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Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, Ramo de Estudos Românicos e Clássicos

José Saramago à luz de Northrop Frye: uma análise de O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim

Rafael Queiroz Bastos M 2020

Rafael Queiroz Bastos

José Saramago à luz de Northrop Frye: uma análise de O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pelo Professor Doutor Pedro Jorge Santos da Costa Eiras

Faculdade de Letras da Universidade do Porto setembro de 2020

Resumo

Na presente dissertação, pretendo analisar os romances O Evangelho segundo Jesus Cristo [1991] e Caim [2009] do escritor português José Saramago a partir de dois ensaios teóricos do crítico canadense Northrop Frye: “Crítica histórica: teoria dos modos” e “Crítica arquetípica: teoria dos mitos”. Nesses ensaios, pertencentes ao livro Anatomia da Crítica (1957), Frye desenvolve a teoria dos modos e a dos mitos literários como mecanismos de análise literária. Serão analisadas as escolhas temáticas e estilísticas de Saramago sob os preceitos teóricos do crítico canadense.

Palavras-Chave: José Saramago; Northrop Frye; Caim; Evangelho segundo Jesus Cristo; Anatomia da Crítica; teoria dos modos; teoria dos mitos

Abstract

In this dissertation, I intend to analyze the novels O Evangelho segundo Jesus Cristo [1991] and Caim [2009] by the Portuguese writer José Saramago through the theoretical concepts from the two essays “Historical critic: theory of modes” and “Archetypal criticism: theory of ” written by the Canadian critic Northrop Frye. In these two essays, published on the book Anatomy of Criticism [1957], Frye developed the theory of modes and the theory of myths as a mechanism of literary analysis. I will analyze the thematic and stylistic choices by Saramago under Frye’s theoretical methods.

Keywords: José Saramago; Northrop Frye; Caim; Evangelho segundo Jesus Cristo; Anatomy of Criticism; theory of modes; theory of myths

Agradecimentos

Agradeço primordiamente à minha família por todo o apoio e confiança dados à minha decisão de me aventurar internacionalmente. Também a eles e aos queridos amigos – tanto os que deixei no Brasil, quanto os que fiz em Portugal – por serem suporte nos momentos mais difíceis desse processo

Esse trabalho é produto da minha caminhada e devo essa conquista a vocês.

Índice

Introdução ...... 7

I. Northrop Frye e a Anatomia da Crítica ...... 9

1. A “introdução polêmica” de Northrop Frye ...... 10

2. Frye e os formalistas ...... 14

3. Frye, o cânone e os esquemas estruturalizantes ...... 18

4. Breves esquemas estruturalizantes: o pós-modernismo na literatura portuguesa ...... 21

II. O Evangelho segundo Jesus Cristo à luz dos conceitos ficcionais de Northrop Frye ...... 25

1. As imagens arquetípicas demoníacas e apocalípticas no Evangelho de Saramago ...... 26

2. O Evangelho saramaguiano entre o mítico e o irônico ...... 38

3. José, Pastor, Deus e Maria Magdalena e os modos ficcionais ...... 46

4. Os mythoi trágico e satírico: nemesis e pharmakos em Jesus ...... 55

III. Caim à luz dos conceitos teóricos de Northrop Frye ...... 63

1. As imagens arquetípicas em Caim...... 64

2. O paródico e o fabular em Caim como potencializadores do mythos satírico ...... 72

3. Caim e Deus e os modos ficcionais ...... 79

Considerações finais...... 84

Referências bibliográficas ...... 86

Introdução

A presente dissertação procura aplicar a análise teórica proposta por um nome fundamental da crítica literária à obra de outro nome fundamental da prosa literária ficcional. Se um oceano inteiro separa geográfica e culturalmente Northrop Frye (1912-1991) de José Saramago (1922-2010), esta dissertação pretende aproximá-los e interpretar a obra do português à luz da teoria do canadense. Como a pesquisa desenvolvida neste trabalho aponta, Frye sempre foi um admirador da elaboração de esquemas e diagramas que procurassem desenvolver um painel sinóptico da crítica literária. O objetivo de tal empreitada dedicada pelo crítico é o de preencher uma antiga carência dos estudos literários: fornecer uma estrutura formal sistemática e científica, que paute metodologicamente os caminhos do crítico. Como é expresso na “introdução polêmica” do seu mais célebre livro e principal referencial teórico do presente trabalho, Anatomia da Crítica, Frye sente-se intrigado por duas questões principais: a carência de um escopo científico organizado que sirva de referencial teórico para a crítica literária (como bem aponta o autor, desde a Poética de Aristóteles que a crítica vê-se carente de uma organização formal dos gêneros literários, por exemplo [cf. Frye 1957a: 123]) e a separação total entre as disciplinas de ciências humanas, como a filosofia ou a psicologia, e a análise literária. Em Anatomia da Crítica, Frye dedica dois ensaios – “Crítica histórica: teoria dos modos” e “Crítica arquetípica: teoria dos mitos” – à elaboração da teoria dos modos e da teoria dos mitos literários, desenvolvendo um esquema metodológico para a análise do enredo de obras literárias ficcionais. A escolha dessas teorias para analisar as obras de Saramago justifica-se simplesmente pela compatibilidade dos temas tratados com as características de ficção em prosa narrativa do autor português. Já a escolha específica de O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim como objetos de análise nesta dissertação explica-se pela releitura paródica das Escrituras Sagradas, do Novo Testamento e do Antigo Testamento, respectivamente, refletida nas duas obras. Tal

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explicação repousa na importância fundamental que Frye dá à Bíblia como cânone de toda a obra ficcional no Ocidente. A partir do reforço teórico da bibliografia secundária, será feita uma análise de como as duas obras de Saramago respondem às categorias criadas por Frye em suas duas teorias (mais detalhadamente, às imagens arquetípicas, aos modos ficcionais e aos mythoi narrativos). Será visto como os elementos paródicos das duas obras manifestam-se de forma complexa em cada uma das categorias. Enquanto o primeiro capítulo é dedicado a uma exposição mais detalhada da metodologia de trabalho de Northrop Frye e dos elementos paródicos da obra de José Saramago como um todo, os dois seguintes são dedicados à análise de O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim. Uma das principais motivações desta dissertação repousa na importância de expor a obra de um dos mais proeminentes ficcionistas portugueses à luz de um dos mais fundamentais trabalhos de organização teórica da matéria literária realizado no século XX. Neste sentido, concluímos que a obra de Saramago pode ser lida de modo frutífero a partir das intuições de Frye. Mostramos que é possível assinalar a presença recorrente das características das personagens e dos enredos saramaguianos em diálogo com estruturas literárias trans-históricas. Em suma, esta abordagem permite uma análise da obra de José Saramago como exercício prático de formas e modelos literários aperfeiçoados ao longo dos séculos.

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I. Northrop Frye e a Anatomia da Crítica

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1. A “introdução polêmica” de Northrop Frye

Anatomia da Crítica (1957), a obra mais importante do teórico canadense Northrop Frye, notabiliza-se por um objetivo no mínimo audacioso: desenvolver uma estrutura sinóptica e catalogada da crítica literária a partir de um método científico rigoroso. Frustrado com a ausência de referências teóricas devidamente estruturadas e com a desorganização formal da crítica literária, Frye desenvolve seu livro com o intuito não de fixar categorias definitivas de análise da literatura, mas de pelo menos lançar as bases de um estudo mais organizado e autônomo da atividade literária ou de trazer à tona a carência sentida na literatura de uma disciplina crítica segura e objetiva, na qual o crítico possa proceder para não cair nas armadilhas das intuições subjetivas derivadas do gosto. Na “introdução polêmica” aos quatro ensaios que constituem a obra, Frye alerta para as condições ainda praticamente embrionárias, na sua opinião, nas quais a crítica literária se situa em pleno século XX. Segundo Frye, os esforços de catalogação das obras literárias a partir de suas divergências e convergências, estruturais ou estilísticas, ainda se encontravam imobilizados desde a Grécia Antiga. A esquematização das categorias fundamentais da literatura, tais como o drama, a epopeia, a ficção em prosa, entre outras, foi definida por Aristóteles na Poética “como o primeiro passo óbvio na crítica”. Entretanto, Frye logo aponta que uma teoria crítica de gêneros literários está “emperrada precisamente onde Aristóteles a deixou” (Frye 1957a: 123). A ausência de um escopo crítico disposto em bases científicas objetivas, no decorrer da história, parece estar diretamente associada a alguns fatores que Frye aponta como vícios e desvios metodológicos da crítica literária. O primeiro de tais fatores refere-se à ausência de autonomia da crítica literária em relação a outros campos das ciências humanas na análise de uma obra. Tal preocupação não nasceu dos questionamentos feitos por Northrop Frye, mas já deriva das preocupações centrais do formalismo russo, no início do século XX, como bem apontou Viktor Chklovski no ensaio “A arte como processo”. O russo aponta para a necessidade de uma crítica formalista que aborde a literatura em seus termos formais intrínsecos, sem se preocupar com os valores

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externos e com abordagens de outros campos do saber, nomeadamente a psicologia (cf. Chklovski 1965: 19). Frye defende a tese dos formalistas russos quanto à necessidade de uma total separação entre o estudo da matéria literária enquanto tal de qualquer abordagem extrínseca a ela. O teórico canadense aponta esse “determinismo crítico” como uma tendência histórica responsável pela deficiência da crítica literária como procedimento científico autônomo:

Seria fácil compilar uma longa lista de tais determinismos na crítica, todos eles, sejam marxistas, tomistas, liberal-humanistas, neoclássicos, freudianos, junguianos ou existencialistas, substituindo uma atitude crítica por crítica, propondo todos, em vez de encontrar uma estrutura conceitual para a crítica dentro da literatura, ligar a crítica a uma dentre a (sic) miscelânea de estruturas fora dela. Os axiomas e postulados da crítica, entretanto, devem brotar da arte da qual a crítica se ocupa. A primeira coisa que o crítico literário deve fazer é ler literatura, realizar uma pesquisa indutiva de sua própria área e deixar seus princípios críticos modelarem-se unicamente a partir do seu conhecimento dessa área. Os princípios críticos não podem ser tomados prontos da teologia, da filosofia, da política, da ciência ou de qualquer combinação dessas áreas (1957a: 116).

A consonância da crítica literária com os outros campos do saber, para Frye, não implica em nenhum conhecimento direto e autônomo da literatura, mas apenas conhecimentos que circunscrevem a prática literária, nunca dissecando seus métodos formativos próprios. Somente a percepção de recorrências e padrões em uma análise da atividade literária própria e desvinculada de outras campos do saber é capaz de desenvolver um sistema crítico autônomo. Umberto Eco, por exemplo, parte de uma visão crítica divergente da de Northrop Frye. No livro Obra Aberta, de 1962 (portanto, publicado após Anatomia da Crítica), o italiano sai em defesa de uma crítica (no caso, não só literária, mas artística), consoante com a superestrutura histórica e social a partir de uma abordagem marxista: “Os vários universos culturais nascem, sem dúvida, de um contexto histórico-econômico e tornar-se-ia bastante difícil compreender a fundo os primeiros, sem relacioná-los com o segundo” (Eco 1962: 34). Umberto Eco argumenta a favor de uma possível dialética entre a estrutura sistemática intrínseca das obras literárias e as variantes históricas e culturais contextuais à obra. Argumenta o semiólogo italiano:

Está claro como de uma posição deste gênero deriva uma dialética: indagar as obras de arte à luz de suas leis estruturais específicas não significa renunciar à elaboração de um “sistema dos sistemas”; pelo que poderíamos dizer que a referência às estruturas das obras, a uma comparação de modelos estruturais entre

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vários campos do saber, constitui o primeiro apelo responsável a uma pesquisa de caráter histórico mais (1962: 34).

A posição de Eco ilustra a resistência de algumas correntes de pensadores em analisar a crítica literária como um fenômeno totalmente isolado dentro das premissas de sua própria matéria particular. Para Frye, por outro lado, “as dialéticas sociais aplicadas externamente à crítica então são, dentro da crítica, pseudodialética, ou falsa retórica” (1957a: 137). Frye aponta para a necessidade de desenvolver uma verdadeira dialética da crítica literária que não seja vulnerável às interpretações de outras ciências, censores morais da cultura ou variações de contextos sociais. O outro fator que, segundo Frye, afastou a crítica literária de um escopo crítico científico é o tradicional apreço da crítica pela análise dominada pelo gosto e pelo juízo de valor. Para Frye, incutir elementos passionais, ideológicos ou preconceitos de gosto na crítica literária contribui para a desorganização e para a carência de uma estrutura sistemática de conhecimento científico referente à literatura. O teórico aponta:

O primeiro passo para o desenvolvimento de uma poética genuína é reconhecer a crítica sem sentido e livrar-se dela, como também de qualquer conversa sobre literatura que não seja capaz de ajudar na construção de uma estrutura sistemática de conhecimento. Isso inclui todos os ruidosos disparates que encontramos com tanta frequência em generalidades críticas, em comentários reflexivos, em perorações ideológicas, e outras consequências de se assumir uma visão ampla de uma disciplina desorganizada. Isso inclui todas as listas dos “melhores” romances, poemas ou escritores, seja sua virtude particular a exclusividade ou a inclusividade. Isso inclui todos os julgamentos de valor casuais, sentimentais e preconceituosos, e todo o blábláblá literário que faz que a reputações dos poetas se valorizem e despenquem em uma bolsa de valores imaginária (1957a: 128).

Frye enxerga os modismos e preconceitos culturais, além dos gostos pautados por humores e contextos sociais, como uma barreira a transpor para que a crítica literária ganhe autonomia científica. O juízo de valor não propicia terrenos fixos organizados que o crítico entusiasmado com a matéria possa usar como referência. Muito pelo contrário, é instável e impreciso, assim como a variação dos humores e dos tempos e, portanto, não possui credibilidade científica. Já o filósofo americano Nelson Goodman faz um comentário convergente com o de Frye em sua obra Linguagens da Arte – Uma abordagem a uma teoria dos símbolos. Nela, mostra também quão pouco relevante é o juízo de valor para uma análise estética de uma obra

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de arte, além de se valer de uma metáfora similar à de Frye: a da “bolsa de valores imaginária”. Assim,

Uma concentração excessiva na questão da excelência tem sido responsável, penso, pelo bloqueio e distorção da investigação estética. Dizer que uma obra de arte é boa ou dizer, até, quão boa é, não fornece, afinal de contas, muita informação, não nos diz se a obra é evocativa, robusta, vibrante ou se foi requintadamente concebida, e ainda menos nos diz quais são as suas qualidades proeminentes específicas de cor, forma ou som. Além disso, as obras de arte não são corridas de cavalos, e apostar num vencedor não é o objetivo principal (Goodman 1976: 274).

Assim como Goodman, que também enxerga uma “dinâmica do gosto” (1976: 272) naturalmente existente na relação humana com uma obra de arte, Frye defende que, por exemplo, afirmar que Shakespeare é um dos maiores poetas do mundo “é um julgamento de valor tão aceito que passa por uma afirmação de fato.” Porém, corrige: “Entretanto, isso não é uma afirmação de fato. Ele permanece um juízo de valor, e nem um traço de crítica sistemática jamais poderá ser ligado a ela” (1957a: 132). A partir de tais necessidades tão marcantes para o desenvolvimento da crítica literária, Frye propõe um método esquemático e catalogal para preencher essa lacuna existente na poética. Nesse contexto, a relação do teórico canadense com o trabalho iniciado pelos formalistas russos no início do século XX não pode deixar de ser explorada, principalmente pela similaridade entre Frye e os russos1 em partir de uma experiência direta com o texto literário para enxergar padrões e desenvolver premissas científicas.

1 As similaridades entre Frye e os formalistas não anulam a divergências também existentes entre eles, que serão também melhor aprofundadas no subcapítulo seguinte.

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2. Frye e os formalistas

A preocupação de definir o escopo da crítica de literatura a partir de uma experiência direta com o fenômeno literário, independentemente de abordagens relativas a outros campos do saber, como a filosofia, a psicologia ou a sociologia, é uma tendência, como vimos, tanto de Frye quanto da corrente formalista russa. Na apresentação de textos ensaísticos dos formalistas russos, traduzidos para francês e publicados em 1965, Tzvetan Todorov aponta para algumas particularidades íntimas com aquilo defendido por Frye em sua “introdução polêmica”, principalmente no que diz respeito à desorganização de uma disciplina sólida a respeito da matéria literária. Boris Eikhenbaum, num artigo chamado “Teoria do método formal”, argumenta quanto à criação de uma crítica literária autossuficiente:

O que nos caracteriza não é o ‘formalismo’ enquanto teoria estética, nem uma ‘metodologia’ representando um sistema científico definido, mas é o desejo de criar uma ciência literária autônoma a partir das matérias intrínsecas da matéria literária. A nossa única finalidade é a consciência teórica e histórica dos fatos que dependem da arte literária como tal (Eikhenbaum 1965: 33).

É recorrente nos ensaios dos formalistas russos a preocupação em delimitar a análise literária a partir de seus fenômenos puramente textuais constitutivos, principalmente na articulação dos elementos verbais do texto pelo autor de forma a lhe dar representação poética. Detalhes psicológicos sobre as personagens ou detalhes filosóficos que motivariam o enredo estão apartados das preocupações críticas dos formalistas. Roman Jakobson detalha a importância do Círculo Linguístico de Moscou e da Sociedade de Estudo da Linguagem Poética, surgidos em território russo, como instituições atuantes na relevância dada ao aspecto linguístico e criador da arte poética, além de suas leis internas: rimas, epítetos, construção fonológica, aliterações, entre outras. Jakobson enxerga a tessitura fonológica e a articulação da estrutura verbal de um poema como elementos constitutivos da estrutura poética (ou literária) de uma obra, e,

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consequentemente, como o principal objeto do método formal de análise de um texto literário (Jakobson 1970: 82). Se Frye procurará catalogar padrões e recorrências que unifiquem a crítica literária dentro de referenciais previamente concebidos, os formalistas visam um estudo linguístico específico de cada obra a partir de como o autor articulou os elementos verbais do texto para lhe dar representação poética. A articulação dos elementos verbais em um desígnio de articulação poética é denominada, segundo o crítico Lev Yakubinski, “literariedade” (Yakubinski 1965: 52-53). Segundo a vanguarda crítica russa, a “literariedade” configura-se como o elemento que separa a linguagem verbal prosaica e cotidiana da linguagem literária. As divergências entre a perspectiva formalista e Northrop Frye ganham ainda mais ênfase quando Boris Eikhenbaum – ao analisar a obra O Capote, de Gogol – percebeu que as reflexões do texto sob a ótica dos gêneros ou estilos literários (nesse caso, romantismo e realismo) não tinham valor e não traziam nenhum acréscimo para a compreensão concreta da obra (Eikhenbaum 1965: 52-53). Eikhenbaum argumenta que a análise de um produto literário a partir de conceitos genéricos ou categorias pré-estabelecidas de estilo não contribuem com a análise da obra de acordo com a articulação de seus elementos verbais constitutivos. Tanto Frye quanto os formalistas partem de uma perspectiva de crítica literária fundamentada na experiência direta com o texto e na identificação de padrões e recorrências. Enquanto Frye busca padrões canônicos que procuram estruturar o conhecimento em referenciais comuns, os formalistas buscam o fenômeno da “literariedade” como denominador do método literário. E a “literariedade”, por sua vez, é apreendida a partir da percepção da articulação dos elementos verbais específicos de cada autor. A divergência entre Frye e os formalistas correspondente à contextualização da obra literária dentro de padrões convencionais externos é similar à divergência de Frye com os teóricos do New Criticism. Pois, como afirma Robert D. Denham no prefácio da edição canadense de Anatomia da Crítica:

Frye está ciente dos excessos e das limitações da Nova Crítica, como vemos a partir dos diversos relatos retrospectivos sobre o movimento. Primeiro, os Novos Críticos despojaram a obra literária de qualquer senso de contexto, mesmo o contexto histórico dos críticos documentários. Segundo, eles falharam em construir qualquer vínculo que conectasse os poemas que explicavam. Terceiro, sua ênfase no objeto poético voltou-se contra o objetivo ideal do estudo literário, que é a fruição da literatura pelo leitor. Quarto, sua abordagem para a explicação em termos de qualidades líricas e uma obra, indiferentemente do gênero, tendeu a limitar seu foco em elevar escritores de intensidade descontínua, como Keats,

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Hopkins, Rimbaud e Hölderlin, acima da grande tradição de autores contínuos, como Spencer, Milton, Goethe e Hugo. E quinto, a ênfase na textura poética levou a excluir a estrutura poética (Denham1957a: 61).

Portanto, assim com os integrantes do New Criticism, os formalistas deram uma ênfase maior à análise de obras isoladamente em detrimento de suas estruturas vinculantes com outros textos. E, como veremos, o teórico canadense sustenta a sua defesa da atitude crítica a partir de sistemas estruturais de referência que assinalam o vínculo entre as obras literárias. Jonathan Culler, em Structuralist Poetics. , linguistics and the study of literature, salienta a importância da leitura e da experiência direta com obras de literatura para o crítico (ou leitor) adquirir a competência literária para identificar e entender o significado dos códigos poéticos verbais ou a “literariedade” de um texto (Culler 1975: 113-14). Frye, apesar de buscar padrões e recorrências estranhos à “literariedade” formalista nas estruturas sinópticas de seu Anatomia da Crítica, também defende a importância da experiência direta com a obra literária. Citado pelo próprio Culler (1975: 121), o crítico canadense defende que o estudo de um romance facilita o entendimento do próximo (romance), pois o crítico (ou leitor) adquire senso de comparação entre obras distintas e orientação de leitura que o familiariza com a arte literária. Frye, nos parágrafos finais de sua “introdução polêmica”, defende um novo trabalho crítico que procure organizar em estruturas sistemáticas o conhecimento formal da crítica literária:

Grande parte disso, acredito, e, na verdade, espero, pode não passar de meros andaimes a serem desmontados quando o prédio ganhar melhor forma. O resto pertence ao estudo sistemático das causas formais da arte (Frye 1957a: 143).

A necessidade de salientar que o sistema desenvolvido na Anatomia da Crítica é apenas um indicativo de quais rumos a crítica literária deve seguir, e não um conjunto de conceitos dogmáticos fechados, dialoga diretamente com os princípios do projeto crítico dos formalistas russos. Eikhenbaum aponta a importância do método evolutivo para a consolidação do método formal, além de reforçar a desvinculação do grupo com qualquer tipo de doutrina ou sistema completamente feito: “No nosso trabalho científico, apreciamos a teoria apenas como uma hipótese de trabalho” (Eikhenbaum 1965: 32). O autor russo, portanto, reforça, assim como

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Frye, a constante evolução e flexibilidade metodológica da abordagem formalista quanto à matéria literária. Portanto, apesar de algumas divergências apontadas, é possível perceber que a convergência entre o formalismo russo e Northrop Frye se dá essencialmente pela necessidade de enxergar a crítica literária não apenas como uma ciência livre da interferência de outras ciências humanas, mas também como um método de trabalho evolutivo e flexível.

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3. Frye, o cânone e os esquemas estruturalizantes

Em Anatomia da Crítica, Frye nos apresenta quatro ensaios nos quais são denotados quatro esquemas diferentes de abordagem crítica a partir da percepção de recorrências e padrões na arte literária ocidental. A abordagem dá ênfase na repercussão dos cânones bíblicos e clássicos no suceder da cronologia histórica da prática da literatura. Os quatro ensaios correspondem a quatro categorias de abordagem crítica diferentes: a teoria dos modos, a teoria dos símbolos, a teoria dos mitos e a teoria dos gêneros. No presente trabalho apenas utilizaremos a teoria dos modos e a teoria dos mitos para análise da obra do autor português José Saramago, em razão de tais textos expressarem uma cobertura mais abrangente dos modos ficcionais e dos mythoi narrativos com os elementos literários encontrados em Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim. A tendência de Frye para a criação de esquemas estruturalizantes é um método já recorrente em outros estudos alheios a Anatomia da Crítica. Como exemplos, temos o longo diagrama de ascensão e queda que ele percebe no enredo bíblico, apresentado em seu curso “The and english literature” pela Universidade de em 1980; assim como o livro O Código dos Códigos, de 1981; ou o seu ensaio sobre , “Blake’s Introduction to Experience”, de 1957. No ensaio sobre Blake e em análises expressas em The Fearful Simetry (1947), por exemplo, Frye utiliza esquemas e classificações para relacionar a obra lírica de Blake com sua obra profética, demonstrando o profundo rigor da prática artística do autor, na lírica e na prosa (Frye 1957b: 57). No prefácio da edição canadense de Anatomia da Crítica, Robert D. Denham, um dos principais estudiosos da obra do canadense, argumenta, em defesa dos esquemas estruturais de Frye, que o pensamento poético é tão esquemático quanto a crítica literária deve ser (1957a: 46). Todo o trabalho diagramático que Frye consolida em Anatomia da Crítica é resultado de anos de pesquisa que eram esboçados em seus cadernos pessoais, nos quais Robert D. Denham (organizador dos cadernos pessoais de Frye na publicação Northrop Frye’s Student

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Essays, 1932-1938, de 1997) percebeu protótipos de esquemas que Frye amadurece desde os seus 23 anos de idade até consolidá-los na sua obra maior. Denham, no prefácio da edição canadense de Anatomia da Crítica, já aponta as inclinações estruturalizantes de Frye na constituição de sua obra crítica:

Ninguém lê Anatomia e a maioria dos outros livros de Frye sem ter consciência de que ele trabalha a partir daquilo que estamos chamando de estruturas dedutivas – conjuntos hipotéticos de princípios que são frequentemente esquemáticos ou diagramáticos (1957a: 43)

Como já mencionado, Frye, em sua “introdução polémica”, defende uma postura crítica que perceba padrões e recorrências nas obras que funcionem como pontos de referência formais de abordagem. Dentro de tal metodologia, a elaboração de esquemas estruturalizantes que relacionem os padrões e recorrências da linguagem literária torna-se procedimento natural da atitude crítica. Frye, ao elaborar as classificações esquemáticas dos modos ficcionais e dos mythoi narrativos, recorre a arquétipos canônicos da literatura, principalmente os expressos na Bíblia ou na mitologia clássica, como em Homero. Frye aponta nestes dois cânones as origens das estruturas poéticas arquetípicas da literatura ocidental:

Não precisamos nem mesmo invocar entidades muito sutis, como o inconsciente coletivo de Jung, para explicar que em escala mundial a criatividade humana, em termos de expressão, sempre terá algum grau de inteligibilidade mútua e de poder de comunicação. Neste mesmo caminho, notamos que a Bíblia alemã de Martinho Lutero e a sequência de Bíblias inglesas foram poderosas fontes de imagens, narrativas, alusões e de outras formas de comunicação verbal em suas culturas; o mesmo se pode dizer de muitas outras traduções, como a clássica [...] Penso que se pode ver na maior parte da literatura grega anterior a Platão, sobretudo em Homero, ou nas escrituras pré-bíblicas do Oriente Próximo, ou ainda em muito do Velho Testamento, uma concepção de linguagem que é poética e “hieroglífica”, não num sentido de uma escrita de sinais, mas no sentido de se usarem as palavras como um tipo particular de sinal [...] Esses modelos estruturais atravessariam a variedade das langues e seriam afeiçoados e condicionados, embora não totalmente determinados por elas. Se isto for mais do que uma mera possibilidade, nos desenharia um contexto histórico para a Bíblia que não creio tenha sido examinado (1981: 27-28).

Tal concepção canônica da linguagem poética levou Frye à tese de exposta na obra The New Science of Giambattista Vico (1725). Nela, Vico concebe um ciclo histórico esquemático que discrimina três fases da linguagem na humanidade: a idade mítica, a idade heroica e a idade do povo. O próprio Frye cita o esquema de Vico como o modelo

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principal para o esquema dos modos ficcionais (mítico, romântico, mimético elevado, mimético baixo e irônico) apresentados em Anatomia da Crítica (Vico apud Frye 1981: 28). Frye aponta que, para Vico, cada fase corresponde a um tipo diferente de expressão verbal. A fase mítica corresponde a um uso mais poético e abstrato da linguagem; a heroica a um uso alegórico da linguagem; enquanto a idade do povo, a utilização descritiva (Vico apud Frye 1981: 28).2 , no prelúdio ao seu O Cânone Ocidental, também assinala um ciclo histórico para dividir as formas de expressão da linguagem (era aristocrática, era democrática e era do caos), como reprodução do modelo estabelecido por Vico (Bloom 1994: 11). A metodologia esquemática e diagramática também se faz presente no desenvolvimento de Frye da teoria dos mitos, sustentada no movimento cíclico do enredo ficcional entre cinco mythoi narrativos distintos (a comédia, a tragédia, o romance, a ironia e a sátira), em analogia com as estações do ano (a ironia e a sátira são vistas por Frye simultaneamente como os mythoi do inverno). A “anatomia” referenciada no título da principal obra de Frye utilizada como referencial teórico para o presente trabalho é um substantivo exemplar para ilustrar o procedimento crítico do autor canadense. Afinal, como afirma Denham: “Esquemas, é claro, nascem de análises e dissecações, que é um dos sentidos da palavra ‘anatomia’” (Denham 1957a: 47). Portanto, estão introduzidas as premissas estruturalizantes de Frye e a importância do cânone como ponto de referência de seus sistemas teóricos, principalmente no que tange a teoria dos modos e a teoria dos mitos. Ambas as teorias serão o referencial teórico de análise das obras O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim. Antes de avançarmos para a análise das duas obras, identificaremos o vínculo de Saramago no contexto literário histórico do seu próprio país. Essa vinculação será assinalada a partir do fenômeno do pós-modernismo literário.

2 Veremos a partir da análise dos modos ficcionais na obra de Saramago que a divisão esquemática dos modos ficcionais segue um modelo análogo bastante similar ao proposto por Vico, apesar de a teoria de Frye seguir por desdobramentos diferentes.

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4. Breves esquemas estruturalizantes: o pós-modernismo na literatura portuguesa

Se Northrop Frye trabalha com uma metodologia crítica sensível à criação de esquemas e estruturas sinópticas que visam distinguir os vínculos formais entre as obras literárias, é interessante abrirmos um parêntese no presente trabalho para sublinharmos a relação de José Saramago com a corrente pós-modernista na literatura portuguesa. Dessa forma, é possível analisarmos a obra do português em um contexto formal vinculante com outros autores de seu tempo e nação, assim como percebermos a importância das tendências do fenômeno pós- modernista para compreendermos as soluções estéticas de Saramago. A autora portuguesa Ana Paula Arnaut enxerga o pós-modernismo na literatura como um fenômeno com as seguintes características:

Da nova literatura sobressaem os seguintes aspectos: a mistura de géneros e a decorrente fluidez genológica, num culto ostensivo e quase sempre subversivo; a insistente e crescente polifonia, em algumas situações a tocar as fronteiras do indecidível, da fragmentação e da (aparente) perda de narratividade; os exercícios metaficcionais, já presentes em romances cómicos e satíricos do século XVIII, mas agora renovados em grau e qualidade e alargados da escrita da história à re-escrita da História. Sublinhe-se, a propósito do modo como se processa a recuperação do passado, a imposição da paródia como elemento de fundamental importância para a deslegitimação das grandes narrativas que, num entendimento que nos parece pertinente, estendemos a códigos genológicos e periodológicos (Arnaut 2010: 131).

Entre as várias indefinições que o termo pode induzir, principalmente quanto às disciplinas (se sociologia ou literatura) as quais ele pode ser atribuído (a concepção de sobre o tema, por exemplo, é relativa a um período histórico tardio do capitalismo que se manifesta após a Segunda Guerra Mundial [Marcelina 2019: 65]), Ana Paula Arnaut detalha como o fenômeno tem implicações na forma de fazer literatura em Portugal, e é a definição da autora portuguesa que procuramos usar como referência. O fenômeno pós-modernista ganha forma na literatura portuguesa a partir da metade do século XX. Arnaut, no artigo “Post-Modernismo: O futuro do passado no romance português

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contemporâneo”, aponta o romance O Delfim, de José Cardoso Pires, publicado em 1968, como o início do pós-modernismo literário em Portugal. Inclusive, este trabalho da autora sintetiza a relação do romance feito em Portugal a partir de 1968 com as características gerais do fenômeno. As características do fenômeno podem ser encontradas em escritores como Augustina Bessa-Luís ou Mário Cláudio – em cujas obras o paradigma pós-modernista faz-se presente “no efeito de montagem subversiva, descontínua, da narrativa” (2010: 132) –, ou em Lídia Jorge, com sua capacidade de aliar práticas de escritas diferentes em uma mesma obra, além de desenvolver ousadias semânticas e formais e diversos aspectos geradores da desagregação estrutural da narrativa (em obras como O dia dos Prodígios, de 1980, ou A Costa dos Murmúrios, de 1988) (2010: 133). Tais elementos subversivos marcados por Arnaut como fundamentais para o movimento pós-modernista precisam ser acompanhados por um trabalho hermenêutico do leitor, a fim de deduzir os significados ocultos:

A subversão que assim se faz da arte de bem escrever tem evidentes efeitos nas capacidades hermenêuticas do leitor. Dele se exige, agora, um cuidado e uma paciência acrescidos, sob pena de não conseguir fazer sentido(s) de uma urdidura textual, de uma nova sensibilidade, que é, talvez, no conjunto dos títulos mencionados, a que se caracteriza por uma maior desordem semântico- estilística ou, por outras palavras, aquela em que de modo mais visível a narratividade parece e aparece perdida (Arnaut 2010: 133).

Também Frye, como já demonstrámos neste trabalho, salienta a necessidade de uma prática de leitura, de formar a perceber os padrões literários para assim apurar a compreensão do conteúdo poético do texto analisado (Frye apud Culler 1975: 121). Arnaut também relaciona a obra O Conquistador (1990), de Almeida Faria, como pertencente ao movimento:

Estes cortes, que parecem encontrar correspondência na ideia de ruptura com uma certa tradição literária, prolongam-se, sem dúvida, em O Conquistador (1990), romance onde a dessacralização da História e também do mito (de D. Sebastião), impõe a paródia tipicamente post-modernista, contrapondo o carácter intrépido do rei ao do seu homónimo igualmente destemido, mas no que se refere à conquista de mulheres (2010: 134).

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A partir das características expostas na obra de Almeida Faria, encontramos algumas características dos romances de José Saramago: a dessacralização da História – como acontece em Memorial do Convento, A História do Cerco de Lisboa, O Evangelho segundo Jesus Cristo, A Viagem do Elefante e Caim – e a imposição do elemento paródico como procedimento dessacralizante e subversivo da obra do autor. É nesses aspectos da obra de José Saramago que se encontram mais enfaticamente o paradigma do pós-modernismo e o vínculo com a obra dos outros autores pós-modernos:

No caso de José Saramago [...], cuja produção romanesca podemos também inserir no âmbito de um impulso post-modernista de índole moderada (o que pressupõe, como veremos, um outro impulso, o celebratório), a diferença, o estranho, o novo, traduzem-se, desde o extraordinário romance Manual de Pintura e Caligrafia (1977), numa forte tendência para jogos metaficcionais. Referimo-nos à composição de obras que, através de diversas estratégias sempre passíveis de oscilação em grau e em número, revelam uma hiperconsciência relativamente à linguagem, à forma do literário e ao acto mesmo de escrever ficções; uma constante insegurança no que se refere à relação entre ficção e realidade; um estilo paródico, meio a brincar, excessivo, ou ainda enganadoramente naif (Arnaut 2010: 135).

No recorte que a autora portuguesa faz das implicações do fenômeno pós-modernista na literatura, dois sobressaem enfaticamente na obra ficcional de Saramago: o exercício metaficcional e a utilização da “paródia como elemento de fundamental importância para a deslegitimação das grandes narrativas”. Das duas características, a paródia sobressai de maneira clara em Caim e em O Evangelho segundo Jesus Cristo como ferramenta formal similar aos pressupostos de Northrop Frye, principalmente à “modulação demoníaca”, e aos processos de reescrita subversiva do cânone. Portanto, o elemento paródico será valorizado na futura análise, em detrimento do aspecto metaficcional. Entretanto, tais elementos não são exclusivos das duas obras. As características pós- modernistas manifestam-se na obra de Saramago desde os romances da década de 80. Em Memorial do Convento, por exemplo, o narrador questiona a veracidade do próprio relato em passagens como esta, em que são postas em xeque as informações contadas a respeito da suspeita gravidez da rainha:

Vimos como em instância final saiu absolvido o estudante da suspeita do roubo das lâmpadas. Agora não se vá dizer que, por segredos de confissão divulgados, souberam os arrábidos que a rainha estava grávida antes mesmo que ela o participasse o rei. Agora não se vá dizer que D. Maria Ana, por ser tão piedosa

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senhora, concordou calar-se o tempo bastante para aparecer com o chamariz da promessa o escolhido e virtuoso frei António. Agora não se vá dizer que el-rei contará as luas que decorrerem desde a noite do voto ao dia em que nascer o infante, e as achará completas. Não se diga mais do que ficou dito (Saramago 1982: 26).

O elemento paródico é indissociável da obra de José Saramago. A identificação da obra do autor português no contexto do pós-modernismo de seu país suscita características essenciais para entender seus livros e contextualizarmos os elementos formais de sua obra com a metodologia de Frye. As análises das obras O Evangelho Segundo Jesus Cristo e Caim sob tais premissas serão, respectivamente, o objetivo dos dois capítulos seguintes.

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II. O Evangelho segundo Jesus Cristo à luz dos conceitos ficcionais de Northrop Frye

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1. As imagens arquetípicas demoníacas e apocalípticas no Evangelho de Saramago

Nesse capítulo, será analisado como o Evangelho segundo Jesus Cristo assenta sobre convenções literárias universais da literatura ocidental, definidas por Northrop Frye: as imagens arquetípicas. Introduziremos de forma detalhada o conceito dos mitos arquetípicos e veremos como eles funcionam como rudimentos canônicos da linguagem literária ocidental. Em seguida, adentramos o mundo saramaguiano do Evangelho segundo Jesus Cristo para nele esmiuçarmos os conceitos de Frye. Na introdução ao terceiro ensaio de Anatomia da Crítica, “Crítica arquetípica: teoria dos mitos”, Frye defende que cada campo específico da arte – literatura, pintura ou música – segue um conjunto de formalidades que se notabilizam como um modelo canônico específico de cada uma. No caso da arte plástica, por exemplo, as convenções ou princípios estruturais formais estão relacionados a figuras geométricas. Frye defende que tais convenções, ou cânones, estão presentes dentro dos princípios pictóricos de uma obra, esteja ela no extremo do realismo representacional, como em uma obra de Rafael ou Rembrandt, ou no extremo da abstração, como em uma pintura de Mondrian ou Kandinsky:

A posse da originalidade não pode tornar um artista não convencional; ela o leva mais para dentro da convenção, obedecendo à lei da arte propriamente dita, que procura constantemente se modelar a partir de suas próprias profundezas e que opera por meio de seus gênios por metamorfose, como opera por meio de talentos menores por mutação (Frye 1957a: 258-9).

Para Frye, os arquétipos na literatura funcionam como uma série de imagens de um modelo canônico. No caso específico da literatura ocidental, o crítico aponta a herança cristã e clássica como os arquétipos fundamentais que modelaram sua expressão estrutural. Ele enxerga que a Bíblia e a mitologia clássica estão para os princípios estruturais das convenções literárias ocidentais como as figuras geométricas para os arquétipos da pintura (Frye 1957a: 261). Dentro de tais premissas, surgem os mitos como arquétipos estruturais da linguagem literária, a partir de três tipos de imagens universais: demoníacas, apocalípticas e analógicas.

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Tais arquétipos representam imagens míticas, que são fundamentalmente cristalizadas no texto bíblico, em especial, e na mitologia clássica, em segundo plano:

Temos, então três organizações de mitos e de símbolos arquetípicos na literatura. Primeiro, há o mito não deslocado, geralmente ocupado com deuses e demônios, que toma a forma de dois mundos contrastantes de total identificação metafórica, um desejável e outro indesejável. Esses mundos são frequentemente identificados com os paraísos e infernos existenciais das religiões contemporâneas a tal literatura. Chamamos essas duas formas de organização metafórica, respectivamente, de apocalíptico e demoníaco (Frye 1957a: 267).

Enquanto Frye aponta que o arquétipo das imagens apocalípticas (vale salientar que “apocalíptico” para Frye não possui o sentido de caótico e desordenado, mas sim procura denotar o “paraíso de religião” [1957a: 269]) está inserido no modo ficcional mítico, o das imagens demoníacas, por sua vez, está inserido nos princípios estruturais do modo ficcional irônico em estágio avançado, já em franca transmutação ao modo mítico (analisaremos as fases cíclicas dos modos ficcionais no próximo subcapítulo). O arquétipo das imagens analógicas, por fim, é constituinte dos modos ficcionais a que o crítico canadense caracteriza, contra vontade e de forma generalista, como “românticos” ou “realistas” (Frye não tem boa vontade com a imprecisão e diversidade de sentidos que os termos “românticos” e “realistas” podem suscitar), em que estão embutidos os modos ficcionais intermediários: romance, mimético elevado e mimético baixo. Nestes três modos ficcionais, os elementos míticos abstratos são graduados em termos de plausibilidade e realismos, de forma a aproximá-los da experiência humana real. Frye chama de deslocamento o ato de deslocar a imagem mítica para uma direção plausível ao nível da experiência humana (Frye 1957a: 264). No modo ficcional mítico, vemos os princípios estruturais da literatura de forma isolada e abstrata. Enquanto nos modos ficcionais que se aproximam do “realismo” – como o romântico (repare que Frye utiliza o termo romântico como definição de um dos seus modos ficcionais e, evocando outro sentido, como uma das característica do arquétipo das imagens analógicas), o mimético elevado, o mimético baixo e o irônico – vemos os mesmos princípios estruturais, porém em um contexto deslocado de plausibilidade em relação à experiência humana. Não tentaremos aprofundar aqui o modo analógico, pois, como veremos, tanto o objeto deste segundo capítulo, O Evangelho segundo Jesus Cristo, quanto o do terceiro, Caim, transitam entre os dois extremos do “arcabouço literário” (Frye 1957a: 264), entre o mítico e o irônico e, consequentemente, entre o apocalíptico e o demoníaco. Saramago, em ambas as

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obras, bebe diretamente do cânone bíblico, por isso suas obras giram entre os extremos das imagens metafóricas apocalípticas e demoníacas. Robert Denham, um dos principais leitores do crítico canadense, faz a seguinte reforço à tese de Frye:

Frye’s starting point in the Third Essay is the principle that archetypal patterns are most clearly discernible in , for in mythical stories we are in a world of pure and abstract literary design. Myth is the first of three organizations of archetypal symbols; it lies at the pole of total metaphorical identity, and it assumes the form either of a desirable apocalyptic world or an undesirable demonic one (1968: 60).

Em resumo, as imagens demoníacas e apocalípticas constituem os extremos das estruturas literárias canônicas. Nelas está o ápice da abstração e metaforização da linguagem literária, enquanto no centro estão os elementos dosadores do realismos e da plausibilidade dentro dos abstracionismo – “um mundo mais intimamente associado à experiência humana” (Frye 1957a: 267), que se configuram nas estruturas românticas e realistas, as duas características que constituem o arquétipo analógico. Veremos que o modo irônico, apesar de representar um universo ficcional associado ao nível de experiência humana mais real e plausível, já possui elementos acentuados do modo mítico, indicando um reinício do ciclo. Então há um dosador de plausibilidade e realismo no arquétipo analógico, que submete as imagens mitológicas ao prosaico da experiência humana, enquanto nas imagens demoníacas e apocalípticas lidamos com estruturas literárias mais abstratas e metafóricas. É importante deixar subentendido de que forma Frye enxerga o significado de mito dentro de sua teoria. No ensaio Myth, Fiction and Displacement, de 1961, Frye explica:

By a myth, as I said at the beginning, I mean primarily a certain type of story. It is a story in which some of the chief characters are gods or other beings larger in power than humanity. Very seldom is it located in history: its action takes place in a world above or prior to ordinary time, in Mo tempore, in Mircea Eliade's phrase. […] The things that happen in myth are things that happen only in stories; they are in a self-contained literary world (1961: 600).

O mito trabalha com o ápice da abstração, com universos e problemáticas desenvolvidos apenas no campo da ficção, em um mundo regido por suas próprias leis e coerências internas, alheio à experiência humana dentro de uma perspectiva “realista”. São tais abstrações que constituem o núcleo arquetípico das Sagradas Escrituras e da mitologia clássica.

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Portanto, que figuras, segundo Frye, compõem o arquétipo demoníaco e apocalíptico e assim o cânone da estrutura literária ocidental? Vamos voltar resumidamente às associações específicas de cada arquétipo aos “mundos” estipulados por Frye. Frye (1957a: 265) associa a visão de cinco mundos às imagens arquetípicas apocalípticas: vegetal (campos, rosas, arcádia...), animal (cordeiro, pomba branca...), mineral (rochas, cidade ideal, Jerusalém ideal...), divina (Deus uno) e humana (sociedade de homens). Esses são arquétipos que evocam a ideia do Paraíso religioso, cujas características constituem a ideia de bem, harmonia e salvação. Também a imagem arquetípica demoníaca pode ser vegetal (floresta sinistra, terra devastada, árvore do conhecimento em Gênese), animal (o lobo, a fria e rastejante serpente, o dragão, a besta...), mineral (cidades de destruição e noites apavorantes; armas de tortura, guerra, a cruz sinistra...), divina (céu inacessível e destino inescrutável) e humana (sociedade demoníaca separada de Deus, Egito e Babilônia). O mundo demoníaco configura-se como “a rejeição do desejo” (Frye 1957a: 277), a evocação da dor e do assombro e, portanto, a antítese do apocalíptico. É o mundo de imagens que evocam o caos, a confusão, o pesadelo e o bode expiatório. Ora, a herética obra saramaguiana é precisamente terreno fértil de percepção tanto de imagens apocalípticas quanto demoníacas. O Evangelho segundo Jesus Cristo configura-se como uma paródia às Sagradas Escrituras ao recontar a história de Jesus Cristo a partir de uma imagem secularizada e realista dos evangelhos canônicos. É dos vazios da narrativa paratática e oracular da Bíblia que Saramago procura desenvolver detalhamento e plausibilidade de conteúdo. Salma Ferraz comenta:

Aqueles momentos em que o texto bíblico se cala sobre determinado período de tempo, como, por exemplo, o que teria acontecido com Cristo dos doze aos trinta anos. É reaproveitando este “vazio” do relato bíblico sobre a vida de Cristo que o autor construía as suas angústias existenciais, o seu aprendizado com o diabo no deserto, etc. Cabe lembrar que são conhecidos aproximadamente sessenta evangelhos apócrifos (1998: 35).

Saramago compõe assim um novo evangelho apócrifo e procura jogar luz humana e existencial à obra. Para tanto, não abdica das armas de militância crítica e antirreligiosa, características de seus consolidados recursos retóricos, que, na sua obra ficcional, começou a tomar forma especialmente em Levantado do Chão.

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Ao reescrever o paratático cânone bíblico em um romance mais plausível e detalhista, Saramago constrói uma obra que pode tornar-se objeto de análise comparativa com os apontamentos feitos por Auerbach no ensaio “A cicatriz de Ulisses”, presente na coletânea Mimesis. No ensaio, Auerbach faz uso da Bíblia e da epopeia homérica como os dois extremos antagônicos de construção sintática de um texto literário. Enquanto aquele faz uso da parataxe (ausência de conexões subordinativas entre as orações) para contar a história e transmitir a verdade da fé, Homero abusa do realismo, do detalhamento cênico, de construções articuladas em hipotaxe (presença de conexões subordinativas entre as orações) para narrar a história de seus heróis. Enquanto em Homero abundam os detalhes diegéticos, os profetas bíblicos “obscurecem” esses detalhes:

Os dois estilos representam, na sua oposição, tipos básicos: por um lado, descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem interstícios, locução livre, predominância do primeiro plano, univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto ao humanamente problemático; por outro lado, realce de certas partes e escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do tácito, multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de interpretação, pretensão à universalidade histórica, desenvolvimento da apresentação do devir histórico e aprofundamento do problemático (Auerbach 1946: 20).

Saramago utiliza o método hipotático e realista homérico para construir a narrativa. O narrador divaga, descreve e pormenoriza ambientes e estados de espírito, contextualiza ações com enriquecimento sintático e inserção de conectivos e oração subordinadas e coordenadas. Em uma analogia cinematográfica, visualiza, com riqueza de detalhes, as personagens em primeiro plano: seus estados espirituais e emocionais, suas fragilidades e construções de personalidade de acordo com os conflitos que os acometem. Nessa perspectiva, é natural uma construção sintática orgânica, repleta de conexões subordinativas para conectar organicamente as personagens às circunstâncias e ações, dando plausibilidade e realismo à obra. Enquanto Homero trabalha com fenômenos diegéticos – “diegese é então o universo do significado, o ‘mundo possível’ que enquadra, valida e confere inteligibilidade à história” (Reis 2018: 87) - claros e bem acabados, as Escrituras Sagradas seguem outra tendência: “os pontos culminantes e decisivos para a ação são os únicos a serem salientados; o que há entre eles é inconsistente” (Auerbach 1947: 9). Saramago, seguindo a linha realística homérica de forma radical (radical, pois o próprio método saramaguiano de longos períodos e uso de vírgulas em detrimento de pontos reforça ainda mais a construção paratática), procura jogar luz e detalhes

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aos vazios e espaços escuros que o texto bíblico deixou. Essa perspectiva da abordagem saramaguiana corrobora a defesa de Frye: por mais moderno e inovador que pareça um autor, ele sempre deve sua linguagem aos cânones formais fundadores, seja os enaltecendo ou os ressignificando. Perspectivas e metodologias diferentes à parte, Frye e Auerbach utilizam exemplos bíblicos ou clássicos para reforças suas teses uniformizantes do cânone literário. É pela via secular e circunstancial que Saramago constrói detalhes e contextos ficcionais que motivam os rumos da narrativa e, assim, desenvolve as personagens e seus conflitos em O Evangelho segundo Jesus Cristo, “defende[ndo] um humanismo quase radical, pois escreve seu evangelho In Nomine Hominis” (Ferraz 1998: 26). As veias de militância política e antirreligiosa são fatores essenciais de análise dos arquétipos cristalizados na obra. Segundo as características de cada imagem definida por Frye, o Evangelho caracteriza- se pelas imagens demoníacas e pela subversão das imagens apocalípticas, o que é uma ferramenta comum à literatura paródica, segundo palavras do próprio Frye: “um dos temas centrais das imagens demoníacas é a paródia, o arremedo da exuberante obra de arte ao sugerir sua imitação em termos da ‘vida real’” (1967: 277). Frye aponta cinco mundos, já exemplificados mais acima, em que operam as imagens arquetípicas. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, as imagens demoníacas evocadas dentro do mundo humano são as da “fonte sem fim dos dilemas trágicos, como os de Hamlet e Antígona” (Frye 1957a: 278). Entre elas, o dilema de José entre salvar a vida de seu filho Jesus ou as outras crianças recém-nascidas de Belém, contra o assassínio instigado pelo Rei Herodes. Também são ilustrativos os vários conflitos morais de Jesus frente ao humanismo ensinado pelo Pastor contra os deveres de bom cristão que o escandalizam, como o dilema do sacrifício do cordeiro, por exemplo. Jesus recusa-se a sacrificar o cordeiro no ritual de Páscoa; porém, confrontado por Deus, rende-se à tirania do seu líder espiritual e sacrifica o animal em ato bestial e sem sentido, mesmo indo de contra ao seu pudor genuinamente humanista. Jesus vive o dilema ético da sua própria existência ao ser atormentado pelo mesmo pesadelo e sentimento de culpa do pai quanto à morte das inocentes crianças de Belém. A religião e as obrigações espirituais são o alvo favorito do autor português como mote dos conflitos existenciais de seus personagens. A intervenção moral de Saramago imposta às personagens do Evangelho dá contornos de dramaticidade shakespeariana à particular ressignificação das personagens bíblicas. Em um dos polos da concepção demoníaca do mundo humano está o conceito de pharmakos, que será melhor avaliado no último tópico deste capítulo. O pharmakos é a definição da vítima sacrificada em prol de um ideal ou do fortalecimento de outros (Frye 1957a:

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278). O pharmakos é presença constante no relato do evangelho saramaguiano, não só no seu protagonista, Jesus, vítima escolhida e manipulada para morrer em prol de uma religião cruel, segundo a retórica de Saramago, mas também nas crianças inocentes de Belém, no cordeiro sacrificado quando do primeiro encontro entre Jesus e Deus, além da extensa lista de mártires históricos do Cristianismo proclamada por Deus no longo episódio da barca, antepenúltimo capítulo do romance. No polo oposto do pharmakos, está o líder tirânico:

O maquinário do destino é administrado por um conjunto de deuses invisíveis e remotos, cuja liberdade e prazer são irônicos, porque excluem o homem, e que intervêm nos assuntos humanos especialmente para salvaguardar suas próprias prerrogativas. Eles exigem sacrifícios, punem à presunção e impõem obediência à lei natural e moral como um fim em si mesmo (Frye 1957a: 277).

A descrição de Frye é perfeitamente cabível à personagem de Deus no evangelho saramaguiano. Deus ganha o antagonismo do herói Jesus, é provedor do destino implacável e doloroso a que a vítima tenta escapar. São inúmeros os ensaios e artigos que tratam do papel tirânico e maligno de Deus no romance; como escreve Ana Célia Coelho, “Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Deus é cruel, egocêntrico, tirano, egoísta e sanguinário; não se importa com a criatura humana, apenas pretende utilizá-la para satisfazer as suas vontades mesquinhas” (Coelho 2011: 2). O Deus saramaguiano evoca a imagem do mundo divino do arquétipo demoníaco, segundo palavras de Frye: “o maquinário do destino é administrado por inúmeros deuses invisíveis e remotos, cuja liberdade e prazer são irônicos, pois excluem os homens, e que intervêm nos assuntos dos homens apenas para salvaguardar as próprias prerrogativas” (1957a: 277). A sede de poder e sangue de Deus é melhor ilustrada em famosa passagem do livro já citada há pouco: a cena do sacrifício do cordeiro. É páscoa e Jesus necessita de um cordeiro para sacrificá-lo em adoração a Deus. Ele não quer utilizar-se de um animal do seu rebanho administrado junto com o Pastor, pois tem apreço por eles. Recusando sacrificar uma de suas crias, Jesus vai em direção a Emaús e Jerusalém para conseguir um novo cordeiro com o pouco dinheiro que tem. Um judeu empático à sua causa consegue um de graça para que ele o sacrifique. Jesus aceita o cordeiro, mas enquanto caminha para o santuário de Jerusalém, apega- se ao animal e o vê como uma de suas crias no rebanho que gere junto à personagem Pastor.

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Decide não sacrificar tão belo e puro animal, acha a atitude irracional, critica o costume vigente e não entende a necessidade de sacrificar a criatura como prova de adoração ao Pai. Anos depois a ovelha preferida se desprende do rebanho e se perde, Jesus vai à sua procura. Quando ele a encontra, Deus, por meio de uma coluna de fumaça cinza faz sua primeira aparição a Jesus e o revela acerca de sua vocação perante o povo escolhido, faz promessas de glória e poder eterno ao seu filho sem especificar em troca de quê. Deus hesita em contá-lo, pois defende que ainda não é hora apropriada, e manda Jesus seguir sua vida normalmente enquanto não é convocado. Jesus pergunta se pode levar o cordeiro, porém Deus afirma desejar o sacrifício do pobre animal como forma de selar a nova aliança. Jesus é contrário à decisão e pergunta se não pode ser outro cordeiro, diferente do seu preferido, já salvo de anterior sacrifício. Deus não abre mão; Jesus obedece e corta a cabeça do cordeiro em cena forte e crua. Deus exulta de satisfação, quase em gozo sexual:

O cutelo subiu, tomou o ângulo do golpe e caiu velozmente como o machado das execuções ou da guilhotina que ainda falta inventar. A ovelha não soltou um som, apenas se ouviu, Aaaah, era Deus suspirando de satisfação (Saramago 1991: 262).

A forte cena também evoca a imagem da execução e da guilhotina (o anacronismo do termo é coerente dentro do papel extradiegético do narrador, que vive fora do tempo histórico da narrativa) que, junto com as crucificações em que são mortos Jesus e José (a sequência de cruzes dos rebeldes julgados durante a morte de José é particularmente marcante), com a terra devastada em consequência da guerra entre os rebeldes judeus liderados por Judas, o Galileu, e o domínio romano, e com os túmulos das crianças mortas de Belém, são imagens arquetípicas ilustrativas do mundo mineral demoníaco, da cidade perdida em dor, caos e sofrimento. Quanto ao mundo vegetal, explica Frye: “Na Bíblia, a terra devastada aparece em sua forma universal concreta na árvore da morte, na árvore do conhecimento proibido no Gênese, na figueira estéril dos Evangelhos [Mateus 21, 19-21] e na cruz” (1957a: 280). O crítico canadense, portanto, também enxerga a cruz (o cadafalso, o enforcamento, o pelourinho...) como “modulações” da árvore da morte no mundo vegetal3. A figueira citada por Frye aparece no momento do enforcamento de Judas Iscariotes, após o discípulo entregar Jesus às forças militares de Pôncio Pilatos. A imagem aparece também em outra oportunidade:

3 Mircea Eliade em seu amplo estudo sobre as imagens mitológicas de diversas religiões encontra um padrão da relação da imagem arquetípica da árvore com a vida e a morte em inúmeras tradições religiosas, como no hinduísmo, cultos mesopotâmicos ou escandinavos (Eliade 1949: 214-15).

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Ia Jesus por um caminho no campo quando sentiu fome, e vendo ao longe uma figueira com folhas, foi ver se nela encontraria alguma coisa, mas, ao chegar ao pé dela, não encontrou senão folhas, pois não era tempo de figos. Disse então, Nunca mais nascerá frutos de ti, e naquele mesmo instante secou a figueira. Disse Maria de Magdala, que com ele estava, Darás a quem precisar, não pedirás a quem não tiver. Arrependido, Jesus ordenou à figueira que ressuscitasse, mas ela estava morta (Saramago 1991: 360).

A figueira representa a morte, pondo-se contrária, inclusive, à vontade milagrosa de Jesus Cristo, pois permanece morta mesmo com a intervenção para que revivesse. Tal procedimento de inversão arquetípica de uma imagem que no cânone representa vida e passa a representar morte, por exemplo, é um padrão recorrente na literatura irônica identificado por Frye. Adentrando na análise do mundo animal e nas relações eróticas do arquétipo demoníaco, perceberemos com mais ênfase o procedimento a que Frye denomina “modulação demoníaca”: a subversão do significado de uma imagem apocalíptica para uma ressignificação demoníaca ou vice-versa. A complexa personagem Maria de Magdala, prostituta e mulher de Cristo no romance, é perfeito objeto de análise de como as imagens arquetípicas repercutem nela. Antes de sua evolução como personagem, Maria de Magdala preenche todo as categorias das imagens evocadas pelas relações eróticas demoníacas (relações que fazem parte das imagens do mundo dos homens segundo a divisão do crítico canadense):

A relação erótica demoníaca torna-se uma feroz paixão destrutiva que vai de encontro à lealdade ou frustra aquele que a possui. É simbolizada geralmente por uma prostituta, bruxa, sereia, ou outra fêmea enfeitiçante, um objeto físico de desejo que é buscado como uma posse e, portanto, jamais pode ser possuído (Frye 1957a: 279).

A figura da prostituta é ilustração exemplar das relações eróticas nas imagens demoníacas. Frye parte da tese platônica a respeito do eros pronunciada por Pausânias, em O Banquete, que divide a relação erótica em duas: uma virtuosa e outra viciosa. Pausânias questiona a prostituição como viciosa: “Se um erômeno tem o costume de entregar-se a qualquer um pelo dinheiro, isto não é belo. Estou certo?” (Platão s/d: 51). Em analogia a Frye, o eros vicioso carrega característica não desejáveis, assim como uma imagem demoníaca. Maria de Magdala, porém, foge de tais qualidades e torna-se símbolo do amor religioso e apocalíptico. De antemão, segue explicação de Frye quanto às imagens arquetípicas das relações eróticas apocalípticas: “No símbolo sexual, claro fica ainda mais fácil empregar a

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metáfora da mesma carne de dois corpos que se fazem um só amor [...] Os temas da lealdade, da adoração ao herói, de seguidores fiéis, e coisas do gênero, também empregam a mesma metáfora (1957a: 271). O crítico canadense evoca O Banquete de Platão novamente, no discurso de Aristófanes sobre o mito andrógino (Platão s/d: 63) para caracterizar a relação erótica apocalíptica. No mito platônico, a união entre o homem e a mulher amados configuram- se em só ente completo e autossuficiente. Maria de Magdala vira mulher de Jesus e constrói com o amado um sentimento de cumplicidade genuíno. A descrição dos atos sexuais, a troca de olhar sincera e confidente, a relação de companheirismo construída entre ambos ganha contornos espirituais, como se eles encontrassem por meio do amor pecaminoso (segundo a perspectiva judaica) o norte existencial de suas vidas. O entendimento e a humildade da mulher conquistam Jesus, configurando a relação de ambos em uma troca mútua de acolhimento e atenção independente da situação e atividade profissional da companheira. Jesus vê Maria de Magdala despida:

Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como joias, o teu umbigo é uma taça arredonda, cheio de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus dois seios são como dois filhos gêmeos de uma gazela... (Saramago 1991: 280).

O amor pecaminoso com a prostituta é ressignificado e ganha as características da relação erótica puramente apocalíptica. O sublime do momento é até complementado por Saramago com uma citação do Cântico dos Cânticos, do Antigo Testamento, com os versos sensuais de Salomão. Salma Ferraz aponta:

Há todo um lirismo pungente nos diálogos entre Cristo e Madalena. A linguagem dos dois, que deveria ter um aspecto profano, uma vez que o texto é paródico, tem um reflexo contundente de justiça e de linguagem teológica... (Ferraz 1998: 89).

Em diálogo com a modulação de Frye, entra a tese de Bakhtin quanto à carnavalização do texto literário. Salma Ferraz aponta a tese de Bakhtin como elemento dominante não só no Evangelho, como em toda a obra de Saramago. O russo aponta a carnavalização como processo de profanação ideológica e ridicularização do supremo, da divindade e do poder, definindo tais características como familiarizadas à paródia (Bakhtin 1963: 130-32). A atuação militante, crítica e ideológica de Saramago perante temas sagrados organicamente associado ao perfil

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parodístico e carnavalesco de sua obra, além de ter atuação fundamental dentro das modulações das imagens arquetípicas entre o apocalíptico e o demoníaco, fica clara a partir do exemplo apresentado de Maria de Magdala. Como já apontado no capítulo anterior, ficam nítidas as definições de paródia propostas por Houston e de como tais conceitos encaixam-se no universo saramaguiano, pois “aproxima-se do burlesco, do profano e é extremamente antagônica em relação ao texto primeiro” (Ferraz 1998: 60). Outra das personagens mais complexas e enigmáticas da obra, o Pastor, também é objeto de uma modulação das imagens arquetípicas. O diabo, antagonista de Deus nas Sagradas Escrituras e representação do mal, ganha a alcunha de Pastor e guia de Jesus contra a tirania de Deus. É o Pastor, com nome sugestivo, que resgata a ovelha desgarrada e tenta destituí-la da manipulação de Deus. O Pastor é a representação do libertador e guia dos perdidos, que, segundo a doutrina humanista de Saramago, são perdidos por serem vítimas das garras de um tirano sobrenatural. Frye fala sobre o arquétipo apocalíptico da figura pastoril:

As honras convencionais conferidas ao cordeiro no mundo animal fornecem-nos o arquétipo central das imagens pastorais, mas também metáforas como as do ‘pastor’ e do ‘rebanho’, na religião. [...] Talvez o uso dessa convenção em particular deva-se ao fato de que, sendo estúpidas, afáveis, gregárias e facilmente debandadas, as sociedades formadas por ovelhas são muito parecidas com as humanas (1957a: 272).

O arquétipo metafórico do pastor, apesar de associado ao mundo animal na figura da ovelha (ou cordeiro), faz parte do mundo humano, pois é visto como um elemento de estabilização, liderança e cuidado com a sociedade dos homens, metaforizada pelo rebanho. No cânone bíblico, o pastor é imagem de Deus, como diz o Salmo 23 no Antigo Testamento: “O Senhor é meu pastor, e nada me faltará”. Na diegese saramaguiana, entretanto, instaura-se a “modulação” e a carnavalização das personagens. Deus vira uma ilustração do arquétipo demoníaco, enquanto o diabo, sob a alcunha de Pastor, vira um arquétipo apocalíptico em defesa da sua ovelha desgarrada, Jesus Cristo. A cena do sacrifício do cordeiro pode, dessa forma, ser vista como uma releitura paródica do cânone. Jesus é o cordeiro sacrificado por Deus para a imposição da Igreja cristã e do mar de sangue que se segue à sua morte, enquanto o Pastor é a figura que tenta resgatá-lo para o seu rebanho:

Não te perguntei se te encontraste com Deus, perguntei-te se achaste a ovelha, Sacrifiquei-a, Porquê, Deus estava lá, teve de ser. Com a ponta do cajado, Pastor fez um risco no chão, fundo como um rego de

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arado, instransponível como uma vala de fogo, depois disse, Não aprendestes nada, vai (Saramago 1991: 263).

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2. O Evangelho saramaguiano entre o mítico e o irônico

Ao definir os cinco modos que organizam a ficção ocidental em mítico, romântico, mimético elevado, mimético baixo e irônico, Frye os diferencia a partir do poder de ação do herói dentro do universo ficcional. Tal poder é posto em comparação aos limites de ação da nossa própria experiência humana dentro do mundo real. Por exemplo, no modo ficcional mítico, o herói é um ser divino e “superior em espécie” (termo utilizado pelo próprio Frye para caracterizar qualidades sobrenaturais e superiores ao nível de experiência humano) ao humano; no modo ficcional romântico, o heróis são humanos, porém dotados de coragem, bravura, resistência e poderes mágicos que são superiores aos das pessoas comuns; o modo mimético elevado é representado por heróis iguais em espécie, mas superiores aos outros pelo seu posto de poder e liderança dentro da ordem natural da sociedade (como, por exemplo, um rei); já no modo mimético baixo, o herói está em igualdade de espécie e grau em relação à experiência do homem comum e é, portanto, centralizado em um contexto ficcional mais realista; e, por fim, no modo irônico, o herói é um ser inferior em força ou inteligência a nós mesmos, de modo que o leitor o avalia de cima para baixo em tom de julgamento (Frye 1957a: 145-6). O crítico canadense defende que os cinco modos ficcionais tiveram notoriedade na cultura ocidental dentro de uma estrutura cronológica que acompanha o desenvolvimento da ficção no decorrer da História, começando pelo mítico e indo até o irônico (1957a: 147). Ele afirma que no período pré-medieval, por exemplo, a literatura ocidental está fortemente firmada sobre o mito cristão, tardo-clássico, celta ou teutônico. Com o passar dos séculos, a literatura se firmou sobre o modo romântico, com o advento e dominância dos romances de cavalaria - como Perceval ou le Conte du Graal, de Chrétien de Troye - e as lendas de santos – como a lenda de São Jorge. O modo romântico é substituído pelo Mimético Elevado a partir do Renascimento, na literatura de culto ao cortesão e ao príncipe, no drama aristocrático ou na Epopeia Nacional – aqui destaca-se a dramaturgia de Shakespeare. Frente às revoluções liberais e uma nova cultura de classe média, o modo mimético baixo ganha força desde a época de Defoe até o final do século XIX. No século XX, enxergamos a tendência irônica.

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Por fim, Frye aponta para um reinício do ciclo, ao perceber que o modo ficcional irônico “segue firmemente em direção ao mito, e vagos contornos de rituais sacrificiais e deuses agonizantes começam a reaparecer nele” (1957a: 157). Essa tendência ao reinício do ciclo pode ser vista de maneira análoga em Harold Bloom, no Cânone Ocidental, de 1994. Bloom, ao traçar sua visão da evolução do cânone durante a cronologia da literatura ocidental, toma emprestado o postulado de Giambattista Vico, na obra Nova Ciência, em que o italiano distingue três fases do desenvolvimento do cânone literário: a teocrática, a aristocrática e a democrática, seguida por um período de caos que originaria uma nova fase teocrática (Bloom 1994: 11) Bloom e Frye convergem quanto à percepção de que a literatura segue uma cronologia cíclica. Ambos, inclusive, usam Kafka e sua analogia moderna ao Livro de Jó, a partir da figura do herói como bode expiatório, o judeu “João Ninguém” vítima inescapável de uma força maior simbolizada pela burocracia moderna como representante do modo irônico. Bloom, inclusive, aponta Kafka e Joyce como representantes da fase do Caos, o período de intercessão entre a fase democrática e o retorno à fase Teocrática. Em convergência, Frye usa justamente esses dois autores para apontar onde fica particularmente claro o reaparecimento do mito no irônico (1957a: 157). As características do judeu “João Ninguém”, típica vítima trágica da literatura irônica do século XX, que são comuns a Kafka, podem ser reencontradas na personagem Shem, de , de Joyce. Frye define irônico como “um padrão de palavras que se distancia da declaração direta ou do seu próprio sentido óbvio” (1957a: 154). Na ironia, por exemplo, é possível incitar um juízo de valor no leitor a partir da supressão de uma posição moral explícita. O leitor deve perceber pelos detalhes implícitos no texto e na atitude do autor onde reside a ironia e o que é dito sem ser explicitado. Já , de forma semelhante, defende a ironia como o contraste semântico entre o que é afirmado e o que é significado, além de criar a ideia de julgamento (1985: 73). Ao assinalar a diferença entre o que é afirmado e o que é significado, o recurso da ironia assinala uma inversão de significado que permite um distanciamento crítico - e, por consequência, um juízo de valor - do leitor quanto ao objeto ironizado. O Evangelho segundo Jesus Cristo, dentro do critério histórico dos modos ficcionais proposto por Northrop Frye, foi escrito no final do século XX, mais precisamente em 1991, em um ponto de interseção entre o fim e o reinício do ciclo, entre o irônico e o mítico. A desconstrução de uma narrativa canônica sagrada a partir de um subterfúgio paródico que a dessacraliza subverte seu significado e muda a perspectiva de suas personagens para uma

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contextualização secular e irônica. Tais mecanismos configuram a obra saramaguiana nos limites entre a ironia e o mito. Como Linda Hutcheon afirma em A Teoria da Paródia, o ato de dar um novo sentido e recontextualizar um texto por meio da paródia, a partir do procedimento da inversão irônica, é denominado “transcontextualização” (1985: 19) e é basicamente desse procedimento que Saramago se vale para narrar seu Evangelho. “A transcontextualização irônica é o que distingue a paródia do pastiche ou da imitação” (1985: 24). Entraremos de forma mais precisa na transcontextualização irônica específica das personagens principais no próximo subcapítulo, porém, em todo caso, a narração do nascimento de Jesus assinala o âmbito irônico com que Saramago sublinha sua narrativa:

O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo (1991: 81).

O nascimento de Jesus, como se pode perceber, é transcontextualizado. Ganha contornos crus, reais, dentro da experiência humana. O jovem nasce banhado de sangue da mãe, coberto de mucosidades e chorando compulsivamente como qualquer mero recém- nascido. Em Mateus, toda a passagem do nascimento é sintetizada em um simples período: “Quando acordou, José fez conforme o Anjo do Senhor havia mandado: levou para Maria casa, e, sem ter relações com ela, Maria deu à luz um filho” (S/D: 1181). Em Lucas, o relato é ainda mais sucinto. Saramago, ao narrar a trajetória de Jesus em busca de sua humanidade, coloca o leitor em um âmbito de experiências semelhantes ao do herói. O leitor ganha a capacidade de julgar Jesus tanto a um nível de semelhança quanto de superioridade. Pois, de acordo com as características do modo mimético baixo e irônico, Jesus vive experiências humanas que estão dentro do âmbito de probabilidade do leitor. Cibely Lopestre Costa aponta:

O efeito provocado no ato da leitura pode ser o disparador para uma inédita experiência leitora, aquela que leva o leitor à reflexão ou ao choque. Portanto, seu caráter epifânico está presente na representação de um Jesus que busca sua humanidade, já que ele se afasta da conduta reflexiva da meditação e assume a possibilidade de viver experiências terrenas, concretas a fim de encontrar respostas a sua angústia existencial. Assim, a trajetória da personagem leva o leitor a criar analogias com suas próprias experiências (2008: 3).

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Frye, ainda no primeiro ensaio de Anatomia da Crítica, define duas distinções entre estilos ficcionais que separa em trágico e cômico. A primeira caracteriza ficções cujo herói se coloca em uma situação de ruptura traumática com a sociedade na qual vive, enquanto a segunda caracteriza as ficções cujo herói é incorporado à sociedade dentro de um plano de harmonia final (1957a: 148). A morte de Cristo na cruz narrada no Evangelho Segundo Mateus e Segundo Marcos é vista por Frye como imagem canônica da tragédia no modo ficcional mítico. O grito de Jesus “Por que me abandonaste?”, no momento derradeiro de sua vida terrena, assinala a sensação de exclusão, como ser divino, da sociedade da Trindade (1957a: 149). A personagem Jesus em Saramago carrega dentro de si o hibridismo que o assinala como herói irônico, mas também mítico. Por mais que Saramago construa a personagem dentro de perspectivas da experiência humana e dos vícios e prazeres terrenos, Jesus ainda é o escolhido por Deus para morrer em sacrifício da humanidade e para o nascer do Cristianismo. Seu destino é impossível de ser contornado, pois pertence a Deus. Jesus é a vítima indefesa do Deus tirano, que decide o destino da humanidade ao seu próprio entender e sem a participação opinativa de suas criaturas. Frye assinala o seguinte quanto à vítima da tragédia irônica:

A figura de uma vítima típica ou aleatória começa, portanto, a cristalizar-se na tragédia doméstica conforme essa última se aprofunda no tom irônico. Podemos chamar essa vítima típica de pharmakos ou bode expiatório... O pharmakos não é inocente nem culpado. É inocente no sentido de que aquilo que lhe sucede é muito maior do que qualquer coisa proveniente de uma ação sua poderia ter provocado, como o montanhista cujo grito provoca uma avalancha. É culpado no sentido de que é um membro de uma sociedade culpada, ou vive num mundo onde tais injustiças são partes inescapáveis da existência (1957a: 156).

Jesus configura-se como pharmakos no romance de Saramago pois é vítima de um destino incongruente e inevitável. Incongruente, pois ele é demasiado humano (e humanista) para profetizar uma religião que será sustentada pela morte de milhões. Também incongruente, pois a dolorosa morte na cruz é maior do que qualquer ação sua poderia ter provocado. É inevitável, pois Jesus pertence a uma sociedade já culpada e condenada pelo “pecado original”, pela posse de Adão à maçã da Árvore da Vida. As injustiças e condenações que atingem os judeus, os pecados pelos quais são tentados, são parte inescapável da existência. Jesus, como herói e vítima na ficção irônica e trágica de Saramago, possui as características do pharmakos ou bode expiatório. Ao ser morto na cruz, é excluído da sociedade humana da qual queria fazer parte e abre caminho para o surgimento do Cristianismo e para a

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proliferação de morte e sacrifícios humanos que isso acarreta. É nesse processo que vai do demasiado humano ao divino que o encontro do irônico com o mítico se processa. Como já explicado, a ironia segue firmemente em direção ao mito. E o ritual sacrificial de Jesus na cruz simboliza esse encontro entre o irônico e o divino. O longo episódio da barca, em que Jesus é cercado por Deus e pelo Pastor, um em cada extremidade da embarcação, traz a presença simultânea das duas personagens divinas, superiores em espécie em relação ao homem. Esse episódio emblemático no romance assinala o modo mítico da narrativa. As entidades sobrenaturais – não só Deus e o Pastor, mas também os anjos – são personagens superiores em espécie e poderes em relação aos homens e em relação ao ambiente de leis naturais dos homens. Deus pode intervir nesse ambiente e suspender as leis normais da natureza de acordo com Sua vontade. O Evangelho segundo Jesus Cristo transita na intercessão entre os dois modos extremos do cânone literário e assinala o recomeço do ciclo de volta ao modo mítico. A obra de Saramago desenvolve a tragédia irônica do homem como vítima da tirania divina, que suscita as imagens do arquétipo demoníaco. Ao caracterizar o mundo demoníaco no terceiro ensaio de Anatomia da Crítica, Northrop Frye aponta para a íntima associação entre o mítico e o irônico em decorrência da tirania de Deus:

O maquinário do destino é administrado por um conjunto de deus invisíveis e remotos, cuja liberdade e prazer são irônicos, porque excluem o homem, e que intervêm nos assuntos humanos basicamente para salvaguardar suas próprias prerrogativas. Eles exigem sacrifícios, punem a presunção e impõem obediência à lei natural como um fim em si mesmo. Não estamos tentando descrever aqui, por exemplo, os deuses na tragédia grega: estamos tentando isolar o sentido do distanciamento e da futilidade humanas em relação à ordem divina, que é somente um elemento entre outros na maioria das visões trágicas da vida, embora essencial em todas elas (1957a: 277).

O Evangelho de Saramago é uma narrativa da impotência do homem perante a tirania do Criador. A fraqueza e debilidade das personagens perante o destino arquitetado segundo o projeto divino são afloradas não somente em Jesus, mas em todas as personagens humanas que fazem parte da obra. José, a quem Saramago dedica protagonismo nas primeiras páginas, é caracterizado como um indivíduo inseguro, ciumento e pouco hábil na sua profissão. Sua existência é atormentada pela culpa do assassinato das crianças de Belém. José, ao saber dos planos do Rei Herodes de matar os recém-nascidos, foge com Jesus sem comunicar aos outros e os impossibilitando de uma chance de escapar. O estilo descritivo e pictórico de Saramago é

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fundamental para ilustrar a representação irônica da impotência das personagens. A ida solitária de José a Séforis para encontrar o vizinho Ananias, que culmina na morte de ambos, é elucidativa da representação que Saramago dá às suas personagens. Após a morte de Ananias, José lamenta:

Como um vitelo fulminado, daqueles que vira sacrificar no Tempo, caiu de joelhos e, com as mãos contra o rosto, soltaram-se lhe de uma vez as lágrimas, todas aquelas lágrimas que há trezes anos vinha acumulando, à espera do dia em que pudesse perdoar-se a si mesmo ou tivesse de enfrentar a sua definitiva condenação. Deus não perdoa os pecados que manda cometer. José não voltou ao armazém, compreendera que o sentido das suas acções se perdera para sempre, nem o mundo, o próprio mundo, tinha já sentido, o sol estava a nascer, a para quê, Senhor, no céu havia mil pequenas nuvens, espalhadas em todas as direções como as pedras do deserto (Saramago 1991: 159).

Na cena narrada, faz-se nítida a sensação de impotência, pequenez e isolamento por parte de José. Ele se ajoelha e enfrenta sua condenação. O narrador é enfático quanto a indiferença de Deus aos atos cometidos pelos fiéis em nome dele. É uma cena marcante em que narra a impotência e solidão do fiel frente a tirania do criador – estados esses inerentes à personagens do romance saramaguiano. Saramago ainda faz questão de salientar a indiferença da natureza em relação a José. Tamanha ênfase irônica é algo que Saramago já utilizou de modo eficaz em Levantado do Chão. Assim como no Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago faz uso de seu narrador para assinalar o teor irônico, a perspectiva de superioridade que o narrador tem em relação às personagens e suas circunstâncias. O narrador assinala ironia seja pela caracterização por vezes ridicularizante e toscas das personagens – reféns de sua fraqueza, imperfeições e impotência – ou seja, pela ênfase no destino trágico e na indiferença, tanto divina quanto da natureza ou da ordem social, em relação as suas próprias tragédias. A diferença marcante entre as duas obras é o autor (ou circunstância) que opera essa situação de indiferença trágica: se no Evangelho temos o elemento divino, em Levantado temos o elemento materialista:

Cria a natureza as suas diversas criaturas com admirável brutidade. Entre mortos e aleijados, considera, não faltará quem escape para garantir os resultados da gerência, modo ambivalente e portanto equívoco de substantivar o gerir e o gerar, com aquela confortável margem de imprecisão que produz as mutações do que se diz, do que se faz e do que se é. Não marca a natureza coutadas, mas aproveita delas [...] Ao apuramento do saldo importa pouco que tenham morrido aos milhões por inundação natural, revolvimento de enxada ou desafio de micções: quem viveu, comeu, quem morreu deixou aos outros. A

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natureza não conta mortos, conta vivos, e, quando estes lhe sobejam, arranja uma nova mortandade. É tudo muito fácil, muito claro e muito justo, porque, de memória de formiga ou elefante, ninguém tal contestou no grande reino dos animais (Saramago 1981: 453).

Nas duas obras, o narrador é um elemento potencializador do viés irônico. De Deus a José, todos as personagens são objetos da abordagem por vezes jocosa, por outras severa, do narrador. É jocosa, por exemplo, quando descreve José e suas fragilidades vulgares: o ciúme que sente de Maria por uma suposta traição e a falta de habilidade profissional como carpinteiro; ou quando descreve a intransigência e o deleite quase sádico de Deus, como no episódio da risada no sacrifício do cordeiro. É severa quando sublinha o sofrimento e impotência humanos: a debilidade da carne, a fraqueza moral e a subserviência ao destino. Maria Alzira Seixo, em O Essencial sobre José Saramago, comenta a respeito do narrador saramaguiano:

Narrador que se define em função de um tempo conjuntura e conjectural (história e ficção), espécie de consciência infeliz na sua omnisciência desenganada (propensa à moralização, ao aforismo e à profecia) mas ao mesmo tempo satisfazendo-se com as perspectivação lúdica dos materiais que domina, fazendo humor com suas possibilidade manipuladoras e comprazendo-se cinicamente (ou mesmo despudoradamente) no desvelar progressivo e pormenorizado dos meandros mais secretos das motivações de suas criaturas (Seixo 1987: 49).

No Evangelho, o narrador possui uma presença omnisciente, pois conhece o presente, passado e futuro da história relatada. Divaga com certo humor a respeito da familiaridade do espectador com a obra e daquilo que será relatado dali em diante. Acrescenta comentários que parecem feitos em época alheia à data em que se desenrola o enredo, enfatizando assim a sua presença alheia e extradiegética. O narrador possui tanto uma relação de proximidade quanto de distanciamento com as personagens. Proximidade, pois conhece em detalhes os meandros das mentes dos sujeitos; sabe de suas frustrações, de seus medos, de seus pesadelos e anseios. Distanciamento, pois mantém uma perspectiva de análise objetiva das personagens e como elas atuam em cada circunstância; um olhar de cima para baixo, como assinala a definição do modo irônico feita por Frye, e propensa ao moralismo e ao aforismo, como aponta Seixo. Salma Ferraz, por fim, conclui acerca do narrador: “A onisciência que o aflige pode ser a responsável pela sua intrusão constante, bem como por outra sua característica específica: a suposição de fatos e falas que só

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ocorrem em sua mente onisciente, característica presente nos outros narradores construídos por Saramago” (2012: 154). Analisado como o Evangelho de José Saramago transita entre os modos ficcionais irônico e mítico, recomeçando o ciclo proposto por Northrop Frye, será detalhado no subcapítulo seguinte de forma mais elaborada como quatro relevantes coadjuvantes do romance podem ser devidamente analisados sob a ótica dos modos ficcionais.

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3. José, Pastor, Deus e Maria Magdalena e os modos ficcionais

De acordo com o impacto de suas ações e do protagonismo na trama, selecionamos José, Pastor, Deus e Maria de Magdala como as quatro personagens principais cujas características ficam melhor refletidas nos modos ficcionais de Frye. Personagens não desinteressantes, mas com menos impacto na obra, como Maria, Zelomi ou alguns dos apóstolos, serão deixados de lado. As quatro personagens que analisaremos já foram estudadas, principalmente na análise arquetípica, como é o caso de José. A partir da análise pretendemos mostrar a relevância de cada um desses quatro personagens na ficção de Saramago. José surge como o primeiro protagonista do Evangelho antes do nascimento e da consolidação da saga de Jesus. Saramago dedica em torno de 100 páginas para colocar o pai de Jesus como elemento fulcral da narrativa até sua morte e à passagem do protagonismo ao filho. A presença marcante e pormenorizada de José na ficção de Saramago contrasta com sua quase ausência nos Evangelhos canônicos. José é brevemente introduzido, de forma genealógica, nos primeiros capítulos de Lucas e Mateus. Entres os versículos 18 e 24 do primeiro capítulo do Evangelho segundo São Mateus, há um breve relato a respeito do vínculo matrimonial entre José e Maria e do aparecimento do “Anjo do Senhor” perante sua presença. O Anjo o diz: “José, filho de Davi, não tenha medo de receber Maria como esposa, porque ela concebeu sob a ação do Espírito Santo. Ela dará à luz a um filho, e você lhe dará o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados” (Mt: 18-24). Ainda nos mesmos versículos, José é apontado como homem “justo” e é referida uma suposta desconfiança por causa da gravidez virginal de Maria. José pensa em suspender o matrimônio, mas é apaziguado pela intervenção do Anjo do Senhor e aceita a missão de ser pai de Jesus. No capítulo 2, o Anjo reaparece em duas oportunidades a José por meio de sonhos. Na primeira, anunciando que ele leve Jesus para o exílio, evitando o assassinato da criança pelo rei Herodes e, na segunda, quando da morte de Herodes, para pedir o retorno de José e família a Belém.

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Em Mateus, José só é citado novamente em 13:55, quando é atribuído por um anônimo da sinagoga de Jerusalém como carpinteiro e pai de Jesus. A mesma cena se repete em Marcos 6:3. José só é novamente citado de forma breve nos primeiros versículos de Lucas 2, quando leva Jesus e Maria para recenseamento em Belém. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago narra a saga de José a partir do enriquecimento de detalhes aos raros e pouco pormenorizados eventos bíblicos: a insegurança de José frente à gravidez de Maria, o episódio do recenseamento, o episódio da fuga contra a intenções de Herodes, além das informações históricas acerca de sua profissão e genealogia. Saramago – além de trazer à personagem detalhes e densidade, inexistentes na Bíblia – desconstrói a imagem de “justo” atribuída ao José canônico. A personagem é elemento fundamental na inversão paródica proposta pelo autor português para dessacralizar o Evangelho. Antes mesmo da obra de Saramago, a vida de Jesus já havia passado pelo processo de dessacralização em algumas obras literárias, como no poema The Second Coming, de William Butler Yeats, e no conto The Man Who Died, de D.H. Lawrence; assim também como em obras cinematográficas, como O Evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, A Vida de Brian, de Terry Jones e A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, filme inspirado no romance homônimo de Níkos Kazntzákis. Dentro do viés secularizado da obra de Saramago, José é tratado de forma desdenhosa pelo narrador, que o reveste de defeitos: insegurança matrimonial, ausência de qualidades como carpinteiro, impotência perante seu temor e fidelidade a Deus. Como aponta Rafael Muniz Sens:

O pai biológico é humano, apenas humano e, por isso, arca com as consequências dessa medíocre limitação. Além disso, por ser perecível e frágil, é retratado com desdém e de forma pejorativa. É fiel e temente a Deus, o que deixa indícios de uma tendência irônica da parte do narrador. Mesmo que possua certa astúcia e consiga sustentar a família de forma digna, é veementemente zombado e diminuído. É carpinteiro e parece não dar muita conta do próprio trabalho, mesmo que, verdade seja dita, se esforça para tanto (2014: 3).

Sens aponta a fidelidade a Deus com elemento essencial das características de José que o configuram como herói irônico dentro do modelo de Frye. José é zombado pelo narrador pela impotência diante das arbitrariedades de Deus. É tanto no tratamento desdenhoso e debochado do narrador quanto na relação desigual de José com Deus que percebemos a impotência irônica da personagem frente a uma realidade que o

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oprime. O narrador incita um julgamento moral e pejorativo sobre José por ele não se dar conta da luta inglória que é manter-se temente a um Deus tirânico que o opera como um fantoche. A mediocridade humana configura José como o típico herói irônico, visto sob uma lente de sujeição e frustração pelo leitor (Frye 1957a: 147). Nele são realçadas suas fragilidades e inseguranças tanto em questões prosaicas (o já citado ciúme frente a uma suposta traição de Maria ou a falta de qualidades profissionais como carpinteiro) como em morais e existenciais (a responsabilidade na morte das crianças de Belém). A secularização da narrativa bíblica é essencial para o realce do viés irônico. Diferentemente do que é narrado nos Evangelhos, José faz sexo com Maria em narração explícita e rica em pormenores. Em outras situações, a débil humanidade de José é descrita com crueza a partir de suas funcionalidades orgânicas. A riqueza da ironia de Saramago é ilustrada na passagem em que José, ao acordar, vai urinar no alpendre junto aos jumentos e faz agradecimentos a Deus:

Era a hora em que o crepúsculo matutino cobre de cinzento as cores do mundo. Encaminhou-se para um alpendre baixo, que era a barraca do jumento, e aí se aliviou, escutando, com uma satisfação meio consciente, o ruído forte do jacto de urina sobre a palha que cobria o chão. O burro voltou a cabeça, fazendo brilhar no escuro os olhos salientes, depois sacudiu com força as orelhas peludas e tornou a meter o focinho na manjedoura [...] José aproximou-se da talha de abluções, inclinou-a, fez correr a água sobre as mãos e, depois, enquanto enxugava-as na própria túnica, louvou a Deus por, em sua sabedoria infinita, ter formado e criado no homem os orifícios e vasos necessários à vida (1991: 22).

No outro extremo do conflito, está Deus. Durante sua carreira como romancista até 1991, Saramago introduziu sua militância antirreligiosa de maneira implícita nas obras, ou as relatou em passagens breves. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, por outro lado, a militância apoderou-se organicamente de toda a estrutura do romance. Nesse cenário, a construção do Deus cristão como antagonista da humanidade é fundamental na retórica do autor português. Deus ganha características concretas nas poucas aparições que faz na história. Antes de sua primeira aparição, quando tenta Jesus a sacrificar o cordeiro em prol da aliança que estão prestes a fechar, a figura de Deus é intangível e não representada por uma personagem concreta. Porém, ainda assim, faz-se presente simbolicamente por meio da doutrina no cotidiano e na intromissão no destino das personagens do plano humano: os judeus, das quais se notabilizam José e Jesus, pelos conflitos narrativos que Saramago desenha especificamente para ambos contra a tirania de Deus.

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Mesmo antes de aparecer tangivelmente como uma personagem, Deus caracteriza-se pela construção mítica, como entidade mística superior em poder à criação, responsável pela origem da vida e pelo destino da humanidade. Tal poder que emana de Deus é fundamental para delimitar o destino irônico da humanidade, inferior em espécie e em poderes ao criador. A partir dessa relação, o humanismo militante de Saramago, representado por Cristo, tenta enfrentar o destino que Deus preparou para Jesus e para humanidade, como forma de libertação humana frente aos desígnios para ela planejados. Jesus, o herói irônico, é crucificado segundo o desejo do antagonista mítico, Deus, com capacidades de ação superioras às de Jesus no universo narrativo de acordo com os modos ficcionais. Apesar de o Deus saramaguiano possuir características míticas e superiores ao universo diegético a que pertence, ele não é retratado sob a benevolência e autoridade amorosa indiscutível que o relato bíblico construiu. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, Deus é tirânico, intransigente e constrói seu reinado por meio de mortes e sacrifícios. Harold Bloom, no ensaio “The one with the beard is God, the other is the Devil: On Saramago”, relata:

Power is God’s only interest, and the sacrifice of Jesus employs the prospect of forgiveness of our sins only as an advertisement. God makes clear that all of us are guilty, and that he prefers to keep it that way. Jesus is no atonement: his crucifixion is merely a device by which God ceases to be Jewish, and becomes Catholic, a converso rather than a marrano. That is superb irony, and Saramago makes it high art, though to thus reduce it critically is to invite a Catholic onslaught. Of all fictive representations of God since the Yahwist’s, I vote for Saramago’s: he is at once the funniest and the most chilling, in the mode of the Shakespearean “herovillains”: Richard III, Iago, Edmund in King Lear (2001: 151).

Deus, portanto, adquire aspectos humanos de vaidade, sede de poder, intransigência e tirania para manutenção de sua influência. Em passagem já citada, na sua primeira aparição a Jesus, Deus regozija com um prazer quase sexual quando Cristo cede à ordem e sacrifica o cordeiro em prol da aliança entre ambos (Saramago 1991: 262). A passagem ilustra o que diz Bloom: “Saramago’s God can be both wily and bland, and he has a capacity for savage humor. No one is going to love this god, but then he doesn’t ask or expect love. Worship and obedience are his requirements, and sacred violence is his endless resource” (2001: 155). Deus ganha características que respondem ao nível de experiência humana, como um vilão shakespeariano que, a partir das definições dos modos ficcionais propostos por Frye, ganharia as características de um líder do modo mimético alto. Assim como Lady Macbeth,

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Deus não mede esforços, sacrifícios ou derramamento de sangue para a manutenção e a expansão do seu poder. No longo episódio da barca, quando Jesus se vê cercado por Deus e pelo Pastor, o primeiro, ao aparecer a Jesus, é descrito da seguinte maneira:

Não é, como da primeira vez, uma nuvem, uma coluna de fumo, que hoje, estando assim o tempo, poderiam ter-se perdido e confundido no nevoeiro. É um homem grande e velho, de barbas fluviais espalhadas sobre o peito, a cabeça descoberta, cabelo solto, a cara larga e forte, a boca espessa, que falará sem que os lábios pareçam mover-se. Está vestido como um judeu rico, de túnica cumprida, cor de magenta, um manto com mangas, azul, debruado de tecidos de ouro, mas nos pés tem umas sandálias grossas, rústicas, dessas de que se diz que são para andar, o que mostra que não deve ser pessoa de hábitos sedentário (1991: 362).

Deus, no retrato feito por Saramago, tem cara de “judeu rico”, de homem de poder pomposamente vestido. A paródia consuma-se, e a carnavalização bakhtiniana também. Saramago desconstrói a imagem de Deus entre o mítico e o mimético alto ou, de forma mais geral, entre o mítico e o que está dentro da experiência humana. Nágila Pegoraro Câmara, citando um termo de Ana Paula Arnaut, disserta acerca da desconstrução mitológica a partir do conceito de “dessacralização do mito”:

Nesse movimento literário [a desconstrução do mito] ocorre o que Ana Paula Arnaut [...] denomina “dessacralização do mito”, ou seja, acreditamos que o autor se aproprie de uma narrativa bíblica e a reescreva abandonando o sacro, pregado pelas doutrinas religiosas, e desmistificando a personagem, fragmentando-a e humanizando-a, como notamos em O Evangelho Segundo Jesus Cristo (Câmara 2015: 11).

A dessacralização do mito é operada a partir da apropriação e releitura da narrativa bíblica por Saramago. Da mesma forma que funciona a paródia, dessacralizando as personagens a partir de uma releitura secular e humanizada. Assim como Jesus, que transita entre o mítico e o irônico, e Deus, entre o mítico e o mimético alto, o Pastor também passa por desconstrução similar que acarreta uma mudança de modo ficcional. O Pastor é provavelmente a mais misteriosa das personagens de O Evangelho segundo Jesus Cristo. Como uma entidade sobrenatural, ele acompanha a vida de Jesus desde antes do nascimento. É ele o mendigo que anuncia a Maria a gravidez de seu primogênito (em clara dessacralização do episódio bíblico da Anunciação), a aparição misteriosa no deserto no caminho para o recenseamento e a figura que se faz presente no nascimento de Jesus na gruta.

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Em sua primeira aparição a Maria, o Pastor deposita uma areia brilhante em uma tigela de barro entregue a ela e faz o anúncio da gravidez. Apesar de não ter as feições místicas do Anjo Gabriel e ser descrito como um mendigo (o que indica uma abordagem irônica), a aparição do Pastor, o tom premonitório do anúncio e o brilho da areia entregue à Maria reveste à personagem e à cena de misticismo. Vale salientar a inversão paródica no fato de que o Pastor, representante do Diabo em Saramago, desempenha o papel desempenhado pelo Anjo Gabriel no Novo Testamento. O Pastor alcança participação mais aguda na obra quando encontra o jovem Jesus, em fuga de casa, e se torna seu tutor. No momento do encontro de ambos, Jesus dorme na caverna onde nasceu e reflete sobre o peso do seu nascimento e sobre a morte das inocentes crianças. O Pastor aparece subitamente e o interpela. A figura misteriosa se apresenta a Jesus e relata ser conhecedor de toda sua existência. Apresenta-se apenas como Pastor, não possuindo nome próprio. É um andarilho a pastorar seu gado. Não se diz dono de nenhum dos animais, nem usufrui comercialmente daquilo que produzem. Relata a Jesus que simplesmente os encontrou um a um e passou a pastorá-los. O Pastor surge então como uma figura paterna de salvação e cuidado das ovelhas desgarradas. As metáforas e sinais (o Diabo ser denominado Pastor; Jesus descumprindo seu ensinamento quanto à preservação de vidas e sacrificando uma das ovelhas) deixados pelo narrador e pelas palavras firmes e diretas do próprio Pastor são recorrentes e assinalam o papel dele junto a Jesus: salvá-lo da doutrina tirânica do Deus judaico. O contraste entre Deus e o Pastor se acentua quando este comunica Jesus da importância da preservação dos animais do rebanho:

O homem levantou o archote para mostrar as cabeças negras das cabras, os focinhos alvacentos das ovelhas, os lombos secos e escorridos dumas, as redondas e felpudas garupas doutras, e disse, Este é meu rebanho, cuida tu de não perder um só destes animais (Saramago 1991: 225).

O Pastor, representação desconstruída do Diabo segundo a inversão saramaguiana, é anjo rebelde de Deus; nas palavras direcionadas a Jesus, exprime a teologia que quer repassar ao novo aluno: da proteção e salvação de todos os membros do rebanho, contrastando enfaticamente com os métodos sacrificiais de Deus. A passagem do sacrifício do cordeiro, já citada mais de uma vez neste trabalho, é simbólica das divergências entre a doutrina humanista do Pastor e a doutrina tirânica de Deus. Jesus vê-se confuso diante da encruzilhada moral de qual doutrina seguir.

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Passam-se quatro anos até Jesus e Pastor terem a primeira conversa a respeito da fé. O teor do diálogo escandaliza Jesus. Ele nunca imaginaria estar bebendo do leite e dividindo a noite de sono com um infiel. Jesus ameaça abandoná-lo e ambos começam a discutir quanto à essência de Deus. O Pastor embaraça Jesus com perguntas capciosas que apontam para a incoerência e a tirania do Deus Cristão. Jesus se sente ultrajado por comentários supostamente ímpios e por se ver exposto a argumentos que enfraquecem sua fé. O Pastor é uma figura mística que traz uma representação descontruída do Diabo do cânone bíblico. Por suas características sobrenaturais e angelicais já relatadas, como no episódio da anunciação, e por suas habilidades em saber detalhes pormenorizados da vida de Jesus e de quem for, ele é revestido de características que o configuram como o herói do modo mítico. A passagem da barca é simbólica do antagonismo mítico que entre Deus e o Pastor. Localizados em cada extremidade da barca enquanto Jesus posiciona-se ao centro, a profunda relação existencial que existe entre Deus e o Pastor os posiciona no mesmo plano sobrenatural divergente do humano. Pastor foi expulso dos céus por se rebelar, então pede perdão e jura comportamento obediente. Jura que nunca mais será tomado pela ambição de ser tão poderoso quanto Deus. Deus dialoga com ele:

Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o bem, é necessário que tu sejas o mal (Saramago 1991: 390).

O Pastor, portanto, no plano da criação divina e no projeto de perpetuação do poder de Deus, é uma cobaia tão necessária quanto Jesus. Ambos são meros instrumentos da manutenção da tirania divina. Dessa forma, se o Pastor é um herói mítico perante a humanidade, ele é apenas um herói irônico no âmbito de Deus, mesmo dividindo o plano sobrenatural com ele. Por fim, a complexidade de Maria de Magdala também fornece premissas para que ela transite entre modos ficcionais diferentes. Salma Ferraz, em estudo sobre O Evangelho segundo Jesus Cristo de 1998, aborda a carnavalização sofrida por Maria de Magdala em relação à personagem bíblica:

Estranhamente, as cenas que mais poderiam chocar o leitor, as do relacionamento sexual entre Cristo e Madalena, justamente essas que, no cinema, causaram tantas polêmicas em vários filmes [...] Aqui parecem ser o último reduto do sagrado no Evangelho, o lugar poupado pelo olhar irônico e demolidor

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do narrador. A santidade dos cânticos sagrados mesclados aos momentos íntimos dos dois é um sinal de respeito e de sacralidade que o narrador confere a esse último episódio (1998: 86).

Prostituta, Maria de Magdala ganha características sagradas no âmbito de sua relação com Jesus. Ele encontra-se com ela por força do acaso: machuca seu pé, procura ajuda e o destino o leva para a porta da casa da prostituta. Ele é recebido por ela, se apaixona e vive sua primeira e genuína experiência espiritual por meio do sexo e do mais profundo amor que sente por ela. Entendimento e humildade da mulher conquistam Jesus. Maria de Magdala configura- se como um caminho de conhecimento iluminado com a sua natureza humana, independente dos desígnios de Deus. Ainda segundo Ferraz: “Cristo gostaria de ser chamado de sobrenome de alguém que passou para as páginas da História e da Teologia, como a prostituta mais famosa dos dois últimos milênios. O narrador permite que a sabedoria profética de Madalena se espalhe por todo o livro” (1998: 88). Não por acaso, Maria de Magdala acompanha Jesus em suas pregações. Ela torna-se, junto com o Pastor, o maior guia de Jesus nos caminhos do humanismo4 e de sua liberdade, alheia ao aprisionamento do Deus judaico. Harold Bloom reforça uma posição ainda de maior destaque a Maria de Magdala como vetor da libertação e autoconhecimento de Jesus:

We can void the “perhaps”, and Mary Magdalene is Jesus’ best teacher, eclipsing Joseph, God, Pastor, and Mary the mother. In what may be the book’s greatest irony she teaches him freedom, which God will not permit any man, but in particular not to God’s only son (2001: 161).

Maria de Magdala parece detentora de um saber profético e incita em Jesus uma faísca humanista que o faz enxergar a libertação por um caminho diferente do caminho da cultura religiosa. Por mais que Deus não permita a Jesus usufruir dessa liberdade, pois seu destino trágico já está escrito. É justamente esse saber profético e a capacidade de sacralizar o relacionamento amoroso que ela edifica com Jesus que traz pormenores míticos a Maria de Magdala. É nítido o tratamento solene e respeitoso que o narrador tem com ela, contrastante ao moralismo impiedoso com que trata José. Frye, em Anatomia da Crítica, disserta acerca da “simpatia

4 Tomo aqui emprestado o termo “humanismo” de Salma Ferraz, que defende O Evangelho de Saramago como “des(evangelho) [que] não deixa de ser religioso, uma vez que defende um humanismo quase radical” (1998: 26) ou quando afirma: “E é justamente isso que Saramago faz: acaba com toda a teologia velha e cria uma nova, em vez de teocêntrica, antropocêntrica por sua excelência” (1998: 31). Para Ferraz, o humanismo faz-se presente na construção de um novo evangelho à favor da preservação humana contra os desígnios de Deus, e ela vê o diabo como o profeta que procura junto a Cristo uma “nova solução para a humanidade” (1998: 134).

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solene” (1957a: 149), tratamento comum de um ator de uma obra realista com o seu herói, o que configura na personagem alguns traços do modo mítico. Portanto, mesmo se Maria de Magdala está no mesmo plano de impotência perante os desígnios divinos que os outros personagens humanos e irônicos, como José, ela não se sujeita à fé e atua como portadora da profecia humanista, características ressaltadas pelo tom respeitoso com que o narrador a descreve. Maria de Magdala, assim, carrega aspectos do modo mítico. As personagens de O Evangelho segundo Jesus Cristo confirmam que os modos ficcionais propostos por Frye não são esquemas engessados e que podem sofrer mutações de acordo com a complexidade da narrativa e da construção dos heróis. Uma personagem pode possuir características de modos contrastantes em si mesma e em contraste às personagens da mesma obra. O conceito de modo ficcional é ainda fundamental na análise da Teoria dos Mitos, que será o tema do próximo subcapítulo, no qual analisaremos como a teoria é visualizada em Jesus, o grande herói do romance, a partir de seus traços simultaneamente míticos e irônicos, humanos e divinos.

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4. Os mythoi trágico e satírico: nemesis e pharmakos em Jesus

Northrop Frye, no ensaio IV da Anatomia da Crítica, em capítulo posterior ao da definição dos três arquétipos canônicos da literatura ocidental, nos apresenta a definição da teoria dos mythoi. Para Frye, existem cinco categorias narrativas pré-genéricas que define como mythoi narrativos: comédia, romance, tragédia, ironia e sátira. São categorias literárias narrativas mais amplas que os gêneros literários comuns, como o dramático e o lírico. Sobre o recorte conceitual dos termos designado para definir os mythoi, Frye comenta:

Tragédia e comédia podem ter sido originalmente nomes de duas espécies de drama, mas também usamos esse emprego para definir características gerais das ficções literárias, sem restrições de gênero. Seria tolice insistir que comédia pode se referir somente a certos tipos de peças de teatro, não podendo jamais ser empregada a Chaucer ou Jane Austen [...] Se nos dizem que aquilo que estamos a ler é trágico ou cômico, esperamos certo tipo de estrutura e estado de espírito, mas não necessariamente certo gênero. O mesmo também se aplica à palavra “romance” e também às palavras “ironia” e “sátira”, que são, conforme geralmente empregadas, elementos da literatura de experiência e que adotaremos aqui no lugar de “realismo” (1957a: 297)

Frye conceitua os mythoi como elementos estruturais arquétipos da narrativa, como padrões e recorrências perceptivas antes do desígnio do gênero literário. O autor canadense faz uma analogia entre os mythoi e as quatro estações do ano: a comédia com a primavera, o romance com o verão, a tragédia com o outono, a ironia e a sátira com o inverno. Esse ciclo é constituído pelo movimento iniciado pelas imagens apocalípticas, passando pelas imagens analógicas e, por fim, culminando com as imagens demoníacas, recomeçando então o percurso (1957a: 295). Frye constrói uma cosmologia literária de ciclos de ascensão (romance e comédia) e decadência (tragédia e ironia): o movimento para baixo é trágico, em direção à catástrofe; o movimento cômico é para cima, em direção a um final feliz e reconciliador (Frye 1957a: 297). Na segunda aula do curso “The Bible and english literature”, lecionado na Toronto University, em 1980, Frye explica como esse padrão cíclico de ascensão e queda entre imagens

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demoníacas e apocalípticas no enredo da Bíblia. Por exemplo: o arco que vai da queda de Adão e Eva do Paraíso à ascensão do período pastoril de Abraão e seus descendentes na Terra Prometida representa um ciclo. Já o começo de uma nova queda pelo exilo no Egito e assim sucessivamente até culminar com o declínio do domínio romano e a uma nova ascensão com a vinda de Cristo e o surgimento do Cristianismo representa um novo ciclo (1980: 14m30s). Robert D. Denham, ao analisar a obra de Frye, discorre acerca do significado dos mythoi trágico e cômico:

The relationship of the hero to society provides the basis, moreover, for a further distinction between tragic and comic aspects of fictions. “Tragic,” in the First Essay, refers to those stories in which we witness the death, fall, or isolation of the hero; and “comic,” to those in which the hero is somehow integrated into society (1978: 4).

A “sociedade” para Frye é a comunidade diegética fictícia da narrativa. A comédia, por exemplo, configura-se a partir da intriga que o herói precisa vencer para restaurar a sociedade ideal. “Como a sociedade alcançada pela comédia é aquela que o público reconheceu desde o início como o estado das coisas adequado e desejável, um ato de comunhão com o público está em andamento” (Frye 1957a: 299). Enquanto a tragédia, por sua vez, implica o contrário: o isolamento do herói da sociedade. Quanto ao mythos do romance, o elemento central de seu enredo é a aventura, a busca para restaurar a sociedade almejada. Já quanto aos princípios estruturais da ironia, Frye aponta: “como estrutura, o princípio central do mythos irônico é mais bem abordado como uma paródia do romance, a aplicação de formas míticas românticas a um conteúdo mais realista” (1957a: 369). Os cavaleiros dos romances de cavalaria da Idade Média, por exemplo, surgem como exemplo de herói romântico, já Don Quijote surge como exemplo de herói irônico. Tanto o mythos romântico quanto o irônico podem seguir aspectos trágicos ou cômicos. Quando segue aspectos cômicos, a ironia tende a à sátira. O canadense então percebe um movimento-padrão nos enredos das narrativas literárias ocidentais a partir dos arquétipos das imagens. São modos genéricos canônicos, cujo padrão se repete no decorrer da História. Mais de um mythos pode ser encontrado em uma tragédia shakespeariana, como no enredo de Hamlet, por exemplo, onde vemos elementos dos mythoi trágico e romântico, ou em O Evangelho segundo Jesus Cristo, cujos elementos trágicos e irônicos são perceptíveis no arco narrativo do seu maior herói, Jesus. Nesse ponto, será feita uma limitação de análise mais pormenorizada dos mythoi trágicos e irônicos (e satíricos) em O

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Evangelho segundo Jesus Cristo, em virtude de as características narrativas da obra de Saramago repercutirem aspectos de ambos. A trajetória de Jesus no romance de Saramago tem elementos paródicos reconstitutivos da vida do messias canônico, o que corrobora a complexidade latente da personagem. O autor português desenvolve as características e motivações de Jesus a partir de um viés plausível ao nível de experiência humana, como já percebemos na narração do momento de seu nascimento: “O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue da sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo” (Saramago 1991: 81). Jesus é submetido a um conflito moral em que se assinala a uma faceta demasiada humana. Sua personalidade é subordinada às divergências entre os princípios da fé judaica e a compaixão ao próximo, pois, pouco a pouco, ele torna-se ciente das consequências assimétricas e violentas dos desígnios de Deus contra a humanidade. A vocação rebelde de Jesus é desenvolvida gradualmente, em crescimentos episódicos. A complexa relação conflituosa entre ele e José é delineada ainda na adolescência, quando Jesus desenvolve sentimentos adversos em relação ao pai, quando herda os pesadelos que atormentavam José pela morte das crianças de Belém. Motivado pelos pesadelos, Jesus confronta Maria quanto ao assunto. Inconformado com as explicações, ele foge de casa. Cybeli Lopestre Costa comenta a respeito das experiências de Jesus a partir da fuga de casa e do convívio familiar:

Portanto, seu caráter epifânico está presente na representação de um Jesus que busca sua humanidade, já que ele se afasta da conduta reflexiva da meditação e assume a possibilidade de viver experiências terrenas, concretas a fim de encontrar respostas a sua angústia existencial. Assim, a trajetória da personagem leva o leitor a criar analogias com suas próprias experiências (Costa 2008: 3).

É na fuga de casa, no enveredar por caminhos desconhecidos, que Jesus vive episódios que pouco a pouco vão aprofundando seu conflito moral entre a vida judaica e a vida profana, entra uma compaixão demasiada humana e a percepção da perversidade sanguinária da doutrina seguida pelo seu povo. A trama dos fatos é condicionada pelas ações de Jesus. Para Aristóteles, no capítulo VI da Poética:

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O elemento mais importante [da tragédia] é a trama dos fatos, pois a tragédia não é a imitações de homens, mas de ações e de vida, de felicidade ou infelicidade, reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade. Ora, os homens possuem tal ou tal qualidade conformemente ao caráter, mas são bem ou mal aventurados pelas ações que praticam (s/d: 448).

São as sequências de ações de Jesus no decorrer da narrativa que o fazem despertar para a rebeldia contra Deus em defesa da causa humana. Essa gradual mudança da perspectiva da personagem faz aumentar proporcionalmente a intensidade de sua tragédia. As ações de Jesus o levam à direção oposta do destino indelével que Deus lhe atribuiu. Jesus, à medida que o seu destino torna-se inevitável, vê-se cada vez mais distante da sociedade idealizada (tomando emprestado o termo de Frye) antirreligiosa que idealizou a partir dos ensinamentos do Pastor e de Maria de Magdala. Aqui instala-se a inversão paródica, a carnavalização, ou, segundo palavras do próprio Frye, a “modulação demoníaca”. Se no episódio bíblico da Paixão de Cristo, a crucificação representa um movimento redentor e de renovação com o nascimento da nova igreja, em Saramago, representa o isolamento e o fim trágico de Jesus, pois é seguido do nascimento da nova doutrina religiosa que legará um banho de sangue para as futuras gerações. Relata Deus a Jesus no episódio da barca: “Depois, meu filho, já to disse, será uma história interminável de ferro e sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimentos e de lágrimas” (Saramago 1991: 379). Saramago, por mais que esteja realizando uma releitura da vida de Cristo, faz questão de salientar no trecho inicial do romance que a vocação de Jesus, assim como nas Escrituras Sagradas, é a crucificação. O Evangelho segundo Jesus Cristo inicia com uma descrição pictórica do momento derradeiro de Jesus na cruz e denota que, por mais que Jesus tente se rebelar e fugir dos desígnios divinos, o seu destino já está escrito. O momento assinala a ironia de Saramago, pois o leitor já sabe desde o início que Jesus será crucificado, independente das experiências alternativas aos evangelhos canônicos que a personagem enfrenta no romance. Frye (1957a: 350) reforça a tese de Aristóteles de que o efeito trágico deve surgir a partir da estrutura do enredo e da íntima conexão entre os atos do herói (s/d: 455). As ações de Jesus defrontam-no com conflitos morais que espelham o dilema entre seguir desígnios de Deus ou os caminhos da percepção humanista afloradas pelo Pastor e por Maria de Magdala. Frye encontra o padrão do conflito moral, simbolizado pela influência de duas personagens, no comportamento e ação do herói em Shakespeare:

Shakespeare tem uma preferência particular por plantar para-raios morais em ambos os lados de seus heróis a fim de desviar a piedade e o terror: mencionamos Otelo flanqueado por Iago e Desdêmona, mas

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Hamlet é flanqueado por Cláudio e Ofélia, Lear por suas filhas, e até mesmo Macbeth por Lady Macbeth e Duncan. Em todas essas tragédias, há a sensação de um mistério de longo alcance do qual esse processo inteligível moralmente é somente uma parte. O ato do herói acionou uma chave em um processo maior que sua própria vida, ou mesmo do que sua própria sociedade (Frye 1957a: 354)

Os para-raios morais de Jesus são, de um lado, Deus, e do outro, o Pastor e Maria de Magdala. É processada uma dialética moral inteligivelmente clara em Jesus, porém incongruentes, pois os planos de Deus estão da além das interferências de Jesus, Pastor e Maria de Magdala. Mesmo o Pastor, personagem mítica, anjo rebelde do reino de Deus, superior em possibilidade de ação à humanidade, não tem poder sobre o destino de Jesus, que pertence somente a Deus. A partir das operações narrativas de O Evangelho segundo Jesus Cristo é possível vislumbrar a articulação que Frye faz acerca da tragédia como mimese do sacrifício. O crítico canadense disserta:

Qualquer um acostumado a pensar arquetipicamente a literatura reconhecerá na tragédia uma mimese do sacrifício. A tragédia é uma combinação paradoxal de uma combinação (sic) apavorante do que é certo (o herói deve cair) e de uma situação piedosa do que é errado (é lamentável que ele caia). Há um paradoxo semelhante nos dois elementos do sacrifício. Um desses é a comunhão, a divisão de um corpo heroico ou divino entre um grupo que os leva à união com, e como, aquele corpo. O outro é a propiciação, a sensação de que, a despeito da comunhão, o corpo pertence de fato a outrem, a um poder maior e potencialmente iracundo (Frye 1957a: 359).

Frye parece assinalar com precisão a estrutura do enredo trágico de O Evangelho segundo Jesus Cristo. A despeito da comunhão da identidade humana de Jesus com sua natureza e instintos, propiciada pelo encontro com o Pastor e Maria de Magdala, a vida de Jesus pertence a Deus. A decisão superior, que provém de Deus, vai apenas aprofundar o isolamento de Jesus frente à comunhão formada junto ao Pastor e a Maria de Magdala. A questão do isolamento do herói na tragédia implica dois conceitos de suma importância definidos por Frye para delimitar o arco trágico do herói. Esses conceitos são o pharmakos e a nemesis. O pharmakos, como já citado neste capítulo, é representado pela vítima impotente no enredo trágico. A assimilação do termo é essencial para se entender como o destino do herói é operado na tragédia. Ainda no Ensaio II de Anatomia da Crítica, quando fala sobre os modos ficcionais, Frye explica a definição de pharmakos:

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A figura de uma vítima típica ou aleatória começa, portanto, a cristalizar-se na tragédia doméstica conforme essa última se aprofunda no tom irônico. Podemos chamar essa vítima típica de pharmakos ou bode expiatório [...] O pharmakos não é inocente nem culpado. É inocente no sentido de que aquilo que lhe sucede é muito maior do que qualquer coisa proveniente de uma ação que poderia ter provocado, como o montanhista cujo grito provoca uma avalanche. É culpado no sentido de que faz parte de uma sociedade culpada [...] O pharmakos, em resumo, está na situação de Jó (1957a: 156).

Jesus, assim como José, é o típico pharmakos cujas características são assinaladas na citação. O seu isolamento é um processo surgido a partir dessa característica inata e só o pode guiar a um destino trágico, apartado da sociedade de que pretende fazer parte. A trajetória de Jesus em O Evangelho segundo Jesus Cristo é ilustrativa da curva descendente que simboliza o mythos trágico. Ele é o típico herói trágico por se posicionar em um “lugar entre o divino e o ‘demasiado humano’” (1957a: 350), carregando o hibridismo que implica na sua sensibilidade humana simultânea ao seu destino divino. A ações de Jesus tentam perturbar os preceitos de uma lei muito superior a ele, tentam manipular a ordem de um destino já escrito. Frye designa essa ordem superior como dike. Ao movimento natural de reestabelecimento dessa ordem, por algum momento quebrada pela ação do herói, Frye dá o nome de nemesis.

Aqui vemos o herói trágico perturbando um equilíbrio na natureza, sendo a natureza concebida como uma ordem se estendendo por sobre os dois reinos do visível e do invisível, um equilíbrio que, mais cedo ou mais tarde, precisa se restabelecer. O restabelecimento do equilíbrio é o que os gregos chamavam de nêmesis: mais uma vez, o agente ou instrumento da nêmesis pode ser a vingança humana, a vingança fantasmal, a vingança divina, a justiça divina, o acaso, o destino, ou a lógica dos eventos, mas o essencial é que nêmesis ocorre (1957a: 352).

A nemesis começa a se manifestar em O Evangelho após o episódio da barca, quando Deus começa a intervir nas ações de Jesus. Exemplo ilustrativo desta intervenção é o episódio do Sermão da Montanha, quando o discurso de Jesus é manipulado por Deus: “mas nesta altura deu-se Deus conta do que ali se estava a passar, e, não podendo suprimir o que por Jesus tinha sido dito, forçou a língua dele a pronunciar umas outras palavras, com o que as lágrimas de felicidade se tornaram em negras lástimas por um futuro negro” (Saramago 1991: 402). Jesus, como cartada final para fuga do seu destino, tenta morrer como um revolucionário, como o “Rei dos Judeus” que lutou contra a tirania de Herodes. A cartada, entretanto, é em vão. Saramago, no ponto culminante da narrativa, assinala o isolamento trágico de seu herói e a imposição da nemesis:

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Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a Terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez (1991: 422).

A partir da tragédia vivida por Jesus podemos perceber em que aspectos o mythos trágico articula-se com o mythos irônico. A percepção por parte do leitor da humanidade de Jesus e de como esse traço é um fator agravante para assinalar o isolamento trágico da personagem são alguns dos subterfúgios de O Evangelho segundo Jesus Cristo para acentuamento do mythos irônico. Ao carnavalizar a figura de Deus como um tirano, regente de uma sociedade que já nasceu manchada pela culpa após o Pecado Original, Saramago transforma Jesus em símbolo dessa submissão ao estado das coisas decidido pelo criador. Frye aponta a paródia como recurso importante no aprofundamento da articulação entre os mythoi irônico e trágico, e usa os exemplos de 1984, de George Orwell, e de “Na colônia penal”, de Kafka, como exemplos de ficções caracterizadas por um “pesadelo de tirania social” (1957a: 386). O crítico usa uma passagem de “Na colônia penal” como exemplo de paródia ao pecado capital, na qual um oficial fala: “A culpa nunca deve ser posta em dúvida”. Vale salientar que o próprio Saramago já parodiou o pecado original de forma sutil em O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984: 223)5 e de forma orgânica e mais enfática em Caim, que será analisado no próximo capítulo. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, a releitura paródica de Saramago é caracterizada por uma perspectiva irônica e militante quanto às implicações da religiosidade. Implicações essas fomentadoras do comportamento humano diante de sua própria existência e do convívio em sociedade. Ao reinventar as personagens bíblicas sob um viés mais humanizado, o autor português tenta ridicularizar e invalidar as Escrituras Sagradas a partir de suas divergências com a experiência humana e de como elas se chocam com o intuito de preservação da paz na humanidade. A releitura bíblica saramaguiana, assim, ganha as características de uma seleção moral que procura enfatizar os malefícios da religião - no caso de O Evangelho Segundo Jesus Cristo,

5 “A sala de jantar do Hotel Bragança é o paraíso perdido, e, como paraíso que se perdeu, gostaria Ricardo Reis de lá tornar, mas ficar não. Vai à procura dos pacotes de bolos secos, das frutas cristalizadas, com eles engana a fome, para beber só tem a água da torneira a saber a fénico, assim desmunidos devem ter se sentido Adão e Eva naquela primeira noite depois de expulsos do éden, por sinal, que também caía água que Deus a dava, ficaram os dois no vão da porta, Eva perguntou a Adão, Queres uma bolacha, e como justamente tinha só uma, partiu-a em dois bocados”

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especialmente a religiosidade judaico-cristã - contra a preservação harmônica e menos violenta da humanidade. Esse ímpeto moral de Saramago tem profunda identidade com a definição que Frye dá a um dos procedimentos do mythos satírico:

O filósofo, por sua vez, ensina certa forma ou método de viver; ele salienta algumas coisas e despreza outras; o que recomenda é cuidadosamente selecionado a partir dos dados da vida humana; ele continuamente transmite juízos morais acerca do comportamento social. Sua atitude é dogmática; a do satirista, pragmática. Por isso, a sátira pode frequentemente representar a colisão entre uma seleção de padrões retirados da experiência e a sensação de que a experiência é muito maior que qualquer conjunto de crenças a respeito dela [...] Filosofias de vida abstraem a vida, e uma abstração pressupõe o abandono de dados inconvenientes. O satirista traz à tona esses dados inconvenientes, às vezes nas formas de teorias alternativas e igualmente plausíveis (1957a: 376).

Essa releitura satírica e paródica das Escrituras Sagradas por Saramago ganha ainda mais ênfase e posicionamento crítico na obra Caim, o último retorno do autor português aos textos bíblicos de forma a ressignificá-los com sua postura contestadora. Dessa forma, nos dedicaremos mais pormenorizadamente no próximo capítulo ao mythos satírico e a definições gerais da sátira para análise de Caim.

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III. Caim à luz dos conceitos teóricos de Northrop Frye

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1. As imagens arquetípicas em Caim

Com o lançamento do romance Caim, em 2009, Saramago voltou a reescrever o cânone bíblico num viés paródico. Desta vez, a reescrita processou-se sobre os livros do Antigo Testamento. Harold Bloom (2012) acusou Caim de ser uma obra tendenciosa (“it has too palpable a design upon us”) por impor ao leitor uma visão anticristã sem brechas para uma análise dialética mais complexa do tema. Richard Zimler (1999), por sua vez, acusa a novela de ingênua em suas críticas ao Antigo Testamento. Zimler, bacharelado em religião comparada, aponta a complexidade literária e riqueza teológica do Antigo Testamento em detrimento do aspecto moralista e comportamental, que é o alvo favorito de Saramago: “O Antigo Testamento, praticamente na sua totalidade, nunca teve como propósito constituir qualquer coisa de parecido com um manual de boas ou más maneiras.” Análises polêmicas a parte, Caim ainda é fértil material de elementos formais e temáticos que o notabilizam para uma análise à luz das teses de Northrop Frye e de outras abordagens da crítica literária. Caim, como o próprio título indica, tem como protagonista o filho de Adão e Eva, que ganha destaque no Antigo Testamento pelo assassinato de seu irmão Abel. O enredo, entretanto, transcorre por várias passagens marcantes do Antigo Testamento – como o sacrifício de Isaac, o Livro de Jó, a destruição de Sodoma e Gomorra, entre outros – e tem fragmentos históricos extemporâneos à personagem bíblica de Caim. O Caim de Saramago, diferentemente do canônico, é ator fundamental das passagens diversas da cronologia bíblica secular reescritas pelo autor português. No caso de O Evangelho segundo Jesus Cristo, a história é narrada em tom mais decoroso e solene, e o drama das personagens e as repercussões da trajetória de Cristo ganham em aspecto trágico: o assinalamento psicológico feito por Saramago enfatiza o drama da impotência humana frente aos desígnios de Deus. Já no caso de Caim, o tom humorístico e satírico é mais enfático, pois Saramago atribui uma visão plausível, realista e pragmática aos episódios do Antigo Testamento. A reconstituição do texto sagrado apresenta personagens

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bíblicas diante de situações prosaicas e esdrúxulas comparadas ao imaginário canônico. Ao retratar a mitologia bíblica dentro de uma esfera realista e racional, o autor português assinala de forma irônica os absurdos das convenções morais religiosas e a relação da humanidade com o Cristianismo. Ana Paula Arnaut aponta as divergências na manifestação do humor entre O Evangelho Segundo Jesus Cristo e Caim, que denotam algumas diferenças estruturais entre as obras:

Por oposição, da leitura dos romances “fábula”6 ressalta, como já sugerimos, uma mais englobante comicidade e, por conseguinte, uma maior leveza, tanto na escolha dos acontecimentos que são postos à boca de cena das narrativas quanto no modo como se constrói o relato (Arnaut 2012: 26).

A leveza e comicidade com que Saramago desenvolve a narrativa de Caim, como assinala Arnaut, diverge da seriedade de tom em O Evangelho segundo Jesus Cristo, apesar de o romance de 1991 trazer pequenos episódios de comicidade (como, por exemplo, a já citada passagem de José urinando junto aos jumentos no alpendre da casa [1991:22]) , mas que não persistem organicamente. Os exemplos de comicidade dessacralizantes colorem todo o texto de Caim pelo tom debochado do narrador ao descrever personagens e fatos. A questão da relação extraconjugal, que já foi tratada como motivo de troça no ciúme de José por Maria no romance de 1991, volta a aparecer em Caim no episódio entre Maria e o anjo Azael. Na ocasião, Eva tenta negociar com Azael, o guardião do Jardim do Éden após a expulsão do casal, uma maneira de entrar no local para que ela e Adão, famintos, possam se alimentar. Adão suspeita de que Eva conseguiu livre acesso ao jardim em troca de favores sexuais com o anjo:

O casal desfez-se em mostras de gratidão, eva chegou mesmo a derramar algumas lágrimas quando se abraçou a azael, demonstração afectiva nada do agrado do marido, que mais adiante não conseguiu reprimir a pergunta que andava a saltar-lhe na boca, Deste-lhe alguma coisa em troca, Que coisa e a quem, isto disse eva, sabendo muito bem a que se referia o esposo, A quem havia de ser, a ele, a azael, disse adão omitindo por cautela a primeira parte da questão, É um querubim, um anjo, respondeu eva, e mais não achou necessário dizer. Crê-se que foi neste dia que começou a guerra dos sexos (Saramago 2009: 211).

6 Arnaut assinala como romances “fábula” o grupo de três últimos obras de José Saramago: Intermitências da Morte, A Viagem do Elefante e Caim, por aliança entre a dimensão ético-moral e aspectos como a já referida (e importante) simplicidade semântica (ainda que meramente aparente, como aliás sucede na fábula), ou a “acção relativamente tensa, mas não muito sinuosa” (Reis e Lopes, 1996: 158), isto é, formalmente menos complexa, parecem-nos elementos sufi cientes para sustentar e validar a nossa proposta.” (Arnaut 2012: 30).

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Saramago descreve ironicamente a relação entre Adão e Eva com todo os pormenores realistas de uma relação conjugal moderna entre homem e mulher. O proposital anacronismo é uma ferramenta pós-moderna de assinalamento do teor irônico e satírico do texto. O narrador questiona se Adão seria “competente para fazer um filho aos cento e trinta anos de idade” (2009: 64) ou faz troça do tédio matrimonial vivido pelo casal: “Vamos para a cama, mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa” (2009: 44). Audrey Castañón de Mattos, num ensaio denominado “Caim, de José Saramago: o mito por trás do dogma”, ressalta a importância do narrador na construção desse viés de plausibilidade e lógica para contornar as “lacunas e contradições” da doutrina judaico-cristã:

Julgamos que a credibilidade sobre a qual repousam os episódios bíblicos que servem de base para o romance, mais que eles próprios é o que instiga o narrador de Caim a preencher, com a lógica, suas lacunas e contradições. Por meio de mecanismos de argumentação e retórica, tal narrador desempenhará, no enredo, papel tão ou mais relevante que o do próprio Caim, protagonista de uma aventura através do tempo (De Mattos 2015: 2)

A imagem de Deus em Caim também é bastante semelhante à da personagem aviltante e tirânica de O Evangelho segundo Jesus Cristo. Assim como a imagem antropomórfica de Deus é descrita no episódio da barca do primeiro romance, a personagem em Caim, já apresentada em todos os seus traços no primeiro capítulo da obra, também é semelhante a de um rei judeu adornado luxuosamente, assinalando poder e tirania nos detalhes do vestuário e no cacete que carrega em mãos: “trajado de maneira diferente da habitual, segundo aquilo que seria, talvez, a nova moda imperial do céu, com uma coroa tripla na cabeça e empunhando o ceptro como um cacete” (2009: 90). Em Caim, a humanização de Deus também assinala a sua falibilidade, principalmente pelo fato de não possuir a omnisciência e cometer erros dos quais se arrepende, como quando percebe banalmente que esqueceu de colocar uma língua em Adão e Eva. Deus aparece apenas em momentos cruciais da narrativa. Questiona-se sua onipresença e onipotência quando Adão e Eva, já expulsos do paraíso, reparam que já havia comunidades humanas a vagar pela Terra. Já a omnisciência de Deus é mais frontalmente questionada na irônica passagem do sacrifício de Isaac, quando o anjo chega atrasado por problemas mecânicos na asa:

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Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi. O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha (sic) para chegar aqui, ainda por cima não me tinham explicado bem qual destes montes era o lugar do sacrifício, se cá cheguei foi por um milagre do senhor (Saramago 2009: 724).

A simpatia de Saramago pelos rebeldes em suas paródias bíblicas remete-nos à imagem do diabo que, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, é representado como um Pastor e personifica um dos principais guias de Jesus em sua procura pela libertação dos desígnios divinos. O protagonista do romance de 2009, Caim, suscita o arquétipo de Lúcifer segundo a descrição feita por Henriete Karam no artigo “Violência divina e violência fraterna em Caim, de J. Saramago”. Karam cita passagem do próprio Caim para defender a conexão entre Lúcifer e o protagonista: “Lúcifer sabia bem o que fazia quando se rebelou contra deus, há quem diga que o fez por inveja e não é certo, o que ele conhecia era a maligna natureza do sujeito” (Saramago apud Karam 2013: 6). A partir dos conceitos de Frye do arquétipo das imagens apocalípticas e demoníacas explicado no capítulo anterior, já podemos vislumbrar como estas imagens manifestam-se em Caim a partir das características irônicas e carnavalescas da obra. Carnavalescas, pois, retomando o conceito de Bakhtin, enxergamos na obra de Saramago o elemento profano, formado “pelas indecências e paródias carnavalescas dos textos sagrados e das sentenças bíblicas” (1963: 129). A releitura bíblica apresentada por Saramago apresenta um universo diegético em agudo diálogo com algumas características do arquétipo da sociedade demoníaca proposta por Frye, principalmente no que concerne à postura tirânica de Deus perante seus dominados. O teórico canadense escreve a respeito da sociedade demoníaca, assinalando o contraponto entre o líder tirano e o pharmakos:

O mundo humano demoníaco é uma sociedade mantida unida por uma espécie de tensão molecular de egos, uma lealdade ao grupo ou ao líder que diminui o indivíduo, ou, no melhor dos casos, contrasta seu prazer com seu dever ou honra [...] No sinistro mundo humano, um polo individual é o líder tirânico, inescrutável, implacável, melancólico e com uma vontade insaciável, que ordena a lealdade apenas se for egocêntrico o bastante para representar o ego coletivo de seus seguidores. O outro polo é representado pelo pharmakos, ou vítima sacrificada, que deve ser morta para fortalecer os outros (Frye 1957a: 278).

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A partir da explicação de Frye, é visível a representação de Deus como “líder tirânico, inescrutável, implacável, melancólico e com uma vontade insaciável”, e de Caim como vítima inferiorizada e preterida em relação ao irmão Abel. Caim, como aponta Frye, é a “vítima sacrificada”, porém não é morto para fortalecer os desígnios divinos, mas amaldiçoado com um sinal na testa a vagar perdido pela Terra. Caim, como Jesus em O Evangelho, é pharmakos, portanto, “é inocente no sentido de que aquilo que lhe sucede é muito maior do que qualquer coisa proveniente de uma ação que poderia ter provocado, como o montanhista cujo grito provoca uma avalanche. É culpado no sentido de que faz parte de uma sociedade culpada” (1957a: 156). A condição de pharmakos atribuída a Caim é enfatizada em duas passagens. Em uma delas, ele é questionado por Lilith, mulher com quem exerce adultério; Lilith pergunta-lhe por que matou o próprio irmão e teve relações sexuais com ela. Caim responde: “Estarmos nas mãos de deus, ou do destino, que é o seu outro nome” (Saramago 2009: 1213). Na outra, o pharmakos é assinalado na passagem da recusa de Deus aos cereais ofertados Caim sem nenhuma justificativa plausível: “mas o fumo dos vegetais de caim, cultivados com um amor pelo menos igual, não foi longe, dispersou-se logo ali, a pouca altura do solo, o que significava que o senhor o rejeitava sem qualquer contemplação” (Saramago 2009: 250). Caim, em suas andanças após a condenação pelo assassinato, é espectador de episódios que o escandalizam, como o martírio de Jó, o sacrifício de Isaac, a destruição de Sodoma e Gomorra. Imagens de terras devastadas, cidades destruídas e grandes desertos são elementos demoníacos recorrentes identificados por Frye no cânone literário ocidental. O teórico dedica algumas linhas à dicotomia entre a estrada reta e o deserto. Enquanto a primeira é vista como um arquétipo bíblico para imagens apocalípticas, como a estrada no deserto para o encontro com Deus profetizada por Isaías, o segundo tem como arquétipo demoníaco “as perambulações labirínticas de Israel no deserto, repetidas por Jesus na companhia do demônio (ou ‘animais selvagens, de acordo com Marcos [1,13])” (1957: 281). O sacrifício de Isaac por Abraão é um exemplo de episódio associado a imagens demoníacas de cadafalsos, troncos, pelourinhos, entre outros, o que remete a sacrifícios e castigos humanos, em elencamento feito por Frye para o arquétipo demoníaco (1957: 280). Uma análise de Caim a partir das imagens arquetípicas passa pelo conceito de “modulação demoníaca” criado pelo teórico canadense. O processo de reescrita paródica das Escrituras Sagradas, assim como em O Evangelho segundo Jesus Cristo, faz uso dos mesmos mecanismos de inversão das imagens arquetípicas realizados no romance de 1991.

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Frye explica o significado de “modulação demoníaca” em seu terceiro ensaio de Anatomia da Crítica:

A mais simples dessas técnicas é o fenômeno que podemos chamar de “modulação demoníaca”, ou a inversão deliberada das costumeiras associações morais de arquétipos [...] Huckleberry Finn, por exemplo, ganha nossa simpatia e admiração por preferir o inferno com seu amigo perseguido ao paraíso do deus branco dos proprietários de escravos, Por outro lado, imagens tradicionalmente demoníacas podem ser utilizadas como ponto de partida de um movimento de redenção, como a Cidade da Destruição, em The Pilgrim’s Progress (Frye 1957: 290-91).

A “modulação demoníaca”, portanto, configura-se como um procedimento de ressignificação de imagens prioritariamente apocalípticas dentro de um contexto demoníaco, ou vice-versa. É um procedimento comum das paródias, pois deliberadamente retira associações morais atribuídas a um arquétipo de seu contexto primordial. O movimento de redenção protagonizado por Jesus ao se envolver com uma prostituta em O Evangelho segundo Jesus Cristo ou a personificação mundana e tirânica de Deus nos dois romances representam exemplarmente o procedimento de “modulação demoníaca”. No caso de Caim, há uma ampla aplicação dos mecanismos de “modulação demoníaca” a partir da inversão dos valores morais do ideal canônico bíblico. Caim, por exemplo, sofre “modulação” quando o ato rebelde de assassinato do irmão e confrontamento direto das ordens de Deus é recontado sob uma nova perspectiva e visto como um ato de redenção humana. Em diálogo com Deus após o assassinato de Abel, Caim defende-se:

É simples, matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por sua causa (Saramago 2009: 273).

Como já apontou Frye: “Uma sociedade livre e igualitária pode ser simbolizada por um bando de ladrões, piratas ou ciganos” (1957a: 290). Na sua trajetória de redenção em uma “modulação” do imaginário demoníaco, Caim pratica um assassinato; interfere contra os desígnios de Deus em diversos episódios – como no juízo moral feito sobre Abraão, que pretendia matar seu próprio filho – ou nas desgraças sofridas por Jó em virtude de uma aposta entre Deus e o diabo; possui relações adúlteras com Lilith (o adultério está dentro do elencamento feito por Frye de imagens demoníacas relativas ao amor) e, para consumar seu movimento de redenção dentro do imaginário arquetípico demoníaco, assassina todos os

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tripulantes da Arca de Noé, de modo a pôr fim ao projeto de humanidade desenvolvido por Deus. Ana Paula Arnaut comenta a respeito da paródia realizada na passagem final de Caim sobre o episódio de Noé no Antigo Testamento:

No Antigo Testamento, a arca e os seus ocupantes são encarados como a hipótese de redenção de uma humanidade leviana, pecadora e corrupta. Após os 40 dias de chuva torrencial sobre a terra (Gn. 7. 17), após o extermínio de todos os seres viventes (Gn. 7. 21-23), “Deus recordou-Se de Noé e de todos os animais (...)” (Gn. 8. 1) e, “No ano seiscentos e um, no primeiro mês, as águas começaram a secar sob a terra” (Gn. 8. 13), tornando-a novamente habitável a uma nova geração multiplicada a partir dos descendentes de Noé (Gn. 9. 1). Mantendo embora as linhas gerais do que a tradição diz ter acontecido, o texto saramaguiano (re)cria uma nova h(H)istória, inscrevendo um desfecho alternativo em nada isento de interessantíssimas e subversivas implicações ideológicas. A elas não é alheia, seguramente, a opção narrativa de incluir Caim entre os ocupantes da arca. Mas, para que melhor se entenda o fulcral papel destinado a esta personagem, cumpre sublinhar que ela é desde o início (re)construída sob o signo da inversão relativamente à imagem que o legado judaico-cristão tem transmitido e imposto. O narrador não só evidencia a sua compreensão em relação ao assassínio de Abel como, além disso, sempre regula a sua simpatia de modo a (re)criar uma personagem de “bons princípios como poucos” (SARAMAGO, 2009a, p. 41), digna, humana, visceralmente bondosa e intrinsecamente honesta (SARAMAGO, 2009a, p. 150), detentora de uma consciência ideológica capaz de comentar e de desmontar criticamente as atitudes de Deus. Capaz, também, de lutar contra os desígnios divinos (Arnaut 2012: 32).

Diferentemente do cânone bíblico, Caim confronta Deus pelos assassinatos dos últimos tripulantes da Arca de Noé, eliminando o prosseguimento da trajetória humana na Terra e, consequentemente, do projeto sanguinário do criador. Incapaz de matar Deus, Caim destruiu sua obra. Assim fica assinalada a maior das “modulações demoníacas” do romance de Saramago. Assim Saramago processa a inversão cômica dos valores cristãos em sua visão satírica do Antigo Testamento. Frye aponta a sátira como o gênero mais divergente do conceito aristotélico de “seriedade elevada”, pois na sátira está assinalado o contraste entre o que é moralmente aceitável e tido como um dever com aquilo que é desejável (Frye 1957a: 290). Caim funciona como uma sátira aos costumes, leis e dogmas cristãos em contraste ao que é proveitos para a liberdade e autonomia da vontade humana contra a degradação gerada pelo poder religioso. Sérgio Schaefer, em “Dialogismo, polifonia e carnavalização em Dostoiévski”, aponta o seguinte:

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De fato, a carnavalização, quando transposta à literatura, não apenas inter-relaciona dialogalmente aspectos contrários/opostos (...). Se fosse só isso, teríamos um tête-à-tête que poderia ser amigável, ríspido, pacífico ou belicoso, quente ou morno entre partes. O inter-relacionamento se dá pela sátira, ou seja, por um modo de dizer que contesta e ridiculariza costumes, instituições e ideias com ironia e mordacidade (Schaefer 2011: 200).

O texto de Schaefer, ao explicar o procedimento de inversão proposto por Bakhtin, a carnavalização, assinala significados similares ao da “modulação demoníaca”, principalmente relativas à inversão que ambos os procedimentos concretizam entre imagens opostas. Tanto Schaefer quanto Frye apontam a sátira como o gênero que catalisa os desejos de transgredir a moralidade, instituições e ideias tradicionalmente vigentes. Abordaremos a relação de Caim com a sátira, enquanto o mythos é analisado de forma mais profunda no subcapítulo seguinte.

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2. O paródico e o fabular em Caim como potencializadores do mythos satírico

Para analisarmos Caim, de José Saramago, sob o prisma dos conceitos do mythos satírico, faz-se necessária uma recapitulação do significado dos cinco mythoi e de como eles se manifestam em uma obra literária ficcional. Primeiramente, vale salientar como Frye verifica a manifestação do mythos no desenvolvimento narrativo de uma obra. Para Frye, os mythoi são categorias genéricas que classificam as narrativas ficcionais em cinco diferentes categorias canônicas: a tragédia, a comédia, o romance, a ironia e a sátira. O mythos satírico receberá a ênfase de nossa análise por possuir uma série de características que podem ser encontradas no desenvolvimento do enredo de Caim, que analisaremos mais à frente. A sátira e a ironia são mythoi relativos a narrativas que tocam o nível de experiência humana “não idealizado” (1957a: 368-69), em que as personagens, diferentemente dos heróis românticos, por exemplo, aparecem matizadas com aspectos de plausibilidade e falibilidade humanas. Frye difere a ironia da sátira da seguinte maneira:

A principal distinção entre a ironia e a sátira é que a sátira é uma ironia militante: suas normais morais são relativamente claras e ela pressupõe padrões contra os quais o grotesco e o absurdo são medidos [...] A sátira requer, pelo menos, uma fantasia indicativa, um conteúdo que o leitor reconhece como grotesco, e, pelo menos, um padrão moral implícito, sendo este último essencial em uma atitude militante em face da experiência [...] O satirista tem que selecionar suas absurdidades, e o ato de seleção é um ato moral (1957a: 369).

O procedimento de trazer à tona as complexidades cambiantes da experiência humana não idealizada dentro de um espectro de agudo realismo, de modo que não existe no mythos romântico idealizado, é uma das características satíricas essenciais em Caim. Outra corresponde à ironia militante e profana contra entidades religiosas judaico-cristãs. A sátira, ainda segundo Frye (1957a: 369), é a categoria genérica que denota as complexidades humanas da existência não idealizada, o que a coloca no lado oposto do mythos romântico, que denota narrativas idealizadas alheias ao nível de experiência humano. Frye usa

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o exemplo de The Life and Death of Jonathan Wild, the Great (1743), de Henry Fielding, obra em que os juízos morais feitos pelo narrador contra o comportamento das personagens comportam características da sátira e da ironia. O teórico canadense assinala os mythoi irônico e satírico como uma paródia do romance, pois operam com “a aplicação das formas míticas românticas a um conteúdo mais realista e as acomoda de maneiras inesperadas” (1957: 369). A sátira, apesar de sua categorização como mythos narrativo por Frye, é suscetível a algumas confusões conceituais que dificultam sua assimilação teórica. Inicialmente, ela surgiu como gênero literário formalmente estabelecido por Menipo de Gadara, na Grécia antiga, e posteriormente desenvolvido na Roma antiga por Juvenal e Horácio. No período romano, as características genéricas básicas da sátira correspondiam à invectiva pessoal e a uma filosofia moral de crítica a costumes (cf. Seabra Filho 2015: 57). Por sua origem grega a partir dos trabalhos de Menipo (todos perdidos), o gênero literário satírico surgido na Antiguidade grega é conhecido como sátira menipeia, e possui como pré-requisito, além da invectiva pessoal e filosofia moral, a elaboração de versos misturados com linhas em prosa (Silva 2008). A sátira possui também sentido multiforme, não se configurando somente como gênero literário. A sátira pode ser conceitualizada como mero elemento constitutivo de vários veículos comunicacionais, sejam eles uma charge de jornal ou obras literárias (Rocha 2006: 13). Para facilitar a compreensão do termo, a pesquisadora Rejane Cristina Rocha faz uma definição da sátira a partir de sua relação com a comédia – pela presença “se não imprescindível, pelo menos recorrente” do cômico na sátira (2006, 16). Paulo Asthor Soethe, em seu artigo “Sobre a sátira: contribuições da teoria literária alemã na década de 60”, por sua vez, defende que é “praticamente consenso entre os teóricos recentes a dificuldade de uma definição única para o que seja a sátira” (1998: 8). Guillermo Hernández, na obra La Satira Chicana, de 1993, assinala a diferença entre a comédia e a sátira a partir do intuito da carga humorística de cada um dos estilos. Para o autor, na comédia, as personagens transgressoras e subversivas são objetos de uma comicidade que tende ao ridículo. Elas são figuras cômicas rebaixadas e inofensivas para reforço das normas estabelecidas e do status quo. A sátira, por sua vez, em definição similar a de Frye, visa atacar e ridicularizar os princípios normativos e morais vigentes em tons cômicos depreciativos (1993: 21). Portanto, enquanto na comédia as personagens transgressoras são ridicularizadas, na sátira, por sua vez, os princípios normativos do status quo é que tendem ao ridículo. Rocha, ao reforçar a necessidade ou recorrência do cômico na sátira, alinha-se ao conceito de Frye e Hernández para assinalar o contraste que existe entre a sátira e a comédia. Sobre as diferenças conceituais propostas por Hernández, Rocha comenta:

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Sublinhe-se, na reflexão do crítico, a constatação de que a comédia, apesar de ridicularizar o marginal, o desviante, não o vê como algo que possa ameaçar o bom andamento da sociedade. Por outro lado, a sátira parece estar reservada àquele desvio – personificado, na grande maioria das vezes, na figura de um indivíduo – que de alguma forma põe em risco a hegemonia das regras sociais (Rocha 2006: 16).

Portanto, sublinhada essa definição de sátira a partir de seus contrastes e semelhanças com a comédia, Rocha aponta, vista a dificuldade de circunscrever a sátira dentro de uma forma literária ou definição temática específica, para a possibilidade de definir um texto satírico a partir de seu objetivo: o ataque cômico e depreciativo aos costumes morais (2006: 18). Se a sátira fica clara a partir de seus objetivos, mas não em termos de forma ou conteúdo, ainda podemos definir a paródia como um dos principais veículos formais de elementos satíricos. Linda Hutcheon aponta uma nova tendência das obras literárias do mundo pós-moderno de trazer nas próprias estruturas formais um conteúdo metalinguístico de crítica às próprias obras literárias (1985: 11). Nesse contexto, enfatiza-se a importância da paródia no fazer literário:

Por outras palavras, a paródia é, neste século, um dos modos maiores da construção formal e temática de textos. E, para além disto, tem uma função hermenêutica com implicações simultaneamente culturais e ideológicas [...] A paródia é um modo de chegar a acordo com os textos desse ‘rico e temível legado do passado’ (Bates, 1970: 4) ou como causa de ansiedade (Bloom, 1973). Os artistas modernos parecem ter reconhecido que a mudança implica continuidade e ofereceram-nos um modelo para o processo de transferência e reorganização desse passado (Hutcheon 1985: 13-15).

Ao relacionar-se com outros textos literários a partir de uma inversão irônica jocosa e depreciativa, como Caim faz especificamente com o Antigo Testamento, a forma paródica ganha contornos de motivação satírica agudos, principalmente quando o alvo das críticas representa as plausibilidades históricas e morais do texto bíblico. Em Caim, a paródia é a construção formal essencial para cristalização do mythos satírico. Caim enfatiza o ataque cômico e depreciativo aos costumes morais tanto pelo narrador quanto pelas personagens. O narrador saramaguiano faz digressões provocadoras constantes na obra do autor português, mas foi em textos como Caim e O Evangelho segundo Jesus Cristo que o alvo religioso sofreu ataques mais organizados e enfáticos. Não só em Caim, mas na obra ficcional do português como um todo, o narrador saramaguiano é dotado de um saber superior ao das personagens da história. Nas reescrituras bíblicas de 1991 e 2009, o conhecimento superior do narrador aprofunda o tom irônico das

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obras, pois esse privilégio é usado como arma de ridicularização e deboche dos costumes morais das personagens. Saramago esclarece:

O narrador não prevê o futuro, mas já sabe o que acontecerá no futuro da acção. O narrador narra, joga e organiza todos os factos da sua efabulação e sabe aquilo que as suas personagens ignora [...] Ele usa esse saber de um modo que lhe é exclusivo. As personagens não partilham desse conhecimento, porque não podem. Nos meus romances aparecem de forma simultânea os comportamentos das personagens e o conhecimento que o narrador já possui do que lhes acontecerá (Saramago 2010: 235).

Logo no início de Caim, o tom jocoso e depreciativo do narrador ataca a falibilidade de Deus e a banalidade de seus erros, como, por exemplo, nas passagens em que ele percebe imperfeições anatômicas em Adão e Eva:

Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo (Saramago 2009: 17).

O narrador descreve Deus como um ser falível e de debilidades puramente humanas, com acessos de cólera banais, capaz de cometer erros primários e com graves problemas em manter uma relação controladora com suas criaturas. A fraqueza autoritária de Deus é assinalada na capacidade das criaturas de transgredirem suas regras: Adão e Eva “piscaram os olhos um ao outro em sinal de cumplicidade, pois desde o primeiro dia souberam que estavam nus e disso bem se haviam aproveitado” (Saramago 2009: 113). Outros exemplos são as relações sexuais ou as inúmeras transgressões de Caim aos desígnios divinos no decorrer da história. O viés satírico é percebido nos elementos de plausibilidade com que o Antigo Testamento é reinterpretado para uma nova perspectiva conectada ao nível de experiência não idealizada. O anacronismo é uma das ferramentas de Frye para destituir a história do viés idealizado. Eva, por exemplo, apresenta-se como a “primeira dama” de Adão (2009: 33), e a vida matrimonial é apresentada com todas as características banais de um casal moderno entediado:

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É verdade que dia sim, dia não, e este não com altíssima frequência também sim, adão dizia a eva, Vamos para a cama, mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa (Saramago 2009: 44).

Na passagem da construção da Arca, por exemplo, Caim interpela Deus de forma a orientá-lo quanto ao procedimento que o criador deve seguir. Caim percebe erros na decisão de Deus em colocar a embarcação alojada em um vale, o que ocasionaria o afogamento dos tripulantes. O diálogo desenvolve-se da seguinte forma:

Então caim disse, Com estas dimensões e a carga que irá levar dentro, a arca não poderá flutuar, quando o vale começar a ser inundado não haverá impulso de água capaz de a levantar do chão, o resultado será afogarem-se todos os que lá estiverem e a esperada salvação transformar-se-á em ratoeira, Os meus cálculos não me dizem isso, emendou o senhor, Os teus cálculos estão errados, um barco deve ser construído junto à água, não num vale rodeado de montanhas, a uma distância enorme do mar, quando está terminado. [...] Enrugando a testa para pensar melhor, o senhor deu umas quantas voltas ao assunto e acabou por chegar à mesma conclusão, tanto trabalho para inventar um vale que nunca existira antes, e afinal para nada (Saramago 2009: 1433).

Saramago satiriza o orgulho de Deus, que dá “umas quantas voltas ao assunto” para chegar na mesma conclusão de Caim e Noé, além de sua incapacidade em planejar por conta própria o destino da sua criação. Tais ilustrações refletem outras características do mythos satírico defendidas por Frye, como o desaparecimento do elemento heroico idealizado (1957a: 375), a seleção de atos absurdos para desmoralizar os costumes hegemônicos (1957a: 369), ou o humor fundado na percepção do grotesco ou do absurdo (1957a: 370). Ana Paula Arnaut, no artigo “Novos rumos na ficção de José Saramago: os romances fábula (As Intermitências da Morte, A Viagem do Elefante, Caim)” designa três fases diferentes na obra ficcional de Saramago:

Cumpre relembrar, a propósito, e de acordo com uma breve, mas necessária contextualização, que o primeiro ciclo de produção literária saramaguiana decorre entre Manual de Pintura e Caligrafia (1977) e Ensaio Sobre a Cegueira (1995), exclusive. Neste período verificamos uma enorme apetência pelo tratamento de temas históricos, directa ou indirectamente relacionados com a História e com a Cultura portuguesas, seja de um passado mais remoto seja de um tempo mais recente [...] O segundo ciclo, por conseguinte, abarca os romances publicados entre Ensaio Sobre a Cegueira e As Intermitências da

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Morte, exclusive. A delimitação feita no âmbito desta fase dos romances de teor universal ou universalizante diz respeito quer à utilização de estratégias que evidenciam o culto de temas de cariz mais geral, quer a uma reconhecida ressimplificação da linguagem e da estrutura da narrativa (Arnaut 2012: 25).

A terceira fase, que vai de Intermitências da Morte, passando por A Viagem do Elefante, até Caim, é denominada pela autora de “romances fábula”. O motivo que leva Arnaut a denominar o período dessa forma se deve “a uma mais englobante comicidade e maior leveza no modo como se constrói o relato” (2012: 26), ou à “aliança entre a dimensão ético-moral e aspectos como a já referida (e importante) simplicidade semântica (ainda que meramente aparente, como aliás sucede na fábula)” (2012: 30). As dimensões ético-morais, a englobante comicidade e a leveza com que a história de Caim se desenrola representam, portanto, segundo Arnaut, as características que fazem da obra uma releitura fabular do Antigo Testamento. É importante sublinhar que as características que a tornam fábula potencializam o mythos satírico. Em Caim, há uma comicidade prosaica que torna o absurdo em algo banal e faz sucumbir os elementos de tensão que passagens chocantes de assassinato e opressão poderiam causar. Subsiste, afinal de contas, a sátira como viés de ataque ao monumento judaico-cristão. A seleção moral de absurdos proposta pelo romance fábula saramaguiano expõe ao ridículo a perspectiva de vida judaica. Como afirma Frye, “a sátira pode frequentemente representar a colisão entre uma seleção de padrões retirados da experiência e a sensação de que a experiência é muito maior do que um conjunto de crenças a respeito dela” (1957a: 376). Saramago, o pragmático contra o dogmatismo religioso, mostra o grotesco e o incoerente da submissão ao Deus veterotestamentário. Salma Ferraz comenta sobre a atitude vingativa de Caim:

Na paródia riquíssima de Saramago ao Gênesis, o crime maior de Caim não foi matar Abel, já que só executou a vontade de Deus, mas sim a intenção de matar Deus, e afirma isto ao enunciar: pela intenção estás morto. A paródia é perfeita, marcando a diferença em vez da semelhança. Neste Velhíssimo Testamento, não é Deus que se arrepende de criar o homem, mas sua criatura que quer matá-lo e conseguirá mais tarde ao destruir todas as criaturas da face da Terra (Ferraz 2012: 213).

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Caim mata Abel e livra-se dos integrantes humanos da Arca de Noé, em ato de confrontação direta a Deus. Na impossibilidade de matar Deus, Caim organiza o assassinato de todo o restante da humanidade afim de atingir o criador. Como bem percebeu Ana Paula Arnaut (2012: 32), o narrador é condescendente com a personagem Caim, compreendendo o assassinato do irmão, assim como o enxergando como um homem de “bons princípios como poucos”, em claro procedimento de “modulação demoníaca”. Satírico, Saramago reescreve o cânone bíblico a partir de uma linha de subversão irônica. Caim fala a Deus após o assassinato de Abel:

É simples, matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por sua causa (Saramago 2009: 273).

O episódio final na Arca de Noé apresenta um ato simbólico da subversão do homem contra a dominação divina. A ironia reside na alegoria do ato de Caim que, para redimir a humanidade e confrontar Deus, precisou operar o assassinato da própria humanidade. A relação de Caim com Deus será esmiuçada no próximo subcapítulo, a partir da análise das duas personagens de acordo com o conceito de modos ficcionais.

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3. Caim e Deus e os modos ficcionais

Em Caim, a complexidade das personagens e os jogos paródicos propostos por José Saramago trazem à luz a manifestação de três modos ficcionais a Caim: o mítico, o mimético alto e o irônico. A manifestação conjunta de características específicas de modos ficcionais já foi questão assinalada pelo próprio Frye em Anatomia da Crítica:

Assim que aprendemos a distinguir os modos, entretanto, devemos aprender então a recombiná-los. Pois, enquanto um modo constituía tonalidade subjacente de uma obra de ficção, qualquer um dos outros quatro, ou mesmo todos eles, podem estar simultaneamente presentes. Grande parte de nossa percepção da sutileza da literatura provém desse contraponto modal (1957a: 166).

Assim, as sutilezas de significado presentes na obra de Saramago podem vir à tona a partir da análise crítica, visualizando o contraste entre as supostas constituições de cada modo ficcional no corpo da obra. Por exemplo, a personagem Deus, por seus poderes inerentes – como a criação do mundo, o poder de decisão sobre o destino da humanidade e suas capacidades sobrenaturais como um todo – e o privilégio de administrar a humanidade a partir de uma relação de superioridade tirânica, é tipicamente uma personagem do modo ficcional mítico. Entretanto, as características satíricas que Saramago dá à personagem incrementam sutilezas e os contrastes de modos ficcionais diversos. O procedimento de mescla de modos ficcionais na personagem Deus é extremamente parecido com o utilizado para o desenvolvimento da mesma personagem em O Evangelho segundo Jesus Cristo. Lá, assim como em Caim, Deus é visualizado como um “judeu rico” (Saramago 1991: 362) com vestuário que provavelmente responde “à nova moda imperial do céu, com uma coroa tripla na cabeça e empunhando o ceptro como um cacete” (Saramago 2009: 90). Deus também é humanizado a partir de sua irritação frequente, constante falibilidade com relação aos erros de sua criação e intervenções, além do profundo orgulho que sente em relação à humanidade. Suas passagens são pontuadas por uma jocosidade satírica em que fica enfatizada sua imperfeição:

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Deus não veio ao bota-fora. Estava ocupado com a revisão do sistema hidráulico do planeta, verificando o estado das válvulas, apertando alguma porca mal ajustada que gotejava onde não devia, provando as diversas redes locais de distribuição, vigiando a pressão dos manómetros, além de uma infinidade de outras grandes e pequenas tarefas, cada uma delas mais importante que a anterior e que ele só, como criador, engenheiro e administrador dos mecanismos universais, estava em condições de levar a bom termo e confirmar com o seu sagrado o.k (Saramago 2009: 1520).

Saramago ainda faz questão de traçar uma analogia de Deus com um engenheiro ou um administrador. Diante da sutileza da construção satírica da personagem, Deus carrega fortes características do modo ficcional mimético elevado, como um líder tirânico, ou um “judeu rico” que exerce um poder influente sobre as personagens integralmente inseridas no nível de experiência humana. Porém, pertence com ainda maior ênfase ao modo irônico, pela forma satírica com que o narrador demonstra suas vulnerabilidades às contingências externas e a desequilíbrios emocionais notadamente humanos. O modo irônico é o tom mais organicamente característico da obra. No modo romântico ou mítico, por exemplo, Frye aponta que o tratamento dado para a morte ou o isolamento do herói (no caso, em convenção das tragédias românticas) possui um tom mais elegíaco e solene, enquanto na ironia recebe um tratamento banal e ridicularizante:

O Elegíaco apresenta um heroísmo não tocado pela ironia. A inevitabilidade da morte de Beowulf, a traição na morte de Rolando e a malignidade que cerca a morte de um santo martirizado são de uma importância emocional muito maior do que as de quaisquer complicações irônicas (Frye 1957a: 150).

Tal diferenciação no tratamento da morte é um ponto fulcral de divergência entre O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim a partir do ponto de vista dos modos ficcionais e dos mythoi narrativos. O primeiro traz um íntimo contraste entre o mítico e o irônico a partir da personagem Jesus, que é metade divino, metade humano, e narra uma cena de forte gravidade emocional no destino trágico da personagem. Já Caim notabiliza-se pela sua intensa estrutura satírica e irônica. O modo mítico, por exemplo, toca apenas superficialmente a personagem Deus, que, a partir da complexidade de sua construção paródica, ganha características notadamente irônicas. Já as restantes personagens, inclusive o herói Caim, estão mergulhadas em um mundo integralmente irônico. Em virtude da sua estrutura irônica, o tratamento dado à morte em Caim é de algo corriqueiro, banal e muitas vezes cômico. Se o aspecto satírico provavelmente não existe na

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cena em que Caim executa Abel, que é narrada em tons de crueza e espontaneidade, algumas mortes orquestradas por Caim na Arca de Noé são contadas com desinteresse e como algo contingente:

Foi num desses dias de tempestade desabalada, com a arca a ser sacudida pela tormenta e os animais a atropelarem-se uns aos outros, que a mulher de cam, tendo escorregado no chão imundo, foi acabar sob as patas de um elefante. Lançaram-na ao mar tal como se encontrava, ensanguentada, suja de excrementos, um mísero despojo humano sem honra nem dignidade (Saramago 2009: 1559).

Quando Noé percebe que um de seus filhos e uma de suas noras foram mortos o cômico e o ridículo são ainda melhor enfatizados. Noé fala banalmente: “Perdemos um casal, e isso vai significar que vamos ter de copular muito mais se quisermos que a vontade do senhor se cumpra” (2009: 1582). O modo banal e desinteressado é a ferramenta satírica com que Saramago alfineta e desconstrói os valores morais da tradição judaico-cristã. A narração sublinha a perspectiva saramaguiana de um deus tirano e vingativo e de uma humanidade abandonada e sofredora. Salma Ferraz lembra o exemplo de Levantado do Chão, romance sem cunho religioso que trata da miséria camponesa no Alentejo:

O narrador de Levantado do Chão acusa Deus de apoiar o latifundiário e a própria escravidão. Proporcionalmente à aversão que o narrador demonstra por Deus, aqui se nota o seu apego às criaturas humanas que são mais desprezadas por ele do que os porcos (animal imundo na tradição judaica), pois esses, pelo menos, têm o que comer (Ferraz 2012: 29).

Caim é típico personagem desse universo humano irônico de Saramago. O herói do romance, assim como Jesus em O Evangelho, se sente injustiçado por desígnios divinos que não consegue entender. Os desentendimentos entre Caim e Deus configuram o arco central da narrativa à medida que Caim, errante a amaldiçoado, é testemunha de acontecimentos marcantes do Antigo Testamento que intesificam sua incredulidade. Assim, Caim personifica o questionamento deixado no último parágrafo do capítulo 6: “A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele” (2009: 804). De Mattos comenta a respeito do testemunho do protagonista:

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No caso do herói Caim, seu constante alternar entre os diferentes presentes tem a função de atualizá-los sob o viés do olhar distanciado e crítico que ele assume, na privilegiada situação de poder conhecer os acontecimentos fora da ordem linear, colocando-se, dessa maneira, na posição do leitor contemporâneo, de quem todos os eventos presenciados por Caim são (supostamente) conhecidos na totalidade (De Mattos 2015: 10).

A personagem, ao caminhar entra passagens de diferentes épocas, amadurece uma visão negativa de Deus ao presenciar o absurdo da moralidade judaica. Desde a primeira aparição de Deus a Caim, o confronto está sublinhado por questionamentos enfáticos do protagonista:

Que fizeste com o teu irmão, [Deus] perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda- costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade (Saramago 2009: 258).

Por mais que exista uma incongruência de poderes e capacidades entre Deus e o simplório Caim, o antagonismo entre ambos é enfaticamente sublinhado. Neste contexto, Elle E. Tylley, estudioso de Frye, aponta uma das possibilidades de solução do enredo para o típico herói do modo ficcional irônico:

A second type of ironic resolution occurs when the main character’s suffering become so severe and he becomes so purely the victim of cosmic constriction and persecution that he is granted a confrontation with divinity, as in The Golden Ass and the Book of Job (Tylley 1978: 697).

Caim notabiliza-se por uma inversão no papel do pharmakos vivido pelo protagonista em uma operação já prevista por Northrop Frye em Anatomia da Crítica. Caim é acometido pelos desígnios tirânicos divinos, uma força sobrenatural que o constrange. Porém, assim como Tylley esclarece como possibilidade de resolução irônica, Caim enfrenta os desígnios de Deus com as armas que tem, destruindo a obra do criador. Frye já percebeu esse padrão irônico de subversão da vítima contra a entidade divina superior como um “pharmakos ao contrário” e uma “paródia da ironia trágica”:

Nesse tipo de ironia, as personagens que são contrárias à sociedade ficcional ou excluídas dela têm a simpatia da plateia. Aqui nos encontramos próximos à paródia da ironia trágica [...] Ou podemos ter uma personagem que, com a simpatia do autor ou da audiência, repudia tal sociedade a ponto de deliberadamente abandoná-la, tornando-se assim uma espécie de pharmakos ao contrário [...] É mais

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comum, entretanto, que o artista apresente um beco sem saída irônico, no qual o herói é visto como um tolo ou coisa pior pela sociedade ficcional, e, mesmo assim, impressiona o público verdadeiro como portador de algo mais valioso do que sua sociedade (Frye 1957a: 153-54).

O movimento de Caim em confronto com o projeto da sociedade de Deus assinala sua posição de “pharmakos ao contrário”. Essa posição já é sinalizada nas primeiras aparições de Caim na história, quando tem sua oferta recusada por Deus e atenta contra a vida de Abel: “com as suas próprias mãos, o matou a golpes de uma queixada de jumento que havia escondido antes num silvado, portanto com aleivosa premeditação” (Saramago 2009: 258). Caim, então, é amaldiçoado por Deus com um sinal na testa que o impede de ser assassinado, e passa a perambular sozinho pela Terra para sofrer as intempéries da perdição. A passagem final na Arca de Noé descreve Caim dando continuidade ao movimento iniciado com o assassinato de Abel, quando o protagonista se junta a Noé e família na embarcação e opera premeditadamente o assassinato um a um dos tripulantes. Caim, consumando os assassinatos, fica sozinho no mundo sem condições biológicas de dar continuidade à raça humana. Saramago opera aqui uma sofisticada paródia irônica ao reescrever o livro de Gênesis. Se no texto canônico a arca de Noé é o instrumento para a consumação da nova aliança entre Deus e a humanidade após o dilúvio, no romance ela é o palco onde se opera a quebra da nova aliança. Deus, frustrado com o fim dos seus planos, tem que lidar solitariamente com o rebelde resíduo de sua obra, Caim:

Depois caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito. A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda. A história acabou, não haverá nada mais que contar (Saramago 2009: 1637).

Saramago, assim, conclui sua sátira. Caim surge como símbolo da eterna divergência entre os anseios de uma humanidade autônoma e as engrenagens da ordem judaico-cristã. Divergência que, na ficção irônica de Saramago, viu-se resolvida apenas com a tentativa de pôr fim à humanidade.

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Considerações finais

A presente pesquisa procurou discriminar algumas convergências e divergências marcantes entre as duas obras de Saramago analisadas – O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim – segundo a teoria dos modos ficcionais e a teoria dos mitos narrativos de Northrop Frye. Foi percebido que as teorias de Frye sobre as narrativas ficcionais, publicadas em 1957, são ferramentas bastante pertinentes para analisar as obras de Saramago, nomeadamente nos casos paródicos, que trazem nuances complexas nas caracterizações carnavalizadas (tomando emprestado o termo de Bakhtin) das personagens em comparação ao cânone bíblico. Tais particularidades de O Evangelho e Caim, como vimos, são elementos pertinentes para análise pelas premissas teóricas de Frye, mais especificamente pela “modulação demoníaca”. Uma dessas particularidades manifesta-se na solenidade trágica com que o destino do protagonista de O Evangelho segundo Jesus Cristo é tratado, enquanto Caim possui características correspondentes a uma militância cômica e satírica. Por isso, categorizo O Evangelho com aspectos formais mais enfáticos dos mythoi trágico e irônico, enquanto Caim possui aspectos mais marcantes do mythos satírico. Já a semelhança entre as duas obras acentua-se na manifestação dos modos ficcionais. É nítida nas obras a manifestação de modos ficcionais diversos a partir do poder de ação de cada personagem. As convergências notabilizam-se principalmente no confronto inglório e desigual dos dois protagonistas, Jesus e Caim, contra o líder tirano, o que assinala o modo irônico. Enquanto Deus, nos dois romances, possui características bastante similares, que transitam particularmente entre o modo mítico e mimético alto, e, por vezes, como no caso específico de Caim, há a manifestação do modo ficcional irônico. Diante das premissas universalizantes dos esquemas sinópticos de Frye, percebemos a validade da metodologia do canadense no que tange a análise da obra literária de Saramago. A partir dos padrões percebidos por Frye na atividade literária ocidental, constatamos convergências entre a obra de Saramago e esquemas vinculantes abrangentes. Foram encontrados vínculos literários de Saramago, por exemplo, não só com a Bíblia, mas com autores como Kafka, Joyce, Lawrence, Yeats, entre outros.

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A análise de O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim à luz da metodologia do autor canadense deixa em aberto a possibilidade de uma pesquisa mais aprofundada de outros textos de José Saramago, não só pela teoria dos modos ou pela teoria dos mitos, mas por outras metodologias expressas por Frye, como a teoria dos símbolos. Dessa forma, expandem-se as possibilidades de análise da obra do autor português dentro de estruturas e esquemas literários formais.

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