PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação em História

Regiane Luzia Lopes

Capoeira é Liberdade! A Experiência Político-Cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora na Cidade de São Paulo (1976-2004)

São Paulo 2011 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação em História

Regiane Luzia Lopes

Capoeira é Liberdade! A Experiência Político-Cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora na Cidade de São Paulo (1976-2004)

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História Social, sob a orientação da Profª Drª Maria do Rosário da Cunha Peixoto.

São Paulo 2011

BANCA EXAMINADORA

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À memória de Mestre Maurício, que nos deixou na lembrança e na vida as marcas da ousadia, alegria e beleza de se jogar capoeira.

“ AGRADECIMENTOS”

“E aprendi que se depende sempre de tanta, muita, diferente gente, toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas. E é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá. E é tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho por mais que pense estar. É tão bonito quando a gente pisa firme nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos. E é tão bonito quando a gente vai à vida nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração. O coração!”

Caminhos do Coração. Gonzaguinha, 1982.

Ufa! Consegui! Depois de pouco mais de dois anos, cheguei a reta final dessa etapa da minha vida, que por vezes, julguei que não seria possível concluir. Embora o processo de pesquisa e principalmente de escrita, seja um caminho solitário, sempre tive a certeza de estar acompanhada por bons amigos. Esse momento é deveras especial para mim, o momento de compartilhar o mérito dessa empreita com todos que me ajudaram, me iluminaram, me inspiraram e torceram por mim. Gostaria de agradecer aos meus pais Eliezer José Lopes e Sebastiana Luzia Teixeira a quem devo a firmeza do meu caráter. Pelas orações constantes de minha mãe e pela ajuda de meu pai. Ao meu querido irmão Luis Fernando, de quem tenho o privilégio de ser amiga e a quem devo o apoio financeiro e humano, sem os quais não teria podido trilhar esse caminho. Obrigada! Ao meu amor Júlio de Souza, que me incentivou intensamente a continuar os estudos, garantiu financeiramente a minha permanência no mestrado e esteve comigo em todos os momentos. Obrigada pela tolerância, paciência e pelo carinho. Às minhas irmãs Angelica, Marta e ao meu irmão Aron pela torcida. À tia Lizete pelas orações e risos. À Cassilda, minha mãe emprestada pela força e à Silvana pelo apoio. À Dona Dirce e ao seu José pelo carinho. Agradeço carinhosamente à minha orientadora Profª Maria do Rosário da Cunha Peixoto por ter acreditado no meu projeto e ter me ensinado a importância da experiência dos sujeitos com quem estamos dialogando. Obrigada pela atenção, orientação e carinho. Agradeço à Comissão de Bolsas do Programa de História por ter selecionado meu projeto quando eu não tinha mais condições de me manter no curso. Ao CNPq por ter apoiado esse projeto, assegurando sua conclusão. À Viviane e Marcelo, que de longe e de perto participaram de todo o processo, incentivando, me ouvindo, lendo e revisando tudo o que escrevia. Sem vocês eu não teria chegado até aqui. Aos amigos que a PUC me deu: Marcelo, pela alegria e companherismo que fizeram da PUC um lugar muitas vezes divertido; Conceição, minha parceira e meus queridos Adriano, Luciano, Rafael e Felipe. Ao Junior, meu amigo na vida, obrigada! Aos amigos que da Unesp continuaram a me inspirar: meu preto Jason, o apaixonado Cristiano e o querido Zé. E aos que sempre torceram por mim: Cassilda, Mali, Bel, Cris, Lu e Hugo: vocês continuam no meu coração. Aos meus professores Sérgio Norte e José L.Beired. Às professoras que me ensinaram mais do que história e me inspiram a cotidianamente buscar ser uma profissional competente, generosa e humana, Célia Camargo e Elisabeth Viana. Obrigada! Às professoras que me acompanharam no mestrado e muito me ensinaram, Maria Antonieta Antonacci, Maria Odila e Vera L.Vieira. À paciência e dedicação da professora Estefânia Canguçu, obrigada! Aos profissionais que tive a honra de conhecer e aprender e me inspiram sempre: Elisabeth Gonçalves, Irene Gerassi e Alexandre Fernandes - LeLê. À Denise Amaral que por todos esses anos permitiu que a Fazendinha fosse um apoio seguro. Quero agradecer à direção e coordenação da E.E Prof. Dr. Ramos de Carvalho pelo apoio sem o qual tudo teria sido mais difícil. Aos meus colegas de trabalho pela compreensão e, principalmente, aos meus alunos que me lembram a todo o dia que preciso sempre aprender para melhor compartilhar com eles. Bom, meu carinho e agradecimento a quem deu vida a essa pesquisa: os narradores. À Mestre Eufraudísio e Magnólia um agradecimento sem fim por ter compartilhado conosco a experiência pessoal, familiar e da Associação com tanta consideração e generosidade. Obrigada! À Emerson pelo carinho e prontidão na entrevista, conversas e produção das ilustrações. À Rosana, Luciene, Michel, João, Sombra e Marcelo. Sem a disponibilidade e generosidade de vocês esse trabalho não teria sido possível. Obrigada! Aos outros narradores que nos bastidores colaboraram muito nesse trabalho: Doge, Lucas, Rogério e a todos os alunos e amigos da Corrente Libertadora, os de ontem, os de hoje e os de sempre. Agradeço a Marcos Veltri e Laura Carvalho por terem me cedido parte significativa das fontes aqui utilizadas e pelo apoio indispensável e à Ms. Moreira que em parceria com Ms. Maurício nos deu a música-título desta dissertação. À pessoa que inspirou esse trabalho, Mestre Tigrão. Trago comigo a absoluta certeza de que após ter me tornado sua aluna sou uma pessoa, uma profissional e uma cidadã imensamente melhor. À você devo tudo o que de melhor aprendi e ainda estou aprendendo sobre respeito, postura política, educação e generosidade. Esse trabalho é seu! E como grande educador que é, espero que considere os equívocos desse trabalho como passos do meu processo de aprendizagem. IÊ, VIVA MEU MESTRE! Sobretudo, quero agradecer a meu amigo mais íntimo, sem o qual não teria as condições materiais, a capacidade intelectual e a oportunidade de conhecer e conviver com tanta gente especial: a Deus que está comigo em todos os instantes. Hare Krishna!

RESUMO

A presente dissertação busca dar visibilidade a aspectos da experiência político-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora na cidade de São Paulo entre os anos de 1976 a 2004. Atuando, sobretudo, na periferia da cidade a partir da prática da capoeira, a Associação fez desta, um instrumento de articulação, mobilização e intervenção social junto a comunidade. Enfrentando cotidianamente as dificuldades financeiro-administrativas de uma Associação de cunho popular, os irmãos Modesto – Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio, Ms. Tigrão e Magnólia – vivenciaram as tensões e conflitos em torno da concepção e técnica da capoeira, mediante a urgência em responder ao movimento contínuo de novas demandas sociais. A participação junto aos Movimentos Populares nos anos 70 e 80 contribuiu para a construção do posicionamento político da Associação. Porém, a aproximação nas discussões, ações e lutas concernentes à garantia de direitos - principalmente no que tange o atendimento à crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social nos anos 90 - acirrou as diferenças internas, incorrendo em rompimentos e definição de novas diretrizes na Associação. Essa conjuntura ocasionou o fortalecimento da posição de Ms Tigrão e tornou o processo de aprendizagem da capoeira o cerne da atuação político-cultural da Associação. Concentramos nossas preocupações no processo de aprendizagem da capoeira como instrumento de formação do indivíduo e nos aspectos culturais e políticos que contribuíram para que a Associação escolhesse o caminho de parcerias com a Sociedade Civil Organizada e com o Poder Público enquanto estratégia de ampliação, acessibilidade e gratuidade de seu atendimento, tendo em vista contribuir para a construção da cidadania.

Palavras-chave: Capoeira, Inclusão Social, Cidadania, Cultura e Memória.

ABSTRACT

This statement intends to highlight the cultural-political experience of the ‘Associação Cultural Corrente Libertadora’ (Cultural Association: Liberation Movement) in the city of São Paulo, from 1976 to 2004. Being particularly involved with the practice of Capoeira in the city outskirts, this Association used it as an instrument for the articulation, mobilization and intervention in the social sphere of the community. While facing administrative and financial difficulties resulting from the popular appeal of this group, the brothers Modesto – Ms. Maurício, Ms. Eufradísio, Ms. Tigrão and Magnólia, experienced the pressure and conflicts related to the Capoeira concepts and techniques, aware of the need to respond to a continued movement of social demands. Participation in these popular movements in the 70’s and 80’s contributed to the development of a political positioning of this Association, but the closer contact from mutual talks, actions and struggles concerning the guarantee of rights, mainly as to the care of children and adolescents in personal and social risk situations in the 90’s, intensified the inner differences, which resulted in disruption and in redefinition of the rules and regulations of the Association. This context led to the strengthening of Ms.Tigrão and made the learning process of Capoeira the central point of the cultural-political performance of the Asssociation. We have focussed our attention on the learning process of Capoeira as a tool for character formation as well as on the cultural and political aspects which directed us towards building partnerships with the Organized Civil Society and the Public Sector as a strategy for expansion and accessibility to services that are free of charge - contributing to the formation of citizenship.

KEY WORDS: Capoeira, Social Inclusion, Citizenship, Culture and Memory.

SUMÁRIO

Apresentação...... 01

Capítulo I

“Da sombra da Barriguda aos Movimentos Populares”

1. Capoeira e Política no Processo de Formação da Associação Cultural Corrente Libertadora

...... 26

1.1.Trabalho e Cultura no Processo de Migração da Família Modesto...... 29

1.2.Cultura e Política na Prática de Capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora...... 50

1.3.O Processo de Reestruturação Administrativa e Pedagógica da Corrente Libertadora...... 75

Capítulo II

“Meu Aluno É Meu Mestre”

2. A Vivência de Capoeira de Mestre Tigrão...... 92

Capítulo III

“Da Roda de Capoeira à Roda de Negociações”

3. Projetos e Parcerias da Associação Cultural Corrente Libertadora...... 135

3.1. Das Parcerias com o Poder Público...... 140

3.2. Das Parcerias com a Sociedade Civil...... 156

4. Considerações Finais...... 185

5. Fontes...... 189

6. Referências Bibliográficas...... 191

APRESENTAÇÃO

“Um dia desses, comecei imaginar, que força é essa, que nos faz continuar. Parece que corre nas veias, não consigo explicar. Força que traz energia pra cantar e pra jogar. Que força é essa, que está no ar?É dança, é arte, é cultura popular. É a força da capoeira, essa arte milenar. Na roda da capoeira, na vibração do instrumento, o cantador com sua voz, faz ecoar o sentimento. Então que surge essa força, que acompanha o jogador, que está em cada um de nós, dentro do nosso interior. Que força é essa, que está no ar?É dança, é arte, é cultura popular. Força que vêm de uma luta, que é patrimônio cultural. É brincadeira que se dança e hoje é esporte nacional. Já foi arma para o negro conquistar a liberdade, pra hoje, nós capoeiristas jogarmos com felicidade.

Diógenes Argueles Francisco, 20091

1 Diógenes Argueles Francisco é aluno da Associação Cultural Corrente Libertadora desde 2004, atualmente na quinta graduação (das dezesseis que a Associação compreende). Atua como monitor de capoeira desde 2006, trabalha atualmente (2010) no Projeto São Paulo é Uma Escola, em parceria com a Secretaria Municipal da Educação da Cidade de São Paulo. 1

Quando me vi diante da responsabilidade de escrever essa apresentação entrei inesperadamente em um diálogo com as lembranças do processo inicial da pesquisa que agora aqui é apresentada. Estava muito preocupada em demonstrar o caminho metodológico que desenvolvi durante a pesquisa: as perspectivas históricas, as dificuldades teóricas e conceituais que encontrei, o diálogo com as fontes, as especificidades de trabalhar com a História Oral, etc. No entanto, ao participar de um evento promovido pela Secretaria Municipal da Cultura do Município em Agosto de 2010, me dei conta das razões pelas quais iniciei esse processo de pesquisa.

Na ocasião, fui convidada pelo Ms. Tigrão da Associação Cultural Corrente Libertadora para fazer uma palestra sobre a capoeira no século XIX, juntamente com outros palestrantes que discorreriam sobre a História do e sobre o Candomblé. O público presente no evento era majoritariamente de capoeiristas jovens – crianças e adolescentes – da periferia de Santo Amaro (distritos de Capela do Socorro e Parelheiros, distritos de Cidade Ademar e Jd. Ângela, entre outros).

Como expectadora ouvi os demais palestrantes e interagi nas atividades propostas. No decorrer das atividades o aluno da Associação Cultural Corrente Libertadora, Diógenes A. Francisco cantou a ladainha Força citada em nossa epígrafe e respondendo ao refrão que força é essa que está no ar?É arte, é dança, é cultura popular, pude por um momento ver personificado o meu objeto de estudo.

O objeto de estudo, entretanto, não era um objeto. Eram pessoas, sujeitos históricos que vivenciam cotidianamente a prática da capoeira e que através e pela prática desta desenvolvem trabalhos dentro de uma perspectiva pedagógica pautada na acolhida, respeito e construção conjunta do conhecimento.

O monitor Diógenes A. Francisco personifica essa proposta pedagógica desenvolvida por Ms Tigrão, bem como o trabalho de intervenção sócio-cultural que a Associação Cultural Corrente Libertadora empreende há mais de trinta anos na Zona Sul da cidade de São Paulo, que na pesquisa que segue busco apresentar e analisar, propondo uma reflexão sobre essa experiência na cidade.

A apresentação de Diógenes é significativa para a pesquisa desenvolvida porque, de certa forma, personifica aspectos da proposta pedagógica da Associação. O aluno em questão

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é um multiplicador e/ou monitor de capoeira. Dentro do trabalho desenvolvido pela Corrente Libertadora, isso significa que ele ministra oficinas de capoeira, embora não tenha uma graduação de instrutor, professor ou contra-mestre, como é comumente aceito no mundo da capoeiragem e/ou definido pela Federação Paulista de Capoeira.

Outro aspecto relevante é que o aluno comanda a roda de capoeira puxando (cantando) sua própria composição, ladainha, sem a necessidade que o Ms. Tigrão, mestre representante da Associação Cultural Corrente Libertadora, intervenha. A atuação de Diógenes no Projeto São Paulo é Uma Escola indica o processo de profissionalização do aluno e, por outro lado, a garantia de gratuidade para as crianças e adolescentes atendidas pelo projeto, visto que o projeto é subsidiado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

Esses três pontos fazem parte de uma perspectiva pedagógica mais ampla, mas que nos ajuda a compartilhar aqui, as razões que motivaram o desenvolvimento dessa dissertação. Estamos pontuando os aspectos pedagógicos, pois foram eles que motivaram e nortearam a pesquisa no primeiro momento.

No contato com a Corrente Libertadora por 15 anos, sempre nos chamou a atenção o fato de se aprender a jogar capoeira, tocar os instrumentos musicais – berimbau, pandeiro, atabaque e agogô -, dançar maculelê, de roda e ainda se envolver em outras atividades de formação, sem obedecer necessariamente a uma sistematização de aula e treino, como comumente ocorre na maioria das academias e grupos de capoeira.

Outro aspecto que nos chamava a atenção era a convivência entre alunos e entre alunos e mestre. Nesses anos, participando de aula no mesmo espaço e ao mesmo tempo com meninos e meninas em situação de rua, portadores de necessidades especiais – principalmente auditivos e mentais – alunos de faixa etária diversificada (de crianças de 6 anos a senhores e senhoras com mais de 70 anos), jovens em conflito com a lei, jovens estudantes, profissionais liberais, enfim, muitas pessoas e portanto, uma gama infinita de possibilidades de estabelecer relações afetivas, culturais e profissionais, presenciamos uma convivência pautada na inclusão e respeito à pluralidade.

Esses aspectos do trabalho desenvolvido pela Associação Cultural Corrente Libertadora vão de encontro com a imagem do jovem Diógenes tocando seu berimbau e

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cantando sua ladainha em um espaço público da região: o Paço Cultural Júlio Guerra, popularmente conhecido como Casa Amarela, cravada no coração do Largo 13 de Maio.

A imagem do aluno que ensina e o mestre que aprende em um movimento de circularidade de saberes que com a prática da capoeira pode se transformar em conhecimento e possibilitar que jovens alunos como Diógenes possam atuar profissionalmente como educadores sociais é, provavelmente, um dos elementos mais particulares da proposta da Associação.

O Mestre de capoeira é um mediador. Compartilhar, talvez seja a palavra mais adequada para caracterizar o mecanismo de acolhimento e aprendizado que ocorre nessa relação de aprendizagem, que não nos parece unilateral – mestre, aluno –, mas que se vivencia em um diálogo constante e contínuo entre quem ensina e quem aprende.

Não obstante, o fato de tratar-se de um diálogo intrínseco à prática cotidiana da capoeira, acaba por configurar-se em uma proposta pedagógica aberta, passível de transformações, de alterações, mediante as novas demandas, novas perguntas, inquietações, interesses e necessidades dos alunos. Nesse processo todos aprendem, por que não se está preso a um ideal de tradição ou modelo pedagógico, mas antes, à realidade cultural e social dos indivíduos envolvidos na prática da capoeira.

Como se desenvolve esse processo de aprendizagem foi o que nos motivou a pesquisar a experiência de capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora e foi através desse desejo que chegamos ao processo seletivo da Pós-Graduação em História da PUC-SP, com o apoio da profª Drª Maria do Rosário da Cunha Peixoto.

O projeto inicial, intitulado Capoeira, Pedagogia da Inclusão, surgiu com muita clareza porque pareceu-nos ser o elemento que particularizava a capoeira praticada pela Corrente Libertadora.

Entretanto, a pesquisa ampliou essa percepção inicial através de temas que se entrecruzavam e que pormenorizavam características da experiência da Associação, que no primeiro momento não ponderamos como eixos temáticos, principalmente por chamar atenção o aspecto pedagógico. Dessa forma, o título da pesquisa ganhou substantividade ao denominar-se definitivamente como Capoeira é Liberdade! – A Experiência Político- Cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora em São Paulo (1976-2004).

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A alteração da primeira parte do título, Capoeira é Liberdade! é o resultado em parte de preocupações conceituais observadas pela banca de qualificação e, por outro lado, revela o interesse em evidenciar o sentido de luta por transformações sociais através da cultura, o que nos remete à trajetória política da Associação. Utilizamos três versos da música Capoeira é Liberdade (Ms. Maurício e Ms. Moreira, 1981) como epígrafes dos capítulos com a pretensão de deixar registrados esses significados e como uma modesta homenagem ao precursor da Corrente Libertadora, Mestre Maurício.

Estarmos no curso de pós-graduação estudando um tema, uma experiência da qual, em muitos momentos, fomos sujeitos, protagonistas, foi e ainda é complexa, porque o nosso olhar está embebecido da prática. No entanto, esse conhecer através da prática também possibilitou ao longo da pesquisa desconstruir, discutir e reafirmar aspectos dessa experiência.

Nossa preocupação premente era de não nos distanciarmos demasiadamente do objeto tornando-o abstrato e, concomitantemente, não incorrer em um trabalho tendencioso e parcial. Entretanto, a escolha do tema por si só já era parcial e foi uma escolha política, obviamente permeada por muita afetividade, mas comprometida com o interesse de fazer uma reflexão histórica sobre aquela prática e colaborar para a visibilidade dessa experiência popular.

Acreditamos que o aspecto parcial que a pesquisa poderia ter assumido foi minimizado pelo próprio fazer histórico: a pesquisa, as fontes, as leituras, a orientação e a reflexão foram fundamentais nesse processo, não apenas assegurando os princípios metodológicos do trabalho, mas permitindo realizar com coerência a escolha do que queria se apresentar na dissertação.

Desde o início percebemos que nossa fonte primária seria as entrevistas com os fundadores, alunos e colaboradores da Corrente Libertadora.2 Tomar os depoimentos orais como fonte primária e a experiência político-cultural da Associação como tema central da pesquisa ia de encontro com as preocupações e produções de pesquisadores de parte significativa do corpo docente do programa de Pós-Graduação em História da PUC e, paralelamente, contemplava o objetivo de pesquisar em diálogo com os protagonistas diretos dessa experiência.

2 Essa constatação se deu considerando as particularidades de se pesquisar na perspectiva da História do Presente, na ausência de um arquivo da Associação Cultural Corrente Libertadora e a acessibilidade aos possíveis entrevistados. 5

Perseguindo o desejo de dialogar com os sujeitos de nossa pesquisa e ao mesmo tempo marcar a presença do historiador no processo de análise, problematização e considerações, os trabalhos de Alessandro Portelli nos foram fundamentais3. O respeito, as especificidades, a ética, a subjetividade e a historicidade inerentes à produção das fontes orais são elementos, aos quais, o pesquisador deve sempre estar atento. Estamos certos de que o caminho de aprendizagem nesse campo ainda é longo para nós, mas acreditamos que para esse primeiro exercício nosso objetivo foi alcançado.

O contato com as fontes nos fizeram perceber que a proposta pedagógica desenvolvida por Ms. Tigrão que tanto nos interessava estava alicerçada em uma vivência política e cultural da Associação desde sua fundação em 1976. Pensando nisso, o recorte temporal inicialmente delimitado em 1989-2008 recuou para 1976-2004.

A alteração no recorte temporal se deu no próprio processo de construção da dissertação e responde a necessidade de compreendermos o movimento de construção da perspectiva de trabalho político-cultural da Corrente Libertadora.

Com o caminhar da pesquisa pudemos ter clareza que o recorte temporal inicial estava carregado de afetividade, visto que, como acima mencionamos, participamos desse processo como sujeitos ativos, quer dizer, como aluna que vivenciou na prática da capoeira o desenvolvimento da pedagogia proposta.

A Associação Cultural Corrente Libertadora fundada em 1976,4 na Vila São José, Distrito de Capela do Socorro, permaneceu com sua Sede nesse bairro da periferia de Santo Amaro até 1988, ano em que num domingo frio assistimos pela primeira vez uma apresentação de capoeira da Corrente Libertadora.

Entretanto, a prática da capoeira aconteceu mais tarde e de maneira inusitada no início dos anos noventa, quando reencontrei Mestre Tigrão ministrando aulas de capoeira na Casa de Cultura de Santo Amaro.

3 Ver: Referências Bibliográficas, p. 195. 4 Apesar da formação do Grupo de Capoeira Corrente Libertadora ter se dado por volta de 1974-75, metodologicamente tomamos o ano de 1976 como ano de fundação por tratar-se do momento em que os irmãos Maurício, Eufraudísio, Eufrásio e Magnólia gestaram a transformação do grupo em Associação de Capoeira Corrente Libertadora e depois definitivamente em Associação Cultural Corrente Libertadora e, juntos, coordenaram as atividades da Associação. 6

Ali comecei de fato a treinar e na minha detraída percepção nada indicava que se tratava de um trabalho diferenciado. Somente alguns meses depois, estreitaram definitivamente meus laços de respeito, camaradagem e trabalho com a Corrente Libertadora.

Convidada por Ms. Tigrão para participar de uma apresentação de capoeira em um domingo chuvoso e triste do ano de 1994, tive a experiência que me ligaria afetivamente à Associação. Naquela tarde, fomos a uma casa de recuperação para dependentes químicos, onde um adolescente integrante do grupo estava em tratamento.

Jogamos capoeira, os internos brincaram capoeira conosco, dançamos e cantamos com samba de roda, mas a figura mítica do mestre que comandava a roda não estava presente: o mestre era ali mais um que compartilhava a alegria daquele momento. Distanciada a alguns anos desse acontecimento pude recuperar as sensações e a importância dessa memória para minha vida pessoal e profissional.

O vínculo com a capoeira e com a Associação Cultural Corrente Libertadora se deu de maneira natural, quase imperceptível na prática cotidiana dos treinos e encontros culturais. Quase não atentei para o fato de que, à medida que aprendia, também ensinava e quando ensinava também aprendia. Só tive a consciência exata dessa condição quando em função da capoeira fui convidada a ministrar aulas de capoeira em um projeto sócio-cultural subsidiado pela extinta Secretaria do Menor, o Projeto Circo Escola.

Distanciada no tempo entre a minha atuação na Corrente Libertadora e a decisão em cursar o mestrado em História Social, a capoeira se colocou como proposta de projeto de pesquisa; entretanto, mais do que a capoeira enquanto manifestação cultural, a experiência de capoeira da Corrente Libertadora na cidade de São Paulo me pareceu irresistível mediante a observação de algumas características específicas da Associação: sua fundação pautada em elementos da organização familiar e comunitária, a relação estreita com os movimentos populares da década de 1970, a atuação político-cultural na periferia da cidade e o desenvolvimento de uma proposta de ensino de capoeira tendo em vista a inclusão de grupos sociais comumente excluídos desta, por questões sociais, limitações físicas e psicológicas.

Assim, a vida acadêmica se fez uma extensão da roda de capoeira: um jogo apertado, um diálogo constante, um prazer ressabiado, uma malícia no corpo. Tomar a capoeira praticada pela Associação Cultural Corrente Libertadora como instrumento de intervenção

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social, exigiu escolhas metodológicas e políticas, inclusive, recuar no recorte temporal e definir eixos temáticos que possibilitassem um olhar não apenas sobre a capoeira, mas sobre as estratégias desenvolvidas pela Associação para a continuidade de seu trabalho.

Esse deslocamento de preocupações – da proposta pedagógica para a atuação político- cultural da Associação – é fundamental para entendermos a disposição e construção dos capítulos da dissertação que aqui são apresentados. A dissertação não é, pois, um estudo ontológico ou etnográfico sobre a capoeira. Não faz parte do nosso campo de discussão nesse trabalho a origem da capoeira, uma definição de capoeira, uma descrição dos estilos de capoeira, etc. Esses temas permeiam nossa reflexão a partir da experiência da Associação na cidade de São Paulo como questões que colaboram para a problematização e a compreensão dessa experiência, não como objeto de estudo ou eixos temáticos.

Nossa preocupação com a capoeira nesse trabalho, diz respeito a forma como ela foi apropriada pela Associação Cultural Corrente Libertadora como instrumento de intervenção social. Mais do que um olhar antropológico sobre a capoeira, nossa intenção foi a de trazer à cena as possibilidades políticas que a capoeira propicia através de sua linguagem plural, que agrega musicalidade, destreza de luta, performance e tradição oral.

Nossa atenção com a formação política e cultural dos fundadores da Associação, com a prática pedagógica para o ensino da capoeira e as estratégias da atuação e manutenção da Associação, se colocaram no diálogo com as fontes e no caminho metodológico que tentamos trilhar.

Pressupomos para isso, quatro esferas de estudo e análise integrada: bibliografia especializada para sustentação teórica e histórica sobre a capoeira e sobre o período estudado (1976-2004); análise dos documentos institucionais relacionados aos projetos desenvolvidos pela Associação Cultural Corrente Libertadora em parceria com as Secretarias do Estado e do Município de São Paulo: Esporte e Lazer, Cultura, Saúde e Assistência social; entrevistas com os fundadores, colaboradores e alunos da Associação e experiência prática da capoeira, em uma vivência junto ao núcleo de capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora.

O limite de tempo e os percalços do processo de pesquisa delimitou o número de entrevistas realizadas, ao todo 10, entre os fundadores da Associação – Mestre Eufraudísio, Mestre Tigrão e Magnólia, alunos iniciantes, formados e afastados da capoeira. Com exceção

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de Mestre Tigrão com o qual realizamos duas conversas (entrevistas), os demais concentraram-se em uma entrevista.

Buscamos construir um roteiro de perguntas para as entrevistas, mas o diálogo com os entrevistados mostrou que muitos temas surgem inusitadamente e que por mais que tentemos roterizar, os sujeitos narram o que de fato foi significativo para eles. Portanto, nesse movimento, o roteiro se fez presente e importante, mas cuidamos para que o entrevistado tivesse autonomia para registrar o que lhe era relevante e que não fora perguntado.

Ao passo que a pesquisa ia se concretizando, percebemos que era necessário recuperarmos o período de formação da Associação nos anos 70 para incorporarmos na reflexão a formação político-cultural de seus fundadores. Da análise e diálogo com as narrativas nos deparamos com os temas que poderiam estabelecer uma dimensão de problematição e reflexão.

Nesse sentido, acabamos por identificar dois períodos distintos, porém, interligados através do fazer cultural da capoeira e político da Associação: um primeiro período de 1976- 1988 e o segundo período de 1989-2004 .

No primeiro período (1976-1988), os quatro irmãos – Maurício, Eufraudísio, Tigrão e Magnólia – constroem conjuntamente um conhecimento acerca da capoeira e das manifestações culturais que com ela dialogam e no qual cada um dos irmãos contribui para esse conhecimento mediante seus referênciais culturais e políticos anteriores. Entretanto, é marcante a liderança de Ms. Maurício no que tange a prática da capoeira5 e a influência de Ms. Eufraudísio no posicionamento político assumido pela Associação no sentido de participação nas lutas populares e a afirmação da capoeira como cultura popular.

O segundo período (1989-2004) configura-se no movimento paulatino de afastamento dos irmãos. O ano de 1989 tornou-se para a pesquisa, um referencial: significou que a partir desse ano, a coordenação do núcleo de capoeira, bem como a administração e a responsabilidade de viabilizar novas estratégias de trabalho estava concentrado na pessoa de Ms. Tigrão, embora este, contasse com o apoio dos irmãos Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio e Magnólia.

5Foi através de Mestre Maurício que Eufrásio Modesto (Ms. Tigrão), Magnólia e Eufraudísio (Ms. Eufraudísio), aprenderam e aprimoraram o jogo de capoeira. 9

A partir dessa reestruturação da Associação e respondendo as demandas sociais e culturais de seus alunos, Ms. Tigrão deu início à construção da proposta pedagógica rompendo com práticas pedagógicas anteriores e redefinindo metas e estratégias de ação adotadas pela Associação no período anterior.

Mediante as especificidades desses períodos, portanto, das transformações que ocorreram no seu fazer cultural e não obstante, a permanência reiterada do compromisso político-cultural da Associação para com os grupos sociais economicamente marginalizados, pudemos dar corpo e vida aos nossos capítulos.

Assim, pensando na complexidade das relações sociais dessa família migrante que através da capoeira passou a intervir ativamente nas lutas políticas na cidade de São Paulo e da relevância desses aspectos para a definição das particularidades da capoeira proposta pela Associação é que o recuo temporal se fez necessário e se desdobrou no primeiro capítulo dessa dissertação, intitulado I. Da Sombra da Barriguda aos Movimentos Populares: Capoeira e Política no Processo de Formação da Associação Cultural Corrente Libertadora (1976-1988).

Para a construção desse capítulo utilizamos como fonte primária as entrevistas de três dos quatro irmãos que compartilharam essa experiência de fundação e estruturação da Associação Cultural Corrente Libertadora: Ms. Eufraudísio, Ms. Tigrão e Magnólia. Ms. Maurício, responsável por trazer para o cotidiano dos irmãos a capoeira e por ter fundado o grupo por volta de 1975, faleceu em 2005 deixando apenas um pequeno depoimento no documentário Quilombo da Memória de 1993,6 utilizado aqui como fonte.

Nossa preocupação nesse primeiro capítulo foi dar visibilidade às especificidades da prática de capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora, recorrendo à reelaboração dos referenciais culturais e da tradição familiar dos protagonistas dessa experiência a partir das implicações sociais desencadeadas pela condição migrante.

Também discutimos a reestruturação da Associação entre os anos de 1989-1994, período que identificamos como sendo uma transição na experiência da Corrente Libertadora: diretrizes, parcerias, estratégias, tendo em vista as implicações da gestão da mesma, centrada

6 QUILOMBO da Memória. Direção de Saloma Salomão. São Paulo: Fantasma Vídeo, 1993. 10

na figura de Ms. Tigrão, diferentemente do período anterior, quando a gestão era compartilhada entre os quatro irmãos.

Nesse sentido, buscamos compreender a fundação da Associação como uma estratégia desenvolvida por esses protagonistas em resposta à condição social a qual estavam submetidos: precariedade estrutural de serviços públicos, violação de direitos civis, sociais e políticos e marginalização do seu fazer cultural.

Migrantes do Sul da Bahia, da pequena cidade de Ibicaraí, nordeste brasileiro, a família Modesto chegou a São Paulo no início da década de 1970 e se estabeleceu na periferia de Santo Amaro. Uma família de oito irmãos comandados pela matriarca Elvina Araújo Modesto, que na periferia da cidade de São Paulo teve que enfrentar as dificuldades econômicas, sociais e culturais para se ver inserida no mundo do trabalho e construir uma história de sobrevivência digna.7

A trajetória da Associação iniciou-se em 1974, com o filho mais novo da família Modesto: José Maurício Neto - mais tarde Mestre Maurício - que se envolveu com a capoeira, transitando em grupos da região e frequentando as rodas de capoeira da cidade. Em 1976, Ms. Maurício, então, convenceu três de seus irmãos – Eufraudísio Modesto filho, Magnólia Mª Alves e Eufrásio Modesto Alves – não apenas a praticar capoeira, mas a coordenar junto com ele o grupo.

Durante esse período, as atividades da Associação estavam estreitamente ligadas aos Movimentos Populares da região e da cidade de São Paulo como um todo. A partir de 1977 estreitou relações com o Movimento de Moradia Unificado e marcou sua participação nos movimentos grevistas do período.

Essas ações se construíram na articulação entre forças da Igreja Católica, das Comissões de Greve e da Cultura Popular, nesse caso, da capoeira. Essa atuação político- cultural aproximou a Corrente Libertadora de lideranças locais que organizaram o núcleo regional do que viria a ser o Partido dos Trabalhadores (PT), tendo na sede provisória da Associação um dos primeiros espaços de encontros para discussões e organização do partido na região.8

7 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho- Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 8 Documento: Histórico e Atuação da Associação Cultural Corrente Libertadora, s/d. 11

A capoeira utilizada como elemento de mobilização social e política nesses Movimentos, certamente conviveu com tensões na relação entre cultura e política, mas em contrapartida, desencadeou a construção de perspectivas culturais, pedagógicas, políticas e sociais que influenciaram na formação dos fundadores da Corrente Libertadora e nortearam as diretrizes dos trabalhos por eles desenvolvidos, temas discutidos nesse capítulo.

Entendemos, pois, que a cidade de São Paulo nessa experiência se faz como o campo que possibilita vir à tona o conflito, não obstante, como o espaço que viabiliza a construção de redes de comunicação e articulação entre diferentes grupos sociais para a definição de metas e estratégias de participação política no espaço urbano, através de uma teia tensa de relações em constante diálogo, disputa e negociação entre os sujeitos envolvidos nessas ações reivindicatórias e contestatórias, bem como na relação com o Poder Público.

A capoeira enquanto manifestação cultural assumiu na atuação da Associação Cultural Corrente Libertadora de seus fundadores um caráter profundamente político, à medida que agregou a essa manifestação cultural elementos de resistência e de luta por garantia de direitos. Ela está intimamente relacionada com o universo dos seus fundadores, com as preocupações culturais e sociais que permeiam sua prática e com o público que pretende atender. O lugar político em que a Associação se posicionou é que nos faz compreender a capoeira por eles praticada como cultura popular.

Não nos remetemos aqui a uma concepção carregada de unilateralidade estática e de autenticidade inalterada de cultura popular, concernente a uma idealizada classe trabalhadora ou a grupos sociais marginalizados, mas ponderamos apoiados às reflexões de Stuart Hall de que

O termo popular guarda relações muito complexas com o termo classe... Os termos classe e popular estão profundamente relacionados entre si, mas não são absolutamente intercambiáveis. A razão disso é evidente. Não existem culturas inteiramente isoladas e paradigmaticamente fixadas, numa relação de determinismo histórico... As culturas de classe tendem a se entrecruzar e a se sobrepor num mesmo campo de luta. O termo popular indica esse relacionamento um tanto deslocado entre cultura e as classes. Mas precisamente, refere-se à aliança de classes e forças que constituem as classes populares. A cultura dos oprimidos, das classes excluídas: esta é a área à qual o termo popular nos remete... 9

9 HALL, Stuart. Da Diáspora Africana: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p.245. 12

Isso posto, trabalhamos nessa perspectiva de cultura popular para melhor compreendermos a experiência da Associação nos dois períodos que anteriormente distinguimos e que optamos metodologicamente em termos como referência temporal 10 para análise.

O olhar sobre a experiência da Associação no período de 1989-1994 nos permitiu identificar pontos de tensão e conflito gerados pelo posicionamento pedagógico e político assumidos por Ms. Tigrão a partir de então. Por outro lado, apontou para permanências no modo de pensar e se colocar politicamente no espaço público através da capoeira.

A análise do processo pelo qual essas questões se deram e o que a experiência dos sujeitos históricos envolvidos nessa trajetória nos diz sobre as práticas culturais e políticas de grupos populares formaram o núcleo central da problematização dessa dissertação. Norteados por essas preocupações desenvolvemos o eixo temático do capítulo II . Meu Aluno é Meu Mestre – A Vivência de Capoeira de Mestre Tigrão.

Entendemos que o desenvolvimento da proposta pedagógica de capoeira criada por Ms. Tigrão e assumida pela Associação Cultural Corrente Libertadora a partir de 1989 tornou-se o cerne de suas atividades sócio-culturais e está intimamente relacionado com a experiência anterior da Associação.

Além disso, marca a transformação de estratégias de intervenção social, bem como com a concepção de capoeira. A partir do trabalho de Ms. Tigrão, a capoeira não é mais o instrumento de mobilização social, mas o próprio instrumento de transformação social através da proposta pedagógica vivenciada, tendo em vista colaborar para a integração, inclusão social e colaboração positiva na formação da cidadania de seus alunos e colaboradores.

Nesse capítulo, trabalhamos com as narrativas de Ms. Tigrão, Ms. Eufraudísio e de alunos em diálogo com os documentos institucionais da Associação – projetos, relatórios, histórico social. Esse entrecruzar de fontes foi fundamental para compreendermos o processo de construção da proposta pedagógica e de como ela se desdobrava em ações; os significados elaborados pelos alunos que experimentaram essa proposta no cotidiano e os embates em torno da concepção e técnica acerca da capoeira.

10 O recorte temporal funcionou para nós como um referencial, no sentido de colaborar na organização e coerência da análise, entretanto, trabalhamos em um movimento de ir e vir, através das inquietações que as fontes propunham e da necessidade de análise e compreensão do processo histórico em questão. 13

A proposta pedagógica está centrada, na nossa percepção, em duas premissas: a acolhida e a musicalidade. A partir dessas duas premissas, os elementos e os traços da tradição da capoeira foram adaptados, reelaborados ou abandonados pela prática do Ms. Tigrão.

O que estamos chamando de acolhida refere-se à forma como os alunos em qualquer situação social são recebidos, acompanhados e encaminhados no processo de aprendizagem da capoeira.

A acolhida pressupõe a individualidade e as necessidades particulares de cada aluno, no entanto, diferentemente do que podemos supor como um mecanismo sistematizado e passível de estigmas sociais, essa acolhida se dá de forma subjetiva e através de estratégias pedagógicas da capoeira que privilegiam o coletivo.

Esse processo de acolhida está intimamente relacionado com a musicalidade inerente à capoeira, que permite trabalhar as sensibilidades individuais, o ritmo, a lateralidade, o movimento através da dança da capoeira. A musicalidade da capoeira personificada nos instrumentos percussivos que comandam a roda de capoeira, a começar pelos – gunga, médio e viola -, seguido pelo atabaque, pandeiro e agogô, é o que a diferencia de outras lutas e artes marciais.

A capoeira embora não possa ser considerada uma arte marcial, visto que essa conceituação considera apenas tipos de lutas empreendidas em guerras,11 apropriou-se de golpes de lutas marciais como o Karatê e o Jiu- Jitsu, adaptando-os em sua variante de Capoeira Regional. Não obstante, a capoeira é uma luta. Uma luta de combate indireto que compreende movimentos de ataque, defesa e esquiva. Esses movimentos corporais estão presentes em todo jogo de capoeira e, reafirmamos tratar-se de golpes, pois a sua utilização está inserida em uma lógica estratégica de combate.

O aspecto de combate remonta à historicidade da capoeira como meio de luta e resistência de escravos e afros-descendentes, mas que na contemporaneidade, responde a outras demandas sociais, culturais e políticas, tornando-se instrumento de intervenção em vários campos da sociedade civil: a educação, o esporte e a cultura.

11 Tendo em vista a participação de vários na Guerra do Paraguai (1864-1870) e a utilização da capoeira nos combate na Guerra, nos quilombos, fazendas e centros urbanos no Brasil Império (1822-1889), acreditamos que há a possibilidade em se conceber a capoeira como arte marcial, entretanto, isso exigiria uma pesquisa que extrapola os objetivos e os limites dessa dissertação. 14

Dessa forma, essa reflexão nos levou a considerar que o problema conceitual não está na noção de golpes, mas em associá-lo ou não às artes marciais. Nessa dissertação optamos, então, em considerar a capoeira como cultura popular como anteriormente mencionamos, mas sem ignorar sua dimensão de luta. Luta de combate indireto, mediado pela musicalidade.

Na proposta de Ms. Tigrão, com objetivo de incluir e não de diferenciar hierarquizando, deu-se ênfase à musicalidade, deslocando a função de luta dos golpes para a dança, priorizando os componentes rítmicos que a capoeira possibilita.

Nesse sentido, ganha visibilidade a capoeira como performance do corpo: o corpo que toca instrumentos, que canta, que forma a roda, que bate palma, que tem marcas, que traz uma vestimenta que o particulariza, que se expressa através de movimentos e improvisações. Enfim, o corpo que joga capoeira.

É relevante pontuar esse aspecto que buscamos problematizar no capítulo em questão, pois, capoeira concebida como luta no âmbito do esporte prevê a competitividade, a formação do atleta, baseando-se na força, flexibilidade, habilidade, destreza do atleta em busca de resultados positivos que inevitavelmente distinguem o melhor do pior atleta.

Essa concepção vai na contracorrente da postura da Corrente Libertadora, pois impediria a inclusão das pessoas que a Associação busca atender: de diversas faixas-etárias em situação de risco social, situação de rua, conflito com a lei, portadores de necessidades especiais, dependentes químicos ou simplesmente moradores da periferia da cidade. O objetivo, portanto, não é a formação de atletas, mas a promoção da cidadania.

Compreendemos que, no jogo de capoeira desenvolvido pela Corrente Libertadora a partir de então (1989) os elementos e procedimentos considerados tradicionais pela capoeiragem no Brasil foram reelaborados e reapropriados por Ms. Tigrão.

Os elementos da capoeira que passaram pelo processo de reelaboração na proposta de Ms. Tigrão tais como: a mudança do posicionamento da ginga da postura de ataque para postura de defesa; a dinâmica de jogo baseada no acompanhamento de golpes e não no contra- ataque; a utilização de várias rodas de capoeira circundesenhadas no chão; a aprendizagem de 11 golpes básicos antes de jogar na roda de capoeira; a redefinição dos critérios de avaliação de graduações; a formação do monitor e/ou multiplicador como um agente social; a ausência de sistematização regular de aula e a flexibilização dos papéis sociais da capoeira, tendo o

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Mestre como um mediador que compartilha com os alunos a aprendizagem da capoeira, traz a dimensão de uma construção de conhecimento circular (ensinando-aprendendo-ensinando) e aberta, está pois, baseada no diálogo com o outro, que é sempre diferente.

No entanto, assumir esse posicionamento, bem como defender essas transformações na prática da capoeira implica em lidar com os conflitos suscitados: descaracterização da capoeira? Negação da tradição? Favorecimento dos aspectos sociais em detrimento dos culturais?

Na tentativa de observar e analisar esses conflitos vivenciados pela Corrente Libertadora fomos convidados a debruçar sobre nosso objeto de pesquisa, o olhar político a que nos intima em sua obra Paisagens Imaginárias.12 O sentido de resistência cultural, atribuindo à capoeira um caráter político, nos levou ao universo cotidiano e urbano no qual essas experiências políticas se deram.

As demandas sociais imposta por esse viver urbano exigiu da Corrente Libertadora a disposição em refazer-se continuamente, buscando nas brechas do cotidiano e do fazer político-cultural, as estratégias para o encontro da capoeira com o aluno, o capoeirista, o cidadão.

Assim, reconhecendo a proposição de alterações e reelaborações na prática da capoeira desenvolvidada pela Corrente Libertadora como estratégias de intervenção social, chegamos ao capítulo III. Da Roda de Capoeira à Roda de Negociações: Projetos e Parcerias da ACCL.

Nesse capítulo, buscamos entender os processos de construção de parcerias entre a Associação Cultural Corrente Libertadora com a sociedade civil organizada e com o Poder Público.

A identificação dessas parcerias como um possível capítulo ocorreu durante a pesquisa, visto que a temática permeava as fontes institucionais – projetos desenvolvidos pela Associação Cultural Corrente Libertadora em parceria com as Secretarias do Estado e do Município de São Paulo: Esporte e Lazer, Cultura, Saúde e Assistência Social –, documentos administrativos da Associação, assim como, entrecortavam as narrativas dos entrevistados.

12 SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias.São Paulo: Edusp, 2005. 16

Trabalhar em parceria era uma condição que estava posta para a Associação desde sua atuação junto aos Movimentos Populares da cidade na segunda metade dos anos 70, mas o processo de redemocratização do país e a nova conjuntura social, política e econômica nos anos 90 exigiu da Associação o desenvolvimento de novas estratégias de intervenção social. Nesse período em que os Movimentos Populares se reconfiguravam, formando o que se popularizou como Terceiro Setor, a lógica e as metas para o estabelecimento de parcerias se transformaram.

Para o desenvolvimento desse capítulo tivemos em nosso horizonte histórico os desdobramentos da elaboração e a aprovação da Carta Constitucional de 1988, O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA de 1990, a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS de 1993, que são de certa maneira conquistas das lutas sociais e políticas da sociedade civil desde a segunda metade dos anos 70.

A Associação Cultural Corrente Libertadora a partir de 1989 vislumbrou nessas parcerias a possibilidade de manutenção e ampliação de suas atividades sócio-culturais. Considerando a precariedade estrutural-financeira da Entidade e a reorientação pela qual passava, as parcerias tornaram-se estratégias não apenas de manutenção da Associação, mas de garantia da efetivação de sua proposta e de suas metas de trabalho.

Nesse sentido, as parcerias garantiriam a gratuidade e a diversidade do serviço prestado a comunidade e por outro lado dava condições à Associação de dialogar com outras realidades sociais, compartilhar experiências com os parceiros, unir forças para construção de novos espaços públicos e para os enfrentamentos políticos, principalmente, no que diz respeito ao atendimento a crianças e adolescentes.

Compreendemos que as parcerias com a sociedade civil organizada ocorreram pautadas não apenas na necessidade de recursos financeiros, mas antes, em afinidades políticas, pedagógicas e culturais. Afinidades que aproximaram parceiros, que diversificaram as ações culturais e pedagógicas e que desencadearam mecanismos de participação política para os adolescentes envolvidos nos projetos desenvolvidos pela Associação.

Para compreendermos o processo e a natureza das parcerias e suas implicações, a análise da parceria com o Projeto Transe Essa Rede iniciado em 1997, o envolvimento de

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profissionais especializados e os projetos em parceria com o Poder Público foram indispensáveis.

O Transe Essa Rede colocou a Associação diante dos dilemas e proposições das questões referentes à sexualidade, prevenção e tratamento da AIDS e das DSTs, no universo da adolescência. Mas do que uma prevenção médica, o Projeto Transe Essa trazia a idéia de compartilhar e de trabalhar no campo das vulnerabilidades, as quais os adolescentes estão expostos cotidianamente. Em uma prática de formação compartilhada entre educadores e adolescentes, o Projeto trouxe a sexualidade para dentro da Associação e a Associação levou para o Transe a capoeira, aprimorando consideravelmente a proposta da formação do adolescente multiplicador.

A formação do adolescente multiplicador estava na proposta da Associação Cultural Corrente Libertadora, mas as parcerias com o Transe e concomitantemente com o Centro de Referência DST/AIDS de Santo Amaro foram fundamentais para o aperfeiçoamento dessa prática pedagógica e para a inserção dos adolescentes nas lutas políticas. 13

A parceria com o Centro de Referência de Santo Amaro é significativa, pois traz para nossa discussão, no mínimo, duas dimensões desse processo de rearticulação das forças sociais nos anos 90. Primeiro a parceria ocorreu através das inquietações e atuação de profissionais que buscavam soluções para a debilidade dos serviços oferecidos para as crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social. Significou que profissionais como, por exemplo, Marcos Veltri (coordenador e orientador de prevenção do CR –Santo Amaro), voluntariamente passassem a colaborar sistematicamente com a Associação para a formação dos adolescentes e, essa atuação se fortaleceu através da prática, desdobrando-se em ações que passaram a envolver não apenas o profissional Marcos Veltri, mas o próprio serviço público, o Centro de Referência.

13Muitas dessas lutas políticas se deram em espaços construídos coletivamente pela articulação de parceiros civis e públicos como o do Fórum de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente de Santo Amaro – FDCA. A Associação Cultural Corrente Libertadora participou desde o início dessa articulação e manteve participação intensa através de alunos e mestres no Fórum. Ver: GERASSI, Maria Irene. Resignificando Sujeitos: A Trajetória de Formação de Sujeitos Políticos no Fórum de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes de Santo Amaro. Dissertação de Mestrado em Serviço Social: PUC – SP, 2007.

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A aproximação de profissionais das ONGs com profissionais de serviços públicos da região de Santo Amaro possibilitou a afirmação das parcerias com o Poder Público com uma possibilidade real de intervenção social. Entretanto, as parcerias com o Poder Público, pautado em propostas financiadas pelo mesmo, trouxeram no bojo de sua efetivação a complexidade do diálogo com o Estado: os limites e contradições dessa negociação.

No capítulo III, tentamos dialogar com essas questões tendo em vista a participação efetiva da Associação Cultural Corrente Libertadora nessa articulação entre as ONGs e Serviços Públicos para ampliar e otimizar o atendimento a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social – muitos em situação de rua e em conflito com a lei, e paralelamente compreender o processo de parceria com o Poder Público através de projetos de intervenção social financiados pelo mesmo.

Conceitualmente, acreditamos que analisar a capoeira como cultura, mais que como esporte, permitiu uma reflexão mais de acordo com a experiência da Associação, à medida que politicamente, cultura popular confere à capoeira legitimidade e visibilidade através da ação dos sujeitos históricos – os capoeiristas. Foi a trajetória desses sujeitos que garantiu sobrevida à capoeira no mundo contemporâneo, mediante a um processo orgânico de valorização do seu conhecimento, construído de forma coletiva e amparado nos saberes populares com ou sem o reconhecimento das instituições normativas do Estado.

O trabalho de Raymond Williams em Marxismo e Literatura (1971) nos trouxe uma contribuição muito significativa em torno do conceito de cultura, principalmente por apontá- lo como um processo social constitutivo, que cria modos de vida específicos e diferentes, atrelados diretamente ao processo social material, portanto, às condições materiais as quais os sujeitos históricos estão inseridos.

Ao estudar o conceito de tradição contrapondo-se ao posicionamento dos folcloristas que atrelaram o conceito a idéia de conservadorismo (como sobrevivência do passado inalterado e manutenção de uma origem pura), Williams nos fez refletir sobre uma das problemáticas da pesquisa: a questão da tradição da capoeira. Os procedimentos empreendidos por Ms. Tigrão rompem com a tradição da capoeira?

Nos preocupamos em não incorrer na concepção de tradição como práticas e saberes estáticos, mas nos aproximar do sentido que lhe atribui Raymond Williams, como um

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processo contínuo de seleção, por parte de um determinado grupo social, no qual certos significados e práticas são escolhidos e outros excluídos, mas que as permanências os atrelam a um passado que lhes permitem construir identidades e sociabilidades.

A capoeira é, pois, entendida nesse trabalho como uma manifestação cultural, que agrega elementos da música, dança e golpes de lutas marciais. A capoeira desenvolvida pela Corrente Libertadora parece estar longe tanto da visão estática apresentada pelos nossos folcloristas quanto da normativa defendida pela Federação Paulista de Capoeira. A tradição reinventada ganhou novas cores, novos modos, novas expectativas e propôs outras experiências.

Entretanto, a capoeira continua a ser um jogo, indireto, um jogo que só acontece através do diálogo corporal com o outro, que prescinde da musicalidade dos seus instrumentos característicos (berimbau, atabaque, pandeiro e agogô), do mundo codificado na roda de capoeira e do passado africano-escravo que lhe dá historicidade e a vincula com um movimento de resistência cultural e político.

Essa posição conceitual diante do objeto de pesquisa só se tornou possível a partir do diálogo com a produção historiográfica referente à capoeira. Nesse caminho, a produção de Carlos Eugênio Soares nas obras A Negregada Instituição: Os Capoeiras Rebeldes no (1808-1850), de 2002, além do artigo Da Flor da Gente à Guarda Negra: Os Capoeiras na Política Imperial14 são de suma relevância para historicizar a atuação dos capoeiristas, assim como para refletir sobre a metodologia aplicada à pesquisa do tema.

Os trabalhos de Carlos Eugênio traçam o perfil dos capoeiristas e de sua participação política e cultural na cidade do Rio de Janeiro por todo o século XIX. Para tanto, o autor lançou mão de uma vasta documentação até então não utilizada por historiadores na pesquisa sobre a capoeira, tornando-se uma leitura obrigatória para os pesquisadores do tema.

Porém, os dois trabalhos centrados na cidade do Rio de Janeiro, em um recorte que tem início nos últimos anos da Colônia e percorre todo o período imperial, implica em uma limitação da contribuição desses trabalhos à pesquisa aqui realizada. O autor, entretanto, nos indica a ação autônoma dos capoeiras, a reinvenção de símbolos e comportamentos africanos

14 In: Estudos Afro-Asiáticos, nº 24: Rio de Janeiro, 1993. 20

produzidos a partir da vivência da diáspora e da luta dos capoeiras naquele contexto histórico por visibilidade social e política.

Esses aspectos da experiência dos capoeiras dialoga com nossa pesquisa à medida que reafirma a posição dos capoeiras em desenvolver estratégias de manutenção e de luta político- cultural frente às dificuldades postas pela realidade social na qual estão inseridos. A capoeira, portanto, se transforma à medida que dialoga e responde aos problemas postos pela sempre dinâmica realidade social, mas se reatualiza continuamente para marcar suas especificidades e resistências.

O levantamento de dissertações e teses de doutorado produzidas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entre 1993 e 2007,15 permitiu a ampliação da discussão acerca da concepção de capoeira. Em sua maioria, os autores fizeram a opção de conceber a capoeira como prática esportiva, embora não ignorassem suas características culturais como a música, a instrumentalização, a gestualidade do jogo.

É inegável a possibilidade de se considerar a capoeira como esporte, já que os seus movimentos compreendem golpes de ataque e defesa, assim como em diversas lutas marciais. Entretanto, a transformação da capoeira em um desporto reconhecido pelo Estado brasileiro faz parte de um processo político de maior amplitude, do qual a disciplinarização das manifestações populares e a modernização e civilidade do espaço urbano são intrínsecas.

Esse processo de desportização da capoeira foi largamente discutido por Letícia Vidor em seu livro O Mundo de Pernas Para o Ar, A Capoeira no Brasil 16 e é uma contribuição importante para pesquisadores do tema. Por se tratar de um estudo antropológico, a autora se preocupou com a linguagem corporal e simbólica da capoeira, o que ela chamou de “dialética da mandinga”.

15 MELLO, André da Silva. Capoeira para Adolescentes Internos na FEBEM – Um Estudo Sobre a Consciência. Dissertação de Mestrado em Psicologia da Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1999. OLIVEIRA, André Luis. Os significados dos Gestos no Jogo de Capoeira. Dissertação de Mestrado em Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1993. ROCHA, Maria Angélica. A Capoeira Como Ação Educativa nas Aulas de Educação Física. Dissertação de Mestrado em Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1994. STOROLI, Fernanda Quevedo. Inclusão Social e Esporte: Os Significados – Sentidos da Capoeira Para Adolescentes em Situação de Pobreza. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2007. VIEIRA, Sergio Luiz de Souza. Da Capoeira Como Patrimônio Cultural. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2004. 16 REIS, Letícia Vidor de Souza. O Mundo de Pernas para o Ar – A Capoeira no Brasil, São Paulo, 2000. 21

Letícia Vidor ao trazer o “jeito negro e popular de jogar capoeira”, muito ligado às propostas desenvolvidas por Mestre Pastinha e Bimba na Bahia que se espalharam com o grande fluxo migratório de nordestinos para a região sudeste do Brasil na segunda metade do século XX, nos possibilitou entrar em contato com argumentos que subsidiassem a ideia de que a desportização da capoeira no Brasil fez parte de um programa nacional,17 que entre outros objetivos, visava enfraquecer e desmobilizar as manifestações populares da primeira metade do século XX, politizando consideravelmente nosso posicionamento frente a essa problemática.

A desportivização da capoeira é sem dúvida um caminho possível para a visibilidade social da capoeira, como defendem os associados da Confederação Brasileira de Capoeira, fundada em 1992 e reconhecida pelo Comitê Olímpico Brasileiro. Nessa percepção, a capoeira como esporte deve obedecer a uma normatização técnica em relação aos golpes, aos ritmos, a luta da capoeira, bem como a uma uniformização das graduações e o processo de avaliação da mesma.

Embora os defensores da desportivização reconheçam a matriz africana da capoeira (como por exemplo, a importância do conhecimento dos mestres de capoeira que produzem e transmitem um conhecimento profundamente popular e baseado na oralidade), o processo de desportivização tende a transformar a tecnicidade em elemento propulsor da capoeira e, acreditamos que ao fazê-lo, desencadeia um movimento de profissionalismo formal que pode acarretar na marginalização do conhecimento popular.

Essa discussão perde em parte seu vigor à medida que a capoeira foi reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro no dia 15 de julho de 2008, em Salvador, pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, indo de encontro com e a lei de regulamentação da profissão de professor de capoeira em trâmite no Congresso Nacional do Brasil (2009).

17 A ideia de transformar a capoeira em esporte nacional foi retomada no governo de Getúlio Vargas (1930- 1945) quando, no intuito de forjar uma identidade nacional, não apenas elegeu o samba e o futebol como símbolos da nacionalidade brasileira como também descriminalizou a capoeira em 1937 e concedeu a Manuel do Reis Machado – Mestre Bimba– o registro de qualificação do curso de capoeira como curso de Educação Física. A escolha pela capoeira baiana e pelo estilo de Capoeira Regional desenvolvida pelo Ms. Bimba contemplava o interesse de disciplinarização da capoeira, a partir de então praticada apenas em academias e concomitantemente marginalizava a memória histórica da capoeira carioca, comumente associada à malandragem e autonomia dos capoeiras.

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A produção acadêmica, a descriminalização, o mérito da internacionalização e o tombamento da capoeira como patrimônio cultural no Brasil se configuram como estratégias de visibilidade cultural e política da capoeira, no qual o Estado, através de instituições atreladas a ele, reconhece, legaliza e atribui valor a uma manifestação popular. Pressupõe-se nessa ação a esquemática divisão entre cultura erudita e cultura popular, na qual a primeira se sobrepõe à segunda e os sujeitos históricos que a produzem são comumente ignorados. Nesse sentido nos chamam atenção Nestor Canclini em sua obra Culturas Híbridas:18

O patrimônio cultural funciona como um recurso para reproduzir diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que conseguem um acesso preferencial à produção e a distribuição dos bens. E ainda:

Para refutar as oposições clássicas a partir das quais são definidas as culturas populares não basta prestar atenção em sua situação atual. É preciso desfazer as operações científicas que levaram o popular à cena.

A capoeira se manteve como uma manifestação cultural ao longo de sua história necessariamente devido à ação empreendida por diversos sujeitos históricos, sobretudo capoeiristas, que em suas histórias individuais e vivências comunitárias através da prática da capoeira mantiveram e reelaboraram os saberes e fazeres inerentes a essa manifestação cultural. Os conhecimentos produzidos por esses sujeitos, marcados fortemente pela tradição oral e pela constante revificação do saber mediante à prática comunitária, colabora para entendermos a capoeira como um instrumento de resistência político-cultural de grupos populares.

Essas reflexões sugeridas por Nestor Canclini nos impelem ao reencontro com a experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora para que possamos assim, a partir da prática cotidiana dessa Associação, reforçar o seu caráter de cultura e não obstante, seu caráter popular. É a experiência social dos fundadores, mestres, colaboradores e alunos da Corrente Libertadora que nos interessa nessa discussão em torno da capoeira.

Compreendemos que a realização dessa dissertação só foi possível pela participação desses sujeitos políticos: fundadores, colaboradores e, sobretudo, as crianças, adolescentes e jovens participantes dos projetos da Associação que compõem o cerne deste trabalho, pois é

18 CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2008, pp 195 e 206.. 23

na experiência vivenciada da capoeira por eles, que a Corrente Libertadora se faz espaço de sociabilidades, cultura e de intervenção social.

Durante a pesquisa e o processo de escrita da dissertação buscamos trabalhar na perspectiva de ouvir, aprender e refletir com as experiências desses sujeitos históricos, compartilhando com eles, a partir do sentido de igualdade e respeito às especificidades das narrativas desenroladas durante as entrevistas, a construção de um olhar sobre essa experiência político-cultural na cidade de São Paulo.

Nesse sentido, pensamos o resultado da pesquisa, agora configurado nas páginas que seguem como um trabalho comunitário, no sentido de que foi através da observação, diálogo e vivência com esses sujeitos e através da experiência desses, narradas nas entrevistas concedidas, que a dissertação se fez.

Temos ciência dos limites dessa dissertação, visto que a experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora permite lançarmos vários olhares sobre sua prática. Entretanto, nos propusemos a dar visibilidade às estratégias que possibilitaram a formação e continuidade de seu trabalho político-cultural.

Assim, pensamos a cidade enquanto espaço de construção de sociabilidades e vivências intrínsecas às demandas sociais, as quais pressupõem relações muitas vezes conflituosas entre Estado e sociedade civil, sobretudo no que concerne a garantia de direitos: civis, sociais e políticos.

Compreendemos a cultura, pois, como modos de vida abrangendo todas as suas dimensões, inclusive a política. Nesse sentido, a cultura também pode ser tomada como instrumento de luta por muitos grupos sociais economicamente marginalizados nos embates por visibilidade política, cultural e social. Através de manifestações culturais constroem e revivificam cotidianamente uma pluralidade de conhecimentos, geralmente baseados em um caráter comunitário, através dos quais produzem estratégias de reconhecimento de suas tradições e afirmação de seus direitos.

Retomamos aqui a imagem inicial descrita nesse texto de apresentação para aludirmos às Considerações Finais dessa dissertação. Ouvindo o aluno Diógenes cantando sua ladainha e vendo a Associação ali presente, jogando capoeira, contribuindo para a organização do evento em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura e tendo seus alunos como

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palestrantes, pudemos reafirmar que a produção dessa dissertação é parte constitutiva do trabalho da Corrente Libertadora, que não se pretende definitivo, mas ser reconhecido como mais um instrumento para produção do conhecimento, através da apreensão, discussão e quiçá, desconstrução de seu conteúdo.

Nossas Considerações Finais caminharam no sentido de refletir sobre a experiência de intervenção político-cultural da Associação através da capoeira, com o intuito de contribuir para a ampliação acerca da discussão sobre cultura popular e da atuação de grupos sociais em luta por visibilidade política.

Não obstante, nos preocupamos também em entender e enfatizar o papel político desempenhados por diversos sujeitos sociais, que sem o reconhecimento da mídia e de esferas do Estado, através de suas ações fazem no cotidiano das periferias da cidade um lugar menos excludente e capaz de desenvolver mecanismos para uma democracia mais justa e igualitária.

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Capítulo I

“Da Sombra da Barriguda aos Movimentos Populares”

Capoeira e Política no Processo de Formação da Associação Cultural Corrente Libertadora

“Capoeira é liberdade, também quero aprender, Lutar pela liberdade, pra meu povo defender!”

Ms. Maurício e Ms. Moreira, 1981

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Entrar em contato com a experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora nos colocou na posição de ouvintes. Ouvintes de histórias que descrevem pelo olhar sempre particular, uma vivência que se fez coletiva e, nesse caso, comunitária. Ouvir atentamente essas narrativas nos permitiu dialogar com um universo plural de significados, dinâmico e multifacetado como a própria tradição oral. A oralidade que conta histórias, que vive histórias e que ritualiza histórias está no cerne da produção e reprodução do conhecimento concernente à capoeira.

Para iniciarmos um olhar sobre a experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora nos remetemos aqui a vitalidade da imagem do Baobá. Árvore nativa da ilha de Madagascar, mas que está presente em todo continente e é símbolo de tradições de povos africanos no ato de contar e vivenciar histórias. No Brasil a tradição oral se refaz continuamente, na luta constante para sua sobrevida através, muitas vezes, das diversas linguagens da cultura popular. A capoeira praticada pela Associação Cultural Corrente Libertadora nos convida a sentarmos à sombra da Barriguda - prima do baobá africano – e a pensarmos essa experiência através da escuta-leitura das narrativas dos sujeitos que construíram sua história.

A narrativa de Magnólia Maria Alves Pinto nos chama para a dissertação, no ato de relembrar e dar significados ao que viveu e que continua presente através da ação cotidiana de pessoas e da construção da memória...

ai ele falou assim: Não, vamos sentar aqui e vamos por o nome. Ele era muito decidido, muito persistente, persiste, persiste e não desiste. Ai eu falei: Tá bom, vamos sentar...que tinha um pé de barriguda no quintal que fazia uma sombra e tava um sol bonito e ele gostava de sentar em baixo da árvore pra criar as coisas. Ai sentamos em baixo da árvore, ai começamos a bolar o nome, Mas eu falei: Vamos fazer uns rascunhos dos negros e tal, aí ele fez uns rascunhos do negro num tronco e me mostrou, aí eu, não, tá muito agressivo o negro amarrado no tronco, eu falei, amarrado? É peraí, eu falei que o negro tava amarrado é muito agressivo no rascunho, ah é, é mesmo, vamos por um pé então? Negro não era amarrado os pés no tronco? Não era amarrado nas mãos, ah, no pé também, vamos por um pé aí. Aí fez um rascunho de uma árvore, aí desenhou aquela árvore e o pé na árvore. Aí eu falei: Não, não gostei, aí ele, é mesmo, aí eu falei: Escuta, os negros não eram amarrados em correntes? De cordas, de correntes? Aí ele, é. Eu falei: Então, que tal você por um pé, dois pés, sei lá e a corrente. Aí ele falou: É mesmo, é uma boa! Aí pôs os pés, a corrente, mas eu disse: Fica esquisito, né?! Tipo assim, tá bom, tudo bem, soltar a corrente o negro sai correndo... eu sou muito fã de mão, o que você acha, por a mão e o pé? (risos). É mesmo, vamos pôr a mão e o pé, mas a mão vai ficar amarrada na corrente? (risos) Ai meu Deus, aí ele, põe duas mãos! Aí eu falei: Mas põe as duas mãos como quem tá soltando, não põe mão presa, põe soltando! Aí ele falou: Não, meio termo! Tá bom. Aí, ele mesmo fez o rascunho das mãos e a corrente grudada, aí eu falei: Peraí, vai soltar ou não vai? É pela liberdade ou não é? Ele falou: É pela liberdade. Aí ele pôs a corrente solta e falou: Achei o nome da academia, Pela Liberdade! Pela liberdade vai ser de um aluno seu,

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vamos inventar um outro. Como aluno meu? Aluno meu não montou academia. Mas vamos guardar esse nome, por que eu achei fraquinho, vai pra letra de música... você colocou uma corda, põe uma corrente, ele pôs a corrente, ele sabia fazer a corrente. Faz uns „s‟ grudado no outro, faz uns „s‟ que dá certo. Aí ele fez uns „s‟ meio soltos assim, aí ele: Corrente, legal, corrente, o nome é corrente! Corrente, vai ser corrente! Mas corrente de quê? Ah, a corrente não vai tá solta? Aí eu falei: Liberdade, libertadora! Aí quer dizer, nós criamos naquele momento e aí ele falou: Gostei, você gostou? Aí eu falei: Adorei, assim tá certo! Aí eu falei: Peraí, vamos ver se não tem por aí, alguma coisa com esse nome, por que a gente não pode copiar de ninguém. Aí ele falou: Detesto copiar. Aí eu falei: Não, não tem. Vamos analisar e guardar por umas duas semanas, aí vamos pesquisar, se não tiver nada com esse nome, nós põe esse nome! Aí ele falou: E se tiver e não tiver registrado, eu ponho ele de qualquer jeito! Aí a gente se abraçou e ele criou o nome da Corrente Libertadora. Quer mais saber o quê?1

Começamos aqui a nos debruçarmos sobre a experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora na cidade de São Paulo a partir dos anos 70 do século passado. Formada a partir da prática da capoeira, do encontro de quatro irmãos em torno do fazer cultural da capoeira e da realidade social de migrantes nordestino na cidade – que a todos recebe, mas que a poucos acolhe, acreditamos que a experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora pode muito nos dizer sobre cultura popular, política e memória na cidade de São Paulo.

Partindo da imagem da frondosa Barriguda imponente, espinhosa e frágil iniciamos a construção de um olhar sobre essa experiência político-cultural dos irmãos José Maurício Neto, Eufraudísio Modesto Filho, Eufráusio Modesto Alves e Magnólia Maria Alves Pinto na periferia da cidade de São Paulo, mais precisamente na Zona Sul, Distrito de Capela do Socorro, Vila São José.

A Barriguda é uma árvore comum na área urbana e utilizada largamente no processo de recuperação de áreas degradadas ecologicamente, e embora seja natural das florestas brasileiras e bolivianas pode ser vista na paisagem da cidade. Entre prédios, muros e moradias populares passa muitas vezes despercebida na paisagem confusamente urbana, como muitas experiências sócio-culturais que são vivenciadas cotidianamente na periferia de São Paulo.

Foi sob a sombra de uma Barriguda no quintal de uma casa de três cômodos, nos fundos do Salão Paroquial no Jd. Manacá, que o jovem José Maurício Neto e sua irmã Magnólia Maria elaboraram pela primeira vez o nome e o símbolo da Associação. A Associação nascia no bairro Vila São José, no seio da família Modesto, uma família em condição migrante que dialogava com as culturas locais.

1 Entrevista VI : Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010. 28

1.1. Trabalho e Cultura no Processo de Migração da Família Modesto

A formação da Associação Cultural Corrente Libertadora se deu dentro do processo de desterritorialização e, não obstante, na reatualização da memória e no enfrentamento das novas realidades sociais que a metrópole paulistana impunha.

Eu vim pra cá, como todo nordestino: em busca de um pouco mais de dignidade, em busca de fugir da fome lá do nordeste, como a maioria dos nordestinos, das dificuldades que passam, fogem, vêm pra São Paulo... Quando nós chegamos em São Paulo, eu vim primeiro, passei a trabalhar na construção civil, simplesmente com o objetivo de ganhar um dinheiro pra minha mãe poder vir com os outros irmãos e esses outros irmãos eram a Magnólia, o Tigrão e o Maurício. Esses irmãos vieram em seguida.2

A narrativa de Eufraudísio Modesto Filho, um dos fundadores da Associação Cultural Corrente Libertadora nos traz alguns elementos para reflexão do processo migratório da família Modesto para a cidade de São Paulo. Já no início de sua narrativa, Mestre Eufraudísio identifica o problema que atinge a realidade da população pobre de várias regiões do nordeste brasileiro, deslocando sua percepção da migração do âmbito pessoal e privado para o contexto social.

A cidade de São Paulo na década de 1970, assim como outros centros urbanos em desenvolvimento industrial – principalmente Rio de Janeiro e Belo Horizonte, exerciam grande influência na busca de melhores condições de vida para uma parcela significativa da sociedade brasileira, oriunda de diversas regiões do país. Segundo Nadine Habert, na década de 70 os fluxos migratórios envolveram 30 milhões de pessoas para uma população de 93 milhões, um terço da população a engrossar, nas fileiras do operariado industrial e do mercado do trabalho informal. 3

No encalço do acelerado desenvolvimento industrial pelo qual passava a cidade de São Paulo nos anos 70 ocorria uma intensa e contínua remodelação urbana: avenidas, edifícios, espaços de serviços públicos, de lazer e habitacional eram destruídos, reformados e construídos, tornando a construção civil um dos setores econômicos que mais crescia na metrópole.

2 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 3 HABERT, Nadine. A Década de 70 – Apogeu e Crise da Ditadura Militar. São Paulo: Ática, 2006, p.72. 29

A construção civil, segundo Eder Sader,4 absorvia uma parcela considerável da mão de obra migrante por permitir o aproveitamento de habilidades que este já possuía, principalmente as habilidades de trabalho braçal, presentes na profissão de pedreiro, marceneiro e outros. Muitas vezes, a construção civil abrigava em condições precárias, no próprio espaço das empreitas, trabalhadores sem moradia estabelecida na cidade, o que era uma saída para muitos recém-chegados. Eufraudísio inicia sua relação de trabalho na construção civil, mas, diferentemente da experiência de muitos migrantes, não fez do local de trabalho sua casa. Isso porque, parte do núcleo familiar já residente em São Paulo o acolhe.

A expectativa de melhores condições de vida está intimamente associada a um projeto familiar e ao universo do trabalho. O deslocamento da família Modesto do interior da Bahia para a cidade de São Paulo, como nos sugere Eufraudísio Modesto, compunha um projeto coletivo, no qual a figura da matriarca Elvina Araujo Modesto é central para a manutenção da identidade e unidade da família no processo de deslocamento.

Oriunda da pequena cidade de Floresta Azul – cidade de economia baseada na agricultura de estrutura latifundiária, localizada na região centro-oeste do estado da Bahia, a família Modesto inicia o processo migratório, no primeiro momento, dentro do próprio estado baiano e depois para o sudeste do Brasil.

Então, eu me chamo Eufrásio Modesto Alves e nasci em Floresta Azul, uma cidadinha da Bahia, perto de Ilhéus, de Ibicaraí e nasci em cinqüenta e cinco... e a minha trajetória lá na Bahia assim, era de uma família assim não muito pobre, mas, uma família assim mais ou menos. No começo meu pai ele foi delegado de Floresta Azul mesmo e depois ele passou pra fiscal...meu pai era uma pessoa bem considerada em Floresta Azul e aí ele...foi caí na trajetória dele, teve envolvimento com bebida e aí foi vendendo todas as coisas dele, as casas deles e nisso a gente foi crescendo... meu pai já tava com problema sério de bebida e aí a gente teve de mudar de Floresta Azul pra Ibicaraí...Bicaraí é uma cidadinha perto de Itabuna, uma cidadinha muito legal e a gente... começou a trajetória de, não de miséria, mas assim de pobre mesmo... Então a trajetória, meus irmãos começou a sai de lá, de Bicaraí e aí fomos morar no Bode, Bode Capado. Bode Capado é um arraialzinho em Bicaraí, muito pequeno e lá ...minha mãe vendeu uma casa lá em Floresta Azul e comprou esse lugarzinho lá em Bode Capado e que a gente começou a morar e a situação complicou mesmo e aí que meus irmãos começou a vir pra São Paulo... Eu já tinha nove ano, por isso que a gente também num estudava, porque saía de um canto mudava pra outro e depois...voltamos pra Itapetinga, do Bode Capado pra Itapetinga.5

A família Modesto vivia na área urbana do município favorecida pela profissão do pai Eufraudísio Modesto, como nos indica Eufrásio Modesto – Ms. Tigrão. Entretanto, o

4 SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entraram Em Cena. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.81. 5 Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08. 30 problema de saúde do patriarca atingiu diretamente a situação econômica da família forçando- os a deslocar-se em busca de condições de sobrevivência.

No processo de deslocamento, a família se reestruturou em torno da mãe Elvina Araujo que passou juntamente com os irmãos mais velhos – principalmente Agnelo e Eufraudísio – a traçar os caminhos da família. Na experiência da migração mantiveram quase em sua totalidade a unidade familiar. Da família de oito irmãos apenas Agnelo permaneceu na Bahia.

A mudança de Floresta Azul para Ibicarí e depois para Itapetinga, indica que a família passou em poucos anos por um movimento de deslocamento intenso, o que necessariamente exigiu lidar com diferentes realidades sociais. A busca por trabalho para garantia de condições melhores de vida estava transpassada pelo desafio de adaptação e diálogo com essas realidades.

Compreendemos que no paulatino distanciamento da figura paterna ocorreu um rearranjo das relações familiares, nas quais a mãe Elvina e os irmãos mais velhos passaram a construir um novo e conjunto projeto de vida para a família, no qual a vinda para São Paulo se constítuiu numa estratégia de sobrevivência mais digna – nas palavras de Eufraudísio – e ao mesmo tempo de fortalecimento dos vínculos familiares.

nossa família sempre foi muito pobre, muito humilde, mas muito rica de energia, em acreditar no outro e não têm aquela coisa de super proteção, pisou na bola, a gente cai em cima mesmo e dá um pega... agora, existe uma coisa de se acreditar, de se ajudar, ter um grau de solidariedade, um grau de partilha em todas as instâncias da vida: os sofrimentos, as alegrias e tal, isso é uma coisa que a gente herdou do núcleo familiar... nós temos posturas diferentes sociais, posturas diferentes até culturais, mas a gente respeita muito essa coisa...6

O caráter participativo e comunitário das relações familiares apresentadas na narrativa acima, nos indica alguns fatores que podem colaborar para a compreensão da formação da Corrente Libertadora em 1976 com a participação dos quatro irmãos: José Maurício Neto, Eufraudísio Modesto Filho, Eufráusio Modesto Alves e Magnólia Maria Alves Pinto, na Vila São José, periferia da cidade de São Paulo.7

6 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 7 Gostaríamos de ressaltar que quando mencionamos os fundadores da Associação como o grupo dos quatro irmãos – Maurício, Eufraudísio, Eufrásio e Magnólia – não se trata de negligenciar o papel desempenhado por Ms. Maurício na atitude de buscar a capoeira, de iniciar o processo de divulgação da mesma à sua família e à 31

A narrativa de Eufraudísio – Ms. Eufraudísio, descreve um universo familiar a partir de um forte sentimento de pertença, construído através da participação ativa dos membros na constituição da história familiar. Há na vivência cotidiana descrita por ele um sentido de coletividade baseado no reconhecimento do outro, na discussão e em decisões compartilhadas.

As afinidades, discordâncias e convivência com as diferenças no núcleo familiar Modesto contribuíram, em nosso entendimento, para uma das particularidades da Associação Cultural Corrente Libertadora: a formação de um grupo de capoeira por quatro irmãos, incluindo a participação de uma mulher.

A formação da Associação Cultural Corrente Libertadora está, pois, intimamente relacionada aos vínculos familiares e ao movimento migratório para a cidade de São Paulo, assim como com as vivências sócio-culturais que esses migrantes construíram e desenvolveram na cidade.

Migrantes da região do sul da Bahia, nordeste brasileiro, os demais membros da família Modesto – D. Elvina Modesto, José Maurício, Magnólia Maria e Eufrásio Modesto – chegaram em São Paulo em 1972, segundo depoimento de Magnólia Maria, e se estabeleceram com os irmãos que aqui já moravam, na periferia de Santo Amaro. Uma família de oito irmãos comandados pela matriarca Elvina Araújo Modesto, que na cidade, na periferia da cidade de São Paulo se deparou com as dificuldades de acesso à moradia, educação, trabalho e saúde.

Chegamos em São Paulo desprevenidos, por que ninguém tinha blusa de frio e tava naquela época que fazia aquele frio mesmo e... fomos pra casa da nossa irmã. Ao chegar lá, a gente ficou assim meio que decepcionado, que a gente achava que chegando em São Paulo a gente ia resolver a vida assim, naquela época, a maioria que morava na Bahia ou em qualquer lugar achava que vindo pra São Paulo, vinha pro céu, tudo ia melhorar...Saímos procurando as casas, só que ao chegar lá, ela já não morava nessa casa, aí fomos de um a bairro pra outro, aquele monte de gente, passando frio e conseguimos encontrar a casa, só que ao chegar, a casa era dois comodozinho! Alugada ainda! E aí, tivemos que embolar todo o mundo ali; ela recebeu a gente muito emocionada, muita gente, claro! Mas mesmo assim ela ficou muito feliz de ver a gente e

comunidade da Vila São José e na ação empreendedora da formação do grupo Corrente Libertadora por volta de 1975-6, sem a participação direta dos irmãos, mas trata-se de uma opção metodológica que compreendeu através da pesquisa realizada, que foi a partir de 1976 com a participação dos quatro irmãos, que a Associação desenvolveu as especificidades em seu fazer cultural da capoeira; em sua prática cultural, social e política que a diferencia no universo da capoeiragem de outras experiências de grupos de capoeira na cidade.

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embolou todo mundo ali, pra passar de manhã quem ia trabalhar, tinha que ver se não pisava na cabeça de alguém...8

A chegada à casa de sua irmã, narrada por Magnólia, está carregada do estranhamento inicial no olhar a cidade. O frio, as distâncias e desapontamentos estão intimamente relacionados com a gama de expectativas sobre o viver na “cidade grande” que acompanhavam a maioria dos migrantes: esperanças de melhores condições de trabalho, de educação, de saúde, de melhor viver e conviver. Nesse sentido, sob os impactos do processo de desenraizamento, o núcleo familiar exerce um papel fundamental na reelaboração de valores, na construção de novas sociabilidades e no fortalecimento da identidade cultural.

Segundo Eder Sader,9 é recorrente que os grupos de migrantes se estabeleçam em lugares da cidade nos quais haja familiares, conhecidos, conterrâneos, que em suas relações, comumente colaboram no processo de adaptação à realidade urbana, muitas vezes auxiliando em questões primárias para sobrevivência na cidade como noções de localização, locomoção, documentos, busca de emprego e lazer.

Se na primeira metade do século XX, Santo Amaro, região na qual se instalou a família Modesto, tinha uma presença forte de imigrantes, principalmente de alemães, na segunda metade do século, o migrante nordestino advindo de diversas regiões ocupou esse bairro intensamente: habitando, trabalhando, construindo redes de solidariedade, produzindo arte e vivenciando a pluralidade de culturas que trouxeram e com as quais aqui se depararam.

Viver cotidianamente na periferia de uma cidade como São Paulo é se deparar constantemente com os limites dos investimentos do Estado em regiões ocupadas pelas camadas populares dessa sociedade. Como sabemos, a distribuição espacial dos grupos sociais na cidade não é aleatória; está relacionada a projetos políticos e ao poder aquisitivo dos cidadãos.10

8 Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.10. 9Segundo Eder Sader, “a família permanece lugar central na reelaboração de experiências de seus membros e de construção de projetos de vida. Ao apoiar-se na família o migrante recupera (e reinterpreta) toda uma constelação de valores comunitários no interior das relações societárias. A mobilização de parentes, vizinhos e conterrâneos não constitui um resíduo de padrões tradicionais, que tenderiam a sumir com o processo de urbanização, mas são relações atualizadas na vida urbana e constitutivos dela”. SADER, Eder. Op, cit., p. 94- 95. 10 Na cidade de São Paulo, as políticas voltadas voltadas para a transformação do espaço acabaram por criar as condições para alterações nos padrões de ocupação da cidade pela indústria, comércio, serviços e habitação. Esse movimento de remodelação urbana está intimamente relacionado com o crescimento industrial já nos anos 30, período em que se optou pelo Plano de Avenidas de Prestes Maias para a reforma viária da cidade, favorecendo a ocupação da periferia metropolitana (centro - regiões limítrofes: Osasco, Taboão da Serra, etc.) seguindo os trilhos dos trens e dos bondes. Nos anos 50, esse processo se intensificou criando um movimento de ocupação da 33

Mediante essa situação, fica patente o precário acesso da população da periferia a serviços públicos, entretanto, a produção cultural em bairros como Santo Amaro e, principalmente, em sua periferia ganha sobrevida através da ação direta de seus moradores, que diante das limitações impostas pela realidade social – entrecortada pelas conseqüências de uma distribuição de renda desigual e um capital cultural marginalizado – reinventam práticas culturais e vivenciam novas experiências comunitárias.

A formação da Associação Cultural Corrente Libertadora advém em parte desse encontro cultural e dessa situação migrante que seus fundadores protagonizaram ao encontrar na periferia da grande cidade uma outra possibilidade de dar continuidade à sua história. A trajetória da Associação inicia-se com o filho mais novo da família Modesto: José Maurício Neto – mais tarde Mestre Maurício, que ao descobrir a cidade em busca de trabalho e diversão, descobre os caminhos para a capoeira envolvendo-se em treinos e frequentando rodas de capoeira da cidade.

ali no São José, Maurício começou se envolver com capoeira...quando nós mudamos pro Jd. Manacá, o Maurício já tava envolvido com capoeira; a gente num queria nem saber de capoeira. Eu não queria, a minha mãe também brigava: Menino cê fica com esse negócio... E falava que meu avô também fazia isso, num sei o quê, mas ela não gostava disso, que não dá camisa pra ninguém... Ai o Zé Santos, como ele treinava no Penatti... era um Mestre que tinha uma academia em Santo Amaro, na Av. Santo Amaro que era São Bento Pequeno, O Limão tinha uma academia ali também na Av. Santo Amaro, no Brooklin e aí o Maurício, ele fazia aquela coisa ia no Limão, ia no Penatti. O cara que era o Zé Santos que tava montando academia, ele treinava lá e ensinava pro Maurício cá e o Maurício ia lá de vez em quando, fazer aquela coisa: ia lá... ia cá e nunca pagou academia, que era daquele jeito. 11

O jovem Maurício circulava pela cidade a partir do referencial cultural com o qual se identificava. No primeiro momento, levado pela relação direta com a Bahia – ele entrou no mesmo ano que chegou aqui...não sei o que...viu que era capoeira da Bahia. 12 Vivendo em um território que o diferenciava por sua origem, condição social e especificidades culturais, a busca por espaços alternativos, nos quais pudesse compartilhar experiências através da prática cotidiana de manifestações culturais, foi uma estratégia de inserção na cidade.

cidade por parte significativa de trabalhadores migrante nas periferias da cidade (centro-periferia). Nessa conjuntura, regiões da Zona Sul de São Paulo, como Capela do Socorro, Campo Limpo e Parelheiros foram ocupados massivamente por essa população, economicamente dessastitida por políticas públicas de habitação efetivas e exposta à especulação imobiliária. Ver: BÓGUS, Lúcia Maria M. Urbanização e Metropolização: O Caso de São Paulo. In: A Luta Pela Cidade em São Paulo. São Paulo: Cortez, 1992. 11 Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08. 12 Idem. 34

José Maurício entrou no universo da capoeira utilizando as estratégias que estavam ao seu alcance: a proximidade com o capoeirista Zé Santos o colocou em contato com mestres importantes da zona Sul de São Paulo e do contexto da capoeira naquele período, Ms. Pinatti e Ms. Limão.13 Entretanto, os limites financeiros, bem como o olhar no futuro, afastou o Ms. Maurício de um vínculo permanente com os mestres citados.

Como é comum denominar no universo da capoeiragem, Ms. Maurício lançou mão da malícia: se relacionou com os grupos de capoeira, seus mestres, aprendeu o que lhe foi possível da prática da capoeira, suas linguagens, sem no entanto criar raízes nesses grupos; perseguia o objetivo de formar sua própria academia, seu próprio grupo de capoeira.

Não pretendemos aqui, lançar um olhar antropológico para o que entendemos por malícia, mesmo por que estaríamos navegando em águas de outros territórios, mas tão somente adjetivar um conjunto de estratégias cotidianas para inserção de um estrangeiro – no sentido que utilizada Nobert Elias –14 na dinâmica da cidade, ainda por se tornar conhecida e apoderada.

O objetivo de formar um grupo de capoeira e montar uma academia esbarrava, no entanto, em questões práticas de ordem financeira e concomitantemente dava visibilidade a dilemas, ainda não superados pela sociedade brasileira, em lidar com a capoeira.

É significativo na narrativa do irmão Eufrásio Modesto Alves que Ms. Maurício enfrentou a resistência da própria família para continuar a investir na prática cultural da capoeira. O argumento da mãe Elvina Modesto remonta, em certa medida, a um imaginário criado em torno dos capoeiras na virada do século XIX para o século XX.

Não dá camisa a ninguém nos remete a falta de perspectiva profissional e de reconhecimento social da capoeira. Esta percepção foi construída em um paulatino processo

13 Djamir Pinatti, Ms. Pinatti e Paulo dos Santos, Ms. Limão fundaram em 1969 a Associação de Capoeira São Bento Pequeno, ao que indica a bibliografia, na Av. Brigadeiro Luiz Antônio em São Paulo. Herdeiros da tradição da capoeira Regional e Angola, respectivamente, ministraram aulas e formaram alunos no diálogo desses dois estilos. Em 1970, Ms. Limão particulariza seu trabalho fundando o Grupo Quilombo de Palmares e Ms. Pinatti, continua com sua Associação, ambos na zona sul de São Paulo. Ms. Pinatti, hoje com seus 80 anos de idade continua ministrando suas aulas na Vila Mariana e Ms Limão faleceu em Santo Amaro da Purificação – BA em 1985. 14 Nobert Elias utiliza o conceito outsiders para designar o recém - chegado a uma cidade estranha, nova, com uma sociedade estruturada em valores, normas e status social reconhecido pelos grupos sociais que a compõem. Nesse sentido, a compreensão dos outsiders (estrangeiros) se dá em uma condição relacional com os established (estabelecido); a concepção de Nobert Elias esta centrada nas normas estabelecidas pela boa sociedade, por isso, estamos nos referindo aqui, à ele, mais para entendermos o ser estrangeiro em uma cidade desconhecida. ELIAS, Nobert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders – Sociologia das Relações de Poder a Partir de Uma Pequena Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 35 histórico no qual a capoeira até a década 30 estava intimamente associada às práticas sociais e culturais das chamadas “classes perigosas” em centros urbanos de fortes traços culturais de matriz africana como Recife, Salvador e Rio de Janeiro.

Na virada do século XIX para o século XX escritores, cronistas, jornalistas das cidades acima referidas, colaboraram para a construção de uma determinada imagem do capoeira, um transeunte da cidade ligado quase sempre ao universo da malandragem, da vadiagem, envolvido em arruaças, escaramuças e pequenos expedientes.15

Com a descriminalização da capoeira em 1937 e a revogação da proibição aos cultos afro-brasileiros, bem como a legalização das Escolas de Samba no ano seguinte, as manifestações culturais de matriz africana integraram o projeto populista de construção da identidade nacional brasileira, idealizado pelo presidente Getúlio Vargas na vigência do Estado Novo, perdendo sensivelmente a autonomia que lhe eram característicos.16

Considerando a legalidade impositiva e autoritária do Estado Novo, a imagem do capoeira iniciou um processo de transformação complexo, envolvendo várias vertentes de concepções acerca da capoeira como esporte nacional. No entanto, para muitos, a capoeira continuava ligada ao universo marginal das ruas e por isso permaneceu em vários aspectos estigmatizada e cercada de preconceitos sociais.

A prática da capoeira conviveu historicamente com limites e repressão: durante a colônia foi duramente vigiada pelos senhores de escravos e por seus feitores; no Império viveu a ambiguidade dos interesses de setores da elite imperial: ora perseguida e os seus praticantes severamente castigados pelas milícias imperiais, ora arregimentados por essa mesma elite para atuar como braço armado em suas disputas políticas, e na República Velha foi oficialmente considerada crime no Código Penal de 11 de Outubro de 1890, Lei 874, Capítulo dos Vadios e Capoeiras, artigo 402.17

A formação da Associação Cultural Corrente Libertadora na periferia de São Paulo também conviveu com os limites de vivenciar uma manifestação cultural, de matriz afro-

15 Ver: SALVADORI, Maria Ângela Borges. Capoeiras e Malandros: Pedaços de Uma Sonora Tradição Popular (1890-1950). Dissertação de Mestrado em História, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, São Paulo, 1990. 16 MATTA, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis. São Paulo: Zahar, 1981. Sobre Escolas de Samba, principalmente em São Paulo, Ver: AZEVEDO, Amailton Magno. A memória musical de Geraldo Filme: os e as micro-áfricas em São Paulo. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2006. 17 Para o desenvolvimento da capoeira no Brasil, os trabalhos de BRETAS (1991), HOLLOWAY (1989), REIS (1993;2000), SALVADORI e SOARES (1993; 1999 e 2002) são indispensáveis. 36 brasileira, escrava e carregada de estereótipos criminalizados em uma realidade política regida pelo sistema ditatorial, instaurado no golpe militar de 1964.

O governo militar instituiu vários mecanismos de controle e repressão à sociedade civil. Em 1968 desfechou o Ato-Instiucional nº5 confirmando o comprometimento com a restrição ostensiva as liberdades civis, políticas e sociais.18

A doutrina de Segurança Nacional legou aos brasileiros da década de 1970, herdeiros diretos dessa conjuntura política e econômica, o recrudescimento das relações entre setores do governo e da sociedade civil. Os moradores da periferia da cidade de São Paulo, entre eles os fundadores da Associação Cultural Corrente Libertadora, sofriam duplamente a desconfiança e vigilância policiais, por um lado, devido à situação sócio-econômica frágil e, por outro lado, pelos indícios de mobilização social que já se ensaiavam no início da década.19

Para além dos preconceitos e vigilância policial, a formação do grupo passava ainda pela necessidade em estabelecer um espaço para realização das aulas de capoeira. Nessas circunstâncias, foi sob os olhares e argumentos de Dona Elvina e de alguns irmãos, que José Maurício começou a ministrar as aulas de capoeira na sombra da barriguda no quintal de sua mãe no Jd. Manacá – Vila São José.

Aqui retomamos o papel da família Modesto na formação da Associação Cultural Corrente Libertadora. Apesar de num primeiro momento ser apresentado ao jovem Maurício uma resistência em relação a capoeira, a família priorizando os laços afetivos, acaba por acolher a atitude de seu filho mais jovem. Norteados pelo apoio à ele dispensado, membros da

18 O governo Militar promoveu a Lei de Segurança Nacional, Lei Anti-greve, a Lei de Imprensa, a intervenção nos órgãos representativos, e a criação do Serviço Nacional de Informações – SNI. Essas medidas tomadas, sobremaneira, em resposta as grandes mobilizações operárias, camponesas, estudantis do período precedente, em torno das chamadas Reformas de Base, foram instituídas já no primeiro governo militar do General Castelo Branco, 1964-1967, (PAES, 2004). O governo seguinte, General Costa e Silva (1967-1969) baixou o decreto AI- 5 que previa o fortalecimento e outorga do Executivo, abrindo caminho para cassações, fechamento do congresso, censura, repressão e invariavelmente para a tortura. O AI-5 para além da realidade brasileira e da iminência do crescimento do Movimento Estudantil, converge para um quadro mais amplo, no qual vários países, incluindo paises da América Latina, viviam o embate entre movimentos sociais, políticos e culturais, muitos liderados por estudantes, intelectuais e organizações de esquerda, com a reação violenta e autoritária de setores ligados a posturas políticas de extrema direita (HABERT, 2006). 19 No processo de ocupação das periferias da cidade de São Paulo, o convívio entre a população e as autoridades políciais foram comumente tensas, o enquadramento polícial, as batidas e revistas ocorriam à sombra da suspeita da vadiagem e prostituição, atingindo homens e mulheres, muitas vezes incapazes de comprovar trabalho fixo e registrado. No contexto da década de 70, muitos bairros da periferia eram visados como região de esconderijo para criminosos procurados pela polícia, o que agravava a situação dos moradores. Ademais, a região de Santo Amaro, zona sul, esteve vinculada à maioria dos movimentos populares e sociais desse período, relacionados às necessidades básicas, transporte, serviços públicos e moradia desde 1974, fazendo do olhar policial uma constante no cotidiano dessa população(SINGER, 1980). 37 família, principalmente D. Elvina, passam a construir uma imagem positivada da capoeira em um processo de ressignificação da capoeira.

A capoeira foi ressignificada a partir do reconhecimento do passado de lutas de resistência dos povos africanos e seus descendentes no Brasil escravocrata. A imagem da capoeira relacionada à vadiagem dá gradativamente lugar aos aspectos de resistência escrava e, posteriormente, de resistência da cultura popular, colaborando para que a corrente que quebrada, liberta, ganhasse um sentido simbólico na constituição da Associação Cultural Corrente Libertadora.

A família Modesto, ao acolher a ação do jovem Maurício, permitiu que o espaço privado – o espaço consagrado como espaço da família, o lar – fosse ocupado pela prática cultural da capoeira. O espaço privado assumiu um sentido público ao interagir constantemente com as demandas sociais trazidas pelos alunos e ao vivenciar o caráter coletivo da capoeira.

Há na atitude dos membros da família Modesto em relação a capoeira e a vivência de Maurício, um traço de valorização do lar e da família (enquanto instituição social) como espaço de compartilhar experiências de vida de seus entes. O limite entre o privado e o público tornou-se, pois, tênue.

O espaço privado foi, em nossa compreensão, reapropriado pelos sujeitos históricos que experimentaram essa convivência através de um diálogo contínuo. Um diálogo pautado no respeito à pluralidade e em um sentimento que acreditamos ser marcadamente comunitário na forma de se relacionar da família Modesto, tanto com as pessoas como com os territórios que ocuparam.

As aulas de capoeira no quintal de Dona Elvina tornaram-se gradativamente uma extensão da vida familiar naquele momento. A prática cultural nesse espaço impôs à toda família uma relação com a capoeira. Direta ou indiretamente a capoeira invadiu o cotidiano da família, ganhando diferentes significados na construção da memória individual de seus membros.

quando Maurício chegou com aqueles colegas, tudo sem camisa, cinco colegas e aí colocaram umas músicas lá e começaram a jogar as pernas pra lá e pra cá. Eu fiquei olhando do vitrô e falei: Que coisa feia é essa?... Eu falei: Mãe, mas é muito esquisito, ah, eu não gostei desse povo aqui no quintal jogando perna pra cima, pra baixo, ah, que coisa feia! Aí ela: deixa ele, você deixa ele, que isso é coisa dos escravos, você não estudou sobre os escravos? Estudei que eles tinham uma luta, que eles se defendiam. Ah, então essa é a capoeira que os escravos se defendia? Aí eu fui pra

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porta olhar, observar como ele tava fazendo pra jogar, como ele fazia pra ensinar aqueles meninos em um espaço tão curto...20

O contato da irmã de Maurício, Magnólia Maria, com a capoeira se deu no cotidiano do lar, enquanto cozinhava com sua mãe. O estranhamento não apenas em relação à capoeira, mas ao acontecimento em si, sugere que até aquele período a capoeira não fazia parte do universo cultural da família e aponta indiretamente para um sentido de surpresa que vai, no mínimo, em duas direções: primeiro, o desconforto em perceber a invasão do espaço privado por uma prática cultural coletiva e, em segundo lugar, um desconhecimento da prática da capoeira.

A partir das narrativas dos irmãos Eufraudísio, Eufrásio e Magnólia, percebemos que a construção das narrativas históricas elaboradas durante as entrevistas para a realização da dissertação partem de referenciais diversos e demonstram como eles enquanto protagonistas da história que narram, interpretam de maneiras diferentes os processos sociais nos quais atuaram diretamente.

Os significados atribuídos à capoeira e aos processos sociais vivenciados na experiência da formação e desenvolvimento da Associação Cultural Corrente Libertadora pelos irmãos nos remetem a concepção de memória como prática política,21 como campo de disputa em torno da construção da memória. Considerando que a construção da memória parte do presente para o passado, entendemos que a relação que esses sujeitos têm hoje com a capoeira foi determinante para os significados que atribuem à capoeira e a sua prática social no passado.

Três excertos das narrativas dos irmãos22 permitem que adentremos na complexidade da construção dessa memória, os olhares sobre a capoeira no período de formação da Associação (1976-1980)23 e suas relações históricas.

Segundo Eufrásio Modesto, Mestre Tigrão, 55 anos, responsável pelo núcleo de capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora desde 1989, coordenador e

20 Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010. 21 Tomamos esse referencial do artigo Muitas Memórias, Outras Histórias - Cultura e o sujeito da História, da professora Yara Aun Khoury, In: Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho Dágua, 2004. 22 Infelizmente não podemos contar com a narrativa de Mestre Maurício, fundador da Corrente Libertadora, falecido em 2005. 23 Esse recorte do período foi determinado no processo de pesquisa, por entendermos que foi nesses anos, que os irmãos em conjunto definiram a proposta de trabalho da Associação. 39 colaborador dos projetos sócio-culturais desenvolvidos pela entidade, a capoeira passa a fazer parte de sua vivência social na cidade de São Paulo, como segue a narrativa:

Então, lá num tinha.... eu nem conhecia o que era capoeira... Não existia essa capoeira, isso lá na minha cidade. Se existia capoeira, eu não via falar capoeira... que eu me lembro, nunca vi capoeira na Bahia. Isso é uma coisa que se eu for falar isso pra um capoeirista, ele vai me matar, ele vai achar que eu sou louco!...A conversa que eu via falar em chinelo, Olha aquele cara é bom de chinelo! Aquele cara é bom de porrada! Bom de briga! De chinelo! Chinelo era o que a gente falava. Agora capoeira, sinceramente, na minha época, eu não via falar. Eu vi falar em capoeira, vou falar uma coisa pra você: foi em São Paulo.24

Para Eufraudísio Modesto Filho, Mestre Eufraudísio, 58 anos, comerciante, contador de causos, músico, supervisor de cultura da cidade de Várzea Paulista e colaborador das ações sócio-culturais da Associação, a capoeira já estava presente em seu cotidiano na Bahia.

lá na Bahia, mas precisamente na cidade de Itapetinga, eu já tinha um envolvimento cultural, onde a gente já tinha um contato com a capoeira, eu já pesquisava...praticava muito pouco... na verdade o que a gente praticava, era o que a gente chamava de pernada na beira do rio, o que era a capoeira primitiva praticamente, que era a brincadeira de moleque, de garotos na beira do rio, dando pernada, que se chamava lá de capoeira, mas nada com um propósito mais cultural, só que a partir dali, veio a curiosidade...quando ele (Maurício) um adolescente, mulecão começava a desenvolver uma movimentação da capoeira, pra mim já era uma coisa super importante...eu ficava incentivando bastante essa prática dele, por que era uma coisa da nossa cultura e eu conhecia um pouco desde a Bahia... mas eu percebi que realmente em São Paulo já se desenvolvia a capoeira mais de forma profissional, uma coisa com maior evidência cultural...25

Para a irmã Magnólia, hoje 56 anos, cabeleireira e colaboradora das ações culturais da Associação, a capoeira aparece quase como uma reminiscência do passado, sem um vínculo de observação ou de prática.

assim, a história da Corrente, do Maurício foi uma coisa assim muito inesperada da minha parte, por que até então eu já era casada... já com minha filha... e o Maurício chegou, chamou uns colegas lá e sinceramente eu não sabia o que era capoeira, eu baiana e não sabia o que era capoeira. Me lembro vagamente que quando eu estudava lá, uma professora chamou o irmão dela pra jogar capoeira pra gente ver, eu me lembro mais ou menos, mas eu era muito pequena, então conforme eu fui crescendo, eu não via falar de capoeira lá na cidade que eu morava e aí, quando Maurício chegou com aqueles colegas tudo sem camisa... falei: Que coisa feia é essa?26

24 Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08. 25 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 26 Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010.

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É importante notar que apesar das lembranças dos narradores estabelecerem relações diferentes com a capoeira, todos, entretanto, têm um referencial sobre a capoeira. Durante o processo de formação e envolvimento desses atores sociais na Associação Cultural Corrente Libertadora, esse referencial foi sendo reelaborado a partir de suas experiências afetivas, sociais, culturais e políticas.

É significativo que, dentre os três irmãos, o único a estabelecer uma percepção mais elaborada da capoeira, e a inseri-la no campo da cultura, atribuindo assim, importância política à sua prática, foi o irmão mais velho Eufraudísio – Ms. Eufraudísio.

Como veremos mais adiante, Ms. Eufraudísio se envolveu intensamente nos Movimentos Populares e na militância do Movimento Negro em São Paulo, envolvimento que colaborou para que o Mestre se aproximasse cada vez mais dos estudos que tangem a trajetória dos africanos e seus descendentes em território brasileiro, bem como na pesquisa auto-didata acerca das manifestações da cultura popular.

Ao narrar seu contato com a capoeira, Ms. Eufraudísio chama a atenção para o fato de ter um contato anterior e de incentivar o irmão Maurício, provavelmente vendo na capoeira um aspecto da resistência negra no Brasil. Ademais, identificar a pernada na beira do rio como capoeira, indiretamente nos remete a tradição da capoeira baiana, para qual, a capoeira surgiu na Bahia e por isso é uma prática corriqueira no estado.

A pernada na beira do rio, para o Ms. Eufraudísio vai de encontro com o chinelo ou chinela, para o Ms. Tigrão. Embora Ms. Tigrão não julgasse ser o chinelo, capoeira, nas duas referências aquela atividade física, lúdica, era uma prática que se dava no universo da rua. Vista através do olhar do presente, a capoeira para ambos foi, na infância e juventude na Bahia, uma brincadeira de meninos ou uma forma de luta, briga de rua.

A narrativa de Ms. Tigrão indo no sentido contrário à de Ms. Eufraudísio, tenta marcar um rompimento com a chamada tradição da capoeira baiana. Em sua narrativa fica patente uma situação que beira o constrangimento em assumir publicamente para outros capoeiristas que não aprendeu jogar capoeira na Bahia, aliás, segundo ele, nem mesmo conhecia a capoeira enquanto prática cultural ou esportiva como veio a conhecer na cidade de São Paulo. Esse elemento corrobora para pensarmos como essa dita tradição da capoeira baiana se reatualiza continuamente, apesar das intrínsecas contradições e ambiguidades que a compõem.

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O projeto populista do Estado Novo de forjar uma pretensa identidade nacional - harmoniosa e disciplinada – pretendia transformar a capoeira em um símbolo nacional, juntamente com o carnaval e o futebol. Esse projeto ia de encontro aos interesses de intelectuais e artistas – como Gilberto Freire, , Caribé – que empenhados em construir uma identidade baiana (para conhecimento, visibilidade e valorização da cultura local) apoiaram os mestres de capoeira, representados por Ms. Bimba e Ms. Pastinha, na estratégia de tomar para a Bahia a origem, pureza e difusão da capoeira no Brasil.

Segundo Letícia Vidor a invenção da tradição da capoeira baiana.

é fruto, de um lado, do exercício positivo do poder do Estado Novo. O governo Getúlio Vargas, no momento em que esportiza a capoeira, elege a capoeira baiana como a “mais pura”... cria-se, desse modo, a “impureza” da capoeira de outras regiões do país... essa “tradição inventada” também é resultado de uma disputa aguerrida pela hegemonia da “pureza” da tradição negra no país, travada principalmente entre Salvador e Rio de Janeiro.27

Entendemos que a posição de Ms. Tigrão está fortemente influenciada pela posição que assumiu desde 1989, momento em que a frente da coordenação da Associação desencadeou um processo de redefinição nos objetivos de atuação pedagógica e política da Associação marcando um rompimento com vários aspectos da prática da capoeira de até então.

A proposta pedagógica desenvolvida por Mestre Tigrão, depois de 1989, abandonou vários elementos da tradição da capoeira,28 o que nos ajuda a perceber que não há uma preocupação deste em alinhar-se a chamada tradição da capoeira baiana, porque a tradição concebida como o que permanece, com o inalterável, não contribui em seu trabalho cotidiano que pressupõe readaptações constantes na prática da capoeira visando atender as demandas de seus alunos.

Não obstante, a narrativa de Magnólia não demonstra pretender relacionar a capoeira como inerente à tradição baiana de capoeira, mas sim, de reafirma a figura do Ms. Maurício como o responsável em dar um significado à capoeira e desta, fazer parte de sua vida.

27 REIS, Letícia Vidor de Souza. Negros e Brancos no Jogo de Capoeira: A Reinvenção da Tradição. Dissertação de Mestrado: USP, 1993, pp. 64-65. 28 A proposta pedagógica desenvolvida por Mestre Tigrão abandonou vários elementos da tradição da capoeira, como a hierarquia social da capoeira, a disciplinarização das aulas, critérios de avaliação de graduação, entre outros. Discutiremos a proposta pedagógica no capítulo II. 42

Mediante essas questões recorremos às autoras da Introdução de Muitas Memórias, Outras Histórias,29 no desafio de lidar com a memória no plural, de construir um diálogo com o narrador de maneira que eles possam se reconhecer como sujeitos das narrativas que construíram.

Vemos nas narrativas dos irmãos Modesto, a diversidade de compreensão e interpretação da realidade e dos processos sociais dos quais participaram e participam na atualidade. Norteada pelas reflexões de Alessandro Portelli, Yara Aun Khoury nos adverte a despeito da narrativa oral:

como uma prática social, ela tem sua própria historicidade; narrador constrói sua identidade, fazendo uso dos elementos de sua cultura e historicidade e recorrendo a um passado significado e ressignificado no presente, ao tempo em que expressa tendências no processo vivido.30

As narrativas construídas pelos irmãos a respeito da capoeira, marcada pela diferença de referenciais, se encontram, se conciliam na figura do jovem Maurício – Ms. Maurício. Apesar do contato com a brincadeira de beira de rio ou da luta de rua da pequena cidade de Ibicaraí, a capoeira só passou a ter um efetivo significado nas vivências dos irmãos em solo paulistano através da ação do então adolescente Maurício.

Maurício começou a praticar capoeira em 1972, mesmo ano em que chegou a São Paulo, segundo Magnólia Maria. O fato de ser o mais jovem da família, poupado em certa medida da rápida inserção no mundo do trabalho na cidade, possibilitou que ele tivesse certa mobilidade: um transeunte anônimo que observa e toma a cidade pra si a partir de seus referenciais culturais. Reconhecer a capoeira como parte da cultura baiana, o aproximou dessa prática e abriu caminho para a construção de vínculos com pessoas e com a própria cidade.

Maurício então lançou mão da sua condição caçula e menor para estabelecer com a cidade de São Paulo uma relação mais fluída, no sentido de estar em certa medida isento da obrigatoriedade do trabalho. Pode dispor de um tempo que para os demais irmãos estava destinado ao mundo produtivo do trabalho. Esse tempo desobrigado do processo tido como produtivo lhe permitiu conhecer e interagir; já no primeiro momento, com a cidade por outro viés: o da cultura.

29 Estamos nos referindo às professoras Déa Fenelon, Heloisa Faria Cruz e Maria do Rosário Cunha Peixoto. 30 KHOURY, Yara Aun. Op. cit., p.128.

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O contato de Maurício com Zé Santos, capoeirista paulistano, se deu provavelmente nas ruas e bares do bairro em que moravam na periferia de São Paulo. A Vila São José no início da década de 1970 era um dos diversos bairros que compunham o distrito da Capela do Socorro.

Com padrões irregulares de muitas das moradias, os moradores ainda conviviam com precárias instalações de saneamento básico, rede elétrica, transporte, serviços de saúde, etc.31 Seus moradores nesse período se constituíam majoritariamente de migrantes, muitos de origem nordestina: trabalhadores que enfrentavam as faces de uma cidade em processo constante de transformação urbana, econômica e social e que ao mesmo tempo eram sujeitos ativos nesse processo de mudança.32

Se, por um lado, esse quadro de precariedade no padrão de vida dos moradores nos apresenta aspectos do processo de exclusão social esquadrilhada nos territórios ocupados pela população de baixa renda, por outro lado nos dá conta das estratégias desenvolvidas por parte dessa população no sentido de superar as dificuldades e reinventar o cotidiano muitas vezes através da cultura.

Com a ajuda do então amigo Zé Santos, Maurício transita pela cidade se apropriando desta, através da capoeira. Frequentando as rodas de capoeira da zona sul da cidade e em contato com Ms. Pinatti e Ms. Limão conheceu e aperfeiçoou os golpes e movimentos da capoeira em um processo criativo de aprendizagem.

Como anteriormente mencionado, Ms. Maurício não tinha condições financeiras para manter o pagamento das mensalidades nas academias de capoeira Associação de Capoeira São Bento Pequeno – Ms. Pinatti e Quilombo de Palmares – Ms. Limão, ambas localizadas na Zona Sul de São Paulo nos primeiros anos da década de 1970.

31 Segundo dados da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano, havia no início dos anos 90, cerca de 350 mil unidades de habitação em situação ilegal e fora dos padrões de habitabilidade em São Paulo, das quais as regiões de Capela do Socorro e Campo Limpo perfazem número expressivo (BÓGUS, 1992). Esse dado remete ao processo acelerado e desorganizado de ocupação intensa da periferia sem a presença efetiva do Estado através de políticas públicas, contribuindo para favelização de muitos bairros. 32 As lutas pela moradia e reforma urbana foi protagonizada pela população moradora dessas regiões da periferia da cidade. No final dos anos 70 existiam no Brasil 8 mil associações de moradores e a cidade de são Paulo contava com 900 (WANDERLEY,1992). Para se ter uma idéia, estamos nos referindo apenas as associações registradas, não considerando, portanto, os grupos que não se constituíram em associações e que participaram dos vários movimentos populares nesse período. 44

Diante desse obstáculo financeiro, Ms. Maurício passa a utilizar as manhas da capoeira: identificou as brechas do cotidiano das academias e se apropriou dessas brechas para continuar os seus treinos.

Embora os treinos, na maioria das academias sejam restritos aos alunos, as rodas semanais são abertas a visitantes de outros grupos. Se apropriando desse mecanismo, Ms. Maurício acompanhava os treinos, muitas vezes como espectador e participava intensivamente das rodas. Com a ajuda de Zé Santos, aluno regular do Ms. Limão, treinava nas ruas da Vila São José e no quintal de D. Elvina. Aquilo que observava, reproduzia buscando aperfeiçoar; aquilo que aperfeiçoava colocava em prática nas rodas de capoeira dos grupos conhecidos.

Esse processo de produção do conhecimento da capoeira baseado na observação e imitação, é um princípio pedagógico na produção de diversos saberes, inclusive da capoeira, mas o que entendemos como uma particularidade na experiência do Ms. Maurício é que esse processo não se deu de forma unilateral, compreendendo um diálogo direto entre mestre e aluno, dentro de um espaço determinado: a academia.

Ao contrário, os ensinamentos do mestre foram apropriados de maneira indireta em três sentidos: primeiro na observação, em segundo lugar, através de treinos com um aluno do mestre fora do espaço da academia e, por fim, desenvolvendo sozinho os movimentos aprendidos. Há nesse processo de aprendizagem de Ms. Maurício um traço marcadamente auto-didata, de autonomia diante da produção do conhecimento.

A trajetória de formação em capoeira do Ms. Maurício compartilha aspectos comuns com a de muitos capoeiristas, muitos migrantes, que iniciam sua prática de capoeira na cidade de São Paulo entre a segunda metade dos anos 1960 e primeira metade dos anos 1970. Isso porque, esse período compreende um momento relevante para a visibilidade social e cultural da capoeira na cidade.

Acompanhado o processo de migração de um grande contingente de nordestinos para a cidade, muitos alunos formados por mestres renomados da Bahia33 chegaram a São Paulo com o objetivo não apenas de sobreviver, mas também de divulgar a prática da capoeira. Assim, na

33 Estamos nos referindo à alunos formados de Ms. Bimba, Ms. Pastinha, Ms. Canjiquinha, Ms. João Pequeno Ms. João Grande. Para identificar alunos e mestres desse período, Ver: REIS, Letícia Vidor de Souza. Op. cit. 45 década de 1960 mestres, hoje de renome internacional, iniciaram seus trabalhos na cidade e a formação de alunos para a expansão da capoeira.

Mestre Suassuna, Caiçara, Brasília, Natanael trouxeram da Bahia o conhecimento de mestres tradicionais da arte da capoeira: Ms. Bimba, Canjiquinha, João Grande, João Pequeno, somando forças a trabalhos de mestre que aqui já estavam, como Mestre Ananias presente na cidade desde 1950. Os trabalhos desses mestres contribuíram para a visibilidade da capoeira e principalmente para fortalecer a vertente da capoeira baiana.

Na década de 1970, precisamente em 1974, ocorre a fundação da Federação Paulista de Capoeira, e a capoeira alcança o status de desporto. A capoeira passa a partir de então, a ter um órgão representativo e normativo, como os demais esportes no Brasil. Embora não haja consenso entre capoeiristas sobre a finalidade esportiva da Federação, a efetivação da Federação de Capoeira representou a vitória social e política para os capoeiristas que concebem a capoeira como esporte e que, como tal, deve atrelar-se a um órgão legalmente representativo, saindo assim da marginalidade das ruas.34

Nesse processo político e cultural, a capoeira cresceu na cidade e se expandiu através dos alunos formados por esses mestres, alguns em poucos meses de treino são formados, outros seguem um processo mais sequencial de ensino sendo, portanto, a longo prazo. Mestre Maurício formou-se em 1975, recebendo essa graduação de Ms. Pinatti.

Não nos cabe no limite desse capítulo, inclusive por falta de fontes, a discussão em torno do processo de formação do Ms. Maurício, entretanto, podemos avançar no sentido de conhecer e refletir sobre os desdobramentos de sua atuação como mestre de capoeira.

Nessa perspectiva, seguimos a experiência da formação da Associação Cultural Corrente Libertadora. De volta ao quintal de D. Elvina, entre a sombra da Barriguda e o poço artesiano, encontramos Ms. Maurício com seus primeiros alunos, fazendo da sua casa o espaço da prática da capoeira e envolvendo membros da família como o primo Adelino e iniciando um processo de convencimento em relação aos irmãos. Eufrásio Modesto, Ms. Tigrão nos conta como se deu sua aproximação com a capoeira:

Ai, como ele treinava com cara que tava no São Bento Pequeno que era do Pinate, ele treinava com esse cara em casa. Foi num dia que eu cheguei, no começo de setenta e

34 A fundação da Federação Paulista de Capoeira está inserida em um movimento político mais amplo, que não nos cabe detalhar aqui, mas para sua compreensão, Ver: REIS (1993;2000) e VIEIRA (2004). 46

quatro, falei: Esse ano faço dezoito! tirando um barato dele e aí ele falou: Olha eu tô fazendo capoeira. Eu falei: Dá Licença, capoeira. Meu negócio é karatê! E fui pra cima dele. Brincadeira... Então eu era um cara bom de briga, então eu fui pra cima do Maurício. Pra que eu fui pra cima minha filha? Ele me deu um rodo tão feio! Pegou nas duas pernas minha, minha bunda ficou uns três dias doendo! (risos) eu falei: Sabe que esse negócio é muito bom! Eu vou aprender esse negócio! Aí eu comecei a gostar da capoeira, falei: nossa é muito bom cara, me ensina! Comecei a me envolver com ele e aí, nossa! Comecei a pegar um gosto tão grande assim...35

Podemos identificar na narrativa de Ms. Tigrão que o rapaz, a quem está se referindo é Zé Santos, podemos também identificar aspectos recorrentes em sua relação com a capoeira, sobretudo no que tange aos elementos de luta que compõem a capoeira. Em nenhum momento das duas entrevistas cedidas pelo Ms. Tigrão ele se refere a capoeira como expressão cultural ou como luta de resistência negra. As narrativas indicam que essa construção da capoeira como cultura de caráter popular, como símbolo de resistência de um povo é posterior à sua iniciação na capoeira. Assim como o Chinelo na Bahia, o que aproximou o Ms. Tigrão da capoeira foi a eficiência desta como luta, como possibilidade de ataque e defesa, um diferencial nas relações e conflitos vivenciados nas ruas de São Paulo.

Na narrativa de Ms. Tigrão o encontro com a prática de capoeira em São Paulo se deu em casa, no ambiente familiar. Os treinos se tornaram paulatinamente regulares, então podemos visualizar um trânsito constante de pessoas na casa de D. Elvina. Podemos intuir que a família acolheu a capoeira em uma atitude de interagir com a experiência de Maurício. Na narrativa de Magnólia esse caráter afetivo fica patente como elemento que possibilitou a proximidade e a aceitação da capoeira.

Aí eu fui pra porta olhar, observar como ele tava fazendo pra jogar, como ele fazia pra ensinar aqueles meninos em um espaço tão curto do quintal... eu fiquei olhando da porta, aí ele olhou pra mim, ele... Cê quer aprender? Deus me livre! Quero aprender isso nada! Isso é feio pra mulher! Ele falou: Não, não é feio não. Aí eu falei: Não, não quero aprender isso não! Mas eu quero ver, tô achando bonito...você jogando, agora, eles eu não tô gostando não. Mas aí ele levou na brincadeira e todos os dias... todos os dias ele levava o pessoal lá. Aí às vezes tinha seis, às vezes tinha oito, nunca foi menos que cinco e aí ele dava o jeitinho pra jogar com cada um deles... no quintal, aí passou um tempo, ele falou assim: Oh Nólia, sinceramente eu quero que você me ajude...Assim, minha mãe fica me criticando... quem criticou fui eu! Não, mas fora de você ela critica, pede pra ela não ficar me criticando perto dos meninos, por que eu quero que esse pouco, seja meus primeiros alunos de uma academia que eu vou montar.36

35 Idem. 36 Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010.

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O espaço da casa possibilitou o contato, a aproximação e o estreitamento dos laços afetivos de alguns de seus membros através da capoeira. Ms. Maurício no restrito espaço do fundo da casa de sua mãe iniciou sua prática pedagógica de capoeira antes mesmo de fundar seu grupo de capoeira, antes mesmo de contar com o apoio de seus irmãos. Primeiro constituiu a prática e no segundo momento estabeleceu as estratégias para a viabilidade de crescimento de seu trabalho.

Nesse sentido, é relevante enfatizar que foi com o intuito de ajudar o irmão Maurício a driblar as resistências da mãe Elvina, que Magnólia passou a colaborar com Maurício no objetivo de fundar um grupo. Foi o vínculo familiar, afetivo que levou Magnólia à capoeira. Maurício, pois, fez um movimento de articulação na família, envolvendo e trazendo seus familiares para o universo cultural da capoeira.

Acreditamos que esse movimento só teve penetração por que já havia na família a cultura de compartilhar experiências e projetos. Um sentido comunitário na comunicação e construção de conhecimentos. Comunitário no sentido de haver um nível de identidade entre os membros do grupo capaz de gerar projetos em comum.

Maurício começa a construção da primeira sede do então, Grupo de Capoeira Corrente Libertadora, no Jd. Alpino – Vila São José, em sociedade com Zé Santos. Essa sociedade estava baseada no convívio das aulas, mas se dava também no âmbito material: Zé Santos cedeu parte do terreno de sua casa para a construção do salão, em contrapartida, Maurício realizava o trabalho braçal da construção durante a semana, muitas vezes com ajuda dos irmãos, como relembra Ms. Tigrão:

Então aí, a construção da academia lá no Jd. Alpino, que foi assim, uma coisa assim de carinho dele, construir, levar os blocos pra lá e chamar a gente pra ajudar a fazer, e fizeram o salão. O salão ficou nossa! E rolou, aí sim começou a rolar capoeira, e eu comecei a treinar mesmo.37

A construção da primeira Sede em 1976 marca de certa forma uma transição na forma de desenvolver a capoeira, antes praticamente caseira, no sentido literal da palavra; convivendo diariamente com a complexidade das relações familiares que oscilavam e se tencionavam entre o sentimento de aceitação e resistência, para um segundo momento, no

37 Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08. 48 qual, apesar da precariedade estrutural, a capoeira possuía um lugar específico para sua prática e para desenvolver o aprendizado de outras manifestações culturais.

O Corrente Libertadora se estruturou enquanto grupo no bairro em que morava a família Modesto, inserida na comunidade de Capela do Socorro. A realidade social da comunidade confundiu-se com a do grupo que se formava. Alunos, professores e mestres compartilhavam as dificuldades de realizar na periferia da cidade os seus projetos de vida.

A Corrente Libertadora na realidade, começou na minha pessoa. Agora, a primeira Sede começou aqui nesse local... Cavamos, quer dizer, eu mesmo cavando, eu e o pedreiro, eu sendo servente de pedreiro e conseguimos fazer uma sede de 7/4 de diâmetro. Aí começou a coisa rolar.38

A narrativa de Ms. Maurício desenha um pouco o esforço em realizar um projeto de trabalho cultural no espaço da periferia. O esforço pessoal de Ms. Maurício na construção da Sede do grupo, indica os limites financeiros com os quais conviviam, mas paralelamente nos dá dimensão da experiência cotidiana no fazer cultural desses grupos sociais à margem da produção cultural de mercado. Impostas as dificuldades, elaboram estratégias de desenvolvimento de seus trabalhos utilizando os mecanismos disponíveis: o conhecimento do espaço em que residem, as relações de amizades, as habilidades individuais e de grupo.

A família Modesto, enquanto núcleo interage nesse momento através da participação de Eufrásio Modesto, nesse período já aluno de Ms. Maurício, de Magnólia Maria que contribuía para a efetivação dos planos do irmão mais novo e de Eufraudísio Modesto Filho que acompanhava e incentivava a realização desse projeto.

Entretanto, o sujeito que introduziu a presença da capoeira nessa família foi o jovem Maurício, que em um movimento intenso de articulação entre o saber da rua – espaço público – com o saber de casa, o espaço privado, conseguiu viabilizar o processo de construção da Associação Cultural Corrente Libertadora, através da criação inicial de um grupo de capoeira.

38 Depoimento José Maurício Neto – Ms Maurício. In: QUILOMBO da Memória. Direção de Saloma Salomão. São Paulo: Fantasma Vídeo, 1993.

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1.2. Cultura e Política na Prática de Capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora

Saindo da sombra da barriguda no quintal de D. Elvina o Grupo de Capoeira Corrente Libertadora construiu seu primeiro espaço de aula no Jd. Alpino por volta de 1976. Utilizamos a palavra construiu por que esse espaço foi levantado tijolo a tijolo por José Maurício no terreno da casa de seu companheiro de capoeira. Como anteriormente mencionamos, a formação do grupo de capoeira, bem como a construção da academia se fez em sociedade com Zé Santos.

O bairro em que vivia passou também a ser o bairro no qual Ms. Maurício trabalhava e que dialogava com as demandas da comunidade. É pertinente observar que, contrariando o movimento de difusão da capoeira na década de 1970 em São Paulo, que se fazia conhecida a partir do centro da cidade, a Corrente Libertadora se desenvolveu desde seu princípio na periferia.

Entre a década de 1960 e 1970 os baianos perfaziam um total de 10% da população de São Paulo (PRANDI,1990: p.51), dentre os quais, estava o que Letícia Vidor identificou como primeira e segunda geração de capoeiristas baianos na cidade paulistana.39 Mestre Suassuna e Mestre Brasília, da primeira geração de capoeiristas baianos na cidade, fundaram em 1967 no bairro de Santa Cecília a academia Cordão de Ouro que juntamente com a Roda de Capoeira da República – ativa desde anos cinqüenta – eram locais privilegiados de encontros de capoeiristas das duas modalidades de capoeira: Angola e Regional.40

39 REIS, Letícia Vidor de Souza. Negros e Brancos no Jogo de Capoeira: A Reinvenção da Tradição. Dissertação de Mestrado: USP, 1993, pp. 126 e 129. 40 A distinção entre Capoeira Angola e Capoeira Regional se deu nos anos 30, quando o presidente Gétulio Vargas oficializou a descriminalização da capoeira instituída em 1989. Nessa ocasião, Mestre Bimba – (1900-1974) – defendeu junto aos poderes constituídos o que chamou de Capoeira Regional, uma variante da capoeira já praticada, mas que incluía golpes de outras lutas, ocidentais e orientais, além da introdução dos chamados Balões de Bimba, novos toques de berimbau e a introdução de um incipiente sistema de graduações. Em oposição a essas transformações na capoeira defendidas por Bimba, Mestre Pastinha – Vicente Joaquim Ferreira Pastinha (1889-1981) – intitulou de Capoeira Angola, a capoeira que negava essas transformações, atribuindo à ela um status de pureza e de berço da tradição da capoeira baiana. Sobre os estilos de capoeira, ver: REGO, Waldeloir. A Capoeira Angola – Ensaio Sócio- Etnográfico. Salvador: Editora Itapuã, 1968. Sobre o processo de descriminalização, ver: REIS, Letícia Vidor de Sousa. O Mundo de Pernas para o Ar – A Capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 2000 e, Negros e Brancos no Jogo de Capoeira: A Reinvenção da Tradição. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993, pp. 64-5.

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Em 1969 Ms. Pinatte e Ms. Limão fundaram a São Bento Pequeno na av. Brigadeiro Luiz Antônio. Nos primeiros anos da década de 1970, os formados desses mestres e de outros da primeira geração intensificaram a difusão da capoeira na metrópole, formando grupos com características diversificadas, tanto do ponto de vista do jogo da capoeira como do posicionamento político, como se evidenciou a partir da fundação da Federação Paulista de Capoeira em 1974.

A atuação desses grupos na região central da cidade favoreceu o contato desses capoeiristas com um público mais diversificado em relação ao público residente nas periferias da cidade. Assim, grupos e associações de capoeira desse período e nesse espaço da cidade, atingiram um público significativo de parcelas da classe média interessado em cultura popular. Artistas, estudantes, professores e militantes políticos que interagiram e influenciaram nos caminhos trilhados por esses grupos.

O fato da Corrente Libertadora ter iniciado o seu desenvolvimento na periferia da cidade é em parte recorrência da situação socioeconômica da família Modesto, visto que a migração forçada do Sul da Bahia para São Paulo impunha limites à integração na cidade. O lugar a ser ocupado na cidade estava associado ao trabalho, às relações familiares e ao custo da moradia. Assim como para muitos outros migrantes, a família Modesto encontrou nas periferias em expansão a possibilidade de morar compatível a sua renda.

A questão habitacional para a família Modesto, bem como a construção da academia de capoeira almejada por José Maurício se insere em um quadro socioeconômico mais amplo, no qual há uma intersecção entre modelo político-econômico do Estado vigente, políticas públicas e as condições da classe trabalhadora.

Com o processo de industrialização e intensificação da urbanização da cidade de São Paulo após os anos 30, a questão da habitação se tornou preeminente para a compreensão das experiências da classe trabalhadora e para a dinâmica urbana na qual estava inserida.

À aceleração do processo migratório nos anos 60 respondia a necessidade do mercado de trabalho, e em contra partida dava visibilidade à ausência de políticas de fixação do homem ao seu território de origem, principalmente ao campo, essa combinação acarretou uma abundante e barata mão-de-obra, que incapaz de pagar aluguel ou comprar sua moradia nas cercanias do centro da cidade foi paulatinamente empurrada para lugares mais distantes.

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As políticas sociais propostas pelos governos militares (HABERT, 2006) entre os anos 60 e 70 e as políticas voltadas para habitação como a reestruturação do Banco Nacional de Habitação – BNH e a Lei Lehman (WANDERLEY,1992) buscavam construir uma imagem positivada do governo. Em nossa compreensão, essas leis funcionavam como um mecanismo de legitimação ao regime que paralelamente tinha uma política econômica pautada no arrocho salarial, precarização das condições de trabalho e na concentração de capitais nacionais e estrangeiros. 41

Apesar das políticas habitacionais42 e de reforma urbana, a década de 1970 e 1980 mesmo com a considerável diminuição do fluxo migratório em São Paulo, foi um período de grande expansão das periferias, caracterizadas por moradias que fugiam ao padrão de habitabilidade proposta pela própria Secretaria de Habitação da cidade; aglomerados clandestinos ou não, com infra-estrutura precária, onde muitos trabalhadores encontraram abrigo e construíram suas histórias.43

Segundo ,44 a rede de caminhos pelo qual se organiza a cidade na contemporaneidade parte de hierarquias pelas quais se distribuem os indivíduos segundo sua classe social e seu poder aquisitivo. Nessa perspectiva, para além das políticas habitacionais, a periferia de Santo Amaro se fez território para a família Modesto a partir do momento em que seus membros atribuíram significados as suas experiências naquele espaço físico.

O Grupo de Capoeira Corrente Libertadora passou a desenvolver suas atividades no bairro convivendo com essa conjuntura política, com as precariedades estruturais de qualquer periferia e encontrando no fazer cultural uma possibilidade de integração com a comunidade

41 Estamos nos referindo à políticas como o Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL, que previa erradicar o analfabetismo no Brasil e Projeto Rondon que arregimentava estudantes e interessados a levar assistência médica e social à população do interior do Brasil. Essa políticas federais agregadas a outras da mesma natureza, permearam a atuação dos governos militares, para nossa pesquisa, entretanto, a questão habitacional é que nos toca diretamente pois esteve presente no universo de nossos protagonistas desde o processo migratório até a inserção dos mesmos nos Movimentos Populares. 42 Segundo Luiz Eduardo W. Wanderley, mesmo com a criação do Plano Nacional de Habitacão Popular – PLANHAP e do Sistema Financeiro de Habitação – SFH que tinham a pretensão de retomar a preocupação inicial com a moradia popular prevista na criação do BNH e em de incrementos posteriores à essas políticas, como a Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Políticas Urbanas – CNPU, os impactos efetivos dessas foram minimizados à medida que o regime se consolidava, sendo os recursos dessas políticas direcionados, principalmente, para a habitação das classes médias, atendendo aos critérios empresariais e de mercado tidos como necessários para a estabilidade econômica. Ver: WANDERLEY, Luiz Eduardo W. As Políticas Urbanas e Lutas Pela Habitação. In: A Luta Pela Cidade em São Paulo. São Paulo: Editora Cortez, 1992. 43 Para uma discussão sobre habitação popular em São Paulo nas décadas de 1970 e 1980, ver: FILHO, Geraldo Francisco. O Crescimento das Favelas no Município de São Paulo de 1970-1985: A Problemática da Habitação Popular. Revista Projeto História, nº7, 1987. 44 MILTON, Santos. O Espaço dividido: Os dois Circuitos da Economia Urbana dos Paises Subdesenvolvidos. São Paulo: Edusp, 2004. 52 que a cercava e da qual fazia parte. Entretanto, até meados de 1977 a Corrente Libertadora atuou mais diretamente como prática esportiva e cultural no modelo de academia.

Estamos pontuando essa particularidade por duas razões: a primeira diz respeito à prática da capoeira como manifestação cultural, mas que dialoga com o processo de esportização da capoeira na cidade e, a segunda, remete ao processo de gradual politização de suas ações ao se reestruturar enquanto Associação em 1977.

eu percebia que o grupo de moradores, esse grupo de trabalhadores, que o Maurício e o Zé Santos formava, era um grupo de pessoas muito simples, pessoas de boa índole, pessoas que tinham boa intenção, então, por isso, precisavam ter uma orientação mais cultural pra poder pegar essa linguagem da capoeira e transformar isso em uma matéria educacional, uma matéria de formação. Foi daí que eu coloquei para o Maurício, que era importante ter um nome, ter uma fama, mas isso precisava ser construído junto com todo mundo. ...na época, era uma moda...os grupos de capoeira terem nomes... capoeira do Ms. Limão, capoeira do Ms. Márcio, capoeira do Ms. Joel, Suassuna...e o Maurício tava indo muito nessa onda de capoeira do mestre, do Ms Maurício. Aí, a gente começou, já tinha o hábito de discutir comunitariamente, eu comecei a passar para o Maurício que o importante não era o nome dele, era a equipe, o grupo, por que fama não se fabrica. Fama se adquire com aquilo que se faz: se faz uma coisa boa, você vai ter uma boa fama; se faz uma coisa má, vai ter uma má fama. Então assim... eu lembro que a maior, a maior discussão que nós tivemos, mais acalorada, que ele queria colocar na frente da primeira sede, Capoeira Ms Maurício e eu falava que não. Que se ele escolheu... Corrente Libertadora, que fosse Corrente Libertadora! O nome dele viria junto, não precisava ele colocar na parede... mas a Corrente Libertadora revelava um conjunto de ideias e aí, foi a partir daí que ele conseguiu compreender e realmente nunca mais ele tocou no assunto que o nome dele tinha que sair, por que ele percebeu que a melhor coisa era o conjunto mesmo, eram os alunos e a gente foi crescendo a partir daí.45

A narrativa de Ms. Eufraudísio nos dá subsídios para entendermos o processo de transformação do Grupo de Capoeira Corrente Libertadora em Associação de Capoeira Corrente Libertadora a partir de 1977 e sua aproximação aos Movimentos Populares de então. Ocupado com as responsabilidades assumidas nos Movimentos Populares conduzidos pela Igreja Católica da região, Ms. Eufraudísio se via impossibilitado de ter presença constante na sede.

Acompanhando à distância as atividades da Corrente Libertadora, Ms. Eufraudísio agia no sentido de incentivar a manutenção e crescimento do grupo, enquanto atuava como liderança comunitária frente à paróquia da Vila São José, uma das precursoras das Comunidades Eclesiais de Base da Capela do Socorro. Devemos aqui nos relembrar que a família Modesto ao chegar em São Paulo foi recebida pela filha Angélica e, posteriormente,

45 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 53 foi acolhida por essa paróquia, mediante o vínculo estabelecido por Eufraudísio com aquela comunidade.

O envolvimento com a Igreja Católica também nos remete ao processo de inserção e apoderamento da cidade por parte do migrante, que se dá, muitas vezes, a partir de um movimento de reelaboração de suas referências culturais. Mediante a desterritorialização, muitos desses referenciais foram resignificados em uma dinâmica ativa entre memória e cotidiano social. O catolicismo, nesse sentido é um referencial que permite a muitos migrantes encontrar seu lugar, se identificar com práticas familiares a ele.

As atividades sociais desenvolvidas pela Igreja Católica na década de 1960 e 1970, nas periferias da cidade (principalmente aquelas norteadas pelos princípios da Teologia da Libertação) atenderam, para além do sentido político de propiciar um espaço de encontro e discussão – quando o canal de espaços públicos foram fechados ou cerceados pela ação repressiva do Estado na vigência da Ditadura Militar (1964-1984), atendeu também essa população de trabalhadores no sentido de apresentar estratégias de inserção na sociedade e no mercado de trabalho, através de cursos de formação, de orientações e de redes de solidariedades.46

A participação de Ms. Eufraudísio na paróquia de São José ia nessa direção: era um cristão exercendo sua religiosidade, era um migrante em busca de melhor formação e era um cidadão agindo por melhores condições de vida para sua comunidade. Essa participação, contudo, pressupunha o que aqui chamarei de festa: ações políticas desencadeadas por práticas culturais, sobretudo pela música que é o elemento propulsor da capoeira.

A música que permeava o cotidiano da família Modesto nos encontros de domingo, no tocar do violão do Ms. Eufraudísio, no cantarolar das meninas e na participação nos grupos musicais da igreja, nos parece ter sido um elemento de afinidade entre os irmãos para com a capoeira, e esta, o elemento que aproximou a Corrente Libertadora dos Movimentos Populares. Quando a pedido de Eufrásio Modesto – Ms. Tigrão – Ms. Eufraudísio se aproxima efetivamente da Corrente Libertadora, o Movimento Popular invade a academia que torna-se pequena para a ação social.

46 Para uma análise da participação da Igreja Católica nos Movimentos Populares, ver: WANDERLEY, Luiz Eduardo W. Igreja e Movimentos Populares. Revista Projeto História, nº 7, 1987. 54

Nesse período, provavelmente no correr de 1977, Eufrásio Modesto e Magnólia Maria já compunham o grupo, participando como alunos e colaboradores diretos das atividades na academia, mas a relação que tornara-se conflituosa entre José Maurício – Ms Maurício – e Zé Santos anunciava o rompimento da sociedade e o possível desamparo estrutural da Corrente Libertadora.

Interessante notar que, diante da eminente crise, os irmãos mais jovens foram buscar no irmão mais velho a escuta, o aconselhamento e o apoio necessário para a resolução do problema. Não queremos afirmar com isso que Ms. Eufraudísio exercia um tipo diferenciado de poder ou influência sobre os demais irmãos, mas antes, reafirmar que a formação da Associação Cultural Corrente Libertadora estava impregnada da prática familiar de compartilhar ideias, problemas e cultura.

Concomitantemente, fortalece nossa percepção de que os laços familiares estabelecidos no processo de reestruturação familiar (visto a ausência paterna) e de condição migrante estreitaram afinidades e cumplicidade entre os irmãos e que essa característica foi utilizada como uma estratégia de enfrentamento das dificuldades postas pela nova realidade social de viver na cidade de São Paulo.

O prenúncio de rompimento da sociedade entre Ms. Maurício e Zé Santos se confirmou com a presença efetiva de Ms. Eufraudísio no grupo. Os caminhos trilhados pela Corrente Libertadora passaram a seguir outra rota. A presença de Ms. Eufraudísio fortaleceu a ênfase nos aspectos culturais da capoeira e as possibilidades de atuação política do grupo, indo diametralmente contra a proposta de Zé Santos, inclinado aos aspectos esportivos e de luta da capoeira. A sociedade já abalada se desfaz.47

É sintomático que influenciado pela experiência no Movimento Popular, uma das primeiras discussões propostas por Ms. Eufraudísio girou em torno do nome do grupo. Preocupado em dar um caráter coletivo para o nome do grupo, Ms. Eufraudísio buscou através de argumentos fortemente politizados (como acentua na narrativa) deslocar o sentido individualizante de academia do Ms. Maurício para o sentido comunitário de associação.

Há, pois, uma preocupação em não romper com a trajetória cultural do grupo vivenciada até aquele momento – através da manutenção de seu nome de origem Corrente

47 Segundo relato de Ms. Tigrão e Magnólia Maria, as brigas entre Ms. Maurício e Zé Santos, além de questões técnicas sobre a capoeira, dizia respeito a uma possível traição. Ms. Maurício teria se envolvido em uma aventura amorosa com a esposa de seu sócio. 55

Libertadora, mas por outro lado, tenta pontuar a mudança de atitude política ao utilizar a terminologia Associação.

A terminologia Associação relacionada a Cultural define em nossa percepção, o campo e a diretriz de trabalho a que se propõe a entidade: uma associação que atua através da cultura. A cultura que pretende libertar. Nesse sentido, a composição Corrente Libertadora, embora pareça inicialmente uma incongruência, assume um significado subjetivo, no qual, a corrente se refere a um conjunto de pessoas, que envolvidas (acorrentadas, unidas entre si) a uma ideia e comprometida com ações podem contribuir para que outras pessoas se libertem de mecanismos de opressão, de condições de vida precárias e assim por diante.

Com a participação efetiva dos quatro irmãos – Maurício, Eufraudísio, Eufrásio e Magnólia – o grupo assume o nome Associação de Capoeira Corrente Libertadora e posteriormente, Associação Cultural Corrente Libertadora, como é registrada até o momento.48

A palavra associação tem aí um caráter político, no sentido de dar visibilidade ao trabalho de um conjunto de pessoas e não de um mestre e também indica o diálogo com as formas de organizações comunitárias existentes e em atividade na periferia de então, como as Sociedades de Amigos de Bairro - SABs .

Segundo Paul Singer, as SABs tiveram sua formação nos anos 50 e ganharam nos anos subsequentes notoriedade pública e política como organização de representatividade das comunidades (muitas localizadas na periferia). A principal função das SABs até meados da década de 1960 era de articular as demandas locais (requerimentos de melhoria de serviços urbanos) e apresentá-las as autoridades municipais. Embora essas associações tenham perdido

48 Infelizmente não tivemos acesso aos documentos legais como comprovante de registro em cartório, atas e regimento da Associação para aprofundarmos aspectos do processo de institucionalização da mesma. Como discutiremos em outros momentos da dissertação, encontramos dados institucionais do período em que a Entidade já estava consolidada como Associação Cultural Corrente Libertadora, portadora de representantes legais, Certificado Nacional de Pessoa Jurídica - CNPJ e diretoria executiva. Segundo Ms. Tigrão a retirada a palavra capoeira se deu como uma estratégia política de articulação entre a Entidade e os parceiros, não- governamentais e poder público, na viabilização de projetos sócio-culturais no anos 90. Essa informação indica que o processo de institucionalização foi relativamente longo (aproximadamente entre 1976-1993), mas embora o consideremos relevante, nos falta elementos para problematizá-los. Por outro lado, acreditamos que as demais fontes utilizadas conseguem dar subsídios para a compreensão do nosso tema central: a trajetória político- cultural da Corrente Libertadora. 56 seu vigor devido as novas atribuições e as relações políticas que estabeleceram,49 elas continuaram a atuar nas periferias da cidade com reconhecimento das comunidades.

Temos com vistas, principalmente na narrativa de Mestre Eufraudísio, que a SABs apesar da nova conjuntura, continuava a ser uma referência de organização para a família Modesto. Instituir-se como associação, estava pois, profundamente relacionada a ideia de intervenção social e participação direta nas lutas reivindicatórias da comunidade, na qual os irmãos e protagonistas da Corrente Libertadora estavam inseridos.

Acreditamos que foi a partir do encontro e familiaridade entre a ideia inicial da atuação das SABs com as novas abordagens de intervenção social estimuladas pelas Comunidades Éclesiais de Base – CEBs nas periferias, que a proposta de associação se colocou como preeminente na visão defendida por Ms. Eufraudísio e aceita pelos demais irmãos. Ela nos dá indícios do caráter comunitário da Associação começando pela figura do mestre de capoeira e do diálogo que estabeleceu com a conjuntura política.

A relação com a capoeira que iniciou-se com José Maurício – Ms. Maurício – paulatinamente foi partilhada com os demais irmãos, ocorrendo que com a formação destes, na prática da capoeira, a Associação Cultural Corrente Libertadora se compôs por três mestres: Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio e Ms. Tigrão.50

A figura do mestre de capoeira estrutura as relações sociais da prática da capoeira. O mestre é o que carrega consigo o conhecimento ancestral da capoeira. Conhece a musicalidade, a técnica, a história e a malícia dessa arte popular, conhecimento que transmite aos seus alunos através do exemplo, do jogo, do olhar e da tradição oral. Pela complexidade desse conhecimento, o mestre é a figura central da hierarquia da capoeira, seguido por contra- mestres, professores e instrutores.

49 Segundo Singer, as SABs desde sua origem conviveram com o assédio de setores políticos através de proposta de cooptação formal – torná-las em conselhos consultivos, por exemplo) ou através de barganhas eleitorais (benfeitorias em troca de votos). Sua composição social era heterogênia e em meados dos anos 60, o elemento pequeno burguês (formada por comerciantes, pequenos empresários, especuladores imobiliários, etc) tornou-se majoritário aproximando-se sobremaneira, dos interesses da autoridades municipais. Nesse período as SABs, começou a desenvolver atividades recreativas e assistencialista, o que contribuiu para o esvaziamento político e para o afastamento, das familias advindas dos setores populares. Apesar dessa conjuntura, a atuação das SABs não era homogênea, tendo exemplos nos quais o papel reivindicatório e popular foi intensificado como a experiência da SABs Vila Iolanda e do Jd. Kagohara. Ver: SINGER, Paul. Movimentos de Bairro. In: O Povo em Movimento. Petropólis: Vozes, 1980. 50 No início dos anos de 1990, a Corrente Libertadora passa a cunhar a definitivamente o nome Associação Cultural Corrente Libertadora e no emblema da Associação vem acompanhado o nome de Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio e Ms. Tigrão. Segundo Ms. Tigrão a retirada a palavra capoeira se deu como uma estratégia política de articulação entre a Entidade e os parceiros não-governamentais e poder público, na viabilização de projetos sócio-culturais. Esse aspecto será pormenorizado nos capítulos II e III dessa dissertação. 57

Comumente respeitando e valorizando esse papel desempenhado pelo mestre, muitos grupos de capoeira cresceram e ganharam notoriedade no Brasil e no exterior. Carregando o nome do mestre e do grupo em que se formaram, alunos desenvolvem seus trabalhos contribuindo para a visibilidade do grupo e reconhecimento social do mestre.

O que pretendemos evidenciar com esse aparte, são as particularidades da Associação Cultural Corrente Libertadora em seu processo de formação, nesse sentido, a figura do mestre no grupo não é apenas partilhada, mas é partilhada entre irmãos e os seus alunos depois de formados desenham seu caminho tendo a Corrente Libertadora como referencial e não atrelados a ela.

Particularidade que também desejamos aqui pontuar é o perfil dos alunos da Corrente Libertadora na Vila São José. Como nos descreve Ms. Eufraudísio, tratava-se basicamente de trabalhadores, moradores do bairro, sujeitos às dificuldades e precariedades do viver na periferia de São Paulo naqueles anos de expansão e de luta popular por ver seu espaço reconhecido e assistido pelo poder público.

Compreendemos que foi a partir do encontro entre as demandas sociais trazidas pelos alunos e a experiência cultural e política dos irmãos que coordenavam a Associação, que a Corrente Libertadora, a capoeira por eles praticada, extrapolou o seu universo de prática esportiva e cultural para ser compreendida como instrumento de intervenção política.

Esses alunos, trabalhadores de diversas áreas, donas de casa – muitos deles sobrevivendo com as restrições financeiras advindas de uma formação profissional precária ou desqualificada no espaço urbano – encontraram no fazer cultural da capoeira um sentido social de compartilhar ideias, experiências e prática política. O espaço da academia de capoeira deu lugar à Associação, isto é, um espaço de encontro, de construção de sociabilidades e de formação política.

A participação nos Movimentos Populares – principalmente no Movimento de Moradia, Custo de Vida e Comissão de Fábricas – obedecia a um diálogo constante entre a prática interna da Associação e as ações dos Movimentos. O componente político das atividades da Associação, pois, não correspondiam a uma vertente político-ideológica em um movimento de fora para dentro, mas antes a prática cotidiana da Associação a aproximou dos Movimentos Populares que encarnavam as angústias e reivindicações de seus alunos e mestres.

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sempre que havia um movimento de resistência social, a Corrente era chamada, porque era a capoeira que falava a língua da resistência popular. Então assim, nunca a gente se apresentava, em nenhum momento, em nenhum desses momentos sem colocar o nosso propósito... dentro da Corrente, como Associação Cultural nós tínhamos o Cine Clube, tínhamos um grupo de dança, dança folclórica e a gente tinha uma reunião por semana pra discutir os assuntos sociais com os alunos e aí, os trabalhadores, a família ... vinham pra esse debate. Às vezes assistiam um curta metragem de um tema específico e a gente discutia as questões sociais ali. Com isso a Corrente tinha uma inserção das pessoas dentro dessa questão do Movimento Popular. 51

As atividades culturais e as de conotação política se intercalavam com as aulas de capoeira. A capoeira era a porta de entrada pela qual os alunos entravam em contato com expressões da cultura popular – samba de roda, maculelê, puxada de rede, etc – que não conheciam ou que reviviam naquele espaço de sociabilidades.

Nesse sentido, não podemos deixar de pontuar as profundas diferenças na postura dos atores da Associação em relação as políticas culturais de âmbito federal nos anos 70. Inspirando-se nas diretrizes do Ministério da Educação e Saúde Pública da gestão Capanema (1934-1945),52 os governos militares preocuparam-se em estabelecer uma postura oficial acerca da cultura e de programas, que através de intensa propaganda midiática, marcasse a participação e controle do Estado nesse setor.

Ainda no governo Médici (1969-1973) foi criado o Departamento de Assuntos Culturais – DAC (1972) e lançado o Programa de Ação Cultural – PAC (1973), que juntamente com outras ações ligadas a várias vertentes do universo da cultura nas gestões posteriores buscavam cumprir, segundo Sergio Miceli, três objetivos primordiais, quais sejam: a preservação do patrimônio histórico e artístico, o incentivo à criatividade e à difusão das atividades artístico-culturais, e a capacitação de recursos humanos.53

Para a discussão que fazemos aqui, eximindo-se de fazer uma análise pormenorizada das transformações dos conteúdos e orientações da política cultural oficial desse período, nos toca diretamente o lançamento da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e a aprovação

51 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 52 A gestão de Gustavo Capanema contou com a colaboração de vários intelectuias como Carlos Drummond de Andrade, Anízio Teixeira e emprementou diversos programas e projetos. Entre eles destacam-se a reforma do ensino secundário e o grande projeto de reforma universitária. Em sua gestão se definiu uma política de preservação do patrimônio cultural do país, que culminou na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN, concebido por Mário de Andrade, além da criação do Instituto Nacional do Livro ambos retomados no governo Médici no final da década de 60. Ver: BADARÓ, Murilo. Gustavo Capanema. A Revolução da Cultura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 53 MICELI, Sergio. O Processo de Construção Institucional na Área Cultural Federal (Anos 70). In: O Estado e a Cultura no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1984, p.56.

59 da Política Nacional de Cultura em 1975. Em ambas, as tradições e costumes das classes populares são definidas como folclore, pertencentes ao patrimônio histórico e artístico do pais, cuja salvaguarda e preservação estavam sob a tutela do Estado e das Fundações à ele atreladas.

Essa concepção acerca das manifestações populares, que se pretendia harmoniosa, homogênea e unificadora ia na contramão das atividades da Associação, para quem, vivenciar as manifestações culturais era marcar as diferenças e enfatizar os processos econômicos- culturais que desencadearam desigualdades sociais. Distante de uma visão estática e de subalternização, como contempla a concepção de folclore,54 as manifestações culturais, a capoeira, era o que dava vida, cor e ânimo as ações políticas da Associação.

Ponderamos que na transição da gestão Ney Braga (1974-1978) e (1979-1980) ocorreu no Ministério da Educação e Cultura um deslocamento na orientação acerca das manifestações contemporâneas das classes populares de uma tendência conservacionista e museológica amparada pela ideia de legado cultural comum e nacional para a valorização do traço regional e local, sede do que é autêntico e nosso respectivamente, como analisou Sergio Miceli.55

Entretanto, tendo em vista essa conjuntura da política cultural e as narrativas analisadas, consideramos que mesmo com a introdução da noção de pluralidade e diversidade cultural no final dos anos 70, pouco desses programas chegaram efetivamente a ter algum impacto direto na realidade vivenciada pela Corrente Libertadora.56

A atuação da Associação caminhou no sentido de driblar qualquer possibilidade de catalogalização do fazer cultural. Nas brechas do cotidiano sob a égide da Ditadura Militar, as manifestações culturais vivenciadas pelos alunos e mestres da Associação estavam alinhadas a uma postura de resistência político-cultural, que não vislumbrava qualquer tipo de parceria com o Estado naquele período.

54 Para uma discussão sobre patrimônio e folclore, ver: CANCLINI, Nestor García. O Povir do Passado. In: Culturas Híbridas.São Paulo: Edusp, 2008. 55 MICELI, Sergio. Teoria e Prática da Política Cultural Oficial no Brasil. In: O Estado e a Cultura no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1984, p.108. 56 Sem neglicenciar os desdobramentos do gradual processo de abertura política iniciado no governo Geisel (1974-1979) que estava na base da Política Nacional de Cultura(1975) através de novas perspectivas e espaços abertos à cultura, entendemos que a presença efetiva do Estado na periferia de São Paulo ocorreu posteriormente, no final da década de 80 com a implementação das Casas de Cultura. 60

Por isso, entendemos que havia na prática da Corrente Libertadora uma forma de acolher através da capoeira, utilizando os elementos que lhe são próprios: a música, a dança, a roda, o jogo. Esses elementos da capoeira, compostos pelo traço da ludicidade, potencializam a característica de ser a capoeira uma atividade coletiva.

Cientes desse potencial agregador, inerente à capoeira, e seu aspecto multifacetado em possibilidades de desenvolvimento humano (físico, artístico, cognitivo, cultural) os coordenadores da Associação Cultural Corrente Libertadora vão atrelar a ela, outras atividades culturais e políticas, em um movimento contínuo entre as novas perguntas e demandas geradas no espaço urbano e as tentativas de elaboração de respostas por parte sociedade civil a elas. Nesse caso, a elaboração de estratégias de ação de grupos populares tinha como um dos pontos de articulação e mobilização social uma manifestação de cultura popular: a capoeira.

Em 1977 a Associação de Capoeira Corrente Libertadora passou a atuar na região estabelecendo relações com várias forças populares: foi uma das responsáveis pela articulação do Movimento de Moradia57 nos bairros do Grajaú, Pq. Residencial Cocaia e IV Centenário, logrando êxito nas ações de ocupação de terrenos e de construção de loteamentos populares, assim como na posterior legalização de posse dos terrenos.

O Movimento de Moradia se configurou como um dos mais articulados e de postura reivindicatória dentro das lutas sociais liderados pelos setores populares da cidade de São Paulo na segunda metade dos anos setenta, tendo a zona sul e principalmente, regiões de Santo Amaro, Capela do Socorro e Parelheiros centros de mobilização.58

57 Os movimentos ligados a questão da moradia eram bastante diversificados na realidade paulistana dos anos 70, segundo Gohn, ocorreram vários modos de organização das lutas em torno dessa questão: lutas pelo acesso à terra e habitação derivadas ocupações – assentamentos e terrenos clandestinos lutas pela posse da terra que atingia, principalmente moradores de favelas ameaçados de desalojamento; lutas de proprietários pobres que tiveram acesso a moradia por meio da compra de embriões de programas do poder público que buscavam a legalização, entre outros. In: GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Luta Pela Moradia. São Paulo: Loyola, 1991. 58 Segundo Singer, a movimentação popular para legalização de loteamentos clandestinos (que era a realidade de muitas famílias da zona sul) começou em 1976, promovida pelas CEBs com o apoio da Comissão Pastoral da periferia de Santo Amaro e dos Centros Acadêmicos 11 de Agosto (USP) e 22 de Agosto (PUC). Em 1978, a Capela do Socorro centralizava o movimento da cidade em reuniões mensais com seus representantes. Essa organização chegou a envolver o interesse de aproximadamente 50.000 pessoas. O movimento se estendeu para zona leste. A zona sul protagonizou outras ações dos Movimentos Populares desse período e o imediatamente anterior: Movimento do Custo de Vida (Vila Remo – 1973), Luta por transporte (1974) e o Movimento das Favelas de São Paulo (Santo Amaro – aproximadamente, 1977). Ver: SINGER, Paul. Movimentos de Bairro. In: O Povo em Movimento. Petropólis: Vozes, 1980, pp. 94-6. 61

Os fundadores da Corrente Libertadora conheciam de perto a realidade social dessa região, estabelecendo relações e ações acerca da questão da moradia e a necessidade da construção de uma rede de serviços – como creches e postos de saúde na região – que atendesse às demandas das famílias de trabalhadores, carentes desses equipamentos públicos. Esses objetivos aproximaram as lideranças locais do recém-criado Partido dos Trabalhadores (PT) da Corrente Libertadora, tendo na Sede provisória da Associação um dos primeiros espaços de encontros para discussões e organização do partido na região.

O depoimento de Arselino Tatto, hoje vereador do Partido dos Trabalhadores da cidade de São Paulo e atualmente (2010) líder da bancada de seu partido na Câmara nos traz elementos para pensarmos a atuação político-cultural da Corrente Libertadora na segunda metade da década de 1970:

Eu iniciei a minha vida, digamos assim, política, o início da minha conscientização foi através da Corrente Libertadora. Através do companheiro Maurício, Eufraudísio, Tigrão e Magnólia e, outros companheiros dessa academia. Não era apenas uma academia que ensinava a jogar capoeira, absolutamente. Era uma academia que tinha uma finalidade principal: conscientizar os seus alunos e não só os alunos. Mesmo as outras pessoas que procuravam a academia, sempre tinham espaço na Corrente Libertadora para discutir os problemas da região, problemas da cidade, os problemas do país e a academia funcionou muitas vezes, a sede da academia, para reuniões do Partido dos Trabalhadores, para reuniões do Grupo de Cultura da Região de Interlagos, para dos Movimentos Populares. A academia sempre assessorou e contribuiu, inclusive na época da ditadura, com as greves, apoiando as greves, se solidarizando com as greves, arrecadando alimentos, arrecadando fundos para que o sucesso da greve fosse atingido. Então, uma das coisas mais importantes que aconteceram nessa região foi a Corrente Libertadora.59

Arselino Tatto, líder do Movimento de Moradia de Parelheiros nesse período, pontua algumas das atividades que a Corrente Libertadora assumiu junto aos Movimentos Populares, nesse sentido, a Sede do grupo acabou por se constituir em um espaço público, espaço no qual as pessoas da comunidade se colocaram, se fizeram sujeitos políticos.

É sempre relevante enfatizar que a segunda metade da década de 1970 é o momento de reestruturação e organização dos Movimentos Populares em São Paulo, visto que os espaços tradicionais de representatividade da classe trabalhadora (sindicatos, partidos políticos,

59 Depoimento Arselino Tatto. In: QUILOMBO da Memória. Direção de Saloma Salomão. São Paulo: Fantasma Vídeo, 1993. 62 associações, etc) viviam sob a repressão, vigilância e medo imposta pela experiência do autoritarismo. 60

Nessas circunstâncias, o espaço político proporcionado pela sede da Corrente Libertadora configurou-se em um canal de reconhecimento do outro, através da exposição de conflitos, identificação de problemas comuns à comunidade e a busca por resoluções dos mesmos, mediante a ação direta dos sujeitos políticos que protagonizaram essas ações.

O espaço da capoeira, que também era o espaço do samba de roda, das músicas e danças populares, do teatro, do cinema, era também o espaço de formação política, concebida como processo de conscientização e construção da autonomia do indivíduo. Essa formação era norteada pelo senso comunitário, objetivando a garantia de direitos que beneficiasse o coletivo e que propiciasse a construção de espaços públicos alternativos, não institucionalizados.

As discussões entre os participantes do grupo diziam respeito principalmente ao acesso a serviços públicos – saneamento básico, pavimentação, escola, creche, coleta de lixo, higiene, transporte, moradia – mas também, era perpassada por questões trabalhistas – condição de trabalho, salário, formação profissional – entretanto, o que torna particular a trajetória da Associação Cultural Corrente Libertadora é que, o que mobilizava e articulava o encontro desse grupo de pessoas era a capoeira, a capoeira enquanto manifestação cultural.

Compreendemos, pois, a capoeira desenvolvida pela Associação Cultural Corrente Libertadora como cultura popular porque ela está intimamente relacionada com o universo dos seus fundadores, com as preocupações culturais e sociais que permeiam sua prática e com o público que pretendia atender. É considerando o lugar de onde falam esses atores sociais e a natureza dos interesses por eles defendidos, que se define o caráter popular de sua experiência cultural e política.61

As atividades culturais – maculelê, samba de roda, danças folclóricas, teatro – e a capoeira como expressões culturais nutriam o desenvolvimento da Associação e convergiam com os Movimentos Populares no mínimo em duas direções: no processo de formação político-cultural dos alunos e como elemento de mobilização popular.

60 Ver: TELLES. Vera Silva A Experiência do Autoritarismo e Práticas Instituintes – Os Movimentos Sociais em São Paulo nos Anos 70. Dissertação de Mestrado: USP, 1984. 61 Ver. HALL, Stuart. Notas Sobre a Desconstrução do “Popular”. In: Da Diáspora Africana: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Humanitas, 2003. 63

A formação político-cultural ocorria desde o processo de aprendizagem da capoeira e das demais manifestações culturais na vivência das aulas, como nos ciclos de discussões, na experiência como espectadores ativos no Cine Clube Corrente Libertadora62 e na participação em apresentações públicas da Associação.

O aluno formado, Marcelo Pinheiro de Menezes, 40 anos, empresário e secretário da SOBEVEL – Sociedade Beneficente Veleiros compartilha conosco as impressões do menino de 10 anos que vivenciou essa formação junto à Corrente Libertadora:

Mulheres, homens, adultos e crianças, a capoeira era para todos, independente de raça ou cor ou idade. Todos os alunos que se destacavam eram convidados para as exibições. Partíamos de peruas, carros, etc, para apresentações em diversos locais onde nossa recompensa era o público aplaudindo e o lanchinho que nos era ofertado. Durante a viagem íamos tocando e cantando, todos muito animados. O movimento tinha participação política... eram montados palanques onde fazíamos nossas apresentações defendendo a classe dos trabalhadores... tínhamos aulas de música, cinema 8mm, aprendíamos a montar berimbau e a tocá-lo. Assistíamos filmes antigos sobre a historia da capoeira, tudo em 8mm aqueles rolos de fita que hoje deve estar todos no museu, era uma atração a parte sempre que tinha estas sessões a academia ficava lotada.63

As apresentações da Corrente Libertadora em parceria com os Movimentos Populares funcionavam como elemento de mobilização popular, para alcançar o maior número de pessoas possível e colaborar para a visibilidade das reivindicações que se manifestavam. A Associação se estruturou pedagogicamente no sentido de formar um grupo especializado para apresentações, nesse sentido, o resultado do aprendizado da capoeira – habilidade, ritmo, flexibilidade, agilidade, destreza – era o que caracterizava a ação da intervenção social nessa parceria e não a proposta pedagógica em si como ocorrerá a partir de 1989 com o trabalho do Ms. Tigrão.

As apresentações públicas da Corrente Libertadora em eventos culturais e em manifestações políticas dos Movimentos Populares tiveram como desdobramentos imediatos, a proximidade cada vez maior da Associação com núcleos de trabalhadores e da sociedade civil organizada.

62 O Cine Clube Corrente Libertadora consistia na exibição de filmes, curta metragens e documentários, de temas diversos. Essas produções, a maioria em filmes super-oito eram exibidos na Sede da Associação projetados na parede, depois da exibição ocorria um debate envolvendo os alunos, mestres e convidados sobre o tema. 63 Entrevista IX : Marcelo Pinheiro de Menezes, 09.10.10. 64

Em 1979 a Corrente Libertadora ministrava aulas de capoeira dentro da Associação de Trabalhadores da Mooca, na Associação dos Trabalhadores do Tatuapé, Sociedade Amigos de Bairro do Pq. Santa Madalena, Sindicato dos Químicos Tamandaré e Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernado no ABC Paulista.64

Entretanto, o caráter político das apresentações não estava dissociado do prazer, da festa que conduzia a capoeira, nem da construção vivenciada do conhecimento. Assim como a diversão aparece na narrativa do então aluno Marcelo Menezes, recorre também na narrativa de Ms. Tigrão. No fazer cultural que a política se fez presente ...

manifestação que teve, questões de manifestação das fábricas, muita. Por exemplo, greve, então o pessoal chamava a gente pra fazer uma apresentação lá no carro. Aí ia ter uma atividade, a gente ia, porque pra gente era uma farra, agora pros movimentos não, pros movimentos era uma questão de cidadania, de mostrar que o povão tava ali, que a gente ia levar umas atividades culturais, atividade de capoeira, nossa capoeira, com uma apresentação de capoeira num carro alegórico, sei lá, em qualquer lugar. O pessoal adorava, porque chamava atenção. Fazia maculelê, fazia capoeira, era muito legal! Foi aí que eu comecei a ver os movimentos, esse negócio de partido. Não manjava nada disso aí. Fui ver que tava montando os partidos... os caras brigando questão de salário e a gente... não tinha a questão de política, mas tinha toda a filosofia das igrejas, dos envolvimentos na igreja... eu fiquei meio assim, mas embalamos. Aí o negócio pegou, porque a gente era chamado nos movimentos... nos movimentos populares da região, não só da região de Santo Amaro, mas de região de fora também... nós fomos pra Brasília.65

Compreendemos que o diálogo entre a Corrente Libertadora e os Movimentos Populares contribuiu para o fortalecimento de ambos, influenciando-se mutuamente. Contribuiu decisivamente para a formação política e na definição de caminhos de atuação sócio-cultural dos membros da Associação. A capoeira enquanto cultura de caráter popular aproximou-os dos Movimentos Populares, do fazer político, das questões sociais e essas passaram a compor o cotidiano da capoeira.

A experiência de Ms. Eufraudísio como uma liderança comunitária trouxe para dentro da prática cultural da capoeira o conhecimento apreendido nas lutas sociais e levou para o Movimento Popular a festa da capoeira, como manifestação de resistência popular que dança, canta e luta.

Essa atuação política se dava através da prática da capoeira facilitada pelo caráter coletivo da Associação Cultural Corrente Libertadora, permitindo que os irmãos fundadores

64 Documento : Histórico: Associação Cultural Corrente Libertadora, 2000. 65 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves – Mestre Tigrão, 06.03.08. 65 da Associação pudessem se dividir entre os diversos espaços nos quais ministravam aulas e na coordenação das atividades que realizavam.66

Retomamos aqui, o aspecto comunitário da prática de capoeira da Corrente Libertadora que na prática cotidiana dentro da sede se dava de forma compartilhada entre os quatro irmãos.

Em um mesmo espaço, os quatro irmãos – Maurício, Eufraudísio, Magnólia e Tigrão – se revezavam na construção e ensinamentos dos vários elementos que compõem a capoeira: o Jogo (Angola, Regional), a musicalidade inerente ao jogo – portanto o aprendizado e construção dos instrumentos (berimbau, atabaque, pandeiro e agogô), as canções (ladainhas, corridos), as manifestações culturais relacionadas à capoeira (Samba de Roda, Maculelê) e o conhecimento histórico da capoeira e do negro no Brasil.

As impressões dessa experiência de compartilhar a prática e o ensino da capoeira permeiam as narrativas dos irmãos, aproximando e divergindo concepções sobre a construção do conhecimento que se dava naquela circunstância, porém, afirmando a participação de todos nesse processo e a relevância dos laços afetivos para a continuidade dessa vivência.

Assim, Ms. Tigrão nos narra suas impressões sobre esse período.

No dia do Maurício, ele tinha os alunos dele, no dia do Eufraudísio ele tinha os alunos dele, e no dia do Tigrão ele tinha o aluno dele. Então os três ficou meio fora de esquadro. A Nólia, ela ia, ela ajudava, ela fazia o que tinha que fazer, ela ajudava a gente, mas ela não dava oficina, mas nós três, cada um tinha uma metodologia diferente, cada um ensinava diferente. Dava certo porque era os três irmãos... Eufraudísio dava aula no sindicato dos plásticos, Maurício dava aula no sindicato dos químicos e eu trabalhava e só dava aula na academia. Meu negócio era chegar e chinelar os caras e a aula era diferente de todos dois. Minha aula era aula puxada, eu pagava até pessoa da OSEC pra dá oficina de educação física, tinha que fazer educação física, tinha que fazer aquela coisa, pá, e eu não gostava não...67

Na percepção de Ms. Tigrão as diferenças estavam postas, as diferentes metodologias empreendidas por cada um deles – Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio e ele próprio – interferia na própria organização do cotidiano das aulas. Interessante ressaltar que nessa passagem, para pontuar sua diferença metodológica em relação aos irmãos, Ms. Tigrão utiliza como

66 Documento: Pequeno Histórico da Associação Cultural Corrente Libertadora, 1995. 67 Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08.

66 referência a chinela ou chinelo, nome da brincadeira, briga de rua dos meninos na Bahia de sua infância.

A chinela tem aqui a função de demonstrar o aspecto de luta da capoeira em sua aula. A questão da Educação Física, contrariando a impressão de Ms. Eufraudísio como veremos em seguida, aparece como uma exigência da dinâmica da metodologia adotada pelos irmãos na sede. Ms. Tigrão marca sua desaprovação em relação à Educação Física citando a estratégia que desenvolveu para burlar essa atividade e concomitantemente respeitar o procedimento utilizado pelos irmãos, que foi pagar um profissional da área para executar essa parte da aula de capoeira ministrada por ele.

Percebemos na narrativa de Ms. Tigrão, no movimento do recordar-se, do presente para o passado, um diálogo intenso que permite atribuir significados para as experiências de ambos momentos históricos. Nesse sentido, é significativo que os aspectos apresentados por Ms. Tigrão para descrever a metodologia de ensino da capoeira compartilhada pelos irmãos naquele período, reconhecendo inclusive problemas, trata-se justamente de alguns elementos que ele alterou sobre sua coordenação do núcleo de capoeira a partir de 1989.

Uma das características da proposta de ensino da capoeira desenvolvida pelo Ms. Tigrão a partir de 1989 foi a abolição dos exercícios da Educação Física como aquecimento da capoeira. Esses exercícios foram substituídos pela própria ginga e a passagem dos 11 golpes básicos da capoeira68 na cadência da música. Outro traço dessa proposta é primar pela coerência da proposta pedagógica, respeitando a individualidade de cada monitor, instrutor ou professor de capoeira a proposta de ensino é utilizada por todos, assegurando uma mesma linguagem pedagógica e concepção técnica da capoeira no que tange aos aspectos da luta.

Percebemos, pois, que no exercício de elaborar uma reflexão sobre a experiência do passado, Ms. Tigrão seleciona os aspectos que indiretamente justificam sua prática no presente como o responsável pela continuidade da prática da capoeira na Associação Cultural Corrente Libertadora. Ms. Eufraudísio, indo em outra direção, enfatiza a pluralidade daquele processo de construção do conhecimento, baseado essencialmente no diálogo e no respeito mútuo.

68 Na proposta pedagógica desenvolvida por Ms. Tigrão doze golpes de capoeira são considerados básicos, a saber: benção, martelo, chapa, queixada, armadinha, chapa giratória, martelo voador, meia lua de compasso, au e au chibata. 67

Olha, era muito legal, muito tranquilo. Nós tínhamos uma preocupação, por exemplo, do preparo físico. Normalmente o Tigrão assumia mais isso... A questão da aula prática, cada um tinha uma, uma forma pedagógica de aplicar os ensinamentos. Eu e o Maurício – o Tigrão começou a fazer isso um pouco depois – mas eu e o Maurício já tinha uma coisa muito nossa assim, um método. Ele tinha uma forma, um método que é muito parecido com o professor convencional na sala na aula: você é um professor de história e tua irmã também é uma professora de história, só que ela acredita em um caminho pra repassar os seus ensinamentos e você acredita num outro caminho, eu imagino dessa forma. E aí, o Tigrão também tinha uma outra forma, um outro jeito de ensinar... a Magnólia também, tinha uma coisa mais de pegar um pouco de cada um de nós, mas durou muito tempo e a gente não tinha nenhum problema não. Os alunos se davam muito bem e assim, eles gostavam muito de ter aula com todos, porque era uma coisa, até uma sacada inteligente, pegar jeitos. O capoeirista, o corpo do capoeirista é uma ferramenta, então assim, são ferramentas que procedem de formas diferentes. Então, quando o aluno era mais inteligente, pegava aula com nós três e aí tinha uma aula mais completa e a gente nunca se negava a essa coisa de, não você teve aula com fulano, então é só com ele, não, não, era uma coisa totalmente diversificada, era uma coisa que fluía bem...69

A narrativa da Ms. Eufraudísio está pautada no sentido comunitário da prática pedagógica da capoeira na Associação naqueles anos (1976- 1988, aproximadamente). Nesse caso, o respeito à diferença é o elemento que possibilita essa experiência, tendo em vista o princípio da autonomia dos indivíduos – alunos e professores – e as particularidades do corpo de cada um na relação com a capoeira.

Na visão positivada do passado, narrada por Ms. Eufraudísio podemos entrever as marcas da experiência nos Movimentos Populares e a percepção da capoeira marcadamente cultural. O processo de construção do conhecimento, nesse sentido, também tem um sentido político, por se fazer em grupo.

Com o olhar do presente, considerando os significados desses movimentos para o processo de redemocratização do país e da sociedade civil como protagonista na defesa do Estado Direito, a experiência da Associação Corrente Libertadora se fez presente nesse processo; seus membros, sujeitos políticos. Nessa direção, Ms. Eufraudísio confirma a singularidade da Corrente Libertadora e o orgulho de ter contribuído para sua constituição, reconhecendo que

existia as discordâncias... mas é completamente natural... essas divergências nunca me incomodaram, porque pra mim, isso não era a coisa mais importante. Mais importante era a forma organizativa que a gente conseguia proporcionar pras pessoas que estavam ali, tanto é, que muita gente se formou, gente excelente... que virou uma grande

69 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 68

liderança...foram aí pro mundo e foram contribuir com outras comunidades, isso pra nós, é o nosso papel.70

A participação dos irmãos na formação e desenvolvimento das atividades da Associação e da prática da capoeira, nos parece, ocorreu no reconhecimento das habilidades de cada um e na percepção de que essas habilidades poderiam contribuir para a ampliação de suas ações. Podemos perceber nas narrativas, apesar dos diferentes posicionamentos, a presença dos quatro irmãos nas atividades cotidianas da Associação, ajudando-se mutuamente para a efetivação e visibilidade do trabalho realizado.

Há, pois, nas narrativas de Ms. Tigrão e Ms. Eufraudísio elementos que os aproximam e outros em que as opiniões divergem. O caráter de complementaridade da participação dos irmãos é reconhecida por ambos, no entanto, a eficiência e coerência da pratica pedagógica assumida em consenso entre os irmãos é questionada por Ms. Tigrão. Acreditamos que essa divergência está calcada na experiência da Associação que não se estancou na conjuntura dos anos 70 e no processo de consolidação da democracia nos anos 80.

Esse período de lutas sociais e políticas, nas quais a Associação se posicionou e atuou diretamente é representativa para Ms. Eufraudísio, mesmo porque, essa experiência colocou a Corrente Libertadora como sujeito ativo na história do país. Ter participado dessa história através de uma proposta de capoeira que se diferenciava pelo caráter político, é valorizado apesar das possíveis divergências cotidianas entre os irmãos.

Acreditamos que o posicionamento de Ms. Eufraudísio está intimamente relacionado, entre outras razões, ao fato de ter se distanciado da prática cotidiana da capoeira. Embora tenha se mantido colaborando para o trabalho da Associação depois de 1989, a responsabilidade pela continuidade da capoeira foi assumida por Ms. Tigrão a partir de então.

Diante desse dado, entrevemos que a valorização de um período em detrimento do outro está pautado nos significados da experiência da capoeira que, para Ms. Tigrão, diferentemente de Ms. Eufraudísio, não se deteve nos anos 70 e 80, mas prosseguiu dialogando com os velhos e novos dilemas sociais. Para o Ms. Tigrão o presente é que é premente, pois é o presente que faz a capoeira viva e capaz de interferir socialmente.

70 Idem. 69

Nesse sentido, é sintomático que Ms. Eufraudísio enfatize o caráter político da experiência de capoeira vivenciada através da Corrente Libertadora e que Ms. Tigrão chame atenção para a questão pedagógica da capoeira, cerne de seu trabalho na atualidade. Entretanto, entendemos que o aspecto político marcadamente do período anterior a 1989 não se perdeu, apenas transformou-se através da proposta de ensino desenvolvida por Ms. Tigrão, sendo assim, ambos aspectos complementares e constitutivos da prática de capoeira da Associação.

A presença feminina de Magnólia na Associação nos permite pensar as entrelinhas das relações sociais estabelecidas nesse espaço de sociabilidades e da relação da Associação com a comunidade. A única mulher a participar da formação da Corrente Libertadora não se tornou professora de capoeira ou mestra, em contrapartida, exerceu um papel que consideramos fundamental do ponto de vista político e cultural: marcou a participação feminina na capoeira e pode através do exemplo, da argumentação e da articulação contribuir para que outras mulheres entrassem em contato com essa prática cultural.

O Maurício ficava feliz, porque quando fazia a roda de capoeira era engraçado, porque era assim: eu tinha que ajudar a cantar, tinha que ajudar a tocar atabaque. Aí eu cantava, eu corria pra roda. Só tinha homem e os homens já eram acostumados a me ver jogar na academia, mas lá nas excursões, exibições que a gente fazia, o pessoal não era acostumado. Então os homens tinham aquele respeito, as mulheradas criticavam, mas é como um homem hoje que vê o outro fazer unha no salão e fica criticando, mas ele critica porque ele têm vontade de ir e não têm a coragem que o outro teve. Naquela época, eu considerei dessa forma, elas criticavam porque não tinham coragem, coragem que eu tava tendo... e eu fui por quê? Incentivo do meu irmão. Então o que que eu fiz, comecei a conquistar as mulheradas pra academia. Toda vez que tinha uma exibição, isso até me arrepia, toda vez que tinha uma exibição de capoeira, elas vinham pra me, como que fala? Pra me intimar. Como que era, se doía o corpo, se eu não achava estranho, se eu me sentia a vontade... eu era muito insegura, mas o pouco que eu sabia já tava bom, pelo menos pra incentivar, pra abrir espaço já tava bom.71

A própria formação de Magnólia, a aprendizagem da capoeira, dos instrumentos, das manifestações culturais se deu com os irmãos, primeiro com Maurício e depois com Eufraudísio e Tigrão, mas paralelamente ela atuava juntamente com eles em todas as atividades e fazia essa ponte entre a Associação e o universo feminino. Cabeleireira e moradora do bairro em que estava situada a Associação, ela lançou mão desses mecanismos para divulgar a capoeira e defender a participação feminina.

71 Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010. 70

Em sua narração, Magnólia acaba por evidenciar que sua participação na Corrente Libertadora exigiu dela ultrapassar medos, limites e preconceitos. O conhecimento que se construía através da prática cotidiana contribuiu para sua formação pessoal, no circular das experiências. Defender a participação da mulher não estava relacionado a uma linha ideológico-política ou a um movimento organizado, mas antes à necessidade de assegurar a continuidade e ampliação da Associação, que tornou-se um projeto comum dos irmãos – Maurício, Eufraudísio, Tigrão e Magnólia.

O aspecto político das atividades da Corrente Libertadora não foi uma experiência isolada entre os grupos de capoeira na cidade de São Paulo no período mais coercitivo da Ditadura Militar. Nessa linha de atuação político-cultural temos a experiência do grupo Capitães d’Areia idealizado pelo Ms. Almir das Areias em parceria com formados de Ms. Suassuna. Em 1971, os Capitães d’Areia fundaram sua primeira sede no bairro do Brás, tendo na capoeira expressão do oprimido, luta de libertação da classe trabalhadora.

No encalço das propostas de parte da intelectualidade brasileira, que procuravam elaborar estratégias de enfrentamento ao regime político vigente e o restabelecimento do Estado de Direito via arte, educação e religião – Teatro do Oprimido, Pedagogia do Oprimido, Teologia da Libertação,72 os Capitães d‟Areia dialogaram diretamente com o universo universitário, contando com profissionais de diversas áreas do saber como antropólogos, dramaturgos, diretores teatrais e psicanalistas para a definição de seu eixo de trabalho e o público que pretendia atender.

Segundo Letícia Vidor, a formação dos Capitães d‟Areia, bem como do grupo Cativeiro foi, sobretudo, uma resposta à proposta de esportivização da capoeira defendida pela Federação Paulista de Capoeira – marcializante, disciplinadora, que além de estabelecer uma sistematização da prática de capoeira e sua normatização para participação em torneios e competições, buscava através desses mecanismos apagar a memória de resistência negra e os elementos culturais da capoeira.

O branqueamento da capoeira passava pelo silenciamento dos conflitos raciais, sociais e culturais que os capoeiristas vivenciaram e eliminava a prerrogativa musical da capoeira em

72 Nos referimos aos trabalhos de: com a proposta teatral denominada Teatro do Oprimido; na educação com a proposta da Pedagogia do Oprimido e a Teologia da Libertação conduzida pela ala progressista da Igreja Católica. 71 competições. O berimbau, instrumento mestre do jogo da capoeira, podia ficar quieto, calado, acanhado como um espectador que conhece o que vê, mas nada pode fazer.

Os papéis desempenhados por esses grupos de capoeira foram historicamente relevantes para o desenvolvimento da capoeira em São Paulo e seus desdobramentos no Brasil, mas entendemos que seu posicionamento político foi estruturado inicialmente pelas questões que permeavam o universo da capoeiragem. A necessidade de se oporem política e culturalmente à proposta defendida pela Federação Paulista de Capoeira desencadeou o processo de construção de identidade desses grupos, que buscaram elementos que marcassem sua diferença.

A experiência da Corrente Libertadora se deu na margem dessas discussões. Sua trajetória, aspectos apresentados nesse capítulo, corroboram para o fato de que sua atuação se deu no cerne da comunidade na qual estava inserida. O fato de serem moradores do bairro em que fundaram a Associação Cultural Corrente Libertadora estreitou os laços entre as atividades desenvolvidas pela Associação e as demandas sociais da comunidade.

Ocorreu assim, uma circularidade intensa de informações culturais e políticas que convergiam para a prática da capoeira como elemento de formação, intimamente relacionada à construção da cidadania dos sujeitos históricos que conviviam nessa comunidade.

A capoeira, nesse sentido, foi o elemento que permitiu o encontro entre a Associação e a comunidade, funcionando como um instrumento de formação, mobilização e articulação político-cultural. A parceria com os Movimentos Populares e a parceria ativa em atividades culturais, exigiu que a Associação fizesse escolhas dos caminhos a serem trilhados por ela.

Compreendemos que a definição das linhas de atuação da Associação se deu na vivência cotidiana do território que ocupavam na cidade, na Vila São José, na realidade social que atingia os moradores da Capela do Socorro, Parelheiros e Santo Amaro. Embora articulado aos movimentos sociais da cidade de São Paulo como um todo e em diálogo com as novas possibilidades culturais abertas à capoeiragem,73 é na zona sul que a Corrente Libertadora concentrou prioritariamente sua atuação.

73A partir da década de 60 a capoeira ganhou espaço em produções culturais, alcançando certa ascenção social e dando notoriedade a alguns mestres. Produções cinematográficas como Briga de Galos (1964), Barravento (1961), Senhor dos Navegantes (1964), Gato Capoeira (1979) e produções teatrais , de dança e música como os de , Grupo Folclórico da Bahia, além da presença na música popular brasileira em espetáculos como Berimbau de Elis Regina e Badem Powell, em músicas de Vinícius de Morais, Jackson do Pandeiro e 72

Os caminhos trilhados pela Associação nesse período (1976-1989) correspondem a opção política de contribuir para a transformação social da realidade da comunidade – e indiretamente, da realidade política em que vivia o Brasil, através da linguagem cultural da capoeira que, por si só, nos remete a uma historicidade marcada pela resistência. Essa opção, entretanto, afastou a Associação das pelejas do universo da capoeiragem.

A Corrente Libertadora não foi filiada à Federação Paulista de Capoeira, no entanto, não se alinhou diretamente a nenhuma vertente de oposição à mesma – como os Capitães d‟Areia ou o Cativeiro, caminhou selecionando o que parecia pertinente ao desenvolvimento de seu trabalho.

A visibilidade de seu trabalho e da própria capoeira que praticavam se deu nesse período atrelada às ações dos Movimentos Populares (com uma forte presença da Igreja Católica) e dos Movimentos Culturais, sendo a relação com outros grupos de capoeira e com a Federação, ocasional e fragmentária.

No início da década de 1980, a Corrente Libertadora participou de eventos e movimentos culturais que não estavam necessariamente ligados à capoeira. Em 1980 participou do evento 20 de Novembro com presença de D. Paulo Evaristo Arns na Praça da Sé. No mesmo ano fez a abertura do Projeto Evolução da Música Popular Brasileira em parceria com a Universidade de São Paulo, no qual a música Ô Bahia de autoria de Ms. Eufraudísio sofreu a primeira censura, sendo em 1981, quando da gravação do disco Corrente Libertadora e Brasil Folclórico, excluída do repertório pela Censura Federal ainda vigente.

Em 1982, em parceria com lideranças da região de Capela do Socorro criou o Grupo de Cultura Interlagos, organizando e coordenando atividades culturais e populares no Largo do São José (1982-1986), em uma atitude marcadamente política no sentido de dar visibilidade à ausência de espaços públicos destinados à cultura e ao lazer na região. Em 1987, em parceria com o Centro de Recursos de Interlagos, organiza e coordena o I Festival de Música Popular da Cultura Negra da Região.

A descrição dessas atividades nos permite visualizar, em certa medida, as frentes de atuação da Associação, que se direcionaram para o campo mais amplo, abrangendo outras

Gilberto Gil, entre outros, permitiram a capoeira efetivar sua participação no mercado cultural. Acreditamos que apesar dessas possibilidades, a Corrente Libertadora acabou por escolha ou por consequência de suas atividades, centrando-se na atuação político-cultural. Para a participação da capoeira em produções artísticas, Ver: REGO, Waldeloir. A Capoeira Angola – Ensaio Sócio-Etnográfico. Salvador: Editora Itapuã, 1968.

73 manifestações culturais, imbuídas de vontade política e centradas não essencialmente na prática da capoeira.

É relevante citar que em 1987 a Associação iniciou o trabalho sócio-educativo da capoeira na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM. Esse trabalho com crianças e adolescentes em conflito com a lei e em situação de risco social é significativo para entendermos o processo de reestruturação da Associação Cultural Corrente Libertadora frente ao fim do Regime Militar e às conquistas da sociedade civil organizada, amparadas na Carta Constitucional de 1988.

A Corrente Libertadora enfrentando as mudanças políticas, as crises financeiras e o paulatino afastamento de Ms. Maurício e Ms. Eufraudísio, encontra em sua experiência político-cultural e na percepção das novas demandas sociais o caminho para continuidade de seu trabalho.

Na trilha das ações políticas da Corrente Libertadora registramos aqui, a música de Ms. Eufraudísio, Ô Bahia, censurada em 1981.

Já é hora da gente pensar, Em uma forma de se libertar, Essa luta vai muito longe, Essa luta não pode parar

Ô Bahia, ô, ô, ô Bahia ô

Quem tem boca fala a verdade, Quem tem orelha precisa escutar, Operário é escravo de hoje, A indústria é o canavial. Ô Bahia, ô, ô, ô Bahia ô

O chicote açoitando o povo, Esses caras não querem parar, A Corrente Libertadora, Já começa a se formar. Ô Bahia, ô, ô, ô Bahia ô.

para pensarmos os caminhos e os limites de atuação dos grupos sociais nos diversos territórios da cidade, território no sentido de espaço de vivências, que supõe conflitos, contradições e negociações entre seus habitantes e entre os habitantes e o poder público na busca de um viver urbano amparado pela garantia de direitos: políticos, civis e sociais.

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Entre os setores populares, a cultura – a capoeira no caso específico da Associação – pôde funcionar como instrumento na construção de vínculos entre a comunidade: viabilizou laços de solidariedade entre seus participantes e possibilitou o desenvolvimento de estratégias políticas em prol dessa comunidade.

1.3 - O Processo de Reestruturação Administrativa e Pedagógica da Corrente Libertadora (1989-1994)

Se no período de 1976 à 1989 a Associação Cultural Corrente Libertadora viveu as particularidades de se compor por um grupo de irmãos – Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio, Ms. Tigrão (Eufrásio) e Magnólia – que conjuntamente gestaram e empreenderam atividades em uma vivência comunitária e compartilhada da cultura e do fazer político através da capoeira, no período ao qual nos deteremos agora 1989-1994, a Corrente Libertadora desenvolveu novas estratégias de ação estabelecendo parcerias com a sociedade civil organizada e com o Poder Público, redefinindo suas prioridades e o campo de atuação.

Aproximou-se paulatinamente das questões referentes ao atendimento e garantia de direitos de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, bem como atender uma parcela da população comumente excluída da prática da capoeira por questões sociais, limitações físicas e psicológicas.

A esse período que se inicia em 1989, intimamente relacionada à elaboração da proposta de ensino de capoeira desenvolvido por Ms. Tigrão a partir de então, refere-se também ao paulatino afastamento dos irmãos Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio e Magnólia, incorrendo na centralização administrativa e pedagógica das atividades da Associação sob a coordenação de Mestre Tigrão. Compreendendo a experiência histórica como um processo muitas vezes contraditório e tenso, consideramos necessário para uma análise da trajetória político-cultural da Corrente Libertadora discutir o que identificamos como processo de transição vivenciada pela Associação entre 1989-1994. As narrativas de Ms. Tigrão, Ms. Eufraudísio e de alunos que participaram desse processo de reestruturação da Associação constituem o cerne documental para pensarmos as questões que circundam essa experiência e é através deles que iniciamos nosso diálogo.

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meu dia tinha muita gente e... eu dominei. Não foi ambição, mas assim, meu dia todo mundo ia, o pessoal gostava da minha aula e ia lotava. Então as aulas do Maurício também lotava, todo mundo nossa! Maurício era assim, nossa! Então Eufraudísio não tinha tempo de dar aula por que ele tava nos movimentos... E aí foi na época que o Moreira chamou a gente pra fazer o disco, o Brasil Folclórico. Nós fizemos o disco, disquinho... em oitenta e um, oitenta e dois, oitenta e três Maurício começou a beber... Maurício não tava dando problema, tava legal, ele bebia, mas ele dava aula direitinho. Maurício começou a dominar mesmo: as aulas de sábado e domingo Maurício dominava mesmo as aulas, eu dominava mais na terça e na quinta... eu chegava de noite e dava aula. Sábado e domingo sempre trabalhei no Rolamentos Fag... tava super bem... e comecei a pagar a academia e o dinheiro não dava pra pagar, né? A gente cobrava de algumas pessoas, outros não pagavam e em oitenta e quatro, oitenta e cinco foi o auge do Maurício. Em oitenta e cinco ele começou a pegar feio mesmo na bebida... Ai perdemos a sede de novo porque o cara aumentou, oitenta e cinco eu sai da Rolamento Fag, fui mandado embora, aí o Maurício ficou muito mal, muito mal... entregamos a academia, eu fiquei desesperado. Ai fui alugar outra academia na esquina, atrás daquela outra...o negócio ficou feio, oitenta e seis, oitenta e sete eu pastei muito e assim, ficou fechado a academia dessa época pra cá.74

A narrativa de Ms. Tigrão pontua questões que precisamos recuperar para entendermos o momento em que ocorreu a transição da Corrente Libertadora de uma associação administrada e conduzida pelos irmãos Modestos, para um segundo momento, no qual um dos irmãos, Eufráusio Modesto, Ms. Tigrão, passou a conduzi-la sem a atuação ditreta dos demais irmãos.

Como podemos perceber pela narrativa, as atividades da Associação desencadeadas na década anterior se intensificaram e ganharam traços mais definidos. As aulas ministradas pelos irmãos, as relações com os Movimentos Populares e as ações culturais desenvolvidas por eles se estabeleceram abrindo outras frentes de atuação política, com as quais os irmãos Modestos poderiam se envolver, assim como, às debilidades estruturais.

As aulas estavam organizadas e estabelecidas em dias específicos, o que permitia uma constante rotatividade dos alunos na Sede, situada na Vila São José, periferia da Zona Sul de São Paulo. Por outro lado, essa organização respeitando a disponibilidade de tempo dos Mestres e professores, indica que a capoeira não se configurava, naquele momento, como uma profissão, como fonte de sustento dos quatro irmãos.

Assim sendo, Ms. Eufraudísio e Tigrão – que ainda não era mestre nesse período – se dividiam entre o trabalho, as atividades políticas e a capoeira. Aqui nos encontramos novamente com os diálogos dos atores sociais com as nuâncias do viver urbano e das questões sócio-econômicas que atravessam sua realidade.

74 Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves – Mestre Tigrão, 19.02.08. 76

O envolvimento de Mestre Eufraudísio com os Movimentos Populares desde meados da década de 1970 se adensou: a troca de experiências, o envolvimento com as lutas sociais, tendo como elemento agregador a capoeira, paulatinamente exigiu que Mestre Eufraudísio assumisse compromissos de maior envergadura.

Em 1979, movido pelo desejo de pesquisar e estudar sobre a origem da capoeira, a história do negro no Brasil e as questões raciais e políticas pertinentes a essas temáticas, Mestre Eufraudísio ingressou no Grupo de União e Consciência Negra, no ano seguinte era presidente do grupo.75Essa posição de liderança impunha certa disponibilidade para os compromissos a ela atrelados.

Paralelamente à atuação no Grupo de União e Consciência Negra, Ms. Eufraudísio articulava muitas das atividades culturais que envolviam a Corrente Libertadora com outros grupos, entidades, associações e artista da região de Santo Amaro, Capela do Socorro e Parelheiros, envolvendo-se, por exemplo, na criação do Grupo de Cultura Interlagos, organizando e coordenando atividades culturais e populares no Largo do São José (1982- 1986) e o I Festival de Música Popular da Cultura Negra da Região.76

Relevante chamar a atenção para o fato de que a capoeira, o interesse em melhor conhecer essa manifestação cultural, abriu outros caminhos para Mestre Eufraudísio, que não estavam tão somente vinculados à prática e ensino da mesma, mas que trazia uma contribuição diversa e ao mesmo tempo complementar a esta. A capoeira permaneceu como elemento agregador à medida que na sua atuação política a Corrente Libertadora era o referencial para suas pesquisas, apresentações, composições, mas essa atuação comprometeu sua presença no cotidiano da Associação.

O afastamento paulatino de Mestre Eufraudísio ocorreu concomitantemente ao aperfeiçoamento da habilidade de ministrar aulas do seu irmão Eufrásio Modesto, Ms. Tigrão, que em companhia de seu Mestre e irmão, Maurício, aprendia dia a dia nos treinos, rodas e na observação a arte da capoeira.

75 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio: 09.10.09. Segundo Andrews, o Grupo de União e Consciência Negra foi criado em 1980 depois de um processo de dois anos de encontros promovidos pela conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB com o clero negro. O grupo formado por religiosos e leigos negros, se consideravam ao mesmo tempo parte do movimento negro e da Igreja Católica e tinha como uma de suas preocupações a redefinição das afirmações amenas e tradicionais da Igreja Católica com relação à democracia racial no Brasil. Ver: ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988). São Paulo: EDUSC, 1998, p.318. 76 Documento: Histórico - Associação Cultural Corrente Libertadora, s/d. 77

Ms. Maurício e Tigrão passaram a ministrar as aulas ocupando praticamente todos os dias da semana, revesando os horários de acordo com a disponibilidade de ambos. Tigrão, funcionário de uma indústria da região, se dividia entre o trabalho formal, fonte de sua subsistência financeira e a informalidade da capoeira no período noturno. Essa situação traz consigo as debilidades estruturais da Associação.

Embora Ms. Maurício ministrasse aulas de capoeira e oficinas culturais durante o dia e em vários horários, não havia uma sistematização de pagamento de mensalidades, que como apontamos anteriormante, era conflituoso e em certa medida contrário à proposta de intervenção sócio-cultural que a Associação perseguia.77 Portanto, havia uma fragilidade da Associação do ponto de vista e financeiro.

Ocupando imóveis de terceiros, sob a pressão mensal do aluguel e sem rendimentos que cobrissem o custo do imóvel, a manutenção do trabalho da Associação dependia, muitas vezes, dos rendimentos particulares dos irmãos, concentrando-se cada vez mais na figura de Tigrão.

Do ponto de vista social podemos perceber a tensa relação entre trabalho e cultura vivenciada por esses sujeitos: trabalhadores assalariados que não podem abrir mão de seu trabalho formal, por que dele dependia a manutenção de sua atividade cultural, atividade esta, que não produz lucros, nem sequer rendimentos suficientes para suprir seu funcionamento.

Esse quadro estrutural não pode ser confundido com um negócio, uma pequena empresa com problemas administrativos. Trata-se de uma associação cultural, que já em seus primeiros anos de existência abandonou a ideia inicial de ser tão somente um grupo de capoeira, de estabelecer uma academia de capoeira e escolheu o caminho comunitário de se fazer Associação, de construir um projeto de intervenção social a partir da capoeira.78

77 A sistematização de pagamentos de mensalidades na Corrente Libertadora sempre fora frágil, tanto do ponto de vista administrativo como ideológico. Embora houvesse uma mensalidade prevista, os aluno (a maioria moradores da própria comunidade da Vila São José e bairros circunvizinhos) devido sua condição sócio- econômica não conseguiam manter a regularidade dos vencimentos, por outro lado, os administradores (Mestre Maurício, Eufraudísio, Tigrão e Magnólia) não conseguiam negar a participação dos inadimplentes nas aulas e atividades, isso porque, a proposta de trabalho da Corrente Libertadora sempre previu a inclusão e o diálogo com a comunidade. Dessa maneira, a mensalidade foi assumindo mais um caráter de contribuição do que de pagamento até ser extinta definitivamente e a gratuidade tornar-se uma das metas do trabalho da Associação. 78 Estamos tentando pontuar que a Corrente Libertadora ao definir seu campo de atuação junto a população da periferia da cidade e se situar na defesa de direitos escolheu o caminho dos projetos sócio-culturais em parceria com a Sociedade Civil Organizada e o Poder Público com o objetivo de ampliar sua atuação e garantir a gratuidade de seu atendimento através da capoeira, assim negou a possibilidade de trabalhar em academia 78

Não podemos perder de vista o lugar social de onde esses sujeitos históricos (a frente da Corrente Libertadora) estão falando: não se trata de uma Associação que pratica capoeira em centros universitários, em bairros do circuito cultural da cidade ou em centros culturais particulares, mas antes, de uma Associação formada por quatro irmãos, de uma família migrante, moradores da periferia da cidade de São Paulo, que se formou em um momento no qual essa periferia lutava pela presença do Estado através dos diversos serviços públicos que lhe faltava.

Esse lugar social não determina a impossibilidade desses atores sociais se fazerem visíveis e atuantes através da cultura, mas implica nos limites dessa atuação e dá contorno as dificuldades de manutenção e continuidade do trabalho realizado.

Anteriormente tentamos alinhavar as relações familiares dos fundadores com sua prática cultural através da capoeira, naquela ocasião salientamos que as características culturais, sociais e políticas da Associação no período de sua formação, segundo nossa análise, estavam carregadas por laços afetivos e referenciais culturais dos quatro irmãos que juntos atuaram no cotidiano da Associação entre os anos de 1976 e 1989.

Como podemos identificar na narrativa de Ms. Tigrão, os laços afetivos e os referenciais culturais e políticos, nesse segundo momento, também se fizeram presente no movimento de dispersão dos quatro irmãos.

Mestre Eufraudísio, ao ampliar seu raio de atuação político-cultural passou a subdividir seu tempo, acarretando em uma participação mais pontual nas questões que tangem o cotidiano da capoeira, como descreve a seguir.

a minha ausência na Corrente se deu a partir do governo Erundina porque eu fui chamado pra acessorar o governo, que até hoje eu me orgulho dele, por ter feito esse papel na história da Corrente, da história de São Paulo... meu tempo ficou muito escasso, eu fui dando um apoio muito de longe pro Tigrão e era um apoio que não refrescava muito e o Tigrão tocou sozinho, mesmo assim a gente tinha a preocupação de manter essa relação Corrente e comunidade e poder público. 79

Vemos na narrativa de Mestre Eufraudísio o compromisso de enfatizar o momento político por que passava e como esse momento interferiu em sua participação no cotidiano da

(própria ou de terceiros) em que a mensalidade é uma premissa para manutenção do trabalho e está dentro da lógica do mercado de bens e serviços. 79 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 79

Corrente Libertadora. O advento da gestão Luiza Erundina (1989-1993) nos parece significativo nessa experiência. Além de ser tomado como um referencial de governo comprometido com as questões sociais e culturais, está intimamente relacionado com o período de transição e as novas condições de atuação dos fundadores em particular e da própria Associação.

A própria narrativa nos possibilita estabeler relações entre o momento político do ponto de vista institucional e as demandas da sociedade civil organizada. A primeira gestão do Partido dos Trabalhadores na cidade de São Paulo, sob a liderança de uma mulher que em muito trazia consigo, em sua história pessoal e política, elementos das lutas sociais do período precedente (nordestina, mulher e militante na revindicação da participação popular na gestão pública) vislumbrava criar condições de uma gestão democrática, no sentido de garantir a participação efetiva da sociedade civil nos processos decisórios da administração pública.

Essa pretensão política da gestão Luiza Erundina, invade o cotidiano da Corrente Libertadora de forma direta por requerer a participação efetiva de Mestre Eufraudísio que, alinhado à proposta da gestão, trabalhou como acessor da mesma. Assim, conseguiu atrelar sua atuação sócio-cultural da vivência na Associação, do Grupo de União e Consciência Negra e dos Movimentos Populares a uma contribuição efetiva no governo.

Os caminhos e escolhas políticas trilhados por Mestre Eufraudísio naquela conjuntura, ocorreram paralelamente aos desafios pessoais enfrentados por seu irmão mais jovem, Maurício. Mestre Maurício, acometido pelo envolvimento com a bebida, desencadeou duas situações interligadas: uma debilidade nos assuntos administrativos e pedagógicos da Associação e o afastamento de sua irmã Magnólia, que com o agravamento da doença do seu irmão, Ms. Maurício, passou a dedicar-se exaustivamente no acompanhamento e possibilidades de tratamentos do mesmo.80

Particular também é a maneira como essas características se cruzam, marcando a importância dos laços familiares na constituição da Associação. Considerando o cotidiano da capoeira nesse período de transição (1988-1994), podemos perceber o agravamento das questões estruturais que acometia a Associação e, por outro lado, as relações familiares e

80 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08; Entrevista VI: Magnólia Maria Alves Pinto, 31.13.1010 e Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09.

80 afetivas permeando o desenvolvimento de estratégias de continuidade do trabalho desenvolvido.

Estamos considerando esse período como sendo de transição por algumas razões que, embora específicas, muito nos dizem da fragilidade da manutenção de uma Associação de cunho popular e que no caso da Corrente Libertadora é intrínseca às relações familiares.

A primeira apreciação refere-se ao fato de que, embora com problemas e trajetórias pessoais, tanto Mestre Maurício e Mestre Eufraudísio continuavam nesse período colaborando com a Associação, no entanto, de forma mais restrita e espaçada. Em contrapartida, a participação de Mestre Tigrão se intensificou como reconhece o próprio Ms. Eufraudísio na citação anterior: ... eu fui dando um apoio muito de longe pro Tigrão e era um apoio que não refrescava muito e o Tigrão tocou sozinho....

No período a que nos referimos, Tigrão era formado, quer dizer, já havia recebido de Mestre Maurício a graduação de professor e junto a ele cumpria a responsabilidade de ministrar as aulas de capoeira e das atividades culturais correlatas a ela.

Paralelamente assumiu também a responsabilidade de manutenção financeira da Associação. Essa situação colaborou para que sua participação, em nossa compreensão, se tornasse mais efetiva nos processos decisórios e preemente na prática da capoeira. No entanto, a emergência de Ms. Tigrão como uma liderança cada vez mais definida na Corrente Libertadora se fez, concomitantemente, amparada nas relações familiares – afetivas que anteriormente nos referimos.

Ao rememorar esse processo de transição, Mestre Tigrão acentua o momento de crise e dá indícios dos laços familiares que permeavam as atitudes e posições dos irmãos fundadores.

Em setenta e nove, eu me formei e oitenta, oitenta e pouco, aí eu comecei a tomar conta da academia. Eu fui um cara líder mesmo, Eufraudísio passou toda a responsabilidade pra minha pessoa...81 E,

oitenta e quatro, aí começou a cair a Corrente. A gente não conseguia pagar a prestação lá da sede, aí oitenta e cinco eu fui mandado embora do Rolamento Fag... na época que o Maurício começou a ficar muito mal, aí já tinha saído da Rolamento Fag e comecei a pagar a prestação e aí foi na época que o Eufraudísio falou: Olha Tigrão, agora você vai, agora você vai segurar a Corrente porque você já tá mais maduro... Aí foi na época que

81 Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08. 81

eu comecei a pegar a Corrente... pegar mesmo. Assim fiquei um tempo sofrendo com Maurício aí em oitenta e cinco ele foi internado.82

A narrativa, além de reafirmar aspectos que alimentavam a crise pela qual passava a Associação, nos traz elementos da relação familiar-afetiva no desenroalar das situações. É bastante significativo que a atitude de tomar para si a responsabilidade de manutenção da Associação por parte de Mestre Tigrão passou pelo crivo do irmão mais velho, Mestre Eufraudísio. Aqui reaparece o sentido de cumplicidade, confiança e respeito entre os irmãos nas situações de dificuldades, bem como nas deliberações político-culturais as quais se dedicariam.

Novamente pontuamos que não se trata de um poder hierárquico, no qual a idade é uma premissa, mas antes de traços da cultura comunitária vivenciada pela família Modesto no cotidiano de suas atividades. Entendemos que na narrativa de Mestre Tigrão, nas linhas da subjetividade, há um componente de orgulho que atravessa seu ato de relembrar: além da capacidade pessoal de ministrar aulas, de ter sido formado pelo irmão, de ser responsável pela situação financeira, ocorre ainda o reconhecimento do irmão politicamente experiente.

É Mestre Eufraudísio que deposita em Tigrão a confiança da continuidade dos trabalhos da Associação e o compromisso assumido por este toma contornos de missão, na qual cultura, política, responsabilidade social e preservação do projeto que se tornou familiar, isto é, a própria Associação Cultural Corrente Libertadora, se confundem.

Compreendemos a Corrente Libertadora como um projeto familiar, não no sentido de posse privada, mas no sentido de que a Associação em si traz consigo uma memória da própria familia: ideias, ações, conflitos e conciliações foram forjadas no fazer da capoeira vivenciada pelos quatro irmãos.

Através da capoeira e na constituição da Associação os referenciais culturais, políticos e sociais dos irmãos convergiram para uma proposta de intervenção social através da capoeira. Entretanto, na conjuntura que se desenrolou pós-1989, no processo de reordenações dos papéis desempenhados entre os irmão Modestos, divergentes posições sobre a prática da capoeira e a atuação da Associação emergiram.

82 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08. 82

Foi nessas circunstâncias – de afastamento dos irmãos e crise financeira – que Ms. Tigrão, a partir da construção de sua proposta pedagógica e à frente da administração, ganhou visibilidade como referência da Associação. Estando praticamente sozinho na responsabilidade de ensinar capoeira, desencadeou um processo de redefinição do campo de atuação e das diretrizes do trabalho da Corrente Libertadora.

Esse processo, no entanto, foi acompanhado por divergências que envolviam Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio e Ms. Tigrão e se concentravam, principalmente, na prática, em questões técnicas e, indiretamente na concepção de tradição da capoeira.

eu acho que uma das maiores discordâncias, as mais ferrenhas foi em cima da questão técnica. Por exemplo, ele disse que eu gingo errado, que o Maurício gingava errado, eu discordava, em função de que? Não existe ginga errada. Existe a dança ginga, onde alguns faz ela mais quadrada, ela mais fechada, ela mais triangular, ela mais aberta, isso depende do estilo de cada capoeirista ou de cada grupo... é a dança. Mas eu não consegui convencê-lo... que a capoeira é a linguagem entre os corpos. Existe um diálogo. E isso, cada um têm que ter a sua linguagem, se não ela não flui, vira uma coisa plástica, uma coisa burocrática, a capoeira não é burocrática, a capoeira é emoção... essa é uma coisa. A questão por exemplo de não fazer aquecimento, a ginga é o próprio aquecimento, eu sempre discordava, nós sempre fizemos o aquecimento... imagine eu colocar meu corpo voando, eu tenho que fazer aquecimento... mas ele não concordava. Tudo isso foi criando fatores de resistência entre a gente e aí chegou o momento de que ele dizia que a minha capoeira não era uma capoeira correta... tem que ser assim, o pé tem que ficar assim, por que o pé não pode... gente, isso é uma indicação no início... então eu falei: eu desisto!83

Mestre Eufraudísio desvela na narrativa alguns dos principais pontos de discordâncias e embates decorrentes da concepção técnica assumida e defendida por Mestre Tigrão na prática de capoeira: a questão da ginga e do aquecimento físico antes da atividade.84

Esses pontos, no entanto, estão inseridos em uma concepção de ensino-aprendizagem que comportava vários recursos pedagógicos para facilitar o desenvolvimento gradual de cada aluno e sua interação com a capoeira. Uma dessas estratégias era a aprendizagem da ginga e dos golpes sob linhas assinaladas no chão. O que podemos entrever na reflexão de Mestre Eufraudísio é que esses procedimentos contrariavam a criatividade e espontaneidade da capoeira e do próprio capoeirista.

83 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 84A ginga é o movimento do corpo que em sintonia com a música de capoeira, determina o ritmo do próprio jogo executado pelos capoeiristas na roda de capoeira. Na proposta pedagógica desenvolvida por Mestre Tigrão, como veremos detalhadamente no capítulo II, a ginga é um elemento que permite estabelecer contato com o aluno e deste com a musicalidade. Com a preocupação de potencializar os elementos de dança da capoeira, Ms. Tigrão modificou a posição da ginga, juntando o dançar do corpo com a posição de esquiva (movimento de defesa da capoeira). 83

Estamos, pois, analisando os elementos exteriores da proposta de ensino de Mestre Tigrão e não os princípios que norteiam esses aspectos técnicos. Entretanto, embora tentemos separar a técnica dos princípios para a análise, torna-se uma tarefa movediça e frágil, pois entendemos, através do diálogo com as fontes, que todas as alterações de natureza técnica desenvolvidas e implantadas por Mestre Tigrão estão subordinadas ao princípio da inclusão social de seus alunos.

Não obstante, podemos problematizar a aparente discordância, mesmo sobre os aspectos mais técnicos entre os irmãos, visto que para Mestre Eufraudísio a capoeira é dança e para Mestre Tigrão, também o é. A musicalidade é o cerne do processo de aprendizagem proposto por Mestre Tigrão e com ela, a dança da capoeira desencadeada pela ginga.

Nesse processo de aprendizagem, a execução da ginga acompanhada pelos golpes considerados básicos85 constituem o aquecimento, então não se excluiu o aquecimento, mas os exercícios de Educação Física. Mestre Tigrão desenvolveu uma argumentação para eliminação dos exercícios de Educação Física baseada na sua prática, acreditando serem esses exercícios motivo de desgaste e cansaço, mas sobretudo, por não reconhecer compatibilidade e contribuições reais e diretas entre os exercícios de Educação Física e os movimentos de capoeira.86

O que nos propomos pensar sobre essas discordâncias segue duas direções: a primeira é que qualquer discussão ou descrição da prática de ensino de capoeira adotada por Mestre Tigrão – inclusive a que tentamos realizar até aqui –, distanciada do fazer cotidiano, da experiência, pode incorrer na caracterização dessa prática como um método, no sentido de um procedimento dado, concluído, fechado. Assumindo assim, um aspecto burocrático, como nos alertou Mestre Eufraudísio.

Então, para compreender o que estava sendo vivenciado por Mestre Tigrão e seus alunos, Mestre Eufraudísio necessariamente teria que experienciar essa proposta, não somente na dimensão discursiva, mas na dimensão prática. Isso posto, caminhamos para a segunda direção do que nos arriscamos pensar: a bagagem de conhecimento adquirido e desenvolvido

85 Na proposta pedagógica desenvolvida por Mestre Tigrão, onze golpes de capoeira foram definidos como básicos para prática de capoeira – benção, martelo, chapa, queixada, armadinha, rabo de arraia, chapa-giratória, martelo-voador, meia-lua-de-compasso, au e au chibata. Esses golpes são ensinados antes do aluno entrar na roda de capoeira pela primeira vez, no entanto, é relevante ressaltar, que esse aprendizado prevê as particularidades de cada, e por isso pode apresentar diferenças na forma de conduzir esse processo. 86 Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08 e Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.09.

84 por Mestre Tigrão durante o período em que ficou sozinho coordenando a Associação lhe imbuiu de autonomia, confiança e legitimidade para defender suas posições e resistir à possíveis ambiguidades de posturas pedagógicas entre os fundadores na representação da Corrente Libertadora.

Ocorreu, pois, um processo de apoderamento por parte de Mestre Tigrão a partir da experiência. Convencido da viabilidade e eficiência da proposta pedagógica para a inclusão social, tendo as alterações que fizera como necessárias, Ms. Tigrão defendeu sua posição. Afastados da prática cotidiana da capoeira, os argumentos contrários dos irmãos não tiveram repercussão o suficiente para impedir o processo de transformação que se constituía.

Estamos buscando evidenciar que houve uma resistência ao retorno do Mestre Eufraudísio, mas acreditamos que essa resistência não está calcada em uma disputa de cargos ou funções, mas antes, no embate de concepções técnicas e na resistência acerca de uma concepção de capoeira, que não contribuía, na visão de Mestre Tigrão, para os objetivos alçados e compromissos sociais assumidos pela Associação Cultural Corrente Libertadora ao longo dos anos 90.

outra coisa que eu sempre peguei no pé dele, essa coisa de não enaltecer os atos tradicionais. O se benzer, por exemplo, o Tigrão aboliu o benzer na frente do berimbau. Ora, eu não sou religioso, não sou católico, não gosto de religião, mas o benzer na frente do berimbau é um ato de tradição, de respeito ao berimbau, plasticamente é superbonito você vê isso... é incalculável esse valor e quando ele aboliu isso, tudo bem, ele acha melhor assim, mas eu acho que perde, perde culturalmente... Tradição não pode ser mudada... Tradição a palavra já diz, é tradição. Então, você pode adequar ou criar movimentos, elementos para enaltecer a tradição, entendeu? Então pra mim, tradição é preservar elementos, fatores superimportantes que é a cultura imaterial, que não se calcula esse valor, que é a grande fonte de onde você se espelha e vê toda essa riqueza...Tem fatores muitas vezes você fala: ah, mas é uma besteira! É uma besteira vê ali, mas quem vive não é besteira, aquele valor muito peculiar pra aquela pessoa, tem uma história.87

Nessa narrativa, Mestre Eufraudísio está se referindo especificamente à capoeira como manifestação cultural, esta preocupado com a descaracterização dessa cultura, da negligência a elementos de seu ritual, que lhe são tão particulares. Segundo nosso narrador, a tradição resguarda esse ritual, o protege da vulgarização associada muitas vezes ao consumo, ao mercado cultural e a distorção de conteúdo.

87 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 85

A concepção de tradição de Mestre Eufraudísio está ancorada na imutalidade, o que faz de uma cultura tradicional é o ato de preservar os elementos constitutivos da manifestação cultural. Mas contraditoriamente, ele reconhece a possibilidade de adptação ou de criação em função de enaltecer os elementos tradicionais. Ora, ao criar, ao incluir novos elementos, os sujeitos que vivenciam a cultura já estão atribuindo novos significados à mesma. Nesse sentido, a cultura dificilmente se manterá imutável, pois a experiência humana a torna viva, sempre em movimento e em diálogo com o tempo histórico.

Compreendemos que está subjacente na argumentação de Mestre Eufraudísio que não é necessário incorrer no prejuízo dos elementos tradicionais em detrimento das inovações, mas que o passado e o presente podem caminhar juntos em função da preservação da capoeira.

Entretanto, nos parece que embora não haja impedimentos formais para que os alunos da Associação considerem esses elementos tidos como tradicionais, não há como nos apontou Mestre Eufraudísio, uma preocupação no processo de aprendizagem de Mestre Tigrão em ensiná-los, preservá-los e enaltecê-los. Isso é perceptível, pois houve um deslocamento de prioridades: o processo de aprendizagem da capoeira é a própria estratégia de inclusão social. A capoeira não é o fim, é o começo.

Por que nós não somos grupo. Nós somos uma associação cultural... nós somos sócios dentro daquela questão de igualdade social, a gente não é um grupo, uma academia... Então, uma roda só eu acho, acho não, tenho certeza, que uma roda só inibe as crianças e mesmo um adulto... por que uma roda só, só joga quem manja... Então lá, nós temos cinco rodas e tem dia que tá lotado as cinco rodas. Se nós tivessemos só uma roda, todo o mundo em volta, batendo palma, a tradição. Nós não seguimos essa tradição, de uma roda só. Agora, por exemplo, das quinze as dezesseis vamos fazer a roda? Vamos, por que todo mundo já jogou... Se as pessoas que ficam inibidas não querem, mas já jogaram a aula todinha... por que a gente não faz Educação Física ... a pessoa chega, não tá bem pra, então se o professor falar assim: Vamos fazer isso! A pessoa não tá bem, qualquer movimento a pessoa pode se machucar... Então se a pessoa não tá bem naquele dia... ela pode pegar um berimbau...ficar tocando num canto, ninguém vai falar nada... ninguém mais faz física, ninguém tá fazendo física, mas antigamente, nossa, tinha que fazer... hoje em dia cê tá chegando, tô gingando, tô entrando, tô chegando, tô ouvindo uma música, tô entrando no mundo da capoeira... não têm essa coisa de graduação... por que qualquer aluno pode chegar lá e pegar um instrumento... O que eu penso do cordão é isso aí: é um cidadão. É formar um cidadão... não é só o jogo da capoeira, o jogo da capoeira é o primeiro, segundo, terceiro e quarto, quinto e sexto pra lá, aí pode continuar com capoeira, pode sim, mas ele tem projeto de vida, ele vai fazer uma faculdade ou vai fazer um puta curso, pra mim ele tá indo num jeito legal, ele tá seguindo uma cidadania. 88

88 Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08 e Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.09. 86

Nosso narrador inicia sua fala reafirmando ser a Corrente Libertadora uma Associação. Essa afirmação é relevante para compreendermos sua posição em relação à tradição, pois na argumentação construída por ele, essa condição – de Associação – os diferenciam de grupo de capoeira e de academia de capoeira e consequentemente das atribuições específicas destes.

Não sendo exclusivamente um grupo de capoeira, podemos acrescentar, não tendo suas atividades centradas essencialmente na prática da capoeira, mas a partir dela, a Corrente Libertadora não tem necessariamente, na posição de Mestre Tigrão, a obrigação nem o compromisso de tornar sua vivência da capoeira um espelho de uma dita tradição.

Não está no seu horizonte o compromisso em se postular um grupo que mantém e defende a tradição da capoeira. E por quê? Está posto em sua proposta de ensino: porque elementos balizares da tradição – hierarquia social, estrutura da roda de capoeira, a normatização da aprendizagem do jogo, da instrumentalização, da história, etc – não colaboram para o que ele entende como um processo de real de inclusão social.

Compreendemos que na perspectiva de Mestre Tigrão a capoeira pode ser mutável e livre, capaz de se reelaborar, de se refazer continuamente através do olhar, das necessidades e da ação direta dos capoeiristas. A capoeira permanece tradição89 à medida que está associada a um passado de resistência e de expressão cultural, no entanto, é capaz de se reatualizar, visto que o status da capoeira mudou, novos significados foram a ela atribuídos e outros atores sociais – brancos, ricos, pobres, qualquer um – vieram conhecer e pertencer ao diversificado grupo de pessoas que vivenciam essa cultura.

Essas questões discordantes sem dúvida permearam todo o processo de produção de ideias e estratégias de ação, ocasionando por vezes desafetos. No entanto, não acreditamos tratar-se de um antagonismo capaz de dividir, de destruir laços e de romper com o comprometimento político-cultural dos irmãos Modesto.

Também gostaríamos de ponderar que metodologicamente, as entrevistas não foram direcionadas nesse sentido, por isso o diálogo que construímos a partir das narrativas se deram através das temáticas levantadas nesse ínterim e que com o intuito de dar visibilidade ao processo, às discussões e à habilidade de negociação e readaptação da Corrente Libertadora,

89 Para a noção de tradição, Ver: WILLIAMS, Raymond. Marxismo y Literatura. Ediciones Península, Barcelona, 1980.

87 pontuamos aqui através de nossos narradores. Portanto, a sequência e a escolha dos excertos para essa análise, corresponde ao trabalho do historiador e não a uma discussão condicionada e direta entre os dois mestres.

Mediante essas reflexões, caminhamos para algumas considerações. Consideramos que as posições divergentes compartilhadas entre Mestre Eufraudísio e Mestre Tigrão nesse período, aparentemente de natureza antagônicas, são complementares. São complementares, principalmente, porque ambos reconhecem a musicalidade, a dança como elemento primordial da capoeira.

Simultaneamente acreditam na autonomia – do corpo e do aluno – como um dos princípios de aprendizagem. Ambos acreditam na capoeira como instrumento capaz de desencadear transformação social através da cultura e ambos reconhecem a relevância da preservação da tradição mesmo que de forma diversa.

Consideramos que essas posições divergentes se configuraram como agravantes no que se refere ao retorno de Mestre Eufraudísio ao núcleo de capoeira – principalmente, em condições de ânimos exaltados que tendem a valorização das diferenças – mas não foram determinantes. A distância da prática cotidiana de capoeira, a militância e a própria reestruturação administrativa e das metas norteadoras das ações da Associação nos anos 90, dificultaram o retorno.

Retomar a prática de capoeira em conjunto com Mestre Tigrão, depois de alguns anos, significaria retornar à partilha dos irmãos Modesto na Associação vivenciada de 1976-1989, período no qual, Mestre Maurício e Mestre Eufraudísio eram as referências culturais e políticas.

Na tentativa de retorno ao cotidiano da capoeira por parte de Ms. Eufraudísio e o embate de ideias que isso acarretaria, incorreu um movimento de avanço e resistência, no qual, a resistência de Ms. Tigrão ao retorno de aspectos práticos da experiência anterior a 1989 prevaleceu, afastando temporariamente Ms. Eufraudísio da Associação.

O que estava em jogo não era a posição política da Associação, mas a maneira como a capoeira se fazia instrumento desta. Apesar de nos embates e discussões entre os irmãos Ms. Tigrão figurar como minoria, dois aspectos favoreciam sua posição, uma de ordem pessoal e outra conjuntural: a convicção de que a proposta de ensino de capoeira desenvolvida por ele poderia colaborar significativamente para o desenvolvimento físico, psicossocial e cultural de

88 seus alunos e o apoderamento dos mecanismos administrativos e pedagógicos a frente da Associação entre 1989 e 1994.

Convencido da viabilidade e eficiência da proposta para a inclusão social, tendo as alterações que fizera como necessárias, Ms. Tigrão passou a defendê-la mediante a legitimidade e apoderamento que a experiência lhe conferia. Afastados da prática cotidiana da capoeira, os argumentos contrários dos irmãos não tiveram repercussão o suficiente para impedir o processo de transformação que se constituía.

Nos anos 90, o Mestre Tigrão tornara-se o referencial junto aos alunos e aos serviços parceiros. Nessa conjuntura, o retorno de Mestre Eufraudísio necessariamente passaria por uma negociação entre os irmãos, na qual exigiria uma readaptação por parte de Mestre Eufraudísio e que Mestre Tigrão cedesse em alguns pontos da proposta de aprendizagem de capoeira que desenvolvera nos anos antecedentes.

Essa negociação ocorreu, mas não redundou no retorno de Mestre Eufraudísio ao núcleo de capoeira, mas antes, em sua contribuição política e cultural nas estratégias e ações desenvolvidas pela Corrente Libertadora.

eu achei... que era um momento histórico da Corrente, superimportante. Eu achei que foi desnecessário, nós perdemos um tempo. Nossa história é uma história preciosa, inigualável dentro desse aspecto que a gente construiu... Então essas divergências elas permearam as discussões, acabamos muitas vezes ficando nervosos, eu virei as costas algumas vezes, mas a Corrente esta dentro do meu sangue, todo esse empenho sócio- cultural da Corrente, foi uma coisa que eu sempre acreditei e hoje, se eu não quiser acreditar, é uma coisa que não tem mais jeito, ela tá aí, as pessoas estão aí, você tá aí, Michel tá aí, o Rasgado tá aí, isso é efeito desse trabalho, é resultado desse trabalho, que quer queira, quer não, o Tigrão é um grande mestre... Eu fui incapaz de sair totalmente da Corrente, então, ainda bem, porque tô aqui dando essa entrevista pra você... Então as divergências eram mais em cima dessa coisa mais técnica, politicamente e socialmente não, nós sempre comungamos, ele sempre apoiou todas as minhas iniciativas, nunca houve problemas. A filosofia da capoeira, da Corrente sempre foi essa. Filosofia onde todo mundo se assusta, todo mundo se admira, quando vêm os técnicos, as pessoas, os estudiosos quando vê a Corrente fica assustado com a filosofia que a Corrente sempre adotou, a filosofia que o Tigrão comunga e que faz acontecer, ele não discorda. O problema que deu foi do ponto de vista prático, do ponto de vista da praticidade de ensinar a capoeira, ele acredita de uma forma, eu acredito de outra, entendeu? Mas isso não interfere, eu não tenho nenhum problema de pegar uns dos garotos que eu nunca vi jogando capoeira, mas que aprendeu com o Tigrão pra gente jogar e fazer um trabalho. O essencial da capoeira tá com ele e isso pra mim tá beleza. 90

90 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 89

Compreendemos que a permanência de Mestre Eufraudísio, como claramente descrito por ele, está intimamente relacionada a proposta político-cultural da Corrente Libertadora, ao seu comprometimento com essa proposta. Mas, nos permitimos considerar, como aludimos acima, que sua permanência também concerne ao caráter complementar das posições que defendem os irmãos e mestres e que na tensão do embate foram ignorados, enfatizando sobremaneira, as discordâncias.

Nos remetemos aqui, ao que consideramos ser uma das particularidades da Corrente Libertadora: ser uma Associação que tem na sua origem a atuação de quatro irmãos – Mestre Maurício, Mestre Eufraudísio, Mestre Tigrão e Magnólia, e para nós, profundamente influenciada por esse sentido comunitário, transpassado pelos laços familiares. A Corrente esta dentro do meu sangue nos diz Mestre Eufraudísio.

Assim como, Ms. Tigrão apoderado da legitimidade de seu trabalho, atribui esse mérito à Corrente Libertadora, igualmente Ms. Eufraudísio direciona sua contribuição política à Corrente Libertadora. Os irmãos não romperam para formar outras associações ou grupos de capoeira. As divergências não foram capazes de dividir: as relações se transformaram, os referenciais mudaram, os projetos e ações trilharam novos caminhos, mas a Associação Cultural Corrente Libertadora continuou a ser, em certa medida, um projeto comum dos irmãos Modesto e a capoeira seu principal instrumento.

Aqui retomamos nossa preocupação em pontuar o sentido de projeto familiar, ao qual nos referíamos anteriormante. Não pretendemos com isso, no entanto, defender que a Corrente Libertadora é uma associação familiar ou atribuir a ela um sentido patrimonialista,91 mas tão somente pontuar que apesar dos contornos institucionais e profissionalizantes que ganhou nos anos 90, a Associação não conseguiu, não pôde ou não quis, romper com seu fazer cultural e político ancorado nas relações comunitárias, pessoais e invariavelmente familiares.

Esse período que identificamos aqui como de transição é relevante, pois indica os contornos das ações de intervenção sócio-cultural que a Corrente Libertadora assumiu nos anos 90 e a redefinição dos papéis desempenhados pelos irmãos Modesto nessa conjuntura.

91 Para o conceito de patrimonialismo, ver: HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2008. 90

Depois de 1994 o núcleo de capoeira da Associação ficou definitivamente sob a coordenação de Mestre Tigrão dando vazão ao processo criativo da proposta pedagógica desenvolvida por ele. A proposta pedagógica tornou-se o cerne da intervenção político- cultural da Associação, que subsidiada pela experiência anterior à 1989 compunha o corpo de justificativa para alçar novos projetos e efetivar ações junto aos parceiros.

A participação de Mestre Eufraudísio se reconfigurou: tornou-se pontual na prática da capoeira – participação nos batizados anuais e eventos – e intensa nas lutas políticas. Representando a Corrente Libertadora, atuou decisivamente no Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente de Santo Amaro – FDCA/SA e na elaboração do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente de Santo Amaro – CEDECA/SA, do qual a Corrente Libertadora tornou-se mantenedora em 2003.

Passado o período de transição, a gratuidade do atendimento tornou-se uma meta e o campo da defesa e garantia de direitos, a diretriz norteadora da intervenção sócio-cultural da Corrente Libertadora. Essa reestruturação exigiu a paulatina profissionalização da Associação para assegurar a manutenção e continuidade de seu trabalho. Nessa fase que se inicia, profundamente relacionada às parcerias com a sociedade civil organizada e o Poder Público, o processo de aprendizagem da capoeira passou a ser o ponto de partida para esse diálogo.

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Capítulo II

“Meu Aluno É Meu Mestre!”

A vivência de Capoeira de Mestre Tigrão

“Meu aluno é meu mestre, um dito de bom viver Se à ele estou ensinando, dele também vou aprender!”

Ms. Maurício e Ms. Moreira, 1981

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O capítulo que se segue tem como pretensão apresentar as particularidades da proposta pedagógica para o ensino da capoeira desenvolvida por Ms. Tigrão a partir de 1989. Através do diálogo com as fontes – narrativas orais, projetos e relatórios institucionais e imagéticos – buscamos discutir a vivência das transformações de concepções e prática da capoeira pelos alunos e mestres da Associação Cultural Corrente Libertadora.

Seguindo as reflexões dos sujeitos históricos com os quais dialogamos, nos concentraremos agora na capoeira, tentando evidenciar a proposta pedagógica de Ms. Tigrão como elemento que imprimiu novos sentidos a atuação e experiência político-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora em São Paulo, 1976-2004 cerne dessa dissertação.

Como em uma roda de capoeira, a ladainha1 Encontros de Ms. Tigrão, 1999, nos chama para esse universo.

Berimbau me chamou, Assim disse o atabaque, O pandeiro respondeu, Chamando a todos nós. E obrigado negro, Foi você quem criou a capoeira! E, obrigado negro, Foi você quem criou a capoeira!

Esse verso irrompe com o desejo de nos seduzir, de nos levar, mesmo que parcialmente à uma roda de capoeira, de nos permitir entrar em contato com uma das múltiplas possibilidades de experiências sócio-culturais que o universo da capoeira permite e, que aqui, nos propomos pensar sobre alguns dos processos desse fazer cultural, suas tensões e alguns significados.

A ladainha também nos lança no campo das discussões étnicas, tendo em vista a autonomia e criatividade dos brasileiros, afro-descendentes na criação, desenvolvimento e luta pela manutenção da capoeira no Brasil, o que remonta a capoeira desde a experiência escrava. Não obstante, o verso nos remete aos elementos que, em nossa percepção, distingui a capoeira das demais lutas, marciais ou não. Estamos chamando a atenção para os instrumentos musicais – berimbau, pandeiro e atabaque – que fazem da capoeira uma dança que luta ou

1A palavra ladainha está no dicionário como oração formada por uma série de invocações curtas e respostas repetidas. Relação, narração, ou conversa longa e fastidiosa; lengalenga, cantilena. No universo da capoeira, a ladainha é a canção que abre o jogo de Angola, normalmente trata-se de uma narração relativamente longa, durante a qual apenas o puxador (cantador) se faz ouvir. A ladainha não é acompanhada por palmas e apenas quando o puxador evoca o coral é que este responde. Até a introdução da invocação e da resposta do coro, os jogadores se mantém de cócoras ao pé do berimbau, quando o puxador então sinaliza para os jogadores abaixando levemente o berimbau em direção a roda, aí então começa o jogo, a brincadeira. 93 quem sabe, uma luta que finge dançar; uma performance do corpo que brinca, que canta e que engana.

Podemos entrever o traço da tradição oral, na atitude do mestre que conta história, que reivindica o lugar dos negros na elaboração da capoeira através da ladainha, que é uma narrativa. Uma narrativa cantanda,2 que os instrumentos da capoeira dá vida, como um dramaturgo à uma personagem.

A tradição oral presente nas tradições dos diversos povos que entre conflitos, negociações e intercâmbio cultural conviveram e convivem em terras brasileiras, é inerente ao fazer da capoeira. Está presente na transmissão e apreensão do conhecimento por entre os golpes treinados, no responder dos corridos,3 na escuta atenta da ladainha, no manusear dos instrumentos que ganham forma através do desajeitado aprendiz ou na habilidade do tocador. Está presente no exemplo do Mestre, no cotidiano da roda, nas estratégias de reprodução e de produção de novos conhecimentos acerca da experiência da capoeira.

Parafraseando Georges Vigarello,4 o corpo do capoeirista é um arquivo vivo desse fazer cultural, perpassado pela tradição oral e em diálogo contínuo com a realidade social vivenciada. Observando a experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora na cidade de São Paulo podemos cruzar com esses traços no cotidiano de sua prática de capoeira, que longe de serem traços deterministas, funcionam como vetores, catalizadores de outros traços complementares e potenciadores dos elementos da capoeira.

Iniciamos essa discussão pelas mãos, pés e narrativas dos sujeitos históricos que desde 1989 participam da Associação Cultural Corrente Libertadora e que na prática de capoeira vivenciaram as transformações na forma de ensinar capoeira empreendidas por Mestre Tigrão, a partir de então, ora como agentes que desencadearam o movimento de transformação, ora como apredizes do que foi transformado e, algumas vezes, como multiplicadores, responsáveis por expandir e repassar essas transformações.

Para tanto, adentraremos o espaço no qual a Associação desenvolveu suas atividades no período aqui estudado, o que já nos propõe perguntas e inquietações. Esses espaços

2 Sobre poesia oral, ver: ZUNTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Hucitec, 1997. 3 Corridos é o nome dado as canções composta por dois versos, dos quais um é evocado pelo puxador e o outro é respondido pelo coro. 4 VIGARELLO, Georges. O Corpo Inscrito na História: Imagens de Um Arquivo Vivo. In: Revista Projeto história, nº 21. São Paulo: Educ, 2000. Para uma discussão sobre as relações entre performance do corpo e tradições orais de matrizes africanas, ver: ANTONACCI, Maria Antonieta. Corpos Sem Fronteiras. In: Revista Projeto História, nº 25. São Paulo: Educ, 2000. 94 predominantemente públicos – casas de cultura, escolas, associações de bairros, serviços de atendimento a criança e adolescentes, clubes da cidade, sedes de movimentos sociais, entre outros – vivencia com a presença ativa da capoeira, personificados por seus agentes – mestre, instrutores, monitores, alunos e colaboradores – uma experiência comunitária e pedagógica que está presente não apenas na maneira de dar aulas de capoeira, mas na maneira de ocupar o espaço, de se relacionar com a comunidade e de desenvolver uma proposta de inclusão social através da cultura.

A proposta de inclusão social dos sujeitos que compõem as comunidades da periferia da cidade de São Paulo e, principalmente da periferia de Santo Amaro, é o cerne do trabalho de intervenção sócio-cultural desenvolvido pela Associação Cultural Corrente Libertadora desde anos setenta, quando de sua formação. Entretanto, no fazer cultural e político da Corrente Libertadora na cidade, as estratégias, prioridades e metas de seus trabalhos foram se alternando, modificando ou sendo retomadas por viéses diferentes, visto a necessidade de responder as demandas sociais com as quais se deparavam e a necessidade em enfrentar a situação estrutural-financeira da Associação.

Nessa perspectiva, iniciaremos essa exposição nos referindo a ocupação da capoeira em espaços públicos como um elemento para pensarmos o trabalho da Associação Cultural Corrente Libertadora. Esse aspecto aparentemente exterior, está carregado de historicidade e significados pertinentes ao processo de construção da proposta de ensino de Mestre Tigrão.

Tava fechando a academia em oitenta e oito. Tava preocupado com essa coisa, será que eu vou parar com a capoeira, meu Deus do céu! inclusive nossas coisas foi pra casa do Arselino, que não tinha lugar, não tinha nem uma garagem, tive que levar pra lá, já tinha saído do Rolamento Fag... foi na época que Maurício foi internado de novo e... a Erundina tava criando o Centro de Convivência e aí, tava criando a Casa de cultura. Antes de criar a Casa de Cultura eles já pediram pra mim ir pra lá, como eu tava desempregado, aí eu falei: Vou tranqüilo. E minhas coisas? Arrumaram um caminhão, fui lá peguei minhas coisas e levei pro Autódromo de Interlagos, aí tive que trabalhar a semana toda, tudo sujo lá, aquele salão imundo, que até dedo de gente tinha lá em cima... o negócio foi feio e lá era Polícia Militar muitos anos e...então quando a gestão da Erundina entrou e o Leónidas... trabalhou aqui na prefeitura então, ele arrumou lá pra gente, pra gente fazer um trabalho, pra montar uma casa de cultura e além da casa de cultura... o centro de convivência que ficou cá em baixo e eu fiquei lá em cima limpando voluntariamente, louco pra deixar bem bonito pra quando Maurício saísse da... internação ele visse que a academia estava super bem, que a gente não tava mais pagando aluguel. Eu fiquei muito contente na época por que... além disso a minha cunhada, que era esposa do Eufraudísio, foi convidada pra administrar o Centro Esportivo Joerg Bruder que fica em Stº Amaro... Nossa, aí eu fiquei muito contente! Em oitenta e nove... por que o Maurício vai sair, vai pra academia... Aí foi a época que comecei a falar assim: Puxa, que legal! Agora eu vou trabalhar com capoeira, né. É eu vou trabalhar com capoeira, acho que chegou o momento. Agora deu, deu...sei lá, tô muito contente! Então comecei. Aí fui convidado pra ir pro Bruder. Fui lá no Bruder, limpei o

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salão, arrumei o salão lá no Bruder e cá, já coloquei o nome mestre... Mestre Maurício já na frente, nossa! Mestre Maurício e Professor Tigrão, por que não era mestre, eu era formado.5

Optamos em iniciarmos nossa busca pela proposta pedagógica desenvolvida por Mestre Tigrão a partir das expectativas elaboradas por ele mesmo, no momento em que, anteriormente identificamos como um período de transição (1989-1994), que nos parece significativo, pois diz respeito ao momento em que Mestre Tigrão, por circunstâncias diversas, torna-se o responsável pelo núcleo de capoeira da Associação, o que inclui a continuidade da prática da capoeira junto a comunidade.

A narrativa de Mestre Tigrão descreve em certa medida aspectos que circundavam aquela situação limite para a Associação, como tal, ele se vê sob a responsabilidade de desenvolver novas estratégias de intervenção social e de manutenção da Associação Cultural Corrente Libertadora.

A mudança para o antigo Posto Militar de Interlagos, na Zona Sul de São Paulo, marca o início das parcerias entre a Associação Cultural Corrente Libertadora com o Poder Público. O posto militar desativado em 1989 e transformado em Casa de Cultura Interlagos e Centro de Convivência, estava previsto no programa de gestão da então prefeita Luiza Erundina, mas seguindo os rastros deixados por nosso narrador, nos diz também da articulação entre o governo que começa a trabalhar com a colaboração das forças dos Movimentos Populares.

Os irmãos Arselino e Leonídas Tatto, antes mesmo da formação do Partido dos Trabalhadores em 1980, eram lideranças populares da região da Capela do Socorro e Parelheiros e parceiros da Corrente Libertadora nas lutas sociais dos moradores da periferia de Santo Amaro. Essa parceria está imbuída de vontade política, entretanto também estava transpassada por relações pessoais e afetivas construídas nas lutas sociais, que decorreram em ações de camaradagem e solidariedade.

A experiência político-cultural da Corrente Libertadora junto a comunidade e aos Movimentos Populares na década de 70 e 80 por um lado, e a nova conjuntura política por outro lado, tornaram possível a entrada da Associação Cultural Corrente Libertadora na Casa de Cultura Interlagos. Esse movimento está permeado por atitude política, a medida que houve o reconhecimento do trabalho desenvolvido pela Associação no período anterior e mediante isso, a proposta da participação desta, no governo que se inaugurava.

5 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08. 96

Não obstante, as circunstâncias sócio-econômicas da Associação, bem como de Mestre Tigrão – desalojamento e desemprego respectivamente – possibilitou uma disponibilidade a capoeira. Nesse sentido, o desalojamento da Associação obrigou Mestre Tigrão e seus irmãos, particularmente Mestre Eufraudísio, a buscar alternativas que impedissem o fechamento definitivo da academia, portanto, do espaço no qual a capoeira se dava.

A condição de desempregado vivida por Mestre Tigrão permitiu naquele momento, uma dedicação integral a capoeira e consequentemente, à Associação Cultural Corrente Libertadora. Essa mobilidade adquirida mediante a uma situação de desamparo financeiro com implicações sociais para o trabalhador assalariado – visto que seu salário é o sustento de sua família – dá visibilidade a capacidade contínua de se reinventar através da cultura. A capacidade dos membros da família Modesto, e nesse momento de Mestre Tigrão, em não desperdiçar as oportunidades que se apresentam no cotidiano, mesmo quando estas, não são o que podemos entender como absolutamente promissoras.

A decisão em aceitar ir para o antigo Posto Militar de Interlagos indica uma disposição em ver nas pequenas e improváveis brechas da realidade social, a possibilidade de construir, de criar, de trabalhar. Essas características se evidenciam a medida em que nos deparamos com a informalidade desse contrato basicamente oral. Primeiro Mestre Tigrão aceitou ir para o espaço e lá trabalhou na sua reorganização e apenas meses depois, foi efetivamente contratato pela Prefeitura do Município de São Paulo como funcionário.6

Mas o elemento da narrativa que gostaríamos de nos deter por um momento, é a transformação do espaço físico emprendida por Mestre Tigrão. A ocupação do espaço se deu primeiramente através do trabalho braçal, independente da capoeira. Como nos descreve Mestre Tigrão, a limpeza, a pintura, a organização do espaço foi realizada pela ação direta dele. A Associação participou da fundação da Casa de Cultura de Interlagos, não como convidado que chega quando a festa começa, mas como aquele que produz a festa, que age nos bastidores.

A prerrogativa do fazer, de construir o alicerce com as próprias mãos para o devir da festa da capoeira, da cultura popular está posto na trajetória cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora, basta nos voltarmos momentaneamente para sua fundação no Jd.

6 Somente depois de um ano trabalhando como voluntário na Casa de Cultura Interlagos e no Centro Educacional e Esportivo Joerg Bruder, Eufrásio Modesto Alves, Mestre Tigrão, foi contratado pela Prefeitura de São Paulo, após ser aprovado em concurso público, o que possibilitou a continuidade remunerada do seu trabalho nesses espaços. 97

Manacá, quando o espaço foi construído pelas mãos de Mestre Maurício com a ajuda dos irmãos e pedreiro. Entretanto, o que torna peculiar a prática de Mestre Tigrão é que a transformação do espaço passa a constituir um elemento de sua prática pedagógica.

No momento da ocupação do Posto Militar em Interlagos em 1989, transformar o espaço era uma necessidade física para o desenvolvimento da capoeira, mas essa prática possibilitou a observação, a reflexão e uma nova ação. Dos 17 (dezessete) projetos dsenvolvidos pela Associação no período de 1996 à 2004 em parceria com a sociedade civil e com o Poder Público (municipal, estadual e federal), a adequação do espaço esta prevista com parte da proposta de trabalho em 14 (quatorze) deles.7

A proposta de adequação do espaço nos possibilita identificar aspectos e princípios pedagógicos desenvolvidos pelo Mestre Tigrão a partir de 1989. Então, através dos projetos, das narrativas e das imagens podemos construir relações entre a disposição física do espaço ocupado pela Corrente Libertadora e o princípio de inclusão social que o acompanha.

No projeto Iniciação a Capoeira de 1996 em parceria com a Cáritas Arquiodiocesana de São Paulo – Região Episcopal Sé, realizado o Centro Comunitário da Criança e do Adolescente, a adequação do espaço é proposto como uma estratégia pedagógica.

O projeto objetiva uma participação significativa desde o início, elaborando conjuntamente os princípios básicos que devem orientar o grupo. O grupo organiza o local de trabalho, participando de pintura das oficinas das linhas que devem ser assinaladas no chão. As atividades serão enriquecidas com sugestões dos alunos que participam das contínuas avaliações do trabalho desenvolvido.8

Entendemos que a adequação do espaço como denominada pelos gestores dos projetos tem um sentido para além de arrumar o espaço. Está relacionada a forma de ocupar o espaço e de iniciar o processo pedagógico antes mesmo do início da oficina de capoeira.

7 Dos projetos analisados (ver: Fontes, p.196), apenas aqueles relacionados especificamente a sexualidade e que previam oficinas culturais ou de prevenção à DST/AIDS em lugares variados, não continham a adequação do espaço como parte da metodologia de trabalho. Os demais projetos e/ou planos de trabalho, todos o previam, indicando os materiais necessários para a pintura das rodas de capoeira, das linhas circunscritas no chão para a aprendizagem da ginga e dos golpes e outros materiais dependendo da especificidade do público a ser atendido. A adequação era prevista como parte do trabalho da Associação e por isso, de responsabilidade dos coordenadores dos projetos. 8 Documento: Projeto Iniciação a Capoeira, 1996. Parceria: Centro Comunitário da Criança e do Adolescente/Liberdade – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo/Região Episcopal Sé. p.7.

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Ocupar o espaço através da capoeira, introduzindo os elementos que acompanharam o desenvolvimento de cada aluno e paralelamente marcando especificidades do processo pedagógico. Nesse sentido, as linhas assinaladas no chão a que se referem os autores do projeto, trata-se de um recurso pedagógico utilizado pela Corrente Libertadora no aprendizado da ginga e de alguns golpes da capoeira. Esse recurso utilizado por Mestre Maurício e seus irmãos no período de 1976-1988, foi por Mestre Tigrão reapropriado em um processo ativo de seleção e incorporação de novos elementos.

Do ponto de vista da qualidade e da função técnica da capoeira, isto é, da maneira como se concebe a execução correta ou mais adequada do golpe ou do movimento de capoeira, a utilização do recurso das linhas assinaladas no chão é readequado por Mestre Tigrão, com a finalidade de atender as necessidades do aluno e, principalmente, de desenvolver a capoeira prioritariamente baseada no ritmo da música.

A musicalidade, inerente à capoeira, é tomada pelo Mestre Tigrão como a condutora do aprendizado da capoeira e a partir dessa perspectiva, ele passou a desenvolver estratégias de aprendizagem que trazem consigo o príncipio da inclusão.

Então, no aprendizado e aperfeiçoamento da técnica, a ginga aprendida sobre as linhas assinaladas no chão, constitui-se no primeiro passo da aprendizagem da capoeira. Entretanto, na busca pelo ritmo que permite que qualquer pessoa, em qualquer idade, portadoras ou não de limitações físicas, psíquicas e sociais, sejam capazes de estabalecer uma relação com a capoeira e consigo mesma, o formato das linhas desempenha um papel importante nesse processo.

Nas imagens a seguir, veremos o desenho das linhas utilizadas pelos irmãos Modesto antes de 1989 e que foram reapropriada por Mestre Tigrão mediante o deslocamento dos objetivos pedagógicos à ele atribuídos.

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1a. Ginga de Frente, lado esquerdo, 1b. Ginga de Frente, lado direito, sobre as linhas posteriores em v. sobre as linhas posteriores em v.

O formato do próprio desenho indica traços do deslocamento técnico. Podemos observar (imagens 1a e 1b)9 que na Ginga de Frente o movimento do corpo ao ritmo das músicas características da capoeira – ladainha, corridos, regional – é embalado pelo movimento das pernas que desencadeiam o movimento dos outros membros do corpo.

Entretando, a ginga executada sobre as linhas posteriores em v, conduzem o corpo a uma postura de ataque e faz com que o capoeirista se equilibre a partir do cruzamento das pernas, o que implica em uma habilidade motora específica de cada indíviduo.

Não obstante, esse procedimento, no jogo de capoeira, obriga o capoeirista a realizar dois movimentos diferentes – a ginga e a esquiva – com velocidade e sequencialmente. Esse procedimento técnico exige, muitas vezes, uma condição física adequada do aprendiz e restringe a prática continuada para pessoas com determinadas limitações físicas, tais como obesidade, portadores de necessidades especiais – auditivas, motoras, cognitiva – dependentes químicos e idosos.

9 As imagens (1a e 1b) foram feitas a partir de fotografia. Como não tínhamos um imagem do período (1976- 1989) no qual esse recurso era utilizado pela Associação, através dos depoimentos de Ms Tigrão e do aluno Emerson Coutinho reproduzimos a ginga, fotografamos (22.01.11) e então, Emerson Coutinho produziu a ilustração. Para mantermos um padrão nas ilustrações utilizamos o mesmo procedimento para as imagens 2a e 2b. 100

De maneiras e por razões diferentes, esses sujeitos apresentam limitações à prática da capoeira, entretanto, o ritmo desenvolvido a partir da ginga pode potencializar suas habilidades e não as dificuldades e limitações.

O procedimento acima descrito não impede a prática da capoeira por esses indivíduos, sendo inclusive comum, que num primeiro momento as pessoas apresentem facilidade em executá-lo, normalmente ignorando o ritmo. No entanto, na perspectiva de prática continuada, compreendemos que não propicia uma relação integral com a capoeira, podendo incorrer em uma inclusão parcial, no sentido que viabiliza a participação do indíviduo pautada no limite e não na habilidade.10

Essa afirmação se fez na análise comparativa entre os dois procedimentos pedagógicos e nos princípios que os norteiam. Na observação das imagens 2a e 2b logo abaixo, as linhas assinaladas no chão reapropriadas por Mestre Tigrão, podemos entender o deslocamento da função desse recurso, agora subordinado aos princípios da inclusão.

2a. Ginga de Lado, direito, as sobre 2b. Ginga de Lado, lado esquerdo, sobre linhas posteriores paralelas. as linhas posteriores em paralelas.

10 O que estamos tentando inferir é que muitas vezes, as pessoas portadores de necessidades especiais participam de aulas e atividades culturais sendo aceitas afetuosamente pelo grupo sem que delas sejam exigidos ou estimulados passos de progressos dentro de uma proposta pedagógica que leve em consideração as particularidades de cada caso. Essa situação, muitas vezes, incide em uma participação apenas recreativa desses alunos. Não estamos negando as contribuições de atividades recreativas, mas no caso da proposta da Corrente Libertadora, pudemos compreender que o caráter recreativo é uma decorrência de estar relacionado ao grupo e a capoeira e não um fim em si mesmo. 101

A posição das pernas no movimento da ginga não se cruzam, exigindo assim o equilíbrio como uma habilidade a priori, mas antes, serve como apoio que possibilita o equilíbrio, os pés estão inteiros no chão e a perna anterior (perna da frente) livre para empreender um contra-golpe, já que a perna posterior (perna de trás) lhe dá firmeza.

O que torna essa reapropriação particular como uma estratégia pedagógica que pressupõe uma inclusão integral dos indivíduos na prática da capoeira, é a concepção desta, como instrumento mesmo da inclusão, gerando o deslocamento dos aspectos de luta da capoeira para os aspectos da dança da capoeira.

Nesse sentido, o papel da ginga embalado pela musicalidade torna-se prioritário. Para potencializar os aspectos da dança, portanto, os aspectos rítmicos, o recurso das linhas assinaladas no chão utilizadas por Mestre Tigrão, inverte a posição de ataque da imagem 1a e 1b, para a posição de defesa da imagem 2a e 2b, isso porque, ao possibiltar o equilíbrio do corpo através da posição das pernas, também conduz simultaneamente a esquiva,11 sem a necessidade de realizar dois movimentos subsequentes.

Então, dentro dessa proposta de ensino da capoeira, a ginga se faz através da esquiva ritmada, tornando o jogo de capoeira praticado pela Associação Cultural Corrente Libertadora, por excelência defensivo e esteticamente complementar, potencializando os elementos acrobáticos, rítmicos e evitando os contra-golpes.12

A performance do corpo ao jogar capoeira é particular, prevê a criatividade e a liberdade de movimento de cada jogador e o diálogo indireto com o outro, dá os contornos da dança, mas os golpes de ataque, mesmo que deferidos de maneira indireta nos lembram através do próprio corpo que se trata de uma luta. Poderemos refletir mais sobre essa questão no desenrolar da exposição e a medida que a proposta desenvolvida por Mestre Tigrão fazer- se mais evidenciada.

No entanto, estamos pontuando essa questão para nos apropriarmos da mesma, como elemento de análise de que não há, na prática de capoeira da Corrente Libertadora, um posicionamento de anulação ou negligência concernente ao aspecto de luta da capoeira, mas

11 A esquiva é o movimento que possibilita a defesa do capoeirista mediante ao ataque do outro jogador durante o jogo de capoeira. Há outros movimentos que podem se configurar como de defesa – cocorinha e negativa – no entanto, esses movimentos ocorrem da altura da cintura para o chão e a esquiva se dá em pé. 12 É chamado de contra-golpe a ação do capoeirista em executar um golpe no sentido contrário a posição do outro jogador. Esse movimento pode incorrer no contato direto entre os jogadores. Normalmente se configura em um movimento de ataque, que atingindo o outro capoeirista pode levá-lo a queda ou a um tipo de lesão. 102 antes, a valorização e potencialização do aspecto da dança. Assim, como não se propõe predileção por um dos conhecidos estilos de jogo de capoeira: angola e regional.13 Segundo Mestre Tigrão, a gente joga capoeira, se o berimbau tocar angola, a gente joga angola, se tocar regional, a gente joga regional.

No excerto do projeto Iniciação a Capoeira que acima citamos, as linhas assinaladas no chão também assumem uma função anterior ao aprendizado da capoeira: a integração do aluno ao grupo. Participar da organização e adequação do espaço no qual se fará a atividade cultural, é pois, uma estratégia pedagógica que pressupõe o sentido de pertencimento como elemento constitutivo do processo de aprendizagem. Podemos perceber, que segundo o objetivo do projeto, construir conjuntamente possibilita além do sentido de pertença, sociabilidades baseadas em princípios comunitários como respeito, solidariedade e equidade.

Princípios como esses permeiam a prática de capoeira da Associação, pois estão sobremaneira relacionados aos objetivos e metas sócio-culturais que o trabalho com a capoeira desenvolvido pela Associação assumiu nos anos 90, advindo do diálogo com as novas demandas sociais, com a conjuntura política que se impunha e com a formação de educador vivenciada por Mestre Tigrão.

Podemos ainda, lançando mão do recurso das linhas assinaladas no chão, levantar outros aspectos pedagógicos e políticos que esse recurso carrega. A quem se destinava a atividade de capoeira proposta pela Associação Cultural Corrente Libertadora? No projeto em questão, à crianças e adolescentes de rua e moradoras de cortiços da região central da cidade, principalmente, região da Liberdade e da Sé.14

Uma das mudanças mais significativas nos trabalhos desenvolvidos pela Associação nos anos que segue à 1989, foi do público alvo e com isso os desdobramentos práticos. No período anterior, o público participante da capoeira e das demais atividades desenvolvidas

13 Nos anos 30, Mestre Bimba – Manuel dos Reis Machado (1900-1974) – defendeu junto aos poderes constituídos o que chamou de Capoeira Regional, uma variante da capoeira já praticada, mas que incluía golpes de outras lutas, ocidentais e orientais, além da introdução dos chamados Balões de Bimba, novos toques de berimbau e a introdução de um incipiente sistema de graduações. Em oposição a essas transformações na capoeira defendidas por Bimba, Mestre Pastinha – Vicente Joaquim Ferreira Pastinha (1889-1981) – intitulou de Capoeira Angola, a capoeira que negava essas transformações, atribuindo à ela um status de pureza e de berço da tradição da capoeira baiana. Sobre o tema, ver: REGO, Waldeloir. A Capoeira Angola – Ensaio Sócio- Etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968. 14 Documento: Projeto Iniciação a Capoeira, 1996. Parceria: Centro Comunitário da Criança e do Adolescente/Liberdade – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo/Região Episcopal Sé. p.7.

103 pela Associação, era majoritariamente de jovens e adultos: trabalhadores, moradores da Vila São José e dos bairros circunvizinhos. Devido a essas características, o horário mais disputado das aulas era o noturno, que atendia à necessidade do público, bem como dos professores e mestres que se desdobravam entre o trabalho formal (pela sobrevivência) e a atividade cultural.

As crianças também estavam presentes as aulas, mas em número consideravelmente inferior em relação aos jovens e adultos. Muitas acompanhando os pais e, principalmente ocupando os horários diurnos, nos quais, Mestre Maurício se incumbia das aulas, visto que dos quatro irmãos era o único que podia, naquele momento, se dedicar integralmente à capoeira.

O atendimento à criança e ao adolescente se deu paulatinamente até se tornar uma prioridade na experiência político-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora. Além do mais, essa prioridade trazia implícita e explicitamente especificidades que a diferiam do período anterior.

Na realidade social da Vila São José, na segunda metade dos anos 70 e no decorrer dos anos 80, as crianças que frequentavam a Associação de forma regular ou ocasionalmente, eram moradoras do bairro, filhos de trabalhadores da região que sofriam as precariedades de aparelhos públicos de lazer e educação. Nessas circunstâncias, a capoeira, além de suas qualidades atrativas inerentes, tinha a seu favor o fato de ser uma das poucas atividades culturais acessíveis no bairro.

Portanto, apesar de ser um público de poucos recursos econômicos, era por outro lado, um público que os fundadores da Associação tinham contato direto e familiaridade no dia-a-dia nas ruas do bairro. Essa familiaridade proporcionada pelo território ocupado pela Associação não apenas se modifica, como também se amplia a medida que novos sujeitos passaram a compartilhar essa experiência.

O primeiro contato da Associação com crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal15 se deu em parceria com a Igreja Católica na própria paróquia da Vila São José no final dos anos 70, através do chamado OZEM. O OZEM era um atendimento voltado

15Esses conceitos concebidos em sua maioria por outras áreas do saber, principalmente a Psicologia Social e o Serviço Social, estão relacionados em geral ao grau de exposição à violência (física e psicológica) ao qual um indivíduo está submetido (nesse caso por crianças e adolescentes). Trata-se também em considerar as condições sociais (econômicas e culturais) nas quais esse indivíduo está inserido. 104

às crianças do bairro que no período contrário do escolar participavam de atividades, entre as quais, a capoeira.16

No universo das crianças e adolescentes advindas da situação de rua e em conflito com a lei, o contato se deu em 1985, quando a Corrente Libertadora desenvolveu oficinas de capoeira na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM.17

Essa primeira experiência com crianças e adolescentes em situação de risco ainda estava muito próxima das atividades políticas que a Associação Cultural Corrente Libertadora assumiu junto aos parceiros dos Movimentos Populares e portanto, não haviam desenvolvido ainda naquele período, um olhar sobre as especificidades desse público que se desdobrassem em estratégias de intervenção sócio-cultural ou sócio-educativas junto à eles.

A construção da proposta de ensino do Mestre Tigrão e a aproximação com esse público específico – crianças e adolescentes – ocorreu simultaneamente, através da sua prática pedagógica cotidiana, em seu fazer cultural em contato direto com a realidade social de seus alunos e das necessidades, dificuldades e habilidades que esses alunos lhe apresentavam.

O reconhecimento da ginga como o elemento da capoeira que possibilitava o desenvolvimento de novas estratégias pedagógicas que implicassem em um processo ativo de inclusão dessas crianças e adolescentes na vivência de uma cultura popular se deu a partir do encontro, do encontro com o outro, do encontro com o aluno.

eu comecei dar aula normal, normal. Aula assim do jeito que meu irmão ensinava pra mim... a empolgação era muito boa... nisso começou o Centro de convivência e o Centro de convivência trabalhava com menino já, é, que falava que era imperativo. Com menino que tinha problema mental, menino que tinha problema com a mãozinha, que a mãozinha era torta, o pezinho era torto e aí foi lotando lá em baixo dessas crianças. De vez em quando, uma psicóloga subia lá em cima pra ver eu jogando capoeira e nisso calhou de um menino, um deficiente... no momento que eu tava jogando capoeira, ele não fazia atividade de massinha... E aí a Zélia, Zélia era a coordenadora do Centro de Convivência subiu, falou: Oh, prazer, sou a Zélia. Eu tô com um menino... que todas as psicólogas não conseguem fazer atividade com ele no dia que o senhor está aqui, fazendo a capoeira. E, eu disse: Por quê? Por que ele fica dançando direto! E ai, a gente não consegue fazer atividade... eu queria trazer ele aqui!... ai eu falei: Oh moça, sabe como é os menininhos. Os menininhos pula... tem uma habilidade. Esse menino vai vim pra cá, vai atrapalhar toda a aula. Ela falou: Não, só pra ele ver! Não tudo bem, pode subir com ele, pra ele ver de boa, não tem problema não, ele pode ver... mas pra fazer aula já é meio difícil... oh senhora, sem chance! Por que como ele vai fazer um aú? Só

16 Não temos condições de indicar com exatidão o período e o significado da sigla OZEM por falta de documentação. À referência a OZEM encontra-se na narrativa de Mestre Tigrão, Entrevista I: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 19.02.08. Segundo ele, a Ozem funcionava como um Centro de Convivência e o trabalho foi desenvolvido por volta de 79 com duração de três anos. 17 Documento: Histórico – Associação Cultural Corrente Libertadora, s/d. 105

que traz ele aí, que eu vou ver. Imediatamente a mulher desceu e subiu com o menino. O menino levou mais ou menos meia hora pra subir a escada né. Tinha a perninha torta, a mãozinha torta e o menino ficou lá, assim, dançando, olhando minha aula. Aí eu falei: Olha, não dá pra você fazer capoeira porque você... tem, sua mãozinha, não vai encostar no chão né, aí, ele, ah, ah. O menino não falava direito. Ai a Zélia levou o menino...aí eles discutiram lá com os técnicos... aí subiu outra pessoa lá, a assistente social e falou: Tigrão, não tem condições desse menino fazer capoeira? Não dá...Não dá, não tem condições! Os meninos aqui têm um movimento, como que é que eu vou ficar segurando essa criança, não dá. Aí insistiram... depois a Zélia subiu falou: Olha, dia de capoeira ele vai subir! Aí eu falei: Beleza vai, já que vocês... eu vou dar aula pra esse menino!18

Retornamos à Casa de Cultura de Interlagos em 1989. Nessa primeira parte da narrativa podemos identificar as implicações de estar ocupando um espaço público. A parceria com o Poder Público e a ocupação de vários aparelhos públicos – casas de cultura, escolas, clubes – permitiu a Associação Cultural Corrente Libertadora garantir a gratuidade de seu trabalho na periferia de Santo Amaro, não obstante, assegurou a continuidade de suas atividades, que através da capoeira viabilizou um maior alcance de público, que se ampliou em realidades múltiplas.19

Compartilhar o mesmo espaço com o Centro de Convivência exigiu de Mestre Tigrão estabelecer, mesmo aparentando resistência no primeiro momento, um diálogo com profissionais especializados que lidavam diretamente com as demandas de uma parcela significativa de crianças e adolescentes, expostos a vulnerabilidade social de natureza diversas – portadores de necessidades especiais, vítimas de violência familiar, situação de rua, relação com tráfico, etc.

Esses profissionais – psicólogas, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais – colaboraram para que Mestre Tigrão naquele espaço, observasse, convivesse e se apoderasse daquelas demandas, para em um processo contínuo de construção do conhecimento, optar em ter esse público como uma prioridade em seu trabalho de intervenção sócio-cultural.

Diferentemente do capítulo anterior, utilizaremos para as estratégias de intervenção da Associação Cultural Corrente Libertadora, nesse período (1989-2004), a denominação sócio- culturais ou sócio-educativas, ao invés de político-culturais por duas razões pontuais. Primeiro, no período de 1976-1988, as atividades culturais da Associação estavam atreladas a uma conjuntura política mais ampla, na qual a luta por direitos sociais, civis e políticos

18 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08. O aú é o movimento de inversão, conhecido também como estrelinha. 19 As implicações das parcerias com o Poder Público serão pormenorizadas no capítulo III. Da Roda de Capoeira à Roda de Negociações: Projetos e Parcerias da Associação Cultural Corrente Libertadora. 106 denunciavam um governo autoritário e todas as implicações que essa situação acarretava. As forças dos Movimentos Populares, apesar de sua pluralidade, comungavam de um interesse comum: a visibilidade de suas reivindicações e a instauração do Estado de Direito.20

Embora entendamos que a atuação da Corrente Libertadora em toda sua trajetória seja profundamente política, no período de 1989-2004, as lutas sociais por ela defendidas relacionam-se ao embate com setores e a questões mais específicos do Poder Público – Educação, Assistência e Desenvolvimento Social, Esporte, Cultura e Justiça – e estão centradas na diretriz da garantia de direitos, principalmente no que tange as crianças e adolescentes. Por outro lado, levamos em consideração a terminologia utilizada pelos nossos narradores ao tratar da capoeira como elemento de intervenção, nesse caso, sócio-cultural.

Os profissionais do Centro de Convivência fizeram a ponte entre a criança com necessidades especiais, o educando e o professor de capoeira, o educador.

Aí me invoquei pra dar aula pra ele. No dia que não tinha muita gente, muita criança, eu falei pra ele subir antes. Aí ele subiu e aí eu coloquei uma música lá, uma música bem lenta de angola e o menino começou a dançar do jeito certíssimo, assim, no ritmo. E eu falei: Mais rápido! Como mais rápido se era angola? ...Então falei: Vou colocar uma música mais rápida pra ver, porque tá num ritmo diferente do meu ritmo... Coloquei uma música mais rápida e o menino, mais rápido. No ritmo mais rápido e eu fiquei bobo! Porque o menino tava no ritmo, eu não estava. Eu não estava no ritmo. Então eu comecei... Minha capoeira mesmo. E o menino no ritmo e eu fora do ritmo. Eu percebi que eu tava muito fora do ritmo. Depois eu sei que eu suei, refleti um pouco, nossa! Coloquei outra música que é a música A Morte da Capoeira. Vou colocar essa que é cadenciada... aí ele começou a gingar. Eu comecei acompanhar ele e felizmente, isso é muito legal, eu comecei acompanhar o menino, por que eu estava fora de esquadro, eu que tava fora de ritmo, eu tava fora de sintonia. Eu comecei a entrar em sintonia, aí comecei apaixonar pelo menino né, a ensinar pra ele legal e assim: Não foi eu que ensinei pra ele, foi ele que veio me ensinar. Ele tinha a musicalidade na cabeça, eu não tinha ainda e... assim, o conduzir, quem vai te conduzir e aí, isso aí mostrou uma maneira assim muito forte, muito forte assim, que parecia que eu não era professor, quem era o professor era ele. E aí ele, gente! Comecei a me empolgar tanto com esse menino, gingar do ritmo dele e eu comecei a esquivar, foi na hora que eu ameacei nele, ele esquivava. Só que ele esquivava no ritmo, ele não esquivava bem louco... Gente do céu! Olha, eu acho que eu estava totalmente fora de esquadro. Aí esse menino foi outro dia, outro dia, eu é que ia pegar ele lá em baixo; ele já tava subindo a escada totalmente diferente, ele já tava fazendo aú e aí, eu comecei a gingar do meu jeito, do jeito do menino, que não era o meu jeito, não foi eu que criei (emoção) é por isso que hoje a necessidade, por exemplo, a gente trabalha com a necessidade do próprio menino. E aí vem a questão assim, você, não é que você é bom professor, é você saber respeitar o limite das pessoas e você sabendo respeitar o limite do aluno, do menino que tá ali... é... gingando, você trabalha o limite dele e o seu limite, por que é o limite da música. Você não tem que impor o outro limite ou outro ritmo, é o ritmo da música!21

20Ver: SINGER, Paul; BRANT, Vinícius Caldeira. São Paulo: O Povo em Movimento.São Paulo: Vozes, 1982. 21 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08. Partes desse excerto foi utilizado no capítulo III com o intuito de analisar a importância e as implicações da Associação ocupar um espaço público, aqui no 107

Vemos na resistência primeira de Mestre Tigrão em atender o menino portador de necessidades especiais a percepção de capoeira na qual ele havia se formado: a capoeira da beleza, da agilidade, destreza e força.

De forma subjetiva, também remete a sua relação íntima com a capoeira de sua infância, a chinela, instrumento de brincadeiras, arruaças e contato físico, em outras palavras, as brigas, nas quais se envolvia nas ruas de Ibicarí e Itapetinga no sul da Bahia. A capoeira que em São Paulo no início dos anos 70, aperfeiçoou a brincadeira de menino e tornou-se um instrumento real de defesa e ataque, portanto, a capoeira propriamente luta, utilizada no enfrentamento cotidiano da hostil relidade urbana, como uma vantagem sobre seus possíveis adversários ou desafetos.

O nosso narrador marca a importância afetiva do que aprendeu com seu irmão, Mestre Maurício, não apenas no ato de jogar capoeira, mas também de como ensiná-la, em várias passagens das narrativas aqui apresentadas, pontuando a relação de cumplicidade e respeito compartilhados pelos irmãos Modesto. No entanto, o próprio Mestre Tigrão marca o rompimento com os procedimentos pedagógicos que aprendera na convivência cultural com os irmãos no período anterior e, principalmente, que esse rompimento se deu a partir da prática mesmo da capoeira e pelas mãos do aluno.

Foi o aluno que ensinou, segundo Mestre Tigrão, a medida que foi a partir de suas necessidades, limites e habilidades que o professor observou, experenciou, refletiu e iniciou um processo de elaboração de estratégias pedagógicas que possibilitassem a aprendizagem da capoeira e colaborasse para a inclusão social desse aluno em outras instâncias da sociedade na qual estava inserido.

A formação do aluno ocorreu juntamente com a formação do professor, que entendemos, assumiu a postura de educador, no sentido de vislumbrar a prática pedagógica não somente como a transmissão de um saber, mas antes, a possibilidade de construir junto com o outro um saber que seja significativo para ambos e para a sociedade com o um todo.

A musicalidade, portanto, passa a ser o elemento chave da proposta desenvolvida por Mestre Tigrão, que através da ginga ganha formas e torna-se perfomance do corpo do capoeirista. As linhas assinaladas no chão, agora reelaboradas, são exploradas

entanto, nossa preocupação é enfatizar o processo de formação de educador do Mestre Tigrão, bem como os desdobramentos em sua prática pedagógica. 108 pedagogicamente de diversas maneiras com objetivo de trabalhar o auto-conhecimento do corpo, a harmonia da musicalidade com o corpo, a noção de lateralidade, o equilíbrio, concentração, aprendizagem e aperfeiçoamento de golpes e principalmente, uma estratégia para conhecer o outro, de estabelecer o primeiro contato com o aluno, imprescindível para a construção de vínculo.

O que está posto na narrativa, entre outras coisas, é que ocorreu naquele período uma transformação não apenas no jeito de ensinar, mas na forma de conceber a capoeira e de se fazer sujeito desse processo. Mestre Tigrão se coloca como aquele que aprende, capaz de aprender com o outro e de mudar de posições se necessário, nessa perspectiva, o trabalho da Associação Cultural Corrente Libertadora, se amplia. O princípio do respeito avança no sentido de ser, além da base da convivência em grupo, ser o condutor do processo de aprendizagem, da construção de vínculos e a elaboração de projetos pessoais junto com os alunos.

A posição do Mestre ou do professor também sofre alterações. O professor é aquele que sabe conduzir respeitando o limite do aluno e o próprio. Consideramos pois, pelos rastros deixados pelas narrativas, que o mérito do professor ou do Mestre, não estão pautados, nesse caso, prioritariamente, na qualidade de seu jogo de capoeira, mas na capacidade de estimular e criar condições para que seu aluno se desenvolva física, psíquica, social e culturalmente.

No projeto A Capoeira e o Desenvolvimento Do Deficiente Auditivo de 199622 realizado na EMEDA Anne Sullivan podemos nos aproximar das preocupações da Associação Cultural Corrente Libertadora em criar condições de aprendizagem tendo em vista as necessidades específicas das crianças e adolescentes portadores de deficiência auditiva, como podemos acompanhar na metodologia proposta no projeto:

Os alunos recebem orientação individual e grupal, reproduzindo os movimentos ensinados pelo mestre de capoeira, sempre ao som da música. No período de aprendizado da ginga e dos golpes básicos, a pessoa portadora de deficiência auditiva é atendida em sala especial, acusticamente revestida para que ela possa perceber o som, o ritmo, a dança, a música e os movimentos corretos. Para música utiliza-se o aparelho de som com auto falante e os instrumentos musicais (berimbau, pandeiro e atabaque). O atabaque, instrumento de percussão bastante utilizado, é importante na percepção do som para os alunos que apresentam perdas auditivas de severas a profundas e que em geral tem somente restos auditivos precários.

22 Documento: A Capoeira e o Desenvolvimento do Deficiente Auditivo, 1996. Parceria: Secretaria Municipal da Educação/ EMEDA – Escola Municipal de Educação para Deficientes Auditivos Anne Sulivan. 109

Além destas percepções, colaboram para a aprendizagem as vibrações emitidas pelos movimentos dos pés no assoalho, marcando o ritmo; a presença constante no campo visual do professor, assim como a exposição contínua à sua fala. Utiliza-se linhas assinaladas no chão como recurso para o ensino da ginga e dos golpes básicos. Findo este período, o aluno junta-se ao restante do grupo (alunos ouvintes), jogando na roda e concretizando sua integração... Esta colaboração também se dá na aprendizagem da dança maculelê, através das vibrações provocadas pelas batidas nos bastões de madeira e que mobilizam o estabelecimento de um ritmo interno.23

A proposta pedagógica exposta nesse excerto do projeto apresenta um detalhamento dos recursos e estratégias pedagógicas a serem utilizadas, bem como o conhecimento da condição dos alunos e o problema de inserção social dos mesmos nas diversas esferas da sociedade. Fica patente, que os gestores do projetos – Mestre Tigrão e colaboradores – buscaram explorar todas as possibilidades dos elementos da capoeira, que conseguiram perceber naquele momento, como recursos pedagógicos.

O recurso das linhas assinaladas no chão são utilizadas, no entanto, outras estratégias são empreendidas de forma complementar, objetivando dar vida a musicalidade surda dos alunos. Relevante atentarmos para a preocupação com a musicalidade, de garantir o ritmo, mesmo considerando o comprometimento auditivo dos alunos.

Não encontramos na proposta, uma valorização da forma dos movimentos da capoeira – ginga, golpes, esquiva – independente do ritmo, baseado somente na imitação do mestre ou professor de capoeira. A imitação, nesse caso, funciona como espelho, sendo um recurso recorrente não apenas na capoeira como em outros esportes e manifestações culturais. Assim, a reprodução dos movimentos está inserido em um conjunto de estratégias pedagógicas que tendem a potencializar as habilidades individuais dos alunos e a sua autonomia corporal como meio de inclusão no grupo.

O detalhamento metodológico proposto, principalmente a inserção do deficiente auditivo que aprende em uma convivência direta e indiscriminada com os alunos ouvintes, veio da prática. O projeto A Capoeira e o Desenvolvimento Do Deficiente Auditivo de 1996 é o desdobramento do trabalho que se iniciou em 1991, no mesmo espaço e que interrompido, devido ao fim da parceria com a Secretaria Municipal de Educação, em 1995 é retomado e vislumbrando a continuidade através de nova parceria e/ou financiamento.

23 Idem. P.p 4 - 5. 110

Essa informação é relevante a medida que aponta para o processo de elaboração das estratégias pedagógicas adotadas. A convivência com os alunos, com o espaço, com os profissionais especializados no atendimento a essa demanda específica, certamente contribuiu para o aperfeiçoamento da capoeira enquanto intervenção sócio-cultural junto a esse público e, portanto, para a produção do conhecimento e experiência da Corrente Libertadora. Em contrapartida, abriu para os alunos não ouvinte um referencial cultural, o espaço da capoeira como lugar de aprender, conviver e se divertir.

Essa afirmação está baseada na relação que os alunos não ouvintes estabeleceram com a capoeira através da Associação Cultural Corrente Libertadora, em outros espaços durante o período em que não havia financiamento para o projeto ser executado na EMEDA Anne Sullivan, 1992-1995. Muitos alunos migraram para o Centro Educacional e Esportivo Joerg Bruder e para as Casas da Cultura, espaços nos quais, o Mestre Tigrão e seus monitores davam oficinas de capoeira, chamando assim, a atenção para a construção de vínculos afetivos e de afinidade com a atividade cultural.24

A experiência com portadores de necessidades especiais vem de encontro à nossa preocupação de entender como se deu o processo de construção da proposta de ensino desenvolvido por Mestre Tigrão, os princípios que o norteiam e, sobretudo, de como a capoeira pode colaborar de forma significativa para o desenvolvimento pessoal e social de seus alunos.

Assim, a prática caminhou lado a lado com a construção de recursos pedagógicos, as linhas assinaladas no chão ganham novas formas para tornar o mais acessível possível a aprendizagem.

O que é o aú? Aú é estrelinha na ginástica olímpica. Então, eu montei, eu risquei o aú com a necessidade do menino. Ele botou a mão a esquerda primeiro, então eu coloquei o risco; ele botou as duas perninhas primeiro, eu risco. A necessidade, a dificuldade dele, eu fui escrevendo no chão... praticamente é uma necessidade de quase todo mundo de, ah! Tem professor de Educação Física que não sabe fazer um aú... Aí vêm o aú chibata, também, trabalhar com a mão direita, pro lado esquerdo, trabalhar a esquerda pro lado direito, trabalhar os dois lados, né. Lateralidade. Esquerda com a direita, direita com a esquerda. Nunca pode trabalhar direita só com a direita ou esquerda só com a esquerda. Você trabalha esquerda e direita, então fica duas coisas... está igualando os dois lados do nosso corpo. Então essa necessidade de fazer o aú, colocar a mão pra dentro, então, pra não dá problema no punho, isso aí foi...eu fui criando dentro da

24 Idem. Ibedem. P.1. O período de 1993-1995 coincide com a minha formação em monitora junto a Corrente Libertadora, convivi diretamente com os alunos não ouvintes nos espaços citados, nos quais já não havia a estrutura física da EMEDA Anne Sullinan, os alunos participavam das atividades com os demais e a única coisa que os diferenciava era a comunicação baseada nos gestos. 111

necessidade desse menino. Por que o menino faz o aú e o punho fica doendo? Aí será que assim não é melhor? De lado, pra dentro? Então, eu fui escrevendo pela necessidade dele e aí foi, eu fui, nós fomos criando um jeito de não forçar a coluna do menino, o braço, o punho, pra ter uma forma melhor de fazer o aú e o aú chibata... Então, pra não dá problema na coluna, você começa: você faz uma bolinha na frente, com o pé da frente e pra trás, pra você vê qual a habilidade do menino, se é o pé esquerdo ou se é o pé direito. Então têm toda essa coisa... aí cê faz a risca e vê se o menininho faz isso que você fez, pá, pá, pá, volta com o esquerdo ou volta com o direito. Se ele voltar com o direito, mais habilidade com o direito, você vai trabalhar com o direito, se têm mais habilidade com o esquerdo, então você vai trabalhar com o esquerdo, pra ele não virar e dá problema na coluna... você vai ajudar o menino... essas riscas que nós fazemos no chão é pra trabalhar essa questão do equilíbrio, equilíbrio que nossa, nós temos muito equilíbrio! (risos). Então a gente faz essa risca, essas riscas foi a necessidade dele que eu fui criando em cima da necessidade dele.25

Durante a narrativa, Mestre Tigrão não se refere à teorias esportivas, pedagógicas ou políticas específicas, embora se quiséssemos poderíamos fazer algumas relações com a pedagogia do oprimido de Paulo Freire e o sócio-construtivismo proposto por Vigotsky.

Em ambas vertentes, a observação e a participação ativa do educando – seus valores, saberes, experiências – são preeminentes para a aprendizagem e construção do conhecimento. Entretanto, no caso da Corrente Libertadora, aprender com o outro e consigo mesmo por caminhos alternativos e autônomos acontecem a partir da prática e parece-nos uma habilidade dos irmãos que formaram a Associação.26

No caso específico de Mestre Tigrão fica patente o diálogo com o outro: o aluno ou o educando. É essa relação íntima que estabelece entre o fazer da capoeira e o universo do aluno, que possibilitou o desenvolvimento do trabalho sócio-cultural. Embora Mestre Tigrão não detenha o conhecimento específico da Educação Física ou mesmo da Pedagogia, a sua preocupação está voltada para garantia da integridade física de seu aluno e paralelamente, na busca do aperfeiçoamento contínuo da capoeira. A qualidade do que se está praticando, mesmo que a quantidade de movimentos desenvolvidos pelo aluno seja restrito.

25 Entrevista II : Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08. 26 No capítulo I, discorremos sobre o caráter auto-didata de Mestre Maurício na arte da capoeira e de Mestre Eufraudísio na busca por sua formação cultural e política, agora estamos diante desse aspecto na formação de educador e capoeirista de Mestre Tigrão. Na narrativa de Mestre Eufraudísio ele faz uma referência ao caráter auto-didata recordando-se de seu pai: eu já venho de uma luta desde meu pai, dos meus tios. Meu pai, que é o pai do Tigrão, que foi o pai do Maurício, que foi meu pai, ele tinha uma história muito parecida: ele era um analfabeto que virou um delegado da cidade. Então assim, ele tinha.... a mais bonita caligrafia da família e nunca sentou num banco de escola. Então nós herdamos um pouco isso, essa ousadia de desafiar os modelos e começar a mostrar a capacidade, o convívio, o acreditar. In: Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 112

Através da pesquisa de campo, realizada entre fevereiro e setembro de 2010,27podemos identificar o que de forma geral foi tecnicamente definido por Mestre Tigrão como recurso pedagógico para a aprendizagem da capoeira.

Normalmente o processo de aprendizagem começa com a ginga, pois é através do movimento de dança e da esquiva ritmada que se desenvolve ou se pontencializa a musicalidade, elemento considerado primordial para Associação Cultural Corrente Libertadora. A aprendizagem da ginga se dá nas linhas assinaladas no chão e pode exigir do Mestre, instrutor, monitor ou mesmo um colega que treina a mais tempo, estratégias complementares quando o aluno apresenta dificuldades.

Fico gingando na frente dele, pego na mão dele e aí a gente vai tentando bem divagarinho até ele conseguir. E a ginga de lado ela é melhor por que ela é mais fácil de pegar o ritmo, não é tão complicado por causa dos pés, porque quando a pessoa tem muita dificuldade de ritmo é difícil acompanhar o pé com a mão na ginga de frente e na ginga de lado o corpo mesmo ele já vira quase praticamente sozinho, se você vira a ponta do pé o corpo todo automaticamente já vira, então é mais fácil por causa disso... fica mais fácil da pessoa acompanhar também e se a pessoa tem alguma limitação. A gente sempre tentar jogar no ritmo da pessoa e aí sempre acompanhar o ritmo porque esse método é mais pra acompanhar o ritmo, a capoeira desse jeito é pra acompanhar o ritmo da música, se a pessoa consegue acompanhar o ritmo da música, ela vai conseguir te acompanhar, porque tá todo mundo acompanhando o ritmo da música.28

A aluna Rosana Gonçales, monitora da Associação há 11 anos, nos descreve o cuidado em respeitar o tempo do outro e a o mesmo tempo, de não abrir mão do ritmo da música, a alma da ginga. A dificuldade do aluno é observada, não comentada ou apontada para o mesmo.

A partir da observação, as estratégias complementares são invocadas – gingar na frente, ao lado, pegar na mão, contar em voz alta o tempo da ginga, orientar com direita e esquerda – e criar situações nas quais o aluno possa ficar a vontade, sem medo de errar – conversar com o aluno, pedir para ele beber uma água, descançar um pouco, fazer outra

27 O trabalho de campo foi realizado no Clube da Cidade de Santo Amaro, antigo Centro Educacional Joerg Bruder, às quartas e sextas-feiras, no período da manhã. Eventualmente participávamos da oficina aos sábados. Esse procedimento se fez necessário devido a diversidade do público. Nas quartas-feiras há uma participação significativa de idosos e portadores de necessidades especiais – principalmente distúrbios mentais, entretanto, no final de semana, há uma presença mais jovem, alunos que estão na Associação há algum tempo, estudantes e trabalhadores que interagem com os novos alunos. 28 Entrevista IV: Rosana Gonçales, 28.01.09. Quando nossa narradora se refere a ginga de frente, trata-se da ginga comum a todos os grupos de capoeira, a ginga ilustrada nas imagens 1a e 1b (ver, p.102), em que a posição do corpo assume uma postura de alerta e ataque, a ginga de lado, refere-se à ginga utilizada pela Corrente Libertadora após as alterações introduzidas por Mestre Tigrão, em que a posição do corpo assume uma postura defensiva e rítmica ilustrada nas imagens 2a e 2b (ver p.104). 113 atividade como tocar um instrumento, aprender uma acrobacia, ver outros alunos jogarem – são pequenas estratégias para que o aluno se sinta acolhido e tenha prazer em aprender.29 Estratégias que dependem da habilidade do educador e, principalmente, dos pressupostos que embasam sua prática.

Nossa narradora segue nos explicando a sequência de aprendizagem que estamos superficialmente denominando de técnica.

Então, a gente aprende primeiro assim é a ginga, lógico, mas é o ritmo também, por isso que é um pouquinho diferente, se você não entrar no ritmo não tem condições de ir pra roda. Primeiro de tudo a gente aprende o ritmo, pra depois a gente aprender os golpes, pra depois a gente aprender aquela mandinga toda da roda. É... a gente chega, tá todo mundo lá, chegou todo mundo, um levanta pra gingar, aí já vai o outro atrás e de repente, tá todo mundo gingando, uma coisa só e fazendo os golpes básicos que são iguais pra todo mundo e fazendo todo mundo junto. Não precisa de chegar e falar: ah, agora é a hora de fazer a ginga! Não precisa, a gente mesmo acaba um olhando o outro e fazendo todo mundo junto.30

Embora estejamos nesse momento, tentando dar conta dos aspectos técnicos da proposta, a força de seus princípios vem à tona, porque são eles que movem a ação dos sujeitos envolvidos. A narrativa da Rosana Gonçales, nos dá indícios desses princípios. Embora haja uma sistematização técnica dos recursos pedágogicos, eles não se dão de forma sistematizada e disciplinalizadoras na prática.

Está posto, que depois de despertar a musicalidade adormecida ou dinamizar a musicalidade que já está latente no aluno através da ginga e da esquiva ritmada, o próximo passo é a aprendizagem dos 11 golpes básicos da capoeira – benção, martelo, chapa, queixada, armadinha, rabo de arraia, chapa giratória, martelo voador, meia-lua de compasso, aú, aú-chibata – todos aprendidos e aprefeiçoados sobre as linhas assinaladas no chão.

Esses golpes foram definidos no processo de construção da proposta como fundamentais para desenvolver habilidades motoras, cognitivas e rítmicas nos alunos. Também são golpes conhecidos e executados no universo da capoeira, às vezes com variantes na forma de execução e na denominação, dependendo do grupo de capoeira ou da região do país. Entretanto, a forma e o momento de trazer esses golpes na roda depende exclusivamente

29 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.09. 30 Entrevista IV: Rosana Gonçales, 28.01.09.

114 do jogador. É a criatividade e improviso pessoal em diálogo com o outro, próprio da capoeira, que dá o caráter sempre inédito de cada jogo vivido na roda de capoeira.

O aprendizado desses golpes funciona também como uma estratégia da inclusão, à medida que instrumentaliza o aluno com um básico leque de opções de movimentos, que o torna apto a jogar com qualquer pessoa, já que amparado pela ginga esquivada tem condições de acompanhar e se defender através da musicalidade da capoeira.

Os movimentos acrobáticos também podem ser aprendidos com auxílio das linhas assinaladas no chão elaboradas por Ms. Tigrão. Em um caminho passo a passo, o aluno aprende a lidar com possíveis dificuldades e desenvolve a capacidade de realizar o movimento.

Nas imagens abaixo31 vemos a sequência básica para o aprendizado do Aú e Aú Chibata32 executado por João Dionízio da Costa Jr, 11 anos. Na imagem 3a, os círculos indicam o lugar onde os pés devem se posicionar na saída e conclusão do movimento. As setas indicam onde as mãos devem estar durante o movimento dando sustentação ao corpo e evitando sobrecarga a coluna. As imagens 3b, c e d ilustram a execução do movimento saindo da direita e da esquerda, respectivamente.

3a 3b

31 Fotografias: Regiane Luzia Lopes. Clube Escola Santo Amaro, 11.02.2011. 32 O aú chitbata é uma variante do aú (ou estrelinha) executado com apenas uma mão. 115

3c 3d

Na sequência das imagens a seguir,33 Lucas M. Rochel Alves, 27 anos realiza sobre as linhas circulares o movimento chamado Pirulito. Na imagem 4a, os círculos na numeração de 1 a 4, indicam o processo passo a passo de onde as mãos e pés irão se posicionar gradualmente e de forma crescente até o aluno conseguir completar o giro como o faz Lucas Rochel.

4a 4b

4c 4d

33 Fotografias: Regiane Luzia Lopes. Clube Escola Santo Amaro, 11.02.2011. 116

Utilizando os mesmos círculos agregando setas para o posicionamento dos pés de das mãos (imagem 5a), o aluno Renan S. da Silva Barbosa, 21 anos, realiza o macaquinho como podemos acompanhar nas imagens abaixo (5b,c e d).34

5a 5b

5c 5d

Assim, o aluno é levado à roda na companhia dos outros alunos e aprende as acrobacias que lhes interessa e que apresenta mais habilidade junto aos mesmos, como nos narrou Rosana Gonçales. A aprendizagem ocorre conjuntamente, sem uma imposição fixa de tempo. Sabe-se o que deve e vai ser proposto ao aluno, entretanto, o caminho para o desenrolar do processo de aprendizagem pode vir de várias maneiras e envolve todos os alunos. O diferencial é, portanto, a possibilidade de aprender com o outro, que não se restringe à pessoa do mestre ou do monitor.

34 Idem. 117

Essa estratégia pedagógia está impregnada de princípios ou ideias que rompem com o modelo de academia de capoeira. A aprendizagem não está centrada prioritariamente na figura do mestre, mas é compartilhada entre os demais alunos, onde cada um é capaz de ensinar o que aprendeu. Como esse aspecto é patente na vivência de capoeira na Associação Cultural Corrente Libertadora, os alunos tendem a expressá-lo, a partir do olhar pessoal e da prática cotidiana seus significados.

É uma troca de informações, uma grande troca! Acontece até hoje na Corrente Libertadora. Até hoje o Tigrão senta com a gente e ele ensina e ele aprende, até hoje... ele acha que um pode ensinar o outro. O aluno ensinar o professor. O professor ensinar o aluno. Eu acho isso fantástico! Eu acho fantástico. Eu acho que isso pra mim é a essência da humanidade em todos os seus aspectos... Eu vejo que é muito bom você, você não ter a certeza mesmo de que você agora sabe tudo. Quando você internaliza isso, você não diz de boca pra fora. Quando você sente isso, é, eu acho isso muito bom, muito bom mesmo! Isso faz você aprender, querer aprender, buscar aprender, gostar de aprender, constantemente. Não é todo dia, mas em muitos momentos do seu dia...Porque quando você é o mestre né!? Nas palavras do Tigrão, eu compreendo o que ele quer dizer nessa frase, que é uma bandeira que ele carrega: quando você é o mestre, você deixa de aprender! Eu acredito e eu vim aprendendo na vida, que quando você deixa de aprender, que você prova que nada aprendeu, mas isso não é só uma reprodução de palavras, porque eu li ou ouvi, é uma coisa que eu percebo e uma coisa que eu sinto.35

O ponto a que queremos chegar e que nosso narrador, Emerson Coutinho, hoje 33 anos, estudante de Educação Física, formado pela Associação Cultural Corrente Libertadora e instrutor de esportes de escalagem, nos ajuda a perceber, são os princípios, as ideias, as posições pedagógicas que permeiam o fazer cultural da Associação e que no período em que agora nos detemos, está sobre a coordenação de Mestre Tigrão.

A sistematização técnica trata-se apenas da parte externa desse fazer cultural e está passível de alteração sempre que a necessidade ou a demanda social e cultural dos alunos exigirem, por isso a palavra método torna-se incompleta, incapaz de dar conta dessa prática, porque ela não é fechada, acabada. Não se trata de uma receita ou uma cartilha, mas antes, de uma postura diante do fazer cultural, aberta e em diálogo constante entre as qualidades da capoeira e as intervenções dos sujeitos que dela se apropriam.

Então, gostaríamos de enfatizar que o que parece descrição de um método no ato de nossa escrita, se dá na realidade em um processo dinâmico. Através dos pormenores aqui

35 Entrevista III: Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09.

118 discutidos e ilustrados é que está situado a especificidade dessa experiência e o posisionamente político da Associação na proposta de inclusão social.

As próprias aulas, assumidas como oficinas de capoeira a partir de então, dão conta da preocupação em estabelecer uma relação de proximidade com os alunos através de uma atividade cultural que pode ser passageira para os atendidos, mas que têm por objetivo construir um diálogo, baseado em vínculo afetivo que possa contribuir na elaboração de projetos de vida, nos quais a garantia de direitos e a cidadania sejam o alicerce.

Tendo em vista esses pressupostos torna-se mais acessível a nós a narrativa de Emerson Coutinho. A hierarquização social da tradição da capoeira é relativizada mediante a proposta de intervenção sócio-educativa a que se propõe a Associação Cultural Corrente Libertadora. Não pretendemos com isso desqualificar a chamada tradição da capoeira, na qual, o Mestre de capoeira, é uma figura central por deter um saber que foi transmitido por séculos através da prática cultural cotidiana e da tradição, muitas vezes, um saber negligenciado e ignorado por parte significativa da sociedade e dos poderes constítuidos.

Consideramos que a figura do mestre, bem como a disciplina através da capoeira, pode ser um caminho pedagógico, mas não foi esse o caminho escolhido pela Associação Cultural Corrente Libertadora. Compartilhar a construção do conhecimento parece ser mais adequado para essa experiência. O mestre não perde a respeitabilidade e a capacidade de ensinar por ser passível de errar e de aprender com o aluno, no entanto, a relação de respeito não se dá a priori, pautado na graduação de mestre, mas na relação equânime entre aprendizes no cotidiano da capoeira.

Nesse sentido, podemos entrever que a proposta de ensino desenvolvida por Mestre Tigrão, além de trazer elementos da experiência com os irmãos Modesto no período anterior, reafirma-se como um processo flexível, uma concepção pedagógica aberta e em permanente construção, porque se baseia no diálogo com o outro, que nunca é o mesmo, é sempre diferente. Assim, o mestre é um mediador em potencial, a sua formação é, portanto, contínua e a cidadania é o seu horizonte.

Primeiro eu acredito na cidadania como um processo interno. Você se portar perante as pessoas, se portar numa comunidade... você esta indo pro local de dar aula, você tá fumando um cigarro, você fumou, jogou o cigarro fora, entrou na sala, fez uma roda e um aluno pergunta, porque teve algum acontecimento na casa dele, em outro momento, relacionado ao cigarro, que o pai morreu ou tá internado no hospital e o médico falou pra mãe e o aluno ouviu, suponhamos uma situação né, o aluno pergunta e você fala:

119

Então, não se deve fumar. O cigarro faz mal e você acabou de fumar. Você tá falando com cheiro de cigarro. Eu tô pegando só um dos exemplos... Eu não posso falar para não roubar, roubando. Eu não posso falar que a gente não pode bater nas pessoas na rua, sendo que passou um cara, trombou no meu ombro, eu tentei desviar, mas trombou e eu vou e acerto o cara. Então, primeiro é um processo... uma mudança interna e... depois disso, você continua essa mudança interna e você passa a transmitir. É uma coisa que flui, você parece que já não pensa mais o que tem que falar e você mostra com as suas ações. Foi uma coisa muito grande que o Tigrão apresentou pra gente. Ele fala que não é pra brigar, mas você não ouve histórias que ele brigou. Ele fala da não agressividade, da inserção na capoeira e ele não exclui aquele que não pode pagar, aquele que tem pouca... menos capacidade de fazer. Ele não exclui. Ele mais demonstra com suas atitudes do que fala. Ele fala também, mas mais ele demonstra... Então, é isso que é um foco muito forte e sutil, sutil também, trabalhado dentro da Corrente Libertadora. 36

Um primeiro aspecto que gostaríamos de discutir a partir da narrativa de Emerson Coutinho é a ideia de cidadania. A cidadania concebida primeiramente como um processo interno por nosso narrador, encontra nos exemplos do cotidiano as contradições entre o discurso e a prática cidadã. Nesse sentido, podemos identificar que para a proposta de intervenção sócio-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora e para muitos de seus alunos, a cidadania é um objetivo a ser conquistado e não uma condição dada.

A cidadania está, pois, por se construir através de ações comprometidas com a perspectiva de uma sociedade mais justa. Aqui podemos ponderar a respeito do que se convencionou chamar de cidadania plena, isto é, a garantia associada e integral do exercício dos direitos políticos, civis e sociais.37 Embora a constituição de 1988, seja por muitos considerada, a constituição cidadã, pois nela está prevista a coexistência universal dos direitos de cada cidadão brasileiro, na realidade dos alunos atendidos pela Associação Cultural Corrente Libertadora, a cidadania está por vir.38

É significativo esse aspecto da concepção de cidadania, pois acreditamos ser ele a razão política de aproximação entre os alunos e as propostas e objetivos da Associação Cultural Corrente Libertadora. Os alunos, advindos de uma realidade social na qual os direitos sociais são incipientes, conviveram com o gradativo avanço das políticas públicas e

36 Idem. 37 Comumente entende-se por direitos civis o direito de dispor do próprio corpo, também esta relacionado ao direito privado, as relações entre os particulares; por direitos sociais o atendimento as necessidades humanas básicas – alimentação, habiltação, saúde, educação, trabalho, etc – e por direitos políticos as deliberações sobre sua vida – livre expressão de pensamento e prática política. Sobre o assunto, Ver: MANZINE-COVRE, Maria de Lourdes. O que é Cidadania? São Paulo: Brasiliense, 1991. 38 Uma noção de cidadania que nos ajuda a pensar a condição do público atendido pela Corrente Libertadora é a desenvolvida pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Seguridade e Assistência Social – PUC-SP, que entende a cidadania como possibilidade do reconhecimento do direito ao acesso a um conjunto de condições e usufruto de bens e serviços como parte do padrão de dignidade humana e vida coletiva solidária a todos os membros de uma sociedade. In: SPOSATI, Aldaíza. Mapa da Exclusão/Inclusão Social. Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Seguridade e Assistência Social /PUC-SP, 2000, p.30. 120 com o crescimento dos serviços públicos na periferia de São Paulo, no entanto, se depararam com os problemas advindos do fato desse avanço não ter acompanhado o crescimento demográfico e o inchaço das periferias nessas últimas décadas, o que incorre inevitavelmente na precariedade e insuficiência desses serviços.

Se atrelarmos a qualidade da educação com o acesso e inserção dos jovens no mercado de trabalho, estaremos diante de um déficit considerável em relação a juventude de escola pública no período a que nos referimos. O lugar social que o jovem ocupa na sociedade paulistana interfere diretamente no acesso à qualidade e oportunidades de trabalho.39 Nesse sentido, podemos intuir que uma formação integral – que vai além dos muros da escola – na qual, a cultura, arte, a política também se fazem presente no processo de constituição de cada indíviduo, é uma estratégia para tornar a cidadania prevista na Carta Constitucional uma realidade.

A proposta de intervenção sócio-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora vai nessa direção, norteada pelo objetivo de colaborar para a efetividade da chamada cidadania plena, utilizando a capoeira como elemento que desencadeia a formação integral do aluno, tendo sempre em vista o sentido de complementariedade entre a cultura, a escola, a política e a profissionalização.

O exemplo nesse contexto é parte fundamental do processo de aprendizagem e da construção de vínculos, mas que um discurso sobre a cidadania, o que se persegue é constituido por ações, das mais corriqueiras às mais complexas, como a formação e participação dos jovens monitores de capoeira nas discussões e lutas por políticas públicas.

Acreditamos que o comprometimento com a inclusão social, nesse caso, começa na forma de acolher e ajudar o aluno a se reconhecer como capaz de vivenciar a cultura da capoeira, assim como, de pertencer a um grupo e com ele forjar suas próprias estratégias de inserção social nos campos da educação, do mercado de trabalho e na vida pessoal.

Nesse sentido, detalhar essa concepção pedagógica não se restringe a uma descrição, mas antes, acompanhar o amadurecimento político da própria Associação, o seu contínuo

39Os dados do mapa da situação da cidade de São Paulo coordenados por Sposati, abarca os anos 90, através dele podemos ter um noção da condição de exclusão na região a que nós nos dedicamos. O trabalho ainda colabora do ponto de vista conceitual, pois o Núcleo entende a exclusão social como multifacetada... supõe diversas formas: cultural, econômica, social, política, que podem se completar e ainda, é um conceito interdependente exclusão/inclusão social, caso contrário, se trata da medida reducionista e tautológica como os estudos da pobreza que analisam os graus da pobreza sem referenciá-los ao que seria a não pobreza. Idem, p.p. 23-24. 121 refazer-se para cumprir seu compromisso sócio-cultural junto a esse seguimento da população paulistana, considerando o movimento de se reavaliar e redimensionar constantemente suas ações e estratégias.

O acolher sem discriminar está nos pormenores, nos detalhes da convivência e da prática da capoeira; então, é pertinente notar que as aulas não obedecem a um horário fixo, mas a um período de horas, dentro do qual, os alunos escolhem uma hora para aula ou permanecer por todo o período.

Com exceção dos iniciantes, a dinâmica do treino é determinada pelo próprio aluno, assim como o aprendizado dos instrumentos musicais e dos movimentos acrobáticos. Dessa maneira, é comum no mesmo momento, alunos estarem jogando capoeira, outros treinando golpes e acrobacias, tocando e cantando ou simplesmente conversando e/ou observando o treino dos demais alunos.

Essa autonomia atribuída ao aluno e a flexibilidade dos treinos, nota-se como indício de que essa proposta colabora para a integração das pessoas portadoras de necessidades diversas. Um portador de necessidades especiais não será obrigado ou constrangido por não poder executar uma sequência de movimentos; um dependente químico não será impedido de participar da aula por não ter chegado no horário ou não possuir o condicionamento físico necessário para tanto, um idoso terá a liberdade de experimentar apenas o que não lhe prejudique do ponto de vista físico e assim por diante.

Não apresentar uma sistematização de aula com horário determinado para cada atividade da capoeira – aquecimento, passagem dos golpes, roda, instrumentalização, história ou maculelê – está associado a posssibilidade de ter condição de acolher o aluno que chega para atividade em momentos diferentes dentro do previsto.40 Depois da aprendizagem da ginga e dos golpes básicos, o aluno é dono do tempo e da decisão do que e com quem aprender, por isso a relação com o grupo é imprescindível. A ideia de autonomia está na base da proposta, colaborar para que o aluno seja capaz de discernir e fazer escolhas.41

40 Atualmente no Clube Escola as aulas ocorrem das 08 às 11h e das 14 às 17h nas quartas e sextas; no final de semana das 14 às 17h. Normalmente, em outros espaços, como escolas, associações, CJs os horários são em turnos manhã e tarde e em espaços de atendimentos à pessoas em situação de rua como os Crecas, não há uma rigidez de horário. 41 Compartilhamos a noção de autonomia desenvolvida por Gohn (2005) para quem a autonomia se obtém quando se adquire a capacidade de ser um sujeito histórico, que sabe ler e re-interpretar o mundo; quando se adquire a linguagem que possibilita ao sujeito participar de fato, compreender e se expressar por conta própria. Os sujeitos autônomos veem e aceitam as diferenças e as singularidades das pessoas... acatam e assumem a 122

Esse procedimento na forma de acolher permite que o adolescente se sinta seguro, acolhido para que o educador possa conhecê-lo, atendê-lo e dar encaminhamentos. A sistematização das oficinas e a disciplinarização são portanto, contrárias à proposta da Associação, tendo em vista o perfil diversificado do público atendido e os objetivos a serem conquistados. Não se pretende formar atletas, mas cidadãos e para um objetivo tão ambicioso, o primeiro passo é acolher, é incluir.

Seguindo as trilhas da concepção de inclusão proposta na forma de trabalhar com a capoeira pelo Mestre Tigrão, nos deparamos com a roda. A roda de capoeira composta pelos corpos dos capoeiristas, a tradicional roda de capoeira coordenada por um mestre ou alunos com graduação de instrutor em diante não é uma regra na Associação Cultural Corrente Libertadora.

Essas rodas, segundo o Ms Tigrão,42 comumente excluem o jogo das crianças, portadores de necessidades especiais, idosos e dos menos experientes e demanda uma organização que não é possível, quando a maioria dos alunos são iniciantes ou os graduados estão ocupados em outras atividades.

Portanto, na Corrente Libertadora normalmente se tem cinco rodas (imagem 6a),43para que os alunos possam escolher com quem, quando, onde e como jogar (imagens 6b,6c e 6d).44

6a 6b

diversidade cultural...aprendem a dialogar com o diferente... os indivíduos adquirem autonomia quando constroem um campo ético e político de respeito ao outro. In: GOHN, Maria da Glória. O Protagonismo da Sociedade Civil – Movimentos Sociais, ONGs e Redes Solidárias. São Paulo: Cortez Editora, 2005. P.35. 42 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.09. 43 Fotografia: Francisco Chagas. Clube Escola Santo Amaro, 11.02.2011. 44 Fotografias: Regiane Luzia Lopes. Clube Escola Santo Amaro, 11.02.2011. 123

6c 6d

A existência de várias rodas de capoeira nos espaços ocupados pela Associação Cultural Corrente Libertadora contraria a tradicional roda de capoeira.45 As rodas utilizadas pela Associação são desenhadas no chão com as cores da bandeira do Brasil e a finalidade é dar opções aos alunos. Depois do aprendizado da ginga e dos golpes básicos, o aluno define seu caminho de desenvolvimento, escolhe sem a interferência do Mestre com quem jogar. Normalmente a escolha está relacionada a afinidades, camaradagem ou ao desafio de jogar com alguém mais graduado.

Mas devemos observar, que também ocorre um movimento em outro sentido. O Mestre ou o monitor sugere, avalia o jogo e muitas vezes sem que o aluno iniciante perceba, orienta os alunos mais graduados a acompanhar o iniciante, a propor desafios e a inclui-lo em outras atividades como o maculelê, o treino de acrobacias, entre outros.

A roda tradicional, além de conduzida por um Mestre ou aluno graduado, exige a bateria completa: três berimbaus (gunga, médio, viola), atabaque, pandeiro e agogô e uma ritualidade defendida por muitos capoeiristas, como o ato de fazer o sinal da cruz antes de entrar na roda.

Esses aspectos da capoeira são conhecidos pelos alunos da Associação Cultural Corrente Libertadora e a roda com esse formato ocorre sempre que necessário, para diversão e ritualização da capoeira, mas principalmente em apresentações educativas, mas mesmo nesses casos, os alunos em níveis diferentes de graduações ou mesmo sem graduação se revezam em todas as funções: tocar, cantar, bater palmas e jogar capoeira.

45 Na tradição da capoeira a roda é um momento especial, tem um sentido ritual. Nos grupos e associações de capoeira angola, normalmente a roda ocorre apenas uma vez na semana, com a presença do mestre ou do professor responsável, a bateria deve ser completa e todos vestidos adequadamente. Nas rodas de capoeira regional, as regras são mais diversificadas, dependendo da orientação do grupo, mas é comum que no final do treino, se dê início a uma roda. 124

Na prática, a determinação das funções ocorre informalmente, baseada na cumplicidade entre os alunos e de uma relação respeitosa com o Mestre e para com o grupo. Isso significa que no cotidiano dos treinos, à medida que o aluno vai aprendendo a tocar os instrumentos, ele passa a contribuir na parte musical da Associação, tocando e cantando. O aluno não será impedido de realizar essa atividade em função da graduação.

Enquanto um joga capoeira o outro toca o instrumento, quando um cansa de tocar, outro aluno o substitui. Essa comunicação se dá basicamente por olhares ou avisos diversos. Não obstante, quando se trata de uma apresentação pública, há o cuidado por parte do Mestre ou do monitor responsável em assegurar que todos estejam com o uniforme e que tenha alunos o suficiente em condição de conduzir a musicalidade e o jogo de capoeira.

O sistema de graduação também sofreu alterações. Embora o sistema de cordões ou cordas com cores diferentes para identificação da graduação do aluno permaneça, os critérios de avaliação e as responsabilidades atribuídas aos alunos em qualquer graduação ganharam novos sentidos.

Os critérios de formação e graduação dos alunos, empreendidos por Ms. Tigrão diferem do normalmente aceito, baseados fundamentalmente na qualidade do jogo de capoeira. Na Associação Cultural Corrente Libertadora qualquer aluno que tenha ritmo, que conheça e saiba executar os golpes básicos exigidos, pode ajudar outros alunos na aprendizagem.

É comum, pois, um aluno na primeira ou sem graduação ajudar o Mestre Tigrão ou o monitor a ensinar a ginga e passar os golpes com os alunos iniciantes. Esse é um mecanismo que Mestre Tigrão utiliza para observar as habilidades de seu aluno. O Mestre pede ao aluno que o auxilie, às vezes o aluno se prontifica espontaneamente e nesse movimento, muitas vezes despercebido pelo aluno, é observado se este tem condições de ser um monitor.

Partindo da observação, quando além da habilidade da capoeira, o aluno adquire a capacidade de acolher, compartilhar experiência, dialogar com a diferença e multiplicar o conhecimento apreendido, esse aluno pode ministrar aulas, mesmo que não possua a graduação de instrutor e que essas características se apresentem como potencialidades a serem aprimoradas.

Estamos nos referindo aos alunos em geral, tanto o aluno que esta iniciando, portanto aprendendo, como o aluno que já ensina – o monitor ou instrutor. A formação desses

125 adolescentes não se dá centrada apenas na prática da capoeira, esta é, o instrumento de construção de vínculos afetivos e a porta de entrada para um projeto de vida que inclui a construção de mecanismos de ação política e uma inserção mais completa do próprio aluno na sociedade (formação educacional, profissional e cultural). É provavelmente devido a essa percepção, que os critérios de graduação do Mestre Tigrão se diferencia do comumente aceito.

Os chamados monitores – os adolescentes e jovens envolvidos nas atividades da Associação – organizam e ministram as oficinas de capoeira e temáticas, criando, portanto, uma rede de multiplicadores. Essas oficinas abordam temas como sexualidade, cultura e garantia de direitos, baseadas em reflexões a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

Por mais que tentemos com palavras definir os lugares sociais dos sujeitos nessa experiência pedagógica, estaremos sempre incorrendo em uma simplificação, porque o que nos dizem os narradores é que esse movimento aprender e ensinar é simultâneo, a troca é constante e pode se dar de diversas maneiras, às vezes de forma sutil, mas propositiva.

No atendimento à crianças e adolescentes em situação de risco, de rua e em conflito com a lei, algumas situações cotidianas, recoloca a complexa relação entre inclusão e aprendizagem.

De que inclusão estão falando? E qual aprendizagem estão propondo?

Uma coisa que a gente se deparou muito e eu comecei a me deparar, que eu só ouvia até então, o Tigrão relatar, mas eu fui entrando cada vez mais, foi a gente ser roubado por nossos alunos. E isso é uma tristeza muito grande. Porque você acredita, você confia, você se desdobra, você as vezes deixa de almoçar com toda a sua família pra ir dar aula pra aquele aluno e de repente ele te rouba uma coisa que foi difícil você adquirir, um celular, um dinheiro, uma identidade, um documento que vai te dar um trabalho muito grande pra ter outro. E aí, eu ainda tô aprendendo com o Tigrão, eu ainda tô aprendendo que você deve ter paciência com essas atitudes, com essas pessoas. Eu ainda tô aprendendo isso. Percebo que eu não tenho a paciência e a visão que ele tem nesse ponto de vista. Acabamos mais uma vez, pela centésima vez, passar por um fato recente e ele diz: vamos ter paciência, não vamos lá e prender, vamos... a gente tá lutando pra que ele não continue a fazer, por que a gente vai fazer um processo que ele faça novamente?! Então, são coisas que eu estou buscando e é isso.46

O que nos indicam os narradores e os projetos analisados no que concerne o atendimento à criança e ao adolescente em situação de risco e em conflito com a lei, é que a

46 Entrevista III: Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09. 126 posição da Associação Cultural Corrente Libertadora vai na contra-mão da repressão deliberada e na direção da garantia de direitos. Não estamos, no entanto, negando a condição do menor infrator e de suas responsabilidades perante a justiça, mas pensando nos encaminhamentos dados a esse conflito na perspectiva da Associação.

A partir da Constituição de 1988 e principalmente com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA de 1990, o jovem até 18 anos é considerado inimputável.47 Perante a lei vigente, há a perspectiva do adolescente em sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento e, portanto, sem a maturidade necessária para o entendimento do caráter ilícito do ato praticado, o ato infracional (conduta descrita por lei como crime ou contravenção penal de responsabilidade do adolescente a partir dos 12 anos).48

Tendo em vista os direitos previstos no ECA, as chamadas medidas sócio-educativas – Advertência, Obrigação de Reparar o Dano, Prestação de Serviço a Comunidade, Liberdade Assistida, Semiliberdade e Internação,49 o adolescente autor de um ato infracional não fica isento das conseqüências de sua conduta, mas busca garantir que este, seja submetido a uma legislação especial, que estabelece os procedimentos para a apuração dos fatos (acusação) e a aplicação adequada das medidas sócio-educativas.

A diferença essencial prevista no ECA, que para nossa discussão interessa diretamente, é que esse adolescente em conflito com a lei deixa de ser o menor, categoria sociológica posta pelo Código de Menores de 197950 para ser reconhecido como sujeito de direito amparado pela doutrina da proteção integral.

47 Segundo o dicionário jurídico com base no Artigo 228, da Constituição Federal: Artigos 26 a 28, do Código Penal; Artigo 397, inciso II, do Código de Processo Penal; Artigo 492, inciso II, alínea "c", do Código de Processo Penal, a Inimputabilidade penal é a incapacidade que tem o agente em responder por sua conduta delituosa, ou seja, o sujeito não é capaz de entender que o fato é ilícito e de agir conforme esse entendimento. Sendo assim, a inimputabilidade é causa de exclusão da culpabilidade, isto é, mesmo sendo o fato típico e antijurídico, não é culpável, eis que não há elemento que comprove a capacidade psíquica do agente para compreender a reprovabilidade de sua conduta, não ocorrendo, portanto, a imposição de pena ao infrator. GUIMARÃES, Dioclesiano. Dicionário Compacto Jurídico. São Paulo: Rideel, 2010. Dicionário Juridico, in:www.direitonet.com.br. 48 Para uma discussão sobre medidas sócio-educativas, Ver: PEREIRA, Irandir; MESTRINER, Maria Luiza. Liberdade Assistida e Prestação de Serviço a Comunidade: Medidas de Inclusão Social Voltadas a Adolescentes Autores de Ato Infracional. São Paulo: IEE/PUC-SP; Febem-SP, 1999. 49 Idem.P. 12. 50 A categoria menor também foi apropriada pelos meios de comunicação e por grande parte da opinião pública para genericamente e de forma estereotipada designar um grupo social heterogêneo e complexo de crianças e adolescentes expostos à vulnerabilidade social. Sobre a imagem do menor, ver: ANDRADE. Marcelo Pereira. A Categoria Meninos de Rua na Mídia: Uma Interpretação Ideológica. São Paulo: S.N, 2005. 127

Não nos cabe aqui fazer uma discussão sobre o ECA e suas regulamentações, pois não é o propósito deste trabalho, mas entendermos como essa legislação se encontra com a experiência político-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora. Retomando a narrativa de Emerson Coutinho e as estratégias de inclusão desenvolvidas por Mestre Tigrão na prática da capoeira, podemos então perceber que há um diálogo entre essas duas dimensões da problemática da infância e da adolescência: a lei e a prática.

A preocupação com o caráter educativo permeia a descrição e as metas objetivadas das medidas sócio-educativas. Nesse sentido, a cultura e a capoeira podem ser elementos que contribuam na reinserção desse adolescente na família e na sociedade como um todo. Sobre esse aspecto, a Associação se apodera dessa legislação para aprimorar sua prática cotidiana e criar condições de desenvolver um atendimento especializado para essa demanda, amparado nas propostas sócio-educativas da própria Associação.

Um dos desdobramentos dessa capacidade de se adaptar e dialogar com as novas políticas públicas foi o contrato de convênio com a Fundação do Bem-Estar do Menor, FEBEM SP com o Projeto de Medida Sócio-Educativa de Liberdade Assistida (2002-2003), através do qual, a Associação respondia pelo atendimento à 45 adolescentes e suas respectivas famílias por mês.51

Semelhante estratégia de atuação ocorreu com a parceria estabelecida com a Secretaria Municipal de Assistência Social – SAS em 2003 para a implantação do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente de Santo Amaro – CEDECA/SA no atendimento jurídico-social e psicológico às crianças e adolescentes de 0 a 18 anos, excepcionalmente 21 anos, de ambos os sexos, em situação de risco pessoal e social e adolescentes autores de ato infracional. 52E no ano seguinte, também em parceria com a SAS, a gestão do Centro de Referência da Criança e

51 Documento XVI – Projeto de Liberdade Assistida, 2002-2003. Parceria: Fundação do Bem Estar do Menor – Febem/SP. A execução desse projeto exigiu a formação de um corpo profissional que contou com a participação de colaboradores e parceiros da Corrente Libertadora nas lutas político-sociais da região como Marcos Veltri (Centro de Referência em DST/Aids de - CR Santo Amaro), Irene Gerassi (Centro de Convivência e Cooperativa de Santo Amaro – CECCO/SA) e Laura Mª Carvalho (Unidade Farcamacodependência de Santo Amaro). Sobre as implicações do estabelecimento de parcerias e da atuação dos colaboradores junto a Associação, discutiremos no capítulo III – Da Roda de Capoeira à Roda de Negociações. 52 Documento XI – Projeto Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, CEDECA/SA, 2001. O Projeto elaborado coletivamente pelos membros do Fórum de Defesa da Criança e do Adolescente de Santo Amaro, foi o órgão responsável por indicar a Associação Cultural Corrente Libertadora para mantenedora do serviço, o que ocorreu em novembro de 2003 quando se firmou convênio com a Secretaria Municipal de Assistência Social para implementação do serviço na Rua Cerqueira César, 185, Santo Amaro. 128 do Adolescente Estação Cidadania,53na recepção, acolhida, diagnóstico e encaminhamentos 24h, dessa demanda em situação de risco.

Mas o que nos diz a narrativa de Emerson Coutinho é que nem sempre a criança e adolescente atendidos pela Associação Cultural Corrente Libertadora nas oficinas de capoeira e que comete delitos, é necessariamente o legalmente jovem infrator. Pode ser, mas nessa condição, os encaminhamentos estão atrelados ao atendimento especializado, estruturado nos serviços acima citados ou a outros serviços da rede de atendimentos da região.

O fato da Associação ter podido pleitear a gestão desses serviços e, de certa forma, essa situação configurar-se em uma profissionalização da mesma, nos interessa é o trabalho que está por trás desse reconhecimento por parte do Poder Público para com a Associação. Os bastidores, o trabalho que construiu o alicerce para esses serviços especializados, vem da prática de capoeira desenvolvida diariamente em diversos espaços da cidade pelos mestres e alunos da Associação Cultural Corrente Libertadora em um movimento quase anônimo.54

A proposta sócio-cultural da Associação através da capoeira é perpassada pelo sentido de inclusão que parte do respeito à condição do outro, mesmo quando esse é um contraventor. Segundo a narrativa, não se trata de ignorar ou relevar o delito do aluno, mas fazer dessa situação um elemento de diagnóstico e de estratégias de acompanhamento para evitar a institucionalização do adolescente como infrator. A prevenção através da cultura; não negar a possibilidade de mudança de atitude do indivíduo, seja este criança, adolescente, adulto ou idoso.

É engraçado. Porque assim, a Corrente o pessoal fala assim: é a capoeira! Mas é uma grande mentira. A capoeira nada mais é, no meu entendimento é claro, não no dele... a capoeira nada mais é, do que trazer o pessoal pra próximo da Corrente, pra perto do mestre, próximo dessa linha de pensamento. Então, hoje eu vejo a capoeira, nada mais que como o chamativo para as pessoas conhecerem uma cultura diferente e daí ser ajudado. Porque de novo eu falo, a minha situação de buscar a capoeira, era pra ganhar o lanche na época... e hoje ainda, a capoeira serve pra isso. Eu tava na reciclagem domingo, eu volto a citar, tinha os meninos lá fora, esperando o horário do lanche, eles pediram: da um suquinho pra mim, um lanchinho? E todo mundo deu. Não, ninguém falou não pode porque você não fez. Todo mundo deu e muitos meninos estão lá, por

53 Documento: Plano de Trabalho da Associação Cultural Corrente Libertadora (2003-2004,s/d. 54 O trabalho junto a criança e adolescente em situação de risco e de moradores de rua se intensificou a partir de 1996 em parcerias com a Caritas Arquiodiocesana realizadas no Centro de Convivência da Criança e Adolescente no bairro da Liberdade e Sé e com o Centro Comunitário da Igreja do Largo São Francisco; em parceria com PROCAD – Escola Paulista de Medicina, através do Projeto Quixote a partir de 1998; no atendimento contínuo a demanda de Santo Amaro, crianças, adolescentes e adultos em situação de risco e em situação de rua que circulam diariamente na região do Largo 13, desde o início dos anos 90. Com a implantação do Projeto Casa da Praça, Posto Sul e Acolhimento Cidadão, a Associação pode ampliar o atendimento em Santo Amaro trabalhando em parceria com esses serviços. 129

quê? Ou tá lá ou tá na rua, ou tá lá ou tá na boca, ou tá lá ou tá traficando, fazendo coisa errada e a capoeira bem, te ensina uma cultura diferente, te dá esse lance de você ter um mestre, ter alguém que você respeite, te dá educação, respeito ao próximo. Então a capoeira é tudo isso. A capoeira não é só o jogo da capoeira, jogar capoeira é muito fácil, muito fácil, em qualquer esquina você pode aprender capoeira, agora você acreditar que além da capoeira você pode se tornar um cidadão consciente, no Brasil que nós vivemos, é difícil e a Corrente Libertadora com seu histórico te dá isso.55

Estamos diante da narrativa de um monitor da Associação Cultural Corrente Libertadora. Michel Vanderlei, 30 anos, professor de dança, de capoeira e educação física, que começou a aprender capoeira aos 09 anos de idade com o Mestre Tigrão no Centro Esportivo e Educacional Joerg Bruder, período em que pôde ainda contar com a convivência esporádica de Mestre Maurício e Mestre Eufraudísio.

A narrativa de Michel Vanderlei, além de pontuar aspectos do trabalho da Associação, nos traz outra dimensão da ideia de cidadania no trabalho de intervenção sócio-cultural desenvolvido pela Corrente Libertadora, quando nos informa indiretamente sobre a reciclagem: a profissionalização de seus alunos através de uma formação contínua.56

O aluno na perspectiva da proposta de Mestre Tigrão passou a ser a figura central do trabalho da Associação Cultural Corrente Libertadora: é em função desse sujeito que a Associação vai criar e desenvolver estratégias de intervenção. O aluno transita da posição passiva de aprendiz para a posição ativa e propositiva de multiplicador, o que implica em compartilhar o conhecimento adquirido com o outro, sempre diverso.

Essa formação é contínua e pressupõe a interdisciplinaridade amparada pelas parcerias conquistadas pela Associação, para garantir a instrumentalização do multiplicador, que apoderado do saber cultural da capoeira pode ampliar sua ação através de outras linguagens. Para o período que estamos analisando, a formação do multiplicador se deu nas áreas da saúde, principalmente no que tange as questões da sexualidade (gênero, prevenção, vulnerabilidade); na cultura em contato com outras linguagens (teatro, dança, música) e participação política, sobretudo nas questões referentes às políticas públicas voltadas para

55 Entrevista VIII: Michel Vanderlei Coutinho da Silva, 08.06.10. 56A reciclagem foi o nome dado à um encontro mensal, no qual alunos, Mestre Tigrão e colaboradores se encontram para conversar e treinar. Nesses encontros, os monitores que estão desenvolvendo trabalhos trazem suas inquietações que são discutidas e deliberadas em grupo, também são revistas questões técnicas do ensino e jogo da capoeira. Quando necessário, colaboradores oferecem oficinas temáticas que possam enriquecer a prática desses monitores. Embora a reciclagem seja uma proposta de formação continuada para monitores/multiplicadores, é aberta para participação de qualquer aluno interessado. 130 crianças e adolescentes (Fóruns, Encontros de Adolescentes, Conferências, Manifestações Públicas).57

O acompanhamento do aluno dentro da perspectiva da Associação vislumbra para além da capoeira a

formação de monitores para o trabalho voluntário ou semi-voluntário, de multiplicação da proposta da ação sócio-educativa da Associação Cultural Corrente Libertadora, atendendo crianças e adolescentes em situação de risco social. 58

E ainda

atender a camada da população considerada como desfavorecida sócio- economicamente.59

Podemos ponderar que nesse caso, na ideia de cidadania objetivada por Mestre Tigrão e assumida nas metas da Associação Cultural Corrente Libertadora, está pautada também no compromisso de repassar o que se aprendeu e ao fazê-lo, o aluno se constitui em um potencial educador. A circularidade do saber atrelado à preocupação sócio-cultural.

O aluno que formado dentro da proposta de ensino da capoeira desenvolvida por Mestre Tigrão a partir de 1989, ganhou, pois, atribuições e assumiu um papel social que difere do período anterior. Sua participação extrapola o ouvir, discutir e aprender em grupo. O aluno compartilha do conhecimento construído comunitariamente e torna-se responsável pela multiplicação e aperfeiçoamento desse saber, ao fazê-lo torna-se também um representante da Associação, capaz de defender, responder e se comprometer politicamente com sua proposta de trabalho.

A participação do multiplicador está ancorado no comprometimento com a proposta de trabalho da Associação e com os vínculos afetivos que os norteiam, aspectos intrinsicamente relacionados à prática cotidiana da capoeira.

57 A formação em sexualidade humana se deu através da parceria com o Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual – GTPOS, através do Projeto Trance Essa Rede, iniciado em 1996 e com o Centro de Referência em DST/AIDS de Santo Amaro a partir de 1997. Com a linguagem artística se deu por várias mãos: voluntários e posteriormente com o Grupo Teatral AI Ui Fui. A participação política se intensificou a partir de 1997 em eventos com o Dia Mundial de Luta Contra Aids, Encontro Paulista de Adolescentes –EPA, Encontro Nacional de Adolescentes – ENA, Movimento Nacional de Adolescentes – MAB, Conferência Lúdica Municipal de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes, Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Santo Amaro – FDDCA, entre outros. 58 Documento: Atividades Realizadas ( 2000, 2001), s/d. 59 Documento: Associação Cultural Corrente Libertadora: Princípios, s/d. 131

Esse saber adquirido parte da capoeira, no entanto não se restringe a ela. Por isso, o multiplicador, muitas vezes, migra para outras profissões, algumas com características afins. Embora a preocupação da Corrente Libertadora esteja voltada prioritariamente a um segmento social, esse saber construído na prática e para a prática é capaz de extrapolar os cerceamentos econômicos, pois usa a linguagem da cultura e se dá no encontro, no ato de compartilhar.

Emerson Coutinho traz uma reflexão desses três aspectos: a cultura, o social e a circularidade do saber.

eu não li e não me falaram, eu vivencio. Eu mais vivenciei, né! Eu hoje... eu fui a criança que eu tô ensinando. Eu fui essa criança! Quando a criança, eu percebo tá fraca porque não jantou ou o que ela comeu não tem uma contribuição forte em vitaminas e tudo isso que ela passou em casa, ela tá com uma dificuldade, ela apresenta e ela olha, não foi um livro ou alguma coisa que me falou que ela tá sentindo isso, não! Eu passei por isso, entendeu? É, isso não desqualifica as pessoas que não passaram, só que isso, eu acho, eu acredito que traz a essência. Assim, você sabe realmente como você vai falar... Você pode falar isso é a teoria e a teoria tem o seu valor, tem o seu peso. Quando você sentiu fome, tem um outro peso! Não maior ou menor, mas têm outro peso. E também tem uma possibilidade maior de um outro resultado... quando eu tô atuando e essa atuação, ela é constante... Não é só como professor de capoeira... eu vejo que eu atuo com a criança que um dia eu fui e com a criança que eu não fui, eu aprendo com ela. Eu quero dizer que quando eu estou em outras situações de crianças e adolescentes e adulto, que não passaram pelo que eu passei, crianças que tiveram acesso a quase tudo ou a tudo e que eu não tenho essa noção, entendeu? Também eu aprendo com essas pessoas. Eu vejo que também há carinho, há respeito, há uma troca. Eu sei tocar berimbau e o meu aluno sabe tocar piano ou sabe tocar uma flauta, entendeu? Eu não tive acesso a isso e ele não teve acesso ao berimbau e é o momento que a gente troca...60

Podemos notar o papel da prática, da experiência para o amadurecimento das reflexões de nosso narrador. Há na reflexão aspectos da universalidade da proposta desenvolvida por Mestre Tigrão junto aos seus alunos, porque nos diz da capacidade de observar, de ouvir e de aprender respeitando a pluralidade, continuamente. Essa capacidade individual foi estimulada e aprimorada através de recursos pedagógicos ludicamente apresentados para o ontem aluno, hoje educador.

Esses recursos ou estratégias de inclusão desenvolvidos por Mestre Tigrão, como aludimos nessa exposição, utilizou a capoeira como o fazer cultural capaz de revelar ao aluno

60 Entrevista III: Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09.

132 suas habilidades e seu potencial em protagonizar ações individuais e coletivas de transformação social.

Ouvindo a narrativa podemos em certa medida compreender o porque dos critérios de avalição para graduação dos alunos sofreram modificações: o que está posto, é que os objetivos mudaram, mais do que o bom capoeirista ou um excelente atleta, o que se ambiciona é colaborar para que o aluno se reconheça como sujeito, sujeito de direitos e capaz de ser protagonista de sua própria história.

A experiência de capoeira de Mestre Tigrão, do seu aprender e ensinar, os desdobramentos de suas atitudes na direção da Associação Cultural Corrente Libertadora conviveu com a necessidade de enfrentar críticas e negociar constantemente com aqueles que discordavam da sua postura e principalmente, o fato dessa postura ter levado a Corrente Libertadora a centrar prioritariamente sua atuação na área social.

Como tentamos evidenciar nesse capítulo, a preocupação no atendimento à crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, bem como pessoas que comumente são cerceadas da prática da capoeira por razões sociais, psicológicas e físicas, exigiu da Corrente Libertadora um movimento de articulação e elaboração de estratégias de continuidade e ampliação de seu trabalho, muitas das quais em parcerias, construindo assim, um caminho de profissionalização e aperfeiçoamento da entidade nesse tipo de atendimento.

Como apresentamos anteriormente, na condição de mantenedora, a Associação Cultural Corrente Libertadora administrou serviços de atendimento especializado à essa demanda como o Projeto de Liberdade Assistida – LA ou CEDECA/SA ou ainda o Estação Cidadania, serviços que não estavam necessariamente associados à prática da capoeira. Eram serviços que contava com um corpo profissional, em sua maioria, estranho à formação e princípios da proposta pela Associação.

Por outro lado, o núcleo da capoeira viveu os desdobramentos dessa preocupação assumida pela Associação no cotidiano da prática, que norteado cada vez mais pelas necessidades político-sociais, primava pelo aprimoramento dos recursos pedagógicos de inclusão, implicando em tranformações consideráveis no fazer cultural da capoeira, tanto nos aspectos técnicos, como na formação do capoeirista.

As mudanças empreendidas por Mestre Tigrão na prática da capoeira como tentamos evidenciar aqui, se fizeram a partir do reconhecimento que esses elementos tidos como

133 tradicionais tendem a restringir a participação das pessoas que a Corrente Libertadora se propõe a atender, mais que incluir, por exigir do aluno predisposição a prática e habilidades a priori, visto que requer um leque de posturas adequadas para sua vivência: respeito, disciplina, atenção, dedicação, etc.

O que podemos compreender na feitura desse capítulo, é que para a proposta de aprendizagem da capoeira desenvolvida por Mestre Tigrão, essas habilidades e requisitos não estão dados, mas serão estimulados e construídos ao longo do processo de aprendizagem, acompanhando o tempo e as necessidades individuais de cada aluno.

Nesse sentido, a capoeira é a porta de entrada, o instrumento de articulação e construção de vínculos, ponte para atividades que interagem com outras áreas do saber e da cultura que, no entanto, não se confunde como uma atividade tão somente recreativa. Embora não esteja inserido em como um modelo sistematizado, observa, sugere, acompanha e exige crescimento do aluno, mas essa exigência não é condicionada pela formação do capoeirista, mas pela formação de uma pessoa dotada de autonomia e comprometimento social, independente da profissão a que escolha se dedicar.

Termos nos debruçado sobre as particularidades dessa proposta pedagógica nos permitiu apreender o exercício constante da Associação em se refazer e marcar seu posicionamento político. Nos apresentou uma outra dimensão da experiência político-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora, a capacidade em vivenciar a capoeira sem, no entanto, aprisioná-la em um modelo de tradição. A capoeira repleta de movimentos e musicalidade se transforma, ocupa novos espaços e pode ser diversa. Entretanto, continua a ser capoeira.

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Capítulo III

“Da Roda de Capoeira à Roda de Negociações”

Projetos e Parcerias da Associação Cultural Corrente Libertadora

“A maior escola é o mundo, aprendi desde menino Se nesse mundo estou aprendendo, Tudo o que aprendo, ensino”.

Ms. Maurício e Ms. Moreira, 1981

135

A trajetória político-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora está intrinsecamente relacionada com a sua prática de capoeira, com as demandas sociais advindas das experiências com seus alunos e dos parceiros, que de modos diversos contribuíram para continuidade, aperfeiçoamento e ampliação de suas ações.

Se durante a segunda metade da década de 1970, na efervescência dos Movimentos Populares na cidade de São Paulo, a Associação atuou, sobretudo, como instrumento de mobilização e articulação entre setores da sociedade civil organizada – Movimento de Moradia, Novo Sindicalismo, Educação Popular, entre outros, nos anos noventa e primeiros anos do século XXI, a Associação precisou se rearticular para a disseminação e manutenção de seu próprio trabalho.

Para compreendermos esse processo, seguimos os rastros, impressões, lembranças e os possíveis significados dessas experiências para os atores sociais envolvidos na elaboração e execução desses trabalhos – gestores, adolescentes multiplicadores e da entidade enquanto corpo social. Procuramos, concomitantemente, problematizar as interfaces do diálogo político estabelecido entre a Associação e os governos de então, mediante as propostas sócio-culturais institucionais por eles implementadas.

Para o campo de análise desse capítulo, as fontes utilizadas foram os planos de trabalho, projetos e relatórios institucionais da Associação Cultural Corrente Libertadora em parceria com a Sociedade Civil Organizada e com o Poder Público no período de 1996 a 2004 e entrevistas com os jovens multiplicadores e fundadores da Associação.

A natureza das propostas de trabalho da Corrente Libertadora destinadas a seus parceiros, indica em parte os caminhos trilhados pela mesma, para a continuidade de sua experiência cultural e política. O jogar capoeira, o ensinar capoeira, o criar e reinventar espaços públicos exigiu da Associação o diálogo e o desenvolvimento de estratégias, que de forma significativa, se configuraram em ações coletivas e em definição de prioridades no campo de atuação da mesma.

As parcerias estabelecidas pela Associação estão relacionadas não apenas com a ampliação de suas ações, mas à sustentabilidade de seu trabalho, tendo em vista o agravamento de seus problemas estruturais.

No período 1976-1989 a Associação mantinha uma academia no bairro de sua fundação, a Vila São José – Distrito de Capela do Socorro. Esse espaço funcionava como

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sede da Associação: espaço da prática da capoeira, de articulação política e formação cultural. Nesse espaço ocorriam as aulas de capoeira e atividades culturais que ampliavam a formação dos alunos e dos fundadores como o caso do samba de roda, puxada de rede, maculelê, teatro e números musicais.

Esse espaço também se configurava em um espaço de articulação política, pois ali, o grupo propunha discussões e ações políticas através de atividades como o Cine Clube Corrente Libertadora – círculo de exibição de filmes e documentários acompanhado de discussão – levantando temas sociais pertinentes ao cotidiano dos alunos e estabelecendo diálogo com as forças populares e políticas da região de Santo Amaro.

A manutenção da Academia dependia do pagamento de mensalidade dos alunos, entretanto, esse procedimento já se mostrava problemático devido à realidade social dos alunos e o posicionamento político dos fundadores. Manter um sistema de cobrança de mensalidades não se adequava a ideia de um trabalho aberto à comunidade. Essa dificuldade de administração financeira estava intimamente relacionada às preocupações sociais da Associação para com a comunidade como comenta um de seus fundadores, Mestre Eufraudísio:

por que nós saímos? Por uma questão financeira. Chegou um momento que as pessoas não podiam pagar as suas mensalidades para sustentar o aluguel, o aluguel passou a ficar muito caro e o grupo era grande... era grande e era uma coisa aberta à comunidade. Pra você ter uma ideia, algumas atividades do Movimento social, do Movimento Popular acontecia dentro da Corrente, era uma outra parceria que acontecia...1

O fechamento da sede em 1989 evidenciou problemas estruturais da Associação, principalmente, os de cunho financeiro: sem recursos próprios para sua manutenção e com uma proposta de intervenção social, a cobrança de mensalidade tornou-se inviável e a necessidade em se buscar outros caminhos para a continuidade do trabalho da Associação se fez necessário.2

A ausência da sede dificultou o campo de articulação da Associação, entretanto não impediu que seus membros elaborassem novas estratégias de ação. É nesse contexto de

1 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 2 A complexidade desse tema, bem como o processo de reestruturação da associação foram pormenorizados no capítulo I – Da Sombra da Barriguda aos Movimentos Populares. 137 rearticulação de sua prática político-cultural que as parcerias com a Sociedade Civil e com o Poder Público se intensificaram.

Mediante as situações como a descrita acima por Mestre Eufraudísio, a Corrente Libertadora poderia ter trilhado o caminho que muitos grupos de capoeira seguiram com sucesso e respeitabilidade: fundação de academias em bairros com população de bom poder aquisitivo, divulgação do nome do grupo a partir da formação de filiais por todo Brasil, vinculando o nome do grupo a um mestre, formação de professores para o mercado exterior, etc.

Caminhos legítimos e eficazes que garantiram a sustentabilidade, profissionalização e sucesso de vários mestres e alunos, além de ter garantido a divulgação, manutenção e aceitação pública da capoeira no Brasil e no exterior.

Entretanto, esse não foi o caminho escolhido pela Associação Cultural Corrente Libertadora. Sem sede própria e recursos financeiros para continuidade de seu trabalho, contou com sua capacidade de se rearticular através do diálogo e da valorização do seu fazer capoeira buscando no primeiro momento o auxílio dos amigos e parceiros de sua trajetória política para reestruturar suas metas e ações políticas no campo da cultura. E no segundo momento, construindo uma rede de parcerias com vários setores da sociedade.

Essa escolha está de certa forma pautada na negação do modelo de academia, isto é, de manter uma academia particular, em espaço permanente estruturada através de mensalidades para as aulas de capoeira ou se sujeitar à instabilidade profissional e financeira de trabalhar em academias de outros, com múltiplas atividades físicas, nas quais a capoeira é apenas mais uma categoria.

A negação à esse modelo está relacionada a trajetória político-cultural da Corrente Libertadora, na qual, mais que a continuidade de uma prática cultural ou esportiva, a preocupação de seus fundadores situa-se em que a capoeira pode colaborar significantemente para o desenvolvimento social e cultural da população atendida.

Assim, a capoeira foi o elo do diálogo entre esses parceiros e foi a prática que justificou a continuidade de intervenção da Associação junto à grupos específicos da sociedade paulistana. O processo pedagógico para o ensino da capoeira proposta pela Corrente Libertadora e sua trajetória político-cultural tornou-se o diferencial e o elemento central para a construção das parcerias.

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A prática cultural da capoeira proposta pela Associação Cultural Corrente Libertadora nos coloca diante das tensões e desafios de expressões de culturas populares conviverem e disputarem espaços de interesses entre crianças, jovens e adultos com os produtos do mercado cultural largamente divulgado pelos meios de comunicação de massa.

Como nos sugere Stuart Hall,3 não se trata de idealizar, cristalizar ou defender a cultura popular como uma lendária cultura, íntegra, autêntica e autônoma, mas de entendermos que há uma concentração de poder referente ao campo da cultura, na qual, a cultura dominante lança mão dos meios institucionais – principalmente a educação formal – e da indústria cultural para desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular.

Tendo em vista a pluralidade das manifestações populares, o que nos interessa aqui, são as relações de poder que se estabelecem e se desconfiguram no campo da cultura. O status social e a visibilidade dessas práticas, através desse encontro conflituoso, indicam que o lugar que se ocupa é determinante na definição dos papéis sociais dos sujeitos envolvidos.

A capoeira praticada pela Corrente Libertadora se faz popular não apenas por considerarmos que o popular se compõe das manifestações, práticas, fazeres de um setor específico da sociedade, sobretudo os trabalhadores rurais ou urbanos de recursos financeiros limitados. Até porque, tomar essa perspectiva, seria ignorar a riqueza inerente da pluralidade cultural e da autonomia dos sujeitos que a desenvolvem e se alinhar a uma conceituação da cultura fundada na polarização entre cultura erudita e cultura popular. Definição essa, que delegou à cultura popular o papel de subordinado e caracterizou o conhecimento elaborado nesse campo como primitivo, repetitivo e de limitados recursos técnico-teóricos.4

Recorremos novamente a Stuart Hall para insistirmos que...

o essencial em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a cultura popular em uma tensão contínua (de relacionamentos, influência e antagonismos) com a cultura dominante... Considerar o domínio das formas e atividades culturais como um

3 HALL, Stuart. Da Diáspora Africana: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:UFMG, 2003. 4 A dicotomia entre as chamadas cultura erudita e cultura popular vem de um longo processo político, econômico e cultural, no qual o eurocentrismo e os intelectuais tiveram papel relevante. Entretanto, essa discussão vem sendo intensificada e desconstruída através de intelectuais de vários campos do saber, principalmente das ciências humanas. Entretanto, para nossa iniciação nessa discussão e considerando a contribuição africana na nossa pesquisa, as principais referências foram: WILLIAMS (1980), CERTEAU (1980), CHARTIER (1990), MIGNOLO (2001), BHABHA (2001), GILROY (2001), HALL (2003), SARLO (2005) e CANCLINI (2006). 139

campo sempre variável... atenta para as relações que continuamente estruturam esse campo em formações dominantes e subordinados.5

É nessa perspectiva de cultura que lançaremos nosso olhar para essa dimensão de experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora, no seu fazer capoeira e na capacidade estratégica de estabelecer parcerias como meio de viabilizar a ampliação de seus trabalhos.

3.1 – Das Parcerias Com a Sociedade Civil

As relações com os Movimentos Sociais e a sociedade civil organizada fazem parte constitutiva da Corrente Libertadora desde sua fundação em 1976. Na vigência da Ditadura Militar (1964-1988), os Movimentos Populares na cidade de São Paulo tomaram as ruas. Na periferia da cidade, nos distritos de Santo Amaro e Capela do Socorro, a Corrente Libertadora estava vinculada às reivindicações populares, participando ativamente das ações políticas através da capoeira. As apresentações de capoeira estavam nas passeatas, nas manifestações públicas, nos sindicatos e na Igreja Católica.

Compreendemos que durante os anos 70 e 80, a capoeira foi para Associação uma prática cultural que colaborou na mobilização de grupos sociais, mas que só podia fazer-se política pelo profundo caráter de resistência que a atrelava a outras manifestações de culturas populares que se produzem e reproduzem continuamente, construindo memórias, identidades e significados aos sujeitos que as ritualizam cotidianamente.

Segundo Maria da Glória Gohn,6 na segunda metade da década de 1990, não apenas os Movimentos Sociais sentiam o impacto da nova conjuntura econômica e social, como a sociedade civil passava por uma reestruturação no formato e reorientação de metas e estratégias políticas.

Nesse sentido, as experiências de trabalhos com capoeira e a participação nas lutas sociais das décadas anteriores, que colocaram os fundadores da Associação em contato

5 HALL, Stuart. Op. Cit., p.241. 6 GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Educação. São Paulo: Cortez Editora, 2009 140

direto com as diversas demandas e vertentes de lutas sociais, permitiram à Associação, nesse contexto, delimitar a partir dessa vivência, suas prioridades e campo de atuação.

A emergência das Organizações Não-Governamentais – ONGs e entidades do Terceiro Setor7 por todo país, de certa forma, indica a tendência de parte significativa da sociedade civil organizada8 em centrar sua atuação política, na área da defesa de direitos de grupos sociais com demandas específicas – gênero, étnica, ambientais, identitários, crianças e adolescentes, etc, indo de encontro com conquistas sociais e políticas de visibilidade nacional, sobretudo, a carta Constitucional de 1988, a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA em 1990 e a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS de 1993.9

O ECA e o LOAS, em particular, ofereceram para as entidades do Terceiro Setor uma nova perspectiva de trabalho.10 No caso da Associação Cultural Corrente Libertadora o novo paradigma que essa legislação propunha a despeito do atendimento à criança e adolescente e às famílias no âmbito do atendimento e encaminhamentos na área social, vinham de encontro com suas preocupações e sua linha de trabalho, sobretudo, no que tange a proteção integral à criança e ao adolescente, bem como no objetivo de participação na elaboração de políticas públicas.

7 A terminologia Terceiro Setor, segundo Duriguetto e Debórtoli ganhou evidência nos anos 90 com o processo de descentralização administrativa do Estado, refere-se a organizações públicas não-estatais e organizações privadas que celebram com o Estado, contratos de gestão, parcerias. O emprego da negativa não-estatal é para defini-la como uma terceira forma de propriedade ao lado da propriedade privada e da estatal. O termo é utilizado para destacar a construção de uma dimensão „pública‟ que não seja exclusivamente do Estado e também para romper com o entendimento da identificação da esfera privada como esfera marcadamente mercantil. É com essas organizações que surge, como figura legal, o chamado terceiro setor. Ver: DURIGUETO, Maria Lúcia; SILVA, Isis; DEBÓRTOLI, Débora. Descentralização Administrativa, Políticas Públicas e Participação Popular. In: Serviço Social e Sociedade nº 96. São Paulo: Editora Cortez, 2008, p.8. 8 Estamos denoiminando Sociedade Civil Organizada, grupos, associações, fundações, agremiações, entidades sem fins lucrativos e grupos da mesma natureza, que se constituíram fora da tutela ou de vínculos institucionais com as instâncias do Estado (civis ou militares), portanto, Entidades que, embora dialoguem e firme parcerias com o Estado, têm sua autonomia política garantida. 9 GOHN, Maria da Glória. Op. Cit. 10 O ECA - lei 8. 069 de 13 de julho de 1990 - estava alinhado as propostas adotadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas de 20 de novembro de 1989, sobretudo, no que tange a proteção integral a criança e adolescente e a desconstrução do estigma do menor. Esse paradigma prevê a formulação de políticas públicas e de destinação privilegiada de recursos para implementação destas, como é o caso dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – CEDECAs e dos Conselhos Tutelares. Também prevê a articulação entre ações governamentais e não-governamentais, o que abria a oportunidade de participação direta da Sociedade Civil para intervir na elaboração de políticas públicas e na execução de projetos e serviços. Nesse sentido, a LOAS – Lei nº 8.742 de 07 de dezembro de 1993 - reforçava esse caráter participativo através do Art 5º, Seção II, inciso II – Participação da população por meio de organizações representativas na formulação de políticas e no controle das ações em todos os níveis. 141

Em Santo Amaro e bairros adjacentes, lócus prioritário da atuação da Corrente Libertadora, muitas entidades e ONGs encontraram no estabelecimento de parcerias entre si e em pequenos financiamentos privados, a brecha para o desenvolvimento de seus trabalhos sociais. Nesse sentido, a Associação Cultural Corrente Libertadora iniciou um processo orgânico de estabelecer parcerias através de propostas de trabalho que pressupunham a construção de uma reflexão sobre si e sobre o seu fazer cultural através da prática da capoeira.

As dificuldades financeiras para a manutenção da prática da capoeira, que significou entre outras coisas, não ter espaço para dar aula e dar continuidade às atividades culturais atreladas a capoeira, fez das parcerias com a sociedades civil organizada a primeira estratégia de enfrentamento da situação posta.

As parecerias se viabilizavam através de contatos pessoais e com entidades que tinham um trabalho voltado para o atendimento de setores da população parcialmente desassistidas pelo Poder Público. A elaboração de propostas de trabalho em parceria exigiram em níveis diferentes, de um plano de trabalho ou projetos escritos que contemplassem a concepção de capoeira, metodologia de ensino e os objetivos a serem alcançados.

A Associação através de seus fundadores e alunos foram respondendo às novas demandas utilizando as habilidades que a experiência cultural e política lhes proporcionaram. Lançaram mão dos contatos pessoais, da observação da realidade e da prática cultural cotidiana, assumindo uma postura ativa e construindo uma rede de comunicação entre parceiros, em processo contínuo de reflexão, incorporação e reavaliação. Nessas circunstâncias, se viram diante da tarefa de empreender uma outra e nova estratégia de ação: elaborar projetos.

A capoeira, matriz do trabalho da Corrente Libertadora foi o instrumento primordial na construção de vínculos afetivos e para prática de uma atividade física e cultural. Assim, os planos de trabalho encaminhados para as entidades e ONGs, centraram-se na concepção de capoeira e da metodologia a ser empreendida no atendimento do público alvo.

O projeto Iniciação à Capoeira de 1996 destinado ao Centro Comunitário da Criança e do Adolescente/Liberdade, centro subsidiado pela Cáritas Arquidiocesana/Sé, nos remete

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aos vínculos constituídos nas lutas sociais ao longo dos anos 70 e 80, em que a Corrente Libertadora esteve ligada aos setores progressivos da Igreja Católica.

Nesse projeto é fortemente acentuado o aspecto esportivo da capoeira e os benefícios dessa prática:

A finalidade do grupo é possibilitar às crianças e adolescentes de rua e de cortiço a aprendizagem de uma modalidade de esporte e de uma formação sócio-cultural com o objetivo de um gradativo desenvolvimento profissional, que colabore significativamente para seu auto-sustento. 11

Pontuar a capoeira como atividade esportiva está ligada a um discurso médico e de viés atlético que foi largamente defendido no período – e ainda o é atualmente – como uma possibilidade de reabilitação e reintegração de grupos sociais marginalizados.

A Associação dialoga com essa percepção, pautada no pressuposto da tríade social, pobreza /exclusão social /violência, mas também recorre, antes de tudo, à sua experiência de trabalho cotidiano da periferia da cidade de São Paulo. É a experiência, principalmente no atendimento ao público jovem, que no projeto se faz ressaltar os aspectos culturais e sociais atrelados à capoeira e não unicamente à prática de um esporte.

A capoeira enquanto esporte é vista como uma porta de entrada para as crianças e de adolescentes em situação de risco pessoal e social, isso porque, a capoeira, nesse viés, se põe como luta, como mecanismo de defesa e ataque, essenciais para a sobrevivência nas ruas. No entanto, a proposta de capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora segue os trilhos do que os gestores chamaram de formação sócio-cultural.

A capoeira é o elemento cultural que através da música, canto, dança, instrumentalização e dramatização permite a integração entre os participantes do grupo, bem como favorece o contato com a subjetividade e afetividade de cada indivíduo. Dessa maneira, a prática de capoeira proposta pela Associação minimiza o caráter de rivalidade – intrínseca aos esportes de combate – para evidenciar os aspectos lúdicos pertinentes a cultura.

Como o objetivo não é a rivalidade, a competição, a capoeira permite que cada um se desenvolva no seu próprio ritmo, tornando prazeroso o aprendizado... a capoeira favorece a pessoa entrar em contato com as suas manifestações sensoriais...

11 Documento: Projeto Iniciação à Capoeira, 1996. Parceria: Centro Comunitário da Criança e do Adolescente/Liberdade – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo/Região Episcopal Sé. P.1 - 2. 143

propiciando uma maneira de trabalhar harmoniosamente com a agressividade contida nessas crianças e adolescentes.12

É significativo o caráter inovador e político desenvolvido no processo de elaboração da concepção de capoeira proposta pela Associação. O propósito de priorizar o atendimento a esse público específico – crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social – desencadeou uma reflexão acerca do jogar capoeira e a elaboração de uma proposta de ensino que trazia consigo o aprendizado político adquirido, percebido na escolha de continuar nas lutas sociais, mas que, paulatinamente se distanciava dos processos de ensino da capoeira desenvolvida anteriormente.

Entre os anos de 1976 à 1988, a Associação Cultural Corrente Libertadora primava pela ênfase na destreza, agilidade, malícia e beleza do jogo de capoeira que apresentava. Possuía um grupo especializado para as apresentações públicas. Obviamente, que isso só era possível mediante a aprendizagem e ensaios contínuos, mas naquele período, a apresentação do jogo e das atividades culturais, do ponto vista político, eram os pontos mais importantes para a intervenção social do que propriamente a proposta de ensino da capoeira, isso porque, eram as apresentações o elemento central de mobilização política.

A ênfase na beleza do jogo de capoeira nas apresentações públicas, no período acima mencionado, estava intimamente relacionado com uma das ações assumidas pela Associação nas parcerias com os Movimentos Populares: realizar apresentações de capoeira e de outras manifestações populares nos atos políticos.

Quando solicitada pelos Movimentos para participar dos atos, nos quais, as reivindicações populares eram apresentadas, a Corrente Libertadora assumia a responsabilidade de chamar a atenção da população transeunte e de mobilizar esse público, no sentido de escutar e tornar-se ciente das questões políticas que estavam sendo postas.

Mediante às crises internas vivenciadas pela Associação com o afastamento paulatino de Ms. Maurício e Ms. Eufraudísio da coordenação e desenvolvimento das atividades da entidade e a perda da sede, se desencadeou um processo de reestruturação da Associação, que na conjuntura política e social dos anos 90, incorreu em uma inversão de prioridades, na qual, o processo de aprendizagem e convivência cotidiana com as crianças e adolescentes, se sobrepuseram ao espetáculo.

12 Idem, p.5. 144

A beleza, destreza e agilidade do jogo dos alunos continuaram perfazendo parte do um conjunto de intervenções pedagógicas, mas a intervenção política concentrou-se no processo de aprendizagem. Foi através dele, que a Associação Cultural Corrente Libertadora intensificou sua ação a partir da década de 90.

O aspecto social nesse projeto está ligado à possibilidade de profissionalização dos alunos, através dos saberes da capoeira: confecção de instrumentos musicais, aprendizagem musical desses instrumentos, formação de monitores para próximas oficinas de capoeira. Na produção do conjunto de projetos com a sociedade civil organizada, foi gestada paulatinamente a figura do adolescente multiplicador,13 como uma prioridade no trabalho da Associação.

Acreditamos que a figura do monitor, que no final da década de 1990 passou a ser chamado de multiplicador, fez parte desse processo de rearticulação política e de redirecionamento de metas e de objetivos da Associação.

Assistente, monitor e multiplicador foram os agentes de um aspecto fundamental da proposta pedagógica da Associação Cultural Corrente Libertadora: possibilitar que o aluno através do conhecimento e da prática adquirida, podesse trabalhar temporariamente ou definitivamente com capoeira e atividades a fins. O que se aprende se ensina, em um processo contínuo de construção do conhecimento, pautado na prática, no exemplo e na tradição oral.

Esse olhar sobre o que se experiencia, associado diretamente à realidade social está posto nos projetos. Pressupõe uma observação dessa realidade, pela qual se identifica os problemas vivenciados pelas crianças e adolescentes daquela comunidade e propõe, através do saber e da habilidade específica da Associação, o meio de enfrentá-los utilizando a capoeira.

Possibilitar às crianças e adolescentes do Bairro Jardim Morro Verde e proximidades, a aprendizagem de uma modalidade de esporte – capoeira – colaborando para o desenvolvimento sadio, físico e mental.14

13 O adolescente multiplicador /monitor refere-se ao aluno de capoeira que passa por uma formação contínua em diálogo com outras linguagens do saber (sexualidade, teatro, direitos, etc) e participa das atividades desenvolvidas pela Associação, com a responsabilidade de repassar o conhecimento por ele adquirido. Ver: capítulo II – Meu aluno é Meu Mestre. 14 Documento IV : Projeto Iniciação à Capoeira, 1998. Parceria: Associação Civil Sociedade Alternativa Morro Verde. p.1. 145

Então, caracteriza o bairro justificando o desenvolvimento do esporte:

Nosso bairro apresenta atualmente melhorias em relação às condições de infra- estrutura básica, embora permaneça com carência de estruturas educacionais, sociais e esportivas. Esta quase ausência de opções colabora para incrementar significativamente o tempo ocioso das crianças e adolescentes, facilitando o seu envolvimento em práticas consideradas da delinquentes e infratoras.15

O projeto traz em si uma proposta de trabalho direcionado à criança e adolescente do Jd. Morro Verde, situado na região do Morumbi, próximo da divisa com o município de Taboão da Serra, extremo da periferia da Região Sul da cidade de São Paulo.

Na percepção dos gestores do projeto a vulnerabilidade desse público a violência, está do ponto de vista social, atrelada à dificuldade de acesso aos serviços públicos. Essa percepção na prática do elaborar e o efetivar os projetos foi se ampliando, agregando as demandas sociais advindas da família, da escola e do mercado de trabalho, como veremos adiante.

A parceria estabelecida com a Associação Civil Sociedade Alternativa Morro Verde, nos traz componentes das estratégias da Associação Cultural Corrente Libertadora nesse aprendizado de constituir parcerias: sem uma sede ou espaço próprio, a Associação desloca para o lócus dos parceiros o desenvolvimento de suas atividades.

Esse aspecto dimensiona de certa maneira a proposta de intervenção política da Associação: as dificuldades desencadearam nesse caso, o processo criativo de elaboração de estratégias de ação, de adaptabilidade e de flexibilidade. Características importantes para a efetivação das parcerias com a sociedade civil organizada, visto que, as condições estruturais e financeiras das entidades do Terceiro Setor são diversificadas e instáveis.16

Há, pois, um diálogo permanente entre a realidade social e o fazer cultural da capoeira: entre a observação e a prática pedagógica, entre a ausência e o que é possível ser realizado:

15 Idem, p.1. 16 Não nos cabe aqui realizar uma discussão aprofundada sobre o Terceiro Setor, entretanto, é importante ressaltar que sua emergência nos anos 90 está relacionado diretamente a proposta de descentralização (federal, estadual e municipal), a partir da qual, o Terceiro Setor em parceria com poder público passou a administrar serviços vinculados à políticas públicas de atendimento. Esse processo baseado em convênios com o poder público, tende a tornar instável a gerência dos serviços (que podem ser alteradas pela decisão do Estado) e a situação financeira da Entidade, que comumente depende dos convênios para sua atuação. Ver: DURIGUETO, Maria Lúcia; SILVA, Isis; DEBÓRTOLI, Débora. Op. cit. 146

Este projeto pretende, através do esporte, que é uma porta de entrada atraente para os jovens, auxiliá-los a gerir sua energia para atividades sadias, que colaborem para a sua formação geral e participação construtiva em nossa comunidade, prevenindo a violência urbana.17

A prática de capoeira então se dá a partir da realidade social, porém extrapola o sentido do esporte por se constituir de maneira compartilhada, visando o desenvolvimento humano e social referente ao público alvo e à própria Associação.

Extrapola o sentido de esporte, pois não há evidências do objetivo em se formar atletas, de fomentar a competitividade, nem a participação em torneios esportivos. Constitui-se de maneira compartilhada, pois o mestre, bem como os monitores, que o auxiliam participam de todas as etapas do aprendizado com o aluno. Em muitas situações, o aluno que aprende um golpe, um movimento, uma acrobacia, ensina o aluno que está começando o seu processo de aprendizagem.

Compartilhar o que se aprendeu parece estar no cerne da proposta pedagógica da Associação, o depoimento de Emerson Coutinho, hoje com 32 anos, estudante de Educação Física, formado pela Associação Cultural Corrente Libertadora e instrutor de esportes de escalagem, nos dá algumas impressões dessa prática pedagógica:

Então, esse foi o processo desde que eu entrei... o Tigrão pegou um aluno, com uma média de sete à oito meses de Corrente e me ensinou os golpes básicos. A maior parte... e golpes foi o Tigrão que me ensinou e alguns golpes o Tigrão aprendeu junto com a gente, quando alguém conseguia fazer um que ele não fazia ou a maioria não fazia ou ninguém fazia, era o momento em que todo mundo era aluno daquele aluno. Naquele momento, aquele aluno era o professor. Isso revertia. Porque tinha um outro momento breve, logo em seguida ou depois de um mês ou um ano, que o aluno que tava ensinando, era o aluno de um aluno dele. Então esse aluno dele pegou um golpe, um mortal na parede rolê com um pé só e ele passava a ensinar. Isso acontece até hoje. É uma troca de informações, uma grande troca! Acontece até hoje na Corrente Libertadora, até hoje o Tigrão senta com a gente e ele ensina e ele aprende, até hoje. Então, é uma forma que o Tigrão acredita, é um método que ele acredita, que não tem distinção de mestre e aluno; distinção no sentido de saber, né!? O mestre é... acredito, percebo que algumas pessoas acreditam nisso, o mestre não é o que sabe tudo, né, pro Tigrão. É uma pessoa que sempre tá aprendendo. Ele não gosta dessa palavra, dessa posição ou hierarquia, se pode se dizer assim, chamada mestre. Pra ele mestre é outro conceito, que seria melhor ele dizer sobre, mas ele acha que um pode ensinar o outro. O aluno ensinar o professor. O professor ensinar o aluno18.

17Documento IV: Projeto Iniciação à Capoeira, 1998. Parceria: Associação Civil Sociedade Alternativa Morro Verde. P.2. 18 Entrevista III: Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09.

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A riqueza de detalhes da narrativa de Emerson, aluno da Corrente Libertadora há 21 anos, nos dá conta de como a construção do conhecimento é circular e compartilhado seguindo uma postura de equidade, que produz significados diversos, pois o ensinar e o aprender não ocorre em um processo unilateral: professor ensina o aluno.

Esse processo pedagógico, se reatualiza cotidianamente e continuamente. Infere na construção de valores humanos, pois a concepção de respeito e de compartilhar que a acompanha está intimamente ligada aos aspectos subjetivos como auto-estima e percepção de mundo.

Essa produção de conhecimento vivenciada na Associação Cultural Corrente Libertadora, nos dá conta da possibilidade de desconstrução dos papéis tradicionalmente ocupados na dinâmica pedagógica, na relação professor-aluno. A hierarquia tradicionalmente aceita e, muitas vezes imposta, da autoridade do professor (no nosso caso do Mestre), é aqui redimensionada como parte de uma postura política, na qual a inclusão se dá no acolhimento e no diálogo, na perspectiva de que o aluno traz em sua trajetória de vida contribuições significativas para o grupo.

O aspecto social dessa prática está relacionado ao acesso a serviços públicos de qualidade, a profissionalização, como já apontamos, mas está associada também com a proteção integral a criança e ao adolescente e a construção da cidadania plena. Essa percepção demonstra, em certa medida, os mecanismos de apropriação dos fundadores e colaboradores da Associação, da legislação em vigor. Uma postura de protagonista da história diante do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

O Estatuto se torna mais um instrumento de luta, porque contempla a percepção da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, pessoas na condição de desenvolvimento e que, portanto, requer a proteção integral, percepção essa que orienta a prática da Associação.

As preocupações sociais da Corrente Libertadora são percebidas pelos alunos, não através de um discurso elaborado, mas através da prática, como comenta Luciene Marinho Vidal.

o Tigrão, ele já faz capoeira levando a área social junto. Além dele tá ensinando, ele já tá tirando a criança da rua, ele já que levar pra escola, resolver a situação dela, foi dali que partiu assim a minha visão das coisas. A capoeira não é só o esporte, não é só pra

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suar, pra brincar, além disso, a Corrente tem esse trabalho diferenciado, que é cativar ele e levar ele a ter uma vida digna, como qualquer outra pessoa.19

A palavra cativar é significativa porque acreditamos ser o alicerce da proposta de trabalho da Associação Cultural Corrente Libertadora e nos projetos compõe a justificativa do desenvolvimento do trabalho junto às comunidades atendidas por seus parceiros. Não obstante, define e reforça a posição de educador de Mestre Tigrão, que valorizando os vínculos afetivos, subverteu as relações sociais dentro da capoeira. Ainda podemos observar, que para os alunos, o significado de cativar está nos vínculos afetivos construídos, com e através da capoeira com amigos e mestres.

Construir vínculos depende necessariamente da acolhida e, uma acolhida baseada na confiança, acreditamos que abre portas para convivência da diferença, para a garantia de direitos, de diálogo, de encaminhamentos dos atendimentos necessários. A confiança, no caso das experiências dos alunos e fundadores da Corrente Libertadora, parece trilhar diversos caminhos, inclusive o do exemplo, do esforço e da não-violência.

eu já tinha uns 10, 11 anos já pegando amor pelo esporte e esse envolvimento com o Tigrão foi exatamente isso... E esse foi um envolvimento forte, foi com as apresentações de capoeira, foi a forma do Tigrão ensinar. Ele nunca agrediu um aluno né!... Então, não tinha uma coisa fora da roda de puxar a orelha ou dá tapa na cabeça ou algo semelhante. Então, toda essa forma... fez eu me apaixonar... pela metodologia, pela forma dele ser e me apegar totalmente... ele sentava com a gente nos domingos e explicava histórias sobre a capoeira... Então pra participar da apresentação... você tinha que criar um golpe e apresentar pra ele. Ele tinha que aprovar esse golpe pra você, depois de aprovado você ir pra exibição, né! E foi fatores assim que fez eu me apegar... essa preocupação que ele tinha com os alunos. Ao mesmo tempo que de início parecia uma pessoa rígida, por outro lado, era uma pessoa que te colocava na moto, na perua e levava pra casa dele pra almoçar e depois ir pra uma apresentação, emprestava a blusa dele pra você voltar pra casa. Então, é dessa forma que eu fui me apegando... Eu tô na Corrente há 19 anos e 6 dias.20

Entender a construção de vínculos como uma das premissas necessárias para o desenvolvimento da prática da capoeira e justificativa metodológica dos projetos, é entender que a confiança entre quem ensina e quem aprende é fundamental para o processo de reinserção e integração em todos setores da sociedade – saúde, educação, lazer, etc – das crianças e adolescentes com problemas de relacionamentos, estigmatização social, dependência química e em conflito com a lei.

19 Entrevista VII: Luciene Vidal Marinho, 18.04.10. 20 Entrevista III: Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09. 149

Essa proposta de trabalho, assim como outras da mesma natureza, somente se fez viável devido à existência real de uma demanda gerada nos bairros periféricos da cidade e por outro lado, porque a experiência e o processo de construção do conhecimento cultural e político da Corrente Libertadora desde sua fundação na década de 1970 estava arraigado à sentidos referentes ao comunitário.

Assim, entendemos que esses aspectos, que podem ser considerados sutis, da prática de capoeira proposta pela Associação nos projetos – papéis sociais, vínculos afetivos, confiança, não-violência e respeito – podem ter uma efetiva contribuição para os envolvidos do ponto de vista social, pois colaboram para valorização dos indivíduos e dos espaços em que vivem; estimula uma cultura de paz, enfatiza a importância dos papéis sociais pautados na complementariedade e não na autoridade pré-estabelecida e abre possibilidades de formação profissioanal, cultural e política.

A atuação político-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora, possivelmente beneficiou de maneiras diferentes as crianças e adolescentes que vivenciaram a capoeira nessa perspectiva, entretanto, dificilmente poderemos constatar qualitativamente esses resultados, tendo em vista os limites da pesquisa, mas os sujeitos sociais que protagonizaram essas ações nos deixam indícios dos aspectos que tornaram possível sua experiência com a capoeira.

Então, naquela época a razão especial era o fato de, de não ser obrigado a pagar pra fazer, né!? Então, a questão financeira. Onde eu poderia frequentar as aulas e eu não era obrigado a pagar para continuar? E isso foi crucial na época.21

A questão financeira levantada por Emerson Coutinho suscitam algumas reflexões referentes à postura política da Associação Cultural Corrente Libertadora e de seu fazer capoeira. Primeiramente, a necessidade das parcerias estabelecidas entre a Associação e ONGs, entidades e Poder Público foi crucial para a manutenção de um dos compromissos de sua atuação política: a garantia de gratuidade de seus serviços para com a comunidade.

Esse compromisso certamente não é natural, nem assistencialista por excelência, mas resultado da experiência da Corrente Libertadora em seu trabalho nos diversos bairros da região de Santo Amaro, Capela do Socorro e Parelheiros. Como já pontuamos, a própria relação entre a proposta de atuação político-cultural e a cobrança de mensalidades era

21 Idem. 150 sentida ideologicamente, pelos os fundadores como conflituosa, pois feria diretamente o princípio de participação aberta à comunidade defendida pelos mesmos.

Os vencimentos de mensalidades não impediram a participação de alunos inadimplentes nas aulas, mas financeiramente colaborou para o fechamento da sede, na Vila São José. A gratuidade do atendimento se definiu no processo de rearticulação da Associação e, as parcerias abriam a possibilidade de sua garantia: os parceiros buscavam os recursos financeiros e materiais para a realização do projeto de capoeira – incluindo pagamento dos mestres, professores e monitores – e assim era assegurado o atendimento gratuito das crianças e adolescentes.

A capacitação de recursos nas ONGs se dão em um movimento contínuo de articulação entre as entidades e iniciativa privada (empresas de porte financeiro diverso) e as entidades e o Poder Público através do estabelecimento de convênios, comumente essas são as frentes prioritárias de capitação de recursos.

Os recursos financeiros que advêm dessas parcerias obedecem a critérios múltiplos, que não compõem o cerne de nossas preocupações, entretanto, pudemos constatar, como veremos adiante, que a Associação Cultural Corrente Libertadora, diferentemente de seus parceiros da sociedade civil organizada, não desenvolveu uma relação direta com a iniciativa privada, sendo seus recursos proveniente em sua maioria da parceria com o Poder Público e com as entidades.

A Associação Cultural Corrente Libertadora assegurava, desse modo, a continuidade e aperfeiçoamento de seu trabalho, além de colaborar com as entidades parceiras colaborando para ampliação do leque de opções de atividade oferecidas à comunidade e frentes de atuação no trabalho social que realizavam.

As parcerias com a sociedade civil organizada colaborou na construção da proposta de ensino da capoeira, bem como, para a redefinição das metas de trabalho da Associação à medida que permitiu, sobretudo, nos trabalhos desenvolvidos pelo Mestre Tigrão, atender públicos – crianças, adolescentes, jovens, adultos e terceira idade – com demandas específicas que, no conjunto, formavam um grupo de atendidos bastante heterogêneo.

Essa particularidade do perfil heterogêneo do público atendido nos permite uma reflexão acerca da flexibilidade e adaptabilidade no processo de ensino e prática da capoeira desenvolvida pela Associação Cultural Corrente Libertadora e visualizar alguns

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caminhos trilhados pela Associação no sentido de buscar colaboradores de áreas diferentes do saber, para garantir uma qualidade técnica ao acompanhamento psicossocial destinadas aos alunos e familiares.

Atender crianças e adolescentes com necessidades especiais como os da EMDA Anne Sullivan,22 do Centro Comunitário da Criança e do Adolescente – CCCA (moradores de cortiços e em situação de rua)23 ou ainda da Ação Social Largo 13,24 (creche situada na região central de Santo Amaro), ampliou as possíveis estratégias de intervenção a serem empreendidas e deu visibilidade à valorização dos aspectos culturais no ensino da capoeira proposto pela Associação Cultural Corrente Libertadora.

Ela (a criança) experimenta-se através do jogo, da brincadeira e do faz de conta... Sabemos como a manifestação musical é importante para as criança e adolescentes... Assim a motivação acentua-se na associação de cada movimento o ritmo da música, elemento fundamental e sempre presente na prática.25

Embora a Associação apresente a capoeira como esporte no primeiro momento, são os aspectos culturais que justificam o trabalho. A dialética entre esporte e cultura no que se refere à capoeira é histórica, visto que a capoeira é uma luta: compreende técnicas de ataque e defesa que se executados com eficácia podem trazer danos físicos graves aos adversários.

Entretanto, a linguagem e procedimentos técnicos de algumas lutas – diretas ou indiretas,26 convivem com elementos culturais. No caso da capoeira (luta indireta) os elementos culturais como a musicalidade, o ritmo, a dança, a performance e o improviso, se fazem presentes.

Pontuar a capoeira como esporte ou cultura, historicamente dependeu do momento e dos objetivos que os capoeiras perseguiam alcançar. Tem um sentido profundamente

22 Documento: A Capoeira E O Desenvolvimento Do Deficiente Auditivo, 1996. Parceria: EMEDA – Escola Municipal de Educação para Deficientes Auditivos. 23 Documento: Projeto Iniciação à Capoeira, 1996. Parceria: Centro Comunitário da Criança e do Adolescente/Liberdade – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo/Região Episcopal Sé. 24 Documento: Currículo Social, 1999. 25 Documento: Sugestão Para o Projeto C.C.C.A, 1996, p.1. 26 Entende-se por lutas diretas as que pressupõem contato físico constante, tais como judô, boxe. E indiretas, quando o contato físico é ocasional tais como algumas vertentes do karatê e da capoeira. 152

político enquanto estratégia de negociação para manutenção e visibilidade da capoeira.27 Propõe sentidos múltiplos da capoeira para seus praticantes, pois a cultura reafirma sua tradição – na manutenção de seus elementos e de sua trajetória de resistência, mas o esporte, atualmente, possibilita a entrada da capoeira em outros campos de atuação, alcançando as áreas do lazer, do esporte e da educação.

Entendemos, pois, que embora a Corrente Libertadora utilize pontualmente a concepção de capoeira atrelada ao esporte, sua prática é pautada nos elementos culturais da capoeira, deslocando a rivalidade, inerente à prática esportiva, para a sociabilidade a partir da experiência cultural e da construção de vínculos afetivos como meio para efetivar seus objetivos.

O que estamos propondo pensar sobre esses caminhos abertos através das parcerias da Associação Cultural Corrente Libertadora com a sociedade civil organizada, não é um desdobramento natural e inevitável de sua atuação, mas antes, a opção política de dar visibilidade as demandas sociais com as quais se deparavam em sua prática cultural. Uma opção de se reafirmar como sujeitos, protagonistas de transformações sociais e marcar a cultura – a capoeira – como estratégia de resistência.

Podemos identificar que as parcerias com a sociedade civil não estavam relacionadas apenas com a manutenção e ampliação do trabalho da Associação, mas também, com afinidades políticas, sociais, culturais e pedagógicas.

A parceria com o Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual – GTPOS, iniciada em 1997,28 agrega os elementos acima citados. Assim como a Associação Cultural Corrente Libertadora, o GTPOS buscava caminhos para dar conta das especificidades do público adolescente, em particular, das questões da sexualidade em um contexto de alta vulnerabilidade desse público ao contágio das DST/AIDS.

27 Para compreender a atuação dos capoeiras no século XIX, ver: SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Negregada Instituição – Os Capoeiras na Corte Imperial (1850-1890). Rio de Janeiro: ACCESS, 1999; A Capoeira Escrava e Outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: UNICAMP, 2002. E no século XX, ver: REIS, Letícia Vidor de Sousa. O Mundo de Pernas para o Ar – A Capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 2000. 28 A parceria com o GTPOS ocorreu inicialmente através de um curso oferecido por eles para formação de educadores na área de sexualidade no inicio de 1997. Nesse período, estando trabalhando no Enturmando Circo Escola Grajaú, com capoeira e atendendo especificamente adolescentes e majoritariamente meninos, busquei uma formação em sexualidade para melhor tratar dessa questão com os alunos. A partir desse contato, passei a trabalhar voluntariamente com Elisabeth Gonçalves no Trance Essa Rede e viabilizei o contato entre o Trance e a Corrente Libertadora. 153

Em 1996, dois psicólogos integrantes do GTPOS Elisabeth Gonçalves e Ricardo de Castro e Silva gestaram o Projeto Trance Essa Rede com o intuito de produzir uma metodologia de trabalho que pudesse instrumentalizar educadores e adolescentes para lidar com as questões inerentes à sexualidade no universo adolescente. Elisabeth Gonçalves nos dá as diretrizes desse trabalho:

Este é o Projeto TRANCE ESSA REDE, financiado pelo Ministério da Saúde e coordenado pelo GTPOS... visa a construção de uma rede de ações educativas, desenvolvidas por adolescentes multiplicadores, na área da sexualidade e prevenção das DST/AIDS. 29

E nos remete a possíveis aproximações com a Associação concernente aos fundamentos metodológicos e pedagógicos,

Os adolescentes se encontram com adolescentes para conversar sobre vida, prazeres, medos, coragem, corpo, sexualidade... Contam o que sabem. Discutem o que não sabem. Pensam, trocam ideias, expressam dúvidas e sentimentos relacionados à vivência da sexualidade. Aprendem uns com os outros. Chegam de diferentes regiões da cidade, vindos de diversos grupos e segmentos sociais. Trabalham juntos.... Esta experiência tem estimulado espaços de debate e de convivência, promovendo a atuação dos jovens como sujeitos capazes de intervir e transformar a realidade em que vivem. Reconhecem a importância da promoção da saúde e a prevenção da AIDS como direito constitutivo da cidadania.30

O Trance Essa Rede, projeto pelo qual o vínculo com a Associação Cultural Corrente Libertadora se fortaleceu, resultou em uma parceria – até o momento – contínua de troca de conhecimento, de elaboração conjunta de projetos, em supervisões técnicas e no enfrentamento de dificuldades. Vemos na narrativa de Elisabeth Gonçalves a sexualidade não apenas relacionada à prevenção, mas à constituição plena do adolescente enquanto sujeito de direito: responsável por si, consciente do outro e participante ativo da realidade social a qual pertence.

A prevenção as DST/AIDS para o Trance Essa Rede e a capoeira para a Corrente Libertadora são instrumentos que permitem criar um campo de discussão, reflexão e ação social e política, pautado na garantia de direitos. São instrumentos de intervenção que utilizam a ludicidade e procuram desenvolver uma linguagem própria para propiciar o encontro: a convivência com a diferença.

29GONÇALVES, Elisabeth Maria vieira. Adolescência e Vulnerabilidade. Revista Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, p.1, 2000. 30 Idem. 154

Em ambos os trabalhos, as entidades trazem consigo pressupostos como respeito à história e limite do outro, e um sentido de sociabilização que exclui a hierarquização tradicional dos papéis sociais comumente aceitos. A contribuição de todos é necessária nessa perspectiva, e o saber técnico e especializado atua como mediador do conhecimento que se quer compartilhado.

As parcerias tornaram-se gradativamente em instrumento de ação, porque através delas, a Associação podia dar continuidade à prática cultural da capoeira, se instrumentalizar tecnicamente para atender às demandas sociais de vários bairros da região e viabilizar a profissionalização dos seus membros – formação e rendimentos financeiros. Construindo uma trajetória de trabalho que se justificava, não através de um discurso formal, mas pautado na experiência adquirida no fazer cultural e político de seus integrantes.

Construir parcerias levando em conta afinidades e trajetória política parece-nos estar relacionado com um sentido amplo de se fazer sujeito político, pontuando diferenças e propondo vertentes diversas de atuação político-cultural. As parcerias da Associação Cultural Corrente Libertadora com a sociedade civil organizada – através de projetos e planos de aula de capoeira na década de 1990 – fez parte de um movimento maior de rearticulação política de vários setores da sociedade brasileira nesse período de luta para a consolidação da democracia no Brasil.

Essas parcerias expressam, de certa forma, o movimento pelo qual a sociedade civil construiu circuitos alternativos de trabalhos, não obstante, totalmente integrados às demandas sociais atuais, demonstram, na perspectiva histórica e de constituição da memória, a necessidade de grupos se situarem em processos que desestabilizam modos de ser e viver, ao mesmo tempo em que vêem neles oportunidades de firmar e reafirmar presenças, como nos indica Yara Aun Khoury no artigo Muitas Memórias, Outras Histórias: Cultura e o Sujeito da História.31

Foi essa experiência prática que, a nosso ver, contribuiu para que a Associação Cultural Corrente Libertadora caminhasse no sentido de priorizar o atendimento a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social; a aproximar-se cada vez mais dos setores da sociedade que atuavam nesse segmento e a definição do compromisso

31 KHOURY, Yara Aun. Muitas Memórias, Outras Histórias: Cultura e o Sujeito da História. In: Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho Dágua, 2004. 155

político em garantir a gratuidade do atendimento e a prática cultural da capoeira a seus alunos.

Isso exigiu dos fundadores e colaboradores da Associação desenvolver a capacidade de produzir planos de trabalho, projetos institucionais e negociar com diversificadas tendências políticas nas áreas da cultura, esporte, educação e saúde, não apenas com a sociedade civil organizada, como vimos, mas também com o Poder Público.

3.2 – Das Parcerias com o Poder Público

As parcerias com o Poder Público32 ocorreram paralelamente aos trabalhos desenvolvidos em parcerias com a sociedade civil organizada e muitas vezes se entrecruzavam, isso porque, obedeceu a um movimento histórico, no qual o esforço pessoal dos membros da Associação convergiu com conjuntura política de então.

Com a vitória eleitoral de Luiza Erundina na prefeitura (1988) e o processo de reordenação das forças políticas advindas dos movimentos sociais do período anterior, a Corrente Libertadora pôde atuar ativamente em espaços públicos – centro esportivo, escolas, casas de cultura – com capoeira, contando com os parceiros das lutas sociais da região de Santo Amaro, que nessa conjuntura participavam do governo através de conselhos, secretarias e câmera municipal.

Nesse sentido, a relação da Corrente Libertadora com os Movimentos Sociais das décadas de 1970 e 1980, principalmente com lideranças do Movimento de Moradia e com as lideranças populares ligadas ao Partido dos Trabalhadores foi determinante para a entrada da Associação nos diversos espaços da prefeitura:

por um lado foi uma coisa importante, porque foi o governo da Erundina e foi no início do projeto de se criar as casas de cultura, que até então, a cidade de São Paulo não tinha casa de cultura. Isso eu acho que o governo da Erundina foi um dos que conseguiu fazer isso a duras penas, porque os vereadores não queriam... uma das primeiras casas de cultura a ser implantada foi a de Interlagos e que, antes disso, tinha um salão que ainda não era casa de cultura, que era usado como vestiário dos guardas municipais, que o administrador regional ao saber que a Corrente precisava de um espaço e era uma pessoa que conhecia profundamente o início da Corrente, que era o Leonídas Tatto, ele

32Estamos chamando de Poder Público, setores do Estado (âmbito federal, estadual e municipal) com outorga para propor políticas de convênios com a sociedade civil organizadsa através programas sociais, mediante mecanismos públicos com editais e audiências. Ministérios e secretarias são os principais setores encubidos dessas políticas. 156

foi comigo lá e a gente olhou o salão e ele falou assim: Vamos trazer o pessoal pra qui!. Isso aqui é um espaço público, a Corrente presta – isso fala dele – a Corrente presta um serviço à comunidade e o município tem que apoiar esse tipo de iniciativa. Foi quando a Corrente foi pra lá e se instalou a partir daí num espaço público e continuou prestando serviço a comunidade...33

No final da década de 1980 com o fechamento da sede da Corrente Libertadora, a solidariedade da família Tatto se deu através do vínculo pessoal e profissional, através do convite de se desenvolver o trabalho de capoeira na Casa de Cultura Interlagos em 1990.34

O contato da Associação com a família Tatto foi construído nas lutas sociais e embora não se configurasse como uma relação ideológica – partidária, compartilhavam das mesmas preocupações e do conhecimento das demandas sociais da Região de Santo Amaro, principalmente da Capela do Socorro e Parelheiros, onde tanto Corrente Libertadora quanto família Tatto35 eram lideranças populares naquele período.

Segundo Aluísio Ruscheinsky,36 havia naquele momento uma grande expectativa das lideranças e protagonistas dos Movimentos Populares, em participar ativamente do governo da prefeita Luiza Erundina (1989-1992). Esse ideal de governo democrático estava baseado na trajetória política da prefeita e em sua relação estreita com os movimentos sociais. Em seu discurso de posse, Erundina reafirma o compromisso com os movimentos sociais:

O caráter popular desse governo será dado pela inversão de prioridades, no sentido de atender aos direitos sociais da população trabalhadora... propiciar a efetiva participação nas decisões político-administrativas, além de estimular e respeitar a organização autônoma e independente dos trabalhadores, na perspectiva de construção do autêntico poder popular. 37

Não nos cabe nesse momento fazer uma análise, nem avaliação do governo de Luiza Erundina, mas nos cabe talvez, uma reflexão a propósito das afinidades da proposta de governo da prefeita com a atuação da Associação. Nesse sentido, as propostas de políticas

33 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 34 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio: 09.10.09 e Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08. 35 A família Tatto- Arselino Tatto, Jilmar Tatto, Ênio Tatto e Leônidas Tatto - conta de uma intensa participação nas lutas política na zona sul de São Paulo. Na década de 70 conhece os fundadores da Corrente Libertadora como moradores do mesmo bairro, mais tarde já envolvidos nas lutas defendidas pelas Comunidades Eclesiais de Base, Movimento de Moradia e Sindical, se aproximam do ponto de vista das preocupações político-sociais. 36RUSCHEINSKY, Aluísio. Cidade Política Social e Participação Popular: Movimento de Moradia e Administração do PT. São Paulo: Cadernos Cedic, nº64, 1997. 37 Citado In: PATARRA, Ivo. O Governo Luiza Erundina – Cronologia de Quatro Anos de Administração do PT na Cidade de São Paulo. São Paulo: Geração Editorial, 1996, p. 34. 157 públicas da gestão em questão, o caráter participativo e autogestionário de alguns setores de sua administração – Programa de Financiamento de Mutirões, Centro de Desenvolvimento de Equipamentos Urbanos e Comunitários e Cultura - permitiu uma atuação profissional efetiva de vários grupos ligados a cultura popular na cidade.

A fundação de casas de cultura por toda periferia da cidade – defendida e implementada pela secretária da cultura, Marilena Chauí, em particular, possibilitou não apenas para Associação Cultural Corrente Libertadora, mas para muitos grupos de cultura popular, a constituição de espaços de sociabilidades e de visibilidade de seu fazer cultural.

No caso da Zona Sul de São Paulo, e especificamente no campo da capoeira, temos os exemplos do grupo Cativeiro na Casa de Cultura Jabaquara e do Grupo Espírito de Zumbi, na Casa de Cultura M’Boi Mirim, que desenvolvem seus trabalhos nesses espaços há anos, viabilizados pela implantação desse serviço. Serviços que foram de encontro com as necessidades da população, que não apenas ocuparam esses espaços como usuários, mas se apoderaram dos mesmos através da continuidade de seus trabalhos.

No caso da Corrente Libertadora, significou não apenas a continuidade de seu trabalho, mas conviver com realidades sociais múltiplas, atender um número expressivo de pessoas portadoras de necessidades diversas, garantia da gratuidade do serviço oferecido e estabelecer uma rede de comunicação entre vários serviços públicos, tendo em vista que percorreu vários desses espaços.38

A experiência direta com portadores de necessidades especiais no Centro de Convivência de Interlagos colocou o Mestre Tigrão diante dos limites de integração desses sujeitos a capoeira pautada na destreza e habilidade física. Estar naquele espaço público, entendemos que, contribuiu para a construção de um olhar diferenciado a respeito do atendimento à criança e adolescente e da própria prática da capoeira.

Como nos propõe Mestre Tigrão, um movimento novo se iniciou na Associação de inversão na percepção pedagógica: priorização do social, através da inclusão de pessoas consideradas limitadas ou inadequadas para a prática da capoeira, a partir da vivência cultural

aí é que veio o problema assim... eu comecei a mudar o método, aí é que veio o problema assim... aí veio a parte social porque era dentro da parte cultural... de vez em

38 Casa de Cultura Santo Amaro (1995-1996), Oficina Cultural Maestro Juan Serrano (1995), Centro de Convivência de Interlagos (1994-1996) Espaço Cultural Julio Guerra (2002-2003). É importante pontuar, que no que se refere a construção da metodologia de ensino, trabalhos desenvolvidos em outros espaços públicos foram constitutivos desse processo como a EMDA Anne Sullivan e CEE Joerg Bruder. 158

quando uma psicóloga subia lá em cima pra ver eu jogando capoeira e nisso calhou de um menino, um deficiente... tinha as mãozinhas tortas... aquelas massinhas, ele não fazia. Ele ficava brincando lá... aí eu falei: Oh moça, sabe como é os menininhos. Os menininhos pula... têm uma habilidade. Esse menino vai vim pra cá, vai atrapalhar toda a aula... Aí me invoquei pra dar aula pra ele... Aí ele subiu e aí eu coloquei uma música lá, uma música bem lenta de angola e o menino começou a dançar do jeito certíssimo assim... no ritmo. E eu falei: Mais rápido! Como mais rápido se era angola? Então falei: Vou colocar uma música mais rápido pra ver... porque tá num ritmo diferente do meu ritmo... Fiquei bobo! Porque o menino tava no ritmo, eu não estava. Eu não estava no ritmo. Então eu comecei... minha capoeira mesmo... Eu percebi que eu tava muito fora do ritmo. Depois, eu sei que eu suei, refleti um pouco, nossa!... Eu comecei acompanhar ele e felizmente isso é muito legal, eu comecei acompanhar o menino... aí comecei a paixonar pelo menino né, a ensinar pra ele legal e assim: Não foi eu que ensinei pra ele, foi ele que veio me ensinar. Ele tinha a musicalidade na cabeça, eu não tinha ainda e não é que as pessoas fazem capoeira hoje, que não têm musicalidade. Têm musicalidade, mas assim, o conduzir, quem vai te conduzir e aí, isso ai mostrou uma maneira assim muito forte, muito forte assim, que parecia que eu não era professor, quem era o professor era ele... a minha metodologia hoje... eu não! O Tigrão, ele foi é, adaptando uma metodologia em cima da necessidade de cada um...39

Essa extensa narrativa se justifica para dimensionar, do ponto de vista humano, político e cultural, o processo de construção da proposta de ensino que Mestre Tigrão passou a desenvolver a partir daí, como também para pensarmos os espaços públicos como espaços imprescindíveis para a participação democrática de vários grupos sociais.

A construção da proposta pedagógica desenvolvida pelo Mestre Tigrão se deu na prática cotidiana junto as crianças e adolescentes que atendia nos espaços públicos; sua formação como educador é marcada pelo diálogo com a realidade social na qual trabalhava, em um processo de formação com perfil auto-didata e transpassado pela disponibilidade em mudar de opinião e aprender com o outro.

O trabalho desenvolvido na Casa de Cultura Interlagos (1990-1994), assim como no Centro Educacional e Esportivo Joerg Bruder através da contratação de Eufrásio Modesto Alves, Mestre Tigrão, como funcionário da prefeitura em 1990, não chegou a se configura, entretanto, em vínculo institucional entre a Prefeitura do Município e a Associação Cultural Corrente Libertadora. Isso porque, embora o Mestre Tigrão estivesse ministrando aulas de capoeira dentro da proposta de ensino da Associação, trata-se de um contrato com a pessoa física e não com a pessoa jurídica.

Faz-se necessário pontuar essa situação de caráter trabalhista, pois esta implica na ausência de um comprometimento formal da prefeitura – da gestão Erundina e de períodos

39 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08. 159 posteriores – com a Associação no sentido de assegurar a organização e manutenção de seus trabalho através de um investimento estrutural.

Entendemos que essa relação inicial com o Poder Público ocorreu de forma indireta no sentido de contrato institucional, e se por um lado colaborou para visibilidade da capoeira desenvolvida pela Corrente Libertadora, por outro lado, não garantiu uma estabilidade estrutural como, por exemplo, a cessão de um espaço que pudesse ser configurado como sede da mesma ou o reconhecimento profissional do trabalho dos adolescentes multiplicadores juntos ao Mestre Tigrão.

Não obstante, os trabalhos desenvolvidos em parceria com a sociedade civil organizada e as experiências em espaços públicos solidificaram as ações da Associação centradas cada vez mais na área social de atendimento à crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social.

Esses processos de definição do campo de intervenção e do público-alvo podem delinear o movimento dos responsáveis pela Associação em ampliar suas parcerias, articular grupos e temas pertinentes à realidade social e em buscar também no Poder Público um canal para a viabilização dessa tendência política da Associação.

Conseguimos perceber que estar ocupando um espaço público como o CEE Joerg Bruder foi estratégico para a Associação no sentido de articular ações e contatos com outros serviços, profissionais e ONGs especializadas, que pudessem colaborar para o fortalecimento do atendimento à criança e adolescente que estava perseguindo realizar.

O CEE Joerg Bruder está situado ao lado do Terminal Santo Amaro. O Terminal é caracterizado pela alta rotatividade da população da região, mas funciona variavelmente como local de encontro, de convivência, de empreender pequenos delitos pelas crianças e adolescentes em situação de rua.

Essa população comumente se apodera dos mecanismos de funcionamento desse espaço público e o ressignifica através de sua vivência individual e coletiva. Assim, o território se faz na mediação entre o ser e estar em situação de rua, nas relações sociais estabelecidas a partir dele. O espaço público é a casa sem paredes do indivíduo nessa situação.

Muitas das relações afetivas e sociais entre esses sujeitos se dão, muitas vezes, por um viés informal, por um sistema próprio de comunicações criadas por eles, que fazem dos

160 encontros e correrias em vários cantos da cidade, momentos de conhecer e se apropriar das brechas dos serviços à eles destinados. É recorrente a circulação dos mesmos meninos pelos diversos serviços com esse perfil na cidade e é a partir desse vínculo fluido e vulnerável que os contatos e amizades se dão.40

Segundo Irene Gerassi,41 a região central de Santo Amaro, onde está localizado o CEE Joerg Bruder, configura-se em um território de múltiplas vivências urbanas cotidianas. Considerada uma micro-metrópole por sua estrutura, serviços, densidade demográfica, comércio e indústria, convive com um alto índice de violência e violação de direitos, sobretudo, no que tange as crianças e os adolescentes.

Considerando os dados da autora, na segunda metade da década de 90, o atendimento às crianças e aos adolescentes em situação de rua por serviços públicos da região era precário, contando apenas com projetos mantidos pela Cáritas Arquidiocesana – Projeto Casa da Praça – e pela Secretaria de Assistência Social, a Casa Aberta e o Posto Sul.

Nessa circunstância de cerceamento de mobilidade desse público e de opções de atividades a serem oferecidas aos mesmos, o trabalho do Ms. Tigrão no então, Centro Educacional e Esportivo Joerg Bruder, ligado a Secretaria Municipal de Esporte, tornou-se uma referência para os técnicos e profissionais envolvidos nesse tipo de atendimento.42

Vislumbrar a participar nas atividades oferecidas pelo CEE Joerg Bruder como futebol, natação, karatê e outros, esbarrou sempre na resistência institucional da direção e de profissionais do CEE a essa demanda, entretanto, os vínculos estabelecidos entre crianças, adolescentes, homens e mulheres de rua com Mestre Tigrão em trabalho desenvolvidos com a Cáritas Arquidiocesana e a Faculdade Paulista de Medicina levou os sujeitos atendidos nesses trabalhos a ocupar aquele espaço paulatinamente, apesar das resistências.43

Como nos indica Irene Gerassi, do ponto de vista dos profissionais dos serviços públicos da região de Santo Amaro preocupados com essa demanda, mediante a constatação visível da “incompletude institucional” (BAPTISTA, 2004) – isto é, da limitação do trabalho

40 Essas reflexões a respeito das crianças e adolescentes em situação de rua, foram elaboradas a a partir da minha experiência no atendimento a esse público ajudando o Ms. Tigrão no Projeto Quixote e no Joerg Bruder, bem como, no CEDECA/SA, no qual trabalhei por dois anos como educadora social. 41 GERASSI, Maria Irene. Resignificando Sujeitos: A Trajetória de Formação de Sujeitos Políticos no Fórum de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes de Santo Amaro. Dissertação de Mestrado em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2007. 42Idem. 43 Comunidade São Francisco (1996); Centro de Comunitário da Criança e do Adolescente (1997), Casa da Praça (1997) e Projeto Quixote (1998-2009), respectivamente. 161 desenvolvido isoladamente por setor de serviço, e da violação constante dos direitos previstos no ECA, ficou claro a inviabilidade de um atendimento adequado naquelas condições de cerceamento institucional, condições materiais e técnicas.

Alguns desses profissionais construíram uma rede de comunicação sobre as dificuldades e desafios desse atendimento a partir de afinidades profissionais e ideológicas que ultrapassavam “os muros institucionais” e convergiam para a construção de novos espaços públicos comprometidos com a discussão e propostas de políticas públicas.

Parte significativa desse processo de comunicação se deu no próprio CEE Joerg Bruder entre funcionários desse equipamento público. A circulação das crianças e adolescentes em situação de risco dentro do clube desencadeou a aproximação do Mestre Tigrão com outros profissionais do Centro Educacional, sobretudo, com as terapeutas ocupacionais Mercia de Abreu e Irene Gerassi.

Juntos, pautados na prática cotidiana e na vivência político-social na Redinha, elaboram e efetivaram o primeiro projeto de atendimento a esse público, em uma perspectiva dialógica e de complementaridade de serviços: o Projeto Integrar.44 Nos objetivos propostos no projeto podemos identificar a preocupação em oferecer um atendimento integral, lançando mão dos recursos de profissionais especializados dos serviços do próprio entorno:

Viabilizar a prática de um esporte: a capoeira... para indivíduos marginalizados da sociedade: deficiente físicos, auditivos, meninos e adolescentes de rua, colaborando para sua integração social...Desenvolver um trabalho sócio-educativo e terapêutico com os alunos através da atuação dos profissionais acima do Centro Educacional com recursos da comunidade: Centro de Referência DST-Aids de Santo Amaro, Unidade de Farmacodependência... Casa de Convivência – Praça Floriano Peixoto e outros.45

A capoeira se apresenta então, como a porta de entrada, o instrumento de aproximação e construção de vínculos com os indivíduos marginalizados. Especificar a natureza dos limites físicos e sociais do público a ser atendido nos parece estar atrelado às possibilidades de atuação dos serviços parceiros. Por outro lado, entendemos que reforça a capacidade pedagógica da capoeira desenvolvida pelo Mestre Tigrão em lidar com a diversidade de público e de demanda social.

44 Documento: Projeto Integrar, 1998. Parceria: Profissionais do CEE Joerg Bruder, CR Santo Amaro. 45 Idem, p.1. 162

Paralelamente ao advento do Projeto Integrar, ocorria um movimento mais amplo de comunicação baseada no compromisso desses profissionais, com nome e endereço profissional certo: Maria Irene Gerassi (terapeuta ocupacional - CEE Joerg Bruder), Marcos Veltri (CR/Santo Amaro) Evandro Teodoro Braga e Mara Ramos (respectivamente, psicólogo e assistente social, Projeto Casa da Praça), Mestre Tigrão (CEE Joerg Bruder), Laura Mª Carvalho (Unidade Farcamacodependência de Santo Amaro).

Esse movimento se constituiu na formação da Redinha – espaço interinstitucional de discussão sobre os casos atendidos por esses profissionais – que compartilhamos aqui, os objetivos esperados por esse grupo através das palavras de Irene Gerassi:

alcançar a otimização dos serviços e suprir as faltas de uma rede mais ampla, a redinha propôs rever o papel atribuído às instituições e aos técnicos, quanto aos encaminhamentos... atendimentos interinstitucionais, criando com isso alternativas aos atendimentos individuais e familiares e, conseguindo respostas positivas às carências existentes tanto nas instituições como na vida das crianças e jovens que eram atendidos. 46

A Associação Cultural Corrente Libertadora atuou diretamente nesse processo de discussão, atendimento e encaminhamentos das crianças e adolescentes proporcionados pela Redinha. Nesse espaço, o grupo de profissionais que o integrava, gestou o Centro de Convivência e Cooperativa de Santo Amaro – CECCO/Santo Amaro e articulou o Fórum de Defesa de Direitos de Criança e Adolescente de Santo Amaro – FDCA. 47

O que nos parece pertinente notar, é que dada essa experiência advinda da participação política nos espaços acima citados e do cotidiano vivenciado a partir da prática da capoeira junto a esse público, a Associação ampliou os contatos e suas parcerias com técnicos de diversas áreas atuantes no serviço público em programas de assistência social, saúde, da cultura e esporte.

46 GERASSI, Maria Irene. Op. cit., p.37. 47 A Associação Cultural Corrente Libertadora participou desde o início da Redinha em 1997. Os encontros da Redinha ocorriam no CEE Joerg Bruder. Para saber mais sobre o envolvimento da Associação na Redinha e no Fórum DCA de Santo Amaro, Ver: GERASSI, Maria Irene. Op. Cit. Sobre a participação da Associação na Executiva do Fórum DCA foram analisados em particular os documentos: Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09 e Entrevista VIII: Michel Vanderlei Coutinho da Silva, 08.06.10.

163

No final da década de 1990 os contatos, as lutas políticas e trabalhos realizados entre parte desse grupo de profissionais que integravam a Redinha e a Associação Cultural Corrente Libertadora desencadearam a elaboração de projetos institucionais em parceria com o Poder Público.

Aqui estamos nomeando Poder Público todos os projetos em parceria com o Governo Federal através do Ministério da Saúde; com o Governo Estadual através da Secretaria de Saúde e com a Prefeitura do Município de São Paulo através das Secretarias Municipais de Assistência Social, Cultura, Educação, Esporte e Lazer.

As parcerias com o Poder Público fazem parte de um movimento político que compreende a participação maior da sociedade nas políticas públicas, amparada na Constituição de 1988. Nos anos 90, com a emergência das ONGs, iniciou-se um processo gradativo de tercerização de serviços e fomento para projetos a serem desenvolvidos pela sociedade civil organizada.

Nesse movimento intrínseco ao processo de redemocratização do país, ganhou força a ideia de descentralização política, como forma de afastar qualquer aspecto de autoritarismo e centralização por parte do Estado. A descentralização também vislumbrava a modernização e capacidade gerencial das políticas e serviços sociais, bem como, alimentava o ideal de participação efetiva da sociedade (organizada ou não) na gestão pública. Congregava anseios da sociedade civil e estava comtemplada como uma proposta para gestão para o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

De forma suscinta, a descentralização consistia na transferência de decisões, funções e ações federais para as instâncias estaduais e municipais. No que se refere à área social, que nos toca diretamente, seria a transferência de responsabilidades e funções estatais, para organizações que compõem o Terceiro Setor e que celebram com o Estado contratos de gestão: parcerias.48

Através de editais concernentes aos programas políticos da gestão, as instâncias do Governo Federal, Estadual ou Municipal lançavam os modelos de propostas, exigência

48 A estratégia de descentralização estava inserida em uma discussão maior sobre reforma administrativa que começou ser a efetivamente implementada em âmbito federal através do I Plano Diretor em 1995 na gestão do Ministro Bresser Pereira. Ver: DURIGUETO, Maria Lúcia; SILVA, Isis; DEBÓRTOLI, Débora. Descentralização Administrativa, Políticas Públicas e Participação Popular. In: Serviço Social e Sociedade nº 96. São Paulo: Cortez, 2008.

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documental da pessoa jurídica e o financiamento previsto. As ONGs e entidades sociais interessadas nas propostas e financiamentos deveriam, pois, primeiro apoderar-se dessas informações e depois elaborar o projeto indo de encontro com o padrão proposto pelo Poder Público.

A situação descrita acima nos coloca no campo das forças políticas, no qual a Associação Cultural Corrente Libertadora precisaria necessariamente negociar com as tendências políticas de cada gestão para ter a capoeira reconhecida como um elemento de intervenção comportamental, como exigia a maioria dos projetos pleiteados pela mesma.

Se adequar a categoria intervenção comportamental disponibilizada pelo Poder Público para obter o financiamento dos projetos, também exigiu da Associação um exercício de argumentação que legitimasse a aprovação. Há, pois, um movimento de abertura às manifestações culturais por parte do Poder Público, entretanto essa abertura está condicionada por critérios, normas e padrões.

a gente não tem Sede e outra dificuldade é os projetos né, eles faz os projetos do jeito deles, por exemplo, a Corrente não pode fazer um projeto. Todos os projetos que a Corrente faz, pra trabalhar a questão do menino em situação de risco ou de trabalhar a família e fazer uma cooperativa na própria favela, você entrar na favela e fazer um negócio legal com família de profissão, se você falar isso, nossa, os caras: não, isso não funciona! Só funciona assim, eles faz o projeto, de trás da mesa, assim... bota o Cria, o Creca, o não sei o que , que vai dar certo! Tira os meninos da rua e bota na calçada, que vai dar certo, então de trás da mesa, faz um projeto e é maravilhoso! E aí, não dá para as ONGs; as ONGs mal-estruturadas né, as ONGs mal-estruturadas as ONGs sem fins lucrativos, aí quando tem um lucro, um lucro é que ela rouba, quando ela não tem lucro é por que é sem fim lucrativo, ela não tem fins lucrativo, mas quando eles vão dar um projeto pra gente, fala: você tem que ter contra-partida? Mas se é sem fins lucrativos, cê não tem que ter nada, mas na hora do projeto, cê tem que ter...uma sede, cê tem que ter não sei quantos computador, você tem que ter...água, luz, você tem que ter toda essa infra-estrutura, mas é sem fim, não é lucro, mas você tem que ter isso.49

Nessa conjuntura, a negociação é uma premissa, no sentido que a mesma não se transforme em um mecanismo de cooptação de expressões, manifestações e fazeres da cultura popular, limitando a autonomia e as especificidades dos trabalhos de seus protagonistas.

Há uma criticidade inerente à narrativa de Mestre Tigrão, que nos indica que os membros da Associação conheciam os mecanismos, tendências e os limites das políticas públicas no processo de parceira e convênios e que trabalharam no sentido de intervir

49 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08. 165

através das brechas dessas propostas. Também nos aponta a natureza das dificuldades estruturais da Associação no desafio de ampliar seu trabalho.

Isso posto, tentemos retomar a discussão acerca da experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora em entrar nesse campo, onde essas forças políticas se tensionam. Acreditamos que o primeiro aspecto a ser problematizado refere-se ao acesso as informações necessárias a respeito das políticas públicas em vigor e os programas sociais deliberados pelo Poder Público.

Embora a comunicação entre o Estado e a sociedade seja um dos pressupostos do modelo republicano de Estado e uma das garantias para a efetivação do sistema democrático (HABERMAS,2002), os entraves burocráticos e administrativos dificultam esse contato.

A exigência de documentos diversos e o acesso a informações necessárias para a elaboração e encaminhamento dos projetos parecem-nos um desses entraves.50 Também não podemos perder de vista a competitividade entre as ONGs para a contemplação dos financiamentos, como nos sugeriu Mestre Tigrão anteriormente.

No entanto, mesmo considerando a precariedade estrutural e financeira da Entidade, os encaminhamentos e o desenvolvimento dos projetos da Associação, principalmente no período de 1999 e 2004, se deram de maneira intensa, apesar desses entraves.

Podemos pensar que a conquista do se fazer sujeito político capaz de aceitar, propor e negociar ideias e práticas, nesse caso, se constituiu através da experiência de viver cotidianamente da capoeira norteada em encontrar respostas as demandas sociais com as quais conviviam.

A capoeira foi a mediadora desse processo de construção de estratégias de ação. Foi essencialmente a prática de capoeira desenvolvida pela Corrente Libertadora, a persistência em manter-se atrelado à comunidade, que deu aos protagonistas desse processo – Mestres Tigrão, Mestre Eufraudísio, alunos e colaboradores – as condições de estabelecer contatos com profissionais especializados e gerir novos empreendimentos.

50 Esses entraves, segundo Michel Vanderlei Coutinho da Silva, referem-se principalmente à documentação, contra-partida da Entidade, aos impostos e exigência profissional com nível universitário, entre outros. In: Entrevista VIII: Michel Vanderlei Coutinho da Silva, 08.06.10. 166

O Mestre Eufraudísio nos dá conta desse processo, no qual a capoeira se encontra com os objetivos sócio-políticos: os sonhos, visão de mundo e as escolhas de atuação da Associação:

A capoeira, por exemplo, da Corrente Libertadora, ela é uma das de São Paulo, se a gente for ver o histórico de todas elas, ela é a mais criativa. Ela esteve em mais, em vários canais da sociedade. Não por ser um jogo de capoeira, mas por ser um grupo de pessoas que utilizam a capoeira como formação. Então, tanto é, que por exemplo, eu não tive notícia até hoje, que teve algum grupo de capoeira que foi mantenedor de um CEDECA, por que que foi a capoeira? A Corrente Libertadora? Exatamente por sua história, seu empenho sócio-cultural. Então, quando eu me envolvi com isso, me envolvi através de acreditar que uma sociedade poderia ser diferente, eu me envolvi, eu utilizei o movimento popular dentro da capoeira e a capoeira dentro do movimento popular, exatamente por acreditar que é uma expressão popular.51

A concepção de capoeira apresentada pelo Mestre Eufraudísio, é a concepção que norteia a prática cultural e a busca de parcerias por meio de projetos. Uma capoeira que pressupõe uma interação com vários segmentos sociais e uma formação integral do indivíduo, do cidadão. Nessa concepção, a formação é um caminhar que não se faz isoladamente.

A participação de técnicos especializados nos projetos desenvolvidos pela Associação não era uma novidade, haja visto, a diversidade de lugares e públicos atendidos pela mesma. Essa condição exigiu – até para um acompanhamento mais ético e socialmente coerente dos alunos e família dos mesmos – do auxílio desses profissionais. Profissionais, que em alguns casos, tornaram-se colaboradores permanentes da Associação, investindo seu tempo voluntariamente em várias frentes de trabalho, como na gestão de projetos, levantamento de fundos, elaboração de eventos.

Entretanto, nessa nova conjuntura, conhecer, compartilhar ideias e projetos com parceiros, colaboradores e profissionais de várias áreas, colaborou de forma significativa para que a Associação pudesse alçar objetivos mais abrangentes. Nesse sentido, a participação da Associação na Redinha e no Fórum de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes de Santo Amaro – FDCA é um dado importante para compreendermos a capacidade de articulação, mediação e apoderamento dos mecanismos institucionais do Estado por parte dos membros da Associação.

No processo de construção de espaços públicos alternativos como a Redinha e o FDCA, na interação entre os sujeitos, pautada na experiência da pluralidade, pôde-se

51 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09. 167

vislumbrar a possibilidade da construção – talvez não de um mundo comum, como sugere Vera da Silva Telles – mas de objetivos e metas em comum, centradas nas questões da infância e juventude. O espaço público nesse sentido é o espaço do aparecimento e da visibilidade e por isso, esclarece Vera Telles

que o espaço público se determina como espaço político que têm por efeito instituir uma cena, na qual o conflito se apresenta aos olhos de todos... como necessário, irredutível e legítimo.52

Embora a autora esteja se referindo a um processo mais amplo das relações de tensão e conflitos geradas pelo sistema capitalista entre os grupos sociais, trouxemos essa reflexão para uma experiência mais localizada, para compreendermos melhor os sentidos possíveis desses espaços.

Neles, as informações circulavam através dos contatos entre os sujeitos que integravam as discussões, em um sistema de troca e compartilhar de informações, possível pelo diversificado universo profissional, já que envolvia profissionais advindos de áreas específicas, mas que dentro dos objetivos do grupo, se faziam complementares.

Através desses espaços a Associação Cultural Corrente Libertadora construiu vínculo com um grupo desses profissionais que imprimiram suas ideias e experiências nos projetos elaborados a partir dali. Esse grupo compunha-se de colaboradores ligados à saúde – Marcos Veltri, educador em Saúde Pública – Centro de Referência em DST/AIDS; Irene Gerassi, terapeuta ocupacional e coordenadora – Centro de Convivência e Cooperativa de Santo Amaro/CECCO; Laura Maria J. de Carvalho – Centro de Atenção Psicossocial/CAPS - Álcool e Droga e à Assistência Social e Evandro Braga Teodoro, psicólogo e coordenador – Projeto Casa da Praça.

Durante o período de 1999 a 2004, esses profissionais trabalharam em conjunto com a Associação na elaboração, gestão e execução de projetos financiados pelo Poder Público. Consideramos que a experiência profissional desses sujeitos, o lócus de exercício de suas atividades e as preocupações e objetivos que os moviam enquanto grupo, favoreceu o desenvolvimento de estratégias para efetivação dos projetos.

52 TELLES, Vera da Silva. Direitos Sociais, Afinal do que se Trata?. UFMG: Belo Horizonte, 1999. 168

Nesse sentido, a busca por informações, a atenção aos editais e a articulação desses sujeitos para proporcionar encontros, reuniões para elaboração dos projetos, indicam que eles construíram caminhos autônomos de se fazerem visíveis politicamente e de explorar outras possibilidades de atuação político-cultural.

Não podemos perder de vista a Carta Constitucional de 1988, as Leis de Diretrizes e Base – LDB, Estatuto da Criança e do Adolescente ECA e Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS. A influência dessa legislação, está intimamente relacionada a uma perspectiva de construção da cidadania, na qual as crianças e adolescentes eram os atores, e ideias como autonomia, protagonismo e garantia de direitos assumem um sentido mais amplo, dando vazão a uma gama substancial de políticas públicas e serviços como os Centro de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescentes – CEDECAs, Conselhos Tutelares, Programa de Liberdade Assistida, Fóruns, entre outros.53

Essa legislação foi apropriada pela Associação e seus colaboradores em um movimento ativo de diálogo concernente aos princípios que defendiam e os previstos na legislação. Na feitura dos projetos, esses princípios convergentes respaldam, do ponto de vista legal, a concepção e prática de atendimento que empreendiam.

Há, pois, na elaboração dos projetos uma intersecção entre a especificidade do público atendido, os princípios que norteiam a prática e a legislação que a respalda. No Projeto Identidade Cultural, Nós Fazemos a Diferença! em parceria com a Secretaria Municipal da Cultura da Cidade de São Paulo, podemos perceber essa intenção do grupo gestor.

As atividades desenvolvidas pela Entidade – Corrente Libertadora – podem ser classificadas como sócio-culturais, tendo em vista o seu caráter de inclusão daqueles segmentos considerados socialmente excluídos, marginalizados ou discriminados, seja por sua condição social, educacional étnica, orientação sexual, portadores de necessidades especiais...54

As atividades da Associação são sócio-culturais por preverem a inclusão social desses segmentos através da capoeira. A inclusão desse público está baseado na garantia de direitos, na integralidade de proteção, principalmente à criança e adolescente. A capacidade

53 Sobre políticas públicas voltadas para criança, adolescentes e jovens, ver: WERTHEIN, Jorge. Políticas Públicas De/Para /Com Juventudes. Brasília: UNESCO, 2004. 54 Documento: Projeto Identidade Cultural, Nós Fazemos a Diferença! 2003. Parceria: Secretaria Municipal da Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo, p. 7. 169

de inclusão através dessa prática cultural se faz pautada em uma proposta pedagógica e de integração diferenciada...

buscando entender e respeitar as particularidades de cada integrante... tem como pressuposto da prática pedagógica a democratização do conhecimento...55

Os princípios metodológicos no Projeto iniciam-se com um artigo do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, a profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Art. 4º da Lei Federal nº 8.069 – ECA.56

A concepção de trabalho delineado no Projeto coloca a Associação, seus responsáveis, na posição de sujeito da história, pois cumprem o seu papel social na construção da cidadania através da intervenção sócio-educativa que propunha.

Seguindo os rastros do diálogo restabelecido entre legislação e os projetos desenvolvidos pela Associação em parceria com o Poder Público, tentaremos nos ater nesse momento aos conceitos que parecem nortear os trabalhos propostos: autonomia, protagonismo e cidadania.

Optamos metodologicamente em utilizar para esse propósito, os projetos que não apenas tinham os adolescentes como público alvo, mas nos quais, eles eram os protagonistas da ação. Assim, trabalharemos com o Ginga Pela Vida, (1999), Ginga e Arte Pela Vida (2000), Ginga Pela Vida (2003).57 O tema que norteia os projetos em questão é a sexualidade, sobretudo, as questões referentes à prevenção das DST/AIDS e gravidez indesejada, permeada sempre pela garantia de direitos, entretanto, o instrumento que justifica e articula as ações do trabalho é a capoeira.

Os projetos têm vários aspectos em comum, que vão desde o tema, público alvo até a área geográfica de abrangência, mas nos concentraremos, sobretudo, nos aspectos em que os

55 Idem, p.10. 56 Ibidem, p.10. 57 Projetos financiados respectivamente por: Ministério da Saúde – Secretaria de Políticas de Saúde/Coordenação Nacional de DST/AIDS, Unidade de Articulação com ONG; Ministério da Saúde – Secretaria de Políticas de Saúde/Coordenação Nacional de DST/AIDS em parceria com UNESCO e Secretaria de Estado da Saúde – Coordenação dos Institutos de Pesquisa/Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS. 170

conceitos apresentados, são nessas experiências, intrínsecos: a concepção de capoeira adotada e a metodologia desenvolvida.

A Corrente Libertadora e seus membros trabalham há mais de dez anos com adolescentes em situação de risco pessoal e social na Região Sul da cidade de São Paulo. Tem como estratégia o ensino da capoeira e da utilização de sua simbologia como interpretação da realidade social. Forma multiplicadores para o desenvolvimento desta proposta de trabalho em comunidade.58

A proposta apresentada não demonstra, no primeiro momento, a necessidade em categorizar a capoeira como esporte ou cultura, mas sim, de pontuar a percepção utilizada pela Associação Cultural Corrente Libertadora da capoeira como uma estratégia de intervenção social. Do ponto de vista argumentativo, recorre-se à simbologia da capoeira como interpretação da realidade social.

Como estratégia de intervenção social, a capoeira se apóia em características presentes em várias manifestações de culturas populares do Brasil. A vivacidade expressa na interação de riqueza de cores, a multiplicidade de sons, variedade de gestos e a capacidade em compartilhar um saber – muitas vezes de grupos restritos – no momento da festa, com o diferente, o estranho, o passageiro.

Longe de uma idealização cristalizada dessas manifestações da culturais, podemos verificar qualitativa e quantitativamente, a força de mobilização dessas práticas na experiência de muitos projetos sócio-culturais na cidade de São Paulo. Sambas de roda, maracatus, congadas, cirandas. Manifestações que agregam pessoas, criam sociabilidades e reinventam tradições no cotidiano do espaço urbano, espaço este reapropriado através de significados atribuídos pelos sujeitos que se apoderam dessas culturas.59

A capoeira comunga desses atributos, possui um potencial agregador e multifacetado em possibilidades de desenvolvimento humano (físico, artístico, cognitivo, afetivo, cultural, etc) e quando a sensibilização do interessado coincide ou faz coincidir, com a oportunidade da prática concreta, os significados a ela atributos podem tomar proporções que vão além de uma atividade ligada à cultura, à educação, ao esporte ou à qualquer outro campo.

58 Documento: Projeto Ginga Pela Vida, 1999, p.07. 59 GASPAR, AKERMAN; GARIBE, Ricardo; Marcos e Roberto. Espaço Urbano e Inclusão Social – A Gestão Pública na Cidade de São Paulo (2001-2004). Editora Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 2006. 171

a capoeira pra mim, ela é minha vida, independente do caminho que eu segui. A capoeira é minha vida, a capoeira corre no meu sangue, entendeu? Ela é minha vida. A capoeira é o coração que bate. E o que faz o coração bater. Sabe, eu posso estar afastado, eu posso me afastar, vir a me afastar, eu posso perder as pernas, mas é a capoeira que faz o coração bater. Quando você ouve, quando você conversa, você se empolga, você se sente vivo falando de capoeira, praticando capoeira, tocando berimbau. É isso aí.60

O depoimento de Emerson Coutinho nos permite, em certa medida, dimensionar a importância vital que a capoeira ocupou em sua vida. Atrelar-se a uma prática cultural com esse teor de intensidade, pressupõe um processo de sedução, que no primeiro momento pode ocorrer através de identificação, beleza, curiosidade, mas que somente perdura, se essa atividade possibilitar a construção de vínculos afetivos e passar a constituir significados na visão de mundo desse sujeito.

Ter a capoeira como estratégia de intervenção atrelando-a a utilização de sua simbologia como leitura da realidade social, nos coloca diante dos elementos culturais que compõem a capoeira. Podemos identificar que os gestores dos projetos aludem a simbologia da capoeira superficialmente, apenas indicando alguns elementos que a integram como os instrumentos musicais (berimbau, atabaque e pandeiro), a roda de capoeira e a hierarquia; tentando estabelecer uma relação destes, com sentimentos inerentes à sexualidade, tais como respeito, segurança, medo, auto-estima, entre outros.

Pensamos que o tratamento dado à simbologia da capoeira deriva sobremaneira das condições e necessidades da elaboração dos projetos. O processo de elaboração dos projetos e algumas características da Associação enquanto entidade social de caráter popular nos coloca diante da complexidade da parceria com o Poder Público.

A Associação Cultural Corrente Libertadora é uma entidade social sem fins lucrativos e sem investimentos da iniciativa privada. Embora, no período estudado tenha se superado, no sentido de se fazer e se fazer ver como profissional no atendimento as crianças e adolescentes esbarrou sempre nos limites de sua estrutura financeira, administrativa e de recursos humanos.

Tais limites foram driblados constantemente através de algumas estratégias já mencionadas nesse texto, entretanto, alguns limites não foram, nesse contexto, superados. O primeiro a que nos propomos colocar em evidência é a condição de elaboração dos projetos.

60 Entrevista III - Emerson Coutinho da Silva, 26.01.09.

172

Sabemos pela análise das fontes que esses projetos obedeciam a uma padronização, tanto dos critérios e informações a ser preenchidas, quanto de diagramação.

Itens como o objetivo geral, sumário executivo, descrição da situação-problema e população-alvo, antecedentes do projeto, entre outros (nos quais, deveriam estar descrito informações importantes como a trajetória social da Associação e sua metodologia de trabalho), estavam restrito por retângulos de tamanhos que variavam e eram acompanhados pela indicação: A descrição do sumário não deve ultrapassar o espaço indicado nesta página.61

O padrão dos projetos restringia certamente um tratamento mais pormenorizado da concepção, metodologia de trabalho e proposta pedagógica da Associação Cultural Corrente Libertadora, mas a problemática parece situar-se na construção da redação do texto.

A redação se dava pós um processo coletivo de discussão entre membros da Associação – nesse período e para esse propósito, centrava-se na figura do Mestre Tigrão – e dos colaboradores.

A participação do Mestre Tigrão estava pautada em sua prática, na experiência cotidiana da capoeira e do atendimento as crianças e adolescentes; impregnada de referenciais culturais e políticas construído em sua trajetória como sujeito social. Essa participação, entretanto, era marcada pela oralidade, tão particular dos movimentos e cultura popular. O conhecimento que se constrói e se compartilha através da palavra e do exemplo.

A produção escrita dos projetos, pois, não estava sob o controle direto dos fundadores da Associação – Ms. Tigrão, Ms. Eufraudísio e Magnólia. Embora fosse compartilhado o conteúdo dos projetos e dos relatórios entre todos os gestores, ainda sim, o produto final – o projeto – encaminhado para o Poder Público, era finalizado pelos colaboradores: profissionais especializados, com formação acadêmica e experiência no atendimento à criança e adolescentes.

Assim, conceitualizações como “filosofia de resistência cultural” ou ainda “filosofia de defesa e valorização da vida” passam a compor a justificativa dos projetos. Os aspectos referentes a capoeira, entendemos, foram subordinados a expressões que remontam a um

61 In: Documento: Projeto Ginga Pela Vida, 1999; Documento: Projeto Ginga e Arte Pela Vida, 2000; Documento: Relatório de Progresso - Projeto Ginga e Arte Pela Vida, 2002 e Documento: Projeto Livre da Aids, 2003. 173 passado histórico idealizado e que nesse contexto, funcionam como palavras-chave para aceitação, pois vão de encontro com as reivindicações e políticas públicas no que tange as questões raciais no Brasil.62

A resistência cultural da capoeira é notória, se considerarmos os conflitos, restrições, perseguições que capoeiristas de todo Brasil enfrentaram para sua manutenção em períodos diferentes de nossa história. Mas a resistência se deu e se mantém através da experiência e não de uma matriz ideológica que desencadeia uma prática. No caso da Corrente Libertadora, essa prática cultural tornou-se meio e não o fim; a resistência ampliou e agregou outros objetivos e significados, que não somente sua manutenção.

Se eu quiser trabalhar essa questão da capoeiragem, de outros conceitos, não de etnia, mas de outras coisas dentro da capoeira, eu largava a Corrente, montava uma academia de capoeira e ia viver de capoeira. Enquanto eu tiver na Corrente, trabalhando a parte cultural, a parte social, eu vou trabalhar isso. A minha metodologia é isso: é trabalhar com o menino, é, pra ser cidadão, comum como qualquer outro. Pode ser capoeirista amanhã? Pode. Ele pode ser um professor de capoeira? Pode. Ele pode ser um professor de Educação Física? Pode. Ela pode ser uma professora de História? Pode. E isso é a cidadania, é trabalhar a pessoa. Se alguém tá criticando que eu tenho que trabalhar só isso, a capoeiragem, isso aí, é só montar uma academia de capoeira, só capoeira, vou ensinar capoeira. Eu não sei ainda a capoeira, eu tô aprendendo ainda, então, até eu aprender... o dia que eu aprender capoeira de verdade, aí sim, eu vou montar uma academia, só capoeira, mas por enquanto eu tô trabalhando essa parte de, não é que eu acho, eu tenho certeza, que a parte melhor do mundo é a gente trabalhar o cidadão ou cidadã.63

O depoimento do Mestre Tigrão nos traz uma variedade de significados da prática de capoeira, que dificilmente seria aprendido na escrita de um texto formal, elaborado por sujeitos que não têm a capoeira como uma atividade do seu cotidiano. O depoimento reforça aspectos concernentes aos elementos da capoeira presentes nos projetos, principalmente a questão da cidadania, mas esses elementos deslocados da prática social restringem-se ao universo da capoeiragem.

Há, portanto, um trânsito de ideias, que circulam entre a prática e a escrita dos projetos, entre o formal e o informal, entre o profissionalismo e a vivência cultural. Um diálogo protagonizado por sujeitos que, em virtude de compartilharem objetivos político- sociais, imprimiram nos projetos elaborados e executados suas marcas.

62 Lei 9.349, Art 26, alterada pela Lei 10.639 de janeiro de 2003. 63 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves - Mestre Tigrão, 06.03.08.

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Mediante essa situação, compreendemos o caráter coletivo na concepção e elaboração dos projetos; identificamos a influência e características das experiências e saberes dos profissionais ali compartilhadas, não obstante, identificamos um campo de forças através desse fazer e uma ampliação do campo decisório na Associação.

Nesse campo de força, o conhecimento advindo da educação formal ganhou visibilidade e força decisória em detrimento do conhecimento popular de Ms. Tigrão pautado na prática, no ritual e na oralidade, à medida que possui as premissas intelectuais necessárias para a construção de proposta escrita inteligível, coerente – para quando preciso – adequar-se às propostas deliberadas pelo Poder Público.

Nessa perspectiva, podemos pensar a complexidade dessas relações de colaboração e parcerias com o Poder Público e profissionais especializados, nas quais questões antagônicas de natureza ideológicas, financeiras e de experiências profissionais se cruzam e se tencionam constantemente.

Compreendemos, pois, que contar com colaboradores com especialidades profissionais pôde propiciar à Associação Cultural Corrente Libertadora diálogo entre diferentes, enriquecer experiências profissionais e afetivas, colaborar na construção de espaços públicos, no amadurecimento de seu trabalho, mas esse encontro entre os diferentes estabeleceu-se em um campo de conflito à medida que ocorreu um processo paulatino de ampliação e deslocamento do poder decisório.

O que está posto, entre os sujeitos com quem estamos dialogando, não se refere a tendências ideológicas políticas de caráter partidário, mas sim a pressupostos teóricos, a metodologia de trabalho e ideais de sistematização e implementação de serviços à criança e adolescentes da região.

O amadurecimento do trabalho desenvolvido pela Associação nesses projetos lhe deu credibilidade para que se tornasse mantenedora de serviços e projetos em parceria com a Secretaria da Assistência Social do Município de São Paulo na área de atendimento e garantia de direitos, como o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente de Santo Amaro – CEDECA/SA (2003) e a Estação Cidadania (2004).

A gestão do CEDECA/SA traduzia de certa maneira um grau de profissionalização conquistado pela Associação e paralelamente o reconhecimento do seu trabalho pela sociedade civil organizada da região que a indicou democraticamente através do Fórum de

175

Defesa de Direitos de Criança e Adolescente de Santo Amaro – FDCA para ser a mantenedora do serviço. 64

Essa visibilidade do trabalho da Corrente Libertadora estava ancorada em duas questões pertinentes a assinalar: sua trajetória de intervenção político-cultural e a relação, o vínculo que Mestre Tigrão estabelecera com as crianças e adolescentes em situação de risco através da capoeira, crianças estas, que circulavam os serviços da região.

Michel V. Coutinho aluno da Corrente Libertadora há 20 anos e membro da diretoria da Associação de 2003 a 2009, faz uma avaliação desse período ápice de parceria com o Poder Público e as tensões dela advindas:

pra você trabalhar no Terceiro Setor... infelizmente, nos que somos uma ONG pequena precisamos da ajuda do poder público e pra você conseguir uma parceria com o poder público é uma burocracia muito grande, essa burocracia exige muitas pessoas com nível universitário... nós não tínhamos conhecimento e fomos buscar pessoas capacitadas e essas pessoas trouxeram muito prejuízo, porque aquela coisa que era mais caseiro, nosso, tornou uma empresa... tivemos que contratar pessoas... que não cresceram na ideologia da Corrente... elas não tinham um vínculo com a Capoeira, com a Corrente e foram embora e deixaram o prejuízo, o prejuízo nós estamos pagando... o Tigrão teve muito prejuízo, não só financeiro... teve muitos prejuízos morais... a diretoria nessa época não foi só com pessoas da Corrente, pessoas de fora que não tinham comprometimento, foram indo embora... eu não vou falar que estavam erradas, mas elas não concordavam com a metodologia do Tigrão... então houve um choque e além disso a burocracia... isso nos deu prejuízo porque aí saiu da mão do Mestre, o Mestre não teve mais como cuidar... Mestre era só uma pessoa que dava aula de capoeira, isso me magoava muito... de ver uma pessoa que eu vejo como um pai sendo humilhada muitas vezes por um projeto que era dele, da família dele...65

A Associação Cultural Corrente Libertadora com registro no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ, de número 02.254.698/0001.05 e com estatuto interno, é composta de uma diretoria eleita em assembléia geral chamada pela Associação, com mandato de 2 (dois) anos, como disposto no regimento.

A diretoria executiva no período a que se refere nosso narrador, era formada por voluntários civis, visto que se trata de uma associação sem fins lucrativos. Com a

64 A Associação Cultural Corrente Libertadora participou desde o início da Redinha em 1997. Os encontros da Redinha ocorriam no CEE Joerg Bruder e desencadearam a formação do Fórum DCA. Para saber mais sobre o envolvimento da Associação na Redinha e no Fórum DCA de Santo Amaro, Ver: GERASSI, Maria Irene. Resignificando Sujeitos: A Trajetória de Formação de Sujeitos Políticos no Fórum de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes de Santo Amaro. Dissertação de Mestrado em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2007. Sobre a participação da Associação na Executiva do Fórum DCA foram analisados em particular os documentos: Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho - Mestre Eufraudísio, 09.10.09 e Entrevista VIII: Michel Vanderlei Coutinho da Silva, 08.06.10. 65 Entrevista VIII: Michel Vanderlei Coutinho da Silva, 08.06.10. 176 profissionalização e o estreitamento das parcerias conveniadas, os fundadores e, particularmente, do Mestre Tigrão que estava à frente do núcleo de capoeira e inteiramente envolvido com os projetos em execucão, tinha uma função consultiva no corpo executivo da Associação.66 Podemos, pois, identificar que essa função estava carregada de tensões.

Considerando que esse grupo de profissionais e colaboradores formava um corpo diversificado faz-se necessário, mesmo que suscintamente, explicar seu vínculo com a Associação. Entre os profissionais atrelados ao CEDECA estavam psicólogos, advogados, assistentes social, educadores, coordenador e assistente administrativo em uma relação empregador-empregado. No corpo executivo, havia pessoas com formação diversa; era essencialmente formado por voluntários, que optaram em exercer os cargos eleitos sem vínculo empregadício e entre os colaboradores-gestores dos projetos, a relação legal com a Associação só ocorria mediante o estabelecimento dos convênios, que normalmente eram transitórios.

Na perspectiva de nosso narrrador, os conflitos partiram da concepção metodológica que se deslocou para o campo decisório gerando uma tensão nas relações entre executivo, colaboradores e Ms. Tigrão. O fato dessas pessoas não terem um vínculo, não terem passado pela formação da Corrente Libertadora, surge na argumentação do narrador, como a justificativa para o afastamento dessas pessoas. Segundo o Código Civil, Lei nº 10.406 de 10.01.2002 é declarado no Artigo 53, do capítulo II – Das Associações que:

Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. Parágrafo Único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos.

O que está em questão, portanto, não é o estatudo legal que respalda o funcionário ou o colaborador, mas antes um comprometimento com um ideal, com uma proposta de trabalho, com uma visão de intervenção sócio-cultural desenvolvida pela Corrente Libertadora e que, a medida que Mestre Tigrão percebeu estar fora do seu controle ou tomando direções diversas

66 Dos fundadores, mestre Maurício, Mestre Eufraudísio, Mestre Tigrão, já estiveram no corpo executivo mas devido a questões legais, na atualidade do ponto de institucional, principalmente depois da implementação do Centro de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente de Santo Amaro – CEDECA /SA, os fundadores passaram a ter papel consultutivo. Por insuficiência de documentação institucional, não podemos avançar nessa questão, nem precisar os mandatos, entretanto na análise dos projetos e relatórios produzidos pela Associação, acreditamos que os mandatos se concentraram até os anos 90. Tudo indica que no final dos anos 90 em virtude da profissionalização da Associação e das exigências para os contratos com o Poder Público, o regimento interno da Associação sofreu modificações que implicaram em limites da participação dos fundadores no corpo executivo. 177 das construídas e defendidas na experiência cotidiana da capoeira, das atividades da Associação e em última instância, da família Modesto, ele reagiu, desencadeando uma situação conflituosa que levou a saída dessas pessoas em questão.

Refletimos aqui, baseado na experiência vivenciada junto à Associação nesse período,67 a definir algumas discordâncias que desencadearam essa situação. Na concepção de Ms. Tigrão a responsabilidade e os encargos em assumir um serviço do porte do CEDECA, só fazia sentido se contribuísse diretamente para a manutenção da Associação e principalmente, que contemplasse a proposta de formação dos alunos.

Trazendo para exemplos concretos, isso se referia entre outras coisas, que o CEDECA pudesse absorver profissionalmente jovens multiplicadores da Associação, aptos para trabalhar como educadores sociais,68 que o serviço trabalhasse em parceria com o núcleo de capoeira podendo dar atendimento psicossocial e às vezes jurídicos a alunos envolvidos com a prática da capoeira e, quando necessário, que o CEDECA desse suporte profissional e material para atividades realizadas nos espaços nos quais a Associação Cultural Corrente Libertadora desenvolvesse as oficinas de capoeira em parcerias.

Em relação à manutenção da Associação havia uma questão estrutural, na qual Ms. Tigrão defendia que uma parcela minoritária do subsídio advindo do convênio com o Poder Público devia destinar-se aos encargos e déficit administrativo da entidade e não destinar completamente ao projeto em si.

Não temos elementos suficientes para avançarmos nessa problemática, incorrendo em achismos, mesmo porque nossa preocupação central é trazer para nossa análise elementos que contribuam para a compreensão dos desdobramentos das parcerias na trajetória político- cultural da Associação, mas podemos ainda pontuar que o posicionamento de Ms. Tigrão, voltado para as prioridades do trabalho de intervenção sócio-cultural da Associação esbarrava em um posicionamento que consideramos mais universalizante, defendido por parte dos profissionais envolvidos na gestão do serviço e no corpo executivo da entidade.

O que nos arriscamos inferir como explicação para essa tensa relação no campo decisório da Associação, tendo em vista as reflexões entrecortadas de nossos narradores, que

67 Essas observações estão baseadas na minha experiência profissional no Cedeca –SA como educadora social de 2003 à 2005. 68 Estamos nos referindo à experiência dos multiplicadores junto a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social (que era demanda do Cedeca) e com a formação requerida (ensino médio completo ou nível universitário) 178 parte do executivo e os profissionais à frente do CEDECA – SA pretendiam dotá-lo de um padrão profissional para tornar o serviço de proteção gerido por eles, uma referência na região e, para tanto, era necessário romper com as práticas informais da administração da Associação e delimitar as especificidades de ação do serviço CEDECA e da Corrente Libertadora.

Se por um lado havia um movimento dos profissionais e colaboradores em alijar a participação de Mestre Tigrão no campo decisório das diretrizes e administração da Associação, em contrapartida o Mestre realizava um contra-movimento no sentido de garantir a manutenção da proposta pedagógica e política da Associação Cultural Corrente Libertadora que pressentia ser ameaçada.

Outro aspecto que nos chama a atenção nas reflexões feita por Michel Vanderlei é que nesses momentos de conflito, que invariavelmente redundam na dispersão do grupo – alunos, colaboradores e funcionários envolvidos em projetos conveniados com o Poder Público – o movimento de rearticulação e de reestruturação de diretrizes e estratégias de manutenção das atividades da Associação couberam aos irmãos da família Modesto e sobretudo, ao Mestre Tigrão.

Trazendo os elementos que congregam a postura por Mestre Tigrão acerca da proposta de trabalho focado na formação do cidadão ao encontro da reflexão de Michel Vanderlei sobre os embates decorrentes dessa postura, respectivamente, pontuamos o segundo tema a que nos propomos discutir: a metodologia de trabalho presente nos projetos.

Trabalhar na perspectiva da construção da cidadania supõe a prerrogativa da garantia de direitos e nesse sentido, os projetos estabelecem em seus objetivos, ações que vislumbram o apoderamento dos direitos, assim como, a participação na construção de políticas públicas que viabilizem o exercício desses direitos por parte dos adolescentes e jovens envolvidos.

O sentido de direitos sociais presentes nos projetos e nas narrativas orais caminha no sentido de assegurar aos grupos sociais dos segmentos populares, os próprios protagonistas dos projetos, o acesso à serviços e espaços públicos, nos quais possam construir, sem prejuízo de qualidade, o conhecimento. O conhecimento no sentido amplo da palavra, que não se dá apenas na escola e na profissionalização, mas também se constitui no contato com a cultura, com a arte, a política, o esporte e com a rua.

A metodologia concentrava-se nas atividades desenvolvidas pelos jovens multiplicadores, norteadas pela temática dos projetos – a sexualidade – e pelos valores,

179 princípios e pressupostos teóricos da Associação e de seus colaboradores. As atividades desenvolvidas direcionavam-se para intervenção comportamental e se constituía de oficinas, participação em eventos e fóruns, formação e avaliação das atividades.

Talvez as especificidades dessa metodologia estejam na abordagem realizada junto ao adolescente que protagoniza a ação, como dos adolescentes que recebem a informação como participantes das oficinas.

O projeto Ginga e Arte Pela Vida, nos indica alguns caminhos para compreendermos essa abordagem:

Serão realizadas 2 oficinas mensais com uma abordagem de prevenção baseada na linguagem da capoeira e do teatro com duração de 2 horas, ministrada por 5 69 multiplicadores para uma população de 30 adolescentes...

E,

Qualquer proposta de trabalho de prevenção passa necessariamente pela criação de 70 vínculos, auto-estima, numa abordagem no campo se seus próprios valores.

A abordagem passa necessariamente por um campo subjetivo de sentimentos, de relacionamentos humanos, de aproximação com o outro. Os jovens multiplicadores – alunos de capoeira da Associação – têm a seu favor a vivência social do espaço que ocupam na cidade.

Todos, adolescentes e multiplicadores, compartilhavam a experiência do viver e conviver com as realidades do espaço urbano da periferia. Alunos das escolas públicas da periferia da Zona Sul, dividiam expectativas e limites de uma educação alijada; reconheciam- se muitas vezes nos gestos, na fala, nos silêncios.

A figura do multiplicador corrobora para a perspectiva de cidadania proposta, à medida que ao mesmo tempo em que ele, o multiplicador, é o objetivo da ação, é também sujeito da ação.

Os gestores, supervisores e coordenadores dos projetos funcionavam como mediadores, facilitadores do processo criativo dos multiplicadores: estruturavam as ações dos multiplicadores, dando-lhes suporte material, técnico e mecanismos de avaliação; articulavam

69 Documento: Projeto Ginga e Arte Pela Vida, 2000, p. 4. 70 Idem, p. 5. 180 e viabilizavam a participação dos mesmos em eventos e fóruns relacionados à garantia de direitos e a prevenção/sexualidade. Há, pois, uma circularidade de ideias e práticas entre os sujeitos envolvidos na ação

As oficinas eram elaboradas e desenvolvidas pelos multiplicadores, cruzando os conteúdos técnicos com a linguagem da capoeira e do teatro. Eram compostas por um leque de opções de atividades: dinâmicas de grupo, psicodramas, integração e sensibilização utilizando a capoeira, o maculelê, exibição de filmes e documentários e roda de discussão.

A abordagem metodológica dos gestores para com os multiplicadores e dos multiplicadores para com os adolescentes participantes dos projetos estava baseada na autonomia dos sujeitos, condição para o advento do protagonismo juvenil71 e construção da cidadania.

O protagonismo juvenil, isto é, os jovens como os atores que configuram as ações de um movimento social,72 nessa experiência de construção de conhecimento compartilhado, é facilitado pelo multiplicador; um trabalho de adolescente para adolescente, utilizando a linguagem e códigos identitários a favor do trabalho de intervenção. Mas as expectativas referentes à cidadania não se limitavam a apoderar-se de informações e de estimular sociabilidades.

Pensamos que há um caráter propriamente político nas ações dos multiplicadores nesses projetos realizados pela Associação Cultural Corrente Libertadora. O estímulo à autonomia em si, já colabora na formação de cidadãos mais críticos, responsáveis e ativos na sociedade, mas se ultrapassarmos os limites do âmbito pessoal, encontraremos nas atividades e objetivos presentes nos projetos um sentido marcadamente coletivo de cidadania...

Criar um espaço de reflexão, troca e pertencimento... estabelecer relações e parcerias com outros grupos de jovens... participação em eventos... fóruns, debates e encontros 73 ligados a prevenção e a garantia de direitos....

Consideramos essas ações – que se efetivaram no período de execução dos projetos em questão, profundamente políticas, pois se caracterizam pela intervenção efetiva na sociedade na qual se está inserido; compartilha conhecimentos e experiências; fortalece a

71 Sobre o conceito de autonomia e protagonismo, ver: GOHN. Maria da Glória. O Protagonismo da Sociedade civil. São Paulo: Cortez, 2005. 72 GOHN. Maria da Glória. Op. Cit. 73 Documento: Projeto Ginga e Arte Pela Vida, 2000, p. 8-9. 181 organização da sociedade civil, constroem espaços públicos e força um canal de diálogo entre sociedade civil organizada e Poder Público.

Os encontros de adolescentes – Encontro Paulista de Adolescentes/EPA, Encontro Nacional de Adolescentes/ENA – e os Fóruns como o FDCA, funcionavam como locais de articulação entre as várias ONGs, entidades sociais e alguns serviços públicos relacionados às questões da infância e adolescência.

Alguns como o EPA e ENA, concentravam suas discussões nas questões referentes à sexualidade: direito reprodutivo, prevenção, gênero, homossexualidade. Nos fóruns, a preocupação voltava-se, sobretudo, a garantia de direitos das crianças e adolescentes, mas apesar das especificidades, eram locais de discussão e gestão de propostas de políticas públicas, das quais a Associação participava de forma ativa através de seus fundadores – Ms. Tigrão e Ms. Eufraudísio –74 colaboradores e alunos multiplicadores.

Através do FDCA de Santo Amaro, a Associação Cultural Corrente Libertadora participou da gestão coletiva do Projeto CEDECA – Centro de Defesa de Direitos das Crianças e dos Adolescentes de Santo Amaro. Colaborou para implementação de serviços conveniados e mantidos por organizações da sociedade civil organizada como o Acolhimento Cidadão, além de equipamentos vinculados à Secretaria Municipal da Saúde, como o Centro de Convivência e Cooperativa - CECCO/Santo Amaro.

Ocupar esses espaços de discussão das demandas sociais e apoderar-se do conhecimento e iniciativas compartilhadas nesses espaços no intuito de viabilizar outros espaços capazes de atingir setores da sociedade ignorados ou alijado a esse tipo de discussão compreendemos, tratar-se de estratégias de ação política.

Evidentemente, a perfeição e riqueza de detalhes nas descrições das atividades encontradas nos projeto e nos relatórios eram necessárias para aprovação e continuidade da parceria com o Poder Público, mas evidencia o fôlego de ação da Associação e do nível de articulação que conseguiu gerir nesse período.

As parcerias com o Poder Público se efetivaram principalmente, por estar o trabalho proposto inscritos em uma prática político-cultural que a Associação construiu desde 1976. Na década de 1990, esse período intenso de trabalhos e participação política na cidade foi

74 Participa do Fórum de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes desde sua fundação em novembro de 1998, passa a compor a executiva, na figura do Ms. Eufraudísio em 2001. 182 potencializado pelas parcerias com a sociedade civil organizada, de onde a Associação pode contar com a colaboração – comumente voluntária – de profissionais especializados e intelectuais que sanaram momentaneamente suas fragilidades e colaboram para mais uma etapa da trajetória e profissionalização da Associação.

Se considerarmos, no entanto, o benefício efetivo dessas parcerias com o Poder Público na manutenção da Associação nos depararemos novamente com os limites e complexidade dessa relação. Os projetos, todos de caráter temporários, suscetíveis às alternâncias de governos e as constantes mudanças nos programas sociais, não investem na construção de mecanismos que colaborem para a organização estrutural de entidades sociais como a Associação Cultural Corrente Libertadora. O Poder Público financia, mas não mantém.

Entendemos a partir da experiência da Associação e da análise de Durigueto e Debórtoli,75 sobre o processo de descentralização, que esse aspecto é o revés dessa política: a transferência de responsabilidades sociais na gerência de serviços, antes de obrigação do Estado, ocorreu e ocorre, sem o repasse de recursos financeiros condizentes com as reais necessidades para o funcionamento dos mesmos, situação que invariavelmente sobrecarrega a estrutura administrativa das ONGs.

Por outro lado, a almejada participação e controle na gestão pública acabaram por limitar-se a execução dos projetos, visto que o controle do financiamento – quer dizer, a proporção do recurso a ser destinado aos projetos e serviços sociais administrados pelas ONGs – e a seleção das entidades a serem conveniadas continuaram centralizados nas esferas do Estado.

Assim, do ponto de vista financeiro e administrativo, caros a Corrente Libertadora, o que ela adquire para a manutenção de seus trabalhos, é a obtenção de alguns equipamentos permanentes (computadores, máquinas fotográficas, aparelhos de som, etc) e o peso dos encargos fiscais necessários para sua existência.

Talvez por isso o Mestre Tigrão fez a seguinte reflexão sobre essas parcerias com o Poder Público:

órgão público é o seguinte, ele só dá o projeto seis por meia dúzia, você gasta seis, devolve meia dúzia, dá meia dúzia, você pega pra dá os seis pra eles. Então, você não tem nada de auto-sustento, porque você é uma ONG, você tem que dar contrapartida,

75 DURIGUETO, Maria Lúcia; SILVA, Isis; DEBÓRTOLI, Débora. Op. cit. 183

então é muito complicado... Tudo isso aí, tem que ter isso, infra-estrutura, é, você tem 76 que dar isso, mas você não tem...você dá com a mão direita e pega com a esquerda.

Em um Estado de Direito como o Brasil, o diálogo e parcerias entre sociedade civil organizada e Poder Público estão em aberto, dependem necessariamente da capacidade de negociação entre os atores sociais envolvidos. Nesse quadro social e político, as forças hegemônicas deliberadas pelos agentes do Estado, tendem a cercear o poder de mobilização dos grupos populares, mas essa dinâmica nunca impediu a contínua reorganização desses grupos que através da cultura e estratégias políticas empreenderam ações contra-hegemônicas.

Seguindo o rastro dessas considerações, os sentidos que essas ações ganharam para os sujeitos que as protagonizaram, Luciene Vidal nos deixa a reflexão a cerca da cidadania.

foi através da Corrente que eu tive oportunidade trabalhar em projetos sociais como a Casa de Acolhida, com meninos em situação de rua. Eu conheci outro universo, que de certa forma eu fazia parte. Eu sempre morei na periferia, então eu convivia muito com isso, só que aí eu convivi de fato e isso mudou bastante a minha vida, porque eu acho 77 que tudo que eu sou hoje, tudo o que eu penso, os meus valores partiram daí.

Entendemos, pois, que as parcerias estabelecidas entre a Associação Cultural Corrente Libertadora com a sociedade civil organizada, assim como, com o Poder Público inscrevem- se em sua trajetória político-cultural como mais uma estratégia de intervenção social e de continuidade de seu trabalho. Amparada na prática de capoeira e na experiência dos sujeitos que a personificam através de sonhos, ideais e ações, a Corrente Libertadora segue, sem fama e sem recursos financeiros permanentes, passo a passo, quase despercebida, construindo ao som do berimbau e na ginga do corpo, caminhos possíveis em direção a cidadania plena.

76 Entrevista II: Eufrásio Modesto Alves – Mestre Tigrão, 06.03.08. 77 Entrevista VII: Luciane Vidal Marinho, 18.04.10.

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Considerações Finais

“Estou contente, estou feliz, a Capoeira evoluiu, hoje joga a criançada e as mulheres do Brasil. Se é Moreira ou Maurício, não importa quem possa ser, quero jogar com os homens, quero jogar pra valer. Quero jogar com os homens, quero jogar pra valer!”

Ms. Moreira e Magnólia, 1981

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Novamente irei me apropriar do verso escolhido para abrir essas últimas considerações com a pretensão de pontuar alguns aspectos dessa pesquisa que agora encerra uma etapa. O verso da música A Mulher traz a alegria da transformação, a possibilidade da capoeira evoluir, para nós, evoluir não no sentido linear e cartesiano, mas no sentido de ganhar outros significados na experiência dos sujeitos históricos.

O que tentamos ao longo dessa dissertação, correndo o risco muitas vezes da descrição, foi enfatizar, marcar que estão nos detalhes, as vezes quase imperceptíveis para os olhares desatentos, as particularidades de se fazer político através da linguagem da capoeira.

A experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora na cidade de São Paulo traduz o esforço anônimo de um grupo de pessoas – mestres, alunos, colaboradores – que fazem de pequenas ações cotidianas uma possibilidade de transformação política, social, cultural, humana.

Esse esforço cotidiano está transpassado por dificuldades financeiras, profissionais e de convivência, não obstante, sinaliza para negociações diante dos conflitos e para elaboração de estratégias de ação e manutenção do trabalho proposto.

Longe de heroicizar os sujeitos históricos com os quais dialogamos, o que pretendemos foi dar visibilidade à experiência desses sujeitos. A noção de experiência nos foi fundamental, pois através dela podemos identificar e discutir as estratégias de preservação, continuidade e flexibilidade nas ações empreendidas pelos membros da Associação, para que a capoeira pudesse se fazer instrumento de intervenção e transformação social, reafirmando um compromisso político em conjunturas históricas diferentes.

Quando afirmamos não pretender heroicizar esses sujeitos é porque entendemos a posição destes como sujeitos ativos, plenos na atitude de reconhecer os limites e contradições da posição sócio-econômica que ocupam na sociedade brasileira. Não se trata de vítimas empobrecidas, no entanto, não são de heróis que revolucionaram uma condição tal. Trata-se tão somente de brasileiros, trabalhadores, migrantes que conscientes das habilidades, do saber que carregam, decidiram compartilhar com o outro.

O outro é seu igual do ponto de vista social. A Corrente Libertadora é uma Associação formada por trabalhadores assalariados e voltada para o atendimento de trabalhadores e dos segmentos sociais que tiveram, por razões diversas, sua condição

186 precarizada. Essa particularidade permeia a trajetória político-cultural da Associação, nela visualizamos os limites e o alcance de seu trabalho.

A escolha política em priorizar o atendimento a esse público implicou no distanciamento e reconhecimento no universo da capoeiragem e em embates com colaboradores e com setores do Poder Público. Isso porque, além de não abrir mão da gratuidade do atendimento, das transformações de concepção e prática da capoeira, os responsáveis pela coordenação da Associação se negaram politicamente a trabalhar na perspectiva de atendimento social baseado em resultados.

Estamos nos referindo a trabalhos sociais, muitos relacionados a manifestações culturais e ao esporte, que ganharam visibilidade, reconhecimento e garantiram uma estrutura administrativa e financeira através da profissionalização do atendimento oferecido e dos resultados apresentados: grupos de apresentações culturais especializados e formação de atletas competitivos.

A Corrente Libertadora optou em trabalhar na perspectiva do processo, exilou a possibilidade de hierarquização, de estimular a rivalidade ou diferenciação de reconhecimento entre seus alunos. Compreendemos que essa opção coloborou para a permanência de velhos problemas: fragilidade financeira e administrativa, limite material de empreender novas frentes de atividades sócio-educativas e culturais.

No entanto, o trabalho da Associação continua buscando nas brechas, nas redes de sociabilidades, em ações isoladas ou conjuntas caminhos para a capoeira se fazer presente e capaz de colaborar na construção da cidadania.

A capoeira que uniu quatro irmãos – Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio, Ms. Tigrão e Magnólia – em torno de um projeto comum, a Corrente Libertadora, traz consigo muito da experiência pessoal de cada um desses atores e imprimiu o caráter coletivo na trajetória político-cultural da Associação, agregou novos personagens e se transformou. Rompeu com concepções de tradição e procedimentos técnicos para efetivar uma ideia: transformar um princípio político em prática cotidiana, a inclusão social.

Entendemos que é essa especificidade da experiência da Corrente Libertadora que permitiu o diálogo com as conjunturas políticas que vivenciaram. A relação com as demandas sociais, a premissa em responder a essas demandas; as parcerias com a sociedade civil

187 organizada e com o Poder Público muito nos dizem de a quantas andam a democracia no Brasil.

A pesquisa nos colocou diante da complexidade do processo de descentralização política que envolveu diretamente as entidades civis que passaram a compor depois da década de 1990 o Terceiro Setor. A Corrente Libertadora participou desse processo e, de certa forma, convive com os desdobramentos do processo.

Acreditamos que o processo de descentralização colaborou, em certa medida, para a desmobilização política dos movimentos populares, que rearticulados em ONGs, pulverizaram reivindicações e se alinharam ao “conto” de participação na gestão pública através da descentralização.

A participação na gestão pública almejada, limitou-se ao sistema de parcerias e convênios com o Poder Público, o que não garantiu uma participação efetiva e sim, subordinada ao mesmo, além disso, não assegurou serviços de atendimento capazes de responder satisfatoriamente as demandas crescentes e diversas da população exposta a vulnerabilidade social.

A situação estrutural da Corrente Libertadora mantém algumas relações com essa situação acima descrita: estabeleceu parcerias com o Poder Público temporárias sem, no entanto, colaborar sigficativamente para a sustentabilidade da Associação. Mas o que nos interessa como prática social é que essa situação não arredou a Associação a um comprometimento com partidos, lideres políticos ou gestões.

Concluimos essa suscinta reflexão com a certeza de que para além do que foi discutido nessa dissertação, a experiência político-cultural da Corrente Libertadora permite outros olhares, aqui não pormenorizados: as relações com a educação popular, as questões concernentes aos aspectos psicossociais, a capoeira como atividade física, entre outros. Esperamos que nosso trabalho seja o primeiro passo para outros: outras pesquisas, outros encontros, outros diálogos.

Como em uma roda de capoeira apertamos as mãos dos protagonistas da Corrente Libertadora, que nos permitiu melhor compreender as relações do fazer cultural com a cidade, com a realidade social, com as ações dos sujeitos históricos e com a memória.

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Fontes

Entrevistas

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Vídeos

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Relatórios

Relatório de Progresso – Ginga e Arte Pela Vida, 2002. Relatório Narrativo Final – Ginga e Arte Pela Vida, 2002. Relatório Narrativo Final – Ginga Pela Vida, 2004. Relatório de Progresso – Livre da AIDS, 2004

Outros

Plano de Trabalho da Associação Cultural Corrente Libertadora 2001-2002. Plano de Trabalho Associação Cultural Corrente Libertadora 2003-2004. Currículo Social da Associação Cultural Corrente Libertadora, s/d.

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