UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO DIRETORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL

DEIVISON BRITO NOGUEIRA

MÚSICA BRASILEIRA DE RAIZ CRISTÃ: PRODUÇÃO DE SENTIDO DA CANÇÃO EVANGÉLICA CONTEMPORÂNEA

São Bernardo do Campo, 2021

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO DIRETORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL

DEIVISON BRITO NOGUEIRA

MÚSICA BRASILEIRA DE RAIZ CRISTÃ: PRODUÇÃO DE SENTIDO DA CANÇÃO EVANGÉLICA CONTEMPORÂNEA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Curso de Mestrado da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), área de concentração “Processos comunicacionais”, linha de pesquisa “Comunicação midiática, processos e práticas socioculturais”, como exigência parcial para obtenção do título de mestre em Comunicação Social.

Orientador: Prof. Dr. Herom Vargas

São Bernardo do Campo, 2021

FICHA CATALOGRÁFICA

N689m Nogueira, Deivison Brito Música brasileira de raiz cristã: produção de sentido da canção evangélica contemporânea / Deivison Brito Nogueira. 2021. 197 p.

Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) --Diretoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2021. Orientação de: Herom Vargas Silva.

1. Comunicação 2. Música popular Cristã 3. Gospel (Música) I. Título. CDD 302.2

FOLHA DE APROVAÇÃO

A dissertação de mestrado intitulada: Música brasileira de raiz cristã: produção de sentido da música evangélica contemporânea, elaborada por Deivison Brito Nogueira, foi apresentada e aprovada no dia 10 de março de 2021 perante banca examinadora composta pelo Prof. Dr. Herom Vargas (Presidente da Banca/UMESP), Prof. Dr. Dimas Antônio Künsch (Titular/UMESP) e Prof. Dr. Laan Mendes de Barros (Titular UNESP), tendo sido:

(X) Aprovado ( ) Aprovado, mas deve incorporar nos exemplares definitivos modificações sugeridas pela banca examinadora, até 60 (sessenta) dias a contar da data da defesa. ( ) Reprovado

Banda examinadora:

Prof. Dr. Herom Vargas (Orientador)

______

Prof. Dr. Dimas A. Künsch (UMESP)

______

Prof. Dr. Laan Mendes de Barros (UNESP)

______

Programa: Pós-graduação em Comunicação Social

Área de Concentração: Processos comunicacionais

Linha de Pesquisa: Linha 1: Comunicação Midiática, Processos e Práticas Socioculturais

Aprendi da importância de não dar muita importância, Ficar com os meus pés no chão. Aprendi que viver cansa, mesmo vivendo na franca, mesmo indo de avião. Aprendi que a desavença é porque sempre alguém pensa que ninguém mais tem razão. Aprendi que tudo passa, tomando chá ou cachaça. Aprendi que a descrença, a desconfiança e a doença são partes da maldição. Aprendi que essa fumaça a minha janela embaça, por fora, por dentro não.

Itamar Assumpção

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Ana e Divino, que me mostraram os melhores caminhos da vida. À minha esposa, Thaís, companheira de leituras e café. A vida com você é mais poesia! Ao orientador e amigo, Herom Vargas, pela confiança e paciência de orientar um estudante recém-graduado, cheio de dúvidas e sonhos. Aos professores das disciplinas cursadas no Pós-Com da Universidade Metodista, um abraço demorado: Dimas Künsch, Roberto Chiachiri, Cilene Victor, Mateus Yuri Passos e Herom Vargas. Juntos, trouxeram grandes contribuições à pesquisa e à vida, muito obrigado! Aos funcionários do departamento e da secretaria de Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo, pela atenção e solicitude. Aos colegas mestrandos e doutorandos que me acompanharam nesses dois anos de luta, parceiros de disciplinas e congressos, a amizade de vocês é uma dádiva. Aos artistas que gentilmente cederam seu tempo para as entrevistas em profundidade, um abraço apertado: Marcos Almeida, Jorge Camargo, Estêvão Queiroga e Gerson Borges. À Universidade Metodista de São Paulo por disponibilizar seus espaços, biblioteca, salas de aula, jardins, áreas verdes e centro de convivência que contribuíram sobremaneira para a minha formação pessoal e acadêmica. Ao CNPq, pelo auxílio à pesquisa por meio da bolsa de estudos.

RESUMO A pesquisa observa uma mudança na música evangélica brasileira, sobretudo no trabalho de alguns artistas que não se veem representados pelo rótulo mercadológico gospel. Termos como “música feita por cristãos”; “música brasileira de raiz cristã”; “música brasileira tecida na esperança” e “pós-gospel” são utilizados para nomear um tipo de produção que destoa do padrão hegemônico de mercado. O objetivo é compreender em quais aspectos e em que medida essa produção cancional distingue-se da música gospel hegemônica ao elaborar uma nova produção de sentido na cultura midiática. Foram realizadas quatro entrevistas em profundidade com músicos evangélicos: Marcos Almeida, Jorge Camargo, Estêvão Queiroga e Gerson Borges, e a análise cancional de quatro músicas de cada artista por meio da semiótica da cultura e da noção de gênero musical. O quadro teórico de referência é a semiótica da cultura em Iuri Lotman, os estudos culturais britânicos e o gênero musical em Franco Fabbri. As entrevistas em profundidade evidenciaram um posicionamento crítico em relação ao mercado e da canção evangélica produzida no Brasil. As análises cancionais revelaram, por meio dos usos, apropriações e utilizações da cultura uma nova produção de sentido da canção, bem como novas formas de compreender a canção evangélica. Os dados obtidos nas entrevistas em profundidade e nas análises cancionais demonstram que a música evangélica brasileira não é unívoca como música gospel faz parecer. A comunicação empregada nas canções e todos os elementos da linguagem cancional apontam para um outro universo não apenas subscrito ao âmbito religioso. Palavras-chave: Comunicação; Música Cristã Contemporânea; Gospel; Produção de Sentido.

ABSTRACT

The research observes a change in Brazilian evangelical music, especially at work, some artists who do not see themselves represented by the gospel marketing label. Terms like “music made by Christians”; “Brazilian music with Christian roots”; “Brazilian music woven in hope” and “post-gospel” are used to name a type of production that is at odds with the hegemonic market standard. The objective is to understand in what aspects and to what extent this song production is distinguished from hegemonic gospel music when elaborating a new production of meaning in media culture. Four in-depth interviews were conducted with evangelical musicians: Marcos Almeida, Jorge Camargo, Estêvão Queiroga and Gerson Borges and the song analysis of four songs by each artist through the semiotics of culture and the notion of musical genre. The theoretical framework of reference is the semiotics of culture in Yuri Lotman, British cultural studies and the musical genre in Franco Fabbri. The in-depth interviews showed a critical position in relation to the market and the gospel song produced in Brazil. Song analysis revealed, through uses, appropriations and uses of culture, a new production of the meaning of the song as well as new ways of understanding the gospel song. The data obtained from in-depth interviews and song analysis show that Brazilian gospel music is not univocal as gospel music makes it seem. The communication used in the songs and all the elements of the song language point to another universe not only subscribed to the religious sphere Keywords: Communication; Contemporary Christian Music; Gospel; Meanings Production.

RESUMEN La investigación observa un cambio en la música evangélica brasileña, especialmente en el trabajo, algunos artistas que no se ven representados por la etiqueta de marketing gospel. Términos como "música hecha por cristianos"; “Música brasileña con raíces cristianas”; “Música brasileña tejida en la esperanza” y “post-gospel” se utilizan para nombrar un tipo de producción que está en desacuerdo con el estándar del mercado hegemónico. El objetivo es comprender en qué aspectos y en qué medida se distingue esta producción de canciones de la música gospel hegemónica a la hora de elaborar una nueva producción de sentido en la cultura mediática. Se realizaron cuatro entrevistas en profundidad a músicos evangélicos: Marcos Almeida, Jorge Camargo, Estêvão Queiroga y Gerson Borges y el análisis del canto de cuatro canciones de cada artista a través de la semiótica de la cultura y la noción de género musical. El marco teórico de referencia es la semiótica de la cultura en Yuri Lotman, los estudios culturales británicos y el género musical en Franco Fabbri. Las entrevistas en profundidad mostraron una posición crítica en relación al mercado y la canción gospel producida en Brasil. El análisis del canto reveló, a través de usos, apropiaciones y usos de la cultura, una nueva producción del significado del canto así como nuevas formas de entender el canto evangélico. Los datos obtenidos de entrevistas en profundidad y análisis de canciones muestran que la música gospel brasileña no es unívoca como parece. La comunicación utilizada en las canciones y todos los elementos del lenguaje de la canción apuntan a otro universo no solo suscrito al ámbito religioso.

Palabras clave: Comunicación; Música Cristiana contemporánea; Góspel; Producción de sentido.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Twitter Ed Mota ...... 35 Figura 2: Twitter Marcos Almeida ...... 57 Figura 3: Twitter Marcos Almeida ...... 57

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

CAPÍTULO 1 – A CONSOLIDAÇÃO DA CULTURA EVANGÉLICA NO BRASIL ...... 24

1.1 Música gospel: das origens à midiatização ...... 24 1.1.1 O gospel no Brasil ...... 25 1.2. Música evangélica brasileira: encontros e despedidas ...... 30 1.2.1 A canção de fé no início dos anos 1970 ...... 37 1.3 O protestantismo brasileiro, a cultura gospel e o hibridismo ...... 42 1.4 Gospel: um museu de grandes novidades ...... 52 1.5 Construções simbólicas, preocupações estéticas e perspectivas artísticas alternativas . 55

CAPÍTULO 2 – DISTINÇÕES, INOVAÇÕES E A MÚSICA BRASILEIRA DE RAIZ CRISTÃ ...... 63

2.1 Estudos culturais britânicos, representação e hegemonia ...... 63 2.2 Os estudos culturais nos estudos de mídia ...... 71 2.3 Cultura, hegemonia e senso comum ...... 76 2.4 Música evangélica brasileira e resistências: o caso Coletivo Candiero ...... 80 2.5 Estudos culturais, hibridismos e a noção de revolução simbólica ...... 83

CAPÍTULO 3 – SEMIÓTICA DA CULTURA E A NOÇÃO DE GÊNERO MUSICAL ...... 89

3.1 Semiótica da cultura, semiosfera e texto cultural ...... 89 3.2 O texto cultural ...... 91 3.3 A semiosfera ...... 93 3.4 O gênero musical como mediação da produção e do consumo cultural ...... 99 3.4.1 Gênero musical: o sentido que dá o tom...... 102

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DA OBRA DOS ARTISTAS ...... 109

4.1 Análise cancional 1: Marcos Almeida ...... 109 4.2 Análise cancional 2: Jorge Camargo ...... 115 4.3 Análise cancional 3: Estêvão Queiroga ...... 121 4.4 Análise cancional 4: Gerson Borges ...... 127

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 135

REFERÊNCIAS ...... 140

APÊNDICE A – ENTREVISTA COM MARCOS ALMEIDA ...... 153 APÊNDICE B – ENTREVISTA COM JORGE CAMARGO ...... 160 APÊNDICE C – ENTREVISTA COM ESTÊVÃO QUEIROGA ...... 177 APÊNDICE D – ENTREVISTA COM GERSON BORGES ...... 179

ANEXO 1 – REPORTAGEM FOLHA DE PERNAMBUCO, 01 DE MARÇO DE 2020 ...... 188 ANEXO 2 – TERMO DE CONSENTIMENTO, MARCOS ALMEIDA ...... 190 ANEXO 3 – TERMO DE CONSENTIMENTO, JORGE CAMARGO ...... 192 ANEXO 4 – TERMO DE CONSENTIMENTO, ESTÊVÃO QUEIROGA ...... 194 ANEXO 5 – TERMO DE CONSENTIMENTO, GERSON BORGES ...... 196

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INTRODUÇÃO

A música evangélica contemporânea tem passado por diversas transformações. Existe uma distinção do que se compreende por música gospel e “música feita por cristãos”. Em linhas gerais, a música gospel traz em sua construção um sentido religioso voltado ao culto congregacional com forte conotação de aspectos transcendentais e destinada a um único e Deus pessoal. No entanto, dentro do vasto espectro artístico evangélico, existem artistas que produzem músicas de temática diferenciada, versam sobre temas do cotidiano e da existência humana de forma não apenas religiosa. As canções expressam intertextualidade, linguagem poética, musicalidade e acuidade estética. Embora a música gospel tenha suas qualidades e responda a outras demandas, a “música feita por cristãos” se distingue em aspectos importantes: impessoalidade nas letras que sequer mencionam o nome de Jesus Cristo, e uma abertura maior para tratar sobre temas não religiosos. O jornalista brasileiro Ricardo Alexandre, numa reportagem à revista Época de 9 de agosto de 2010 intitulada A nova reforma protestante, afirma que artistas evangélicos, entre eles: Hélvio Sodré, Lucas Souza, Eduardo Mano, Palavrantiga, Crombie e Tanlan, definem seu trabalho como “música feita por cristãos” e não como música gospel, ampliando as noções definidas pelo mercado (ALEXANDRE, 2010). O termo gospel no Brasil foi cooptado por uma instituição religiosa que passou a ter o domínio sobre o gênero. Desde então, a representação cultural do artista gospel tem sido vinculada às tendências do pentecostalismo e do neopentecostalismo da cultura das mídias em que vozes dissonantes foram preteridas. A igreja Renascer em Cristo, no início dos anos 1990, criou a Rádio Gospel FM (90.1), a Rede Gospel de Televisão (Canal 53 UHF) e a gravadora Gospel Records. Nesse ínterim, a música gospel ganha visibilidade no Brasil partir dos anos 1990, quando igrejas pentecostais e neopentecostais começam a difundir conteúdo religioso nos meios de comunicação de massa, rádio, televisão e mídia impressa. Em contrapartida, outros artistas evangélicos propõem diálogos mais aprofundados com cultura popular brasileira por meio dos usos e apropriações culturais de elementos não espiritualizados, o que reforça o caráter hibrido da cultura ao produzir novos textos culturais na composição cancional (LOTMAN, 1978). Esses aspectos os têm diferenciado do produzido e consumido pela comunidade evangélica. Os artistas elaboram um pensamento mais profundo sobre cultura, arte e espiritualidade com interesse em temas pouco abordados 14

nos sermões litúrgicos. As canções contextualizam elementos da cultura popular de maneira dialógica e o aspecto religioso não é o único vetor norteador da produção cancional. A vida cotidiana é considerada e valorizada. Diferentemente do gospel, os artistas não negam a vida material em detrimento da vida espiritual, abrangem não só o universo evangélico, mas o que há fora dele. As discussões entre gospel e secular, sacro e profano, mostram-se anacrônicas e superadas. Os usos, apropriações e a produção de sentido dos artistas fomentam a discussão de novas categorizações e ressemantizações sonoras, como “música brasileira de raiz cristã”, “música feita por cristãos”, “música brasileira tecida na esperança” e “pós-gospel”. Outro aspecto importante é o espaço que os artistas ocupam fora do âmbito religioso. Em agosto de 2019, o músico e compositor cristão brasileiro Paulo Nazareth participou do projeto MINIDocs produzido pela produtora paulistana Zoe Films e veiculado pela TV Cultura. O projeto divulga o trabalho de artistas de todo o Brasil em minidocumentários. Ivan Lins, Dani Black, Maria Gadú, 5 a Seco e Anavitória são artistas já documentados. O formato multimídia exibe shows e ensaios gravados no estúdio Gargolândia, em Alambari, interior de São Paulo, pertencente ao produtor e compositor brasileiro Rafael Altério. Outro cantor e compositor cristão brasileiro, Marcos Almeida, apresentou-se na Casa Natura Musical em São Paulo, no dia 30 de junho de 2019. O espaço já recebeu diversos nomes da música brasileira: Lenine, Maria Rita, Zeca Baleiro, Liniker, Barbatuques e Mar’tnália. Marcos Almeida foi o primeiro artista evangélico a ocupar o espaço inteiramente voltado à música não religiosa. Em 26 de outubro do mesmo ano, o músico apresentou-se no Auditório Ibirapuera, com casa lotada, para o show de lançamento de seu disco, Lá de casa. Participaram do show: Wilson Sideral, irmão do vocalista Rogério Flausino da banda Jota Quest e a cantora e compositora brasileira Baby do Brasil, ex-integrante do grupo Novos Baianos. Essas diversas mudanças no cenário evangélico brasileiro jogam outras luzes sobre o objeto ainda pouco explorado. Se o gospel como gênero musical não consegue abarcar a diversidade cultural da música evangélica, é preciso descobrir em que medida esse tipo de canção é capaz de gerar uma nova produção de sentido. Enquanto circuito cultural, o gospel não circunscreve, ou talvez nunca circunscreveu, a diversidade cultural evangélica brasileira. Isso aponta para possíveis desdobramentos e processos que podem ensejar uma renovação cultural, artística e comunicacional na cultura evangélica brasileira. O presente estudo busca compreender como a produção musical evangélica, em suas 15

inovações e distinções, difere-se do produzido e consumido pela cultura hegemônica gospel. Busca-se analisar quais seriam e onde estariam estes aspectos: nas letras, na musicalidade, se há uma nova maneira de produzir música evangélica hoje no Brasil. O problema de pesquisa visa questionar como a música brasileira de raiz cristã, por meio da articulação de diferentes elementos na linguagem da canção, pode contribuir para gerar uma nova produção de sentido para além da música tratada como gospel. A hipótese deste trabalho é que, se não há uma identificação com a música gospel, a produção de sentido dos artistas ocorre por outras vias que não as comuns já demarcadas do gospel. Autointitular-se artista gospel é afirmar de antemão uma série de vínculos característicos: discursos conservadores, comportamentos em eventos sociais, relação com determinadas gravadoras, compromissos com um certo tipo de letra e estética musical, circulação em espaços culturais etc. A hipótese é que há uma nova produção cancional que se cria a partir de aspectos negligenciados pelo gospel, ao mesmo tempo em que se busca por novas categorizações e novas formas de ressemantização do trabalho artístico. O objetivo principal é compreender em quais aspectos e em que medida essa produção cancional se distingue da música gospel hegemônica numa nova produção de sentido na cultura midiática. Os objetivos específicos são:  Identificar como essa produção cancional se distingue da música gospel;  Verificar possíveis elementos distintos, textos culturais e inovações no trabalho dos músicos;  Analisar as letras das canções, musicalidade, sonoridade e arranjos a fim de encontrar diferentes diálogos;  Compreender a motivação dos artistas em seguir um caminho alternativo, para além do gospel e;  Descrever as características do gênero gospel e mapear as produções distintas da música evangélica contemporânea. O referencial teórico mobiliza os estudos culturais, a semiótica da cultura russa via Iuri Lotman e algumas noções sobre o conceito de gênero musical segundo Franco Fabbri. Os estudos culturais dão um olhar mais aguçado à dimensão comunicacional, pois consideram as utilizações da cultura em articulação com as formações ideológicas, representações culturais e como elas circulam na sociedade. Buscam também compreender 16

as produções culturais dissidentes e os processos de resistência de grupos marginalizados e das subculturas (KELLNER, 2001). A semiótica da cultura estuda os processos comunicacionais, signos, linguagens e processos culturais. A teoria unirá os conceitos de semiosfera e texto cultural para apreender os elementos de sentido que moldam a canção. A característica híbrida da canção brasileira de raiz cristã gera uma outra semiosfera, diferente da semiosfera do gospel. O texto cultural, visto como unidade complexa, alude a outros elementos textuais, transforma informações e produz novas linguagens. Isso contribui para geração de novos textos e produções culturais na semiosfera. Assim, a questão fundamental de análise no plano comunicacional se volta à produção de sentido compreendida como relação social (CAUNE, 2014). A noção de gênero musical na perspectiva Franco Fabbri (1982) ajuda a compreender as categorizações dos gêneros para além do aspecto sonoro. Segundo o musicólogo italiano, existem pelo menos cinco regras formais que ajudam a compreender essas categorizações: regras de convenção e instrumentação; semióticas ou comunicacionais; comportamentais; sociais e ideológicas e econômicas e jurídicas. Portanto, compreender a produção de sentido da canção evangélica consiste em pensá-la para além do aspecto meramente sonoro, cabe mobilizar também os processos comunicacionais que envolvem os gêneros. Sobre o levantamento de teses e dissertações feito para o estado da arte, um dos trabalhos de maior fôlego dedicados à temática é a tese de doutorado de Magali do Nascimento Cunha, publicada em livro em 2007. A tese busca analisar a música, o consumo e o entretenimento religioso como mediações do sagrado e o lugar da cultura das mídias na formação de uma nova expressão religiosa: a cultura gospel. A autora utiliza o ferramental teórico dos estudos culturais e das ciências da religião em abordagem crítica. O uso da metáfora “vinho novo em odres velhos” faz eco ao surgimento de uma cultura que se cria sob paradigmas pouco alterados. A autora utiliza a expressão “modernidade de superfície” do filósofo alemão Rudolf Eucken (1996) para afirmar que a cultura gospel propõe mudanças superficiais e de pouca relevância em relação àquilo que se pretende transformar. A dissertação de mestrado em Música de Joêser de Sousa Mendonça (2009) apresenta as performances e canções dos artistas gospel e a interação com os modelos das canções pop da cultura das mídias, mostra as mudanças ocorridas nos processos culturais que têm como pano de fundo a pós-modernidade e como isso reverbera nas religiosidades contemporâneas. 17

Fundamentada nos estudos culturais, a análise do autor busca compreender os processos de apropriação religiosa do universo pop das mídias em articulação com a cultura pós-moderna. A dissertação de mestrado em Música de Euridiana Silva Sousa (2009) trabalha, por meio de um processo de reconstrução histórica, os discursos, a musicalidade e as práticas de culto de duas igrejas batistas, tradicional e pentecostal. A autora analisa os discursos da música religiosa e das performances para além das estratégias institucionalizadas em que prevalece a diferença. Empreende um profundo estudo de campo que combina observação participante, entrevistas em profundidade e análises de material fonográfico em articulação com perspectivas teóricas da literatura, antropologia, sociologia da religião, etnomusicologia, sociologia da música e comunicação. A pesquisa etnográfica foca na análise musical como significante e significado da música religiosa vista como um fenômeno em transformação. A dissertação de mestrado em Música de Elza Oliveira de Souza Almeida (2010) propõe uma reflexão pós-moderna de espetacularização e consumo da música evangélica pentecostal em Goiânia a partir da atuação da rádio local Paz FM 89,5. A utilização da canção gospel como música pop aponta semelhanças de instrumentação, arranjos, performances, produção e consumo fora do âmbito religioso. A autora explora o gospel da origem até à contemporaneidade, em reflexões teóricas de autores como: Baggio, Calado, Muggiati, Friendlander entre outros. A dissertação de mestrado em Educação de André Müller Reck (2011) analisa as práticas musicais e os processos identitários do grupo Somos Igreja da Comunidade Cruz Alta, no Rio Grande do Sul. As práticas evangélicas ressignificadas pela cultura gospel são estudadas de forma transdisciplinar pela sociologia, antropologia, etnomusicologia e pelo contexto sociocultural dos sujeitos, nas construções identitárias e experiências cotidianas. O autor reflete sobre as práticas musicais contemporâneas e os processos de produção. O estudo da cultura gospel problematiza questões da experiência musical, o cotidiano e as construções simbólicas dos significados religiosos construídos pelos sujeitos. A dissertação de mestrado em Letras de Gisele Siqueira Gonçalves (2012) analisa o conteúdo emocional da canção gospel como elemento discursivo de efeito na captação de fieis. A autora busca compreender o caráter patêmico da canção religiosa em articulação com a mídia e o mercado fonográfico. Como objeto de pesquisa, analisa as canções e o testemunho do cantor Lázaro, ex-integrante do grupo Olodum, por meio do disco Testemunho e Louvor, vencedor do troféu talento em 2009, maior evento da música gospel do país. O aporte teórico 18

e metodológico é a semiolinguística francesa de Patrick Charaudeau utilizada para analisar o conteúdo discursivo e os modos de produção da canção gospel. A dissertação de mestrado em Comunicação Social de Jênifer Rosa de Oliveira (2016) analisa os processos culturais entre mídia e religião e as tensões entre o sagrado e o profano na sociedade midiatizada. Como objeto de estudo, busca analisar a participação de artistas evangélicos no programa Esquenta! exibido nas tardes de domingo na Rede Globo de Televisão. Utiliza o conceito de bios midiático de Muniz Sodré e algumas discussões sobre secularização em Jürgen Habermas. Em um primeiro momento, a autora analisa o conteúdo de cinco edições do programa com a participação de artistas gospel entre os anos 2013 e 2014, a fim de perceber qual lugar a música gospel ocupa no formato. Depois, mobiliza dois grupos focais, um composto por evangélicos e o outro por não-evangélicos para compreender como os conteúdos são rearticulados e ressignificados pela audiência. A participação dos artistas, segundo a autora, amplia a noção de gospel e legitima o lugar da experiência religiosa em um processo de dupla afetação que entrecruza os universos religioso midiático. A dissertação de mestrado em Estudos de Mídia de Alan Soares Bezerra (2016) traz um estudo de caso do grupo como o maior articulador da indústria cultural evangélica. A pesquisa enfoca os processos de produção, distribuição e consumo. O corpus constitui-se das canções tema dos álbuns: , , Tua Visão, , Tu Reinas e . A instituição religiosa detém, segundo o autor, a estrutura formativa de grupos e artistas gospel. A “modernidade de superfície”, segundo o autor, mostra-se nos elementos simbólicos da canção e simulam uma abertura religiosa pouco expressiva e que ainda mantém viva tradições, pensamentos e valores conservadores. Por fim, a dissertação de mestrado em Comunicação de Edson Ramos de Oliveira Costa (2017) busca compreender a produção cultural evangélica em articulação com o trabalho de artistas, executivos de gravadora, aplicativos de streaming e distribuição digital. O quadro teórico de referência é a economia política da comunicação e a teoria das mediações de Jesús Martín-Barbero. Segundo o autor, o gospel difere da música evangélica em mediações feitas entre indústria cultural e público. A utilização do termo gospel não depende apenas da música e do público, mas de um posicionamento artístico e das particularidades relacionadas à indústria cultural. Os procedimentos metodológicos utilizados incluem análise bibliográfica e documental e entrevistas em profundidade com artistas e executivos. 19

Os trabalhos levantados discutem o gênero gospel como objeto de pesquisa, tema exaustivamente trabalhado em âmbito de pós-graduação. O levantamento bibliográfico realizado não evidenciou nenhum tipo de estudo que tratasse de compreender como se constroem os grupos sociais distintos do gospel hegemônico e como ocorrem suas produções de sentido, ponto que diferencia a pesquisa dos demais estudos empreendidos. A contribuição e a justificava residem no aprofundamento e na compreensão de manifestações artísticas dissidentes não circunscritas ao gospel e que rompem com o meio hegemônico, antagônico ao representado na cultura das mídias e na sociedade como um todo. Como justificativa, a pesquisa visa oferecer um olhar crítico e reflexivo para compreender um tipo específico de produção musical evangélica ainda não explorada em sua totalidade. Busca-se compreender a construção dessa produção musical, análise ainda não revelada pelo levantamento feito no estado da arte. A pesquisa possui relação com temáticas já abordadas em outros trabalhos, mas que se difere no olhar sobre objeto ao trazer um viés comunicacional para compreender a música evangélica brasileira contemporânea. Klaus Brühn Jensen e Nicholas Jankowski (1993) propõem trabalhar com pesquisas em Comunicação a partir de uma perspectiva multimetodológica. A pesquisa visa combinar métodos que permitem a cada um promover a sua complementariedade. Os procedimentos visam combinar diferentes métodos para coleta, tratamento e análise de dados, entre eles: entrevista em profundidade, análise semiótica da cultura e das canções e reflexões sobre o conceito de gênero musical e sua inserção na cultura midiática. Os artistas que compõem o corpus de análise foram selecionados em critérios que os diferenciam dos artistas da música gospel conforme aspectos que definem a linguagem da canção: letras, arranjos, sonoridades, discursos, circulação e utilização de espaços culturais não religiosos. Dentro do rol de artistas que atendem a essas descrições encontram-se: Marcos Almeida, Jorge Camargo, Estêvão Queiroga e Gerson Borges, que representam bem o objeto de pesquisa: atuação artística dissidente, posicionamento crítico ao mercado e uma produção sonora de características distintas. Os quatros artistas moram em São Paulo e foram acessíveis para realização das entrevistas em profundidade. Os critérios de seleção ainda tiveram base em formações ligadas ao aspecto extramusical. Marcos Almeida é bacharel em Educação Artística com habilitação em Música pela Universidade Estadual de Minas Gerais, (UEMG) e possui um blog, Nossa Brasilidade, com 20

textos sobre fé cristã e cultura popular1. Em 2014, empreendeu um denso estudo que buscou compreender os elementos de espiritualidade na música popular brasileira a partir da lista dos 100 maiores discos de MPB segundo lista da revista Rolling Stone de 2007. A pesquisa elencou 100 canções uma de cada disco e buscou mapear formas de espiritualidade na canção popular. Jorge Ben, Nelson Cavaquinho e Tom Zé são alguns dos artistas que tiveram suas canções analisadas. A pesquisa faz eco a um dos importantes estudos já empreendidos sobre o tema no Brasil: Teologia e MPB, de Carlos Eduardo Brandão Calvani2, padre anglicano e professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Jorge Camargo é administrador, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutorando em Educação, Arte e História da Cultura na mesma Universidade. Em 2009, lançou De vento em popa: Fé cristã e música popular brasileira, resultado de sua dissertação de mestrado. É escritor, compositor e produtor musical há 30 anos. Professor de inglês, tradutor e intérprete nas áreas de filosofia, religião, arte e cultura. Estêvão Queiroga estudou jornalismo e publicidade na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), foi redator publicitário da NBS agência de publicidade com sede em São Paulo onde recebeu o prêmio London International Advertising Awards. Seu primeiro disco Diálogo número um de 2016 teve participação da Orquestra Sinfônica Nacional Checa em quase todas as faixas. Gerson Borges é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-graduado em Sociologia e Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), tem um livro chamado Ser evangélico sem deixar de ser brasileiro de 2016 onde transcorre sobre temas ligado à espiritualidade e à cultura brasileira. É pastor na igreja Comunidade de Jesus em São Bernardo do Campo, São Paulo. Para compreender a produção musical em questão, selecionamos quatro canções representativas de cada artista. As canções indicam mudanças importantes no repertório cancional: Lá de casa; Pensamento bom; Jeito do céu; e Que onda, de Marcos Almeida. Poeta; Sim e não; Pasárgada; e Sonho não morre, de Jorge Camargo. Corre atrás do vento;

1 Alguns desses textos foram analisados pelo autor no artigo: O texto artístico como gênero do discurso: uma análise dos portais Nossa Brasilidade e Terceira Margem do Rio numa perspectiva Bakhtiniana. In: Mediacom, 2019. Anais do Mediacom 2019. São Paulo: Faculdade Paulus de Comunicação, 2019, p. 191-210. 2 CALVANI, Carlos Eduardo Brandão. Teologia e MPB: um estudo da teologia da cultura de Paul Tillich. São Paulo: Loyola/ UMESP, 1998. O livro é resultado da tese de doutoramento do autor defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo em 1998.

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A partida e o norte; Amanheceu; e Tá, de Estêvão Queiroga. E, Dizem que sambar é pecado; Discipulado; Sobretudo quando chove; e Flora flor, de Gerson Borges. A análise semiótica uniu os conceitos de semiosfera, fronteira e texto cultural inscrita na semiótica da cultura de origem russa, em Iuri Lotman, para mapear os modos de produção musical, os usos, apropriações e a produção de sentido dos artistas. Esse tipo de canção gera outra semiosfera que adquire características de sentido próprias. A análise buscou encontrar possíveis distinções nas letras, arranjos, sonoridades, diferentes diálogos, intertextualidades e elementos não apenas sonoros, mas comunicacionais que suscitam questionamentos como: quais aspectos da canção articulam linguagens e sentidos que a diferem das outras vertentes da música evangélica? O que há de distinção nessa produção musical a ponto de os artistas recusarem o título gospel? No que tange à análise do gênero musical, utilizamos conceitos de anafonia e musema propostas pelo musicólogo britânico Philip Tagg (2003). A anafonia pode ser compreendida como um neologismo da palavra analogia. Diz respeito ao uso de elementos musicais já existentes na criação de uma nova peça musical, conceito que se aproxima também da ideia de intertextualidade. As anafonias correspondem não apenas aos aspectos sonoros da canção, mas a todo o universo de sentidos voltados às experiências, cosmovisões, relações e práticas cotidianas (TROTTA, 2008). Musema é a unidade de significação musical, pode ser encontrada nos “motivos, riffs, timbres, gestos, texturas, cadências, levadas etc.” (ULHÔA, 1999, p. 62). Trata-se de um fragmento musical que remete a outro fragmento musical diferente daquele o qual se fez menção. A pretensão não é fazer uma análise musicológica, o foco está nas questões que envolvem a Comunicação de forma mais ampla, isto é, compreender como a canção articula uma outra produção de sentido por meio das anafonias e dos musemas que moldam a canção. O conceito de musema foi utilizado para captar esses diálogos e intertextualidades que a música brasileira de raiz cristã faz com a música popular brasileira. As análises cancionais tiveram foco em aspectos comunicacionais e extramusicais considerando toda a dimensão simbólica, linguística, técnica, poética e social da canção (TAGG, 2003). As entrevistas em profundidade buscaram compreender os processos criativos da canção, a construção do cotidiano artístico e a produção de sentido dos artistas. Foram momentos de discutir, refletir e aprofundar o entendimento das canções analisadas no corpus. Sobre a entrevista em profundidade, Jorge Pedro Sousa (2006, p. 722) afirma que a “sua 22

principal vantagem, como o nome indica, reside na possibilidade de se obterem informações pormenorizadas e aprofundadas sobre valores, experiências, sentimentos, motivações, ideias, posições, comportamentos etc. dos entrevistados”. A dissertação está dividida em quatro capítulos. O primeiro busca compreender a formação da cultural evangélica no Brasil, a origem da música gospel; o contexto cultural gospel e sua consolidação; o gospel como mediação da experiência religiosa e sua característica híbrida; a prática religiosa inserida num contexto de reencantamento do mundo e a religião midiatizada; o diálogo da música evangélica com a música popular a partir de um estudo de caso do disco De vento em popa do grupo Vencedores por Cristo, de 1977; a canção de fé no início dos anos 1970 e a influência da Teologia da Libertação; as bases do protestantismo brasileiro que desembocaram na cultura gospel; a identidade cultural pós- moderna e o gospel inserido num contexto de pluralidade religiosa; a fabricação da realidade e a produção de sentido no cotidiano; o questionamento do gospel como “renovação musical” fruto de uma modernidade de superfície, sem efetividade de mudança real; e as construções simbólicas do cotidiano artístico que têm como pano de fundo as discussões sobre arte e espiritualidade na perspectiva de Hans Rookmaaker, Frank Schaeffer e Steve Turner. O segundo capítulo visa descrever a produção musical em questão na perspectiva dos estudos culturais britânicos, numa visão panorâmica dos autores e textos fundadores; a ideia de “estrutura de experiência” de Raymond Willians em seus momentos: dominante, residual e emergente; a importância do ensaio ecoding/decoding para as pesquisas em comunicação e algumas noções sobre representação cultural em Stuart Hall; cultura, hegemônica e senso comum em Antônio Gramsci; o senso comum e a “epistemologia complexo-compreensiva”; as resistências na música evangélica brasileira a partir de um estudo de caso do Coletivo Candiero; o hibridismo cultural na perspectiva de Néstor García Canclini; e a concepção de revolução simbólica em Pierre Bourdieu. O terceiro capítulo visa compreender a produção musical evangélica por meio da semiótica da cultura em seus conceitos de semiosfera, fronteira e texto cultural; busca verificar como a música brasileira de raiz cristã pode criar novos textos culturais e uma nova semiosfera; compreender de que maneira o gênero musical relaciona aspectos da produção e do consumo cultural como articulador de inovações, criatividades e novas formas de se relacionar com a canção; verificar nas entrevistas em profundidade e nas pistas dadas pelos 23

artistas suas compreensões em relação à produção musical, como se compreendem enquanto artistas e por quais vias ocorre a produção de sentido. O quarto capítulo traz as análises cancionais dos quatro artistas analisados no corpus em categorias que abrangem: sonoridade, arranjos, anafonias e musemas. As categorias são relacionadas e ajudam a compreender os aspectos distintivos que permeiam canções. Foram analisadas quatro produções de cada artista totalizando 16 canções. Ao final de cada análise, são utilizados trechos das entrevistas para refletir sobre a produção cancional numa dimensão mais aguçada das falas dos artista. Os pormenores evidenciados nas intenções sonoras e nos usos e apropriações culturais das canções correspondem a formações culturais não apenas ligadas ao campo da música religiosa, mas também o que existe fora dele.

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CAPÍTULO 1 | A CONSOLIDAÇÃO DA CULTURA EVANGÉLICA NO BRASIL

Falar de música cristã não significa necessariamente falar de uma música cuja letra transmita uma mensagem bíblica explícita ou expresse a experiência de uma vida de fé e obediência piedosa.

Hans Rookmaaker

1.1 A música gospel: das origens à midiatização

Em sentido etimológico, gospel é a junção das palavras God+Spell, em tradução livre, palavra de Deus. Na língua inglesa, gospel significa evangelho e corresponde aos quatro primeiros livros do novo testamento bíblico: Mateus, Marcos, Lucas e João. Os livros narram as passagens de Jesus Cristo em suas peregrinações, sermões e parábolas. Na tradição musical sacra, são evidentes os trabalhos de Johann Sebastian Bach e Georg Friedrich Händel que popularizaram os chamados oratórios. Já a canção gospel tem origem com as chamadas works songs entoadas pelos escravos negros europeus e norte-americanos durante as intensas jornadas de trabalho nos campos de algodão. Segundo Daniel Latorre (2005), as canções de trabalho eram entoadas para aliviar o árduo labor, a opressão e os abusos dos senhores do engenho. Continham temas bíblicos e menções à vida cotidiana regada de uma grande carga emocional, posteriormente chamados de negro spirituals. Em 1863, os negros foram integrados ao mundo livre, mas a herança cultural africana mesclada à realidade norte-americana mudaria os aspectos da música negra a partir dali. As canções no estilo “estimulo/resposta” traziam um solista que alternava os versos com a resposta do coral, típico do canto do continente africano utilizado até hoje nas comunidades negras. O ritmo sincopado liga a nota do último compasso à primeira nota do compasso seguinte. As chamadas work songs serviram de base para a criação do movimento avivalista norte-americano, os spiritual songs, embrião do que ficaria conhecido como movimento pentecostal anos depois. A música gospel, emocional, espontânea e ritmada, tem suas origens na prática do negro spiritual norte americano (BAGGIO, 2005). 25

Composta por uma gama de estilos musicais e com menção aos textos bíblicos, a canção gospel cantada nas igrejas negras do início do século XX é, sem dúvida, a mais importante, porque influenciou não apenas a forma como os brancos passaram a fazer música, como também serviu para a criação de importantes gêneros musicais, o jazz, o blues e a soul music. Em sua concepção original, a canção gospel era interpretada por um solista acompanhado de um organista e de um coro responsivo. Diferentemente dos negro spirituals, que traziam nas canções mensagens de cunho pessoal e sofrimento laboral, o gospel moderno é altamente improvisado, ritmado e alegre. A canção gospel surge num contexto de grande preconceito e segregação racial. Os escravos recém-convertidos começaram a frequentar as igrejas tradicionais de maioria branca e eram hostilizados por sua cor. Com a proibição de frequentar os espaços, os negros criam suas próprias comunidades que se tornaram lugares de pertencimento e reconhecimento. Um exemplo dessas comunidades é a “Igreja Metodista Episcopal Africana, inicialmente denominada Sociedade Africana Livre, fundada em 1787, na cidade de Filadélfia, por Richard Allen” (BAGGIO, 2005, p. 16). Nessas comunidades, as práticas musicais traziam ecos da herança cultural africana mescladas ao contexto de assimilação da cultura dominante. Muitos sincretismos musicais também se formaram nesse período (CALADO, 1990). No contexto gospel moderno, um dos principais nomes é o do pianista e compositor americano Thomas Andrew Dorsey, primeiro a juntar o gênero blues à música religiosa negra tendo recebido por isso a alcunha de “pai do gospel” na década de 1920. Cunhou também a expressão “canção gospel”, antes chamada canção evangelística. Seu trabalho mais notório, Precious Lord, take my hand, de 1931, foi regravado por inúmeros artistas, dentre eles, Elvis Presley e Mahalia Jackson.3 Foi introduzido no Hall of Fame da música norte-americana em 1982 tendo sido o primeiro negro eleito para o Hall of Fame de compositores de Nashwille. Foi também o primeiro indicado ao Living Hall of Fame of Gospel Music Association. Thomas Dorsey morreu em Chicago em 1993 aos 94 anos. Em 2018, foi introduzido ao Hall of Fame do blues americano com seu nome artístico Georgia Tom Dorsey.

1.1.1 O gospel no Brasil

3A cantora “fez história ao se apresentar antes de Martin Luther King Jr. pregar o famoso sermão I have a dream [eu tenho um sonho]. No funeral de King, em 1968, foi ela quem interpretou o clássico de Dorsey Take my hand, Precious Lord” (CUNHA, 2007, p. 208). 26

O gospel adquire status de cultura, a cultura gospel. Ela nasce do entrecruzamento entre mídia, religião e consumo e prefigura um novo “modo ser” evangélico num contexto de “reencantamento do mundo”. A mídia passa a ser um aparato fundamental da experiência religiosa, assim, “consumir bens e serviços é ser cidadão; na lógica da cultura gospel, consumir bens e serviços é ser cidadão do reino de Deus” (CUNHA, 2007, p. 138). No Brasil, gospel é um estilo musical que se popularizou no início da década de 1990 e que tem como principal protagonista uma instituição religiosa, a Igreja Renascer em Cristo. Utilizado para caracterizar um estilo musical específico, o gênero foi instrumentalizado pela instituição como estratégia mercadológica para fomentar seus produtos utilizados em nomes de gravadora, veículos de comunicação e mídia impressa. Criaram a Gospel Records, Revista Gospel, Rede Gospel de Televisão (canal 53 – UHF), rádio Gospel FM (90.1) e o portal de notícias IGospel. Artistas vinculados à instituição começaram a intitular o próprio trabalho e adicionar o termo gospel em sufixo. Assim, surgiram o rock gospel, rap gospel, reggae gospel, dentre outros estilos (CUNHA, 2007). A referência ao termo gospel vem sempre acompanhada da palavra movimento, o “movimento gospel”, menção ao “movimento de Jesus”, ou Jesus Movement, ocorrido nos Estados Unidos nos anos 1970 e que influenciou, sobretudo, a juventude hippie. Os jovens procuravam formas alternativas de espiritualidade ao mesmo tempo em que denunciavam o estilo de vida de consumismo, hipocrisia religiosa e o fim da guerra do Vietnã. Muitos jovens se converteram à fé cristã, mas não deixaram de lado o estilo de vida contracultural. Alguns artistas influenciados pelo movimento também se converteram, entre eles, Bob Dylan, Eric Clapton e Johnny Cash. No Brasil, o “movimento de Jesus” exerceu grande influência no trabalho de grupos musicais paraeclesiásticos.4 Magali Cunha (2007) faz uso da metáfora “explosão”, a partir da obra de Iuri Lotman, Cultura e explosão, lançada postumamente em 1999, para se referir à cultura gospel como um processo cultural que irrompe aspectos do campo religioso. A explosão não se encerra no fenômeno, se desencadeia em processos fortuitos que alteram sobremaneira a rota dos acontecimentos (MACHADO, 1999). Como decorrência desses processos culturais, Magali Cunha (2007) elenca nove mudanças significativas geradas pela “explosão gospel”:

4 “As instituições paraeclesiáticas são organizações que não possuem vínculo eclesiástico – são autônomas -, fundadas, administradas por pessoas ou grupos de cristãos independentes do pertencimento deles a igreja ou outras organizações eclesiásticas, e cujo objetivo e a propagação da fé cristã” (CUNHA, 2007, p. 218). 27

1) O momento musical como atração principal do culto religioso; 2) A modernização do canto congregacional, o uso de tecnologias de projeção, telões, datashow e o investimento maciço em aparatos de som e imagem; 3) A abolição dos conjuntos musicais para dar lugar aos ministérios de louvor com tempo e espaço privilegiado no culto religioso; 4) A incorporação de diferentes gêneros musicais na composição da música gospel; 5) O uso das danças, performances e das artes do corpo como forma de culto; 6) A adesão aos “louvorzões” e a ampliação de programações culturais ao público religioso; 7) O consumo de conteúdo religioso midiático: rádios, videoclips e revistas especializadas; 8) A semelhança dos artistas gospel com os artistas da música não religiosa; e 9) O fomento das programações culturais como promoção ao lazer: bares, livrarias e “baladas gospel” com consumo de bebidas, vinho e cerveja sem teor alcoólico.

É grande a oferta de ritmos e estilos musicais na cultura gospel, as reuniões passam a se chamar “louvorzão”, com espaço de destaque nos cultos. Os grupos se assemelham aos da música não religiosa que utilizam grande aparato de som e imagem em alta qualidade. Os pentecostais, diferentemente dos cristãos tradicionais, rendem-se à emoção e à atmosfera de adoração criada pela música, entram em êxtase espiritual. Os católicos de matriz carismática também se rendem ao ambiente de adoração causado pela música. As letras prezam pela repetição de frases de fácil memorização, as mais extensas são projetadas em telões, alguns dispostos dentro do templo. A canção gospel entoada nessas comunidades é marcada por uma pobreza poética e na estética musical (MARANSCHIN, 2010). A “explosão gospel” torna-se factível graças ao crescente número de gêneros musicais e categorias de seleção que povoam as prateleiras de discos nas lojas e nos sites de compra on-line. Uma pesquisa feita em um dos maiores sites de vendas da internet elencou 15 gêneros musicais na categoria gospel “louvor e adoração”: black music; pop; pop rock; dance; rap/funk; hinos; infantil; instrumental; pagode; pentecostal; popular; reggae; sertanejo; vocal” (CUNHA, 2007, p. 102). A canção gospel se apropria dos gêneros populares, como samba, pagode, forró, axé, reggae, entre outros, mas no que tange ao uso de instrumentos e performances não há uma diferença relevante que a distingua da música não religiosa. Existe uma liberdade relativa de 28

criação, instrumentação e utilização de ritmos, mas o conteúdo das letras, orações, petições e louvor ao Senhor distinguem a canção gospel e a faz ser reconhecida como tal. As amarras entre sacro e profano, tão valorizadas pelos cristãos conservadores são diluídas pelo gospel. Como produto de mercado, a canção faz um elo entre o ouvinte e atende aos interesses não apenas dos líderes religiosos, mas também das grandes corporações da indústria fonográfica. O cruzamento entre mídia, religião e consumo já havia sido descrito por Jesús Martín- Barbero (1995a) em meados dos anos 1990, contexto em que a mídia, sobretudo a televisão, atuava em um processo de reencantamento do mundo. O autor compreende os usos dos meios de comunicação não do ponto de vista instrumental, manipuladora de consciências, como compreendem alguns autores apocalípticos, mas como uma instância que confere sentido à realidade e ao cotidiano dos sujeitos. A “igreja eletrônica”, tanto na concepção de Hugo Assmann (1986) como na de Martín-Barbero (1995a) e seu impacto social na América Latina por meio dos televangelistas midiáticos, age no sentido de devolver à religião seu caráter mítico perdido no processo de secularização e de “desencantamento do mundo”. Para os não religiosos, o processo não apresenta magia alguma, mas para os religiosos existe a experiência de encurtamento das distâncias e da supressão do tempo em um processo mágico, misterioso e emocionante, em suma, reencantador. De certa forma, “a mídia trouxe uma eliminação da distância entre o sagrado e o profano. Aquela distância que as religiões mantiveram por muito tempo, a mídia tem deslocado, tem desarticulado e colocado magia onde antes havia apenas profanação” (MARTIN-BARBERO, 1995a p. 77 – tradução nossa).5 Esse contexto abre caminho para as discussões sobre os processos de midiatização da sociedade, que ganharam notoriedade na pesquisa acadêmica em Comunicação nos anos subsequentes. A midiatização é pensada para além da questao técnica, é vista em seu aspecto antropológico onde a incidência dos meios recriam uma outra ambiência que reconfigura os modos como os sujeitos passam a gerir seus atos cotidianos. Muniz Sodré (2013) compreende a midiatização como processo que reconfigura as formas cotidianas de vida em articulação com o aspecto técnico dos meios que alteram sobremaneira o modo como os sujeitos dão sentido à própria vida. Essa nova ambiência, ensejada pelo atravessamento dos meios, é chamada pelo autor brasileiro de “bios midiático”.

5 Do original: los medios han acarreado una eliminación de la distancia entre lo sagrado y lo profano. Aquella distancia que durante tiempos las religiones mantuvieron, los medios han desplazado, han desarticulado la separación y han metido magia donde antes no había sino profanidad. 29

A hipótese se perfaz com base na filosofia aristotélica que considera o bios um espaço de relações sociais na pólis grega dividido em três instâncias distintas: o bios contemplativo, , do ócio, da elucubração e do conhecimento; o bios político, da vida prática, técnica e da ação política; e o bios sensível, dos prazes, afetos e sensibilidade. Na sociedade contemporânea, os meios de comunicação recriam uma outra esfera existencial que “emerge hoje como um duplo exteriorizado, ou ecossistema tecnológico, uma forma virtualizada de vida a que chamamos de bios virtual, (uma manifestação mais evidente é a dimensão midiática)” (SODRÉ, 2006, p. 99). Além das três esferas descritas por Aristóteles, theoritikós, práxis e poíesis, há na sociedade contemporânea uma outra esfera composta de sons, imagens, rede digitais e toda gama de informações. Um debruçamento mais aprofundado sobre a questão, indicará que as práticas sociais imbricadas ao aspecto técnico da midiatização, alteram substancialmente a produção de sentido na sociedade. Contudo, cabe ressaltar que as formas sociais midiatizadas não anulam formas tradicionais feitas sem o uso irrestrito dos meios. A linguagem midiática confere novas formas de experienciar o que antes era comumente feito sem o uso massivo dos meios, o que gera uma cultura midiática que “se converte na referência sobre a qual a estrutura sóciotécnica-discursiva se estabelece, produzindo zonas de afetação em vários níveis da organização e da dinâmica da própria sociedade” (FAUSTO NETO, 2008, p. 9). A prática religiosa também ganha outros sentidos no contexto midiatizado e a “cultura gospel” é decorrência direta desse processo. Esse “novo modo de ser mundo”, concepção de Pedro Gilberto Gomes (2019), é também um modo de ser das religiões que nascem dentro dessa lógica. Sem querer parecer redundante, a religião midiatizada se desenvolve junto às dinâmicas das mídias, ou seja, o seu “modo de ser” não funciona fora desse sistema. Uma prática religiosa que faz uso dos meios, mas que não altera o seu funcionamento, não pode ser considerada midiatizada, e sim mediada. A transmissão de um culto religioso pela televisão, sem nenhum tipo de alteração nas práticas litúrgicas, é a mediação do culto, o meio tecnológico serve de mediação. Quando esse mesmo culto é adaptado para se parecer mais com o estilo dos programas televisivos, ou quando alguma liderança religiosa adota posturas semelhantes à figura de uma personalidade midiática, na indumentária, no modo de falar e de se dirigir ao público, entra-se na esfera da midiatização (MARTINO, 2016). O uso de elementos simbólicos não circunscritos ao âmbito religioso, atualiza e dá uma nova roupagem ao conteúdo religioso no contexto contemporâneo. No entanto, a religião 30

midiatizada convive ao mesmo tempo com um paradoxo: o processo de secularização. Ela adquire, nos termos de Jürgen Habermas (2007), um aspecto de “dupla afetação”, a religião rearticula os sentidos do religioso em elementos não pertencentes à sua concepção, no caso, a televisão, o rádio, o celular e outras mídias. A característica transcendental da religião de conferir benção aos elementos que utiliza, faz dos aparatos midiáticos também elementos do “sagrado”. Assim como a cruz, a hóstia e a água-benta, a mídia também é sacralizada. A religião se apropria da mídia e produz novas formas de experimentar o sagrado. Por sua vez, a mídia se apropria da religião para atrair novos fiéis. Esse processo de “dupla- afetação” amplificado pelo processo de midiatização produz uma nova religião, uma religião midiatizada. A cultura gospel, atravessada pela lógica do consumo e do entretenimento, corresponde a um modo específico de dar sentido à experiência religiosa em detrimento de outros modos possíveis preteridos. O mesmo ocorre no campo da música. Muito antes do termo gospel surgir e cooptar todas as demais práticas musicais existentes, já existia no Brasil uma produção musical local que não atendia pelo nome gospel.

1.2 Música evangélica brasileira: encontros e despedidas

Muito antes do termo gospel surgir no Brasil, já existia aqui uma música de fé desde a década de 1970. No entanto, parte considerável desse cancioneiro ainda é desconhecido do grande público evangélico, mesmo após 40 anos de produção ininterrupta de alguns artistas. Sérgio Pereira, historiador e músico brasileiro, elenca mais de 60 artistas e grupos musicais6 que, somados, já produziram uma centena de álbuns de um tipo de música popular que traz em si elementos de fé contidos em uma poética musical criativa e inovadora. Além de parte integrante dessa produção, Sérgio Pereira compõe juntamente com sua esposa, Marivone Lobo, o duo de música brasileira Baixo e Voz que possui uma trajetória de inúmeros trabalhos

6 Airô Barros, Aline Pignaton, Alann Marino, Alma e Lua, Aristeu Pires, Arlindo Lima, Baixo e Voz, Banda Matizes, Bruno Albuquerque, Carlinhos Veiga, Carlos Sider, Carol Gualberto, César do Acordeom, César Elbert, Céu na Boca, Crombie, Diego Venâncio, Edilson Botelho, Edson e Tita Lobo, Elen Lara, Elly Aguiar, Erlon Lemos, Expresso Luz, Daniel Maia, Fabinho Silva e Débora Camargo, Fabrício Matheus, Felipe Silveira, Fernando Merlino, Gerson Borges, Gladir Cabral, Glauber Plaça, Grupo Logos, Guilherme Kerr Neto, Ilma Brescia, Ivan Melo, Jader Gudin e Flávio Régis, João Alexandre, Jorge Camargo, Jorge Ervolini, Josimar Bianchi, Júlia Ribas, Marcos Almeida, Mário Valadão, Miguel Garcia, Nando Padoan, Nelson Bomilcar, Priscila Barreto, Roberto Diamanso, Rubão, Sal da Terra Silvestre Kuhlmann, Stênio Marcius, Tiago Vianna, Toninho Zemuner e Rubem Amorese, Vavá Rodrigues, Vencedores por Cristo, Wanda Sá (que possui uma trajetória na história da bossa nova) e Wesley e Marlene (PEREIRA, 2014, p. 11). 31

musicais desde 1991, sendo possivelmente a primeira dupla nesse formato no Brasil a gravar um EP7, Voz e Baixo, com oito canções em fita cassete em 19958. As canções não se encaixam no gênero gospel, até porque o termo ainda não circulava no Brasil, tão pouco no meio alternativo, underground, onde prevalecem figuras do trash e do heavy metal. Os artistas produzem um tipo de música brasileira para além dos rótulos da MPB e que poderia ser descrita nos termos correntes como “música brasileira de raiz cristã” ou “música brasileira tecida na esperança”. Seriam como os “artistas anfíbios”, acepção de Néstor García Canclini (2015), artistas que articulam movimentos e códigos culturais de diferentes vertentes como em algumas produções teatrais e em boa parte da música popular. Artistas que provam ser possível amalgamar heranças culturais distintas, refletir criticamente sobre os sentidos e elencar elementos comunicacionais de valor e de troca cultural. Um dos artistas que antecedera o gospel no Brasil, exemplo destes “artistas anfíbios”, é o carioca Sérgio Pimenta, morto vítima de um câncer fulminante aos 32 anos em 1987. Compôs mais de 300 canções no período de uma década. Seu diferencial foi incorporar ritmos brasileiros como o samba, o baião e a bossa nova à canção cristã, algo ainda pouco usual no cancioneiro brasileiro da época. Quico Fagundes, violonista brasiliense e amigo pessoal de Sérgio Pimenta, descreve detalhes da convivência, carreiras paralelas à música e influências.

Eu tinha quase 17 anos e o Sérgio uns 18. Eu tocava violão com floreios clássicos e ele com tempero de bossa nova. Eu me preparava para o vestibular, para o curso de engenharia elétrica, e ele para medicina. Ambos gostaríamos de ter sido músicos profissionais, mas a estrutura da música evangélica da época não permitia. Naquele tempo, o que se conhecia eram os corais, os quartetos masculinos, tipo Arautos do Rei, alguns solistas avulsos e, em São Paulo, o missionário Jaime Kemp estava consolidando os Vencedores por Cristo. No início, eles cantavam músicas num estilo meio jovem-guarda, americanas traduzidas e usavam uniforme mais para anos 50. O nosso conjunto, Ele Vive, era um clone deles. Gostávamos muito das canções de Ralph Carmichael, tipo, Existe um lugar, Se eu fosse contar, Volte atrás e outras, com harmonia em 4 vozes e um violãozinho esperto acompanhando. Agora, viver exclusivamente de música, ninguém conseguia. Não havia mercado evangélico ainda. Os discos tinham uma produção caríssima e os mecanismos de divulgação eram muito limitados. Rádio evangélica, só umas, duas AM em São Paulo e Rio, mas que ninguém ouvia (FAGUNDES, 2020, s/p).

7 Sigla inglesa para termo extended play. Trata-se de uma mídia fonográfica, vinil, K7 ou cd, que diferentemente do álbum possui entre 2 a 4 faixas. 8 É interessante notar que em 1992, Caetano Veloso e o baixista brasileiro Dadi Carvalho gravaram Leãozinho, canção do álbum Bicho, de 1977 que teve uma releitura feita apenas na voz do cantor acompanhada de um baixo elétrico. Na discografia da música evangélica brasileira, o EP do grupo Baixo e Voz, por se tratar de um trabalho completo e não apenas de uma canção, pode ser considerado, aparentemente, como pioneiro. 32

Quico Fagundes (2020) afirma que Sergio Pimenta tinha uma vantagem que os outros músicos evangélicos não tinham: morava no Rio de Janeiro, a grande metrópole cultural do país, acompanhou de perto vários artistas, conheceu pessoalmente muitos deles. Os anos 1970 foram marcados por grandes tensões na esfera política. O Brasil passava por uma ditadura militar com franca perseguição política aos dissidentes e de grande censura às artes9. Muitos foram presos, torturadas e mortos, como bem cantou Beto Guedes em Sol de Primavera: “já choramos muito, muitos se perderam no caminho”.10 Pimenta tinha “coração de estudante”, sonhava com um país livre, embora não tivesse uma militância política explicita, tornou-se um revolucionário na música evangélica popular brasileira. Uma das composições mais conhecidas de Sérgio Pimenta é Pescador11, um dos primeiros baiões do cancioneiro evangélico brasileiro, gravada no disco Tanto amor de 1980 do grupo Vencedores por Cristo do qual era integrante.12 O baião assemelha-se à Canção do sal, de Milton Nascimento, na temática da letra e no estilo de canto utilizado, há semelhanças também ao estilo de canto em coro do grupo brasileiro MPB4. Esses diálogos da “música pré-gospel” com a música popular brasileira eram práticas audaciosas entre os artistas.

Pescador – Sérgio Pimenta

É manhã pescador Já se lança no mar Pra pegar uns pescados Pra ganhar uns trocados para se sustentar Sol à sol com suor Céu e céu, mar e mar Quando enfrenta perigo Logo lembra do amigo Que não pôde voltar Meia volta se faz Não dá pra retornar Some o sol, some a cor

9 Um caso emblemático ocorreu na ocasião da gravação do disco Milagre dos peixes de Milton Nascimento, em 1973. O governo militar havia censurado 8 das 11 canções do disco, o que fez o músico gravá-las apenas com instrumentos musicais, gritos e sussurros, sem verbalizações. 10 Sol de Primavera, canção tema do disco Sol de Primavera, de 1979. 11 O melhor de Sérgio Pimenta – Pescador. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JFW8boug75c Acesso em 22 mai. 20. 12 No final dos anos 1970, houve uma mudança no grupo com liderança dos “jovens compositores presbiterianos Guilherme Kerr e Sérgio Pimenta. A transformação foi revelada na gravação do disco ‘De vento em popa’ fortemente marcado pela bossa-nova. O baião aparece nos anos 1980, na canção ‘Pescador’ do disco ‘Tanto amor’” (CUNHA, 2007, p. 219). 33

Surge o medo e temor E esquece da dor E esquece do pão E esquece o metal Sabe que de sua vida se Deus não der guarida O que vem é fatal Pois se a vida é naufrágio Todo o esforço é fracasso Só Deus tem solução

Um dos diálogos mais proeminentes da música evangélica brasileira, segundo Gladir Cabral e Sérgio Pereira (2012) é o disco De vento em popa, do grupo Vencedores por Cristo de 1977. O trabalho ganhou notoriedade pelo dialogismo entre a música popular brasileira e a música evangélica da época. Tido como um divisor de águas na discografia protestante, o disco é majoritariamente composto por ritmos brasileiros, samba, bossa nova e baladas rock, o repertório de canções é inteiramente de autores brasileiros. No entanto, pela ausência de referências estéticas que pudessem relacionar de alguma maneira o conteúdo sonoro ao contexto litúrgico das igrejas, “há relatos que dão conta de LPs quebrados em púlpitos como sinal de repulsa diante de tamanha ousadia e sacrilégio” (CAMARGO, 2009, p. 57). No meio protestante, o disco causou alvoroço, na época, até o uso do violão era proibido em algumas igrejas, “guitarra e bateria eram impensáveis na maioria das igrejas. Samba, no conceito de muitos, (mesmo samba-canção), era música de carnaval, coisa da carne e do diabo” (CABRAL; PEREIRA, 2012, p. 128). Alguns “ritmos, especial o samba, não são aceitos pelos grupos mais sectários e, portanto, não tem lugar na maioria das produções fonográficas religiosas” (BARROS, 1984, p. 50). O sincretismo tem maior adesão no catolicismo pela reinterpretação de elementos da cultura popular. Em contrapartida, o protestantismo é desde a origem avesso às manifestações culturais e aos regionalismos, tendo ojeriza sobretudo pelos ritmos de matriz africana, como o ijexá. A rejeição do disco evidencia um descontentamento estético pela utilização de gêneros e sonoridades da cultura popular e instrumentos musicais poucos usuais em gravações evangélicas, não à sua totalidade, mesmo porque o conteúdo teológico das letras permaneceu quase inalterado.

Além do violão de cordas de náilon (amplamente usado na bossa nova), outros instrumentos utilizados nas gravações desse disco foram: violão de 12 cordas, flauta transversal, harmônica (gaita de boca), bateria, chocalho, bongô (instrumentos de percussão que remetia o ouvinte à música não cristã dos cultos afro-brasileiros) e outras percussões, piano elétrico Rhodes, 34

teclado sintetizador, guitarra e contrabaixo elétricos com efeitos característicos, muito ouvidos no rock de variados estilos da época (CABRAL; PEREIRA, 2012, p. 126).

O que poderia ser descrito como “revolucionário para os padrões da música religiosa daquele tempo, teologicamente observou-se o oposto” (CAMARGO, 2009, p. 42). As canções não faziam nenhuma menção a aspectos políticos e ideológicos, praxe em protestantes mais ligados a uma teologia latino-americana. Embora houvesse um desejo de se aproximar da cultura popular, o disco não é nem um pouco politizado, o momento ainda era de grande censura às artes e aos meios de comunicação social (CABRAL; PEREIRA, 2012). De vento em popa é a canção tema e que abre o disco:

De vento em popa – Aristeu Pires Jr.

De vento em popa o sol por cima embaixo o mar A voz tão rouca já desafina se vai cantar E os dois no barco rasgando as ondas Vagando ao som das canções do cais Ou de outro pileque achando até que encontrou a paz Mas veja lá no fim da história o que fica Veja o que restou do pobre rapaz Vendo que por baixo o mar já se agita E por cima o sol calor já não traz Pense talvez seja esta a sua vida Lute até encontrar um mundo melhor Onde a dor no peito não tem guarida Onde brilhe sempre o sol Jesus batendo na tua porta deseja entrar Não lhe importa tua vida torta, quer te salvar De um mundo torpe, de uma vida morta De um sul sem norte, da morte enfim Abre o coração, derruba a muralha Deixa que Jesus te abrace também Deixa que te inunde um amor que não falha É o desejo de quem só te quer bem Canta ao mundo inteiro uma vida tão linda Conta o que é ter perdão pelo amor Quantas bênçãos há na graça infinda: Vive pra Jesus, o Senhor

A estética inovadora das canções e a linguagem cotidiana tornam o disco um marco no cancioneiro evangélico brasileiro; uma renovação preconizada muito da antes do gospel 35

americano surgir em terras brasileiras. O samba, a bossa nova e a linguagem poética eram formas de comunicação do dia-a-dia, em “expressões como de vento em popa, a voz tão rouca já desafina, canções do cais, outro pileque, pobre rapaz, mundo torpe, vida morta [belíssimo paradoxo], sul sem norte, grande contribuição do Aristeu” (CABRAL, 2019, s/p). O disco influenciou músicos dentro e fora do contexto religioso. Há uma história de um “violonista com vários discos gravados e turnês pela Europa e Américas, disse que foi despertado para a música e o violão através do disco De vento em popa. Um detalhe: não era nem é cristão” (CABRAL; PEREIRA, 2012, p. 132). Em agosto de 2011, o músico brasileiro Ed Motta fez uma menção ao disco em sua conta no Twitter: “Vencedores por Cristo disco raro do gospel/christian brasileiro lembra o Free Design. Sunshine Pop!”.13

Figura 1: Twitter Ed Motta.

Fonte: twitter.com

O trabalho se distingue por não possuir vínculo comercial com selos ou gravadoras. Embora toda produção musical corresponda a um mercado de consumo, o aspecto artesanal da canção não evidencia uma produção feita em série, fato que abre espaço à experimentação e autonomia criativa. O diálogo com a cultura popular brasileira põe em xeque a hegemonia cultural estadunidense que o torna um artefato de resistência. Os padrões sonoros anteriores marcados por traduções e sonoridades norte-americanas são relativizados. Para Jorge Camargo (2009), o movimento gospel que surgira anos depois agiu como um rolo compressor sobre a história de grupos e artistas que propunham um diálogo entre fé cristã e cultura brasileira. A postura mercadológica ignorou quase por completo a pluralidade dos movimentos precedentes. O gospel passou a dialogar com a cultura popular não por meio da fé cristã, como faziam os outros artistas, mas pela crença (que não é o mesmo que fé cristã)

13 Da mesma forma, o crítico musical e jornalista brasileiro Régis Tadeu também reconheceu a importância do disco em seu blog pessoal no portal Yahoo! “Quando religião gera música boa – parte 2”. 2011. Disponível em: https://br.vida-estilo.yahoo.com/blogs/mira-regis/quando-religi%C3%A3o-geram%C3%BAsica-boa- parte-2 153308794.html. Acesso em: 5 mai. 2020. 36

e a cultura de massa. A relação do “gospel se assemelha à relação que a maior rede de TV do país tem estabelecido com a sociedade” (CAMARGO, 2009, p. 62), uma relação pautada pela padronização cultural que tolhe as expressões e as experimentações artísticas.14 Ainda segundo o autor, o gospel é fruto de uma indústria cultural15 que nivela todas as expressões da cultura evangélica em um padrão uníssono, onde “a máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo em que já determina o consumo, ela descarta ainda o que não foi experimentado por ser um risco” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 110). A leitura é legitima, mas não dá conta de abarcar a complexidade do processo cultural em questão. A noção de cultura de massa na Escola de Frankfurt adquire um aspecto elitista e que subestima algumas produções culturais. Portanto, cabe mobilizar outras perspectivas de análise. A expressão cultura de massa aos poucos foi reformulada por inúmeros teóricos até chegar ao que se conhece como cultura das mídias, que considera os complexos processos sociais das mídias em consonância com as características da sociedade pós-moderna. A cultura das mídias busca compreender as complexas modificações do mundo contemporâneo e confere outras produções de sentidos ao caráter massivo dos meios, subverte noções como massivo/padronizado e volta-se às estratégias sensíveis e às táticas de consumo cultural em imagens e representações que moldam a sociedade ao ditar modas, tendências e padrões. Em suma, é um espaço onde os sujeitos constroem identidades e partilham valores e visões de mundo. Essa perspectiva teórica não deve ser vista como substitutiva da cultura de massa e sim compreendida numa conjuntura onde a mídia é protagonista de processos sociais que incidem em produções identitárias e em representações amplificadas pelos produtos midiáticos. “A análise da cultura da mídia em sua matriz de produção e recepção ajuda a elucidar suas produções e seus possíveis efeitos e usos, bem como os contornos e as tendências dentro de um contexto sociopolítico mais amplo” (KELLNER, 2001, p. 13) sempre atento ao fato de que “a questão da identificação nunca é a afirmação de uma identidade pré-dada, nunca uma profecia autocumpridora - é sempre a produção de uma

14 Omar Calabrase (1999) em sua obra A idade neobarroca, faz uma interessante discussão sobre algumas produções da indústria cultural: música, literatura e cinema, para demonstrar como algumas obras prezam pela padronização e repetição. O autor utiliza os termos “estética da repetição” e “variação do idêntico”. 15 Compreende-se “por indústria musical não apenas a fonográfica, destinada a gravação e circulação de discos, mas toda a cadeia produtiva da música. Ou seja, a indústria de shows e editorial que envolve o processo de consumo de um produto musical e todos os intermediadores profissionais, de lojas de instrumentos aos sites especializados” (JANOTTI JR; NOGUEIRA, 2010, p. 9) 37

imagem de identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela imagem” (BHABHA, 1998, p. 76).

1.2.1 A canção de fé no início dos anos 1970

Segundo Joêzer de Sousa Mendonça (2016), havia uma dicotomia cultural no Brasil na segunda metade da década de 1960, de um lado, a Jovem Guarda, movimento musical menos politizado, com canções de teor mais romantizado e do outro, a Tropicália, movimento de vanguarda, mais experimental e crítico. O contexto criou o grupo dos “alienados”, menos politizados, entre eles, Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderleia, e os “engajados”, mais críticos e politizados, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, entre outros. Ainda segundo o autor, no meio protestante ocorreu uma divisão semelhante à época. Os cristãos mais engajados começaram a denunciar a passividade da ala conservadora e rejeitar canções religiosas de origem norte-americana, forma de subserviência e dominação cultural fruto de “uma mentalidade conservadora que projetava sua admiração no modelo estrangeiro” (BARROS, 1988, p. 94). Assim, dedicaram-se na criação de cancioneiros que valorizassem a utilização de ritmos brasileiros e de letras que abordassem não apenas o aspecto teológico litúrgico da canção, mas também o aspecto imanente da vida. As canções enfatizavam a justiça social não só num “reino de Deus” vindouro, mas na vida cotidiana, do agora, contexto em que “o popular se torna sagrado sem ter que esvaziar‐se de sua origem, de sua identidade popular” (BARROS, 1988, p. 213). A característica da canção de fé é marcada pela junção de um discurso político aliado à Teologia da Libertação16 movimento que ganhou grande adesão de católicos e protestantes em meio ao contexto político-ideológico da América Latina, à época marcada pela ascensão e o autoritarismo de regimes militares. Em 1971, Gustavo Gutiérrez, teólogo católico peruano publica seu livro Teologia de la liberación: perspectivas, obra considerada sistematizadora da Teologia da Libertação. No entanto, vale lembrar que Rubem Alves, teólogo protestante brasileiro, já havia

16 Idealizada por um grupo de teólogos latino-americanos nos anos 1960, o movimento sintetizava os preceitos fundamentais de Jesus Cristo, de luta em favor dos excluídos, associado ao combate à opressão e à desigualdade social. “Nos países do primeiro mundo, a teologia da libertação assumiu feições feministas e antirracistas. Na América Latina e em alguns outros continentes do Terceiro Mundo, envolveu-se com a revolução social e com a denúncia das injustiças dos sistemas econômicos capitalistas” (MARASCHIN, 2010, p. 122). 38

defendido, em 1969, Por uma teologia da Libertação, resultado de sua tese de doutoramento na Universidade de Princeton, Nova Jersey (EUA). Influenciado pelo teólogo alemão Jürgen Moltmann e sua obra Teologia da Esperança, Rubem Alves lança seu livro com o título Teologia da Esperança Humana e assim “perde” seu lugar como sistematizador da Teologia da Libertação em solo latino-americano. Em 2019, em comemoração aos 50 anos de lançamento e com prefácio de Leonardo Boff, a terceira edição sai com seu nome de origem: Por uma teologia da Libertação. No cenário brasileiro contemporâneo, Ariovaldo Ramos, pastor batista, destaca-se como um dos grandes expoentes da corrente teológica, ao lado do jornalista e frade dominicano Frei Betto e do filósofo e escritor catarinense Leonardo Boff. No campo da música, Jaci Correia Maraschin17 é um dos grandes nomes que ajudaram a consolidar a canção de fé no Brasil. Compôs na década de 1960 a primeira liturgia brasileira em formato de samba para ser entoada em paróquias anglicanas e traduziu de maneira estética os principais pontos da Teologia da Libertação em canções como Lavapés, A ceia do Senhor, Comunhão etc. Esteve à frente da criação de dois importantes cancioneiros populares: A canção do Senhor na terra brasileira (1982) com 31 canções, e O novo canto da terra (1987) com 201 canções. Os cancioneiros trazem canções em letras que evidenciam a politização e o envolvimento dos cristãos com a Teologia da Libertação (CALVANI, 2009). Assim, surgiu a música popular brasileira religiosa (MPBR), representada por “Jaci Maraschin, Simei Monteiro, Daniel V. Ramos, Flávio Irala, Hermes M. Rangel, Laan Mendes de Barros, Sérgio Marques Lopes, Ernesto Barros Cardoso, Valdomiro Pires de Oliveira e grupos como Novo Alvorecer e CAFÉ” (DOLGHIE, 2007, p. 211). As canções começam a fomentar um debate sobre o teor político do canto religioso e o seu papel na liturgia dos cultos na “busca de uma hinologia mais comprometida com a realidade, mais conscientizadora e mais cristã (entendendo que cristianismo é ação)” (BARROS, 1984, p. 48). No entanto, os aspectos musicais de engajamento não encontraram solo fértil no meio protestante avesso ao tipo de canção, não havia um apelo religioso à salvação, como “um dia o salvador virá e acabará com todo o nosso sofrimento”, as canções evidenciavam mais o

17 “Teólogo anglicano e poeta, editou livros de cânticos com letra e música, tanto no Brasil como no exterior. Muitos destes livros enfocaram, tanto através do próprio Maraschin, como também através de outros autores nele inseridos, temas comuns à TdL. Um dos principais livros que editou é intitulado O novo canto da terra” (FATARELI, 2006, p. 59). Maraschin também “trabalhou na Comissão que compôs o Hinário Oficial da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, no início dos anos 60. Muitos hinos que são entoados dominicalmente nas paróquias anglicanas do Brasil trazem sua marca como tradutor ou compositor (CALVANI, 2009, p. 174).

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aspecto imanente que o transcendente. Para Maraschin (1983), o conteúdo emotivo da canção religiosa tem mais valor que o conteúdo estético, “a música sacra ou religiosa é menos música e mais sacra. Em outras palavras, o referencial passa a adquirir tamanha importância que já não é a mensagem estética a determinante, mas o texto que a acompanha” (MARANSCHIN, 1983, p. 15). Ela “desempenha um papel de mediação entre o céu e a terra – como um ‘canal de comunicação’ entre homem e Deus, entre Deus e o homem” (TAME, 1997, p. 25). Os compositores da MPBR encontraram muita resistência. As canções de fé, segundo os mais conservadores, não eram tão cristãs assim. Além de se oporem à utilização de ritmos populares, samba e baião, e de instrumentos musicais, guitarra e bateria na liturgia dos cultos, os conservadores, muitos deles simpatizantes do regime militar, acabaram por instaurar um clima de delação aos evangélicos posicionados mais à esquerda, conjuntura que acentuou “o conflito entre posições reacionárias pietistas e posições progressistas, entre uma teologia fundamentalista e uma teologia da libertação” (BARROS, 1988, p. 94). Jaci Maraschin via na música um poderoso agente de transformação social, justiça e beleza por meio da sensibilidade e da linguagem poética. Segundo ele, não havia tempo a perder em canções comerciais de baixa qualidade. Ter um mundo com mais sensibilidade e beleza implicava em produzir canções de conteúdo mais abrangente e relacional. Uma das possibilidades exploradas foi aliar a música religiosa de canto gregoriano à música popular. Entre os inúmeros experimentos, encontra-se o xote: Partilhar o pão, composto em abril de 1983 (CALVANI, 2009). Fazia-se urgente “mostrar a sacralidade maravilhosa do violão, dos tambores, dos pandeiros. Experimentar a beleza do nosso samba, da nossa marcha‐rancho, do nosso xaxado” (MARASCHIN, 1996, p. 136). Essa é uma tentativa de fazer com “que a liturgia se ‘desracionalize’ e se abra para a experiência da fragmentação, experimentando novas formas artísticas ao mesmo tempo em que abandona o texto canônico único” (MARASCHIN, 2010, p. 121). Imbuído pelo esforço de pensar de maneira crítica e reflexiva questões sobre liturgia, Maraschin (1996) questiona como povo pobre poderia estar incluso na criação de uma liturgia popular, se teria espaço nos encontros litúrgicos ou apenas seria lembrado nas orações. Qual o sentido da celebração das liturgias? Celebramos a esperança dos oprimidos ou o orgulho dos poderosos em conseguir angariar mais e mais bens materiais? Uma liturgia popular pode até conservar tradições, mas deve buscar a transformação e a renovação do pensamento. Os símbolos, espaços e ritos religiosos não podem subsumir a 40

mudança na qual uma liturgia popular é comprometida, ela visa celebrar as lutas por liberdade concedidas por Deus na história humana e reforçar o ideal de emancipação pela formação de uma consciência que incida sobre a realidade na busca de sua transformação social e cultural. “A teologia, ao manipular o ser divino, por meio de definições, transformou-o em ídolo. Encerrou-o nas instituições religiosas e o retirou da vida” (MARANSCHIN, 2010, p. 151). Ainda sobre as canções de fé, Umberto Cantoni, diretor do departamento de música da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) à época, escreve em um dos prefácios do cancioneiro que as canções tratam da vida do povo em suas lutas, angústias e superações. O homem é visto como multidimensional e multirreferencial, sem a fatídica divisão religiosa entre corpo e alma. Há uma preocupação nos compositores em encontrar uma forma mais abrangente de comunicar o conteúdo da linguagem da canção. Ao final, o músico questiona: “como aceitar as formas populares de louvor ao Senhor? Como admitir que Deus se preocupa com o homem global, sem dividi-lo?” (CANTONI, 1982, s/p). O canto litúrgico entoado em algumas reuniões ecumênicas ensejou uma espécie de convocatória à unidade dos cristãos. Um grande passo ocorreu na VI Assembleia Geral do Conselho Mundial de Igrejas ocorrido em Vancouver (Canadá), em 1983. Os cânticos do encontro foram reunidos num livro traduzido para quatro idiomas (alemão, francês, espanhol e inglês) e posteriormente para o português com o título: Jesus Cristo, vida do mundo. De acordo com a pesquisadora Simei de Barros Monteiro (1991, p. 31), “muitos cânticos latino- americanos apresentados no livro já eram conhecidos no Brasil através de traduções avulsas, mas o fato de estarem presentes na obra ajudou muito na divulgação e valorização”. As tentativas de associar a canção evangélica às lutas cotidianas em expressões da cultura popular brasileira datam da década de 1960. Um marco notório é a letra Que estou fazendo se sou Cristão?18 escrita por João Dias Araújo, reverendo da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil em 1966 e musicada por Décio Lauretti, pianista presbiteriano em 1974. A canção traz uma sequência harmônica barroca seguida de um ritmo nordestino brasileiro, o baião. Nesse período, as reuniões organizadas pela ASTE – Associação dos Seminários Teológicos Evangélicos, debatiam diversos temas ligados à música religiosa e à cultura

18 Que estou fazendo se sou cristão/ Se Cristo deu-me o seu perdão/ há muitos pobres sem lar, sem pão/ há muitas vidas sem salvação/ mas Cristo veio pra nos remir/ o homem todo, sem dividir/não só a alma do mal salvar/ também o corpo ressuscitar/ há muita fome no meu país/ há tanta gente que é infeliz/ há criancinhas que vão morrer/ há tantos velhos a padecer/ milhões não sabem como escrever/ milhões de pobres não sabem ler/ nas trevas vivem sem perceber/ que são escravos de um outro ser/ aos poderosos eu vou pregar/ Aos homens ricos vou proclamar/ que a injustiça é contra Deus/ e a vil miséria insulta os céus. 41

brasileira. Em 1975, lançaram o primeiro cancioneiro ecumênico brasileiro intitulado Nova Canção, com 78 canções, editado pelo Instituto Metodista de Ensino Superior – IMS e organizado por Nora Buyers, uma musicista “norte-americana de coração brasileiro19”. Ainda nos anos 1970, o Instituto Metodista criou o selo Liberdade Edições Musicais, que serviu como espaço de divulgação para as produções musicais de caráter ecumênico.20 Os movimentos musicais recém-saídos do regime militar se utilizavam de propostas mais modernas em relação ao uso de ritmos e melodias. As canções “preservavam o núcleo da mensagem tradicional do protestantismo brasileiro (pietismo, individualismo, negação do mundo, sectarismo, antiecumenismo) e alinhavam-se com os ideais do Estado militar” (CUNHA, 2007, p. 80). A partir dos anos 1980, igrejas neopentecostais recém criadas, como a Renascer em Cristo, começam a investir de forma estratégica em um tipo de canção que fazia eco à música secular e ao estilo de vida dos jovens urbanos, “apoiados por um forte esquema de publicidade, por emissoras de rádio e programas de TV, esses grupos alcançaram uma plataforma de exposição pública muito mais elevada que seus antecessores” (BAGGIO, 2005, p. 62). E assim, como afirma a pesquisadora Jacqueline Ziroldo Dolghie (2007, p. 215), “a MPBR começou a perder espaço para o gospel”.

1.3 O protestantismo brasileiro, a cultura gospel e o hibridismo

Magali Cunha (2007) aponta quatro desdobramentos da construção da cultura gospel: “a historicidade do protestantismo”, o “contexto político brasileiro de avanço religioso”, a “recém saída de uma ditadura militar” e “a construção de um mercado de bens simbólicos” fruto de um protestantismo caracterizado pelo consumo. Existem pelo menos seis principais desdobramentos do protestantismo brasileiro que moldam o jeito de ser da cultura gospel:

19 A autora relata que logo quando chegou ao Brasil percebeu que as canções utilizadas nas comunidades eram traduções de hinos da cultura estadunidense. Assim, começou a compor para a criação de um hinário totalmente brasileiro. 20 “Em 1983 foi lançado o LP ‘Revivendo’, gravado pelos grupos Viva a Vida (da Igreja Metodista) e Gente de Casa (Igreja episcopal), que incluiu músicas produzidas pelo grupo SSPPROARTE, a Subsecretaria de Promoção Artística de Educação Cristã da Igreja Metodista” (CUNHA, 2007, p. 220). Além dos ritmos brasileiros como o samba na canção Não dá pra dividir (faixa 1- lado A), a bossa-nova, em Mesmo porque (faixa 6 – lado A), a marcha-rancho, em Momento novo (faixa 2, lado B) e o xote, na música Xote da vitória (Faixa 4, lado B),há o cortejo de ritmos populares de outros países latino-americanos, como o bolero na canção Grão, (faixa 3 – lado A), o chamamé argentino em Coração de um povo (faixa 1, lado B), e os ritmos andinos, como o trote boliviano nas canções Revivendo (faixa 6, lado B) e Louvor (faixa bônus) lançada posteriormente em CD.

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a) Protestantismo Histórico de Migração: teve início no país a partir do século XIX ainda com traços da Reforma, mas sem os princípios conversionistas. Consolidou-se pela atuação das igrejas históricas: Anglicana, Luterana e Reformada. b) Protestantismo Histórico de Missão (PHM): também com ecos da Reforma, chega ao Brasil no século XIX pelo trabalho dos missionários norte-americanos e desenvolvido posteriormente com as Igrejas Metodista, Presbiteriana, Batista e Episcopal. c) Pentecostalismo Histórico: chega ao Brasil no início do século XX com viés missionário confessional, fruto da Reforma e de características doutrinárias baseadas no batismo com o Espírito Santo e o “falar em línguas” (glossolalia). Desta formação estão as igrejas: Assembleia de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular e Congregação Cristã no Brasil. d) Protestantismo de Renovação ou Carismático: fruto de uma divisão doutrinária entre as denominações históricas ocorrido nos anos 1960, teve como missão resgatar os princípios doutrinários da Reforma protestante postos em xeque pelo movimento pentecostal. As igrejas Metodista, Presbiteriana Renovada e Batista Renovada são frutos dessa cisão. e) Pentecostalismo Independente (neopentecostalismo): surge sem um vínculo direto com a Reforma, mas tem influência das denominações históricas da segunda metade do século XX. A figura dos líderes religiosos, teologia da prosperidade, batalha espiritual, expulsão de demônios e curas milagrosas são a tônica destas denominações. As igrejas Deus é Amor, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, o Brasil para Cristo e Casa da Benção são algumas das principais representantes desta postura. f) Pentecostalismo Independente de Renovação: de traços neopentecostais, é mais voltada à classe média e à juventude dos grandes centros. O uso de mídias como práticas de culto é uma das principais características destas denominações. As igrejas Renascer em Cristo, Sara Nossa Terra, Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo e Bola de Neve Church são algumas das denominações que compõem esse quadro.

Os pentecostais são caracterizados por uma postura de ojeriza às práticas religiosas populares, ao catolicismo e às religiões de matriz africana, umbanda e candomblé. A única prática religiosa aceitável é a anglo-saxã, pelo uso de uma indumentária especifica, negação e demonização da cultura dita secular. A música é parte fundamental nesse processo. O único instrumento musical aceito nas práticas litúrgicas é o órgão, enquanto instrumentos populares de percussão e cordas são impensáveis. As canções servem apenas para veicular a mensagem 43

teológica, em sua maioria, traduções da hinologia europeia e estadunidense, contexto onde “o popular anglo-saxão era admitido; o latino, não” (CUNHA, 2007, p. 42). A padronização na oferta de bens de consumo é reprocessada por diferentes tradições do protestantismo, seja na programação midiática religiosa, em expressões comuns de fé, hermenêutica bíblica e na reinterpretação de costumes e doutrinas. A hegemonia pentecostal e o capitalismo globalizado operaram concomitantemente para fomentar um novo “modo de ser” evangélico, uma expressão cultural nova, a cultura gospel. A mídia é uma das instâncias de mediação deste processo, mas não a única. A cultura gospel é um sistema simbólico construído pelos evangélicos composto por um conjunto de significados próprios que emerge de uma leitura específica de ser evangélico no Brasil. Ela é, portanto, mediação da experiência religiosa por rearticular elementos da modernidade e da tradição em um mercado de bens de consumo do sistema socioeconômico e político do capitalismo globalizado. Nessa lógica, estão presentes os meios de comunicação e todo o universo da cultura das mídias com sua oferta produtos de consumo em massa. O que caracteriza a cultura gospel como um fenômeno híbrido é a relação com uma série de atributos que a distingue da cultura evangélica e a coloca num sistema de mundo mais amplo, a modernidade, mas que não se afasta totalmente da tradição por ser inerente ao seu modo de ser. Magali Cunha (2007) indica oito características que descrevem a cultura gospel como fenômeno híbrido e como mediação de um modo de ser evangélico no Brasil:

1) O acesso à modernidade pela sacralização do consumo e o uso dos meios de comunicação como mediação do sagrado; 2) A sacralização dos gêneros populares brasileiros pela música gospel; 3) A perda de um modelo rígido de doutrinas e a reinserção social; 4) O abandono de uma teologia escapista e indiferente aos fatos históricos; 5) A prática religiosa de grande carga emocional e intimista; 6) A utilização de elementos arcaicos sobre divindade, revelação e manifestação de Deus; 7) A relativização das perspectivas teológicas tradicionais e o modo de ser gospel; 8) A conservação de práticas pietistas herdadas de missionários norte-americanos e o embate entre religião e sociedade.

É possível sintetizar brevemente cada uma das características descritas pela autora brasileira a partir dos argumentos a seguir: 44

1) O acesso à modernidade pela sacralização do consumo e o uso dos meios de comunicação como mediação do sagrado

A modernidade pode ser compreendida como uma resposta à idade média, também conhecida como “idade das trevas” em romper velhos dogmas e paradigmas. As origens remontam ao século XVI com ápice nos séculos XVIII e XIX no Iluminismo, com a consolidação da ciência moderna, a revolução industrial e o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Três pilares caracterizam a modernidade: razão, ciência e progresso. Na modernidade, a religião perde seu poder de compreender o homem e interpretar a realidade. A ciência coloca-se como emancipadora e promete esclarecê-lo das amarras impostas pela religião. A ideia de esclarecimento está ligada ao ideal iluminista que é trazer luz ao que esteve ofuscado durante séculos pela “idade das trevas”, isso culminou com a secularização do pensamento ocidental numa expressão conhecida como o “desencantamento do mundo”. Ao contrário do catolicismo, o protestantismo aliou-se ao ideal da modernidade com a premissa de que o homem poderia ter uma interpretação própria dos credos religiosos, mas é no campo econômico que se unem de forma harmoniosa o protestantismo e a modernidade. Em A ética protestante o espírito do capitalismo, o sociólogo alemão Max Weber (2004) assevera que a ética dos reformadores protestantes, de dedicação ao trabalho e disciplina do corpo, foi o condutor de uma nova ordem econômica responsável por fomentar o progresso, o desenvolvimento tecnológico e, consequentemente, o capitalismo. A expressão weberiana transforma os detalhes de uma vida privada puritana em absolutos morais que passam a gerir a vida privada e a organização coletiva do trabalho e da vida (CUNHA, 2007). Embora a relação protestantismo e modernidade tenha estabelecido um parâmetro relativamente estável entre a religião e a vida cotidiana, no Brasil a cultura evangélica consolidou-se com base em critérios opostos: negação das manifestações culturais populares, isolacionismo, valorização de aspectos intangíveis e a resignação de uma vida sofrida como recompensa de uma vida eterna no céu. Isso gerou uma crise entre evangélicos e sociedade, afastando-os da vida política e cultural do país e da construção de uma identidade cultural. A cultura gospel, por sua vez, resgata os ideais herdados da modernidade recusados pela cultura evangélica no início do século XX, e rearticula novas maneiras que reconfiguram o modo de ser evangélico. Consumir passa a ser uma das instâncias fundamentais de produção de sentido 45

que promove uma espécie de “reecantamento do mundo” pela sacralização e o uso dos meios de comunicação que condicionam seu funcionamento enquanto prática religiosa.

2) A sacralização dos gêneros populares brasileiros pela música gospel

A reforma protestante se viu na missão criar novas canções que correspondessem ao seu modo novo de pensar. Martinho Lutero, o reformador, se encarregara de criar novos cânticos com uso de ritmos populares e folclóricos de sua época com a substituição das letras de domínio público por temas religiosos, o que ele chamou de contrafação. Isso fez surgir um novo cancioneiro religioso que sacralizava temas da música popular pelo uso de salmos, liturgias e doutrinas. Isso está presente até os dias de hoje, em alguns dos hinários evangélicos brasileiros que possuem a mesma melodia de músicas de origem europeia, apenas com uma leve mudança no conteúdo nas letras (CUNHA, 2007). No Brasil, a sacralização dos gêneros populares pela cultura evangélica foi vinculada à cultura erudita, ao passo dos gêneros de matriz africana serem marginalizados e tidos como demoníacos. A cultura gospel deu outros sentidos aos gêneros populares incorporados em suas canções com a criação de gêneros como o rap gospel, o funk gospel, o reggae gospel, o forró gospel, dentre outros. O gospel recupera estratégias de aproximação com a cultura popular negligenciada pelos cristãos do início do século XX de influência erudita, eurocêntrica, avessa aos sincretismos e hibridismos culturais. Essa estratégia remodelou os aspectos do gospel pela valorização de expressões da cultura popular, que remontam às práticas luteranas de aproximação com os usos e utilizações da cultura (CUNHA, 2007).

3) A perda de um modelo rígido de doutrinas e a reinserção social

A cultura evangélica brasileira foi construída com base em um conjunto de regras e prescrições bastante rígidas herdadas dos missionários ingleses e norte-americanos. Essas regras implicavam na disciplina do corpo e da mente, abstenção de álcool e fumo, abstinência sexual, restrição às festas populares, carnaval, folia de reis, procissão de santos, restrição ao lazer, bares, cinemas, teatros, clubes de dança e shows de música não religiosa como formas 46

de não se misturar com o mundo21. A cultura gospel, por sua vez, age como um elo apaziguador que relativiza aspectos da ética puritana herdada dos primeiros missionários. O uso do corpo é incentivado até como prática de culto por meio de gestos sincronizados de música encenada. Os valores do tradicionalismo puritano, de separação e restrição cultural, são relativizados e inserem formas mais flexíveis e menos rígidas à sua concepção de mundo.

4) O abandono de uma teologia escapista e indiferente aos fatos históricos

As teologias escapistas remetem à visão religiosa de uma vida melhor fora da história e desacreditada da ação humana na implementação do “reino de Deus” que, nessa compreensão, não seria deste mundo. A cultura evangélica foi fortemente influenciada pelas teologias de combate ao inferno por meio de uma moral individualista e restritiva, e pela visão do céu como uma promessa redentora. No processo de conversão, a concepção de morte ganha outro significado, ela não seria um fim em si mesma e sim uma a passagem para a vida eterna. O crente era tido como peregrino na terra, poderia sofrer as intempéries da vida, mas teria sua recompensa dada no céu. A cultura gospel reitera alguns aspectos dessa tradição ao mesmo tempo que propõe uma reaproximação nas questões relacionadas à imediatidade da vida, do aqui e agora e na busca de uma participação mais ativa na vida cotidiana.

5) A prática religiosa de grande carga emocional e intimista

O movimento pentecostal exerceu grande influência no jeito de ser evangélico no Brasil. Diferentemente do protestantismo tradicional (batista, metodista, presbiteriano e luterano) caracterizado por uma prática litúrgica mais racional, o pentecostalismo destaca-se pela emoção, o falar de “línguas estranhas”, as profecias e revelações advindas do Espírito Santo. A cultura gospel está intimamente ligada à ascensão do movimento pentecostal no Brasil desde os anos 1970. Nesse contexto, diversos líderes religiosos criaram comunidades de fé com base numa teologia da prosperidade voltada à satisfação pessoal e de acesso a bens materiais. O crescimento do pentecostalismo brasileiro se deu graças ao uso massivo dos

21 “Peter Burke indica a moral como uma grande objeção à cultura popular. As festas eram denunciadas como ocasiões de pecado, de embriaguez, glutonaria e luxúria, estimulando a submissão à carne e ao Diabo. Cf. BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. 2.ed. São Paulo: Cia das letras, 1999, p. 235-236” (CUNHA, 2007, 212). 47

meios de comunicação como estratégia para angariar fieis. O contexto de reencantamento do mundo e a ascensão do neoliberalismo consolidaram a hegemonia pentecostal, tornando-a o principal modo de ser evangélico no país.

6) A utilização de elementos arcaicos sobre divindade, revelação e manifestação de Deus

A cultura gospel rearticula elementos do velho testamento que remontam à figura de um Deus monarca, guerrilheiro e beligerante. A tradição é evocada para sugerir a ideia de uma religião triunfal, de realeza, domínio e poder que reutiliza expressões da cultura judaica, como chamar os músicos evangélicos de levitas, fazendo alusão a uma das doze tribos de Israel cuja função era tocar instrumentos e servir à comunidade eclesiástica. O lugar que os músicos levitas ocupam dentro do culto religioso os faz assumir uma posição de prestígio dentro da hierarquia religiosa. Estes elementos arcaicos da cultura judaica estão presentes nas letras de diversas canções em expressões como: “No Santo dos santos, a fumaça me esconde”, “o Senhor pelejará por nós”, “Porque do Senhor é a guerra”, que reforçam aspectos de guerra espiritual e o embate entre dois mundos.

7) A relativização de perspectivas teológicas tradicionais e o modo de ser gospel

A cultura gospel herda seus modos de ser das práticas religiosas pentecostais de igrejas que investiam de forma pesada em áreas estratégicas de culto como música e mídia. A música, aliada ao mercado por meio do consumo, torna-se a instância de conexão dos fiéis à experiência religiosa, diferentemente das perspectivas teológicas tradicionais de cunho mais intelectual e reflexivo, que não se utilizam das mesmas formas de busca do divino. Para existir enquanto prática religiosa, a cultura gospel combina música religiosa e uma gama de aparatos midiáticos utilizados nas práticas de culto: luzes, telão, projetor, datashow, tudo em alta qualidade de som e imagem. Essas combinações da cultura gospel a fazem uma cultura nômade, isto é, pouco coesa e definida. O trânsito entre as representações presentes nos modelos da cultura das mídias, ligados ao capitalismo globalizado a torna, nos termos de Stuart Hall (2014), uma cultura flutuante, de identidades transitórias.

8) A conservação de práticas pietistas herdadas de missionários e norte-americanos e o embate religião e sociedade 48

A cultura gospel realiza um processo mútuo de conservação da tradição e inserção na modernidade, fruto do protestantismo sectário e fundamentalista herdado da intervenção missionária norte-americana de acesso à modernidade pela sacralização do consumo. As programações culturais evangélicas tornam-se meios alternativos às opções ligadas ao circuito não religioso. Se frequentar lugares profanos é considerado pecado, a cultura gospel tratou de promover eventos culturais com artistas evangélicos que se utilizam de estéticas e performances semelhantes aos da música não religiosa. Exemplos disso são os eventos musicais como as chamadas “Marchas Para Jesus” e atualmente outros megaeventos, como o The Send. O mesmo ocorre com o consumo de outros produtos culturais: livros, revistas, programas de rádio, televisão, podcasts e canais do YouTube que trazem Youtubers evangélicos que abordam temas relacionados ao universo cristão. A cultura gospel reestabelece novas balizas em relação à ética puritana, mas que ainda permanece hermeticamente fechada, antiecumênica, exclusivista e sem a aceitação de outros credos religiosos, como catolicismo, espiritismo e, sobretudo, as religiões de matriz africana, a umbanda e o candomblé. O aspecto híbrido que caracteriza a cultura gospel é um exemplo do que Stuart Hall (2014) chama de identidade cultural pós-moderna, isto é, uma identidade cultural movediça, indefinida, pouco coesa, típica dos trânsitos e fluxos entre o moderno e o pós-moderno. O autor descreve três concepções de identidade, a do (a) sujeito do iluminismo; (b) sujeito sociológico e (c) sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo é centrado e unificado numa concepção fixa de identidade ao longo dos séculos pela racionalidade do cogito, “penso, logo existo”, herdeira da visão de mundo cartesiana. O sujeito sociológico é formado na relação entre os demais sujeitos. Os valores culturais costuram o sujeito à cultura de maneira simbólica e estruturam suas práticas de significação. O sujeito pós-moderno é fragmentado, deslocado, em trânsito, é “composto não de uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas” (HALL, 2014, p. 11). Os processos pelos quais os sujeitos passam a construir suas identidades tornam-se provisórios, variáveis e pouco definíveis.

As velhas identidades que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança que está deslocando as estruturas e os processos centrais das 49

sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (HALL, 2014, p. 9).

Embora toda mudança estrutural gere inseguranças, a perda de um modelo fixo de identidade não é todo ruim, pois os deslocamentos podem dissolver blocos rígidos que mantinham intactas formas de dominação ao questionar relações de poder e tensionar padrões e conceitos que marcam o início e o fim de cada era da civilização humana. Nessas mudanças, o que mais importa “são as rupturas significativas em que velhas correntes de pensamento são rompidas, velhas constelações deslocadas e elementos novos e velhos são reagrupados ao redor de uma nova gama de premissas e temas” (HALL, 2018, p. 143). As identidades construídas sob modelos homogêneos de permanência e invariância passam a dar “lugar a identificações movediças (grupais, afetivas, midiáticas), suscetíveis de pôr em crise figuras das doutrinas identitárias tradicionais, como classe, função e gênero” (SODRÉ, 1999, p. 41). Estes fluxos identitários circulam por um processo que o antropólogo argentino Néstor García Canclini chama de hibridismo cultural, em que os sujeitos negociam entre tradicional e moderno suas práticas de significação. O hibridismo cultural pode ser compreendido nos “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2015, p. XIX – grifo no original). As práticas culturais cotidianas não ocorrem de forma isolada, nem estão em conflito umas com as outras. Elas se hibridizam e se fundem em outras que as estruturam: práticas discretas, inventivas e criativas que subvertem a uma ordem de sentido estabelecida pelas quais os sujeitos dão formas às suas significações. Nessas práticas, “o significado não pode ser fixado definitivamente. Sempre há o ‘deslize’ inevitável do significado na semiose aberta de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente reapropriado” (HALL, 2018, p. 36). As práticas religiosas pensadas nesse contexto hibridizado podem ser um exemplo das inúmeras formas inventivas que os sujeitos dão à própria vida. Não é possível pensar qualquer prática religiosa fora de um contexto mais amplo que lhe dê sentido e sustentação. As identidades culturais híbridas tramam táticas de resistência que subvertem os processos hegemônicos de dominação, não tão rígidos como se pensam, negociados por interesses comuns em um constante processo de recreação simbólica. Martín-Barbero (2003) assevera que nem sempre o que é recebido como dominação é assimilado como submissão. 50

Recusar uma representação hegemônica não é necessariamente um ato de resistência, pois os valores da classe dominante se diluem e se imbricam na trama cotidiana dos sujeitos sociais utilizando-os ao seu próprio modo de vida. Michel de Certeau (2019) chama de “homem ordinário” o sujeito que subverte a ordem das coisas e inventa ele próprio o cotidiano por meio das “artes de fazer” e das táticas de resistência. Assim, ele altera os códigos e os objetos reapropriando-os ao seu modo de vida. Essas inúmeras práticas inventivas provam que a massa não é tão passiva como se pensa, ela fabrica formas próprias de consumir e possui particularidades dentro do ordenamento social. Aqueles que se preocupam em gerir uma certa ordem das coisas acreditam possuir a melhor forma de organizar pessoas, dando-lhes um lugar, um papel e um modo de consumir produtos e processos. Mas o “homem ordinário” não é inteiramente submisso aos ditames do poder, ele realiza uma série astúcias e táticas de resistência a uma certa imposição do modus operandi imposto pela hierarquia social. O cotidiano, portanto, se realiza nessas chamadas artes de fazer criadas pelos sujeitos em seus contextos sociais. No cotidiano, o sujeito é sempre inventivo, criativo, não um mero reprodutor de sentidos dados pelas representações. As artes de fazer possibilitam ir além do planejado pelos produtores culturais. Compreender parte dessas astúcias, em alguma medida, implica mobilizar “a análise das imagens difundidas pela televisão (representações) e dos tempos passados diante do aparelho (comportamento) deve ser completadas pelo estudo daquilo que o consumidor cultural ‘fabrica’ durante essas horas e com essas imagens” (CERTEAU, 2019, p. 38 grifo no original). Esse olhar atento de Certeau àquilo que os sujeitos fabricam mostra-se importante em seus estudos antropológicos e foi retrabalhado posteriormente nos estudos em Comunicação com os chamados “estudos de recepção”, que nasceram de uma preocupação epistemológica de compreender o sujeito social inserido na trama da vida cotidiana da qual ele é protagonista. A pesquisa cientifica encontra solo fértil para compreender, pelas artes de fazer, como se criam estas diversas práticas inventivas inseridas no cotidiano dos sujeitos. “Os meios de comunicação redimensionaram a produção de sentido e a própria semiose, colocando no centro da investigação a ação produtiva” (MACHADO, 2008, p. 289). O cotidiano é um espaço “de (res)significações de sentidos da vida. É nele que o conjunto de significados produzidos pelo homem ganha sentido, mostrando-se, desse modo, um lugar fundamental dos estudos da comunicação” (FAGOLARI, 2002, p. 46). Na vida 51

cotidiana, o homem participa “com todos os aspectos de sua individualidade e personalidade. Nela colocam-se em funcionamento todos os seus sentidos, capacidades intelectuais, habilidades manipulativas, sentimentos, paixões, ideias, ideologias” (HELLER, 2000, p. 17). Michel de Certeau (2019) ainda dirá que a esfera do consumo é marcada por disputas de reapropriação e ressignificação e que as performances inventivas produzem um indivíduo indisciplinado. A questão da “antidisciplina” é talvez um dos avanços mais significativos na obra do autor, mais que produção de sentido, as artes de fazer são ferramentas que subvertem processos de dominação simbólica. Os pequenos atos cotidianos, mesmo os atos contidos nas esferas microestrurais da sociedade, aos poucos vão minando o sistema e vão se proliferando “no interior das estruturas do sistema modificando seu funcionamento, deturpando-o, ressignificando-o, lesando-o” (SOUSA FILHO, 2002, p. 133). O mesmo parece afirmar Clifford Geertz quando diz que “a religião nunca é apenas metafísica”, tudo aquilo que é reinterpretado pelo sujeito, “como o mana, como brahma ou como a Santíssima Trindade, aquilo que é colocado à parte, como além do mundano, é considerado, inevitavelmente, como tendo implicações de grande alcance para a orientação da conduta humana” (GEERTZ, 2008, p. 93, grifos no original). Toda prática humana, por mais intangível que pareça, tem implicações no mundo da existência e da realidade vivida, ela nunca é fechada em si mesma. “As designações da diferença cultural interpelam formas de identidade que, devido à sua implicação contínua em outros sistemas simbólicos, são sempre ‘incompletas’ ou abertas à tradução cultural” (BHABHA, 1998, p. 228). O argumento corrobora o que Mikhail Bakhtin (1995) compreende por ideologia22 ao afirmar que todo signo ideológico faz parte de uma realidade natural e social que reflete e refrata uma outra realidade que lhe é exterior, um significado inscrito fora de si mesmo. O signo não só reflete a realidade como também é um fragmento material dessa realidade, “uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer” (BAKHTIN, 1995, p. 33). Toda prática de significação que envolva signos ideológicos adquire uma característica de materialidade que lhe dê sentido e é por esse caminho pelo “qual representamos e imaginamos a nós mesmos que chegamos a saber como nós constituímos e quem somos” (HALL, 2018, p. 384).

22 Bakhtin conceitua a ideologia não nos termos de Marx e Engels que a viam como falsa consciência. O autor russo trata de uma outra concepção de ideologia que chamou de “ideologia do cotidiano”, compreendida como “aquela que brota e é constituída nos encontros casuais e fortuitos, no lugar do nascedouro dos sistemas de referência, na proximidade social com as condições de produção e reprodução da vida” (Miotello, 2018, p. 169). 52

Compreender uma prática religiosa implica compreender o conjunto de valores que articulam noções, modos e formas simbólicas que possibilitam a realização destas práticas em um sistema símbolo interpretativo mais amplo. O sistema religioso, como qualquer outro sistema cultural, é formado por símbolos sagrados inscritos em um ordenamento que busca “mediar um conhecimento genuíno, o conhecimento das condições essenciais nos termos das quais a vida tem que ser necessariamente vivida” (GEERTZ, 2008, p. 95). A prática religiosa é compartilhada por um amplo conjunto de códigos culturais que dão sentido e sustentação às ações dos sujeitos que compartilham destes mesmos códigos. Clifford Geertz (2008, p. 4) reitera o argumento do sociólogo alemão Max Weber (2004) de que “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”. A cultura se perfaz desse emaranhado de teias, sua análise possibilita compreender diferentes sistemas, processos e códigos que constituem o homem; análise vista não em seu sentido instrumental, rígido, mas em seu sentido interpretativo, na busca por significados.

1.4 Gospel: um museu de grandes novidades

Se a música gospel brasileira não é uma expressão da música negra norte-americana, dos spirituals, então quais seriam suas características mais relevantes? Sandro Baggio (2005) diz se tratar de uma “renovação musical” que busca tornar a música religiosa mais relevante, sobretudo para as pessoas não religiosas. Caberia questionar, portanto, qual seria a relevância dessa renovação musical: se realmente trata-se de renovar a maneira de se comunicar ou se apenas busca reiterar aspectos inerentes à sua imobilidade e dificuldade de dialogar. Essa crítica é levantada por Magali Cunha (2007) ao descrever a cultura gospel como sintoma de uma “modernidade de superfície” que mantém intactas as formas e as práticas de conservação inerentes ao seu modo de ser. A tal renovação gospel é relevante até certo ponto, mas não a ponto de romper velhos paradigmas e propor algo novo. Ela articula elementos do tradicional e do moderno, mas que não se traduzem em mudanças efetivas capazes de romper dogmas e outros aspectos conservadores. Portanto, trata-se de uma mudança superficial, sem efetividade de mudança real, fruto de uma reflexão rasa, individualizada, sem impacto no coletivo, uma cultura gestada em um “invólucro moderno numa internalidade conservadora, uma expressão cultural híbrida” (CUNHA, 2008, p. 67). 53

A proposta de Sandro Baggio (2005) em compreender o gospel brasileiro como uma “renovação musical” não se sustenta, assim como apontado por Magali Cunha (2007) e por Jorge Camargo (2009). O próprio autor afirma que “se a música cristã pretende ser relevante para a sociedade moderna, ela precisa romper com a mediocridade e desenvolver uma criatividade madura e contextualizada em suas letras” (BAGGIO, 2005, p. 71). As mudanças da sociedade contemporânea, de diversidade, pluralidade religiosa, igualdade de gênero e ampliação de direitos das minorias, precisam ser acolhidas por um conteúdo estético religioso que tenha relação com as identidades, linguagens e representações contemporâneas, uma “renovação é necessária, pois os tempos e os costumes mudam, e a arte assume novas formas de expressão” (BAGGIO, 2005, p. 32). Para Joêzer de Souza Mendonça (2009), existem perspectivas conservadoras que desconsideram as mudanças e são refratárias aos experimentalismos e às práticas híbridas da canção. Esse tipo de canção visa “descrever o ajustamento simbólico entre os valores e estilos de vida de um grupo, sua experiência subjetiva e as formas musicais usadas para expressar ou reforçar seus interesses focais” (WILLIS, 2014, p. 46 – tradução nossa)23, interesses que precisam ser considerados, pois, em um ambiente plural, as dissidências alteram os aspectos fixos que moldam a canção e subvertem pontos de homogeneidade, gerando modificações. . Jürgen Habermas (2013) propõe uma reflexão triádica aos religiosos que passam a conviver numa sociedade diversa e plural. Em primeiro lugar, a compreensão religiosa precisa absorver as concepções heterogêneas de outros credos e confissões de fé. Em segundo lugar, deve sujeitar-se à autoridade da ciência como detentora de um saber prático e laico, e por último, adequar-se ao modelo liberal e constitucional da esfera pública democrática. Assim, “no conflito entre as pretensões do saber e as pretensões da fé, o Estado, sendo neutro no que diz respeito às visões de mundo, não tem qualquer predisposição a tomar decisões políticas em favor desta ou daquela parte” (HABERMAS, 2013, p. 8). A polifonia religiosa da cultura brasileira deve ser democrática e não impor sua visão de mundo sob perspectivas dissonantes. Um dos caminhos para se chegar a um consenso é a tolerância. Além da tolerância, o respeito também é um dos atributos fundamentais para se conviver em sociedade. O filósofo franco-lituano Emmanuel Lévinas (1997) assevera que mais do que tolerar, respeitar introduz a ideia de responsabilidade. Tolerar, até certo ponto,

23 Do original: Describe the symbolic fit between a group's values and lifestyles, its subjective experience and the musical forms used to express or reinforce yours focal interests. 54

pode significar indiferença, respeitar é ressaltar a humanidade e está sempre associada à ideia de responsabilidade. Sai de cena o “eu” e entra em cena o “nós”. O encontro dialógico profícuo ocorre quando se considera o outro como pessoa, não como coisa, em outras palavras, é considerar o “eu” na exata proporção que se considera o “tu”. O diálogo “eu-tu” proposto pelo filósofo austríaco Martin Buber ocorre quando ambos encontram-se em equivalência. O homem não existe no “isolamento, mas na integridade da relação entre homem e homem: é somente a reciprocidade da ação que possibilita a compreensão adequada da natureza humana” (BUBER, 1982, p. 152). E, de forma poética, Martin Buber afirma ocorrer uma “verdadeira transformação da comunicação em comunhão, portanto numa corporificação da palavra dialógica” (1982, p. 37). Mikhail Bakhtin, (2015, p. 407) assevera que “o limite não é o eu, porém o eu em correlação com outras pessoas, ou seja, eu e o outro, eu e tu” (grifo no original). A tolerância conduz ao respeito que induz ao diálogo e transforma a comunicação em comunhão. Esses caminhos apontam para aquilo que podemos chamar de Compreensão. No sexto volume de seu livro O método, de subtítulo Ética, o filósofo Francês Edgar Morin (2011a) reitera que no mundo contemporâneo a relação com o outro precisa ser uma relação de alteridade, de se pôr no lugar e compreender. Assim, “se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas” (MORIN, 2018, p. 100). A Compreensão implica em “compreender as motivações interiores, situar no contexto e no complexo. Compreender não é tudo explicar. O conhecimento complexo sempre admite um resíduo inexplicável” (MORIN, 2011a, p. 124). Essa dimensão do inexplicável só pode ser perpassada pelo conhecimento que se tem do outro. A diferença, em vez de empecilho à comunicação, torna-se unidade e é estabelecida pelo diálogo. O diálogo compreensivo é aquele em que encontramos, não em nós, mas no outro, possibilidades e caminhos que ainda não havíamos percebido em nossa experiência de vida (GADAMER, 2004). Compreender é diferente de explicar. Os verbos podem ser semelhantes, mas possuem aplicações são distintas. A explicação é redutora, unívoca, sem espaço à contestação, “a compreensão busca exibir o mundo sob perspectivas diversificadas. Mais do que isso, ilumina as conexões entre conteúdos aparentemente desconectados. Interliga dados, mostra sentidos, perspectivas (LIMA, 2009, p. 365). Wilhelm Dilthey (2010) dirá que a explicação está mais próxima das ciências naturais (ciências duras) na criação de padrões, fórmulas, diagramas e leis. A Compreensão está mais 55

presente ciências humanas, ou, nas palavras do filósofo alemão, nas “ciências do espírito”, emprega métodos menos rígidos, valoriza a metáfora, o aforismo, o ensaio como gênero de escrita e a produção artística. Paul Ricoeur faz um exercício de Compreensão com base na alteridade. Compreender uma obra de arte é compreendê-la pelo olhar do outro. A interpretação hermenêutica implica um processo que articula o “compreender já não como um modo de conhecimento, mas como um modo de ser” (RICOUER, 1988, p. 8). Ela subverte as instâncias emissor/receptor e considera a produção de sentido numa inter-relação dialógica, entre texto e contexto, entre fruição e obra de arte. Assim, a estética da comunicação é pensada como Compreensão, pois interpretar é apropriar-se dos sentidos produzidos pela esfera “semântico-pragmática”, isto é, aquela que ocorre no campo da estesia, da sensibilidade (BARROS, 2017). O sentido da experiência não fica circunscrito apenas no âmbito da decodificação, ela torna-se compreensão na medida em que os sentidos são construídos, estende-se no tempo no espaço e na memória dos sujeitos até desdobrar-se numa ação futura (BARROS, 2012). A “experiência prazerosa da arte leva o fruidor a uma compreensão sutil da sociedade, da aventura humana e das identidades que o afetam tanto pela intuição criativa quanto pela razão complexa e o impulsiona para a ação transformadora” (MEDINA, 2013, p. 160).

1.5 Construções simbólicas, preocupações estéticas e perspectivas artísticas alternativas

Um dos artistas que tenta ressignificar o movimento artístico evangélico brasileiro é o cantor e compositor mineiro Marcos Almeida. Para ele, o que ficou impresso na memória da cultura foi a narrativa daqueles que consideravam os crentes como “os outros”, relegando- os a uma posição desprestigiada na cultura brasileira. Isso está evidenciado no Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade em maio de 1928, em que se faz uma dura crítica à fé cristã como um empecilho às artes. Para o escritor modernista, os crentes seriam a “peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo” (ANDRADE [1928] (1976). Marcos Almeida, contrapondo-se à visão oswaldiana, oferece outras lentes para ler o movimento cultural e artístico do qual faz parte.

Te convido a abrir outras janelas. A duvidar do que lê nos jornais. A duvidar dos livros de sociologia. Proponho uma mudança na abordagem do que é identidade brasileira. Nos últimos cem anos e, principalmente, depois da semana de arte moderna (1922) essa abordagem era dada por uma 56

elite não cristã e anticristã, que olhava para os crentes como “os outros”. E se pedíssemos agora para “os outros”, nós os crentes, que construam essa abordagem; qual brasilidade seria contada por esses que creem? Como seria o Brasil de dentro “dos outros”. Vejo os crentes sendo violentados covardemente pela lógica do entretenimento religioso, por um lado, e pela censura aristocrática e hipster no front oposto. É pela liberdade deles que grito. Grito a brasilidade de quem segue o Cristo, de quem voluntariamente se doa, de forma autêntica, sendo coautor desse movimento de fé, esperança e amor no meio do mundo (ALMEIDA, 2015, p. 45).

Evidentemente, há um hiato de décadas que torna a crítica de Oswald de Andrade um tanto desatualizada. Também não há no autor modernista o mínimo esforço em compreender “os outros”, como se organizam, como respondem aos dramas da vida e da morte etc. No entanto, se estivesse vivo para ver o que se tornou o gospel brasileiro e como se apoderou do mercado, sua crítica teria bastante ressonância, mesmo que por outras vias. Por isso, torna- se urgente criar novas categorias para ressignificar o trabalho de artistas que não fecham com o padrão gospel hegemônico de mercado. Se a confissão de fé fosse parâmetro para definir gênero musical, então teríamos já nos 1970, com Jorge Ben e Clara Nunes, ótimos exemplos de artistas de um possível “candomblé music”. Em vias de buscar maneiras para definir uma identidade cultural, o termo “música brasileira de raiz cristã” aos poucos vem sendo utilizado por alguns artistas e surge de um contexto cultural no qual havia a necessidade de superar o dualismo gospel versus secular, utilizado à exaustão pelos evangélicos, hoje desgastado e desatualizado. Esse esforço inicial ajudou a construir balizas para pensar a fé cristã articulada à cultura brasileira, não de forma separatista e antagônica, mas dialógica e relacional. Em outubro de 2019, Marcos Almeida, em sua conta no Twitter, descreve sua atuação artística e propõe uma possível contribuição para renovar o cenário cultural e musical evangélico brasileiro:

57

Figura 2: twitter Marcos Almeida.

Fonte: twitter.com

Figura 3: twitter Marcos Almeida.

Fonte: twitter.com

O gospel surgido no Brasil na década de 1990, acabou por cooptar todas as demais manifestações artísticas da cultura cristã e reduziu espaços de diálogo com a cultura popular construídos por outros artistas. Ao mesmo tempo em que o gospel ganhava espaço nos meios de comunicação de massa, rádio e televisão e promoviam passeatas denominadas “Marchas para Jesus”, iniciativas independentes eram tomadas em resposta ao movimento hegemônico. Podemos elencar aqui os projetos: Nossa Música Brasileira; Som do Céu; Sarau da Comuna; Sarau Facamolada; Autorretrato da Música Cristã Brasileira; Usina 21; Festival Prosa e Canto; Terça da Graça; Projeto Redenção, entre muitos outros. Assim “como na música popular, na música religiosa também existem os mais variados estilos de composição, interpretação e produção destinados a objetivos e públicos 58

distintos” (BARROS, 1984, p. 47). É preciso reconhecer que existem “artistas protestantes ligados à MPB e também um ‘público de evangélicos’ que conhece e consome a MPB do Clube da Esquina e toda a diversidade musical popular brasileira” (PEREIRA, 2014, p. 10). Marcos Almeida (2016) afirma ser mais confortável chamar de gospel tudo o que é confissão evangélica na cultura brasileira, só que bem antes do termo surgir já existia uma igreja, não no sentido de templos e capelas, mas como as pessoas experimentam o evangelho na vida. O rótulo gospel mal completou trinta anos, então, que influência é essa na cultura brasileira? A “igreja evangélica no Brasil é centenária! Onde estão as nossas expressões de vida e fé conduzidas através da música?” (CANTONI, 1982, s/p). É preciso rever esse legado sem as lentes embaçadas da indústria cultural, ir além dos limites religiosos e acadêmicos e considerar a diversidade cultural dessa grande obra, hoje pisoteada pela ideia de um Brasil sensualizado, trapaceiro, místico, exótico e baderneiro (ALMEIDA, 2014). Gerson Borges (2016) afirma que a resistência à canção gospel pelos produtores culturais e a classe média artística se deve ao fato desse tipo de música ser eminentemente confessional, citar literalmente a bíblia e defender abertamente uma doutrina. O autor relata uma conversa que teve com um amigo empresário de grandes artistas da MPB, disse que “a tal música gospel só tem um assunto. Esses seus parceiros da música evangélica devem achar que Jesus é surdo – eles repetem mil vezes a mesma coisa” (BORGES, 2016, p. 69). Obviamente, não há nenhum problema em cantar sobre credos ou musicar ortodoxias, a questão é que grande parte dessa produção musical se resume à propaganda religiosa. “O papel do artista cristão é se desvencilhar ser um propagandista, de alguém que faz publicidade de um caminho e de uma proposta religiosa” (BRITO; NOGUEIRA, 2018, p. 88). Frank Schaeffer (2008) afirma que os artistas cristãos precisam abandonar a visão utilitarista de que tudo precisa ser medido em termos de sua utilidade à causa do evangelho, tampouco devem render-se à propaganda religiosa e à espiritualização de toda a realidade. A ideia difundida no meio protestante do início do século XX e que perdura até hoje é que a espiritualidade é um aspecto separado da vida cotidiana. Com isso, as pessoas passaram a compartimentalizar os aspectos vida em coisas sagradas e seculares. Ora, se a espiritualidade resume-se apenas aos atos religiosos interiorizados e não se traduz nas expressões materiais da vida cotidiana, a fé deixa de fazer sentido. Hans Rookmaaker (2018) diz que a fé certamente exerce um papel importante quando expressa numa obra. Os artistas cristãos são diferentes e é justamente esse aspecto que conta. 59

Diferenciam-se por não se enquadrarem inteiramente ao status quo, contestam pontos, acrescentam outros e inserem novas questões ao produzir algo novo. Portanto, faz sentido considerar se uma obra de arte foi produzida por um cristão, pelo vínculo estabelecido entre fé e obra. O artista cristão questiona a visão antropocêntrica de mundo e coloca de volta a questão de Deus. Com o conceito inserido novamente no cotidiano das pessoas, elas são imbuídas a relacionar-se com Ele, mesmo que para contestá-lo ou preteri-lo. Steve Turner (2006) faz uma dura crítica aos compositores cristãos que deixam de lado aspectos comuns da vida cotidiana por não encontrarem espaço para testemunhar a fé. A menção de atos corriqueiros, como andar de bicicleta ou levar as crianças para passear não levariam o homem à redenção. Cabe-lhes somente o inexorável, o eminentemente espiritual, fato que os faz parecer estranhos às pessoas não religiosas por se eximirem da cotidianidade; dos apartamentos, clubes, celulares, carros, restaurantes etc. Nas conversas formais só sabem dizer o quanto Deus é bom, mas não conseguem estabelecer o mínimo diálogo sobre política, economia, arte, entretenimento ou cultura. Essa constante condição de praticar louvor ao Senhor evidencia uma visão de mundo pobre e pouco abrangente em que a vida ao redor sequer é observada. O que mais se vê nessas expressões artísticas são experiências pessoais em seus pontos mais sublimados em detrimento dos medos e temores da vida serem raramente trabalhados; experiências que certamente se traduziriam em boa arte ao tornar latente o drama de outras pessoas também. O artista não precisa fazer referências bíblicas em tudo que cria, nem a bíblia em sua inteireza faz menção ao nome de Deus o tempo inteiro. Enquanto carpinteiro, Jesus Cristo não acrescentou às suas obras versículos bíblicos a fim de os tornar mais espirituais. Assim, os artistas precisam ter sabedoria para saber o momento certo de fazer menções religiosos em suas obras. Nada mais incômodo que se deparar com um rico conteúdo artístico que a um só tempo se transforma em propaganda religiosa sem qualquer relação com a realidade. A cultura evangélica brasileira ficou conhecida não por suas qualidades, mas pelos aspectos que a detratam e a desabonam. Em termos filosóficos, os críticos mais ferrenhos ao cristianismo, como o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, dirá que cristão é aquele que nega a vida em favor de uma vida futura, metafísica, porvir, descarta a vida enquanto ser humano com vistas a angariar uma outra vida no céu. Entretanto, existem artistas brasileiros que não se identificam com a música gospel e agem na contramão dessas concepções religiosas, não descartam a vida cotidiana para ganhar 60

a “salvação” ou uma “vida eterna” à posteriori. Essa mudança de mentalidade precisa ser considerada. Ao nos depararmos com frases como, “toda vez que eu vou pro mundo eu ouço Deus falar” ou “na terra daqui eu vivo a terra do céu”, nas letras de Marcos Almeida, percebemos uma drástica mudança no conteúdo das letras da canção evangélica. Se em um determinado momento da história os evangélicos foram conhecidos por anular a própria vida, vemos na contemporaneidade artistas que valorizam a vida cotidiana e vivem a vida em sua inteireza, não compartimentalizam aspectos da existência em sagrados e seculares, possuem uma visão mais abrange em todas as esferas da vida. Não há, portanto, sagrado ou secular; há o mundo da vida, visto em sua totalidade, em sua inteireza. Laan Mendes de Barros, um dos primeiros pesquisadores a empreender um estudo profícuo sobre a canção evangélica brasileira, já afirmava em meados dos 1980 que os artistas cristãos deveriam se libertar das amarras em que estão envoltos e “para apreender a riqueza da cultura popular, após tantos anos de isolamento, os cristãos devem sair pelos vitrais de seus casulos e viver. Talvez após liberar sua voz ao canto do povo, ele também libertará seu corpo à dança e se sentirá mais povo” (BARROS, 1984. p. 60). Esse grito de liberdade aos poucos vem sendo dado por artistas que buscam se desvencilhar das amarras impostas por um mercado mesquinho e aprisionador. A canção desses artistas não é intrinsicamente vinculada à igreja. Possui um conteúdo estético que pode ser executado em outros locais e que traz em si elementos do texto religioso trabalhado com intuito de ressignificar o seu sentido, de maneira impessoal e subjetiva. Isso estimula o ouvinte a fazer associações e a produzir sentidos diversos. A mudança no conteúdo das letras representa um salto qualitativo na humanização da arte religiosa que, em vez de diluir a subjetividade do ouvinte, a fortalece e a confirma. A importância desse tipo de canção reside na busca por ensejar uma nova atitude, um novo sentido da vida e que visa renovar a inteligência de uma determinada comunidade. Esses atributos fazem da canção evangélica um poderoso veículo de transformação social, cultural e comunicacional na cultura brasileira. Steve Turner (2006) ainda afirma que a sigla (MCC) Música Cristã Contemporânea foi utilizada como estratégia de marketing pela indústria fonográfica para dar um outro nome ao chamado rock de Jesus, mas que, na verdade, trata-se de um conteúdo sonoro criado e consumido apenas por cristãos. Aliás, “essa é a única categoria musical reconhecida na indústria fonográfica que é definida inteiramente pelo conteúdo lírico. Todas as outras 61

categorias – blues, soul, dance, heavy metal, rap e assim por diante – são definidas por estilo musical” (TURNER, 2006, p. 65). A canção cristã não pode ser abordada em termos de conteúdo temático e axiológico, ela precisa evidenciar a espiritualidade intrínseca e a realidade que deseja transmitir. “Assim como ser cristão não significa andar por aí cantando aleluias o dia todo, e sim mostrar uma vida renovada com Cristo, a pintura cristã não é aquela na qual as figuras tem auréolas e na qual (se encostarmos o ouvido na tela) podemos ouvir aleluias” (ROOKMAAKER, 2015, p. 243). A arte produzida por cristãos não deve ocupar-se apenas de coisas edificantes. A pintura não precisa retratar cenas, passagens e personagens bíblicos. A canção não deve ocupar-se apenas em transmitir mensagens sonoras e textuais reconfortantes. E a literatura não precisa evidenciar personagens que se converteram numa transformação de vida (TURNER, 2006). Os cristãos ainda possuem um pensamento simplista sobre as potencialidades da arte. O músico brasileiro Nelson Bomilcar (2005) afirma que muitas lideranças religiosas em várias partes do país ainda mantêm viva uma visão reducionista sobre a música entoada nas comunidades, muitas canções envoltas numa sutil embalagem estrangeira tacitamente aceita. A mensagem contida no evangelho é universal e libertadora, destinada a “povos, raças, tribos e nações. Canonizar culturas é um grande equívoco” (BOMILCAR, 2005, p. 315). O teólogo cubano Justo González (2011) afirma ser esse um dos motivos pelos quais as culturas dominantes têm tanta dificuldade em aceitar os valores das outras culturas. A diversidade cultural é um meio de fazer frente às tentativas globalizantes e estandardizantes das culturas. Sobre a relação dos evangélicos com a cultura popular, Steve Turner (2014) diz que três verbos de ação – consumir, criticar e criar – deveriam marcar as posturas do cristão. As comunicações, artes e produções culturais de qualquer gênero possuem um olhar, uma visão de mundo, portanto, não há nada neutro ou imparcial na cultura. O segredo está em compreender a chave de leitura, o que os textos e os subtextos culturais desejam transmitir. Discernir entre uma produção cultural e outra pode ser uma estratégia para subverter conteúdos que representam uma visão pobre e pouco abrangente da realidade. O autor ainda faz uma dura crítica aos jovens que se convertem em experiências místicas de acampamentos, mas que não se aprofundam em perspectivas teológicas sólidas capazes de relacionar o que viveram ali com o mundo ao redor. Há sempre uma visão dicotômica de tudo: ou se evita o contato com a cultura popular, ou se abraça tudo sem a devida crítica. Assim, “em de vez de 62

pensar na cultura popular em termos do que devemos evitar, talvez devêssemos começar a pensar naquilo que deveríamos consumir” (TURNER, 2014, p. 236). Criticar não pode ser um fim último. A crítica deve ser precedida de uma proposição. Quando cristãos são surpreendidos por uma produção audiovisual de um grupo de humoristas como Porta dos Fundos, que representou um Jesus Cristo gay, a crítica dos religiosos conservadores não pode ser apenas a crítica pela crítica. Produtores, ilustradores, roteiristas, diretores e cineastas que dispõem de uma visão de mundo cristã podem propor produções audiovisuais alternativas, não como forma de afrontar ou disputar valores, mas quanto mais perspectivas de um mesmo fenômeno há, mais a pessoas terão o discernimento para deliberar. Quando a revista People resenhou o livro Amazing Grace – the story of America´s most beloved song, de Steve Turner, o veículo referiu-se ao jornalista como sendo um portador de “olhos alternativos e uma fé paroquiana” (TURNER, 2014, p. 238). Criar é acrescentar, uma ideia, um diálogo, um ponto de vista. Muitos jovens cristãos recebem um chamado para as artes e acreditam que suas habilidades brotarão como “obra do espírito” e que não é preciso desenvolver seus talentos, pois já são “mensageiros do Reino”. Pessoas que desejam ser cineastas em Hollywood, mas que sequer leram um roteiro, tendem a negligenciar o esmero e o empenho de suas habilidades. É fundamental que se conheça o universo cultural no qual se deseja entrar. “John Lennon, Paul McCartney, Bob Dylan, Mick Jagger e Keith Richards eram extremamente versados em música pop, country, folk, blues e rock tradicional antes mesmo de gravarem uma única música” (TURNER, 2014, p. 242). O artista cristão precisa conhecer o mundo, como ele clama agora, quais são suas necessidades, precisa estar atento às cores, sabores, texturas, linguagens, valores, precisa ter uma visão abrangente e conectada com o mundo ao redor, não se fechar em guetos e ser mais povo, “a qualidade das composições cristãs deve melhorar, tanto na criatividade de suas letras como no nível de produção musical” (BAGGIO, 2005, p. 73). Ainda há muito a fazer e os artistas cristãos têm muito a contribuir para fazer do mundo um lugar ainda melhor.

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CAPÍTULO 2 | DISTINÇÕES, INOVAÇÕES E A MÚSICA BRASILEIRA DE RAIZ CRISTÃ

Usamos a palavra cultura nesses dois sentidos: para designar todo um modo de vida e para designar as artes e o aprendizado.

A cultura é de todos, em toda a sociedade e em todos os modos de pensar

Raymond Williams

2.1 Estudos culturais, representação e hegemonia

Os estudos culturais surgiram na Inglaterra, no final dos anos 1950, como abordagem teórica e multidisciplinar do estudo da cultura em meio às mudanças da sociedade britânica no pós-guerra. Consolidam-se como departamento de pesquisa no Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) na Universidade de Birminghan, fundado em 1964, por Richard Hoggart, sociólogo e professor britânico. Cultura, sociedade, instituições sociais e práticas culturais são os principais temas de abordagem dos estudos culturais. Segundo relato histórico de Armand e Michèle Mattelart (2014), os estudos culturais surgiram como resposta à corrente dos estudos crítico-literários de Leavis24 e das discussões da revista Scrutiny. O desenvolvimento do capitalismo industrial e as expressões culturais do “progresso”, como o cinema e a ascensão da cultura de massa, no entendimento de Leavis, traziam um impacto negativo à cultura literária tradicional inglesa. Os estudos culturais problematizam as categorizações da produção cultural entre “alta” e “baixa”, opondo-se ao “programa cultural essencialmente elitista, no qual a crítica da revista Scrutiny se fundava e; os binarismos rígidos do debate em torno da ‘cultura de massa’” (HALL, 2018, p. 250).25

24 Frank Raymond Leavis (1895-1978), crítico literário inglês, publica, em 1930, Mass civilisation and minority culture, com críticas às novas formas de entretenimento massivo trazidas pela ascensão da sociedade capitalista. Cf. LEAVIS, Raymond Frank. Mass civilisation and minority culture. Cambridge: Minority Press, 1930. 25 Um dos esforços teóricos de romper com esses binarismos é o livro The popular arts. London: Phanteon, 1964 de autoria de Stuart Hall e Paddy Whannel. Ambos buscavam “encontrar uma saída para o dilema binário, repensando o ‘popular’ não em termos de qualidades ou conteúdos fixos, mas relacionalmente — como aquelas formas e práticas excluídas do ‘valorizado’ ou do ‘cânone’, ou opostas a estes, pelo funcionamento das práticas simbólicas de exclusão e fechamento” (HALL, 2018, p. 201). 64

Para Terry Eagleton (2006, p. 50), Scrutiny não era apenas um espaço de discussão literária, a revista emitia juízos de valor sobre obras consideradas “inferiores” e tinha como premissa servir de guia para estudantes e universitários se munirem das reflexões sobre a boa literatura, a qual permitia “sobreviver numa sociedade mecanizada de romances ordinários, trabalho alienado, anúncios banais e meios de comunicação de massa vulgarizadores.” Os estudos culturais surgem num escopo teórico próprio para compreender o contexto político-cultural da segunda metade do século XX, afastam-se de um ideal de “inglesidade” [englishness] para focar na produção cultural de grupos minoritários e de “subculturas” que manifestavam “contestação da ordem social ou, contrariamente, como modo de adesão às relações de poder" (NEVEU; MATTELART, 2004, p. 14). Um “movimento pedagógico no qual se engaja uma geração de professores do secundário que, provenientes de meios modestos, valorizam, diferentemente da teoria elitista de Leavis, os gostos dos alunos da classe operária” (MATTELART; MATTELART, 2014, p. 104) e começam a dar atenção à cultura popular. É nesse contexto surge a pesquisa empreendida por Richard Hoggart. Alguns textos do final dos 1950 e início dos 1960 são a base dos estudos culturais: The Uses of Literacy, de Richard Hoggart (1957); Culture and Society, de Raymond Williams (1958) e The Making of the English Working Class, de Edward Palmer Thompson (1963). Hoggart faz um levantamento histórico-cultural do século XX até o final dos anos 1950 e, por ter vindo da classe trabalhadora, coloca-se de forma pessoal em alguns momentos de sua pesquisa; Willians propõe um conceito de cultura que valoriza o popular e o cotidiano na mesma proporção do erudito, na música, literatura, pintura, escultura, etc.; e Thompson faz um percurso histórico da sociedade britânica pela perspectiva da classe operária inglesa. Richard Hoggart busca compreender “como as classes trabalhadoras falam e pensam, quais são os valores compartilhados no cotidiano compreendendo a cultura como práticas que produzem sentido” (ESCOSTEGUY, 2011, p. 17) por meio do estudo dos artefatos da cultura popular de pouca atenção recebida das pesquisas acadêmicas. Segundo ele, na cultura popular não existe apenas submissão, mas resistência, pois os sujeitos sempre reelaboram os sentidos dos produtos da cultura de massa, fato que seria posteriormente retrabalhado pelas pesquisas em Comunicação a partir das etnografias da audiência e dos estudos de recepção. Raymond Williams via na análise literária um caminho para compreender a cultura, acompanhou de perto a emergência dos meios de comunicação de massa na sociedade britânica. Segundo o autor, os meios de comunicação são também meios de produção, isto é, 65

além produzirem cultura, os meios produzem também realidades simbólicas. Edward Palmer Thompson situa a historiografia britânica dentro da tradição marxista. Assim como Williams, ele compreende a cultura como uma ampla rede de práticas que constitui a vida cotidiana, ao mesmo tempo em que se afasta de um entendimento totalizante para pensá-la no embate entre diferentes modos de vida. Se a maneira de compreender é literalmente a maneira de viver, a comunicação torna- se comunhão. Ao compartilhar linguagens comuns pelo consumo, recepção e reprodução dos sentidos na cultura, a tensão entre as instâncias também produz crescimento e mudança. As definições sobre cultura são parte de um intenso jogo que envolve convenções e instituições que atribuem valor e compartilham significados que serão ou não aceitos. Assim, não há por que desvincular ou isolar as práticas culturais de outras práticas sociais. A cultura é entendida como parte da sociedade, e não isolada, fechada em si mesma. Ela existe como prática, assim como a produção industrial, as trocas comerciais, o direito etc. As práticas culturais precisam ser estudadas ativamente como atividades particulares da vida humana (WILLIANS, 1965). A análise da cultura busca desvelar alguns padrões estruturais que compõem os complexos ordenamentos das organizações sociais. Ela começa pela observação de fatos característicos descobertos “não na arte, produção, comércio, política, criação de filhos, tratados como atividades isoladas, mas através do ‘estudo da organização geral de um caso particular’” (HALL, 2018, p. 149). A observação consiste em compreender os padrões e identificar possíveis pontos de inflexão capazes de gerar mudanças pela proposição de novas perspectivas e formas de pensamento. De forma semelhante, Pierre Bourdieu (2008, p. 81) afirma que “a ciência social lida com realidades já nomeadas e classificadas, portadoras de nomes próprios e de nomes comuns, de títulos, signos, siglas, (...) deve tomar como objeto as operações sociais de nomeação e os ritos de instituição através dos quais elas se realizam”. Vale lembrar que os textos fundadores são formativos e não formadores de uma nova subdisciplina acadêmica. Como ressalta Hall (2018), de maneira histórica ou contemporânea, os textos visavam dar respostas aos questionamentos de seu tempo, de forma a pensar a cultura por meio das transformações históricas, passadas e presentes. Trata-se não de “uma ‘disciplina’ mas uma área onde diferentes disciplinas interatuam, visando ao estudo de aspectos culturais da sociedade” (ESCOSTEGUY, 2010, p. 34). Ana Carolina Escosteguy (2010) também diz não ser possível sublinhar a importância dos estudos culturais somente em torno do trio fundador e dos textos formativos. É preciso 66

considerar os embates e destacar pontos em comum. Embora não tenham tido uma produção teórica conjunta, os autores levantam questões que abrangem de forma semelhante cultura e sociedade. As abordagens enfatizam a produção, os usos e as práticas a fim de compreender aspectos em comum dos sentidos que os sujeitos compartilham em uma determinada cultura. Ela é vista como produção e não apenas como reprodução.26 Os estudos cultuais não são “um campo ou um método, mas marcos de um lugar de existência de conflitos ao redor do que significa cultura e como ela pode ser estudada” (STRAW, 2003, p. 27). As rupturas epistemológicas que resultam do trabalho intelectivo e as transformações históricas podem readequar o pensamento e mudar sua rota na busca por perspectivas teóricas que melhor se adequam às condições reais de vida. Essa complexa articulação entre produção teórica e realidade resulta numa dialética que tensiona “conhecimento” e “poder” e é capaz de transformar “significativamente a natureza das questões propostas, as formas como são propostas e a maneira como podem ser adequadamente respondidas” (HALL, 2018, p. 142). Escosteguy (2010) destaca dois importantes marcos propostos nos estudos culturais: o tensionamento do aspecto estético da cultura, isto é, o que era visto como “alta cultura”, presente na literatura e na música, por exemplo, nada mais é que uma expressão desta cultura. Esse alargamento do conceito, que inclui aí as práticas cotidianas e a cultura “ordinária”, propiciou um segundo grande marco: todas as expressões culturais precisam ser vistas na relação com o contexto social mais amplo, das instituições sociais e das relações de poder. A cultura não pode ser estudada fora das realidades sociais e concretas das práticas culturais onde se realiza. Nas palavras de Hall (2018, p. 324), “nenhuma prática social ou conjunto de relações está livre dos efeitos determinantes das relações concretas nas quais estão situados”. Os estudos culturais são tanto um projeto acadêmico quanto político. Compreender em profundidade um projeto, seja ele artístico ou acadêmico, implica compreender a sua formação. Essa dupla preocupação: projeto e formação, está na ordem do dia dos estudos culturais (WILLIAMS, 1997), as duas categorias são manifestações diferentes de um mesmo objeto. Em sentido estrito, as considerações de Willians em Cultura e sociedade, e também no início de The long revolution, bem como os aspectos particulares da cultura da classe trabalhadora descritos por Hoggart, e a reconstrução histórica das tradições da cultura popular vista pelos “de baixo”, descritas por Thompson no recorte entre 1790 a 1830, construíram

26 Essa compreensão ajuda a ampliar “a noção de texto para abarcar a ‘experiência vivida’, dando atenção aos sentidos instituídos na vida cotidiana de culturas particulares ou subculturas” (ESCOSTEGUY, 2010, p. 215). 67

conjuntamente um marco teórico-conceitual que fomentou a emergência de uma nova área de estudos e prática (HALL, 2018). Existem pelos menos três conceitos fundamentais trabalhados pelos estudos culturais: classe social, cultura e hegemonia. As utilizações da cultura ocorrem em um processo sócio- histórico que articula valores, ideologias, representações de gênero, raça e classe social, e como essas representações circulam na sociedade (KELLNER, 2001). A leitura não-ortodoxa do marxismo e o estudo da cultura popular fundamentam as análises dos autores britânicos que articulam conceitos de Antônio Gramsci e Louis Althusser sobre classe, ideologia e hegemonia. Althusser adota uma perspectiva estruturalista na qual os sujeitos agem sob condições socioculturais predeterminadas e de pouca movência no modo de produção capitalista. A perspectiva gramsciana é culturalista, menos determinista e com maior possibilidade de mudança, não pela substituição fortuita de um sistema econômico por outro, mas pelas possiblidades de modificação do próprio sistema. As mudanças “não são transformadas pela substituição de uma concepção de mundo inteira, já formada, por outra, mas pela ‘renovação crítica de uma atividade já existente’” (HALL, 2018, p. 361). O estruturalismo althusseriano também fomentou debates nos estudos sobre cinema. Os estudos culturais se debruçaram sobre a questão a partir das discussões da revista Screen.27 O periódico, voltado sobretudo ao cinema de vanguarda, problematizava questões sobre como o gosto é marcado socialmente. Na screen theory, as imagens fílmicas são entendidas como representações subjetivas da realidade dos sujeitos, não em meras reflexões acríticas, mas como formas de intervenção capazes de promover uma possível mudança social. Em vez compreendê-la como reprodução, a representação é um meio de refletir sobre a realidade.28 Nos estudos culturais, a cultura é vista como prática que articula diversos níveis de produção e reprodução social estudada para compreender os processos de dominação e as construções de possibilidades de resistência aos padrões hegemônicos pelas forças contra hegemônicas e de lutas (KELLNER, 2001). As linguagens dão sentido às ações dos sujeitos ao permitir interpretá-las em um conjunto de códigos que constituem as culturas.

27 A “screen theory instituiu-se a partir dos acontecimentos políticos e sociais dos anos 1960 na Europa, especificamente na França, em torno da Guerra Fria, dos imperialismos, da luta de classes, da educação formal, do nacionalismo, entre outras questões” (MARTINS DE SOUZA, 2013, p. 1). 28 Walter Benjamin já afirmava nos anos 1930 que “o cinema é a forma de arte que corresponde aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo. Correspondente a metamorfoses profundas no aparelho perceptivo, como as que experimentam o passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfico e como as experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente” (BENJAMIN, 1987, p. 192). 68

Nesse sentido, toda ação social é cultural, pois expressam significados e tornam-se, portanto, práticas de significação. A religião nos estudos culturais pode ser compreendida como uma prática cultural e política que inter-relaciona doutrinas, rituais, liturgias, disputas hermenêuticas dos textos sagrados e das relações de poder entre diferentes instituições (MARTINO, 2016). Ela possui “seus locais específicos de desenvolvimento, seus processos específicos de transformação, suas práticas especificas de luta” (HALL, 2018, p. 359). Os estudos culturais buscam compreender como ocorrem essas inter-relações entre as práticas e como elas são vividas e experimentadas na vida cotidiana. Consiste em adentrar naquilo que Raymond Willians chama de “estrutura de experiência” [structure of feeling]29. As estruturas de experiência “podem ser definidas como experiências sociais em solução, distintas de outras formações semânticas sociais que foram precipitadas e existem de forma mais evidente e imediata” (WILLIANS, 1979, p. 136, grifos no original). Nessa lógica, as transformações histórico-culturais que se refletem nas convenções sobre as obras de arte e seus objetos não são fortuitas ou tomadas de forma inconsciente, estão ligadas às mudanças na estrutura da experiência dos sujeitos e da própria sociedade. Mudanças estas em que “novos meios são percebidos e compreendidos, enquanto velhos meios começam a parecer vazios e artificiais” (WILLIANS, 2001, p. 33 – tradução nossa).30 As convenções conferem anuência a um modo específico de compreender a cultura. Cabe ao pesquisador observar seu funcionamento e as disputas na busca por reconhecimento. Raymond Williams (1992, p. 29) propõe olhar para as “obras dinâmicas e concretas em cujo interior não há apenas continuidades e determinações constantes, mas também tensões, conflitos, resoluções e irresoluções, inovações e mudanças reais”. Walter Benjamin dizia, já nos anos 1930, que “quanto mais se reduz a significação social de uma arte, maior fica a distância, no público, entre a atitude de fruição e a atitude crítica” (1987, p. 187). A compreensão mais abrangente de cultura, em tais estudos, foi possível graças à mudança conceitual da metáfora marxista “base/superestrutura” do materialismo histórico- dialético. Willians (2005) propõe reavaliar a metáfora em articulação com um conjunto de

29 Em algumas traduções o termo aparece como “estrutura de sentimento”. O uso aqui descrito faz eco à expressão utilizada na tradução de Ana Carolina Escosteguy, Francisco Rüdiger e Adelaine La Guardia Resende para o ensaio: Estudos Culturais: dois paradigmas presente na obra organizada por Liv Sovik no Brasil. Já em Marxismo e Literatura, o capítulo dedicado ao tema intitula-se “estruturas do sentido”, o que torna, portanto, difícil atribuir um significado preciso ao termo. 30 Do original: New means are perceived and understood, while old means are beginning to seem empty and artificial. 69

práticas cotidianas relacionadas entre si, e não como mera ação refletida e reproduzida pela instância superestrutural. É considerar a metáfora como atividade que articula as práticas das esferas produtiva e econômica em um processo dinâmico e constantemente ativo em suas variantes e contradições, não como subproduto econômico fixado. Ao contrário do marxismo ortodoxo, “não é a base e a superestrutura que necessitam de estudo, mas os processos reais específicos e indissolúveis dentro dos quais a relação decisiva, de um ponto de vista marxista, é a expressa pela ideia complexa de ‘determinação’” (WILLIANS, 1979, p. 86). De igual modo, para Gramsci (1999, p. 177 – tradução nossa)31 “as relações entre a estrutura e a superestrutura precisam ser adequadamente postuladas para que as forças ativas de um determinado período histórico sejam coerentemente analisadas e compreendidas”. A valorização do popular e a ideologia vista como materialização das práticas sociais estruturada em níveis complexos de articulação: político e econômico encontram em Antônio Gramsci uma compreensão mais apurada. Nesse ínterim, surge o conceito de hegemonia que marca a superação do entendimento especulativo da cultura e que ajudaria os estudos culturais a não apenas refutar o determinismo histórico “base/superestrutura” como também desenvolver pontos de convergência dentro do próprio marxismo. A “hegemonia supõe a existência de algo verdadeiramente total que não é meramente secundário ou superestrutural, como na acepção fraca de ideologia, mas que é vivido numa tal profundidade e satura a sociedade” (WILLIANS, 2005, p. 16). A hegemonia ocorre quando um certo tipo de entendimento e direcionamento passa a gerir a ordem social geral e reflete-se nas ideias e ações na busca por um tipo de consenso. A “luta de classes” não ocorre somente na esfera econômica; ocorre, de forma simbólica, na esfera cultural vista como arena, onde costumes, valores e significados são debatidos. As mudanças culturais não ocorrem de maneira estanque, fortuita, são processos demorados e muitas vezes contraditórios entre si. Gramsci (1982, p. 175) afirma que as mudanças na forma “de pensar, nas crenças, nas opiniões, não ocorrem mediante ‘explosões’ rápidas, simultâneas e generalizadas, mas sim, quase sempre, através de ‘combinações sucessivas’, de acordo com ‘fórmulas’ ‘de autoridade’ variadíssimas e incontroláveis”. A hegemonia não é algo constante, perpétuo, imutável, também não está concentrada nas mãos de um determinado grupo social. Trata-se de um “‘momento’ historicamente muito

31 Do original: The relationships between the structure and the superstructure need to be properly postulated so that the active forces of a given historical period are coherently analyzed and understood. 70

específico e temporário da vida de uma sociedade” (HALL, 2018, p. 345). Segundo Willians (2005, p. 206) mobilizar “uma explicação bastante completa do que é hegemonia ao nos referirmos a qualquer formação social real” é fundamental. O autor refere-se ao conceito como “uma hegemonia” e não “a hegemonia”, justamente pelas variações e contradições relativas ao processo histórico. Esse jogo de forças ajuda a entender que “o que antes era secundário, subordinado, acidental e até considerado primário - torna-se o núcleo de um novo complexo ideológico e teórico” (GRAMSCI, 1999, p. 195 – tradução nossa).32 Stuart Hall (2018), contrariando o marxismo dogmático, afirma que a prevalência das ideias dominantes não ocorre por estarem vinculadas às classes dominantes. A luta ideológica é travada dentro do bloco histórico no qual o poder é exercido em um determinado período. Portanto, “cada formação hegemônica terá sua própria configuração e composição social. Esta é uma forma distinta de conceber aquilo que frequentemente é referido, de forma vaga e incorreta, como ‘a classe dominante’” (HALL, 2018, p. 346) já que é “o processo o objeto do exercício, não a encenação de um roteiro já escrito ou concluído” (2018, p. 322). Voltando a pensar sobre a “estrutura de experiência”, Raymond Willians dedica um capítulo inteiro ao tema em Marxismo e Literatura. O conceito é descrito junto à definição de cultura como “um modo de vida global” associada a momentos interdependentes que ele denominou de dominante, residual e emergente acionados para descrever os diferentes ciclos da cultura no processo histórico. O dominante é aquele que rege o status quo, mas que deve ser visto em articulação com os momentos residual e emergente “que em qualquer processo real e a qualquer momento do processo são significativos tanto em si mesmos como naquilo que revelam das características do ‘dominante’” (WILLIAMS, 1979, p. 125). O residual refere-se a elementos do passado que se apresentam na cultura como sendo do presente. Alguns sentidos, linguagens e “valores que não se podem expressar ou verificar substancialmente, em termos da cultura dominante, ainda são vividos e praticados à base do resíduo – cultural bem como social – de uma instituição ou formação social e cultural anterior” (WILLIAMS, 1979, p. 125). O emergente é caracterizado por práticas de significação constantemente recriadas na cultura. No entanto, não é tarefa simples observar como o emergente faz frente ao dominante com vistas a desestabilizá-lo (WILLIAMS, 1979). Maria Elisa Cevasco (2003) assevera que

32 Do original: What was previously secondary, subordinate, and accidental even considered primary - becomes the nucleus of a new ideological and theoretical complex. 71

as formas dominantes são dinâmicas e estão em constante mudança na busca por incorporar todas as demais formas existentes. Quando algo novo surge na cultura de modo a questioná- lo, o dominante age de tal forma para que o emergente seja incorporado ao seu sistema de crenças. Refletir sobre cada momento ajuda a compreender como ocorre o compartilhamento de valores culturais dos sujeitos em situações sociais reais e que podem ensejar mudanças. É preciso considerar os sentidos de movência que conectam passado e futuro com os momentos dominante, residual e emergente. As linguagens artísticas, por exemplo, quase sempre “se relacionam com formações sociais já manifestas, dominantes ou residuais, sendo principalmente com as formações emergentes que a estrutura de sentimento, como solução, se relaciona” (WILLIAMS, 1979, p. 136, grifo no original). Os processos emergentes ocorrem de forma mais dinâmica porque ainda não foram cristalizados “em convenções, normas e gêneros” (GOMES, 2011, p. 44). Essa observação se volta aos processos mais sutis de produção de sentido, “essa área mais ampla e menos palpável é importante também para revelar a cultura em mudança daquilo que, visto de outro modo (em termos econômicos, digamos), é uma classe que perdura e persiste” (WILLIANS, 1992, p. 25). Vale lembrar que o emergente nem sempre se relaciona com o novo. É difícil distinguir se as inovações artísticas são emergentes ou se são apenas processos novos que trazem em si características e trejeitos dominantes. O emergente muitas vezes pode se tornar dominante pelas reproduções que se encontram em diferentes níveis da cultura. Portanto, é preciso observar os processos culturais numa relação complexa e dinâmica (WILLIAMS, 1992). Stuart Hall (2018) afirma que essas inter-relações ocorrem num espaço de acordo, divergência e conflito. O emergente é capaz de trazer “esse ‘teatro de luta’, um repertório de estratégias e respostas - formas de lidar com situações e resisti-las” (2018, p. 253), seja por meio de artefatos materiais, sociais e simbólicas vistos como suportes de formação e produção cultural. No entanto, nem todas as estratégias têm o mesmo peso; podem trazer elementos de resistência, mas nem todas são potencialmente contra-hegemônicas.

2.2 Os estudos culturais nos estudos de mídia

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O percurso teórico inicial dos estudos culturais teve foco principal na observação de subculturas que de alguma forma resistiam aos padrões hegemônicos da cultura33. Nos 1970, o olhar voltou-se aos meios de comunicação vistos como formadores do ordenamento social e, em termos Althusserianos, como “aparelhos ideológicos do Estado”. Em 1973, Stuart Hall34 apresenta o ensaio: ecoding/decoding in the television discourse35, uma espécie de percurso metodológico alternativo aos estudos funcionalistas da Universidade de Leicester que se utilizavam dos métodos positivistas de análise de conteúdo, como a pesquisa dos efeitos e dos usos e gratificações. No ensaio, Hall questiona o mito da comunicação linear e unidimensional que considera o processo comunicacional sem os imponderáveis das trocas e fluxos de informações, como se fosse possível analisá-lo em etapas, do emissor ao receptor. A codificação refere-se à produção textual midiática e a decodificação, à produção de sentidos dos sujeitos na interpretação dos textos midiáticos. O autor apresenta três possíveis leituras para o conteúdo dos media: dominante, negociada e contestatória. Na leitura dominante, o conteúdo é compreendido conforme as intenções das instituições midiáticas; na leitura negociada, há um acordo consensual entre produtor e receptor em relação ao sentido da mensagem; na leitura contestatória, a mensagem encontra pouca ou nenhuma adesão no universo de compreensão do receptor. Um mesmo programa de televisão pode ser lido de diferentes maneiras por pessoas inseridas em posições sociais distintas. Um investidor da bolsa de valores poderá ter uma leitura diferente da de um vendedor de frutas. A mensagem pode ser a mesma, mas os “exercícios do ver”, na acepção de (MARTÍN-BARBERO; RAY, 2001), são diversos. As leituras negociadas são as que fazemos a maior parte do tempo. Só quando nos tornamos “um sujeito revolucionário completamente autoconsciente e esquematicamente organizado, alcançamos integralmente uma leitura de oposição” (HALL, 2018, p. 411). A chamada leitura preferencial é a que os veículos exercem influência para a mensagem ser lida daquela

33 Nesse perídio, o “foco passa a ser a relação entre estilo (uma forma particular de fazer algo) e juventude, isto é, como classe social e geração interatuam na produção de um grupo distinto de estilos; como os materiais disponíveis ao grupo são construídos e apropriados numa forma de resposta visivelmente organizada” (ESCOSTEGUY, 2010, p. 80). 34 Jamaicano, radicado na Inglaterra em 1951, Stuart Hall (1932-2014) pertence à segunda metade da produção teórica dos estudos culturais e que substituiria Richard Hoggart na direção do Centro, de 1968 a 1979, período mais fértil da produção teórica e que consolidou os estudos culturais em âmbito internacional. Em 1979, deixa a direção do CCCS e vai para a Open University em Londres até se aposentar em 1997. 35 “Esse texto seminal ajudou muitas pessoas em vários continentes a elaborar novas pesquisas e estudos da audiência, mesmo anos depois do próprio Hall abandonar esse campo diante da falta de financiamento para pesquisas mais aprofundadas” (SOVIK, 2011, p. 50). 73

maneira e não de outra, mas raramente as pessoas estão imersas numa leitura preferencial ou refutando toda a mensagem. Esse entendimento complexo precisa ser mobilizado para se compreender “a delicada relação entre os meios de comunicação, seus produtos e seus receptores, entendendo que todos estão inseridos em um contexto maior – de formas diferentes e com poderes diferentes” (MARTINO, 2005, p. 32). Para Hall (2018, p. 392) “o receptor pode não estar em condições de captar a mensagem que deveria captar”. Por mais que toda comunicação se dirija a um receptor, ele “raramente está onde o esperamos, compreendendo, em geral, algo diferente do que lhe dizemos ou gostaríamos que compreendesse pelo som, pela imagem, pelo texto ou pelo dado. Ele é a caixa preta” (WOLTON, 2006, p. 32). À Comunicação, como campo de pesquisa e conceito36, cabe mobilizar modelos metodológicos que busquem analisar o processo de forma complexa, não linear e de maneira a não reificar os sujeitos, pois as trocas e os fluxos comunicacionais são dotados de estruturas complexas de sentido que não tão simples como se pensa (HALL, 2018).37 O trabalho de Hall “representa um momento importante na constituição de uma teoria capaz de refutar os postulados da análise funcionalista americana e de fundar uma forma diferente de pesquisa crítica sobre os meios de comunicação de massa” (MATTELART; MATTELART, 2014, p. 109), não apenas dos meios mas também dos produtos da comunicação de massa. Em 1980, David Morley, sociólogo britânico, foi o primeiro pesquisador a “pôr em prática” o modelo ecoding/decoding ao estudar, por meio de uma etnografia da audiência, o noticiário popular Nationwide, da BBC News. Morley queria compreender como se formavam os processos de leitura e as diferentes decodificações das mensagens televisivas. Empreender uma etnografia da audiência implica primeiramente mobilizar um estudo dos produtos da mídia para depois centrar-se nos processos de decodificação dos significados das mensagens recebidas pela audiência (GOMES, 2004). Stuart Hall (2018) afirma que a realidade se apresenta como um emaranhado de fatos desordenados entre si. Uma forma de compreendê-la é reagrupar esses fatos em teorias, ideias

36 Para Escosteguy e Jacks (2005, p.22) “é preciso distinguir o campo da comunicação, o qual circunscreve todo o aparato ligado à produção, veiculação e concepção da comunicação mediada/industrializada, do campo da pesquisa e dos estudos de comunicação, responsável pela análise deste fenômeno, embora estejam intimamente conectados”. 37 Essa maneira de compreender o social ajuda a apaziguar o que Ágnes Heller (1991) chamou de “dilema das ciências sociais”. Nas palavras da filósofa húngara, “só se pode produzir um conhecimento verdadeiro sobre a ação racional se a análise social for realizada sob a orientação de um paradigma filosófico (ou metateórico) desfetichizado (ou não-fetichista)” (HELLER, 1991, p. 213). 74

e conceitos. Significa olhar a realidade a partir de uma situação conjuntural específica que se deseja compreender fazendo o “percurso através da teoria”. O ofício de teorizar tensiona estruturas sociais pela proposição de novos mapas conceituais a fim de desbravar caminhos ainda antes não percorridos. E o trabalho teórico caracteriza-se justamente “por ser também um problema político e estratégico” (2018, p. 294). No que tange à codificação, ela apresenta variâncias, é por vezes contraditória dentro das próprias instituições de mídia e nem sempre está vinculada à ideologia dominante. Numa entrevista dada à Universidade Massachusetts em fevereiro de 1989, num esforço reflexivo conjunto de repensar algumas questões propostas em seu modelo codificação/decodificação, Stuart Hall cita o canal 4 da televisão britânica, voltado a programações ligadas às minorias e, portanto, assevera que a codificação é, ao mesmo tempo, diversificada e heterogênea.38 Outro ponto importante são os processos ideológicos que envolvem a mensagem.39 Para Hall (2018), a ideologia tenta recortar a infinita semiose da linguagem e construir um significado particular ao romper a cadeia do sentido. Ser ideológico é propor um sentido único. Quando o poder sobrepuja a leitura, ocorre uma espécie de corte, de rasura no texto. O sentido não pode ser fixado, porque o processo de semiose é reaberto a cada nova frase, a cada nova linguagem. Não dá para “fugir do fato de que dizer algo significa desmontar uma configuração de sentido existente e começar a esboçar uma nova” (HALL, 2018, p. 410). Essa compreensão mais abrangente do significado, Hall toma emprestada de Bakhtin. Se diferentes classes sociais compartilham valores presentes em um mesmo signo, a disputa pelo sentido não ocorre por meio da sobreposição de uma linguagem sobre a outra, mas pela “desarticulação e rearticulação dos diferentes índices de valor ideológico dentro de um mesmo signo” (HALL, 2018, p. 255). A impossibilidade de fixar um sentido único deve-se à condição de plurivalência do signo que possibilita a um signo ideológico ser contestado.40 A cultura dominante “tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se travam, a fim de tornar o signo monovalente” (BAKHTIN, 1995, p. 47).

38 No Brasil, a TV Cultura, rede de televisão pública, pode ser um exemplo de espaço televisivo voltado às vozes minoritárias. 39 A ideologia abrange os “referenciais mentais — linguagens, conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação — que as diferentes classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível a forma como a sociedade funciona” (HALL, 2018, p. 295). 40 “Uma vez que a linguagem, enquanto meio do pensamento e do cálculo ideológico, é ‘polivalente’, como afirmou Volochínov, o campo do ideológico é sempre o campo das ‘ênfases interseccionadas’ e da ‘intersecção’ de interesses sociais distintamente orientados” (HALL, 2018, p. 317). 75

A chave de análise está em observar a “ideologia como um terreno diferenciado, das distintas correntes discursivas, de seus pontos de junção e ruptura e das relações de poder entre elas: em suma, um complexo ou conjunto ideológico ou formação discursiva” (HALL, 2018, p. 360, grifo no original). Nesse sentido, os hibridismos e ambivalências que transgridem a ordem cultural são fundamentais para compreender a organização e regulação das práticas culturais de uma sociedade. As categorizações agem como repositórios de valor cultural que evidenciam processos arbitrários de classificação cultural pela fixação de padrões numa ordem hierárquico-gradativa: “alta” e “baixa”. Hall (2018) argumenta que as práticas culturais não se eximem das relações de poder. O poder age para sobrepor e regular formas culturais transgressivas por meio de mecanismos coercitivos de hegemonia cultural. As discussões sobre o multiculturalismo e as tradições são observadas por ambos os lados. As propostas transgressoras do hibridismo cultural e as reivindicações dos conceitos de gênero, raça, classe, crença religiosa, entre outras questões em constante disputa na sociedade, são maneiras de afrontar o poder que sempre responde a tais manifestações. Outra contribuição conceitual importante de Stuart Hall é a representação cultural. A representação associa o sentido àquilo que é significado e compreendido na cultura. Refletir sobre a representação ajuda a tensionar padrões estabelecidos pelas imagens que circulam na cultura das mídias a fim de compreender suas construções simbólicas e narrativas. Pensando por essa via, a representação cultural do artista evangélico contemporâneo, por exemplo, muitas vezes reforça padrões hegemônicos pelo protagonismo da figura do artista gospel. As leituras da realidade são feitas por meio das linguagens obtidas das representações cultuais. Compreende-se representação não como mero reflexo, mas como “trabalho ativo de selecionar e apresentar, de estruturar e dar forma: não simplesmente de transmitir um significado já existente, mas o trabalho mais ativo de fazer as coisas significarem” (HALL, 2005, p. 60, grifos no original – tradução nossa)41. Os significados são produzidos socialmente e podem ter conotações distintas. Nesse sentido, Hall (2005) questiona o fato de as representações hegemônicas serem uma espécie de mão única sobre a produção de significados na cultura, sobretudo as representações midiáticas, que exercem adesão a certos significados elegendo-os como preferenciais dentro da cultura das mídias.

41 Do original: Active work to select, to present, to structure, and to give shape: not simply to convey an existing meaning, but the more active work of making things mean. 76

As representações agem como mapas de sentido, por elas “percebemos os ‘mundos’, as ‘realidades vividas’ dos outros e, imaginariamente, reconstruímos suas vidas e as nossas em algum ‘mundo por todos’ inteligível, numa ‘totalidade vivida’” (HALL, 2019, p. 323 – tradução nossa).42 A pluralidade aparente que os meios de comunicação conferem às representações as fazem ter um sentido compartilhado, isso ocorre por meio do “conjunto de representações, imagens e sentidos, seletivamente representado e classificado, organizado e articulado num todo coerente, numa ordem reconhecida, ou melhor, na produção do consenso, na construção da legitimidade” (ESCOSTEGUY, 2010, p. 69). O trabalho dos media com as representações culturais se difere do de outras instituições sociais porque o intuito é fixar um significado, social e simbólico, na cultura. O processo de eleger um sentido em detrimento de outros mostra que o poder não é exercido de forma neutra. Os significados compartilhados coletivamente são uma via para que o consenso seja atingido. A cultura, em sentido estrito, é um modo de vida, um sistema que visa tornar as coisas inteligíveis. As práticas de significação ganham corpo por meio das relações sociais, no compartilhamento de valores e no uso de artefatos materiais que compõe a vida social. Os significados são compartilhados por “mapas de sentido” que organizam a vida cotidiana e fazem do sujeito um sujeito social. A cultura tende a estruturar e modelar as práticas culturais e a maneira como são vividas e compreendidas (CLARKE et al., 2003). Ao deixar a direção do CCSS em 1979, Stuart Hall vai para a Open University e lá desenvolve trabalhos mais voltados ao âmbito das identidades culturais pós-modernas, representações culturais e dos estudos sobre raça e etnicidade até se aposentar em 1997.

2.3 Cultura, hegemonia e senso comum

O teórico italiano Antônio Gramsci apresenta três conceitos-chave para compreender a sociedade: cultura, hegemonia e senso comum. O senso comum é o espaço onde residem as ideias, crenças e mitos de um povo, funciona como um repositório de saberes utilizados para interpretar a realidade. Cada grupo social possui um modo específico de interpretar a realidade. Assim, contestar o status quo passa a ser um ato de resistência, pois uma vez que o discurso vigente possui adesão ao modo como o sujeito interpreta a realidade, ele se torna

42 Do original: We perceive the ‘worlds’, the ‘lived realities’ of others and, imaginatively, we reconstruct their lives and ours in some intelligible ‘world for all’, in a ‘lived total’”. 77

partilhado e difícil de ser contestado. Ninguém, em princípio, discute o que é óbvio, e o senso comum procura se apresentar de tal forma, que qualquer questionamento mais profundo beiraria às fronteiras do absurdo (MARTINO, 2010). Cada grupo social tem a “sua própria compreensão espontânea, instintiva, vivida, porém não coerente ou filosoficamente elaborada, de suas condições de vida e dos limites e formas de exploração aos quais ela é comumente submetida” (HALL, 2018, p. 357). Gramsci via que o senso comum poderia ser um poderoso instrumento de dominação, pois questioná-lo seria uma subversão em relação à ordem das coisas. O ordenamento social estabelecido entre força e hegemonia e, via senso comum, mantém a estabilidade pela anuência das instituições sociais: igreja, escola, família e a mídia, amplificada pela cultura, sobretudo a cultura de massa. Nessa perspectiva, os discursos e representações hegemônicas veiculadas pelos meios de comunicação podem exercer adesão à maneira como o senso comum compreende, por exemplo, a noção de artista evangélico, isto é, aquele é conservador, moralista, intolerante, dogmático. A compressão hegemônica “não é exercida nos campos econômico e administrativo apenas, mas engloba os domínios críticos da liderança cultural, moral, ética e intelectual” (HALL, 2018, p. 349). A cobertura da mídia é por vezes generalista e esporádica, e o uso de fontes recorrentes pode incorrer em estereótipos. As cantoras Aline Barros, Cassiane e Fernanda Brum, por exemplo, são as maiores referências da música evangélica para a grande mídia atualmente. O fato evidencia o vício de alguns veículos de comunicação em usar fontes recorrentes, ao passo de negligenciar outros artistas capazes de difundir uma voz dissonante em meio a um coro de vozes iguais. Em contrapartida, programas de emissoras pequenas, muitos deles ligadas a igrejas evangélicas, dão um espaço maior aos novos artistas, mas a audiência nesses programas é baixa e circunscrita à nichos específicos. A recusa dos grandes veículos em dar espaço aos artistas evangélicos é talvez um dos grandes entraves para alcançar grandes públicos devido à carência de espaço em rádios, programas de televisão, reportagens, entrevistas e a inserção em programações culturais não religiosas (PEREIRA, 2014). Esse imbróglio tem feito os artistas independentes seguirem caminhos alternativos de divulgação. As mídias digitais têm mostrado meios de subverter a lógica da exclusão e anonimato. Manuel Castells, (2009, p. 103 – tradução nossa)43 afirma que as redes sociais digitais não servem apenas para comunicar, mas para ocupar espaços que

43 Do original: A drop in the ocean of global communication. 78

os meios de comunicação tradicionais não dão. Em contrapartida, pelo excesso de informação o qual estamos habituados a consumir por meio das redes diuturnamente, o trabalho destes artistas é como se fosse “uma gota lançada no oceano da comunicação global”. O conhecimento por trás do senso comum é difícil de ser penetrado, sua concepção está fortemente estruturada por formações culturais anteriores, adquiridas, por vezes, sem a devida crítica, como se fossem dadas. Essas formações revelam os domínios pelos quais um tipo de entendimento é compreendido e compartilhado na cultura. Como diz Gramsci (1999, p. 324 – tradução nossa)44, são “traços” que agem como “depósitos estratificados da filosofia popular”, traços que não possuem um ordenamento lógico, mas que são acionados sempre que um campo de valores ideológicos estabelecido é problematizado. De toda sorte, o conhecimento partilhado pelo senso comum não pode ser desprezado. Não dá para perder de vista o que propõe a “epistemologia da compreensão”, que considera os saberes em constante diálogo uns com os outros, saberes esses que contemplam “os mitos, as religiões, as artes, as filosofias, os saberes comuns... e as sabedorias, uma vez que saber e sabedoria não são sinônimos. Como traz também para a conversa o padeiro da esquina e o vendedor de frutas, a criança bem calçada e a de pés descalços” (KÜNSCH, 2010, p. 17). Essa perspectiva é estimulante e convidativa a promover um tipo de saber dialógico, capaz de abarcar um sem-número de outros saberes em diálogo uns com os outros, e que busca fugir de um tipo de conhecimento que só visa “fragmentar o complexo do mundo em pedaços separados, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo” (MORIN, 2011b, p. 14). Dimas Künsch (2010) afirma que a ciência não pode e nem deve ser a única forma de conhecimento do mundo, essa visão herdada da “idade da razão” tolhe qualquer tentativa de pensamento compreensivo. Cabe mobilizar a ciência em diálogo com outros saberes numa busca mais abrangente e compreensiva do mundo, uma ciência menos arrogante e capaz de reconhecer suas limitações no diálogo com saberes tidos como não-científicos, quase sempre vistos como equívoco ou desconhecimento. Um pensamento inter, trans e pós-disciplinar que “reforça o diálogo entre saberes científicos, mas também com o saber cotidiano, o saber local, o senso comum, o saber místico, religioso e artístico” (MEDINA, 2006, p. 12).

44 Do original: “Traits” that act as “stratified deposits of popular philosophy”.

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O senso comum é constantemente enriquecido e transformado pelos diversos tipos de saber existentes, mas é de fundamental importância que ele seja continuamente retrabalhado por meio do entendimento das dimensões políticas e culturais em perspectivas consistentes e coerentes. O aperfeiçoamento do pensamento popular pode se tornar também uma estratégia contra-hegemônica, já que o senso comum não está isento de ser ele mesmo palco onde as lutas pela compreensão da realidade se travam. Hall (2018) descreve a distinção gramsciana entre “filosofia” e “senso comum”. Para Gramsci, uma formação intelectual adequada tem a ver com o seu aprofundamento filosófico, o que não necessariamente garante a adesão da maioria. A efetividade de uma formulação filosófica ocorre quando ela penetra no senso prático comum dos sujeitos e se amálgama nas relações sociais mais particulares, a fim de desconstruir e reconstruir conceitos em novas bases, com novos tijolos, erguendo novos edifícios. A mudança ocorre não pelo choque entre diferentes sistemas de pensamento, mas na construção e na reconstrução trabalhada no campo das ideias, “quando uma velha concepção de mundo é gradualmente deslocada por outro modo de pensamento e internamente retrabalhada e transformada” (HALL, 2018, p. 361). Mas “por que então o senso comum é tão importante?” questiona o autor, porque ele constitui o campo de saberes no qual o senso prático se efetiva. Trata-se daquele campo já percorrido onde diferentes saberes são reagrupados em novas premissas e temas em vias de transformar concepções da realidade compartilhadas e cotidianamente palpáveis. Eis o contexto em que surge a célebre frase gramsciana da qual “todos os homens são filósofos”, são filósofos na medida em que o pensamento se transforma em ação e se reflete nas condutas que regem a vida humana. Boaventura de Sousa Santos (2003) afirma que embora o senso comum exerça dominância sob alguns grupos sociais, muitos dos estudos que observaram subculturas e suas formações sociais já demonstraram que as formas de resistência podem se transformar em táticas de luta. Os “estudos de subcultura são tentativas de mapear o mundo social. Tentar descrevê-los ou traduzi-los para a sociologia (ou para os estudos culturais ou qualquer das outras disciplinas que estão em atividade neste campo) é inevitavelmente um processo de construção” (GELDER, 2005, p. 1 - tradução nossa).45

45 Do original: Subculture studies are attempts to map the social world. Trying to describe them or translate them into sociology (or cultural studies or any of the other disciplines that are active in this field) is inevitably a process of construction”. 80

2.4 Música evangélica brasileira e resistências: o caso Coletivo Candiero.

O Coletivo Candiero46 surgiu em 2014, a partir de uma iniciativa de músicos de João Pessoa (PB), que se reuniram para promover um evento de artistas regionais que utilizavam repertório próprio. Havia duas regras: os artistas deveriam estar presentes nos três dias de evento e estava vedada a execução de covers e interpretações de qualquer tipo. As músicas autorais aos poucos foram incorporadas às comunidades locais. O evento rendeu três edições realizadas num dos maiores teatros da cidade e fomentou a criação de uma nova cena musical. Will Straw (1992) compreende cena musical como “um espaço cultural em que várias práticas musicais coexistem e interagem entre si em uma variedade de processos de diferenciação” (1992, p. 373 – tradução nossa).47 Para João Freire Filho e Fernanda Marques (2006), o conceito de cena amplia a noção de uma prática sociocultural em elos que unem essas práticas e ajuda a compreender as inúmeras variáveis que influenciam a prática musical. Assim como “os gêneros musicais são um conjunto de regras – técnicas, semióticas e formais – que são encenadas ou atualizadas pelas cenas, é, portanto, nas cenas que eles se confirmam ou são transformados em possíveis novos gêneros – ou subgêneros” (SÁ, 2011, p. 154). No início de 2019, Marco Telles Belohuby, um dos idealizadores do projeto, decide expandir o movimento a outras regiões do Nordeste e, juntamente com Filipe Daguia, compositor e arranjador, começam a convocar bandas e artistas do Ceará, Rio Grande do Norte, Teresina, Paraíba, Bahia e Pernambuco. Em pouco tempo, criou-se um grupo de WhatsApp com mais de vinte nomes de pessoas que não se conheciam pessoalmente, mas que decidiram abraçar a ideia de criar uma cena musical evangélica nordestina. As cenas musicais não se distinguem apenas pela produção de sonoridades, mas pela articulação de uma série de fatores socioculturais: a mirada num público específico, a ocupação de espaços culturais relacionados a um certo tipo de escuta música e fruição estética, e as fronteiras culturais entre “nós” – os de dentro – e “eles”, os de fora – mas que não se traduzem em antagonismos, pois ambas se comunicam e enriquecem mutuamente. As

46 O coletivo é composto por: Ana Heloysa; Antognoni Misael; Calmará (banda); Catarina Von Bora; Eli; Filipe Da Guia; Hipona (banda); João Manô; Juliana Tavares; Julhin de Tia Lica; Marco Telles; Midian Nascimento; Northon Pinheiro; Ramon Souza; Samuel Palmeira. 47 Do original: A cultural space in which various musical practices coexist and interact with each other in a variety of differentiation processes.

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cenas musicais, portanto, “são espaços geográficos específicos para a articulação de múltiplas práticas musicais” (SÁ, 2010, p. 155). A expressão “Candiero” deriva da pronúncia da palavra candeeiro, tipo de lamparina, um jeito nordestino de falar: “primeiro, porque diz respeito à um elemento muito característico de nossa cultura nordestina, ainda utilizado hoje nas brenhas sertanejas; segundo, porque faz menção ao nosso papel social: iluminar, trazer luz” (BELOHUBY, 2020, s/p). O autor acredita ser preciso abandonar a ideia subserviente de que a produção cultural nordestina, para ser reconhecida, precisa passar pelo crivo do sudeste. Essa subserviência está presente em frases como: “poxa, seu som é incrível! que pena que você não mora em São Paulo, ou no Rio, ou em Belo Horizonte. O objetivo do coletivo é justamente dizer ao artista: Você tem um trabalho incrível e não precisa tocar no Sul ou no Sudeste para receber esse reconhecimento” (BELOHUBY, 2019, s/p). O Nordeste já embelezou tanto o Brasil na literatura, música, poesia, dança, pintura, cordel e tantas outras expressões, tem embelezado “a cultura brasileira há séculos com o que há de melhor na literatura, música, poesia, dança, pintura, cordel e em tantas outras expressões. Está mais que na hora do Nordeste cristão começar a alimentar a nação com a sua arte única advinda de sua experiência singular” (BELOHUBY, 2019, s/p). Nos dias 15, 16 e 17 de agosto de 2019 ocorreu em Natal, Rio Grande do Norte, a conferência Candiero com tema Psicodelia nordestina abstrata. O evento reuniu artistas de todo o Nordeste numa mesa-redonda que debateu temas como fé cristã, cultura popular, arte e cristianismo. Houve também uma exposição de artes visuais de artistas regionais. Em 01 de março de 2020, o jornal Folha de Pernambuco publicou uma reportagem de duas páginas assinada por Daniel Medeiros com o título: Para além do gospel. A reportagem traz falas de Marcos Almeida e Marcos Telles Belohuby, dois importantes artistas da música evangélica brasileira contemporânea. Alguns trechos da reportagem estão transcritos à seguir:

Para além da difundida cena gospel, que importa muitos elementos estrangeiros em sua estética, há músicos interessados em criar um novo caminho para a música de raiz cristã, mais conectada com elementos da cultura brasileira [...] “Não acredito que exista uma música gospel no Brasil”, afirma o músico mineiro Marcos Almeida. A negação do ex- vocalista da banda Palavrantiga, que, desde 2014, segue em carreira solo, faz sentido. No Brasil, o termo originado de um tipo de canto religioso das comunidades negras dos Estados Unidos é comumente utilizado para denominar qualquer canção com conteúdo cristão. Sendo assim, a classificação é capaz de abranger os mais variados ritmos existentes, sem configurar como um gênero musical específico (MEDEIROS, 2020, p. 5). 82

Para Marcos Almeida, o rótulo gospel não se encaixa no tipo de som que ele faz. O músico, que transita por gêneros como MPB, rock e folk, classifica sua música apenas como brasileira. “Vejo uma grande limitação no gospel do Brasil. Como é uma cena dependente do que acontece lá fora nos Estados Unidos, ela é subserviente. Os artistas não têm liberdade para fazer uma música brasileira dentro do cenário evangélico, porque isso soaria muito extraterrestre”, comenta. No ano passado, Marcos lançou seu segundo disco solo. Em Lá de Casa (Lado A), as canções transmitem mensagem otimistas, falando sobre amizade, sonhos e alegrias, mas sem apologia de cunho religiosa. Uma das músicas, Que onda, foi composta em parceria com Paulo Nazareth e a cantora Baby do Brasil. “O meu desejo é fazer uma música existencialista, que trabalhe os temas mais importantes da vida, cantando de um jeito que a gente gosta de ouvir” (MEDEIROS, 2020, p. 5).

Marcos Almeida é um dos grandes incentivadores do coletivo em suas redes sociais. Segundo Belohuby (2020, s/p), “ele chegou até nós do Candiero por meio do livro Vida após o gospel48 e não tem medido esforços para nos apoiar. A frase ‘o nordeste é o futuro’ nos causa uma energia impressionante. Motiva-nos a continuar nessa jornada artística”. O perfil dos artistas é bem variado: uns são mais engajados politicamente e trazem isso nas letras das canções, outros têm uma atuação mais voltada ao canto congregacional. As canções abordam temas existenciais e do cotidiano em estéticas que vão do experimentalismo aos gêneros mais conhecidos, já os artistas mais regionalistas misturam o xote, o forró pé de serra a poesia de cordel. Julhin de tia Lica, um dos artistas do Coletivo Candiero, ganha espaço na reportagem:

O potiguar Júlio César, conhecido artisticamente como Julhin de Tia Lica, conhece bem o distanciamento das suas próprias raízes. Morador da zona rural do município de Jardim do Seridó, no Sertão, ele vêm ouvindo as charangas (bandas de festas populares), seguindo os papangus e brincando com os mamulengos. “Deixei o que eu conhecia de lado quando entrei para a igreja, na adolescência. Tudo isso era demonizado no ambiente novo que estava vivendo. Só depois fui perceber a graça comum que existe nas canções que não são religiosas. Comecei a ver como Deus se manifesta há tempos na cultura popular. Isso acendeu uma chama dentro de mim e passei a sentir orgulho na minha identidade”, conta. Julhin lançou seu primeiro single, Oração de São Pedro, no ano passado, através do coletivo. (MEDEIROS, 2020, p. 6).

É interessante notar como o artista consegue reconectar toda a sua tradição cultural com os aspectos da fé evangélica. Esse é um trabalho de maturidade adquirido a duras penas

48 Escrito pelo autor e lançado em 2018, o livro tece duras críticas ao mercado musical gospel brasileiro e lança mão de um novo conceito: o pós-gospel. 83

após todo o processo de crítica e de demonização da cultura dita secular, “do mundo”, pela ala mais religiosa e conservadora da igreja. A questão da “graça comum” segundo o artista é um atributo que Deus confere a todas as coisas criadas, inclusive aos elementos da cultura. Essa compreensão que tenta relacionar de forma mais dialógica o sagrado e o não sagrado irá desembocar no próprio fazer artístico. Para Belohuby (2019, s/p), “o que cada artista produz deve ser, e obviamente é, resultado de sua própria experiência de vida no mundo de Deus. Tudo o que ouviu até ali, tudo o que leu, tudo o que doeu e tudo o que fez rir. A soma de tudo isso vai gerar um estrato único: a arte”. A dualidade medieval que põe de um lado a arte “sagrada” e a arte “profana”, no entendimento dos artistas, não possui relevância alguma e fica evidente em outro trecho da reportagem: Na canção, as batidas do maracatu e a influência do movimento Manguebeat são bem perceptíveis. “Minha ideia é lançar um estudo de ritmos nordestinos, como ijexá, ciranda, xote e baião, até o final do ano. São músicas mais poéticas. Quero que mesmo que não é evangélico possa ouvir e se deleitar com a minha arte”, declara. (MEDEIROS, 2020, p. 6).

Existe uma arte nordestina e existe uma arte feita por cristãos nordestinos. Ela não é cristã no rótulo, nem serve como adereço. Ela expressa um olhar diferenciado sobre um ponto de vista comum. É idiossincrática no sotaque, no folclore e na linguagem. O autor afirma haver um imaginário social delimitado sobre a produção e o consumo musical evangélico no Brasil, isto é, música cristã é música gospel e seus maiores expoentes são os artistas do sudeste e do centro-oeste do país. O imaginário sustenta a ideia de que para ser reconhecido é preciso sair da sua terra, pegar um pau de arara e mudar-se para o centro-sul onde o circuito gospel acontece. Falta ainda aos artistas evangélicos nordestinos valorizar devidamente suas peculiaridades estéticas.

2.5 Estudos culturais, hibridismos e a noção de revolução simbólica

No âmbito dos estudos culturais, essa distinção nordeste/sudeste pode ser pensada a partir do que Edward Wadie Said (2007) chama de orientalismo. O oriente, pensado para além do espaço geográfico, é uma construção do ocidente, tido como exótico, diferente e até inferior. Said quer compreender como a dominação euroamericana reverbera nas expressões da cultura oriental em lutas por emancipação e integração de culturas excluídas em busca de legitimidade e de reconhecimento. Atento ao fato de a interpretação das culturas não poder 84

ocorrer por meio de um “realismo mágico”, como diria Nestor García Canclini (2015), o autor palestino assevera a importância dos processos de hibridização cultural ao afirmar que “todas as culturas estão mutuamente imbricadas; nenhuma é pura e única, todas são híbridas, heterogêneas, extremamente diferenciadas, sem qualquer monolitismo” (SAID, 2011, p. 30). Sobre o hibridismo cultural, é importante destacar o que Nestor García Canclini compreende sobre o conceito. Em seus estudos, o antropólogo argentino busca compreender as contradições entre as culturas locais e globalizadas, o neoliberalismo e as desigualdades. O hibridismo cultural ocorre por meio dos “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. XIX – grifo do autor). Nem mesmo estas “práticas discretas” podem ser consideradas puras. Por essa razão, Garcia Canclíni (2015, p. XXII) questiona como “a hibridação funde estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas práticas?” A interpretação das culturas não pode ser utilizada como um “recurso para o realismo mágico da compreensão universal. Trata-se, antes, de colocá-los no campo instável, conflitivo, da tradução e da ‘traição’. As buscas artísticas são chaves nessa tarefa, se conseguem ao mesmo tempo ser linguagem e ser vertigem” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. XL). A crítica do autor é direcionada às interpretações estandardizadas das culturas latino- americanas e das tentativas de centralidade e homogeneização advindas, sobretudo da cultura norte-americana, nacionalista e globalizante. A cultura latino-americana possui característica de unidade e reconhecimento marcada por relações assimétricas de poder e que comunicam condições próprias de ser e de estar no mundo, onde a diferença adquire caráter de identidade. Na música brasileira de raiz cristã, o uso da cultura popular é mais evidente e reforça aspectos híbridos da canção em arranjos e composições mais criativas e intertextuais. O uso de diferentes elementos na canção: timbres, sonoridades, arranjos e uma drástica mudança no conteúdo das letras altera substancialmente seu aspecto religioso e aponta para os usos, apropriações e utilizações da cultura. As linguagens caracterizam uma distinção em relação à música gospel hegemônica num processo de construção dialógica que geram novos sentidos e textos culturais em interação com outros textos e elementos extratextuais. Na música gospel brasileira, a influência norte-americana é sobremaneira evidente. Muitos artistas, em vez de criar um repertório autoral, traduzem canções de grupos e artistas do gospel estrangeiro utilizando-se dos mesmos arranjos, formas do canto e sonoridades. A 85

prática virou praxe na maior parte das comunidades evangélicas contemporâneas e levanta duras críticas feitas pelos artistas que não compartilham de tais práticas, a seu modo, reiteram a subserviência, a ausência de criatividade e a impossibilidade de construir uma identidade brasileira na composição das canções. Eis um possível sintoma do que Pierre Bourdieu chama de “dominação simbólica”. Segundo o autor, “toda dominação simbólica supõe, por parte daqueles que sofrem seu impacto, uma forma de cumplicidade que não é submissão passiva a uma coerção externa nem livre adesão a valores” (BOURDIEU, 2008, p. 37). A dominação simbólica é uma das vias pelas quais García Canclini adentra ao espoco teórico de Pierre Bourdieu, sobretudo no que tange aos conceitos de habitus e capital cultural. O habitus é internalizado e estruturado pela sociedade, não como algo inato, mas adquirido. Assim como o sujeito já nasce dentro de uma língua, a compressão do real se perfez pelos caminhos trilhados pela linguagem. No conceito de habitus, Bourdieu abordará as chamadas “estruturas estruturantes e estruturadas”. As estruturas estruturadas agem como estruturantes na medida em que moldam as práticas sociais a fim de não parecer imposição ou obediência. No habitus, as “estruturas estruturadas estão predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, no sentido de que são estruturas que vão organizar nossas práticas, a maneira pela qual vamos atuar na sociedade” (GARCÍA CANCLINI, 1995, p. 40 – tradução nossa)49. Compreender a cultura de forma mais apurada é compreender os processos de produção e reprodução das estruturas sociais onde diferentes grupos sociais disputam reconhecimento e legitimidade. As culturas populares no capitalismo têm uma apropriação desigual de capital cultural e seus modos de existência são, muitas vezes, conflituosos com os modos da cultura dominante (CANCLINI, 1983). Os conflitos culturais descritos por Garcia Canclini podem se converter em revolução cultural ou, na acepção de Bourdieu, em “revolução simbólica”. Essas revoluções simbólicas, quando bem propostas, são capazes de modificar estruturas de pensamento predeterminadas. As inúmeras formas de apreciar e significar o mundo, em suas infinidades e variedades, são fruto de revoluções simbólicas, “assim como as grandes revoluções religiosas, uma revolução simbólica desarranja estruturas cognitivas e às vezes, em certa medida, estruturas sociais” (BOURDIEU, 2014, p. 122).

49 Do original: Las estructuras estructuradas están predispuestas a funcionar como estructuras estructuradoras, en el sentido de que son estructuras que organizarán nuestras prácticas, la forma en que actuaremos en la sociedad. 86

Um exemplo de revolução simbólica dado pelo autor é a do pintor Édouard Manet50, que se contrapôs a uma ordem simbólica que se apresentava como tal evidente em estruturas de produção de sentido tácitas adquiridas sem uma reflexão crítica sobre seu funcionamento. A obra Le Déjeuner sur l’herbe51 causou um grande escândalo na sociedade francesa da época. Bourdieu questiona como uma pintura que hoje circula em embalagens de torta pôde causar tamanho alvoroço? Nem mesmo “os textos mais revolucionários de Marx ou Durkheim não provocaram um centésimo da violência que essa obra suscitou, assim como seu duplo, a tela Olympia (1863)” (2014, p. 127) Bourdieu afirma ser possível “pensar nessa obra, por analogia, como um fenômeno de aggiornamento52 religioso, que é uma forma suave de revolução simbólica” (2014, p. 128). Isto é, um tipo de revolução institucional que se faz por meio da própria instituição social. Ela é fruto do trabalho coletivo, nesse caso, de um concílio, onde proposições passam pelo crivo dos próprios pares para não se tornarem uma heresia ou uma revolução de um homem só. É interessante como o autor aprofunda a questão da revolução simbólica. Em 1982, Bourdieu publica na França o livro Ce que parler veut dire53 (em tradução livre: o que falar quer dizer), em que reproduz trechos de um livro descoberto por acaso numa lavraria de Saint-Sulpice, em Paris. O livro, Le livre blanc et noir de la communion solennelle de autoria do padre Lelong, cardeal da catedral Notre-Dame, trazia uma compilação de cartas com reclamações de fiéis sobre as modificações ocorridas na liturgia católica após as mudanças propostas pelo Concílio Vaticano II. Algumas dessas reclamações estão transcritas a seguir:

Minha mãe ficou horrorizada com o vigário que queria celebrar a missa sobre sua mesa de refeições (p. 90) (BOURDIEU, 2008, p. 86).

Confesso que estamos absolutamente desconcertados com esse incentivo para desertar as igrejas e passar a celebrar a Eucaristia em pequenas comunidades, em casa, ou então em capelas onde cada um se serve de uma hóstia, trazida em bandejas por leigos para comungar no próprio lugar onde a gente se encontra (p. 47) (BOURDIEU, 2008, p. 86).

50 Édouard Manet (1832-1883), pintor impressionista francês do século XIX. 51 Em português: O almoço sobre a relva ou O piquenique no bosque, é uma pintura, óleo sobre tela, de Manet de 1862. A tela expõe uma modelo nua sentada entre dois homens vestidos. O quadro causou grande alvoroço entre os mais conservadores da época na ocasião de sua exibição no Salon des Refusés, em 1863. Atualmente, o quadro está exposto no Museu de Orsay, em Paris. 52 Em italiano, significa atualização. A expressão foi a tônica das discussões do Concílio Vaticano II convocado pelo então Papa João XXIII em 1962. 53 A primeira edição lançada no Brasil é de 1996. Cf: A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2008. 87

Não somos muito bem tratados na diocese de B., onde estamos submetidos às extravagâncias do “grupelho dos jovens abades”. No ano passado, eles tiveram a idéia de fazer a primeira comunhão solene no Estádio de Futebol. Esperam, assim, acabar com ela, pois existem aqui duas grandes e lindas igrejas onde caberia perfeitamente todo mundo (p. 66) (BOURDIEU, 2008, p. 86).

Ali estava eu numa igreja onde o padre que celebrava a missa chamara músicos modernos. Não conheço essa música, imagino que tocavam bem, mas, na minha modesta opinião, essa música não convidava à oração (p. 58-59) (BOURDIEU, 2008, p. 92).

Ainda bem recentemente, numa casa religiosa onde estavam reunidos procedentes da França inteira, jovens que têm “um projeto sacerdotal”, o padre, para celebrar a missa, não se paramentou nem se muniu dos objetos do culto. Em roupa civil, numa mesa comum, pão e vinho comuns, utensílios comuns (p. 183) (BOURDIEU, 2008, p. 94).

Já vimos pela televisão missas tão desconcertantes, próximas do sacrilégio (com mesinhas em Lille, com a Santa Comunhão sendo distribuída por mulheres em cestos; jazz etc.) que eu me recuso doravante a acompanhar essas cerimônias inverossímeis! (p.158) (BOURDIEU, 2008, p. 94).

Mulheres lêem publicamente as epístolas do púlpito, alguns poucos ou nenhum menino de coro e até mesmo, como em Alençon, mulheres dando a comunhão (p. 44) (BOURDIEU, 2008, p. 94).

As revoluções simbólicas, tanto a de Manet como a causada pelo concílio Vaticano II, são desconfortáveis porque afrontam a uma ordem estabelecida. O escândalo produzido pelo quadro tem um efeito de ruptura com estruturas de pensamento que se apresentam únicas e fundamentais à experiência estética, mas que, na verdade, são estabelecidas em processos de luta simbólica na busca por legitimidade. Da mesma maneira, as atualizações na liturgia são formas de renovar o pensamento religioso a fim de ter relevância na contemporaneidade. “Assim como a crise da liturgia é uma crise da linguagem religiosa que acompanha uma crise do corpo sacerdotal e redobra uma crise da linguagem, a crise provocada por Manet é essencialmente uma crise da linguagem estética” (BOURDIEU, 2014, p. 129). Para o autor, a linguagem é o meio mais eficaz de construir simbolicamente realidades e representações. Nomear é constituir estruturas que tornam inteligíveis objetos e processos culturais. O poder de nomear é o poder constituir o mundo. No quadro de Manet, a mulher é intimadora porque “ameaça a ordem simbólica e a hierarquia dos gêneros sexuais; e ameaça também a ordem social pelas ameaças que faz pesar sobre a reprodução” (BOURDIEU, 2014, p. 135). De igual modo, as práticas litúrgicas, quando deslocadas de seu contexto e conduzidas por um leigo ou realizadas numa mesa de refeição, geram um desconforto 88

generalizado, pois os agentes do campo precisam ser legitimados para tal. A única ordem legítima de conduzir o sagrado é a sacerdotal, reconhecida e autorizada. Sobre a linguagem e o seu poder de nomear, Bourdieu (2008) faz uma interessante menção a Henri Poincaré, matemático francês que considera o efeito genérico da matemática “a arte de dar nome idêntico a coisas diferentes”. Pensando numa perspectiva sociocultural, uma generalização malfeita pode incorrer no mesmo erro descrito por Poincaré: o de nomear igualmente processos culturais diferentes. Bourdieu (2008, p. 98) assevera que quando as categorias socioculturais são bem propostas, “as relações feitas a um objeto conhecido se aplicam a quaisquer espécies de novos objetos”. Portanto, se há uma boa compreensão sobre a música evangélica brasileira, as generalizações díspares não encontram adesão, pois uma “a cabeça bem-feita”, parafraseando Edgar Morin (2003), consegue dar conta de significar adequadamente processos culturais diferentes.

CAPÍTULO 3 | SEMIÓTICA DA CULTURA E A NOÇÃO DE GÊNERO MUSICAL 89

Só os homens e os pássaros têm o dom de cantar. O canto, como a palavra, é o sopro divino que renova a Criação.

Povo Merinaku

3.1 Semiótica da Cultura, semiosfera e texto cultural

Irene Machado (2013) apresenta duas grandes abordagens para o estudo semiótico da cultura. A primeira vem do campo da etologia54, com o biossemiótico estoniano Jakob Von Uexküll e o seu conceito de Ümwelt, que pode ser compreendido como o mundo subjetivo da percepção dos seres e a sua compreensão por meio dos sentidos. O homem interage em seu meio social por representações e atribuições de sentido a partir de seu “lugar” no corpo social, nas comunidades de pertencimento etc. Em suma, “a vida de todo ser representa uma interação complexa com o meio em que o rodeia” (LOTMAN, 1978, p. 29). Von Uexküll assevera que os sujeitos de um mesmo grupo social podem ter percepções distintas diante de um mesmo objeto, o que torna o Ümwelt um elemento subjetivo, sensorial e supraindividual. A segunda abordagem conceitual é o dialogismo, surgido primeiramente nos estudos filosóficos da linguagem do linguista russo Mikhail Bakhtin. O dialogismo é uma resposta à filosofia idealista do início do século XX, sobre como a consciência individual age sob a consciência do outro. Por mais que responda a um interlocutor implícito, a consciência individual não pode ser dialógica, pois sozinha é capaz apenas de produzir um monólogo. Para ser dialógica, ela precisa estar em contato com outras consciências por meio da palavra. Uma obra de arte, sob o ponto de vista semântico, “é em princípio acessível a qualquer consciência individual, mas o elemento semântico-axiológico (inclusive os símbolos) só é significativo para indivíduos ligados por certas condições comuns de vida” (BAKHTIN, 2015, p. 406). É, portanto, na consciência dialógica que os sentidos ocorrem, contando aos outros o sentido do outro.

54 A etologia é um ramo da biologia que se ocupa em estudar o comportamento social e individual dos animais em seu habitat natural. Na antropologia, por extensão, a etologia estuda o comportamento do homem na interação com o meio social. 90

A Escola de Semiótica de Tártu-Moscou tem relação direta com as duas abordagens. Desenvolvida nos anos 1960, na Universidade de Tártu-Estônia, a semiótica da cultura considera a produção artística como comunicação, e a cultura como linguagem. Estuda os processos de troca de informações na relação “natureza e cultura”, e os signos culturais como o principal meio para compreender os sistemas, linguagens, códigos, leis e convenções que o homem cria e usa para se comunicar. Alguns processos sígnicos, como a pintura, escultura, literatura, arquitetura, música e as artes do corpo, elaboram suas próprias linguagens e formas de significações. Nem mesmo a língua compartilhada por um mesmo grupo de indivíduos, pode dar conta de decodificar os complexos signos da cultura. Cabe ao semioticista investigar os diversos processos geradores de linguagem e os sistemas que elaboraram seus próprios modelos de significação. Os semioticistas russos definem a cultura como “um conjunto de informações que os grupos sociais acumulam e transmitem por meio de diferentes manifestações do processo da vida, como a religião, a arte, o direito (leis), formando um tecido, um ‘continuum semiótico”’ (VELHO, 2009, p. 250). Os diversos textos presentes na cultura compõem a memória coletiva “assegurada em primeiro lugar pela presença de alguns textos constantes e, em segundo lugar, pela unidade dos códigos ou por sua invariância ou pelo caráter ininterrupto e regular de sua transformação” (LOTMAN, 1996, p. 109 – tradução nossa).55 Na semiótica da cultura, linguagem é todo e qualquer sistema de signos que possa gerar, comunicar ou produzir cultura. Ela estrutura e organiza a percepção da realidade. Compreender o mundo é compreender a linguagem e ter clareza sobre a linguagem, é ter clareza sobre a compreensão do mundo (MARTINO, 2007). Roman Jakobson, criador do círculo linguístico de Moscou, foi quem deu as bases para os semioticistas da cultura elaborarem seu conceito de linguagem. Para Jakobson (2014), existem, na cultura, signos diferentes daqueles organizados pela linguagem verbal. Faz-se necessário compreender sua organização, perceber a linguagem como unidade complexa, como um sistema de diversos níveis que se relacionam entre si (RAMOS et al., 2007). A dinâmica dos signos culturais contribuiu para os semioticistas desenvolverem os chamados “sistemas modelizantes primários e os sistemas modelizantes secundários”. Modelizar significa traduzir em linguagem os signos dispostos na cultura de maneira não

55 Do original: asegurada, en primer lugar, por la presencia de algunos textos constantes y, en segundo lugar, o por la unidad de los códigos, o por su invariancia, o por el carácter ininterrumpido y regular de su transformación. 91

estruturada. A expressão verbal, entendida aqui como “língua natural”, é tida como sistema modelizante primário. As linguagens das artes: literatura, mito e religião, por serem concebidas de uma estrutura (língua) e ao mesmo tempo portarem uma estruturalidade, são consideradas “sistemas modelizantes secundários”. A expressão verbal estrutura todas as linguagens da cultura e, por estarem sobrepostas à língua natural, apresentam-se como sistema modelizante primário (MACHADO, 2003). Já as decodificações dos sistemas modelizantes secundários não estão submetidas à linguagem verbal, decodificam-se por meio de suas próprias linguagens internamente. A “modelização é a chave para compreender a produção de mensagens resultantes das relações entre as mais variadas linguagens ou os mais variados sistemas semióticos da comunicação social” (MACHADO, 2003, p. 150). Os sistemas modelizantes agem como um organismo vivo, um sistema aberto, dinâmico e em constante mutação na inter-relação dos signos, um continuum semiótico (LOTMAN, 1996). Mesmo que os sistemas modelizantes primários fiquem a cargo da língua, e os secundários sejam decodificados por suas próprias linguagens, não há uma hierarquia entre eles. Se as epopeias míticas e as narrativas bíblicas se materializam por meio da língua falada, tanto um teólogo quanto um poeta podem assumir a tarefa de decodifica-las, afinal, “graças aos mitos, ritos e rituais religiosos é possível integrar correntes transformadoras que garantem ao texto as forças potenciais de geração de cultura” (MACHADO, 2015, p. 17). Também é “necessário destacar as analogias das linguagens da religião com as linguagens da arte. Devido a sua complexidade estrutural e hibridismo formal, a religião se configura como uma linguagem de segundo grau, com alto poder de modelização da realidade” (NOGUEIRA, 2015, p. 122).

3.2 O texto cultural

A concepção de texto cultural na semiótica da cultura ganha outra definição. Se, nas outras correntes da semiótica, como a semiótica discursiva (greimasiana), o texto equivale a um enunciado escrito ou falado, na semiótica da cultura, o texto possui um sentido ainda mais amplo, e pode ser compreendido como qualquer manifestação cultural capaz de gerar significados e ser decodificado enquanto linguagem, dotado de “um complexo dispositivo que guarda vários códigos, capazes de transformar as mensagens recebidas e de gerar novas 92

mensagens” (LOTMAN, 1996, p. 171 – tradução nossa).56 O texto cultural é dialógico, possui dois ou mais signos em processo de significação. O espaço relacional entre os signos difere-se entre uma linguagem cultural e outra. Assim, compreender como uma dança é executada, é diferenciar que a “dança de um ritual específico não se confunde com uma dança de uma performance de entretenimento” (RAMOS et al., 2007, p. 31), ambas se realizam dentro de um mesmo sistema semiótico, porém, tratam-se de textos culturais distintos. “Qualquer elemento de produção cultural pode ser pensado como um texto no sentido de que tem começo, meio e fim, e é organizado em um sentido fechado: um texto pode ser ‘lido’ porque faz sentido em si” (MARTINO, 2010, p. 120). O texto cultural tem três funções: comunicativa, geradora de sentidos e mnemônica. A primeira está atrelada à estrutura comunicativa da língua, utilizada para a transmissão de mensagens. Nela, o texto é homoestrutural e homogêneo, expressão de uma única linguagem. Na função geradora de sentidos, o texto é heterogêneo e heteroestrutural, representa inúmeras linguagens que, quando decodificadas, geram novos textos. Até o “ruído”, tido como entrave à comunicação, pode ser capaz de gerar novos sentidos. Das três funções do texto cultural, essa é a mais criativa e, “se no primeiro caso, toda mudança de sentido no processo de transmissão é um erro e uma desfiguração, no segundo ela se converte em um mecanismo gerador de novos sentidos” (LOTMAN, 1996, p. 60 – tradução nossa).57 A função mnemônica corresponde à memória da cultura. Nela, o texto é capaz de preservar a estrutura de textos precedentes, produzir novos textos sem perder seu sentido original. A transformação da informação em linguagem ocorre com base nas três funções do texto cultural e no mecanismo semiótico no qual se encontra. Há produção de sentido quando o texto é modelizado e decodificado como linguagem. Esse aspecto multivocal, “como traço essencial do texto, é talvez o aspecto que mais caracteriza o que é enfoque da semiótica da cultura, e o que a diferencia das demais disciplinas” (RAMOS et al., 2007, p. 31). Uma obra de arte comunica um conteúdo de uma linguagem artística própria, sua significação, portanto, não existe fora dela. Contudo, o texto cultural de uma obra não representa a sua totalidade. Para decodifica-lo, , é preciso mobilizar uma série de elementos de sentido presentes em outros textos culturais. O texto cultural, portanto, sempre carrega características de outros textos, constitui-se um espaço dialógico entre diferentes linguagens,

57 Do original: Si, en el primer caso, todo cambio del sentido en el proceso de transmisión es un error y una desfiguración, en el segundo se convierte en un mecanismo de generación de nuevos sentidos. 93

“mitos, pinturas, romances, danças, rituais etc. – se constroem no diálogo, na operação interativa entre seus componentes subtextuais, no diálogo entre os signos e dos signos com o seu próprio percurso histórico” (BAITELLO JR, 1999, p. 44). Para Lotman (1996), a cultura é uma inteligência coletiva que conserva certos textos e elabora outros novos. Existe perenidade em certos textos enraizados no entendimento da coletividade: Michael Jackson é “o rei do pop”; o lema da juventude Hippie do final dos anos 1960 era “paz e amor”, entre outros exemplos. Os textos culturais formam um “conjunto de informações não-hereditárias que as diversas coletividades da sociedade humana acumulam, conservam e transmitem” (LOTMAN, 2010, p. 31). A cultura é também um espaço de memória coletiva de conservação e atualização de informações. Esses processos ocorrem por meio de mecanismos de “memória informativa” e “memória criadora”. A primeira possui relação com textos culturais que visam criar sentidos “dispostos numa só dimensão temporal e subordinada à lei cronológica” (LOTMAN, 1996, p. 110 – tradução nossa).58 A “memória criadora” é a memória das artes, nela, os textos são dinâmicos e sempre suscetíveis à renovação. Na cultura, “não são somente os participantes da comunicação que criam textos; os textos também contêm a memória sobre os participantes da comunicação” (MACHADO, 2003, p. 120). Compreender a cultura como sistema semiótico e sua diversidade de códigos culturais é compreender, sobretudo, sua estruturalidade, ou seja, como os textos se constroem na relação com outros textos. É um trabalho de “organizar estruturalmente o mundo que rodeia o homem. A cultura é geradora de estruturalidade: cria à volta do homem uma sociosfera que, da mesma maneira que a biosfera, torna possível a vida, não orgânica, é obvio, mas de relação” (LOTMAN; USPÊNSKI, 1981, p. 39). Essa relação dinâmica dos textos culturais foi o ponto fulcral para Iuri Lotman desenvolver o seu mais importante conceito: a semiosfera.

3.3 A semiosfera

Ao fazer alusão à biosfera, espaço onde existe vida no planeta, Iuri Lotman (1996) assevera que os significados na cultura, por meio dos signos, códigos, linguagens e textos, só podem adquirir sentido numa semiosfera, ambiente de “características distintivas atribuídas

58 Do original: dispuestos en una sola dimensión temporal y está subordinado a la ley de la cronología. 94

a um espaço fechado em si. Dentro desse espaço, são possíveis processos de comunicação e a produção de uma nova informação” (LOTMAN, 1996, p. 11 – tradução nossa).59 Fora da semiosfera não existe semiose, isto é, a produção de sentido. A semiosfera é um espaço de relação onde o homem produz e é produzido por informação. A ideia é baseada no conceito de biosfera cunhado pelo geoquímico soviético Vladimir Vernadsky60. Na semiosfera, o indivíduo tanto atua como a define. Um músico, ao compor uma canção, utiliza elementos de sua própria semiosfera: leituras, conversas, audições de outras canções, consertos, peças etc. e, a partir dessas relações, cria uma nova linguagem. A produção corresponde tanto ao universo individual de sentidos quanto ao universo de sentidos compartilhados na semiosfera. As linguagens constituem-se de signos dotados de um modelo próprio de significação, “cada ato particular de entendimento é uma resposta a um signo por meio de outro signo” (SANTAELLA, 2004, p. 170). O encontro entre diferentes semiosferas gera novas linguagens e torna os esses espaços dialógicos ao desenvolver um olhar mais crítico sobre a cultura (MACHADO, 2007). No interior da semiosfera, ocorre um processo dinâmico entre centro, região de enrijecimento cultural; e periferia, região de maior trânsito e contato entre diferentes sistemas. A interação entre centro e periferia produz renovações e novos sistemas culturais (RAMOS et al., 2007). Nessa perspectiva, uma produção cultural marginal presente à periferia da semiosfera, como a música brasileira de raiz cristã, produz novas linguagens em relação à cultura dominante, a música gospel, mais enrijecida e inserida ao centro. Na semiosfera, o diálogo entre diferentes culturas ocorre na “fronteira”, região de proximidade entre o espaço “extrassemiótico” e “interssemiótico”, onde há um maior trânsito entre diferentes sistemas. A fronteira não limita as trocas dialógicas, ao contrário, age como elo tradutor que facilita a produção de novas linguagens que, quando decodificadas, passam a integrar o interior da semiosfera. Assim, o que parecia se chocar acaba por se transformar em novos signos e textos culturais que reforçam o dinamismo, o dialogismo e o continuum cultural (NUNES, 2011).

59 Do original: rasgos distintivos que se atribuyen a un espacio cerrado en sí mismo. Sólo dentro de tal espacio resultan posibles la realización de los procesos comunicativos y la producción de nueva información. 60 Da mesma forma que “a biosfera designa a esfera da vida no planeta, tal como formula o geoquímico Vladimir Ivanovich Vernadsky (1863-1945), semiosfera designa o espaço cultural habitado pelos signos. Fora dele, no entender de Lotman, nem os processos de comunicação, nem o desenvolvimento de códigos e de linguagens em diferentes domínios seriam possíveis” (MACHADO, 2007, p. 16).

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Para Carmen Lúcia José (2007), o dinamismo desse continuum semiótico, isto é, o trânsito entre as diferentes linguagens e códigos culturais, ocorre por meio de um processo de delimitação e irregularidade. Na medida em que a delimitação coloca fronteiras entre as diferentes linguagens, a irregularidade permite o trânsito entre elas. Ao mesmo tempo em que a delimitação torna comum um conjunto de significados para indivíduos de uma mesma cultura, a irregularidade subverte o caráter fixo nuclear ao produzir novos textos. Enquanto a delimitação harmoniza as linguagens dos textos centrais, a irregularidade “dinamiza a periferia amorfa até esta que se fixe como outra estrutura nuclear ou como outras e diversas estruturas que vão se estendendo e complexificando a semiosfera” (JOSÉ, 2007, p. 247. Portanto, pode-se dizer que a música brasileira de raiz cristã é uma música de fronteira, pois além de estar vinculada ao universo cultural evangélico, também dialoga com a cultura popular brasileira na utilização de ritmos, de letras mais contextuais, conectadas com a vida cotidiana e com discursos mais amplos sobre as utilizações da arte e da cultura. Ela corresponde a uma nova produção cultural e, portanto, caracteriza uma outra semiosfera. Uma linguagem pode pertencer ao “espaço interior e ao espaço exterior de um código, linguagem ou mídia, e, como tal, torna-se o ponto de intersecção pertencente à fronteira entre dois códigos, linguagens ou mídias” (JOSÉ, 2007, p. 249). Os textos culturais encontram tradução na fronteira da semiosfera e a fronteira entre diferentes sistemas culturais produz novos textos e linguagens. Nessa troca dialógica, as linguagens encontram seu sentido mais profundo no contato com outros sentidos, que não fecham nem encerram as possibilidades de sentido de outras culturas. Elas não se fundem e nem se confundem, cada uma mantém sua unidade e integridade, assim, ambas se enriquecem mutuamente (BAKHTIN, 2017). O trabalho mais notório de Iuri Lotman foi investir “na compreensão da dinâmica dos encontros culturais no sentido de explicar como duas culturas se encontram, que tipo de diálogo elas travam entre si, e como elas criam experiências capazes de reconfigurar o campo das forças culturais” (MACHADO, 2007, p. 16). Se o signo significa e, portanto, é uma representação, sua decodificação ocorre por meio de um código que transforma a informação em linguagem e torna a comunicação um ato semiótico. Os processos que modelizam o texto cultural readequam sua própria estrutura. A canção brasileira de raiz cristã é estruturada em expressões que atualizam e transformam seus códigos culturais em novas linguagens sonoras e textuais. Esses “códigos se acomodam 96

em relações diferenciadas, assumindo escritas diferentes, composições diferentes que vão se reconfigurando com os movimentos da cultura” (VELHO, 2009, p. 255). Lotman (1978) ainda afirma que a inovação artística precisa mencionar a sua tradição. Sem alusão à tradição, o que se propõe como novo pode passar despercebido. A obra precisa também tocar no universo de sentidos dos sujeitos, pois é na fruição e na experiência estética que uma obra encontra reconhecimento. A canção, como toda forma de arte, visa ressignificar o mundo de uma nova maneira. Muitas letras são convidativas a repensar a realidade ao inserir novos textos (não apenas escritos) numa estruturalidade de novas linguagens. A linguagem da canção traduz um universo próprio de sentidos na medida que atua para representar outra realidade. A canção é uma tentativa de recriar o mundo. Na semiosfera, reside uma infinidade de componentes significantes interligados que, quando mobilizados, permitem dar sentido às várias linguagens culturais, “a unidade da semiose, a menor função do mecanismo, não é a linguagem isolada, mas a totalidade do espaço semiótico da cultura em questão. Esse é o espaço que chamamos de semiosfera” (LOTMAN, 1990, p. 125 - tradução nossa, grifo no original).61 Eis a ideia de Lotman (1996) em compreender a cultura como um “grande texto”, isto é, as inúmeras linguagens culturais que produzem sentidos e vão se reagrupando como numa colcha de retalhos. Os textos culturais são como um bricoleur. A produção de novos textos ocorre na fronteira da semiosfera porque ainda não foram enrijecidos como os textos do centro62. Na introdução de seu livro O local da cultura, o filósofo indiano Homi Bhabha (1998, p.19) faz uma interessante citação de Martín Heidegger na qual diz que “uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente”. A fronteira pressupõe dubiedade, ela tanto une como dispersa, relaciona duas semiosferas e é parte de ambas. A fronteira é capaz de traduzir um texto alheio numa linguagem própria e transformar o externo em interno; age como filtro tradutor na medida em que mantém suas próprias linguagens (LOTMAN, 1990). O dialogismo entre centro e periferia cria uma infinidade de novas linguagens que,

61 Do original: the unit of semiosis, the smallest functioning mechanism, is not separate language but the whole semiotic space of the culture in question. This is the space we term the semiosphere. 62 Aqui é interessante notar como a concepção de texto de fronteira é semelhante à ideia de estrutura emergente de Raymond Willians. Algumas produções culturais são emergentes porque ainda não foram cristalizadas ou incorporadas por convenções. Da mesma forma, os textos de fronteira são mais criativos e inventivos porque ainda não foram enrijecidos como os textos do centro da semiosfera.

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ao passar de um contexto a outro, gera uma nova situação comunicativa que atualiza o aspecto informacional. A semiosfera se “divide em estruturas nucleares e periféricas que se movimentam no espaço semiótico gerando áreas de tensão” (RAMOS, et al, 2007, p. 35), essas áreas são irregulares, dinâmicas e complexas. As linguagens centrais tendem à periferia assim como as linguagens periféricas tendem ao centro. Assim, é possível pensar esses textos centrais “como configurações de dominância e, como tal, disponíveis para toda e qualquer articulação textual; e pensar a periferia semioticamente amorfa como área de potencialidade, de possibilidade dos códigos, das linguagens, das mídias” (JOSÉ, 2007, p. 248). Nesse sentido, pode-se inferir que o enrijecimento cultural da música gospel no centro da semiosfera ocorreu pela consolidação do movimento no Brasil a partir dos anos 1990, e que, segundo Magali Cunha (2007), adquire status de cultura – a cultura gospel. O constante trânsito de linguagens fez os textos enrijecidos se deslocarem para a periferia da semiosfera. A mudança talvez tenha ocorrido pelo questionamento de artistas, acadêmicos e jornalistas, sobre o fato de a música gospel ser a única linguagem cancionística capaz de abarcar a diversidade cultural da música evangélica brasileira. A característica de “não homogeneidade estrutural do espaço semiótico forma reservas de processos dinâmicos e é um dos mecanismos de produção de novas informações dentro da esfera” (LOTMAN, 1996, p. 16 – tradução nossa).63 A forma como a canção evangélica utiliza seus textos culturais evidencia uma mescla nas linguagens sonoras, ao mesmo tempo em diz coisas “do céu”, ela também diz coisas “da terra”. A linguagem cancional expande a compreensão da realidade em novas perspectivas, dialoga com outros textos culturais não religiosos na medida em que preserva sua integridade e espiritualidade. Isso a torna um elemento gerador de novas linguagens, um texto híbrido, que carrega outros sentidos além do seu64. A canção é pensada aqui como obra de arte, e se torna, portanto, uma necessidade. Essa “a necessidade da arte assemelha-se à necessidade do saber e que a própria arte é uma das formas de conhecimento da vida, uma das formas da luta da humanidade por uma verdade que lhe é necessária” (LOTMAN, 1978, p. 27).

63 Do original: La no homogeneidad estructural del espacio semiótico forma reservas de procesos dinámicos y es uno de los mecanismos de producción de nueva información dentro de la esfera. 64 Quando dizemos algo novo, o processo de semiose reelabora todos os sentdos dos significados já dados, “portanto, cada ato de significação transforma o estado efetivo de todas as significações existentes” (HALL, 2018, p. 402). A música brasileira de raiz cristã, portanto, reelabora os sentidos anteriores da canção evangélica. 98

Umberto Eco (1990), na introdução do livro Universe of the mind de Lotman, afirma que o intelectual russo, em seu trabalho científico, soube compreender que um código cultural possui muito mais complexidade do que qualquer código linguístico. O trabalho analítico dos códigos culturais implica uma intensa relação com a sua historicidade. Lotman compreendeu, já nos anos 1960, “que a multiplicidade de códigos de uma dada cultura manifesta-se por contrastes, hibridismos ou crioulizações (ECO, 1990, p. XII - tradução nossa).65 As linguagens dos diferentes sistemas culturais estão em constante mudança. A semiosfera é continuamente atualizada pelos diversos trânsitos culturais que resultam do dialogismo entre os textos fronteiriços, seja por meio da musicalidade de alguns artistas, seus discursos etc. “O conjunto de linguagens em um campo cultural ativo está constantemente mudando e o valor axiológico e a posição hierárquica dos seus elementos sujeito a grandes trocas” (LOTMAN, 1990, p. 124 - tradução nossa)66. Essas trocas ocorrem por meio de complexos processos culturais, em fluxos contínuos de linguagens e de produção cultural. “Mesmo quando diferentes culturas parecem usar os mesmos termos, elas se situam em diferentes sistemas” (ECO, 1990, p. XI, tradução nossa).67 Paulo Nogueira, pesquisador em religiões, afirma que o arcabouço teórico de Lotman oferece uma perspectiva de análise da cultura capaz de compreender os diferentes trânsitos culturais das religiosidades contemporâneas, graças às “formas cada vez renovadas da religiosidade popular na periferia das grandes cidades, dos movimentos sincréticos dos novos cultos, esoterismos e espiritualidades” (2015, p. 107). Nesse contexto, até mesmo instituições religiosas que por vezes se mostram irredutíveis conseguem dialogar melhor com novas perspectivas de mundo. A semiótica da cultura, atrelada às pesquisas em comunicação e religião, “permite analisar a textualidade da religião, em seus aspectos sincréticos – gestuais, orais, literários, imagéticos etc. – e entender os processos incessantes de geração de novos textos e de movimentação deles na semiosfera, em seus diferentes níveis” (NOGUEIRA, 2015, p. 105).

3.4 O gênero musical como mediação da produção e do consumo cultural

65 Do original: that the multiplicity of codes in a given culture rise to contrasts and hybrids, or creolizations. 66 Do original: The set of languages in an active cultural field is constantly changing and the axiological value and hierarchical position of the elements in it are subject to even greater changes. 67 Do original: Even when different cultures seem to be using the same terms, they fit into a different systems. 99

Os teóricos franceses Dominique Maingueneau e Patrick Charaudeau (2014, p. 249) conceituam o gênero como “um meio para o indivíduo localizar-se no conjunto das produções textuais (...) em critérios ao mesmo tempo de composição, de forma e de conteúdo que os distinguem: poesia, teatro, romance, ensaio”. Os gêneros podem ser pensados nas diversas maneiras de expressão cultural, sejam eles sonoros, televisivos etc. Para ter sentido, o gênero precisa ser incorporado ao universo de compreensão dos sujeitos e em diferentes modos de decodificação dos formatos dos produtos da cultura das mídias. “O gênero não é somente qualidade da narrativa, e sim, o mecanismo a partir do qual se obtém o reconhecimento – enquanto chave de leitura, de decifração do sentido” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 211). “O gênero não é algo que passa ao texto, mas algo que passa pelo texto, (...) é uma estratégia de comunicação, ligada profundamente aos vários universos culturais, (...) não é só uma estratégia de produção, de escritura, é tanto ou mais uma estratégia de leitura” (MARTÍN-BARBERO, 1995b, p. 64, grifo no original). Além do gênero ser uma estratégia de leitura, ele também é constituído em sua forma de uso, ele pressupõe “a construção de uma pragmática que pode dar conta de como opera seu reconhecimento numa comunidade cultural” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 314, grifo no original). O gênero é uma produção cultural que evoca uma realidade social, isso “implica formas específicas de percepção e usos sociais do conteúdo. Assim, o gênero estabelece um modo de comunicação ou, mais especificamente, uma situação comunicativa” (JENSEN, 1986, p. 50 – tradução nossa)68. Compreendê-lo é compreender sua formação, como se cria num processo sociocultural mais amplo, “toda produção de sentido é necessariamente social: não se pode descrever nem explicar satisfatoriamente um processo significante, sem explicar suas condições sociais produtivas” (VERÓN, 1993, p. 125) A articulação entre música, comportamento, circulação em espaços sociais, cenas musicais, circuitos culturais, produtores, divulgação e crítica em última instância envolve a questão do gênero musical. Longe de ser apenas um parâmetro para designar estilos musicais em um conjunto relativamente estável de sonoridades, o gênero musical é importante para compreender as complexas relações entre artistas, produtores e as comunidades de consumo. O gênero enquanto unidade de sentido sugere maneiras próprias de uso. Embora não seja possível fugir das classificações, tratar produções sonoras distintas de forma semelhante

68 Do original: Implies specific forms of perception and social uses of the content. Thus, gender establishes a mode of communication or, more specifically, a communicative situation. 100

é subestimar suas potencialidades inventivas. Os gêneros musicais são, em Franco Fabbri, objetos de uma discussão teórica mais apurada. O musicólogo italiano propõe estudar os gêneros por meio de regras e formas socialmente compartilhadas. Franco Fabbri (1982, p. 53 – tradução nossa)69 afirma que “gênero musical é um conjunto de eventos musicais (reais ou possíveis) cujo curso é regido por um conjunto definido de regras socialmente aceitas”. As formas tácitas de leitura comunicam aspectos não apenas sonoros, mas situacionais, que dizem respeito não só à música. O gênero é também uma categoria sociológica, ideológica. O compartilhamento de informações entre artistas, produtores, fãs e críticos influenciam diretamente a caracterização do gênero musical. Franco Fabbri (1982, p. 54-59) elenca cinco regras para uma análise sociocultural dos gêneros musicais: 1) Convenções de composição e instrumentação: formas que associam uma sonoridade a um respectivo gênero e que o distinguem. O samba é diferente do rock, que é diferente do funk, por exemplo. Abrange a habilidade dos músicos, instrumentos utilizados, tipos de gravação, ao vivo, estúdio, acústico como os sons se organizam dentro das regras técnicas e formais. Embora uma determinada sonoridade o caracterize, é preciso considerar as variantes dentro do processo. A bossa nova teve influência do jazz, assim como o blues e o soul tiveram influência do gospel americano e da música espiritual negra do início do século XX. 2) Semióticas, ou regras de comunicação: como a canção é trabalhada em seus sentidos referenciais, emocionais e poéticos, em convenções, digamos, de letras e instrumentação. A música religiosa costuma trazer em suas letras experiências pessoais e de contato com um Deus único. Em seu artigo, Fabbri (1982) faz menção às funções comunicativas do linguista russo Roman Jakobson em seus termos referenciais: emocionais, imperativos, fáticos, metalinguísticos e poéticos que, voltados à musicologia, mostram como a canção se comunica nas performances dos artistas e na comunidade ouvinte que a identifica. 3) Comportamentais: mostram-se de maneira mais evidente nas entrevistas, na relação com os jornalistas, videoclipes, fotografias, em suma, exprimem uma personalidade artística. A regra também se aplica aos fãs que precisam compartilhar de um vocabulário comum, que torna inteligíveis as linguagens do gênero em questão, seja pela familiaridade com as

69 Do original: Musical genre is a set of musical events (real or possible) whose course is governed by a defined set of socially accepted rules. 101

performances dos artistas, seja por outros aspectos culturais que os fazem pertencentes a uma comunidade de consumo musical. 4) Sociais e ideológicas: correspondem à subjetividade do artista, como compreende a realidade sociocultural. A figura de um músico de samba, rock ou de funk traz referências sociais e ideológicas daquele universo, em questões, de gênero, raça e classe social. O gênero musical é incorporado e ganha corpo na comunidade que o compartilha em formas específicas de uso. O rap é um gênero musical associado a grupos marginalizados e às subculturas. No entanto, Fabbri (1982) não vê a ideologia como uma camisa de força. O rap, além de carregar elementos discursivos da situação negra oprimida, abarca também uma diversidade de artistas brancos que não necessariamente sofrem da mesma situação, o que faz as regras sociais e ideológicas extrapolarem a questão meramente sonora. 5) Econômicas e jurídicas: questões relacionadas à produção musical, eventos, relação entre músicos, gravadoras, divulgação etc., são regras voltadas às questões do mercado. Com as mudanças geradas pela divulgação e distribuição de música por meio de plataformas digitais, o modelo de negócio do mercado fonográfico foi posto em xeque. Essas regras estão cada vez mais nas mãos da audiência e dos artistas que subvertem o monopólio de mercado por meio de novos processos de produção e divulgação.

Em diálogo semelhante, Jeder Silveira Janotti Jr (2003, p. 36) incorpora as cinco regras propostos por Franco Fabbri em três novas articulações: 1) Econômicas: práticas de consumo e endereçamentos dos produtos musicais; 2) Semióticas: produção de sentidos, intertextualidades, dialogismos e hibridismos; 3) Técnicas e formais: habilidades específicas dos gêneros, uso de instrumentos musicais, produção de sonoridades, harmonia, melodia, ritmo, canto e o uso da palavra.

O gênero musical mobiliza uma discussão mais aprofundada do universo cultural. Assumir ou negar filiação a um gênero é mobilizar estratégias intertextuais correlacionadas à produção artística. O gospel, compreendido como gênero, abrange aspectos ligados não apenas às sonoridades, mas suscita discussões presentes nos elementos mais sutis do texto musical que medeiam a produção de sentido ao inscrever elementos valorativos, sonoros e textuais, em assinaturas próprias e na articulação com elementos extramusicais: textuais, sociológicos, ideológicos e semióticos. Os gêneros são vistos como mediadores “de espaços, 102

lugares, temporalidades, cenas, artefatos midiáticos, apresentações ao vivo e escutas e não como simples intermediações diante da música” (JANNOTI JR.; SÁ, 2019, p. 11). Georgina Born (2013) afirma que os gêneros acentuam pontos de convergência entre estéticas, comunidades musicais e formações identitárias vistas de maneira organizada quando, na verdade, são inconstantes e imprevisíveis. Em vez de pensar os vínculos entre produção musical e consumo cultural de forma isolada, a musicóloga britânica propõe analisar o gênero como dispositivo que aciona uma sucessão de mediações mútuas entre duas disposições distintas: formações musicais e formações identitárias. É um caminho possível para compreender como se criam as amplas redes identitárias e como são incorporadas na música pelos gêneros que se entrelaçam nas formações e nas decodificações dos sujeitos. Lawrence Grossberg (2010) afirma que as pessoas dão sentido à existência com base numa multiplicidade de fatores ligados, por exemplo, ao pertencimento social, regional, às trajetórias de vida e em identificações que operam regimes de formação de múltiplos afetos: emoções, desejos, memórias, mapas afetivos, pertença, em suma, sistemas de representação inscritos em significações particulares que dão sentido à compreensão do mundo. Nesse sentido, o gênero musical é visto numa dupla perspectiva: produção e consumo. Produção não apenas de quem o produz, mas também quem o consome. Sobre o consumo, Martín-Barbero (2003) o compreende não como reprodução, e sim, como produção. Não é sobre a aquisição e incorporação de produtos, o consumo é um “lugar” onde se inscrevem os usos em suas formas social e cultural, lugar de onde decorrem as ações cotidianas das várias situações que demandam as competências culturais dos sujeitos. Não é sobre o consumo reificado, é sobre os processos culturais, sociais e simbólicos que envolvem o consumo. Pelo consumo da música, por exemplo, é possível compreender como os sujeitos reelaboram e ressignificam a própria vida na poética das canções e nas experiências estéticas produzidas. O consumo da canção na mídia articula identidades e mediações culturais que fazem, do sujeito, um sujeito pertencente a uma determinada comunidade, seja por meio das linguagens das canção, dos discursos dos artistas, das performances ou do uso do corpo etc.

3.4.1 Gênero musical: o sentido que dá o tom

Segundo Luiz Tatit (2011), é praxe uma pessoa dizer ter ouvido um samba de Nelson Cavaquinho, um rock do Skank ou um baião de Dominguinhos. As categorias que envolvem 103

os gêneros apontam uma gramaticalidade, isso quer dizer que o sujeito soube distinguir entre as várias camadas sonoras elementos de um modelo próprio de significados. “Sambas, boleros, rocks, marchas são ordenações rítmicas gerais que servem de ponto de partida para uma investigação mais detalhada da composição popular” (TATIT, 2011, p. 101). E “o resultado deste reconhecimento é que o espectador/leitor/crítico orientará sua reação ao produto de acordo com as expectativas geradas pelo fato de reconhecer em primeiro lugar o seu gênero” (FISKE et al, 1997, p. 165 – tradução nossa).70 Segundo Itânia Gomes (2003), o gênero possibilita refletir sobre a escuta musical, a produção de sentido evocada, quais identidades são articuladas, como ele é distribuído nas plataformas digitais etc. Os gêneros orientam as escolhas dos sujeitos em categorias afetivas de prazer e de gosto, servem como um mapa de voo, um modo de utilização. Reconhecer as idiossincrasias presentes em cada gênero musical “passa pelo reconhecimento dos elementos musicais específicos de cada uma dessas práticas e também com os usos que cada uma dessas músicas demanda” (TROTTA, 2005, p. 5). Os gêneros se encontram nessa lógica: eles “constituem uma mediação fundamental entre as lógicas do sistema produtivo e as do sistema de consumo, entre as do formato e as dos modos de ler, dos usos” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 311). A produção de sentido é relacional, “tecida de enlaces entre o discurso e seu ‘outro’, entre um texto e o que não é esse texto, entre a manipulação de um conjunto significante destinado a descobrir as pegadas das operações e as condições de produção dessas operações” (VERÓN, 1993, p. 139). Um gênero pode se criar pelas dissidências de outros gêneros, em novas linguagens, sentidos e sonoridades. A ruptura marca uma continuidade legitimada pela comunidade que o incorpora em processos valorativos de fruição e gosto. Tzvetan Todorov afirma que “o fato de a obra desobedecer ao gênero, não o torna inexistente” (2018, p. 47). Assim, ele não fica circunscrito ao contexto de origem, mas abrange o universo cultural mais amplo graças à sua maleabilidade e dinamicidade. A caracterização dos gêneros musicais decorre de processos extramusicais. Quando um artista ou banda é caracterizado como sendo desse ou daquele gênero, entra em vigor um processo valorativo que aponta para discussões sobre o mercado fonográfico, afirmação ou negação de uma cena musical, circuito cultural etc. Trata-se de um processo eminentemente

70 Do original: El resultado de este reconocimiento es que el espectador / lector / crítico orientará su reacción al producto de acuerdo con las expectativas que genera el hecho de que primero reconozca su género. 104

comparativo, isto é, deriva da relação de outros formatos sonoros, muitas vezes tidos como únicos e invariantes. Esses processos não estão livres de disputas e “longe de ser um processo livre de ambiguidades, a rotulação que dá origem aos gêneros supõe um campo de batalha demarcado pelos atores em disputa pela autoridade” (SÁ, 2011, p.153). O aspecto dinâmico dos gêneros possibilita outras produções e reproduções sonoras, criadas a partir das relações entre produção, circulação e consumo da canção na mídia (JANOTTI JR. 2006). Martín-Barbero (2014) afirma que uma das relações mais profícuas entre cultura e comunicação é a relação entre música e sensibilidades, “a música é ao mesmo tempo a mais expressiva experiência de apropriação, criatividade cultural e empoderamento social” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 23). A presença de certos “traços estilísticos de gênero em um produto midiático define um processo de produção de sentido e, consequentemente, de comunicação que pressupõe regras formais e ritualização partilhados por produtores e audiência” (JANOTTI JR., 2005, p. 5). Caberia mobilizar uma discussão do gênero musical por meio das características de reconhecimento da canção gospel. Seria a música brasileira de raiz cristã um novo gênero na música evangélica ou seria apenas um subgênero da música gospel? Eis a questão, o problema em definir um gênero “ocorre porque cada produto musical, ao mesmo tempo em que afirma características do gênero ao qual se inscreve, também expande as fronteiras desse gênero, por mobilizar elementos numa expressão singular” (LIMA, 2008, p. 3). Assim como assevera Martín-Barbero (2003, p. 314), “os gêneros não são abordáveis em termos de semântica ou sintaxe: exigem a construção de uma pragmática, que pode dar conta de como opera seu reconhecimento numa comunidade cultural.” Portanto, “é preciso questionar academicamente a noção do gospel como gênero musical e não apenas aceitar a classificação tal qual está dada” (PICHIGUELLI, 2016, p. 7). Não é possível afirmar se a música brasileira de raiz cristã é um gênero musical, mas é possível inferir alguns pontos por meio de pistas sonoras reveladas na própria canção. Ela se apresenta como alternativa ao gênero musical gospel. Nessa linguagem sonora, existe uma gama de premissas não apenas musicais, mas sociais, políticas, ideológicas e semióticas compartilhadas pelos artistas, produtores, fãs, cadeia de eventos, divulgação etc. (FABBRI, 1982). É no reconhecimento do gênero musical incorporado numa comunidade cultural que “as redes de pertencimento e identidade são reforçadas através do compartilhamento dessa ‘cultura auditiva’ que expressa ideias, símbolos e valores que circundam a experiência 105

musical” (TROTTA, 2009, p. 109). Um exemplo que pode ilustrar como ocorrem essas relações entre artistas e produtores ocorreu em 2012, ocasião em que a cantora Lorena Chaves e a banda de rock Palavrantiga se apresentaram juntos em um pocket show no restaurante Topo do Mundo na Serra da Moeda, Minas Gerais. Marcelo Toller, diretor artístico da Som Livre, na época, disse: Quando a gente vê o Palavrantiga e a Lorena Chaves cantando, esse mesmo tipo de som no universo católico a gente já conhece bem, o Rosa de Sarom. Quando a gente vê isso, vê que existe um movimento, pode ser, eu não tenho certeza se estamos fazendo parte de um movimento, eu não sei, tomara que sim, se for, vai ser muito legal, entendeu? Porque a gente vai tentar mostrar pro Brasil que existe outro tipo de música que não só a congregacional (TOLLER, 2012, s/p).

A música brasileira de raiz cristã reforça uma concepção de canção mais ligada ao universo do humanístico, do simbólico, ao subverter o caráter massivo do gospel. Isso fica evidenciado nos discursos dos artistas, nas letras, nas linguagens da canção e como ela é recebida e incorporada pelas comunidades de consumo. A música evangélica brasileira não é unívoca, é multimodal, multirreferencial, vai além do gênero gospel. Essas “relações entre julgamentos estéticos e a formação de grupos sociais são obviamente cruciais para a prática da cultura popular, para gêneros” (FRITH, 1996, p. 18). A música brasileira de raiz cristã preza por uma distinção, visa trazer uma linguagem mais criativa da canção e de referências à tradição da canção brasileira. Grande parte dessa produção é distribuída em selos independentes como forma de desvincular-se das grandes gravadoras e fomentar uma produção sonora mais artística em detrimento de uma produção mais comercial, visa questionar algumas balizas postas pelo mercado fonográfico em estratégias discursivas de subversão. As táticas mobilizam juízos estéticos de autenticidade e originalidade pelo tensionamento de padrões dos gêneros massivos. Os “diálogos, apropriações e disputas sonoras também envolvem capacidade de reflexão sobre criatividade, mercado, valor cultural, valor estético e identidade” (JANOTTI JR, 2010, p. 12). As estratégias discursivas de subversão talvez tenham tido eco em 2012, quando a banda Palavrantiga lançou seu segundo CD, Sobre o mesmo chão, pela Som Livre. Marcos Almeida, líder do grupo, propôs novas balizas para ressignificar o trabalho artístico da banda e assim tentar forjar novas estruturas de compreensão para a música evangélica brasileira.

Depois de algumas longas conversas com diretores artísticos e departamento de comunicação da companhia, a Som Livre decidiu aderir à 106

minha proposta de que era necessário usar parâmetros musicais para classificar música e trabalhar mercado utilizando a cena cultural do artista. Ou seja, enquanto gênero musical, a banda Palavrantiga era uma banda brasileira de rock. Quando, no Itunes, a pessoa responsável por categorizar os discos que lá chegavam, inseriu “rock nacional” e “música brasileira” no nosso registro, superamos quase vinte anos de um paradigma contraditório, autopunitivo, segregacionista, ultrapassado e vencedor. Distinguir música de mercado é uma tarefa para a nossa geração, para que a esfera econômica não ultrapasse seus domínios. Para que som, silêncio e sentido não sejam organizados e classificados a partir da lógica do vendedor, mas a partir das estruturas da própria arte; portanto, categorias musicais para música, categorias mercadológicas para mercado. E caramba, isso é fantástico: para que o mundo descobrisse a espiritualidade dentro da música não litúrgica! Ela está lá, como sempre esteve na poesia e em toda arte; ou seja, não é monopólio do mercado religioso. Mas, essa distinção, sobretudo, nos ajuda a viver uma vida mais plena (ALMEIDA, 2014, s/p).

Existe um processo comunicacional nas canções. A subjetividade dos artistas, os posicionamentos e os discursos sobre o próprio trabalho ajudam a compreender as disputas e as classificações que envolvem os gêneros. A música brasileira de raiz cristã tentar criar novas linguagens dentro da música conhecida como gospel, uma linguagem mais inventiva, criativa e que fomenta a criação de novas comunidades de conhecimento e de escuta musical, ela expande o consumo massivo e tenta criar novos processos culturais e comunicacionais, seja na veiculação de reportagens de jornal71, podcasts72, textos em portais especializados73, utilização de espaços culturais não religiosos74 e/ou nas reflexões sobre o processo de escuta musical (NOGUEIRA, 2019). “Ouvir música é um ato simbólico de identificação com as representações de estilos de vida, de visões de mundo e de valores sociais presentes nas canções” (TROTTA, 2005, p. 181). A sonoridade não é o único aspecto de reconhecimento da canção, sua identificação reside mais especificamente nas linguagens criativas, nos aspectos não religiosos evocados nas letras e na mirada em um tipo de público capaz de reconhecer essas formas de produção distintas da canção evangélica. É um tipo de música que preza por um lugar, uma cidadania artística na medida em que se opõe à hegemonia do mercado da música gospel. É necessário

71 Para além do gospel. Folha de Pernambuco. Disponível em: https://www.folhape.com.br/cultura/para- alem-do-gospel-artistas-da-musica-crista-inovam-na-maneira-de-lou/132056/ Acesso em 09 nov. 2020. 72 Canções tecidas na Esperança, com Marcos Almeida. Toca Brasil. Podcast do Itaú Cultural. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/secoes/podcasts/marcos-almeida-toca-brasil Acesso em: 09 nov. 2020. 73 Uma breve análise de “Lá de Casa” do Marcos Almeida. Apenas Música. Disponível em: https://www.apenasmusica.com.br/review/4593 Acesso em: 09 nov. 2020. Marcos Almeida na Casa Natura Musical. Folha de S. Paulo. Disponível em: https://guia.folha.uol.com.br/shows/mpb/marcos-almeida-casa- natura-musical-pinheiros-1637771462.shtml Acesso em 09 nov. 2020.

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esse “reconhecimento dos gêneros que habitam um mesmo universo sonoro compartilhado pelo corpo social envolvido (TROTTA, 2008, p. 2) certo de que também é preciso “conhecer (ou saber sobre) o original para descrever uma canção como ‘padronizada’, entender o que estamos ouvindo (ou não) em outras canções similares” (FRITH, 1996, p. 70). As fronteiras estabelecidas entre os gêneros marcam uma posição sociocultural que abrange experiências musicais e práticas comunicacionais de forma mais ampla. A produção musical de artistas como Marcos Almeida, Jorge Camargo, Estêvão Queiroga e Gerson Borges marca uma renovação na música evangélica brasileira, seja no quesito das letras mais contextualizadas com a vida cotidiana, arranjos e sonoridades que intertextualizam elementos da cultura brasileira e apontam para um lugar, uma posição a ocupar na cultura. Por mais difícil que seja caracterizar a música brasileira de raiz cristã como um gênero, não se pode perder de vista o lugar que ela ocupa no cenário musical evangélico brasileiro, marcado, desde sua origem, por tensões e disputas pelo reconhecimento da canção como um elemento cultural de valor. Laan Mendes de Barros (1984) faz uma distinção na canção evangélica entre música para ouvir e música para cantar. A primeira, mais bem elaborada em arranjos e sonoridades, muitas vezes não serve para o culto. A segunda, voltada ao canto comunitário, possui estrofes e refrões mais facilmente assimiláveis. Os usos dessa produção cancional, “tanto nas músicas para ouvir como nas músicas para cantar, parece ser algo estratégico ao mesmo tempo que uma libertação conquistada pelo compositor religioso que passa a trabalhar com uma linguagem muito mais própria de sua cultura, do seu povo” (BARROS, 1984, p. 49). Essas linguagens fomentam a produção de uma música brasileira de raiz cristã, mais interessada em ser um veículo comunicacional abrangente, do chão da vida. Esse parece ser o desafio dos artistas cristãos engajados, relacionar a liturgia da capela com a idiossincrasia da rua. Marcos Almeida refere-se à “uma música de rua, de rádio, de boteco, de palco, de teatro, uma música de cinema e novela, música de povo, feito por ele, por isso brasileira. Uma arte tecida na esperança” (ALMEIDA, 2012, s/p). 75 No entanto, cabe ressaltar que esses processos culturais não são processos simples.

75 Essa maneira de relacionar fé, pensamento e arte fez o autor criar, no dia 13 de abril de 2020, uma playlist colaborativa no Spotify, intitulada: Música Brasileira Tecida na Esperança, com 111 canções de diversos artistas da música brasileira: Novos Baianos; Jorge Ben Jor; Alceu Valença; Marisa Monte; Nando Reis; Luiz Gonzaga; Gonzaguinha; Cartola; Nelson Cavaquinho; Belchior; Gal Costa; Caetano Veloso; Gilberto Gil; Milton Nascimento; Lenine; Elis Regina; Guilherme Arantes; Jards Macalé, entre muitos outros. Disponível em: https://open.spotify.com/playlist/1jVMgYvP3wzv7ggskjROzI Acesso em: 5 nov.2020. 108

Jean Caune (2014, p. 23) afirma que “um dado da cultura só pode considerado quando ele remete a outra coisa”. Semelhantemente, Iuri Lotman (1978, p. 101) diz que “todo conjunto de códigos artísticos historicamente elaborados que tornam um texto significativo refere-se à esfera das ligações extratextuais”. Pensar os processos culturais pelo viés comunicacional é pensa-los numa relação dinâmica onde as estruturas que parecem fixas estão em constante mudança. Os fenômenos culturais não ocorrem de forma isolada, são processos que derivam de outros e que trazem em si características de processos precedentes. Portanto, “é preciso considerar a comunicação como um fenômeno fundamental que permite a existência do conhecimento e a transmissão de uma experiência” (CAUNE, 2014, p. 38).

Capítulo 4 | ANÁLISE DA OBRA DOS ARTISTA

4.1 Análise cancional 1: Marcos Almeida 109

Marcos Oliveira de Almeida, mineiro de Belo Horizonte, nasceu em 11 de fevereiro de 1983. É cantor, compositor, multi-instrumentista e arranjador. Ficou conhecido por ser o vocalista da banda de rock brasileiro Palavrantiga. Compôs canções para artistas brasileiros, como: Dança, de Lorena Chaves; Calor do amor, com Mahmundi, vencedora do Prêmio Multishow de Música Brasileira, na categoria Novo Hit, em 2013; e Outono, título do álbum da cantora Arianne. Participou com Paulo Nazareth nas canções: Não é mais segredo e Pulmões. Após sair do Palavrantiga, lançou seu primeiro single, Biquíni de Natal, no final de 2014. Em fevereiro de 2016, gravou seu disco solo ao vivo, Eu Sarau - Parte 1 e 2 em São José dos Campos. Em 2019, lançou o álbum Lá de Casa. Segue a letra da canção tema do álbum:

Lá de casa (Marcos Almeida)

É lá de casa, essa força, essa raça Pra tomar porrada e me levantar! Quem vê a página, esse vídeo, essa cara Pensa que é marra pra me anunciar! Mas é lá de casa, toda doce palavra A oração mais sagrada, o amor pra me libertar

Por isso eu saio pra te amar, o amor não preciso procurar Toda vez que eu vou pro mundo eu ouço Deus falar

Que é lá em casa, nessa rua, ou na praia Doutro jeito, noutra quadra, onde dois plantarem a paz Eis uma casa, que segura e prepara Não tem vento que desaba, se aquela pedra lhe sustentar! É lá de casa essa pele marcada Todo verso que te acalma, o som que vai te embalar

Por isso eu saio pra te amar, não precisa procurar Toda vez que eu vejo o mundo eu ouço Deus falar

É de lá de casa que eu ganho a estrada E corro o mundo inteiro, tento, tombo, ergo canto, luto Vou e volto pra lá

A letra traz uma abordagem do cotidiano, de luta e de vivência no mundo da vida. Evidencia uma espiritualidade mundana, não circunscrita às quatro paredes do templo e que 110

pode ser experimentada em outros lugares e de formas diferentes. A frase “toda vez que eu vou pro mundo eu ouço Deus falar” indica uma espiritualidade não circunscrita ao âmbito religioso, pode ser encontrada na natureza ou em qualquer outro elemento não religioso. A perspectiva do artista dialoga muito com a tradição ecumênica dos anos 1980, sobretudo na Louvor dos grupos Viva Vida & Gente de Casa, gravada conjuntamente no LP Revivendo de 1983. A letra da canção traz o seguinte trecho: “louvar ao Senhor, eu louvarei, e a visão do mundo não perderei, louvar ao Senhor, eu louvarei, e os pés da terra não tirarei”. Essa perspectiva une, ao mesmo tempo, uma visão de mundo que agrega o imanente e o transcendente, céu e terra em constante diálogo na letra da canção. Como afirma Irene Machado (2015, p. 26), “o relevo primordial dessa experiência resulta não apenas do cruzamento entre o sagrado e o mundano, mas particularmente da fronteira criada entre o mundo espiritual e o material”. Em relação à sonoridade, trata-se de uma canção sem introdução, inicia-se com todos os instrumentos tocados ao mesmo tempo. Bateria, guitarra, baixo e uma base de teclado acompanham toda a canção. O ritmo sincopado de uma guitarra mais “abrasileirada” é uma característica marcante do cantor, que não se utiliza de palheta e faz a batida com a própria mão. Por se tratar de uma canção mais ritmada e direta, os arranjos são simples, mas algumas intenções do artista mostram-se de maneira mais evidente entre o minuto 1’58 e 2’03, nas frases conjuntas dos instrumentos musicais harmônicos da canção. Sobre as anafonias, ao final da canção, há um arranjo de sintetizador que se assemelha ao teclado Mellotron, de origem inglesa, o mesmo utilizado na canção Strawberry fields forever, dos Beatles. Em relação aos musemas, antes da canção começar, há um interlúdio chamado Nós, de 39 segundos, em que há um coro de vozes cantando as últimas frases da canção Lá de casa. O coro canta em ritmo baião e assemelha-se à uma roda de samba. A partir do minuto 1’02 (segunda estrofe da canção), aparece um triângulo, instrumento musical de percussão muito utilizado no baião, xote, xaxado e no forró brasileiro, sendo acompanhado costumeiramente de acordeom, triângulo e zabumba. Já a balada rock traz um aspecto de hibridismo à canção. Para o artista, “a canção não é um instrumento de sedução, é um instrumento de testemunho, de sair para amar. Eu estava com isso na cabeça, comecei a 111

pensar sobre a casa como um lugar de proteção, um lugar onde a gente guarda os devaneios, as intimidades”.76

Pensamento bom (Marcos Almeida)

Vai soprar o vento O amor já passou da porta E despetalou as flores dessa solidão Vai tocar o teu coração Te pintar o rosto Vai reflorescer O teu pensamento bom

Vai ser bom Chega pra ver Vai ser bom Vai ser bom Tenta entender Vai ser bom

Se há o que esquecer Comece a arrancar Vai, corre pra ver E agradecer tua nova estação

A canção Pensamento bom não é uma canção religiosa, é uma canção sobre depressão. Foi escrita para uma amiga do artista, que enfrentava a doença. . A letra busca trazer um alento, um alívio à alma. No trecho “vai soprar o vento, o amor já passou da porta”, talvez seja uma alusão ao sopro divino que se transforma em amor e que já passou da porta do céu até despetalar as flores da solidão. O vento também iria “tocar o coração” e “pintar o rosto”, uma outra maneira de dizer sobre trazer de volta a alegria. O “reflorescer o pensamento bom” seria uma maneira de acalmar os pensamentos, afetos e as dores da alma. A canção traz uma poética cheia de metáforas e alusões à uma vida melhor. Em relação à sonoridade, a música se inicia com violão de aço, contrabaixo e bateria tocada no aro marcada por um prato de condução que preenche a canção. No refrão, há uma mudança de andamento e a canção se transforma numa bossa-nova. Da segunda estrofe para o final, segue um andamento de balada rock levemente acentuada. Devido à cadência linear,

76 Todas as citações de Marcos Almeida, neste capítulo, foram retiradas da entrevista concedida em 09 de novembro de 2020, em São Paulo. Disponível na íntegra no anexo A. 112

os arranjos ocorrem de forma simples, como pequenos adereços. Como já dito no quesito sonoridade, as anafonias remetem à bossa nova, um importante gênero musical brasileiro. Isso mostra certa preocupação e acuidade estética em utilizar elementos da música brasileira na linguagem da canção. No refrão, o artista assume um jeito de cantar em voz dupla oitavada, uma numa oitava acima e outra numa oitava abaixo, aspecto típico da bossa nova, que causa uma sensação de calmaria, paz e leveza. Marcos Almeida afirma que “Pensamento Bom foi escrita para uma pessoa que estava passando por um período de depressão. Então, fiquei imaginando esse “vai soprar o vento” e tal. Foi uma canção dedicada a essa pessoa”.

Jeito do céu (Marcos Almeida)

Hoje O reino chegou Já não existe mais medo Já clareou Desatou o nó O segredo

Limpo do pé Todo pó da cidade estúpida Toda imagem que diz já ser tarde Pra gente sorrir

Quem pode sorrir? Deixa eu saber quem é

Do jeito do céu Começando aqui bem dentro Com os pés neste chão Eternidade invade o tempo Da terra daqui Eu vivo a terra do céu A terra do céu

Bem além das nuvens Existe um céu Quem olha pra Ele Descobre o chão Bem além das nuvens Existe o céu Quem olha pra ele Descobre o chão

Da terra daqui 113

Eu vivo A terra do céu A terra do céu

Essa é mais uma canção que traz na letra elementos de uma espiritualidade mundana, aquela que brota do “chão da vida”, um tipo de espiritualidade que ultrapassa a religiosidade institucionalizada. O “jeito do céu” começa desde dentro, no coração, na mente e no espírito. A vivência em um céu vindouro se mostra como uma realidade no mundo da vida e que não é preciso esperar chegar lá para viver uma espiritualidade em sua plenitude. A espiritualidade iniciada desde dentro é capaz de desembocar no caminhar e fazer parte da vida cotidiana. A frase “na terra daqui eu vivo a terra do céu” é emblemática e ajuda a compreender a macrovisão do artista em relação à canção evangélica e à própria vida cristã. Não há, portanto, uma separação entre “coisas do céu” e “coisas da terra”, tudo está interligado. Também não há na letra nenhuma tentativa de conversão ou apologia religiosa. A frase “quem olha pra Ele descobre o chão” é um esforço para humanizar a figura do próprio Cristo, isto é, subverte o seu aspecto divino, tão sublinhado pela religião, e o concebe mais humanizado, em poucas palavras, “gente como a gente”. Na canção, não há diferença entre homem e Deus, já que para os cristãos, Deus se transformou em homem e habitou entre eles. Quanto à sonoridade, essa é mais uma canção que se inicia sem introdução. Todos os instrumentos começam a tocar ao mesmo tempo. Bateria tocada no aro, contrabaixo cello com marcação conjunta com o bumbo da bateria e um piano marcam toda a cadência da música. No quesito arranjos, antes do refrão, durante as frases “quem pode sorrir, deixa eu saber quem é”, há arranjos de sintetizador que se assemelham a gotas de chuva, pingos que caem suavemente. No refrão, há um arranjo de cordas de violino, viola e violoncelo que acompanha o piano. Sobre as anafonias, a partir do minuto 1’47, há uma modificação de voz feita em estúdio como se ela soasse do espaço sideral, do cosmos, típico dos filmes de ficção científica e de algumas produções fonográficas77. As ocorrências musemáticas ocorrem pelos timbres e as texturas da canção que agem no sentido de transportar o ouvinte a um outro lugar, ao céu. A canção “tem essa coisa do pó da terra. A proposta dessa espiritualidade de

77 Um exemplo interessante ocorreu na gravação de A day in the life, dos Beatles, do disco Sgt pepper's lonely hearts club band, de 1967. John Lennon pediu ao produtor, George Martín, que sua voz, na canção, soasse como se estivesse sendo transmitida da lua. O resultado foi uma voz masterizada em estúdio, com delays, pequenas repetições, e overdubs, camadas de vozes gravadas em sobreposição. 114

Jesus é uma espiritualidade que tem os pés sujos. O céu é uma referência do aqui agora, o céu é o chão daquele que crê na boa nova”.

Que onda (Marcos Almeida, Paulo Nazareth e Baby do Brasil)

Quando eu não estou mudando o mundo Eu aproveito o que tá bom Quando eu não estou mudando o mundo Eu aproveito do que está bom

E o que é bom não pode ser mudado agora É pra repartir, espairecer a memória

Assim bem raramente, bate antes da hora E fica à vontade de fechar Com tudo o que tá bom

E o que tá bom Na sua vida, baby?

O beijo, a tela O livro, a peça O filme, a festa O céu desse som

E o que tá bom Na sua vida, baby?

A rede, o sono A bola, o jogo A rosa, o povo Amando esse som

E o que tá bom Na sua vida louca?

A fé e a força O riso à toa A banda boa Aumenta esse som

Que onda aumenta esse som

A canção faz uma leve crítica às pessoas e aos movimentos que querem mudar o mundo, mas não o aproveitam em sua inteireza e em seu estado atual. Faz uma crítica 115

acentuada sobre as tentativas de transformação do mundo e convida o ouvinte a apreciá-lo como ele é. Não é uma forma de resignar-se com a realidade, a desigualdade e as relações assimétricas de poder, e sim, amar o mundo como ele é, não em decorrência da transformação. A ideia está presente na filosofia dos gregos estoicos, como Epiteto; nos modernos, como Espinosa; e nos contemporâneos, como Nietzsche. O trecho “o que é bom não pode ser mudado agora” faz alusão a uma transformação que será alcançada pela transformação espiritual do Cristo, consumada em seu retorno à terra, segundo a crença dos cristãos. Busca relacionar elementos tangíveis e palpáveis: “a rede, a tela, o livro, a peça, o filme, a festa” de forma contextual e abrangente. A canção é uma balada rock, a guitarra limpa e sem distorção guia toda a música. Há uma linha de contrabaixo bem evidente. No início, um arranjo sintético de cordas chamado “strings”, atua junto a voz do cantor. As anafonias remetem ao repertório pop da música brasileira, sobretudo na sonoridade de artistas como Lulu Santos, em que a guitarra é uma marca registrada. A expressão “Que onda” alude ao clima de verão, praia, sol, calor, que causa uma experiência de desaceleração, paz e sossego. A canção foi escrita “pro militante, pro cara que vive frenético, engajado nas causas sociais, no trabalho, o workaholic que só pensa em trabalho e que de repente esbarra numa curtição. É um reconhecimento de que nem tudo precisa mudar, nem tudo precisa ser objeto da minha insatisfação, da transformação”.

4.2 Análise cancional 2: Jorge Camargo

Jorge Camargo é compositor, escritor e produtor musical há 30 anos. É professor de inglês, tradutor e intérprete. Mestre em Ciências da Religião pelo Mackenzie e doutorando em Educação, Arte e História da Cultura na mesma Universidade. Lançou, em 2009, pela editora Reflexão, De vento em popa: Fé cristã e música popular brasileira, resultado de sua dissertação de mestrado. Foi integrante do grupo Vencedores por Cristo, além de ter sido membro fundador do grupo Semente. A seguir, a letra e a análise da canção Poeta:

Poeta (Jorge Camargo)

Eu luto com moinhos de vento, Eu vejo sangrar meu coração, Eu sonho a vida de um novo tempo, Eu como os livros que outros lerão. 116

Eu sou poeta, poeta, poeta, eu sou.

Eu vivo feito dona de casa Enxergo aquilo que ninguém viu Escrevo hino a minha bandeira, Exponho as entranhas do Brasil Eu sou poeta, poeta, poeta, eu sou.

Desfilo nu por ruas e becos, Viajo do inferno até o céu, Ao canto das serias desisto, Meu lar é caminhar sempre ao léo, Eu sou poeta, poeta, poeta, eu sou.

Na canção Poeta, cada verso é dedicado a um poeta de diferentes períodos históricos. São contemplados, respectivamente: Miguel de Cervantes, José Saramago, João, apóstolo, Ezequiel (bíblico), Cora Coralina, Chico Buarque, Olavo Bilac, Castro Alves, Isaías (bíblico), Dante Alighieri, Homero e Carlos Drummond de Andrade. O artista faz uso da linguagem e da imaginação poética. Para Jean Caune (2014, p. 72), “a imaginação poética e mais amplamente a arte introduzem os seres humanos ao campo das correspondências simbólicas. Dessa forma, o símbolo se abre sobre outra coisa para além dele mesmo, pela mediação que ele realiza”. Não se evidencia, na letra, nenhuma conotação religiosa, embora alguns poetas sejam da tradição cristã. O eu-lírico, “eu sou poeta”, refere-se aos poetas citados na canção, não ao próprio autor, embora também o seja. A intertextualidade entre os poetas se mostra na letra. Quanto à sonoridade, a canção é toda tecida por um violão de nylon, tocado pelo próprio autor. Os arranjos são marcados por um violão brasileiro clássico, dedilhado em frases sonoras ascendentes, que se resolvem ao iniciar da canção. As anafonias mostram-se no uso de uma linguagem sonora que alude à música popular brasileira, por conta do violão de nylon e dos acordes, digamos, mais rebuscados e executados em sétima maior e diminutas. Os musemas ocorrem nas unidades mínimas da canção, nas texturas, levadas e cadências que apontam ocorrências sonoras presentes na canção popular brasileira. Sobre a linguagem poética da canção, Jorge Camargo afirma que “os profetas eram poetas, a linguagem profética, é uma linguagem eminentemente poética. A linguagem poética é a linguagem da imaginação e mais de cinquenta por cento da bíblia é poesia. A descrição do Apocalipse de João é poesia, uma descrição poética. As visões de Ezequiel 117

também são descritas de uma forma poética. Gênesis também é uma linguagem poética. Cinquenta por cento da bíblia é isso, é imaginação” 78 A maneira de compreender a canção convida para uma reflexão sobre como as pessoas a leem, como a público recebe e a ressignifica no cotidiano. As pessoas que ouvem a canção, sendo religiosas ou não, reconhecerão as menções literárias ali contidas. Então, até que ponto é possível considerar esse tipo de canção como cristã? Para o autor, música cristã é “uma música que expressa valores nos quais a gente acredita e que não estão necessariamente ligados à instituição religiosa, tem mais uma relação ética que institucional”.

Sim e não (Jorge Camargo e Gladir Cabral)

Tu estás aqui És o meu saber Como a luz do céu vens me clarear Claro ar, sol que já vai nascer, vai nascer

Tu estás aqui És o meu sabor És o vinho e pão Riso do arrozal

Trigo bom, flor que já vai nascer, vai nascer Tudo o mais, mais além Muito além de todo o sim e o não

Não estás aqui És meu não saber Nuvem cobre o céu Faz escurecer E calar sol que não vai brilhar, vai brilhar

Não estás aqui És meu dissabor És o corte e o frio Lágrima de sal És a dor, flor que não vai brotar, vai brotar

Tudo o mais, mais além Muito além de todo o sim e o não, sim e o não

78 Todas as falas de Jorge Camargo, citadas nesse capítulo, foram retiradas da entrevista concedida em 26 de outubro de 2020, em São Paulo. Disponível na íntegra no anexo B. 118

Tudo o mais, mais além Muito além de todo o sim e o não, sim e o não Sim e o não

Sim e não é trabalhada em paradoxos. A primeira parte se inicia com afirmações sobre Deus, sua figura e atuação no mundo da vida que simbolizaria o “sim”. A segunda parte é quase uma desconstrução das afirmações anteriores, descreve um Deus que, ao mesmo tempo que fala, se cala, o que simbolizaria o “não”. A canção tenta romper o aspecto dual sobre a compreensão de Deus que estaria “muito além do sim e o não”. Esse seria o entendimento da linguagem, da gramática, do bem e mal, da compartimentalização entre sagrado e profano. Deus estaria, para além dos binarismos, “tudo o mais, mais além”. Quanto à sonoridade, a canção não utiliza instrumentos musicais formais: bateria, guitarra, baixo e teclado. Há o uso de instrumentos de cordas de música clássica, violino, viola e violoncelo. Os arranjos são executados ao final de cada estrofe, em consonância com a voz do artista, acompanhados de um piano de calda. As anafonias transcorrem como se fosse parte de um oratório, um musical, têm relação com as sonatas de Bach e Händel, por exemplo. A sonoridade dos instrumentos de música clássica executados em menor número, remete à música de câmara, trazem um ar leveza ao tratar sobre o tema da existência de Deus. O autor diz ter se inspirado numa obra chamada A nuvem do não saber, escrita no século XIII e de autoria desconhecida, é talvez uma das obras mais importantes da tradição cristã mística. A tradição mística cristã é pouco discutida entre os protestantes, é mais falada entre os católicos. No livro, o autor questiona: qual seria o caminho para se chegar a Deus? Segundo ele, o caminho da linguagem, do verbo e da escrita não levaria o homem a Deus. O caminho para furar a “nuvem do não saber” e conectar-se com o divino, é o caminho do amor: quando o homem ama, ele está conectado com Deus. “Não são as palavras, não é a linguagem, é o amor que se dá muitas vezes no silêncio. A letra da canção fala sobre isso, ‘tú és meu não saber, estás além do sim e o não’. Sim e não representam justamente a linguagem, que pode ser uma coisa ou outra”.

Pasárgada (Jorge Camargo e Gladir Cabral)

Não quero a glória do mundo, Quero uma terra melhor Onde o jardim do futuro Não cheire a medo e suor. 119

Quero um pouquinho de tudo, Tudo que venha do amor Planta subindo no muro Riso num pé de flor.

Vento soprando a jangada Barco no braço do mar

Vou me mudar pra Pasárgada, Lá sou amigo do Rei Lá a ternura é a ordem e a lei

Quero a verdade da lágrima, Não quero o gosto do sal Quero a alegria da trégua Não quero o gozo do mal.

Chega de morte na esquina, Cesse a canção do fuzil Venha na terra menina Nova versão do Brasil Que haja alegria nas ruas, Festa, folia e quintal

Vou para o reino de Atlântida, Vou para a terra sem mal Vida não mais dividida e desigual.

Vou para o reino de Nárnia, Vou para a Terra de Oz Onde o ribeiro da paz encontre a foz.

Não quero a glória do mundo, Quero uma terra melhor Onde o jardim do futuro Não cheire a medo e suor.

A canção Pasárgada é uma intertextualidade feita com o poema Vou-me embora pra Pasárgada, de Manuel Bandeira. Descreve um mundo melhor, mais justo, onde reina a paz e a violência cessa. O trecho “chega de morte na esquina, cesse a canção do fuzil” trata da violência urbana e faz eco ao contexto político/beligerante do Brasil contemporâneo. A criatividade e inventividade do autor mostram-se nas menções de elementos míticos - o “reino de Atlântida”, a “terra de Oz”, o “reino de Nárnia - tentativas não de fugir da realidade, mas de construir, por meio da canção, uma outra realidade, mais digna e plena de se viver. 120

“Que haja alegria nas ruas, festas, folia e quintal” descreve a alegria do povo, a liberdade e a união promovida pela cultura e pelas artes. A “canção Pasárgada é um exemplo dessa coisa do diálogo com a literatura, cita várias coisas, Nárnia, Oz, vou para terra sem mal”. Além dos instrumentos musicais utilizados no jazz, piano, contrabaixo cello, saxofone e violão de nylon dedilhado, há a sonoridade de instrumentos de matriz africana. O caxixe, instrumento musical de percussão semelhante ao chocalho, dita todo o ritmo da canção. Na segunda estrofe, sai o caxixe e entra o agogô, que passa a ditar o ritmo da canção. Um arranjo descendente de saxofone ao final de cada frase das estrofes causa uma sensação de perda, que logo se resolve nos acordes seguintes. Sobre as anafonias, a sonoridade africana e o ijexá são características rítmicas marcantes da canção. No repertório popular brasileiro, essa característica rítmica e sonora está presente nos trabalhos de Djavan, Clara Nunes e Jorge ben Jor. Os musemas mostram-se nas unidades mínimas da sonoridade musical. Os usos instrumentais e rítmicos evidenciam um repertório abrangente, para além das formas usuais utilizadas na música evangélica massiva. Os usos e apropriações culturais apontam outros entendimentos e linguagens da canção.

Sonho não morre (Jorge Camargo e Gladir Cabral)

O meu sonho encheu a noite e extravasou para o meu dia, O sonho encheu a minha vida e é dele que eu vou viver. O meu sonho abriu faceiros, Os portais da primavera, E sobre a asas da quimera fez o escuro amanhecer.

Porque sonho não morre, sonho não morre, sonho não morre,

O meu sonho encheu as casas e as janelas de poesia, Fez nascer a alegria, que já ia se perder. O meu sonho ardeu estrelas e canções de vagalumes, Soprou rosas e perfumes, e tapumes de sapê.

Porque sonho não morre, sonho não morre, sonho não morre

Os primeiros versos compõem o poema da escritora e poetisa mineira Adélia Prado. A expressão “sonho não morre” pode ser uma intertextualidade com a expressão “sonhos não envelhecem”, da canção Clube da esquina II, do grupo mineiro Clube da esquina. A canção foi escrita em coautoria com Gladir Cabral, outro importante artista da música brasileira de raiz cristã, com quem possui inúmeras parcerias e já escreveu mais de 1000 canções. A letra 121

utiliza uma linguagem poética que transcorre sobre o tema do sonho. Na canção, o sonho representa a esperança que não morre e, no caso tanto da autora quanto dos autores, uma esperança imbuída numa dose de fé. Essa é mais uma canção em que o autor apenas faz uso de um violão de nylon dedilhado. A sonoridade é semelhante ao violão utilizado por Caetano Veloso e Adriana Calcanhotto. Devido a simplicidade, os arranjos ocorrem pelo dedilhar das cordas e nos acordes utilizados. O virtuosismo do artista em tocar bem seu instrumento, faz do arranjo um elemento quase dispensável. As anafonias estão nos preciosismos que indicam um ouvido apurado e atento ao repertório popular brasileiro num vocabulário musical variado e rico. Os musemas encontram-se nas intenções, acordes, cadências, texturas e timbres presentes na música popular brasileira mobilizados para criar um texto cultural de características distintas. A utilização do poema de Adélia Prado remete à sua herança espiritual, “ela tem essa coisa dela que eu acho perfeita, a gente se identifica muito com ela, exercita a nossa espiritualidade, ela é importante na nossa vida e não há uma conexão institucional, é isso que faz toda a diferença”.

4.3 Análise cancional 3: Estêvão Queiroga

Estêvão Queiroga, 35 anos, natural de João Pessoa, é um cantor, compositor, produtor musical, multi-instrumentista, arranjador, jornalista e publicitário brasileiro. Estudou jornalismo e publicidade na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), foi redator publicitário da NBS, agência de publicidade com sede em São Paulo, onde recebeu o prêmio London International Advertising Awards. Seu primeiro disco, Diálogo número um, de 2016, teve participação da Orquestra Sinfônica Nacional Checa em quase todas as faixas. A canção Corre atrás do vento será analisada a seguir:

Corre atrás do vento (Estêvão Queiroga)

Sai sempre bem cedo, Em busca de tempo Seu sonho ter tudo Sem sono, confuso

Corre atrás do vento, do vento

Faz casas sem prumo 122

Faz rotas sem rumo Seu trono, seu mundo Mais perto do fundo

Corre atrás do vento, do vento Corre atrás do vento, do vento

Lembra-te Dele enquanto é o tempo Há tempo, há tempo Lembra que Ele é quem dá sustento É quem te sustenta no tempo, no tempo Lembra que Ele é quem sopra o vento, o vento

Lembra-te Dele e só, Deixa Ele guiar Deixa o tempo chegar Deixa o vento soprar Sem viver como quem Corre atrás do vento

A canção apresenta uma letra que toca em questões existenciais e contemporâneas, da busca inveterada pelo dinheiro, sucesso e riquezas, típico do “sonho americano” capitalista de consumo. Os primeiros versos dizem: “sai sempre bem cedo, em busca de tempo, seu sonho ter tudo, sem sono, confuso, corre atrás do vento”. Há uma grande influência de ritmos do Nordeste brasileiro, como o maracatu e o manguebeat, usos que dizem respeito às intenções do artista quanto ao significado musical. Martha Ulhôa (1999, p. 61) afirma que “o significado da música vai depender das biografias, das visões de mundo, das opções ideológicas e da formação musical de todos que compartilham de um mesmo entendimento do que seja música”. Antes de a canção começar, há uma narração melódica, uma poesia de cordel chamada Toada de Dedé, recitada pela avó do artista, conta a história de seu avô, Dedé. A sonoridade da canção utiliza instrumentos musicais regionalistas característicos: acordeom com floreios, bateria com uma leve batida arrastada na caixa, chamada rebote, violão de aço dedilhado, contrabaixo cello e a presença marcante do agogô, instrumento musical de percussão muito utilizado no samba. Um pandeiro tocado junto a um tamborim se intercala ao agogô ao final de cada estrofe. A canção traz uma estética folk e ao mesmo tempo um swing nordestino, apresenta arranjos bem elaborados e uma acuidade sonora com os instrumentos musicais utilizados, os ritmos brasileiros dão outra roupagem à canção evangélica. Um tipo marcante de anafonia ocorre entre o minuto 3’09 e 3’11, uma batida de tambores tocados conjuntamente, que no 123

maracatu é chamada de trovoada. Essa característica rítmica está presente nas produções musicais de Chico Science & Nação Zumbi, grupo pernambucano de música brasileira. A levada de maracatu foi produzida pelo primo, Stênio Alencar, músico paraibano. Os musemas estão presentes nos riffs, cadências e nas texturas que moldam a canção. Identifica-se a presença de um repertório musical nordestino regionalista no uso de ritmos, sonoridades e intertextualidades. Queiroga diz que o “o nome da música Corre atrás do vento, acabou combinando. No meio, a gente colocou uma referência a Chico Science & Nação Zumbi que eu ouvi muito quando era adolescente, aquele assobio presente no arranjo de maracatu atômico” 79

A partida e o norte (Estêvão Queiroga)

Quando eu parti partiu-se em mim meu coração, Meus pés tremeram ao pisar em outro chão Eu disse adeus e a Deus eu disse sem razão Que a minha companhia era a solidão.

O fogo me queimou, mas me aqueceu A luz que me cegou, me fez ver Deus Minh ‘alma se fartou sem água e pão A mãe da esperança é a provação

Por sobre a estrada anoiteceu e amanheceu E eu vi que os dias mais sombrios também são teus O homem que eu parti de casa se perdeu E a caminhada fabricou um novo eu

O fogo me queimou, mas me aqueceu A luz que me cegou, me fez ver Deus Minh’alma se fartou sem água e pão A mãe da esperança é a provação

O caminho muda, e muda o caminhante É um caminho incerto, não um caminho errado Eu, caminhante, quero o trajeto terminado Mas, no caminho, mais importa o durante Deixei pegadas lá no vale da morte Um solo infértil aos meus muitos defeitos Minha vida alargou-se em caminhos estreitos E eu vi você A partida e o norte.

79 Todas as citações de Estevão Queiroga neste capítulo, foram retiradas da entrevista concedida em 30 de outubro de 2020, em São Paulo. Disponível na íntegra no anexo C. 124

A partida e o norte é uma canção reflexiva, soturna, melancólica, que descreve a história de uma pessoa que se afastou de Deus e foi se aventurar pelos próprio caminhos. Traz uma letra existencialista, de reflexão. Mergulha na interioridade do ser e é convidativa a repensar aspectos da própria existência. A poesia, parte declamada da canção, traz vozes sobrepostas do artista e de outras pessoas como se fosse uma reza. “A partida”, a incerteza do caminho, não exime o homem do sofrimento. A trajetória e o caminhar não são como um roteiro de algo já escrito, ele se constrói no “durante”, quando se descobre o “Norte”. A canção é executada apenas em voz, violão e uma leve batida de bumbo. O silêncio, os espaços vazios e as pausas são formas de ouvir-se a si mesmo, mergulhar na interioridade do ser e refletir sobre os caminhos trilhados. O violão de aço dedilhado produz um arranjo que no campo da música é chamado de harmônico, um leve toque nas cordas com a ponta dos dedos que produz um som que se propaga e se verbera. Sobre as anafonias, como descrito pelo autor, a batida de bumbo remete à toada de boi-bumbá, dança folclórica do Nordeste brasileiro. O conjunto de vozes que leem a poesia ao mesmo tempo remete a um tipo de reza, uma procissão, mais comum no catolicismo. Sobre os musemas, no início da canção, há um barulho de águas, como se houvesse alguém em um barco remando num rio. A canção se inicia com esses musemas: barulho de natureza, pássaros cantando e um barco remando à procura de um norte. “Esteticamente e sonoramente ela tem uma referência de toada, remete às toadas de boi-bumbá, muita gente não percebe, mas ela tem essa levada. No meio tem a poesia, uma coisa que eu gosto muito, uma poesia inusitada que acaba se tornando uma marca registrada da canção”.

(Amanhec)eu (Estêvão Queiroga)

Amanheceu Se fez a luz e me envolveu Amanheceu E toda morte em mim morreu Amanheceu E esse sol nunca vai se apagar Amanheceu E eu só quero brincar Brincar

Ah! Gente sem poder amar Grama sem poder pisar 125

Quando apagou-se a luz Fingi estar dormindo Mãe, eu já posso levantar? Abro a janela e deixo Quem quiser falar Pra ver quem tá comigo

Noite imensa A gente pensa A gente sofre em vão O tempo prova o louco, são

Amanheceu Se fez a luz e me envolveu Amanheceu E toda morte em mim morreu Amanheceu E esse Sol nunca vai se apagar Amanheceu E eu só quero brincar Brincar

A canção traz uma letra de conotação muito pessoal, foi escrita em homenagem à mãe do artista para reafirmar a sua importância. É interessante notar a liberdade com que os temas são trabalhados pelos artistas. Um músico evangélico não precisa ter uma produção sonora voltada apenas a temas religiosos/cristãos. Essa liberdade presente na música evangélica de raiz cristã fomenta um tipo de canção que consegue traduzir dramas universais vividos pelo ser humano. Na música gospel, a produção da canção é mais ensimesmada e trata pouco de temas universais. Os artistas em questão utilizam os elementos da linguagem da canção em sua potencialidade. Não há uma menção direta ao nome de Deus, conotação proselitista ou religiosa. Quanto à sonoridade, a canção se inicia com toques suaves de um violão de aço de doze cordas, que tem a função de gerar um som de notas oitavadas. O arranjo harmônico duplica a sonoridade do violão. Há um caxixe tocado em dois tempos, prelúdio de uma batida candomblé, seguida de palmas e pífaros. A canção se inicia no refrão. Um arranjo presente em quase toda a música é um coro infantil que repete as sílabas: “ô” e “ê” a cada começo de frase do refrão. Quanto às anafonias, o início sonoro faz alusão à festa do reisado, ou folia de reis, como é conhecido nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Instrumentos de sopro e percussão são mais utilizados. Sobre os musemas, o ritmo acelerado dos pífaros remete ao 126

baião, xote, xaxado e à música nordestina ritmada. A cadência e as texturas da canção buscam construir um novo texto cultural na música evangélica brasileira. A expressão “amanheceu” remete à ideia de nascimento, de parto. O autor afirma ter elaborado o arranjo para dar essa ideia de parto e misturar referências brasileiras nordestinas, numa linguagem pop. Segundo Queiroga, a “introdução faz referência à festa do reisado, uma festa popular religiosa que homenageia os três reis magos e que fala dessa experiência de nascimento também, do nascimento de Jesus. Então há muitos significados ali dentro”.

Tá (Estêvão Queiroga)

Já peguei a espada de papelão Bola, travesseiro, lanterna e pão Tomei minha decisão A chave está na mão Me deixa, me escuta

Mãe, não quero mais ficar aqui Já fiz as malas pra fugir Eu vou morar lá no quintal Mas saiba antes deu sair Que eu tô fugindo só pra ouvir Você pedindo pra eu ficar Quem sabe um dia eu vou voltar

Só quero essa foto pra eu me lembrar Se eu sentir saudade não vou chorar E eu vou me esconder Não me procure atrás do vaso da roseira

Deus, não quero mais ficar aqui Já fiz as malas pra fugir Eu vou morar lá no quintal Mas saiba antes deu sair Que eu tô fugindo só pra ouvir Você pedindo pra eu ficar Pois com você é o meu lugar!

Já fiz as malas pra fugir Eu vou morar lá no quintal Mas saiba antes deu sair Que eu tô fugindo só pra ouvir Você mandando eu ficar

Falou tão alto que deu medo! Mas me abraçou com tanto jeito 127

Não teve jeito eu disse: Tá!

Essa é mais uma canção dedicada à mãe do artista, só que numa produção conjunta. Tá é a expressão da criança quando se rende aos carinhos e cuidados da mãe. Na canção, a figura da mãe se confunde com a figura do próprio Deus no sentido de dependência e a quem recorrer. Não é uma canção religiosa, trata das relações familiares, de convivência e estimula o exercício da gratidão. É executada inteiramente em voz e violão de aço em afinação um pouco mais grave, chamado de violão barítono. Pela ausência de instrumentos musicais formais, os arranjos ocorrem pelo dedilhar das cordas e nos acordes utilizados. O violão traz uma sonoridade mais pop, presente nas canções da música americana e britânica. Os acordes têm uma solução semelhante ao da música live and let die, dos Wings: quatro notas que se iniciam com duas naturais, seguidas de uma nota diminuta e uma nota natural. A mesma solução está presente na música Plush, do grupo de rock estadunidense Stone temple pilots. A cadência do violão e os acordes atraem o ouvinte a repensar a relação afetiva com a mãe. As levadas, os timbres e as intenções da música têm essa função transcendental. Sobre isso, Queiroga afirma: “eu acho que a minha música acaba de uma maneira caminhando em alguns aspectos um pouco mais existenciais, psicológicos e que são universais, são demandas universais, dores universais. Isso tudo acaba acontecendo de uma maneira muito espontânea.”

4.4 Análise cancional 4: Gerson Borges

Gerson Borges é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-graduado em Sociologia e Literatura pela Universidade de São Paulo (USP). Autor do livro Ser evangélico ser deixar de ser brasileiro, publicado de 2016, onde transcorre sobre temas ligados à espiritualidade e à cultura brasileira. É pastor na igreja Comunidade de Jesus em São Bernardo do Campo, São Paulo. A seguir, a letra e a análise da canção Dizem que sambar é pecado

Dizem que sambar é pecado (Gerson Borges)

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Dizem que sambar é pecado Dizem que sambar não é bom, não é bom Eu acho isso um tanto equivocado: O Criador amado dando pra gente esse dom Pra deixarmos meio mofado Na gaveta fria de uma opinião Que deixa tanta alegria de lado Deveria ser dado a ele mesmo, em adoração.

Dizem que o samba é coisa de pagão Discordo – é do Senhor toda a criação E apuro para Ele o meu batuque E afino com mãos santas o meu violão.

Dizem que sambar é do preto Que sofreu escravo, nesse chão, nesse chão É isso mesmo, mas rejeito o gueto: O samba não tem pele, nem tem raça É do coração Mesmo eu sendo um crente mulato Acho que o branco há de ter inspiração Numa liturgia toda em dois por quatro Brasileira oferta ao Deus de todos.

Dizem que o samba é coisa de pagão Discordo – é do Senhor toda a criação E apuro para Ele o meu batuque E afino com mãos santas o meu violão.

A letra tece algumas críticas em relação às visões reducionistas da música e da arte produzida por cristãos. A ala mais conservadora da igreja tende à demonizar tudo o que não é confissão de fé na cultura brasileira, e assim perde as potencialidades inventivas no sentido de construir novas possibilidades e perspectivas. Essa forma de relacionar a fé aos elementos da cultura, mostra uma visão mais abrangente e madura em relação à arte e à cultura de modo geral. O artista não age no sentido de abençoar os elementos da cultura por meio da fé, ele tenta criar uma produção de sentido distinta imbuída numa espiritualidade mais dialógica e contextual. Quem diz sambar ser pecado são os religiosos conservadores que não enxergam a “graça comum” presente em todas as coisas criadas por Deus, segundo o autor. Sobre a sonoridade, a canção faz uso de inúmeros instrumentos musicais utilizados no samba, com violão de nylon tocado pelo próprio artista, contrabaixo, bateria, piano e flauta transversal. A bateria, tocada no aro, e o prato de condução, dão uma sonoridade jazzística brasileira à canção. Os arranjos ocorrem pelo uso da flauta transversal e na batida marcante 129

de um violão clássico brasileiro, típico de João Gilberto e Tom Jobim. As anafonias remetem à bossa-nova, elaborando um novo texto cultural na música evangélica brasileira. Na bossa- nova, no violão, enquanto o polegar faz o papel do surdo nas cordas mais graves, os outros quatro dedos fazem o papel do tamborim nas cordas mais agudas. A canção utiliza todo o repertório da música brasileira e reforça um tipo de afirmação de que “crente também sabe fazer música”. Os musemas estão presentes nas intenções, levadas, batidas e em toda a cadência da canção e estimulam o ouvinte a repensar modelos e padrões sonoros na execução textos sonoros mais inventivos e criativos presentes na canção popular brasileira. A canção foi composta na intenção de traduzir, em linguagem sonora, o conteúdo de seu livro Ser evangélico sem deixar de ser brasileiro 80. Segundo o autor: “no final do livro, eu uso a letra da canção pra dialogar a questão Cristo e a cultura, um paradigma interessante pra gente pensar também”.81

Discipulado (Gerson Borges)

Gonzagão ouvia Caymmi Que inspirou Buarque e Jobim Os baianos todos e o time Dos mineiros, foi sempre assim Que se fez a nossa cantiga A canção do nosso país Com Noel e o samba da antiga As cantoras do rádio, Elis Noel e o samba da antiga As cantoras do rádio, Elis

Rebanhão misturou de tudo Som maior bebeu no tio Sam Grupo Elo fez seu estudo VPC olhou pro amanhã O Guilherme, o Jorge, o Pimenta O Bomilcar, Rehder, João Aristeu e uns mais de quarenta Imitei não tive opção

Todo mundo imitou todo mundo Um por um se inspirou em alguém Do mais simples ao mais profundo

80 Escrito em 2016, o autor tenta desmitificar algumas questões sobre a relação dos evangélicos com a cultura brasileira. 81 Todas as citações de Gerson Borges, neste capítulo, foram retiradas da Entrevista concedida em 26 de outubro de 2020, em São Bernardo do Campo. Disponível na íntegra no Anexo D. 130

Não há um que não olhe ninguém Do mais raso ao que vai mais fundo Todo artista é aprendiz de alguém

Sabe que o Chico, lá no começo João Gilberto queria ser E compor, se eu não esqueço Com o tom que o viu nascer O baião é primo do samba Dois-por-quatro, é quase igual E a viola, se o dono é bamba Chora em sampa ou no pantanal

Aprendi a cantar na igreja Violão ganhei do meu pai E por mais moderno que eu seja Hino antigo é bom e não cai Eu sou filho de tudo isso Que panela é minha canção Celebrando o compromisso Brasileiro de adoração Celebrando o compromisso Brasileiro de adoração

Todo mundo imitou todo mundo Um por um se inspirou em alguém Do mais simples ao mais profundo Não há um que não olhe ninguém Do mais raso ao que vai mais fundo Todo artista é aprendiz de alguém

A canção faz uma descrição dos artistas que influenciaram o autor em sua caminhada musical, em menções que contemplam figuras da cultura popular brasileira, poetas, músicos e intérpretes. O autor cita influências musicais cristãs num repertório hoje quase esquecido e que o movimento gospel obliterou. Há a afirmação de que “todo artista é aprendiz de alguém”, portanto, intenções e produções sonoras não nascem do nada, o artista bebe em outras fontes que não somente as evangélicas. A letra mostra a bagagem cultural do artista, ao fazer referência tanto a artistas da música evangélica, quanto da música popular: Caymmi, Buarque, Jobim, Noel, Elis, Chico. Assim, mostra que influências dos “de fora” dialogam com as influências dos “de dentro”, e que não há uma separação tão evidente, e sim, complementariedade. A sonoridade é de um violão de nylon flat, fechado, sem buraco no meio. Além de um baixolão, há uma bateria 131

tocada com baquetas de jazz, chamada de “vassourinha”, que serve para gravações acústicas e execuções mais “leves”. A pegada do violão, a batida e o estilo sonoro de tocar lembram o cantor e compositor brasileiro Lenine. É interessante notar que a música muda de andamento ao final da frase de cada estrofe, ora se transforma num samba, ora num baião e volta ao ritmo inicial. As soluções rítmicas fazem o ouvinte viajar pelas referências musicais descritas na letra da canção. As anafonias ocorrem na utilização de um repertório musical brasileiro, conforme a herança cultural do artista, no vocabulário popular, sonoro e poético, nos sons e na linguagem poética da canção. Os acordes, a batida jazzística e os ritmos brasileiros, samba, baião e a bossa nova são musemas característicos. Sobre a canção, o autor afirma: “eu sempre gostei muito do Lenine, desde o início do Lenine, essa canção tem uma influência grande dele na pegada, no beat, apesar de eu citar dezenas de artistas eu não cito o Lenine nas letras, cito Lenine na forma, porque como diria Walter Benjamin, a forma do conteúdo é o conteúdo da forma”.

Sobretudo quando chove (Gerson Borges)

Se apenas uma escolha me restasse, Eu levaria o pôr-do-sol, Ou se uma só herança me bastasse, Um rouxinol Que cantasse a dor das distâncias E curasse essa saudade A me invadir enquanto eu canto, Sobretudo quando chove.

Se toda a poesia, numa palavra, Eu ficaria com “jardim” E, um tipo só de arbusto ali se lavra, O alecrim, Concentrando o cheiro do longe, Acalmando essa saudade A me invadir enquanto eu canto, Sobretudo quando chove.

E chove, e chove, chove sem parar, Enquanto eu canto, canto, Ao te esperar.

Se cada vez que penso no teu rosto, Vento virasse um vendaval, 132

Desabaria o céu com muito gosto, Que temporal! Tormenta no mar da memória, Rimando com essa saudade A me invadir enquanto eu canto, Sobretudo quando chove.

Sobretudo quando chove é uma canção que trata sobre perda, ausência e saudade. A canção faz parte do musical A volta do filho pródigo, produzido pelo autor em 2005, inspirado na obra de Henri Nouwen, teólogo católico holandês, e no quadro O retorno do filho pródigo, do pintor holandês Rembrandt, que se inspirou na parábola bíblica de mesmo nome presente no capítulo 15 do livro de Lucas. O autor compôs a canção em homenagem ao filho Bernardo. É uma canção melancólica, segundo o autor, muito inspirada nas coisas do Clube da Esquina A letra faz menção à parábola bíblica do filho pródigo, que pediu ao pai sua parte da herança para ir embora e aventurar-se pela vida. A canção descreve o sofrimento do pai que sente saudades do filho, a chuva expressa o sentimento de perda. As descrições feitas pelo artista: pôr-do-sol, rouxinol, jardim, alecrim são elementos que satisfariam a ausência do filho, sobretudo quando chove, isto é, enquanto o filho não volta. A introdução se inicia com “iês”, “iês” em vozes duplicadas de backing vocals e todos os instrumentos musicais tocados conjuntamente: bateria, guitarra, baixolão, violão e piano. No início, na parte cantada, saem os instrumentos e entram os acompanhamentos, violão de nylon dedilhado, piano e um baixolão com muitos adornos e floreios. Os arranjos são executados pelos instrumentos musicais mais evidentes: a guitarra possui preponderância em solos que se assemelham às frases presentes no jazz, uma guitarra mais incorporada que preenche a toda a canção. Na canção, os arranjos causam um sentido de procura, é como se o pai estivesse numa caminhada à procura o filho. As anafonias são da ordem do imaginário, da possibilidade, do encontro. Os musemas são como se fossem passos, como se o pai estivesse caminhando em busca do filho. As intenções sonoras transportam o ouvinte a uma aventura, o convida a caminhar com o pai na busca por alguém que se perdeu. Segundo Borges, essa “é uma canção muito potente, as pessoas gostam muito e ela não se encaixa em nenhuma rádio gospel, é uma canção que se pode tocar em qualquer rádio de MPB. O baixista do Ivan Lins, meu amigo, já fizemos muitos shows juntos, o Nema Antunes, sempre chora quando escuta essa música”. 133

Flora flor (Gerson Borges)

Me veio algo agora Não sei dizer se demora De certo o tempo parou Foi um aroma de amora De uma geleia de outrora Que a minha mãe preparou Embora tenha vindo de fora Minha alma tem hora Que se encanta e se enamora Com o aqui e agora Por saber onde mora Esse teu jeito de flora, esse teu cheiro de flor

Me veio uma saudade de uma velha amizade Que ainda nem começou Às vezes isso me invade, a casa perturba a tarde Um desconsolo, uma dor me arde Vai chegando a idade, minha alma de Jade Não discute a verdade, foi-se a mocidade Me consola a metade Desse teu cheiro de flora, esse teu jeito de flor

Me veio algo agora Não sei dizer se demora De certo o tempo parou Foi um aroma de amora De uma geleia de outrora Que a minha mãe preparou Embora tenha vindo de fora Minha alma tem hora Que se encanta e se enamora Com o aqui e agora Por saber onde mora, esse teu cheiro de flora, Esse teu jeito de flor

A canção foi resultado de um presente de aniversário dado pela esposa, um DVD com depoimentos gravados de amigos, de perto e de longe. Ao assistir, Gerson Borges começou a chorar, pausou o filme, pegou seu violão e começou a escrever. Em 20 minutos, a canção estava pronta, foi escrita num momento de muita emoção e relaciona-se às amizades e a sua importância durante a vida. Descreve a alegria de se encantar com as pequenas coisas e a finitude da vida que se apazigua com o viver do presente. O trecho “me veio algo agora, não sei dizer se demora, de certo o tempo parou”, pode ser visto como uma experiência de 134

epifania, de supressão do tempo, em suma, uma experiência estética. A canção traz uma sonoridade de violão de nylon dedilhado com acompanhamentos de instrumentos de cordas: violino, viola e violoncelo. Há um arranjo de violino, chamado de pizzicato na música clássica, e que, na língua italiana, significa “beliscado”, aquele toque feito com a ponta dos dedos sem a intervenção do arco, como é comumente utilizado. As anafonias aludem à uma peça musical erudita, típica de uma música de concerto. Os instrumentos de corda dão um ar de leveza e fazem o ouvinte caminhar pelos sons como forma de obter uma experiência estética semelhante à da obtida pelo autor no momento de composição da canção. Têm início com primeira estrofe do refrão, tocados numa harmonia ascendente (alegre). A partir da segunda estrofe, tomam uma harmonia descentemente (triste). A utilização de “luz” e “sombras” confere à canção um sentido de alegria e tristeza, mas que se resolve após a segunda estrofe e o último refrão, ao terminar em um tom ascendente. Pelo fato de a canção não ter conotação religiosa, ela é mais executada em casamentos e em reuniões informais. Segundo Borges: “Vou cantar ela num casamento de amigos em breve. Cantei ela no casamento da Sônia Muniz, viúva do Sérgio Pimenta. 30 anos depois ela se casou com um irmão aqui da nossa comunidade, congrega aqui com a gente, casou em 2017, uma história muito linda”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa desta dissertação decorreu de uma inquietação sobre a música evangélica brasileira com vistas a compreender alguns tipos de produção cancional que destoam do padrão mercadológico e estético gospel. A pluralidade de vozes e as perspectivas espirituais alternativas, dentro de um cenário cultural que parece ser unívoco, confere novos ares e novas possibilidades para vislumbrar rearranjos religiosos e práticas culturais além das existentes. O problema de pesquisa questionou como a música brasileira de raiz cristã, por meio das diferentes linguagens da canção, poderia ter potencialidade de gerar uma nova produção de sentido para além do gospel. Consideramos a questão como respondida, pois o tipo de canção une elementos de sentido presentes não apenas no universo evangélico mas que também carrega toda a herança cultural popular brasileira no uso de ritmos, sonoridades e intertextualidades, tanto sonoras quanto textuais. Sobre a hipótese deste trabalho, a falta de uma identificação e a inadequação com o universo hegemônico gospel e seu funcionamento, fazem os artistas produzirem sentidos por outras vias que não apenas as do campo evangélico. Ser um artista gospel é carregar o forte peso que a indústria fonográfica coloca, sobretudo, o peso moral de não sair da linha, como ocorreu cantor o gospel carioca Kléber Lucas que cantou a canção Epitáfio, do grupo de rock brasileiro Titãs, em um culto evangélico e foi rechaçado por isso.82 Posteriormente, o músico participou de um evento para reconstrução de um terreiro de candomblé no Rio de Janeiro e cantou a música Maria, Maria, de Milton Nascimento, ao som de atabaques. Após o ocorrido, o artista foi chamado de endemoniado pelos evangélicos nas redes sociais.83 O objetivo principal da pesquisa foi compreender como essa produção cancional distingue-se da música gospel hegemônica, por meio de novas produções de sentido na cultura midiática. As análises empreendidas e as categorias utilizadas (letras, arranjos, sonoridades, anafonias e musemas) demostraram um repertório cancional que alude à toda herança cultural brasileira. O uso de ritmos e as variadas formas da linguagem poética e simbólica da canção podem enriquecer ainda mais o repertório cancional evangélico e fazer da música cristã um elemento sonoro valorativo e mais conectado com as raízes brasileiras.

82 Disponível em: https://jc.ne10.uol.com.br/canal/cultura/musica/noticia/2017/03/11/cantor-gospel-kleber- lucas-canta-titas-em-culto-e-gera-polemica-273936.php Acesso em: 04 jan. 2021. 83 Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/cantor-gospel-kleber-lucas-chamado-de-endemoniado- apos-evento-em-terreiro-22147168.html Acesso em: 04 jan. 2021. 136

De maneira secundária, a produção cancional se distingue sobretudo pelas letras mais contextualizadas que tratam, em sua maioria, sobre temas relacionadas ao universo do humano. A presença de novos textos culturais evidencia-se pelos usos e apropriações dos artistas e do conhecimento que perpassa o universo meramente religioso. Os diferentes diálogos propostos nas letras das canções demostram uma autonomia criativa para abordar temas não apenas religiosos: espiritualidade imanente, relações familiares, depressão, homenagem aos poetas, diálogos com outras tradições filosóficas do cristianismo, denúncia à opressão e o convite a olhar a cultura evangélica brasileira para além do evidente são temas estimulantes presentes nas canções e fomentam reflexões mais aprofundadas sobre a música evangélica brasileira. Os caminhos alternativos ocorrem pela liberdade criativa que o universo gospel tolhe. A descrição das características dos gêneros ajudou a compreender que as produções cancionais na música evangélica contemporânea extrapolam a questão do gênero gospel, e que é preciso ir além e criar outras formas de produzir sentido dentro da canção evangélica. O referencial teórico utilizado atendeu às expectativas propostas pela pesquisa. Os estudos culturais e a compreensão mais aprofundada das questões comunicacionais, seja por meio das representações ou pelo olhar mais aguçado das produções culturais dissidentes, foram fundamentais para compreender o objeto. As práticas culturais não estão isentas das relações de poder e a canção brasileira de raiz cristã, vista como uma prática cultural marginal, é capaz de fazer frente à cultura dominante. Essa compreensão das produções dissidentes e das táticas de resistência encontra no arsenal teórico dos autores britânicos a compressão almejada. A forma como senso comum compreende a cultura evangélica também pode ser renovada e enriquecida por meio da visão epistemológica complexo-compreensiva künschiana. A semiótica da cultura, por considerar a produção artística como comunicação e como linguagem na/da cultura, foi de grande valia para a compreender o objeto. O texto cultural como portador de variados códigos e linguagens é capaz de gerar novos textos culturais na canção evangélica. A semiosfera, vista como o espaço propriamente dito de produção de sentido, gera novos processos comunicativos por meio da fronteira que delimita o centro, de maior enrijecimento cultural e a periferia, de maior trânsito entre diferentes linguagens. A canção evangélica de raiz cristã, ao produzir novos textos, caracteriza uma outra semiosfera de características distintas. 137

A noção de gênero musical na perspectiva de Franco Fabbri foi útil para compreender como ocorrem as classificações e categorizações que envolvem os gêneros. A sonoridade é um quesito importante, mas não preponderante. As cinco regras propostas pelo autor: convenção e instrumentação; semióticas ou comunicacionais; comportamentais; sociais e ideológicas; e econômicas e jurídicas, dão pistas sobre como o gênero musical, para ter sentido, precisa passar por todo uma cadeia que envolve artistas, produtores, público, eventos, divulgação, crítica, recomendações etc. A produção de sentido da canção evangélica mobiliza todos esses aspectos, como descrito no capítulo 3 desta dissertação. Os processos comunicacionais que envolvem os gêneros musicais foram importantes para compreender em profundidade a produção musical em questão. Os trabalhos levantados no estado da arte discutiram o gospel eminentemente como objeto de pesquisa. A investigação aqui proposta agiu no sentido inverso, buscou compreender como ocorre a produção de sentido da canção evangélica para além do gospel como rótulo mercadológico. A perspectiva buscou mapear as produções culturais dissidentes que rompem com o meio hegemônico, antagônico ao representado na cultura das mídias, e visou oferecer um olhar mais crítico e reflexivo sobre o cenário musical evangélico brasileiro alternativo. A compreensão do objeto difere-se por meio do viés comunicacional. A perspectiva multimetodológica da pesquisa que uniu entrevistas em profundidade, análise semiótica da cultura e das canções e reflexões sobre o gênero musical obteve tamanha importância. Na perspectiva do gênero musical, o conceito de anafonia do musicólogo britânico Philip Tagg, visto como fragmento sonoro que alude a outros fragmentos sonoros existentes, demonstrou capacidades inventivas, criativas, intertextualidades construídas e a potencialidade em dialogar com elementos que perpassam o universo evangélico. O conceito de musema foi fundamental para mapear os diálogos, intenções, timbres, riffs, levadas, cadências e texturas que moldam a canção. Os caminhos sonoros percorridos apontaram um conhecimento musical elevado e um rico repertório cultural e comunicacional construído pelos artistas evangélicos. A escolha dos artistas baseou-se em parâmetros extramusicais para compreender as formações sociais, trajetórias de vida, atuações fora do campo da música etc. Como se tratam de artistas independentes, a música não é o único meio de sobrevivência. Muitos deles têm ocupações fora do campo da música. As entrevistas em profundidade foram importantes porque possibilitaram adentrar mais profundamente no universo particular dos sujeitos, 138

compreender seus processos criativos e como a vida cotidiana influencia a produção cancional. A música evangélica brasileira é plural e multifacetada e o trabalho dos quatro artistas descritos representam apenas uma parte desse vasto espectro cultural. Alguns artistas possuem uma posição mais engajada no sentido de produzir canções com um teor mais político e social, como é o caso do rapper brasileiro Vitor Kivitz. Mas a ideia, desde o início, não foi ater-se às questões ideológicas da canção, mas como a música evangélica brasileira pode ser representada para além de como é comumente conhecida, para além do gospel. Por isso, foi privilegiado não apenas a questão das letras, mas a sua construção como um todo: arranjos, sonoridades e outras linguagens da canção. O gospel brasileiro representa a música evangélica como sendo unívoca, mas na verdade ela é apenas uma fatia de um grande bolo. Por isso, faz-se necessário criar outras possibilidades de produção de sentido da canção evangélica brasileira. O que as canções analisadas trazem de diferente é justamente essa mudança de olhar. Enquanto a música gospel tem a função de falar às pessoas de dentro do templo, que é legitima, a música brasileira de raiz cristã transcende os rituais litúrgicos e religiosos. Ela é feita para fora. Por isso, ela é bem aceita em outros ambientes, como na Casa Natural Musical, no projeto MINIDocs da TV Cultura, no Auditório Ibirapuera, no Itaú Cultural e tantos outros espaços culturais ocupados, como bem demostraram Marcos Almeida e Paulo Nazareth. A música evangélica contemporânea ainda suscita muitas dúvidas e pode fomentar questionamentos em pesquisas futuras. Um caminho que pode ser explorado com mais profundidade é a noção de cena musical. As cenas musicais podem ser estudadas partir de sua localidade, como a cena musical evangélica nordestina, encabeçada pelo Coletivo Candiero, descrita no capítulo 2 desta pesquisa, os gêneros que a compõem, como a música regionalista brasileira e sua infinidade de ritmos, e como a cena é mobilizada pelos sujeitos para fomentar novos debates culturais em torno da cultura evangélica. Quando relacionamos um determinado gênero musical à sua localidade, como o punk à Inglaterra e a bossa nova ao Brasil, estamos mobilizando o conceito de cena musical, porque ela desencadeia todo uma relação composta por artistas, produtores, fãs, mídia, distribuição e os laços que se criam em torno daquele gênero especifico. Considerando esses pormenores, a música brasileira de raiz cristã pode fomentar a criação de uma nova cena musical que se cria a partir da cultura evangélica brasileira e sua infinidade de linguagens da canção. Essas 139

práticas tensionam representações culturais pré-definidas e servem como porta de entrada para propor novas discussões, inserir pontos de vista, participar da vida política e cultural do país e ter o reconhecimento devido.

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Referências audiovisuais

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Referências fonográficas

Diálogo número um. Estêvão Queiroga. São Paulo: Sony Music, 2016. Lá de casa. Marcos Almeida. São Paulo: Ciriguela Sound (Independente), 2018. A volta do filho pródigo. Gerson Borges. São Paulo: Gerson Borges, (Independente), 2005. Sambaião. Gerson Borges. São Paulo: Gerson Borges (Independente), 2018. Os quatro amores. Gerson Borges. São Paulo: Ciriguela Sound (Independente), 2018. A poesia caminha: histórias de viagens sobre cidades e sonhos. Jorge Camargo. São Paulo: Jorge Camargo (Independente), 2012. Canções do caminho. Jorge Camargo. São Paulo: Jorge Camargo (Independente), 2013. A catedral do dia. Jorge Camargo. São Paulo: Jorge Camargo (Independente), 2019.

Entrevistas

ALMEIDA, Marcos. Entrevista I. [nov.2020]. Entrevistador: Deivison Brito Nogueira. São Paulo, 2020. 1 arquivo .mp3 (01h07min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice A desta dissertação. BORGES, Gerson. Entrevista I. [out.2020]. Entrevistador: Deivison Brito Nogueira. São Bernardo do Campo, 2020. 1 arquivo .mp3 (1h 12 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice D desta dissertação. CAMARGO, Jorge. Entrevista I. [out.2020]. Entrevistador: Deivison Brito Nogueira. São Paulo, 2020. 1 arquivo .mp3 (01h 45 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B desta dissertação. QUEIROGA, Estevão. Entrevista I. [out.2020]. Entrevistador: Deivison Brito Nogueira. São Paulo, 2020. 1 arquivo .mp3 (59 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice C desta dissertação.

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APÊNDICE A - ENTREVISTA COM MARCOS ALMEIDA

Como é ser um músico cristão independente no Brasil?

Eu não sou um músico cristão, sou um cristão músico. Eu não sei se posso responder essa pergunta, se fosse uma outra pergunta, como é ser um cristão músico no Brasil, acho que conseguiria responder.

Como é ser um cristão músico independente no Brasil?

Eu penso que o grande desafio do músico é, primeiro, estudar, conhecer bem seu instrumento, se dedicar no sentido de ter uma formação, mesmo que autodidata, mas que seja uma formação que possa servir à música. Nesse sentido, encontramos pelo menos dois ambientes: um ambiente onde o músico é um acompanhante, presta serviço pra uma banda, cantor, coisa do tipo, ou ele é um interprete, um artista, compositor, um cantautor, mas que vai defender uma ideia, uma ideia de música, de mensagem. Então, existem níveis distintos, expressões distintas, desafios distintos. Um músico profissional pode acompanhar um cantor ou ser membro de alguma banda ou pode encarar ser esse porta-voz de uma mensagem, de uma ideia, de uma estética específica. Eu nunca pensei que um dia estaria defendendo minhas próprias composições, eu me preparei pra ser um profissional da área de ensino, meu sonho era ser professor. Então, eu não vejo nenhuma diferença entre o cristão músico e o não cristão músico nessa seara tão difícil que é a música e a arte no Brasil. Ele precisará enfrentar os mesmos desafios. Eu acho que pra a minha geração que se deparou ali, por volta de 2005, 2006 com essa missão de cantar a sua própria canção, existe o desafio dentro da indústria da música, que é contestar certas estruturas.

Ontem, eu estava assistindo a reportagem especial da Sonia Bridi sobre a pobreza no Brasil, como ela aumentou. A jornalista teve uma sacada muito didática pra explicar as três escadas disponíveis na sociedade pra quem quer “subir na vida”, crescer, empreender. Existe a escada do mérito, do esforço, a tradicional. Tem a escada rolante, mais fácil, destinada àqueles que tem uma escolaridade de qualidade, relações sociais que facilitam a oportunidade, o emprego, o que torna mais fácil subir essa escada rolante. A terceira escada é a escada rolante descendo, ela está no sentido contrário, puxando as pessoas para baixo. A pobreza, os recursos escassos, a falta de acesso à saúde, educação, moradia etc. Essa é escada estrutural no Brasil, o pobre fica mais pobre e o rico fica mais rico. O abismo é muito grande, quase não existe uma classe média no Brasil. Nesse esforço de cada um, acho que se pensarmos o evangélico como parte considerável dessa escada que desce, sem recursos, sem padrinhos importantes, sem dinheiro no banco, sem acesso à educação de qualidade, vulnerabilidades enormes, a igreja acaba se tornando aquilo que o Antropólogo Juliano Spyer chama de Estado de bem-estar informal. A igreja se torna um lugar para gerar o sonho de mudança, existe ali uma teia de relacionamentos e oportunidades que podem gerar acesso às pessoas, isso ficou comprovado na pesquisa realizada sobre os evangélicos pelo Spyer e que ele lançou em livro recentemente. A grande questão para o músico dentro desse ambiente da igreja é que ele já tem uma escada formatada pra subir, que é a escada da indústria gospel. Se o cara é pobre e quer “crescer na vida”, a igreja oferece esse acesso, mas essa é a escada do mercado gospel. Eu tenho muitos amigos na música gospel, essa escadaria foi construída pelo movimento evangélico. Muitos deles cresceram nisso, não vislumbraram outras oportunidades, outros caminhos, não chegaram a fazer uma distinção, por exemplo, entre igreja e mercado.

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Ou de Púlpito e palco, né?

Sim, eles não chegaram a fazer essas distinções. Eu nunca achei confortável trilhar esse caminho, subir essa escada. É uma escada que faz diferença na vida de muitas pessoas, dá acesso, dá o mercado para as pessoas venderem seus produtos, uma vitrine pra expor, dizer o que pensa, mas não pode pensar muito também, não pode transgredir, então, é uma escada cheia de regras, têm suas limitações. Logo que eu cheguei na igreja evangélica por volta de 1996, 1997, eu disse assim: cara, vou ficar com a igreja mas vou abrir mão do mercado. O meu desafio foi esse, entender essas distinções, valorizar minha comunidade de fé e construir de alguma forma uma outra escada, uma outra trilha, que é o que tento fazer nesses últimos anos, respeitando os sinais de trânsito e me movendo por meio dessas coisas já estabelecidas.

Esse estado de bem-estar informal o Juliano Spyer trata nesse livro que acabou de lançar, né? Povo de Deus: quem são os evangélicos e porque eles importam.

Sim. É um livro fundamental, ele faz uma abordagem mais antropológica, mais sociológica, ele não entra na seara teológica, é uma produção interessante, ele utiliza novas categorias pra pensar sobre essa questão dos evangélicos no Brasil. O livro do Juliano é interessante. Ele não está trazendo uma novidade, são mais 20 de pesquisa sociológica sobre os evangélicos no Brasil, ele acaba fazendo o serviço de traduzir numa linguagem acessível às pessoas. Sai o sociologiquês e entra o português.

E você, quais autores, teorias têm utilizado para pensar essa questão dos evangélicos no Brasil?

O que mais alimenta nesse sentido são as leituras sobre o que é o Brasil, uma coisa que a religião e a teologia não se interessam muito. Muitas produção acadêmicas teológicas trazem perspectivas muito críticas, pouco propositivas, tratam o evangélico quase como um lixo. Aí você pega a Conferência do Nordeste de 1962 e tem lá um texto do Gilberto Freyre que faz essa mesma provocação com mais doçura e mais propostas, apesar de ser uma provocação, é mais propositiva que muitas pesquisas acadêmicas hoje em dia. Eu prefiro ler o Casa Grande & Senzala, Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda, essa turma, sabe, Caio Prado Jr. Um cara que é uma grande referência pra mim é o Gilberto Gil, ele faz isso há muito tempo dentro da perspectiva da religiosidade dele, entende essa transpiração religiosa melhor do que qualquer outro artista evangélico. Então, leio, além do Dooyeweerd e do Rookmaaker que eu já falei em música, esses autores do Brasil. Esses estrangeiros que citei não conhecem o Brasil, falam da realidade deles, a gente precisa ler eles pela nossa perspectiva, não dá aplicar as teses deles aqui, eles são uma referência na Holanda. Aqui, é a gente que precisa construir, essa é a nossa responsabilidade.

Você conhece o livro do Gerson Borges, Ser evangélico sem deixar de ser brasileiro? existem propostas consistentes nele?

Cara, eu não li ele todo, mas as poucas coisas que li eu já não gostei. O Gerson é meu amigo, estou falando isso porque ele é meu amigo. Não sei se é isso, tá, li pouca coisa, mas me desestimulou quando percebi que ele estava falando assim: “vamos fazer uma música de adoração brasileira, com ritmos brasileiros, vamos usar baião, maracatu, lundu, samba, choro no louvor. Eu acho isso muito legal mas não é a minha pegada, não estou preocupado com isso.

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Não é só uma questão de ritmo ou de gênero, né?

Não é só o ritmo, não é só o gênero, mas ainda é um raciocínio tipo assim: ah, legal, vamos tirar essa capa europeia, americana, esse embrulho americanóide do nosso cancioneiro. Bacana, mas depois vai ter um trabalho de cantar outros assuntos e esse cantar outros assuntos talvez não interesse tanto. Essa coisa de restaurar a liturgia, redimir a liturgia utilizando ritmos brasileiros seria divino, maravilhoso, chegar num culto e ouvir um baião. A igreja Deus é amor faz isso há muito tempo, as igrejas pentecostais usam bastante o pandeiro, a síncope, inclusive o Juliano Spyer fala no livro sobre a relação entre o pentecostalismo e a africanidade. Eu acho que é uma parada que não tem nada muito fruto, tem três ou quatro gerações tentando fazer isso, devolver, assimilar a brasilidade no culto evangélico. Não é um processo criativo, no sentido de, vamos criar uma coisa nossa, nova, é mais ou menos pegar uma música do Tom Jobim e colocar uma letra evangélica. Essa proposta não me encanta muito não.

Você falou sobre o Herman Dooyeweerd e o Hans Rookmaaker autores holandeses muito lidos pelos evangélicos reformados. Você vê nesses autores alguma potencialidade para repensar questões relacionadas ao universo evangélico brasileiro? Digo isso porque às vezes sinto uma certa postura conservadora nesse autores. Não sei, você conhece eles melhor do que eu, talvez saiba dizer isso melhor.

Eu também não conheço muito não. Sou um leitor vagabundo no bom sentido da palavra (risos). Aquele cara que vai divagando pelo texto, não fico preso num livro, de fazer uma tese ou defender o um autor, minha leitura é muito dispersa, leio um capítulo só de uma obra e isso tem a ver muito com momento das minhas pesquisas. Acho fundamental a contribuição do Dooyeweerd no sentido de dar uma nova base filosófica para pensar o mundo moderno. Quando ele fala das esferas de soberania e sobre existir mais de dois elementos, bem e mal, direita e esquerda etc. isso já ajuda demais. Essa tese me ajudou muito em 2005, 2006 quando as pessoas pensavam muito nessa dicotomia gospel x secular, só de sair desses binarismos já foi um grande avanço, eu recomendaria muito a leitura. Só não recomendo esse reformalóides que ficam aí enchendo o saco das pessoas no Twitter, esses aí não. Leia o Dooyeweerd, leia a crítica do Rookmaaker à modernidade, à arte moderna, são pontos de partida muito importantes. Tem a contribuição católica também, o Kevin Vanhoozer, o Calvin Seerveld um monte de gente antes e depois do Dooyeweerd e do Rookmaaker aí à disposição pra pensar cultura e espiritualidade de forma mais ampla.

O que distingue a sua produção musical da música conhecida como gospel, você alguma diferença?

Acho que a abordagem inicial, antes de pensar na estética. é o resultado. O resultado é outro completamente distinto musicalmente do que rola na cena evangélica, falo isso sem nenhuma pretensão. Às vezes as pessoas me falam assim: poxa, seu som é diferente. Alguém que me vê dentro do circuito evangélico ou de alguma bolha evangélica diz: nossa, que gospel diferente o seu. Existe essa distinção estética, mas existe também uma visão de mundo diferente, nas expansão dos temas, nas letras da canções etc. Eu começaria falando das semelhanças, eu, enquanto evangélico artística e outros evangélicos artistas que diferente de mim estão na cena gospel, ambos, começam a semana no domingo dentro da igreja, mas no meio da semana, a gente chega em lugares diferentes. Talvez os 156

artistas do gospel passam a semana pensando no domingo enquanto eu passo o domingo pensando na semana.

Por que utilizar elementos da cultura brasileira na linguagem das canções?

Simples, porque eu sou brasileiro (risos), não estamos em outro lugar, estamos no Brasil, eu gosto, tem brasileiro que não gosta, da síncope, do samba, da percussão, tem gente que acha que é coisa de macumba, as pessoas da igreja estão condicionadas a pensar assim, existe esse colonialismo mental dentro da igreja evangélica. Você pega os louvores e as canções cantadas nas igrejas hoje, são cópias da Betel Church, da Hilsong. O cara que cresce ouvindo isso acha que o sagrado é só isso. O sagrado é tudo aquilo que cabe dentro do culto na cabeça das pessoas e se não tem aquela música específica o cara vai achar estranho, mas o cara não é americano entendeu? Ele é brasileiro. Precisamos assumir a nossa brasilidade, isso pra mim não foi nenhum esforço, eu cresci ouvindo brasileira, é o que pulsa dentro de mim, não é uma coisa pra ser cult, pra chocar os crentes, nenhuma outra intenção, essa é a minha música. No Palavrantiga, uma banda de rock, a gente inseriu ali elementos de brasilidade típicos das canções brasileiras, o uso dos metais, a parte rítmica, embora os meninos gostassem mais de rock, a gente conseguiu trazer essa mistura, acho que foi uma coisa natural assim pra mim.

Essas nomenclaturas que estão rolando hoje: Música brasileira tecida na esperança, Música brasileira de raiz cristã e o pós-gospel, bandeira que o Marco Telles Belohuby levantou em seu livro Vida após o gospel, podem se tornar um mote para vislumbrar a formação de uma nova cultural evangélica?

Eu acredito muito no poder das ideias e no poder das palavras que carregam mensagens. A própria palavra gospel foi uma grande sacada, pensar que antes de 1989 não existia gospel no Brasil. Aí um cara do marketing disse: vamos dar um nome mais legal, porque esse negócio de música evangélica é muito brega, numa época em os evangélicos no Brasil eram 5% da população, objetos de um preconceito ainda maior do que hoje, eram chamados de “os bíblias”, né. Esses eram os evangélicos, o cara pobre, o vigia noturno, o trabalhador informal, o analfabeto, muitas pessoas ainda pensam isso sobre os evangélicos. Aí, tiveram a sacada de colocar o nome gospel que é mais cult, os jovens vão gostar. Isso acabou pegando. Esse nosso gospel é uma corrupção do gospel americano, do negro spirituals. O gospel aqui virou uma cena cultural. Não acredito que a música brasileira tecida na esperança vai virar um mote que batizará uma nova cena porque o nome é muito grande (risos). Acho que a ideia sim, vai pegar e vai fazer sentido cada vez mais para as novas gerações que vão fazer a música que a gente vai ouvir. O gospel vai se tornar cada vez mais uma cena cultural.

Penso que a música brasileira tecida na esperança se torna um pensamento para agir dentro desse mundo de estruturas já dadas, o mundo onde o artista, o intérprete, o compositor quer divulgar sua música, onde essas prateleiras já estão aí, o sertanejo, o rock, o pop, o gospel. Então, música brasileira tecida na esperança é mais um código de trânsito, é mais uma linguagem de programação do que uma prateleira, entende? Eu não vejo a gente criando uma cena cultural: “música brasileira tecida na esperança, compre naquela esquina”. Não, você vai ver um cara na esquina, outro na outra esquina, mas pensando nesse código de programação onde vemos a fé como raiz e não como adereço, é fazer esse esperancês numa linguagem em português, é a poética retida e tratada dentro dessa esperança, o lugar onde os sonhos vão ser gestados, pensados, não é um pensamento do tipo: vamos cristianizar a música brasileira, ou, vamos tomar posse da cultura brasileira, coisas assim, triunfalistas e 157

colonialistas. Talvez a metáfora mais clara do que seja a música brasileira tecida na esperança é uma linguagem de programação, tem o Java, o PHP, o Scratch e a música brasileira tecida na esperança. Não rola tentar rodar uma linguagem Java numa linguagem PHP, vai travar, vai dar ruim. Essa é uma abordagem mais materialista do que filosófica, estamos criando o nosso próprio circuito. Desde 2015 o que sustenta a minha carreira é o show ao vivo, a venda de ingressos, as pessoas compram o ingresso online e assistem ao show. Já estamos presentes em playlists editoriais de música brasileira. Então, quando juntamos essas coisas, vemos que já existe um trânsito acontecendo, um circuito cultural ocorrendo.

E o pós-gospel? Você vê alguma potencialidade no termo?

Eu já cheguei a usar essa expressão em dois textos meus em 2012, mas eu não gosto, porque, a pós- modernidade é filha da modernidade, eu não acho que o que fazemos seja filho do movimento gospel, fazemos uma outra coisa, eu não curto muito esse termo porque dá uma ideia uma continuidade, de renovação, mesmo que seja uma contestação, é uma contestação a partir dali e eu não penso a partir dali.

Você tem se debruçado muito sobre a influência da espiritualidade na música popular, o seu blog Nossa Brasilidade é fruto dessas reflexões, dessas interfaces entre fé, pensamento, arte e cultura no Brasil. Existe algum trabalho desse sendo feito agora?

Nós vamos iniciar a última parte da trilogia do curso Arte e Espiritualidade com a jornada “O cristão e a cultura brasileira”. Vamos nos debruçar nas grandes referências que pensam o Brasil, serei o comentarista, o Rodolfo Amorim do L’abri vai lecionar e o Davi Lago, nosso amigo, autor do livro Brasil Polifônico: os evangélicos e as estruturas de poder Também vai participar. O Davi já faz isso que a gente faz na música como articulista, escritor, como pessoa pública pensando o Brasil. Essa disposição e esse empoderamento dos evangélicos no sentido de pensar o bem comum vai ser a tônica, todo mundo falar disso, conservadores, progressistas, reformados, pentecostais. Eles vão ser obrigados a falar sobre esses temas porque os evangélicos já são 40% da população, eles deixaram de ser uma minoria e passaram a ser a própria cidade. Muito provavelmente mais evangélicos vão ocupar, por exemplo, a câmara dos vereadores, ocupar cargos de chefia em grandes empresas, isso vai ser cada vez mais normal na sociedade.

Então, esse é o problema, se teremos, por exemplo, um ministro terrivelmente evangélico no STF ou se teremos evangélicos mais dialógicos e plurais, como você e o Davi Lago.

É claro que existem os usos políticos disso, o atual presidente da república faz uso da fé evangélica de forma deplorável, repugnante. O evangélico precisa saber da sua responsabilidade com a cidade, como lidar com os preconceitos, com as forças de cooptação e assumir uma responsabilidade. Atualmente, não me interesso tanto pela primeira fase do blog Nossa Brasilidade, continuo revendo os textos que escrevi lá e algumas coisas que fiz em colaboração, focamos muito na parte literária das canções, na parte lírica, analisamos a composição da palavra dentro da música popular, mas hoje estou mais focado no som, analisando sonoridades, gravações. Em breve vou lançar um disco com releituras da música popular.

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Nesse seu livrinho de bolso chamado Retuíte, na página 45 você escreve um texto em que cita o poeta modernista Oswald de Andrade que se refere aos crentes como “os outros”, uma visão bem pejorativa. Você acha os evangélicos ainda são vistos como “os outros”, como estranhos?

Um pouco menos agora. Depois dessa eleição para presidente não teve como deixar falar do elemento evangélico. Algumas pessoas vão fazer isso por conveniência política, por medo de perder o público consumidor, tem todo um interesse comercial, político. Os que me parecem ainda não compreender os evangélicos são os acadêmicos, a academia é ainda muito preconceituosa. Os jornalistas dos grandes veículos também, vez ou outra dão um tiro no pé em relação aos evangélicos por falta de conhecimento mesmo.

Esse seu último disco Lá de Casa traz uma abordagem mais terrena da espiritualidade. Quando você diz “toda vez que eu vou pro mundo eu ouço Deus falar” e “na terra daqui eu vivo a terra do céu”, essas expressões dão a dimensão de uma perspectiva mais existencialista, mais pé no chão. Enquanto na música gospel as pessoas estão preocupadas em virar anjos, existem outros evangélicos mais engajados numa espiritualidade do chão da vida, do aqui e agora, numa perspectiva mais humana da fé. Como você lida com isso?

Se você pegar o disco Sobre o mesmo chão do Palavrantiga de 2012, todos esses elementos já estão descritos lá. O disco anterior, Esperar é caminhar, de 2010 também traz muito disso. Não são coisas novas, são tensões da própria vida e da minha experiência desde que eu comecei a compor. Eu não sei se um autor ou compositor consegue falar de mais de um tema na sua vida, entendeu? Esse é o meu tema, vou falar dele até o fim. Minha nova música, Conviver, tem essa mistura, dos dilemas da vida cotidiana de um cara que viu uma janela de eternidade dentro do tempo. Então como o cara resolve esse problema, ela vai paralisar a sua vida aqui esperando ser transportado, levado para um paraíso ou vai entender que tudo já começou e que ele já está no plano eterno. São essas questões filosóficas, teológicas e espirituais que vamos carregar a vida inteira, eu carregos ela desde sempre.

Poderia me falar um pouquinho, por gentileza, das canções: Lá de casa, Pensamento bom, Jeito do céu e Que onda?

Lá de Casa eu fiz em 2017. Morava em Vila Velha. Esse ano eu estava numa rotina de caminhar pela cidade, tinha um tempo inspiracional, devocional de colocar as fogueiras, aquecer o coração e refletir. Tinha um tempo de oração e depois pegava o violão pra compor, passava a manhã toda assim. Lá de Casa é fruto desses períodos. Terminado o tempo de meditação eu fiz a música inteira, peguei o violão e a fiz do início ao fim. A única coisa que acrescentei foi o final “canto...volto pra lá”. Ela é fruto desse entendimento de que o artista tem dois caminhos pra sua jornada: ou é uma demanda de amor ou uma oferta de amor. Enquanto demanda de amor, o artista vai sair pra ser amado, elogiado, pra fazer música que gere algum tipo de resposta no público, ser acolhido etc, então ele é carente. O artista oferta de amor já é amado em casa, tem uma família, tem as relações afetivas bem resolvidas, enriquecidas. A canção não é um instrumento de sedução, é um instrumento de testemunho, de sair para amar. Eu estava com isso na cabeça, comecei a pensar sobre a casa como esse lugar de proteção, um lugar onde a gente guarda os devaneios, as intimidades.

Pensamento Bom eu fiz para uma pessoa que estava passando por um período de depressão. Então, fiquei imaginando esse “vai soprar o vento” e tal. Foi uma canção dedicada a essa pessoa. 159

Jeito do Céu também foi fruto desse período de silêncio, é um hábito que eu costumo ter em alguns períodos. Foi uma música que me deu muito trabalho, porque eu queria algo sintético e ao mesmo tempo poético. Tem uma cena do evangelho que ficou me acompanhou nessa música que é “quando você for pra uma cidade”, Jesus falou “e as pessoas não quiserem te ouvir, sacode a poeira dos seus pés e vai pra outro lugar”. Tem esse lance de não ficar bajulando ninguém, de não ficar tentando provar nada pra ninguém. Quem quiser ouvir ouça, ouça! Quem não quiser, estamos indo pra outro lugar. E tem essa coisa do pó da terra. A proposta dessa espiritualidade de Jesus é uma espiritualidade que tem os pés sujos. Os discípulos ficaram olhando Jesus subir ao céu após a ressureição e aí vem um anjo e diz: “parem de olhar aqui pra cima, façam o que ele mandou vocês fazer”. Uma frase que ficou na minha cabeça e que talvez eu coloque numa outra música: “não é olhando pra nuvem que se chega ao céu”. Eles estavam olhando as nuvens e achamos que o céu é a nuvem. Desenha o céu aí, as pessoas vão desenhar as nuvenzinhas. Têm duas palavras diferentes: sky e heavan que ajudam a pensar nisso. No português a gente usa céu como sinônimo de nuvem e não é isso. O céu é uma referência do aqui agora, é o chão daquele que crê na boa nova.

Que Onda é uma música pro militante, pro cara que vive frenético, engajado nas causas sociais, no trabalho, o workaholic que só pensa em trabalho e que de repente esbarra numa curtição. Ele desarma, está encantado com o sorriso do bebê, tá feliz comendo um pão na padaria, no churrasco, jogando uma bola, deitado numa rede e de repente ele apaga, tira uma soneca. É esse “o que eu tô fazendo quando não tô preocupado”? Eu estava voltando de uma padaria com a Débora, a Isabel e o Joaquim, a Isabel num carrinho de bebê, ainda não tínhamos a Cecília, um monte de coisa pra fazer, pra resolver e de repente eu me vi curtindo aquele passeio, brincando com o Joaquim, aí me veio a frase: “Quando eu não estou mudando o mundo, eu aproveito o que está bom”. É um reconhecimento de que nem tudo precisa mudar, nem tudo precisa ser objeto da minha insatisfação, da transformação, as coisas já foram entregues a mim de forma dadivosa, então é só curtir. Eu terminei essa música no meu aniversário, dia 11 de fevereiro de 2019 com a ajuda da Baby do Brasil e do Paulo Nazareth. A música estava praticamente pronta, mostrei pra eles e disse que eu não estava feliz com alguns versos. Então eles me ajudaram a revisar e a Baby trouxe o “que onda, aumenta esse som”, gostei muito disso e incorporei na canção.

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APÊNDICE B – ENTREVISTA COM JORGE CAMARGO

Poderia contar um pouquinho sobre o início da sua trajetória na música?

Eu comecei na música com os Vencedores por Cristo, conheci a música cristã com quatorze anos em 1977. A primeira vez que ouvi um disco de música cristã foi nesse ano. Tinha uma colega de escola cristã que tinha discos em casa, tinha dois irmãos mais velhos, era mais um ano mais velha que eu, tinha quinze. Ela tinha irmãos mais velhos, uma galera que já estava na universidade e tinham contato com o que rolava lá, então, todas as novidades eles traziam pra casa.

Ela teve contato com isso, era uma menina que tinha uma coisa evangelística, falava com a galerinha da idade dela e eu tava incluído nisso, tava começando a estudar violão. Na minha rua tinham dois amigos que também estudavam violão e ela tocava violão. Um dia ela chamou a gente pra ir à casa dela, lá eu ouvi aquele disco e falei: que lindo isso. Ela me convidou pra ir à igreja dela, fui, comecei a frequentar e fui ficando, isso em 1977. Tempos depois, o De vento em popa chegou até mim, lembro que o ouvi numa fita cassete. E foi aquele uau ... porque era o que eu ouvia no rádio, na minha adolescência, numa hora como essa, à tarde, eu ligava o rádio e ficava ouvindo música, tinha uns programas assim, um misto de entretenimento, entrevistas, repórter na rua.

Era a MPB da época, Chico Buarque, Caetano, Milton. Eu entendo que ouvia música de boa qualidade e quando ouvi De vento em popa eu estava na igreja, então pensei, a gente tá falando a mesma língua, aquilo foi muito impactante. No final de 1980 eu tive contato o pessoal e com o trabalho dos Vencedores, eu tinha um amigo na igreja bem mais velho, era comerciante, tinha negócios, um cara comunicativo, ia em todos os eventos. Um dia ele foi assistir umas coisas de Vencedores e falou: vou colocar você em contato com eles.

Ele me colocou em contato e eu comecei a saber, não sabia onde as coisas aconteciam, nao tinha mídia, não tinha nada. “Ah, eles se reúnem em tal lugar, vão lançar um disco no teatro tal” e todo mundo ia. Aí, no final de 1980 ele me colocou em contato com eles. Tinha aquele treinamento de equipe, sempre recrutavam jovens. Eu fui lá, fiz a ficha e eles me chamaram, perguntaram se topava passar pelo treinamento. Naquela época isso a mesma coisa que ser chamado pra tocar num grande evento, não tinha nada paralelo a isso. Entrei na equipe, fiz o treinamento e fui viajar. Eu entrei no treinamento em dezembro 1980, fiz o treinamento e fui viajar em janeiro de 1981. Quando voltei dessa viagem fui meio que batizado, os cara viram que eu tocava, escrevia alguma coisa e começaram a me chamar para fazer as coisas que eles faziam, então, tinha acampamento onde eram convidados a ir em outra cidade, outros estados, então comecei a entrar na turma, ir aos acampamentos e tocar.

Naquele ano eu me aproximei do Nelson Bomilcar, na época já tinha gravado o Louvor e o De vento em popa. Ele me chamou no final de 1980 pra participar de um disco, a gravação do Louvor três, na época não tinha esse nome, depois veio essa divisão. Tinha o Louvor de 1975, o De vento em popa, de 1977 e o Tanto amor de 1980. Depois eles gravaram os Salmos em que maioria das canções eram do Nelson Bomilcar e do Sérgio Pimenta. Eles me chamaram pra fazer duas faixas nesse disco tocando violão, os arranjos já estavam prontos então só fui la e toquei. Na verdade, ele me chamou pra ter uma experiência em estúdio, acho que ele viu potencial em mim. Em 1980 eu tinha dezessete anos, em 1981 foi a minha estreia. No ano seguinte em 1982, o Bomilcar começou com o Pimenta e o Gerson Ortega, a galera que já vinha do De vento em popa e do Tanto amor, o Grupo Semente, um grupo que a maioria dos membros havia participado de Vencedores, mas não era um grupo de 161

Vencedores, era um grupo fixo, uma banda, eles entenderam que uma coisa era esse treinamento, esses grupos.

As pessoas participavam das equipes e acabavam gravando discos, mas meio que descaracterizavam o trabalho no sentido de dar uma identidade. Como as equipes sempre trocavam, as pessoas perguntavam, mas a final, que banda é essa? cada ano é uma galera diferente, isso era parte da ideia, mas eles entediam que precisavam criar um grupo fixo. Então, o Semente é esse grupo. Eles me chamaram no ano seguinte, eu já tinha dezenove anos, só que assim, eu tocava violão mas no grupo já tinha Bomilcar que tocava violão e guitarra, o Pimenta tocava violão. Então, eu entrei no grupo como baixista sem muita experiência, mas foi muito legal porque fui estudar, falei: com esses caras aqui eu não posso fazer feio.

Entrei no CLAM, Centro Livre de Aprendizagem Musical, aqui em São Paulo, era uma escola muito badalada na época, minha professora pra você ter uma ideia foi a Gê Cortes, uma grande baixista brasileira. No Semente a gente gravou Plantando a semente em 1982, Fruto em 1985 e Criação em 1986. O Sergio Pimenta ficou doente em 1987 e faleceu naquele ano, a gente desencanou e o grupo acabou. Logo em seguida em 1988, eu fiz meu primeiro disco solo, o Salmos, ali eu comecei a trabalhar sozinho, em 1990 fiz Feito o amanhecer, Presença em 1996, Intimidade em 1999 e em 2008 o Somos um.

O senhor ficou de 1999 a 2008 sem lançar?

Em 2000 eu fiz uma coletânea de vinte anos e fiz uma outra em 2002, Surpreendente graça.

Teve o disco ao vivo em Orlando também, né?

Isso! em 2003 a gente foi em um congresso numa igreja brasileira em Orlando, a primeira igreja batista brasileira em Orlando, foi um evento muito bom, tava todo mundo lá, músicos com quem eu trabalhava, a gente aproveitou e gravou esse material.

Como é ser um músico cristão independente no Brasil?

É muito difícil, como é ser qualquer artista no Brasil. O Brasil nesse sentido é muito cruel. Eu nunca vivi exclusivamente da música, nunca tive coragem na verdade. Ouve momentos que eu vivi meio uma encruzilhada lá em meados da década de 1980, 82 a 85, foi toda essa experiência com o Semente, mas em 1985 já tinha a Igreja Batista do Morumbi, foi quando a gente produziu muita coisa.

Naquela época eu tinha uns vinte e poucos anos, vivi meio uma encruzilhada, era uma igreja grande que tinha recursos, tinha gente com visão na área artística. Teve aquela primeira conferencia missionaria e a gente fez um projeto de fazer um disco pra conferencia. Naquela época, uma igreja fazer isso era uma raridade, e deu certo, a gente fez um disco, a conferencia fez um sucesso, veio muita gente do Brasil inteiro, e ali o povo levou o disco cada um para o seu lar, foi um fator de divulgação muito forte, impulsionou muita coisa. Aí veio aquela coisa, né, vou viver só disso e tal. Mas em 1988 eu fui estudar fora, fui pra Inglaterra estudar inglês e sai do circuito, e é interessante porque diferentemente de hoje que você pode fazer isso e continuar conectado, um ano desconectado era muita coisa. Então, quando voltei um ano depois, muita coisa tinha mudado, as conexões, as pessoas e aí também toda essa coisa do gospel, né. Foi quando eu voltei que a coisa deu uma guinada, tomou outro rumo, eu sempre vivi nessa coisa, vou, não vou, mas nunca fui de vez. Eu não me 162

arrependo, tive outros aprendizados, a gente vai desenvolvendo outras habilidades e conciliando essas coisas.

O artista está sempre em transito nesses dois mundos, né? Em um mundo mais sólido, de querer ter uma vida mais “normal” e o sonho do ofício, da arte, da música.

Sim, mas aqui é muito complicado, talvez em outro lugar, num país mais estável, se eu tivesse feito o que fiz num outro lugar, talvez teria ido muito mais longe.

Mas essa instabilidade não é justamente o combustível para a criação? porque se artista está muito em paz, muito sossegado ele não cria.

Sim! Gosto muito da biografia do Georg Friedrich Händel, um compositor barroco do século XVIII, a história dele é incrível, é o autor do Messias, aquele oratório, aquele musical do . O Händel tem uma história muito interessante, ele nasceu na Alemanha, filho de um médico, tinha uma vida boa, começou a estudar música muito cedo, todo mundo via que ele tinha talento. Aos 18 anos já era o organista oficial da cidadezinha que morava na Alemanha, mas ele não se sentia satisfeito e saiu da Alemanha e foi para a Itália, isso no século XVIII, um cara que falava alemão aprender italiano. Foi pra Itália, teve que aprender italiano, se enturmar na Itália. Começou a fazer música, ter contato com a música da época que era diferente da música alemã e depois de vários anos na Itália obteve uma certa notoriedade e passou a ser reconhecido como músico. Aí depois ele falou: não vou ficar aqui não, vou para a Inglaterra. E foi pra Inglaterra, teve de aprender inglês, se enturmar, enfim. Vários anos depois começou a ter notoriedade na Inglaterra, começou a escrever e então criou esse estilo musical oratório, que não era uma coisa comum na época, então, além de tudo, ele era um cara que inovava artisticamente.

Pra você ter uma ideia do alcance da obra dele, ele está sepultado na Abadia de Westminster, lugar onde são sepultados os heróis nacionais da Inglaterra. E a trilha sonora das cerimônias de coroação inglesa desde o século XVIII, período de vida dele, é Händel. Tudo que é tocado nas cerimonias de coroação foi ele que escreveu. Esse oratório Messias é o mais famoso, mas tem outros, esse é o mais famoso por conta dessa música Aleluia. Ela foi apresentada pela primeira vez em Dublin, Irlanda e reza a lenda que ao final do oratório, quando ele toca Aleluia, o Rei se coloca de pé ao final da peça e todo teatro se coloca em pé, de modo que isso hoje é uma tradição hoje, ir assistir Messias, na hora do Aleluia as pessoas ficam em pé. No século XVIII a Inglaterra era o que é os Estados Unidos hoje em termos culturais, pra acontecer no mundo tinha que acontecer lá, e ele aconteceu. Ele é um exemplo de reinvenção, um cara que se reinventou duas vezes, acho que a gente meio que vive isso também, eu pelo menos sempre procuro essa reinvenção.

O que distingue a sua produção musical da música conhecida como gospel, o senhor vê alguma diferença?

Eu vejo! Quando comecei com a música, minhas canções e talvez as mais conhecidas são canções que chamo de litúrgicas, foram escritas para serem cantadas nas celebrações, tem um teor bíblico, textos bíblicos adaptados, algum conceito bíblico que a gente desenvolve num texto poético. Até 1999, o Presença é um disco que tem muitas dessas canções, Ajuntamento, Amolece meu coração, essas canções são canções litúrgicas. Em 2000, um disco seguinte ao Intimidade, têm algumas canções que não foram feitas pra serem cantadas em igrejas, são canções cujo teor são baseados nas escrituras mas não são canções cantáveis, são canções para as pessoas ouvirem. Ali eu já comecei um 163

movimento natural de não identificar mais meu trabalho exclusivamente como de canções litúrgicas, como faz o Adhemar de Campos, o Asafh Borba, autores de músicas exclusivamente para a igreja.

Eu senti que não era só isso, isso não me bastava, talvez seja um pouco dessa inquietação do Händel. E foi o que eu comecei a fazer na década de 2000, o primeiro disco que fiz na década de 2000, ainda inédito é o Somos um, foi um trabalho de pesquisa a partir do meu mestrado, estava escrevendo a dissertação sobre o De vento em popa e tive várias disciplinas interessantes que me levaram a um contato com essa tradição mística cristã, uma tradição muito pouco explorada, principalmente no protestantismo brasileiro muito influenciado pelos Estados Unidos. A tradição mística cristã, esse conceito místico, está presente nas três religiões do livro, Islamismo, Judaísmo e Cristianismo. No Judaísmo, tem a cabala, a mística Judaica. No Islamismo, tem o sufismo, uma corrente mística e no Cristianismo têm muitos personagens na história que se identificam com essa tradição.

Nessa tradição ocorre o seguinte: nós não podemos entender Deus intelectualmente, o caminho pra se chegar a Deus não é o caminho do intelecto e nem o da linguagem, das palavras, existe um caminho alternativo, fruto da contemplação, do silencio, por exemplo, muito comum nas religiões orientais, aquela coisa assim: vamos silenciar para ouvir Deus. E aí, como você chega a Deus se não é pelo intelecto e nem pela linguagem? você chega a Deus pelo amor, quando você ama você se conecta com Deus. O objetivo da tradição mística é que no final a gente se misture e vire tudo uma coisa só. Se você pegar na história do cristianismo, tem muita gente que bebe nessa fonte. Nesse meu projeto Somos um, somos um porque esse é o amago da proposta da mística, nos tornarmos um com Deus, somos um, nós e Ele e todos os que estão nesse mesmo caminho. Então, peguei o Anselmo da Cantuária, o próprio Agostinho personagens da história do Cristianismo que se identificam com a tradição mística, e mais recentemente no século XVII tem o São João da Cruz, a Santa Tereza de Ávila, São Francisco de Assis exemplos de personagens identificados com a tradição mística. São Francisco de Assis tinha aquela coisa de desmaiar porque via a Deus. Enfim, estudei bastante sobre isso, os personagens, aí escrevi o livro e fiz canções dedicadas a cada um deles.

Isso foi um choque para as comunidades protestantes, se bem que ninguém nunca me disse nada, mas as vezes eu ia tocar numa igreja divulgando esse trabalho e o pessoal falava assim: interessante esse trabalho que você fez sobre os heróis da fé. Nunca recebi nenhuma crítica, mas acho que algumas pessoas não entenderam direito e quem entendeu achou legal, e um detalhe, todos esses personagens são católicos, não são protestantes, isso não foi uma coisa proposital. Embora dentro do protestantismo haja uma tradição mística também embora pouco divulgada, é um assunto que não interessa. Aí eu fui pra esse lado e o próximo disco de 2012. Tudo que é bonito de viver, é um disco de música brasileira, se tem duas músicas que fazem menção a Deus é muito, o resto são canções de amor, aí o pessoal falou: agora o Jorge desandou mesmo. Depois fiz A poesia caminha com o Gladir Cabral, um disco que fala sobre as cidades do mundo. Então, fui pra outra direção, nesse sentido eu não me identifico com o movimento gospel porque o movimento tem essa marca de música de igreja, hora litúrgica cantada, hora música que se identifica ideologicamente com a igreja e hoje muito mais.

Há quatro anos fui à Holanda a trabalho participar de um congresso, fui trabalhar como interprete de um grupo de brasileiros, quando soube que iria pra lá na época estava tentando fazer o doutorado e falei poxa, será que eu consigo alguma coisa lá? Então agendei uma entrevista com um professor numa universidade no interior da Holanda, peguei um trem e fui pra lá, a gente sentou, o cara foi super legal. “Fale-me de você, o que você já escreveu, qual a sua ideia”. Ele me perguntou do mestrado, falei que tinha feito uma dissertação sobre um grupo de música evangélica que fizeram um 164

disco que dialogava com a cultura brasileira. Ai ele falou assim, não foi ofensivo, mas foi uma questão técnica: é sobre cultura.

O gospel é uma subcultura, a produção musical gospel, pelo menos nos moldes daqui, é. Agora você vê, tem a música gospel americana. O gospel americano você poderia chamar de gueto, tem uma linguagem própria, as pessoas que ouvem de fora conseguem dizer ok, tudo bem, embora eles estejam dizendo uma linguagem religiosa, têm outros elementos, tem aquela questão do negro, de se afirmar, a questão do negro oprimido, escravo, a música era uma maneira dele se encontrar, de se libertar e de se afirmar como ser humano.

Então, o cara consegue usar essa lente, isso acaba ditando o que vem depois como cultura, o funk, o soul, tudo isso se desenvolve a partir daquela referência. E quando eu olho pro cenário gospel brasileiro ele não é referência. Uma coisa que me assusta profundamente é isso, Deivison, passar pela vida e daqui há cinquenta anos alguém ler minha biografia e falar: o cara era gospel, eu vou me revirar no tumulo se ouvir isso. Não é isso, eu não quero que seja isso.

E também tem uma outra questão mais profunda aí, me parece que a igreja Renascer em Cristo monopolizou o gospel no Brasil. Então, qualquer canção religiosa é automaticamente apelidada como tal.

Isso eu quero que você grave, porque eu vivi isso. De todas a pessoas que você conversou talvez eu seja a mais adequada pra falar disso. Em meados de 1980 teve aquela coisa do Semente. O Pimenta morreu em 1987 e a gente já tinha produzido aquelas coisas pra igreja do Morumbi, muita coisa legal. Depois continuei gravando com Vencedores, eles sempre me chamavam pra fazer os discos, cantar, sempre cedi músicas pra tocar e cantar. Então, fiz o meu primeiro disco e viajei pra Inglaterra.

Quando voltei no final de 1989, cheguei meio assim, e agora o que eu faço? por onde eu continuo? Conheci o Alex Dias Ribeiro, um cara que vale a pena você pesquisar. O Alex é evangélico, de Brasília, e na década de 1970 quando o Emerson Fittipaldi ganhou os dois títulos mundiais de fórmula 1 ele abriu muitas portas pra muitos pilotos brasileiros. O Alex foi para a Europa e se não me engano foi campeão Mundial de fórmula 2, ou foi em segundo lugar, não lembro. Ele foi pra fórmula 1, no final da década de 1970 mas não deu sorte, pegou uma equipe fraca que não se firmou, mas ainda correu duas temporadas na fórmula1, é um super cara importante. Ele fundou o Atletas de Cristo, um movimento muito famoso na década de 1980, aquela coisa de evangelismo de atletas, enfim. Na época ele frequentava a Igreja Batista do Morumbi e nós nos conhecemos lá. Quando voltei da Inglaterra em 1989 o Alex tinha se associado ao Estevam Hernandes, ao Carlos Abbud e ao Mingo, (Domingos Orlando) ex-integrante dos Incríveis, aquela banda que fez muito sucesso na década de 1970. Ele era um cara cheio de grana, tinha vários negócios, então eles formaram a RGC Produções em 1989 e a rede gospel de comunicações onde o Alex, o Mingo, o Abbud e o Estevam em sócios. O que aconteceu quando eu voltei da Inglaterra? em 1990 eles arrendaram uma rádio FM aqui em São Paulo, era a primeira vez que uma rádio FM transmitia programação religiosa em São Paulo, antes era só AM. Eles arrendaram parte do horário dessa radio pra transmitir uma programação musical cristã. Mas a rádio era uma muito decadente, quase fechando as portas, a única coisa que segurava a audiência era uma transmissão de corrida de cavalo às sextas- feiras à tarde. Era muito engraçado, mas era parte do contrato, no meio da tarde rolava a programação musical e de repente, interrompiam a programação pra transmitir a corrida de cavalo, era surreal, mas era o que tinha na época. 165

O que eles fizeram depois? dividiam os horários, o Estevam ficou com um horário, o Abbud não sei se tinha algum programa, o Mingo ficou com um horário e o Alex no domingo à noite, das 20h30 à meia-noite, era um programa de quatro horas, ao vivo. Quando voltei, o Alex me chamou pra ser produtor do programa dele, então todo domingo à noite eu ia pra rádio, era um programa muito legal, ele fazia entrevistas, tocava, é um cara super gente boa, piedoso, fazia uns programas muito legais e aquilo caia no coração das pessoas, então a radio começou a bombar.

E aí, me lembro de uma reunião antes da rádio entrar no ar que eles fizeram na casa do Mingo que morava em Alphaville naqueles condomínios, fizeram uma reunião lá, me chamaram, chamaram o Guilherme Kerr e todo mundo daquela época, o Paulo Cesar. O Alex falou assim: nós conseguimos uma rádio FM, pela primeira vez vamos entrar na cidade e São Paulo vai ouvir música cristã, mas precisamos da ajuda de vocês, dos discos, nós não temos nada pra tocar lá. E aí todos nós pegamos nossos discos doamos, ele fez uma pilha de discos e falamos: agora você pode tocar tudo que está aí.

E foi sim, eles pegaram aquele material, levaram pra rádio e começaram a rádio tocando tudo isso, tocava todo mundo e foi assim durante um tempo. Só que o que aconteceu? Quando a rádio decolou e o Estevam tinha o horário principal, do meio-dia às 16h, se não me engano, que eles dividiram a sociedade por cota, quem entrou com mais cota tinha mais participação. Então, tinha o horário nobre, do meio-dia às 14h com um programa chamado Extra, extra por conta daquela banda Katsbarnea e assim eles começaram a rádio, foram tocando de tudo e na medida que as coisas foram crescendo criaram o selo Gospel Records. Aí, começaram a gravar as bandas, gravaram o Resgate, o João Alexandre, Edson e Tita Lobo, uma dupla do Rio de Janeiro que é bem legal você pesquisar, eles fazem MPB, vieram da bossa nova, o som deles é bossa nova radical. Gravaram o Quarteto vida, um grupo à capela que o João Alexandre produziu e gravaram o Katsbarnea e o Oficina G3. Eles abriram um leque com todos os estilos e começaram a tocar, tocavam isso e tocavam nossas coisas também, nós fazíamos parte do repertório. Ouve um momento já no final de 1990 pra 1991 de uma grande guinada, foi quando eles realmente inauguram o movimento gospel, quando fizeram o primeiro S.O.S da vida na Praça da Sé, do qual eu participei inclusive, o primeiro e o último. A partir ali que eles romperam com o passado e disseram: nos inauguramos a história da música cristã. Eu sou testemunha ocular desse processo que desembocou no que nós vivemos hoje.

Por que utilizar elementos da cultura Brasileira nas linguagens das canções?

Porque eu vivo num país onde há uma diversidade cultural incrível, são mais de trezentos e cinquenta ritmos catalogados e eu desconheço qualquer país no mundo que tenha essa diversidade. Se eu sou um artista fruto dessa história, dessa diversidade, dessa pluralidade acho que eu tenho que representá- la, seria uma coisa totalmente estranha fazer uma música nos moldes do pop-americano, do pop- inglês.

Só concluindo. Quando eles deram essa guinada, a primeira coisa fizeram foi: o Alex sai, pouco tempo depois, em 1995, o Mingo falece e eles assumem tudo, ficam com tudo. O Abbud, o criador do selo gospel era o cérebro do movimento, mas quem tocava os negócios por um perfil mais executivo era o Estevam Hernandes. A participação do Abbud foi mais conceitual, de criar um selo, um nome para tirar a palavra evangélico e diminuir a rejeição das pessoas. Eu acho que ele está lá na Renascer ainda, nunca mais o vi.

Voltando à pergunta. As igrejas neopentecostais, o movimento evangélico no Brasil tem essa coisa de rejeitar a cultura brasileira, é aquela coisa da influência afro, e veja o que a gente está vivendo hoje 166

no governo? Tudo isso começa há trinta anos atrás e desemboca nesse momento de hoje, uma rejeição de tudo que seja cultural, diversidade, diferente. A igreja nem foi sempre assim, mas o movimento gospel contribuiu muito pra isso, nesse sentido de uniformização. Então, a música precisa ter a mesma cara, eles fazem uma coisa só. A minha música se idêntica com a música brasileira porque sou brasileiro e eu não quero abrir mão dessa herança, já tive oportunidade de tocar em outros países e é incrível como as pessoas recebem nossa música, a valorizam e falam: cara, isso é demais! e aqui as pessoas descartam. Ah, é bonito esse seu sambinha, a própria palavra já é no diminutivo.

Então essas tentativas de musicalidade e sonoridade diferenciada, essa intertextualidade com poetas e artistas da música popular, Caetano, Gil, João Gilberto e outros, são tentativas de criar um caminho alternativo?

O Ítalo Calvino tem um livro muito interessante sobre os clássicos. O que caracteriza uma obra artística ou literária como um clássico? Por que falam que A divina comedia é um clássico da literatura? Ele dá algumas dicas, uma delas é que o fato de uma obra ter sido escrita num tempo especifico não fica apenas presa e ela, consegue dialogar com diferentes gerações.

Tem um autor da sua área, dos estudos de literatura e linguística, o Mikhail Bakhtin, que fala do conceito de cronótopo que é justamente isso, da obra dialogar com a cultura da sua época, fazer menção ao passado e ao mesmo tempo mirar no futuro, é talvez uma tentativa dar mais perenidade à obra.

Minha ambição como artista é que a minha obra de alguma maneira se perenize, tudo passa, nós passamos e é como diria o Tom Jobim numa canção inspirada num livro do Sêneca: breve é a vida, longa é a arte. É isso! eu vou passar, mas o grande barato é tentar nesse tempo breve de vida construir uma história, deixar uma obra e daqui cem anos alguém eventualmente goste. Você não vai atrás de alguém que não fez nada, entendeu? daqui talvez cinquenta anos, seus netos se forem estudar, vão para a academia estudar os autores que você estudou. Agora desse gospel água com açúcar o que que vai sobrar? o que as pessoas vão estudar sobre isso? Por que eu faço esse tipo de música e estabeleço esses diálogos? Por que eu tendo fazer essas conexões com literatura? porque é isso que fica, você vai construindo numa teia cognitiva de coisas que vão dialogando entre si.

Alguns artistas como o senhor, o Gladir Cabral, o Carlinhos Veiga e outros propõe um diálogo com a cultura brasileira nas canções de forma a integrar fé, pensamento e arte. Com isso, surgiram algumas nomenclaturas: música brasileira de raiz cristã e música brasileira tecida na esperança, uma bandeira levantada pelo Marcos Almeida. Outros já afirmam existir um pós- gospel. O senhor vê nesses movimentos alguma potencialidade para forjar uma nova cultura cristã?

É uma questão mercadológica, eu tô fora do mercado, do mainstream, eu tô indo pelas bordas, eu sou da indústria desconhecida. Você vê gente que tem milhões de seguidores nas redes sociais, eu tenho poucos milhares, dependendo da plataforma então. Não tenho interesse em criar movimento nenhum. Se eu pudesse definir minha música seria uma música popular brasileira, é assim que expresso minhas convicções, minha visão de mundo nas canções, como todos os artistas fazem. Quando eu canto sobre os salmos, não estou fazendo uma música cristã. O Cristianismo se apropriou do Salmos e falou: agora vamos pegar a Torá e incluir na nossa herança de espiritualidade, mas a Torá não é nossa, é dos Judeus. Quando canto Salmos, eu não estou fazendo música cristã. Mas o que você está fazendo então? uma música brasileira que dialoga com uma espiritualidade ancestral de profundamente 167

riquíssima, humana que nem é a minha na verdade, é emprestada. E eu vou definir essa música como gospel? O que o gospel tem a ver isso? nada! nem o gospel americano, nem o daqui. O gospel americano faz a mesma coisa, os negros cantavam trechos dos salmos. Então é melhor não definir, falo que faço música brasileira e pronto.

Além da entrevista, vou analisar quatro canções suas: Poeta, Sim e não, Passárgada e Sonho não morre. Poderia falar um pouquinho por gentileza sobre cada uma delas?

Um cara que eu sempre converso é o Gladir Cabral, vou te passar o contado dele, ele é o cara das 1000 canções e 1000 canções não é pra qualquer um. Tem um cara, não sei se você conhece, o Paulo Cesar Pinheiro, anota aí, faça uma pesquisa sobre esse cara, é um compositor brasileiro carioca, foi casado com a Clara Nunes nos anos 1970, ela faleceu muito jovem. Depois ele se casou com uma moça de sobrenome Rabello, Luciana Rabello, isso, uma cavaquinhista, irmã do Rafael Rabello, violonista que morreu muito cedo também, um dos maiores violonista do Brasil, depois você dá uma olhada. Paulo Cesar Rabello se tiver 70 anos agora é muito, já escreveu mais 2000 canções, é um recordista mundial, tem mais de 1000 gravadas e mais de 1000 inéditas. A primeira música dele foi aos 14 anos, começou a compor e chamou atenção de um monte de gente, escreveu com Baden Powell, Pixinguinha, Pixinguinha já bem velho e ele com vinte e poucos anos. As parcerias dele são assim um negócio incrível, Pixinguinha, Baden Powell, tem um disco do Tom Jobim, Matita Perê gravado na década de 1970, as letras são todas do Paulo Cesar Pinheiro e do Tom Jobim. Aí vem Pixinguinha, Jobim, Lenine, Ivan Lins, Chico Buarque. O cara é um gênio. O Gladir é a minha referência na música cristã, tem minha idade e já fez mais de 1200, talvez 1300 canções, eu não tenho nem 400 e já acho muito, ele já fez o triplo, é bem produtivo, uma mente brilhante nessa leitura toda que você está fazendo, ele pode te ajudar bastante.

O senhor falou sobre a Clara Nunes agora, o Marcos Almeida tem um texto interessante em que diz ser um erro definir gênero musical considerando a crença religiosa do artista. Clara Nunes era do Candomblé, mas sua música não é classificada pela fé, ela pertence à música popular, então porque o artista evangélico só pode fazer gospel? Nelson Cavaquinho cantava Minha Festa e Juízo Final, canções de espiritualidade bastante acentuada. Jorge Bem, no refrão de canção Brother canta: “Jesus Christ is my Lord, Jesus Christ is my friend”, uma verdadeira confissão evangélica, entretanto, ele não gospel.

O Próprio Paulo Cesar Pinheiro tem uma música com o João Nogueira, pai do Diogo Nogueira, na década de 1970, chama-se Poder da criação, ele fala sobre o processo criativo: ninguém faz samba só porque prefere, força nenhuma no mundo interfere sobre o poder da criação. Não, não precisa se estar nem feliz, nem aflito. Nem se refugiar em lugar mais bonito em busca da inspiração. Ele vai desmistificando essa ideia de que o artista precisa de um ambiente. Mas por outro lado ele fala assim: não, ela é uma luz que chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente que acende a mente e o coração, faz pensar que existe uma força maior que nos guia, que está no ar bem no meio da noite ou no vago do dia, chega a nos angustiar e o poeta se deixa levar por essa magia e o verso vem vindo e vem vindo, vem uma melodia e o povo começa a cantar. E tem muito a ver com a experiência dele. Ele conta como é o ritual diário: levanta, toma um café, entra nos escritório, ele mora numa casa na zona rural, senta, pega uma folha de papel em branco e põe uma caneta em cima e fica esperando, e todos os dias ele escreve alguma coisa. O que quer que seja, já escreveu livro, poema, peça de teatro, música. É assim, ele não sabe que vai escrever mas fica esperando e não sai de lá enquanto não escrever alguma coisa, esse é o processo criativo dele, vale a pena conhecer toda a obra dele. 168

Gostaria que o senhor comentasse um pouquinho, por gentileza, sobre cada das canções que mencionei há pouco, a primeira é Poeta.

A canção Poeta eu fiz pensando em todas essas referências que tenho buscado, com as quais tenho buscado dialogar. Sentei pra escrever um texto e falei: quero homenagear os poetas e foi interessante, cada verso eu dedico a um poeta, um autor. No fim eu falo, Eu sou poeta, mas na verdade não estou falando que eu sou poeta, estou falando que essas pessoas todas o são. Mas ao mesmo tempo também me incluo, é um eu-lírico. Incluo João, o apóstolo, Ezequiel na lista dos poetas e Isaias também. Os profetas eram poetas, a linguagem profética, é uma linguagem eminentemente poética.

Aliás, isso eu aprendi com um autor chamado Eugene Peterson que parafraseou a bíblia A Mensagem. A linguagem poética é a linguagem da imaginação e mais de cinquenta por cento da bíblia é poesia. A descrição do Apocalipse de João é poesia, uma descrição poética. As visões de Ezequiel são descritas de um forma poética. Genesis é uma linguagem poética. Cinquenta por cento da bíblia é isso, é imaginação, então, quando falo dos poetas eu incluo os apóstolos e os profetas, eles também eram poetas. Independente se o cara for cristão ou não ele vai reconhecer que esses autores são poetas, é uma constatação literária. E até que ponto minha música se torna cristã? não deixa de ser um testemunho da minha fé, daquilo que acredito. Não é uma música de adoração, uma música litúrgica, os poetas fazem parte da minha formação, do que acredito. Esse é o caminho de uma música que a gente poderia chamar de cristã, uma música que expressa valores nos quais a gente acredita e que não estão necessariamente ligados à instituição religiosa. Eu tenho pensado muito nisso, é mais uma relação ética do que institucional.

Sim e Não.

Sim e Não! Então, eu falei da tradição mística, né, depois dá uma olhada nessa coisa de tradição mística é bem interessante. Sim e Não foi inspirada numa obra chamada a Nuvem do não saber, um livrinho bem fininho escrito no século XIII, muita gente diz ser de um monge inglês e é um dos clássicos dessa literatura de tradição mística. O livro trata sobre qual o caminho para se chegar a Deus. Ele fala sobre as disciplinas espirituais, a linguagem não nos leva a Deus, verbalizar ou escrever, isso não é o caminho para Deus. Como eu furo essa nuvem do não saber? o que me conecta ao divino é o amor, quando eu amo, estou conectado com Deus. Não são as palavras, não é linguagem, é o amor que se dá muitas vezes no silencio.

A letra da canção fala sobre isso, “tú és meu não saber, estás além do sim e o não”. Sim e Não representa justamente a linguagem, que pode ser uma coisa ou outra. A canção é inspirado na tradição mística, é um tema que me fascina, leio muito sobre o assunto, estou sempre querendo saber mais da espiritualidade e eu não vejo quase ninguém fazendo isso. O Gerson Borges talvez faça isso, ele conhece bastante, a gente dialoga muito bem. Mas fora ele, no meio evangélico protestante é raro. Entre os artistas essa é uma tradição mais divulgada entre os católicos. Eu e o Gladir fomos compondo canções sobre várias cidades do mundo, ora ele mandava melodia, ora mandava uma letra, a gente não tem muito essa regra, vamos fazendo ao sabor do vento. Ontem ele me mandou uma letra, eu fiz uma música, às vezes eu mando a letra e ele faz a música.

E como isso é difícil, né. Às vezes a melodia nasce primeiro, aí depois colocar melodia em cima de uma letra nem sempre é uma tarefa fácil. 169

Isso é pratica, você vai achando os caminhos, quanto mais fazemos menos difícil fica. Nós fizemos várias canções sobre várias cidades e faltava uma que final que a gente decidiu que falaria de muitas cidades, falamos de vários lugares muito legais.

O senhor conhece o coletivo Candiero? Eles fizeram uma releitura da sua canção Pasárgada, ficou muito boa. Lá no Nordeste brotou uma cena musical evangélica que ninguém imaginava, tem um pessoal muito bom fazendo uma música muito boa por lá.

Eu viajo muito para o Nordeste, toco mais lá do que aqui. Recife eu vou todo ano, as vezes duas vezes por ano. Salvador também eu vou bastante. A canção Pasárgada é um exemplo dessa coisa do diálogo com a literatura, cita várias coisas nela, Nárnia, OZ, Atlântida, vou para terra sem mal.

Sonho não morre.

A gente pegou um trecho de um poema da Adélia Prado. A Adélia é incrível, católica e me parece assim bem religiosa, praticante, vai à missa e tal mas não está presa a isso. Se qualquer pessoa ler Adélia, mesmo que não seja religiosa vai falar: que coisa maravilhosa. Ela usa os termos, se refere a toda herança espiritual dela, mas não está à serviço da igreja católica. O Leonardo Gonçalves por exemplo, é um cara super legal, eu não vou criticar o Leonardo porque ele usa o termo gospel, ele é rotulado como gospel, não faz questão de fazer essa separação, está dentro da indústria, quando chegou o circo já estava armado. O próprio Marcos Almeida, as vezes torço pra ele chutar o pau e sair desse esquema de vez. O João Alexandre é um cara da minha geração e não está dentro do movimento talvez porque ele esteja identificado com a minha geração, agora esses caras que não estão identificados com a minha geração eu não sei qual o nível de comprometimento deles. Falamos da Adélia né, ela tem essa coisa dela que eu acho perfeita, a gente se identifica muito com ela, ela exercita a nossa espiritualidade, é importante na nossa vida e não há uma conexão institucional, é isso que faz toda a diferença.

Em 2012, o Palavrantiga foi pra Som Livre e ela os caras queriam rotular o som deles como rock gospel. Eles bateram o pé e disseram: isso não é gospel é rock brasileiro.

Jorge: E como você vê a minha geração, qual é a sua leitura do que leu, do que ouviu, como que você define?

Eu vejo o senhor, o Gladir Cabral, o Gerson Borges, o Carlinhos Veiga, o João Alexandre, o Guilherme Kerr e tantos outros como guerreiros. Nos anos 1990 e 2000, o gospel estava aí, a todo vapor, produzindo gente a torno e a direito e vocês continuaram tocando, produzindo, mesmo que de forma independente, estavam ativos, por mais que não tenham sido muito vistos, vocês continuaram lá, firmes.

Já há alguns anos, o senhor tem se debruçado sobre a influência do sagrado na música popular, sua própria dissertação de mestrado é fruto dessas reflexões. Existe algum trabalho que esteja desenvolvendo agora, o que está pesquisando no doutorado?

Eu me sinto um polímata, faço mil coisas ao mesmo tempo. Eu trabalho aqui no Mackenzie, mudei de área agora, a gente tem uma coordenadoria de arte e cultura lá. Tem muitos coros de terceira idade, infantil, cênico, pra jovem, universitário, coro de alto nível e os eventos que a gente organiza. Há dois anos fizemos um evento livre com orquestra e foi muito legal. Minha tese é sobre o auditório Ruy 170

Barbosa construído no final dos anos 1950, é um espaço muito interessante. Foi construído para atender a comunidade acadêmica, mas na época se tornou um polo cultural muito significativo.

Por exemplo, Jean-Paul Sartre, na única vez em que veio a São Paulo esteve na USP, no interior e numa noite de quinta-feira deu uma palestra no auditório Ruy Barbosa junto com a Simone de Beauvoir. Eu me interessei pelo projeto por causa dessa história, comecei a ir atrás pra saber quem mais esteve aí e a lista é enorme. Então a tese é sobre a importância desse espaço para o entorno do centro expandido de São Paulo na década de 1960.

O primeiro show fora do Rio de Janeiro da turma da bossa nova, capitaneado pela Claudete Soares e pela Alaíde Costa, duas cantoras paulistanas ainda vivas e que teve Vinicius De Moraes, Baden Powell, Nara Leão e João Gilberto aconteceu no dia 27 de julho de 1961 aqui no Ruy Barbosa. Ano que vem vai fazer 60 anos desse show. Foi interessante. Meu referencial teórico é a geografia e dentro da geografia tem a geografia cultural, uma coisa relativamente recente, tem 40 anos, ela procura olhar o objeto geográfico não por uma perspectiva econômica, mas numa perspectiva cultural. E dentro da geografia cultural tem outra geografia recente chamada geografia dos afetos, uma área que procura olhar o objeto na perspectiva do seu impacto no espaço geográfico, o que causa nas pessoas, na memória afetiva etc. Então, estou lendo essas histórias nessa perspectiva, marcou a vida de tanta gente, tanto esses eventos de cunho cultural, quanto os filosóficos.

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APÊNDICE C - ENTREVISTA COM ESTÊVÃO QUEIROGA

Você vem de um contexto religioso bem conservador. A Igreja Adventista não é assim tão aberta como são outras comunidades. Como você lidou com isso, como conseguiu ter um pensamento diferente do que circulava ali dentro?

Olha, não sei se foi uma coisa que eu consegui, eu me descobri já experimentando isso. A Igreja Adventista têm algumas características que eu acho que instigam a gente a pensar, ela preza pela análise crítica da interpretação bíblica, leva muito a sério a teologia. Eu cresci numa casa onde meu pai era um estudioso da bíblia e o simples fato de você estudar o texto bíblico com uma postura mais crítica e não simplesmente com uma interpretação convencional já te coloca dentro da possibilidade de desenvolver um raciocínio mais dialético, acrescento a isso às minhas questões familiares, minha relação com os meus pais. Eu cresci numa família que estimulava bastante o diálogo, eles não fugiam das perguntas mais difíceis. E sobretudo, o principal aspecto, o aspecto pessoal.

Eu sempre fui questionador desde pequeno, minha mãe fala que desde muito cedo eu já aprendi a falar com um português muito correto, a linguística sempre foi de todas as inteligências a que eu mais tinha e que onde busquei mais me desenvolver naturalmente. Eu nunca fui aquele menino muito habilidoso com as mãos, bom de bola. Gostava muito de questionar, conversar, ler, acho que isso tudo foi desenvolvendo uma postura mais crítica e que depois o interesse pela música acabou se juntando e trazendo alguns questionamentos. Será que música evangélica é isso mesmo? sempre que foi assim? será que existe outras formas de fazer e de expressar artisticamente?

Algumas coisas me influenciaram particularmente, por exemplo, minhas aulas de literatura. Sempre fui muito apaixonado por literatura e poesia. Fernando Pessoa, é o meu favorito. Na escola, eu gostava muito dos modernistas, da forma que eles brincavam com as regras, depois a poesia concreta e essas coisa de brincar com forma e tudo aquilo, a poesia cinética, essa coisa mais visual. Isso me instigava muito, falava: olha que liberdade, o aspecto criativo me instigava. O primeiro pintor que admirei foi o Salvador Dalí, olhava o Dalí e dizia: Nossa! Em Manaus não tinha museu de artes plásticas, mas tinham os livros, de vez em quando tinha acesso aos livros e admirava a técnica, a sombra, principalmente a expressão do Caravaggio. Gostava da criatividade do Dalí, da ruptura proposta pelo Picasso.

Fui descobrindo um campo infinito de possibilidades de expressão. Gostei muito de Legião Urbana na infância, a inteligência e a beleza das letras do Renato Russo, a inteligência das letras do Chico Buarque, essa coisa do letrista brasileiro é incrível, ele é muito inventivo, Aldir Blanc, Belchior, esses dois eu sou fã. Todas essas coisas foram me marcando. Um cara que me influenciou muito dentro do cenário musical cristão foi o João Alexandre. O João tem essa inteligência, essa sagacidade da letra e ao mesmo tempo uma musicalidade brasileira. Isso foi muito marcante de perceber, me emocionava, fugia daquele modelo mais norte-americano que a Igreja Adventista adotava como o padrão.

Claro que a igreja Adventista também tem alguns representantes, a Regina Mota, o Leonardo Gonçalves que nos anos 2000 veio com um disco muito ousado, livre, eclético nas expressões, eu já era adolescente mas ouvi demais esse disco, tudo do Léo eu sempre ouço, sou um grande admirador do trabalho dele. Dentro da igreja Adventista teve um cara que marcou muito, o Sergio Saas, um cara que trouxe essa musicalidade preta, norte-americana que ainda não era tão explorada dentro da igreja 172

com o Raiz Coral, foi uma revolução. O jeito de cantar americano, sempre demonizado e que nós sabemos, está ligado ao racismo, né. Esse caldo de música brasileira foi moldando minhas inclinações e interesses, na verdade não busquei, eu simplesmente reconheci, e tem todo um preço que a liberdade traz. Escrever e compor livremente tem seu preço, o preço de às vezes ter que encontrar um lugar que não existe para poder se expressar.

Você disse numa palestra ter sido uma criança muito livre, criativa, mas quando crescemos essa criança morre. Com as urgências que vida adulta, essa coisa mais inquieta, mais questionadora que temos enquanto criança se esvai, a gente acaba ficando mais resignado.

A criança fica dentro da gente, ela não sai da gente, acho que a repressão é um dos adubos que a Igreja Adventista tem culturalmente, um ambiente repressor, muito controlador. Tem a escola, a TV, a música e não é evangélica é Adventista. O Adventista é um evangélico dentro dos grupos dos evangélicos, da mesma maneira que e o evangélico se cerca de evangélicos na sociedade e de certa maneira se isola dos demais, dos católicos das outras pessoas, o Adventista faz isso, inclusive com os próprios evangélicos, isso eu digo culturalmente, não é parte da doutrina. O Batista é Batista, não é Adventista. Eu vejo que entre Batistas, Assembleianos, o pessoal da Quadrangular, existe uma certa troca. Por exemplo, eu casei com uma Batista e fui frequentar a Batista. O adventista não, se você casa com um Batista ela tem que virar Adventista. E a música é assim, têm muitas limitações, não pode tocar bateria, precisa tomar cuidado com a distorção da guitarra, com o jeito que canta, muitas coisas. Por outro lado, esse ambiente de proibição e repressão foi fértil para que surgissem outros compositores que vêm desse contexto e que são excelentes compositores. Tem o Léo que compõem mas não é o principal oficio dele, Felipe Valente, Thiago Arrais, Gabriel Iglesias, Jefté Salles, Deise Jacinto, Roberta Spitaletti, Jeferson Pillar, o pessoal do bairro novo, toda essa turma vem desse ambiente.

O artista é um recombinador, ele olha a realidade e diz: nao tá bom, vou fazer de novo, quero criar uma coisa nova, essa é a vida do artista. Tem gente que não tem essa necessidade, tem gente que canta mas não é artista, tem gente que toca mas não é artista, porque não é movido por arte, é movido por outros interesses, financeiros, eclesiásticos. Não estou dizendo que é errado ganhar dinheiro, só estou dizendo que é questão de prioridade, porque para o artista, mesmo sem viver da arte ele vive para a arte. O Brasil tem um exemplo clássico disso, o Guinga, que é um dentista ativo e é o Guinga, não preciso dizer mais nada, como é que tira a arte do Guinga? impossível.

Eu entendo que nem todo mundo vai frutificar dessa jeito, muitas pessoas tem esse desejo mas não tem coragem porque estão dentro de um sistema proveitoso pra elas no aspecto financeiro, prático, administrativo. Tem gente que realmente faz por que ama e gosta, tem gente que só gosta de cantar. Tem um movimento gigantesco dentro da igreja Adventista de quartetos. O barato desses caras é cantar em quatro vozes, tem o baixo, barítono e primeiro e segundo tenor. Pra muitas pessoas música é isso, eu entendo que cada um tem um olhar, quando o assunto é Reino de Deus ou como quer que você chame, ou quando o assunto é arte e música as perspectivas são muito diferentes.

Meu ponto em relação à música religiosa sempre foi o mesmo, não acho que temos algum problema com o que temos, temos problema com o que não temos, está faltando um pensamento livre em relação à música, à arte. Talvez desde o renascimento a arte religiosa não é vanguarda, raramente era vanguarda. Se um negócio faz sucesso hoje, daqui a pouco a igreja joga um açúcar em cima e lança 173

também. Esteticamente e poeticamente falando acho que a gente está muito mais atrasado em termos de texto, de descrever de maneira mais livre, faz falta isso que a gente não tem, faz falta o que é inovador, é disso que eu sinto falta.

Você falou sobre escrita agora, eu andei lendo o blog Terceira Margem do Rio e têm coisas muito boas ali. O Nossa Brasilidade, do Marcos Almeida, também têm textos muito bons. Terceira Margem do Rio é como se fosse uma terceira via pra pensar essas questões contemporâneas, né?

Eu acredito que sim. A Terceira Margem do Rio percebeu muito antes esse fenômeno da polarização, todo mundo que vive um pouco menos no automático já vinha percebendo que esse movimento de polarização aparentemente não tem mais volta. E claro, a Terceira margem do rio no contexto da polarização foi jogada à esquerda. Isso, curiosamente não faz tanto sentido, porque o próprio conceito da terceira margem é ser justamente um terceiro caminho, mais contextual, mais bíblico. Gosto da terceira margem, são meus amigos, participei a criação do selo, que era LG7 e depois se tornou A Terceira Margem do Rio.

Eu não tenho o perfil deles, eles são todos intelectuais, mestres, doutores. Eu sou um curioso, um artista curioso, gosto de flertar com outras expressões mais populares da arte, de me envolver com gente das mais diversas expressões, não me sinto totalmente representado em nenhum desses movimentos, mas ao mesmo tempo me sinto parte de todos eles. O Marcos Almeida tem o lance da música brasileira tecida na esperança. Ele de alguma maneira me inclui nisso e eu fico feliz, percebi o quão vasto é esse universo de possibilidades, parece mais ou menos o heavy metal que tem os seus subgêneros. Eu percebi que eram tantas as coisas pra nos dividir que decidi criar esse vínculo de irmandade mais universal, vou onde me chamam, canto onde me chamam, mas eu sou o mesmo, Estêvão Queiroga em qualquer lugar, com qualquer galera.

Obviamente tem outros, amigos. Amigo pra mim é no dia a dia, aquele que convive, pra quem eu abro meu coração e quem abre o coração para comigo. O Marcos é um amigo, Deise é uma amiga, a Roberta é uma amiga, eu não sei se isso faz sentido quando isso vira uma bandeira, um discurso, o som fala mais que o discurso talvez, é como a MPB. A MPB é um movimento, mas não tinha um presidente, um porta-voz, foi um fenômeno cultural acontecendo da mesma forma que o hip-hop e tantos outros movimentos culturais acontecidos de forma espontânea. A igreja ainda está muito presa à ideia de ter uma relevância cultural. Quando avalio a arte produzida a partir de pessoas que vem da igreja, o impacto da minha arte, por exemplo, o alcance ainda é muito limitado, porque o alcance é abraçado pela igreja, ela abraça, patenteia e diz, é meu. Esse artista é gospel? Então ele é nosso. Enquanto tivermos essa postura vai ser difícil chegar a algum lugar. É como se tivesse uma rede de restaurantes incríveis mas que só evangélicos comessem, não faz nenhum sentido ser um restaurante, não faz sentido ser hospital, escola, mas por alguma razão acham que para a arte isso faz algum sentido.

Você acha que pra se desvencilhar desses rótulos é preciso romper com a igreja? Já ouvi líderes dizendo que não é possível ter um ministério se não houver uma atuação comunitária, um ministério de louvor, por exemplo.

Primeiro: isso não é bíblico, a expressão ministério de louvor não é bíblica. Biblicamente, o ministério que existe é o da reconciliação, o único ministério o qual somos divulgadores, da reconciliação que 174

Deus fez conosco na pessoa de Jesus Cristo. O médico pertence ao ministério da reconciliação, o advogado, a empresaria, todo mundo, eu sou, você é. Essa obrigatoriedade de estar numa igreja local é como dizer: você não pode ser um bom medico se você não estiver na igreja local. Você pode ser um excelente artista sem estar em uma igreja local, inclusive falar coisas incríveis sem estar na igreja local. A igreja local é uma demanda para o indivíduo, não uma demanda pra te tirar da tua profissão, a não ser que você se venda como um sacerdote musical e financeiramente se divulgue como um sacerdote musical. Eu não sou um sacerdote musical, eu sou um artista, faço arte e como todo artista, falo do que vivo, do que é importante pra mim e não há sofrimento algum nisso, conflito algum, isso é muito bem resolvido na minha cabeça, eu sou um artista e canto aquilo que vivo, ponto.

E precisa ter Jesus nas letras?

Não, por algumas razões. Primeiro, não sou aquela pessoa que fica “amados”, não sou assim com os meus filhos, minha esposa, então não faz sentido vestir essa máscara lá fora. Coisas como: o Espirito Santo falou, o Espirito Santo veio e fez isso. Isso é muito difícil de materializar, o que a gente consegue avaliar da nossa espiritualidade e da espiritualidade dos outros são os frutos, e os frutos do Espírito que conhecemos são: amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. Ou seja, é a espiritualidade manifestada no ânimo que se prolonga mesmo em meio as dificuldades, numa bondade interior, numa bondade de ação. Eu sou falho, claro, minha espiritualidade é falha, mas eu não tenho esse desejo de mostrar às pessoas o que vivi de místico com Deus, isso é abstrato demais, difícil de materializar. É como você estar com fome e eu chegar pra você e começar a falar em línguas estranhas, isso não vai te alimentar. Eu entendo que a arte é alimento pra alma também. E o segundo motivo: se eu for verdadeiramente honesto quando falo com Deus, eu não preciso falar o nome Dele, porque se tiver que falar o nome de Deus numa canção para as pessoas saberem que estou falando de Deus, então eu estou falando isso para as pessoas e não para Deus. É como se eu fizesse um disco para uma pessoa amada, o nome dela é Paula, eu posso cantar uma música e dizer Paula, na segunda, meu amor, na terceira, seus olhos castanhos, quarta, vem, vamos comer um açaí, e são todas pra ela. Eu não preciso ficar o tempo todo Paula, Paula. Ela sabe que a canção é pra ela, fazer isso para os outros perceberem essa lógica não faz sentido. As pessoas tem direito de cantarem suas músicas como bem entenderem.

Você falou sobre a música brasileira tecida na esperança, existe alguma potencialidade nisso?

Quando eu tenho a necessidade de mostrar algo e as pessoas tem a preocupação de ver como eu estou fazendo isso, tem muito mais a ver com essa ferramenta de controle, de poder que é a comunicação e que passa pela arte. Eu acho que a música cristã faz parte de um projeto de poder que passa pelo controle de corpos, de mentes, pelo controle financeiro e por uma série de outras coisas. Então, toda revolução cultural tem sua trilha sonora, todo projeto de poder tem sua trilha sonora. Existe um segmento que apoia determinado grupo político e os valores estão ali o tempo todo. Acredito que exista a música que representa, a música que casa com um bom vinho, que harmoniza com um prato, a música que harmoniza com a pregação e uma música como a minha a minha que não vai harmonizar com muitos discursos por ai e tá tudo bem, entendeu? não tem problema, existe cardápio pra todo mundo.

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Gostaria que comentasse um pouquinho, por gentileza, sobre as canções Corre atrás do vento, A partida e o norte, Amanheceu e Tá

Corre atrás do vento esteticamente tem uma levada folk e ao mesmo tempo um certo swing nordestino, sobretudo na divisão das sílabas. A letra é muito inspirada nos textos de Eclesiastes, um livro bíblico que eu admiro. Depois ela ganhou essa introdução chamada Toada de Dedé que eu fiz com a minha avó que canta no disco. Dedé é o apelido do meu avô, a poesia de cordel é basicamente a história de vida dele, um homem que perdeu a mãe muito cedo, cresceu num ambiente bruto, mas que depois conquistou muita coisa. No final da vida, ele ainda se via como um menino, quase como uma criança. Engraçado como a vida é, a gente termina a depender do tempo e das circunstâncias onde finalizamos a nossa vida, terminamos como um bebê. A música tem uma levada de Maracatu. A produção é do Stênio Alencar, meu primo, um músico paraibano. A gente misturou um pouco desse folk com uma levada de maracatu com açúcar como costumo chamar, não é o original puro, mas está ali como uma influência nordestina. No final, entramos numa epifania e curiosamente no maracatu usa-se a expressão trovoada, aquele barulho dos tambores, aquela coisa apoteótica, o nome da música Corre atrás do vento acabou combinando. No meio, a gente colocou uma referência a Chico Science & Nação Zumbi, aquele assobio presente no arranjo da música maracatu atômico.

A partida é o norte é uma parceira minha com Jaime Alves, meu amigo, professor de português, um cara muito sensível, letrista, poeta, trabalhamos juntos nessa canção. Muita gente se identifica com a música porque a letra conta da história de transição e transformação. Esteticamente e sonoramente ela tem uma referência de toada, remete às toadas de boi-bumbá, muita gente não percebe mas ela tem essa levada. Também tem essa influência folk que nada mais é do que um violão dedilhado. No meio, tem a poesia, uma coisa que eu gosto muito, uma poesia inusitada que acaba se tornando uma marca registrada da canção. Uma canção até hoje atual, faz muito sentido pra mim.

Amanheceu foi composta num momento de grande descoberta, de grande revelação, isso me provocou muitas reflexões sobre como não conseguimos avaliar uma próxima realidade a partir da realidade que estamos. É como se na vida estivéssemos dentro de uma sala e precisássemos abrir a porta dessa sala pra entender o que tem dentro e fora. E como se fosse um parto. A canção reflete essa metáfora do parto, quando nascemos tudo acontece de uma vez, parece que as coisas não vão amanhecer, mas elas amanhecem em algum momento. Fizemos um arranjo que remetia a ideia do parto mesmo, uma coisa que vem chegando e explode numa epifania que, aliás, têm muitos pífanos na canção. É um arranjo que mistura essas referências brasileiras nordestinas com uma coisa um pouco mais pop. A introdução faz referência à festa do reisado, uma festa popular religiosa que homenageia os três reis magos e que fala da experiência de nascimento, do nascimento de Jesus. Então, há muitos significados ali dentro, é uma canção que eu gosto muito.

Tá uma colcha de retalhos interessante, ela têm quatro compositores, eu sou um deles, os outros três compositores nunca se encontraram pessoalmente. Então, eu fui fazendo um pouquinho com cada um e costurando tudo isso. São pessoas que tenho muita intimidade, são irmãos, o Olímpio Neto é meu irmão sanguíneo, o Jefté Salles e o Pedro Anversa são irmãos, amigos que não chamo mais de amigos, são meus irmãos. O tema da canção é muito delicado, muito íntimo e pra escrever sobre isso teria que ser com gente que eu tivesse liberdade e intimidade, porque ela mexe com uma ferida muito profunda que é essa relação da gente com a nossa mãe. A minha música acaba de uma certa maneira caminhando sobre alguns aspectos um pouco mais existenciais, psicológicos e que são universais, são 176

demanda universais, dores universais. Isso tudo acaba ocorrendo de forma muito espontânea. Eu estou curioso pra ver aonde essa canção vai chegar.

Esse ofício do artista é muito interessante, né, quando você traduz a sua dor você também está traduzindo a dor de outras pessoas também.

Inevitavelmente, cara! A gente se torna a voz de outras pessoas que acabam dizendo assim: puxa, era isso que eu queria dizer mas não conseguia. Da mesma forma, tantos outros artistas fazem isso comigo, são a minha voz, expressam aquilo que não consigo expressar.

Quais, por exemplo?

Milton Nascimento, Luiz Gonzaga, Bach, quem mais...nem sei dizer, Steve Wonder, Paul McCartney, Keny West, Kendrick Lamar, Emicida, Marcos Almeida, Tiago Arrais, Deise Jacinto, Marisa Monte. Muita gente, muitos artistas fazem isso comigo, pintores, diretores de cinema, poetas. Eles mergulham em si e trazem algo pra fora. E aí tem uma coisa curiosa, tão óbvia, mas as pessoas não percebem, não existe música emocionante, existem pessoas que se emocionam com música. Quando eu choro, é a minha lágrima que cai, não a da música, quando eu sinto emoção, ela é minha, não a da música. Então, não existe música, filme, livro emocionante, existem pessoas que se identificam com aquilo. A beleza que as pessoas enxergam é a beleza que está nelas mesmas, a virtude, está tudo dentro de quem enxerga. Então, a canção de uma certa maneira funciona como uma chave que aciona, que desbloqueia algo que está dentro da pessoa. Quando eu canto Tá e as pessoas se emocionam, elas não choram porque Tá é emocionante, choram porque lembram da mãe, da relação com a mãe. Essa emoção não é minha, nem da música, é de quem ouve. Então, isso acaba se tornando realmente um trabalho colaborativo.

Não seria uma experiência estética?

Sim, talvez seja, talvez tenha algo a mais, algo transcendental. Talvez a arte seja uma ferramenta espiritual em algum sentido, que promove uma transcendência. Acredito seja isso.

O que distingue a sua produção musical da música gospel, você vê alguma diferença?

Toda vez que alguém me pergunta se minha música é gospel eu pergunto o que você entende por gospel? dependendo da resposta eu digo que sim. Se a pessoa diz, por exemplo, é uma música que fala de Deus, como Se eu quiser falar com Deus, do Gilberto Gil, no final a gente vai percebendo o que é música gospel. Os Arrais lançaram em 2015 um disco chamado As paisagens conhecidas e eles não mencionam a palavra Deus em nenhum momento, mesmo assim, o disco é gospel. O Gilberto Gil fala de Deus na música dele mas ele não é gospel. O que a gente vai entender disso, o que é tido como música gospel é uma miscelânea estética de produções artísticas evangélicas, tudo que os evangélicos produzem é considerado gospel, independente do que seja, pode o cara cantar de amor, é gospel, pode cantar sem falar de Deus é gospel.

E mesmo as músicas fora do gospel que podem ter uma mensagem fortíssima, o crente vai falar assim: parece gospel mas não é. Então, eu chego à conclusão que o gospel no Brasil nada mais é do que uma definição mercadológica. Dentro disso existe vários gêneros. A gente vai ter uma música de adoração, 177

mas pode ter o Mauro Henrique, a gente até compôs uma música, uma exortação e ela é gospel. Você pode ter o Preto no Branco que já gravou coisas nessa linha, tem o Estêvão Queiroga, que lança o que quer que seja e é gospel. Quando eu estava na Sony Music, me marcou muito quando gravei a canção Caçador de mim do Milton Nascimento. A Sony music gospel divulgou, mesmo eu lançando Caçador de mim, a canção era gospel agora. Eu brinco que se eu gravar boquinha da garrafa, eles vão dizer: “cantor gospel lança boquinha da garrafa”. Eu entendi que essa é uma definição mercadológica que envolve uma miscelânea de expressões. Existe uma expressão majoritária que acaba me jogando em um lugar mercadológico chamado gospel alternativo, por mais que a gente dê outro nome as pessoas vão falar que é um gospel mais indie.

Eu tenho muitos amigos fora da música religiosa que cantam MPB dos quais me identifico e que se identificam com a minha música. Eu faço direção artística de artistas dos mais variados segmentos, me encanto com música que tem verdade. Admiro Marcos Almeida, como admiro Dani Black, como admiro Emicida. Tá todo mundo andando junto. Eu não brigo quando me apresentam: Estêvão canta MPB, Estêvão canta gospel, eu não discuto, afinal de contas isso é mercado, é só uma definição de mercado, quem consegue brigar contra o mercado? não é você que escolhe o seu público ou a sua prateleira, é quem te vende que vai dizer qual a sua prateleira. Pra que eu não fosse entendido como gospel eu teria que ter feito uma ruptura lá atrás, teria que ter dito assim, galera, eu não sou mais evangélico, aí se eu dissesse que eu não sou mais evangélico eles aceitariam minha música como não evangélica. Agora olha que absurdo, um gênero musical ser definido pela maneira como a pessoa vive, não pela arte que ela faz. Então imagina, eu canto rock, ah, vamos lá ver como é a vida dele. Ah, ele canta rock mas gosta de flores em casa, ele não tão é rebelde assim, então não pode ser rock. Não interessa se você é gay, hétero, usa droga, não usa droga, a estética é rock, o gênero é rock e o movimento cultural é rock.

Claro que dentro disso existem várias expressões, quando o rock era o grande gênero do mundo, tinha o Roxette e tinha o Sepultura, como dizer que Roxette e Sepultura são a mesma coisa? não são, mas de alguma maneira há uma teia que os une e essa teia não é a droga, a rebeldia, o satanismo como diziam as pessoas que fazia rock, uma grande mentira, têm muitos artistas do rock cristãos, de diversas religiões e outros ateus. Tem gênero que não é definido por nada que passe pelo som, você pode falar de Deus ou não, pode cantar, forró, rap ou música clássica, mas eles vão olhar para sua vida e perguntar: ele é cristão? então ele é gospel. A não ser que você faça uma ruptura, se fizer essa ruptura e não se associar mais ao movimento, você pode se tornar um artista popular.

Neste aspecto, eu vejo um paralelo interessante entre o seguimento gospel e o seguimento LGBTQI+ que leva em conta a vida e a representatividade fora. O hip-hop tem um pouco disso, uma questão identitária, você pode ser um rapper branco e bobo e ainda assim ser um rapper, mesmo que seja um playboy falando da vida de playboy, só que você vai ser um rapper ruim que não representa o movimento, mas mesmo assim não vai deixar de ser um rapper. Se você for cantar para o público LGBTQI+ e não for engajado com causa, dificilmente vai ser considerado um artista no seguimento. Os artistas LGBTQI+ podem estar dentro dos mais variados seguimentos, pode ser um artista LGBTQI+ sertanejo, um rapper, seja la o que for.

Imagina meu primeiro álbum, Diálogo número um, ele poderia ser o mesmo álbum do jeitinho que é, com as mesmas letras, a mesma música sem tirar nem pôr, mas se eu fosse gay e casado com um cara ele seria considerado um álbum de MPB, olha que coisa absurda, um álbum de MPB de um artista espiritualizado. Então, como que eu mudo o gênero de um álbum pelo que a pessoa vive e não pela 178

arte que ela faz? por isso eu entendo que a arte é o menor dos interesses para o seguimento gospel, é muito mais interessante para os que apitam esse negócio, o que se representa, o que se atesta, o ambiente onde isso vai ser executado, quais apoios terão, vínculos, alianças eclesiásticas desse som, quem está te dando respaldo para poder falar isso.

Você pega uma música do Marcos Almeida, se ele não fosse o Marcos Almeida qual gênero ele seria? Isso é curioso, como pode um gênero musical ser definido por aspectos não artísticos? A música gospel brasileira é uma miscelânea, uma representação sonora de um projeto de poder que passa por ensinar as pessoas têm que votar em certas pessoas, ouvir determinadas músicas, assistir determinados programas. Música gospel no sentido original é um gênero musical cantado nas comunidades pretas norte-americanas.

O gospel é influência de um dos maiores clássicos da música, People get ready, do The Impressions de 1965, composição do Curtis Mayfield. O Rod Stewart regravou. Na música gospel, a esperança é um tema principal. O soul quando surgiu tinha essa polêmica, diziam que era uma música de Deus com letras do diabo, no final das contas tinha uma proposta estética. O nosso gospel não tem proposta estética nenhuma. Aliás, existe aqui uma cultura canibal que vai comer e depois gerar o fruto e de si mesma. Olha a Pablo Vittar, quando lançou rajadão “a previsão do tempo diz que o céu fechou”. A Pablo nitidamente fez referência a uma música evangélica pentecostal que por sua vez tem uma forte influência do forró.

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APÊNDICE D - ENTREVISTA COM GERSON BORGES

Me conta um pouquinho sobre a sua relação com a teologia reformada.

Eu venho de uma família evangélica tradicional de herança pentecostal, meus pais se converteram na igreja evangélica, foram batizados e estão lá até hoje, com 77 e 78 anos respectivamente. Meu pai é pastor aposentado da Assembleia de Deus, eu passei minha infância na assembleia de Deus no impacto de uma espiritualidade fervorosa, uma vivência do evangelho real, uma simplicidade lá no Rio de Janeiro, minha cidade natal. Na adolescência, comecei a ler teologia, sempre li muito, inclusive lia a biblioteca do meu pai de teologia, e lendo alguns autores comecei a questionar aquele modelo de eclesiologia, o tipo de igreja, estrutura, comecei a questionar.

Foram dois questionamentos: questionamentos teológicos, principalmente em relação à eclesiologia, o modo de ser igreja. A Assembleia de Deus é uma igreja episcopal, assim como a Metodista, a igreja Católica, os Anglicanos, tem um bispo que exerce autoridade e coordena uma serie de pastores de uma região. Não estou dizendo que isso seja errado, mas na minha adolescência isso me incomodou, eu era muito mais a favor e uma estrutura que depois vim conhecer, mais congregacional, mais batista, onde a assembleia local se reúne, pelo menos em tese, e decide o rumo da sua caminhada, quem vai ser o pastor, como usar os recursos financeiros etc. Fui entender que o movimento batista começa no anglicanismo, uma das questões desse movimento foi afirmar a independência da congregação local. O rei não seria mais o chefe da igreja, o chefe da igreja é Cristo e um bispo não ia dizer como a igreja local ia se comportar, viver, e sim a própria congregação, esse é um dos pilares do movimento batista. Os outros são a separação de igreja, Estado e por ai vai.

Então, na adolescência eu vivi uma crise, a espiritualidade pentecostal me atraia pelo fervor, pela realidade como os irmãos viviam o cristianismo, embora questionasse os excessos, achava os excessos de dons espirituais perigosos, não estou falando nem do neopentecostalismo, estou falando dos anos 1970, do pentecostalismo clássico. E a outra crise tinha a ver com a questão dos usos e costumes, uma visão muita dicotomia. Crente não ouvia música popular, não jogava bola, não usava bermuda. As mulheres tinham que usar cabelo cumprido, se bem que depois eu vi isso na própria igreja batista, as mulheres não podiam usar calça comprida no culto. Depois fui conhecer outros ambientes batistas em que não se podia usar barba. Não tanto pelo legalismo pentecostal mas pelo legalismo interno mesmo.

Na adolescência vivi uma crise tanto teológica quanto espiritual. Comecei a frequentar a igreja batista e a igreja congressional, duas linhas próximas, ambas marcadas por uma teologia mais próxima da herança reformada, calvinista. Quando a gente fala de calvinismo, as pessoas vão logo pra doutrina da salvação, a questão da predestinação, se é pelas obras, pela graça, se o batismo é por imersão ou aspersão, isso é um ponto, dos batistas não batizar crianças. O batismo por imersão é um dos pilares defendidos pelo movimento, o chamado anabatismo também, batizar de novo, você vinha de uma tradição de prospecção que batiza criança, aí quando você ia pra uma comunidade batista era exigido que você fosse batizado de novo. A palavra anabatista significa isso, rebatismo. O que mais me encantou na proposta reformada não foi a questão soteriológia, percebi uma lente teológica, uma chave muito mais abrangente do que a visão anabatista ou pentecostal clássica.

Comecei a ler o próprio Calvino e me impressionou nas Institutas o quanto ele citava os clássicos, o quanto ele citava com fluência e com naturalidade. Você já leu C.S Lewis? Ele cita o tempo todo os 180

literatos, ele era um erudito, eu falei: esse cara entende de teologia, da tradução teológica, ele leu a bíblia, os teólogos, Agostinho, os pais da igreja, mas também leu os poetas, Aristóteles, Platão, os Latinos, Ovídeo, Cícero. Calvino é muito moderno até hoje, se você ler as Institutas numa tradução da EDUSP você fica impressionado. Se você ler Tomas de Aquino ou Agostinho do século quarto é difícil de entender, porque é um outro jeito de pensar, de escrever, não chega a ser barroco mas é estranho, é diferente do tipo de texto iluminista, moderno, racionalista e Calvino tem isso. Ele tinha formação em direito, fez mestrado em letras sobre a obra de Cícero. Calvino não tem formação teológica. O Calvinismo, ou melhor, a teologia reformada, lida com a sociedade, com a nossa interação com a sociedade, com a questão da cultura e da arte de uma forma que o protestantismo evangélico, pentecostal, batista, tradicional não lida. Não estou nem me referindo aos presbiterianos, têm presbiteriano muito conservador em relação à cultura, às artes, à música. Então, o que me atraiu na teologia reformada é que ela vai muito além da superação, ou da ideia que eu possa merecer a salvação, foi a descoberta de um sistema teológico mais amplo, moderno e ao mesmo tempo com os pés na tradição.

Nesse contexto, ainda não tinham essas igrejas chamadas de neopentecostais. Nessa época, como eram os louvores nas igrejas?

Eu já dei um curso chamado história da música cristã em alguns institutos de teologia no Brasil, e as pessoas com menos de trinta anos podem achar que era uma banda, oito músicas, uma iluminação diferente e o estilo pop-rock, U2, Austrália. Nada contra U2, mas as pessoas acham que música evangélica sempre foi assim e não é verdade. Nos anos 1970, as igrejas históricas tanto no pentecostalismo histórico quanto nas igrejas chamadas históricas Batista, Presbiteriana, Metodistas, Congregacionais, Anglicanas fazia-se muito uso de hinários, uma liturgia tanto nas Assembleias de Deus na minha infância, quanto na igreja Batista e Congregacional. Na minha adolescência, o pastor dirigia o culto e cantava três hinos do hinário, no meio do culto tinha participação dos grupos, jovens, irmãs, tinha uma banda que tocava, um coral e era assim, isso falando da liturgia.

Fora do culto, tinha uma produção musical anos 1970 bem variada. O brega da rua Conde de Sarzedas em São Paulo é um bom lugar pra comprar livros, mas nos 1970 e 1980 era a Nashville brasileira. Nashville é aquela cidade americana onde está centrada 80% das gravadoras, escritórios, editoras, a indústria musical americana está lá. A indústria de software, de startup, de T.I nos Estados Unidos está la no Vale do Silício. Detroit foi assim com o automobilismo, hoje não é mais, assim como aqui no ABC, já foi também e agora está deixando de ser. Onde nos Estados Unidos fica concentrada a indústria do music business? em Nashville. Assim como Hollywood, a indústria de cinema, Nova York já foi um cenário do Jazz, Nashville é a capital americana de indústria fonográfica.

Na Conde de Sarzedas nos anos 1970 deveria ter uma dezena de gravadoras, Doce harmonia, Bom Pastor do Luiz de Carvalho Filho, o pai dele era o dono da gravadora. A música produzida era uma música brega evangélica que mirava no sertanejo, na música caipira e que mirava nas músicas bregas que tocavam nos programas de auditório do Silvio Santos, do Bolinha, antepassados do Raul Gil, era uma música eminentemente brega.

Essa figura do músico evangélico nos anos 1970 era muito caricata?

Não, era muito forte, especialmente entre o público evangélico de baixa renda, sem muita instrução. Tinham artistas, uns estão aí até hoje, Shirley Carvalhaes, Ozeias de Paula, Victorino Silva, Orlando Silva, Feliciano Amaral, um dos maiores cantores evangélicos brasileiros, esse ano faria cem anos, 181

uma espécie de Cauby Peixoto evangélico, a estética da canção era aquele vozeirão. A música evangélica até os anos 1970 era uma cópia dessa música popular do rádio, sertanejo brega, ou os cantores da rádio nacional.

O senhor tem alguma memória da música religiosa no contexto militar? Pergunto isso porque o professor e pesquisador brasileiro Laan Mendes de Barros fez uma importante pesquisa sobre a canção de fé no início dos anos 1970. Ele faz duras críticas ao grupo Vencedores por Cristo que se utilizaram de um slogan da ditadura militar na capa de um disco. Enquanto o slogan político dizia “ninguém segura esse país”, o grupo dizia “ninguém segura Vencedores por Cristo, fazendo esse uso.

É uma interpretação ousada, conheço o Jaime Kemp, está vivo ainda hoje, ele não me parece nenhum pouco politizado, pró direita, pró ditadura. Ele é um missionário, veio dos Estados Unidos pra cá. Era comum essa coisa do Movimento de Jesus na Califórnia anos 1970. Você ia lá no verão, fazia alguns cursos e cantava na equipe daquele ano. A igreja Palavra da Vida faz isso até hoje. Vencedores não era uma banda fixa, de quatro amigos, cada ano tinha uma formação diferente, alguns se tornaram missionários e tiveram uma caminhada de discipulado, era interdenominacional, pré-eclesiástica e era muito vanguarda pra apoiar a ditadura. A ditadura foi de direita e a direita é conservadora. A Assembleia de Deus onde cresci era muito mais inspirada na ditadura, não só a Assembleia como também as denominações históricas, Batistas e Presbiterianas.

Rubem Alves foi denunciado pelos próprios colegas presbiterianos. O Darci Dusilek, pastor batista do Rio de Janeiro, teólogo, escritor, tem um filho que fez um trabalho interessante sobre como boa parte dos batistas foram favoráveis ou indiferentes à ditatura militar. O Guilherme Kerr, é meu amigo até hoje, foi um dos meus mentores. Se você pesquisar a obra do Guilherme, em certos momentos, as letras são bem engajadas socialmente. O Sérgio Pimenta era sargento do exército, mas só era sargento, era uma carreira, ele não tinha um apego à visão militar, até porque em 1977 ele entra em Vencedores. A reabertura começa com o Figueiredo em 1979, lembro bem disso, tinha uns 10 anos. Vencedores influenciou muito as igrejas a mudarem a sua liturgia. Eu comecei a questionar a minha liturgia e o jeito como a minha igreja era por causa de Vencedores, eu falava: eles têm bateria, tem guitarra e aqui é autoritário, o pastor proíbe. E olha esses caras, todos barbudos, olha essas letras. Tudo aquilo foi influenciando a gente, foi uma renovação a ponto de dizer: chega dessa liturgia velha, dessas barreiras, desse formato.

E é interessante que hoje, eu por exemplo, tenho muito acesso à literatura, mais referências disponíveis nessa área. Naquela época não tinha quase nada.

É, a gente não tinha internet. Li muito Francis Schaeffer e C.S Lewis. A música de Vencedores me impactou muito, falei não! esse modelo é muito careta, muito conservador, qual é a base pra dizer que só pode ser assim? Isso me fez repensar uma série de questões.

Tem um autor holandês, o Hans Rookmaaker, amigo pessoal do Schaeffer, professor de história da arte da Universidade Livre de Amsterdã. Sua obra está sendo quase toda traduzida para o português pela Monergismo, edição capa dura, coisa linda. Esse neocalvinismo holandês que a turma do L’abri trouxe ao Brasil traz uma discussão mais ampla e profunda sobre cultura, arte e espiritualidade. O que acha dessas perspectivas teóricas? 182

Eu confesso a você que gosto mais do calvinismo do que dos calvinistas, digo isso porque esse movimento no que diz respeito à cultura, sociedade, junto à teologia missional com teólogos como René Padilha, teólogos latino-americanos e até americanos como o Tim Keller e o John Stott, nos ajudam a pensar uma teologia missional de uma igreja onde não há mais o princípio reformado do sacerdócio universal levado às últimas consequências. Então, nessa visão missional não é assim, tem o pastor, o missionário, o ministro de música, uns vão para o outro lado do mundo, outros vão para o outro lado da rua.

Eu acho que há um radicalismo, não nesse neocalvinismo holandês, mas nesse movimento calvinista. Suspeito que há nele, vou falar e você escolhe se vai usar isso ou não, uma certa presunção, entende? nós estamos certos e todos estão errados! Se você chegasse pra Calvino e dissesse: Calvino, você é calvinista? ele ia falar: não sou Agostiniano. Agostinho, você é agostiniano? Não sou Paulino, porque a base de Agostinho em muitos textos são as epistolas de Paulo. Aí você chega pra Paulo e pergunta: Paulo, você é paulino? ele vai dizer: sejam meus imitadores como eu sou de Cristo. Aí você chega pra Jesus e fala: você é cristão? Ele vai dizer, quem vê a mim vê o pai.

Então, quando a gente se apega a um rótulo, uma forma exagerada, ele vira um ídolo. Dentre os calvinistas, eu aprecio muito a linha do Tim Keller, ele não fica discutindo calvinismo, ele prega o evangelho, o evangelho bíblico conforme é descrito pelos reformadores. Mas ele não fica fazendo briga pelos cinco pontos do calvinismo, por isso, ele é mal visto pelos próprios calvinistas. É assim, se você não for desse modelo, você não é, e não é assim, é tolice, presunção, acho a presunção perigosa em qualquer área. A palavra de Deus diz que o orgulho precede a queda e Jeremias 17:9,10 o profeta diz que maldito homem que confia no homem, na força humana que faz do braço de carne a sua força. Você chega pra Jesus e fala: Bom mestre, bom eu? bom é meu Pai que está no céu, quando a gente começa a se olhar, tem gente no nosso meio que é apaixonada por si mesmo e ainda acha que é correspondido. (Risos)

Nos anos 1990, a Igreja Renascer em Cristo criou o termo gospel e, utilizando uma expressão gramsciana, perpetuou uma hegemonia cultural, monopolizou, tomou pra si, o termo gospel, esse jeitão especifico, letras mais intimistas, eu e Deus etc. Com isso, alguns artistas evangélicos que não se identificavam com o movimento acabaram ficando ofuscados. Como o senhor vê o gospel no Brasil? O que é gospel para o senhor?

Vou começar pela primeira pergunta, penso que essa hegemonia, essa pasteurização é própria do mercado que cria modelos, o mercado no sentido amplo. Você usou um autor marxista. Usando uma frase do próprio Marx, eu não sou marxista, mas também não sou adepto do capitalismo selvagem, enquanto houver capitalismo haverá crítica marxista e tantas outras críticas. Quem sou pra discutir economia?

Nos seus textos o senhor cita bastante o Theodor Adorno e os autores da Escola de Frankfurt.

Sim, eu fiz uma pós-graduação na USP sobre literatura e sociedade com base teórica na Escola de Frankfurt, li Adorno e Benjamin. Mas voltando à pergunta, tudo vira um produto para ser vendido, tudo pode ser reduzido a um mero produto. O Walter Benjamin tem um ensaio muito interessante sobre A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. O movimento gospel foi uma sacada comercial, se eles tinham uma motivação espiritual ou não eu não posso julgar, mas o resultado final foi um business, um negócio que fez mais mal do que bem. Nesse meu livro eu procuro discutir o 183

conceito de brasilidade e o conceito de evangelicalismo, duas coisas difíceis para um livrinho pequeno.

Foi uma sacada, um negócio, fizeram um bussines e geriram profissionalmente, geraram muita grana, nem tudo foi prejuízo. Uma coisa que falo no livro é que elevou-se o padrão estético, o padrão de produção. Eu vi nascer no Rio de Janeiro a indústria gospel. O estúdio onde gravei meu primeiro single aos 19 anos foi o mesmo estúdio e o mesmo técnico que gravou a Aline Barros, Ao rei dos reis consagro. A música estourou, foi parar na mídia. Só que eu fiz um disco de MPB, com letras muito diferentes das que ela cantava, não estou dizendo que sou melhor, só que o produto final dela estava dentro do modelo que o mercado aceitava. Depois levei esse disco à rádio Melodia FM no Rio de Janeiro, onde teve uma canção que estourou lá depois de um festival que fiz, uma canção de amor, pra casamento que fala: um dia terei você e então serei muito mais feliz, um imaginário, uma teologia, uma espiritualidade, uma poética totalmente diferente da música evangélica brega dos anos 1970 e do gospel que veio depois

Fiquei conhecido e com meus próprios recursos e com a ajuda de amigos gravei um disco alternativo. Marco uma reunião com o departamento artístico da rádio, disse que era o Gerson Borges, autor de Um só coração, o cara começa a ouvir e fala: não tem refrão, como a gente vai tocar essa música na rádio sem refrão? ou seja, tem que estar dentro do modelo que o mercado consagrou, o gospel, a música de culto, de estética pop brega para o culto. Mas, por outro lado, aquele amadorismo do começo, se foi. Se você ouvir os discos da Conde de Sarzedas dos anos 1970, são muito ruins musicalmente, mesmo o de Vencedores e outros grupos, Novo Alvorecer, mais à esquerda, grupos alternativos, mas tecnicamente muito mal gravados, as capas eram feias, o pessoal assim num coqueiro, foto amadora. Na época, o mercado não exigia tanta qualidade, era o que tocava na rádio Copacabana, nas rádios AM.

O gospel, criou um modelo, a mesma coisa que aqui no Brasil fizeram com o rock, o pagode e agora estão fazendo com o sertanejo e o funk. Como é ser um bom pagodeiro? usar óculos escuro, ter uma estética, um assessor de estilo, ter um jeito de cantar assim, assado. Se você está dentro daquele formato, cheio de tatuagem, tá dentro. Como é ser um bom cantor sertanejo? Ser bombado, sarado, tatuagem, calça apertada, camisa aberta, metrossexual. O mercado cria padrões. Como um cantor hoje vai estourar com um samba? ele não vai estourar se não fazer o jogo do pagode. Como um cantor sertanejo que ouviu Almir Sater, Renato Teixeira, Pena Branca & Xavantinho, os clássicos caipiras vai estourar? Se ele “goianizar-se”, ficar igual a essas estrelas por aí ele bomba. Com o gospel é a mesma coisa, criou-se um padrão estético. O Marquinhos [Almeida] fala isso, tem uma estética gospel que eu não subscrevo, não concordo. No Rio de Janeiro a gravadora MK também criou isso e eu vi muito artistas nascerem, alguns vi nascer e desaparecer. O Kleber Lucas eu vi nascer, recém convertido da igreja de um amigo em Niterói, a Alda Célia etc.

O gospel trouxe um desafio técnico e mercadológico, criou um padrão, mas um padrão pobre esteticamente e teologicamente. Artisticamente, o gospel trouxe um prejuízo muito grande pra quem queria fazer algo sem referência desse ambiente. As minhas referências foram Guilherme Kerr, Jorge Camargo, Sérgio Pimenta, João Alexandre, Aristeu Pires e vários outros que tentei imitar porque não tive opção. Minhas referências na música evangélica não eram as que tocavam no rádio, era Vencedores. Minhas referências na MPB não era o brega que tocava nos programas de televisão, era a MPB, do Chico, Caetano, Gil, Djavan, Milton e muitos outros. 184

Gostaria que falasse um pouquinho, por gentileza, sobre as canções: Dizem que sambar é pecado, Sobretudo quando chove, Flora flor e Discipulado.

Dizem que sambar é pecado está nesse meu livro de cabo a rabo, é uma redenção do samba. O livro me fez olhar para a forma como eu debatia essas questões, muito antes da sua idade essa força me coibia de apreciar a arte, a cultura, tudo que achava ser pecado, a velha visão dicotômica, sagrado, profano, mundano. Até que aprendi que nem tudo que é secular é profano e nem tudo que é religioso é sagrado. Uma doutrina muito importante e o que o meio evangélico ignora. Eu amo samba, amo bossa nova, aliás tem uma playlist, se você anotar as 12, 15 músicas que eu cito no livro dá pra fazer uma playlist bacana no Spotify, começando com a música do Jorge Ben Jor. Fiz essa canção na intenção de panfletar, de tentar diluir em duas estrofes e um refrão o conteúdo do livro, é uma bossa nova meio samba, dependendo da interpretação. No final do livro eu uso a letra da canção pra dialogar a questão Cristo e cultura, um paradigma interessante pra gente pensar também, eu gosto muito dessa música.

Sobretudo quando chove faz parte de um musical que fiz e olha como eu não sou gospel. O que um artista gospel faz em um musical? pega um tema e faz um disco inteiro. No máximo, tem Leonardo Gonçalves, meu amigo, que tem um disco inteiro em hebraico. O Leonardo é um cara gospel, ele dominou bem essa linguagem, como grande compositor, interprete e um produtor muito exigente, conseguiu um nível de excelência que o meio gospel não tem, e como ele tem um grande público conseguiu propor projetos que não se encaixavam no meio gospel. A gravadora bancou o disco em hebraico, mas boa parte da obra dele está dentro dessa estética gospel, muito embora, ele esteja melhor que 90% da geração dele. Essa canção eu compus e dediquei ao meu filho, Bernardo, quando estava ainda na barriga da mãe. No musical ela funciona como uma das falas do pai, o pai com saudade do filho que foi embora. Começa a dizer: se apenas uma escolha me restasse eu levaria o pôr do sol, ou se uma só herança me bastasse um rouxinol que cantasse a dor das distâncias e curasse essa saudade a me invadir enquanto eu canto, sobretudo quando chove.

É uma canção melancólica, sobre saudade, muita inspirada nas coisas do Clube da Esquina. Naquele ano, 2004, final de 2003 pra 2004, eu estava ouvindo muito o primeiro disco da Norah Jones, Come away with me, e compus debaixo do impacto daquele disco, isso acontece comigo, começo a ouvir muito um disco, compositor, artista e aquilo me inspira, não pra fazer algo igual, mas a compor coisas novas. É uma canção muito potente, as pessoas gostam muito e ela não se encaixa em nenhuma rádio gospel, é uma canção que pode ser tocada em qualquer radio de MPB. O baixista do Ivan Lins, meu amigo, já fizemos shows juntos, o Nema Antunes, sempre chora quando escuta essa música. Flora Flor, você ouviu a última versão do disco Os quatro amores que fiz com Leonardo Goncalves? O Leonardo é fenomenal, por isso que eu falo, muitos acham que ele faz música gospel, só que ele ama MPB, jazz, música erudita, ele é um gênio. Ele não é um cantor gospel, ele se utiliza da linguagem pop-gospel, mas é um artista muito maior, vai muito mais além.

Talvez o Leonardo Gonçalves também seja um produto dessa indústria que cria padrões. Se ele sair um pouco da curva, como fez o Kléber Lucas que tempos atrás cantou a canção Epitáfio dos Titãs num culto evangélico e participou da reconstrução de um terreiro de candomblé cantando Maria, Maria do Milton Nascimento já é considerado um herege. Então, essa figura criada pela indústria gospel acaba de alguma maneira sendo questionada por alguns artistas. 185

Industria é a multidão que aplaudiu Jesus no domingo de Ramos e na outra semana falou em crucifica- lo, é a massa corinthiana ou flamenguista que aplaude o jogador e depois manda crucificá-lo porque ele perdeu um gol. Flora Flor foi resultado de um presente que minha esposa me deu. Fiz aniversario e ele pediu a uns trinta amigos que gravassem um vídeo com depoimento, depois ela transformou isso num Blue-Ray e eu comecei a assistir, comecei a chorar, foi muito emocionante, vi amigos do exterior, não sabia que era tão importante assim. Entre eles, a filha do Guilherme Kerr, uma amiga muito querida que está em Portugal. Ela e o esposo se emocionaram ao me parabenizar, isso me tocou muito, eu pausei e falei, não, preciso ouvir devagar. Minha esposa foi pro quarto e eu falei: amor me dá um tempinho. Os meninos foram dormir, peguei o violão e em vinte minutos a música estava pronta. A letra diz: me veio algo agora, nao sei dizer se demora. Uma das canções que eu mais amo e foi a mais fácil de fazer, foi simplesmente a decantação, o registro de uma emoção muito grande que senti. É uma canção de amor, de amizade, canto ela em casamentos. Vou cantar ela no casamento de uns amigos em breve. Cantei ela no casamento da Sônia Muniz, viúva do Sérgio Pimenta. 30 anos depois ela se casou com um irmão aqui da nossa comunidade, congrega aqui com a gente, casou em 2017, uma história muito linda.

Discipulado é de 2009, é do meu álbum Nordestinamente, gosto muito desse álbum. Você vê como eu trabalho conceitualmente, não gosto de repetir as coisas, quem ouve um disco meu vai ver que cada projeto é um projeto. Meu projeto é fazer música pra igreja que possa ser cantada lá fora, ouvida lá fora, uma música de fora que pode ser cantada e ouvida na igreja, é um desafio artístico e teológico muito grande. Flora Flor é pra ser cantada lá fora, como pode ser cantada num encontro de casais, numa reunião de arte. Discipulado, eu estava terminando o projeto desse disco e sempre gostei muito do Lenine, desde o início do Lenine, essa canção tem uma influência grande dele na pegada, no beat, apesar de eu citar dezenas de artistas eu não cito o Lenine na letra, cito ele na forma, porque como diria Walter Benjamin, a forma do conteúdo é o conteúdo da forma.

O senhor falou sobre o Lenine agora, o Sergio Pereira do Baixo e Voz tem uma dissertação de mestrado muito interessante sobre o Lenine. Conversei com ele hoje de manhã e está pra lançar um livro novo: O músico profissional: conselhos e ideias para a carreira. Eu disse que viria aqui hoje te entrevistar e lhe mandou um abraço.

Outro músico e educador, engajado, né? O Serginho é fera! A letra de Discipulado é um registro, uma espécie de tributo que eu pago às pessoas que presto, que me influenciaram e ao mesmo tempo tento ensinar um pouco da história da MPB, ensinar um pouco da música feita a partir da igreja, música dos crentes pra quem não é crente. Eu toco no show com artistas e músicos não cristãos. Uma vez toquei na igreja e uma mulher disse, “eu conheço Caymmi, Gil, mas quem é essa antiga, Samba da antiga?” ela achou que antiga fosse uma cantora, falei: não, é da antiga, de antigamente. Pra você ver como os crentes ficaram um pouco alienados em relação à cultura brasileira. A ideia de Discipulado veio de um autor chamado Dallas Willard, um filosofo cristão americano que trabalha muito a questão do discipulado. Domingo eu preguei aqui na comunidade sobre isso, a palavra cristão aparece de três a cinco vezes no Novo Testamento dependendo da tradução, agora discipulo/discípulos aparece mais de 145 vezes. A nossa vocação é ser discipulo, aprendiz, seguidor, aluno de Jesus. E a gente prefere ser evangélico, católico, presbiteriano, congregacional e blá, blá, blá.

Existem hoje algumas nomenclaturas circulando na música feita por cristãos evangélicos. O Marcos Almeida fala em música brasileira tecida na esperança. O que acha dessas expressões? Elas podem vislumbrar novos ares na música evangélica brasileira para além do gospel? 186

Até onde eu sei, o que o Marquinhos quer dizer é que a música brasileira tecida na esperança vai além da música feita por cristãos, uma música pós-gospel, pra usar essa expressão.

E o senhor vê sustentação nessa expressão pós-gospel? O Marco Telles Belohuby criador do coletivo Candiero levantou essa bandeira em seu livro Vida após o gospel.

Eu ainda não li o livro dele, ele me enviou, mas devido ao acumulo de tarefas, ainda não consegui ler. Estou traduzindo um livro novo, escrevi outro esse ano, lancei um EP sobre Lamentações e aí não conseguir ler o livro, mas ele me enviou generosamente. Acho válida qualquer tentativa de elaboração de uma nova linguagem, ainda mais eu que tenho formação em letras, sou professor de língua e literatura, acredito na potência da poesia. Sou leitor de Adélia Prado, devorador de Guimaraes Rosa, Graciliano Ramos, Rubem Alves, dos verdadeiros pastores das palavras, dos poetas que cuidam das palavras. Qualquer uso poético, criativo pode ser uma ferramenta pra gente reelaborar o conceitual. Isso aconteceu com o apóstolo Paulo, o que ele viveu foi muito radical, muito impactante. Ele era um fariseu e o farisaísmo dele estava para o judaísmo como uma formação em Harvard está para um administrador, era um poliglota, dominava o pensamento judaico, farisaico, a seita política/religiosa que dominava o templo na época.

Ele falava hebraico, aramaico, latim, era um cidadão romano, falava grego e citava os poetas gregos como quem havia lido grego numa língua franca da época, como o inglês hoje. Nós estamos falando de um cara totalmente fora da curva, poderoso politicamente e intelectualmente. O projeto dele era acabar com a seita chamada cristianismo, acabar com os seguidores de Jesus. Só que Jesus aparece pra ele e diante daquela experiência mística ele se transforma. Em Gálatas, ele diz que ficou três anos no deserto tentando entender o que havia acontecido. Eu cito Paulo porque ele tenta criar uma outra linguagem pra descrever isso, se você ler as cartas de Paulo ele não usa a linguagem dos evangélicos, nao é simplesmente citação do antigo testamento, ele tem uma poética, começa a falar de Cristo, da fé e do evangelho de um jeito totalmente novo, a experiência dele foi tão profunda que ele precisou criar uma nova linguagem pra descrever tudo aquilo.

Então, se a gente quer superar esses padrões de música evangélica tradicional, música evangélica brega dos 1970, movimento gospel dos 1990 e o movimento que dialoga com isso que agora chamam de worship, uma importação exacerbada dos modelos de sucesso, se a gente quer superar isso sem abrir mão da nossa riquíssima cultura, da teologia cristã ortodoxa, do evangelicalismo e de uma visão de mundo que glorifica a Deus em tudo que a gente faz, a gente precisa de uma linguagem nova. Eu acho válido criar outra categorias. Estamos acostumados a ler autores que precisaram criar outras categorias. Quando Marx fala em mercadoria, quando Weber fala da ética protestante, quando Freud fala da introversão e do inconsciente coletivo, eles estão criando novas categorias. Se a gente quer descrever a música evangélica brasileira de uma nova maneira, precisamos de uma nova linguagem.

Isso tem a ver com o que Jesus falou, você não põe vinho novo em odres velhos, vinho novo precisa de um odre novo. Pra gente terminar, o seu trabalho me traz algo novo, me anima, estou num entre mundos, como o Guimaraes Rosa fala. Estou entre a geração do Guilherme Kerr, do Sérgio Pimenta, do Jorge Camargo, do João Alexandre, apesar de ser mais novo que o João, entre mim e o Guilherme somam-se quinze anos e entre mim e o Paulo Nazaré, Marcos Almeida e Estêvão Queiroga, quinze anos. Então, estou no meio de duas gerações, fui influenciado pela geração do Guilherme e influenciei a geração do Paulo e do Marquinhos. Estou num entre mundos, entre os que me influenciaram a fazer uma música pra fora da igreja e que pudesse ser cantada na igreja e uma música pra igreja que pudesse 187

ser cantada fora dela. O Paulo Nazareth estava no estúdio quando gravei A volta do filho pródigo há 16 anos, ele era moço ainda, não estava nem na faculdade, tinha 18 pra 19 anos e ele ainda lembra até hoje o quanto foi impactante pra ele estar alo naquela gravação.

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ANEXO 1 – REPORTAGEM FOLHA DE PERNAMBUCO, 01 DE MARÇO DE 2020 Para além do gospel Novos representantes da música de origem evangélica buscam manifestações mais ligadas às necessidades reais do público e que dialoguem com a cultura brasileira de fato

O crescimento do número de evangélicos no Brasil – que hoje já chega a 31% da população, segundo pesquisa do Datafolha - colocou em evidência todo um nicho cultural voltado para o segmento religioso. Assim como o perfil dos fiéis se diversifica, as canções consumidas por esse grupo também passam por mudanças, na tentativa de conquistar novos públicos ou se desprender de antigos rótulos. Para além da difundida cena gospel, que importa muitos elementos estrangeiros em sua estética, há músicos interessados em criar um novo caminho para a música de raiz cristã, mais conectada com elementos da cultura brasileira.

“Não acredito que exista uma música gospel no Brasil”, afirma o músico mineiro Marcos Almeida. A negação do ex-vocalista da banda Palavrantiga, que, desde 2014, segue em carreira solo, faz sentido. No Brasil, o termo originado de um tipo de canto religioso das comunidades negras dos Estados Unidos é comumente utilizado para denominar qualquer canção com conteúdo cristão. Sendo assim, a classificação é capaz de abranger os mais variados ritmos existentes, sem configurar como um gênero musical específico. O fato é que, pelo menos enquanto cena cultural, o gospel brasileiro existe e possui muita força. De acordo com o levantamento da Associação de Empresas e Profissionais Evangélicos (Abrepe), é um mercado que movimenta R$ 21,5 bilhões por ano. Os números vultosos vêm chamando a atenção de gravadoras e de serviços de streaming como o Deezer. A empresa francesa começou a investir mais no segmento após verificar que ele era o segundo mais ouvido em sua plataforma, ficando atrás apenas do sertanejo. Ao longo das últimas décadas, o cenário gospel passou por diferentes transformações. Após a consagração de nomes como Ana Paula Valadão, Aline Barros e Fernanda Brum, novos ícones musicais vêm caindo no gosto do público mais jovem. Priscilla Alcântara, ex-apresentadora infantil, representa bem essa modernização. Com milhares de seguidores em suas redes sociais, músicas com tom motivacional (que nem sempre fala diretamente de Deus), amiga de celebridades e visual tatuado, a cantora consegue fazer sucesso entre quem não é necessariamente evangélico também. O vídeo da música Girassol (parceria como humorista Whindersson Nunes), por exemplo, conta com mais de 12 milhões de visualizações no YouTube.

Mistura de ritmos

Para Marcos Almeida, o rótulo gospel não se encaixa no tipo de som que ele faz. O músico, que transita por gêneros como MPB, rock e folk, classifica sua música apenas como brasileira. “Vejo uma grande limitação no gospel do Brasil. Como é uma cena dependente do que acontece lá fora nos Estados Unidos, ela é subserviente. Os artistas não têm liberdade para fazer uma música brasileira dentro do cenário evangélico, porque isso soaria muito extraterrestre”, comenta. No ano passado, Marcos lançou seu segundo disco solo. Em Lá de Casa (Lado A), as canções transmitem mensagem otimistas, falando sobre amizade, sonhos e alegrias, mas sem apologia de cunho religiosa. Uma das músicas, Que onda, foi composta em parceria com Paulo Nazareth e a cantora Baby do Brasil. “O meu desejo é fazer uma música existencialista, que trabalhe os temas mais importantes da vida, 189

cantando de um jeito que a gente gosta de ouvir”, diz. O mineiro tem show marcado no Recife. Ele apresentará o novo trabalho no dia 21 de março, a partir das 21h, no Centro Cultural Cais do Sertão.

Nordestinos e com orgulho

A sensação de que o tal mercado gospel não contemplava a música produzida no Nordeste foi um dos impulsionadores do Coletivo Candiero. Criado no início do ano passado, o projeto agrega 13 nomes da cena musical cristã nordestina, com representantes da Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí, Bahia e Pernambuco. “Por muitos anos, quem ditou o repertório dominical das igrejas foi o Sudeste. Parece que as únicas plataformas musicais possíveis são as de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Mas sempre desconfiei que se a gente formasse um time com artistas na nossa região, as chances de nos sentirmos um pouco mais satisfeitos como resultado da nossa arte seriam maiores”, afirma o músico Marco Telles (PB), diretor-geral do coletivo. Há uma vantagem no fato de não existirem grandes artistas nordestinos em destaque na cena musical evangélica nacional, na opinião de Telles. “Como o Nordeste não participou da configuração desse mercado, agora podemos oferecer uma contraposta ao gospel, com uma preocupação gigante coma estética e o conteúdo. Temos oferecido, inclusive, uma nomenclatura diferente para o que a gente faz: pós-gospel”, aponta o músico, que é autor do livro Vida após o gospel (2018) em que crítica as práticas adotadas por esse segmento.

Telles concorda que ainda existe uma barreira entre as músicas cantadas nas igrejas e a cultura brasileira. A origem do problema, segundo ele, vem de um sentimento que abrange não somente o público evangélico. “É aquela sensação que o brasileiro tem de que tudo o que ele possui é inferior ao que vem de fora. Infelizmente, quando isso vai para o campo da religião, acredito que recebe uma intensificação. O cristianismo nos foi pregado por meio dos europeus e, posteriormente, pelos norte- americanos. Então, isso construiu na gente a ideia de negar os sons variados de origem indígena ou africana”, explica. O potiguar Júlio César, conhecido artisticamente como Julhin de Tia Lica, conhece bem o distanciamento das suas próprias raízes. Morador da zona rural do município de Jardim do Seridó, no Sertão, ele vem ouvindo as charangas (bandas de festas populares), seguindo os papangus e brincando com os mamulengos. “Deixei o que eu conhecia de lado quando entrei para a igreja, na adolescência. Tudo isso era demonizado no ambiente novo que estava vivendo. Só depois fui perceber a graça comum que existe nas canções que não são religiosas. Comecei a ver como Deus se manifesta há tempos na cultura popular. Isso acendeu uma chama dentro de mim e passei a sentir orgulho na minha identidade”, conta. Julhin lançou seu primeiro single, Oração de São Pedro, no ano passado, através do coletivo. Na canção, as batidas do maracatu e a influência do movimento Manguebeat são bem perceptíveis. “Minha ideia é lançar um estudo de ritmos nordestinos, como ijexá, ciranda, xote e baião, até o final do ano. São músicas mais poéticas. Quero que mesmo que não é evangélico possa ouvir e se deleitar com a minha arte”, declara. O Candiero produz, divulga e lança as músicas de seus componentes nas plataformas de streaming. O próximo passo é oficializar a existência de um selo musical. Os artistas promovem a segunda edição da Conferência Candiero na capital pernambucana, com workshop, mesa redonda e apresentações musicais. O evento será realizado em três dias, entre 5 e 7 de março, na Igreja Mosaico, localizada no bairro de Boa Viagem.

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ANEXO 2 – TERMO DE CONSENTIMENTO, MARCOS ALMEIDA

Termo de Consentimento livre e esclarecido

Dissertação. “Música brasileira de raiz cristã: produção de sentido da canção evangélica contemporânea”. Dissertação de Mestrado do pesquisador Deivison Brito Nogueira do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação Social - Área de Concentração: Processos Comunicacionais. Linha de Pesquisa: Comunicação Midiática, Processos e Práticas Socioculturais da Escola de Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Requisito para a obtenção do grau de mestre. Orientação: Prof. Dr. Herom Vargas.

Pergunta da pesquisa: como a música brasileira de raiz cristã, por meio da articulação de diferentes elementos na linguagem da canção, pode contribuir para gerar uma nova produção de sentido para além da música tratada como gospel. Objetivo: O objetivo principal desta dissertação é compreender em quais aspectos e em que medida essa produção cancional distingue-se da música gospel hegemônica numa nova produção de sentido na cultura midiática. Objetivos secundários: identificar como essa produção cancional se distingue da música gospel; Verificar se há elementos distintos, textos culturais e inovações no trabalho dos músicos; Analisar as letras das canções, musicalidade, sonoridade e arranjos a fim de encontrar diferentes diálogos; Compreender a motivação dos artistas em seguir um caminho alternativo, para além do gospel e; Descrever as características do gênero gospel e mapear as produções distintas da música evangélica contemporânea. Formato da entrevista. Entrevista realizada virtualmente por meio de um roteiro de perguntas abertas.

Benefício à pesquisa. A trajetória artística e experiência profissional do entrevistado na comunicação social e na cultura brasileira é de extrema relevância para o desenvolver da pesquisa e para compreender o estado da questão sobre a música evangélica contemporânea.

Confidencialidade das informações fornecidas. Parte das respostas do entrevistado estão transcritas no capítulo de análise da dissertação e nos anexos da pesquisa. Posteriormente, a dissertação estará disponível para consultas no banco de teses e dissertações da Universidade de Metodista de São Paulo e em volume físico na biblioteca Dr. Jalmar Bowden da Universidade Metodista de São Paulo.

Autorizações a) Você autoriza que suas respostas nesta pesquisa possam ser utilizadas em pesquisas futuras? ( X ) sim ou ( ) não 191

b) No caso de autorizar, deseja ser informado da utilização de suas respostas? ( X ) sim ou ( ) não

Acredito ter sido suficientemente esclarecido a respeito das informações que li ou que foram lidas para mim no questionário da pesquisa sobre a dissertação “Música brasileira de raiz cristã: produção de sentido da canção evangélica contemporânea”. Concordo voluntariamente em participar deste estudo e poderei retirar o meu consentimento a qualquer momento.

Marcos Almeida

Referências:

Resolução 466/12 do CNS/MS Modelo do Termo de Consentimento livre e Esclarecido – Cepunifesp. Disponível em: http://www.cepunifesp.com.br/.

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ANEXO 3 – TERMO DE CONSENTIMENTO, JORGE CAMARGO

Termo de Consentimento livre e esclarecido

Dissertação. “Música brasileira de raiz cristã: produção de sentido da canção evangélica contemporânea”. Dissertação de Mestrado do pesquisador Deivison Brito Nogueira do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação Social - Área de Concentração: Processos Comunicacionais. Linha de Pesquisa: Comunicação Midiática, Processos e Práticas Socioculturais da Escola de Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Requisito para a obtenção do grau de mestre. Orientação: Prof. Dr. Herom Vargas.

Pergunta da pesquisa: como a música brasileira de raiz cristã, por meio da articulação de diferentes elementos na linguagem da canção, pode contribuir para gerar uma nova produção de sentido para além da música tratada como gospel. Objetivo: O objetivo principal desta dissertação é compreender em quais aspectos e em que medida essa produção cancional distingue-se da música gospel hegemônica numa nova produção de sentido na cultura midiática. Objetivos secundários: identificar como essa produção cancional se distingue da música gospel; Verificar se há elementos distintos, textos culturais e inovações no trabalho dos músicos; Analisar as letras das canções, musicalidade, sonoridade e arranjos a fim de encontrar diferentes diálogos; Compreender a motivação dos artistas em seguir um caminho alternativo, para além do gospel e; Descrever as características do gênero gospel e mapear as produções distintas da música evangélica contemporânea. Formato da entrevista. Entrevista realizada pessoalmente por meio de um roteiro de perguntas abertas.

Benefício à pesquisa. A trajetória artística e experiência profissional do entrevistado na comunicação social e na cultura brasileira é de extrema relevância para o desenvolver da pesquisa e para compreender o estado da questão sobre a música evangélica contemporânea.

Confidencialidade das informações fornecidas. Parte das respostas do entrevistado estão transcritas no capítulo de análise da dissertação e nos anexos da pesquisa. Posteriormente, a dissertação estará disponível para consultas no banco de teses e dissertações da Universidade de Metodista de São Paulo e em volume físico na biblioteca Dr. Jalmar Bowden da Universidade Metodista de São Paulo.

Autorizações

a) Você autoriza que suas respostas nesta pesquisa possam ser utilizadas em pesquisas futuras? ( X ) sim ou ( ) não b) No caso de autorizar, deseja ser informado da utilização de suas respostas? ( X ) sim ou ( ) não 193

Acredito ter sido suficientemente esclarecido a respeito das informações que li ou que foram lidas para mim no questionário da pesquisa sobre a dissertação “Música brasileira de raiz cristã: produção de sentido da canção evangélica contemporânea”. Concordo voluntariamente em participar deste estudo e poderei retirar o meu consentimento a qualquer momento.

Jorge Camargo

Referências:

Resolução 466/12 do CNS/MS Modelo do Termo de Consentimento livre e Esclarecido – Cepunifesp. Disponível em: http://www.cepunifesp.com.br/.

194

ANEXO 4 – TERMO DE CONSENTIMENTO, ESTÊVÃO QUEIROGA

Termo de Consentimento livre e esclarecido

Dissertação. “Música brasileira de raiz cristã: produção de sentido da canção evangélica contemporânea”. Dissertação de Mestrado do pesquisador Deivison Brito Nogueira do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação Social - Área de Concentração: Processos Comunicacionais. Linha de Pesquisa: Comunicação Midiática, Processos e Práticas Socioculturais da Escola de Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Requisito para a obtenção do grau de mestre. Orientação: Prof. Dr. Herom Vargas.

Pergunta da pesquisa: como a música brasileira de raiz cristã, por meio da articulação de diferentes elementos na linguagem da canção, pode contribuir para gerar uma nova produção de sentido para além da música tratada como gospel. Objetivo: O objetivo principal desta dissertação é compreender em quais aspectos e em que medida essa produção cancional distingue-se da música gospel hegemônica numa nova produção de sentido na cultura midiática. Objetivos secundários: identificar como essa produção cancional se distingue da música gospel; Verificar se há elementos distintos, textos culturais e inovações no trabalho dos músicos; Analisar as letras das canções, musicalidade, sonoridade e arranjos a fim de encontrar diferentes diálogos; Compreender a motivação dos artistas em seguir um caminho alternativo, para além do gospel e; Descrever as características do gênero gospel e mapear as produções distintas da música evangélica contemporânea. Formato da entrevista. Entrevista realizada pessoalmente por meio de um roteiro de perguntas abertas.

Benefício à pesquisa. A trajetória artística e experiência profissional do entrevistado na comunicação social e na cultura brasileira é de extrema relevância para o desenvolver da pesquisa e para compreender o estado da questão sobre a música evangélica contemporânea.

Confidencialidade das informações fornecidas. Parte das respostas do entrevistado estão transcritas no capítulo de análise da dissertação e nos anexos da pesquisa. Posteriormente, a dissertação estará disponível para consultas no banco de teses e dissertações da Universidade de Metodista de São Paulo e em volume físico na biblioteca Dr. Jalmar Bowden da Universidade Metodista de São Paulo.

Autorizações

a) Você autoriza que suas respostas nesta pesquisa possam ser utilizadas em pesquisas futuras? ( X ) sim ou ( ) não b) No caso de autorizar, deseja ser informado da utilização de suas respostas? ( X ) sim ou ( ) não 195

Acredito ter sido suficientemente esclarecido a respeito das informações que li ou que foram lidas para mim no questionário da pesquisa sobre a dissertação “Música brasileira de raiz cristã: produção de sentido da canção evangélica contemporânea”. Concordo voluntariamente em participar deste estudo e poderei retirar o meu consentimento a qualquer momento.

Estevão Queiroga

Referências:

Resolução 466/12 do CNS/MS Modelo do Termo de Consentimento livre e Esclarecido – Cepunifesp. Disponível em: http://www.cepunifesp.com.br/.

196

ANEXO 5 – TERMO DE CONSENTIMENTO, GERSON BORGES

Termo de Consentimento livre e esclarecido

Dissertação. “Música brasileira de raiz cristã: produção de sentido da canção evangélica contemporânea”. Dissertação de Mestrado do pesquisador Deivison Brito Nogueira do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação Social - Área de Concentração: Processos Comunicacionais. Linha de Pesquisa: Comunicação Midiática, Processos e Práticas Socioculturais da Escola de Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Requisito para a obtenção do grau de mestre. Orientação: Prof. Dr. Herom Vargas.

Pergunta da pesquisa: como a música brasileira de raiz cristã, por meio da articulação de diferentes elementos na linguagem da canção, pode contribuir para gerar uma nova produção de sentido para além da música tratada como gospel. Objetivo: O objetivo principal desta dissertação é compreender em quais aspectos e em que medida essa produção cancional distingue-se da música gospel hegemônica numa nova produção de sentido na cultura midiática. Objetivos secundários: identificar como essa produção cancional se distingue da música gospel; Verificar se há elementos distintos, textos culturais e inovações no trabalho dos músicos; Analisar as letras das canções, musicalidade, sonoridade e arranjos a fim de encontrar diferentes diálogos; Compreender a motivação dos artistas em seguir um caminho alternativo, para além do gospel e; Descrever as características do gênero gospel e mapear as produções distintas da música evangélica contemporânea. Formato da entrevista. Entrevista realizada pessoalmente por meio de um roteiro de perguntas abertas.

Benefício à pesquisa. A trajetória artística e experiência profissional do entrevistado na comunicação social e na cultura brasileira é de extrema relevância para o desenvolver da pesquisa e para compreender o estado da questão sobre a música evangélica contemporânea.

Confidencialidade das informações fornecidas. Parte das respostas do entrevistado estão transcritas no capítulo de análise da dissertação e nos anexos da pesquisa. Posteriormente, a dissertação estará disponível para consultas no banco de teses e dissertações da Universidade de Metodista de São Paulo e em volume físico na biblioteca Dr. Jalmar Bowden da Universidade Metodista de São Paulo.

Autorizações

a) Você autoriza que suas respostas nesta pesquisa possam ser utilizadas em pesquisas futuras? ( X ) sim ou ( ) não b) No caso de autorizar, deseja ser informado da utilização de suas respostas? ( X ) sim ou ( ) não 197

Acredito ter sido suficientemente esclarecido a respeito das informações que li ou que foram lidas para mim no questionário da pesquisa sobre a dissertação “Música brasileira de raiz cristã: produção de sentido da canção evangélica contemporânea”. Concordo voluntariamente em participar deste estudo e poderei retirar o meu consentimento a qualquer momento.

Gerson Borges

Referências:

Resolução 466/12 do CNS/MS Modelo do Termo de Consentimento livre e Esclarecido – Cepunifesp. Disponível em: http://www.cepunifesp.com.br/.