Corpo, mídia e sexo no século XXI: da pornotopia para a atopia sexual Autor(es): Patzdorf, Danilo Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/44908 DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/2183-6019_7_11

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impactum.uc.pt digitalis.uc.pt revista de comunicação, jornalismo e espaço público 7 mediapolis Periodicidade Semestral tema media, comunicação e género media, communication and gender Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra University Press

1 Danilo Patzdorf ECA-USP

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ORCID: 0000-0002-2538-8828 Corpo, mídia e sexo no século XXI: da pornotopia para a atopia sexual

Recebido em: 04/01/2018 | Aceite em: 11/06/2018 Body, media and sex in 21st century: from pornotopy to sexual atopy

https://doi.org/10.14195/2183-6019_7_11

Resumo Abstract Este artigo analisa a relação entre corpo, This article aims to analyze the interrela‑

mídia e sexo no século xxi. Traçando um tion between body, media and sex in the breve panorama da relação entre tecno‑ 21st century. Drawing a brief panorama on logias comunicativas e práticas sexuais, the link between communicative technolo‑ observaremos como os usos de diferentes gies and sex practices, we will look at how mídias conformaram determinadas formas the use of different media conformed some de se relacionar com o corpo nu e com certain ways to relate with the naked body o sexo. Se a pornografia consumida nos and sex. If the consumed by meios de comunicação de massa (revis‑ mass communication media (magazine, ta, cinema, VHS, etc.) constituiu aquilo movies, VHS etc) constituted that which que Preciado (2010) intitulou “pornoto‑ Preciado (2010) entitled “pornotopy”, I pia”, concluirei, a partir da análise de will conclude from the analisis of three três casos paradigmáticos escolhidos por paradigmatic cases I chose that digital mim, que os dispositivos digitais (webcam, devices (webcam, smartphone, gadgets smartphone, gadget, etc.) têm constituído etc.) have been constituting some type of uma espécie de “atopia sexual”, propi‑ “sexual atopy”, prompting the urge of new ciando o surgimento de novas formas de ways of feeling by disconnecting sexuality sentir ao desconectar a sexualidade dos from its spatial, temporal and even body imperativos espaciais, temporais e, até imperatives. mesmo, corporais. Keywords: body; media; sex; digital Palavras­‑chave: corpo; mídia; sexo; tec‑ technology; sexuality; pornography. nologia digital; sexualidade; pornografia.

171 Introdução e temporalmente distante? Parece ter acesso, o consumo e o exercício tem‑ É inegável a crescente participa‑ sido a pornografia quem começou a porário da sexualidade. ção das tecnologias digitais em nossas conjugar corpo, mídia e sexo em nos‑ Na nossa atualidade, entretanto, as práticas amorosas e sexuais: quantos sa época moderna, transformando a tecnologias digitais estão dissolvendo encontros deixariam de acontecer se literatura, a gravura, a fotografia e o essas pornotopias para nos fazerem os computadores e smartphones fos‑ vídeo em potenciais parceiros sexuais, vivenciar uma espécie de “atopia se‑ sem eliminados do nosso cotidiano? uma vez que, conforme os diversos xual” que prescinde de um local físico Neste sentido, mais do que “veículos interditos no campo da sexualidade (como o bordel) ou midiático (como de conteúdos”, as novas mídias e as se arregimentavam pelo ocidente, a revista ou o VHS) para a prática tecnologias digitais estão operando as mídias se dispunham a abrigar e sexual, bem como, por vezes, da pró‑ como arquiteturas informativas com disseminar as representações do sexo pria representação do corpo humano. as quais podemos interagir a partir e suas perversões expiadas pelo dis‑ Analisando três casos paradigmáti‑ de qualquer localização geográfica, curso religioso, jurídico, médico ou cos da nossa época, mostrarei que a desde que conectados à Internet. pedagógico. popularização do smartphone e da Como consequência disso, a utilização Junto com os bordeis, as gravuras conectividade móvel tornou possível massiva das tecnologias digitais e da obscenas, a literatura libertina e as iniciarmos, em qualquer lugar e a comunicação em rede, para além de fotografias eróticas operavam como qualquer momento, práticas sexuais facilitar encontros e inaugurar novos lugares (topos) autorizados para a com centenas de pessoas por meio de hábitos de relacionamento, está ins‑ transgressão dos interditos sexuais: (1) live shows em webcam chat sites, or‑ taurando novas sensibilidades eróticas dentro dos quartos dos prostíbulos, ganizar orgias com nossos vizinhos por ao desvencilhar o sexo dos imperati‑ entre as linhas do livro e pelas su‑ meio dos (2) hookup dating apps e até vos espaciais, temporais e, inclusive, perfícies das imagens, suspendiam­‑se mesmo acariciar, chupar ou penetrar corporais que se impuseram até então temporariamente os costumes e leis as anatomias digitais dos avatares na sobre nossas práticas sexuais. que regulavam as práticas sexuais (3) Pornografia em modelagem 3D. Como pensar o sexo e a sexualidade até a metade do século xx. Com sua Assim, nas páginas a seguir re‑ num contexto em que, graças às redes massificação realizada pela fotogra‑ fletiremos brevemente sobre a cons‑ digitais, podemos nos conectar com di‑ fia, pela revista, pelo cinema e pelo tituição dessas pornotopias para, ferentes pessoas e objetos para ver, ou‑ VHS, a pornografia parece ter consti‑ posteriormente, considerar a “atopia vir, tocar e sentir seus corpos por meio tuído, conforme veremos com Precia‑ sexual” que caracteriza nossa época das imagens, sons e impulsos elétricos do (2010), uma “pornotopia”, isto é, e apresentar a hipótese de que as tec‑ advindos de um outro local geográfica um lugar no qual estava autorizado o nologias digitais estão transformando nossa experiência sexual ao fomentar (prostituta) e graphein (escrever), corpo nu, transformando, mais uma uma sexualidade que não se inicia as quais, unidas, formam a palavra vez, nossa forma de se relacionar com nem se destina somente ao corpo, mas pronographos, isto é, “escritos sobre assuntos relacionados ao sexo. Assim, que incorpora imagens, eletricidade e prostitutas”. Embora outrora a palavra a definição e a qualidade do que é por‑ dispositivos enquanto partícipes das se referisse à “descrição da vida, dos nográfico varia de época para época, nossas atuais práticas sexuais. costumes e dos hábitos das prostitutas de região para região e até de pessoa e de seus clientes” (Moraes & Lapeiz, para pessoa, uma vez que ela resulta 1984, p. 109), no início do século xix da confluência de diferentes fatores A constituição da ela passou a qualificar aqueles livros culturais, iconográficos e morais. pornotopia (na sua maioria, romances) e gravu‑ Avaliando a história da pornografia Representações do corpo nu, inte‑ ras de cunho libertário e transgressor na literatura (Goumelot, 2000), nas ragindo ou não com seus genitais, não quanto às restrições morais (e, algu‑ gravuras (Néret, 2015), nas fotografias é uma exclusividade dos últimos sécu‑ mas vezes, jurídicas) em torno do sexo (Kempe, 2015), no cinema (Gerace, los. Como sabemos, diferentes povos (Hunt, 1999, p. 14). 2015) e no vídeo (Abreu, 2012), per‑ já em épocas longínquas produziam Com a invenção da fotografia (e cebemos que cada mídia trazia consigo desenhos, pinturas, esculturas, gravu‑ o consequente desenvolvimento do uma forma, um espaço e uma tempo‑ ras e literatura em torno do sexo1. Ou cinema), surge um novo suporte para ralidade específica para se relacionar seja, conteúdos sexuais representados a exposição do nu e do sexo, fazendo com as representações da nudez e do em diferentes suportes não surgiram mutar ainda mais o significado da‑ sexo. Contudo, se a pornografia fora nos últimos séculos, mas acompanham quilo que é pornográfico – vide os utilizada inicialmente pelos libertinos o ser humano desde o desenvolvimento livros considerados pornográficos do século xviii para desmoralizar a da linguagem. no século xix mas que agora figuram aristocracia já em decadência, bem Da mesma forma, a palavra “por‑ entre os clássicos da literatura2. Por como o poder do Estado e da Igreja, nografia” também não é nova. Provém fim, o acesso massivo à pornografia hoje ela já se tornou um produto do‑ da união das palavras gregas porne visual possibilitado pelo surgimento méstico inofensivo3. É sob este con‑ do VHS e, em seguida, pelas tecno‑ texto que se conformará aquilo que, 1 Lembremos da pequena escultura doravante logias digitais, facilitou radicalmen‑ intitulada “Vênus de Willendorf”; da peça te o consumo de representações do “Lisístrata”, de Aristófanes; das paredes de 3 Em oposição a essa condição doméstica ino‑ Pompeia repletas de desenhos, frases e pin‑ fensiva da pornografia no século xxi, temos turas sobre sexo; da figura de Príapo com seu 2 Por exemplo, As flores do mal, de Baudelai‑ o pornoterrorismo de Diana J. Torres (2011) incomensurável pênis ereto e do não menos re, e Madame Bovary, de Flaubert, ambos e o chamado pós­‑pornô analisado na obra conhecido livro Kama Sutra. publicados em 1857. organizada por Stüttgen (2009).

173 a partir de Preciado (2010), chama‑ topos específicos de consumo visual antipornográficos”, desde que utili‑ remos de “pornotopia”4: a imagem da pornografia, isto é, um consumo zada para a masturbação masculina pornográfica, enquanto vértice que recluso, discreto e, preferencialmente, individual em algum ambiente privado une (ou separa?) o espaço público individual. É assim que, em meados (Preciado, 2010, p. 25). do espaço privado, sobrevirá sempre do século xix, as imagens do corpo A pornografia, para alcançar a como um elemento capaz de pertur‑ nu e do sexo serão desligadas do fluxo proporção de onipresença com que bar a organização delineada pelas cultural, artístico, político e filosófico se desenvolve nos dias de hoje, teve cidades modernas (Dufour, 2013), dos quais anteriormente participavam que operar sobre o complexo poder­ expondo suas contradições sociais e para serem consumidas numa única ‑sexo­‑capital que se espacializava de urbanísticas no trato do corpo e da dimensão instrumental já sinalizada diversas formas pelo território urbano. sexualidade. Enquanto uma forma de desde o século xvii: provocar a excita‑ O bordel do século xix, por exemplo, “transgressão organizada”, a imagem ção sexual no seu consumidor. funcionou como um lugar de suspen‑ obscena foi paulatinamente confinada Foi sob este cenário paradoxal de são temporária dos interditos da se‑ no espaço privado, íntimo ou domés‑ repressão­‑liberalização que o exérci‑ xualidade, no qual as leis e costumes tico5, estabelecendo uma forma e um to norte­‑americano nomeou de “ma‑ vigentes ficavam do lado de fora do terial de apoio estratégico às tropas” perímetro designado por suas pare‑ 4 O termo pornotopia foi criado e empre‑ a produção de fotografias pornográ‑ des. “Heterotopias” é o nome que Fou‑ gado pelo pesquisador e crítico literário ficas realizadas e distribuídas pela cault deu para estes “contra­‑espaços” norte­‑americano em sua obra The other victorian: a study of sexu- própria instituição para os soldados que têm como “regra justapor em ality and pornography in mid­‑nineteenth­ estadunidenses da I e da II Guerra um lugar real vários espaços que, ‑century England, de 1974, para “designar a fantasia utópica implícita na pornografia” Mundial, mesmo sob as severas leis normalmente, seriam ou deveriam (Hunt, 1999, pp. 40­‑41). Em seguida, ou‑ tros autores se apropriaram do termo para antiobscenidade vigentes nos EUA ser incompatíveis” (Foucault, 2013, dar­‑lhe novos significados. Este é o caso desde 1712. O que percebemos des‑ p. 24). Surgiam, assim, heterotopias de Preciado que, apesar de não mencionar de onde provém tal termo, utilizou­‑o para ta e outras situações paradoxais é o que fraturavam temporariamente as designar a relação espaço­‑sexual corrobo‑ fato de que, a partir do século xviii, formas tradicionais de espacialização rada pela pornografia. Novamente, o termo será aqui explorado, reapropriado e, mais a pornografia pôde continuar a exis‑ do poder, alterando as formas de ha‑ uma vez, ressignificado para compor com o tir ilegalmente, mesmo sob “contextos bitar a cidade e de se relacionar com argumento deste artigo. a sexualidade. 5 A distinção entre espaço público e espaço privado (e suas derivações como social, ur- que nos desviariam do argumento central Sob esta perspectiva, Preciado bano, íntimo e doméstico) foi bem historici‑ aqui desenvolvido, recomenda­‑se a leitura analisa como a arquitetura foi a prin‑ zada, analisada e complexificada por outros da obra Arendt (2007) e da coleção Veyne autores. Para evitar divagações conceituais (1990). cipal aliada para o rápido sucesso da famosa revista Playboy6, pois, conju‑ para o mercado de trabalho (espaço dos movimentos de liberação se‑ gando matérias sobre mobiliário, músi‑ público). Com o fim das duas guerras, xual. Frente ao “império do lar ca, carro e outros assuntos relativos ao os soldados combatentes retornavam familiar heterossexual” dos anos consumo tipicamente norte­‑americano inabilitados para o trabalho, encon‑ cinquenta, topos central do sonho do pós­‑guerra, fomentava a “criação de trando um espaço privado não mais americano, Playboy havia lutado um novo espaço radicalmente oposto dividido pelas relações sexo­‑espaciais; pela construção de uma pa‑ ao hábitat da família nuclear ameri‑ cobrando­‑lhes, assim, novas posições ralela: “o império do solteiro na cana” (Preciado, 2010, p. 35, tradu‑ na sociedade. Ou seja, o ambiente do‑ cidade” (Preciado, 2010, p. 33, ção nossa). Ao reunir “em um mesmo méstico, até então destinado à fruição tradução nossa). meio as práticas da leitura de textos e manutenção feminina, necessitava e imagens e a masturbação, fazendo agora de uma apropriação masculi‑ Se numa análise superficial a que o desejo sexual se estendesse in‑ na. Ainda segundo Preciado, a revista Playboy parece ter contribuído em discriminadamente desde o jazz até Playboy, alguma medida para a “emancipa‑ os painéis de fórmica das mesas de ção” do corpo da mulher, Preciado nos escritório anunciadas em suas pági‑ (...) através de diversos meios mostra que, ao contrário, a Playboy nas” (Preciado, 2010, p. 28, tradução audiovisuais, havia perseguido promoveu antes uma “emancipação” nossa), a Playboy construía um novo um objetivo fundamentalmente da masculinidade do homem solteiro tipo de consumidor masculino urbano, político e arquitetônico (apenas heterossexual ao incentivá­‑lo a habi‑ distinto do marido trabalhador pro‑ secundariamente midiático e tar e decorar os apartamentos para movido pelo discurso governamental em nenhum caso pornográfico): solteiros que começavam a proliferar norte­‑americano dos anos 1950. Se desencadear um movimento pela nos anos 1960 – daí a importância o espaço privado/íntimo/doméstico liberação sexual masculina, do‑ das mulheres nuas numa revista que, estava reservado às mulheres até o tar o homem americano de uma sem tais fotografias, seria facilmente começo do século xx, as duas grandes consciência política do direito comparável às revistas femininas de guerras mundiais forçaram uma altera‑ masculino a um espaço domésti‑ consumo já em grande circulação na ção destes papeis, lançando a mulher co e, em última análise, construir época. Assim, a Playboy estava crian‑ um espaço autônomo não regido do a pornografia moderna: 6 Idealizada e dirigida por Hugh Hefner, a pelas leis sexuais e morais do revista Playboy foi lançada nos EUA em 1953, tornando­‑se, em apenas seis anos, a matrimônio heterossexual. E tudo (...) não pelo uso de uma fotogra‑ revista mais distribuída no país e alcançando isso, reivindica Hefner, muito an‑ fia de um humano despido – algo uma média de seis milhões de leitores já em 1959. tes do despertar do feminismo e recorrente nas publicações ilegais

175 de revistas Nudies da época –, suscitar afetos corporais (Precia‑ seu sucesso. Ao conciliar corpo, mídia mas pelo uso da diagramação e do, 2010: 26­‑27, tradução nossa). e sexo, a pornografia fez surgir novas das cores e pela transformação da formas de sentir (Perniola, 1993), su‑ imagem em desplegable que fazia Mas, em todo esse processo de perando a temporalidade orgânica que da revista uma técnica portátil de utilização instrumental e compulsória encerrava o sexo tradicional. “apoio estratégico” – para usar a da pornografia no séculoxx , há algo Eis, enfim, a pornotopia que di‑ expressão do exército americano muito novo para a história do corpo mensionou nossos hábitos sexuais no – para a masturbação masculina. e que é pouco analisado. O motivo século xx, aquela que, conjugando (...) Aqui a noção de pornografia de sua rápida difusão e o que a faz corpo, mídia e sexo, constituiu­‑se não pretende emitir um juízo ser realmente obscena não é o fato de na forma majoritária de consumo de moral ou estético, senão simples‑ exibir corpos nus, cenas de sexo ex‑ imagens (estáticas ou em movimento) mente identificar novas práticas plícito ou atitudes imorais; tampouco do corpo nu e do sexo. Funcionando de consumo da imagem suscita‑ o fato de consumirmos tais imagens instrumentalmente para excitar o cor‑ das pelas novas técnicas de pro‑ em lugares considerados inapropria‑ po (sobretudo) masculino, suas poucas dução e distribuição e, ao mesmo dos para tanto, como no local de tra‑ décadas de produção e circulação es‑ tempo, codificar um conjunto de balho ou no transporte público. O que tabeleceram uma maneira específica relações inéditas entre imagem, é de fato ob­‑sceno (algo que deveria de consumo visual, selecionando o es‑ prazer, publicidade, privacidade e estar fora de cena, mas que é colocado paço privado e individual como local produção de subjetividade. O que à frente da mesma) na pornografia é exclusivo da masturbação compulsória era pornográfico na Playboy não sua capacidade de colocar o sexo fora e fundando uma nova dimensão da se‑ era a utilização de certas fotogra‑ do seu lugar supostamente original, xualidade desconectada das flutuações fias consideradas obscenas pelas ou seja, com a pornografia, o sexo é hormonais que ritmaram até então as instâncias governamentais de cen‑ transportado do meio das sensações práticas sexuais “tradicionais”. sura e vigilância do decoro, mas o do corpo para o campo das mídias, do modo que fazia irromper na esfera informativo, do inorgânico. Portanto, a pública aquilo que até então ha‑ pornografia é ob­‑scena por superar o Da pornotopia para a via sido considerado privado. O discurso vitalista do desejo e do ero‑ atopia sexual: três casos pornograficamente moderno era a tismo, trasladando nossa sexualidade paradigmáticos transformação de Marilyn [Mon‑ para lugares outros que o da pele e As tecnologias comunicativas roe] em informação visual meca‑ desconectando­‑a das variações hormo‑ sempre foram parceiras da sexuali‑ nicamente reproduzível capaz de nais que ritmavam a excitação – daí dade, seja resguardando e divulgando representações do sexo, seja, hoje, informativas cujos conteúdos são A palavra grega a­‑topos é com‑ agenciando inúmeros encontros ou produzidos, consumidos e compar‑ posta pelo prefixo a, que no início possibilitando o chamado “sexo vir‑ tilhados pelos próprios usuários, da palavra anula o significado do tual”. De um modo ou de outro, as rompendo com a dicotomia emissor­ termo que o segue, e pela palavra tecnologias comunicativas e suas mí‑ ‑receptor que caracterizou a forma topos que significa “espaço”, “lu‑ dias descentraram sensações do corpo de recepção das mídias de massa e gar”. Portanto, a tradução literal para seu exterior, colocando o sexo e o aprimorando a característica inte‑ remeteria a um significado de per‑ prazer fora do seu local supostamente rativa sinalizada desde o início da da e de ausência de espaço e de original. Em suma, estamos transando comunicação digital. território. Existem, todavia, outras diariamente e cada vez mais num lugar A união da banda larga com os possibilidades de tradução que muito mais estranho que aqueles figu‑ smartphones fez surgir a conectivida‑ apontam para significados “oxi‑ rados na pornografia e inimaginável de móvel, permitindo a digitalização morosos”, como “lugar estranho”, para as décadas anteriores: estamos instantânea de quaisquer conteúdos, “fora de lugar”, “lugar anormal”, transando na Internet. simultaneamente enquanto outros “lugar atípico”, “indizível” (Di Considerando que cada mídia usuários passaram a poder intera‑ Felice, 2009, p. 228). traz consigo uma forma específica de gir com estes mesmos conteúdos no consumo e socialidade, a pornografia instante em que eram digitalizados. Daí o fato de vivenciarmos uma consumida nas redes digitais (Pat‑ Essa condição de simultaneidade passagem da pornotopia para uma terson, 2004) também traz consigo e instantaneidade instaurada pela “atopia sexual” que, intensificando o novas formas de relacionamento com Internet móvel fez mutar sua antiga processo anterior, desconecta a prática a imagem: diferentemente das mídias condição de “ambiente digital” (aces‑ sexual dos imperativos espaciais, tem‑ de massa com seu caráter unilateral sível somente por meio dos pesados porais e, por vezes, corporais. Neste e monológico, as novas mídias e seus desktops), para “ambiências digitais” sentido, a pornografia, que sempre dispositivos de conexão móvel (lap- que, por meio dos dispositivos com acompanhou o desenvolvimento das top, smartphone, tablet) convocam a conexão móvel, tornaram­‑se espacia‑ tecnologias comunicativas para delas interação direta e constante de seus lidades informativas metaterritoriais. se reapropriar numa dimensão sexual, usuários. As redes digitais, portanto, Isto é, uma a­‑topia “não como um ‘não­ não deixaria de usufruir dos recursos mais do que cumprirem a função de ‑lugar’, mas como uma localidade ‘on interativos das redes digitais. Nossa “mídias digitais” – isto é, veículos demand’, plural e tecno­‑subjetiva” (Di atualidade possui centenas de recur‑ de informações digitalizadas – es‑ Felice, 2009, p. 229). sos e dispositivos que tiveram suas tão operando enquanto arquiteturas funções originárias pervertidas para

177 serem reapropriadas sexualmente, movidos pela educação, economia ou Para além dessas evidências, as como o telefone que, além de um co‑ jornalismo. práticas sexuais em ambiências digi‑ municador a distância, transformou­‑se Interpretar, portanto, as incon‑ tais deflagram a superação da icono‑ também em aparelho de telesexo; ou, táveis conexões, sites e aplicativos clastia9 que qualificou nossa relação como exemplo mais famoso, a própria destinados a práticas sexuais como com as imagens no ocidente, uma vez Internet, que de rede de comunica‑ “substitutos” de um sexo tradicional que não operam mais enquanto repre‑ ção militar, está se transformando na seria equivocado, pelo simples fato de sentação, pois não possuem original e principal provedora de pornografia e que tais empreendimentos não vêm cópia. O ânus exibido na webcam para práticas sexuais digitais: apenas um para suprir a ausência de sexo, mas outras 750 pessoas não é mais a re‑ dos sites pornográficos mais acessa‑ para suplementar o que se entende presentação de um corpo distante que dos do mundo, o www.pornhub.com, por sexualidade. Do mesmo modo, assim se apresenta pela impossibili‑ teve mais de dois bilhões de acessos grande parte do conteúdo sexual que dade de se locomover até o lugar onde mensais no ano de 20177. circula nas redes digitais não é por‑ o corpo do espectador se encontra; Se somarmos o tráfego de dados nográfico, também pelo simples fato mas, isto sim, a presentificação dessa de todos os sites pornográficos, estes de que essas exibições ao vivo, vídeos anatomia informativa na atopia que as superam com facilidade o tráfego de e fotografias sexuais não cumprem o redes digitais constituem. sites como Netflix, Twitter e Amazon, papel que a pornografia se deu nos ficando atrás apenas dos gigantes séculos passados, tampouco possuem um mercado que inovava constantemente suas narrativas, extrapolando a repetitiva Facebook, Google e YouTube. Com a a forma e a temporalidade do produto exposição de mulheres famosas nuas em quantidade de acessos aumentando vendido pelas grandes produtoras de ambientes “classudos”), a possibilidade de acesso gratuito a incontáveis vídeos e a cada ano, não é exagerado estimar pornografia (estaríamos defronte o fim em diversas situações por meio da Internet 8 terminaria substituindo, cedo ou tarde, a que em pouco tempo a Internet pode‑ da era pornô? ). função de provedora de imagens obscenas rá ser utilizada primeiramente para que outrora a Playboy assumiu. produção e consumo de conteúdos se‑ 8 Um dos sintomas do ocaso da pornogra‑ 9 “O ponto de vista da iconoclastia religio‑ fia se deu em 2015, ano em que a revista sa (...) é afirmado com toda a energia pela xuais, superando o tráfego de dados Playboy estadunidense anunciou que, in‑ ala extremista da Reforma protestante na terrompendo suas publicações por alguns primeira metade do século xvi, para a qual meses, retornaria com uma novidade ímpar: Deus, o original, o espírito, é absolutamente a partir de 2016 a Playboy deixaria de pu‑ diferente e outro em relação à imagem, à blicar ensaios de mulheres nuas. O motivo, figura, ao mundo. A preocupação funda‑ 7 A própria empresa Pornhub produz uma obviamente, foi a competição assimétrica mental dos iconoclastas é a preservação análise anual bastante extensa sobre o perfil entre a pornografia impressa e a pornografia da pureza do conceito de Deus e do ser; dos seus usuários. Disponível em https:// nas redes digitais. Se o VHS já impactou ela implica a recusa de toda representação www.pornhub.com/insights/2017‑year­ ‑in­ ­ diretamente sobre suas vendas nos anos sensível, imediatamente qualificada como ‑review, acessado em 05/05/2018. 1980 (sobretudo pelo fato de trazer consigo ídolo” (Perniola, 2000, p. 129). Estamos adentrando um momento de nus de madeira, de ferro ou vídeos online sem a necessidade de bastante novo para a sexualidade, pois de vidro. Assim, despe­‑se o corpo download do próprio conteúdo ou de as práticas sexuais em ambiências até mesmo da aparência da carne. um software para abri­‑lo, surgiram di‑ digitais estão superando a dialética A subversão no mundo das formas versos sites em que é possível assistir nudez­‑veste (Agamben, 2015) que até vem acompanhada por uma pro‑ a e se exibir para parceiros ao vivo então foi o motor da excitação. Não se dução potencialmente ilimitada e, simultaneamente, prescindindo de trata mais de transgredir regras ou de imagens (Perniola, M. 2000, qualquer solicitação de contato para invadir corpos, mas alisar superfícies p. 123). que sua webcam seja ativada. Den‑ luminosas e adimensionais. tre os mais conhecidos, www.omegle. Enfim, para corroborar o argumen‑ com, www.randomchat.com e www. Na realidade, a erótica dos nos‑ to de que as práticas sexuais realiza‑ chatroulette.com, é possível se exibir sos dias se encaminha para das por milhões ou bilhões de pessoas e visualizar pessoas do mundo inteiro perspectivas muito mais novas e nas ambiências digitais estão consti‑ em tempo real, pois sua imagem é o inquietantes do que o strip­‑tease tuindo uma atopia sexual que deslo‑ primeiro elemento a ser exibido (bas‑ ou o teatro erótico, isto é, o nu ca o prazer e o sexo dos seus lugares tando um clique para trocar de par‑ eletrônico realizado pela compu‑ tradicionais, fomentando, assim, novas ceiro), invertendo a ordem dos chats tação gráfica (...). A computação sensibilidades eróticas, vale analisar‑ que se utilizavam do nickname e da gráfica parece poder construir a mos brevemente o funcionamento de conversa escrita como primeira forma imagem absolutamente realista de três casos paradigmáticos. de aproximação. Interessante notar um corpo que na realidade não Webcam chat sites: uma das prá‑ que todos esses exemplos não fazem existe. À diferença da fotografia, ticas sexuais em ambiências digitais qualquer menção à prática sexual (no que remete a um modelo real, ela mais conhecidas se dá pela exibição máximo apresentam simples slogans prescinde por completo da exis‑ do próprio corpo ao vivo em webcams como “talk to strangers”), mas, ainda tência de um original. O nu re‑ conectadas aos chatting sites. Reali‑ assim, sua utilização principal se dá alizado eletronicamente não tem zada inicialmente por meio de softwa- na dimensão sexual com a exibição mais nada a ver com o corpo: ele res como ICQ, MSN e Skype, consistia e manipulação dos próprios genitais levou ao extremo, de modo positi‑ em se masturbar em frente à webcam e outras partes do corpo solicitadas vo, a pulsão do despir da Reforma para um parceiro online adicionado à pelos parceiros online. Outro site de e do Maneirismo. Em tese, nada própria lista de contatos. Com o de‑ mecanismo semelhante é o www.cam4. impede a realização eletrônica de senvolvimento de servidores de video com, cujo diferencial está na possi‑ imagens perfeitamente realistas streaming, o qual permite visualizar bilidade de se exibir para múltiplos

179 parceiros e ainda receber gorjetas masturbação solitária da revista ou estatura, peso, preferência sexual, (tokens) dos usuários cadastrados que do vídeo pornográfico numa prática raça, tipo físico etc., na tentativa de geralmente atingem a casa de centenas sexual coletiva que envolve centenas descrever ao máximo o corpo do par‑ ou milhares de espectadores. de pessoas, interfaces, eletricidade e ceiro com quem se está conversando, As webcams, nestes casos, fazem dispositivos para a produção do prazer. Blued oferece a opção de ativar a câ‑ das residências de seus usuários Assim, as webcams (dos computadores, mera do smartphone para um live show verdadeiros estúdios temporários de tablets e smartphones) são um dos re‑ aberto a qualquer usuário conectado. produção massiva de conteúdo se­xual. cursos responsáveis por impulsionar Poucos anos atrás, dizer que al‑ Assim, a prática conhecida como “sexo a constituição de atopias sexuais nas guém encontrou seu parceiro amoroso virtual” (a) rompe com a frontalidade ambiências digitais, isto é, são elas ou sexual (haveria mesmo essa distin‑ da pornografia ao permitir a interação que permitem a exibição e visualiza‑ ção?) em aplicativos como os acima em tempo real com aquele que se exi‑ ção de corpos nus a qualquer momento citados seria motivo de constrangi‑ be; (b) supera a lógica da timidez com e independentemente do local e dis‑ mento. Hoje, entretanto, em poucos que majoritariamente se consome a tância em que se encontram. anos de difusão, tal prática quase pornografia no espaço fechado ao exi‑ Hookup dating apps: a conectivi‑ não é mais capaz de suscitar alarde. bir o interior do próprio corpo e tam‑ dade móvel aprimorou o serviço ao Deste modo, imperceptivelmente, os bém da própria residência, juntamente qual se prestavam sites de relacio‑ diversos hookup dating apps e sites com o rosto e geralmente disponibili‑ namento ao permitir que usuários de (como o www.fuckbook.com ou www. zando uma gravação dessa transmissão aplicativos de encontro como Tinder, sexlog.com) estão transformando dire‑ streaming em outros sites para que Grindr e Brenda passassem a detectar tamente nossa noção de intimidade e outras pessoas possam assisti­‑la futu‑ a distância que separa um smartphone privacidade ao publicizar nossos cor‑ ramente; (c) fratura o domínio da in‑ do outro, incorporando a proximidade pos e identidades em contextos ex‑ dústria pornográfica no provimento de geográfica como um elemento decisivo plicitamente voltados para o encontro imagens obscenas ao disponibilizar, para a consumação ou não do encon‑ sexual. Radicalizando este processo gratuitamente, vídeos com “estéticas tro. Mas, inovando para além da pos‑ de tornar público o exercício da se‑ caseiras”, as quais têm sido preferidas sibilidade de geolocalização, Blued, xualidade e a exposição do próprio por muitos usuários às grandes pro‑ lançado em 2012 pela empresa chine‑ corpo, o aplicativo Blued permite a duções com celebridades em espaços sa Danlan, traz um diferencial em re‑ realização dos live shows a partir do elitizados; (d) amplia a visibilidade de lação aos outros aplicativos da mesma próprio smartphone que, em movimen‑ corpos que não se encaixam no padrão categoria: enquanto aqueles solicitam to, permite que o usuário exiba quais‑ pornográfico e (e) transforma aquela fotografias e outras informações como quer partes do seu próprio corpo e em qualquer lugar, estacionado ou em reapropriados sexualmente, mas dessa humano como fonte de excitação. Com trânsito, mesmo com todas suas contas vez superando o imperativo da forma este exemplo fica explícito aquilo que das redes sociais disponíveis para con‑ humana para o êxito da prática sexual: se anunciava já nos casos anteriores: sulta no seu próprio perfil Blued; ou são compostos informativos que tomam com as redes digitais, a pornografia seja, novamente, as práticas sexuais a forma de monstros, animais, aliení‑ está perdendo a centralidade que em ambiências digitais deflagram o genas e outros seres desconhecidos ocupou nas mídias de massa para fim da lógica confinada operante no se relacionando sexualmente sem se dar vazão a novas práticas sexuais consumo da pornografia impressa e em preocuparem em disfarçar a artificiali‑ de sensações “pós­‑corporais”, isto é, vídeo. Assim, os Hookup dating apps dade da qual provêm – pelo contrário, sensações que não se iniciam ou não também contribuem para a instaura‑ muitas vezes, reforçando­‑a. se encerram estritamente no corpo ção de atopias sexuais, pois, além de Apesar deste exemplo ainda car‑ humano. Conforme concluiu Precia‑ nos conectar com pessoas próximas regar a classificação de “pornografia”, do (2014, p. 207): “Eu ainda não vi e disponíveis para sexo, superam a assim o é somente pelo fato de exibir nada, mas sei que o prazer não vem dialética nudez­‑veste, uma vez que, uma animação com organização pró‑ do corpo, seja masculino ou feminino, na sua quase totalidade, os casais e xima dos vídeos pornográficos (seja e sim da encarnação prostética, da in‑ grupos se encontram apenas após in‑ na temporalidade, seja na narrativa), terface, ali onde o natural e o artificial tensas trocas de fotografias e vídeos do mesmo não mobilizando nenhum corpo se tocam”. Deste modo, também a por‑ próprio corpo nu ou se masturbando, humano (senão aqueles seres digitais nografia em modelagem 3D contribui destituindo a importância que a nudez modelados pelo software 3D). Se os para o surgimento de atopias sexuais possuía no ato sexual tradicional. interditos sexuais imperam sobre os ao desconectar definitivamente a ex‑ Pornografia em modelagem D:3 vídeos pornográficos, nestas anima‑ citação do espectador dos referenciais há uma produção bastante vasta de ções em 3D não se levantam debates ao corpo humano, erotizando super‑ vídeos realizados sem a captação de acerca, por exemplo, da zoofilia, para fícies e formas outras não­‑humanas. imagens de corpos humanos em fric‑ o caso das várias narrativas que en‑ Com estes exemplos, depreende‑ ção. No site pornográfico mais aces‑ volvem lobos, ou de “monstrofilia”, mos que, direta ou indiretamente, sado do mundo, o www.xvideos.com, para o caso das inúmeras animações nossas atuais práticas sexuais são é possível encontrar mais de 200.000 com monstros de diversas ordens, re‑ inextricáveis do desenvolvimento resultados para a categoria “3D porn” velando, de maneira derradeira, que das mídias e das tecnologias comu‑ com longa duração. Tal qual os exem‑ aquilo que buscamos crescentemen‑ nicativas digitais. O consumo glo‑ plos anteriores, os softwares de mode‑ te na Internet não se interessa mais balizado de material pornográfico lagem 3D também foram rapidamente pela representação do corpo e do sexo disparado pela Playboy e seguido

181 pelas “indústrias pornográficas” que irão compartilhar com os demais representação do sexo, as práticas se‑ parece ter contribuído para a dilui‑ integrantes de diversas redes (apli‑ xuais em ambiências digitais são o ção da moralidade que designou os cativos, sites, chats) e (2) o espaço próprio gesto sexual e não mais sua espaços onde o obsceno podia ser doméstico, privado, individual, solitá‑ representação. A masturbação que consumido; contudo, a pornografia, rio, fechado e isolado enquanto topos é realizada em frente às webcams para funcionar enquanto tal, ainda seguro (senão exclusivo) de produção com centenas de espectadores inte‑ devia ser consumida como uma forma e consumo da pornografia (e também ragentes não é a mesma que aquela de transgressão para que atualizas‑ do sexo em si) deixa de fazer senti‑ realizada pelo homem acanhado no se o interdito sobre o qual incidia (o do, pois, novamente, as tecnologias banheiro folheando revistas ou vas‑ exercício da sexualidade e a expo‑ e a comunicação digitais penetram e culhando VHSes. A pornografia é sição da nudez em público) para a transformam qualquer espaço (cozi‑ um produto para ser consumido, já produção do prazer. Como corolário nha, ônibus, hospitais, submarinos, as práticas sexuais em ambiências dessa popularização dos dispositivos escolas, florestas, escritórios etc.) no digitais são situações resultadas das de produção e compartilhamento de local apropriado para a realização de interações reticulares entre os huma‑ imagens do próprio corpo, estamos práticas sexuais coletivas, permitindo nos, os dispositivos e a estabilidade adentrando uma nova era cultural, a exibição e manipulação dos próprios da conexão de Internet. Sutilmente, engendrada pela comunicação e pelas genitais para vários parceiros online e de ávidos consumidores, tornamo­‑nos tecnologias digitais, na qual a lógica interagentes que habitam as mesmas agora parte integrante do complexo vigente na “era pornô” se mostra ino‑ ambiências digitais. que supúnhamos apenas observar. perante ou, no mínimo, insuficiente Ou, numa frase, de voyeurs estamos para a compreensão da sexualidade. todos nos tornando touchers. A constituição das atopias sexuais Conclusão Tudo isso, vale dizer, sem a ge‑ implica, portanto, o apagamento dessa Se a pornografia esteve direta‑ ração de lucro para aqueles que se pornotopia instituída pela pornografia mente relacionada ao desenvolvi‑ exibem ao vivo, compartilham e fazem do século xx em seu duplo sentido: (1) mento e popularização das diversas o upload do próprio material obsceno o consumo do obsceno se emancipa mídias, hoje, justamente pelo fato (entretanto, sem dúvida, aumentando das narrativas das grandes empresas de nos encontrarmos numa época a possibilidade de lucro dos servi‑ produtoras de pornografia com o sur‑ pós­‑midiática, ela está se tornando dores que estimulam e acolhem a gimento da tecnologia digital, pois anacrônica, servindo mais àqueles produção de tais materiais por meio são seus potenciais consumidores que que com ela cresceram, pois, en‑ do intrincado processo de geração de passam a produzir o próprio conteúdo quanto a pornografia funcionou como renda via publicidade). E se o fazemos crescentemente, mesmo sob o risco redes”10 que não se inicia e tampouco Arendt, H. (2007). A condição humana, de retaliação social (como o reven- se esgota na unidade do corpo de um trad. de R. Raposo. Rio de Janeiro: ge porn) por conta da exposição da sujeito, mas que sobrevém justamen‑ Forense Universitária. nossa própria identidade e daquilo te da congregação inusitada de seres, Di Felice, M. (2009). Paisagens pós- que um dia chamaram “intimidade”, dispositivos e objetos que, no instan‑ urbanas: O fim da experiência é pelo motivo de haver nessa prática te da prática sexual, têm suas peles, urbana e as formas comunicati- uma nova forma de sentir, possível de sensores e superfícies transformados vas do habitar. São Paulo: Editora experienciá­‑la sob essa confluência em fluxos (porções adimensionais de Annablume. específica de corpos, dispositivos, matéria) para habitarem e transarem Dufour, D. (2013). A cidade perversa: li- imagens e eletricidade nos contex‑ nesses lugares estranhos (a­‑topias se‑ beralismo e pornografia, trad. de C. tos digitais. xuais) instaurados pelas ambiências Marques. Rio de Janeiro: Civiliza‑ Portanto, as práticas sexuais em digitais. ção Brasileira. ambiências digitais se vestem de uma Foucault, M. (2013). O corpo utópico, as sensibilidade necessariamente mul‑ heterotopias, trad. de S. T. Muchail. tidimensional, extrapolando a indi‑ REFERÊNCIAS São Paulo: N­‑1 Edições. vidualidade com que consumimos a Gerace, R. (2015). Cinema explícito: re- pornografia (e outros tantos produtos) Abreu, N. (2012). O olhar pornô: a repre- presentações cinematográficas do até então, fazendo surgir um sentir sentação do obsceno no cinema e no sexo. São Paulo: Ed. Perspectiva e (e talvez uma ética) multitudinária, vídeo. São Paulo: Ed. Alameda. Edições Sesc São Paulo. resultante da interação reticular en‑ Agamben, G. (2015). Nudez (D. P. Car‑ Goumelot, J. (2000). Esses livros que se tre o corpo e anatomias outras que neiro, Trad.). Belo Horizonte: Ed. lêem com uma só mão: leitura e até então pareciam não participar da Autêntica. leitores de livros pornográficos no sexualidade, como a superfície das século xviii, trad. de M. A. Corrêa. telas, a textura dos gadgets vestíveis, São Paulo: Discurso editorial. as cores das imagens, o desenho das Hunt, L. (Ed.). (1999). A invenção da por- linhas, o pulso elétrico, o som do cli‑ nografia: Obscenidade e as origens 10 O termo “sentir em redes” foi cunhado que do mouse, o intervalo dos feed- dentro da linha de pesquisa Aoristos do da modernidade, trad. de C. Szlak. backs, a velocidade da fibra ótica etc. Centro Internacional de Pesquisa Atopos São Paulo: Editora Hedra. da ECA­‑USP (Brasil). Cf. http://www.ato‑ Em outras palavras, um “sentir em pos.com.br/linhas‑de­ ‑pesquisa/aoristos/­ . Kempe, J. (2015). 1000 nudes: a history of Aprofundei essa temática sob a noção de from 1839­‑1939. “corporalidades reticulares”, desenvolvida no meu livro PATZDORF (2018). Köln: Taschen.

183 Recebido em: 15/01/2018 | Aceite em: 19/06/2018

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