ZERO HORA GERAL PORTO ALEGRE, DOMINGO, 29/04/2001 | 39 Primeira lição ÁLBUM DE FAMÍLIA Arns, um clã a foi dada pela mãe A criação religiosa dada pelos Arns é um fator que marca a vida e o trabalho da pediatra: serviço da FOTOS ARQUIVO PESSOAL/ZH Zilda Arns Neumann cursava o quarto ano de solidariedade Medicina quando recebeu a lição mais marcante sobre a importância da prevenção na saúde. O visitante que chega a For- Quem a ministrou não foi um professor da fa- quilhinha depara com os no- culdade. Foi Helena Arns, sua mãe. mes de e Zilda Arns Neumann, grava- a época, meados dos anos 50, os estudantes pra- dos em um outdoor. Nticavam técnicas cirúrgicas usando cães como Logo abaixo, uma placa indi- cobaias. Cabia a eles arranjar os animais que seriam ca que aquele é o cruzamento submetidos ao bisturi. Para auxiliar a filha, Helena da Rodovia Arns com atraiu os vira-latas esquálidos do bairro Uberaba, em , e os cobriu de cuidados. a Alameda Felipe Arns – res- A recuperação estupenda dos 10 cães operados por pectivamente pai e avô dos ir- Zilda deixou os professores estupefatos. A aluna rece- mãos. beu a nota máxima. O êxito, porém, teve um efeito s homenagens fazem justiça paradoxal: fez a jovem afastar de vez a hipótese de se Aa uma dinastia que se singu- tornar cirurgiã. Ela concluíra não ter sido sua habili- larizou pelo espírito de solidarie- dade com o bisturi a causa da sobrevivência dos cães, dade. Dos 10 irmãos vivos de Zil- mas a alimentação e os cuidados a eles dispensados da, cinco tornaram-se religiosos. pela mãe. Nascia ali a sanitarista e pediatra que faria Em 1948, Zilda (foto ao lado, com 12 anos) O mais célebre deles, dom Paulo, de sua vida uma cruzada pela prevenção das doenças. deixa a cidade catarinense de Forquilinha e transformou-se no símbolo da de- Data de muito antes, contudo, a vocação para am- descobre a pobreza pela janela do trem fesa dos direitos humanos durante parar os outros. Em criança, Tipsi – o apelido é usado que a leva a Curitiba, onde seu pai cons- o regime militar. Sua primeira ati- até hoje pelos seus irmãos – costumava fugir de casa truíra uma casa para abrigar os filhos que tude ao assumir a arquidiocese de para cuidar dos filhos dos empregados da família. estudavam na capital paranaense (na foto São Paulo, em 1970, foi vender a Mais tarde, já adolescente estudando em Curitiba, acima, a pediatra é a segunda da esquerda residêndia do arcebispo para utili- sempre que retornava a Forquilhinha percorria a colô- para a direita ao lado dos irmãos Ida, Otí- zar o dinheiro em obras sociais. nia a cavalo visitando os idosos doentes e solitários. lia, Felipe e Hilda) – Não tenho direito à cama en- A menina que aprendeu antes o alemão (idioma quanto meus filhos espirituais pas- usado em casa) do que o português foi criada num sam fome e frio – declarou. ambiente de profunda religiosidade e culto ao saber. Entre os religiosos da famí- Agir conforme os ensinamentos cristãos era apenas lia, está a freira Hilda Arns, que mais uma de suas obrigações, ao lado do trabalho na atuou por três décadas no Rio roça e da ordenha. Grande do Sul. Quando alcançou – Em Forquilhinha, a gente não sabia onde termina- idade para se aposentar, preferiu va a família e começava a Igreja e a escola – recorda assumir a Pastoral em Criciúma. a fundadora da Pastoral da Criança. A preocupação com o ensino levava o pai de Zilda, Saga dos Arns no Brasil Gabriel Arns, a extremos. Em 1946, ele mandou cons- começou em 1846 truir em Curitiba uma casa onde os filhos pudessem Os que não seguiram a vida reli- viver enquanto prosseguiam nos estudos. Zilda se ins- giosa optaram pela caridade. O talou lá aos 12 anos, com oito irmãos. A viagem melhor exemplo é o da professora de mudança para o Paraná se tornaria inesquecível: foi Otília Arns. Trinta anos atrás, ao quando a menina descobriu a existência da pobreza. receber um terreno como herança Da janela do trem, chocada, percebeu que havia pes- do pai, usou-o para construir um soas vivendo em casas sem pomar ou jardim. lar, no qual criou seis órfãos. A nova geração mantém a tradi- Tragédias pessoais ção. Uma infinidade de filhos, so- marcaram a pediatra brinhos e cunhados está engajada Sem a persistência que os voluntários da Pastoral da na Pastoral da Criança. Criança admiram em Zilda, ela não teria se tornado – Difícil é tirar um da família médica. O pai era contrário à idéia, argumentando que que não participe – festeja Hilda. aquela era uma profissão para homens. Até hoje, os O exemplo veio dos pais de Zil- irmãos recordam a insistência ferrenha da jovem, que Na primeira fila da foto acima, estão Hil- da, fundadores de Forquilhinha. acabou por vencer a oposição paterna. da, Gabriela, dom Paulo, frei Crisóstomo e Gabriel Arns era uma es- – Ela sempre foi muito perseverante e teimosa. Vai Maria Helena, os cinco irmãos de Zilda que pécie de juiz de paz da região. até o fim de tudo o que começa. No tempo em que seguiram a carreira religiosa. Ao lado de Sempre que havia alguma briga, os éramos crianças, íamos à praia em carro de boi, numa Maria Helena, está a irmã adotiva Anita colonos o chamavam para resolver viagem muito demorada e cansativa. Uma vez, quan- Maag, também freira. A sanitarista é a se- a situação. A mãe, Helena, en- do a Tipsi tinha três anos, decidiu no meio do cami- gunda, da esquerda para a direira, da se- comendava livros de medicina da nho que iria voltar para Forquilhinha. Tive que arras- gunda fila. Na foto ao lado, dois filhos de Alemanha, estudava-os e aplicava tá-la de volta, ou ela não teria retornado – narra Hilda Zilda (a segunda, de pé) aparecem com os os conhecimentos absorvidos tra- Arns, sua irmã. seis órfãos adotados pela irmã Otília. tando dos doentes da comunidade, Mesmo as tragédias que se abateram sobre a pedia- desatendida por médicos. tra se revestem de significado. O marido, o economis- A saga da família no país teve ta Aloísio Neumann, morreu para salvar a vida de início em 1846, com o trisavô de duas crianças. Nelson, o filho mais velho do casal, Zilda, o alemão Nicholas Arns. então com 12 anos, e uma amiga estavam se afogando REPRODUÇÃO/ZH Três décadas antes, soldado do numa praia. Aloísio resgatou as crianças. Por causa do Exército de Napoleão Bonaparte, esforço, teve um ataque cardíaco e morreu na água. ele fora um dos poucos que sobre- Quinze anos antes, o casal Neumann comemorava a viveram ao inverno na campanha primeira gravidez de Zilda, esperada com ansiedade. militar da Rússia. Deixou o Vale O nome do filho já estava escolhido: Marcelo. Con- Gabriel e Helena Arns (foto ao lado) foram do Mosela, assolado pela fome, cluído o parto, ela se exasperou ao verificar que os os primeiros a se instalarem às margens do para desbravar o interior de Santa médicos não lhe mostravam a criança. Havia uma ra- Rio Mãe Luzia em 1914, no local que anos Catarina. No último dia de sua vi- zão: o menino engolira líquido amninótico durante o depois daria lugar à cidade de Forquilinha, da, 13 anos mais tarde, tomou um procedimento e não resistira. A mulher que elegeu o hoje com 18 mil habitantes. Depois do ca- choque ao abrir a janela de casa. combate à mortalidade infantil como missão só viu o samento, viajaram durante três dias no Uma tropa de gado pisoteava a primeiro filho depois de morto. Ao retornar para casa lombo de burros para desbravar a região plantação. Enquanto expulsava os e entrar no quarto destinado à criança, encontrou um do sul do Estado de . animais, os tropeiros aproxima- consolo. Helena, sua mãe, deitara uma imagem do ram-se por trás e o assassinaram Menino Jesus no berço de Marcelo. com golpes na cabeça.