Coletânea Ciclo

Alceu Amoroso Lima Apresentação

Alceu Amoroso Lima (1893 – 1983), também conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde, figura entre os principais intelectuais brasileiros do século XX. Essa afirmação, em que pese seu acento, ainda diz pouco sobre um homem que transitou regularmente entre a ciência e a religião, entre a crítica e a produção artística, entre a política e o ensino – domínios nem sempre tranquilos se vistos a partir dos princípios organizadores internos que os regem, e diante dos quais, ao transitá-los, um indivíduo não passa ileso sem despender uma grande carga emocional e ter que praticar algo como um autocontrole ascético na organização do próprio pensamento.

Em cada um desses domínios Alceu Amoroso Lima deixou marcas, propôs discussões, fez acordos e suscitou rusgas que atraíram – e ainda atraem - pesquisadores de diversas áreas, voltados a estudar e compreender seu pensamento. Aderiu ao movimento modernista e escreveu profusamente sobre os principais poetas do movimento. Foi um grande pensador católico e teve uma das maiores carreiras jornalísticas da imprensa brasileira. Foi um intelectual pleno, ao estilo de Mário de Andrade, no sentido em que, além do trânsito entre áreas distintas, também procurou conhecer-se melhor, a cada idade e a cada contexto, mesmo sob o risco de defender posturas e ideias que o fariam ser incompreendido, e mesmo correndo o risco de errar.

Esse diapasão de atuações só acentua seu rico itinerário como ser humano que não se encontra acima do bem e do mal. Foi simpatizante dos movimentos de esquerda durante a ditadura militar e foi o representante brasileiro do Concílio Vaticano 2º. Participou da fundação da Pontifícia Universidade Católica do ; ocupou assento na Academia Brasileira de Letras; também fez parte do Conselho Nacional de Educação.

Homem complexo, enfim. Homem pleno, com certeza Como notado, sua contribuição está presente nos principais acontecimentos da história brasileira do século XX.

Para homenagear Alceu Amoroso Lima, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc realizou o Ciclo Tristão de Athayde, entre junho e julho de 2015, com curadoria de Guilherme Arduini. As apresentações - que buscaram problematizar, entender e discutir o homem e sua obra - estão aqui reunidas nesta publicação. Com este ato, um duplo entre homenagem e sincero reconhecimento, espera-se poder contribuir para a disseminação do pensamento do autor e para manter viva na memória, e no espaço público, a imagem que merece perpetuar-se: a de um grande intelectual humanista.

Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo Junho 2017 Alceu Amoroso Lima – alegria e rigor

Crítico literário, ensaísta, professor: diversas foram as atividades intelectuais exercidas por Alceu Amoroso Lima (1893-1983), cujas obras (mais de oitenta no total) por vezes apareciam assinadas comoTristão de Athayde. Para recompor suas múltiplas facetas e entender sua vida pública, organizamos o Ciclo Tristão de Athayde, que integrou a programação do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo nos meses de junho e julho de 2015. Durante cinco semanas, onze palestrantes tiveram a oportunidade de expor suas ideias. Nove entre eles registraram por escrito suas contribuições, das quais resultou este livro.

As apresentações se deram sob o signo do diálogo aberto e da pesquisa solidamente interdisciplinar, posto que historiadores, sociólogos, cientistas políticos e educadores se propuseram a cobrir um espectro de análise que incluísse as relações sociais no seio das quais Tristão se formou, os traços de subjetividade que moldaram sua leitura de tais relações e o modo como elas aparecem em seus escritos, além do legado de suas ideias para a compreensão do presente.

Esta publicação apresenta uma ordem lógica que se inicia com uma visão familiar de Alceu: Carlos Eduardo Affonso Ferreira (neto de Alceu) e Alceu Amoroso Lima Filho apresentam suas versões do personagem no convívio íntimo, restrito às pessoas mais próximas. Os testemunhos de um filho e um neto ajudaram a compor a intimidade deste personagem que, não obstante seu jeito expansivo e alegre, era bastante reservado no que concerne à vida familiar. Em seguida passamos à figura pública de Alceu, através das suas fortes amizades, nutridas por meio de uma prolífica correspondência, e também pelos enfrentamentos que inevitavelmente marcam a vida pública de grande envergadura.

Para terminar, o remate da obra fica a encargo do decano entre todos os estudiosos de Alceu: Cândido Mendes, a quem também cabe o papel de preservar o arquivo pessoal de Tristão de Athayde e promover atividades sociais através do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade. Em suma, o Ciclo Tristão de Athayde foi, de um modo homólogo ao seu objeto de estudo, dotado de uma alegria e uma erudição impecáveis. Esta oportunidade única de repensar uma das trajetórias pessoais mais importantes do Brasil do século XX só foi possível graças à realização do CPF Sesc.

Por este motivo, somos eternamente gratos a Andréa Nogueira e Maurício Trindade, respectivamente gerente e gerente adjunto do CPF, e especialmente a Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo, pela confiança apresentada no trabalho. Através deste livro, a fecundidade de suas pesquisas poderá ser útil a um número muito maior de pessoas. Boa leitura! Guilherme Ramalho Arduini Doutor em Sociologia pela USP Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo à la padrão europeu da cidade, instalada em uns 500 Alceu e o equilíbrio dos antagonismos metros quadrados de fartas vitrines,balcões com tampos de mármore e bons equipamentos para Carlos Affonso Ferreira a época, como fatiadores de frios e máquinas de fazer sucos. Dali, atulhados de bisnagas de pão de qualidade (não disponível no Rio então) e barras de Inicio agradecendo ao Sesc pela realização deste chocolate Sonksen, aquele da vaquinha, Alceu e Maria evento que evoca alguém pouco lembrado Tereza seguiam a pé três quarteirões, ele debaixo de ultimamente, mas que é um escritor de papel indefectível boina, segurando embrulhos, uma pasta fundamental na cultura brasileira segundo a opinião de couro e guarda-chuva. de seus correspondentes, como Mário de Andrade, Carlos Drummond e Dom Luciano de Almeida. Aí pelas 7h da tarde chegavam lá em casa. Alceu Vem a propósito mencionar a biografia de Alceu, que investia pela sala adentro com seu andar rápido e lancei em 2015, da qual me utilizo nas linhas abaixo. decidido. Preparava-se para se instalar na poltrona junto à lareira, no que usaria a hora de sobra a ler É engraçado, associo à biografia um ótimo restaurante os salmos. Estes são os 150 poemas líricos do Antigo italiano em Curitiba, em que se entra pela cozinha. Testamento, entre os salmos há hinos, súplicas e É uma forma do freguês conferir a higiene do local. louvações. São louvações por prodígios realizados por Da mesma maneira, hoje quero primeiro tratar da Deus na natureza, súplicas com pedidos de socorro cozinha da biografia, de como me envolvi com esse ou manifestações de confiança. Há ainda salmos de trabalho, e contar um pouco do que foi o processo ação de graça por um bem qualquer conseguido. de escrevê-lo. Vovô teria um intervalo descontraído, nele ruminaria o mistério que encontrava em cada dia e o faria a Meus avós vinham do Rio a São Paulo a cada dois ou sorver uma dose de uísque em copo alto com gelo três meses visitar as duas filhas e um filho que moravam e água. Senti-me particularmente importante ao ser nessa cidade. O item principal da agenda era passar o escalado seu barman. O neto já tramava cavar-lhe dia com Lia, a filha beneditina enclausurada na Abadia conversa, sem muita noção do valor para ele de uma de Santa Maria. Vamos, daqui para a frente, chamá- oportunidade de contemplação e aterrissagem suave la de Tuca, seu apelido. Tristão chegava ao mosteiro ao cabo dos compromissos cotidianos. cedo e dedicava a manhã no parlatório a pôr em dia assuntos que vinham diariamente tratando por carta. Assim penetrei no mundo de sua infância e juventude, Como ele tinha o costume de escrever artigos se marcadas pelo eixo Rio/Paris, de que ele tinha relatos antecipando ao cronograma dos jornais, para livrar-se sedutores. Seu grupo social assimilara dos franceses do stress desta dívida, não faltavam assuntos a tratar o dom de prosear, das conversas de salão que até com a filha – e nisso ocupava o par de horas antes da acabaram batizando um móvel próprio: causeuse, chegada de minha avó para o almoço. Neste, dentro uma poltrona de dois lugares. Os relatos começavam da realidade da dieta frugal das beneditinas, o que de sua primeira viagem, com seis anos de idade, à refletia seu orçamento apertado– carne, só comiam Europa, em 1900. As estadias estendiam-se meses uma vez por semana –, não faltava um gesto de a fio e o menino foi inscrito num colégio em Paris. largueza das monjas, que acrescentavam às travessas Mas o padrinho de Alceu, Antonio Marinhas, que um prato de doce. A tarde no parlatório, com os acompanhara os Amoroso Lima na viagem, ao invés velhos instalados em cadeiras de balanço e a filha de entregar Alceu ao liceu, seguia com ele para debaixo de seus panos pretos, sentada por detrás das lojas de brinquedos ou para passear no Jardim das grades –a tarde ia-se enquanto os três repassavam Tolherias. Em outra das viagens à França, a bordo com a crônica familiar, como enxergavam a travessia de eles iam famílias argentinas, que mantinham vacas vida de cada um de seus descendentes, por cuja sorte no porão do navio de maneira a garantir-lhes leite invariavelmente interessavam-se. fresco todas as manhãs. Nesse tempo, o transporte refrigerado de carne acabava de ser descoberto e a Quando às 6h da tarde os sinos do convento tocavam, Argentina tornara-se o açougue da Inglaterra. Buenos chamando as 60 freiras para a capela onde diriam Aires era capital da sexta economia do mundo. Vésperas, o casal embarcava num táxi para jantar lá em casa, no Jardim Paulistano. O carro largava-os na Pão Kent, esquina da Av. Europa com a Rua Iguatemi (hoje Faria Lima), talvez a primeira padaria incrementada Outra temporada de Alceu na Europa levou 18 meses, na vanguarda do pensamento esclarecido. Aliás, e só terminou com o estouro da I Guerra. Em Paris ele falando nisso, sintomático foi um episódio com um enturmou-se com um grupo animado de portenhas, amigo meu. Ele, muito boêmio, disse à abadessa com quem manteve agenda social animada incluindo que amaria escutar o canto gregoriano do Laudes, tardes dançantes no Majestic, um hotel sofisticado a às 6:00 da manhã, mas tal horário de soldado não duas quadras do Arco do Triunfo, onde o meteram no lhe convinha. Sabe o que Tuca propôs? Que ele sexto andar sem elevador, junto às pombas, segundo emendasse a noite, que viesse diretamente dos bares. ele contava. No Majestic aprendeu a dançar tango, A sugestão soou blague, incorporou-se ao folclore ritmo argentino ainda visto mais próprio para cabarés familiar, mas a madre não pilheriava. pouco recomendáveis da zona do cais do porto em Buenos Aires. Pois vovô foi talvez o introdutor do Muitas tardes completas, durante vários meses tango nos salões elegantes do Rio de Janeiro. Tudo seguidos, eu gastei nos parlatórios da abadia. À entrada isso era pé de conversa para histórias que seduziam o a porteira entregava ao visitante um papelucho que neto. Pois eu curtia cada detalhe do relato, começando este preenchia se identificando e indicando qual daquele castiço sotaque carioca, sem excesso de silvo madre gostaria de encontrar. O bilhete era posto na nos “s”, mas com “r”s assertivos e de som que sabe roda, um armário giratório dando no outro lado para bem ao ouvido. a clausura, de onde a freirinha a postos levava até a pessoa procurada. E tal era a alegria prelibada do Nesta terceira ida à Europa da belle époque os encontro com minha tia que começamos a avançar Amoroso Lima encostaram na hecatombe universal, fuzarcas nos bilhetes, eventualmente alguma coisa pois estavam em Paris quando as tropas alemãs séria antecipando os assuntos do parlatório. Pois já haviam superado a barreira supostamente num desses papeizinhos volta uma anotação de Tuca indevassável da linha Maginot e avançavam na direção sugerindo que eu escrevesse a vida do pai dela, para da capital francesa. que os bisnetos soubessem quem ele foi.

Andou o tempo, ia eu lá com 19 anos de idade todo A ideia me soou estapafúrdia, como é que um aluno pimpão, certo de triunfar, afinal cursando faculdade de português medíocre, despreparado em literatura cobiçada (FGV), saúde sobrando e na garagem um e treinando para vender trator poderia retratar um automóvel conversível. Foi também quando me autor de 80 livros, crítico literário consagrado, erudito surge uma crise existencial braba precipitada por membro da Academia Brasileira de Letras, que logo um desgosto afetivo dilacerante, foi como se alguém se tornaria seu decano?! A madre não insistiu, de caju retirasse a escada em que eu subira. Machucado, em caju tocava de leve na ideia. aproximei-me do convento beneditino nessa altura meu vizinho em SP, onde hoje funciona o Hotel Corta a cena, avança mais um lustro o calendário. Maksoud e está erguida uma dúzia de arranha-céus. Aos 29, morando no Rio, a Belacap, esta covardia da Ali onde existia apenas a abadia, uma igreja e um natureza que é o cenário de tirar o fôlego, passou a parque espalhado em 47.000 metros quadrados de me cobrar algum registro. Era impressão demais para terreno tocando na Rua Pamplona, vivia enclausurada acumular nos sentidos, as imagens tendiam a criar a Tuca, Irmã. Maria Teresa Amoroso Lima, irmã de umas poças de emoções, que sem serem expressas, minha mãe. Visitar a Abadia de Santa Maria sempre não trabalhadas e não articuladas ficavam sem drenos foi programa atraente, as freiras têm uma enorme para o espírito. Este empoçava, formava lagoas, bolhas. disposição de ouvir, produto escasso em nosso mundo Ora, além do desperdício de energia elas me causavam superdotado de recursos eletrônicos de comunicação insônias devastadoras e grandes ressacas. e nítido déficit de atenção. É uma gente de cotidiano fisicamente afastado do mundo, mas com prática de Foi também quando reencontrei o Padre drenagem do próprio ego e hábitos contemplativos, Charbonneau, meu antigo professor de Lógica no então naturalmente atenta e hospitaleira. colégio Santa Cruz, e mencionei a ele o projeto encalhado. Sua usual assertividade foi contundente: a Era tudo o que eu procurava: acolhida. E ainda por tarefa urgia, o tema merecia registro, era-me o projeto cima Tuca tinha um temperamento delicioso, humor fundante. Seria também minha “escritoterapia”. de plantão, era simples e prática, entusiasmada e Quando no ano seguinte ele visitou a Chapada interessada, sabia ouvir. As cartas do pai a mantinham Diamantina Charbonneau ofereceu-me improvisar ali bem informada, nele colhia uma influência arejada, mesmo uma oficina preparatória. Fomos já naquela noite para a varanda da nossa casa na fazenda, onde o Mas vocês não vieram aqui pra saber das décadas teólogo preparou um esboço da evolução das ideias de gestação de meu livro e sim conhecer Alceu do Iluminismo até o renouveau catholique noséc.XX, Amoroso Lima um pouco mais. Penso que o melhor em seguida à I Guerra, antes de chegar ao Vaticano que eu teria a contar a vocês nasce da ideia de um dos II. Nas anotações rascunhadas nasceram o mapa do meus entrevistados, Riolando Azzi. A ele o que mais meu projeto e da pesquisa. impressiona na biografia de Alceu é a intensidade dos Comentei com o Charbonneau minhas dificuldades, contrastes, as aparentes contradições, o choque de meu medo da página em branco, meu despreparo. O forças antagônicas e o equilíbrio que se forma entre padre canadense era extremamente prático, propôs elas. Esse equilíbrio não se dá pelo afrouxamento das que eu substituísse minhas hesitações por uma serie forças, ambas continuam fortes, enérgicas, intensas. de entrevistas com gente que conhecera Alceu, que com ele travara relações intelectuais. Das entrevistas Vou apresentar esse traço – o equilíbrio de brotariam as chaves de leitura do pensamento de antagonismos- em cinco instâncias ao longo da vida Tristão de Athayde. Podendo invocar parentesco com de Alceu, poderíamos falar de 50 outras. ele foi fácil conseguir entrevistas, logo eu me vi por exemplo no escritório de doutor Sobral Pinto, de e mais outras 50 pessoas. Com Paulo Infância Francis eu também estive, no apartamento em Nova Iorque em que ele morava nos anos 1970, embora Alceu foi educado a domicílio até os nove anos de idade. depois de alguma insistência. Era na Casa Azul, uma chácara verde no Cosme Velho, Hoje olho para a empreitada intrigado. Constato por onde corria a descoberto o Rio Carioca antes a ação ao longo dela de uma força insistente e de desembocar na Praia do Flamengo. Alfabetização, enérgica capaz de vencer minha indisciplina, minhas matemática e noções básicas de botânica, geografia postergações e minha pequena escolaridade na e economia eram dadas pelo professor Kopke, um matéria. Alceu é transparente no que escreve, tem refugiado alemão que vinha à casa dar aula ao menino. muita didática, põe-se nos sapatos do interlocutor O método de ensino empregado destoava do padrão com a genuína e espontânea vocação de professor, pedagógico daqueles tempos mais dados ao Ateneu, sua parte flui bem. Mas foi preciso também ao menos de Raul de Pompeia, feito de decorebas, do professor “mobralizar-me” nas influências por ele recebidas e que pontificando despejava conhecimentos sobre o aí foram aparecendo os obstáculos. Ler Chesterton aluno submisso. Kopke levava o menino a passear é instigante e especialmente divertido, mas digerir pela chácara e quando encontravam uma planta pensadores como Maritain e Mounier, ambos ou pedra paravam para analisar suas características carregando o traço de um pensamento que trata vegetais ou minerais. Também circulavam pelo bairro menos de fatos e mais de conceitos abstratos, algo identificando sua topografia espetacular, a por lado a característico dos intelectuais franceses, é batalha lado granitos colossais despencando sobre o oceano morro acima. e matas floridas crescendo nos intervalos. Naquela pedagogia itinerante iam identificando fenômenos Essa força em contramaré os católicos chamariam sociais, frequentadores daquelas calçadas, consistindo de Espírito Santo. Ela se repete em Guimarães Rosa, em mascates de vassouras, frangos e frutas, fulanos em Grande Sertão quando o texto refere-se ao que giram a manivela do realejo em troca de meio personagem Hermógenes, “que nasceu formado tostão, todos esses personagens do cotidiano da tigre, e assassim !!!” e que se pergunta “Será que a vida capital da República. socorre à gente certos avisos ?”. Este “socorre” alude ao sobrenatural. A mesma força aparece também Música era outro item fundamental na formação em Homero, cuja Pala Atenas, da Odisseia, aguarda de Alceu. Vinha à chácara dar-lhe aula particular de o viajante na estrada para protegê-lo de perigos, piano o cearense Alberto Nepomuceno, autor de defendê-lo de salteadores e de tempestades. peças melódicas eruditas que logo seriam influência importante em Villa Lobos. Afinal aos poucos, ao longo das entrevistas e leituras foram aparecendo as tais chaves de leitura. Caligrafia tentou o prof. Goldsmith ensinar ao menino, sem nenhum sucesso. Este outro refugiado alemão, *** que vinha ao Cosme Velho abraçado a desenhos de sua autoria na vã esperança de empurrar alguns sobre os pais dos alunos para reforço de suas finanças combalidas, tentava configurar o traço rebelde do Os primos Amoroso hibernavam na casa à beira do garoto a um mínimo de estética, mas fracassou. A riacho quatro meses no verão petropolitano e outro ponto daquela escrita irrequieta de Alceu, em estilo tanto no inverno. Deglutiam os autores de destaque arame farpado seguido de rabiscos deselegantes, que na belle époque francesa, portuguesa e brasileira. ele próprio tinha dificuldade de entender, uns anos Anatole France, Eça de Queiroz e , mais tarde ficou reduzida a uma única intérprete, por exemplo. Era uma tertúlia em sessão continuada Tuca e sua paciência beneditina. Com a morte dela, pelos meses de férias escolares. em 2012, tornaram-se órfãs e quase indecifráveis os 33 anos de correspondência diária e pontual que o O traço filosófico identificador desse grupo éo escritor postava à filha. Estamos falando de umas 12 diletantismo e a ironia, eles escolhem não optar, mil cartas hoje arquivadas na Unesp, campus de Assis. entretêm-se com literatura, acreditam não precisar definir-se, vão tocando a vida como o fluxo constante *** de um rio, eles apenas assistem.

Contra-fluxo : A questão social no país ainda andava adormecida. E para a geração da belle époque no Universo não Pois é esse menino cercado de atenções - o varão havia mais enigmas, o espetacular surto científico rodeado em casa por quatro irmãs e meia dúzia das décadas recentes - nelas se inventou o motor, a de tutores — que aos 10 anos de idade o pai dele, explosão, os automóveis, a navegação transoceânica de convicções republicanas, resolve que está na movida a caldeiras, à eletricidade, à telegrafia; ela hora de ser robustecido, de conhecer a realidade bamburrou fabulosas jazidas de ouro e diamante na social do país, de sair da estufa profilática da zona África do Sul. É a Europa ariana levando ao mundo sul, ter contato com outras classes sociais. Alceu é seu poder civilizador, as teorias eugênicas prosperam. matriculado no Colégio Pedro II, na Zona Norte, Não é a toa que a belle époque olhou o cristianismo onde convive com meninos socialmente mais toscos. com desprezo; egocêntrica e enfatuada, ela descartou É fácil imaginar as descontinuidades, o estranhamento liminarmente o paradigma de um rei crucificado, provocado por alguém que traz de casa “fusains” corresponderia em linguagem de hoje, como na lápis de cera franceses comprados nos magazines canção dos Beatles, a “tosing out of tune”. de Paris, lancheira preparada pela mãe coruja, etc. Já o som da palavra pronunciada em bom francês soa Respirava-se aversão ao catolicismo, algo tão forte afetado, precioso. nos intelectuais companheiros de geração de Alceu, eles insistiam em guardar para si, reagindo um pouco Os bullyings não demoraram. Aos 15, quando Ceceu como o personagem de Primo Basílio: afirma no recreio ter lido Shakespeare, um dos parrudos sai com ele aos sopapos. “-Então o Conselheiro quer que eu, um engenheiro, um estudante de matemática, acredite que há almas Juventude que vivem no céu, com asinhas brancas, túnicas azuis, e tocando instrumentos?”. Outra vivência preparatória de novo choque de contrários dá-se em Duas Pontes, bairro em Alceu vive 18 meses baseado em Paris, só volta ao Petrópolis onde ficava a casa de campo de seus primos Rio quando em 1914 arrebenta a I Guerra. Aliás abonados, os Amoroso Costa. Repare-se que Manuel um incidente sintomático do espírito da época dá- Amoroso Costa veio a ser matemático notório, se na semana do retorno: com os jornais franceses professor da Politécnica; morreu tragicamente em noticiando tropas alemãs na fronteira ele consegue 1928, na queda de um avião que circundava a Baia passagens para sua família (mãe e quatro irmãs) num de Guanabara com uma comitiva de notórios para trem para Lisboa, onde tomariam o vapor pro Brasil. saudar o navio que trazia Santos Dumont de volta da Pois dona Camila não esconde o desaponto, “vou França. Manuel foi genuíno cientista, só a pesquisa e a perder minha hora na costureira!”. Dom Timóteo música o seduziam, a ponto de em viagem à Europa Amoroso Anastácio dizia bem: “belle époque, na mocidade ele preferir conhecer a Grécia da matriz era bocó!” mundial do conhecimento humanístico do que os cabarés parisienses. Em 1919 Renato Machado convida Alceu para beneditino em São Paulo. Dizia-se que além das escrever uma coluna de crítica literária em O Jornal. freiras viverem confinadas ao convento, de onde só Essa coluna dá voto de confiança aos Modernistas tinham licença para sair para o médico, não poderiam de 22, que o establishment à época via como não escrever à família e as cartas recebidas passariam pela mais do que um barulhento grupo underground. censura de madre abadessa. A despedida testava os Observem-se as circunstâncias, o Rio de Janeiro era a nervos do progenitor, dois anos de separação da filha capital do Brasil, sua importância relativa no país era não bastariam, o afastamento geográfico incorporava- destacada, São Paulo ainda decolava. Alceu se torna se à vida da família. destacado crítico do Modernismo, troca cartas com os Andrade, Mario, Oswald e Carlos Drummond. A notícia radical feriu minha avó que levou alguns anos a digeri-la.Para Alceu também a vocação da Pois não demorou e o crítico se converte, levado à filha pôs à prova de esforço suas convicções. Tuca era Igreja pelas mãos de um adepto da Ação Francesa, o especialmente ligada ao pai, iam juntos de bonde à movimento reacionário que se opunha à Revolução faculdade, brincavam de imaginar a história dos outros Francesa, Jackson de Figueiredo. Alceu passa a passageiros, como seria a casa e a família do senhor frequentar o Palácio São Joaquim, de onde o cardeal de bengala que acabava de desembarcar ou aquele orienta a condução do Centro Dom Vital, um núcleo outro engravatado, com jeito de tesoureiro de banco. de leigos interessados em divulgar os valores cristãos para a sociedade. Dom Leme espera fazer uma A opção da jovem a tiraria do convívio familiar, presença católica na intelectualidade contagiada de podaria qualquer desejo de conhecer o mundo positivismo cientificista. que tanto ouvira seus pais evocar e a confinaria num mosteiro, onde cumpriria horários rígidos e A reação dos correspondentes de Alceu não alimentação franciscana. Para atenuar o rompimento demorou. Mario de Andrade, Oswald de Andrade, de hábitos Alceu passou a escrever diariamente Carlos Drummond, Sergio Buarque de Holanda e longas cartas à freirinha, a prática varreu 33 anos, Rodrigo Andrade, todos se manifestaram enérgica e até a morte de Alceu em 1983. Um envelope com contrariamente à opção do crítico pela Igreja. Essa 10 páginas de uma caligrafia a desafiar uma equipe gente fez restrições públicas, eles diagnosticaram que de farmacêuticos Alceu despachava diariamente na a critica de Alceu poderia tornar-se sectária. Oswald agência central do Correio em Petrópolis. Há ali um não segurou sua ironia escandalosa, no Rei da Vela corrimão de escada instalado a pedido de Tristão, ele, encaixou Cristiano de Bem Saúde, o retrato de um octogenário, reclamava à agência do perigo de descer Alceu tido como grande censor a mando do clero. a escada. Aí um cunhado meu, Egydio Bianchi, que na Oswald lamentava “Tristão é um dos nossos que década de 90 dirigiu os Correios, quando instalou o agora acredita em anjo...” . corrimão, que teve que ser muito estudado dada a história do prédio tombado. Isso está contado num livro publicado pela ECT. * Anos 1950 * Os Correios e Telégrafos no Brasil, ISBN 85-901137-1-X Nas semanas finais de 49 os Amoroso Lima faziam as malas para embarcar para Washington, Alceu convidado a ser diretor da União Pan-Americana, Velhice: o embrião da OEA. Por culturalmente interessante Episódio Corção: que fosse o posto, havia custos afetivos substanciais agregados, o do isolamento. Os Amoroso Lima Em 1967 o filho mais velho de Alceu, Jorge Alceu, na viajavam de navio, dez dias de mar só para chegar altura com 36 anos, casado e pai de cinco crianças, a NYC. Comunicações só por cartas, semanas de morador de Campinas, matriculara-se num curso de demora. Permaneceriam dois anos ininterruptos no extensão na Fundação Getúlio Vargas, pelo que vinha exterior. a São Paulo todas as noites. Num desses percursos, ao voltar, quase meia noite, com a Anhanguera debaixo Pois é este homo viator que oferece na mesma de chuva pesada, na altura do Frango Assado, km 71, semana um frappé à filha na confeitaria D’Ângelo, eis que os pneus de um veículo passando em sentido em Petrópolis. Ali a jovem despeja sobre a mesa sua contrário disparam um jato d’ água sobre o para- decisão de ingressar em Santa Maria, um convento brisa da Rural Willys. Ela derrapa no asfalto, perde o controle, cruza o canteiro e bate em automóvel Domesticamente vindo do interior. Nesse tempo não se usava cinto de segurança, o choque violento joga meu tio contra o Outro choque de forças em antagonismo na biografia teto da Rural, onde bate a cabeça. dava-se no cotidiano, era intenso e profundo. Refiro- Removida a Campinas em ambulância, a vítima deu me à dinâmica dos temperamentos. Minha avó entrada na emergência do Hospital Vera Cruz em era especialmente polida, mas não propriamente estado de coma. E assim inconsciente permaneceu simpática. Introvertida, ao contrário da exuberância 40 dias, metade deles sob um cobertor de gelo do marido, aquela alegria contagiante. Dou um destinado a baixar a temperatura do corpo e evitar exemplo: sendo minha avó de humor seco, se à mesa febres que agravassem o trauma no cérebro. Em de almoço ela largasse uma brincadeira e as pessoas matéria de recursos médicos podia-se contar com à volta não percebessem o cômico ela deixava passar o máximo disponível na praça reputadamente bem batida. provida, e as conexões familiares locais certamente Era avessa à dramaticidade, a comoção fácil. Por ajudaram. Doutor Roque Balbo não mediu esforços, exemplo, durante os 2 anos finais da correspondência mas o caso era gravíssimo e resultou grave lesão na de Alceu com Jackson, em que o marido viveu a crise cabeça, impondo a Jorge uma sentença perpétua, ele da fé, Maria Thereza tinha sobre aquilo um olhar perdeu o impulso avante da existência. oblíquo, podador das efusões místicas do marido, ela Alertados por telefone na madrugada, Tristão e Maria via naquilo do marido ter insônia e estressar-se algo Thereza desceram de Petrópolis pela Cometa, para dramático, um exagero dispensável. acompanhar o caso. Pouco podiam contribuir além de testemunhar sua solidariedade. Minha avó não O ambiente geral na primeira República, herdeiro do era de demonstrar emoções, mas ficou a ruminar o sec. XIX cientificista, podava a religiosidade. Alberto choque, o risco não pequeno da perda do filho varão de Faria, meu bisavô, teria dito numa mesa de jogo de a quem legara o temperamento fleumático. cartas que antes preferiria saber do genro encontrado O acidente convocou muitas forças na num lupanar do que numa igreja. família, Silvia, minha mãe, fez plantão todas aquelas noites no quarto do hospital, pois o mecanismo do O temperamento reservado foi importante para cobertor térmico requeria um vigilante alerta para a podar a vida social e gregária do casal, eles não necessidade de inserir uma moeda de 10 centavos frequentavam nem recebiam em sua casa, nãolhes de dólar na chave do sistema para corrigi-lo, o que a faltando a pecha de arredios. Não tertv em casa foi todo momento acontecia. outra estímulo importante ao labor intelectual do intelectual católico. Não me esqueço de uma tarde Foi quando Tristão vislumbrou imolar algo pela em 1970 em que meus avós vieram conhecer o intenção, não importando que o sacrifício custasse-lhe apartamento que eu ocupava como estudante em caro. A consciência assoprou-lhe a tarefa mais árdua, Paris, no Marais, então ainda um reduto judeu, nada a exigiu que pusesse de lado antigas mágoas e fosse ver com sua sofisticação atual. Servindo-lhes um café procurar seu grande desafeto e adversário de ideias, narrei um pouco da festa ali havida na noite anterior o homem que havia sido seu principal colaborador para um grupo de amigos, ao que Tristão foi enfático: no Centro Dom Vital mas que há anos movia pelos “não deixe a vida escoar entre gregarismos que a jornais uma campanha de desconstrução da imagem nada levam, procure adensar suas vivências”. de Alceu: Gustavo Corção. Pois a postura mais cerebral de Maria Thereza O encontro deu-se no Rio poucas semanas depois. foi trabalhando o marido, operando um circulo Tristão contou a Corção precisamente o que o virtuoso a partir de algumas adversidades. Sem ela trazia ali, o antigo companheiro comentou que vinha Alceuprovavelmente teria seguido adiante o diletante rezando diariamente pelo caso. A visita foi bem curta, divagador, eterno aluno de professores particulares e Alceu disse a ele que eram adversários de ideias, mas colecionador de filigranas. Terminaria a vidaum grade unidos no coração de Cristo. Ao despedirem-se no conhecedor de Proust e apreciador de Baudelaire, mas portão da casa de Corção abraçaram-se, este não sem sair de sua redoma, sem efetivo envolvimento conteve as lágrimas, Alceu beijou-lhe a mão. na realidade social e politica brasileiras, sem interagir com elas em sua coluna de jornal. O robusto cacife do sogro mesmo dividido por oito teria de alguma forma sustentado uma existência de mero apreciador da vida e do mundo que a este pouco devolveria. Aliás base nutricional, a tapioca que foi o único pão de não me esqueço de um breve comentário de Tristão nossos antepassados que durante a colônia não sobre um dos personagens do grande romance de conheceram pão à base de trigo, ele aguardou a Maria Alice Barroso, Um Nome para Matar. Um dos Independência. herdeiros na família do proprietário enfiou-se na biblioteca da casa e fez dela o centro de sua vida. Não fosse o senso de responsabilidade inato, eis uma Bahia, 15 jun.15 opção que teria agradado a Alceu.

Pois Alceu chegou a ser espécie de carranca do rio Xikito Affonso Ferreira São Francisco, estas colocadas na proa da embarcação [email protected] que avança destemida. Sua autoridade moral, sua coragem, sua disposição de denunciar arbitrariedades deram-lhe nos anos sombrios da ditadura militar a condição de único brasileiro cuja coluna de jornal não era censurada. A quem mais foi permitido à época escrever em dois dos jornais de maior circulação no Rio e em São Paulo, o Jornal do Brasil e a Folha de São Paulo, que o deputado Rubens Paiva fora sequestrado pelos órgãos de segurança do estado e que sumira em suas mãos ?

***

Quero terminar evocando um afluente nacional do equilíbrio de antagonismos fundamental na cultura brasileira, Gilberto Freyre. Tal conceito foi amplamente trabalhado por Chesterton, autor que frequentou a mesa de cabeceira do antropólogo pernambucano e também a de Alceu Amoroso Lima. Ambos declararam profunda admiração por Chesterton, à base das convicções de ambos o pensador inglês teve influência, eles o leram no começo da carreira intelectual.

Casa Grande & Senzala é um grande mosaico de antagonismos em equilíbrio. No Brasil do começo do sec. XX o entendimento comum era o de Nina Rodrigues: a miscigenação é a causa de nosso atraso. Ora, nesse ambiente entrou Gilberto Freyre propondo exatamente o contrário: o patrimônio cultural dos africanos enriqueceu aos europeus. Aliás o caso brasileiro não foi o primeiro, pois os berberes já haviam transferido aos portugueses suas técnicas de canalização de agua e a arte dos azulejos. Para o Brasil os negros trouxeram suas plantase seus pratos mais adaptados aos trópicos, sua música sacudida, seus ritmos que animam o espirito e açambarcam. Por mais que Gilberto Freyrepossa ter subestimado a violência da condição de escravo ele nos abriu as portas para apreciarmos os chorinhos e a bossa nova, a riqueza dos sabores tropicais, a presença da mandioca na alimentação brasileira, ela que foi nossa Depoimento obrigava a quem saísse do Rio com livros, a ter uma autorização especial, o que ele chamou de “censura Alceu Amoroso Lima Filho prévia”; foi apoiado por uns, por outros, refutado, numa calorosa discussão pública; no dia seguinte os Fui convidado pelo Centro de Pesquisa e Formação jornais noticiavam a “discussão calorosa” entre os do Sesc SP a escrever sobre meu pai, Alceu Amoroso acadêmicos, mas também a revogação pelo DIP da Lima, pseudônimo Tristão de Athayde, o qual, nascido tal portaria! no Rio de Janeiro em 11 de dezembro de 1893, morreu em Petrópolis no dia 14 de agosto de 1983, Uma das características da personalidade de Tristão, três meses antes de completar seu nonagésimo ano aliás penso eu que das mais fortes, era o sense of de vida. humour, que a meu ver se identifica com a inteligência Filho que sou, o de número cinco, nascido em 30 de e a naturalidade, esta última, segundo ele, a maior das julho de 1935 e batizado Alceu Amoroso Lima Filho, virtudes! meu tema é contar um pouco de sua vida privada - “A naturalidade é como um bando de crianças sua vida pública já é bem conhecida e comentada por brincando na rua, em frente da Igreja”, disse uma vez. muitos. E começo por dizer que na vida particular Convidado a se candidatar a Senador, recusou, mas nada teve a ver com participação na política partidária, recomendou que fosse convidado seu amigo de seja no Parlamento, seja no Executivo, seja no Poder muitos anos, Hamilton Nogueira, que foi eleito pelo Judiciário, embora muito participante na sociedade Rio de Janeiro. Convidado para Ministro da Educação, civil, especialmente no ambiente de Educação não sei por qual Presidente (teria sido o General Superior e na mídia, seja no campo de educação, Castelo Branco?...), recusou e disse “minha posição é como professor de Literatura Brasileira na antiga na tribuna, onde tenho podido, até hoje, dizer o que Universidade do Brasil, hoje UFRJ, e com a mesma penso...”. cadeira na PUC-RJ, seja nos jornais do Rio e de São Paulo, como cronista, colunista do Jornal do Brasil e Aliás, procurado, por telefone, pelo Presidente Castelo da Folha de São Paulo durante muitos anos. Branco, que lhe disse “ser seu leitor e admirador”, e Muito especialmente, foi ligado à Igreja que se preocupava em explicar que “você, Tristão, está Católica no Brasil e no exterior, desde sua mal informado sobre a revolução...”, etc., etc.; e que, conversão, em 1928, à educação religiosa e ao sentindo Tristão preocupado que pudesse ser “trote”, Vaticano (Conselho Mundial de Justiça e Paz). disse-lhe que poderia, “se quisesse, telefonar de volta para o número “xxx” para conferir quem o estaria Seu Adeus à disponibilidade e outros adeuses, uma chamando ao telefone...”. carta a Sérgio Buarque de Holanda - depois publicada O cidadão e professor Alceu Amoroso Lima foi em livro em 1969 -, marcou bem a sua conversão ao também escritor, dizia ter mais de cem títulos catolicismo, que acontecera em 1928; tive eu a ousadia publicados entre 1928 e 1978, com temas dos de, na apresentação do livro Cartas do Pai, lançado mais diversos, principalmente nas áreas de filosofia, em 2003 pelo Instituto Moreira Salles, falar no seu sociologia, política e religião, esta devotada a uma vida “retorno à disponibilidade”, alusão à “ressurreição” da intensa de apóstolo da religião católica, desde que intimidade de sua alma, que estava se publicando agora, deixou uma vida burguesa de laissez faire para trás e, via cartas diárias para a sua filha monja beneditina. através de contatos com Jackson de Figueiredo, Padre Leonel Franca, S.J., e principalmente o Cardeal Dom Passou quatro anos em Washington, como Diretor Sebastião Leme, converteu-se ao catolicismo, em 1928. Cultural da União Pan-Americana, secretaria da Organização dos Estados Americanos, e dois anos em Ao invés de “chover no molhado” sobre a vida de meu Nova York, como professor da New York University, pai e suas atividades, assunto que já terá sido e será cadeira de Estudos Brasileiros. por muito tempo ainda contado em prosa e verso Membro desde 1935 da Academia Brasileira de por diversas pessoas, que direta ou indiretamente Letras, nos últimos anos o “decano”, e da qual o tiveram contato pessoal com ele, e/ou com suas ouvi dizer que “eu entrei na ABL, mas ela não entrou obras e sua pregação, resolvi misturar o “meu pai de em mim...”. E lembro um episódio na ABL: Tristão casa”, da minha autoria, conhecido por mim “ao vivo protestou com veemência, na sessão semanal da ABL, e a cores” de 1935 a 1983, pelo menos dos anos presente Getúlio Vargas, contra uma determinação do 40 até os anos 80 do século XX, com as pessoas DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) que de dentro ou mesmo “de fora de casa” que falaram e escreveram sobre sua vida, tais como ele próprio, Nunca, ao que me lembro, fui convidado a “uma Medeiros Lima (Memórias Improvisadas), Francisco conversa particular... a portas fechadas”, nem Assis Barbosa (Memorando dos 90) e outros. tampouco ouvi dele uma palavra menos “de salão”, a Sua personalidade pública foi narrada por Candido não ser, sinceramente, aquela “m....” que os franceses Mendes (Da pessoa à persona) magistralmente; aliás, gostam, pronunciada a propósito de um mau governo, diga-se de passagem. Candido, escolhido pelo próprio não sem antes se desculpar comigo - “desculpe a má Alceu, próximo de morrer, como seu sucessor nas palavra!...” -; o fato ocorreu aos seus 85 anos de idade ! atividades literárias e sociais, criou na Universidade Candido Mendes o Centro Alceu Amoroso Lima para Que disse Tristão de si próprio ao longo da vida? a Liberdade, que vem fazendo um trabalho grande Como parte do livro Cartas do Pai, foi incluído o de divulgação de suas ideias na sociedade brasileira, trecho “Alceu por Alceu”, contendo algumas coisas especialmente nas relações com a hierarquia da que ele disse ao completar 60 anos: Igreja Católica. -“ detestei meus tempos de ginásio...” Chamemos então para a conversa o personagem -“fui sempre um aluno medíocre...” Tristão e os outros seus amigos ou não (“tive - “não faço uma afirmação sem sentir logo o protesto amigos e inimigos” – dizia Tristão de Athayde), abafado das negações que ela implica...” publicados ou desconhecidos, parentes ou sem - “a virtude que mais admiro é a naturalidade...” parentesco, para se manifestarem sobre a sua - “o vício que mais detesto, o farisaísmo...” presença na sociedade, na literatura e na política. - “guiei automóvel na cidade do México; mas hesitei dois meses antes de guiar no Rio de Janeiro...” Quando ele morreu, Zuenir Ventura, então repórter - “conversei três horas com Thomas Merton; e dez de revista, perguntou-me: “como era seu pai horas com Maritain...” dentro de casa?” -“atravessei os Andes a cavalo...”, esta afirmação colocada em dúvida por meu cunhado Afrânio... Respondi, sem hesitar, “ora, Zuenir, igualzinho ao que - “nadei da Urca ao Morro da Viúva...”, também vocês conheciam e conviviam com ele no dia a dia!” questionada por Afrânio... E confirmo, hoje, a minha afirmação de então: -“à medida que nos aproximamos do fim da vida, Tristão era o mesmo na Avenida 15 de Novembro, temos que escolher entre a humildade e a estupidez...” em Petrópolis, após a Missa diária nos Franciscanos, -“não há nada que mais enterneça um coração de comprando flores para levar para minha mãe em velho do que ser chamado de você por uma criança casa, tanto quanto tomando seu whisky no fim (Petrópolis, 1981)...” da tarde, na Rua Mosela, 289, nossa casa naquela - “a grande e grata surpresa da vida: os homens são cidade, hoje a sede do Centro Alceu Amoroso Lima melhores do que pensamos...” para a Liberdade. As cartas que Tristão escreveu, diariamente, para Ou na Rua Dona Mariana, 149, em Botafogo, ou sua filha Lia, minha irmã monja, durante cerca de 20 passeando após o jantar na Cathedral Avenue em anos, foram publicadas em dois livros (Cartas do Pai Washington, para fazer a digestão. e Diário de um ano de trevas) pelo Instituto Moreira Salles, o primeiro livro sob a batuta do seu diretor, Um “homem do mundo”, se quiserem assim definir Antônio Fernando Franceschi, autorizado online pelo uma pessoa de refinada cultura, de maneiras de seu presidente, Doutor Walter Moreira Salles, que gentleman, que para nós exercia, através da figura de disse “isso é história do Brasil, temos que publicar” e, minha mãe, a posição de “dono da casa” (“da porta no caso do segundo livro, sob a responsabilidade do para fora, mando eu; da porta para dentro é sua mãe seu diretor, Flávio Pinheiro, foram produtos de leitura que manda!”), sem se pretender amigo ou colega de Lia (conhecida em casa como Tuca! E no Mosteiro dos filhos, nem se distanciar de discutir livremente como Madre Maria Teresa), da digitação do autor conosco sobre nossas preocupações pessoais e/ou as destas linhas, e da revisão de Frei Betto. dificuldades da sua própria vida, dentro de um clima Foi uma autobiografia, segundo Tristão, “se você de absoluta liberdade, sem exageros nem badalações publicá-las algum dia, serão minha autobiografia”, intergeracionais. resultado da leitura de Tuca (a única que, além de íntima da cabeça e das opiniões de Tristão, entendia a sua caligrafia hieroglífica... além da minha mãe) e da minha tentativa insistente de participar, intelectual e Restam, inéditas, cerca de 10 anos de cartas (Tristão tecnologicamente, em dueto inesquecível com ela, da faleceu em agosto de 1983), manuscritas ainda, cuja reconstrução da figura admirada e amada do nosso pai. decifração está sendo tentada por pesquisadores/ paleógrafos, para tentar completar a autobiografia, Estou convencido de que estamos deixando às que algum dia ficará pronta, se Deus quiser. pessoas que, de alguma forma, tiverem interesse em Chamemos à conversa os biógrafos de Tristão, conhecer melhor o Tristão, uma leitura original e muito Medeiros Lima (Memórias Improvisadas), Francisco importante que, além de retratar sua personalidade, Assis Barbosa (Memorando dos 90), Candido Mendes mostra seus comentários sobre os eventos dos quais (Da persona à pessoa), Marcelo Timóteo da Costa participou, direta ou indiretamente, em sua vida, (Um itinerário no século) e outros que poderão ter nesse período. se referido a ele circunstancialmente, e procuremos acolher para uma troca de ideias e de opiniões com As cartas, pessoais por natureza, retratam um viver e ele mesmo (via Tuca!). transmitir diário, seja doméstico, seja político, seja de comentários gerais sobre eventos e/ou pessoas O tema passou a ser a mudança de Tristão, no modo ou instituições. Nada acrescentamos ao texto das de ver o mundo e o Brasil, da infância na burguesia da cartas (salvo correções, a nosso ver, de alguns erros de direita (único homem, três irmãs), não foi ao colégio português e de repetições a título de ênfase!), se bem primário, aprendia em casa com o (extraordinário que tenhamos suprimido algumas poucas passagens professor) Kopke, muitas incursões pela Europa (belle íntimas e/ou domésticas por julgá-las desnecessárias époque, festas, namoradas, les argentines en fleur...) e/ou desinteressantes para o público leitor. – enviesando para a “esquerda”... – ao contrário do Chegamos a 1968 e resolvemos parar, seja devido ao normal dos jovens, que começam contestadores momento crítico da revolução de 1964, a edição do e crescem evoluindo da esquerda para a direita ao Ato Institucional número 5, que consolidava a ditadura longo da vida. militar, seja pelo tamanho grande, pouco prático, que o livro alcançaria, até o fim da última carta, de 31 de Tristão, como disse a Medeiros Lima, na juventude dezembro de 1968 (texto de 671 páginas, mais fotos). foi pela disciplina e na velhice pela liberdade, uma O segundo livro, Diário de um ano de trevas (a última trajetória que, não por acaso, foi da naturalidade na carta é de 28 de Fevereiro de 1970, 264 páginas), infância para a autenticidade e, na conversão, para é composto essencialmente por comentários em a liberdade, esta última cada vez mais sua maior torno da atividade política, pois se trata do tempo da convicção, no fim da vida. ditadura com todas as restrições criadas pelo De Affonso Arinos surpreendeu-se ao ouvir: não poder militar. presta para nada, a propósito de um conto passado na França, em francês, que escrevera e o mostrou Aliás, diga-se a bem da verdade, Tristão muito poucas a Arinos; e dele também ouviu um comentário ao vezes foi impedido pela censura de publicar seus informar-lhe que nunca lera nada de Eça de Queirós: artigos nos jornais: livre que conseguiu ficar de que homem feliz! segundas intenções visando ganhos financeiros ou Machado de Assis foi seu vizinho no Cosme Velho, políticos, dizia o que pensava, e, acrescento eu, ideias bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro; passava a e opiniões, no mínimo, são difíceis de aprisionar... mão pela cabeça do menino Alceu, que o espiava Além disso, o segundo livro, da metade para frente, pelas grades da Casa Azul, onde nascera e morava, reflete bastante a melancolia de Tristão, desiludido ao passar pela calçada com a esposa Carolina pelo com a impossibilidade de redemocratização do Brasil, braço; e Alceu foi ao seu enterro, acompanhado pelo e com crescente desilusão, causada pelas mortes dos padrinho Antônio Martins Marinhas. dois “Joões”, como ele dizia (John Kennedy e o Papa João XXIII), vistos por ele com tanta esperança no Manoel Bandeira, grande amigo, escreveu o poema A futuro da Igreja Católica e na paz mundial. velha chácara, celebrando a Casa Azul, “já não existe mais a casa, mas o menino ainda existe!” O segundo livro foi encerrado devido a problemas Carlos Drummond de Andrade sobre Tristão, ao de saúde de Tuca, cuja deficiência visual agravou-se, completar 70 anos: “[...] Tristão e Alceu, a mesma fiel resultado da diabete, e ela passou a não poder mais cristalinidade, no sábio à sombra de Deus!” ler os hieróglifos de Tristão. É do mesmo Carlos Drummond de Andrade, convidado por mim e pelo Zuenir Ventura para que se candidatasse à cadeira de Alceu na Academia Brasileira de Letras, a resposta, curvando a cabeça: não sou digno. Deixou a crítica “por quê, Tristão?”, pergunta Medeiros Lima, Tristão em resposta “não é da minha natureza”, “[...] jamais consegue o crítico penetrar a essência da criação, ora por excesso de generalização, ora por excesso de análise”. Preferiu sempre o “e...e” ao “ou...ou”, influenciado por Chesterton.

Medeiros Lima: Augusto Frederico Schmidt me declarou ter sido o senhor um dos homens que maior influência exerceu sobre ele. No entanto, não conheço duas pessoas tão diferentes. Tristão: quem pode desvendar o mistério das influências que recebemos e que exercemos? Só mesmo Deus. Por mais que procuremos analisá-las, sempre nos escapará o essencial: a influência é, como a cultura, por natureza, o que escapa à nossa análise e à nossa memória. “Sou um homem dominado por uma inquietação enorme em face da procura da verdade. Sinto-me um viajante, um homo viator! Thomas Merton também me pareceu ser um homo viator, ao morrer em pleno Oriente numa reunião de monges orientais de diversas crenças, em companhia dos quais discutia o tema ‘em procura da verdade’”.

“A influência de Merton sobre mim, embora grande, não foi tão grande quanto a de Maritain; uma questão de oportunidade: quando Merton apareceu na minha trajetória, eu já estava no caminho [...]”. “A grave crise do mundo moderno tem sido motivada justamente pelo espírito de isolacionismo e de sectarismo levados ao extremo. Segundo João XXIII, se quisermos ultrapassar a crise, o caminho está na busca da compreensão recíproca, da aproximação dos contrários e dos diferentes”. Francisco Assis Barbosa: e por que “Tristão”? “Houve muitas confusões com os meus pseudônimos”. Tristão de Athayde: “existiu, sim. Coisa que eu ignorava totalmente quando adotei esse nome. Só mais tarde vim a saber que existiu um capitão das conquistas da Índia, chamado Tristão de Athayde, e que era o pior dos chantagistas!”, “mas já era tarde para corrigir.”. “O Prêmio Nobel? Depois que Guimarães Rosa morreu?!...” “Mas com certeza, como poeta, é Carlos Drummond de Andrade, que para mim é o suprassumo da criatividade literária. Para mim, é ele quem merecia o Prêmio Nobel!” “Já dei um terço de minha biblioteca para a PUC de o famoso “e...e” em lugar do “ou...ou”, expressão tão Petrópolis; não sei onde botar tanto livro...” do seu agrado. Se nós, sete irmãos, trilhamos os caminhos mais Quem é Deus para Alceu Amoroso Lima? diversos na vida, se tivemos erros e acertos como Tristão: “cheguei a Ele por tê-lo procurado em vão todo mundo tem, e ele próprio também os teve, se entre as coisas e os valores relativos e por sentir, fizemos escolhas as mais diversas, boas ou ruins, não de modo crescente, uma invencível necessidade de foi por falta de ter em casa um ser humano exemplar, encontrar um sentido para a vida. Cheguei a Deus que, sobretudo, sempre procurou nos mostrar a vida por meio de sua negação. Daí até hoje meu respeito como ela deve ser vivida neste mundo, a caminho do pelos ateus...Só se nega aquilo que existe...”. lugar eterno para onde nos destinamos. E sobre Gustavo Corção: “, que Poucos dias antes de morrer, num intervalo do nos apresentara, me contou que, ao sairmos do nosso grande sofrimento a que o câncer o submetia, deu primeiro encontro a três, Corção lhe dissera: ‘nunca mais um exemplo que me faz recordar o ser humano nos entenderemos!’ Nos desentendemos, depois nos que era: como discutíssemos, em volta de sua cama entendemos. Sempre o admirei e respeitei até hoje. no hospital, sobre que horas seriam, ele saiu do seu Como me disse um Reitor da PUC: ‘mesmo quando torpor de doente terminal e disse: “por que vocês nos ataca, somos forçados a admirá-lo!’” não ligam para 130?”, reação bem própria do homem Marcelo Timóteo da Costa traz a ideia do Alceu da sereno, em paz com sua consciência, que logo passaria “tripla devoção” diária: isto é, ir à Missa, ler o Breviário para a outra vida, em trânsito pelas suas últimas horas e escrever à filha beneditina. nesse mundo. Queremos comparar as três práticas à trindade: a fé Com a naturalidade dos justos do Senhor! (a Missa), a esperança (“...os homens são melhores do Hoje sou muitas vezes surpreendido por pessoas que pensamos...”) e a caridade (“nada há no mundo as mais diversas, das mais diferentes origens, idades, de mais terrível do que a morte do amor!”). classes econômicas etc., que comentam, ao ler meu As monjas beneditinas da Abadia de Santa Maria, nome, que grande homem era o seu pai, e isso me em São Paulo, reuniram várias palavras de Tristão dá a satisfação de mais uma oportunidade de admirar de Athayde, e fizeram publicar um pequeno livro o homem que, sem ser poderoso financeiramente, que teve o título de Palavras de Vida Eterna, o qual politicamente ou de qualquer outra forma grande prefaciei, como segue. por critérios materialistas, fez bem ao bem comum “Esse foi o ser humano com que nós, seus sete filhos, das pessoas em geral, trazendo para elas esperança, convivemos toda a nossa vida, sério quando precisava solidariedade, e nelas recebendo gratidão, pois sempre ser, respeitando e amando a nossa mãe, e ela foi grande aos olhos de Deus! responsável por grande parte da tarefa da educação Sei que a figura do meu pai é enorme, sob muitos dos filhos (“da porta da casa para dentro manda sua aspectos foi e é ainda muito importante para a Igreja mãe...”), nunca entrando em conversas a “sós” porque Católica e para o país, mas para mim, pessoalmente, elas eram todas transparentes na família, sempre nos seu exemplo é o que tentei exprimir através dessas dando todas as chances de acertar e de errar, de ir palavras que mais uma vez, espero que possam trazer ou voltar, de crer ou de não crer, a liberdade acima enriquecimento aos leitores destas “palavras de vida de tudo (“plantei a árvore da liberdade na porta da eterna” que estamos entregando ao público. minha casa...”), a responsabilidade e a seriedade como norma de vida. Alceu Amoroso Lima Filho

E essa liberdade sempre acompanhada pelo alerta de que “o ser humano não é confiável”: é capaz das atitudes mais nobres e bonitas, como também das menos aceitáveis, justamente porque “Deus nos fez livres... inclusive para negá-lo!” “O vício é o exagero da virtude”, outra de suas palavras marcantes: a fé levada ao exagero gera o fanatismo; o amor à verdade sem levar em conta a “verdade dos outros” pode levar ao farisaísmo; o amor sem limites pode levar às paixões loucas; enfim, o equilíbrio sempre tem que estar presente nas nossas atitudes; A Correspondência de Tristão de Athayde e Além dos dominicanos, estão presos aqui um jesuíta a Luta pelos Direitos Humanos e dois padres seculares. Todos nós fomos física e psicologicamente torturados e obrigados a assinar depoimentos forjados pela polícia. Sofremos o diabo: Leandro Garcia Rodrigues “pau de arara”, choques elétricos, socos, pontapés, além de vexames morais como o de ver um delegado trajando paramentos, de metralhadora em punho, ridicularizando a Igreja. A polícia aproveitou para Falar em Direitos Humanos é uma tarefa sempre levantar um verdadeiro processo da Igreja através atual, pertinente e historicamente comprometida e de nós. Queria saber quem é quem na Igreja do articulada. Numa época de relativismos e também Brasil, donde vem o dinheiro da CNBB, quem são as extremismos ideológicos, a luta pelos Direitos amantes de D. Hélder etc. Humanos se mostra necessária e emblemática, já que a dignidade humana vem sofrendo toda a sorte de atentados, aumentando ou diminuindo, de acordo Vivia-se um momento de terror e barbárie nas com cada realidade histórica e geográfica. cadeias brasileiras, especialmente aquelas reservadas O arquivo pessoal do escritor Alceu Amoroso Lima a interrogatórios e confinamentos dos chamados – o Tristão de Athayde – é um excelente repositório presos políticos, ou terroristas, como os aparelhos da de inúmeros documentos que comprovam o repressão costumavam chamá-los, ou ainda “terroristas engajamento desse intelectual plural na luta pelos da Igreja”, alcunha reservada especificamente àqueles Direitos Humanos. Estamos falando de cartas, que pertenciam à hierarquia eclesiástica ou eram relatórios, ensaios, anotações pessoais e manuscritos leigos comprometidos e envolvidos na causa do em geral, onde vemos que Alceu Amoroso Lima – que Evangelho. Nesta mesma carta a Alceu, num outro defendia a liberdade como grande dom da natureza momento, Frei Betto inicia a narrativa da tortura de humana – tinha uma real e salutar preocupação com Frei Tito de Alencar Lima, também dominicano, preso essa temática. com os demais religiosos de São Domingos e de Como corte temporal e temático, ressalto a outras ordens e/ou dioceses: correspondência que manteve com inúmeros presos políticos e religiosos detidos ao longo do regime civil- Só para ilustrar a situação em que vivemos: há pouco militar brasileiro (1964-1985). Deste conjunto, quero mais de uma semana frei Tito de Alencar Lima foi ressaltar o complexo diálogo de Tristão de Athayde levado para novos interrogatórios na “Operação com o frade dominicano Frei Betto, preso com Bandeirantes” (Polícia do Exército). Ontem vários outros religiosos dominicanos na Operação soubemos que ele foi novamente torturado no “pau Bandeirantes de São Paulo (OBAN), que funcionava de arara” com choques elétricos e que havia “tentado no Presídio Tiradentes, organismo de repressão que o suicídio” cortando os pulsos. Levado ao Hospital integrava o DOPS-SP . Militar recebeu transfusões de sangue e já está fora É um período conturbado e complexo da história de perigo, levaram-no de volta à prisão do Exército. brasileira, que ainda suscita dúvidas e pede por mais Como o Núncio Apostólico tivesse vindo visitar-nos pesquisas e investigações, especialmente por envolver ontem (temos recebido todo o apoio dele e do muitas pessoas e organizações oficiais, bem como episcopado brasileiro), pedimos que fosse ver como políticas de Estado. estava frei Tito. Não conseguiu, tendo sido barrado no Nesse período, prisões, torturas, desaparecimentos Exército. Não deixaram que frei Tito receba qualquer e mortes tornaram-se a regra, não a exceção. Tais visita enquanto não desaparecerem as marcas da práticas faziam parte do nosso cotidiano, atingindo tortura. É o costume. Nós que conhecemos bem em cheio todos aqueles que se posicionassem a ele e à polícia do Exército, sabemos que frei Tito ideologicamente contrários a estes mesmos regimes, jamais seria capaz de um gesto desesperado. É inclusive religiosos e leigos comprometidos com as jovem, tem grande força física e moral. Certamente causas da libertação, no mais amplo sentido desta tentaram “suicidá-lo”, como já ocorreu a outros e palavra. Para ilustrar este clima de terror, cito este então bateram nele até arrancar sangue. Este é um fragmento da carta que Frei Betto enviou a Alceu caso entre centenas. É o retrato do regime em que Amoroso Lima, em 22 de fevereiro de 1970, o texto vivemos. Nem senhores de idade escapam à tortura. mais difícil e contundente deste epistolário:

Nota-se o clima de terror, inclusive político, a ponto correu pelo mundo, transformando-se em símbolo de de impedirem a visita do próprio Núncio Apostólico, luta pelos direitos humanos. Em 1971 foi deportado isto é, o embaixador do então Papa Paulo VI no para o Chile e, sob a ameaça de novamente ser Brasil e responsável pela diplomacia da Santa Sé em preso, fugiu para a Itália. Em Roma, não encontrou terras brasileiras. A este respeito, Frei Betto, enquanto qualquer tipo de apoio oficial por parte da Igreja, por na prisão, utilizou diversas das suas missivas para ser considerado um “frade terrorista”. De Roma, Tito problematizar o papel e a devida atuação da Igreja no foi a Paris, onde recebeu apoio dos dominicanos da seio da sociedade brasileira. Às vezes cético, às vezes província local, que o enviaram ao convento de Sainte empolgado, o dominicano cambiou entre a euforia e Marie de La Tourette, em Évoux, Lyon. Traumatizado a decepção, especialmente em relação à determinada pela tortura física, moral e psicológica, Frei Tito parcela do episcopado brasileiro ainda renitente em submeteu-se a um tratamento psiquiátrico que surtiu denunciar as agruras cometidas no âmbito do regime pouco efeito benéfico, os traumas e fantasmas do militar. Numa carta aos seus pais, em 3 de março de passado na OBAN marcaram-lhe profundamente 1970, ele assim declarou: a alma e o próprio corpo. No dia 10 de agosto de 1974, um morador dos arredores de Lyon encontrou Dentro de nossas limitações, tudo fizemos para que a o corpo de Frei Tito suspenso por uma corda, entre o Igreja emitisse uma nota de protesto. É preciso que céu e a terra. Foi enterrado no cemitério dominicano ela tome posição a respeito da gravidade da situação do Convento de Sainte Marie de La Tourette. Em 25 brasileira, antes que seja tarde. Os bispos, porém, de março de 1983, o corpo de Frei Tito de Alencar estão acostumados à posição defensiva. Preferem Lima chegou ao Brasil, passando por São Paulo, onde a omissão ao risco. Talvez seja mesmo necessário foi realizada uma celebração litúrgica em sua memória que alguém se sacrifique para que eles reajam. Não e em memória de Alexandre Vannucchi. Cercado por posso compreender, à luz do Evangelho, como é bispos e numeroso grupo de sacerdotes, Dom Paulo possível suportar calado declarações como essa que Evaristo Arns repudiou a tragédia da tortura em missa o governo acaba de fazer: que no Brasil nunca houve de corpo presente acompanhada por mais de quatro democracia! [...] A Bíblia mostra-nos claramente mil pessoas. A cerimônia foi celebrada em trajes que Deus fala através dos acontecimentos. João vermelhos, usados em celebrações dos mártires. Da XXIII lembrava que devemos observar os “sinais capital paulista, seu corpo foi levado à Fortaleza, onde dos tempos” para compreender a ação de Deus na foi definitivamente sepultado. história. Creio que Deus fala à Igreja no Brasil e na A respeito da tortura de Frei Tito de Alencar Lima, América Latina através do que se passa conosco. Daí assim narrou Frei Betto, em carta a Alceu Amoroso minha certeza de que nada temos a perder. O caso Lima, em 22 de fevereiro de 1970: do Tito é uma prova cabal disso. (Frei Betto, 1978, p.36) Só para ilustrar a situação em que vivemos: há pouco Frei Tito de Alencar Lima (1945-1974) nasceu mais de uma semana frei Tito de Alencar Lima foi em Fortaleza e morreu em Éveux, França. Ainda levado para novos interrogatórios na “Operação adolescente, engajou-se nos movimentos de base da Bandeirantes” (Polícia do Exército). Ontem soubemos sua cidade natal, especialmente aqueles de caráter que ele foi novamente torturado no “pau de arara” estudantil, com ênfase na JEC (Juventude Estudantil com choques elétricos e que havia “tentado o suicídio” Católica). Ingressou no noviciado dominicano, em cortando os pulsos . Levado ao Hospital Militar Belo Horizonte, em 1966, fez a profissão dos votos recebeu transfusões de sangue e já está fora de perigo, no ano seguinte e mudou-se para São Paulo para levaram-no de volta à prisão do Exército. Como o estudar Filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Núncio Apostólico tivesse vindo visitar-nos ontem Em outubro de 1968, Frei Tito foi preso por participar (temos recebido todo o apoio dele e do episcopado de um congresso clandestino da União Nacional dos brasileiro), pedimos que fosse ver como estava frei Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), fato esse que Tito. Não conseguiu, tendo sido barrado no Exército. dará início ao seu calvário de sucessivas torturas Não deixaram que frei Tito recebesse qualquer visita nas dependências da OBAN, sob a ação sádica enquanto não desaparecerem as marcas da tortura. do delegado Sérgio Paranhos Fleury e sua equipe É o costume. Nós que conhecemos bem a ele e à do Esquadrão da Morte. Frei Tito foi brutalmente Polícia do Exército, sabemos que frei Tito jamais seria torturado por vários dias ininterruptos, o que o levou capaz de um gesto desesperado. É jovem, tem grande a tentar o suicídio dentro da própria OBAN. Ainda na força física e moral. Certamente tentaram “suicidá- prisão, escreveu sobre a sua tortura e o documento lo”, como já ocorreu a outros e então bateram nele até arrancar sangue. Este é um caso entre centenas. É palavra que nunca falha àqueles que nela creem. São o retrato do regime em que vivemos. Nem senhores os chamados “lírios da fé”, na expressão de muitos de idade escapam à tortura. Mas o sr. já deve estar mártires cristãos ao longo da História, cujos martírios a par disto, não vou prolongar-me. (Rodrigues, 2015, se renovam nas brutais experiências de tortura e pp. 34-35) violência aos quais muitos são impelidos e forçados, confirmando a promessa bíblica: Por Ele sofremos a Daí a importância histórica desta correspondência: ela ponto de ser acorrentados como malfeitores. Mas a é atual, trans-histórica, com um destinatário múltiplo Palavra de Deus não está presa. (2 Tim 2,9) – todos aqueles que se escandalizam com este tipo Pode-se afirmar que essa correspondência entre Frei de barbárie, de selvageria oficial em nome do Estado, Betto e Alceu Amoroso Lima propiciou inúmeros em nome da segurança nacional. Por isso o caráter frutos de denúncia com a escrita de vários artigos na até mesmo profético dessas cartas: elas denunciam imprensa – especialmente por parte de Alceu – bem a opressão e a violação dos direitos humanos, mas como a tradução dessas cartas às mais diferentes também anunciam a esperança na libertação, na línguas e posterior publicação nos respectivos países. prática da justiça, numa espécie de espera messiânica E quando lembro de Alceu na imprensa da época, é por um novo tempo e uma nova realidade, como se realmente de se enaltecer a sua coragem, determinação percebe nessa mesma dramática carta de Frei Betto e compromisso com a verdade. Percebe-se que a Alceu: Alceu fez dos jornais uma espécie de cátedra, sua voz retumbava aos quatro cantos no sentido de trazer a Apesar de tudo, estamos felizes pela graça de lume o que se passava nos subterrâneos do regime, sermos a presença da Igreja nos cárceres. Nosso não poupando nenhum nome, não criando metáforas sofrimento não é inútil. Identificamo-nos com os para encobrir os devidos responsáveis. De sua milhares de prisioneiros anônimos, imagens vivas de imensa produção intelectual na imprensa da época, Jesus Cristo. Rezamos os salmos diariamente, em especialmente no Jornal do Brasil e na Folha de São conjunto, louvamos ao Senhor pela graça de trilhar Paulo, destaco a crônica “Terrorismo Mascarado”, o mesmo caminho de seu Filho, que foi perseguido, publicada no Jornal do Brasil, em 25 de maio de 1966: preso, torturado e condenado pela nossa redenção. Aqui aprendemos a “ter humildade diante da vida”, A partir de 1º. de abril e, particularmente, do fatídico como nos diz Diógenes de Arruda Câmara , preso 9 de abril de 1964, o arbítrio governamental, militar aqui também. É a oportunidade que temos de nos e policial institucionalizado, introduziu o terrorismo à preparar para a Igreja dos pobres e oprimidos. Se brasileira. E que representa este tipo de terrorismo? a tortura nos humilhou, ela também nos dignificou, É a guerra de nervos. É a ameaça constante. É a segundo a ótica da fé que nos ensina que o caminho perda de garantias legais. É a espada de Dâmocles. da glória é ser o último dos homens. Só o mistério É a demissão injusta de um cargo, como a do Calvário nos faz compreender o que significa, recentemente de Paulo Carneiro. São os IPMs. É a diante de Deus, ser dependurado nu como porco desfiguração da Universidade de Brasília. É a prisão no matadouro. Desculpe dr. Alceu este desabafo. Eu de estudantes sob qualquer pretexto. É a supressão lhe escrevo apenas para agradecer aquele artigo. de colações de grau. É a expulsão, no ITA, de alunos Mas quero lhe prometer que a Igreja descrita pela como “subversivos”, por escolherem um paraninfo “Lumen Gentium” , aspirada por cristãos como o sr., indesejável. São os julgamentos draconianos. É o não está em gestação entre essas grades. Não é obra ou cumprimento dos habeas corpus. É a hipertrofia da mérito nosso. É uma realidade viva que nos impõe justiça militar. É a falta de garantias para a proclamada severas exigências. Reze pelos que neste país lutam liberdade de imprensa. É o julgamento iníquo pela justiça, pelos presos políticos e suas famílias, pelos de professores universitários. São os processos que morreram nas torturas, pelo frei Tito. Estaremos engavetados de fixação de residência, mas capazes, unidos ao sr. na mesma oração. Ela é a garantia dessa a qualquer momento, de serem desengavetados. Em liberdade interior que ninguém pode arrancar de nós. suma, é um terrorismo encabulado, que não ousa confessar-se, mas que também não tem coragem Ou seja, aparentemente existe uma grande de confessar o seu próprio malogro. Esse malogro contradição nesserelato e em tudo que envolvia esses se traduz na tremenda e crescente impopularidade encarcerados: a prisão que também gerava relações da Revolução. Revela-se no medo de ir ao povo, no de comunhão e fraternidade, de amor ao próximo e terror das eleições livres, na restrição do voto, na de fé renovada em Deus e nas suas promessas, na sua impostura democrática em que vivemos, na tentativa de criar o peleguismo estudantil, pela organização de diretórios acadêmicos fantasmas, por imposição legal e na negação da liberdade sindical aos estudantes. [...] Enquanto não houver anistia, eleições livres, liberdade sindical autêntica, supressão dos IPMs, revogação do enquadramento dos estudantes, abolição da justiça de exceção e da hipertrofia do Poder Institucional dominante, haverá terrorismo cultural. Disfarçado ou mascarado se quiserem. Mas efetivo. (Lima, 1968, p.400)

É o testemunho a serviço legítimo da liberdade, aqui compreendida nas mais diversas possibilidades e manifestações – de imprensa, de organização, de ideologia política, de expressão, de crença, enfim, liberdade de ser, sentimento esse que tem sua fonte na fé e na expressão que esta pode ter nas mais diferentes situações da vida cotidiana, especialmente a busca e a luta pela justiça – um dos grandes dons de Deus que o cristão traz consigo na vivência hodierna da sua história.

Considerações finais

Com a criação do Ciclo Tristão de Athayde, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP deu um importante passo – firme e decisivo – no sentido de preservar a memória e atualização do pensamento de Alceu Amoroso Lima e todo o seu legado. Pode-se dizer que Alceu foi um intelectual plural, polífono e polígrafo. Não apenas pela sua imensa obra (mais de cem livros), mas principalmente pelo alcance do seu pensamento nas diferentes áreas do pensamento humano e cultural, pensando e analisando as mais diversas dinâmicas do pensamento brasileiro. De forma especial, ressaltei nesse texto a sua relação epistolar com o religioso católico Frei Betto, com quem Alceu manteve correspondência por muitos anos, sendo que no início da mesma, essa serviu como desabafo e documento de um dos piores momentos da história brasileira – o regime civil-militar brasileiro instaurado em 1964. São cartas importantes, dramáticas, algumas terríveis de serem lidas. Todavia, esses documentos também serviram como plataforma de profetismo e coragem por parte dos seus correspondentes, atravessando os limites físicos da cela, da cadeia, do presídio – buscando a liberdade, sentimento tão perseguido e sonhado nessas missivas. 1991. Referências bibliográficas LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. A Presença da Igreja AZZI, Riolando. História da Igreja no Brasil – Terceira no Brasil – História e Problemas 1500-1968. São Época 1930-1964. Petrópolis: Vozes, 2008. Paulo: Editora Giro, 1977.

CALLIGARIS, Contardo. Verdades de autobiografías MARTINA, Giacomo. História da Igreja – de Lutero a e diários íntimos. [texto eletrônico] Disponível em Nossos Dias. São Paulo: Loyola, 1997. www.fgv.br, 1997. MATOS, Henrique Cristiano José. Nossa História – FREI BETTO. Batismo de Sangue. Rio de Janeiro: 500 anos de Presença da Igreja Católica no Brasil, Rocco, 2006. Tomo 3 – Período Republicano e Atualidade. São Paulo: Paulinas, 2003. _____. Cartas da Prisão – 1969-1973. Rio de Janeiro: Agir, 2008. RODRIGUES, Leandro Garcia. Alceu Amoroso Lima – Cultura, Religião e Vida Literária. São Paulo: EDUSP, _____. CEBs – Rumo à Nova Sociedade. São Paulo: 2012. Paulinas, 1983. _____. Cartas de Esperança em Tempos de Ditadura _____. Das Catacumbas – cartas da prisão 1969- – Frei Betto e Leonardo Boff Escrevem a Alceu 1971. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. Amoroso Lima. Petrópolis: Vozes, 2015.

_____. Diário de Fernando – Nos Cárceres da _____. Drummond & Alceu – Correspondência de Ditadura Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. Carlos Drummond de Andrade & Alceu Amoroso Lima. Belo Horizonte: UFMG, 2014. _____. Frei Tito Memória e Esperança. São Paulo: Ordem dos Pregadores, 1999. _____. Uma Leitura do Modernismo – Cartas de Mário de Andrade a . Dissertação HAROCHE-BOUZINAC, Geneviève. L’épistolaire. de Mestrado. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Paris: Hachette, 1995. Católica do Rio de Janeiro, 2003.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória. Rio de ROLIM, Francisco Cartaxo. “A greve do ABC e a Janeiro: Aeroplano, 2004. Igreja”. In: MARASCHIN, Jaci Correia (org.). A vida em meio à morte num país do terceiro mundo. LIMA, Alceu Amoroso. A Experiência Reacionária. São Paulo: Paulinas, 1983. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.

_____. Cartas do Pai – de Alceu Amoroso Lima para sua filha madre Maria Teresa. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Sales, 2003.

_____. Memorando dos 90. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984.

_____. Memórias Improvisadas – Diálogos com Medeiros Lima. Petrópolis: Vozes, 1973.

______. Tudo é Mistério. Petrópolis: Vozes, 1983.

LIMA, Alceu Amoroso & FIGUEIREDO, Jackson de. Correspondência – Harmonia de Contrastes, Tomos I e II. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, Notas sobre século XX, o Vaticano apoiou o projeto da Igreja Alceu Amoroso Lima e : Católica no Brasil, então liderada pelo cardeal Dom liberdade, emancipação e democracia Leme, cujo objetivo era se reaproximar do Estado. Nesse projeto, os intelectuais foram considerados Candido Rodrigues vetores indispensáveis. Portanto, foi nesse contexto que, primeiramente, Jackson de Figueiredo e, em seguida, Amoroso Lima, ocuparam lugares centrais na Neste texto, abordarei alguns aspectos da formação de um bloco de intelectuais que atuaram aproximação entre o líder católico Alceu Amoroso em defesa dos interesses católicos. Cabe destacar que Lima e o filósofo francês Jacques Maritain nas décadas o pensamento de Jackson de Figueiredo pairará por de 1930-1940. A presença da filosofia política um longo período sobre Amoroso Lima e entrará em de Jacques Maritain na obra de Amoroso Lima conflito com a presença dos escritos e das reflexões nessas décadas é ampla. A meu ver, alguns escritos de Jacques Maritain. do filósofo francês tiveram impacto mais decisivo Maritain representou uma nova voz do neotomismo sobre o crítico brasileiro, especialmente aqueles dentro da Igreja Católica no século XX, mais relativos ao comunismo, à emancipação política, à precisamente a partir da década de 1930, procurando igualdade de direitos e à democracia. Para além do romper com a crítica reducionista ao mundo moderno. contato muito próximo entre ambos, registrado Ele condenou, até 1926, o mundo moderno e esteve em oportunidades diversas, seja pessoalmente, seja no círculo de apoiadores de Charles Maurras e do por meio das missivas constantes, ou mesmo em movimento Action Française. Conforme bem o razão das traduções de livros, resta evidente que demonstra o historiador Michel Winock, Charles algumas obras desempenharam um papel de maior Maurras era uma espécie de príncipe do nacionalismo, relevância: Humanisme intégral (1936), Les droits da autoridade, da antidemocracia, da xenofobia e de l’homme et la loi naturelle (1942), Christianisme do sentimento de decadência. Por essas posições e et democracie (1943) e Principes d’une politique pelo forte laço de inserção que essas ideias tinham humainiste (1944). Merece destaque o fato de que na Europa, sobretudo na França, Maurras e a Action muitas das reflexões presentes nessas obras servirão Française exerceram forte influência sobre grande de base tanto a Amoroso Lima quanto a intelectuais parte da juventude em todo o mundo, principalmente latino-americanos para a criação de partidos políticos, no pós-Primeira Guerra. É o que aponta Michel inspirados na democracia cristã, como foi o caso do Winock ao referir-se, por exemplo, ao impacto da Partido Democrata Cristão (PDC), fundado em 1947. Action Française sobre Jacques Maritain: A Ação Francesa oferecia aos jovens em busca de Jacques Maritain: o percurso rumo à emancipação ordem intelectual e moral uma perspectiva de ação política e à igualdade de direitos de que não há outro exemplo, na França, a não ser Convém aqui lembrar que Sérgio Miceli demonstra sua antípoda, a organização comunista. Além disso, que a Igreja Católica procurou intensificar sua ela exercia, nas alas católicas, o que Jacques Maritain influência sobre a sociedade por meio de uma política chama de um “principado de opinião”, que se estendeu estratégica de “criação de uma rede de organizações às alas dos eclesiásticos, satisfeitos de encontrarem paralelas à hierarquia eclesiástica e geridas por na Ação Francesa um braço secular contra os leigos, intelectuais leigos” (MICELI, 2001, p. 127). Para Miceli os franco-maçons e todos os inimigos da Igreja. (2001, p. 127), “a amplitude desse projeto resultava não (WINOCK, 2000, p. 239) apenas das diretrizes do Vaticano, então preocupado em sustar o florescimento dos movimentos operários Ainda acerca da trajetória de Jacques Maritain, cabe de esquerda na Europa, mas também da tomada de notar que, em 1927, o filósofo francês rompeu com consciência por parte do episcopado brasileiro da a Action Française e, a partir de então, passou a crise com que se defrontavam os grupos dirigentes considerar válidas as contribuições da modernidade. oligárquicos”. Em sua teorização, tais aportes deveriam ser colocados No Brasil, esse processo foi definido como uma em favor de uma nova sociedade, ao mesmo tempo “reação católica” condicionada por uma postura unitária e pluralista. Essa sociedade deveria constituir- de maior proximidade com o Vaticano e de se por esses dois princípios a fim de comportar uma condenação dos “erros da modernidade”, tais como pluralidade de confissões de fé e de posicionamentos o racionalismo, a liberdade de imprensa, a liberdade políticos – inclusive aqueles não católicos. de religião, a maçonaria, o comunismo e a separação entre a Igreja e o Estado. Ciente das mudanças do É importante assinalar que a ruptura de Jacques pluralista da organização social; ligação orgânica da Maritain com a Action Française não representou sociedade civil com a religião, sem opressão religiosa um impacto imediato sobre Amoroso Lima – nem o nem clericalismo, em outros termos, sociedade poderia, visto que o rompimento ocorreu em 1927. realmente, não decorativamente cristã. [...] Obra Naquele momento, o contato de Amoroso Lima inspirada pelo ideal de liberdade e fraternidade, e com a obra de Maritain era ainda incipiente. Assim, tendendo para a instauração de uma sociedade é possível afirmar que o efeito dessa ruptura sobre fraternal em que o ser humano seja libertado da Amoroso Lima só pode ser mensurado na média escravidão e da miséria. duração e de modo progressivo, com destaque para o período posterior ao lançamento de Humanisme Avançando um pouco mais sobre os escritos de intégral (1936). Jacques Maritain, observo que foi efetivamente no livro Christianisme et démocratie (1943) que sua Nesse livro, o filósofo francês define a liberdade posição se modificou em relação particularmente como uma das características centrais para uma ao comunismo, no qual passou a ver claramente a nova cristandade, caracterizada por uma autonomia possibilidade de conversão. Em sua opinião, era bem das pessoas em oposição à ideia medieval da “força provável que um povo pudesse estar sujeito a ser ao serviço de Deus” (MARITAIN, 1942, p. 191-213 desviado do “ateísmo e dos erros espirituais do ). Há uma passagem análoga em Principes d’une comunismo” por mudanças de ordem interna, por politique humaniste (1944), em que Maritain defende mais difícil e dolorosa que fosse tal “evolução”. Aos a necessidade de emancipação política como fruto olhos de Maritain, havia esperança na “transformação da prática social e política. A seu ver, ambas deveriam espiritual do povo russo” não em razão do comunismo ser pautadas na conquista da liberdade e na busca de em si, mas em virtude de seus “profundos recursos um ideal histórico efetivo, em cujo seio a educação religiosos e humanos”. O filósofo francês acreditava e a formação de cidadãos tivesse lugar de destaque que uma restauração geral do pensamento e da (MARITAIN, 1945, p. 22 ). ação democráticas poderia reintegrar à democracia aqueles que estavam inclinados ao comunismo. Em Avançando nesse ponto, vale observar que, para suas palavras, esta ação poderia reintegrá-los: Maritain, a obra comum da nova cristandade se constitui na realização de uma comunidade fraterna, [...] ao respeito das coisas da alma, ao amor da construída a partir de uma ação prática profana liberdade e ao sentimento da dignidade da pessoa, cristã com vistas ao bem comum civil. Esclarecendo: não seguramente a ortodoxia marxista e a disciplina essa ação seria profana e cristã ao mesmo tempo e do Partido Comunista, mas numerosos comunistas comportaria o pluralismo político e religioso. Segundo de sentimento e muitos daqueles que a revolta Maritain, em Humanisme intégral (1942, p. 198-199), contra as injustiças sociais [inclinava ao comunismo]. “por isso mesmo que é profana e não sacral, não (MARITAIN, 1957, p. 94-95) exige essa obra comum absolutamente de cada qual, como entrada, a profissão do cristianismo” . No período subsequente a essas publicações de Gostaria também de lembrar que na obra Les droits Maritain, observamos que as ideias e as posturas de l’homme et la loi naturelle (1942), encontra-se uma de Amoroso Lima evoluíram gradativamente em definição semelhante à constituição da comunidade consonância com as do filósofo francês. Nesse fraterna já proposta por Maritain em Humanisme percurso, de católico conservador, Amoroso Lima intégral. Essa definição compõe-se por oposição aos avança ao longo dos anos em direção a posições mais regimes de força mundo afora e invoca a defesa da progressistas. A meu ver, é inequívoco que Jacques liberdade e da fraternidade, valores caros ao filósofo Maritain está na origem e no caminho dessa profunda francês. Esse livro teve impacto categórico sobre mudança de Tristão de Athayde, agora rumo a um Amoroso Lima, a se considerar ainda o cenário da catolicismo progressista e à defesa da liberdade. ditadura varguista no Brasil. Cito diretamente, mais É a isso que me refiro quando trato da “segunda uma vez, Jacques Maritain (1967, p. 54 ): conversão” de Amoroso Lima ao catolicismo, visto que a primeira, realizada em 1928 pelas mãos de Bem comum revertido sobre as pessoas; autoridade Leonel Franca, Dom Leme e Jackson de Figueiredo, política dirigindo os homens livres para este bem correspondeu a um inquestionável engajamento comum; moralidade intrínseca do bem comum e da às ideias e às posições conservadoras. Estas, àquele vida política. Inspiração personalista, comunitária e tempo, foram tributárias também, em grande medida, de suas leituras de Charles Maurras e, por meio deste, de Joseph de Maistre. Demonstrei isso em minha tese de doutorado, mas aqui não convém avançar sobre esses pontos, dado o objetivo desta exposição.

Amoroso Lima e Jacques Maritain: impactos da inspiração democrática à reconversão

Foi, portanto, progressivamente à luz das leituras de Jacques Maritain que o líder católico Amoroso Lima definiu-se em favor da democracia, de base cristã, visto que manteve sua crítica à democracia de natureza liberal. Esta, por sua vez, era por ele considerada negativamente como o sustentáculo do mundo burguês. Com o cenário de guerra bem avançado, Amoroso Lima trouxe a público, em janeiro de 1944, o decisivo texto “Adeus à mocidade”. Esse artigo foi o resultado de um pronunciamento feito na sessão comemorativa de seu jubileu, em 13 de dezembro de 1943. Nessa sessão, Amoroso Lima falou de sua trajetória de vida até os cinquenta anos e também sobre as mudanças pelas quais a sociedade brasileira havia passado. Seu pronunciamento teve caráter marcante pois representou um momento em que se despediu de valores já superados e aceitou “um convite à meditação”. Seu grande objetivo naquela ocasião era demonstrar sua mudança em direção ao pensamento progressista:Mas quem pode fugir ao remorso, na hora em que honestamente se volta para o passado e vê o pouco que fez e tudo o que poderia ter feito se fosse realmente fiel ao seu destino? Como deixar de sentir a insignificância de tudo isso, em face do vulto imenso dos acontecimentos que nos cercam? (ATHAYDE, 1944a, p. 1-7).

Se se considera que o “adeus à disponibilidade” dado por Amoroso Lima em 1928 teve o caráter de um adeus do “ceticismo, da ironia, do oportunismo ideológico” (LIMA, 2001, p. 171), percebe-se a dimensão do texto de 1944 já citado acima. Neste último, o líder católico deixa evidente seu engajamento em favor de uma “nova disponibilidade”, agora rumo à liberdade e à democracia. É o que se observa em outro texto de 1944, intitulado “Bernanos”, onde Amoroso Lima defende a construção de uma nova ordem mundial, que exigiria dos indivíduos ações claras e distintas:

É a disponibilidade à experiência, ao ensinamento dos fatos, às lições dos acontecimentos desses últimos vinte anos, desde que as duas revoluções fascista e comunista tentaram dividir o mundo em dois blocos irredutíveis. Devemos voltar à disponibilidade, para saber aproveitar o trágico depoimento da agonia, se considerava ser a recristianização do Brasil. Em seu não pela morte, mas pela vida, não pelo apego a conjunto, os intelectuais próximos a Amoroso Lima posições insustentáveis e anacrônicas, mas por uma tiveram relativo sucesso, em especial em virtude de sadia participação na construção de um mundo novo. sua “ação católica” nos campos político, cultural e (ATHAYDE, 1944b, p. 507, grifos meus) educacional.

Apontamentos finais Finalizo este texto com as palavras de Amoroso Lima em 1945, cuja intensidade e densidade expressam Essa nova disponibilidade por parte de Amoroso categoricamente sua relação com o mestre francês, Lima diante de uma nova ordem mundial deve- Jacques Maritain: se, inquestionavelmente e em grande medida, ao impacto de sua relação com Jacques Maritain e seus Há vinte anos que quase outra coisa não faço senão escritos. É dessa relação que ele retira ensinamentos traduzir em português o que posso aprender do e mudanças acerca, por exemplo, do comunismo, da pensamento desse homem admirável dos nossos emancipação política, da igualdade de direitos e da tempos. Há vinte anos que acompanho de perto, pelo democracia. Registre-se que foi igualmente a partir coração e pelo entendimento, a marcha acidentada de Jacques Maritain que tanto Amoroso Lima quanto desse espírito pelo arquipélago agitado dos tempos a rede de intelectuais católicos que gravitavam em modernos e nunca me arrependi senão do que não torno dele investiram esforços na criação do Partido tenho sabido aproveitar dos seus ensinamentos. [...] Democrata Cristão no Brasil. O partido de o amar, de o defender, de o seguir, está O conjunto de reflexões presentes nas obras de tomado há muito tempo, espero para sempre; [...] Jacques Maritain contribuiu inequivocamente para o Como todo pensador realmente cristão, é no Cristo, que classifiquei em minha tese como uma “segunda fonte de toda ciência e de toda sabedoria, e não em conversão” de Amoroso Lima, desta feita rumo a um si próprio, que ele vai buscar o melhor que nos dá. catolicismo com características progressistas e mais [...] O que sempre mais me prendeu a Maritain foi próximo à liberdade e aos valores democráticos. É justamente essa humildade espontânea e profunda, oportuno destacar que, além da influência ou da tão diversa do falso publicanismo e tão adequada a apropriação dos escritos de Jacques Maritain, Amoroso esse sentido autêntico do cristianismo, que nos salva Lima passou por um processo de autocrítica e de dos “Fuhren” segundo o mundo, para nos levar ao distanciamento em relação à herança conservadora único Salvador, que não é “deste mundo”. [...] O que de Jackson de Figueiredo. Seus incontáveis escritos sentimos é a mais íntima ligação entre inteligência e presentes na revista A Ordem, suas entrevistas e suas experiência, entre a Fé rigorosamente intelectualista, obras, todas do período em estudo, demonstram uma visão profundamente mística das relações do cabalmente essa assertiva. homem com a Verdade, e uma observação muito É igualmente oportuno evocar como fatores objetiva dos nossos tempos. (ATHAYDE, 1945a, p. contribuintes a sua nova conversão as perturbações, 98-104) nacionais e internacionais, decorrentes do contexto de guerra, da ditadura varguista e do nazi-fascismo. Referências Resumidamente, a meu ver, restou evidenciado que essa segunda conversão de Amoroso Lima operou-se ATHAYDE, Tristão. Adeus à mocidade. A Ordem, Rio (tal qual a primeira, de 1928) de forma progressiva, de Janeiro, n. 1-2, p. 1-8, jan. 1944a. reflexiva e não sem conflitos interiores e divergências com alguns dos quadros importantes da Igreja Católica ______. “Bernanos”. A Ordem, Rio de Janeiro, s/n, p. e do Centro Dom Vital. Por último, chama a atenção 505-516, nov./dez. a necessidade do avanço das pesquisas voltadas à 1944b. compreensão do impacto, pelo menos nos anos 1930 ______. Maritain. A Ordem, Rio de Janeiro, s/n, p. 91- e 1940, seja dos escritos de Jacques Maritain, seja da 115, fev. 1945a. ação de Amoroso Lima na Liga Eleitoral Católica, no movimento de Ação Católica, no Instituto Católico LIMA, Alceu Amoroso. Adeus à disponibilidade. In: de Estudos Superiores e mesmo na Editora Agir. AZZI, Riolando (Org.). Notas para a história do A rede de intelectuais liderada por Amoroso Lima Centro Dom Vital. Rio de Janeiro: Educam/Paulinas, foi marcadamente guiada por um sentimento de 2001. p. 169-174. missão civilizadora. Seu objetivo era promover o que MARITAIN, Jacques. Humanismo integral: uma visão da nova ordem cristã. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1942.

______. Principes d’une politique humaniste. 2. ed. Paris: Paul Hartmann Éditeur, 1945.

______. Cristianismo e democracia. Rio de Janeiro: Agir, 1957.

______. Os direitos do homem e a lei natural. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

______. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

WINOCK, Michel. O século dos intelectuais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

Bibliografia consultada

BUSETTO, Áureo. A democracia cristã no Brasil: princípios e práticas. São Paulo: Editora da Unesp, 2002.

COMPAGNON, Olivier. Le catholicisme français au Brésil: l’influence de Jacques Maritain sur Alceu Amoroso Lima. In: MATTOSO, Katia de Queirós; SANTOS, Idelette Muzart-Fonseca dos; ROLLAND, Denis (Dir.). Modèles politiques et culturels au Brésil: emprunts, adaptations, rejets. XIXe et XXe siècles. Paris: Publications de la Sorbonne, 2003a. p. 271-291.

______. Jacques Maritain et l’Amérique du Sud: le modèle malgré lui. Paris: Presses Universitaires du Septentrion, 2003b.

RODRIGUES, Cândido. A Ordem: uma revista de intelectuais católicos, 1934-1945. Belo Horizonte: Autêntica/Fapesp, 2005. ______. Aproximações & conversões: o intelectual Alceu Amoroso Lima no Brasil das décadas de 1928- 1946. São Paulo: Alameda, 2012. Alceu Amoroso Lima e Thomas Merton foram Nenhum dia sem escrita: autores prolíficos. O brasileiro, segundo seus Da experiência do cristão e de seu registro – os casos de Alceu Amoroso Lima e biógrafos, teria escrito entre 80 e 100 livros (aliás, Thomas Merton a própria indefinição quanto à extensão exata da bibliografia amorosiana é por si só reveladora). Já o Marcelo Timotheo da Costa monge trapista teve publicadas mais de 60 obras em vida, deixando ainda material suficiente para mais Nulla dies sine línea alguns títulos editados após sua morte prematura, Plínio, o Velho aos 53 anos. Isso posto, deseja-se frisar particular ponto de contato entre os dois intelectuais e ativistas As trajetórias de Alceu Amoroso Lima (†1983) católicos. Propõe-se, aqui, que eles modelaram a si e Thomas Merton (†1968) apresentam notável mesmos pela escrita, atividade por intermédio da confluência a despeito de existirem diferenças qual a dupla logrou organizar e dirigir suas trajetórias. biográficas não negligenciáveis entre eles. Direção necessária porque ambos, como dito acima, Em primeiro lugar, a diversidade: geográfica, cultural passaram por significativas modificações relativas às e geracional. Amoroso Lima era carioca, do ano suas visões da fé cristã e das implicações políticas e de 1893; já Merton, filho de neozelandês e norte- sociais da mesma. americana e que adulto optaria pela mesma cidadania Convertidos ao catolicismo tridentino, aquele forjado da Mãe, nasceu no Sul da França, mais de duas para reagir à Reforma, modelo de igreja reativo ao décadas depois, em 1915. Quanto às semelhanças século e à modernidade, tomados por condenados em seus itinerários, ressaltem-se as mais relevantes e condenáveis, Amoroso Lima e Merton, nos anos para o presente texto: originários de famílias abastadas, que se seguiram suas respectivas profissões de fé, foram educados com esmero e, após passarem infância buscaram encarnar com afinco a eclesiologia então e juventude sem qualquer preocupação metafísica vigente nas hostes católicas. Eclesiologia essa que duradoura, converteram-se ao catolicismo romano em produziu o chamado projeto romanizador ou de idade adulta. Amoroso Lima, aos 35 anos incompletos; neocristandade. A idéia subjacente a tal projeto, no Brasil e fora dele, era realizar dupla réplica em relação Merton, aos 23 anos de idade. à sociedade contemporânea. Replicar: responder aos tempos correntes, seus desafios, questionamentos, Outra confluência a ser notada: essas conversões, contestando especialmente às crescentes críticas fenômeno em princípio de esfera privada, foram que a chamada “razão moderna” impunha à fé (à fé levadas à praça pública pela dupla, sobretudo por cristã, em geral, e à fé católica, em particular). E, em meio de intensa atividade literária. Assim, a ambos foi sentido complementar, por intermédio do projeto associada dada militância intelectual católica típica do romanizador, a Igreja tencionou replicar a sociedade, século XX, tempo de tensão e redefinição nas relações ao reproduzir importantes características deste da Igreja com a sociedade moderna. Engajamento corpo social (todavia, sob a clave cristã): se havia que, nos dois casos, com o passar do tempo e de escolas e hospitais, deveriam existir escolas e hospitais forma não-linear, muda substancialmente: tanto o católicos; o mesmo valia para partidos políticos, brasileiro como o norte-americano, mantendo-se imprensa, sindicatos, intelectualidade, associações rigorosamente fiéis a sua Igreja, cambiam quanto à variadas (de jovens, moças, universitários, etc). Numa maneira de pensar a fé e também suas implicações frase: tencionava-se marcar o século laicizado com a no mundo da experiência. Assim, convertidos em Cruz romana. registro de fé reacionário, Amoroso Lima e Merton E, paradoxalmente, se a reação católica em relação ao se tornam defensores do cristianismo progressista, século mostrava-se dinâmica, a contenda pelo futuro transformação que, por um lado, ampliou a difusão de da sociedade contemporânea tinha por bandeira o seus escritos para além dos muros católicos, por outro elogio a tempos pretéritos. De acordo com William lado, fez com que a dupla necessitasse desenvolver Shannon, biógrafo de Merton, especial e sofisticado controle de suas ações. É de tais “A Igreja anterior ao [Concílio] Vaticano II [1962-65] permanências e câmbios – e principalmente sobre na qual Merton foi batizado era uma Igreja ainda em a forma como Amoroso Lima e Merton buscaram reação – mesmo passados três séculos – à reforma vivê-los – que tratam as linhas seguintes. protestante do século dezesseis. Caracterizada por uma mentalidade de cerco, cerrava fileiras em torno **** de suas certezas doutrinais e morais, ele grudava-se a seu passado com grande tenacidade […] A Igreja o catolicismo do século XX, Amoroso Lima gabava-se da estabilidade e do caráter imutável de opta pela aproximação com sociedade e cultura seu magistério em meio a um mundo em movimento.” contemporâneas, alinhando-se entre católicos Apesar da Igreja Católica no Brasil viver questão renovadores, notadamente aqueles vindos da Igreja muito particular – a adaptação à República francesa, leigos e sacerdotes como Jacques Maritain, laica proclamada em fins do século XIX –a Emmanuel Mounier, Yves-Marie Congar, Teilhard de observação de Shannon é igualmente válida Chardin. Interessante notar que tal antecipação ao para o caso de Alceu Amoroso Lima, convertido aggiornamento católico também foi empreendida exatos dez anos antes de Thomas Merton. por Thomas Merton, outro que sempre cultivou laços com a reflexão teológica do Velho Continente, Pouco tempo decorrido de suas admissões na Igreja, notadamente aquela proveniente da França (a Amoroso Lima e Merton, por caminhos diversos propósito, os dois foram alfabetizados em francês, na e com a benção de seus superiores hierárquicos, França, durante a infância). constroem e consolidam a imagem de convertidos Quanto à postura mais pluralista frente ao e fiéis modelares. O brasileiro alcança tal posição – pensamento moderno, é o próprio Merton que espécie de campeão nacional das causas católicas e assinala em seu diário, no dia 31 de julho de 1961: “Ser da neocristandade – por intensa e quase onipresente verdadeiramente ‘católico’ é ser capaz de se importar atividade apologética. Ele atuou em variados círculos: com os problemas e alegrias de todos e ser todas na Universidade, na Academia Brasileira de Letras, na as coisas para todos os homens.” O monge, a seu imprensa. Consolidou aliança com o governo federal, modo, adianta-se ao célebre proêmio do documento que tinha os mesmos inimigos da Igreja (como o conciliar “Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo anarquismo e o pensamento de esquerda); instruiu de hoje”, proclamado pelos padres conciliares do os fiéis católicos em pleitos e pelejas públicas. Merton Vaticano II, em dezembro de 1965: “As alegrias e as torna-se figura exemplar pela própria conversão: de esperanças, as tristezas e as angústias dos homens origem protestante, ainda que de família não praticante, e mulheres de hoje [...] são também as alegrias e as formado em cultura secularizada e espécie de enfant esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos terrible avant la lettre, ele não apenas assume a fé de Cristo.” católica. Merton a adota de forma radical, fazendo- Cumpre frisar ponto de grande importância para o se sacerdote e monge, em sociedade materialista e presente texto: cambiar envolve riscos. Amoroso onde o apelo de Roma é minoritário. Opção descrita Lima e Merton bem sabiam disso e cuidaram de em precoce autobiografia, A montanha dos sete controlar seu itinerário entre os fiéis. Afinal, Merton, patamares (1948), que, comparada a Confissões monge e presbítero, pertencia à Ordem religiosa de Santo Agostinho, tornou-se best seller norte- conhecida pelo conservadorismo e circunspecção. E, americano e, posteriormente, ganhou projeção ademais, estava submetido a voto de obediência a internacional. seus superiores. Já Amoroso Lima, ainda que fiel leigo, E, como anunciado, passadas cerca de duas décadas de tinha as responsabilidades da liderança do laicato suas respectivas conversões, Amoroso Lima e Merton brasileiro. Ele havia sido alçado a tal condição por vivenciam significativos câmbios em seus registros Dom Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro, eclesiais, adotando leitura católica menos beligerante então Distrito Federal, após a morte de Jackson de e mais dialogal face ao mundo contemporâneo. Figueiredo. Este fora pivô no processo conversional Renovação que foi sintetizada pelo brasileiro (sendo, amorosiano e falecera meses depois da admissão no entanto, aplicável à dupla de intelectuais cristãos) de Alceu ao catolicismo. Morto Figueiredo, coube a nos seguintes termos: Amoroso Lima a direção do Centro Dom Vital e da “Costumamos considerar demais a Fé como sendo revista A Ordem, espécie de “cabeças de ponte” do uma âncora, segundo a sua simbolização tradicional. projeto de neocristandade católico. Mas, se realmente quiséssemos modernizar um pouco mais essa representação simbólica, acredito **** que seríamos ainda mais fiéis à realidade, se E, conforme assinalado antes, Amoroso Lima e representássemos a Fé por uma hélice [...] a Fé, mais Thomas Merton alteram a forma de ver seu credo e que permanência ou imobilidade, é movimento, é repensam as implicações sociais e políticas dele. marcha, é viagem, é caminhada, é ascensão.” Quer-se destacar aqui a ligação entre transformação e Ao frisar, mesmo antes do aggiornamento proposto risco. Cambiar é incorrer em riscos, perigo majorado pelo Vaticano II, a necessidade de “modernizar” para aqueles que, como Amoroso Lima e Merton, estiveram vinculados a modelos de pensamento Nouvelle Théologie e dos padres operários, ambas e ação muito rígidos. Perigo para o qual ambos de origem francesa. Neste mesmo país, ao qual estiveram atentos. Para ilustrar esse ponto, abordando Amoroso Lima e Merton estavam ligados sentimental a transformação eclesiológica de Amoroso Lima, diz e intelectualmente, a Cúria romana impõe sanções Candido Mendes de Almeida: “Repetindo Erasmo, Dr. à Ordem dominicana, importante pólo de inovação Alceu sabia da tentação dos hereges”. eclesial. Desta forma, em dias infensos às mudanças Católicos proeminentes em seus países, Alceu e inovações, Amoroso Lima e Merton, por caminhos Amoroso Lima e Thomas Merton foram vigiados independentes, porém em boa medida semelhantes, em seus itinerários (e mudanças) pela hierarquia vão reconstruindo sua identidade católica. eclesial mais conservadora. Aquele, por exemplo, a partir da segunda metade dos anos 1940, teve *** seus textos examinados por censor escolhido pelo então cardeal do Rio de Janeiro, Dom Jaime Câmara Vivenciando tais transformações, era necessário aos (sucessor de Dom Leme), que via com preocupação intelectuais em pauta organizar seus movimentos. a influência “modernizante” de Jacques Maritain sobre Controle que exigiu acurada meditação sobre o Amoroso Lima. Este igualmente causara mal-estar caminho a seguir. Meditação que se traduziu em entre certos círculos de crentes mais conservadores, cálculo cotidiano de ações, projeção de cenários, em 1946, ao defender que o Partido Comunista aproximação com aliados, resposta (muitas vezes Brasileiro não fosse colocado na ilegalidade. Graças moderada) aos críticos, avaliação de riscos. Isso posto, a tal postura liberal, Amoroso Lima foi acusado atente-se para a palavra citada acima: meditação. de sabotar os reais interesses da Igreja no país. Meditação, seja frisado, conjugada de maneira muito particular pela dupla de intelectuais católicos. Já, de seu turno, Merton, enfrentou problemas mais Tanto Amoroso Lima como Merton eram tributários graves com a supervisão de seus superiores. Ele esteve da espiritualidade beneditina. O trapista norte- submetido a controles doutrinário, moral e também americano pertencia à Ordem que deita raízes na o relativo ao chamado “decoro monástico” (sobre tradição monacal de São Bento. Formalmente, os o que seria oportuno a um monge falar e quanto à trapistas – ou Cistercienses da Estrita Observância forma e conteúdo de sua mensagem). Controle que – são uma reforma da Ordem Cisterciense, sendo se transforma em censura, nos anos 1950, quando esta última fruto de reforma anterior da própria Merton escreve textos sobre a ameaça de guerra Ordem de São Bento. E a “estrita observância” a nuclear. Interdito que também é imposto quando o que se refere a nomeação oficial trapista é relativa trapista defende maior aproximação com o budismo à Regra de São Bento. Quanto a Amoroso Lima, e outras tradições orientais. No primeiro caso, em desde os primeiros dias após sua conversão, passou tempo de acelerada corrida armamentista e Guerra a freqüentar o Mosteiro de São Bento carioca, Fria, a pregação pacifista era vista por alguns setores da estabelecendo fortes laços com a comunidade sociedade norte-americana como fraqueza diante da local. Proximidade ratificada quando Amoroso Lima ameaça comunista. Posicionamento esse que perderá se fez oblato da mesma Ordem, nos anos 1950, a força com a célebre encíclica Pacem in Terris, do papa época na qual, sintomaticamente, o intelectual João XXIII (1958-1963), vinda a lume em seus últimos leigo consolidava sua transformação eclesiológica, anos do pontificado. Já a aproximação com o misticismo desvinculando-se dos ideais de neocristandade. oriental e a valorização do diálogo ecumênico Naquele tempo, aliás, os beneditinos do Rio de encontrava, em tempos anteriores ao Vaticano II, Janeiro constituíam núcleo renovador no cenário notáveis resistências entre clérigos católicos, ciosos da eclesial do Brasil, sobretudo quanto à Liturgia. manutenção (de certa leitura) da ortodoxia. E retome-se a palavra citada anteriormente: meditação. Cabe ainda notar que, na década de 1950, época Para analisar como Amoroso Lima e Merton na qual Amoroso Lima e Thomas Merton vão meditaram sobre suas convicções interiores e ações consolidando suas transformações eclesiológicas, exteriores – intra-muros católicos e na praça pública recrudescem as disputas internas no seio da Igreja. Era – é preciso lançar luz sobre especial característica do o final do longo pontificado de Pio XII (1939-1958), beneditinismo. Na Regra de São Bento, o uso do verbo marcado por visível fechamento teológico-pastoral, “meditar” permite interpretação importante para o movimento que atinge importantes experiências presente argumento. Ali, meditar (meditent, em latim) de abertura no orbe católico – como foi o caso da significa exercitar-se e também experimentar. Acredito que a dupla ora analisada, cambiando de eclesiologia e na forma de atuar no mundo da experiência, meditou e experimentou caminhos a partir da escrita. Da escrita de si. Exercício cotidiano, prolongado no tempo, que permitiu a Amoroso Lima e Merton movimentarem-se com segurança entre os membros de sua Igreja. Desta forma, eles se transformaram substancialmente e de maneira rigorosamente ortodoxa. Observe-se, em primeiro lugar, o caso de Merton. Em maio de 1939, poucos meses após sua profissão de fé católica, ele inicia a redação de diários (journals). Sua intenção era disciplinar a caminhada espiritual, posto que tomava a conversão como apenas o início de sua jornada. Intenção disciplinadora essa que será mantida através do tempo, até o dia de sua morte, em 10 de dezembro de 1968, data do último registro nos diários. São quase três décadas de contínuo meditar (em papel e tinta) sobre o cotidiano. Na verdade, Merton iniciara a escrita de diários na juventude, anos antes de se tornar religioso. Ao converter-se, ele reinicia a escrituração de si mesmo (e, tudo indica, queima seus diários anteriores). Reforça- se, pois, a interpretação aqui proposta: sentindo- se “renascido” com o batismo, Merton buscou reestruturar sua vida, apagando inclusive o passado pré-conversão, tomado por pecaminoso. Se o risco era perder-se no novo caminho, comprometendo a conversão, convinha ter uma espécie de diário de bordo. E, para tanto, ele recomeçou seus journals em outras bases. Bases cristãs. Dada a natureza deste texto, não poderei me alongar mais na análise dos journals mertonianos. Destaco seu propósito primário, citando as palavras do monge. Ele disse estar, por meio dos diários, buscando “encontrar [s]eu caminho para onde supostamente est[ava] viajando.” Antes deste trecho, datado de março de 1951, o monge anotara, em fins de 1949: “Cada coisa que escrevo aqui é somente para a orientação [...].” E, à mesma época, na década de 1950, tempo em que sua transformação eclesiológica ganha força, Merton registra em livro: “minha máquina de escrever é fator essencial em meu ascetismo”. Unem-se, portanto, mística e escrita; meditação que é exercício e experimento de controle (de itinerário) pessoal. Processo semelhante de registro e de disciplinarização de si ocorre com Alceu Amoroso Lima, que não redigiu diários (nem autobiografia, como Merton fez em A Montanha dos Sete Patamares). Contudo, o brasileiro construiu algo comparável (na extensão temporal, freqüência e propósito) dos journals mertonianos. Alceu Amoroso Lima escreveu diariamente à filha Maria Teresa (nome religioso, Lia era seu nome de batismo), por mais de 30 anos, isto é, do início da efeito de ladrilhamento interior. Processo que, no década de 1950, quando ela optou pela vida monacal tenso e conflituoso século XX, guia a dupla entre os internando-se na Abadia beneditina paulistana de crentes, ratificando sua identidade católica romana e, Santa Maria, até 1983, ano da morte do pensador simultaneamente, alterando sua forma de atuar entre brasileiro. os homens, ação sempre vista como imperativo e Claro está que tal epistolário é, primariamente, diálogo consequência da fé professada. Assim, Amoroso Lima entre pai e filha. Quer-se, no entanto, olhar para além e Merton, tributários de modelo eclesial reativo e disso. Propõe-se, então, que, tal qual Merton em seus triunfalista, ao se converterem, passam a adotar, em journals, Amoroso Lima exercitou-se (no sentido seus respectivos países, linha de ação diversa, pluralista. beneditino do termo) ao escrever à monja Maria Thomas Merton, por exemplo, envolveu-se em Teresa. Alceu constituiu Maria Teresa sua confidente. questões candentes da sociedade norte-americana: Tratava-se de manobra prudencial. Os tempos defendeu com vigor os direitos civis, condenando, pareciam exigir-lhe isso. Afinal, na década de 1950, com igual ênfase, a segregação racial. Manifestou-se o intelectual católico acelerava e consolidava seu já pela não-violência, envolveu-se com a causa pacifista, tantas vezes aludido câmbio eclesiológico. Dialogando denunciando o risco de uma hecatombe nuclear com a Irmã Maria Teresa, ele buscava controlar os planetária e a guerra do Vietnã. Manifestou-se em riscos desta transformação, disciplinar-se para seguir favor do diálogo ecumênico, do aggionamento adiante. Diálogo epistolar: atividade comparável a resultante do Vaticano II e da aproximação entre uma confissão laica, como o próprio Alceu admitiu: culturas Ocidental e Oriental. Foi interlocutor do “Você [Maria Teresa] que qualifique como quiser, o jovem Dalai Lama, a quem encontrou em seu exílio, que sinto por dentro e me alivio, consideravelmente, na Índia. confiando apenas a você (pois poderia fazê-lo a uma Também Alceu Amoroso Lima, como Thomas pessoa que deveria ser meu confessor, e cheguei Merton e outros católicos liberais o fizeram, apoiou mesmo a pedir-lhe que o fosse quando morresse o as inovações do Concílio Vaticano II e causas pacifistas padre Franca, naturalmente D. Timóteo [Amoroso mundiais. Quanto ao cenário interno brasileiro, ele Anastácio, monge beneditino e primo do intelectual atuou na denúncia da última ditadura civil-militar em questão], mas por vários motivos não consigo nacional. Em suas colunas de jornal, veiculados pelo nunca confessar-me com ele, de modo que me Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo, o intelectual católico confesso com você, já que não se trata propriamente pediu a volta das eleições livres e a redemocratização do sacramento, mas de confiar o tumulto do que vai do país. E reivindicou a concessão de anistia cá dentro e com isso ... tranqüilizar as águas [....].” política ampla e o retorno de todos os exilados. Portanto, a correspondência familiar amorosiana, de pai Questionou igualmente as autoridades do país para filha, deve ser entendida nessa clave confessional sobre o destino de desaparecidos políticos. e de orientação. Alceu, escrevendo diariamente para a religiosa beneditina, e ele próprio tributário da Atuações públicas, da parte de Merton e Amoroso espiritualidade de São Bento, exercitou-se, provou Lima, sempre motivadas por seus credos. Fé caminhos. Ele que, desde meados dos anos 1940, duplamente remodelada, que faz os dois estabelecerem tempos antes da ida de Maria Teresa para o claustro, admiradores, interlocutores e aliados fora dos e também durante os anos 1950, ia remodelando muros católicos. Ambos, desta forma, valorizando a seu registro de catolicismo, adotando eclesiologia (e diversidade e o diálogo, firmaram sentido mais amplo atuação política) mais progressista. Em suma: ao se – e, ao mesmo tempo, estritamente canônico – do lançar por caminhos ainda não percorridos, Alceu termo católico: universal. Amoroso Lima (como Thomas Merton) procurou não se perder no trajeto.

*** A consulta aos diários e ao epistolário de nossos autores, documentação que não poderá ser detalhada ao longo destas linhas, é conclusiva. Pela escrita de si cotidiana, em journals e cartas, Merton e Amoroso Lima meditam sobre a conjuntura eclesial e política, exercitam-se, traçam planos. E lapidam a si mesmos. A escrita de si, tecida pelo fio da fé, tem, portanto, Dois políticos e seus projetos: Alceu Amoroso Lima e Anísio Teixeira em torno da Educação Nacional

Agueda Bernardete Bittencourt

A Ação Católica por sua natureza é estranha à política partidária. Mas não é estranha à política superior, que visa o bem comum. Pois bem, com a nossa organização, espalhada por todo o Brasil, com o nosso empenho em favorecer a educação do povo, em velar e praticar a paz social, em defender a dignidade da pessoa humana, em todos os seus aspectos - estamos certos de poder retribuir fartamente ao Estado os benefícios que este fizer à Igreja, não por favores ou privilégios, mas pela prática efetiva de suas funções na garantia dos direitos individuais e da justiça social. Alceu Amoroso Lima (Carta a Gustavo Capanema, 16 de junho de1935)

Embates em torno da educação marcaram o cenário Alceu Amoroso Lima nasceu na cidade de Petrópolis, a 11 de dezembro de 1893. Filho nacional durante todo o século XX. Entre os mais de Camila da Silva Amoroso Lima e do indus- estudados estão os que confrontaram católicos e lai- trial Manuel José Amoroso Lima. Foi educado cos, seja nas Conferências Brasileiras de Educação, no por John Köpke, o pedagogo poeta, precursor do escolanovismo no Brasil. Depois foi aluno Conselho Federal de Educação ou mesmo no Con- do Colégio Pedro II, tendo-se formado na Facul- gresso Nacional, quando das Constituintes de 1934 e dade de Direito do Rio de Janeiro em 1913. Fil- 1946, e depois, por ocasião do debate sobre a Lei de ho de mãe católica, não teve, porém, formação religiosa na infância, tendo frequentado colé- Diretrizes e Bases, por 12 anos tramitando nas Casas gio público e laico. Convertido ao catolicismo legislativas. por influência de Jackson de Figueiredo, Alceu Está estabelecido certo consenso sobre os grupos en- tornou-se um dos mais respeitados paladinos da Igreja Católica no Brasil. Foi Conde Roma- volvidos na contenda, durante os anos 1930. Os defen- no pela Santa Sé. Fundou e dirigiu a revista A sores da escola laica são liderados por Anísio Teixeira, Ordem, em que manteve intensa colaboração, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, além dos demais presidiu o Centro Dom Vital, que congregava os líderes do catolicismo no Rio de Janeiro. signatários do Manifesto dos Pioneiros. Do outro lado Cronista, ensaísta e crítico literário, publicou estão os aliados de Alceu Amoroso Lima, padre Leonel por mais de seis décadas nos principais jornais Franca e Gustavo Capanema. Pesquisas recentes, com da capital federal e de São Paulo. Foi membro da Academia Brasileira de Letras. Catedrático base no estudo de trajetórias, começam a matizar es- de Literatura Brasileira na Faculdade Nacional ses grupos e questionar a laicidade dos defensores da de Filosofia e um dos fundadores da Pontifícia escola laica e a simplificação do debate sobre os católi- Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi Diretor de Assuntos Culturais da Organização cos. Estes, um grupo de militantes políticos organizados dos Estados Americanos (1951) e membro dentro do catolicismo (CARVALHO, 1998, 2004; PIN- do Conselho Federal de Educação por várias HEIRO, 2015). décadas. Neste artigo buscamos compreender as disputas e os acordos construídos pelas grandes personalidades que lideraram os dois grupos – Anísio Teixeira e Alceu Este artigo é tributário do “Projeto Temático/ Fapesp nº 11/51829-0: Congregações Católi- Amoroso Lima –, em campos opostos na década de cas, Educação e Estado Nacional” e da Bolsa 1930 e na mesma trincheira nos anos 1960. O estudo de Produtividade/CNPq. Meus agradecimentos das biografias dos intelectuais, como o de suas redes às duas instituições. Agradecimento também a Guilherme Arduini pelo convite para participar do sociais, oferece pistas para a compreensão dos em- Ciclo Tristão de Athayde e ao Centro de Pesquisa bates, cujo aprofundamento será realizado, aqui, pelo e Formação do Sesc SP pelo acolhimento. estudo do pensamento de cada um deles, expresso Professora Delart/FE/Unicamp e líder do em suas obras. grupo de pesquisaFocus/CNPq/Fapesp. Filhos das elites, em uma sociedade oligárquica, nasci- E-mail: [email protected] dos no final do Império e início da República, estes dois homens trilharam os mesmos caminhos, frequentan- do as mesmas escolas. Não por acaso receberam educação cosmopolita, viajaram desde muito cedo pelos centros internacionais da cultura, na Europa e nos Estados Unidos da América. A Igreja Católica foi o ponto de união e de distanciamento entre ambos.

Não apenas a Igreja, mas também as próprias redes sociais dos dois homens se cruzaram em vários mo- mentos de suas trajetórias. Uma figura emblemática a ser destacada neste percurso é a de Afrânio Peix- oto, médico e escritor, cunhado de Alceu, amigo e colaborador de Anísio, cuja mãe, D. Anna, era sua madrinha. Outra personalidade importante em mo- mentos distintos para os dois foi Jackson de Figue- iredo, sergipano, cuja trajetória intelectual se iniciou em Salvador, onde inspirou um grupo de pensadores conservadores (que viria a influenciar o jovem Anísio) e que, mais tarde, desempenhou importante papel na conversão de Amoroso Lima ao catolicismo. Como tem mostrado a sociologia, as relações se esta- Anísio Spínola Teixeira nasceu em belecem dentro dos grupos sociais que circulam nas Caitité, no sertão baiano. Filho do médico e político Deocleciano Pires Teixeira e de mesmas escolas, igrejas, clubes, partidos e associações. Dona Anna Spinola Teixeira filha de família São essas relações de infância e juventude que mar- de políticos baianos. Estudou em colégios cam as cooperações e as alianças da vida adulta. Assim jesuítas. Formou-se em direito no Rio de Janeiro, em 1922. Manteve durante toda a como os habitus formados nos mesmos círculos defi- sua juventude formação e aspiração pela nem opções políticas e culturais futuras (BOURDIEU, carreira eclesiástica junto aos jesuítas. Na 2011; CARVALHO, 1996). Bahia, ocupou o cargo de Diretor Geral da Instituição Pública de 1924 a 1929. Fez três viagens internacionais nesse mesmo Temos duas personalidades saídas de setores distintos período, quando visitou os principais cen- da vida nacional: um, filho de industrial do ramo têx- tros de estudos sobre educação na Europa e nos EUA. Anísio Teixeira reformou o sis- til, do estado do Rio de Janeiro, criado na capital da tema escolar baiano. Estudou no Teacher’s República, vizinho de Machado de Assis; e o outro, de College da Universidade de Columbia, nos uma família de políticos ligados à extração e à comer- Estados Unidos, onde conheceu seu me- stre e inspirador de toda sua obra, John cialização de minérios do sertão da Bahia. É na capital Dewey. Foi funcionário do Ministério da federal, no coração do estado nacional que se travará Educação e Diretor de Educação do Dis- o primeiro embate entre os dois intelectuais, embate trito Federal, onde criou a Universidade do Distrito Federal. Foi signatário do Man- atravessado pelo projeto católico de nação e de so- ifesto dos Pioneiros da Escola Nova, que ciedade a ser desenvolvido com base na educação. propunha uma escola laica, obrigatória e Ou seja, é no campo de poder por excelência que se gratuita. Foi um incansável debatedor da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. trava a disputa, uma vez que, todos os campos rem- Escreveu vasta obra, analisando os desafi- etem para o campo central que é o estado nacional os e os percalços da educação nacional. (BOURDIEU, 2011). Tem seu nome associado às principais criações do campo da educação, no século As disputas no âmbito do poder central se desen- XX. Depois de uma breve passagem pela volvem com base nas propriedades e nos capitais de Unesco, atuou no Ministério da Educação, que dispõem os agentes envolvidos. No caso de Alceu na Campanha de Aperfeiçoamento do En- sino Superior (Capes), no Centro Brasilei- Amoroso Lima, como seu quadro biográfico deixa ver, ro de Pesquisa em Educação (CBPE), na tratava-se de um intelectual de formação cosmopoli- Sociedade Brasileira para o Progresso da ta, com cursos realizados na França, com domínio de Ciência SBPC), no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), no Conselho línguas modernas e antigas, com capital econômico, Federal de Educação. Fundador e Reitor relações sociais e familiares capazes de facilitar acesso da Universidade de Brasília. Morreu no aos locais de prestígio social e aos homens de poder Rio de Janeiro, em 1971. político. A esses capitais sociais e simbólicos soma-se, esses espaços convergem as lutas da intelectualidade após sua conversão, o poder da Igreja Católica. Aní- nacional e os projetos elaborados no Centro Dom sio Teixeira, por sua vez, reúne o capital econômico Vital pelos católicos e na Associação Brasileira de trazido da família ao capital escolar expresso pela for- Educação, que formulou o Manifesto dos Pioneiros pela mação nas melhores escolas brasileiras e nas viagens Educação Nova . internacionais, em elegante vagabundagem, garantido- O Manifesto dos Pioneiros, considerado o marco in- ras do acesso ao cosmopolitismo que o conhecimen- augural do projeto de renovação educacional do país, to de línguas estrangeiras, o contato com as artes e a denuncia a desorganização do sistema escolar e a ne- história asseguram. Acrescenta a essas propriedades o cessidade de que o Estado organize um plano geral título de mestre pela Universidade de Columbia, com de educação, com base em uma escola única, pública, a chancela de John Dewey. Essas são as cartas jogadas laica, obrigatória e gratuita. Com essa bandeira, a na mesa pelos dois políticos nos primeiros anos após ABE vai enfrentar a crítica dos setores conservadores a revolução de 1930, quando o estado nacional bra- da Igreja Católica, cujos interesses são ligados: à ma- sileiro se estrutura. nutenção das escolas privadas, na maioria de pro- Anísio Teixeira chega ao Rio de Janeiro apresentado priedade de congregações religiosas, e à formação como inteligência brilhante– capaz de liderar a espe- espiritual dos brasileiros dentro dos princípios do rada reconstrução nacional– pela célebre carta de catolicismo, nas escolas públicas, contenda que culmi- Monteiro Lobato dirigida ao Diretor da Instrução Pú- nará na retirada dos grupos católicos da Associação. blica do Distrito Federal, Fernando de Azevedo (VI- ANNA; FRAIZ, 1986). Os polos mais ativos do movimento de intelectuais, escritores e artistas herdeiros da Semana de Arte O momento político é de reorganização dos grupos Moderna e dos Congressos da ABE, e Academia Bra- no poder nacional, dado que o modelo da repúbli- sileira de Ciências encontram guarida na Secretaria de ca velha havia se esgotado. A recomposição no pod- Educação do Estado de São Paulo e na Diretoria de er, promovida pela revolução de 1930, trouxe no- Educação do Distrito Federal, tornados espaços privi- vas alianças. As elites paulistas são alijadas do poder. legiados de atuação da intelligentsia do Brasil, na déca- Gaúchos e mineiros lideram o processo apoiados por da de 1930 (MARTINS, 1987). Ficam os católicos mais políticos de estados periféricos. É nesse contexto que próximos do Governo de Vargas e do então minis- um forte grupo de jovens baianos se desloca para a tro da Educação Gustavo Capanema, amigo pessoal capital. Entre eles estão Hermes Lima, Vianna Filho e da grande liderança católica, Alceu Amoroso Lima. Anísio Teixeira, até então candidato a uma vaga de deputado. Assim, após a regulamentação do funcionamento de universidades estaduais e livres, o governo do esta- No Rio de Janeiro, Anísio começa suas atividades como do de São Paulo cria sua Universidade Pública – USP professor na Escola Normal e logo consegue um pos- –, capaz de marcar a posição distinta daquele esta- to no recém-criado Ministério da Educação e Saúde, do, liderado por Armando Salles de Oliveira e pelo comandado por Francisco Campos, para trabalhar so- grupo do jornal O Estado de São Paulo, em relação bre o ensino secundário. Ele acabara de publicar o ao restante do País e ao governo federal em especial . livro: Aspectos Americanos de Educação (TEIXEIRA, 1928), em que apresenta o sistema educacional dos No Distrito Federal, Pedro Ernesto e Anísio Teixeira, Estados Unidos. Não permanece no Ministério, é logo que acreditavam nas possibilidades da ciência para a convidado por Pedro Ernesto Batista, interventor do solução dos problemas políticos e sociais, buscam am- Distrito Federal, para substituir Fernando de Azevedo plo acordo entre as classes populares, cientistas e in- na pasta da Educação da capital da República. telectuais em torno de seu projeto educacional. Foi o pensamento de Anísio Teixeira, reconvertido durante Nesse momento, três polos de atuação reúnem os seus estudos na Universidade de Columbia – quando educadores brasileiros, envolvidos pela bandeira da elaborou a crítica à filosofia católica e ao que chamava reconstrução nacional: a Secretaria de Educação do de pensamento político europeu –, que fundamentou Estado de São Paulo, sob a liderança de Fernando tal projeto político e provocou a ira dos católicos, or- de Azevedo; o Ministério de Educação, já sob a di- ganizados pelo Centro Dom Vital. reção de Gustavo Capanema; e a Diretoria de Edu- Escreveu Anísio, no seu pouco conhecido Rumo ao cação do Distrito Federal, com Anísio Teixeira. Para desenvolvimento à margem dos Estados Unidos: E tudo que se tem estudado e se tem investigado tem vindo A educação como campo profissional e a eficiência reforçar as suas bases, e estabelecer uma confiança maior no da técnica no trato das questões públicas são id- homem. Em vez da creatura decahida que imaginava a philoso- eias que vão se estabelecendo no discurso do ed- phia anterior, é, antes um animal em longa e laboriosa evolução. ucador baiano. As cartas trocadas com Fernando Completa ou apparentemente completa a evolução biologica, a de Azevedo testemunham essa crença. Ele entende sua evolução social está ainda em pleno processo. A atormentada que é imprescindível, além de realizar obras públi- cas e planos de governo, dotar o País de uma leg- historia do homem nesse evoluir voluntario, dá-lhe direito a credito islação capaz de inserir os avanços da política edu- por todas as suas realizações, nenhuma dellas lhe tendo sido pas- cacional de forma duradoura como argumenta a sada directamente do céo á terra.(TEIXEIRA, 1934, p.13) propósito do Código de Educação de São Paulo .

Tudo pode mudar e está a mudar. As instituições foram cria- “Julgo que se pode afirmar, que ainda mais do que certa defi- das pelo homem para o servirem e não para o dominarem. E ciência administrativa sensível nos setores do ensino, tem preju- o criterio para esse permanente evoluir que é um permanente dicado a educação em nosso país, a falta de legislação adequa- experimentar, é o da vida do homem no mundo, entendida como o da, uniforme e completa sobre a matéria” (VITAL, 2000, p. 17). processo ininterruptamente ascencional para uma maior largueza e uma maior altura. Vida mais rica, mais alta, mais ampla e mais Assim, de posse das credenciais adquiridas na sóli- livre. Desta sorte, a democracia americana presuppõe tres factos da formação nos colégios de elite e numa universi- fundamentaes: a) que todos os homens têm completo direito a dade de excelência e ainda portador dos conheci- uma perfeita participação nas formas mais altas de vida social, mentos sobre a política adquiridos na família, e com a certeza de poder interferir na política nacional, o que envolve direito, a egual opportunidade economica e egual Anísio Teixeira escolhe os espaços de maior visibili- opportunidade educativa; b) que a vida neste planeta está sujeita dade e relevância para seus investimentos políticos. ás leis ordinarias de evolução, sendo a progressiva libertação do Dessa forma se mostrará um dos mais dedicados homem, dentro das suas condições naturaes de vida, uma questão debatedores do capítulo da educação na Constitu- de esforço, de experiencia e de ascencional ajustamento; c) que ição de 1934, defendendo a reconstrução nacional o homem, pela largueza do seu coefficiente de educabilidade e pela educação e enfrentando notáveis confrontos pelo seu poder de controle sobre as causas naturaes que lhe dá políticos, especialmente com os representantes da o conhecimento, vae-se tornando, cada vez mais, senhor e juiz do Liga Eleitoral Católica – LEC, presidida então por seu destino na terra. (TEIXEIRA, 1934, p.14) Alceu Amoroso Lima. Este, por sua vez, estava con- vencido de que a educação não é sinônimo de sal- vação, ou mesmo reconstrução nacional, como ex- Durante quatro anos a educação no Distrito Feder- pressou em sua dura crítica ao escolanovismo, ao al se volta para a criação de um sistema integrado analisar o livro de Lourenço Filho Introdução ao es- de escolarização em todos os níveis e modalidades tudo da Escola Nova (LOURENÇO FILHO, 1930). de ensino, até então pontual e fragmentado, com especial atenção ao ensino secundário. A criação de sólidas estruturas institucionais estava no centro do projeto, como anunciou Anísio Teixeira em carta a Monteiro Lobato: O “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” consolidava a visão de um segmento da elite intelectual que, embora com diferentes “Preparem-se os homens. Criem-se os técnicos. Eles organizarão. posições ideológicas, vislumbrava a possibi- Da organização virá a riqueza. E tudo mais – política sã, liber- lidade de interferir na organização da socie- dade brasileira do ponto de vista da educação. dades etc. etc. – virá de acréscimo” (VIANNA; FRAIZ, 1986, p. 56). Redigido por Fernando de Azevedo, o texto foi assinado por 26 intelectuais, entre os quais Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles. Disponível em: http:// www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm. Acesso em: 20 dez. 2011.

O Decreto de nº 25 579, de 27 de março de 1933, regulamentou o funcionamento das universidades estaduais e livres que eram pre- vistas além das federais(PAIM,1982, p. 60). Sua crítica é simplesmente demolidora. Revela um de estrangeiros escolhido é formado por: Brehier, da debatedor pleno de certezas, que está postado no Sorbonne, que viria para a cadeira de História da Fi- caminho dos reformadores, ligados à Escola Nova. losofia; Charles Blondel, de Strasburgo, para a de Psic- Em suas palavras: ologia e Filosofia; Hauser, da Sorbonne, para o ensino da História Moderna e Economia; Desfontaines, de O superficialismo do pensamento moderno, quando Lille, para Geografia Humana; Garric (ou Paul Haz- se ocupa com problemas filosóficos e sociais, con- ard), para Literatura Francesa; Perret, de Montpellier, trasta com a estrema especialização em profundi- para Língua e Literatura Greco-Romana; Bourciez, dade quando se ocupa com problemas de ciência para Filosofia das Línguas Romanas; Trochon, para Lit- experimental. Não ouso repetir a aventura do autor, eratura Comparada; Albertini, do Colégio de França, que manobra displicentemente em todas essas águas para História da Civilização Romana. Na lista de como se fosse piloto matriculado em todas elas. Lim- professores brasileiros destacam-se: Candido Porti- ito-me a tomar um bote para ver e anotar algumas nari, Carlos Delgado de Carvalho, Gilberto de Mel- impressões pessoais, deixando a outros mais com- lo Freyre, Heitor Villa-Lobos, Heloísa Alberto Torres, petentes a tarefa de destruir, como merece, todo o Josué de Castro, Sérgio Buarque de Holanda. castelo de cartas que se apresenta com a arrogância Ora, este projeto de Anísio Teixeira e Pedro Ernesto de um castelo roqueiro (CURY, 2010, p.50/51). entra em choque não apenas com os interesses de Gustavo Capanema e do Ministério da Educação e Alceu contrapunha à educação pela experiência e aos Saúde, mas especialmente com o grupo católico, or- princípios científicos anunciados pelos escolanovistas a ganizado em torno do Centro Dom Vital e da revista fé, a moralidade e a liberdade que deveriam constituir A Ordem, que projeta uma república católica e que a base das reformas a serem feitas. concebe a universidade como o espaço por excelên- Na Constituição de 1934, os dois grupos ganharam cia de fomento da filosofia e do pensamento moral, e perderam. Os reformadores lograram garantir na capaz de dar suporte a tal projeto. Alceu Amoroso Lei, não apenas a afirmação da educação como dire- Lima, Padre Leonel Franca e Dom Sebastião Leme ito de todos, ministrada pela família e pelos poderes acalentam o sonho de uma Universidade Católica no públicos, como também a existência de um Plano Rio de Janeiro, com o apoio do ministro da Educação, Nacional de Educação, amarrado aos princípios da Gustavo Capanema (BITTENCOURT, 2009; LIMA,1978; gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário e MENUCCI, 2006; SCHWARTZMAN, 1982). à liberdade de ensino em todos os graus e ramos. Coube aos católicos a preservação da família ao lado A guerra de posições que se trava na capital da Repú- do Estado como instância responsável pela educação blica não está restrita aos corredores palacianos;povoa e a oferta do ensino religioso, facultativo aos alunos, a grande imprensa, as editoras, as conferências de porém, garantido como matéria nos horários das es- educação, além dos gabinetes dos Constituintes colas públicas primárias, secundárias, profissionais e (ARDUINI, 2015;CURY, 1988; SCHWARTZMAN, normais. 1982). O desfecho dessa história está fartamente doc- Por outro lado, também um desafio posto para os umentado na correspondência entre Alceu Amoroso reformadores da educação dos anos 30 são a for- Lima e Gustavo Capanema, e entre Anísio Teixeira e mação de professores e a pesquisa em educação, Monteiro Lobato. Tem sua culminância na carta de problema de que se ocupou Anísio Teixeira em seus Alceu a Capanema, exigindo o imediato afastamento estudos na Universidade de Columbia. Sem univer- do educador baiano do Departamento de Educação sidades, o grande gargalo é a preparação de profes- do DF, como se pode ver no fragmento abaixo: sores para o ensino secundário, até então exercido por profissionais liberais, como ocupação secundária, Expurgar pois o exército e a marinha (como se com- ou pelos religiosos das congregações católicas. preende a permanência do Comandante Cascardo à O Distrito Federal adianta-se em relação ao Ministério testa de um partido político?) de elementos políticos da Educação e organiza o Instituto de Educação, pro- revolucionários, reforçar a polícia, excluir dos sindica- jetado para ser uma Escola Normal modelo, onde tos e dos quadros do Ministério do Trabalho elemen- funcionem, como laboratório, um Jardim de Infância, tos agitadores, organizar a educação e entregar os uma Escola Primária e uma Escola Secundária. Funda postos de responsabilidade, nesse setor importantís- também o Instituto de Pesquisas Educacionais, com a simo, a homem de toda confiança moral e capaci- função, entre outras, de recolher dados sobre a real- dade técnica (e não a sectários, como o Diretor do idade educacional que sirvam de subsídio às ações Departamento Municipal de Educação) - tudo são educacionais. O Instituto de Educação, depois Escola de Professores, passa a oferecer, pela primeira vez, a formação de professores em nível superior e será in- corporado à Universidade do Distrito Federal (MAR- IANI, 1982). Interessado, porém, no progresso e na industrialização do País, o Diretor de Educação daria especial tratamento às escolas técnicas, frequentadas pelas classes populares, promovendo-as através de um processo de equiparação às escolas secundárias propedêuticas reservadas aos filhos da elite da época, especialmente ofertadas pelas congregações religio- sas. A culminância dessa reforma é a criação da Univer- sidade do Distrito Federal – UDF–, parte fundamen- tal do projeto de transformação social, baseada na crença de que a Universidade “poderia efetivamente colaborar para uma coordenação intelectual que ir- radiasse o conhecimento humano entre diferentes camadas da sociedade” (MENUCCI, 2006, p. 117).

Como se pode ver, as ações do grupo liderado por Anísio Teixeira, sob influência do pragmatismo ameri- cano, estão comprometidas com a transformação so- cial a partir do Estado . Eles se atribuem a tarefa de retirar o país da ignorância e implantar a modernidade. Para isso elaboram uma proposta de universidade, com cursos de graduação e extensão em áreas distin- tas daquelas tradicionalmente oferecidas no ensino su- perior brasileiro, encarregado de formar profissionais liberais. A ordem passa a ser formar quadros para um Estado eficiente e desenvolver a pesquisa. São cinco as escolas projetadas: Ciências, Educação, Economia e Direito, Filosofia e Instituto de Artes. Os cursos pre- vistos eram os de administração e orientação escolar, diplomacia, estatística, serviço social, biblioteconomia, jornalismo, publicidade, arquivo e artes cinematográfi- cas, entre outros.

Apoiado sobre contratações de intelectuais brasilei- ros e professores estrangeiros, escolhidos por Afrâ- nio Peixoto, o projeto ganha visibilidade e expressa o poder político de seus idealizadores. O grupo de estrangeiros escolhido é formado por: Brehier, da Sorbonne, que viria para a cadeira de História da Filosofia; Charles Blondel, de Strasburgo, para a de Psicologia e Filosofia; Hauser, da Sorbonne, para o ensino da História Moderna e Economia; Desfon- taines, de Lille, para Geografia Humana; Garric (ou Paul Hazard), para Literatura Francesa; Perret, de Montpellier, para Língua e Literatura Greco-Romana;

6 Para uma análise detalhada desse projeto de modernização, ver Luciano Martins (1987). 7 “A instituição se propunha a alcançar estes objetivos: a) promover e estimular a cultura de modo a concorrer para o aperfeiçoamento da comunidade brasileira; b) encorajar a pesquisa científica, literária e artística; c) propagar aquisições da ciência e das artes, pelo ensino regular de suas escolas e pelos cursos de extensão popular; d) formar profissionais e técnicos nos vários ramos de atividade que as suas escolas e institutos comportarem; e) prover a formação do magistério em todos os seus graus”(PAIM, 1982, p. 69). Bourciez, para Filosofia das Línguas Romanas; Trochon, Educação, Gustavo Capanema (BITTENCOURT, 2009; para Literatura Comparada; Albertini, do Colégio de LIMA,1978; MENUCCI, 2006; SCHWARTZMAN, 1982). França, para História da Civilização Romana. Na lista de professores brasileiros destacam-se: Candido Por- A guerra de posições que se trava na capital da Repú- tinari, Carlos Delgado de Carvalho, Gilberto de Mel- blica não está restrita aos corredores palacianos;povoa lo Freyre, Heitor Villa-Lobos, Heloísa Alberto Torres, a grande imprensa, as editoras, as conferências de ed- Josué de Castro, Sérgio Buarque de Holanda. ucação, além dos gabinetes dos Constituintes (AR- Ora, este projeto de Anísio Teixeira e Pedro Ernesto DUINI, 2015;CURY, 1988; SCHWARTZMAN, 1982). entra em choque não apenas com os interesses de O desfecho dessa história está fartamente documen- Gustavo Capanema e do Ministério da Educação e tado na correspondência entre Alceu Amoroso Lima Saúde, mas especialmente com o grupo católico, or- e Gustavo Capanema, e entre Anísio Teixeira e Mon- ganizado em torno do Centro Dom Vital e da revista teiro Lobato. Tem sua culminância na carta de Alceu a A Ordem, que projeta uma república católica e que Capanema, exigindo o imediato afastamento do edu- concebe a universidade como o espaço por excelên- cador baiano do Departamento de Educação do DF, cia de fomento da filosofia e do pensamento moral, como se pode ver no fragmento abaixo: capaz de dar suporte a tal projeto. Alceu Amoroso Lima, Padre Leonel Franca e Dom Sebastião Leme Expurgar pois o exército e a marinha (como se com- acalentam o sonho de uma Universidade Católi- preende a permanência do Comandante Cascardo à ca no Rio de Janeiro, com o apoio do ministro da testa de um partido político?) de elementos políticos revolucionários, reforçar a polícia, excluir dos sindi- catos e dos quadros do Ministério do Trabalho ele- mentos agitadores, organizar a educação e entregar os postos de responsabilidade, nesse setor impor- tantíssimo, a homem de toda confiança moral e ca- pacidade técnica (e não a sectários, como o Diretor do Departamento Municipal de Educação) - tudo são tarefas que o governo deve levar avante imediata e infatigavelmente, pois dela dependem a catolicidade das instituições e a paz social. (LIMA 1935)

Para evitar constrangimentos e mais pressões sobre Pedro Ernesto, Anísio Teixeira – que como seu chefe também colabora escrevendo artigos para o jornal da Aliança Nacional Libertadora e, portanto,é acusa- do de comunista e perseguido pela polícia política de projeto de desenvolvimento nacional . Filinto Miller – deixa o cargo e vai assistir desde o Anísio Teixeira é convidado por seus ex-colegas sertão baiano à reconversão de seu projeto na de- no governo da Bahia: Rômulo de Almeida e Ernes- pois conhecida Universidade do Brasil. to Simões Filho e assim chega ao cenário nacional Atendido em sua aspiração, o grupo do Centro propriamente dito. Assume a Secretaria Geral da Dom Vital assume a reitoria da UDF antes mesmo Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível da chegada, ao Rio de Janeiro, da missão estrangeira Superior –Capes –; no ano seguinte passa a presidir escolhida por Afrânio Peixoto na Europa. Alceu Am- o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – INEP oroso Lima foi, sem dúvida, a peça chave nesse pro- –, então transformado em órgão executor das políti- cesso. De posse de amplo reconhecimento público cas da Capes; e em 1955 cria o Centro Brasileiro de angariado pela presença constante na imprensa como Pesquisas Educacionais -– CBPE que serão, ao lado cronista e crítico literário, pela já bem-sucedida am- do CNPq, os organismos responsáveis pelo projeto pliação da revista A Ordem (na quantidade de publi- que irá dotar o País da infraestrutura de pesquisa e cações e no público leitor) e pela extensa rede social formação superior encarregada de alavancar a mod- da qual fazem parte a elite eclesiástica, os imortais da ernização do Estado e da sociedade brasileira. Tal pro- Academia Brasileira de Letras, além das relações fa- jeto é elaborado com forte participação de Anísio miliares entre a elite econômica do estado do Rio de Teixeira e seus aliados nacionais e internacionais. Janeiro, e por suas viagens internacionais, o intelectual Alceu Amoroso Lima, nessa década e meia, assiste à não se depara jamais com portas fechadas. É ainda criação da PUC/Rio se tornar realidade, mas assiste respaldado pela já significativa bibliografia publicada, também aos horrores e desmandos da ditadura Var- que o qualifica como militante de um modelo- so gas, além de despedir-se para sempre de seus grandes cial para o Brasil, baseado nos princípios do catolicis- interlocutores em torno do projeto católico para o mo. Destaquem-se: Introdução à Economia Moder- Brasil: o cardeal Dom Sebastião Leme e o jesuíta padre na (1930); Preparação à Sociologia (1931); Debates Leonel Franca. Assim, o católico dos anos 1950 será Pedagógicos (1931). um homem com ideias distintas das que expressou nos anos 1930. Mais próximo dos grupos progressis- É tomando-o como portador de tais propriedades tas da Igreja Católica, apoia Anísio Teixeira quando os que se pode entender a facilidade com que Alceu setores mais conservadores, em 1958, voltam a pedir transita pelo centro do poder nacional, fazendo indi- o seu afastamento, agora do INEP, e quando é mais cação e vetando nomes para cargos públicos. Suger- tarde exonerado de seus cargos pela ditadura militar. indo e criticando projetos de governo, como bem o demonstra sua correspondência . Exerceu ainda um À guisa de conclusão papel de intermediário entre as demandas da Igreja Os dois intelectuais viveram as contradições do Católica e o governo Vargas, passando, em geral, por catolicismo brasileiro durante o século XX. Ambos Gustavo Capanema, seu amigo pessoal. permaneceram na fé, defendendo posições distintas Anísio é assim afastado do poder nacional, em 1935, e semelhantes em épocas diferentes. Anísio Teixei- pela mão pesada da Igreja Católica, operada de forma ra sonhou ser jesuíta, foi um forte candidato à elite competente por Amoroso Lima. Seu retorno só se eclesiástica. Apadrinhado pelo primaz do Brasil, visitou daria depois de mais de uma década, período em que os países católicos europeus e foi recebido pelo papa acumulou novas experiências na Secretaria de Edu- aos 25 anos, quando ainda não havia sequer entrado cação da Bahia e como consultor da Unesco. para um seminário católico de formação eclesiástica. Em 1951, Getúlio Vargas volta ao poder nacional, Tendo sido proibido de realizar esse projeto, assum- através de eleições democráticas, com base em novas iu uma posição radicalmente oposta para resistir ao alianças, com vistas a realizar um processo de con- afastamento e encontrar, para si, um outro lugar. En- ciliação nacional e continuar o desenvolvimento. Traz tretanto, jamais deixou de pensar dentro do quadro para o governo um grupo de políticos baiano, que cristão: pensando em uma sociedade que pela edu- assume o Ministério de Educação sob a liderança de cação evoluiria para o progresso, para a justiça so- Ernesto Simões Filho e a Assessoria Econômica da cial e para a paz. Em nenhum momento o educador Presidência da República, que, sob o comando de pensou em revolução, em luta armada ou em pertur- Rômulo de Almeida, é encarregada de desenhar o bação da ordem instituída ou em luta de classe.

8 Ver a correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Gustavo Capanema, especialmente as cartas, os bilhetes e os telegramas de 1933 a 1944, no Arquivo do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, em Petrópolis. 9 Alguns parágrafos deste texto foram extraídos de Bittencourt (2009). Seu pensamento foi sempre na direção da conciliação. intermináveis discussões em torno de minúcias reg- A carta que escreve a Gustavo Corção em 1958, co- imentais ou mesmo legais, que para ele representa- mentando um artigo seu, ilustra essa minha hipótese. vam a negação do território humano da formação Defendo posição essencialmente idêntica à sua. A cultural, domínio da verdadeira tarefa educativa. Eram educação - não só a privada, como a pública - não igualmente a sua cultura, a sua bondade, a sua de- deve ser sujeita ao Estado, mas, à Sociedade. Por isto spretensão, o seu alto teor moral, sua extrema sen- defendo um governo independente para a educação: sibilidade. Compreendi que pertencia, e nunca deix- conselhos locais, de composição popular. No fundo, ara de pertencer, ao número dos membros invisíveis conselho de pais. A política educacional seria fixada do Corpo Místico de Cristo. Mas as revoluções, que por esses conselhos, ajudados pelos profissionais da devoram os revoltosos, também não toleram os re- educação, isto é, os professores. O senhor deseja, ao voltados. Quando nossos mandatos terminaram não que parece, a mesma coisa. Como, porém, não de- foram naturalmente renovados... E cessou, de novo, fende a tese com uma plausibilidade imparcial, para para mim, a invencível sedução de sua presença. a solução da educação dada pelo Estado e, ainda Mas ficou, para sempre, a imagem viva de uma chama assim, independente, mas simplesmente como re- ardente e angustiada, que mal cabia na estreiteza de um curso de transferir o poder de educar à Igreja, toda corpo de asceta e que animou um dos maiores e mais sua argumentação soa falso. Não quer acompanhar a desaproveitados valores do Brasil contemporâneo. idéia até o fim. A educação pertence aos pais. Muito bem. Como vão eles organizá-la? Entregando à Igreja. Encerram-se aqui os encontros e desencontros entre Ótimo. Mas há várias igrejas... (TEIXEIRA, 1958) essas duas lideranças cujas maneiras de fazer política não se distanciavam no essencial. Nenhum dos dois Se o educador baiano não abandonou jamais seu pensava em transformar o modelo de sociedade. pensamento conciliador, Alceu considerou mudanças Foram liberais, em tempos diferentes. Seus distancia- importantes em seu pensamento. Narrava sua vida mentos devem-se aos grupos que integraram. em três etapas, sendo as duas primeiras de um catol- icismo ultraconservador, inspirado por Jackson de Referências Bibliográficas Figueiredo e, a terceira, de um catolicismo progressis- ta, inspirado por João XXIII. Assim passou do ataque ARDUINI, G. R. Em busca da idade nova. Alceu Amoroso Lima e radical ao abraço fraterno dos últimos tempos ao seu os projetos católicos de organização social. São Paulo: Editora da Universidade de S. Paulo, 2015. interlocutor excepcional. AZEVEDO, F. História de Minha Vida. São Paulo: José Olympio; Por ocasião da morte de Anísio, em 1971, escreveu Conselho Estadual de Educação, 1971. LIMA, 1971): BITTENCOURT, A. B. Anísio Teixeira: Origines internationales ... Quando em maio de 1964 denunciei o “ter- d’un nationalisme pédagogique. Cahiers de la Recherche sur L’Éducation et les Savoirs, v. 1, p. 139-156, 2009. rorismo cultural”, que começava de cima para baixo o caminho vitorioso do terrorismo entre nós, pro- testei contra a demissão de Anísio Teixeira. O presi- dente Castelo Branco que era um homem superior às paixões mesquinhas deu-me a honra insólita de um telefonema em que explicava a demissão de Anísio, educador a quem tanto ele admirava, por “injunções políticas”. Nosso convívio, lado a lado, no Conselho Federal de Educação, me aproximou então definitivamente de Anísio Teixeira. Não há nada como a presença para dissipar, ou aumentar, as prevenções. Pude en- tão apreciar, de perto, sua personalidade excepcional. Não era só o brilho extraordinário de sua inteligência, que a propósito de qualquer pequeno debate alçava voos aquilinos, com supremo desprezo por aquelas

10 Vale lembrar que Alceu foi não só um amigo de Gustavo Corção, mas cuidou de apresentá-lo ao público em um artigo altamente laudatório, escrito em dezembro de 1944, quando comenta seu livro A descoberta do outro, Rio de Janeiro: Agir, 1944. texto, de 17 de junho de 1919 , definiu sua atividade Os escritos jornalísticos de Tristão de Athayde jornalística semanal como uma modesta contribuição nos anos 1920 como matriz interpretativa de para acelerar a formação de uma cultura brasileira 1 sua conversão ao catolicismo superior. Em virtude de nosso atraso cultural, seria necessário que um exército de críticos, jornalistas e Guilherme Ramalho Arduini2 professores agissem por gerações em um trabalho lento para atingir os seguintes objetivos: “O mistério é o grande adversário do homem na natureza.” Distinguir o que de eterno deixaram os clássicos, (Tristão de Athayde, 1923) admirar sem submissão antigos e modernos, descobrir virtudes e belezas acima das fronteiras “Nossa civilização só pode nascer da aliança íntima e nacionalidades, manter o contato com as ideias e harmoniosa de um espírito científico positivo e e preocupações contemporâneas, isolar o fio da um espírito religioso positivo.” tradição, sempre de olhos presos na cultura, para (Tristão de Athayde, 1930) a formação de uma individualidade nacional. E aqui nesta coluna de jornal, ansiosos por trazer a nossa Nacionalismo e identidade nacional pedra ao formoso edifício da nossa cultura, guia-nos a esperança de que nos compreenderão, relevando As duas epígrafes formam parte de uma série de a ousadia do empreendimento pela grandeza do artigos de jornal de autoria de Tristão de Athayde e objetivo, todos aqueles que amam esta terra e demonstram a alteração no seu modo de enxergar confiam neste povo. (LIMA, 1966, 63) as relações entre ciência e fé. A primeira faz parte de uma argumentação para demonstrar que não Seu programa de crítica literária exibiu desde o início existe transcendência, apenas fatos desconhecidos a marca de um nacionalismo que encontraria, poucos pela ciência. A segunda epígrafe foi escrita sete anos anos depois, companhia nos escritos dos modernistas, depois da primeira e revela uma visão diametralmente também eles preocupados com a valorização de oposta. Ele ainda reconhece a importância do uma cultura que pudesse elevar o Brasil no teatro progresso científico, com a diferença de que sua de nações. Existe aqui um claro diálogo com as capacidade estaria restrita ao aspecto material da preocupações sobre a educação expressas ao longo existência. Mesmo quando houvesse a satisfação da década de 1920 por livros como À Margem da plena das necessidades físicas, a transcendência seria História da República, conforme já comentado em um fato inelutável da existência humana e a resposta trecho anterior deste texto. Sendo a educação o a ela só poderia advir da doutrina da Igreja. O uso instrumento por excelência de formação de uma do termo “positivo” para designar tanto o espírito nova elite, era necessário pensar no que deveria ser científico quanto o religioso mostra que para Tristão ensinado. Para isso é que se voltavam os olhos de não haveria contradição entre os dois termos. Alceu, que quis fazer de seu trabalho uma espécie de O desafio deste texto será compreender como pauta da cultura nacional. se deu a passagem de uma epígrafe à outra, isto O problema de definir nossa identidade se traduziu é, como ele transita entre os extremos na relação também por uma leitura estética a respeito do tipo entre ciência e fé e como tal mudança ajuda a de poesia produzida no país durante o período. Ainda compreender sua conversão ao catolicismo. Será um crítico literário em busca de projeção, Tristão possível também relacioná-la à trajetória de Jackson adotou a estratégia de escolher nomes consagrados de Figueiredo, matriz a partir da qual Tristão de do parnasianismo como adversários. Sobre Coelho Athayde e outros membros do Centro Dom Neto , Tristão é bastante severo, a despeito de ser Vital pensaram seu “caminho para Damasco”. este autor um dos mais vendidos e aclamados no A crítica literária de ambos foi uma atividade período. Seus escritos são comparados a “um desenvolvida cotidianamente durante um largo brocado suntuoso vestindo uma imagem tosca” tempo e permite compreender o posicionamento (LIMA, 1966, 79). Seu trabalho exagerado com a destes autores frente aos outros críticos literários linguagem faz perder a naturalidade de estilo, defeito do período e seus principais temas de interesse. presente tanto em sua produção literária quanto nos discursos políticos. Para Tristão, poderia Quando Amoroso Lima estreou sua coluna ser um grande poeta se voltasse a escrever sem tanta “Bibliografia”, elegeu como um dos problemas centrais afetação e sem a carga excessiva de referências à a formação de uma cultura nacional. Em seu primeiro cultura grega. Em relação a , o julgamento ainda que opostas: a primeira é a de homogeneização, a é mais positivo. Seu livro de poemas Tarde é visto por da construção de uma unanimidade sempre perigosa Lima (1966) como o resultado de um bom equilíbrio e provavelmente ditada pela força; a segunda é a de entre a pesquisa estética e a espiritualização da desagregação dos laços sociais, pois se cada indivíduo linguagem, capaz de transmitir os sentimentos mais é uma entidade fechada em si mesma, não havia sublimes, e o trabalho com a forma. espaço para a formação de solidariedades. Os defeitos do surrealismo não se resumiriam, Nacionalidade, natureza humana e entretanto, a seu conceito de sociedade, vanguardas artísticas incluindo sua definição de natureza humana. A ideia do subconsciente como aquele que rege o Não foram apenas as correntes consagradas na comportamento humano consiste para Alceu em literatura de seu tempo que receberam reprovação, um equívoco de consequências altamente nocivas à nem mesmo as mais duras. A leitura de André expressão artística, entendida como a busca racional Breton (Manifeste du surréalisme, que Alceu traduz pelo belo. A psicanálise havia proporcionado uma como “supra-realismo”) desperta a ira em razão das importante contribuição ao demonstrar a existência premissas sobre a natureza humana presentes neste do subconsciente, mas essa descoberta não se texto, para o qual reserva suas piores palavras em encerrava em si mesma; era preciso seguir adiante duas crônicas, publicadas nos dias 14 e 21 de junho e desenvolver um instrumental teórico capaz de de 1925. Elas revelam um tipo de raciocínio sobre confirmar o domínio da racionalidade na natureza a arte e, em grau mais profundo, sobre a existência humana. O texto também apresenta uma visão humana, que ajudam a compreender as razões que negativa sobre o presente, a partir da ideia de uma levaram Alceu a se aproximar da religião católica e crise de valores a ser enfrentada em todos os âmbitos. a se afastar de Sergio Buarque de Holanda, o crítico Tristão toca pela primeira vez no tema e define o literário responsável por levar ao Rio a ideia de um problema em termos de desequilíbrio da força do modernismo mais aberto às vanguardas europeias, poder financeiro sobre as democracias modernas: e em especial ao surrealismo. O afastamento foi Revelar uma riqueza não é, de forma alguma, concluir recíproco, em parte também porque o autor de pelo seu predomínio. O dinheiro, a abundância de Raízes do Brasil formulava em termos negativos a dinheiro verdadeiro é uma riqueza, não há dúvida. Mas contribuição da Igreja Católica na história nacional, o predomínio exclusivo do dinheiro é a plutocracia como uma instituição que dificultou ao máximo a que submerge e desmoraliza as democracias criação de uma esfera pública autônoma. modernas. (LIMA, 1966, p. 909) Para ele, era necessário impor limites aos experimentalismos, pois a natureza humana seria em O texto revela uma crítica à ordem liberal a partir sua essência racional, e isso era o que deveria ser de um paradigma conservador, de quem lamenta a expresso pela arte. Por tais motivos, apresentar uma substituição da hierarquia social determinada pelo estética que propusesse libertar o ser humano do prestígio pela força do dinheiro. As antigas regras domínio da razão parecia a Alceu “uma infecção literária eram calcadas em características das personalidades natural, que correspond[ia] ao estado de espírito de de seus portadores, enquanto as riquezas podem ser toda uma época” (LIMA, 1966, p. 904). Escolhendo formadas e perdidas em pouco tempo; elas podem um conjunto de citações de estudiosos da Idade ser reais ou fruto de uma bolha especulativa. Tudo isso Antiga e da Medieval, Alceu constrói uma imagem torna a ordem social algo completamente irracional. idílica da vida social nesses dois períodos ao enfatizar Pelo mesmo motivo que critica o surrealismo, Tristão os princípios da Ordem e do senso de comunidade reprova o movimento pau-brasil e especialmente um como determinantes para uma boa sociedade. Ao de seus próceres, Oswald de Andrade. Lamenta que contrário de tal imagem, as novidades trazidas pela um dos melhores talentos da nova geração se deixe filosofia e pelas artes a partir da modernidade perder na ilusão de que sua estética representa uma consagraram a prerrogativa dos indivíduos como imaginada essência brasileira, quando não passa de uma seres autônomos no direito, na arte ou na religião. cópia das vanguardas europeias. Alceu condiciona o Alceu se pergunta qual poderia ser a garantia de sucesso do modernismo à sua capacidade de dialogar estabilidade política, de justiça ou de beleza em uma efetivamente com seu esforço “de procurar o sangue situação como esta, na qual tudo depende de vontades da terra, o pulso da raça, o segredo da paisagem” instáveis por natureza. Haveria segundo ele duas (LIMA, 1966, p. 997) ao invés de reproduzir fórmulas tendências igualmente importantes em seu tempo, do Velho Mundo. No bojo das disputas entre os dois, o questionamento Tristão e os vitalistas: primeiras aproximações das ideias literárias se confunde ao do estilo de vida, pois ambos se acusam em momentos distintos de Se o modernismo literário feito por Oswald de não serem fiéis na vida ao que pregam em seus Andrade, com suas inovações indesejáveis, não escritos. Os primeiros escritos não prenunciavam serviria de exemplo, onde ele poderia ser encontrado? esse desdobramento: ainda em 1922, Alceu fez uma Anos antes de assumir a liderança do Centro Dom crítica bastante positiva à Semana de Arte Moderna Vital (1928), Tristão já enxergava em seus nomes e incluiu o nome de Oswald como um dos talentos alternativas promissoras. Neste sentido, é necessário promissores. Os Condenados, romance social relativizar a ideia de rompimento estabelecida pelo publicado por Oswald em 1922 e comentado por “Adeus à disponibilidade”, texto paradigmático no Alceu em 21 de Janeiro de 1923, recebeu elogios de qual Tristão anuncia publicamente sua conversão. É Alceu por abrir uma nova vertente de realismo social mister perceber que as condições para o papel que dentro do modernismo. Athayde exerceria após 1928 foram se estabelecendo Como se torna então possível explicar as no período anterior, em uma resposta crítica tanto diferenças entre as opiniões do início de 1923 e as ao modernismo literário paulista quanto à situação expressas pouco mais de dois anos depois? A resposta política da Primeira República, em franco processo a esta indagação pode estar em um comentário de deterioração. Em ambos os casos, o grupo do extremamente irônico de Alceu sobre os hábitos Centro Dom Vital apresentaria uma resposta em de Oswald, a respeito do cotidiano daquele que afinidade com as opiniões de Alceu e seu julgamento pretendeu ser “o descobridor do Brasil”: cético em relação ao que considerava um excesso de individualismo. Entre as almofadas do seu Cadillac, depois das trufas Em termos políticos, seria este liberalismo exacerbado do Automóvel Club, entre uma partida de mah- o responsável pela emergência da questão social. Em jong e a última teoria de Epstein, entre uma carta crônica de 28 de fevereiro de 1921, Alceu (LIMA, do Comte Etienne de Beaumont e o exame dos 1966) teceu comentários a essa questão a partir do planos do novo sky-scraper do Triângulo, o Sr. Oswald livro Penso e Creio. O primeiro comentário de Tristão de Andrade senta-se à sua secretária do Ruhlmann, é sobre o autor, Perillo Gomes, representante de uma acende o seu cachimbo de Old Bond-Street, toma da nova geração de pensadores isentos de compromissos sua Watermann, invoca os manes de Apollinaire e do com os grupos favorecidos socialmente. Em uma citoyen Vaché e põe-se a ensinar poesia brasileira aos volta retórica, isto vira justificativa para julgá-lo mais caipiras do Cariri e do Garnier! (LIMA, 1966, p. 999). capacitado para fazer a defesa do status quo. O mesmo poderia ser dito de Figueiredo. O espanto que Tristão demonstra na passagem se O raciocínio apresentado acima pode ser lido a desdobra em diversas perguntas: como poderia um contrapelo como uma revelação das origens sociais membro tão típico da aristocracia cafeeira, que se de Figueiredo e Gomes, distante da elite carioca. O pretendia cosmopolita, querer deixar sua condição artigo saúda Figueiredo e Gomes como artífices de social de lado no momento de fazer poesia? Por que uma nova era no pensamento social, na qual a resposta afirmar uma barreira completa entre a “autêntica à crise social começava espiritualmente, discutindo as literatura nacional” e a tradição já estabelecida, bases filosóficas que sustentam o modo de pensar como se uma pudesse viver sem a outra? Athayde do homem moderno, isto é, através da crítica ao enxerga uma contradição gritante entre o convívio individualismo e ao materialismo. Ela conheceria seu social de Oswald e a postura radical de negação da final quando os empresários deixassem de considerar cultura estrangeira. Esta primeira contradição convive o lucro como a finalidade da economia, ou quando com uma segunda, a da afirmação de uma literatura os trabalhadores enxergassem a importância social nacional a partir da importação de vanguardas de sua produção, e, dessa forma, entendessem como europeias. Da mesma forma que a cultura nativa a realização de greves era algo nocivo para eles e precisaria se reconhecer em seu passado para para toda a sociedade. modificar seu presente, o estilo de vida aristocrático A exigência de uma mudança de comportamento e adotado por Oswald estaria em evidente contradição valores como um elemento para a solução da crise com sua postura de ícone da “cultura brasileira”, econômica é um fator importante para entender tanto em sua vertente mais popular (os caipiras do como, posteriormente, a conversão de Athayde se Cariri) ou erudita (a famosa livraria Garnier, ícone de torna possível. Já em 1921 existem registros em sua cosmopolitismo na época). produção da busca por uma solução no terreno dos princípios filosóficos para a organização do trabalho, tema que o ocuparia por toda a década de 1930. Portanto, a atração de Alceu pela obra de Perillo Gomes nasce da decisão deste autor de também tratar da questão social como um problema de fé, ou melhor, de falta dela, pois o abandono da crença no Evangelho teria conduzido os proprietários a se deixarem levar por um materialismo que enxergava com frieza o sofrimento provocado em seus trabalhadores. A respeito deste assunto, Perillo declara:

Nós vemos na impiedade a causa do infortúnio de todas as classes e principalmente dos desprotegidos da fortuna. As classes ricas e poderosas libertas do temor de Deus pela ação de um materialismo dissolvente, não cuidam de mais que tirar da vida presente o máximo proveito, a despeito do sofrimento que encontram e que muitas vezes espalham pelo caminho. Assim, o capitalismo, sem o único freio capaz de o dominar e conter nos seus apetites – a religião – explora o trabalho do pobre com frieza e com desdém (GOMES, 1921, p. 64).

O trecho acima reverbera as críticas tecidas na encíclica Rerum Novarum, de 1891, inclusive no que diz respeito ao papel dos empresários de serem igualmente os responsáveis pela crise e os únicos capazes de resolvê-la. Aos trabalhadores restaria um papel diminuído, mesmo que Perillo Gomes e Tristão considerem justas as reclamações deste grupo. Se na parte política os dois se aproximam, a leitura se torna mais seletiva quando se trata das relações entre fé e razão, ou entre a religião e a ciência. A este respeito, Tristão não concorda com o raciocínio de Perillo Gomes, o qual separa a realidade em duas instâncias hierarquicamente sobrepostas: a ordem natural, da alçada das “ciências humanas” e a ordem sobrenatural, responsabilidade das “ciências divinas”. Ainda segundo ele, da mesma forma como as ordens se sobreporiam, as ciências das quais tratam também, e a verdadeira ciência empírica adquiriria sua validade a partir do momento em que admitisse seus limites, isto é, em última análise, o mistério sobre a existência humana. Alceu, pelo contrário, ainda exibe uma visão otimista sobre o progresso da ciência na dominação da natureza e na expulsão do campo do desconhecido para territórios cada vez mais distantes:

A natureza é a evidência como é o mistério; entre os dois polos estão colocados os segredos de que, à custa de um longo e inaudito esforço, vai o homem lentamente se apoderando. A ordem sobrenatural, portanto, é a incapacidade do homem em determinar Tristão e Figueiredo compartilham do juízo de que o os limites da ordem natural. É mais lógico, portanto, excesso de valor conferido à riqueza material estaria atribuir essa ordem sobrenatural aparente à ignorância levando o Ocidente a uma crise, da qual já se notavam fundamental do Homem do que à existência de Deus. os primeiros sinais de resposta a partir de uma nova O mistério é o grande adversário do homem na corrente espiritual. Figueiredo enxerga em Pascal natureza (LIMA, 1966, p. 322). uma resposta possível para suas próprias indagações. Tristão reconhece no filósofo o modelo mais sublime Alceu admite um contrapeso ao papel declinante de adoção do catolicismo (LIMA, 1966) – que ele do mistério: a necessidade de ordem moral e social próprio viria a reproduzir alguns anos depois de fazer conduziria os seres humanos a buscarem o consolo esse comentário. da religião. Portanto, se o Alceu de 1921 é ainda um Outro dos fundadores do Centro cuja obra merece homem que acredita plenamente no progresso da o olhar atento de Alceu é o de Tasso da Silveira e ciência, demonstra em contraponto uma abertura seu livro A Igreja Silenciosa, objeto da análise do para o diálogo com os portadores de alguma crença dia 12 de novembro de 1922. Em seu comentário no sobrenatural, como é o caso de sua resenha de 09 sobre a obra, Alceu demonstra o mesmo movimento de junho de 1922, sobre Jackson de Figueiredo e seu pendular que estabelece no caso de Perillo Gomes, de livro Pascal e a inquietação moderna. Nela desenha- aproximação e distanciamento. De um lado, o elogio se a imagem do filósofo francês como alguém que à importância de se pensar nas questões religiosas, tal poderia pautar o debate brasileiro de seu período como expresso abaixo: e, dessa forma, trazê-lo para um terreno favorável a Figueiredo. Visto de outra forma, Jackson descreve a A um século de dúvida intelectual parece suceder si próprio ao definir a imagem de Pascal como um uma era de fé, dentro ou fora dos limites da natureza. filósofo que pecou por alguns excessos, como o Para nós, que, embora iniciando a era nova, ainda jansenismo , mas que nunca deixou de acreditar na trazemos ou trazíamos o espírito impregnado da Igreja Católica como a realidade última do homem. E era anterior, pareciam-nos a ironia e o desdém pela que tal característica se tornou o legado deste filósofo. ação a inteligência suprema de viver. Vemos hoje, ou A escolha por escrever uma obra sobre Pascal, pressentimos, que uma certa covardia intelectual é quando outros autores eram os temas mais comuns que nos levava a esse ceticismo integral (LIMA, 1966, nos escritos sobre doutrina católica, é uma aposta p. 739). que precisa ser melhor esclarecida. Ela pode ajudar a compreender o público ao qual se destinava a Seis anos antes da conversão de 1928, Tristão sentia obra: distante das discussões sobre a filosofia católica a necessidade de crer em algo. Mas em quê? Ainda francesa do período e próxima da herança cartesiana. sem localizar-se no interior da fé católica, Tristão Outros nomes fundamentais da doutrina católica, reconhece na aurora de uma geração preocupada como Santo Agostinho ou Santo Tomás, não teriam com a religião, junto com a nobreza do trabalho e a o mesmo impacto de falar a um público escolado inteligência da ação, a capacidade de salvar o país da em uma tradição de dúvida metódica. Com isso, sua situação atual de “preguiça intelectual”. Há, porém, Figueiredo permanece inscrito nos cânones filosóficos o distanciamento de quem enxerga na religião a já estabelecidos, mas aberto a uma interpretação satisfação de uma necessidade humana, sem que isso favorável ao projeto de tornar a Igreja Católica a signifique crer em algo para além do visível: legitimadora de todas as esferas sociais no Brasil dos anos 1920. Pascal é considerado como o filósofo que Não duvido que as religiões possuam a “utilidade” respondia à angústia do homem moderno: fundamental de apoio à moral social, como argumenta o Sr. Tasso da Silveira em outro fragmento da parte Pascal e a angústia são o elemento que mais vivamente final do seu livro, mas tudo isso o que indica é que as agita a consciência contemporânea, sendo causa de religiões são a obra fundamental do homem sobre a primeira ordem, não só da reação espiritualista que terra, fundamental mas humana (LIMA, 1966, p. 742). vai estrangulando o materialismo moderno, mas também da já tão notada renascença, senão católica A religião seria apenas o resultado do desejo dos de um a outro extremo, pelo menos, cristã, entre as seres humanos por interagir com seus semelhantes, camadas intelectuais superiores, em todo o Ocidente uma necessidade de sociabilidade, saudável em si (FIGUEIREDO, 1922, p. 159). mesmo, mas de nenhuma maneira transcendental, como desejava comprovar Tasso da Silveira. Sobre este autor, Alceu ainda comentaria outro livro Além disso, destinou maior espaço aos escritos seu de poesia (Alegorias do homem novo) para dos membros de A Ordem e à maneira como eles identificar no tratamento que ele confere à religião buscavam reinserir a religião católica e a presença da um modo de comparação com o continentalismo Igreja no seio da discussão social. Quando Hamilton americano de Ronald de Carvalho, a busca de uma Nogueira publica A Doutrina da Ordem (Rio de nova linguagem brasileira de Mário de Andrade ou Janeiro, A Ordem, 1925), Tristão dedica-lhe espaço a sedução das coisas do dia-a-dia na obra de Manuel em sua coluna ao promover um diálogo entre este Bandeira. Todas essas seriam temáticas importantes de e o livro de Júlio de Mesquita Filho, A Crise Nacional inspiração dos poetas, mas não constituiriam o cerne (São Paulo, Editora d’O Estado de São Paulo, 1925). de sua atividade. Para tais autores, a religião poderia O cerne da comparação está nas críticas que ambos servir até de musa inspiradora, mas não como seu autores realizam ao sistema político da Primeira elemento definidor. República, com avaliações diametralmente opostas A religião assumiu maior relevância na visão de no que concerne às soluções apresentadas. Mesquita mundo de Amoroso Lima a partir da primeira série pensa que o sistema seria corrigido pela instalação de Estudos, reunindo textos publicados entre 1926 de eleições secretas, as quais contribuiriam para o e 1927. Em meio a uma digressão sobre o tema da aperfeiçoamento de um sistema liberal-democrático, disponibilidade, emprestado de Gide, Alceu afirma: tido por ele como positivo em sua essência. A conservação do espírito sempre livre de toda ligação Contra esta opinião, Alceu mobiliza Nogueira e sua para estar pronto a receber qualquer ideia nova que capacidade de apresentar diretamente o cerne da chegue – essa noção criou uma literatura de artifício questão: a substituição das eleições individuais por e de diletantismo que faz os artistas perderem “la representantes escolhidos conforme sua profissão, partie éternelle d’eux mêmes” (LIMA, 1928, p. 141). fazendo parte de uma estrutura de Estado centralizada e forte (LIMA, 1928, p. 316). A alternativa apresentada O comentário acima aparece em meio a uma em 1926 é expandida nas considerações sobre o discussão sobre as mudanças no espírito europeu tema na década seguinte, quando o corporativismo após a I Guerra Mundial, mas não se restringe ao foi apresentado como a última solução possível Velho Continente. Alceu enxerga na oposição entre para enfrentar uma revolução comunista que, caso o grupo da revista Esprit (recém lançada na França) contrário, talvez se anunciasse como inevitável. e a mais conhecida obra de Bernanos, Sob o sol de Alceu elogia a coragem de Hamilton Nogueira em Satã, uma tensão a ser resolvida também pela cultura se amparar nos ditames da doutrina da Igreja, sua brasileira, em formação. De um lado, Esprit enxerga guia, para se dirigir às consciências “com uma fé que na própria relação de forças sociais nascida do final não recua mesmo diante de evocações arriscadas e da guerra condições para a solução dos problemas do uma categoricidade que é a força das ideias-ação, tão capitalismo, a partir de um plano de revolução social necessárias, por vezes, em nosso meio de inação das que também não se identifica ao comunismo. Noves ideias” (LIMA, 1928, p. 318-9). Essa é outra inovação fora a indefinição do que seria tal revolução social, entre os comentários de Alceu no período, uma persiste o problema de se repensar a sociedade vez que ele enxerga como um fato positivo que a francesa (ou, para Alceu, a brasileira) apenas a partir convicção religiosa deste autor seja uma motivação de um rearranjo das forças já atuantes no presente. importante para sua atuação política. Em oposição a essa cena, Sob o sol de Satã proporia Esta, no entanto, ainda peca por falta de um senso segundo Alceu “uma transcendência ao tempo e às prático em suas escolhas, pois permaneceria no plano superfícies [...] expressões do novo sentimento trágico das “afirmações gerais, sem quase descer ao fato, da vida” (LIMA, 1928, p. 144). ao exemplo concreto”. A religião de Nogueira é Em 1926, Alceu acompanhou com interesse o debate positiva quando oferece uma razão para envolver-se no interior do catolicismo francês e reconheceu em na solução dos problemas mais urgentes e concretos Maritain um de seus principais interlocutores. Naquele do Brasil no período, mas não para escapar deles momento, a tensão em torno do radicalismo de como em uma fuga. A solução que Alceu prefigura Charles Maurras e de seu grupo, a Action Française, para Nogueira é aceitar a inevitabilidade do regime era o tema central na discussão dos católicos do democrático no continente americano, mas lutar para hexágono. Ao encampar explicitamente a opinião atenuar seus defeitos a partir da perspectiva aberta de Maritain, ele sinalizou que tampouco considerava pela religião. a primazia do político – o “politique d’abord” de Maurras – como a melhor alternativa do período. Os Estudos e a inflexão ao catolicismo imprevidência sem rival . Mas onde Prado enxerga um problema sem solução e, portanto, o futuro do O tema das soluções religiosas para enfrentar os país na sua dissolução em repúblicas menores, Alceu problemas do presente ganha força nas séries acredita que a unidade nacional poderia ser mantida seguintes de Estudos, como podem demonstrar a partir da intervenção na cena pública da única as colunas escritas durante o ano de 1928 . Elas instituição presente em todos os lugares e aspectos chegam ao ponto de transformar aquilo que Alceu da vida brasileira desde sua fundação: enxerga como crítica literária. Seu esforço deixa de ser a apreciação estética do livro e se transforma em De modo que temos de corrigir pela estrutura uma discussão sobre os princípios (explícitos ou não) exterior os perigos de dissolução a que nos levaria apresentados pela obra. A partir deste critério, as esse romantismo íntimo. E o remédio que vejo para análises de Alceu constituem dois grupos de obras: as resolver esse paradoxo, é – a volta à Igreja Católica. capazes de apontar para a natureza espiritualista da A solução religiosa, a solução espiritual, aquela sociedade brasileira e para a necessidade de recuperá- que respeita integralmente os direitos de nossa la e as demais, que merecem ser descartadas. Sua personalidade ao romantismo e os deveres de nossa compreensão do que seria o catolicismo determina a nacionalidade ao realismo (LIMA, 1930, p. 187). apreciação dos autores, estabelecendo moldes rígidos para a leitura das obras. Há de se levar também em conta uma alteração no Nesta passagem há uma mudança no próprio conceito perfil dos livros comentados durante o período, com de religião. Ela é de ora em diante identificada a diminuição na quantidade de romances e obras intrinsecamente com a instituição eclesial católica e de poesia produzidas em relação a um aumento no dotada de uma plasticidade capaz de conformar de um número de colunas sobre os problemas sociais do lado o perfil da “alma” brasileira, em sua intimidade, e país. O tipo de obra poderia ser um ensaio social ou por outro, as agruras de construir um país. Alceu passa um livro de apologia do catolicismo como o de Leonel a considerar que os melhores leitores da realidade Franca, mobilizado para defender a tese de que todo brasileira têm o perfil próximo ao de Sebastião o clero deveria compreender que sua missão religiosa Leme ou Leonel Franca. Ele deixa em segundo plano incluiria tomar parte na discussão política, educativa e o intenso trabalho de reinterpretação do país feito intelectual do país. A obra de Franca seria a união de pelos modernistas, sobre os quais já escrevera suas uma justa preocupação apologética com um caráter críticas ao longo da década. científico, em uma amostra do rumo que a produção Athayde travou novo embate com Sergio Buarque de intelectual deveria tomar dali em diante: Holanda poucos meses antes de ingressar no seio da Igreja, em artigo no qual lhe atribui a vontade de tomar Nossa civilização só pode nascer da aliança íntima e o papel de líder do modernismo, privilégio que Tristão harmoniosa de um espírito científico positivo a um afirmou nunca ter desejado possuir (LIMA, 1928). Em espírito religioso positivo. Um resolvendo os nossos meio a estes ataques pessoais, existe uma disputa problemas materiais básicos, o outro resolvendo os sobre os critérios de autenticidade da arte. Sergio próprios fundamentos dos nossos problemas do se ampara no surrealismo para dizer que a produção espírito. artística deve ser livre de todo empecilho – inclusive E por isso mesmo é que obras como esta do P. das consciências pessoais – e acusa seu oponente Leonel, sendo um tributo admirável pela Verdade em de trazer ideias nocivas para o desenvolvimento si, são ao mesmo tempo um esforço necessário, de da arte ao invocar a necessidade de disciplina na inteligência e bom senso, pela nossa verdade nacional produção artística. O embate nacional se espelha (LIMA, 1930, p. 30). naquele ocorrido na França, com Sergio evocando o nome de André Breton e Tristão, os de Julien Benda, A conjugação entre a descoberta do que deveria Charles Maurras ou Jacques Maritain, unidos na visão ser essencialmente o país e a preocupação religiosa de mundo católica, mas muito distintos em seus reaparece então constantemente, como é o caso da posicionamentos políticos. análise do livro de Paulo Prado, Retratos do Brasil, As críticas literárias de Tristão se enveredam para no qual Alceu enxerga o acerto em ver que nossa a filosofia na medida em que a fé religiosa ascende característica mais marcante como nação é a de em importância e atinge seu ápice no “Adeus à possuir uma personalidade excessivamente romântica, Disponibilidade”, cujo título antecipa a resposta desinteressada em preparar o futuro e de uma de Alceu à escolha entre as duas posturas que ele entende serem as possíveis para qualquer ser Bibliografia humano: 1) manter-se sempre na busca de um sistema filosófico capaz de explicar a totalidade da CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. realidade ou, pelo contrário, 2) desistir da busca, São Paulo: Humanitas, 1999. tendo em vista a incapacidade de qualquer sistema FIGUEIREDO, Jackson. Pascal e a inquietação moderna. filosófico de cobrir todas as dúvidas existenciais. O Rio de Janeiro/Lisboa. Centro D. Vital/Anuário do tratamento endereçado a Sergio também se altera Brasil/Renascença Portuguesa, 1922. para uma tentativa de conciliação, de demonstrar que GOMES, Perillo. Penso e creio. Rio de Janeiro/Lisboa: a busca é vã. Anuario do Brasil/Renascença, 1921. Tristão utiliza sua história pessoal de quem convivera JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário com a dor e a angústia existenciais para lembrar a básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, Sergio que a instabilidade onipresente no mundo 2006. também poderia se traduzir em problemas pessoais: LIMA, Alceu Amoroso. Estudos. Rio de Janeiro: Edição O necessário, porém, creio eu, é compreender que o Terra de Sol, 1928 (1 Série). mal é esperar por algum sistema. O erro é pensar que ______. Estudos. Rio de Janeiro, A Ordem, 1930 (3ª a realidade se prende em qualquer sistema humano Série – 2º Volume). apenas, ou em qualquer ausência sistemática de um ______. Adeus à disponibilidade e outros adeuses. Rio sistema qualquer. de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1969. E V., que possui, no fundo, o verdadeiro sentido cristão ______. Estudos literários. Rio de Janeiro: Companhia da vida, precisaria apenas, creio eu, um pouco menos Aguilar Editora, v.1, 1966. de desespero do homem, para alcançar também o DICIONÁRIO literário brasileiro, v. 2. São Paulo: senso católico que outra coisa não é senão a plenitude Saraiva, 1969. cristã (LIMA, 1969, p. 17).

E a argumentação de Alceu prossegue no sentido de tentar provar como toda a filosofia moderna estaria amparada no equívoco de considerar o espírito humano como o centro de tudo o que existe, erro iniciado com o cogito de Descartes e perenizado por Kant. Na tentativa de fazer do próprio ser humano a garantia de resposta para as dúvidas existenciais e morais, a cultura ocidental estaria não apenas se afastando da religião mas criando situações desumanizadoras. Apenas ao aceitar sua incompletude e desaguar sua busca na religião é que a humanidade poderia devolver a dignidade ao ser humano.

Considerações finais

“Adeus à Disponibilidade” foi adotado por Alceu como o marco inicial de sua conversão. Após haver percorrido o caudaloso conjunto de escritos no período, é possível enxergar que essa data, assumida simbolicamente por Alceu como sua volta à Igreja, poderia ser mais precisamente descrita como o final de um processo que durou alguns anos, a ser observado em seus momentos cruciais a partir das crônicas analisadas. Elas também permitem enxergar algumas das representações de Alceu em meio a este processo, isto é, fornece pistas de como ele enxergava sua trajetória de anunciador do movimento modernista rumo à defesa dos interesses de uma instituição tão tradicional como a Igreja. Dr. Alceu e as muitas faces da modernidade

Candido Mendes*

Não serão muitas as dúvidas de que se possa falar do século XX como o de Dr. Alceu no Brasil, assim como o XVIII foi do Dr. Johnson na Inglaterra. No percurso enorme no tempo, o referencial desmesurado deixa- nos, todos, à sua vista. Dá-nos a trajetória, a riqueza em que o universo da cultura ganha o volume de toda a sua articulação. Implica no volteio primário da relação homem-obra. Sugere a grande metamorfose, em que a pulsação do espírito dita as suas vigências, já como perenidade, à flor da vida. E, em Dr. Alceu, a mais solar dessas escrituras. Sobretudo, permite- nos o fenômeno raro e opulento que repta, pela consciência do seu gesto, a nova densidade do mundo à sua volta. Cumpre a conversão, feita com a lucidez que se impõe até o abandono da angústia. Não é a busca pascaliana da verdade, engémissant. E ganha no excesso de sua conquista: a plena doação da vontade do homem novo tem, como prêmio da entrega sem resto, a reemergência do homem velho. Alceu canônico, libertário da última grande imagem, é o do remate da peregrinação interior, sem fraturas. Do propósito radicalmente cometido. Por isso mesmo, circunavegação. Volta inteira do horizonte vital, que só se logra pela força de gravidade das asceses: “Comecei velho e acabo moço.” Lavrada a liberdade, purgada como só pode fazer a conversão, fruía do desaguar da primeira disponibilidade, mal à vontade, contrafeita. Marcada pela aplicação de um dever de época. Das lições de dança, ao lado de Themistocles Graça Aranha, dos plastrons janotas para a saída com as argentinas, ao “ler, ler, ler”, sorvedouro inútil diante da tentação de suicídio e da água podre divisada da janela do Hotel Danielli, na Veneza de 1913. Na obra, mais o fato que a fatura. Não há que repetir as estatísticas de suas dimensões. Sobretudo porque mal se começa a recensear todo o subsolo da correspondência, a que se somará o dia a dia beneditino das cartas a Madre Maria Tereza. Não é o texto o recado acabado. Mas o vestígio da passagem. A marca operária da presença no evento múltiplo, tantas vezes repetida a conotação da contemporaneidade, a mostrar o passo certo, desafogado, de quem calca o chão mais largo da aventura do situar-se, do testemunhar.

Nesse mesmo limite, o livro não se completa, mas o homem se manifesta, com as roupas folgadas de sua predileção, à vontade, na palavra que vai adiante. O itinerário da pauta clara nele, tão bem entrevisto por ; das marcas, só em breves, da grandeza. nem a iluminação de um momento antológico da Não se encontra, no que Francisco de Assis Barbosa Igreja, a dar conta de sua mensagem. Ao contrário, chamou, à argúcia, de um memorandum, malha estudando no Collège de France, vai defrontar a face esquiva às autobiografias ou aos depoimentos para a autoritária do cristianismo transvazado à ordem de posteridade, momentos fortes ou fracos. Tal como é Maurras. Ou, como sua contrapartida, o misticismo difícil editar-se a trajetória monumental. Nosso não é intimista da poesia de Francis Jammes, da obra de o Dr. Alceu dos anos 1980. Nem o que, para alguns, Joseph Malègue ou do pan-humanitarismo de Daniel teria morrido uma década antes. Deparamos, sim, Rops. Ficava sem vestígio na sua biografia intelectual essa vida fluida, sem nenhum interdito e, sobretudo, a vertente que então já o poderia imantar. A sem nenhuma nostalgia. Percurso exuberantemente França da primeira década é, também, a da riqueza ostensivo, onde o luxo está na falta de hiatos. Tão da especulação de Loisy e Tirrel, contrapartidas pequeno, também, o anedotário, diante do largo confessionais chegadas à condenação, mas a dizer livro de horas. Nem o noturno, brotável no próprio do imperativo sólido, concreto, da ideia de mudança Jackson. Nem a angústia de Mauriac. Nem o exílio que Alceu admiraria na construção bergsoniana. Mas, de Bernanos. A biografia do prumo sem acidentes, saindo da tentação modernista, faltar-lhe-ia, também, para que a inquirição se desprendesse ampla, sem o sinal do movimento de Marc Saulnier e do Sillon, álibis. Toda domesticação e espanto da vida, como que, na esteira de Albert de Mun e, sobretudo, de liberdade, na mão. Ozanam, depararia a ruptura com os modelos da Não está mais aí a Casa Azul, mas guardamos a grande sociedade capitalista de então e os primeiros camisa do batizado. O pai, um liberal, administrador anúncios de uma “civilização do trabalho” que surpreendente das franquias à educação moderna, emergiria finalmente nos nossos dias de Laborem na outra entrada do século. A mãe, significativamente Exercens. pouco sentimental, fora da religiosidade de plantão. Evaristo de Morais salientou claramente o interesse Ambos a lhe permitir o aprendizado flexível e de Alceu pelo distributivismochestertoniano. Mas inovador: o impromptu humanístico – as aulas como fórmula, mais que como “andante” de um novo particulares com João Kopke – ao lado da trilha do referencial de perspectiva histórica. Se conhecesse, à establishment. O Ginásio Nacional, hoje Colégio época, aquela meditação tão diretamente cavável nos Pedro II, a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do veios do seu espírito, ter-se-ia, sem dúvida, volatizado Rio de Janeiro, Fausto Barreto, Said Ali, Sílvio Romero, a disponibilidade diante de um pensamento já sem concessões, na fase de dar aula com o olhar cunhado ao estilo das intelligentsias e da ânsia por fixado para fora da janela. Também Osório Duque- uma visão global de mundo. Diante dos vinte anos Estrada e, em literatura brasileira, Henrique Coelho do pseudodiletante então surgido, seria a cunha Neto. para romper a “ética do descompromisso”. É toda O casamento em uníssono e, nos dois últimos anos, essa latência que vai jorrar mais tarde no Alceu do a comoriência deferida. “Eu agora não vivo, apenas segundo após-guerra, a cada vez mais se aproximar sobrevivo, depois que Maria Tereza me deixou só.” do grupo Esprit, no rumo que lhe empresta E as viagens! Difícil para o padrão mesmo da belle Mounier, Beguin, vindo da Âme Romantique et Le époque emular a volta reiterada à sua Paris, guardada Rêve para a denúncia do triunfalismo residual do como cenário de fundo contra os espetáculos da catolicismo francês, que vencera os Camelots du alma: Siena e Oxford. O encaminhamento perfeito Roi. E, sobretudo, Jean-Marie Domenach, talvez o à profissão. O Direito, classicamente vivido como a melhor intérprete do que seja o genuíno pluralismo crisálida da cidadania da nossa persona pública e de cristão do meio século, reconhecível pelo rigor das logo transposta ao lugar social do nosso protagonismo opções, mais que pelo debate dos modelos de ação, de ideias: essa especial militância de nossa cultura no cujas distinções tenderiam, dentro da doutrina social jornalismo, sua e de seus imediatos companheiros de da Igreja, a desbordar para uma nova “questão dos geração na ABL, Austregésilo de Athayde ou Barbosa universais”. A aula, a tertúlia, a conversa, mais que a Lima Sobrinho. polêmica, fincavam em Alceu o grande horizonte, e Palco todo, essa biografia sem quebras, para ser não a viseira para o combate das ideias. E é como o possuída pela liberdade radical. A matéria-prima, instigar da inteligência que Alceu verá, já, no convite de têmpera certa, aí estava no noviciado da e no repto de Graça Aranha, o papel a cumprir disponibilidade. Não o prendia a reminiscência de na volta ao comprometimento intelectual. Esta um apego religioso, singularmente rarefeito na prática aconteceria ao fim da etapa em que a nossa atual caseira. Nem o condicionamento dos reencontros, sociologia do conhecimento reconheceria a mais perfeita funcionalidade da estrutura econômico-social construção em que o reverberava a primeira trintena do país; a perda de todo o chão para que se assente do século. o trabalho de uma vanguarda social; a época em que Não há o “cinquièmepilier” à gauche da Notre Afrânio Peixoto poderia, tranquilamente, referir-se à Dame claudeliana, no Alceu que confessa e recebe literatura como o sorriso da sociedade. a comunhão a 15 de agosto de 1928. A démarche Tinham-se, então, absorvido as primeiras fissuras a exaustiva de quatro anos fez-se por carta, como se o permitir a emergência, exatamente no seio da luta roteiro da descoberta do cristianismo, mais do que a entre a Igreja e o Estado, de uma primeira geração volta, reflexa, viesse da vera viagem da alma só e não confessional e questionadora entre nós: a dos quisesse se perturbar da imediação vital da presença católicos ultramontanos, nos anos 70 do século XIX. de Jackson de Figueiredo. A trama dessa interpelação A Questão Religiosa surgia à margem de qualquer em crescendo ficará na nossa história das ideias ruptura intrínseca da noção de “ordem social”. também como o contraste perfeito de famílias do Desbordava-se por regularidade maior. E, no seu espírito. Do extremo cuidado da interlocução de um conflito com o Império, fugia das pautas tradicionais à imposição dos fiats do outro. Do percurso portado das intelligentsias católicas, suas contemporâneas no pelo distinguo das críticas ao das assunções pletóricas. século XIX. Não surgiam das questões mistas; da Do debate ex-post. A decisão final não se pressente licitação de autonomia religiosa, no campo do ensino como um clímax argumentativo. Mas, pela evidência ou do casamento, ou da procura de justiça no regime do convite ao compromisso, que o reacionarismo e de trabalho. Mas na luta contra as contradições limites a violência do catolicismo jacksoniano, provando a em que o padroado levara o poder do imperador sua coerência a cada instante, levavam a raias de uma a ver indisciplina episcopal em matéria de estrita superdeterminação. administração dos sacramentos, no próprio imo da É a resistência desse enlace que poderia municiar, estrita e plena vida da Igreja. única, a descarga da disponibilidade de Alceu. Colhia-a Ficaria no tempo o grande dissenso de Zacarias de como ação para ser exatamente o suporte do seu Góes, Candido Mendes ou Ferreira Vianna, na defesa sentido de liberdade. Não é a quebra da vida pela de Dom Vital, levado ao cárcere na Fortaleza de imposição da disciplina, mas a fome do desempenho São João. No pleno fastígio republicano, refazia-se brotada do aprofundamento da ascese que marca a força do expletivo: católicos e monarquistas. Por o rigor desapaixonado e quase protestante da ida isso mesmo, de logo, no cânone de , a Leonel Franca para a entrega profunda. E para o a palavra necessariamente panfletária, a defesa de que lhe virá, daí, “por acréscimo”. Faz-se a conversão brilho e desassombro, já que prescindível, nesse “ver de Alceu dessas aventuras do espírito que aceitam o o mundo”, toda a análise crítica ou interpretação. Daí, repto, até mesmo com o risco contra a natureza da por certo também, e em contracorrente, a sedução pulsão, do estilo e da trajetória vital. de Alceu por Eduardo Prado. Tão clara como o que A exemplaridade do gesto – pelo auto despojamento dizem os projetos de estudos de premonição, perfeitos – abria o largo limiar para a volta do homem velho no porque finalmente abandonados – perfilamento cristão novo; para o desatamento final, no defluir de in petto –, como tão sutilmente nos sugeriu Josué tantas décadas do espírito libertário, sobre a tranquila Montello. e radical “aceitação da ordem”, que vira, através de Conduzirá a conversão o amadurecimento da náusea Jackson, como o crivo do destaque da mouvance da disponibilidade, por sobre toda revelação súbita real da alma. Surgia para o novo combatente como ou por sobre todo impacto fulgurante. A exigência do um silogismo a perda do vínculo entre a Igreja e o compromisso vinha ainda leiga, na batalha literária a conservadorismo. Seu sequitur impunha os deveres eclodir da Semana de Arte Moderna. A receptividade de uma militância, levada à responsabilidade exaustiva imediata não trava, em Alceu, a valoração crítica: o de um proscênio. Da liderança indivisa, que lhe quanto rompia, finalmente, a mirada desengastada; e o requeria Dom Leme. Da imagem ostensiva da Igreja, quanto o modo, ainda prosélito, de 1922 ganhava um assediada pelo fascismo entre as duas guerras, e do metassentido e mensagem. É dentro da componente feito corporativo em que, naturalmente, viria à luz da nacionalista dos textos de 22 que encontra Tristão de Ação Católica. Não se furta o convertido ao risco Athayde a maior afinidade para chegar à exclamação, de nenhuma trajetória esperada. Da morte do crítico, quando a busca depara uma resistência nova de que pressagiara Mário de Andrade, à saudação como mundo. Romancista ao norte! Anúncio da descoberta “soldado de Dom Vital”, que lhe endereça Jackson. de José Américo, na bateia daquela realidade em que Porta todas as marcas da ordem o arranco do leigo começa a se mover o Brasil de fato sobre toda a primordial – Alceu Amoroso Lima. As conversões, na verdade, têm as suas portas menores cristã, nos movimentos concretos da história. Seria e a grande via. É o que vê tão bem Arnold Toynbee, o Alceu da mocidade das suas últimas décadas que ao discutir os grandes movimentos de “retirada e iria, cada vez mais, na esteira da Gaudium et Spes, retorno”, em que as trajetórias pessoais fertilizaram fazer da busca incessante dos “sinais dos tempos” momentos históricos pela radical translação de a lição incitadora à permanência e a certeza dessa sua vida interior. Mas, um é o enriquecimento que encarnação. E do laço que só entrega o compromisso vem da pauta nova de registros, em que se verte no que é, para o cristão, o engaste de cada hora: a a nova liberdade conquistada pela purgação, pela que só sabe e porta essa presença, como penhor da reinvestidura da vida a um resgate integral de liberdade. transcendência. Idêntica à de Maritain, desenvolvia-se, Mais raro é o adensamento chegado à retorsão. À no plano nacional, a trajetória antológica de Gustavo lenta volta desse homem velho que se apossa do Corção, que terminaria no mesmo movimento novo e que pode até permitir-se, pela provação da contrário ao de Alceu. Contrapunham-se esses grande coerência de Alceu – pelo profundo, alegre e percursos, afinal, simetricamente opostos, diante irrecorrigível mergulho nos deveres da mais generosa da mesma força de uma entrega interior. Corção militância católica dos 30 –, resgatar o impulso viveria a vocação pluralista dentro da Igreja, de início, primordial pela perene e aberta confrontação com como um membro da Resistência Democrática, de o oposto que revestia o seu papel. É essa a aura e a onde provinha, para abraçar, afinal, o espírito radica paz de festa da última trintena de Alceu, prenunciada da “cruzada”. Tal como Alceu se filiara à Igreja da desde o colapso do Estado Novo; pressentida na Ordem, para trocá-la pelas liberações amplíssimas negativa final ao endosso do integralismo, pela Liga já prenunciadas na luta contra a queda de Vargas. Eleitoral Católica, que chefia em 1938, e na conversa Nessa imersão no mundo, trocava a perspectiva de agônica entre Plínio Salgado, Tristão e Leonel Franca. uma instauração na ordem pela presença no seio do E trabalhada na descoberta do Humanismo Integral evento. Mas as idas e vindas de seu empenho não e da Democracia Cristã, de Maritain. Deixada, já, fogem ao primeiro registro da conversão; dão-lhe numa anotação de itinerário, proclamada no vigésimo dimensão plenária contra o arroubo do dissenso. aniversário da morte de Jackson, ao referir-se às Ao invés da transfiguração radical do mundo pela conotações do modelo político que propugnava para entrega franciscana, a tarefa, sim, de ajudar e proteger o nosso tempo, na sua tríade, de “República”, “católica” a vida e a florescência das estruturas da Cidade dos e “democrática”. Mais e mais o terceiro termo Homens. Divisava-se nos dois rumos, como tão bem dominaria a articulação, a fazer do confessionalismo sublinharia Monsenhor Lalande, assessor da Comissão muito mais do que uma determinação de regra, na Pontifícia Justiça e Paz, a diversidade de riscos em que Cidade dos Homens, a inspiração do que pedem incorre o compromisso político do cristão. E, diante da o tempo e a Igreja peregrina à ordem do verbo. É aceleração história dos nossos dias, seriam maiores as essa a trajetória sem falha em que a disponibilidade perspectivas de que se bloqueasse a palavra inserida se aperfeiçoa em liberdade. Cria-se como um fio pedida ao laicato pela Gaudium et Spes, do lado do interior entre o abandono de toda instalação, no integrismo, que do espírito libertário. A perda da que fosse a eficácia opulenta de um testemunho, em escala da mudança exigiria mais – intuiu-o Alceu – favor da voz da premonição e depois da denúncia. da disciplina do compromisso social do cristão. Mas Ao mesmo tempo, de dessolidarização e trilha segura compensava-se por esse quase sacramental em que de caminho. Operado o salto, caucionava-se o longo se constituía ad gentios o desenho largo no tempo de recuperar do primeiro libertarismo, a se repor em uma Igreja encarnada. Toda a instalação no temporal tempo e a absorver na mirada cada vez mais ávida seria reptada pelo apelo a todos os homens, para a de futuro todo o conteúdo dissonante, portador da construção das dimensões da paz e da prática social provação de base. Nessa coerência de fundo, que, trazida à tarefa do laicato. Alceu penetra-a de sua inclusive, não vem à consciência de Alceu de 1930, presença na Comissão Pontifícia Justiça e Paz, à escala dá-se o encontro e também o destaque de itinerários do seu espírito libertário, desatado. Alceu, o patrício entre nosso pensador e Maritain do Humanismo da suavidade do convívio, mas também da sua secreta Integral e, a seguir, do vieuxlaïc que escreve o Paysan etiqueta, pôde, como ninguém, trazer para a sua de la Garonne. Igreja o grande sentido das hierarquias e das naturais Nos seus últimos anos, o autor dos Degrés du Savoir distâncias sociais, nas quais o laicato encontraria não revisita todo o percurso da sua Igreja e, após o só o seu lugar, mas também, da mesma forma ciosa e concílio, interroga-se, já, dubitativamente, do que possa nítida, a sua defesa. É o que lhe daria inserção única realizar uma atividade política, autêntica e vitalmente para compreender a autonomia desse mesmo leigo na Igreja. Nada adjutório da sacristia. Nem manu pobreza da crítica brasileira, a de Araripe Júnior e de longa da tarefa especificamente episcopal ou clerical. José Veríssimo, objeto da investida do sergipano, nas Esse o Alceu da exemplar colaboração com Dom suas “zeverissimizações”. Leme e também suscetível de sustentar a toma, No advento da nossa modernidade, Alceu avança um sua, da palavra, na matéria em que lhe reconhecia o caveat básico, enquanto entende que o movimento munus próprio à Doutrina Social, e viria a proclamar dos anos 1920 era essencialmente paroquial e João Paulo II, como específica e naturalmente leigos, o paulistano. Dizia: “Todo paulista é um regionalista; é exercício do compromisso político do cristão. muito difícil ter um paulista nacional.” Surge, desse Cosmopolita, o Alceu do currículo perfeito da viagem horizonte, a ideia de um modernismo no Rio de desde a França anatoliana, do Hotel Montalembert Janeiro, na cooperação de Alceu com Tasso da Silveira do após-guerra, como do Majestic do primeiro e Cecília Meireles, na criação da revista Estética. conflito; da União Panamericana; do Prêmio Maria Mas Alceu vai à visão prospectiva da nossa cultura MoorsCabot; de Van Istendal, de Vitorino Veronese, pelo impacto de Graça Aranha, na sua conferência de de Thomas Merton. Filtra-o, entretanto, cada vez 1922, “O Espírito Moderno”, quando rompe com o mais, no grande universalismo. Paulo VI proclama-o convencionalismo da ABL e proclama: “Isto é a casa como modelo de católico para o nosso tempo, fora das múmias; é o túmulo dos medíocres; é a casa do dos quadrantes ou, inclusive, da prisão, dentro de um não-ser literário.” A frase vai à balbúrdia, levando os meridiano de latinidade. Esse cânon, ao mesmo tempo conservadores Coelho Neto aos ombros. E Alceu é referido ou universal, seria a tônica permanentemente um dos que erguem Graça Aranha. E todo confronto buscada por Alceu, no reconhecer, nesse seu profundo – salientaram os protagonistas – passou-se diante da enraizamento da Igreja na história, o quanto ficava a absoluta imperturbabilidade do presidente da ABL de dever a uma determinação ainda ocidentalizante do então, . cristianismo. O depoimento, nas Memórias Improvisadas, assentaria A interrogação fundamental da conversão de Alceu toda a envergadura da conversão de Alceu, sem é de sabermos como conciliará o compromisso do dúvida, única, no quadro da nossa cultura. Entendeu-o, católico aos reptos do crítico, no contexto de sua quase profeticamente, Jackson, convencido do seu época. É essa a do rigor extremo da confessionalidade, impacto antológico, no quadro da recristianização da quando Dom Pedro Sinzig interdita aos crentes nossa intelli¬gentsia de então. E Alceu já entendido, 2.345 obras, num verdadeiro novo Syllabus, e num então, como pri-mus inter pares. Mas faltava a momento antológico do rigorismo católico. Na autenticação do percurso crítico de Alceu. É o ocasião, Mário e Oswald de Andrade arguiam como momento da aparição de Leonel Franca, “o padre seria possível a um pensador manter-se católico e que me faltava”, no auge da sua produção intelectual, garantir a neutralidade da sua crítica. no grande confronto com José Oiticica, no debate do É não se dar conta de que Alceu nutria-se da visão socialismo, após a dogmática marxista do século XIX. de mundo de Bergson, tanto no impulso do élan É um Alceu que transpõe para a fé a sua militância e vital, na trama da modernidade, quanto, inclusive, a sua disciplina, na cega obediência a Dom Leme e a na exposição a situações limites, que levou o nosso toda a sua visão de um catolicismo restaurador. As pensador a seduzir-se com a viabilidade do suicídio, Memórias marcarão esse meã culpa único de nosso em Veneza. crítico, ao aceitar a Universidade do Distrito Federal Nesse telão de fundo, Alceu depara, em plena e aí dispensar, a partir de Anísio Teixeira, todos os Semana da Arte Moderna, o repto, numa condição grandes educadores da Escola Nova. de mudança, entre a ruptura radical e a mantença A contemporaneidade de Alceu, na sequência desses da continuidade dos referenciais críticos. Ecoava a mesmos anos 1930, nos dá o seu contraponto com convocação de Oswald de Andrade segundo a qual,se Plínio Salgado, na defesa da noção de totalidade ser um maníaco da parcialidade é preciso, que a gente histórica contra o pecado fundamentalista, e na crítica tenha a coragem de ser parcial para poder romper. antológica ao chamado “Movimento da Anta”, como Oswald, nessa sequência, iria à ética do excesso, que bordão literário do credo integralista. o levou, inclusive, ao mutismo dos seus últimos cinco A situação limite da consciência crítica de Alceu vai à anos. decepção com Gustavo Corção. O resíduo beletrista Alceu foi aluno de Sílvio Romero, a quem vai dever ou os humanismos fáceis da belle époque levariam a noção da “consciência epocal”, autor da primeira Alceu à busca corretiva, no fascínio inicial, com um história da literatura brasileira a desmontar o mito pensador vindo das matemáticas, da física, e da regra apressado de Machado de Assis e a proclamar a de pensar de um engenheiro, que vinha à intelligentsia a partir da “Esquerda Democrática”. Corçãopõe em abertos à reflexão já sistemática sobre a nossa causa, inclusive, a nossa epistemologia tão precária da realidade. nossa maturidade cultural nascente. Ao lado da Ação Católica surge a Ação Universitária A analítica de Corçãot ornar-se-á impenetrável Católica, portada por essa nova paixão de enlace à contextualização da mensagem, no contraste entre a crença e a vida, a levar ao convento a flagrante de Alceu, e ao imperativo pluralista de primeira grande leva de discípulos do Dr. Alceu, Dom leitura dos “sinais dos tempos”. Corção, ao contrário, Clemente Isnard, Dom Basílio Penido e Dom Marcos, vai à polarização, ao “perigo comunista” e ao apoio ao trazendo a fertilização beneditina a tantas formas de governo militar, inclusive, com a delação de católicos renovação pastoral ad extra, do trabalho diocesano levados à tortura. ao plantão da palavra e da poesia, na grande mídia. E não é outro esse contraponto com Alceu, na Esse monaquismo, a que viria se reunir Madre Maria mesma época, condenando o regime e avançando Tereza, transformava-se na parusia secreta da entrega na reflexão do compromisso inevitável da Igreja com de 1928. Nessa pulsão, cada vez mais desatada de uma a democracia, o que, para além da sua performance militância que se interroga e interpela, Alceu depara política, representa a sua garantia com os direitos a pergunta: a Dieuest-il à droite? É essa a época em humanos, e, por aí mesmo, sua marca-chave frente que os sucessos do franquismo levariam Tristão a aos novos “gentios” de nosso tempo, dos regimes de dessolidarizar-se de todo triunfalismo da afirmação seclusão social, senão– tal como demonstra o Estado temporal da fé. Descerrava-se o caminho claro dos Islâmico, Isis –do literal abate dos “gentios” do nosso pontífices pós-conciliares e da promoção, no tempo, tempo. do homem todo e de todos os homens. Liberava-se, aí, Ao lado do manifesto e da inteligência combatente, já de saída, do espírito da cruzada, tão suscetível nos anos começava, à mesma época, a porejar o homem velho 1930, de impedir a inteligência confessional a tomar nos rumos ganhos pelo Centro Dom Vital, à busca partido na polarização entre o marxismo e as direitas do exercício do grande questionamento cristão, à luz restauradoras. E, dentro de um horizonte pastoral do nosso tempo. E exatamente na linha que viria a se surgido em reação às perdas sucessivas de classes e transformar em rotina da nossa aventura do espírito nações no seio da sociedade moderna, naturalmente após a Gaudium et Spes. Era o que representava a se levantam os toques de reunir em torno da defesa exposição no nosso catolicismo às vigências de sua de uma exigência de cristandade. Entender-se-á o seu época, ao trazer Alceu ao Brasil, entre tantas vozes impacto e a sua sedução num país que já se aprestava da contemporaneidade, Robert Garric, das Equipes à gratificação de maior nação católica do nosso Sociales, Maritain, ao fim dos anos 1940, e Padre Lebret tempo. Definiam-se aí todas as condições para o e o seu movimento Economia e Humanismo, capaz conforto das coisas e da tranquilidade da consciência. de sintetizar as antigas propostas chestertonianas à E mais avançam esses anos 1930, mais a ação de Alceu escala da análise que queria lhe emprestar o mais passa a discrepar do que seriam os formulários e os ambicioso marxismo de então. sucessos dessa sideração do cristianismo. Combate O Centro Dom Vital crescia no contributo dos e impede, com Dom Leme, a criação de um partido intelectuais conscritos por Jackson, a construir, católico. Demoraria o entendimento do impacto por sobre o seu específico comprometimento, dominantemente negativo da Liga Eleitoral Católica, a a aura da grande temática do tempo, trabalhada, se manifestar pelo poder de veto, diante da presença sobretudo, através das profundas vivências literárias: da Igreja no mundo dos homens, ungida pelo espírito a de Hamilton Nogueira, com Joseph Conrad; a do de promoção. contínuo exercício machadiano de Barreto Filho; O remate de todo esse profetismo vai aos escritos a de Mauriac, por Augusto Frederico Schmidt. dos últimos dias; ao sorriso só da alegria dos justos e Configurava-se como pano de fundo das reuniões às mãos do cuidado invisível; à voz certeira do tempo do Casarão da Praça XV a ideia de um “Centro em que nascem as bem-aventuranças. No que pôde Fabiano”, em que a reciprocidade das perspectivas Alceu nos dar, como ninguém, justamente no que trazidas ao debate e a exposição do pensamento sabe e cumpre a vida, se a corta, toda, o gume mesmo confessional às mais rigorosas correntes de reflexão da liberdade. de seu tempo cunhavam um novo e inesperado lugar do espírito para o Brasil de entre as duas guerras. É o que permitia ao confessionalismo cristão penetrar no nosso patriciado e propor-se, como alternativa, uma sofisticação agnóstica de tantos grandes espíritos Chesterton e a intelectualidade era o país onde os ideais iluministas mais avançavam católica brasileira e o catolicismo, outrora hegemônico, perdia progressivamente boa parte de sua influência. Já na Alessandro Garcia da Silva Inglaterra, a situação era um tanto quanto diferente. Desde a reforma anglicana, os católicos sempre foram O objetivo deste artigo é tornar perceptível minoria na sociedade inglesa, com uma influência a importância da obra do autor Gilbert Keith muito pequena no cenário cultural. Apenas no século Chesterton para o pensamento católico desenvolvido XIX, com uma grande migração de irlandeses, o no Brasil, de maneira especial aquele formulado pelo número de católicos aumentou e a cena religiosa intelectual e líder católico Alceu Amoroso Lima. sofreu uma mudança. Ou seja, apesar de tudo, a Igreja Como bem advertiu o historiador Quentin Skinner vivia na Inglaterra um momento de expansão. , estudos sobre influência são por demais difíceis e, Estes contextos sociais distintos levaram a reflexões quando não são bem conduzidos, podem fazer com teóricas distintas. Na França, o conservadorismo que atribuamos uma relação causal onde ela não político e a crítica à revolução francesa marcaram existe. Além disso, há que tomar o cuidado de não muito as reflexões dos católicos no século XIX. Nas tratar o ator que supostamente recebeu a influência questões de cunho mais filosófico, as grandes disputas como um mero repetidor. Em toda recepção de ideias se davam em torno do materialismo, do positivismo há uma reelaboração delas em virtude do contexto e do liberalismo. intelectual e social onde aquele que é “influenciado” No caso inglês, a cena é outra. O grande intelectual está localizado. As questões disputadas podem ser católico do século XIX na Inglaterra foi John Henry outras e outro é o horizonte de expectativas. Dado Newman. Newman não discute primeiramente com o escopo deste trabalho, muitas destas questões positivistas ou com o materialismo da modernidade, metodológicas não serão desenvolvidas. Isso não mas com a tradição anglicana. Suas principais questões significa, no entanto, que estão esquecidas. São giram em torno do tema da evolução do dogma e do colocadas logo no início justamente como que um assentimento humano a uma crença religiosa. O fato sinalizador com função de lembrar os limites das de ser um converso oriundo do anglicanismo explica ideias aqui expostas e do caráter exploratório destas muito suas prioridades. páginas. Uma característica distintiva da tradição intelectual Com as limitações apresentadas, cabe agora ressaltar a cristã (e não apenas católica) inglesa é a ênfase relevância de um estudo sobre Chesterton e o Brasil, no elemento imaginativo. Os cristãos ingleses, em ou sobre Chesterton e Amoroso Lima. A importância sua crítica à razão moderna, não buscaram apenas de um estudo, ainda a ser feito, sobre a recepção demonstrar outra concepção de razão tida com mais ampla de Chesterton no Brasil é grande na medida ampla como fizeram os neotomistas franceses. Sua em que tem condições de lançar luzes inéditas sobre estratégia foi apresentar a imaginação como um outro a produção intelectual dos católicos brasileiros. Em instrumento fundamental de percepção da realidade. grande parte dos estudos sobre autores brasileiros ligados à Igreja Católica nas primeiras décadas do 1 – Chesterton e a intelectualidade século XX, normalmente dá-se grande ênfase aos católica brasileira diálogos com a tradição católica francesa. Essa postura não é arbitrária e decorre da França ter sido durante Dos autores católicos ingleses, Chesterton foi o que muito tempo a maior referência para a intelligentsia mais fez sucesso no Brasil. Esse sucesso, contudo, brasileira. Some-se a isso o fato de que no fim do século acaba por não ser tão perceptível quando se observa XIX e nas primeiras décadas do século XX, ocorreu o cenário atual. Boa parte das principais obras de um grande movimento intelectual no catolicismo Chesterton não era traduzida até bem pouco tempo , francês. Tal movimento foi mesmo denominado por poucas referências a ela são encontradas na literatura alguns como renascimento literário católico. contemporânea, praticamente nenhum trabalho Apesar de sua importância, a intelectualidade católica acadêmico o tem como objeto e, mesmo entre os francesa não foi a única fonte mobilizada pelos escritores católicos, ele é muito pouco citado. católicos brasileiros. Uma das mais importantes foi a Apesar desta situação, Chesterton tradição católica inglesa. foi referência fundamental para aqueles que, O catolicismo vivia no século XIX situações muito provavelmente, foram os intelectuais católicos mais diferentes na França e na Inglaterra. A primeira influentes do século XX no Brasil: Alceu Amoroso era marcada pelas consequências da Revolução Lima e Gustavo Corção. Estes dois autores foram Francesa, do positivismo e do secularismo. A França presidentes do Centro Dom Vital e durante anos a visão de catolicismo que cultiva em seu retorno à cultivaram uma forte amizade. No período que Igreja Católica. se seguiu ao Concílio Vaticano II e ao golpe de 64, A partir do contato com declarações tão os dois escritores romperam relações e, embora entusiasmadas de intelectuais consagrados e ao saber ambos continuassem católicos, adotaram posturas que ambos tributam suas conversões à obra de G.K. políticas totalmente diferentes. Apesar das diferenças Chesterton, quase que espontaneamente surge a ideológicas e na forma com que se relacionaram com seguinte indagação: o que esse autor trazia de tão a Igreja, tanto Corção quanto Amoroso Lima dizem persuasivo e encantador? Ou, em outras palavras: ser Chesterton uma figura fundamental no processo o que havia de tão atrativo no catolicismo tal qual que os levou a aderir à fé e à militância católica. difundido por G.K. Chesterton? Em “A Descoberta do Outro ”, autobiografia Essas são perguntas difíceis de responder, afinal publicada em 1944, Gustavo Corção diz o seguinte demandam um levantamento amplo do contexto sobre Chesterton: intelectual e religioso da primeira metade do século XX, tanto no Brasil quando na Inglaterra. Dentro dos Chesterton trouxe-me uma libertação, uma limites deste artigo, apontamos alguns elementos para recuperação da infância, encheu-me da confiança que uma resposta mais ampla. Para pensar tais elementos mais tarde, pela misericórdia de Deus, seria vestida cabe um rápido olhar tanto para a forma quanto para de Esperança; Maritain trouxe-me a retificação da o conteúdo do pensamento chestertoniano. inteligência e encheu-me da outra confiança que Para uma melhor compreensão da estrutura formal se revestiria de fé. O primeiro, creio que foi mais dos textos de Chesterton, é preciso lembrar que ele decisivo porque atingiu o nervo mais ferido e sensível, não foi um poeta ou romancista por profissão, mas tocando-me o senso lúdico: com ele brinquei as um jornalista. Escreveu artigos sobre o que ocorria horas mais felizes de meus quarenta anos, quando no momento, escreveu resenhas sobre os livros de aparentemente, pela força dos acontecimentos, eu sucesso de seu tempo e participou ativamente das deveria estar acabrunhado de tristeza. Ninguém polêmicas públicas. Sua primeira grande contenda conhecia meu júbilo, ninguém suspeitava a felicidade deu-se durante a Guerra dos Boers (1899-1902) que eu escondia com medo e avareza. E, muitas vezes, quando se colocou contra a posição do governo entrava pela noite adentro, lendo até não poder mais, inglês. Também é sugestivo que seu primeiro livro e amanhecia abraçado ao livro. tenha por nome “O Defensor” e que tenha capítulos com os seguintes títulos: “Em defesa do absurdo”, No caso de Alceu Amoroso Lima, o peso da obra do “Em defesa das coisas feias”, “Em defesa da veneração autor inglês pode ser desprendido do seguinte trecho pelos bebês”, “Em defesa do patriotismo”. de uma carta endereçada a Jackson de Figueiredo Essas suas defesas andam lado a lado com suas em 1927: acusações. Desde o início de sua carreira, Chesterton foi um polemista e não há como negar que a polêmica “É toda uma revolução em meu espírito. E que devo marca sua forma de escrever. Sempre está em tanto a você, meu querido e corajoso amigo, depois combate, seja defendendo ou atacando. Defendendo de Deus. Você e Chesterton foram os meus dois aquilo que julga ser o senso comum e atacando a inquietadores. Ontem escrevi um artigo Ser e Vir a modernidade, que pensar estar afastada de tal senso. Ser, pensando que nunca o teria escrito se não tivesse Somado a esse caráter combativo, o bom humor é encontrado a Chesterton e a você e se Deus não outra característica do pensamento chestertoniano. tivesse querido me iluminar”. Chesterton parece voltar contra a modernidade a ferramenta que muito foi utilizada contra o cristianismo: Quando Alceu Amoroso Lima aproxima Chesterton o riso. Suas páginas trazem sempre gracejos e mesmo de Jackson de Figueiredo não faz algo trivial. Jackson quando condena o mundo moderno, faz com que travou com Alceu um diálogo epistolar durante anos sua condenação torne-se uma espécie de exposição e é tido por este como a pessoa responsável por ao ridículo. Seu humor é em grande parte das vezes sua volta ao catolicismo e como aquele que marcou construído a partir de paradoxos. durante anos seu posicionamento ideológico. Quando Tanto o uso do riso (humor) quanto a polêmica a gratidão tributada a Chesterton é igualada àquela estão presentes em praticamente todos os livros de que tem para com o amigo brasileiro, Amoroso Lima Chesterton. Como exemplo, basta citar o primeiro demonstra sua dívida intelectual e existencial para parágrafo de sua mais famosa obra, “Ortodoxia ”: com o autor inglês e assume a importância deste para A única desculpa para este livro é o fato de ser será dar voz a Gustavo Corção, autor da única obra ele a resposta a um desafio. Um atirador, por pior brasileira que, embora não pretendesse, realizou uma que seja, torna-se digno de respeito quando aceita ordenação dos temas desenvolvidos por Chesterton. um duelo. Quando, há algum tempo, publiquei, sob “Três Alqueires e uma Vaca ” foi publicado em 1946, e o título de “Heretics”, uma série de ensaios, escritos é o segundo livro de Gustavo Corção, lançado apenas apressadamente, porém com sinceridade, alguns dois anos depois de “A Descoberta do Outro”, seu críticos, cuja inteligência admiro (refiro-me ao senhor ensaio autobiográfico. Cabe fazer a ressalva de que G.S.Street), declararam que eu incitava a todos a este livro, mais do que uma introdução a Chesterton, tornarem públicas suas teorias sobre os problemas é um ensaio no qual Corção, ao mesmo tempo em cósmicos, mas evitava, cautelosamente, apoiar meus que apresenta as ideias do escritor inglês, declara- preceitos com o exemplo. “Começarei a me inquietar se seu discípulo e afirma construir seu pensamento com minha filosofia” – disse, nessa ocasião, o senhor sobre as bases lançadas pelo autor ao qual está Street – “quando o senhor Chesterton nos tiver declarando sua admiração. apresentado a sua”. Era, talvez, uma imprudente A abordagem de Gustavo Corção à obra de sugestão feita a quem está sempre preparado para Chesterton defende uma forte unidade interna ao escrever um livro à mais breve provocação. pensamento deste autor . Embora abordasse uma infinidade de temas a partir de uma grande variedade Em um contexto no qual o catolicismo era de formas, para Corção, Chesterton possuía um constantemente visto como sobrevivência de um núcleo de ideias que se deixava perceber em todas passado sombrio e triste, como herança de uma as suas obras. idade das trevas, Chesterton é, para os católicos e São três as ideias centrais de Chesterton, segundo para muitos setores da opinião pública de seu tempo, a visão de Corção. Ou, para ser mais fiel ao autor, uma espécie de contraprova a essa crítica. É tido ao em Chesterton existem “três núcleos planetários de mesmo tempo como um cavaleiro e um palhaço, ideias” . Em torno de três centros gravitacionais orbita ou melhor, um cavaleiro cuja espada é o riso. Sua o pensamento chestertoniano. Gustavo Corção lê obra parece querer mostrar que a sisudez está do esses três núcleos como três antídotos para dramas outro lado e que é na ortodoxia que se encontra a humanos. São estes dramas que dão nome às verdadeira festa. últimas partes do livro: “Para não ser doido”, “Para não ser bárbaro”, “Para não ser escravo”.O primeiro Do ponto de vista da forma, Chesterton trouxe um núcleo de ideias, “Para não ser doido”, está ligado à molde, se não novo, ao menos raro, para a defesa dos discussão que Chesterton empreende em relação à ideais católicos no âmbito da imprensa. Esse molde razão moderna e à defesa que faz do mistério como foi por demais atrativo, tanto para aliados quanto algo fundamental ao pensamento humano. Em sua para adversários . E quanto ao conteúdo? O que argumentação, por exemplo, Chesterton afirma que defendia G.K. Chesterton? Não basta dizer que fazia a negação do mistério em prol da razão termina uma defesa da religião católica, afinal boa parte de pela negação da própria razão, uma vez que esta não seus livros mais famosos foram escritos antes de sua pode fundamentar a si mesma. Além disso, ele julga conversão ao catolicismo em 1923. E, além disso, a que a negação do mistério leva a uma percepção intelectualidade católica não é um bloco monolítico equivocada da própria realidade, uma vez que reduz onde todos cultivam exatamente as mesmas ideias. esta às categorias do indivíduo e não faz com que A obra de Chesterton é enorme. A coleção de suas o indivíduo se abra a um real que é maior que ele. obras em inglês chega a 37 volumes, sendo que grande A razão moderna “fagocitou-se”, ou seja, ao ser parte do que escreveu ainda não foi compilado em levada ao extremo, retirou as bases sobre as quais se livros. Não é exagero dizer que ele participou da fundamentava. grande maioria das polêmicas de seu tempo. Isso A imaginação é, na concepção chestertoniana, uma para não mencionar que publicou diversos livros saída para essa tragédia da razão, uma vez que de poemas e obras de ficção. Essa situação torna abre novamente as portas para o mistério. É nesse difícil a sistematização do conteúdo do pensamento contexto que Chesterton cunha sua famosa oposição chestertoniano. Como nosso interesse, no entanto, entre o louco e o poeta : não é uma catalogação de todos os assuntos sobre os quais ele escreveu, mas a identificação das temáticas desenvolvidas por ele que exerceram fascínio sobre a intelectualidade católica brasileira, a estratégia adotada A imaginação não produz a loucura: o que produz a loucura pois, de acordo com essa corrente de pensamento, é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem, os um homem sem posses é um homem em estado jogadores de xadrez sim. (...) Como se há de observar de dependência e desprovido de autonomia, seja no decorrer deste livro, não é meu propósito atacar a em relação ao Estado, seja em relação aos grandes lógica; quero apenas frisar que o perigo está na lógica e detentores de capital. não na imaginação. (...) O fato geral é simples. A poesia De maneira resumida, Chesterton defendeu uma é sã porque flutua, facilmente, num mar infinito; a razão epistemologia que salvaguardava o mistério e o dogma; procura cruzar o mar infinito para, assim, torná-lo finito. uma ética na qual defendia, a partir de um valor caro (...). Aceitar todas as coisas é um exercício, entender aos homens de seu tempo, a moral católica tradicional; todas as coisas é um esforço. O poeta procura apenas uma proposta econômica e social que criticava tanto a exaltação e a expansão, isto é, procura um mundo no o socialismo quanto o capitalismo. E tudo isso em uma qual ele possa se expandir. O poeta pretende apenas linguagem cheia de paradoxos e bom humor. Outro meter a cabeça no céu, enquanto que o lógico se esforça dado importante é que Chesterton não era um por meter o céu na cabeça. E é a cabeça que acaba acadêmico nem escrevia apenas para católicos, mas por estourar. um jornalista que trabalhava na grande imprensa. Em diversos aspectos, ele apresentava um tipo diferente Se o primeiro núcleo de ideias de Chesterton faz e atrativo de intelectual católico. referência à teoria do conhecimento, o segundo, “para não ser bárbaro”, diz respeito a uma ética das 2. Chesterton e Alceu Amoroso Lima relações sociais. Para Corção, no centro de tal ética, Chesterton colocou o juramento, e este é tido como Como já mencionado, Chesterton foi um autor a vitória da fidelidade sobre a astúcia, da palavra dada fundamental na conversão de Alceu Amoroso sobre as vicissitudes da vida e da sociedade. Lima. Que o catolicismo sob a ótica chestertoniana Essa defesa do juramento como algo exerceu grande fascínio sobre o jovem Alceu é fundamental para as relações humanas é o ponto algo atestado pelo próprio. Cabe agora perguntar de apoio sobre o qual Chesterton se coloca para que elementos do pensamento de Chesterton defender valores tradicionais do catolicismo, como o estiveram presentes na obra do intelectual brasileiro. casamento indissolúvel, sem recorrer diretamente a uma retórica religiosa. Se levarmos em conta a tripartição do pensamento Por fim, o terceiro núcleo de ideias de de Chesterton feita por Gustavo Corção, o que mais Chesterton, “para não ser escravo”, está ligado à sua aparece na obra amorosiana é o remédio para a proposta econômica e social, o distributismo. O ideário escravidão, ou seja, o distributismo. Claro que a defesa distributista consistiu principalmente numa crítica do mistério como fundamental à experiência humana ao capitalismo monopolista e na proposta de uma do mundo é algo que perpassa a reflexão de Alceu alternativa a ele baseada na pequena propriedade. Amoroso Lima, sendo forte sinal disso o título de seu Para o distributismo, o que importa não é a produção último livro, “Tudo é Mistério”. Esta coincidência, no de riqueza, mas a criação de condições nas quais o entanto, não é forte o suficiente para permitir uma homem possa desenvolver-se. Isso significa dizer que correlação entre as obras dos dois escritores, afinal as necessidades humanas, e não o lucro crescente das é um ponto relativamente comum entre autores empresas, devem ser o centro de toda a economia. católicos e traços que denotem uma referência No centro desta proposta está a ideia de que direta às formulações chestertonianas não são visíveis realização humana só é possível em um contexto de nas obras de Alceu. Algo parecido pode ser dito da liberdade. A liberdade, no distributismo, é considerada elaboração de Chesterton acerca do juramento. um valor tão alto que não pode ser trocada nem por Com o distributismo, a situação é diferente, melhorias sociais. Para Chesterton, tanto o socialismo há fartas referências, tanto no jovem convertido ao quanto o capitalismo podem propiciar certos avanços catolicismo no fim da década de 1920, quando no e garantir algumas melhorias sociais. O que nenhum intelectual consagrado da década de 1970. Sabe- dos sistemas tem a oferecer ao homem é o ser livre. se que as referências teóricas de Alceu mudaram De acordo com o ideário distributista, a liberdade bastante durante sua vida. Apesar disso, cabe destacar é tida como a condição e salvaguarda da liberdade que, mesmo de maneira menos intensa, Chesterton individual. No distributismo, a própria noção de não deixou de estar presente na reflexão amorosiana. democracia é tida como um contrassenso se não Sobre ele, Alceu diz o seguinte já no final de sua vida: estiver baseada na distribuição da propriedade, Chesterton era um católico recém-convertido. profundamente liberal, visceralmente liberal. O meu Lembro-me de ter lido seu livro Evolução da História liberalismo atual, que chamo de libertarianismo, foi da Humanidade, escrito em resposta a H.G. Wells. uma volta a essa vocação de liberdade na mocidade, Embora cientificamente fraco, era um livro muito que se obscureceu durante algum tempo através interessante e pitoresco. Foi por esse tempo que ele de minha conversão ao catolicismo e da convicção desenvolveu uma teoria econômico sociológica, à qual de que a autoridade era superior à liberdade, como hoje me conservo mais ou menos fiel. Entusiasmado, sustentava Jackson de Figueiredo. cheguei a fazer uma conferência na Escola Politécnica, a convite de seu diretor, Tobias Moscoso. Essa teoria, Se recordarmos a, já citada, carta dirigida por Alceu que iria mais tarde redescobrir em Alberto Torres, a Jackson de Figueiredo em 1928 e pensarmos que chamava-se distributismo. o livro “Memórias Improvisadas” teve sua primeira edição em 1973, torna-se fácil perceber a presença Alceu julgava que o distributismo conciliava o que de Chesterton em toda a reflexão de Alceu Amoroso de melhor havia nos dois sistemas antagônicos, o Lima. E mais: confiando nas palavras do autor, há que socialismo e o capitalismo. Utilizando um linguajar mais se reconhecer que tal presença traduziu-se numa contemporâneo podemos dizer que ele julgava que adesão, ainda que parcial, ao ideal distributista. Este na proposta distributista tanto os valores da igualdade dado torna-se ainda mais surpreendente quando é quanto os da liberdade estavam assegurados. Estas pensado a partir das diversas mudanças de postura ideias são tão importantes para o ideário de Amoroso política e ideológica pelas quais passou Amoroso Lima Lima que duas de suas primeiras obras são redigidas em toda a sua trajetória. Não é exagero dizer que a em diálogo com elas. Trata-se de “Preparação à obra de Chesterton, ainda que lida de modos diversos, Sociologia ” e “Introdução à Economia Moderna ”. foi um dos elementos que permitiram que Alceu, Além da reflexão com as obras, houve também o apesar de ter passado por diversas transformações, desejo de um diálogo epistolar: continuasse a perceber-se como fiel a si mesmo e aos ideais abraçados na sua conversão. Mais tarde, muito influenciado pelas ideias de Chesterton, e com o idealismo de moço, pensei em escrever-lhe, pois queria saber como poderia conciliar as minhas convicções distributistas com a responsabilidade de direção de uma empresa industrial. Como era sabido que Chesterton não respondia a carta nenhuma, escrevi a seu companheiro Belloc .

O liberalismo de Chesterton foi um dos aspectos mais ressaltados por Amoroso Lima, no balanço que fez da sua vida na entrevista dada a Medeiros Lima. Alceu encarava Chesterton como um defensor da liberdade, contrário a soluções autoritárias. E contrastava a influência recebida dele com aquelas recebidas de Bernanos e Jackson de Figueiredo, mais alinhados com tendências de cunho autoritário. O já idoso Alceu julgava ser Chesterton o mais próximo de sua posição afeita à liberdade, da qual se afastou nos primeiros anos pós-conversão. As influências do autor de Ortodoxia foram, retrospectivamente, consideradas como um dos recursos intelectuais que permitiram também sua segunda conversão, ou seja, a vivência de um catolicismo afastado de posições políticas autoritárias. Segundo Alceu :

Foi sua [de Chesterton] vivacidade de espírito, a sua extraordinária fertilidade inventiva e, sobretudo, o seu liberalismo que me impressionaram. Eu era SESC - SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional do Estado de São Paulo

PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman

DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda

SUPERINTENDÊNCIAS Técnico-Social Joel Naimayer Padula Comunicação Ivan Giannini Administração Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio Luiz Battistelli

GERÊNCIAS Artes Gráficas Hélcio Magalhães Adjunta Karina Musumeci Assistente Rogério Ianelli Centro de Pesquisa e Formação Andréa Nogueira Adjunto Mauricio Trindade da Silva Coordenação de Programação Rosana Catelli Coordenação de Comunicação Rafael Peixoto

Conceito e conteúdo Mauricio Trindade da Silva e Guilherme Arduini Identidade Visual e Projeto Gráfico Walter Cruz Centro de Pesquisa e Formação Sesc SP Rua Dr. Plínio Barreto, 285, 4º andar Bela Vista - São Paulo - SP Tel.: (11) 3254-5600 – CEP: 01313-020 Trianon – Masp 700m Anhangabaú 2000m [email protected] /cpfsesc sescsp.org.br/cpf