e filhas no caso de sua morte. No momento em que Mrs. Bennet o chama para forçar Elizabeth a aceitar Collins, podemos pensar que ela está convocando-o finalmente para que ele assuma uma responsabilidade, uma atitude para proteger a sua famìlia, mesmo que o coloque no papel de vilão ao ―sacrificar‖ Elizabeth para corrigir seu erro. Ele se recusa. Todos os leitores ficam felizes e aliviados, mas tanto a posição de Elizabeth quanto a de seu pai, naquele momento, poderiam ser consideradas como extremamente egoístas porque estavam arriscando o futuro de toda a família. E em meio a toda essa questão absolutamente importante para o futuro da família, Austen costura o hilário pedido de casamento de Mr. Collins, que fala para Elizabeth, por exemplo, ―almost as soon as I entered the house I singled you out as the companion of my future life‖422 (O&P, p.118, grifo meu), admitindo, em um arroubo de honestidade, que a sua primeira opção tinha sido a irmã mais velha – e mais bela – Jane. E depois de enumerar tranquilamente todos os seus motivos para se casar – o principal é que ele havia recebido uma ordem de Lady Catherine de Bourgh para tal – Collins conclui ―and now nothing remains for

421 ―‗Mas o que isso tem a ver comigo? Se não existe outra objeção ao meu casamento com seu sobrinho, certamente eu não mudaria de ideia só por saber que a mãe e a tia queriam que ele se casasse com a senhorita De Bourgh. (...) Se o senhor Darcy não está ligado à prima por honra ou inclinação, por que não haveria de poder fazer outra escolha? E, se eu for a escolhida, por que não haveria de poder aceitá-lo?‘ ‗Porque a honra, o decoro, a prudência, não, o interesse a proíbe. Pois não espere ser aceita pela família ou pelos amigos dele se deliberadamente agir de forma contrária ao desejo de todos. Será censurada, desdenhada e desprezada por todas as pessoas relacionadas a ele. Sua aliança será uma desgraça, seu nome jamais será sequer mencionado por qualquer um de nós‘‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.493-494). 422 ―Quase tão cedo quanto entrei nessa casa, eu a escolhi para ser a companheira da minha vida futura‖ (tradução minha).

278 me but to assure you in the most animated language of the violence of my affection‖423 (O&P, p.119). Seria esperado então que, finalmente, ele declarasse seu amor – ainda que totalmente imaginário – por Elizabeth, mas ao invés disso, ele segue para analisar o magro dote a que ela teria direito: ―to fortune I am perfectly indifferent, and shall make no demand of that nature on your father, since I am well aware that it could not be complied with; and that one thousand pounds in the 4 per cents. which will not be yours till after your mother's decease, is all that you may ever be entitled to. On that head, therefore, I shall be uniformly silent; and you may assure yourself that no ungenerous reproach shall ever pass my lips when we are married."424 (O&P, p.119-120)

A atenção de Collins aos detalhes (―one thousand pounds in the 4 per cents‖) contradiz a sua fala ―to fortune I am perfectly indifferent‖ e esse longo discurso também indica que, caso Elizabeth tivesse aceito o pedido, ela teria escutando ainda muitos ―ungenerous reproach[es]‖ a esse respeito. De qualquer forma, toda a proposta de casamento é muito cômica, o que reforça o desejo do leitor de que Elizabeth não seja forçada a esse destino ao mesmo tempo em que torna leve uma situação muito séria. Por duas vezes Elizabeth abre mão da possibilidade de salvar sua família – quando diz não a Collins e quando diz não ao primeiro pedido de Darcy – e não são recusas que podem ser vistas de forma simples. Nas duas ocasiões Elizabeth não tinha nenhuma certeza de que receberia outras propostas de casamento, como bem observou o próprio Collins, e não havia solução para a questão da herança da propriedade de Longbourn. Elizabeth então arrisca o bem estar de sua família em nome de sua felicidade individual. O peso dessa situação não era estranho à própria Austen, que em sua juventude voltara atrás depois de ter aceitado o pedido de casamento de Harris Bigg-Wither, o qual a tornaria senhora de uma propriedade comparável à Pemberley. Como coloca Park Honan, quando Mr. Austen morreu, a renda de sua esposa e duas filhas foi tão reduzida que elas estavam enfrentando uma situação de penúria, e por isso ter dito não para Bigg-Wither parecia algo muito tolo e praticamente egoísta (Honan, 1987, p.192-193). Os motivos para ela ter aceitado Wither no dia anterior não estavam relacionados a amor mas a questões práticas, pois ele oferecia a ela uma saída contra se tornar uma pária da sociedade (a solteirona) e um fardo para seus irmãos, além da preocupação de Cassandra e sua mãe (Honan, 1987, p.193). São motivos que Austen descartou no dia seguinte quando decidiu voltar atrás em sua decisão, e são motivos que Elizabeth nunca nem levou em consideração.

423 ―E agora nada mais me resta senão lhe garantir na linguagem mais entusiasmada a intensidade da minha afeição‖ (trad. Alexandre de Souza, p.219). 424 ―À fortuna sou perfeitamente indiferente, e não farei exigências dessa natureza a seu pai, uma vez que sei muito bem que isso não poderia ser fornecido; e que quatro por cento de mil libras, que só serão seus depois do falecimento de sua mãe, são tudo a que você tem direito. Quanto a isso, portanto, manterei total silêncio; e você pode estar certa de que jamais um comentário mesquinho sairá dos meus lábios depois que estivermos casados‖ (trad. Alexandre de Souza, p.220).

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Essa recusa de um pedido que pode, em ultima instância, garantir a sua segurança financeira e social aparecerá novamente em outros romances com Anne Elliot e Fanny Price, e provavelmente também apareceria em The Watsons, um romance que Austen abandonara durante sua residência em Bath, se pudermos confiar na memória de Cassandra Austen. Mas existe também um contraexemplo em Charlotte Lucas, que decidiu aceitar Mr. Collins no lugar de Elizabeth pois ―I am not romantic, you know. I never was. I ask only a comfortable home; and considering Mr. Collins‘s character, connections, and situation in life, I am convinced that my chance of happiness with him is as fair as most people can boast on entering the marriage state‖425 (O&P, p.140-141). Quando Charlotte justifica aceitar Collins, poucos dias depois de Elizabeth tê-lo recusado, afirmando ―I am not romantic‖, o que ela está falando na verdade é que Elizabeth é romântica em desejar, em um casamento, algo a mais do que uma casa confortável e uma situação respeitável. Apesar de Elizabeth ter acabado de declarar a Mr. Collins que era uma criatura racional, Charlotte parece chamá-la então de ingênua. Em termos práticos, Charlotte está certa, mas Elizabeth não consegue ver além da humilhação a que sua amiga está se submetendo e, por isso, ―could never address her without feeling that all the comfort of intimacy was over‖426 (O&P, p.165). E Mr. Bennet, que recusa a forçar o casamento de Elizabeth com Collins, se recusa também a enxergar qualquer traço de bom senso na escolha de Charlotte: ―it gratified him, he said, to discover that Charlotte Lucas, whom he had been used to think tolerably sensible, was as foolish as his wife, and more foolish than his daughter!‖427 (O&P, p.143). A questão se complica ainda mais quando Elizabeth se mostra incoerente em sua avaliação de situações parecidas. A primeira é referente a Mr. Wickham, que, no mesmo período em que Charlotte fica noiva de Mr. Collins, passa a cortejar Miss Mary King, uma jovem em quem até então ninguém prestava muito atenção, somente porque ela havia se tornado a herdeira de uma fortuna de dez mil libras. A tia de Elizabeth, Mrs. Gardiner, questiona esse comportamento: "But, my dear Elizabeth," she added, "what sort of girl is Miss King? I should be sorry to think our friend mercenary." "Pray, my dear aunt, what is the difference in matrimonial affairs, between the mercenary and the prudent motive? Where does discretion end, and avarice begin? Last Christmas you were afraid of his marrying me, because it would be imprudent;

425 ―Eu não sou uma pessoa romântica, você sabe. Nunca fui. Eu desejo apenas um lar confortável; e, considerando o caráter, as relações e a posição de vida do sr. Collins, estou convencida de que a minha chance de ser feliz com ele é tão justa quando à da maioria das pessoas que se casam‖ (tradução minha). 426 ―não poderia nunca se dirigir a ela sem sentir que todo o conforto da sua intimidade tinha acabado‖ (tradução minha). 427 ―para ele a experiência tinha sido muito gratificante, pois gostou de saber que Charlotte Lucas, que sempre achara razoavelmente sensata, era tão tola quanto sua esposa, e mais tola do que a sua filha!‖ (trad. Alexandre de Souza, p.243).

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and now, because he is trying to get a girl with only ten thousand pounds, you want to find out that he is mercenary." (…) "But he paid her not the smallest attention, till her grandfather's death made her mistress of this fortune." "No—why should he? If it was not allowable for him to gain my affections, because I had no money, what occasion could there be for making love to a girl whom he did not care about, and who was equally poor?" "But there seems indelicacy in directing his attentions towards her, so soon after this event." "A man in distressed circumstances has not time for all those elegant decorums which other people may observe. If she does not object to it, why should we?" "Her not objecting, does not justify him. It only shews her being deficient in something herself—sense or feeling." "Well," cried Elizabeth, "have it as you choose. He shall be mercenary, and she shall be foolish."428 (O&P, p.173-174)

Atraída pelos elogios e boas maneiras de Wickham desde o começo, Elizabeth é incapaz de aceitar que a mudança de comportamento dele seja chamada de mercenária, e defende suas escolhas como justificadas pela necessidade de um homem, em circunstâncias financeiras ruins, tentar modificar sua vida. Contudo, Mrs. Gardiner percebe a indelicadeza, para se dizer o mìnimo, da situação, e o narrador aponta claramente que ―Elizabeth, less clear- sighted perhaps in his case than in Charlotte's, did not quarrel with him for his wish of independence. Nothing, on the contrary, could be more natural‖429 (O&P, p.169). A segunda instância é a sua conversa com o primo de Mr. Darcy, Coronel Fiztwilliam. Segundo filho de um conde, ele não tem direito à herança e fortuna da família, mas está acostumado a um nível de vida (financeiro e de status social) alto. Logo, ele declara, em uma conversa com Elizabeth, que ele deve se casar com uma herdeira: ―A younger son, you know, must be inured to self-denial and dependence. (…) perhaps I cannot say that I have experienced many hardships of that nature. But in matters of greater weight, I may suffer from the want of money. Younger sons cannot marry where they like." "Unless where they like women of fortune, which I think they very often do." "Our habits of expence make us too dependant, and there are not many in my rank of life who can afford to marry without some attention to money." "Is this," thought Elizabeth, "meant for me?" and she coloured at the idea; but, recovering herself, said in a lively tone, "And pray, what is the usual price of an

428 ―‗Mas, minha querida Elizabeth‘, ela acrescentou, ‗que tipo de moça é a senhorita King? Eu lamentaria muito saber que nosso amigo é um mercenário.‘ ‗Ora, minha querida tia, qual é a diferença, nos assuntos matrimoniais, entre ser mercenário e prudente? Onde termina a parcimônia e começa a avareza? No Natal você estava com medo de que ele se casasse comigo, pois seria uma imprudência; e, agora que ele está tentando conquistar uma moça que tem mìseras dez mil libras, você diz que ele é mercenário.‘ (...) ‗Mas ele não prestava nenhuma atenção nela até o avô morrer e deixá-la em posse desse dinheiro?‘ ‗Não – e por que haveria de ter prestado? Se minha afeição não lhe foi permitido ganhar por falta de dote, que chance teria no amor uma moça com quem ele nem se importava e que era igualmente pobre?‘ ‗Mas parece uma indelicadeza dele voltar toda a sua atenção para ela logo após a morte do avô.‘ ‗Um homem sobre circunstâncias aflitivas não tem tempo para todo esse elegante decoro que os outros podem observar. Se ela não se incomoda, por que haveríamos de nos incomodar? ‗O fato de ela não se incomodar não justifica a atitude dele. Só mostra que ela também tem lá seus problemas – de juìzo ou sentimento‘‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.273-274). 429 ―Elizabeth, talvez menos perspicaz nesse caso do que no caso de Charlotte, não discordou de seu desejo por independência. Nada, ao contrário, poderia ser mais natural‖ (tradução minha).

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Earl's younger son? Unless the elder brother is very sickly, I suppose you would not ask above fifty thousand pounds." He answered her in the same style, and the subject dropped.430 (O&P, p.205-206)

Também nesse caso, Elizabeth apenas lamenta que um homem agradável como o coronel não possa ter nenhuma intenção concreta em relação a ela por causa de sua falta de fortuna, e a decepção não vem de uma percepção de que Cel. Fitzwilliam estava sendo mercenário, apenas de que ela, por circunstâncias fora de seu controle, não possuía o dote necessário – ainda que cinquenta mil libras tenha sido uma piada entre eles, já que era uma enorme quantia para a época. Elizabeth, portanto, apresenta um critério duplo ao avaliar o caso de Charlotte em relação ao de Wickham e Cel. Fitzwilliam. Obviamente que o fato de conhecermos Mr. Collins, mas não Miss King e nem a futura senhora Fitzwilliam, fortalece a visão de que a decisão de Charlotte de se casar com Collins era realmente absurda. Contudo, Elizabeth se recusa a aceitar a necessidade financeira de Charlotte como um argumento, enquanto aplica o mesmo quesito de ―prudência‖ para justificar Wickham e Fitzwilliam. Ela parece ser sensível, então, ao fato de que, uma vez casada, a mulher é colocada sob o domínio de seu marido, e mesmo no caso de este ser um marido tolo, a esposa é obrigada a obedecê-lo sempre. É provavelmente por isso que pensa: ―Charlotte, the wife of Mr. Collins, was a most humiliating picture!‖431 (O&P, 141). Ainda mais importante, Nancy Armstrong defende que, quando o narrador dá voz a essa reflexão silenciosa de Elizabeth, fica implícito que ele compartilha dessa indignação, indicando que a decisão de Charlotte não é um exemplo a ser seguido. Logo, se isso for verdade, nós podemos entender então que O&P advoga por um tipo de casamento contraído contra esses princípios? (Armstrong, 2005, p.46). Se o correto então é o posicionamento de Elizabeth, que espera mais de um casamento do que apenas a segurança econômica e social, então O&P defende que um casamento deve ser, acima de tudo, feliz? A busca pela felicidade como um direito e, mais ainda, um direito também das mulheres, em especial no casamento, torna-se então uma ideia altamente radical da qual Elizabeth não abre mão, ao mesmo tempo em Charlotte renuncia a ela, apesar de afirmar que as suas chances de felicidade com Collins são iguais às de qualquer outro casal. Em dois momentos distintos Elizabeth declara o seu direito à felicidade, um novo conceito histórico

430 ―Como filho mais novo, você sabe, devo me preparar para o sacrifìcio e a dependência. (...) talvez eu não possa dizer que passei por muitas dificuldades dessa natureza. Mas, em questões de grande monta, posso sofrer pela falta de dinheiro. Caçulas não podem se casar com quem bem entender.‘ ‗A não ser que gostem de mulheres ricas, e creio que muitas vezes eles gostam.‘ ‗Nossos gastos costumam nos tornar muito dependentes, e não há muitos em minha posição que possam se permitir casar sem pensar no dinheiro‘. ‗Será‘, pensou Elizabeth, ‗que ele está se referindo a mim?‘, e corou ao pensar nisso; porém, recompondo-se, disse em tom espirituoso: ‗Diga- me, quanto costuma custar o caçula de um conde? A não ser que o primogênito seja muito fraco, vocês não devem sair por mais de cinquenta mil.‘ Ele respondeu no mesmo espìrito, e o assunto acabou‖ (trad. Alexandre de Souza, p.307). 431 ―Charlotte, esposa do senhor Collins, que quadro mais humilhante!‖ (Alexandre de Souza, p.241).

282 registrado, por exemplo, na declaração de Independência dos Estados Unidos menos de um ano depois do nascimento de Austen (―that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness‖432). A primeira vez ocorre durante a sua recusa ao pedido de Mr. Collins: ―I am perfectly serious in my refusal.—You could not make me happy, and I am convinced that I am the last woman in the world who would make you so‖433 (O&P, p.120). E a segunda, quando ela dispensa as repreensões de Lady Catherine: ―I am only resolved to act in that manner which will, in my own opinion, constitute my happiness, without reference to you, or to any person so wholly unconnected with me"434 (O&P, p.396). Os dois pedidos de casamento de Darcy representam exatamente essa alteração na vontade de Elizabeth, ou na concepção do que a faria feliz. Para o primeiro pedido, observa Ashley Tauchert, Elizabeth responde a Darcy "You could not have made me the offer of your hand in any possible way that would have tempted me to accept it"435 (O&P, p.215), ou seja, nós temos uma cena na qual o paradigma de Wollstonecraft domina – o casamento é opressivo e contra a vontade da heroína (Tauchert, 2005, p.79). Já para o segundo, depois que ambos são forçados a reconhecer seus respectivos erros (de orgulho e preconceito), a resposta de Elizabeth é positiva. Nesse caso, então, o casamento deixa de ser opressivo e há uma mudança significativa em sua percepção de Darcy, agora um colaborador para a sua possível liberdade (Tauchert, 2005, p.80), uma liberdade limitada obviamente à única opção para as mulheres da época. Tauchert conclui então que, enquanto o casamento sempre foi demonstrado de forma convincente pela narrativa como algo que era oposto ao desejo de liberdade das personagens femininas (um inferno ―wollstonecraftiano‖), ele também pode ter uma imagem de ―liberdade austeniana‖, mas somente quando Elizabeth percebe que a união com Darcy é, afinal de contas, o seu desejo também (idem, p.83). É muito interessante notar que a sua felicidade, portanto, só é conquistada depois que Mr. Darcy reconhece a validade de suas críticas e procura reformar suas atitudes antes de pedir Elizabeth em casamento pela segunda vez. Visto como a hipérbole da perfeição que não vai ser encontrada em mais nenhum outro livro de Jane Austen, Darcy na verdade inicia o

432 ―que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre eles estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade‖ (tradução minha). ―Declaration of Independece, July 4, 1776, Disponível em https://www.archives.gov/founding-docs/declaration-transcript Acesso em 13/10/2016. 433 ―Estou sendo absolutamente séria em minha recusa. – O senhor não poderia me fazer feliz, e estou convencida de que sou a última mulher no mundo capaz de fazê-lo feliz‖ (trad. Alexandre de Souza, p.220). 434 ―Só estou resolvida a agir do modo pelo qual, na minha opinião, possa constituir minha felicidade, sem relação com a senhora ou qualquer outra pessoa inteiramente estranha a mim‖ (trad. Alexandre de Souza, p.496). 435 ―Eu não me sentiria tentada a aceitar sua proposta mesmo que o senhor a fizesse de qualquer outra maneira‖ (trad. Alexandre de Souza, p.317).

283 romance como uma pessoa orgulhosa por pertencer a uma classe social superior e com uma grande incapacidade de se fazer agradável às pessoas que não considera dignas de sua convivência. Esses seus defeitos, como afirma Claudia Johnson, questionam não a existência da classe conservadora e detentora de terra a qual Darcy pertence, mas sim seu direito de comandar a todos como era defendido pelos moralistas da época. Mesmo com todas as ofensas proferidas por ele em seu primeiro pedido de casamento, por exemplo, Darcy não tinha dúvidas de que Elizabeth aceitaria se casar com ele. A recusa dela mostra então um ponto forte do livro que diz que, mesmo pertencendo a uma família inferior à dele, Elizabeth tem o direito de ser tratada com respeito como qualquer pessoa da aristocracia inglesa. E a mudança que se opera em Darcy, ou seja, a forma como Austen colocou de forma indireta a possibilidade de a alta classe possuir defeitos e ter a necessidade de se corrigir, é um dos pontos que escapam continuamente a quem lê o livro com um conto de fadas. Como afirma Claudia Johnson: Para alguns, O&P tem uma qualidade marcada de contos de fada, a qual, ainda que seja responsável por grande parte do sucesso duradouro da obra, é politicamente suspeita. (...) O seu final feliz é uma ―solução estética‖ que realmente não aborda os ―problemas sociais‖ que o romance em si revela, e até esconde a sua profundidade. (...) Imaginar versões da autoridade que respondem a críticas e são capazes de transformação não é necessariamente uma ―fuga‖ de problemas urgentes para dentro do ―romance‖ e uma maneira de se acomodar com um ―consolo da forma‖ politicamente irresponsável o qual nos oferece uma terra da fantasia e abandona as estruturas do ―mundo real‖ como eram. (...) A decisão de Austen aqui de engajar seus antagonistas excepcionalmente argumentativos em debates diretos, extensos e de melhoria mútua pode ser também vista como um passo em direção a, e não uma evasão de, um comentário político construtivo. (JOHNSON, 1990, p.74 – tradução e grifos meus)

Johnson admite que, de certa forma, O&P é uma novela conciliatória, permitindo ao final – com a entrada triunfante de Elizabeth na alta classe a que Darcy pertencia – que essa mesma classe saísse relativamente intocada. Relativamente porque, como explica Michael Kramp, os romances de Austen sugerem que a Inglaterra, especialmente após a Revolução Francesa, não tem mais condições de se apoiar no modelo de homem defendido por Edward Burke, aquele que, como Darcy, tem orgulho de sua linhagem aristocrata, que é viril, bem-educado, responsável e honrado e consciente de seu próprio papel de autoridade. Nós vemos em Mansfield Park, Emma e Persuasion que esses grandes cavalheiros e os ideais que eles representam estão envelhecendo mas, afirma Kramp, enquanto esse declínio do homem da aristocracia e seus princípios Burkeanos não é aparente em O&P, o romance acentua o status singular de Darcy, e seu casamento com Elizabeth na verdade garante que o Mr. Darcy da próxima geração não vai mais ter essa descendência aristocrata (Kramp, 2007,

284 p.74). Não é à toa então que Lady Catherine exclama ―Heaven and earth!—of what are you thinking? Are the shades of Pemberley to be thus polluted?"436 (O&P, p.396). Ao mesmo tempo, a imagem de perfeição dessa aristocracia, vista como responsável por garantir a continuidade da Inglaterra, é destruída pelo orgulho ofensivo de Lady Catherine – e quase por Darcy – e até mesmo pela quase sedução de sua irmã Georgiana por Wickham. Enquanto isso, os homens com associações ao comércio, como Mr. Bingley e Mr. Gardiner, são representados como bem-educados e polidos – Mr. Darcy até se confundiu e pensou que os Gardiner eram ―people of fashion‖437 (O&P, p.282). Kramp afirma que O&P apresenta a forma como a Inglaterra está se abrindo para novas classes através, por exemplo, da relação de Darcy com Bingley, a qual sugere que a separação entre o dinheiro novo e o antigo está encolhendo, e a sua colaboração com Mr. Gardiner demonstra um grau surpreendente de cooperação entre a aristocracia e os comerciantes (Kramp, 2007, p.76). Mas não foi um processo simples. No início, Darcy defende claramente que, para as irmãs Bennet, ter um tio comerciante que morava em Cheapside era um problema que afetava as chances de um bom casamento, e, claramente, ele só poderia ter a amizade com Mr. Bingley porque este último não estava mais envolvido em comércio. Foi a recusa de Elizabeth que ensinou a Darcy a necessidade de rever seus valores. Em última instância, conclui Kramp, O romance de Austen reflete uma crise cultural importante do período pós- Revolução: grandes homens de ancestralidade aristocrática pura, assim como a tradição aristocrata em si mesma, estão atrofiando, e a Inglaterra deve agora coletar uma contribuição cívica importante de comerciantes como Bingley e Gardiner – homens que demonstraram ter uma grande ambição para melhoria social e pessoal. Eles nunca se tornarão o lendário amante romântico, e não são capazes de ressuscitar linhas ancestrais antigas, mas eles incorporam um espírito de progresso e melhoramento que comanda a modernização do Estado inglês. (KRAMP, 2007, p.88, tradução minha) Contudo, é importante deixar claro também que, se por um lado o romance mostra Darcy descobrindo que seu status social não significa necessariamente superioridade moral, de outro lado, aponta Nancy Armstrong, ele mostra Elizabeth descobrindo as muitas obrigações que carregam um homem na posição de Darcy na qualidade de dono de terras nas quais vivem muitas famílias, como guardião de sua irmã, e como patrão para muitos empregados domésticos, o que a ensina a respeitá-lo muito mais do que o seu status em si. Logo, Armstrong conclui, O&P ao mesmo tempo questiona a base da superioridade de classe e ensina ao leitor como transformar meros sinais de ranque em uma forma de autoexpressão que melhora os dois lados que entram nessa troca e, ao aumentar o seu valor como indivíduos,

436 ―Por tudo o que é mais sagrado – o que você tem na cabeça? As sombras de Pemberley serão assim maculadas?‖ (trad. Alexandre de Souza, p.496). 437 ―pessoas da elite‖ (trad. minha).

285 o romance aumenta o valor em potencial dos indivíduos de uma forma geral (Armstrong, 2005, p.48). A leitura de O&P que foca somente no desenvolvimento do sentimento e da relação amorosa entre Elizabeth e Darcy passa por cima não só de todos esses questionamentos da sociedade da época de Austen como do desenvolvimento apontado por Armstrong nas duas personagens como indivíduos, e acabam por transformar o romance em uma história rasa. Uma outra forma de percebermos a forma como Austen critica o lugar da mulher em sua sociedade é exatamente removendo o foco do relacionamento entre Darcy e Elizabeth e voltá-lo para Lydia Bennet, a sua irmã mais nova. Lydia é retratada como uma menina de quinze anos mimada por sua mãe indulgente e ignorada por seu pai negligente, tornando-se fútil e interessada somente em flertes com os oficiais do exército britânico. No fim da história, porém, a sua inocência combinada com uma grande tolice (aquela já conhecida ausência de uma ―strong mind‖) acaba fazendo com que ela fuja para Londres com Mr. Wickham, o grande inimigo de Darcy, e viva com ele sem estarem casados – ou seja, fica entendido que ela permitiu relações sexuais – por mais de quinze dias. A solução mais aceitável para toda essa situação é que ela se case com Wickham – da parte dele, de forma forçada – e ambos vão morar em Newcastle, uma região ao norte da Inglaterra longe o suficiente para garantir a paz de todos por pelo menos um bom tempo. O leitor atual também fica satisfeito porque Lydia, que gerou problemas desde o começo da história, parece receber um castigo pelo o que ela própria construiu já que é obvio que seu casamento não vai ser feliz. Contudo, há um outro lado pouco explorado a respeito dessa personagem. Suas atitudes podem ser vistas como resultado de uma educação deficiente e de uma mãe ignorante – resultado da mesma educação deficiente, pois ambas foram ensinadas a se importar somente com futilidades, como suas roupas e chapéus, e a pensar que conquistar um marido é o objetivo final de suas vidas. Mr. Bennet, como afirma Steiner, é retratado como um amante dos livros, e seria lógico esperar que ele assumisse algum papel ativo na educação de suas filhas, mas, ao contrário, elas são forçadas a depender do temperamento incerto, pouca educação e bom senso ausente de Mrs. Bennet (Steiner, 2012, p.99). É até um milagre que Elizabeth e sua irmã mais velha Jane sejam dotadas de muito bom senso Lydia, ao contrário, considera seu papel como mulher aquele de amar os homens, ou pelo menos de encontrar um marido. Austen já tinha parodiado essa ideia em seus escritos de juventude e a retoma em seus romances com muita força para mostrar as consequências de uma educação limitada e, ao mesmo tempo, muito sentimental oferecida às mulheres. Como afirmam Gilbert e Gubar, Austen desmitificou a literatura que ela mesma lera para ilustrar

286 como esse tipo de ficção contribuía para o enfraquecimento das mulheres, pois até mesmo quando ela dramatiza a sua própria alienação de uma sociedade da qual não consegue sair, ela subverte as convenções da ficção popular para descrever a vulnerabilidade solitária da vida das jovens que, mesmo se mais mundanas, são tão frustradas quanto aquelas sobre quem elas leem de maneira obsessiva (Gilbert e Gubar, 2000, p.121). Se retomarmos a questão do perigo da literatura para as mulheres discutido no capítulo anterior, devemos lembrar que até uma obra como The Female Quixote, de Charlotte Lennox, que abordou os erros de Arabella ao pensar que os romances sentimentais eram ―pictures of life‖, ainda assim a sua autora registra a deficiência na educação de sua heroìna que a deixou exposta para esse tipo de ―perigo‖ ao mostrar como ela fora criada isolada do mundo, confinada à propriedade de seu pai, sem ninguém para conversar a não ser ele mesmo, que ainda sofria de melancolia, ou suas empregadas (ver citação p.132). A questão, portanto, não é a natureza subversiva do gênero do romance, mas a fragilidade da mente feminina treinada apenas para exibir seus talentos – bordado, pintura, música – sem qualquer tipo de educação séria. Em Persuasão, isso fica claro quando Anne Elliot afirma para Captain Harville que, para as mulheres, é mais difícil esquecer um amor do que para os homens por conta da vida isolada à qual elas são forçadas (ver página 96). O diálogo continua assim: "But let me observe that all histories are against you--all stories, prose and verse. If I had such a memory as Benwick, I could bring you fifty quotations in a moment on my side the argument, and I do not think I ever opened a book in my life which had not something to say upon woman's inconstancy. Songs and proverbs, all talk of woman's fickleness. But perhaps you will say, these were all written by men." "Perhaps I shall. Yes, yes, if you please, no reference to examples in books. Men have had every advantage of us in telling their own story. Education has been theirs in so much higher a degree; the pen has been in their hands. I will not allow books to prove anything."438 (P, p.254-255)

Anne Elliot dispensa, portanto, qualquer referência sobre mulheres na literatura porque, afinal, a caneta não estava com frequência nas mãos delas, mas nas mãos dos homens, da mesma forma como elas não receberam a mesma educação que eles, nem mesmo as mulheres ricas, como observa Clara Tuite (2002, p.187), pois em Sanditon, a personagem de Lady Denham, com todo o seu dinheiro e status social, infelizmente ―had been (...) born to

438 ―‗Mas deixe-me observar que todas as histórias estão contra você – todas as histórias, prosa e verso. Se eu tivesse uma memória como a de Benwick, eu poderia trazer cinquenta citações em um momento para apoiar meu argumento, e eu não acho que eu nunca abri um livro na minha vida o qual não tinha algo a dizer sobre a inconstância das mulheres. Músicas e provérbios, todos falam de sua instabilidade. Mas talvez, como você diz, eles foram escritos todos por homens.‘ ‗Talvez eu diga. Sim, sim, por favor, nenhuma referência a exemplos em livros. Os homens sempre tiveram todas as vantagens a nossa frente de contar a sua própria história. Educação sempre foi deles em um grau muito mais elevado, a pena sempre esteve em suas mãos. Eu não vou permitir que livros provem coisa alguma‘‖ (tradução minha).

287 wealth but not to Education‖439 (LM, p.151). Trata-se, portanto, de uma questão de gênero e não de situação financeira. Por exemplo, enquanto o comportamento grosseiro de Lydia e de Mrs. Bennet é criticado em O&P, ao mesmo tempo ele escancara o que Gabriela Castellanos chama de a vulgaridade do processo em si de ―conquistar maridos‖ e do qual não há escapatória: mesmo a atenta Miss Bingley, por exemplo, nunca iria cometar as gafes de Mrs Bennet, porém a sua perseguição incansável a Mr. Darcy é tão mercenária quanto a de qualquer outra ―caçadora de marido‖ (Castellanos, 1994, p.124). Para Castellanos, a conduta tola de Mrs. Bennet e Lydia serve como um espelho que revela uma ideologia aceita por todos, e, ao final, ela argumenta que a atitude do romance para com essas mulheres que perturbam é ambivalente porque elas são apresentadas como produtos distorcidos de uma educação errônea dada às mulheres, e como tais são constrastadas com Jane e Elizabeth em termos morais e de bom senso para agirem como subversoras de uma ordem social inimiga das mulheres de uma forma geral (Castellanos, 1994, p.128). Obviamente, nenhum dos argumentos acima pode ser usado para transformar Lydia em uma personagem inocente dos problemas que causa. Como observa Auerbach, na comparação entre Lydia e Elizabeth, ambas são descritas como audaciosas, livres e divertidas, mas uma deve ser admirada, outra censurada (Auerbach, 2004, p.141), o que indica que um espírito vivo, jovial e corajoso que desafia autoridades não é suficiente, ele deve ser governado por uma mente educada, um coração generoso e uma consciência moral (idem, p.137). Nas palavras de Claudia Johnson, Lydia é uma isca que atrai a nossa censura que poderia recair sob Elizabeth se ela não existisse (Johnson, 1993, pp.76-77) e, portanto, conclui Auerbach, Os leitores de Austen podem aceitar a impertinência, a fuga das convenções, a impropriedade e a violação dos padrões dos livros de conduta por parte de Elizabeth porque, comparada a Lydia, ela parece ter uma feminilidade controlada e virtuosa. Nós vemos que Elizabeth, apesar de suas anáguas sujas de lama, sua autoconfiança e amor pela risada, tem tanto razão quanto sentimento, qualidades que faltam infelizmente em Lydia, tola, egoísta e absolutamente descontrolada. (AUERBACH, 2004, p.141, tradução minha)

A questão da educação das mulheres em Austen, portanto, é muito complexa. Por um lado, vimos como ela escancara a diferença entre a formação oferecida para meninos e meninas e as suas consequências. Por outro lado, é possível igualmente perceber que, nas palavras de Janet Todd, Austen também não compartilha de todas as ideias de Wollstonecraft, por exemplo, que propõe uma educação mais rigorosa para jovens, e desconfia dessa visão de que a estudo formal e um ambiente saudável, calmo e natural poderia determinar o

439 ―tinha nascido para a riqueza mas não para a educação‖ (tradução minha).

288 desenvolvimento do caráter e produzir um paraíso terrestre (Todd, 2015, p.25). Como exemplo, Todd lembra as irmãs Maria e Julia Bertram, em Mansfield Park, que conheciam todo o mapa da Europa, os principais rios da Rússia, recitavam em ordem cronológica reis ingleses e imperadores romanos, além de mitologia grega e filósofos importantes, mas não tinham nenhum princípio e senso de dever, enquanto que Elizabeth tem ambos apesar de sua mãe tola e de nunca ter tido uma preceptora (idem). Assim como a força moral de Fanny Price mostra, em MP, que somente educação não é garantia na formação do caráter do indivíduo – suas primas afirmavam constantemente quando crianças: ―But, aunt, she is really so very ignorant!‖440 (MP, p.20) – em O&P nós vemos o efeito do tratamento oposto, pois, como explica Elizabeth, apesar de nunca terem tido nenhuma preceptora exclusiva em casa, ―such of us as wished to learn, never wanted the means. We were always encouraged to read, and had all the masters that were necessary. Those who chose to be idle, certainly might"441 (O&P, p.186). Fica implícito, então, que Elizabeth demonstrou esse desejo por livros, enquanto a Lydia foi dada a liberdade de nem se aproximar deles e se tornar essa menina tola. O resultado é que, ao contrário de Elizabeth, Lydia não evidencia nenhum desenvolvimento durante a narrativa do romance, e ao final, quando retorna casada de sua aventura que quase arruinou sua família, não demonstra nenhuma vergonha e é incapaz até de perceber os erros de sua atitude: ―Lydia was Lydia still; untamed, unabashed, wild, noisy, and fearless‖442 (O&P, p.348). Ainda mais grave é o fato de que a situação de Lydia era potencialmente desastrosa porque fica claro que Wickham foi subornado e coagido a se casar com ela, e se Darcy não tivesse interferido na situação, observa Castellanos, Lydia provavelmente teria sido abandonada eventualmente e forçada ou a se prostituir ou a retornar para a sua família e viver isolada em alguma fazenda distante (Catellanos, 1994, p.127). Os destinos das duas Elizas em R&S e de Maria Rushworth em MP mostram a realidade por trás dessa história, e Lydia é ainda mais tola porque não consegue enxergar o real perigo que pairava sobre ela. Enquanto as duas Elizas são abandonadas pelos seus sedutores, e Maria é obrigada a viver isolada enquanto Mr. Crawford continua sua vida normalmente, Lydia tem a ―sorte‖ de ver o seu amante se tornar seu marido, e sua situação ser ―consertada‖ a tempo de evitar um escândalo maior, para a tristeza da vizinhança: To be sure it would have been more for the advantage of conversation, had Miss Lydia Bennet come upon the town; or, as the happiest alternative, been secluded

440 ―Mas, tia, ela é realmente tão ignorante!‖ (tradução minha). 441 ―àquelas dentre nós que quiseram estudar nunca faltaram os meios. Sempre fomos estimuladas a ler, e tivemos todas as aulas necessárias. Quem preferiu não estudar certamente também pode‖ (trad. Alexandre de Souza, p.286). 442 ―Lydia continuava a mesma Lydia; indócil, despudorada, fogosa, ruidosa e destemida‖ (trad. Alexandre de Souza, p.449).

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from the world, in some distant farm house. But there was much to be talked of, in marrying her; and the good-natured wishes for her well-doing, which had proceeded before, from all the spiteful old ladies in Meryton, lost but little of their spirit in this change of circumstances, because with such an husband, her misery was considered certain.443 (O&P, p.341-342)

É interessante observar ainda que, com essa conclusão, Austen recusa mais uma convenção da ficção sentimental. Janet Todd nos mostra como, a exemplo de Pamela e Clarissa, o duplo padrão de comportamento esperado de homens e mulheres em relação a sua virgindade era aceito sem questionamentos. Uma mulher boa e pura que tenha perdido a sua virtude deve morrer, como Clarissa, ou se arrepender de suas ações para o resto de sua vida, e uma mulher de má índole, nessa mesma situação, torna-se necessariamente uma prostituta. Mas, continua Todd, um homem ―pecador‖ pode seguir em frente, como Mr. B, e se tornar o marido da dama mais virtuosa e chamado por ela de o melhor dos homens. Essa norma dupla, que exige um nível maior de comportamento adequado da mulher, é apresentada em Richardson não só como um poder social maior do homem, mas como uma (esperada) superioridade moral da mulher (Todd, 1986, p.81). Trata-se de uma imagem descartada por Austen ao realizar o casamento de Lydia e Wickham, ―salvando‖ a honra da primeira sem a necessidade de uma morte gloriosa e, definitivamente, sem qualquer tipo de demonstração de arrependimento por parte de ambos. Ao invés de ser, portanto, mais um relato sentimental da jovem inocente raptada pelo vilão malvado, o caso de Lydia é um exemplo de como Austen retrata a forma em que a inutilidade da vida a que as mulheres tinham direito dentro dessa sociedade patriarcal torna-se responsável pela produção das meninas tolas e de comportamento chocante que a mesma sociedade patriarcal se esforçava por condenar. E Lydia acaba tendo um final nem feliz nem trágico, mas totalmente aceitável e perfeitamente normal, já que casamentos felizes são a exceção e não a regra na obra de Austen: As for Wickham and Lydia, their characters suffered no revolution from the marriage of her sisters. (…) Their manner of living, even when the restoration of peace dismissed them to a home, was unsettled in the extreme. They were always moving from place to place in quest of a cheap situation, and always spending more than they ought. His affection for her soon sunk into indifference; her's lasted a little longer; and in spite of her youth and her manners, she retained all the claims to reputation which her marriage had given her. Though Darcy could never receive him at Pemberley, yet, for Elizabeth's sake, he assisted him farther in his profession. Lydia was occasionally a visitor there, when her husband was gone to enjoy himself in London or Bath; and with the Bingleys they both of them

443 ―Seguramente as conversas teriam rendido mais se a senhorita Lydia Bennet tivesse caìdo na vida na cidade; ou, na variante mais feliz, houvesse sido afastada do mundo em alguma casa suspeita no campo. Mas ainda assim havia muito o que falar do casamento, e os votos bonachões de parabéns pelo bom passo, que as velhas senhoras de Meryton antes desejavam com malícia, perderam pouco entusiasmo com a mudança das circunstâncias, pois com um marido daqueles seu sofrimento era tido como coisa certa‖ (trad. Alexandre de Souza, p.443).

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frequently staid so long, that even Bingley's good humour was overcome, and he proceeded so far as to talk of giving them a hint to be gone.444 (O&P, p.428-429)

Toda a análise desenvolvida até agora nesta segunda parte sustenta o argumento de que Austen tinha uma percepção aguda a respeito do lugar da mulher em sua sociedade e não se furtou em registrar o seu descontamento em seus romances. Isso não quer dizer, no entanto, que considero adequado o rótulo de ―proto-feminista‖ frequentemente associado à autora, principalmente quando comparamos a postura irônica de sua escrita com o tom panfletário das primeiras feministas da época como Mary Wollstonecraft, ainda que haja intersecções entre as suas ideias. Esse rótulo me parece muito mais uma necessidade de classificar a autora de forma teleológica, especialmente depois de décadas de luta do movimento feminista que busca também, por que não, estabelecer origens especiais. Contudo, é inegável que Elizabeth é uma heroína que desafia, até certo ponto, os deveres da mulher no século XIX, e por isso é interessante passarmos agora para a forma como essa personagem é reconstruída nas continuações e variações atuais, escritas em um mundo que já passou por diferentes momentos do feminismo. De uma forma geral, observei que essas histórias oscilam entre apreciar e aumentar o ―proto-feminismo‖ de Austen, projetado em Elizabeth e transformando-a em uma mulher moderna, e destacar a sua fragilidade como mulher indefesa que precisa ser resgatada pelo herói. A partir do ponto de vista da teoria de gênero, devemos entender tanto a masculinidade retratada para Darcy quanto a feminilidade de Elizabeth como uma construção, dentro das continuações de O&P, do que significa, para seus autores, ser um homem e ser uma mulher perfeitos ou ideais. É por isso que, desde a obra fundamental de Judith Butler, Gender Trouble (1990), nós devemos entender gênero como performance, e a diferenciação entre masculino e feminino – aqui entre Darcy e Elizabeth – como uma ―estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser‖ (Butler, 2016, p.69). Isto é importante porque, como observa Rhiannon Bury (2005, p.8), a diferenciação entre homem e mulher não é só uma diferenciação física,

444 ―Quanto a Wickham e Lydia, o caráter de ambos não sofreu nenhuma revolução com o casamento das irmãs. (...) O modo de vida dos dois, mesmo depois que a restauração da paz permitiu que fossem para uma casa, era instável ao extremo. Estavam sempre mudando de lugar em lugar atrás de algo mais barato, e sempre gastando mais do que deviam. O afeto que ele tinha por ela logo afundou na indiferença; o dela por ele durou um pouco mais; e apesar da juventude e dos modos dela, ainda conservou a reputação que o casamento lhe dera. Embora Darcy jamais pudesse recebê-lo em Pemberley, por Elizabeth ele viria a ajudá-lo ainda mais na profissão. Lydia eventualmente visitava a irmã, quando Wickham ia passar algum tempo em Londres ou em Bath; e quanto aos Bingleys, ambos iam visitá-los com frequência e ficavam tanto tempo que superava até mesmo o bom humor de Bingley, que chegava a falar em sugerir que fossem embora‖ (trad. Alexandre de Souza, p.531 com alterações minhas).

291 que produz os corpos masculinos e femininos, mas também uma forma de invenção de uma identidade linguística de gênero dentro do texto – no caso da análise de Bury, dentro do universo online da fanfic –, no sentido de que as pessoas ―só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade do gênero‖ (Butler, 2016, p.42). A trilogia de Pamela Aidan, A novel of Fitzwilliam Darcy, gentleman, é um primeiro exemplo da oscilação na construção de Elizabeth a partir de duas concepções diferentes do que é ser mulher hoje que influenciam a forma como essa personagem é textualmente ―gendered‖, ou generificada. Para iniciar, então, com uma definição, devemos voltar ao diálogo de O&P em que Caroline Bingley, a antítese e rival de Elizabeth, tenta definir as características de uma mulher verdadeiramente talentosa. Ela diz: ‗A woman must have a thorough knowledge of music, singing, drawing, dancing, and the modern languages, to deserve the Word; and besides all this, she must possess a certain something in her air and manner of walking, the tone of her voice, her address and expressions, or the word [accomplished] will be but half-deserved.‘ ‗All this she must possess‘, added Darcy, ‗and to all this she must yet add something more substantial, in the improvement of her mind by extensive reading.‘445 (O&P, p.43)

Nessa passagem, Austen está fazendo uma pequena piada com Miss Bingley, que se esforça sempre para concordar com Mr. Darcy para atrair a sua atenção, e também com a própria ideia das exigências feitas às mulheres. Nas palavras de Elizabeth Bennet, ouvimos um certo eco da autora quando ela diz ―I never saw such a woman‖446 (O&P, p.33). No entanto, ao longo de toda a leitura dos três volumes de Aidan, encontramos reiteradas descrições de Elizabeth feitas por Darcy que parecem colocá-la exatamente como essa mulher perfeita. Além do uso incansável de termos como ―charming‖, ―with grace‖, ―lightly‖, ―entincingly‖ para caracterizar as mais simples ações de Elizabeth como andar, tocar piano, beber vinho – que servem para indicar que ela possuìa ―something in her air and manner‖ – , algumas passagens parecem se referir ao discurso de Caroline Bingley de forma mais direta, como o excerto a seguir: He [Darcy] would have to exercise better care over his wandering attention. No, not wondering, he corrected himself. His problem was the reverse; it was so very focused... and entirely upon Elizabeth. Her face, her figure, her hair, the way her voice trilled up and down the scale so enchantingly, the delicacy of her hands as her

445 Uma mulher deve ter um amplo conhecimento da música, do canto, do desenho e das línguas modernas para merecer tal qualificação; e, além de tudo isso, deve possuir certo quê em seu comportamento, seu modo de andar, seu tom de voz, sua entonação e suas expressões, ou o adjetivo só valerá pela metade.‘ ‗Deve possuir tudo isso‘, acrescentou Darcy, ‗e a tudo isso deve acrescentar algo mais substancial, o aperfeiçoamento de suas qualidades intelectuais por meio de muita leitura‘‖ (trad. Alexandre de Souza, p.144). 446 ―Nunca vi uma mulher assim‖ (trad.Alexandre de Souza, p.144).

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sure fingers bent to her needlework. He dared not even consider her eyes and those lips.447 (AIDAN, 2007, p.77)

Darcy está hipnotizado pelas características de Elizabeth – corpo, rosto, cabelo, voz, movimento das mãos, olhos e lábios. E a toda essa perfeição sabemos, já no primeiro livro de Aidan, que Elizabeth adiciona algo mais substancial pelo seu gosto pela leitura, em especial Paradise Lost, de John Milton, o qual, curiosamente, é ―a epopeia do casamento conjugal‖, nas palavras do crìtico Ian Watt (2010, p.147), e também o livro preferido do pai de Mr. Darcy, que parece ter tido nessa adaptação um casamento perfeito e feliz. A ironia de Austen ao mostrar o lugar esperado da mulher naquela sociedade como um adereço, uma peça de decoração, passa despercebida por Aidan, que parece tomar aquela passagem ao pé da letra, e não há como não se exasperar frente a uma descrição da beleza de uma mulher enquanto costura! Aidan, portanto, falha ao não enxergar o tom crítico de Austen e reproduzir como um ―ponto positivo‖ de Elizabeth o que já era condenado por várias escritoras daquela época. Como observa Janet Todd, essa questão aparece, curiosamente, nas obras mais conservadoras, como de Hannah More e Jane West, às mais liberais como de Elizabeth Inchbald e Maria Edgeworth, e até as mais radicais como Wollstonecraft e Mary Hays: esse treino empobrecedor em habilidades (dança, desenho, música, bordado) ensinado para as jovens das classes média e alta por preceptoras e internatos que tinha como único objetivo conquistar um marido adequado (Todd, 2015, p.24). Elizabeth ainda é elogiada por sua preocupação com crianças, algo que ―toca‖ os sentimentos de Darcy, e adiciona às qualidades dela um instinto maternal latente. Pamela Aidan reforça também alguns estereótipos sobre os espaços masculinos e femininos na época. Na passagem a seguir, a autora relata as impressões de Darcy após um jantar, ao sair da sala em que os homens fumavam para se juntar às mulheres na sala de estar. The short distance down the hall from the room the gentlemen were quitting to the one they were entering seemed (...) a journey between worlds. The card room had exuded the familiar atmosphere of masculine society: the aroma of brandy and pipe smoke (...). Understandings were reached, bargains struck, and connections made that would assure the Peace and prosperity of the region for some time to come. The world into which they were entering glowed in a myriad of candles, flowered wallpapers, and the sweet scent of tea and sherry. All bespoke a female society, whose unwritten rules and unpredictable behavior had never ceased to cause Darcy consternation.448 (AIDAN, 2006a, pp.50-51)

447 ―Ele [Darcy] teria que exercitar um controle melhor sobre sua atenção oscilante. Não, não oscilante, ele se corrigiu. O seu problema era o contrário, é que estava muito focada... e totalmente em Elizabeth. O seu rosto, corpo, cabelo, a forma como sua voz subia e descia uma escala tão encantadoramente, a delicadeza de suas mãos conforme seus dedos seguros faziam seu bordado. Ele não arriscava nem considerar seus olhos e aqueles lábios‖ (tradução minha). 448 ―A curta distância do corredor entre o cômodo do qual os homens estavam saindo para aquele em que eles estavam entrando parecia uma jornada entre mundos. O salão de jogos exalava a atmosfera familiar da sociedade

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Na sala dos homens, então, havia conversa racional, negociações políticas, assuntos sérios. Na sala das mulheres, apenas comportamentos imprevisíveis e artes de sedução para se conquistar maridos. A descrição de Aidan parece muito semelhante à ideologia patriarcal das esferas separadas, a qual, segundo Anne Mellor, condenava as mulheres ao espaço doméstico ao mesmo tempo em que impedia a sua participação no espaço público e negava a possibilidade de um meio termo (Mellor, 1994, p.331). Para Steiner, os romances de Austen defendem a igualdade entre os gêneros e o fim dessas esferas separadas ao retratar o ambiente doméstico, habitado tanto por homens quanto mulheres, como cenário para questões que destroem a própria divisão entre público e privado. Em suas palavras, como esses romances debatem ideologias diferentes e publicamente polêmicas através da atuação das relações familiares, eles conectam essas esferas, supostamente separadas, do público e do privado (Steiner, 2012, p.24). Ou seja, assuntos ditos privados, como um casamento, podem ser altamente políticos, como vimos no caso da união de Darcy e Elizabeth, já que a família era vista como a base da nação. Aidan, portanto, poderia estar tentando reproduzir apenas o que seria a opinião de um homem conservador da época, porém acaba reforçando uma imagem sobre os papéis dos homens e das mulheres naquela sociedade que o próprio brilhantismo de Austen, a quem ela quer copiar, já seria o suficiente para questionar. Ao mesmo tempo, ao longo de sua obra há uma reiteração da coragem de Elizabeth de dizer o que pensa, de enfrentar as ofensas recebidas, inclusive de recusar a primeira proposta de casamento de Darcy, algo que nenhuma outra mulher faria e que faz com que Darcy a admire ainda mais, como no diálogo abaixo entre Darcy e Bingley: ‗A proposal! This is wonderful, Darcy! Why, of course she will accept you... what woman in England would not?‘ ‗Oh, such a one exists, I assure you. This was not my first proposal.‘ Darcy looked at his friend‘s surprised countenance. ‗The misunderstanding I spoke of last spring…‘ Bingley sucked in his breath. ‗Incredible! Elizabeth?‖ ‗Is she not?‘ A note of pleasure sounded in his voice. (...) ‗She sent me packing without ceremony, Charles.‘449 (AIDAN, 2007, p.427).

A Elizabeth de Aidan torna-se então uma mistura interessante da mulher doméstica perfeita com o que é esperado da mulher moderna, que mantém a sua masculina: o aroma de brandy e fumaça de cachimbo. Entendimentos eram atingidos, barganhas realizadas e conexões feitas que iriam assegurar a paz e a prosperidade na região por algum tempo. O mundo em que eles estavam entrando brilhava com uma miríade de velas, papeis de parede floridos e o doce perfume de chá e xerez. Tudo indicava uma sociedade feminina, aquelas regras não escritas e comportamento imprevisível nunca pararam de consternar Darcy‖ (tradução minha). 449 ―‗Um pedido de casamento! Isso é maravilhoso, Darcy. Como, claro que ela vai aceitar... que mulher na Inglaterra não aceitaria?‘ ‗Oh, tal mulher existe, eu te asseguro. Esse não foi o meu primeiro pedido‘. Darcy olhou para a feição surpresa de seu amigo. ‗O desentendimento sobre o qual eu mencionei na primavera passada...‘ Bingley respirou fundo. ‗Inacreditável! Elizabeth.‘ ‗Não é?‘ Uma nota de prazer ressoava em sua voz. ‗Ela me mandou embora sem cerimônias, Charles‘‖ (tradução minha).

294 independência, que rejeita um pedido de casamento extremamente favorável sem qualquer cerimônia porque o homem em questão ainda não era digno dela, que faz o que nenhuma outra mulher na Inglaterra faria: rejeitar Mr. Darcy. Essa Elizabeth moderna vai reaparecer com certa frequência em outras continuações e variações, geralmente dando voz àquela imagem de uma Austen proto- feminista. Em Master of Pemberley, de Jane Grix, por exemplo, Elizabeth questiona a opinião de Darcy usando argumentos de Wollstonecraft (chamada, no trecho, de Mrs. Godwin): Her dark eyes flashed with annoyance. ―So you think women are nothing more than pretty baubles.‖ ―I did not say that. I believe that both men and women have a responsibility to improve themselves.‖ ―But you must admit that women are not given the same opportunities as men.‖ He frowned. ―It sounds as if you have read Mrs. Godwin.‖ ―You disapprove?‖ ―She was an immoral woman.‖ ―Yes, but she made some persuasive arguments.‖ ―I believe a person‘s character must be judged along with their beliefs.‖ ―Perhaps,‖ she acknowledged. ―But none of us, even the brilliant and famous are without flaw. Consider Rousseau. He abandoned his own children. I find that morally reprehensible, but that does not mean I cannot benefit from his wisdom.‖450 (GRIX, 2015, posição Kindle 421-429)

Na verdade, Mary Wollstonecraft é citada com frequência quando as mulheres de O&P necessitam discutir questões de gênero. Dentro de uma tendência muito forte de corrigir os defeitos de todas as personagens de uma forma geral, nesse quesito em especial Mary Bennet é a que mais se ―beneficia‖ com o contato com a obra de Wollstonecraft, como na passagem de Deborah Ann Kauer: ―She [Elizabeth] had actually been very surprised and pleased with the change in Mary. No longer did Mary preach to everyone about the right and wrong way to accomplish something, nor did she continually find fault in what others did. Ever since reading Mary Wollstonecraft‘s book, she had become more enlightened and less preachy‖451 (Kauer, 2016, posição Kindle 12300-12303). É importante também que, ainda que Darcy seja surpreendido às vezes pelas opiniões diferentes de Elizabeth, ele nunca deve ser um homem machista. Muito pelo contrário, na maior parte das vezes são as opiniões de Elizabeth, as quais ela jamais hesita em

450 ―Seus olhos escuros brilharam com irritação. ‗Então você acha que as mulheres não são nada mais do que bugigangas bonitas. ‗Eu não disse isso. Eu acredito que tanto o homem quanto a mulher tem uma responsabilidade de se desenvolverem.‘ ‗Mas você deve admitir que para as mulheres não são dadas as mesmas oportunidades que os homens‘ Ele franziu a testa. ‗Parece que você leu Mrs. Godwin‘. ‗Você desaprova?‘ ‗Ela era uma mulher imoral.‘ ‗Sim, mas ela também tinha argumentos persuasivos.‘ ‗Eu acredito que o caráter de uma pessoa deve ser julgado junto com suas crenças‘. ‗Talvez‘, ela concordou, ‗mas nenhum de nós, nem mesmo os mais brilhantes e famosos, é perfeito. Considere Rousseau. Ele abandonou seus próprios filhos. Eu acho isso moralmente repreensivo, mas isso não significa que eu não possa beneficiar de sua sabedoria‘‖ (tradução minha). Um detalhe interessante aqui é que Rousseau era exatamente contra quem Wollstonecraft escrevia ao defender a igualdade na educação entre os gêneros, algo que Jane Grix aparenta desconhecer. 451 ―Ela [Elizabeth] estava até muito surpresa e feliz com as mudanças em Mary. Ela não era mais a Mary que pregava para todos sobre a maneira certa e errada de fazer as coisas, e também não ficava mais procurando os defeitos no que os outros faziam. Desde que lera Mary Wollstonecraft, ela tinha ficado mais esclarecida e menos dada a sermões‖ (tradução minha).

295 enunciar, que faz com que ela se destaque para Darcy. Na passagem a seguir, por exemplo, Elizabeth demonstra seu interesse por questões políticas e, apesar de ser considerado pela sociedade um comportamento ―shocking‖, Darcy o considera admirável: ―‗The Earl of Matlock is a good man.‘ Darcy seemed surprised. ‗You know my uncle?‘ ‗Not personally, but I read my father‘s newspapers whenever I can. Your uncle has supported many good causes in Parliament.‘ Darcy stared at her. She looked away from him. ‗Yes, I know it is shocking that a lady should follow politics.‘ ‗On the contrary. I find it impressive‘‖452 (SOTIS, 2016, posição Kindle 454-459). Contudo, é ainda melhor quando o próprio Darcy também demonstra ter um posicionamento de certa forma feminista, como na cena da troca de votos em seu casamento em Revelations, de Kirsten BijtVuur ―Elizabeth's voice sounds clear in the sizeable church, and she does not promise to obey him, something they have decided on during preparations. She didn't even mind that much, 'It's just words, Fitzwilliam, you know I will not obey you,' she said, causing him to melt on the spot of course, but still he did not want her to say such a demeaning thing‖453 (BijtVuur, 2016, posição 1901-1904). Ainda que existam muitos outros casos como os citados acima, de uma absorção de um conteúdo feminista para tornar uma sociedade absolutamente conservadora e controladora das mulheres em algo mais palatável para o nosso mundo pós-feminismo, a utopia e o saudosismo construído em cima da Inglaterra regencial como o paraíso perdido parece ter mais força, inclusive invertendo a crítica dos papeis de gênero e valorizando um contexto em que a mulher deveria, sim, ser protegida pelo homem. Em Pride and Persistence, Mr. Darcy explica para Elizabeth que: By now you should know that ladies are held to much higher standards than gentlemen. These standards, aimed at preserving the reputation of the lady, provide only further evidence that ladies are held in higher regard. If there ever comes a time in society when a man no longer offers his services to assist a lady into a carriage or bows appropriately to acknowledge his respect, it will be a sad day.454 (Ellsworth, 2014, p. 274)

452 ―‗O conde de Matlock é um bom homem‘. Darcy pareceu surpreso. ‗Você conhece meu tio?‘ ‗Não pessoalmente, mas eu leio os jornais do meu pai sempre que posso. O seu tio apoiou muitas causas boas no Parlamento‘. Darcy olhou fixadamente para ela. Ela desviou o olhar. ‗Sim, eu sei, é chocante que uma dama siga assuntos de polìtica.‘ ‗Ao contrário, eu considero impressionante‘‖ (tradução minha). 453 ―A voz de Elizabeth soava clara na grande igreja, e ela não prometeu obedecê-lo, algo que eles tinham decidido durante os preparativos. Ela nem se importava muito, ‗São apenas palavras, Fitzwilliam, você sabe que eu não vou te obedecer‘, ela disse, fazendo com que ele derretesse ali mesmo, mas ainda assim ele não queria que ela dissesse uma coisa tão humilhante‖ (tradução minha). 454 ―Você já deve saber a essa altura que as damas são tratadas com um padrão muito mais alto que os homens. Esses padrões, voltados para preservar a sua reputação, forneciam evidências extras de que as damas eram tratadas com um cuidado maior. Se houver um dia na sociedade em que um homem não ofereça mais seus serviços para ajudar uma dama a entrar em uma carruagem ou não se curva mais adequadamente para registrar seu respeito, esse será um dia triste‖ (tradução minha).

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Temos, então, uma justificativa para aquele ―double standard‖ no julgamento da conduta do homem e da mulher, aquele que condenou as jovens seduzidas ao isolamento ou prostituição e faz vistas grossas para os seus sedutores, como um indicío de que a mulher era, na verdade, mais valorizada nessa sociedade e, por isso, ela deveria ter um comportamento superior ao do homem. É a partir dessa lógica que a mulher é ressignificada dentro do estereótipo do sexo frágil (mas não submisso) pela grande maioria das continuações, o que explica também porque, nessas obras, o ápice emotivo encorajado pela repetição geralmente ocorre quando Darcy resgata Elizabeth de algum tipo de problema ou perigo e eles são, finalmente, unidos para sempre. Em Rainy Days, de Lory Lilian, Mr. Darcy observa Elizabeth dormir e reflete que ―as strong and courageous as she was, she needed his protection, and he was willing to offer it along with anything else in the world she might need from him‖455 (Lilian, 2009, p.298). Essa fantasia feminina contemporânea de ser salva não transforma Elizabeth em uma donzela indefesa tradicional dos romances sentimentais – ela sempre vai ser ―strong‖ e ―courageous‖, mas, em última instância, é sempre o homem que vai solucionar seus problemas mais graves, até mesmo em ―modern retellings‖ nas quais a Elizabeth dos tempos atuais definitivamente não precisaria enfrentar nenhuma das restrições da sociedade da Elizabeth de Austen. O fato de que as leitoras contemporâneas reconhecem essa fantasia de alguma forma em Orgulho e Preconceito é, para Ashley Tauchert, um dos aspectos que explica o seu sucesso atual (Tauchert, 2005, p.xiii). Apesar de não ter encontrado – ainda – uma continuação em que Elizabeth é trancafiada no alto de uma torre para ser resgatada pelo prìncipe destemido, essa fantasia da ―necessidade de ser salva‖ possibilita que temas recorrentes de contos de fadas sejam sobrepostos a O&P, como em A Dishonorable Offer, the Timothy Underwood: Miss Bingley said brightly to Mr. Phillips, ―It was very kind of you to take in your wife‘s sister and children, and even kinder that you did not throw them out after…well, not every man would continue to keep them.‖ ―I was very kind. Not that they are grateful for it. Mrs. Bennet only complains and complains, and she then gets my wife to nag me for her. I have made Jane and Lizzy less idle and pampered. I stuck them up in the attic and make them help the cook before parties. I never would do that before, with Kitty and Lydia. I said to myself, they are gentlewomen, born and bred. They shouldn‘t have dirty hands, even if it requires me to keep an extra maid. And then ha! Lydia was no gentlewoman. Not at all. I‘m not going to let Lizzy here get away with her laziness. No, not I.‖ Elizabeth peeked a glance at Mr. Darcy who frowned at Mr. Phillips.456 (UNDERWOOD, 2016, posição Kindle 1236- 1244)

455 ―mesmo tão forte e corajosa como era, ela precisava da proteção dele, e ele estava disposto a oferecê-la junto com tudo o mais do mundo que ela pudesse precisar dele‖ (tradução minha). 456 ―Miss Bingley disse alegremente para Mr. Phillips, ‗Foi muito cortês da sua parte abrigar sua cunhada e sobrinhas, e ainda mais gentil que você não as expulsou depois... bom, nem todo homem continuaria a mantê- las.‘ ‗Sim, eu fui muito gentil. Não que elas sejam gratas por isso. Mrs. Bennet só reclama e reclama, e daì faz a minha esposa reclamar por ela comigo. Eu decidi forçar Jane e Lizzy a serem menos ociosas e mimadas. Eu as

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Nessa passagem, tanto Elizabeth quanto sua irmã Jane vivem o papel de Cinderellas, obrigadas a dormir no sótão sujo da casa de seu tio que as usa como empregadas domésticas depois que a morte de seu pai as deixa desprotegidas. Ainda que nessa variação específica de Underwood Mr. Darcy seja um conquistador e não aja como um príncipe inicialmente – na verdade, ele pede a Elizabeth que ela se torne sua amante, daì a ―proposta desonrosa‖ do tìtulo – ao final ele aprende a reconhecer o seu valor e a pede em casamento, combinando a fantasia do resgate com aquela outra fantasia de a mulher domesticar o homem ―selvagem‖. Quando analisamos ―modern retellings‖, fica mais fácil perceber a forma como essa fantasia é entendida pelas leitoras atuais na definição do que seria o relacionamento perfeito. Em First Impressions, por exemplo, a Lizzy moderna explica o seu desejo: ―As for myself, I wished for someone falling in between the range of dependable boyfriends and my mom‘s flames. I wanted the passion and the romance but I also wanted them to last, not gutter out after a few hot couplings. I wanted a partner, someone I could love and respect and who would give me those in return. I wanted it all‖457 (Cruz, 2014, p.47). No final do romance, o final feliz é descrito em termos muito semelhantes:

This was how it was meant to be. This was what I'd been waiting for all my life, this perfect mixture of love and attraction and, dare I say, friendship. Even though I wasn't sure what would happen next, I knew in my heart that what I felt wasn't fleeting, that it wasn't just a bright flame that would gutter out as quickly as it had flared. This was endgame, and I was prepared to follow it to wherever it would lead me458 (Cruz, 2014, p. 240).

Na sua continuação, Second Opinions, problemas surgem quando Darcy não inclui Lizzy na sua vida como um parceiro igualitário da forma como ela imaginava, enquanto que, para ela, Darcy era o centro de tudo, e quando eles estavam separados ―it was like missing a piece of myself, the more vital part, and without it, I was empty, merely a shell. He

coloquei no sótão e faço elas ajudarem na cozinha antes de festas. Eu nunca fiz isso antes, com Kitty e Lydia. Eu disse pra mim mesmo, elas são damas, nascidas e criadas. E então, há! Lydia não era nenhuma dama. De jeito nenhum. E eu não vou deixar a Lizzy continuar com a sua preguiça. Não, eu não vou.‘ Elizabeth olhou de relance para Mr. Darcy que olhava sério para Mr. Phillips‖ (tradução minha). 457 ―Já eu desejava alguém entre o âmbito do namorado confiável e as chamas da minha mãe. Eu queria paixão e romance mas eu também queria que durasse, não queria jogar fora depois de algumas transas quentes. Eu queria um parceiro, alguém que eu pudesse amar e respeitar e que me daria essas mesmas coisas em retorno. Eu queria tudo‖ (tradução minha). 458 ―Isso era o que era pra ser. Isso era aquilo pelo que eu estava esperando toda a minha vida, esse mistura perfeita de amor e atração e, arrisco dizer, amizade. Mesmo se eu não tivesse certeza do que iria acontecer depois, eu sabia no meu coração que o que eu sentia não era passageiro, que não era só uma chama brilhante que iria apagar tão rapidamente quanto tinha sido acendida. Isso era o fim do jogo, e eu estava preparada para segui- lo onde quer que fosse me levar‖ (tradução minha).

298 filled me, both physically and emotionally. He completed me, body and soul‖459 (Cruz, 2016, posição 2684-2686). Dessa forma, o relacionamento para ambos está desequilibrado – Darcy coloca Lizzy nas margens, e Lizzy coloca Darcy no centro de sua vida, sem conseguir manter sua independência. O segundo final feliz de Cruz ocorre quando ambos encontram um reequilíbrio dentro do relacionamento. Já em Eligible, de Curtis Sittenfeld, algo ainda mais inusitado ocorre. Nessa ―modern retelling‖, que faz parte de um projeto maior de convidar grandes escritores para reescreverem todos os romances de Austen em versões modernas460, a personagem Liz é que busca Darcy – é ela quem inicia um relacionamento sexual casual entre os dois, é ela quem pesquisa seu nome no Google para ver se ele é solteiro, e ainda que tenha sido ele, primeiro, a sugerir um namoro (de forma absolutamente arrogante como no pedido de casamento do original), é Liz que busca uma reaproximação e pede por uma segunda chance como se ela fosse a culpada pela separação deles: Liz nodded. She tried to keep her voice steady as she said, ―I‘m old enough to know that sometimes you don‘t get a second chance.‖ ―My darling—‖ Darcy lifted his palm from her arm to her cheek, and she leaned into it; she thought she might weep, and closed her eyes. ―I would—I will—give you as many chances as you need. My feelings for you have never changed. And all the mushy things I was too cowardly to say before, they‘re just as true now. You‘re different from any woman I‘ve ever met. Even when you‘re arguing with me, you‘re easy to be around. And those times you came over to my apartment—those were the most fun I‘ve ever had.‖ She grinned. ―Fitzwilliam Cornelius Darcy, I admire you so much. The work you do, the way you literally save lives, how principled you are—you‘re the most principled person I know. Even if it means you‘re insulting sometimes, you‘re the only person I know, me included, who never lies. And you‘re amazingly smart, and when you‘re not telling harsh truths, you‘re incredibly gracious and kind and decent. I love you, Darcy—I ardently love you. And I want to know—‖ One of them was, or maybe both of them were, shaking; their clasped hands trembled, and inside her chest, her heart thudded. She gazed up at him and said, ―I want to know, will you marry me? Will you do me the honor of becoming my husband?‖461 (SITTENFELD, 2016, p.467-468)

459 ―Era como se estivesse faltando um pedaço de mim mesma, a parte mais vital, e sem ela eu estava vazia, meramente uma concha. Ele me completava, tanto fisicamente quanto emocionalmente. Ele me completava, corpo e alma‖ (tradução minha). 460 O ―Jane Austen Project‖, promovido pela editora HarperCollins, talvez em uma tentativa de institucionalizar a fan fiction, propõe convidar seis escritores renomados para fazerem versões modernas dos romances publicados de Austen. Até o momento, já foram lançadas as versões de Emma (Alexander McCall Smith, 2015), Northanger Abbey (Val McDermid, 2014), Sense and Sensibility (Joana Trollope, 2013) e o mais recente, Pride and Prejudice, de Sittenfeld, 2016, intitulado Eligible. http://www.boroughpress.co.uk/products/eligible/ 461 ―Liz concordou com a cabeça. Ela estava tentando manter sua voz firme enquanto disse: ‗Eu sou velha o suficiente para saber que algumas vezes você não recebe uma segunda chance‘. ‗Minha querida...‘ Darcy ergueu sua mão do seu braço e a colocou no seu rosto, e ela se encostou na sua palma; achou que fosse chorar, e fechou os olhos. ‗Eu daria – eu vou dar – todas as chances que você precisar. Meus sentimentos por você nunca mudaram. Todas aquelas coisas melosas que eu era muito covarde para dizer antes, são tão verdades quanto agora. Você é diferente de todas as mulheres que eu conheci. Mesmo quando você está discutindo comigo, você é uma boa companhia. E aquelas vezes em que você veio para o meu apartamento – aquilo foi a maior diversão que eu já tive.‘ Ela sorriu. ‗Fitzwilliam Cornelius Darcy, eu te admiro muito. O trabalho que você faz, a forma como você literalmente salva vidas, os seus princípios – você é a pessoa de mais princípios que eu já conheci. Mesmo se isso signifique que você insulte as pessoas de vez em quando, você é a única pessoa que eu conheço,

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A cena seria uma representação perfeita da mulher moderna independente. Liz é feminista, inteligente, trabalhadora, e não hesita em pedir o homem que ama em casamento. Quando diz ―I ardently love you‖, a autora inclusive coloca na sua fala a declaração inicial de Mr. Darcy no original. Os papéis são invertidos totalmente, e essa Elizabeth não é uma mulher frágil e indefesa. Contudo, há um gosto residual amargo nessa abordagem, no fato de que esse Darcy, colocado na posição máxima do homem perfeito, não precisa passar por nenhum tipo de desenvolvimento. A verdade ali é que Liz sempre esteve errada e ele fica apenas esperando para que ela reconheça e se arrependa de seus erros. She could see, with a sudden and not entirely welcome clarity, that in Cincinnati, she had cultivated her own rancor toward him; she had made rude and provocative remarks, had searched for offense in his responses, and had relished the slights that may or may not have been delivered. Yet in spite of the culminating acrimony during his confession, he had decided to set aside their ill will. His present behavior wasn‘t a sarcastic impersonation of good manners; it wasn‘t meant to count, technically, as kindness, without containing true warmth; it simply was kindness. He treated his guests, her included, as if he couldn‘t imagine a greater pleasure than spending the evening with them, and in doing so he exacerbated Liz‘s shame about her past pettiness toward him462 (SITTENFELD, 2016, p 329).

Enquanto, no original, o orgulho de uma personagem e o preconceito de outra são responsáveis até certo ponto pelos enganos da trama, na versão de Sittenfeld, os dois ―defeitos‖ pertencem somente a Liz. O alìvio produzido pela recusa dessa autora das fantasias do homem domado e da mulher resgatada não anula, portanto, a desconfiança constante de que esse Darcy, no final das contas, por sua superioridade acaba colocando Liz no papel inferiorizado do qual nenhuma das suas características fortes conseguiu retirá-la. Ela não se ajoelha para pedi-lo em casamento, mas essa parece ser a posição final a que ela é relegada frente a ele. Na tentativa, então, de produzir o homem perfeito e apagar os defeitos do Mr. Darcy original, estes acabam sendo transferidos para Elizabeth. Em A Lesson Hard Learned, the Wendi Sotis, vemos isso claramente quando Elizabeth reflete sobre sua recusa ao primeiro pedido de casamento: eu inclusive, que nunca mente. E você é incrivelmente inteligente, e quando você não está falando verdades duras, você é incrivelmente bondoso e gentil e decente. Eu amo você, Darcy – eu te amo ardentemente. E eu quero saber....‘ Um deles estava, ou talvez os dois, tremendo; as suas mãos juntas tremiam, e dentro do peito dela seu coração batia com força. Ela olhou para ele e disse ‗Eu quero saber, você quer se casar comigo? Você me daria a honra de se tornar meu marido?‘‖ (tradução minha) 462 ―Ela podia ver, com uma claridade repentina e não necessariamente bem-vinda, que em Cincinnati ela tinha cultivado seu próprio rancor contra ele, ela tinha feito comentários rudes e provocadores, tinha procurado por ofensas nas respostas dele, e tinha sentido prazer nos desrespeitos que foram ou não demonstrados. Contudo, apesar da briga depois da confissão dele, ele tinha decido deixar tudo de lado. O seu comportamento presente não era uma atuação sarcástica de boas maneiras, não era feito para contar, tecnicamente, como uma gentileza, sem conter um calor verdadeiro, era simplesmente gentileza. Ele tratava seus hóspedes, ela inclusive, como se ele não imaginasse um prazer maior do que passar a noite com eles, e ao fazer isso ele aumentava a vergonha de Liz sobre a sua mesquinhez passada em relação a ele‖ (tradução minha).

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Was she falling in love with Darcy? She swallowed hard. Since the morning she had received his letter—no, if she were honest with herself, it had been since she met him—she had borne a particular regard for the gentleman, different than any she had ever experienced with another. That was the reason why his comment at the assembly ball had wounded her so. That was why she had pushed him away at every opportunity. That was why she had become so angry when he proposed and insulted her in every way possible. (…) she had done her best to hide her emotions, even from herself, he had somehow detected them. They had given him reason to hope for a successful outcome to his proposal. She had dashed his hopes to ashes, enumerating the reasons for her rejection—each turning out to be mistaken assumptions borne of her own wounded pride—ruining her chances of ever living a life of love.463 (SOTIS, 2016, posição Kindle 1746-1772)

O orgulho de Elizabeth passa, então, a ser o maior culpado pelo seu sofrimento, porque ela estava mentindo para si mesma e tentando se convencer de que Darcy era uma pessoa má somente porque ele a havia ofendido no baile em Meryton. Como o desenvolvimento das duas personagens através um reconhecimento humilhante de seus erros é um dos aspectos mais interessantes do romance de Austen, o qual mostra que, independentemente da superioridade intelectual de ambos os protagonistas, eles também cometem os mesmos erros que as personagens cômicas – ―a universalidade da tolice‖, como observa Castellanos (1994, p.4) – nessas continuações, a representação de um Darcy perfeito e a culpabilização de Elizabeth pelos desentendimentos entre eles desequilibra e enfraquece essa relação. Enquanto que, no original, ambos precisam passar por um processo de autocrítica e amadurecimento para poderem se reecontrar no mesmo nível, aqui temos uma Elizabeth que faz, sozinha, uma subida em direção a um lugar superior em que Darcy já se encontra e apenas aguarda por ela. Curiosamente, ao mesmo tempo em que os defeitos do orgulho e preconceito são dados a Elizabeth, outras continuações vão se esforçar para eliminar outras falhas dessa personagem em um processo de correção de problemas de uma forma geral, mas são estas as falhas necessárias para aquele processo de amadurecimento no original. Por exemplo, é comum que a Elizabeth na fan fiction desconfie de Wickham desde o primeiro momento em que o conhece, recusando-se a acreditar nas histórias que ele conta a respeito de como Darcy, por ciúmes, teria negado a Wickham uma herança a qual ele tinha direito pelo testamento do Mr. Darcy sênior. No original, enquanto ―Elizabeth felt that she had neither been seeing him

463 ―Estava ela se apaixonando por Darcy? Ela engoliu a seco. Desde a manhã que ela tinha recebido a sua carta – não, se ela fosse sincera consigo mesma, desde que ela tinha o conhecido – ela sentia um carinho pelo cavalheiro, diferente de tudo o que ela já tinha experienciado. Essa era outra razão pela qual o seu comentário no baile tinha a machucado tanto. Era por isso que ela tinha o empurrado para longe em todas as oportunidades. Era por isso que ela tinha ficado tão brava quando ele propôs casamento e a insultou de todas as maneiras possíveis. (...) Ela tinha feito o seu melhor para esconder suas emoções, mesmo de si própria, e ele tinha de alguma forma detectado-as. Elas tinham dado motivo a ele para ter esperança de um resultado positivo para o seu pedido. Ela tinha destruído suas esperanças, enumerando as razões para a sua rejeição – cada uma se mostrando suposições erradas nascidas de seu próprio orgulho ferido – arruinando as suas chances de jamais viver uma vida de amor‖ (tradução minha).

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[Wickham] before, nor thinking of him since, with the smallest degree of unreasonable admiration‖464 (O&P, p.85), na variação de Deborah Kauer, Sense of Worth, Elizabeth percebe a falsidade na narrativa da história de Wickham e reflete como ―his honeyed words and gentlemanlike countenance easily persuaded many who were less attentive to his other attributes to discern the truth in his narratives, but Elizabeth had focused her gaze on his eyes as he spoke where she saw the truth, or rather the seeming untruth, in his accusations against Mr. Darcy‖465 (Kauer, 2016, posição Kindle 765-772). A narrativa de Wickham é necessária para consolidar a opinião negativa de Elizabeth a respeito de Mr. Darcy, que vai culminar na sua recusa feroz ao primeiro pedido de casamento, juntamente com a acusação de que Darcy havia separado Mr. Bingley de Jane Bennet. A sua recusa é um momento complexo porque está baseada tanto em percepções corretas – a interferência de Darcy no relacionamento de Bingley, o seu orgulho e desdém, etc. – e percepções errôneas – o seu tratamento cruel a Wickham – e essa complexidade faz parte do processo de Elizabeth de perceber exatamente seus erros e seus acertos após o choque da humilhação: She grew absolutely ashamed of herself.—Of neither Darcy nor Wickham could she think, without feeling that she had been blind, partial, prejudiced, absurd. "How despicably have I acted!" she cried.—"I, who have prided myself on my discernment!—I, who have valued myself on my abilities! who have often disdained the generous candour of my sister, and gratified my vanity, in useless or blameable distrust.—How humiliating is this discovery!—Yet, how just a humiliation!—Had I been in love, I could not have been more wretchedly blind. But vanity, not love, has been my folly.—Pleased with the preference of one, and offended by the neglect of the other, on the very beginning of our acquaintance, I have courted prepossession and ignorance, and driven reason away, where either were concerned. Till this moment, I never knew myself."466 (O&P, p.230)

Como se os leitores atuais quisessem poupar Elizabeth dessa vergonha, e impedir que ela fosse ―blind, partial, prejudiced, absurd‖, temos essa necessidade de ela perceber imediatamente a verdade a respeito de Wickham: ―What she did know was that she did not

464 ―Os cavalheiros se aproximaram; e, quando o senhor Wickham entrou na sala, Elizabeth sentiu que não vinha pensando nele com admiração sem motivo‖ (trad. Alexandre de Souza, p.186). 465 ―Suas palavras adocicadas e atitude de cavalheiro facilmente convenciam muitos que eram menos atentos aos seus outros atributos a perceber suas narrativas como verdadeiras, mas Elizabeth tinha focado seu olhar nos olhos dele conforme ele falava e viu a verdade, ou a falsidade aparente, nas suas acusações contra Mr. Darcy‖ (tradução minha). 466 ―Sentiu-se absolutamente envergonhada de si mesma. – Não conseguia pensar mais em Darcy ou em Wickham sem se sentir cega, tendenciosa, preconceituosa, absurda. ‗Como pude ser tão desprezìvel!‘, ela exclamou. – ‗Justo eu, que sempre me orgulhei do meu discernimento! – Eu que me gabei das minhas capacidades! Que tantas vezes desdenhei da ingenuidade generosa de minha irmã e exaltei minha vaidade com uma desconfiança inútil e imperdoável. – Que descoberta humilhante! – E, no entanto, como mereço essa humilhação! – Nem que estivesse apaixonada poderia ter sido tão miseravelmente cega. Mas minha loucura foi a vaidade, não o amor. – Satisfeita com o interesse de um, e ofendida com a indiferença do outro logo quando nos conhecemos, eu mesma cortejei, conforme o caso, a predisposição e a ignorância, e mandei embora a razão. Só agora me conheço‘‖ (trad. Alexandre de Souza, pp.333-334).

302 like Mr. Wickham, and she determined to keep her distance‖467 (Joy, 2015, posição Kindle 1693-1695). O problema é que os autores dessas continuações não percebem que estão transformando Elizabeth de uma personagem complexa e interessante em uma heroína perfeita e insípida, o símbolo da nostalgia por uma Inglaterra perdida: Her own voice lacked the polish of an accomplished performance but displayed a feeling that few professional singers could hope to match. She was the voice of England; of its sunny pastures and its cool forests; of its pretty villages and its sparkling streams; of its magnificent houses and its formal gardens; of its country walks and its elegant ballrooms; of its stately dinners and its restless sea.468 (LANG, 2015, posição Kindle 464-466)

Algumas personagens secundárias também vão sofrer o mesmo processo de ―correção‖ de suas falhas. Mary Bennet, como vimos, descobre Mary Wollstonecraft e deixa de ser moralista, Mr. Bennet deixa de ser um pai indolente e passa a agir para proteger sua família, inclusive sua esposa, Mrs. Bennet, que deixa de ser tola e fútil. Jane Bennet começa a perceber que nem todas as pessoas são boas, e até Mr. Bingley ganha força ao se recusar a ser influenciado por seus amigos e irmãs na decisão de se casar com Jane. E Mr. Gardiner, ainda que isso não seja um defeito de personalidade, é frequentemente retratado como um homem de negócios milionário, e não simplesmente um comerciante, para diminuir o impacto ―negativo‖ da sua profissão. Mas mais interessante é o destino dado a Charlotte Lucas, que é frequentemente ―libertada‖ do casamento com Mr. Collins, seja ficando viúva muito cedo, seja ela mesma recusando o seu pedido. Em algumas variações, Charlotte continua retratada como uma mulher prática, detentora de uma visão clara sobre a necessidade de se casar para manter sua respeitabilidade, mas consegue também perceber que Mr. Collins não era opção viável: Even Charlotte Lucas, no matter how unromantic her ideals were when it came to marriage and even though she was quite willing to accept a marriage of convenience to acquire a decent home and secure future, drew the line at William Collins.469 (MASON, 2014, posição Kindle 5326-5328)

―I am curious, though; what led you on to do it? I always thought you rather practical regarding marriage, and this seems very contrary even to your own advice to me a few days ago.‖ Charlotte nibbled a bit of her biscuit thoughtfully. ―I suppose I could not bring myself to marry a man I could not respect,‖ she admitted at last. ―Oh, I never had any great admiration for your cousin, you understand, but when he

467 ―O que ela sabia era que ela não gostava de Mr. Wickham e estava determinada a manter distância‖ (tradução minha). 468 ―Na sua própria voz faltava o polimento de um desempenho talentoso, mas ela mostrava um sentimento que poucos cantores profissionais poderiam aspirar a igualar. Ela tinha a voz da Inglaterra, de seus pastos ensolarados e suas florestas frescas, de suas belas vilas e seus rios brilhantes, de suas casas magníficas e seus jardins formais, dos passeios no campo e dos elegantes salões de baile, dos seus jantares imponentes e de seu mar agitado‖ (tradução minha). 469 ―Até mesmo Charlotte Lucas, não importando o quanto seus ideais eram pouco românticos, quando se tratava de casamento, e apesar de ela estar bem disposta a aceitar um casamento de conveniência para adquirir uma casa decente e um futuro seguro, ela traçava um limite em William Collins‖ (tradução minha).

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so easily betrayed your family and forced me to do the same, why, I knew I could never live under his rule.‖470 (CLARKSTON, 2015, posição 7973-7977)

Em outros momentos, porém, esse posicionamento prático de Charlotte é uma máscara que esconde a sua verdadeira natureza: ―For years, Charlotte Lucas had proclaimed herself as unromantic. However, a passionate heart beat in her bosom and she secretly longed to experience her first kiss‖471 (King, 2015, p.89). Nesses casos, mesmo se Charlotte acaba se casando com Collins, é necessário que ele morra para ela encontrar também o seu final feliz. Em Will of Iron, encontramos Charlotte admitindo o fingimento que usava para disfarçar a sua infelicidade, ao mesmo tempo em que se mostra aliviada com a morte de seu marido: Jane reflected, ―You did not come to love my cousin, did you, Charlotte?‖ ―No. I did manage to convince myself for a time that I was content, but I do not know how much longer I could have pretended. No, it must be said, I shall enjoy wearing black for a year, for it means I am free472 (Beutler, 2015, posição Kindle 2103-2106). No original, contudo, Elizabeth é surpreendida pela situação confortável de sua amiga, após declarar que esse casamento era uma humilhação, e é forçada a admitir que estava errada na sua primeira impressão: ―Elizabeth in the solitude of her chamber had to meditate upon Charlotte's degree of contentment, to understand her address in guiding, and composure in bearing with her husband, and to acknowledge that it was all done very well‖473 (O&P, p.179). Mas uma vida ―contente‖ não é uma vida feliz como é o esperado nas histórias sentimentais, e mesmo Charlotte não sendo a heroína, fica claro que o seu posicionamento racional não é o desejado, pelos autores das continuações, para as personagens que eles gostam. Ao fazer com que Charlotte na verdade compartilhe a visão de Elizabeth sobre casamento, esses autores eliminam questões que incomodam no original – a escolha de Charlotte foi certa ou não? É correto sacrificar felicidade em nome da respeitabilidade? Ou melhor, somente o amor é garantia de felicidade? Se Charlotte consegue ser feliz casada com Collins, então Elizabeth é que foi irracional ao recusá-lo? Ao contrário, ver a própria Charlotte admitir que ela é que

470 ―‗Eu estou curiosa, porém, o que a levou a fazer isso? Eu sempre considerei você uma pessoa prática em relação ao casamento, e isso parece o exato contrário do seu próprio conselho para mim de alguns dias atrás‘. Charlotte mordeu um pouco o bolinho pensativa. ‗Eu acho que eu não consegui me casar com um homem que não não podia respeitar‘, ela admitiu finalmente. ‗Oh, eu nunca tive nenhuma grande admiração pelo seu primo, você entende, mas quando ele traiu a sua família tão facilmente e me forçou a fazer a mesma coisa, então eu sabia que eu nunca poderia ficar sob o seu comando‖ (tradução minha). 471 ―Por anos, Charlotte Lucas havia se proclamado como não romântica. Contudo, um coração apaixonado batia em seu peito e ela secretamente ansiava por vivenciar seu primeiro beijo‖ (tradução minha). 472 ―Você não veio a amar meu primo, certo Charlotte?‘ ‗Não. Eu consegui me convencer de que por um tempo eu estava contente, mas eu não sei por quanto tempo mais eu teria fingido. Não, isso deve ser dito, eu vou gostar de usar preto por um ano, porque isso significa que eu estou livre‖ (tradução minha). 473 ―Elizabeth, na solidão do seu quarto, precisou meditar sobre o grau de contentamento de Charlotte para conseguir entender sua atitude para com o marido e a sua serenidade ao suportá-lo, e acabou admitindo que a amiga agia muito bem‖ (trad. Alexandre de Souza, p.279).

304 estava errada em sua escolha é uma forma de garantir que o ideal romântico saia vitorioso desse confronto, e a leitura dessa questão em O&P é solucionada: Elizabeth estava certa em sua opinião. Dentro dessa mesma lógica de ―correção de defeitos‖, também ocorre exatamente o contrário com as personagens menos populares, que tem suas falhas acrescidas, sendo frequentemente ―vilanizadas‖ com suas caracterìsticas ―más‖ aumentadas ao extremo. Por exemplo, Caroline Bingley e Lady Catherine de Bourgh são levadas à loucura e à violência em suas tentativas para separar Mr. Darcy e Elizabeth, e até Mr. Collins, que no original é apenas ridículo, é muito comum ser retratado como um homem repugnante – feio, cabelos oleosos, mau hálito – e, na variação de Jeanne Ellsworth, ele aparece como um marido que abusa sua esposa: It had been a long four months of marriage to a man who seemed only a simpleton, but behind closed doors, had turned into something quite different. To say he had not been kind was an understatement. To say he was controlling and demanding was too mild of terms. He disapproved of everything she did. Her every choice was questioned and ridiculed in the most verbose and effective way. If he intended to make her feel less important than he was, he most definitely succeeded. Her confidence had been shaken to the core. Never had she thought a man who could carry a conversation for ten minutes about the chimney at Rosings––or the interesting way fabric is woven into bed sheets for that matter––no, never had she thought he could ever raise his hand to a woman; but he had. She still had bruises on her ribs to prove.474 (Ellsworth, 2016, posição Kindle 2391-2398)

Da mesma forma, Mr. Wickham também deixa de ser apenas um golpista sedutor e se transforma no verdadeiro vilão tradicional, envolvido em sequestros, assaltos e espancamentos. Novamente, o extremo aparece com certa frequência quando Wickham se torna um estuprador, como na cena de Deborah Kauer em que ele organiza a sedução de Lydia Bennet e ainda convida seus amigos para participar de um estupro coletivo: Wickham had been flirting with Lydia for the past few months, secretly meeting with her in the woods around her father‘s estate, just waiting for the time to make use of her and then discarding her after taking his pleasure with her. It would not be the first time he took advantage of an innocent, and it was highly unlikely that it would be the last. (…) In the last month, she had allowed him many liberties that pleased both of them without losing the only virtue remaining to her, but before he finished his last month of playing with Lydia‘s easy seduction, he planned one last meeting with her. His plan included bringing along a few of his rougher less gentlemanly friends along to share Miss Lydia‘s feminine assets. (…) Wickham prided himself on his roughness, and the screams of his partners only made him

474 ―Tinham sido quatro longos meses de casamento com um homem que parecia um tolo, mas que por trás de portas fechadas tinha se transformado em algo totalmente diferente. Dizer que ele não era gentil era um eufemismo. Dizer que ele era controlador e exigente eram termos muito leves. Ele desaprovava tudo que ela fazia. Cada escolha sua era questionada e ridicularizada nas formas mais verbais e efetivas. Se ele quisesse fazer com que ela se sentisse menos importante que ele, com certeza conseguira. A sua confiânça tinha sido abalada no centro. Nunca ela pensou que um homem poderia conversar por dez minutos sobre as chaminés de Rosings – ou sobre a forma interessante como o tecido é transformado em lençóis até – não, nunca ela tinha pensado que ele iria levantar a mão para uma mulher, mas ele tinha. Ela ainda tinha os hematomas nas costelas para provar‖. (tradução minha).

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more lustful. He did whatever was needed to cause them to scream, enhancing his own pleasure and enjoyment of the act. He chuckled as he exclaimed, ―Scream for me,‖ he growled between thrusts, ―no one will hear you. No one will rescue you. I will enjoy hearing you scream all night long.‖ He truly enjoyed hearing her cries of pain.475 (KAUER, 2016, posição Kindle 7187-7189, 7192-7195, 7251-7253)

O destino para esse tipo de Wickham varia entre deportação para a Austrália ou América, prisão ou morte, qualquer uma das três garantindo a tranquilidade para os protagonistas até o fim de suas vidas, o que é muito diferente do final benevolente concedido por Austen com o seu casamento com Lydia Bennet. Já para a própria Lydia, venho observando uma alternância no destino dessa personagem. Ou ela é também exagerada em suas características de irresponsabilidade e sedução, sendo por isso frequentemente enviada para um internato ou outro tipo de instituição para ser ―controlada‖, às vezes até acabando de fato na prostituição, ou ela aprende com seus erros e consegue, também, amadurecer e conquistar o seu final feliz. Na história acima, ter sofrido esse abuso coletivo abriu seus olhos para o mundo real, e Lydia se torna uma pessoa mais equilibrada e responsável, casando-se com um bom homem, ainda que não rico. De uma forma geral, portanto, o que observei nas continuações trabalhadas aqui foi a valorização do final feliz e a correção de todos os problemas que poderiam atrapalhar essa conclusão. Os vilões desaparecem, os empecilhos sociais são resolvidos, os defeitos das personagens são apagados ou superados, e até mesmo as personagens secundárias são abençoadas com essa mesma felicidade total. A supervalorização do amor coloca-o como a medida de todas as coisas em histórias extremamente sentimentalistas, as quais reposicionam a obra de Austen exatamente no que ela queria extirpar, e perpetuam discursos de gênero que soam incrivelmente antiquados para os dias de hoje mas que, paradoxalmente, são extremamente populares dentro da fantasia do ―e eles viveram felizes para sempre‖. Existem, contudo, algumas exceções, e na próxima parte abordarei alguns casos em que O&P foi transformado em outra coisa que não um conto de fadas.

475 ―Wickham tinha flertado com Lydia pelos últimos meses, secretamente encontrando com ela nas florestas da propriedade de seu pai, apenas esperando pelo momento de usá-la e descartá-la depois de ter seu prazer satisfeito. Não seria a primeira vez que ele se aproveitava de uma inocecnte, e era muito improvável que fosse a última. (...) No último mês, ela tinha permitido a ele muitas lliberdades que davam prazer a ambos sem perder a única virtude que ainda tinha, mas antes de terminar seu último mês brincando com a sedução fácil de Lydia, ele planejava um último encontro com ela. Seu plano incluía trazer junto alguns de seus amigos mais duros, menos cavalheiros, para partilhar dos bens femininos de Lydia. (...) Wickham se orgulhava de sua dureza, e os gritos de suas parceiras somente lhe davam mais prazer. Ele fazia o que era necessário para fazê-las gritar, aumentando seu próprio prazer e gosto pelo ato. Ele riu quando exclamou, ‗Grite para mim‘, rugindo entre cada penetração, ‗ninguém vai te ouvir. Ninguém vai te resgatar. Eu vou gostar de ouvir você gritar a noite toda.‘ Ele realmente gostava dos seus gritos de dor‖ (tradução minha).

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Parte 2. Austen e fan fiction, politização e zumbis

Ainda que o universo online da fan fiction não seja meu objeto de pesquisa direto, não posso ignorá-lo por completo pela sua relação direta com as continuações estudadas aqui. Isso porque a grande maioria dos autores dessas continuações começou como leitores de JAFF (―Jane Austen Fan Fiction‖), publicando primeiro suas histórias em comunidades online voltadas para isso, e somente depois tiveram essas histórias lançadas em livros. Digo a maioria porque nem todos seguiram essa trajetória. Desde a continuação de Sybil Brinton, Old Friends and New Fancies, de 1913, até Darcy’s Story, de Janet Aylmer (1995), vários romances baseados na obra de Austen foram lançados, inclusive a mencionada tentativa de completar Sanditon em 1975. Essas histórias foram produzidas e publicadas em papel de forma independente do fenômeno da fan fiction, o qual cresceu com a popularidade de seriados de televisão de ficção científica como Star Trek e, depois do advento da rede mundial da internet, tornou-se um gigante que desperta a atenção de várias áreas, desde a crítica literária à comunicação midiática. Atualmente, porém, as duas coisas estão interligadas, e com a possibilidade aberta pela livraria online / editora Amazon de autores publicarem seus livros em formato eletrônico (ebooks) diretamente no site da empresa sem custo algum, as relações entre fanfic e mercado editorial parecem definitivamente conectadas. É por isso que, apesar de a primeira continuação das obras de Austen ser da década de 1910, e até mesmo apesar do fato de que durante a própria época de Austen, e também antes, era muito comum escritores (profissionais ou não) copiarem histórias de sucesso de outros autores (o próprio Samuel Richardson, que viu seu Pamela cair nas graças dessa prática, condenava abertamente ―these poachers in Literature‖476 [Brewer, 2005, p.124]), o fenômeno da Austenmania e da explosão atual das continuações é, na verdade, extremamente contemporâneo, e foi diretamente influenciado pelas convenções do universo da fanfic. Objeto de estudo especialmente da área de comunicação, segundo Bronwen Thomas a fanfic passou por pelo menos três ondas de teorização que a levou do inferno da subcultura ao céu da contracultura. A primeira onda enxergava na fanfic uma relação clássica de luta contra um poder, em que os fãs usavam uma escrita transgressora para se posicionar contra as grandes corporações detentoras dos direitos das histórias originais. Nesse contexto, a obra de Henry Jenkins, Textual Poachers, de 1992, se tornaria a referência nessa área ao usar a metáfora de Michel de Certeau477 de que a leitura é semelhante a uma caça ilegal (em inglês,

476 ―esses ladrões de literatura‖ (tradução minha). 477 Em A invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Rio de Janeiro, Vozes, 1994, p.259 et seq.

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―poaching‖), ou seja, que o leitor possui um papel ativo na leitura independente do autor, e não de apenas consumo da obra, criando o que ele chama de ―participatory culture‖. Essa defesa fica clara, por exemplo, quando Jenkins afirma que, uma vez trabalhado pela fanfic, o texto original se torna algo maior do que era antes, e não menor (Jenkins, 1992, p.51). Essa primeira onda teria, então, tentado diminuir o impacto negativo advindo da imagem estereotípica de um fã obcecado pelo seu ídolo para mostrar o potencial questionador nas produções de fanfic. Esse posicionamento seria rotulado mais tarde, segundo Thomas, de ―Fandom is Beautiful‖ 478. A partir da segunda onda crítica, o posicionamento defensivo da fanfic começou a diminuir, dando lugar a um interesse por outros aspectos dessa prática, como para entender de que forma as novas mídias se relacionavam dentro desse universo e ofereciam múltiplas oportunidades de interação para os fãs. Já a terceira onda continuou a buscar o entendimento sobre o engajamento e o relacionamento dos fãs, contestando inclusive as diferenças entre alta e baixa cultura ao trabalhar com comunidades online de fãs de música clássica, por exemplo. Mas, para Thomas, mesmo com as crìticas àquele primeiro momento de ―Fandom é lindo‖, ainda é difícil encontrar uma visão negativa a respeito da fanfic, defendida como um gênero democrático e potencialmente subversivo. Nas suas palavras, a tendência é querer transformar fãs em críticos e celebrar somente aquelas habilidades de interpretação que são compartilhadas pelo crítico e pelo fã (Thomas, 2011, p.5). No entanto, a própria Thomas aponta que recentes trabalhos sobre fanfic vêm tentando trazer uma abordagem mais sóbria para mostrar que talvez algumas ideias relacionadas a esse mundo, como a de uma comunidade igualitária, sejam um pouco utópicas demais e ignoram hierarquias e limites existentes dentro desse universo. Juliette Wells, por exemplo, mostra como, por um lado, alguns críticos pedem cautela na hora de julgar a fanfic em relação aos seus textos originais (em termos de fidelidade ou exatidão) porque a diferença na forma em que acadêmicos e autores populares usam os textos canônicos advém não da ignorância desses últimos, mas de escolhas deliberadamente diversas, e podem até ser base para criticar o que é, por que e quem decide a natureza desse status canônico. Do outro lado, outros críticos afirmam que simplesmente celebrar a fanfic não é uma posição acadêmica válida, e sim uma forma de evitar uma questão complicada de julgar o valor dessas histórias (Wells, 2011, pp.18-19). Wells considera interessante também a abordagem proposta por Abigail Derecho chamada de ―literatura

478 ―Fandom‖ é o termo utilizado para designar o universo criado por fãs (ou a comunidade de fãs) de um determinado autor ou obra (filme ou livro). É nesse universo em que as fanfics serão produzidas e compartilhadas, por exemplo.

308 arcôntica‖, a qual ela define como um tipo de ―texto-arquivo‖, que permite, ou até mesmo convida os escritores a entrar, selecionar itens específicos que eles consideram úteis, produzir novos artefatos usando esses itens encontrados, e depositar o novo trabalho no arquivo do texto original (apud Wells, 2011, p.23). Dessa forma, uma história de fanfic não é uma violação do original que o degrada, ou uma subversão crítica que o contesta, mas um adendo, que faz parte do universo do texto original, de seu arquivo, e contribui para a sua expansão, uma vez que ela também pode ser reaproveitada para a produção de fanfics posteriores. É dentro desse posicionamento que esse trabalho não busca fazer uma avaliação da qualidade literária das continuações de Orgulho e Preconceito – as quais, em relação ao original, sempre vão perder na comparação – mas uma tentativa de entender esse ―arquivo‖ construído em torno desse romance e de sua autora. Contudo, para Anupam Chander e Madhavi Sunder, que fazem uma análise a partir da questão legal dos direitos autorais, as fanfics possibilitam sim questionamentos dos valores da nossa sociedade. O grande exemplo é o caso da personagem tenente Mary Sue em uma fanfic do seriado de televisão Star Trek. Apesar de este programa ter trazido na época grandes inovações – uma atriz negra, um ator oriental que não era vilão em meio ao contexto da guerra do Vietnã – as mulheres ainda exerciam apenas papeis subalternos dentro da hierarquia da espaçonave. Então, uma fã, Paula Smith, decidiu escrever uma história em 1973 em que uma mulher, a tenente Mary Sue, receberia o comando da nave, o posto mais alto ali. Para Chander e Sunder, ao fazer isso, Smith iniciou uma versão moderna de um fenômeno antigo e frequente, isto é, recontar uma história canônica de forma a melhor representar a si próprio (Chander e Sunder, 2007, p.598). O sucesso dessa fanfic acabou eternizando-se pela transformação da tenente Mary Sue em um termo dentro desse universo que indica a inserção de uma nova personagem central na história, geralmente semelhante ao autor da fanfic. Para muitos, ―Mary Sues‖ são vistas de forma pejorativa, quase como um exercício narcisista, mas Chander e Sunder afirmam que não: Mary Sue é de fato uma figura de crítica subalterna, desafiando os estereótipos do original. Os estereótipos da cultura popular se insinuam dentro de nossas vidas, colorindo nossas visões de ocupações e papeis. Desde histórias em que Hermione Granger é a líder, até Harry Potter em Kolkata e romances homoeróticos em Star Trek, Mary Sues reimaginam a nossa paisagem cultural, dando agência àqueles aos quais ela tinha sido negada na mitologia popular. Sem os canais de distribuição global da mídia tradicional, os autores de Mary Sue agora encontram uma alternativa na Rede Mundial de Computadores, que traz suas obras para o mundo. (CHANDER e SUNDER, 2007, p.597, tradução minha)

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Podemos perceber que Chander e Sunder fazem parte da crítica que enxerga na fanfic um potencial subversivo, como apontado por Bronwen Thomas. Para eles, os efeitos da mídia na nossa forma de conceber o mundo são inegáveis e por isso a criação de Mary Sues é necessária para reverter estereótipos que afetam principalmente as mulheres, os negros e os homossexuais: O fenômeno de reescrever uma história para reavaliar o seu próprio lugar não é simplesmente um exercício de narcisismo. As Mary Sues oferecem importantes intervenções epistemológicas no discurso dominante, confrontando a produção tradicional de conhecimento ao retrabalhar o cânone para valorizar mulheres e comunidades marginalizadas. Elas exemplificam uma tática que Arjun Appadurai descreveu como um produto de resistência – uma estratégia de luta popular através da ressignificação de bens comuns. (CHANDER e SUNDER, 2007, p.601, tradução minha)

Chander e Sunder citam como exemplo um caso de direitos autorais que foi amplamente divulgado da autora Margaret Mitchell de Gone with the wind contra a escritora Alice Randall, que escreveu The Wind Done Gone, a mesma história contada a partir do ponto de vista dos negros escravizados na fazenda de Scarlet O‘Hara. Mitchell ganhou o processo na primeira instância, mas depois de uma apelação a corte americana decidiu autorizar o livro de Randall por ser uma paródia com significantes e necessárias mudanças no original, o qual mostrava uma sociedade idílica antes da abolição. Assim, Chander e Sunder defendem os efeitos positivos que podem advir da divulgação, mesmo que somente em comunidades online, de Mary Sues. O desenvolvimento da rede mundial de computadores, inclusive, ao invés de ser um espaço restrito, para os autores é a chave que possibilitará a disseminação dessas novas personagens desestabilizadoras (idem, pp.599-600). Se existe de fato esse poder subversivo dentro do universo da fanfic, ele ainda não se difundiu no caso das continuações publicadas de Orgulho e Preconceito, que, como afirmei anteriormente, são limitadas a uma repetição incansável da mesma história de amor em cenários diferentes. Uma das únicas exceções parece ser o recente romance Longbourn, de Jo Baker, que centra sua narrativa nos empregados da casa de Elizabeth Bennet, especificamente a partir do ponto de vista da jovem Sarah, que está muito mais preocupada com os dramas de sua vida do que com os encontros e desencontros que ela observa à distância entre Darcy e Elizabeth. A abordagem de Jo Baker é até um alívio inusitado. Além de trazer apenas pequenas referências à história original, todo aquele sentimentalismo explorado à exaustão nas continuações é descartado. Por exemplo, Pemberley, a propriedade rural de Mr. Darcy, que normalmente é vista como o castelo encantado e o símbolo daquele final feliz glorioso, para Sarah, que é levada para trabalhar lá após o casamento de Elizabeth, é apenas um lugar frio, impessoal, entediante, do qual ela deseja partir. Na passagem abaixo, as riquezas de

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Pemberley não fazem diferença nenhuma para a personagem, que se sente apenas exilada em meio a toda aquela grandeza: Once Mrs. Darcy was dressed for the morning, and had sat down for Anne to do her hair, Sarah was dismissed, and did not see another soul until dinnertime. (…) Her hands grew softer with the softer work. The hours languished. The days ticked by. (…) Beyond the confines of Mrs. Darcy‘s closet, the house stretched open and accommodating: those spacious rooms, their comfortable furnishings, their warmth and the diversions they contained, of art and music and conversation and books. And beyond its walls unfurled the ordered grounds, the well-managed park, the woods and farms, all full of purpose and comfort and prosperity, and all she could do was be here, in this seat, at this window, stitching a ribbon back onto a petticoat that, for all that Sarah knew, might never be worn again. If she just put her sewing aside, and went out into the corridor, and opened a few doors and looked inside; if she wandered around some of the unused rooms downstairs, examining miniatures and marbles; if she stepped out through the French windows and out into the air, and followed the gravel walks, dawdling along between the frosted box hedges, and then through the shrubbery; if she strolled out across the lawns to the riverbank to gaze at a slothful trout in a patch of winter sun, and then slipped past the gate out into the woodlands, and climbed the paths worn into the hills beyond—how long could she last, how far could she get, how much could she be in this place, before she was stopped and sent back to this seat here, this little corner? (…) It was not bad. It was far better than could be expected. But it was not enough.479 (BAKER, 2013, p.312- 314)

Dentro desse contexto, Mr. Darcy não é o homem perfeito idolatrado. Para Sarah, ele é o seu chefe, e ainda que justo e respeitoso, ela se sente intimidada quando confrontada por ele sobre o seu desejo de pedir demissão do seu trabalho em Pemberley: he rose from his seat, like a statue come to life. Sarah shrank. Fixed for the first time on her, his gaze made her dwindle to the size of a salt-cellar. He strode briskly up, stopped just a shade too close; she had to fight the urge to take a step back, to get a better angle on him, to make more space between her and his flesh. But she stayed put, and held her head up; she set her eyes on his starched cravat – they washed very white at Pemberley – while he studied her in a puzzled, faintly irritated manner, as if she were an unconsidered household item that had abruptly ceased to function, and on which he now found himself obliged to have an opinion.480 (BAKER, 2013, p.322)

479 ―Assim que Mrs. Darcy estava vestida para a manhã, e tinha sentado para Anne arrumar seu cabelo, Sarah era dispensada, e não via outra alma até a hora do jantar. (...) As suas mãos ficaram mais macias com o trabalho mais leve. As horas se arrastavam. Os dias demoravam a passar. (...) Para além do confinamento do quarto de vestir de Mrs. Darcy, a casa se espalhava aberta e acolhedora; aqueles cômodos espaçosos, sua mobília confortável, seu calor e as distrações que eles continham de arte e música e conversa e livros. E para além de suas palavras desdobrava os campos ordenados, o parque bem cuidado, as florestas e fazendas, todos cheios de propósito e conforto e prosperidade, e tudo o que ela podia fazer era ficar aqui, nessa cadeira, nessa janela, costurando uma fita de volta a uma anágua que, pelo o que ela sabia, talvez nunca fosse ser usada novamente. Ela só colocou sua costura de lado e saiu para o corredor, e abriu algumas portas e olhou dentro; se ela perambulasse por alguns dos cômodos fechados do andar de baixo, examinado miniaturas e mármores, se ela saísse através das portas francesas para o ar, e seguisse seus caminhos de cascalho, passeando pelas sebes congeladas, e daí até os arbustos, se ela caminhasse através dos gramados até a margem do rio para olhar para as trutas preguiçosas em um raio de sol, e daí passasse pelos portões até as florestas, e subisse os caminhos para as colinas além – quanto tempo ela iria durar, quão longe ela iria chegar, quanto tempo ela poderia ficar nesse lugar, antes de ela ser parada e enviada de volta para essa cadeira, esse pequeno canto? (...) Não era ruim. Era muito melhor do que poderia ser esperado. Mas não era suficiente‖ (tradução minha). 480 ―Ele se levantou de sua cadeira, como uma estátua que ganha vida. Sarah se encolheu. Fixo pela primeira vez nela, seu olhar fez com que ela diminuísse para o tamanho de um saleiro. Ele caminhou bruscamente até ela e parou apenas um milímetro perto demais; ela tinha que brigar com a vontade de dar um passo para trás, para ter um ângulo melhor dele, para abrir mais espaço entre ela e seu corpo. Mas ela ficou onde estava, e manteve sua

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Se compararmos com o original, Sarah está correta em se sentir assim, pois até o próprio Mr. Bingley, que é um amigo e não um empregado de Darcy, afirma que ―I assure you that if Darcy were not such a great tall fellow, in comparison with myself, I should not pay him half so much deference. I declare I do not know a more awful object than Darcy, on particular occasions, and in particular places; at his own house especially, and of a Sunday evening when he has nothing to do‖481 (O&P, p.55). É óbvio que, no processo de transformar Darcy em um homem perfeito, essas indicações sutis no texto a respeito de seu temperamento difícil são totalmente esquecidas, mas é muito significativo que Baker soube retomá-las também sem alarde. Da mesma forma, a respeito de Elizabeth, Baker a mostra como uma mulher normal, com seus medos e inseguranças, e também aborda de maneira totalmente crua o destino de toda mulher casada: It was clear now that Mrs. Darcy was expecting her first child (...). She was facing her first confinement, and with all the usual fears. Sarah felt a tug of sympathy, but… Elizabeth would just have to go through it; every breeding woman did. If she survived this once, then she would just have to do it all over again in the full knowledge of its horrors – and then again, and again, because a man like Mr. Darcy would need his sons.482 (idem, p.233)

Nessa passagem, vemos a fragilidade da situação de Elizabeth, e os perigos comuns a todas as mulheres grávidas da época. A maternidade, aqui, não é glamourizada, nem aparece como o coroamento do final feliz, mas como um momento de tensão e dúvida em relação ao futuro. Ela sobreviverá ao parto? Se sim, sobreviverá ao próximo, e ao próximo? Só essa questão já coloca Longbourn como um romance muito mais em sintonia com questões feministas do que qualquer outra ―modern retelling‖ de O&P. E também com a opinião da própria Austen a esse respeito quando, por exemplo, escreveu à sua sobrinha Fanny sobre a vantagem de não se casar tão cedo: ―And then, by not beggining the business of Mothering quite so early in life, you will be young in Constitution, spirits, figure & countenance, while Mrs. Hammond is growing old by confinements and nursing‖483 (Letters, p.347).

cabeça erguida; ela fixou seus olhos na sua gravata engomada – eles realmente lavavam as coisas brancas em Pemberley – enquanto ele a estudava de uma maneira intrigada e levemente irritada, como se ela fosse um objeto da casa desconsiderado que abruptamente tinha parado de funcionar, e sobre o qual agora ele era forçado a ter uma opinião‖ (tradução minha). 481 ―Eu lhe garanto que, se Darcy não fosse um sujeito tão alto perto de mim, eu não o levaria em tanta conta. Posso dize rque não conheço nada mais pavoroso que ele em certas ocasiões e em determinados lugares; especialmente na casa dele em certas noites de domingo sem nada para fazer‖ (trad. Alexandre de Souza, p.156). 482 ―Estava claro agora que Mrs. Darcy estava esperando seu primeiro filho (...). Ela estava enfrentando a sua primeira gravidez, e com todos os medos usuais. Sarah sentiu uma pontada de simpatia, mas... Elizabeth teria apenas que passar por isso, como toda mulher grávida. Se ela sobrevivesse dessa vez, então ela teria que fazer tudo de novo com o conhecimento total de seus horrores – e então de novo e de novo, porque um homem como Mr. Darcy iria precisar de seus filhos‖ (tradução minha). 483 ―E então, por não ter começado o negócio da maternidade tão cedo na vida, você será jovem em constituição, espírito, corpo e atitude, enquanto Mrs. Hammond está ficando velha por conta das gravidezes e do cuidado dos filhos [ou amamentação]‖ (tradução minha).

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Podemos dizer, então, que Baker efetua uma desconstrução de Elizabeth e Darcy como os heróis perfeitos, optando, ao invés, por apresentá-los como humanos, e só isso já é uma grande novidade. Além disso, Baker também faz questão de mostrar que eles são pessoas privilegiadas dentro daquela sociedade, que o luxo e as regalias das classes sociais retratadas em O&P, dos quais Darcy e Elizabeth partilham, só eram possíveis através do trabalho exaustivo dos empregados nos porões das grandes mansões, e isso sem cair nos riscos de produzir um texto panfletário de conflito de classes. Assim, além de quebrar com o modelo sentimentalista das continuações, Baker também recusa aquela construção nostálgica do período regencial. Por exemplo, uma das características mais valorizadas de Elizabeth hoje é a sua vivacidade, uma liberdade de atitude e pensamento retratada, por exemplo, na cena em que caminha vários quilômetros através de campos lamacentos apenas para visitar a sua irmã doente, Jane. No original, Austen contrasta essa característica de Elizabeth com o desdém que as irmãs de Mr. Bingley demonstram pelo seu comportamento diferente, valorizando-o inclusive por ter chamado a atenção, sem querer, de Mr. Darcy: (…) Elizabeth continued her walk alone, crossing field after field at a quick pace, jumping over stiles and springing over puddles with impatient activity, and finding herself at last within view of the house, with weary ankles, dirty stockings, and a face glowing with the warmth of exercise. She was shewn into the breakfast-parlour, where all but Jane were assembled, and where her appearance created a great deal of surprise. That she should have walked three miles so early in the day, in such dirty weather, and by herself, was almost incredible to Mrs. Hurst and Miss Bingley; and Elizabeth was convinced that they held her in contempt for it. (…) Mr. Darcy said very little, and Mr. Hurst nothing at all. The former was divided between admiration of the brilliancy which exercise had given to her complexion, and doubt as to the occasion's justifying her coming so far alone. The latter was thinking only of his breakfast.484 (O&P, p.36)

Para a personagem de Jo Baker, Sarah, essa cena produz outras consequências, já que ela era responsável também por lavar as roupas da família toda: Next door, down the step into the scullery, Sarah leaned over the washboard, rubbing at a stained hem. The petticoat had been three inches deep in mud when she‘d retrieved it from the girls‘ bedroom floor and had had a night‘s soaking in lye already; the soap was not shifting the mark, but it was biting into her hands, already cracked and chapped and chilblained, making them sting. If Elizabeth had the

484 Elizabeth continuous sozinha sua caminhada, atravessando campo após campo a passos rápidos, saltando passagens de cercas, pisando em poças com impaciência e descobrindo enfim a casa em seu campo de visão, com os tornozelos exaustos, as meias sujas e rosto corado pelo calor do exercício. Ela foi levada à sala onde estavam todos reunidos para o café da manhã, menos Jane, e onde sua aparição provocou um bocado de surpresa. – Que houvesse caminhado três milhas ainda tão cedo, naquele tempo ruim, e sozinha, era algo quase incrível para a senhora Hurst e para a senhorita Bingley; e Elizabeth se convenceu de que elas passaram a desprezá-la por isso. (...) O senhor Darcy falou muito pouco, e o senhor Hurst não falou nada. O primeiro ficou dividido entre a admiração do brilho que o exercício conferira à pele dela e a dúvida sobre o fato de a ocasião justificar ou não sua vinda desacompanhada até tão longe. O segundo pensava apenas em seu desjejum‖ (trad. Alexandre de Souza, p.137).

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washing of her own petticoats, Sarah often thought, she‘d most likely be a sight more careful with them.485 (BAKER, 2013, p.5)

Um outro momento interessante é quando as jovens de Longbourn são convidadas para o baile na residência de Mr. Bingley, mas passam a semana que antecede o evento trancadas em casa por conta da chuva: If there had not been a Netherfield ball to prepare for and talk of, the younger Miss Bennets would have been in a pitiable state at this time, for from the day of the invitation to the day of the ball, there was such a succession of rain as prevented their walking to Meryton once. No aunt, no officers, no news could be sought after; - the very shoe-roses for Netherfield were got by proxy.486 (O&P, p.72, destaque meu)

Para Baker, essa frase final que passaria normalmente despercebida traz uma grande implicação, que alguém foi enviado para a pequena vila de Meryton, em plena chuva e frio do mês de Novembro, para buscar as ―necessárias‖ rosas de cetim para os sapatos das irmãs Bennet. E essa pessoa era Sarah, que mais de uma vez se pega pensando sobre a diferença da sua situação e a das jovens para quem trabalha: The young ladies might behave like they were smooth and sealed as alabaster statues underneath their clothes, but then they would drop their soiled shifts on the bedchamber floor, to be whisked away and cleansed, and would thus reveal themselves to be the frail, leaking, forked bodily creatures that they really were. Perhaps that was why they spoke instructions at her from behind an embroidery hoop or over the top of a book: she had scrubbed away their sweat, their stains, their monthly blood; she knew they weren‘t as rarefied as angels, and so they just couldn‘t look her in the eye.487 (BAKER, 2013, p.4)

É importante destacar que, ao mesmo tempo em que chama a atenção de forma contundente para as diferentes condições de vida entre as classes sociais, Baker não transforma nem a família de Longbourn em vilões, nem Austen em uma escritora aristocrata, apenas mostra que existe um outro lado da história, a história vista de baixo, que também pode ser contada, contribuindo muito mais para uma leitura crítica e iluminadora do original do que as centenas de continuações iguais publicadas todo ano.

485 ―Na porta ao lado, descendo à dispensa, Sarah se debruçava sobre a tábua de lavar, esfregando uma barra manchada. A anágua tinha sete centímetros de mancha de lama quando ela tinha recolhido a roupa do chão do quarto das meninas e já tinha ficado de molho em sabão. O sabão não tinha afetado a marca mas machucava suas mãos, já rachadas e machucadas do frio, fazendo-as arder. Se Elizabeth tivesse que lavar suas próprias anáguas, Sarah sempre pensava, ela iria ser provavelmente um pouco mais cuidadosa com elas‖ (tradução minha). 486 ―Se não houvesse a necessidade de se prepararem para o baile de Netherfield e de conversarem sobre ele, as senhoritas Bennet mais novas estariam realmente em um estado lastimável a essa altura, pois, do dia do convite ao dia do baile, houve uma sucessão tão grande de chuvas que impediu suas caminhadas até Meryton. Nem tia, oficiais, ou novidades podiam ser buscadas – as próprias rosas para adornar os sapatos para o baile tiveram que ser compradas por outra pessoa‖ (tradução minha). 487 ―As jovens damas podiam se comportar como se fossem estátuas de alabastro lisas e seladas por baixo de suas roupas, mas quando elas deixavam suas combinações no chão do quarto para serem recolhidas e lavadas, então elas se revelavam como criaturas corporais frágeis, com vazamentos e fendas, que elas realmente eram. Talvez fosse por isso que elas davam instruções para Sarah sem olhar de seu bordado ou livro: ela tinha esfregado o seu suor, manchas e sangue, ela sabia que elas não eram anjos etéreos, e então elas simplesmente não conseguiam olhar direto nos seus olhos‖ (tradução minha).

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Contudo, ainda que vez ou outra encontremos uma releitura interessante como Longbourn, o mundo da fanfic e das continuações das obras de Austen raramente escapa ao que Jim Collins chama de ―conglomerate cultural production‖ (Collins, 2013, p.644) na medida em que as editoras continuam a reeditar suas obras e a publicar as continuações e os grandes estúdios continuam a produzir adaptações para cinema e seriados de TV seguindo a mesma linha de abordagem. Ainda que no universo da fanfic haja mais espaço para ―inovações‖, sabemos que essas produções de cinema e TV também são absorvidas pelo fanon, como no caso da aparência física do ator Colin Firth para definir Mr. Darcy, criando convenções fixas que podem questionar o status da fanfic como um tipo de escrita livre, já que, na verdade, afirma Pimenova, a fan fiction só empresta suas personagens e cenários e expande um universo já existente sem desejar independência no sentido de se libertar do original. Ao contrário, ela quer ser um tributo ao texto fonte e pertencer a ele, mas em seus próprios termos (Pimenova, 2009, p.48). Além disso, essa combinação entre o universo online dos fãs e do mercado editorial no caso de Austen questiona a definição de que fanfics são ―textos sem fins lucrativos ou comerciais baseados em outros textos ficcionais (séries, filmes, livros) e escritos por seus fãs‖ (idem, p.44, tradução minha), dado o que Wells chama de ―Market value‖ da marca Austen (Wells, 2011, p.23) e que pode ser observado nos incontáveis produtos associados ao seu nome, além, claro, de livros e DVDs. É por isso que, para Collins, há muito mais no mundo da fanfic do que textos publicados na internet, pois essas produções, por serem elaboradas e divulgadas de forma transmidiática, devem ser compreendidas como uma construção de um universo muito mais complexo, dentro do qual cada mídia ou canal cria uma forma diferente de experiência:

Os prazeres de se perder em um universo ficcional foi expandido por outro tipo de experiência de imersão – mover através de universos ficcionais agregados, que constituem um metaverso em constante expansão – um termo especialmente útil porque ele se refere à miríade de extensões do universo ficcional original por outros textos através de diferentes formatos de mídia ao longo de décadas. Mark J. P. Wolf argumenta que mundos imaginários diferem de entidades de mídia tradicionais porque ―eles são frequentemente transnarrativos e transmidiáticos em forma, abrangendo livros, filmes, videogames, sites de internet e até obras de referência como dicionários, glossários, atlas, enciclopédias e mais‖. (COLLINS, 2013, p.644, tradução minha)

O melhor exemplo desse ―world building‖ transmidiático é a série independente ―The Lizzie Bennet Diaries‖, exibida no YouTube entre os anos de 2012 e 2013, uma adaptação que traz a personagem principal como uma estudante de pós-graduação que grava vídeo-blogs narrando o seu cotidiano e o de sua família como parte de sua tese, enquanto Mr. Darcy aparece como um jovem empreendedor e CEO de uma empresa de comunicação,

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Pemberley. O universo construído para essa série incluía desde um site oficial na internet dessa empresa, como se existisse de fato, ao uso de várias mídias sociais de forma integrada. Por exemplo, as personagens possuíam contas no Twitter e no Facebook, comentavam em tempo real os vídeos de Lizzie assim que disponibilizados e arregimentaram milhões de seguidores que, ―entrando no jogo‖, comentavam também o que se passava como se tudo fosse vida real e ninguém soubesse o fim da história. O sucesso foi estrondoso: o episódio em que Lizzie Bennet e William Darcy finalmente ficam juntos foi assistido mais de um milhão de vezes. O seriado ganhou um prêmio Emmy e ―Pemberley Digital‖ foi registrado como o nome oficial da produtora independente, que já continua em seu quinto seriado no YouTube, agora sobre Little Women de Louisa May Alcott, depois de ―Frankenstein, MD.‖, ―Emma Approved‖ e ―Welcome to Sanditon‖. Em 2014, fazendo o caminho inverso das adaptações, os produtores lançaram o diário de Lizzie Bennet em forma de livro, e a versão ebook contém links para o leitor acompanhar os episódios do YouTube enquanto lê a mesma história. Todo esse universo construído pelos produtores dessa série ilustram o argumento de Collins de que dentro dessa construção de um mundo, a relação entre o textual e o paratextual se torna cada vez mais difícil de mapear (Collins, 2013, p.647), da mesma forma como os limites entre ficção e realidade também parecem ter sido eliminados. Assim, a ―experiência‖ de se ler Orgulho e Preconceito está cada vez mais associada a todo esse universo criado ao redor da obra e não na leitura em si do original, como se não fosse mais possível fazê-lo sem toda essa bagagem que vem sendo atrelada a ele. E mais curioso, parece também que somente ler o original não é mais suficiente, dada a sede dos fãs para encontrar mais e mais materiais a respeito de suas histórias preferidas, ou, como afirma Thomas, o seu vício: Tanto a escrita quanto a leitura de fan fiction demonstra como a narrativa é viciante. Em outras palavras, querer ―mais‖ do mundo da história, que é o objeto da devoção dos fãs, não pode ser saciado por apenas uma narrativa, e o plano e a navegação dos sites de fanfic giram em torno da seleção e leitura através das histórias, muitas vezes de uma maneira aleatória e não direta. (THOMAS, 2011, p.20, tradução minha)

Esse vício faz com que as portas da fanfic fiquem abertas para qualquer tipo de continuação, o que nos leva novamente àquele paradoxo de que, por um lado, existe um anseio por mais e mais histórias, o que leva a uma tolerância a textos muito ruins, enquanto que, por outro lado, há também uma grande reverência à autora e proteção do original e das convencções do fanon. Como coloca Collins, Uma leitura passional está baseada no que parece ser uma premissa contraditória, pois é predicada pela seleção fetichista de um autor literário acima de todos os outros e pela degustação das sutilezas de uma autoria elástica. Isso significa que é uma questão de estar dentro do universo narrativo de Orgulho e Preconceito

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originalmente escrito por Austen (e de certa forma ainda ―construído‖ por ela), mas também, ao mesmo tempo, escolher onde e como mergulhar em um vasto metaverso transautorial, one fãs conhecem seus pontos de entrada preferidos e as comunidades de leitura mais satisfatórias. (COLLINS, 2013, p.649, tradução minha)

Esses ―diferentes pontos de entrada‖ significam diferentes formas de se reconstruir o original, ou diferentes ―gêneros‖ de fanfic. Existem categorias dentro do universo da fanfic que devem ser obedecidas para classificar cada história para que o leitor possa localizar o tipo que lhe interessa. ―Mary Sue‖, por exemplo, é uma dessas categorias, assim como a chamada ―Slash Fiction‖, que reescreve as personagens principais em relacionamentos homoeróticos. E não há motivos para que Mr. Darcy, o homem perfeito da fantasia feminina, não possa também ser o mesmo homem perfeito para a fantasia LGBT. Curiosamente, porém, essa abordagem saiu das comunidades online de fanfic e há pelo menos dois livros publicados em que Mr. Darcy é gay. O primeiro, Pride and Modern Prejudice (2014), de A. J. Michaels, é uma ―modern retelling‖ / ―slash fiction‖ que narra a história entre um jovem rapaz chamado Liam (que substitui Elizabeth/Lizzie) e Mr. Darcy no nosso tempo atual. O segundo exemplo é Gay Pride and Prejudice (2012), de Kate Christie, que centra a sua história na forma como Elizabeth e Caroline Bingley se apaixonam uma pela outra, e Mr. Darcy, também gay, é apenas uma personagem secundária. Ainda que essa não seja a única motivação por trás da Slash Fiction, nesses casos parece-me que as autoras em questão perceberam que os romances de Austen – ou a literatura do cânone de uma forma geral – não representam a homossexualidade, e, portanto, haveria uma necessidade ou pelo menos uma tentativa de se apropriar e criar o próprio espaço dentro da literatura através de continuações e variações – nesse sentido, a obra funcionaria também como uma ―Mary Sue‖. Como foi escrito na propaganda para o livro de Christie, ―Queer People Deserve Happily Ever After, Too‖488. Esse slogan é problemático, obviamente, por entender O&P como um conto de fadas, mas o seu desejo deve ser entendido de forma séria pois, como nota Clara Tuite (2002, p.19), a história do romance como um gênero literário é uma história heterossexual, e as obras de Austen foram utilizadas como parte da institucionalização dessa imagem. Ela afirma que a cultura queer promove uma resistência à ―cultura nacional‖ divulgada como um construto unificador que busca representar diferentes grupos como a mesma coisa, eliminado as diferenças entre grupos díspares em nome de uma entidade particular. Nesse sentido, a cultura literária é uma instância específica da cultura nacional, um conjunto de formações culturais

488―Pessoas queer merecem um final feliz também‖ (tradução minha). Disponìvel em: http://www.amazon.com/Gay-Pride-Prejudice-Kate- Christie/dp/0985367709/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1427132379&sr=8-1&keywords=gay+pride+and+prejudice Acesado em 14/07/2015.

317 através do qual uma nação se representa para si mesma e para outras (Tuite, 2002, p.16). Como a obra de Austen foi crucial para o cânone literário inglês que funciona para promover uma reprodução cultural, (idem, p.17), a reapropriação dessa obra a partir de um viés queer abala essa construção em suas fundações, nos pilares que a sustentam. A obra de Christie é interessante nesse sentido porque ela opta por usar o máximo possível o original, mantendo por volta de 80% do texto de Austen e basicamente transferindo as falas de Darcy à Caroline Bingley – ou seja, usando a própria obra para reverter esse construto unificador da cultura nacional. Para os leitores que postaram comentários no site da Amazon.com, isso foi percebido como algo positivo porque eles sentem que o grande problema com muitas variações é que ninguém é realmente capaz de recriar o estilo de Austen, indicando que aproveitar o original não é cópia ou plágio, mas uma estratégia correta. Ao mesmo tempo, uma pessoa afirmou que essa obra fez com que ela relesse o original com outros olhos, como se esse ―conteúdo queer‖ já estivesse escondido lá nas entrelinhas, como no momento em que o narrador de O&P explica que Charlotte Lucas nunca havia pensado ―highly either of men or matrimony"489 (O&P, p.138). Essa leitora relata que: ―It gave me an entirely new outlook on life in Victorian England. Only because certain things were not spoken of at the time does not mean that they did not exist‖490. É claro que essa última parte é verdade, mas nós podemos observar aqui como essa vontade de ver (encontrar, descobrir) a si mesmo representado na literatura é um argumento muito forte a favor da obra de Christie, porque ela ―provaria‖ que relações homoeróticas sempre existiram mas apenas nunca foram incluídas nos seus romances favoritos – pelo menos não abertamente. Por outro lado, a ―realidade‖ do final dessa variação me fez questionar se realmente ela poderia funcionar como um conto de fadas queer. Depois de resolver seus desentendimentos, Elizabeth e Caroline declaram seu amor e querem viver juntas, mas como? A solução encontrada é que Elizabeth se case com Mr. Darcy, e Caroline com o parceiro de Darcy, para que ambos os casais possam viver juntos em Pemberley sob circunstâncias respeitáveis: ―you will be my wife, will you not? Perhaps not in name, but in every other way‖ ―And you, mine‖ Elizabeth said. ―And we shall reside together in one wing of Pemberley, and the boys will live on another, and we will all dine together now and again and throw lovely parties where we dance with one another‘s husbands, and no one will ever be the wiser.‖ (…)

489 ―de maneira elevada nem sobre homens nem sobre casamentos‖ (tradução minha). 490―Ele me fez de uma maneira totalmente diferente a vida na Inglaterra vitoriana. Só porque certas coisas não eram faladas na época, isso não significa que elas não existiam‖ (tradução minha). Disponível em: http://www.amazon.com/Gay-Pride-Prejudice-Kate-Christie/product- reviews/0985367709/ref=cm_cr_dp_see_all_btm?ie=UTF8&showViewpoints=1&sortBy=bySubmissionDateDe scending Acessado em 14/07/2015

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―In any case, we will have our husband‘s children, so who would question anything then? What fun we will have! I absolutely adore babies.‖ Elizabeth stopped walking. ―Our husband‘s children?‖ ―Do not worry yourself. You are likely quite fertile, a tall, healthy country girl like yourself. And if done correctly, the act with a man does not have to be unpleasant.‖ Elizabeth‘s eyes grew even wider, and Caroline laughed, the sound carrying on the breeze.491 (CHRISTIE, 2012, p.332)

Caroline também alerta Elizabeth que Darcy vai precisar de um herdeiro, logo ela precisa permitir relações sexuais com ele. A ideia não a agrada, mas no final ela aceita como sendo a única forma de ser feliz com Caroline. Mesmo se o pragmatismo dessa solução possa ser compreendido, parece-me que Elizabeth na verdade estava sacrificando pelo menos parte de sua identidade, e não entendo como isso pode configurar um verdadeiro final feliz. Apesar disso e das minhas reservas, o fato de a situação ter sido resolvida de uma forma plausível dentro da sociedade da época também agradou aos leitores. O final feliz, entretanto, é o que foi bem conduzido na obra de A. J. Michaels, e muito provavelmente porque a história foi trazida para os dias atuais, nos quais, mesmo com os constantes problemas em torno dos direitos LGBT, esse tipo de conclusão para a história é possível sem necessitar um meio-termo como no livro de Christie. O final feliz de Darcy e Liam repete a mesma fórmula, observada por Mirna Cicioni, das continuações heterossexuais, um movimento de um estado fìsico ou emocional de ―privação‖ que segue através de uma virada dramática para um resultado final de ―elevação‖ (satisfação, sucesso e crescimento) (Cicioni, 1998, p.171). Para ela, tanto para os leitores de romances tradicionais quanto de Slash Fiction, há uma certeza de que esse momento do elevação irá ocorrer, e o prazer na leitura das continuações se localiza na ordem de eventos que levam a ele e nas variações dessa ordem (idem). O aspecto mais interessante, porém, em Pride and Modern Prejudice, é que a autora decidiu manter Darcy como ele era no original e transformar Elizabeth em uma personagem masculina, Liam. Um motivo poderia ser que, tradicionalmente, a Slash Fiction ocorre com casais homem/homem, mas suspeito que um motivo ainda maior é a Darcymania atual. A construção da masculinidade de Darcy, a sua mutação em um herói perfeito, provavelmente não traria a mesma satisfação caso ele fosse transformado em uma

491 ―‗Você vai ser minha esposa, certo? Talvez não em nome, mas em todos os outros sentidos.‘ ‗E você, a minha‘, Elizabeth disse. ‗E nós vamos morar juntas em uma ala de Pemberley, e os homens vão viver em outra, e nós vamos todos jantar juntos de vez em quando e promover festas agradáveis onde vamos dançar com nossos maridos, e ninguém vai perceber.‘ (...) ‗De qualquer forma, nós vamos ter os filhos de nossos maridos, então quem questionaria alguma coisa? Vamos nos divertir tanto! Eu adoro bebês.‘ Elizabeth parou de andar. ‗Os filhos dos nossos maridos?‘ ‗Não se preocupe. Você é provavelmente fértil, uma jovem do campo alta e saudável como você. E se for feito corretamente, o ato com um homem não precisa ser desagradável.‘ Os olhos de Elizabeth se arregalaram, e Caroline riu, a brisa carregando o som‖ (tradução minha).

319 personagem feminina porque toda essa masculinidade teria que ser descartada, já que o ideal da mulher perfeita nessa fantasia não é construído em cima dos mesmos aspectos. Ou seja, o papel do herói e da heroína não é intercambiável nas duas direções, apenas na direção mulher → homem. As características que marcam a construção de Elizabeth – uma mistura de inteligência, independência e fragilidade – podem muito bem ser aplicadas para uma personagem masculina mais jovem, ainda na universidade e confuso sobre sua orientação sexual, como é o caso de Liam aqui. Também ao contrário de Christie, Michaels foi elogiada pelos leitores exatamente por não ter tentado copiar o estilo de Austen – já que todos falham nisso –, mas ainda assim ter sido capaz de escrever um bom livro com leveza e ironia. Como disse um leitor, ―Don't expect the commentary on society that Jane Austen wrote, 'Pride and Modern Prejudice' is a romance, not a great literary work. And that's quite ok‖492. Por exemplo, o diálogo abaixo entre Liam e Catherine de Bourgh conserva uma certa força do confronto original entre Elizabeth e Lady Catherine, mantendo um tom cômico e ainda incluindo uma referência ao período de Austen: ―Will is very soon to be engaged to my stepdaughter, Violet‖ (...) ―That is some truly messed up Brady Bunch shit, Mrs. de Bourgh. Also, I‘ve never seen two people less interested in each other than Violet e Will.‖ ―I‘ll have you know that they have been seeing each other for two years now - ‖ ―Is that the story you panned out to the press?‖ Liam retorted. ―Listen to me,‖ Catherine said sharply, and Liam thought he had never heard her sound quite so shrill before. ―Will is not -‖ ―He‘s gay.‖ ―I assure you, he is -‖ ―Very gay‖ ―Excuse me - ‖ ―So gay.‖ ―I‘ll have you know - ‖ ―The gayest.‖ ―If you care about him, you will leave him alone!‖ Catherine countered sharply. ―Their marriage would mean joining his fortune with Violet‘s, securing the longevity of this Family. It will not be disrupted because of some poor, perverted English major -‖ ―Oh my god, is this really happening?‖ Liam demanded. ―Are you serious right now? Did you just tumble out of the wrong century?‖493 (MICHAELS, 2014, posição Kindle 3415-3436)

492 ―Não espere o comentário social que Jane Austen escreveu, Pride and Modern Prejudice é um romance, não uma grande obra literária. E não há nada de errado com isso‖ (tradução minha). Disponìvel em: http://www.amazon.com/Pride-Modern-Prejudice-AJ-Michaels/product- reviews/1627987096/ref=cm_cr_dp_see_all_btm?ie=UTF8&showViewpoints=1&sortBy=bySubmissionDateDe scending Acesso em 06/07/2015. 493 ―O Will logo estará noivo da minha enteada, Violet‘. ‗Isso é uma merda estranha tipo Famìlia Sol-Lá-Si-Dol, Mrs. de Bourgh. Além disso, eu nunca vi duas pessoas tão pouco interessadas uma na outra como Violet e Will‘. ‗Quero que você saiba que eles estão saindo juntos há dois anos‘. ‗É essa a história que você inventou para a imprensa?‘ retrucou Liam. ‗Escute aqui‘, Catherine disse abruptamente, e Liam pensou que nunca a tinha escutado soar tão agudo antes. ‗Will não é...‘ ‗Ele é gay‘. ‗Eu te garanto, ele...‘ ‗Muito gay‘. ‗Com licença..‘ ‗Tão gay.‘ ‗Quero que você saiba…‘ ‗O mais gay‘. ‗Se você se importa com ele, deixe-o sozinho‘. Catherine respondeu de forma afiada. ‗O casamento deles significaria a união da sua fortuna com a de Violet, assegurando

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Críticas negativas, por sua vez, parecem focar somente na falta de cenas eróticas explícitas, uma característica comum da Slash fiction online, o que um é pouco surpreendente já que muitas continuações e variações de O&P procuram trazer com grandes detalhes a vida sexual de Darcy e Elizabeth. Fica a dúvida então se essa restrição, por assim dizer, na obra de Michaels foi um desejo da própria autora ou se foi imposta pelo fato de a história estar sendo publicada como livro e não em comunidades de fanfic, como se a apresentação de sexo homossexual explícito fosse, de alguma forma, ofensivo demais. Por fim, não foi mencionada pelos leitores a ideia de que essa abordagem queer da obra de Austen pudesse ser uma reivindicação de um direito dentro de um gênero literário tradicionalmente heterossexual, talvez porque a história, que ocorre em nosso tempo, mostra algo que já é – relativamente – aceito e até transformado em mercadoria, como podemos observar pela crescente indústria de romances voltados para o público gay e lésbico. Assim, mesmo que a grande maioria das continuações da obra de Austen seja repetitiva em torno da superavaliação do amor, e muitas reproduzam inclusive aquela imagem da querida Tia Jane, essa prática abriu caminho para algumas abordagens mais criativas que criticam outras formas de opressão as quais Austen não abordou. Quando Claudia Johnson (1995, s/p) afirmou que, mesmo sem a Slash Fiction, Austen já era uma autora cultuada por muitos gays e lésbicas, eu acredito que em parte isso ocorria porque eles conseguiam enxergar o que a maioria de seus leitores, envolvidos pela imagem romatizada da autora, não conseguiram: a sua crítica social. A comunidade queer talvez veja as questões de gênero presentes em seus romances e identifica em parte com a questão da opressão das mulheres porque, no final, o seu opressor é o mesmo, a sociedade patriarcal. E isso é importante para tentar desvincular Austen da leitura nostálgica da Inglaterra, do seu período regencial, e da vida aristocrática à qual ela parece ter sido associada e vem sendo usada como símbolo e porta-voz, dando um novo fôlego à sua obra. Entretanto, essa influência mútua entre o universo da fanfic, as continuações publicadas e as adaptações de cinema e TV pode produzir obras que vão para o caminho exatamente inverso. O exemplo mais importante é a categoria do ―Mash-Up‖ na fanfic, em que obras literárias tradicionalmente opostas pelos seus temas e subgêneros são combinadas, o que resultou no livro Orgulho e Preconceito e Zumbis. Lançado em 2009 por Seth Grahame-Smith, Orgulho e Preconceito e Zumbis (doravante OPZ) foi construído a partir da colagem de textos de O&P original com trechos a longevidade desta famìlia. E não vai ser impedido por causa de um estudante de inglês pobre e pervertido...‘ Meu Deus, isso é real?‘ perguntou Liam. ‗Você está falando sério agora? Você acabou de aterrissar no século errado?‘‖ (tradução minha).

321 novos referentes a zumbis. De uma certa forma, OPZ possui uma natureza híbrida em relação aos tipos de recriações das obras de Jane Austen que venho acompanhando porque combina um tema totalmente estranho ao universo de Austen enquanto tenta ser muito fiel ao seu texto e estilo. Isso é evidente já na capa do livro, na qual aparecem os nomes tanto de Austen quanto de Grahame-Smith – Austen em primeiro lugar –, como se fosse um livro escrito de fato a quatro mãos. Em entrevista concedida à Time, Seth Grahame-Smith afirma que a inspiração que levou a OPZ veio do editor da Quirck Books, Jason Rekulak, que um dia telefonou para ele e disse: ―All I have is this title, and I can‘t stop thinking about this title. (…) Pride and Prejudice and Zombies‖494 (apud Grossman, 2009, s/p). Aparentemente, a ideia nascera da comparação de uma lista de livros em domínio público como O morro dos ventos uivantes e Crime e Castigo com uma lista das personagens de ficção mais populares, como ninjas e piratas. Trata-se, obviamente, de uma proposta com objetivos comerciais claros, criada pela editora e não pelo autor, que quase funciona como um ghost writer cujo papel foi basicamente o de montar o quebra-cabeça da mistura de um texto de 1813 com monstros do século XX. A primeira questão que surge dessa pequena história então é, por que zumbis? De que forma esse monstro, geralmente associado aos filmes B norte-americanos, encontrou seu caminho para um livro que vem sendo lido cada vez mais como o conto da Cinderela? Jamie Russell, em um estudo sobre a origem dessas criaturas no imaginário popular e na indústria cultural, afirma que vampiros e lobisomens demandam respeito, ―enquanto o zumbi é um ―bufão‖ que se arrasta pelas margens do cinema de terror‖ (Russell, 2010, p.17). Para reforçar seu argumento, ele cita James B. Twitchell, que diz: ―O zumbi é um cretino absoluto, um vampiro lobotomizado, e é isso que tende a levar [filmes de zumbi] a ser pouco mais que veículos de violência explícita, cheios de gente se cutucando e ocasionalmente se alimentando uns dos outros‖ (Russell, 2010, p.17). O zumbi não pensa, não seduz, não planeja, não é nem essencialmente mau. Ele apenas tem fome e se arrasta pelo mundo em busca de alimento. Um zumbi sozinho nem é tão ameaçador, apesar de extremamente repulsivo, mas o grande problema está no fato de que eles andam em bandos – como qualquer predador – e vão devorar todos os descuidados que aparecerem em seu caminho. Sem o suporte de uma herança literária para apoiá-lo, como possuem Drácula, o monstro de Frankenstein e Mr. Hyde, o zumbi torna-se, nas palavras de Russell, ―um

494 ―Tudo o que eu tenho é esse título, e eu não consigo parar de pensar nesse título... Orgulho e Preconceito e Zumbis‖ (tradução minha).

322 intrometido do século XX, cuja primeira aparição para valer no mundo anglo-saxônico remonta à publicação de ‗A ilha da magia‘, o estudo divisor de águas sobre o Haiti, escrito por William Seabrook em 1929‖ (Russell, 2010, p.18). William Seabrook era um aventureiro que escrevia livros de viagem e sua expedição ao Haiti, quando da ocupação militar da ilha pelos EUA, tornou-se uma referência sobre o vodu e a lenda sobre a sua capacidade de reviver os corpos de pessoas mortas. Imediatamente após a publicação de seu livro, que se tornou um sucesso de vendas, a figura do zumbi começou a aparecer em contos de terror na década de 1930. Mas foi Hollywood que descobriu o seu potencial para sustos, na esteira dos sucessos de filmes como ―Drácula‖ e ―Frankenstein‖, ambos de 1931, estrelados pelos consagrados atores do terror Bela Lugosi e Boris Karloff. Nas palavras de Russell, após a publicação do livro de Seabrook, ―(...) com a febre por histórias de zumbi e com as crescentes superstições de vodu, foi Hollywood – a fábrica de sonhos do país – que transformou o zumbi no pesadelo norte-americano‖ (Russell, 2010, p.35). Apesar de ter sido adaptado aos cinemas tão cedo quanto possível, ainda na década de 1930, com o mesmo Bela Lugosi no papel do feiticeiro líder dos zumbis, o filme clássico desse monstro é ―A madrugada dos mortos‖, de George Romero, de 1978. Mesmo sendo reverenciado pelo seu público cativo, trata-se, para Russell, de uma obra do lado B do cinema por causa do status rebaixado desses monstros (Russell, 2010, p.18). Tal imagem, no entanto, vem mudando nos últimos quinze anos, com o aumento exponencial de filmes dentro dessa temática e jogos de videogame, a exemplo da série ―Resident Evil‖, cuja bilheteria total, em época de pirataria, superou a casa dos quinhentos milhões de dólares. O próprio clássico de George Romero foi refilmado em 1990 e novamente em 2006 em 3D. Em muitas dessas obras, o zumbi aparece com mais inteligência, rapidez e até consciência, modificando a imagem original do morto-vivo que se arrasta pelas ruas, deixando-o mais assustador. Mas nada promove um sorriso maior nos executivos da FOX do que o seriado de televisão ―The Walking Dead‖. Originalmente em formato de uma revista de quadrinhos mensal lançada em 2003, a história clássica de um pequeno grupo de pessoas tentando sobreviver no mundo devastado pelos zumbis atingiu níveis altíssimos de audiência em suas temporadas, o que produziu uma ―spin-off‖ em 2015, ―Fear The Walking Dead‖. Com esse sucesso todo, não é de se estranhar que os zumbis tenham se voltado para conquistar o último território que lhes tinha sido negado no início, a literatura. Voltamos, assim, à Orgulho e Preconceito e Zumbis. Como já afirmei, Grahame- Smith combinou o texto de Austen com novas passagens para inserir um conteúdo específico que contextualiza um mundo regencial dominado por zumbis, mantendo cerca de 80% do

323 texto original. Nem mesmo a famosa abertura do romance escapou desse processo. Em O&P, a história começa assim: It is a truth universally acknowledged that a single man in possession of a good fortune must be in want of a wife. However little known the feelings or views of such a man may be on his first entering a neighborhood, this truth is so well fixed in the minds of the surrounding families, that he is considered as the rightful property of some one or other of their daughters. ‗My dear Mr. Bennet,‖ said his lady to him one day, ―have you heard that Netherfield Park is let at last?'' Mr. Bennet replied that he had not. ‗But it is,‘ returned she; ‗for Mrs. Long has just been here, and she told me all about it.‘ Mr. Bennet made no answer. ‗Do not you want to know who has taken it?‘ cried his wife impatiently.495 (O&P, p.3)

Agora o mesmo trecho com as alterações de Grahame-Smith indicadas em itálico: It‘s a truth universally acknowledged that a zombie in possession of brains must be in want of more brains. Never was this truth more plain than during the recent attacks at Netherfield Park, in which a household of eighteen was slaughtered and consumed by a horde of the living dead. ‗My dear Mr. Bennet,‘ said his lady to him one day, ‗have you heard that Netherfield Park is occupied again?‘ Mr. Bennet replied that he had not and went about his morning business of dagger sharpening and musket polishing – for attacks by the unmentionables creatures had grown alarmingly frequent in recent weeks. ‗But it is‘, returned she. Mr. Bennet made no answer. ‗Do not you want to know who has taken it?' cried his wife impatiently.496 (GRAHAME-SMITH, 2009, p.7)

Os trechos destacados exemplificam o tipo de alteração realizada por Grahame- Smith para inserir a temática dos zumbis dentro do romance. A maioria está relacionada às cenas em que as personagens comentam sobre ataques por hordas e mortes violentas ou lutam com os chamados ―unmentionables‖. Outras são apenas mudanças de detalhes aqui e ali. Por exemplo, no capítulo 43, a governanta de Mr. Darcy afirma que ele acabou de enviar um

495 ―É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, de posse de boa fortuna, deve estar necessitado de uma esposa. Por mais desconhecidos que sejam os sentimentos e as opiniões desse homem no momento em que chega a uma nova vizinhança, tal verdade está tão bem entranhada na mente das famílias da região que ele é considerado por direito propriedade de uma ou outra de suas filhas. ‗Meu caro senhor Bennet‘, disse-lhe a esposa certo dia, ‗já soube que alguém finalmente alugou Netherfield Park?‘ O senhor Bennet respondeu que não. ‗Mas foi alugado‘, ela continuou, ‗pois a senhora Long acabou de sair daqui e me contou tudo‘. O senhor Bennet nem respondeu. ‗Não lhe interessa saber quem alugou?‘, exclamou a esposa impaciente.‖ (trad. Alexandre de Souza, p.103 com alterações minhas). 496 ―É uma verdade universalmente reconhecida que um zumbi em posse de cérebros deve ter a necessidade de mais cérebros. Nunca essa verdade foi mais clara do que durante os recentes ataques a Netherfiel Park, nos quais dezoito pessoas da casa foram mortas e consumidas por uma horda dos mortos-vivos. ‗Meu querido Mr. Bennet‘, disse sua esposa para ele um dia, ‗você ouviu que Netherfield está ocupada novamente?‘ Mr. Bennet respondeu que não e continuou com sua tarefa matinal de afiar adagas e polir mosquetes – pois os ataques pelas inmencionáveis criaturas tinham crescido de forma alarmente nas semanas recentes. ‗Mas ela está‘, respondeu ela. Mr. Bennet não respondeu nada. ‗Você não quer saber quem a ocupou?‘ gritou sua esposa impacientemente.‖ (tradução minha)

324 presente para sua irmã, Miss Georgiana Darcy. Na versão de Austen, esse presente era um piano. Aqui, tornou-se uma espada. A princípio uma minúcia, a troca do piano pela espada mostra uma mudança significativa nesse universo. Podemos observar isso na fala de Mr. Darcy, logo no começo do capítulo 8, quando afirma que uma mulher, para receber a distinção de ser considerada ―accomplished‖ ou talentosa, necessita (...) a thorough knowledge of music, singing, drawing, dancing, and the modern languages; she must be well trained in the fighting styles of Kyoto masters and the modern tactics and weaponry of Europe. (…) All this she must possess, and to all this she must yet add something more substantial, in the improvement of her mind by extensive reading497 (GRAHAME-SMITH, 2009, p.34).

Podemos observar nesse trecho como a inserção do conteúdo temático pela referência ao treinamento em artes marciais e manejo de armas, em meio a uma lista de atividades destinadas às mulheres no tempo de Austen, provoca uma mudança no universo da história, ou no que era esperado do sexo feminino. As grandes damas deveriam, sim, ser boas costureiras, bordadeiras, musicistas e cultas, mas tinham que ser também boas guerreiras. No entanto, são habilidades tão díspares, contraditórias até, que uma até parece negar a outra, impedindo que a descrição faça muito sentido e indicando a sua artificialidade. Esse é um sentimento que vai permear toda a leitura desse livro, a de que a mistura forçada desses dois mundos não obteve nenhuma coerência interna, ainda mais a partir de uma tentativa de imitação do estilo formal de Austen. Também a partir dessa passagem podemos perceber que, apesar de assolados e assombrados por esses monstros, a vida das personagens parece continuar a mesma. No capítulo 3, o primeiro baile em que Darcy e Elizabeth se conhecem é bruscamente interrompido por um ataque de zumbis e algumas pessoas da vizinhança acabam devoradas. Ainda assim, o capítulo termina praticamente igual ao original. A frase destacada abaixo indica a única mudança nesse trecho: Apart from the attack, the evening altogether passed off pleasantly for the whole family. Mrs. Bennet had seen her eldest daughter much admired by the Netherfield Party. (…) Jane was as much gratified by this as her mother could be, though in a quieter way. Elizabeth felt Jane‘s pleasure. Mary had heard herself mentioned to Miss Bingley as the most accomplished girl in the neighborhood; and Catherine and Lydia had been fortunate enough never to be without partners, which was all that they had yet learnt to care for at a ball. They returned, therefore, in good spirits to Longbourn, the village where they lived, and of which they were the principal inhabitants.498 (GRAHAME-SMITH, 2009, p.16)

497 ―um conhecimento profundo de música, canto, desenho e lìnguas modernas, e deve ser treinada muito bem no estilo de luta dos mestres de Kyoto e nas táticas modernas de armamento europeias. Tudo isso ela deve possuir, e a tudo isso ela deve acrescentar algo ainda mais substancial, a melhoria de sua mente pela leitura extensiva‖ (tradução minha). 498 ―Com exceção do ataque, a noite transcorreu de uma forma geral de maneira agradável para toda a família. Mrs. Bennet tinha visto sua filha mais velha ser muito admirda pelo grupo de Netherfield. Jane estava tão grata por isso quanto sua mãe, apenas de forma mais quieta. Elizabeth sentia o prazer de Jane. Mary tinha se ouvido

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Em OPZ, portanto, a rotina continua normalmente, as convenções sociais, as divisões de classe, a necessária busca por maridos, mesmo dentro de uma Londres sitiada. A perda de amigos e vizinhos não é lamentada, eles são apenas números em um cenário que torna as pessoas dormentes e acostumadas com esse aspecto inevitável de sua realidade – perdendo, assim, aquilo que as tornava humanas. O choque é ainda maior quando um sentimento humano aparece manifestado pelo monstro, em uma cena em que as irmãs Bennet encontram dois zumbis, uma mulher e um bebê: A long-dead female zombie stumbled out of the woods, her modest clothing slightly tattered; her brittle hair pulled back so tightly that it had begun to tear the skin of her forehead. In her arms, she held something exceedingly rare; something none of the sisters had ever seen, or ever wished to see—an unmentionable infant. It clawed at the female‘s flesh, emitting a most unpleasant series of shrieks. Elizabeth raised her musket, but Jane was quick to grab the barrel. ‗You mustn‘t!‘ ‗Have you forgotten your oath?‘ ‗It‘s an infant, Lizzy!‘‖499 (GRAHAME-SMITH, 2009, p.92)

Ao fim da cena, Elizabeth não consegue eliminar a mãe e o bebê, mas as irmãs juram nunca mencionar o acontecido ou o que viram, como se esse seu pequeno momento de fraqueza e indecisão não tivesse espaço nesse mundo apocalíptico. Se, como afirma Jamie Russell, o zumbi é ―(...) acima de tudo, um sìmbolo de nosso universo ordenado virado de cabeça para baixo, quando a morte torna-se vida e a vida torna-se morte‖ (Russell, 2010, p.19), nessa cena temos um momento em que o monstro se torna humano por carregar consigo seu bebê, e o humano passa a ser o monstro que iria matar uma criança. Para Noël Carrol, uma característica que define o que é o gênero do horror é a presença de um monstro inesperado, anormal, algo que se deve temer... não, mais do que isso, é algo de que se deve fugir, desesperadamente, para salvar a própria vida. Por isso, além da presença dos monstros em si, Carrol argumenta que a reação afetiva das pessoas na presença das criaturas (o medo, o grito) também define o gênero (Carrol, 1999, p.32-33):

Boréadas, grifos, quimeras, basiliscos, dragões, sátiros e que tais são criaturas aborrecidas e temíveis no mundo dos mitos, mas não são não-naturais; podem ser aceitas pela metafísica da cosmologia que as produziu. Os monstros do horror, porém, quebram as normas de propriedade ontológica presumidas pelos personagens ser mencionada por Miss Bingley como a jovem mais talentosa da região, e Catherine e Lydia tinham tido a sorte de nunca ficarem ser parceiros para dançar, que era tudo o que elas aprenderam a valorizar em um baile. Eles retornaram, portanto, de bom humor para Longbourn, a vila na qual moravam e da qual eram os principais habitantes‖ (tradução minha). 499 ―Uma mulher zumbi morta há muito tempo se arrastou da floresta, suas roupas modestas levemente rasgadas; seu cabelo frágil puxado para trás tão fortemente que começava a rasgar a pele de sua testa. Em seus braços, ela carregava alguma coisa excessivamente rara, alguma coisa que nenhuma das irmãs tinha jamais visto, ou desejado ver – um bebê inmencionável. Ele arranhava a pele da mulher, emitindo uma série de gritos desagradáveis. Elizabeth ergueu seu mosquete, mas Jane rapidamente agarrou o cano da arma. ‗Você não pode!‘ ‗Você esqueceu o nosso juramento?‘ ‗É um bebê, Lizzy!‘‖(tradução minha).

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humanos positivos da historia. Ou seja, nos exemplos de horror, ficaria claro que o monstro é um personagem extraordinário num mundo ordinário, ao passo que, nos contos de fada e assemelhados, o monstro é uma criatura ordinária num mundo extraordinário. (CARROL, 1999, p.32)

Quando voltamos a OPZ e observamos que todas as pessoas continuam suas vidas da mesma maneira, apenas adaptando-a a essa situação estranha, percebemos que os monstros e a violência fazem parte do universo normal desse livro e não provocam as reações afetivas esperadas das pessoas envolvidas segundo a definição de Carrol. OPZ, assim, não consegue assustar os leitores e nem se sustentar como um livro de horror. O ponto curioso é que ele também não tenta usar aquela fórmula do supersentimentalismo que envolve Orgulho e Preconceito atualmente. Ele não foca nos sentimentos de Darcy e Elizabeth e, quando aborda a tensão sexual entre as duas personagens, isso é feito de uma maneira cômica, como na passagem abaixo em que eles são forçados a esperar, juntos, pelos tios de Elizabeth, e o momento é bastante desconfortável porque é a primeira vez em que se encontram desde a recusa do primeiro pedido de casamento de Darcy. Destaquei em itálico a única frase igual ao original: At such a time much might have been said, but nothing was. Elizabeth and Darcy merely looked at one another in awkward silence, until the latter reached both arms around her. She was frozen – ‗What does he mean to do?‘ she thought. But his intentions were respectable, for Darcy merely meant to retrieve his Brown Bess [uma espingarda], which Elizabeth had affixed to her back during her walk. She remembered the lead ammunition in her pocket and offered it to him. ‗Your balls, Mr. Darcy?‘ He reached out and closed her hand around them, and offered, ‗They belong to you, Miss Bennet.‘ Upon this, their colour changed, and they were all forced to look away from one another, lest they laugh.500 (GRAHAME-SMITH, 2009, p.205).

Podemos observar como Grahame-Smith brinca com a atração física que pode existir entre os protagonistas, a qual é o tema de diversos debates tanto entre fãs quanto na academia. Como afirmei anteriormente, essa referência não é nova. A grande maioria das continuações modernas das obras de Jane Austen procura trazer para o público, com detalhes, o que aconteceria na vida íntima de Darcy e Elizabeth, os quais, como o casal perfeito, são invariavelmente retratados como grandes amantes e com uma vida sexual ativa e corpos invejáveis. Se esse seria realmente o caso nos casamentos reais da elite inglesa da virada do século XVIII para o XIX é muito difícil de acreditar, dado principalmente o status da mulher

500 ―Em um momento como esse, muito poderia ter sido dito, mas nada foi. Elizabeth e Darcy meramente olhavam um para o outro em um silêncio desconfortável, até que o último esticou os dois braços ao redor dela. Ela congelou – ‗o que ele quer fazer?‘ ela pensou. Mas suas intenções eram respeitáveis, pois Darcy queria apenas recurar sua espingarda, a qual Elizabeth tinha pendurado nas costas durante a caminhada. Ela lembrou a munição de chumbo em seu bolso e a ofereceu para ele. ‗Suas balas, Mr. Darcy‘. Ele esticou a mão e a fechou em volta da sua, e ofereceu, ‗Elas pertencem a você, Miss Bennet.‘ Com isso, a cor de ambos mudou, e eles foram forçados a olhar para longe um do outro para evitar o riso‖ (tradução minha).

327 nessa sociedade e o que era considerado aceitável e o que era considerado depravação. As continuações, portanto, parecem trazer muito mais um reflexo de uma ideia de desejo contemporânea, da busca pela satisfação sexual que dita a nossa sociedade atual. Para os leitores modernos, um casal não pode ser feliz sem uma vida sexual plena e perfeita, nem mesmo em meio à destruição do mundo por zumbis. Finalmente, a franqueza da linguagem utilizada por Grahame-Smith aparece em todas as suas intervenções, como na passagem acima na qual eles conversam sobre as ―balas/bolas‖ de Mr. Darcy, o que é uma perda terrível principalmente para os diálogos entre os protagonistas. Muitos discursos no original, principalmente os de Elizabeth, são recheados de significados ambíguos e de uma ironia fina que torna a interpretação do romance um desafio a ser decifrado e alimenta o debate acadêmico. Infelizmente, quando a aversão de Elizabeth ou a atração de Darcy são colocadas claramente para todos, a principal característica do estilo de Austen, a sua resistência a definições, é perdida para sempre. Como coloca Adriana Veras, o nome de Austen está na capa, suas palavras estão no livro, mas ela não é mais a autora (Veras, 2015, p.86). E mesmo assim, com apenas um dia de lançamento, Orgulho e Preconceito e Zumbis tornou-se o décimo livro mais vendido no site Amazon.com (Kellogg, 2009, s/p). Com o sucesso de vendas, dois outros livros foram produzidos: o primeiro é Dawn of the Dreadfulls, uma ―prequel‖ que relata o início da praga zumbi e o aprendizado de Elizabeth nas artes marciais, e uma continuação de OPZ intitulada Dreadfully Ever After, que relata a vida após o casamento das personagens principais, em que Elizabeth busca uma cura para Darcy que fora mordido por um zumbi. OPZ passa a ser apresentado, então, como o volume dois de uma trilogia, e a conexão com o original vai ficando cada vez mais distante. Apesar das grandes vendas, do ponto de vista formal o livro pode ser visto como um fracasso em vários níveis, pois ele perde as críticas sociais e a ironia brilhante de Austen, perde também o romantismo valorizado atualmente, o que lhe rendeu muitas críticas dos fãs, e não consegue nem se tornar um livro de horror. OPZ acaba sendo, então, um simulacro de O&P, e a figura do zumbi parece ser uma boa metáfora para uma relação em que a obra original ainda está lá, caminhando com todos os indícios de que ainda vive, porém está morta. Comercialmente, no entanto, não há como negar que OPZ foi um grande sucesso obtido através da união de dois universos muito populares atualmente, os romances regenciais e os filmes de horror, sendo que a escolha de manter o título original e colocar o nome de Jane Austen na capa como ―coautora‖ foi uma estratégia de marketing claramente bem sucedida em um momento em que qualquer coisa associada ao seu nome vai ser consumida pela

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Austemania. Ao mesmo tempo, a contra-capa dizia: ―Pride and Prejudice and Zombies transforms a masterpiece of world literature into something you‘d actually want to read‖501 (OPZ, contra-capa, grifo meu). Fica implìcito que clássicos são chatos, logo o ―mash-up‖ é a cura para esse problema, e seu público-alvo é claro: não os fãs de Austen, mas pessoas que não gostam do original. Como afirma Linda Troost, isso pode ser explicado porque parte da atração provocada por OPZ vem da ideia de debochar de um clássico: ―Nós somos em parte uma sociedade rebelde e o público alvo desse tipo de coisa é a audiência mais jovem, e eu acho que eles gostam de pular e pisar nas coisas que são reverenciadas pelos seus pais. E não há nada mais reverenciado pelas mães do que, digamos, Colin Firth como Mr. Darcy‖ (Troost, 2010, s/p. tradução minha). OPZ, então, é uma maneira cômica de responder àquela visão ―entendiante‖ de Jane Austen que busca pelos largos campos ingleses, suas terras verdes e agradáveis, os vestidos bonitos e os homens com maneiras elegantes (idem). A recepção pelos fãs mais tradicionais de Austen – e mais nostálgicos – foi confusa. Muitos se viram divididos entre a defesa de sua autora preferida e da pureza das suas obras – um argumento bem interessante que não é aplicado para as continuações românticas porque elas são vistas como um desenvolvimento de um legado e não como a sua destruição – e a novidade que esse livro trouxe. Surpreendentemente, muitos acabaram aprovando-o como uma boa piada. E apesar das críticas ferozes da outra metade dos fãs, a proposta de OPZ parece ter impulsionado o gênero do ―mash-up‖ para além das comunidades de fanfic, haja vista a publicação de Sense and Sensibility and Sea Monsters, Mansfield Park and Mummies, Emma and the Werewolves, entre muitos outros, e que rendeu frutos até no Brasil em obras como A Escrava Isaura e o Vampiro, Senhora, a Bruxa e Dom Casmurro e os Discos Voadores. Como não poderia deixar de ser, os zumbis também garantem sua parcela por aqui e aparecem em Memórias Desmortas de Brás Cubas. Esse fenômeno editorial, porém, não durou muito mais que alguns anos. Desde o lançamento de OPZ em 2009, muitos clássicos da literatura foram reescritos dentro desse gênero, o que parece ter levado a um certo esgotamento da fórmula que ganhou popularidade apenas por ser uma novidade. O que não significa, obviamente, que a indústria do entretenimento desistiria facilmente do que parecia ser um filão de ouro, e em fevereiro de 2016 foi lançado o filme Orgulho e Preconceito e Zumbis. A bilheteria, porém, ficou muito aquém de compensar o gasto da produção do filme502.

501 ―Orgulho e Preconceito e Zumbis transforma uma obra prima da literatura mundial em algo que você vai querer ler de verdade‖ (tradução minha). 502http://variety.com/2016/film/news/box-office-hail-caesar-pride-prejudice-zombies-1201699490/ Acessado em 30/03/2016.

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Em termos de adaptação, é interessante notar que o filme remove toda aquela tentativa de comicidade da obra de Grahame-Smith e cria uma história que se quer séria em torno da ideia de uma guerra contra o fim do mundo, na qual, obviamente, Darcy e Elizabeth são os heróis mais corajosos, e Wickham é transformado de um simples canalha para o típico vilão malvado – como ocorre em muitas continuações – que lidera o exército de zumbis para conquistar a Inglaterra. O filme também tenta retomar o romantismo que havia sido deixado de lado no livro, o que pode ser visto inclusive no elenco: a atriz que interpreta Elizabeth, Lily James, ficou famosa pelos seus papeis no seriado histórico inglês Downton Abbey (2010- 2015) e na versão de Kenneth Branagh de Cinderella (2015) – uma combinação que tornou James uma escolha óbvia dada a imagem atual da obra de Austen. Além disso, o filme também opta por trazer mais daquela tensão sexual, focando, por exemplo, nos corpos das belas porém mortais irmãs Bennet:

Fig. 26: Jane Bennet e Elizabeth Bennet se arrumam para um baile no filme ―Orgulho e Preconceito e Zumbis‖, 2016.

Por fim, o filme também incorpora referências a outras adaptações, principalmente do seriado da BBC de 1995 de O&P e a famosa cena do lago, o que nos mostra que Austen não pode mais ser explicada apenar a partir de seus romances, sendo necessário levar em consideração a sua popularidade e as imagens divulgadas por todos esses filmes e seriados. Na verdade, se retomarmos desde o fenômeno da idolatria dos Janeites do século XIX, talvez a obra de Austen nunca tenha conseguido ser analisada de forma separada a algum tipo de imagem pré-concebida da autora. Sobre as continuações, portanto, pudemos observar que a grande maioria gira em torno da repetição e do prazer advindo de reviver as mesmas emoções de novo e de novo, e isso claramente já foi percebido pelo mercado editorial voltado para esse gênero. Ainda que haja abertura para outras abordagens – como a de Longbourn ou Pride and Modern Prejudice, parece-me que a definição do que vai ser vendido através da preferência clara dos fãs pelas narrativas românticas tradicionais age como uma pré-seleção de quais histórias serão transferidas do universo da fanfic para o universo dos livros. Nesse sentido, Orgulho e

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Preconceito e Zumbis é um caso à parte que foge a qualquer explicação, e mesmo que muitos o tenham defendido argumentando que os jovens que apreciaram esse mash-up provavelmente redescobririam a obra de Austen, não consigo acreditar que uma pessoa que realmente se divertiu com o livro de Grahame-Smith possa, de alguma forma, fazer uma leitura proveitosa de uma autora brilhante como Jane Austen.

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Conclusão

Fig. 27: tirinha de Kate Beaton, cartunista canadense, s/d.503

O humor que encontro na tirinha da cartunista canadense Kate Beaton vai além do riso inicial provocado pelos absurdos da Austenmania atual. Há, na verdade, uma enorme identificação com a imagem de uma Jane Austen desanimada, bebendo para esquecer o que fizeram de sua obra (tubarões, viagens no espaço e máquinas do tempo), incrivelmente semelhante à sensação que experimento toda vez que algum amigo me recomenda o link de Orgulho e Preconceito e Zumbis porque ―sabe que eu gosto dessa autora‖ (!). A sua tirinha seguinte, ainda mais certeira, parece ilustrar o eterno debate entre os fãs e a academia:

Fig. 28: tirinha de Kate Beaton, s/d.504

503 ―Eu vi isso e me lembrei de você / Razão e Sensibilidade e Mr. Darcy e Tubarões em Motocicletas Espaciais e ainda tem uma Máquina do Tempo. / Elizabeth‖ (tradução minha). 504 ―Você esá escrevendo outra história com Mr. Darcy? / Não! Esse romance é um comentário social. / É um comentário social sobre homens atraentes e bonitões? Não. / Tem uma cena de amasso? / Me deixe em paz.‖ (tradução minha).

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―Leave me alone‖, confesso, é algo que pensei muitas vezes quando as pessoas me perguntavam se, na minha opinião de uma ―especialista‖ em Austen, o seu herói mais irresistível era Mr. Darcy ou Mr. Knightley, e várias vezes eu tentei usar o argumento de que os seus romances eram, na verdade, ―a social commentary‖ para tentar explicar o que eu realmente estudava, sem muito sucesso. Em resumo, eu ri muito quando li as tirinhas de Kate Beaton porque me vi nelas. Isso não significa, porém, que a conclusão desta tese será um ataque aos fãs e uma defesa da superioridade da academia. No caso de Austen, a verdade é que desde o advento dos Janeites no século XIX, as duas áreas – o gosto popular e a crítica literária – caminham juntas, ora se encontrando, ora se distanciando, mas é inquestionável que existe uma influência complexa e mútua. Negar isso é negar o próprio objeto de pesquisa desta tese. É muito mais interessante analisar essa relação, e foi isso o que eu tentei fazer aqui: mapear um fenômeno – a Austenmania – e mostrar os seus efeitos em um campo específico, o das continuações. A curiosidade sobre o destino de suas personagens parece ter sido uma constância na obra de Austen. Seu sobrinho James Edward registrou que, quando questionada, sua tia às vezes contava para eles o que tinha acontecido com algumas delas: In this traditionary way we learned that Miss Steele never succeeded in catching the Doctor; that Kitty Bennet was satisfactorily married to a clergyman near Pemberley, while Mary obtained nothing higher than one of her uncle‘s Philip‘s clerks, and was content to be considered a star in the society of Meriton; that the ‗considerable sum‘ given by Mrs. Norris to William Price was one pound; that Mr. Woodhouse survived his daughter‘s marriage, and kept her and Mr. Knighltey from settling at Donwell, about two years; and that the letters placed by Frank Churchill before Jane Fairfax, which she swept away unread, contained the word ‗pardon‘.505 (Memoir, p.119)

A própria escritora também parecia entregar-se ao prazer de imaginar suas personagens como pessoas reais, como na carta que ela escreveu a Cassandra em maio de 1813 em que ela narra ter ido a uma exposição de quadros em Spring Gardens: It was not thought a good collection, but I was very well pleased – particularly (pray tell Fanny) with a small portrait of Mrs. Bingley, excessively like her. I went in hopes of seeing one of her Sister, but there was no Mrs. Darcy (…). Mrs. Bingley is exactly like herself, size, shaped face, features & sweetness; there never was a greater likeness. She is dressed in a white gown, with green ornaments, which convinces me of what I had always supposed, that green was a favourite colour with her. I dare say Mrs. D. will be in Yellow. (…) We have been both to the Exhibition & Sir J. Reynolds‘, – and I am disappointed, for there was nothing like Mrs. D. at either. – I can only imagine that Mr. D. prizes any Picture of her too much to like it

505 ―Dessa maneira tradicional nós ficamos sabendo que Miss Steele nunca conseguiu conquistar o Doutor, que Kitty Bennet casou-se satisfatoriamente com um pároco perto de Pemberley, enquanto Mary não conseguiu nada melhor do que um dos advogados do seu tio Philip e estava contente em ser considerada a estrela na sociedade de Meryton, que a ‗soma considerável‘ dada a Mrs. Norris para William Price foi uma libra, que Mr. Woodhouse sobreviveu ao casamento de sua filha e a impediu junto com Mr. Knightley de se mudaram para Donwell por cerca de dois anos, e que as letras colocadas por Frank Churchill para Jane Fairfax, que ela empurrou sem ler, continua a palavra ‗perdão‘‖ (tradução minha).

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should be exposed to the public eye. – I can imagine he would have that sort [of] feeling – that mixture of Love, Pride & Delicacy.506 (Letters, pp.220-222)

A carta é uma espécie de anedota entre as irmãs, mas também ilustra a ligação afetuosa da autora com suas criaturas. E se a própria Austen podia se divertir imaginando outras histórias para suas personagens, por que não seus fãs? Esse é o argumento que baseou Sybil Brinton a escrever a sua continuação em 1913. Com exceção das tentativas dos sobrinhos de Austen de terminarem os manuscritos que ela havia deixado inacabado (The Watsons e Sanditon) ainda no século XIX, o romance de Brinton é o primeiro de seu gênero, criado no ambiente da idolatria Janeite, e absolutamente reverenciador da autora como a única autoridade possível para decidir o destino de suas personagens. Em uma nota do autor, Brinton reconhece essa autoridade pois explica que ―In this little attempt at picturing the after- adventures of some of Jane Austen‘s characters I have made use of references to them which she herself made, and which are recorded in Mr. Austen-Leigh‘s ‗Memoir‘‖ e, enquanto deixa claro o quão presunçoso pode parecer tal tarefa, ela deve ser justificada pela ―fascination of the subject‖ comum em pessoas como ela, as quais ―owe to Jane Austen of the happiest hours of their lives‖507 (Brinton, 2013, posição Kindle 8, destaque meu). Mais de cem anos depois, podemos afirmar tranquilamente que Austen deixou de ser a autoridade final sobre o seu texto, porém ela retém o seu lugar naquele mesmo altar em que os Janeites a colocaram – sim, é possìvel escrever ―Mr. Darcy e Dragões‖, mas isso não significa em nenhum momento uma falta de respeito ou de admiração para com a autora ―original‖, aquela que tornou tudo isso possível. A sua autoridade, porém, foi transferida para o fanon, como argumentei no capítulo 3, já que as convenções estabelecidas pelos fãs regem o gênero da fan fiction e ditam quais textos são aprovados em seu universo e quais são desprezados. Esse papel central do fã é geralmente associado como algo negativo, pois a sua relação como o seu objeto de adoração é visto de forma estereotipada como exagerado, obsessivo, por vezes doentio. Só isso já basta para que todas as produções de fan fiction sejam automaticamente consideradas inferiores e indignas da qualificação como literatura. Apesar

506 ―Não era considerada uma boa coleção, mas eu achei tudo bem agradável – particularmente (por favor, diga a Fanny) com um pequeno retrato de Mrs. Bingley, excessivamente parecido com ela. Eu fui até lá na esperança de ver um de sua irmã, mas não havia nenhuma Mrs. Darcy (...). Mrs. Bingley é exatamente como ela, tamanho, formato do rosto, características e doçura, nunca houve um retrato tão parecido. Ela usa um vestido branco com detalhes verdes, o que me convence ainda mais do que eu já supunha, que verde era a sua cor preferida. Eu arrisco dizer que a de Mrs. D. é amarelo. (...) Nós fomos para a Exibição e para a de Sir J. Reynold, - eu estou decepcionada, pois não havia nada como Mrs. D. nas duas. – Eu posso apenas imaginar que Mr. D valoriza muito qualquer retrato dela para apreciar que ele seja exposto ao olhar púlblico. Eu imagino que ele teria esse tipo de sentimento – aquela mistura de amor, orgulho e delicadeza.‖ (tradução minha). 507 ―Nessa pequena tentativa de retratar as aventuras posteriores de algumas das personagens de Jane Austen eu fiz uso das referências sobre elas que ela mesma fez e foram registradas no Memoir de Mr. Austen-Leigh‘ / ‗fascinação pelo objeto‘ / ‗devem a Jane Austen as horas mais felizes de suas vidas‖ (tradução minha).

334 de essa imagem ser um lugar comum, ainda assim acredito ser muito difícil encontrar alguém que realmente defenda a qualidade estética das continuações que eu analisei aqui, e mesmo aquelas que me surpreenderam positivamente, como Longbourn, ainda estão claramente aquém da complexidade da obra de Austen. Contudo, essa não é uma questão relevante para o problema porque os próprios leitores de fanfic percebem essa diferença e mesmo assim continuam produzindo e consumindo essas histórias. Logo, é necessário entender esse tipo de produção por outra abordagem, e a questão que me parece mais adequada é o prazer da leitura, o mesmo prazer observado por Janice Radway em A Feeling for Books e que comandava as escolhas do Book-of-The-Month Club: ―Esse prazer parecia ser mais emocional e absorvente, parecia estar relacionado com os encantos afetivos do transporte, da viagem e da interação social vicária‖ (Radway, 1997, p.72, tradução minha). Esse prazer, curiosamente, lembra as críticas do século XVIII sobre o romance como o gênero que permitia a identificação entre o leitor e a personagem e era, por isso, ora inovador, ora perigoso. A ideia é, assim, que os fãs buscam na fanfic o mesmo tipo de prazer que foi experimentado quando eles leram um determinado romance, o que justificaria então a repetição de aspectos considerados mais importantes para a reprodução desse prazer quando eles passam a escrever suas próprias histórias. É desse modo que entendemos, por exemplo, a insistência de um sentimentalismo nas continuações de Orgulho e Preconceito já que, para a grande maioria, o prazer relacionado à leitura desse romance está atrelado ao conflito amoroso e seu final feliz. A personagem de Mr. Darcy, identificado como o homem perfeito dentro dessa leitura, passa a ser também o ―alvo‖ mais comum da JAFF (Jane Austen Fan Fiction). Na segunda tirinha de Kate Beaton (fig.28), o fã típico atual de Austen é representado pela jovem que pergunta para a autora ―Are you writing another story about Mr. Darcy?‖ – porque é exatamente esse o seu desejo que ele vai tentar saciar no universo da fanfic. O problema logo aparece quando refletimos sobre a natureza das continuações. Terry Castle, por exemplo, já afirmava categoricamente em 1986 que continuações são sempre decepcionantes porque elas inevitavelmente falham de uma forma obscura prém fundamental (Castle, 1986, p.133). O motivo, argumenta Castle, é que as obras que inspiram continuações são textos carismáticos que articulam fantasias culturais subjacentes a um grande público leitor e produzem, por consequência, um desejo para ―mais do mesmo‖. Nesse sentido, ela diz, os leitores de continuações são motivados por uma nostalgia profunda pelo

335 prazer passado daquela leitura, mas o grande problema está no fato de que uma continuação nunca pode ser a mesma coisa que o texto original: Apesar de estabelecer uma conexão com o seu original ao invocar as mesmas personagens, uma continuação deve, pelo menos na superfície, contar uma história diferente. (...) Uma continuação não consegue nunca satisfazer o desejo dos seus leitores pela repetição, contudo. A sua estratégia é que ela não pode literalmente reconstituir o seu original carismático. Os leitores sabem disso, e ainda assim eles ficam dececpcionados. De forma inconsciente eles persistem em exigir o impossível: que continuações sejam diferentes, mas também exatamente a mesma coisa. A louca esperança secreta é encontrar na continuação um tipo parodoxal de um duplo textual – uma repetição que não parece uma, a velha história em um pretexto novo e inesperado. Eles desejam ler o ―inesquecível‖ mais uma vez, como se tivessem o esquecido. (CASTLE, 1986, p.134, tradução minha)

Se concordarmos com Castle, a fanfic parece presa a um eterno círculo em que a sua produção não satisfaz a nostalgia e o prazer da leitura original, e por não satisfazê-los é necessário que mais histórias sejam produzidas. Para alguns, é possível até equiparar esse círculo a um tipo de vício. Dez anos depois de Castle, porém, Mary Ann Gillies oferece uma outra interpretação, afirmando que nós estamos subestimando os leitores ao afirmar que eles procuram apenas pela repetição, e que na verdade eles buscam novas histórias por conta do desejo de se manter conectado com o universo (personagens e escrita inclusas) daquela obra (Gillies, 1998, p.132). Para Gillies, ao invés do ―mais do mesmo‖, fãs querem ―mais e novo‖, o que parece fazer muito mais sentido em comunidades de fan fiction voltadas aos universos de Harry Potter ou Jornada nas Estrelas. Contudo, se pensarmos na associação da obra de Austen com a Inglaterra Regencial, podemos também entender a proposta de Gillies quando analisamos a Regencymania da qual Austen é colocada como ―fundadora‖ e que inspirou escritoras de romances românticos de muito sucesso que se passam nesse período histórico, desde Georgette Heyer (que publicou mais de 40 romances chamados de ―regencies‖ entre os anos de 1930 e 1970) até a mais atual Julia Quinn, que se aproxima rapidamente do recorde de Heyer em histórias que trazem as aventuras amorosas de grandes damas e nobres cavalheiros num contexto pré-Revolução Industrial. Nesse sentido, tanto o sucesso dos romances ―regencies‖ como o das continuações dos romances de Austen podem sim estar associados ao desejo do leitor de se manter imerso nesse universo e, por que não, no simbolismo da representação de uma sociedade mais educada, refinada e romântica, o que nos mostra que a nostalgia de um passado idealizado constitui um tipo de fuga da realidade atual, o que é mais um fator importante que compõe esse fenômeno. Um outro ponto essencial aqui é a questão da mercadoria. Ainda que tradicionalmente a fan fiction seja uma forma de escrita independente, por assim dizer, por ser publicada por comunidades (agora online) sem nenhum tipo de lucro envolvido, esse não é – e

336 talvez nunca tenha sido – o caso da JAFF. Desde o começo, continuações de suas obras e tentativas de completar manuscritos inacabados foram publicadas em forma de livro, e mesmo depois do advento da internet, uma grande quantidade continua sendo produzida diretamente para esse nicho do mercado editorial. Como observou Claudia Johnson, o poder de venda do nome ―Austen‖ – filmes e adaptações, continuações, souvenires diversos – parece apenas provar a permanência do que Henry James afirmou em 1905, que a nossa querida Jane Austen, a querida Jane Austen de todo mundo, serviu um propósito material muito grande (Johnson, 2012, p.181). Dentro da lógica do mercado editorial, o papel do público leitor é fundamental para o fenômeno das continuações. Como analisou Gillies, mesmo que um autor deseje continuar sua própria obra – talvez para desenvolver uma ou outra personagem secundária, por exemplo – isso só vai acontecer se houver uma demanda dos leitores, analisada a partir do sucesso da obra original pelos editores. Só o desejo do autor não é suficiente; porém, quando o desejo dos três – leitor, autor e editor – coincidem, afirma Gillies, uma continuação se torna praticamente inevitável (Gillies, 1998, p.132). No caso da JAFF, a figura do autor e do leitor passa a ser a mesma, aumentando ainda mais essa ―inevitabilidade‖ da continuação. E, curiosamente, o papel do editor aos poucos também passa para o fã, já que as grandes editoras só vão publicar em papel as histórias que tiveram uma boa recepção nas suas versões online. A empresa norte-americana Amazon, por exemplo, permite que seus autores publiquem seus livros de fanfic sem custos, os quais são vendidos a preços muito baixos (ou até mesmo disponìveis gratuitamente para os assinantes de serviços como o ―Kindle Unlimited‖, que transforma parte do acervo da Amazon em uma grande biblioteca). Isso justifica a enorme quantidade de continuações disponíveis no site dessa empresa, muitos inclusive com erros de ortografia, indicando que nem mesmo um processo de revisão é necessário nesse sistema apressado de ―autopublicação‖. Caso alguma obra especìfica passe a ser muito procurada pelos fãs, ela é lançada em papel e o preço da versão eletrônica (ebook) aumenta. Dessa forma, o que ocorre aqui não é o encontro do interesse do autor, do leitor e do editor, como argumentou Gillies, e sim a acumulação desses três papéis numa só figura, o fã. A partir dessa nova unidade, é possível entender porque a grande maioria das continuações analisadas aqui repete um mesmo modelo de história, já que quem a produz e quem a consome são as mesmas pessoas – elas escrevem suas fanfics para satisfazer seus próprios desejos, que são comuns. E é necessário ressaltar mais uma vez que todas essas continuações não são construídas em cima de uma leitura crítica da obra de Austen, mas da valorização do sentimentalismo e da trama amorosa. Isso significa que, quanto mais Austen se

337 torna popular, quanto mais a sua fama cresce, mais difícil fica a tarefa de recuperar aspectos estéticos e políticos essenciais em seus romances e que tornam a sua leitura um exercício de reflexão. Portanto, quanto mais se fala de Austen, menos se fala de Austen. Essa contradição parece ser muito bem explicada pelo conceito de Indústria Cultural, o qual, como comentou Hullot-Kentor, indica ―uma unidade forçada daquilo que é incombinável, a junção triturante de cultura e indústria, compactados em um estado de conflito‖ (Hullot-Kentor, 2008, p.20). Dessa forma, a transformação de Austen em mercadoria efetua a substituição da complexidade pelo cliché (Fabiano, 2008, p.170) e, nas palavras de Luiz H. Fabiano, essa ―mercantilização das emoções em larga escala (...) resultou em aridez de espìrito‖ no momento em que ―a arte de maneira geral e especialmente a literatura, cooptadas pelas imposições mercadológicas, tornam-se despotencializadas na sua dimensão estética como possibilidade formativa‖ (idem, p.165). Mas, apesar de tudo, é possível que haja um lado positivo para esse fenômeno? Janet Todd, em uma entrevista comigo, declarou que, com todos os seus problemas, essa Austenmania ―certamente poderia ter acompanhado um escritor muito menor do que Jane Austen; se ela levar apenas umas poucas pessoas a ler seus maravilhosos romances atentamente, então isso deve ser aceito como uma coisa boa‖ (Todd, 2014, s/p). De fato, não podemos nos esquecer de uma característica interessante do grupo de fãs de Jane Austen, especialmente aqueles associados às diversas ―Jane Austen Society‖ ao redor do mundo, que é o seu interesse concomitante pela crítica literária da obra da autora. Isso significa que, como pude observar pessoalmente, as mesmas pessoas que desfilam com vestidos da época regencial e compram sacolas com os dizeres ―Keep Calm and Read Jane Austen‖ também assistem a palestras de professores renomados e compram seus livros. É possível, então, que toda essa exposição de Austen leve, de fato, a outras pessoas descobrirem a qualidade de suas obras. O que não podemos afirmar, contudo, é que esse tipo de leitura seja o mais comum ou que ele supere a adoração por Mr. Darcy, por exemplo. O veredito final, portanto, parece estar fadado a aguardar ainda alguns anos, já que, como sua heroína Anne Elliot observou em Persuasão, esse é um caso em que o resultado ―bom‖ ou ―ruim‖ deve ser decidido pelo próprio desenrolar do evento (P, p.268). A questão a ser decidida no futuro é: se a obra de Austen continuará, mesmo depois do fim da Austenmania, a ocupar um lugar de destaque na história da literatura, ou se ela será esquecida, sofrendo de um esgotamento via superexposição. ***

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Referências

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 JOY, Jennifer. Earning Darcy’s Trust. A Pride and Prejudice Variation. USA: Amazon Digital Services LLC, 2015, versão Kindle.  KAUER, Deborah Ann. Sense of Worth. A Pride and Prejudice Variation. USA: Deborah Ann Kauer, 2016, versão Kindle.  KENNET, Madeline. Fated to Meet. A Pride and Prejudice Variation. USA: Amazon Digital Services LLC, 2016, versão Kindle. (a)  ______The Light of Dawn. A Pride and Prejudice Variation. USA: Amazon Digital Services LLC, 2016, versão Kindle. (b)  KING, J. Dawn. Yes, Mr. Darcy: A Pride and Prejudice Novella. USA: Quiet Mountain Press, 2016, versão Kindle.  ______Compromised! A Pride and Prejudice Variation. USA: Quiet Mountain Press, 2015, versão Kindle.  ______A Father’s Sins: A Pride and Prejudice Variation. USA: Quiet Mountain Press, 2014, versão Kindle.  KING, Stacy e TSE, Po. Manga Classics: Pride and Prejudice. Canada: UDON and Morpheus, 2014.  LANG, Jennifer. Mr. Darcy’s Wedding. Darcy and Elizabeth What If? #10. USA: Amazon Digital Services LLC, 2015, versão Kindle  LARK, Jane. The Authoress. UK: Jane Lark, 2016, versão Kindle.  LILIAN, Lory. Rainy Days. An alternative journey from Pride and Prejudice to passion and love. USA: Meryton Press, 2009, versão Kindle.  ______His Uncle’s Favorite. USA: Meryton Press, 2013, versão Kindle.  ______Sketching Mr. Darcy: A Pride and Prejudice Alternative Journey. USA: Lory Lilian, 2015, versão Kindle.  LOUISE, Kara. Mr. Darcy’s Rival. USA: Sourcebooks Landmark, 2011, versão Kindle.  ______Only Mr. Darcy Will Do. USA: Heartworks Publications, 2015, versão Kindle.  MACKRORY, KaraLynne Yours Forevermore, Darcy. USA: Meryton Press, 2015, versão Kindle.  ______Haunting Mr. Darcy. USA: Meryton Press, 2014, versão Kindle.

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 SITTENFELD, Curtis. Eligible: A Novel. NY: Random House, 2016, versão Kindle.  SOTIS, Wendi A Lesson Hard Learned. USA: Amazon Digital Services LLC, 2016, versão Kindle.  ______The Gipsy Blessing. USA: Amazon Digital Services LLC, 2013, versão Kindle.  ______Foundation of Love. The Gipsy Blessing 2. USA: Amazon Digital Services LLC, 2014, versão Kindle.  STONE, Helen. A Pemberley Bride. USA: Amazon Digital Services LLC, 2016, versão Kindle.  SU, Bernie. The Secret Diary of Lizzie Bennet: A Novel. NY: Touchstone, 2014, versão Kindle.  THOMAS, Gianna Darcy Chooses – A Pride and Prejudice Variation: Choices That Darcy and Elizabeth Make. USA: NPC Pubs, 2016, versão Kindle.  THWACKERY, William C. Fifty Shades of Mr. Darcy. NY: Pocket Star Books, 2012, versão Kindle.  TOLEDO, Anne. A Return to Sanditon. USA: Amazon Digital Services LLC, 2011, versão Kindle.  UNDERWOOD, Timothy. The Return: A Pride and Prejudice Story. USA: Amazon Digital Services LLC, 2015, versão Kindle.  ______A Dishonorable Offer. An Elizabeth and Darcy Story. USA: Amazon Digital Services LLC, 2016, versão Kindle.  WEBB, Brenda J. Darcy and Elizabeth – A Promise Kept. USA: Darcy and Lizzy Publications, 2016, versão Kindle.  ______Fitzwilliam Darcy, An Honourable Man. USA: Darcy and Lizzy Publications, 2014, versão Kindle.  WEGNER, Ola. One More Chance. USA: Amazon Digital Services LLC, 2016, versão Kindle. (a)  ______Reduced Circumstances. USA: Amazon Digital Services LLC, 2016, versão Kindle. (b)  WHYTE, Carolyn. Darcy’s Denial: A Pride and Prejudice Variation (Denial and Deliverance Book 1). USA: Amazon Digital Services LLC, 2015, versão Kindle.  ______Darcy’s Deliverance: A Pride and Prejudice Variation (Denial and Deliverance Book 2). USA: Amazon Digital Services LLC, 2016, versão Kindle.

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 WILLIAMS, Caitlin. The Coming of Age of Elizabeth Bennet. USA: Amazon Digital Services LLC, 2016, versão Kindle.  WINTERS, Ben H. e AUSTEN, J. Sense and Sensibility and Sea Monsters. PA: Quirk Books, 2009.  WOOD, Beth. A Conversation Behind the Tapestries: A Pride and Prejudice Variation. USA: Amazon Digital Services LLC, 2016, versão Kindle.  ______It Started With a Kiss: A Pride and Prejudice Variation. USA: Amazon Digital Services LLC, 2015, versão Kindle.

Adaptações para Cinema e TV mencionadas:

 “Pride and Prejudice” (filme) Director: Robert Z. Leonard Studio: MGM Run Time: 1h 58 min., 1940.  “Pride and Prejudice” (seriado) Director: Cyril Coke, Studio/Network: BBC, 3h46min, 1980.  “Pride and Prejudice” (seriado) Director: Simon Langton, Studio/Network: BBC and A&E , 5h, 1995.  “Pride and Prejudice” (filme) Diretor: Joe Wright, Studio/Network: Focus Features, 2h09min., 2005.  “Lost in Austen” (seriado) Director: Dan Zeff, Studio/Network: ITV/Grenada Television Ltd., 1h30min, 2008.  “The Lizzie Bennet Diaries” (seriado) Executive Producers and Co-Creators: Hank Green e Bernie Su, 2013, Disponível em: The Lizzie Bennet Diaries YouTube Channel  “Pride and Prejudice and Zombies” (filme) Dir.: Burr Steers, 1h47min., 2016.  “Becoming Jane” / “Amor e Inocência” (filme) Director: Julian Jarrold, Studio/Network: Blueprint Pictures, Ecosse Films, Octagon Films, Scion Films Limited; Distributed by Miramax, 2 h, 2007.  “Miss Austen Regrets” (filme) Director: Jeremy Lovering, Studio/Network: BBC Drama co-production with WGBH Boston, 1h 25min. 2008.  “Sense and Sensibility” (filme) Director: Ang Lee, Studio/Network: Columbia Pictures & Mirage, 2h15min., 1995.  “Sense and Sensibility” (seriado) Director John Alexander, Studio: BBC Drama co- production with WGBH Boston, 2h54min., 2008.  “The Real Jane Austen” (documentário). Dir.: Nicky Pattison, 60min, 2002.