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A multissecular e a (des)integração de africanos em diáspora

Autoria: Wellington de Souza Lima1 Co-autoria: Nicole Machado Lopes da Silva2

O presente trabalho em primeiro lugar, entende que a integração dos povos africanos no Novo Mundo se deu por meio daquilo que denominaremos amplamente no decorrer do texto por maafa multissecular do qual deriva o processo contínuo e constante de desintegração, negação e anulação da humanidade dos africanos continentais e da diaspora africana. Em segundo, a desintegração dos africanos continentais e da diáspora 3 é resultado da perpetuação do racismo e do (neo)colonialismo epistêmico (re)produzidos nos meios de comunicação, científicos, políticos e institucionais. Essa desintegração atinge primeiro o corpo negro no processo de transmigração forçada proporcionada pelo “progresso” do comércio antlântico europeu. Depois o elo familiar ou comunitário. Em sequência a desintegração histórica, cultural e mental veiculada pelo contínuo processo de embranquecimento eurocêntrico. A desintegração social, cultural e econômica e por fim a desarticulação do ser africano e de sua noção de ancestralidade e espiritualidade.

Nesse sentido, utilizamos o termo em kiswahili maafa para denonimar esse longo processo de violência vivida pelos africanos que parte desde a colonização árabe e europeia até os dias atuais. Um processo intergeracional contínuo e destrutivo que se exerce sobre a experiência africana a qual (sobre)vive das interdições impostas pelo poder do paradigma eurocêntrico. Apesar disso, o que pouco se entende é a história de longa duração e a ideia de africanidade que serviu para reafricanizar a experiência dos negros no continente americano durante a escravidão e os períodos subsequentes. O uso do termo maafa foi introduzido pela primeira vez, por uma perspectiva africana pela intelectual em seu livro Let the Circle Be Unbroken: The Implications of African Spirituality in the Diaspora (1998). De outro modo, o

1 Graduando do curso de Ciência Política e Sociologia pela Universidade Federal da Integração Latino-americana. 2 Graduanda do curso de Letras, Artes e Mediação Cultural pela Universidade Federal da Integração Latino-americana. 3 A diáspora africana é aqui entendida como povos de origem africana que vivem fora do continente, independentemente da sua cidadania e nacionalidade e que estão dispostos a contribuir para o desenvolvimento do continente e a consolidação da união africana. www.au.int (). intelectual (2001) compreende maafa (ou o “holocausto africano”) como a destruição da possibilidade de humanidade que envolveu a redefinição da humanidade africana para o mundo, envenenando relações passadas, presentes e futuras com outros que nos conhecem através desta estereotipagem, assim danificando as relações verdadeiramente humanas entre os povos.

O uso do termo maafa (a “grande destruição/desintegração”) ao invés de “holocausto africano” implica antes de tudo que o termo transmite não só melhor os eventos como enfatiza que a negação da humanidade africana é um fenômeno secular sem paralelo. A negação da humanidade dos africanos, atrelada ao desprezo e ao desrespeito, coletivos e contínuos acabam por perpetuar sistematicamente a destruição física e espiritual dos africanos, individual e coletivamente. Todo esse processo se dá por meio da deseducação colonial que como dito anteriormente incide na perda da auto-imagem, em sua desintegração e no deslocamento forçado, sendo assim é preciso “incutir vontade na mente africana para retomar a si mesma” e “se libertar do aprisionamento de um povo à imagem”, com bem aponta o historiador africano John Henrick Clarke (2018). Nós, africanos da diáspora situados no Brasil estamos comprometidos com a Agenda África 2063 da União Africana que enraizada no pan-africanismo global e na Renascença Africana, constitui um quadro robusto de propósitos e resoluções dos problemas africanos por meio de soluções africanas e com a Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024).

Sob o signo maior da violência que é o colonialismo (Fanon,1968), com a deseducação colonial se destrói a imagem cultural dos povos africanos em detrimento de uma imagem de si que a Europa forja no interior do seu projeto de modernidade por meio do deslocamento forçado e da escravização. Com bem enfatiza o filósofo e historiador latino-americano Henrique Dussel, integrante do Grupo Modernidade / Colonialidade e do que se denomina por epistemologias do sul, nos diz que

Europa entonces conquista el oriente, debilita al mundo árabe, conquista y coloniza Africa y América, etc. ; nace así un «centro» y una «periferia». Europa se constituye en el centro y crea la periferia. Este centro va a tener un polo de expansión en Rusia (porque Rusia va a ser la que en Europa conquista Siberia y llegue hasta el Pacifico en el mismo siglo XVI). Europa tendrá en España y Portugal otro polo de expansión por el Atlántico. En el siglo xx el centro va a estar constituido por Estados Unidos, Europa y Rusia desde la segunda guerra mundial. Históricacamente, América latina va a quedar, con el Africa negra, el Islam, la India, la China y el sureste asiático como culturas periféricas, dependientes de una macrocultura central. América latina queda situada en dicha periferia, sin embargo, como el único grupo subdesarrollado de poscristiandad, porque en las otras culturas periféricas está vigente el Islam, el animismo, el hinduismo, la revolución maoista y el budismo en el sudeste asiático. Quiere decir que aún en esta etapa, América latina queda situada como el único conjunto dependiente cristiano, ya que entre nosotros se constituyó la cristiandad, pero fue la única cristiandad colonial (no lo fue la bizantina ni la latina). (DUSSEL, p.95, 1978)

A formação histórica do mundo ocidental moderno e sua atual conjuntura geopolítica global é sustentada desde sempre pelo neocolonialismo, genocídio e pelo racismo epistêmico. Em linhas gerais, para o intelectual e pan-africanista de Gana, , a essência do neocolonialismo

é de que o Estado que a ele está é, teoricamente, independente e tem todos os adornos exteriores da soberania internacional. Na realidade, seu sistema econômico e, portanto seu sistema político é dirigido do exterior. (...) Em lugar do colonialismo, como principal instrumento do capitalismo, temos hoje o neocolonialismo.(Nkrumah, xxxx, p.xx)

Tais “adornos exteriores da soberania internacional” se evidenciam atualmente com maior densidade devido ao neoliberalismo que assola o continente americano. De norte à sul somos representados por governantes que não possuem nenhuma noção de responsabilidade e ética quando o assunto é racismo e xenofobia, sempre se justificando por meio de uma falsa idéia de soberania nacional ou por meio da negação histórica. Tão pertinente para nós hoje quanto perspicaz em suas reflexões, Nkrumah, nos esclarece que o neocolonialismo de hoje representa o imperialismo no seu estágio final e talvez o mais perigoso. A deseducação colonial além de agir sobre a mente, produz uma neurose cultural por meio do esquecimento sendo que um dos nossos grande dilemas é buscar compreender e (re)atualizar a experiência africana no que se entende por “era da Europa”, que segundo o filósofo africano Cornel West perduraria entre 1492 e 1945. Sob essa violência atmosférica, (...) à flor da pele (Fanon, 1968) subsiste um estado de maafa multissecular intergeracional no qual nós africanos (sobre)vivemos até hoje, dentre as diversas desordens causadas pelo neocolonialismo, por exemplo, estão a anemia falciforme, a diabetes e a hipertensão que afetam diretamente a população negra no Brasil, tendo em vista o precário acesso a serviços de saúde, educação, habitação e condições socio-ecônomicas adequadas. Entendemos que cada cultura e cada povo possui uma epistemologia própria, seu modo de ver, sentir e pensar o mundo que possui uma conexão estreita, no nosso caso, com valores civilizatórios africanos, com uma ética e princípios sobre os quais ela mesma produz sua rede de significações. A realidade apresentada por pensadores do ocidente ao se confrontarem com sua própria auto-imagem filosófica creditam à essa realidade uma convenção de nomes e significados, que tudo que está fora da linguagem é por definição inconcebível e portanto, não poderia ser concebida como parte da realidade humana, sem ser apreendido e articulado pela linguagem. Nossa realidade uma vez não restrita somente a convenção da linguagem a extrapola no sentido de que enquanto potência vibrante atravessa primeiro nossa ancestralidade e nossos corpos.

No intuito de dar densidade e continuidade ao paradigma africano-centrado (Clarke, 1994) partimos da noção pan-africana de unidade de todo povo africano, continentais ou da diáspora. Seguindo os passos da união de nossos antepassados, da valorização dos nossos ancestrais e de resistência à colonização. No Caribe do início do séc. XX surge em Trinidad um dos primeiros africanos a pensar a unidade de todos os povos de África, a saber, o advogado Henry Silvester Williams fundador da Liga Pan-Africana e organizador da Primeira Conferência Pan-Africana, realizada na Prefeitura de Westminster, em Londres, em 1900. Numa época em que nossos antepassados eram nomeados como “índios ocidentais”, “homens de cor” ou “negros”, mas se viam em realidade como todos africanos trabalhando juntos, Williams demonstrou seu propósito em juntar todo o mundo africano (p.40, 2018). Alguns nos depois, será o Honorável Marcus Mosiah Garvey quem irá delinear a próxima etapa do pan-africanismo, se tornando um marco na teoria e na prática do século XX no que entendemos por unidade africana em todo o mundo. Ou seja, África para africanos!, Dizia Garvey, que os povos Negros do mundo deviam concentrar-se sobre o objetivo de construir para si uma grande nação em África. Desde que a América nos disse que seu sonho não nos contemplaria, ele nos imputava um novo caminho, um novo sonho, uma volta pra casa e um retorno a nossa cultura africana. O pensamento de Garvey influenciará diversos outros pan-africanistas pelo mundo, dentre eles está o primeiro Presidente de Gana - depois da independência do país em março de 1957 - Kwame Nkrumah, um dos mentores da atual União Africana e que defendia enquanto base de trabalho a efetivação de uma África livre e unida. Logo as idéias emancipacionistas ultrapassariam as fronteiras, de tal modo que nessa época é importante demarcar dois grandes autores que foram fundamentais para dar maior consistência ao pan-africanismo, aos estudos africanos além de denunciar e combater o racismo epistêmico, são eles, de um lado George James, um africano da Guiana, historiador e autor da obra Stolen Legacy publicada em 1954, onde ele demonstra como os gregos não foram os autores da “Filosofia Grega”, mas o povo da África do Norte comumente chamados “Egípcios”(keméticos).

Por outro, foi o físico, antropólogo, químico, lingüista, historiador e filósofo senegalês (1923-1986) diretor do laboratório de radio carbono do IFAN (Institut de l‟Afriquefondamental Noire) e sua perspectiva de unidade cultural Africana. Diop, publica em 1954, Nations Nègres et Culture: de l'Antiquité Nègre Égyptienne auxProblèmes Culturels de l'Afrique Noire d'aujourd'hui; em 1959, L'Unité Culturelle del'Afrique Noire. Sua ideia de África, assim como as de Silvester Williams, , Kwame Nkrumah ultrapassavam o significado de fronteiras intrasponíveis de continente e se centravam num paradigma cultural e político de união e de emancipação para todos os povos africanos. No início dos anos 70, cabe destacar outro grande impulso pela unidade africana com o termo reafricanização utilizado pelo grande Amílcar Cabral em seu discurso chamado "Libertação Nacional e Cultura", o qual ele definia como um processo de recuperação dos povos africanos colonizados os quais deveriam reconhecer e apreciar sua herança cultural com o objetivo de reagir a imposição de valores culturais eurocêntricos. Em 1974 Diop derrubou o racismo cientifico, ao provar à um grupo de estudiosos da UNESCO, num evento sobre egiptologia na cidade do que o“Egito antigo” era uma civilização preta, ou seja, Kemet. Nesse sentido, cabe enfatizar que Cheick Anta Diop é fundamental por diversas contribuições, principalmente, em três pontos centrais, a saber: o valor da ancestralidade, da matrilinearidade e a xenofilia (ou a capacidade de aceitar outras pessoas). Para o historiador John Henrick Clarke - que foi orientador de KwameNkrumah, quando o mesmo estudou nos EUA - a guerra contra um povo é antes tudo, “uma guerra contra a unidade mais delicada e mais importante da existência de um povo - a família. Isso exige que você reestruture a família toda de novo” (p.33, 2018). Tendo em vista que nossa maior contribuição ao mundo foi a própria civilização, Clarke ainda enfatiza que quando olhamos a família africana e a vida africana antes das invasões, a unidade mais importante é a dos ancestrais, a natureza e a estrutura familiar e comunitária. Portanto, cabe enfatizar segundo Kwame Nkrumah que

os críticos da unidade africana freqüentemente se referem às grandes diferenças de cultura, idioma e idéias em várias partes da África. Isso é verdade, mas o fato essencial é que somos todos africanos e temos um interesse comum na independência da África. As dificuldades apresentadas pelas questões de língua, cultura e diferentes sistemas políticos não são insuperáveis. Se a necessidade de união política é acordado por todos nós, então nasce a vontade de criá-lo; e onde há vontade há um caminho (NKRUMAH, 1961).

Desde que a violência que norteou o projeto colonial europeu se instaurou neste continente estivemos em um profundo estado de maafa que se arrasta e se articula com a idéia de necropolítica expressa no ensaio do filósofo camaronês Achille Mbembe que diz

propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de “mortos-vivos” (MBEMBE, 2006, p.146)

Alinhada a essa nossa unidade cultural mais importante que é a relação entre os ancestrais, a natureza, a estrutura familiar/comunitária partimos da perspectiva histórica que segundo o congolês Elikia M‟Bokolo contribui para

(re) atualizar as questões sobre o passado africano, quer se trate de aí procurar recursos face aos desafios renovados do nosso tempo ou de aí identificar fraturas, „desvios‟ ou mesmo „erros‟ e „enganos‟ que no futuro será necessário evitar, questões que se desenvolvem na própria África, esta África confrontada com a necessária recomposição das suas sociedades, mas também nos países da diáspora Africana” (BOKOLO, p.18).

A partir dos apontamentos fornecidos pelo historiador burquinense Joseph Ki-Zerbo, o fazer histórico africano como uma iniciativa científica possui sua própria perspectiva teórica, assim como, suas técnicas são outras, ou seja, os quatro grandes princípios norteadores desse tipo de pesquisa historiográfica seriam: a interdisciplinaridade; o ponto de vista especificamente africano; pensar a história dos povos africanos em seu conjunto além de evitar ser excessivamente factual. Por outro lado, uma importante problemática levantada por Ki-Zerbo está no manuseio das fontes, sem estabelecer a priori uma hierarquia rigorosa e conclusiva sobre as fontes, o autor destaca-se três fontes principais do conhecimento histórico que são apoiadas na antropologia e na lingüística, a saber: os documentos escritos, a arqueologia e a tradição oral. Esta última, para Joseph Ki-Zerbo é entendida como repositório e o vetor do capital de criações sócio-culturais acumuladas, um verdadeiro museu vivo, não apenas uma fonte que se aceita por falta de outra, mas uma fonte integral, cuja metodologia já se encontra bem estabelecida e que confere à história do continente africano e da diáspora uma notável autenticidade. Para o historiador, a história torna se uma disciplina sinfônica em que a conjunção singular das vozes se transformam de acordo com o assunto ou com os momentos da pesquisa para ajustar-se às exigências do discurso, e em que a palavra é dada simultaneamente a todos os ramos do conhecimento (KI-ZERBO, p.56, 2010).

Como bem enfatiza o historiador, apesar do papel eminente da África e Ásia terem sido substituídos durante quase dois milênios por “uma „lei‟ de desenvolvimento caracterizada pela exploração e pela sua redução ao papel de utensílio”(Ibdem), ambas foram “colocadas na periferia do mundo tecnicamente desenvolvido, estavam na vanguarda do progresso durante os primeiros 15.000 séculos da história do mundo”(Ibdem). A partir do momento em que dispomos de um paradigma epistemológico adequado à realidade histórica africana será possível perceber a África como “o cenário principal da emergência do homem como espécie soberana na terra, assim como do aparecimento de uma sociedade política” (Ibdem).

Desse modo, desde que Cheick Anta Diop por meio de uma análise comparativa entre os berços meridional e nórdico demonstrou a profunda unidade cultural africana, apesar da aparente e traiçoeira heterogeneidade, se revelou o que entendemos aqui como paradigma cultural africano, o qual se difere do modelo Ocidental no que se refere às noções de estado, realeza, moral, religião, arte, literatura, estética. Nós temos uma agenda emergencial para a nossa sobrevivência. que passa pela auto-nomeação e pela auto-definição, necessitamos ter noção de que certas pautas, não atendem as nossas necessidades, pelo contrário visa o extermino em massas do nosso povo, sabemos quais são nossas emergências, portanto, temos que buscar soluções para nossas questões dentro de um paradigma cultural que condiz com nossa realidade. Nós, africanos e africanas continentais e da diáspora sempre fomos parceiros e permaneceremos assim ao longo desse estado de maafa, sempre combatendo o racismo que permeia e ameaça a existência de nossas vidas e de toda a sociedade, esse é o primeiro passo para sobrevivência. Desse modo, temos que priorizar a identidade africana como um coletivo em direção a um único caminho, a libertação do povo africano das amarras neocoloniais e do eurocentrismo. A chave para lidar com esses problemas pode ser o empoderamento e a fortificação do nosso povo nos âmbitos intelectual, cultural, econômico, mental e espiritual garantindo nosso acesso aos direitos fundamentais para assegurar a dignidade humana e o estado democrático.

BIBLIOGRAFIA:

DUSSEL, Henrique D. Desintegración de la Crinstindad, Ed. Sígueme, Salamanca, Espanha, 1978. NKRUMAH, Kwame. Un líder y un Pueblo. Autobiografia. México-D.F: Fondo de Cultura Economica, 1962. ______. África debe unirse. Barcelona: Bellaterra, 2010. MBEMBE, Achille. Necropolítica.Revista Arte e Ensaios, ISSN: 2448-3338. Ano 2018 M’BOKOLO, Elikia, África negra: História e Civilizações. Tomo II (Do século XIX aos nossos dias) , trad. Manuel Resende, São Paulo: Casa das Áfricas, 2011.