UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO GEOCIÊNCIAS

RODRIGO SARAIVA CHEIDA

OS IMAGINÁRIOS SOCIOTÉCNICOS DAS ORIGENS DA COMUNIDADE NEUROCIENTÍFICA BRASILEIRA E DA GOVERNANÇA DE SUAS AGENDAS DE PESQUISA

CAMPINAS 2017 RODRIGO SARAIVA CHEIDA

OS IMAGINÁRIOS SOCIOTÉCNICOS DAS ORIGENS DA COMUNIDADE NEUROCIENTÍFICA BRASILEIRA E DA GOVERNANÇA DE SUAS AGENDAS DE PESQUISA

TESE DE DOUTORADO APRESENTADA AO INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DA UNICAMP PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ORIENTADORA: PROFª. DRA. MARIA CONCEIÇÃO DA COSTA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO RODRIGO SARAIVA CHEIDA E ORIENTADO PELA PROFª. DRA. MARIA CONCEIÇÃO DA COSTA

CAMPINAS 2017 Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Geociências Cássia Raquel da Silva - CRB 8/5752

Cheida, Rodrigo Saraiva, 1984- C416i CheO imaginário sociotécnico das origens da comunidade neurocientífica brasileira e da governança de suas agendas de pesquisa / Rodrigo Saraiva Cheida. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

CheOrientador: Maria Conceição da Costa. CheTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências.

Che1. Comunidade científica. 2. Ciência e Tecnologia - Aspectos sociais. 3. Imaginário - Aspectos sociais. 4. Governança. 5. Política científica - Brasil. I. Costa, Maria Conceição da, 1956-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Geociências. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The sociotechnical imaginaries of the origins of the brazilian neuroscientific community and of the governance of its research agendas Palavras-chave em inglês: Scientific community Science and Technology - Social aspects Imaginary - Social aspects Governance Scientific policy - Brazil Área de concentração: Política Científica e Tecnológica Titulação: Doutor em Política Científica e Tecnológica Banca examinadora: Maria Conceição da Costa [Orientador] Rogério Lopes Azize Elizabeth Balbachevsky Sérgio Resende Carvalho Janaína Oliveira Pamplona da Costa Data de defesa: 25-08-2017 Programa de Pós-Graduação: Política Científica e Tecnológica

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org) UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

AUTOR: Rodrigo Saraiva Cheida

O imaginário sociotécnico das origens da comunidade neurocientífica brasileira e da governança de suas agendas de pesquisa

ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria Conceição da Costa

Aprovado em: 25 / 08 / 2017

EXAMINADORES:

Profa. Dra. Maria Conceição da Costa - Presidente

Dr. Rogério Lopes Azize

Profa. Dra. Elizabeth Balbachevsky

Prof. Dr. Sergio Resende Carvalho

Profa. Dra. Janaina Oliveira Pamplona da Costa

A Ata de Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

Campinas, 25 de agosto de 2017.

Sem a parceria de Marcela, Maria de Fátima e Samir este trabalho seria interminável. Sem as conversas e conselhos de meu pai, a tese não seria nem uma possibilidade. Dedico este trabalho a vocês.

AGRADECIMENTOS

Chego ao fim da tese e em poucas palavras pretendo colocar uma infinidade de sentimentos de gratidão neste texto. Às vezes uma conversa com um colega que há muito não via no corredor da sala da Pós, com um dos professores do PED, com os alunos, ou com os amigos, serviam para dar novos encaminhamentos na pesquisa e na escrita. É difícil elencar cada um desses momentos e pessoas. Mas aqueles que viveram de perto os rumos desta tese e dela fizeram parte, aqui deixo os meus mais sinceros agradecimentos.

Destaco aqui meus pais, Marcel e Fátima, meu irmão Samir e minha companheira Marcela. Sem o incentivo, a cobrança, as palavras e as “injeções” de ânimo, esta pesquisa não seria possível. Não consigo nem expressar muito bem o quão cheio fica meu peito de gratidão em pensar em tudo que passamos até aqui. Obrigado.

Agradeço à professora e orientadora Maria Conceição da Costa. A confiança que me foi passando durante a confecção da pesquisa, as ideias que me animava e os diferentes “divãs” que tivemos foram fundamentais na parceria dos quatro anos e meio de tese. Se hoje me sinto um profissional com alguma qualificação devo em muito isto a ela.

Também, gostaria de agradecer aos professores Solange Corder, Maria Beatriz Bonacelli, Janaína Pamplona da Costa, André Sica, Marko Monteiro, e aos amigos Jean Hochsprung Miguel e Pedro Massaguer. Cada um, à sua maneira e em diferentes situações, foi fundamental para pensar e orientar o caminho deste doutoramento.

Agradeço aos professores da banca examinadora pelas contribuições a este trabalho. Também, ao financiamento da CAPES, a oportunidade oferecida pelo DPCT e pela UNICAMP. Aos colegas de GEICT e do Grupo de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia.

RESUMO

A presente tese investiga o imaginário sociotécnico das origens da comunidade neurocientífica brasileira e da governança de suas agendas de pesquisa. Através da perspectiva dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT), discute como as neurociências são socialmente construídas e tornaram-se um fenômeno biocientífico: atualmente a sua composição intelectual e tecnológica interdisciplinar é direcionada para objetivos cognitivos e políticos, e revelam meios em que atores sociais conectam escolhas coletivas, configurando governanças da ciência particulares. O fenômeno foi investigado para analisar as dinâmicas das agendas de pesquisa em sociedades com culturas particulares da Ciência e da Tecnologia. Assim, toma-se como premissa que a organização neurocientífica é diversa e socialmente construída. Especificamente, foi levantada bibliografia pertinente à história da agenda de pesquisa neurocientífica norte-americana, local onde surgiu pela primeira vez o termo para significar um espaço e infra-estrutura das pesquisas do cérebro, e também uma política governamental específica para a área. Por sua vez, para investigar o desenvolvimento da comunidade neurocientífica brasileira e as dinâmicas de suas agendas, metodologicamente foi realizada pesquisa de campo entre 2013 e 2017, que envolveu realização de entrevistas com neurocientistas, participação de eventos científicos da área, análise documental, bibliográfica e coleta de materiais a respeito do tema de investigação na internet. A partir destas diferentes fontes de dados, foi possível levantar a narrativa do imaginário sociotécnico de como se originou e desenvolveu as agendas de pesquisas das neurociências em algumas regiões do país. Também, a partir de um contexto recente em que os achados e as formas de financiamento de uma agenda neurocientífica brasileira foram alvos de controvérsias dentre a comunidade da área, foi possível coletar dados de como diferentes atores imaginam formas de governança da neurociência. Discussão que revela desafios políticos para o futuro das pesquisas do cérebro do país.

Palavras chave: Comunidade neurocientífica brasileira; Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia; Imaginário sociotécnico; Agendas de pesquisa.

ABSTRACT

The present thesis investigates the sociotechnical imaginary of the origins of the Brazilian neuroscientific community and the governance of its research agendas. From the perspective of the Social Studies of Science and Technology (SSS&T), it discusses how neurosciences are socially constructed and have become a bioscientific phenomenon: currently its intellectual and technological interdisciplinary composition is directed towards cognitive and political objectives, and reveals means through which social actors connect collective choices, configuring particular governances of science. The phenomenon was investigated to analyze the dynamics of research agendas in societies with particular cultures of Science and Technology. Thus, it is assumed that the neuroscientific organization is diverse and socially constructed. Specifically, it was made a research of a bibliography of the history of the North American neuroscience research agenda, where the term first appeared to signify a space and infrastructure for brain research, as well as a specific government policy for the area. In order to investigate the development of the Brazilian neuroscientific community and the dynamics of its agendas, methodologically, field research was conducted between 2013 and 2017, involving interviews with neuroscientists, participation of scientific events in the area, documentary, bibliographical and the collect of materials on the subject of research on the internet. From these different sources of data, it was possible to raise the narrative of the sociotechnical imaginary of how the neuroscience research agendas were originated and developed in some regions of the country. Also, from a recent context in which the findings and forms of funding of a specific neuroscientific agenda were the subject of controversies among the community of the area, it was possible to collect data on how different actors imagine governance forms for neuroscience in Brazil. A discussion that reveals policy challenges for the future of the brain research.

Keywords: Brazilian neuroscientific community; Social Studies of Science and Technology; Sociotechnical imaginaries; Research agenda.

LISTA DE SIGLAS

IIª Guerra Mundial (IIª G.M.) Academia Brasileira de Ciências (ABC) Academia Brasileira de Neurologia (ABN) Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa (AASDAP) Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) Brazilian Institute of Neuroscience and Neurotechnology (BRAINN) Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (NeuroMat) Ciência e Tecnologia (C&T) Ciência Sem Fronteiras (CsF Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I) Controladoria Geral da União (CGU) Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoas de Nível Superior (CAPES) École Polytecnhnique fédérale de Lausanne (EPFL) Eletroencefalograma (EEG) Escola Paulista de Medicina (EPM) Estados Unidos da América (EUA) Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT) Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) Fédération Internationale de Football Association (FIFA) Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) Human Brain Project (HBP) Human Genome Organization (HUGO) Instituto de Biologia y Medicina Experimental (IByME) Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA) Instituto D’Or de Ensino e Pesquisa (IDOR) Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF/UFRJ) Instituto do Cérebro (ICe) Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFET) Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) Instituto Oswaldo Cruz (IOC) Instituição de Ensino e Pesquisa Alberto Santos Dumont (ISD) Instituto de Psicologia (IP/USP) International Sephardic Education Foundation (ISEF) Intensive Study Program (ISP) International Brain Research Association (IBRO) International Federation of EEG and Clinical Neurophysiology (IFEEG) International Sephardic Education Foundation (ISEF) Laboratório de Neurobiologia das Emoções (LNE) Massachussets Institute of Technology (MIT) Ministry of Education, Culture, Sports, Science and Technology (MEXT) National Aeronautics and Space Administration (NASA) National Advisory Councils of the National Institute of Neurological Disorders and Stroke (NINDS) National Science Foundation (NSF) National Institutes of Health (NIH) National Institute of Mental Health (NIMH) Neurosciences Research Program (NRP) Núcleo de Apoio à Pesquisa em Modelagem Estocástica e Complexidade (NUMEC) Office of Scientific Research and Development (OSRD) Office of Science and Technology Policy (OSTP) Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) Organização Social (OS) Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) Plano Brasileiro para o Desenvolvimento da Educação (PDE), Política, Científica e Tecnológica (PCT) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) Produto Interno Bruto (PIB) Projeto Genoma Humano (PGH) Reação em Cadeia da Polimerase (RCP) Rede Instituto Brasileiro de Neurociência (IBN-NET) Request for Information (RFI) Rio Grande do Norte (RN) sequence-tagged-site (STS) Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) Spreading Depression (SD) Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental (SBFTE) Sociedade Brasileira de Fisiologia (SBFis) Sociedade Brasileira de Psicobiologia (SBPb) Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (SOBRAVIME) Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) Society for Neuroscience (SfC) Technology, Entertainment, Design (TED) Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDA/H) Tradução do Autor (T. A.) U.S. Department of Energy (DOE) Universidad de Buenos Aires (UBA) Universidade de São Paulo (USP) Universidade do Estado da Guanabara (UEG) Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Universidade Federal do Pará (UFPA) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP) Walter Reed Army Institute of Research (WRAIR)

LISTA DE IMAGENS

Figura 1: Imagem produzida por uma ressonância magnética de difusão espectral (tradução do original em inglês Diffusion Spectrum Magnetic Ressonance Imaging)...... 25 Figura 2: O diretor do NIH, Francis Collins, com o presidente norte-americano, Barack Obama, anunciam o projeto BRAIN...... 25 Figura 3: O presidente Lula assinando documento que prevê destinação de verba ao IINN- ELS...... 26 Figura 4: Visita do ex-presidente Lula ao laboratório do IINN-ELS...... 26 Figura 5: Página de entrada do site neurotree...... 991 Figura 6: Pesquisa no site www.neurotree.org. da árvore genealógica do pesquisador “Torsten Wiesel”...... 1001 Figura 7: Pesquisa no site: www.neurotree.org. da árvore genealógica do pesquisador “Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda” ...... 1002 Figura 8: Pesquisa no site neurotree da árvore genealógica da pesquisadora “Dora Fix Ventura”...... 1023 Figura 9: Pesquisa no site neurotree da árvore genealógica do pesquisador “Luiz Carlos Lima Silveira”...... 103 Figura 10: Aristides Azevedo Pacheco Leão quando pesquisador da Universidade de Harvard...... 113 Figura 11: Peixe “Poraquê”...... 116 Figura 12: Arco estereotáxico colocado em uma cabeça de manequim...... 122 Figura 13: O “Gambá” (Didelphis marsupialis)...... 122 Figura 14: Eduardo Oswaldo-Cruz Filho, o técnico Raymundo Francisco Bernardes e Carlos Eduardo Rocha Miranda...... 123 Figura 15: Caixa de Skinner na USP, na década de 1960...... 137 Figura 16: A formiga Atta sexdens...... 153 Figura 17: A abelha Melipona quadrifasciata...... 153 Figura 18: A tartaruga Trachemys scrypta elegans...... 153 Figura 19: Investimento em C&T relativo ao PIB no Brasil entre 2000 e 2013...... 188

SUMÁRIO Introdução ...... 13 Capítulo 1 – Como estudar uma área interdisciplinar como as neurociências? ...... 24 1.1 – A autonomia relativa no conceito de campo científico de Pierre Bourdieu ...... 27 1.2 – Do conceito de campo científico às arenas transepistêmicas ...... 34 1.3 – Construindo o “campo” da pesquisa sobre a “comunidade neurocientífica” ...... 36 Capítulo 2 – Os contextos sociopolíticos da comunidade e da agenda neurocientífica norte americana ...... 44 2.1 – Um projeto de “engenharia biológica da mente”...... 50 2.2 - O estilo de pensamento neuromolecular ...... 57 2.3 – As primeiras mobilizações para uma agenda governamental em neurociências nos EUA .. 62 2.5 – O BRAIN Initiative ...... 69 2.6 – Muitas neurociências ...... 79 Considerações finais do capítulo ...... 81 3 – O imaginário da formação da comunidade neurocientífica brasileira ...... 95 3.1 – Por que uma história da neurociência brasileira? ...... 96 3.2 – Pioneiros cariocas ...... 105 3.3 - Pioneiros paulistas ...... 130 3.4 - O surgimento do termo “neurociência” no Brasil ...... 162 Considerações finais do capítulo ...... 169 Capítulo 4 – O imaginário neurocientífico da Copa do Mundo no Brasil ...... 182 4.1 - A “Cidade Brasileira do Cérebro” ...... 190 4.1.1 – Um porta-voz da Ciência brasileira? ...... 201 4.2 – As controvérsias em torno da agenda do IINN-ELS ...... 206 4.2.1 – A controvérsia midiática e com a comunidade neurocientífica ...... 215 Conclusões finais ...... 235 Referências Bibliográficas ...... 244 Anexos ...... 254

13

Introdução

Em Março de 2003, o estado do Rio Grande do Norte foi surpreendido com a notícia de que cientistas brasileiros, radicados no exterior há vários anos, pretendiam instalar na periferia da capital potiguar um grande instituto internacional de pesquisa, focado no estudo do cérebro e da mente. De repente, e de forma totalmente inusitada, a neurociência entrava na pauta de um dos menores e menos desenvolvidos estados do Brasil (...). Com sua capital, Natal, (...) ninguém que conhecia de passagem o Rio Grande do Norte (...), nem os seus próprios habitantes, poderia imaginar que o pequeno estado, (...) pudesse um dia ingressar e, em poucos anos, apresentar com destaque mundial uma agenda científica inovadora para todo o país. Todavia, de repente, lá estava o Rio Grande do Norte nas manchetes dos jornais do Sul maravilha, entrando no debate sobre como se criar uma indústria do conhecimento tupiniquim (NICOLELIS, 2016; p. 11) O trecho supracitado foi extraído do livro “Made in Macaíba: a história da criação de uma utopia científico-social no ex-império dos tapuias”. Seu autor, Miguel Nicolelis, é um neurocientista brasileiro considerado um dos “maiores ícones da neurociência da atualidade” (idem, 2016). Logo na leitura inicial da obra, de fato surpreende a argumentação da “utopia” do pesquisador, sustentada na possibilidade de mobilização de sua agenda de pesquisa para promover a “transformação social” de uma região pobre do Brasil através de um instituto de neurocientífico, que criará o “Campus do Cérebro de Macaíba (...) um parque tecnológico industrial voltado à engenharia biomédica, com ênfase na neuroengenharia e na neurotencologia” e que produzirá “um novo paradigma para a produção científico tecnológica inovadora no Brasil” (idem, p. 12).

Mais adiante em seu livro, o neurocientista explica que seu projeto utópico teve início quando retornou ao país com uma série de seus colegas brasileiros considerados, nas próprias palavras do autor, como “estrangeiros”, pois fizeram boa parte de suas formações acadêmicas nos Estados Unidos da América (EUA). O retorno dos pesquisadores liderados por Nicolelis e a construção da agenda neurocientífica potiguar foram intensamente veiculadas por diferentes meios de comunicação no país, do ano de 2003 até 2014, com os simbólicos lemas: “todos os caminhos levam a Natal” e “o futuro da ciência brasileira começa aqui”.

Nesse período, a utopia neurocientífica ganhou um personagem central que foi apresentado em um cenário que envolveu símbolos pertencentes ao imaginário social brasileiro. O projeto “Andar de Novo” desenvolvido pelo grupo de pesquisa liderado por 14

Nicolelis produziu uma veste robótica – por vezes referida de “exoesqueleto” e denominada de “BRA-Santos Dumont 1”, em referência ao inventor brasileiro Alberto Santos Dumont (1873 – 1932), considerado por muitos o “pai da aviação” – com o objetivo de restaurar a mobilidade de pacientes paraplégicos. A tecnologia que simbolizava a “semente de uma nova indústria no Brasil”1, foi apresentada na Copa do Mundo de Futebol de 2014, no mundialmente reconhecido “país do futebol”, quando um jovem para-atleta que sofre da paralisia total das pernas e de metade do tórax desferiu o simbólico chute inicial do torneio usando a tecnologia. Não raro, na inauguração deste evento esportivo os governos dos países- sede aproveitam a oportunidade para apresentarem imagens que simbolicamente representam a nação. Além da vasta natureza e da cultura vivaz, na transmissão da abertura do torneio no Brasil a imagem que se veiculava era de um país que investia em Ciência e Tecnologia (C&T), representada pelo artefato robótico.

Diante desse cenário, a neurociência brasileira parecia acompanhar formas semelhantes de governança das agendas de suas pesquisas com aquelas que ocorriam em sociedades de industrialização avançada. Considero “governança” de forma aproximada ao que autores como Hagendijk et. al. (2005) e Irwin (2008) sugerem: um conjunto de mecanismos de organização, implementação, modos de pensamento e atividades desenvolvidas para construir dinâmicas em uma área da ação social, no caso, do desenvolvimento da C&T, que podem ou não envolver o governo.

Especificamente em 2013, o então presidente dos EUA, Barack Obama, anunciou junto ao diretor do National Institute of Health (NIH), o cientista especialista em genética e antigo líder do Projeto Genoma Humano (PGH), Francis Collins, o programa de pesquisa governamental BRAIN Initiative (BRAIN)2. O projeto é um financiamento público-privado, de dez anos de duração, com possível renovação (dependendo dos alcances das pesquisas), para o desenvolvimento e aplicação de tecnologias inovadoras que criem imagens dinâmicas, “novas e revolucionárias” do cérebro3. Imagens que consigam captar a interação de células individuais e complexos circuitos neurais, no tempo e espaço, para produzir um mapeamento da circuitaria cerebral.

1 “Ninguém associa ciência com soberania nacional”. Portal de notícias do Estadão. Quadro 3, C1. Acessado em: 15/3/2017. 2 “Remarks by the president on the BRAIN Initiative and American Innovation”. Portal de notícias da Casa Branca. Quadro 3, C2. Acessado em: 20/10/2014. 3BRAIN Initiative. Portal de notícias do BRAIN Initiative. Quadro 3, C3 Acessado em 10/4/2013. 15

No anúncio do projeto, o presidente argumenta que a implementação do BRAIN visava “fazer a economia crescer, criar novos empregos, para reativar uma classe média crescente e próspera, investindo em uma das principais forças e essa, é a inovação Americana”4. Ainda no discurso presidencial, o projeto de “larga-escala”5 em neurociências foi planejado para realizar desdobramentos semelhantes a outros esforços da ciência norte americana tidos como de sucesso, como a expedição Apollo, que levou o ser humano à Lua, e o mapeamento do genoma humano, projeto do qual “para cada dólar que investimos, 140 dólares retornaram”6 para a economia do país.

Ou seja, o anúncio do BRAIN foi acompanhado de argumentos que ressaltaram os potenciais desenvolvimentos das pesquisas do cérebro para produzir novos arranjos econômicos para aquela sociedade de industrialização avançada. Para Rose (2001) e Hilgartner (2007), os projetos de “bioeconomia” - que se baseiam em investimentos nas Ciências da Vida e na transformação do conhecimento em produtos - antecipam e formulam futuros desenvolvimentos sociotécnicos. Justamente por apontarem possíveis arranjos sociais, tais projetos permitem que diferentes atores sociais possam participar da modulação desses desenvolvimentos e incorporá-los em estruturas sociais mais amplas no futuro.

Ambos os cenários são inspiradores e iluminam as questões tratadas na presente tese. Inspiram, pois neles é possível perceber que as agendas neurocientíficas vêm sendo mobilizadas na contemporaneidade com Políticas Científicas e Tecnológicas (PCT) específicas em diferentes países do mundo. Aspectos que demonstram que, por trás das interpretações sobre a morfologia particular do cérebro e sua relação com o comportamento humano, as pesquisas em neurociências tornaram-se um fenômeno biocientífico: atualmente a sua composição intelectual e tecnológica interdisciplinar é direcionada para objetivos cognitivos e políticos, e revelam meios em que atores sociais conectam escolhas coletivas, configurando governanças da ciência particulares que variam e estão de acordo com contextos sociopolíticos locais.

4 Quadro 3, C2. 5 Projetos de “larga-escala” são áreas da ciência mobilizadas por estratégias de desenvolvimento governamentais com objetivos não só de alcance cognitivo, mas também político, econômico e social. Geralmente, são projetos que consomem grandes somas de recursos, rearranjo organizacional e institucional para a produção do conhecimento. A origem dessa formatação do empreendimento científico é do contexto de Big Science, nos EUA, após a 2ª Guerra Mundial. Retomarei a trajetória dos contextos sociopolíticos da formação da comunidade neurocientífica norte americana e do BRAIN Initiative no segundo capítulo. 6 President Obama speaks on the Brain Initiative and American inovation. The Obama White House chanel. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uJuxLDRsSQc. Acessado em: 26/7/2015. 16

Por sua vez, nos cenários apresentados das diferentes agendas neurocientíficas é possível constatar tramas narrativas com imaginários sociotécnicos específicos, que são “formas imaginadas de vida e ordem social que se centram no desenvolvimento e na realização de projetos científicos e/ou tecnológicos inovadores” (JASANOFF & KIM, 2015; p. 4)7. No conjunto dessas representações, a neurociência é o suporte de imaginários de realidades e de futuras sociedades, o que torna a sua dinâmica produto e instrumento de co- produção da ciência, da tecnologia e da sociedade na modernidade (JASANOFF, 2004).

Na política contemporânea, os imaginários sociotécnicos possuem a capacidade de delinear qual a governança almejada para a C&T pelos atores sociais envolvidos na sua produção, canalizar gastos públicos em determinados projetos e justificar a inclusão de quais os benefícios ou riscos sociais que o progresso científico e tecnológico proverá (JASANOFF & KIM, 2015). A partir da constatação desse fenômeno sociológico que envolve as neurociências, entende-se que para compreender como se constroem suas agendas de pesquisa e os conhecimentos produzidos por esse tipo de ciência, faz-se necessário atentar para os processos sociopolíticos e as tramas narrativas das quais fazem parte.

Assim, na presente tese procurou-se investigar como se constituiu a comunidade neurocientífica brasileira e a dinâmica de governança de suas agendas de pesquisa. A partir da perspectiva teórica dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT), também examino como surgiu o projeto em larga escala norte americano, local onde a infra-estrutura e a governança das pesquisas neurocientíficas foram primeiramente construídas e imaginadas. A análise das relações entre culturas políticas e a elaboração de imaginários sociotécnicos através das agendas de pesquisas ilumina como é construída a governança da C&T em contextos específicos. A partir dessa perspectiva, toma-se como premissa que a organização neurocientífica é diversa, cultural e socialmente construída.

A principal referência sociológica da pesquisa é o cabedal teórico dos ESCT, que oferece uma série de ferramentas para investigar como são formuladas as agendas de pesquisas neurocientíficas, os imaginários sociotécnicos que elas incitam e as formas de governança que elas implicam a partir de seus aspectos sociais, materiais e políticos. Desse arcabouço teórico, utilizo da perspectiva que orienta investigar a C&T como resultantes da ação de atores sociais que co-produzem a natureza e a sociedade (JASANOFF, 2004). Dinâmica na qual são constituídas práticas sociais, normas, convenções, identidades, discursos, instrumentos e instituições que envolvem a produção do conhecimento (BIJKER,

7 Tradução do Autor (T. A.). 17

HUGHES & PINCH, 1987; CALLON, 1986; WINNER, 1980). Tais elementos, o social e o natural, são considerados como politicamente construídos e refletem os suportes sociais apropriados de forma a mantê-los estáveis. Assim, as fronteiras entre a sociedade e a C&T se dissolvem, pois estão em constante negociação pelos atores sociais envolvidos em sua produção (PINCH & BIJKER, 1984).

Também, dentre os ESCT uma consolidada tradição de pesquisa em países da América Latina sugere investigar a dinâmica da produção científica em países de industrialização tardia ou em desenvolvimento (DÍAZ, E; TEXERA, Y; & VESSURI, H. 1983; VELHO, L. & PESSOA JR, O. 1998; LOSEGO, P. & ARVANITIS, R. 2008). Tal concepção permite atentar para como são formuladas as agendas de pesquisa nesses países e os instrumentos de fomento para C&T em determinadas áreas, de forma a iluminar as contingências locais da produção do conhecimento neurocientífico como um processo político situado.

O ferramental dos ESCT utilizado na presente tese auxilia investigar as interações ente ciência e política em diferentes contextos com amplas implicações para a sua governança. A idéia é explorar as relações entre conhecimento, instituições, tecnologias e poder nas pesquisas interdisciplinares do cérebro colocando em perspectiva o projeto neurocientífico norte americano com relação ao brasileiro, de forma a demonstrar o ponto de vista daqueles situados dentro de culturas particulares da ação social (JASANOFF, 2005; p. 15).

Desde a década de 1980, as diferentes áreas das Ciências da Vida vêm se transformando e apresentando uma “fluidez” em suas fronteiras disciplinares. Nesse contexto, a sua composição intelectual e o conteúdo tecnológico passam por rápidas mudanças com projetos de pesquisa cada vez mais interdisciplinares e voltados para objetivos cognitivos e políticos específicos (JASANOFF, 2005; ROSE, 2007). Desde então, segundo Jasanoff (2005), as biociências tornaram-se um fenômeno particular do qual é possível analisar as trajetórias de triunfos e conflitos em sociedades de industrialização avançada e aquelas em desenvolvimento.

As tramas narrativas triunfalistas que emanam imaginários envolvidos pelas neurociências surgiram nessa época da formação de projetos interdisciplinares biocientíficos. Um exemplo do contexto é o livro O homem neuronal ([1983] 1991), do neurocientista Jean- Pierre Changeux. Na época em que publicou sua obra, o autor afirmava que os avanços da biologia molecular e os seus usos nas investigações do cérebro eram de tamanha importância 18 que só eram comparáveis à “expansão (...) da física no início do século ou à da biologia molecular nos anos 50. A descoberta da sinapse e das suas funções lembra, pela amplitude de suas conseqüências, a do átomo ou a do ácido desoxirribonucléico” (idem, p. 9-10). Para o pesquisador francês, os avanços das pesquisas neurocientíficas potencialmente permitiriam “reescrever o Esquisse8” e “lançar as bases de uma moderna biologia do espírito”. Assim, o neurocientista considerava “oportuno alargar este campo do saber a um público mais vasto que o dos especialistas e, se possível, permitir que compartilhem do entusiasmo que anima os investigadores neste domínio” (idem, p. 9-10).

Na contemporaneidade, Rose e Abi-Rached (2013) destacam que as neurociências já deixaram o espaço fechado do laboratório e deslocaram mundo afora. No entanto, esse deslocamento se deu por diferentes motivos, não somente pelas promessas de seus achados e os avanços técnicos, mas principalmente pelo crescimento no investimento de pesquisas, o aumento de artigos e publicações em jornais da área, livros de divulgação científica ou de auto ajuda que foram lançados com dicas para aprimorar, treinar ou explicar o desempenho do cérebro, dentre outros.

Dessa forma, as pesquisas sobre o cérebro vêm sendo acompanhadas de estratégias retóricas persuasivas que buscam conferir credibilidade política e moral à área (BOVET etal. 2013; ROSE & ABI-RACHED, 2013; WILLIAMS, 2010). Em comum, são discursos que destacam o potencial “triunfalismo” e “essencialidade” dos achados sobre o cérebro para a compreensão do comportamento humano, a saúde e as doenças mentais, a partir das suas funções biológicas (CHOUDURY & SLABY, 2012). Para Ehrenbeg (2009) as pesquisas neurocientíficas adquiriram um valor social que perpassa a vida política e as referências culturais. Alguns autores chegam a afirmar que vivemos a época da “autoridade neurocientífica”, ou do “ufanismo neurocientífico” (AZIZE, 2010), ou que estaríamos na “era de ouro da neurociência” (ANDREASEN, 2005). Segundo Brosnan & Michael (2014), desde que a neurociência começou a se destacar não existe nenhum sinal que tal área do conhecimento irá retrair.

8 O Esquisse d’une Psychologie scientifique, de Sigmund Freud (1856-1939), foi publicado em 1895, e é considerada uma obra inauguradora da psicanálise pelos especialistas das psicociências - Nikolas Rose (2011) utiliza este termo para se referir às disciplinas de radical “psi”, como Psiquiatria, Psicologia e cognatos, que surgiram na última metade do século XIX. –, pois cindiu as análises da mente e do comportamento das funções biológicas do cérebro. 19

Um dos aspectos desse fenômeno são justamente os projetos governamentais para a área, como o Brain Initiative, dos EUA, e o Human Brain Project, desenvolvido pela União Européia (UE), anunciados em 2014. Ambas as agendas de pesquisas são exemplos de como a área das neurociências tornou-se componente estratégico para a promoção do desenvolvimento das sociedades de industrialização avançada através de diretrizes governamentais específicas para a área. A formatação da governança destes projetos ampara- se naqueles de Big Science: consomem parte significante do Produto Interno Bruto (PIB) de seus países e implicam consideráveis rearranjos institucionais, políticos e organizacionais para o empreendimento científico de larga-escala (VELHO & PESSOA JR, 1998).

Quando entrei em contato com o tema da presente pesquisa, o presidente norte americano acabara de anunciar o projeto BRAIN. Ao perceber a excepcionalidade que as neurociências ganharam naquela sociedade de industrialização avançada e considerando que as dinâmicas de suas agendas de pesquisa são envolvidas em políticas científicas e narrativas culturais específicas, algumas questões surgiram do contexto delineado: qual a especificidade de nomear uma área do conhecimento de “neurociências”, sabendo que existem diferentes delas que investigam o cérebro, como a Fisiologia, a Neurologia, Psiquiatria, dentre outras? Qual o contexto em que foi criado o termo? Quais os futuros desenvolvimentos sociais que a agenda de pesquisa norte americana pretende promover?

Muitos países foram influenciados pelo contexto da criação das agendas de pesquisas governamentais para as neurociências dos EUA e UE, como a China, Japão, Palestina, dentre outros. O que não significa segundo Rose & Abi-Rached (2013), que todas as nações do mundo seguiram as mesmas transformações e objetivos, ou mesmo nem se pode afirmar que o campo neurocientífico é unificado e transversal: existem diferentes conceitos, formulações de problemas de pesquisa, práticas experimentais e sociedades científicas específicas. Também, nem todas as agendas neurocientíficas são áreas da C&T estratégicas para o desenvolvimento econômico e social para o governo de seus respectivos países.

Por exemplo, no Brasil, nos anos precedentes à abertura da Copa do Mundo, a agenda potiguar de pesquisa do Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), liderada por Miguel Nicolelis e que produziria uma “inovadora” tecnologia que seria o símbolo de uma bioeconomia neurocientífica em um dos estados menos desenvolvidos do Brasil, ganhou destaque. No período de 2003 a 2014, não raro, apareciam matérias de diferentes meios de comunicação nas quais o neurocientista aparecia ao lado do presidente Luis Inácio “Lula” da Silva. O governante federal, por sua vez, citava a agenda 20 neurocientífica potiguar e a inovadora tecnologia que seria apresentada no evento esportivo como um exemplo das iniciativas governamentais na área da C&T brasileira, que transformaria o país em uma “sociedade do conhecimento”.

O cenário composto por uma série de símbolos nacionais brasileiros era conformado por uma narrativa sobre um país que investia no desenvolvimento econômico através da ciência. Mais especificamente a neurociência. E aparentemente, o governo havia escolhido uma área da ciência para produzir desenvolvimentos cognitivos e políticos parecidos com aqueles almejados pelo projeto de larga escala em neurociências norte americano. Desse quadro social que se apresentava, surgiu a hipótese de que a neurociência brasileira seria uma área estratégica e coordenada por diretrizes governamentais específicas, que reunia diferentes atores sociais (institutos, universidades, programas de pesquisas, cientistas, infra-estruturas, tecnologias) a produzirem pesquisa com objetivos em comum, assim como a governança do projeto de larga-escala daquela sociedade de industrialização avançada.

Dessa forma, o contexto quando foi realizada a pesquisa de campo, entre 2013 e 2017, também iluminava questões específicas sobre a dinâmica das pesquisas neurocientíficas no Brasil: quando surgiu o termo para significar esta área do conhecimento no país e de que forma se constituiu sua comunidade? As pesquisas interdisciplinares do sistema nervoso são dinamizadas por uma agenda nacional, de larga escala, assim como o projeto norte americano? Qual a governança das pesquisas da área?

De forma a responder as diferentes questões elencadas, a investigação empírica foi embasada em documentos primários e secundários, como jornais, revistas, matérias da internet (publicadas entre 2003 e 2017), bibliografia dos ESCT sobre neurociências, livros de divulgação científica dos pesquisadores brasileiros da área, realização de entrevistas com questionários semi-estruturados e conversas informais com neurocientistas de diferentes níveis de formação, além de participação em palestras e eventos. As discussões do percurso metodológico constam no primeiro capítulo da tese.

Já no segundo capítulo foi realizado um levantamento bibliográfico a partir da obra de Nikolas Rose & Joelle Abi-Rached (2013), sobre a origem do termo neurociências, da comunidade neurocientífica e a forma de governança que adquiriu nos EUA. Assim como os citados autores sugerem, realizar uma historiografia dessa área da ciência (por ser interdisciplinar, com muitos pesquisadores de diferentes áreas e com diferentes trajetórias) seria uma tarefa que poderia incorrer em erros e esquecimentos. No entanto, foi na sociedade 21 norte americana que surgiu um “momento” entre diferentes culturas e países, no qual algo novo surgiu para as pesquisas do cérebro: uma infra-estrutura de pesquisa propriamente “neurocientífica” e “a visão neuromolecular do cérebro enquanto um órgão inteligível que estava aberto ao conhecimento” (idem, p. 38). Tal levantamento revela uma narrativa do imaginário sociotécnico da agenda neurocientífica com as características sociopolíticas e culturais daquele país, na qual se verifica o surgimento desta área do conhecimento e seu desenvolvimento enquanto sociedade.

Por sua vez, com os dados coletados durante a pesquisa de campo foi possível compreender como diferentes atores sociais constroem e significam o que é a comunidade neurocientífica no Brasil. Em uma série de eventos da área que pude acompanhar e realizar entrevistas com os neurocientistas de produção científica reconhecida pelos pares foi possível compreender o imaginário sociotécnico da neurociência brasileira: as formas como eles se imaginam enquanto comunidade, a trajetória histórica de diferentes agendas, os cientistas fundadores do campo, como obtém recursos para pesquisas e também a discussão de como imaginam que é governada as agendas neurocientíficas. Assim, no trabalho de campo foi possível investigar o desenvolvimento da interação entre atores sociais dentro de uma cultura da atividade científica, quais instituições que formam a rede nuclear para a produção e transmissão do conhecimento neurocientífico que constituem as agendas de pesquisa da área e sua governança particular.

O terceiro capítulo é resultado das percepções que surgiram durante a pesquisa de campo. Quando os neurocientistas entrevistados eram questionados sobre o que pensavam dos desenvolvimentos das neurociências em sociedades de industrialização e se de fato a agenda do IINN-ELS era um projeto onde o “futuro da neurociência”9 no país começava, os interlocutores refletiram as próprias dinâmicas dessa comunidade da ciência brasileira. Assim, não raro, em suas falas foi possível identificar uma reiterada ênfase na “tradição” de pesquisas, os “grandes neurocientistas precursores”, o “parentesco” que tais pesquisadores possuem na comunidade, a trajetória de dois tipos de estilos de pensamento, o da fisiologia dos animais e o da psicobiologia, e como se projetam enquanto sociedade.

Dessa forma, o capítulo trata-se da narrativa do imaginário das origens da comunidade neurocientífica brasileira. No percurso histórico desse relato é possível verificar que os cientistas entrevistados e nos dados coletados, a neurociência do país é imaginada

9 “Ciência e cidadania”. Página de notícias da revista Scientific American Brasil. Quadro 3, C4. Acessado em: 25/10/2015. 22 através de uma “árvore genealógica” que divide gerações de “pais” e “filhos”, daqueles que são fundadores e aqueles que dão continuidade às pesquisas sobre o sistema nervoso, respectivamente. Destaco que as raízes dessas “tradições” familiares se situam basicamente nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, regiões às quais mais me atentei na construção da narrativa, e são constituídas de agendas dos cientistas precursores das áreas de Fisiologia, Farmacologia, Psicologia Experimental e Psicobiologia.

Interpreto o exercício da memória da árvore genealógica da comunidade neurocientífica brasileira através do conceito de morgadias científicas. Nessa prática imaginativa do passado, os atuais pesquisadores elencam as agendas de pesquisas de seus antepassados como uma forma de estabelecer a territorialidade interna da comunidade das neurociências e os vínculos da rede de parentesco através do que consideram o patrimônio científico herdado: os conceitos dos precursores, artigos publicados em revistas reconhecidas entre pares, as tecnologias e modelos animais utilizados nas pesquisas experimentais, dentre outros elementos. O exercício da imaginação das agendas de pesquisas dos antepassados permite àqueles que a pratica criar ancoragens em uma rede de parentesco de linhas geracionais e significar a percepção genealógica real da comunidade neurocientífica. Interpreto a imaginação dos morgadios científicos como um ato político de significação histórica da constituição das origens da neurociência brasileira.

Nessa recuperação histórica, pode-se afirmar que o primeiro momento em que é utilizado o termo “neurociência” para significar uma infra-estrutura de pesquisas, foi a criação da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), na década de 1990. Dentre os pesquisadores entrevistados e nos dados levantados, é esta sociedade que constituiu o primeiro espaço para aglutinar as pesquisas experimentais sobre o cérebro de distintas áreas no Brasil. No entanto, argumento que o início da imaginação sociotécnica de como se constituiu a comunidade neurocientífica brasileira se deu no contexto da intensa divulgação daqueles lemas da agenda potiguar do IINN-ELS, que versavam que o “futuro da ciência” ou da “neurociência” começava ali. Em 2006, a SBNeC criou uma premiação denominada de “Medalha Neurociências Brasil” dada “a um neurocientista brasileiro de inquestionável importância, em reconhecimento ao conjunto de suas contribuições às neurociências em nosso país”10. Tal honraria constituiu um meio de significação simbólica de quais agendas de pesquisa constituem a comunidade neurocientífica socialmente.

10 “Medalha Neurociências Brasil”. Página da Medalha Neurociências Brasil no site da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento. Quadro 3, C5. Acessado em: 10/10/2016. 23

Por sua vez, o IINN-ELS é considerado por esses pesquisadores entrevistados e nos dados coletados, como uma agenda de pesquisa que não se situa como pertencente àquela comunidade neurocientífica. Durante a pesquisa de campo, as formas de financiamento deste Instituto e a representação que ganhou enquanto um símbolo da neurociência nacional revelou uma série de controvérsias sobre como os neurocientistas imaginam que as neurociências no país são governadas. Trato de como foi construída a agenda potiguar de Nicolelis e a representação que ganhou durante a apresentação do exoesqueleto na Copa do Mundo no quarto capítulo. Dessa forma, os conflitos encontrados nos achados da pesquisa de campo entre os diferentes atores sociais revelam possibilidades de reflexões de como podem ser governadas as agendas de pesquisas da área, a partir das particularidades culturais desse tipo de ciência no Brasil.

Convidando à leitura da tese, cabe ainda ressaltar que apesar de uma série de contribuições das Ciências Sociais que tiveram como tema o estudo de diferentes aspectos sociais que envolvem as neurociências e por elas são envolvidos (AZIZE, 2010, 2011; CARVALHO, 2010; CHEIDA, 2013; ORTEGA, 2009; ZORZANELLI & ORTEGA, 2011), percebe-se que poucos estudos deram atenção ao modo que a comunidade neurocientífica brasileira se desenvolveu historicamente e os contextos sociopolíticos dos quais dinamizaram suas pesquisas. É parte dessa lacuna percebida nos estudos das humanidades que a presente tese busca contribuir e apontar direções futuras para as pesquisas sociológicas que tem como tema a área das neurociências.

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Capítulo 1 – Como estudar a formação de uma área interdisciplinar como as neurociências?

O tratamento do conhecimento científico enquanto construção social implica que não há nada epistemologicamente especial sobre a natureza do conhecimento científico: é meramente um em toda uma série de culturas do conhecimento (incluindo, por exemplo, sistemas de conhecimento pertencentes a tribos ‘primitivas’). (PINCH & BIJKER, 1984; 401-402. Tradução do autor). Antes de adentrar especificamente nos aspectos metodológicos da pesquisa, entendo ser necessário explicar algumas das motivações pelas quais resolvi embarcar nesse estudo sobre as neurociências. Elas condizem especificamente com uma trajetória que venho desenvolvendo desde a pesquisa do mestrado (2011-2013), na qual investiguei publicações de artigos científicos de pesquisadores brasileiros da área de Psiquiatria que desenvolviam pesquisas sobre o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDA/H). Naquele momento, me interessava analisar como era construído o conhecimento biológico da patologia com a hipótese de que as pesquisas que resultavam em artigos publicados em revistas científicas brasileiras eram financiadas por empresas farmacêuticas, atores sociais interessados na promoção desse conhecimento (CHEIDA, 2013).

Na busca pelos dados e no levantamento bibliográfico, por diversas vezes me deparava com as palavras “neurocientistas” e “neurociências” em meio a uma série de disciplinas científicas como “psiquiatria”, “psicologia”, “neurologia”, “fisiologia”, dentre outras. Durante a pesquisa, também me fascinava os diferentes conhecimentos biológicos do cérebro e as tecnologias de visualização do órgão que os pesquisadores utilizavam para investigá-lo (Figura 1). Nesse processo, algumas questões surgiram, como: o que é específico em nomear uma área do conhecimento como “neurociências”? Diz respeito às tecnologias e às diferentes formas de conhecer o cérebro? Sabendo de tantas outras áreas que de alguma forma investigam o órgão, qual o motivo do uso do termo? No Brasil quais institutos, departamentos e universidades são produzidos conhecimentos “neurocientíficos”? Quem são esses pesquisadores?

Um segundo momento de inquietação surgiu no ano de 2013 quando, no início da pesquisa do Doutorado, o presidente norte americano Barack Obama anunciou o projeto BRAIN de neurociências, do qual resultaria em melhores “tratamentos para enfermidades como o Alzheimer e autismo e aprofundar nossa compreensão de como pensamos, 25 aprendemos e lembramos (...)”11. Em meio a sua fala, a possibilidade de melhor compreensão das doenças mentais estaria relacionada com desenvolvimentos econômicos que resultariam das pesquisas neurocientíficas (Figura 2).

Figura 1: Imagem produzida por uma ressonância Figura 2: O diretor do NIH, Francis Collins, com o magnética de difusão espectral (tradução do original em presidente norte-americano, Barack Obama, ao fundo, inglês Diffusion Spectrum Magnetic Ressonance anunciam o projeto BRAIN. Disponível em: Imaging). A imagem capta as conexões de nervos que http://mcgovern.mit.edu/news/newsletter/modern-thinking- possuem centenas de milhares de fibras nervosas e trata- the-mcgovern-neurotechnology-program-at-7- se de um exemplo das imagens que atualmente são years/attachment/p040213ck-0035/. Acessado em 10/4/2013. produzidas pelas técnicas utilizadas nas pesquisas neurocientíficas. São tecnologias que permitem uma visualização dos circuitos neurais e sua relação com funções biológicas e patologias do órgão em tempo real. Disponível em: http://www.humanconnectomeproject.org/gallery/. Acessado em 10/7/2016.

Por sua vez no Brasil, na época não raro era possível encontrar veiculações na grande mídia de matérias em que o IINN-ELS, o “Projeto Andar de Novo”, Miguel Nicolelis e o ex-presidente do Brasil entre 2003 e 2011, Luiz Inácio “Lula” da Silva, apareciam juntos. Por exemplo, uma delas veiculada no ano de 200712, anunciava que o presidente em exercício enviara uma carta à Nicolelis, que o pesquisador leu na inauguração do Instituto, no evento “II Simpósio Internacional de Neurociências de Natal”. Nela, o autor evidenciava seu apoio à iniciativa ao destacar a “evidente vertente social do projeto” e que o instituto trazia “novas

11 “Obama administration proposes over 300 million in funding for the BRAIN Initiative”. Página da White House Office of Science and Technology Policy. Quadro 3, C6. Acessado em: 26/7/2015. 12 “Presidente Lula assina documento que viabiliza R$ 42 milhões para o Campus do Cérebro”. Página do Instituto Internacional de Neurociências de Natal - Edmond e Lily Safra. Quadro 3, C7. Acessado em 26/7/2015. 26 maneiras de se fazer ciência no Brasil13”. Ainda, a matéria em questão informava sobre uma medida assinada pelo presidente que destinava R$ 42 milhões para o “Campus do Cérebro” do IINN-ELS, que fomentaria a construção de sua infra-estrutura e o desenvolvimento de pesquisas (Figura 3). Outra matéria veiculada em Abril de 2014, nas vésperas da inauguração da Copa, informava que o ex-presidente Lula visitou o laboratório do projeto “Andar de Novo”, para conhecer a equipe e o exoesqueleto que seria apresentado no evento esportivo (Figura 4)14.

Figura 3: O então presidente Lula assinando Figura 4: Visita do ex-presidente Lula ao laboratório do documento que prevê destinação de verba ao IINN- IINN-ELS. No meio, o exoesqueleto desenvolvido pela ELS. Ao fundo à esquerda, o neurocientista líder do equipe de Nicolelis. Disponível em: Quadro 3, C8. projeto “Andar de Novo”. Quadro 3, C7. Acessado Acessado em 26/7/2015. em 26/7/2015.

Tais cenários evidenciavam diferentes contextos nos quais as pesquisas sobre o cérebro eram mobilizadas em torno de certos objetivos cognitivos e políticos. No caso das neurociências nos EUA, foi criado um projeto governamental estratégico para o desenvolvimento econômico e científico do país. No Brasil, os produtos de uma agenda de pesquisa neurocientífica apresentada em um evento esportivo de repercussão mundial pretendiam simbolizar a ciência produzida no país.

Ambos os acontecimentos revelavam a excepcionalidade que as pesquisas neurocientíficas ganharam na contemporaneidade. Conforme Latour ([1994], 2009) são cenários que demonstram o quanto é impossível separar a ciência e a sociedade. Ou seja, é difícil lidar com esses fatos “sem acoplar a eles uma comunidade científica, instrumentos, práticas, diversos problemas que pouco lembram a matéria cinza [do cérebro] e o cálculo”

13 Quadro 3, C7. 14 “Lula visita projeto ‘Andar de Novo’ de Miguel Nicolelis”. Página do Instituto Lula. Quadro 3, C8. Acessado em 26/7/2015. 27

(Idem, p. 9), além da “economia”, “governos” e “presidentes” que participavam dos jogos de cena.

Além de buscar responder minhas inquietações iniciais, entendia que os cenários que esse tipo de ciência estava imerso constituíam casos concretos e recentes nos quais poderiam ser investigados como a ciência e a política se co-produziam (JASANOFF, 2004). Também, a decisão de estudá-la se deu pelo fato de que ambas as agendas demonstravam que a ciência se torna instrumento de governança e da dinamização das sociedades contemporâneas (JASANOFF, 2005). Assim, para investigar as práticas, os conhecimentos produzidos pela neurociência e os atores sociais que compunham tais cenários, fazia-se necessário atentar para seus processos sociais e políticos.

Por sua vez, os contextos em questão revelavam que a área das neurociências sofria influências “externas” ao seu campo e refletia questões pertinentes às relações in situ (local/dentro) e ex situ (fora) nas quais a ciência adquire forma e se dinamiza. Ou seja, se a ciência é dinamizada “dentro” e “fora” dos locais que a significa, como investigar tais processos? Onde o “campo” neurocientífico toma forma? Como investigar uma área da ciência através de ferramentas sociológicas?

A partir dos primeiros achados da pesquisa e das questões apontadas, no presente capítulo busco debater questões teóricas e metodológicas dos ESCT para a investigação da dinâmica das agendas de pesquisa neurocientífica brasileira. Nessa discussão, elaboro a metodologia do que considero o “campo” ou o “local” da presente pesquisa. Assim, retomarei alguns aspectos fundamentais da sociologia dos campos científicos de Pierre Bourdieu (1975; 1983), a forma como seu conceito trouxe reflexões metodológicas para a elaboração da etnografia de laboratório na década de 1980 e a forma de análise que empreguei a partir dessa discussão para a investigação da presente pesquisa.

1.1 – A autonomia relativa no conceito de campo científico de Pierre Bourdieu

A referência teórica que orienta esta pesquisa parte da premissa que a ciência não possui significados sem um contexto (CALLLON, 1995). Ou seja, qualquer distinção entre a produção, a organização da ciência e a sociedade é totalmente rejeitada. A ciência e a tecnologia são consideradas como constituídas de formas de produção e de difusão do conhecimento que podem ser autônomos, ao mesmo tempo em que conectada à sociedade mais ampla (indústria, forças armadas, sistemas nacionais de padronização e regulação, etc.), configurando dinâmicas sociais particulares (HESS, 1997). 28

Dentre as linhas dos ESCT, destaco a perspectiva da Sociology of Scientific Knowledge (SSK), ou Sociologia do Conhecimento Científico, que trata especificamente das dinâmicas sociais de produção e desenvolvimento da ciência. Esse programa de pesquisa surgiu com o objetivo de investigar os efeitos políticos e sociais que a ciência e a tecnologia passaram a desempenhar no desenvolvimento econômico durante o século XX (ROOSTH, S; SILBEY,S. 2009).

A SSK se contrasta da Sociologia da Ciência, um dos primeiros programas de pesquisa dos ESCT que investiga a ciência como uma instituição social que é autônoma, ou que se diferencia de outras instâncias da sociedade. Exemplos de tal abordagem é a sociologia de Robert Merton (1985) sobre os valores que regulam a produção científica, ou a abordagem de Thomas Kuhn (1989) em que a mudança de paradigma do conhecimento científico é governada por relações epistêmicas internas ao campo científico. Shin e Ragouet (2008) categorizam essa concepção como a análise “diferenciacionista”. Já a perspectiva “antidiferenciacionista” da SSK, auxilia investigar a ciência no momento de sua produção, o conhecimento científico através de suas contingências históricas e sociais, e a partir das diferentes perspectivas que orientam a construção da objetividade de um fenômeno científico.

Os cenários que as neurociências atravessavam nas diferentes sociedades abordados no início do capítulo, traziam questões relativas às discussões sociológicas de como são mobilizadas determinadas áreas da ciência, as dinâmicas que incitam, quais os atores sociais envolvidos na produção do conhecimento e as características culturais da ciência em diferentes sociedades. Inicialmente, um conceito que auxiliou a reflexão de como investigar esses processos e os “locais” em que as agendas de pesquisa neurocientíficas ganham ação é o de campo científico, conhecido pelas análises de Pierre Bourdieu (1975; 1983).

A abordagem da ciência do sociólogo francês é contínua ao projeto construtivista da SSK, mas implica em uma escala elevada de análise em contraste com o foco de como se arroga o avanço, aceitação ou negação de um conhecimento científico, debate característico da Filosofia da Ciência (HESS, 1997). A idéia de “campo científico” foi elaborada anteriormente àquela formulação de Bourdieu, mas de forma polissêmica por autores que se referiam a uma vasta disciplina como a Biologia, até uma pequena rede de pesquisadores que seguem e avaliam as pesquisas de cada um. No entanto, o objetivo comum de tais estudos era buscar os padrões na formação, transformação e continuidade “dentro” de certas áreas da ciência (idem, 1997). 29

Derek de Solla-Price (1963), por exemplo, investigou a importância de redes pessoais na formação de tais áreas; Ben-David (1960) pesquisou a relação entre pesquisa básica e aplicada para a constituição de novos “campos”; Ben-David e Randall Collins (1966) exploraram os fatores que levam pesquisadores a migrarem entre diferentes áreas, daquelas mais antigas e com maior status, hierarquizadas e competitivas (por exemplo, a Fisiologia), para as novas com menores status, mas com mais oportunidades de carreira e de pesquisa (a Filosofia), que resultou na formação de um novo campo (a psicologia experimental); Nicholas Mullins (1972; 1973), baseado no modelo interpretativo de Ben-David e Collins, analisou os diferentes interesses intelectuais dos pesquisadores como um fator para as mudanças entre áreas da ciência, dentre outros estudos.

Para David Hess (1997), tais estudos demonstram a possibilidade de se investigar diferentes fatores que dinamizam determinadas áreas da ciência, mas justamente esta variedade de elementos torna imprecisa a tentativa de encontrar um padrão nesses processos. O que não significa que as pesquisas relacionadas a esse tópico minguaram. O foco da análise que mudou. Segundo o autor (idem, 1997), nas décadas de 1960 e 1970, os estudos especializados em C&T enfatizaram fatores institucionais de “fora” da ciência que dinamizaram certas áreas, com ênfase nas pesquisas com aplicações comerciais, nos padrões de financiamento de pesquisa e a crescente complexidade de problemas políticos (como as mudanças climáticas, por exemplo). A análise desses fenômenos permitiu investigar como se formaram novas áreas da ciência, a reformulação da hierarquia e prestígio dentre elas, as colaborações e a interdisciplinaridade científica.

Nesses casos, certas áreas da ciência tendem a ser localizadas em institutos e programas, e freqüentemente são orientadas para fins comerciais, militares e políticos. Se tais áreas geralmente emergem em resposta às prioridades de financiamento “extra-muro” da ciência, isso significa que possuem maior acesso aos recursos de pesquisa que outras áreas mais tradicionais, o que torna vulnerável a interpretação da “autonomia” da produção científica (FRICKEL, 2004; TURNER, 2000; WEINGART & STEHR, 2000).

Uma das abordagens criou ferramentas de análise da dinâmica das relações entre atores sociais de “dentro” e “fora” da ciência, de forma a dar respostas às discussões relativas à autonomia da ciência, foi a de Pierre Bourdieu (1975; [1976]1983) com o conceito de campo científico. Apesar de não ser situado como um autor dos ESCT15 pode-se afirmar que

15 David Hess (1997: 6) aponta que o primeiro ensaio de Bourdieu sobre campo científico publicado em 1975, The specificity of the scientific Field and the social conditions of the progress of reason, influenciou as 30 sua abordagem foi importante para os estudos da ciência, notadamente a SSK, na década de 1970, e nas discussões que resultaram na formulação das etnografias de laboratório, do começo da década de 198016.

Em um primeiro momento, a perspectiva de análise de Bourdieu se aproxima das análises clássicas da Sociologia da Ciência da teoria funcionalista de Robert Merton (1985), mas amplia a discussão das normas e valores que auto-regulam a produção científica ao sugerir a interpretação da quase autonomia dos campos científicos. Nesta perspectiva, o foco da análise é a dinâmica dos sistemas de recompensa da ciência e da conversão do capital científico em diferentes tipos de capitais. O contraste sociológico de Bourdieu em relação às análises “diferenciacionistas” da Sociologia da Ciência, está justamente na aplicação de conceitos que se referem à acumulação de capital e de poder na ciência, elementos que implicam investigar fatores sociais que dinamizam a produção científica para além de seus “muros”.

Por sua vez, os estudos de Bourdieu sobre o sistema educacional francês e do campo científico (BOURDIEU, 1988; 1998) foram importantes para se diferenciar do “curto- circuito” dos estudos marxistas e de perspectivas orientadas por agentes (como a Actor Network Theory - ANT), pois buscaram dialogar com outros conceitos, como os de estrutura social e poder institucional. Segundo David Hess (1997; 2011), apesar da teoria da ciência de Bourdieu não ser considerada propriamente pertencente aos ESCT, ainda existe uma crescente atenção de pesquisadores às dinâmicas do campo científico propostas pelo sociólogo francês como alternativa às análises da ANT.

Para Bourdieu (1975; [1976]1983), o campo científico é um sistema de relações de conflito e aliança entre agentes que lutam para acumular uma forma específica de capital. Tais agentes possuem o interesse particular no monopólio da autoridade científica, ou seja, o poder social de se dirigir legitimamente sobre um fato científico e uma especialidade. De outra forma, cientistas ou laboratórios visam acumular capital simbólico (por exemplo, “reputação”, “prestígio”, “autoridade”, “competência”) para obterem autoridade científica que em um dado campo dá a forma do reconhecimento entre os pares. O capital acumula-se no tempo com o investimento em problemas de pesquisa socialmente reconhecidos como emergentes sociologias do conhecimento científico, mas com o tempo tal influência minguou. Uma explicação se deve ao fato de que o autor não esteve constantemente envolvido com os ESCT, pois seus maiores projetos entre as décadas de 1980 e 1990 focaram o sistema educacional francês. No entanto, antes de sua morte em 2003, David Hess (1997) relata que o autor publicou na área de sociologia da ciência, mas naquele momento sentiu tanto que não foi compreendido como desapropriado. 16 Retomarei esta idéia no próximo subitem. 31 importantes pelos agentes dominantes. Assim, cientistas (interpretados como “agentes”) possuem o interesse coletivo em defender a autonomia relativa de um campo científico de influências que possam quebrar a legitimidade, autoridade e, conseqüentemente, a independência do campo.

Aqueles que alcançam posições dominantes definem os problemas, métodos e teorias a outros agentes. Essa capacidade de se impor legitimamente, de ordenar as ações e o sentido da ação social dentre os agentes é o que o sociólogo francês denomina de habitus: a estrutura de um campo científico é resultado de ações prévias, mas que orientam o sentido de ações presentes e futuras em trocas de reconhecimento que asseguram a transmissão da autoridade científica. O conceito de habitus orienta analisar as diferentes estratégias que permitem estruturar o campo científico e as formas de como os agentes lutam pelo seu monopólio. Dessa forma, a concorrência científica é também política pela legitimidade da distribuição do capital especificamente do reconhecimento científico (BOURDIEU, 1976).

O capital simbólico dos agentes, adquirido nas disputas de dentro de um campo científico, transforma-se em diferentes formas de capital. Essa conversão permite analisar não só as relações em um determinado campo científico, como também, entre diferentes campos e fora deles. Essas relações são realizadas a partir de níveis desiguais de capital simbólico: enquanto os agentes dominantes podem adotar estratégias de conservação do monopólio científico, os subordinados (ou dominados) podem adotar estratégias de sucessão ou subversão que levam a revoluções no campo. Assim, as posições intelectuais são interpretadas por Bourdieu (idem, 1976) como heterodoxas ou ortodoxas, dependem do grau de autonomia do campo científico e a capacidade dos agentes dominantes influenciarem a doxa. Ou seja, a formação da legitimidade em torno da produção de um conhecimento científico entre os agentes depende de estratégias que permitem a formação de dissenso e consenso sobre determinado conhecimento.

Também, parte do que está em jogo na luta pela acumulação do capital simbólico da autoridade científica não se trata de somente impor consenso “dentro” do campo científico, mas também de construir a capacidade de representá-lo “fora” dele. Esse tipo de capital acumulado nas lutas pela conquista da autoridade científica, portanto, pode ser convertido em diferentes formas de capital em outros campos da vida social. Considerando essa relação, as ações sociais dentre os agentes não é racional, pois existe uma lógica de estruturação do campo científico que varia de acordo com fatores internos e externos. Existe um sentido 32

“inconsciente” de como se organiza a ação social dentro de diferentes campos científicos (HESS, 1997).

Dessa forma, é possível destacar no conceito agonístico de campo científico bourdiesiano, que sua estrutura resulta de estratégias prévias de acumulação de diferentes tipos de capital dentre os agentes que buscam formar a autonomia relativa do campo como resultado da manutenção do monopólio do capital científico. A acumulação e a luta pelo capital científico dependem de estratégias contextuais que os agentes formulam nas relações “dentro” e “fora” do campo. Nota-se, também, que agência e estrutura são conceitos fundamentais para tal análise da dinâmica científica, pois permitem analisar as condições de possibilidade da ação dos agentes (habitus), suas estratégias de conservação ou de subversão e como o resultado de suas ações afeta a estrutura do campo (BOURDIEU, 1983).

Em trabalhos subseqüentes, Bourdieu (1996; 2001) continuou a explorar as relações de “dentro” e “fora” do campo científico. Apesar de ter desenvolvido suas análises originalmente em estudos dos campos artísticos, o sociólogo francês sugere explorar as tensões entre os pólos consumidores e produtores do campo científico. Mathieu Albert (2003) expandiu tais sugestões ao analisar que as posições de prestígio são garantidas àqueles cientistas com maiores “contribuições” para o campo, ou seja, são destinadas ao pólo que produzirá para o consumo de outros produtores em posições de menor prestígio. Em contraste, aqueles cientistas que produzem para consumo “além” do campo científico, como indústrias e formuladores de políticas governamentais, acumulam vantagens financeiras e reconhecimento entre outros atores sociais, mas sofrem da falta de reconhecimento dos pares da ciência. Ou seja, nessa lógica, quanto mais baixo o capital simbólico dos cientistas mais alto é seu capital financeiro.

David Hess (1997:13) analisa que a dinâmica dos pólos pode ser utilizada para a análise de situações quando cientistas que se situam nas margens da luta pela autoridade científica, ou seja, fora das redes dominantes do pólo produtor são direcionados para o pólo consumidor, onde outros tipos de financiamento são disponíveis para projetos de pesquisa aplicada. Bourdieu (2001) sugere que aqueles que estão em posições desfavoráveis no campo científico podem recorrer a fatores externos de modo a aumentarem sua força e às vezes triunfarem em seus conflitos.

De forma resumida, campo científico, para Bourdieu, é um espaço. Um lugar. Onde existe luta e interesse concorrencial pela autoridade científica definida como capacidade técnica e poder social. Tais capacidades estão relacionadas a uma série de fatores da 33 organização de lutas passadas e presentes pelo monopólio da autoridade científica, ou a capacidade de falar e agir legitimamente – socialmente outorgado a um agente específico - em nome de uma definição de “ciência”, e as diferentes formas de como o capital científico se converte em outros capitais (BOURDIEU, 1983). Ou seja, a definição de problemas e tipos de conhecimento que formatam determinada área da ciência resulta da dinâmica agonística do campo científico.

Assim, a análise de Bourdieu tem como enfoque as dinâmicas de poder que configuram os campos científicos, o que suscita questionar como determinados pesquisadores (que definem as prioridades para futuras pesquisas que serão consideradas “interessantes” para um determinado campo) são capazes de alcançar posições dominantes em um campo? Como outros pesquisadores (de posições inferiores) são guiados por tais interesses dominantes e dedicam-se a determinados problemas de pesquisa?

A perspectiva do conceito de campo científico de Bourdieu é importante para a presente pesquisa, pois permite direcionar a análise para os diferentes tipos de capital, como o simbólico de reconhecimento (citações, prêmios por reconhecimento dos pares); cultural por acúmulo de conhecimento e recursos científicos; e o temporal que permite analisar o controle de posições organizacionais, de financiamento, de materiais. No entanto, na análise sobre a dinâmica do campo e da formulação das agendas de pesquisa das neurociências no Brasil, não se busca apontar uma lógica determinista como o caso dos pólos produtores e consumidores que Hess (1997) exemplifica.

O que busco com a discussão de campo científico é chamar atenção para os diferentes fatores que dinamizam um campo científico que podem ser contextualizados socialmente e sua elevada escala de análise. Portanto, Bourdieu ao sugerir uma relação dinâmica e politizada do campo científico oferece, também, uma perspectiva de análise para como a disputa científica emerge e se estrutura em um espaço e, também, na sua relação com outros campos da sociedade. Para Hess (1997; 2006), essa perspectiva é uma sociologia política dos estudos da ciência que permite atentar para como historicamente são formadas áreas da ciência, o contexto institucional e sociopolítico em que emergem, e suas relações com o campo da política, da economia e da sociedade civil.

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1.2 – Do conceito de campo científico às arenas transepistêmicas

Pode se afirmar, que alguns autores de referência na área dos ESCT se inspiraram na concepção de campo científico de Bourdieu, mas guiaram suas pesquisas em uma direção diferente ao criticarem a concepção sociológica do autor francês. Karin Knorr-Cetina (1981; 1982; 1983) é um deles e, de forma crítica, utilizou das concepções sociológicas do autor francês para elaboração do método da etnografia de laboratório17. O foco de sua discussão é, principalmente, os modelos de análise sobre o funcionamento do campo científico e como este se relaciona a outros campos da vida social.

Para Hess (1997), alguns textos de Karin Knorr-Cetina (1981; 1983), refletem avanços no que pode ser descrito “livremente” como a dinâmica e organização do campo científico. A autora sugeriu um tipo de análise que se difere ao modelo econômico e agonístico do conceito de Bourdieu ao criticar tal referência – o campo - como o foco e modelo para análise. Para ela o lócus de uma disputa pelo monopólio científico, adquirido através da imposição de definições técnicas e representações dos objetos científicos como legítimas, não se restringe somente a disputas dentro do campo.

Segundo Knorr-Cetina (1981; 1983), na concepção do modelo econômico de campo científico existe uma perspectiva pré-concebida da ação dos atores como um homo economicus que é consciente de suas ações e que busca maximizar seus ganhos com uma insaciedade pelo acúmulo do capital científico. Ou seja, o comportamento do ator implica em uma ação social naturalmente concebida. Para Knorr-Cetina (1983), as micro-interações que as etnografias de laboratório captam contradizem o modelo individualista e voluntarista de Bourdieu, pois os resultados das decisões e enunciados científicos dependem do contexto analisado. Dessa forma, não existe um cálculo de perdas e ganhos pré-estabelecido pelos atores envolvidos na produção científica.

Na interpretação da autora, o modelo agonístico de campo científico de Bourdieu se inspira no conceito de capital da teoria econômica de Karl Marx (1818-1883). Capital é ligado à idéia de acumulação do lucro, que por sua vez conecta-se a outras perspectivas como de exploração, estrutura de classe e alienação. Assim, o conceito de campo científico ao se referir à estrutura econômica para análise da ciência possibilita interpretar e distinguir

17 Pierre Bourdieu foi extremamente crítico às etnografias, pois em sua perspectiva falharam em situar os laboratórios em estruturas mais amplas da sociedade. O sociólogo francês em sua crítica do então emergente método, o comparou com as monografias de antropólogos em tribos e sociedades “exóticas”, e argumentou que não é possível compreender as propriedades de um laboratório sem situá-lo em relação a outros laboratórios e ao campo científico (HESS, 1997:15). 35

“cientistas-capitalistas” e “cientistas-trabalhadores” para compreender o fluxo de capital simbólico e de credibilidade. Segundo Knorr-Cetina (1983:131), tal distinção é arbitrária e ainda promove uma visão “diferenciacionista” da ciência. O problema nesse modelo econômico de análise, portanto, é assumir uma determinada estrutura da ciência que é invariante no tempo e espaço, em que as comunidades científicas são compreendidas como mercados de uma disputa competitiva.

Por fim, o modelo econômico bourdieusiano presume certo tipo de funcionalismo na análise da autora, no qual é implícita a conexão entre produção de informação crível e o acesso a posições de destaque, carreiras, dinheiro de pesquisa, citações e reconhecimento. O “sucesso” na carreira do cientista é medido em “créditos” que podem ser convertidos “livremente” em posições de destaque e recursos para pesquisa. Segundo a interpretação de Knorr-Cetina (1983), presume-se e se naturaliza que os agentes adotem tais condutas racionais na organização do campo científico.

Da discussão levantada sobre as críticas de Knorr-Cetina ao conceito de campo científico, pode se destacar para a análise da formação e dinâmica da comunidade neurocientífica, que não se pode adotar um modelo universal e que não diferencia a ciência de outras esferas da sociedade. O campo científico, ou um modelo de organização da ciência não é invariável em diferentes sociedades, pois existem diferentes relações que organizam socialmente a ciência. E essa perspectiva é fundamental para a pesquisa de campo da tese.

Outro aspecto relevante da interpretação do conceito de campo científico de Bourdieu, de Knorr-Cetina (1983), refere-se às influências que se situam “fora” da organização de uma comunidade científica que orienta a rotina da produção de um cientista em laboratório. Ou seja, a prática de um cientista e seu grupo de pesquisa freqüentemente está associada às agências de fomento, às políticas científicas estabelecidas por governos, às indústrias do setor, revistas científicas e o gerenciamento dos institutos de pesquisa. Ou seja, os cientistas atuam muitas vezes em arenas “não-científicas” para administrarem suas carreiras, grupos de pesquisa e institutos. As relações ex-situ, ou que não estão centradas somente no chão do laboratório (in-situ) é o que Knorr-Cetina (1982) denomina de arenas transepistêmicas de pesquisa e trata-se de um “campo de pesquisa” relevante a ser considerado pelos ESCT.

Tal conceito se refere às relações sociais que estão além das fronteiras do campo científico que não são primariamente determinadas por características adotadas em comum pelos membros da comunidade em uma lógica de classe. Segundo Knorr-Cetina (1983:133) 36

“(...) [as] relações entre agentes são freqüentemente construídas como ‘relações-recurso’, nas quais os agentes estão interessados no que é transmitido porque eles podem convertê-los [os recursos] em algo mais”18. Ou seja, os produtos da produção científica possuem nexos em sua confecção que possuem lógicas particulares e contextualizadas.

Nesse sentido, o argumento central de Knorr-Cetina (1983:133) versa que as “relações transepistêmicas são o lócus no qual as translações decisivas correspondentes às seleções do laboratório são definidas e negociadas [pois] não implicam que as seleções de laboratório podem ser analisadas de ‘fora’ dos envolvimentos contextuais dos cientistas”19. Ou seja, o argumento central da autora sugere que: 1) os problemas e objetivos de pesquisa são redefinidos durante o andamento das investigações de laboratório, decisões que são modificadas de acordo com as circunstâncias, oportunidades e problemas encontrados de ocasião pra ocasião; 2) os interesses e compromissos subjacentes às interações transepistêmicas freqüentemente permanecem implícitos e muitas vezes não são claros; 3) os envolvimentos transepistêmicos dependem das interações e circunstâncias dos cientistas em situações ex-situ.

O fenômeno transepistêmico deixa claro como as relações ex-situ e in-situ dependem de fatores múltiplos que levam a não predição e à indeterminação dos tipos de ação social envolvidos na produção do conhecimento. As seleções de laboratório dependem de ocasiões e circunstâncias que revelam a interatividade dos cientistas com diferentes aspectos que orientam sua ação social.

1.3 – Construindo o “campo” da pesquisa sobre a “comunidade neurocientífica”

Segundo David Hess (2006), as microssociologias de laboratório não necessariamente conseguiram resolver o problema da autonomia da ciência. Apesar de tais estudos enfatizarem o agenciamento dos cientistas na produção científica, suas redes e unidades microssociológicas de análises, o autor (idem, 2006) aponta que ofereceram vislumbres sobre o papel modelador do Estado, de empresas, de movimentos sociais, dentre outros atores que participam da produção científica.

Considerando essa crítica, o que busquei chamar atenção com a perspectiva de campo científico de Pierre Bourdieu e de arenas transepistêmicas de Karin Knorr-Cetina, é que a organização do campo científico está ligada a contextos mais amplos e que não se

18 T. A. 19 T. A. 37 referem somente ao contexto de produção do laboratório. Existem fatores sociais, culturais e econômicos que orientam as seleções de como um grupo de pesquisa orienta suas investigações. Não se trata de ignorar como é produzido o conhecimento, suas técnicas e estilos de pensamento (FLECK, 2010), mas como estão contextualizados de acordo com as relações sociais em que emergem e dinamizam a produção científica.

Dessa forma, a partir da discussão teórica, delineio algumas perspectivas pertinentes do conceito de campo científico, do método etnográfico e das arenas transepistêmicas para a construção e delimitação do “campo” da pesquisa da presente tese, a saber: 1) é necessário evitar uma análise previamente determinada das relações de poder que o conceito de campo científico implica; 2) resguardo a escala de análise macrossociológica correspondente à autonomia relativa dos campos científicos e sua relação com outros campos, e as do fenômeno ex-situ das arenas transepistêmicas de Knorr-Cetina; 3) me inspiro no método etnográfico, no entanto, de uma forma diferente da análise in situ, pois a ciência é praticada em diferentes “campos” que vão além do chão do laboratório20; 4) sintetizo tal discussão com as categorias de análise de “comunidade científica” e “agendas de pesquisa” das neurociências no Brasil, como os fenômenos sociológicos a serem investigados21.

Para compreender como se estruturou a dinâmica peculiar da comunidade neurocientífica brasileira e suas agendas, proponho investigar como são formulados os objetos da pesquisa científica, a formação das redes colaborativas entre instituições, as PCT’s específicas para determinada área da ciência, dentre outros elementos que envolvem a dinâmica da produção do conhecimento. Inspiro-me em tais categorias e no método etnográfico para pesquisar como um conjunto de atores sociais (instituições governamentais, cientistas) mobilizam ferramentas intelectuais (teorias, metodologias, tecnologias), materiais (infra-estrutura de pesquisa, como laboratórios, universidade, etc.) e político-institucionais (narrativas, discursos, comportamentos, etc.) para construírem o regime de governança científica em um determinado contexto histórico e cultural específico (FRICKEL & MOORE,

20 Retomo mais adiante a discussão deste argumento. 21Um dos artigos de referência para a presente discussão é o de Knorr-Cetina(1983) que se situava em uma discussão critica à idéia de “comunidade” como um categoria de análise sociológica da ciência, ao apontar que na época o uso do termo, por diferentes autores dos ESCT, era “vago” e “polissêmico”. Nesse contexto, “comunidade científica” era uma categoria da Sociologia da Ciência que estava associada às ideias funcionalistas e aos modelos quase-econômicos da ciência, de Robert Merton e de Pierre Bourdieu, respectivamente. No entanto, julgo pertinente recuperá-lo, pois na discussão que realizei pretendi tratá-lo sem implicar interpretações prévias sobre a dinâmica da ciência e seus atores, mas resguardando a escala macrossociológica de análise que o conceito implica. 38

2006; HESS, 1997, 2009; HILGARTNER 2013; HILGARTNER, et. al. 2015; LEONEL & COSTA, 2014).

Tal tipo de mobilização envolve uma densa rede de atores sociais que moldam as instituições e o espaço material no qual será produzido o conhecimento. Essa dinâmica da produção do conhecimento, Leonel e Costa (2014) conceituam como “agendas de pesquisa”. Assim, nessa perspectiva da construção social da ciência:

Considera-se a agenda de pesquisa como um empreendimento coletivo, em que a informação científica produzida é construída por uma intensa negociação entre atores (...). Legitimar mudanças e incorporar trabalho organizado envolve muito convencimento e persuasão (...), ensino e aprendizado. Mudanças conceituais na Agenda, por sua vez, estão baseadas em mudanças coletivas e individuais na forma em que os cientistas [constroem seus trabalhos]22. A análise detalhada da formação de uma agenda de pesquisa procura, assim, ‘lançar luz’ para essas atividades e processos pelos quais o conhecimento científico é construído e alterado (LEONEL & COSTA, 2014; p. 45). Por sua vez, a ferramenta metodológica que considero fundamental para essa investigação é o método etnográfico. A etnografia vem sendo de fundamental importância para os estudos das dinâmicas de pesquisas científicas, os locais específicos em que é praticada, mas também alcança escalas além de suas práticas in-situ (MARCUS, 1995). Dentro dos ESCT, a análise etnográfica da construção do conhecimento científico foi fundamental para a formação da Antropologia da Ciência e Tecnologia (MARCUS & FISHER, 1986), bem como alguns trabalhos da Social Construction of Technology (SCOT), que são referências para pesquisas que se interessam pela construção do conhecimento e dos artefatos tecnológicos (RAJAN, 2012). No entanto, sem pretender aprofundar e esgotar as possibilidades de pesquisa que o método oferece, apontarei em quais aspectos em que me inspirei na etnografia durante a pesquisa da presente tese.

Para orientar o uso do método, algumas questões contíguas às discussões dos conceitos de campo científico e arenas transepistêmicas são formuladas: como investigar um campo tão vasto e interdisciplinar como a neurociência? Existe um “lugar”, em que é possível compreender a dinâmica e organização de uma comunidade científica? Como acessar e

22 No texto original está escrito “organizam seu trabalho” (LEONEL & COSTA, 2014; p. 45). Optei por “constroem seus trabalhos” pela semântica que os termos “organizar” e “construir” implicam sociologicamente. Ou seja, o primeiro termo é próximo aos usos das correntes funcionalistas da ciência, na qual uma agenda de pesquisa cumpriria uma função dentro de um quadro de relações na manutenção da organização da produção do conhecimento. Já o segundo termo, é relativo à construção social do conhecimento e implica em analisar o fenômeno social em questão a partir de seus conflitos, dissensos e formação de consensos. 39 entrevistar os principais atores que pesquisam na área? Segundo Beaulieu (2010), a etnografia de laboratório foi fundamental para aprofundar o debate sobre o construtivismo social da C&T, pois permitiu analisar o que é levado em conta na produção científica do conhecimento e contribuiu para demonstrar como esse processo é localizado e não-universal. Se inicialmente, o uso do método enfatizou o “chão” do laboratório como o local primordial para a pesquisa etnográfica, uma série de estudos (HEATH, et al. 1999; HINE, 2009; STAR, 1999), demonstrou que a produção do conhecimento está distribuída em diferentes arranjos que conectam uma variedade de espaços, o que requer considerar uma diversidade de lugares a serem etnografados.

Sendo assim, um primeiro ponto a ser considerado é que investigar a “estruturação” e a “dinâmica” da comunidade neurocientífica coloca em suspensão o próprio termo “campo”. Segundo Frickel e Moore (2006), os locais onde a natureza é interpretada, processada, codificada e apresentada como “conhecimento científico” para outros se situam além dos laboratórios. Tal “espaço” inclui associações comerciais, agências regulatórias, instâncias do governo, movimentos sociais, eventos científicos, artigos publicados em revistas científicas, veículos de comunicação da grande mídia, dentre outros. A ciência é realizada em um diversificado arranjo de configurações organizacionais. Ou seja, considerando a escala de análise do que proponho como “comunidade neurocientífica”, no uso do método etnográfico, o pesquisador dos ESCT lida com situações que requer deslocamento para diferentes lócus, de acordo com o rastro dos atores seguidos durante a pesquisa, segundo Beaulieu (2010) e Marcus (1995).

É através desta perspectiva empírica e multissituada (MARCUS, 1995), que pretendi captar os elementos simbólicos de como se estrutura a comunidade neurocientífica brasileira, em diferentes locais em que foi possível acessar os enredos e narrativas dos atores sociais encontrados no trabalho de campo. Para análise dos dados, a abordagem sociológica que utilizei foi a de quadros ou enquadramento que tem como principal referência Erving Goffman ([1974] 2012). Tal perspectiva se aproxima à do interacionismo simbólico da antropologia interpretativa, que auxilia investigar os diferentes significados que os atores sociais constroem para debater, explicar, justificar e permitir suas ações entre eles e àqueles que visam ser compreendidos, o que não significa que chegam a certo consenso (TRAWEEK, 1992).

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Assim, o “texto social” a ser analisado são as práticas discursivas (orais e escritas) que constituem forma e conteúdo de significado singular para os membros da comunidade neurocientífica (TRAWEEK, 1992; LOCK & NGUYEN, 2010). As práticas discursivas e representativas são palavras-chave que orientaram a pesquisa de campo. Através do referido instrumental metodológico, foi possível interpretar as percepções dos pesquisadores sobre como é praticada este tipo de ciência no Brasil, em relação às sociedades industrializadas avançadas e como foi ela foi construída historicamente.

Também, foi a partir da referência de “quadros” que foi possível analisar o imaginário sóciotecnico (JASANOFF & KIM, 2009; 2015) da neurociência brasileira. A idéia de imaginário permite compreender como os atores com os quais convivi representam em suas narrativas o passado, presente e futuro sociotécnico das pesquisas neurocientíficas. O recurso do “imaginário” na teoria social interpretativa permite investigar a consciência coletiva implicada nos dados que coletei que significam as diferentes formas como se arranja um sistema sociotécnico. O que não significa que são imaginários hegemônicos. Eles são vários, estão em jogo em diferentes sociedades e no âmbito das instituições têm efeitos muito reais para a formulação da história, programas e políticas públicas que envolvem a C&T (JASANOFF & KIM; 2009; 2015).

Dessa forma, o presente estudo que coloca em perspectiva a comunidade neurocientífica norte americana e a brasileira explicita as diferenças de como áreas da ciência são imaginadas. Também, as trajetórias particulares que assumem e suas culturas políticas em C&T. Colocar a neurociência em diferentes ângulos de análise permite compreender como e por que uma mesma área da ciência configura formas de governança particulares, com amplas variáveis sociais, como valores culturais específicos, objetivos de pesquisa locais e globais, disparidades econômicas e as formas como as políticas regulam ou são inconsistentes em determinadas áreas da ciência (LOCK & NGUYEN, 2010).

Por exemplo, no caso dos EUA, o imaginário da formação da comunidade neurocientífica é profundamente arraigado em outros grandes casos considerados de “sucesso” da ciência daquele país, possui caráter nacionalista e assume a configuração de larga-escala (exploro no Capítulo 2). Já no caso brasileiro argumento que existem imaginários em disputa. Isso se dá em um reforço na elaboração da tradição das pesquisas de determinadas agendas de pesquisa do cérebro (Capítulo 3) e na discussão sobre como a neurociência deveria se organizar (Capítulo 4). 41

Por fim, considerando os aspectos metodológicos e de análise, durante o trabalho de campo foi fundamental participar de eventos da área das Neurociências brasileira. Neles consegui me apresentar aos futuros entrevistados, expor os objetivos de minha pesquisa, bem como conhecer as pesquisas que realizam. Os entrevistados foram desde os principais líderes de pesquisa da área até mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos. As entrevistas foram realizadas pessoalmente ou por meio do skype, duraram em média uma hora e algumas puderam ser registradas fazendo uso do gravador. O roteiro para a entrevista consistia em questões a respeito dos motivos pelos quais os entrevistados começaram a pesquisar na área, suas trajetórias profissionais, como definem neurociência, a história da formação da neurociência no Brasil, quais as pesquisas realizadas, quais as dificuldades no desenvolvimento dessa ciência, os institutos e formas de financiamento de suas pesquisas. Também, foram analisados artigos, documentos e informações que estão disponíveis na internet.

Foram realizadas 13 entrevistas: Sidarta Ribeiro – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Sandro de Souza (UFRN); Steven Rehen – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Roberto Lent (UFRJ); Cláudia Vargas (UFRJ); Suzana Herculano - Houzel (UFRJ); Roberto Covolan – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Li Li Min (UNICAMP); Ivan Izquierdo – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Frederico Graeff - Universidade de São Paulo (USP); Antônio Galves (USP); Dora Fix Ventura (USP); Givago Souza - Universidade Federal do Pará (UFPA)23.

Uma das primeiras incursões em campo aconteceu no Instituto do Cérebro (ICe) da UFRN24, em Natal, no Rio Grande do Norte (RN) entre os dias 2 e 9 de Agosto de 2014. A principal motivação de minha ida à capital do RN se deu pela intensa exposição na grande mídia das pesquisas de Miguel Nicolelis, do IINN-ELS, e de Sidarta Ribeiro, do ICe, da UFRN. Após uma série de emails enviados, consegui o contato de Ribeiro, com quem consegui agendar uma entrevista presencial e a visita ao Instituto da UFRN. Ao fim da entrevista, o neurocientista me indicou uma série de pesquisadores da área que julgava importante entrevistar. Dessa forma, meu roteiro inicial de entrevistados seguiu as sugestões de Sidarta Ribeiro.

23 Elenquei as entrevistas no Quadro 1 na seção “Anexos”. 24 Elenquei os eventos freqüentados no trabalho de campo no Quadro 2 na seção “Anexos”. 42

Com a iminente ida à Natal para trabalho de campo, insisti por diversas vezes contato por telefone com o IINN-ELS, uma vez que não respondiam os emails que enviava. Em uma delas, consegui contatar o Dr. Edgard Morya, Coordenador de Pesquisas do Instituto, que me orientou que assim que chegasse à capital do RN, que tentasse novo contato para agendar uma visita. Já na cidade, agendei para os primeiros dias as entrevistas e a visita ao ICe, da UFRN, uma vez que tinha a autorização deles, e priorizei os últimos dois dias para conhecer o IINN-ELS.

No entanto, após tentar diariamente contatar o Dr. Morya (afinal a secretária do instituto me avisara logo no primeiro dia da estadia em Natal que o pesquisador estava em viagem sem previsão para retornar), o Coordenador de Pesquisas marcou uma visita ao Instituto no dia 7 de Agosto. Durante a entrevista, o Dr. Morya não permitiu a gravação, nem mesmo que tirasse fotos do local, do laboratório e das estruturas de pesquisas. Segundo ele, tal visita teria que ter sido marcada com antecedência, com aprovação do Diretor do IINN- ELS, Miguel Nicolelis25.

As dificuldades de acesso ao campo não se restringiu somente aos pesquisadores do IINN-ELS. Da lista inicial sugerida por Sidarta Ribeiro, havia 21 nomes de neurocientistas. Esta lista foi aumentando conforme fui participando dos eventos científicos e analisando diferentes matérias veiculadas na grande mídia em que apareciam os neurocientistas brasileiros. Foi possível perceber que em sua maioria os pesquisadores eram da UFRJ e alguns da USP. Cheguei a enviar email para todos da minha lista final com 29 nomes, mas poucos pesquisadores responderam.

Dessa forma, participar dos eventos foi crucial para esse contato com os pesquisadores da área, principalmente para melhor compreender as pesquisas que os neurocientistas brasileiros desenvolvem. Sobre os eventos que participei, foram eles o 2nd Congress CEPID BRAINN (na UNICAMP, em Campinas, São Paulo), o 1st Neuromat Young Researchers Workshop (na USP, em São Paulo), o High-Performance Computing, Stochastic Modeling and Databases in Neurosciences (Também na USP) e o 9th International Brain Research Organization (IBRO) World Congress on Neuroscience (no Centro de Convenções Sulamérica, no Rio de Janeiro).

25 Exploro mais a pesquisa de campo em Natal no capítulo 4. 43

Nos eventos foi possível conversar com pesquisadores de diferentes níveis, como alunos de iniciação científica até cientistas consolidados na área, além de assistir palestras nas quais foi possível ter contato com suas pesquisas (proferidas na USP e na UNICAMP). Tais conversas foram importantes para compreender as motivações dos diferentes cientistas estarem pesquisando em neurociências, suas trajetórias acadêmicas e suas opiniões sobre as formas de organização do campo da neurociência brasileira.

Sobre as informações coletadas na internet em matérias de revistas, jornais e links de notícias em diferentes mídias, elas consistiram em fontes secundárias de dados de extrema importância para apurar a formação dos projetos governamentais em Neurociências dos EUA e da Europa, assim como das diferentes agendas de pesquisa da área no Brasil26.

Durante as entrevistas e conversas com os pesquisadores, freqüentemente era citado o contexto sociopolítico do projeto de larga-escala norte americano e o europeu, e a formação da agenda de pesquisa do IINN-ELS. Citar estes contextos permitiu colocar em perspectiva os aspectos culturais e locais de como as agendas neurocientíficas são construídas.

Marcus e Fischer (1986) sugerem que apontar tais diferenças torna possível acompanhar os processos econômicos e políticos envolvidos na produção do conhecimento em projetos de larga escala nas sociedades avançadas industrializadas, mas também como diferentes transformações culturais acompanham a co-produção de áreas das biociências em agendas locais de pesquisa (RAJAN, 2003). Múltiplos imaginários podem coexistir em tensão ou produzirem uma relação dialética (JASANOFF & KIM, 2015; p. 4) e esta foi uma forma de acessar o imaginário (idem, 2015) do passado, o presente e o futuro das dinâmicas de pesquisa da comunidade neurocientífica, ou a governança particular da área, no Brasil.

26 Elenquei as informações de jornais, revistas e links de notícias coletadas durante o trabalho de campo no Quadro 3 na seção “Anexos”. 44

Capítulo 2 – Os contextos sociopolíticos da comunidade e da agenda neurocientífica norte americana

Neurociência é uma área do conhecimento científico que teve como base de seu desenvolvimento os estudos de neurofisiologia sobre a função e desempenho do sistema nervoso do cérebro humano. Atualmente, pode-se afirmar que o objetivo da pesquisa neurocientífica é investigar os princípios fisiológicos que determinam a operação de vários “circuitos neuronais”. De certa forma, a busca pela “verdadeira alma biológica do cérebro” ou “o ponto de vista do próprio cérebro” pode ser considerado o “Santo Graal” das neurociências (NICOLELIS, 2011).

Conceitos fundamentais da área, como os de “sinapse”, “neurônio”, “eletricidade neurobiológica”, tornaram-se recorrentes nas pesquisas sobre o cérebro e vêm sendo modelados. Principalmente no curso da última metade do século XX, muitos avanços conceituais e tecnológicos foram importantes para tais transformações de acordo com um quadro experimental de pesquisa que envolve modelos animais e diferentes técnicas de visualização do órgão em tempo real.

Até as décadas de 1970 e 1980, Nicolelis (2011) aponta que o paradigma experimental das neurociências era registrar a atividade elétrica do neurônio individualmente por vez e analisar a sua relação com estruturas e áreas específicas do cérebro. Tal abordagem “reducionista” foi preponderante por muito tempo e levou uma grande maioria de pesquisadores a descrever pormenorizadamente as propriedades anatômicas, fisiológicas, bioquímicas, farmacológicas e moleculares de cada neurônio registrado (idem, 2011).

No entanto, com o avanço de uma série de tecnologias (atualmente essenciais para as pesquisas e para o diagnóstico clínico), como o Eletroencefalograma (EEG), a Tomografia por Emissão de Pósitrons, a Ressonância Magnética Funcional; e o avanço da pesquisa em biologia molecular associada à análise da dinâmica do comportamento neuronal; os neurocientistas acreditam investigar o cérebro em pleno funcionamento. Tais progressos provocaram uma nova escala de análise do sistema nervoso e conseqüentemente mudaram o paradigma das pesquisas neurocientíficas que Nicolelis denomina de “distribucionista” (idem, 2011).

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Por exemplo, nas atuais investigações do órgão em questão, é possível verificar o comportamento de “centenas de bilhões de neurônios e suas conexões, que conjuntamente proporcionam mudanças fisiológicas de milissegundo a milissegundo, [assim] o cérebro representa um modelo arquetípico de um sistema complexo” (NICOLELIS, 2011. p. 35).

Atualmente as investigações neurocientíficas estão amparadas no registro simultâneo de sinais elétricos produzidos por grandes grupos de neurônios individuais distribuídos em múltiplas regiões cerebrais. Essa abordagem de pesquisas permite aos neurocientistas investigarem como se constituem e se comportam o circuito de populações neuronais que são ativados dependendo da “tarefa” executada pelo ser humano, ou o que pode ser também denominado de “circuitaria do cérebro”.

A partir deste paradigma, os pesquisadores da área conseguem investigar a morfologia particular do cérebro humano e sua relação com a atividade das intricadas redes de neurônios que se comunicam e contatam através de diferentes mecanismos; como cada neurônio (célula cerebral fundamental que possui a função de receber e transmitir diminutas mensagens eletroquímicas através de contatos – as sinapses) se relaciona entre si e se comporta em determinadas atividades. A análise desses circuitos neurais também permite aos neurocientistas investigar a sua relação com a variedade de comportamentos especializados do ser humano.

Para os neurocientistas, são essas redes microscópicas responsáveis pela geração dos processos que ocorrem em nossos corpos que tornam a humanidade possível, como indivíduos, sociedades e espécie (ROSE & ABI-RACHED, 2013). E as biotecnologias neurocientíficas ocupam papel preponderante na investigação e na produção do conhecimento da dimensão psicológica dos seres humanos.

Dentre os temas de investigação, estão, por exemplo, as causas das doenças mentais como a epilepsia, paralisia cerebral, a encefalite, a doença de Parkinson, as escleroses, o autismo, o Transtorno de Déficit de Atenção/Hipercinético, o mal de Alzheimer, a esquizofrenia, entre outras. Historicamente, uma área que constitui amplo arcabouço teórico e prático para as investigações de tais doenças é a neurologia, uma área fundamental da ciência médica. Também, os atuais avanços nas pesquisas em neurociências abriram perspectivas sobre a função de estruturas do cérebro que remontam às investigações do século XVIII, que buscavam compreender questões essenciais como: as conexões entre o cérebro, o pensamento e partes distintas do corpo; o debate entre o que é inato e adquirido pela capacidade mental; sobre o suporte físico do inconsciente e das emoções; as relações entre 46 cada neurônio do cérebro humano e o humor, as sensações, a volição, o desejo, a aprendizagem, a atenção, o vício, o sono.

Para Steven Rose (2005) basicamente um neurocientista questiona “como o cérebro funciona?”, ou o que, de forma equivalente, significa perguntar “como uma mente funciona?”. Assim, segundo Bear et. al. (2008), o pesquisador da área busca responder como ocorrem “misteriosos” aspectos da humanidade, como: ver, sentir, ouvir, porque algumas sensações causam dor ou prazer, como nos movemos, como raciocinamos, lembramos, esquecemos, a natureza do medo e da loucura. Utilizando das técnicas de visualização já citadas e da Biologia Molecular, o neurocientista basicamente investiga de forma experimental como processos celulares e moleculares do cérebro de animais (do qual os neurocientistas acreditam ser possível fazer analogias com o órgão do humano) são ativados ao realizarem determinadas habilidades ou tarefas:

É esta gama – de propriedades de moléculas específicas em um número pequeno de células aos comportamentos elétricos e magnéticos de centenas milhões de células; da observação de células individuais de baixo de um microscópio à observação do comportamento de animais confrontados com novos desafios – que constitui as neurociências (ROSE, 2005; 2). A partir desta rápida tentativa de responder uma questão tão ambiciosa quanto “o que são as neurociências”, afirmo que essa área da ciência possui um atual nível de complexidade das pesquisas que se deve muito à interação com várias outras disciplinas científicas. Ou seja, o fundamento de sua dinâmica de pesquisa é especificamente interdisciplinar, pois diferentes áreas da ciência (como a biologia molecular, a genética, química, ciência computacional, engenharia, matemática, medicina, filosofia, física, psicologia, dentre outras) passaram a pesquisar em comum um órgão do corpo humano. Cada qual com suas técnicas, paradigmas e problemas de pesquisa. Por ser um campo de pesquisa vasto, os desenvolvimentos científicos e tecnológicos da área promovem muitos dados e experimentos do nível molecular do cérebro como um todo.

Diante dessa complexidade, uma possível tentativa de responder a questão seria recorrer aos diferentes conceitos, tecnologias e as biografias dos cientistas que as formularam a partir de cada campo científico que passou a atuar junto às neurociências; os diferentes institutos de pesquisa que se tornaram referência da área; as sociedades científicas; dentre outros. Devido à amplitude, a característica interdisciplinar e a especificidade da formação do campo das neurociências em diferentes países do mundo, a tentativa de uma resposta em busca de histórias distintas poderia incorrer em uma série de erros e esquecimentos. 47

De forma a evitar essa complexidade e amplitude histórica, um foco é possível de ser estabelecido. Quando e onde foi criado um programa de pesquisas específico para a área que permitiu a formação de uma infra-estrutura e de uma comunidade neurocientífica? Quais os estilos de pensamento (FLECK, 2010) que se tornaram fundamentais para as pesquisas neurocientíficas? Em que momento o cérebro tornou-se um órgão tão importante para as PCT’s de sociedades avançadas industrializadas?

Diante destas questões, o presente capítulo trata-se de um percurso histórico do surgimento institucional do campo das neurociências. Nesse levantamento tomo como fundamental o conceito de “visão neuromolecular”27, de Rose & Abi-Rached (2013), no qual os autores identificam os primeiros esforços em criar uma “comunidade neurocientífica” e sua “infra-estrutura”, que permitiram unificar as pesquisas do cérebro de forma interdisciplinar. O conceito de visão neuromolecular sugere a possibilidade de recuperar os “eventos” históricos que promoveram uma “nova forma de contemplar28 o cérebro e o sistema nervoso, e o estilo de pensamento e a intervenção na qual está conectada, que estabeleceu as condições que permitiram o florescer das neurociências nas últimas cinco décadas e o nascimento do contemporâneo complexo neurobiológico” (Idem, p. 38)29.

Por sua vez, entendo por infra-estrutura30 os institutos, departamentos e jornais científicos para criar um novo coletivo social, no caso, a “comunidade neurocientífica”. Cientistas, com trajetórias de áreas científicas díspares, mas que em comum pesquisavam o cérebro, em um determinando momento do século XX, passaram a compartilhar seus achados

27 Utilizarei o termo “visão” para se referir ao termo original do inglês “gaze”. Rose e Abi-rached (2013) apontam que a inspiração na utilização do termo refere-se à idéia produzida por Michel Foucault em O nascimento da clínica ([1980] 2008), na qual o filósofo francês busca destacar um período histórico da medicina européia, entre os séculos XVIII e XIX, em que ocorreu mudanças nas formas de se investigar, ou “olhar” a doença. Ao invés da subjetividade do paciente ao responder o que sentia ser um fator determinante para o tratamento, o médico passou a investigar o local da dor com base em um conhecimento enciclopédico. Com esse deslocamento, emergiu um novo sistema classificatório de doenças, que as distribui em classes e normas, ao mesmo tempo que passou a orientar a intervenção médica através de padrões de normalidades, quantificados e com objetivos de tratamento que emergiram a partir da ampla investigação do funcionamento do corpo humano. 28 Optei por “contemplar” como a tradução do termo “envisaging”, mesmo que não capte o sentido que os autores pretendiam no texto. Outras opções segundo o dicionário Michaelis online seriam: enfrentar, encarar, fitar, considerar, imaginar, conjeturar. No entanto, compreendo que tal sentido está conectado à ideia de “visão” explicitada na nota de rodapé anterior. 29 T. A. 30 Susan Leigh Star (1999) esteve à frente das reflexões e discussões do conceito de infra-estrutura para os Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT). Inspiro-me em tal conceito no que se refere à idéia das interações que são realizadas por atores sociais em um determinado espaço, ou seja, os neurocientistas que passaram a se identificar em uma área do conhecimento em comum, mas não utilizo o inventário de questões levantadas pela autora. Leigh Star utiliza etnograficamente tal abordagem para investigar o papel de infra- estruturas tecnológicas de larga escala, como os sistemas de informação, e as formas como diferentes atores sociais percebem a sua interação com tais tecnologias. 48 e atuarem em um espaço comum, originando uma rede de pesquisadores em um novo campo científico interdisciplinar.

Nesse sentido, é possível verificar na recuperação histórica uma atenção dada para os desdobramentos das neurociências notadamente nos EUA, pois foi no país, dentre diferentes culturas e nações, que surgiu algo novo para as pesquisas do cérebro. O Neurosciences Research Program (NRP), criado em 1962, trata-se de um primeiro momento que passa a significar os termos “neurocientista” e “neurociências” de forma específica. O projeto é considerado por Rose e Abi-Rached (2013) como fundamental para catalisar a infra- estrutura e a comunidade neurocientífica norte americana. No entanto sugiro que tal surgimento reflete as características do contexto sociopolítico do país para a C&T.

Como consequência da formação do campo interdisciplinar para as pesquisas do cérebro, aprofundo o conceito de visão neuromolecular com os quatro “imaginários” (ROSE & ABI-RACHED, 2013) do arcabouço conceitual e tecnológico das Neurociências que foram fundamentais para estruturar o estilo de pensamento neuromolecular: o da genômica, da psicofarmacologia, a plasticidade e as tecnologias visuais. Nesse percurso científico, a compreensão sobre o cérebro humano foi anatomizada em seu nível molecular e sistêmico; um órgão considerado plástico e mutável no curso da vida; adaptável à interação humana e à sociabilidade.

Após o surgimento da infra-estrutura, a comunidade neurocientífica e os estilos de pensamento modulares da área, é destacado o atual contexto de promoção das PCT’s governamentais em Neurociências, com o caso do projeto norte-americano, Brain Initiative, lançado em 2013. Para conseguir compreender a “alma biológica do cérebro”, atualmente, em sociedades avançadas industrializadas, as pesquisas neurocientíficas são dinamizadas por políticas específicas. Em comum, em tais sociedades a governança das pesquisas interdisciplinares do cérebro é constituída de diretrizes que concentram os esforços das pesquisas para criarem modelos computacionais, ou “mapas”, da morfologia particular do órgão. As investigações buscam responder como, quando e por que diferentes populações celulares do cérebro se comunicam com outros grupos de células neuronais ao longo de diferentes regiões do órgão e as formas como redes neurais são ativadas em nível molecular, celular e sub-celular, ou o que denominam de “mapeamento da circuitaria do cérebro”.

Para tratar do contexto sociopolítico em questão, levantei uma série de documentos de quando surgem as primeiras tentativas de criar a PCT neurocientífica norte americana. No fim da década de 1980, diferentes atores (como cientistas, institutos e 49 políticos) conseguiram mobilizar as agências governamentais do país em torno da importância da pesquisa neurocientífica, a ponto do presidente da época realizar uma declaração oficial e anunciar a década de 1990, como a “Década do Cérebro”. Mesmo com o destaque dado, o anúncio governamental não significou a formalização de uma diretriz governamental oficial específica para a área na época. No entanto, trata-se de um contexto que a neurociência passou a fazer parte da agenda política em Saúde daquele país.

Em seguida, destaco o contexto de formalização e as diretrizes principais de pesquisa da agenda de PCT governamental norte americana para as neurociências, o Brain Initiative. Pode-se afirmar que até a oficialização de tal política, o Projeto Genoma Humano (PGH), tornou-se a referência principal na confecção do documento. Dois aspectos são destacados da relação do PGH com as políticas de pesquisas neurocientíficas: o cognitivo e o político. O primeiro diz respeito aos achados produzidos da pesquisa em genômica, que passaram a ser utilizados nas pesquisas sobre o cérebro e culminaram na visão neuromolecular do órgão, que permitiu aos neurocientistas investigá-lo em seu nível molecular. Tal forma de “contemplar” e atuar no cérebro influenciou as diretrizes cognitivas do BRAIN. O segundo aspecto diz respeito à estrutura formal do PGH que teve amplas implicações para a economia norte americana, ou a formação de uma “bioeconomia”, e influenciou diretamente nas diretrizes do projeto governamental em neurociências.

Dessa forma, o argumento central do capítulo enfatiza que o percurso histórico da visão neuromolecular é caracterizado por contextos sociopolíticos mais amplos que formaram o imaginário sociotécnico (JASANOFF & KIM, 2015) das neurociências e o seu atual regime de governança, associada às PCT’s das sociedades avançadas industrializadas. Ou seja, no capítulo é possível verificar que o desenvolvimento do campo neurocientífico traz as marcas de contextos econômicos e políticos para a C&T dos EUA. A era da Big Science, com a formação de grandes projetos de larga escala para a ciência; e o PGH, que se tornou referência na formatação do Brain Initiative e as suas implicações para a criação de um complexo biotecnológico de indústrias; são imaginários sociotécnicos que constituem a trajetória da visão neuromolecular até a formação de uma agenda de pesquisa oficial do governo norte americano.

Assim, no levantamento histórico do presente capítulo é possível afirmar que as neurociências trazem as marcas culturais de uma nação, através das “(...) construções de perspectivas, flexionadas muito pela situação histórica, lingüística e política de diferentes atores” (APPADURAI, 1990; p. 296). Tais perspectivas são os “mundos imaginados” 50

(Idem.), que são historicamente constituídos na formação das comunidades imaginadas (ANDERSON, [1983], 2008), no caso aqui, da neurocientífica e promovem uma configuração específica do regime de governança para a área.

2.1 – Um projeto de “engenharia biológica da mente”

O contexto de origem do termo “neurociências” é o período pós IIª Guerra Mundial (IIª G.M.), época em que os investimentos em C&T passaram a fazer parte da política de Estado em muitas sociedades de industrialização avançada (DENNIS, 2004; FURTADO, 2005; MOWERY & ROSENBERG, 2005). Conhecida como a era da Big Science, tais políticas das décadas de 1940 e 1950, são sintetizadas no documento Science the Endless Frontier, relatório escrito por Vannevar Bush (1890-1974) – que era então diretor do Office of Scientific Research and Development (OSRD), agência criada pelo governo norte- americano para coordenação das pesquisas científicas - que se tornou referência da importância da pesquisa científica e tecnológica na promoção do desenvolvimento econômico e do bem-estar social nas sociedades avançadas industrializadas. Na época, Bush e diferentes pesquisadores da área da Física acreditavam que as universidades poderiam e deveriam criar centros de pesquisa interdisciplinares, para servir ao Poder Legislativo e ajudar a resolver a crise econômica nacional (DENNIS, 2004).

Algumas áreas de pesquisa foram prioritárias para a política nacional dos EUA, como o Projeto Manhattan (1943-1945) que levou ao desenvolvimento da bomba atômica e foi fundamental para a atuação Secretaria de Defesa na época. Com esse programa “ficou claro que a atividade de pesquisa poderia alcançar grande mobilização de esforços e coordenada centralizadamente, o que só grandes potências seriam capazes de realizar” (FURTADO; 2005: 42).

Diante desse contexto, em 1941, o biofísico Francis O. Schmitt (1903-1995) foi recrutado pelo Massachussets Institute of Technology (MIT), sob pedido do então presidente e vice-presidente do Instituto, Karl Compton (1887-1954) e de Vannevar Bush, respectivamente, para criar um “novo tipo de biologia” ou de “engenharia biológica” para as pesquisas da mente humana, em face dos rápidos desenvolvimentos da biologia molecular (baseados na biofísica, bioquímica e da química biofísica). Schmitt foi quem imaginou o futuro das pesquisas do cérebro através do termo “neurociência” e pensou um projeto para 51

“fazer com o cérebro o que Watson e Crick31 recentemente fizeram quando descobriram a estrutura do DNA e ‘quebraram o código genético’”32 (ROSE & ABI-RACHED, 2013: 25).

Assim, na formação da área das neurociências, o objetivo das pesquisas sobre o cérebro foi pensado por Francis Schmitt pelo potencial dos avanços que ocorriam na Biologia Molecular. Em um texto em que o próprio Schmitt (1985) faz um relato autobiográfico de sua trajetória acadêmica, o autor aponta que, na década de 1950, a Biologia Molecular passava por transformações em que as antigas distinções e fronteiras acadêmicas de algumas áreas, como a Física, Química e Biologia, serviam mais para uso de “educação profissional” ou para “certificados”. A pesquisa científica da área passou a ser mais produtiva de forma “interdisciplinar” ou “transdisciplinar” ao ignorar antigas distinções disciplinares (idem. p.14). Desta forma, a interação das pesquisas da Física e da Química com a Biologia alinhou uma nova organização entre campos do conhecimento nas Ciências da Vida33. Também, na época, a Biologia Molecular passava por intenso apoio de pesquisa pelo National Institutes of Health (NIH), o que foi crucial para a formação de uma nova “comunidade de pesquisadores” com sua sociedade e revista própria (idem. p. 16).

Diante desse contexto, o biofísico imaginava então ser possível ampliar o conhecimento do cérebro e do sistema nervoso através do desafio de aglutinar diferentes áreas de pesquisa em torno de uma rubrica comum para produção do conhecimento sobre o funcionamento morfológico do cérebro. Além da criação de uma nova comunidade da ciência com revista e sociedade própria.

“Neurociência” ou “neurocientista” não eram termos comuns na época e nem foram utilizados para o programa de pesquisa emergente. Segundo Swazey (1975), inicialmente Schmitt utilizou os termos “biofísica mental” e “biofísica da mente” como referência ao novo campo. Em uma primeira tentativa de financiamento através do NIH, o projeto era denominado de Neurophysical Sciences Study Program (Programa de Estudo das Ciências Neurofísicas34) e somente ganhou o termo “Neurociências”, no plural, em uma subseqüente aplicação para fundos via National Aeronautics and Space Administration (NASA), que era intitulado Neurosciences Research Program (NRP), em 1962. Diante destas

31 James Watson (1928-) e Francis Crick (1916-2004) são considerados os cientistas responsáveis pela descoberta do modelo da dupla hélice do DNA, em 1953. 32 T. A. 33 Schmitt (1985, p. 17), aponta que na época outras áreas do conhecimento também se aproximaram das pesquisas em Biologia Molecular para a fabricação de novas tecnologias e foram importantes para a produção “nacional e internacional da área”, como as engenharias, as ciências da computação e da comunicação, que permitiu o surgimento do que é hoje conhecido como “bioengenharia”. 34 T. A. 52 iniciativas, Joelle Abi-Rached (2012), destaca que as primeiras definições do termo “neurocientista” referem-se ao “projeto neurocientífico Americano” (idem. p. 190).

Francis Schmitt coordenou o projeto NRP com um grupo de pesquisadores de diferentes formações (matemática, física, química, neurobiologia, neurologia, psicólogos e psiquiatras), que se reuniam para estudar os problemas e tópicos relevantes para o emergente campo do conhecimento. No decorrer da década de 1960, centenas de pesquisadores de diferentes áreas científicas passaram a se interessar pelo NRP e criaram o primeiro Intensive Study Program (ISP): comunidade que buscava iluminar questões, tendências de pesquisa, hipóteses e achados que poderiam avançar o conhecimento sobre o cérebro humano. O ISP definiu alguns objetivos de estudo, como investigar o cérebro, o sistema nervoso e a sua relação com o aprendizado, memória, sono, reflexo, entre outros aspectos cognitivos35.

O desafio inicial do projeto era construir formas de conhecimento e de comunicação entre diferentes áreas, como a química, matemática, física, cientistas do comportamento e neurologistas em torno de um novo campo de pesquisas. Em outras palavras, a intenção inicial era integrar não só neuro disciplinas (neuroanatomia, neurofisiologia, neuroquímica e neurologia) como também as disciplinas psi (psicologia, psicanálise e psiquiatria).

Segundo Swazey (1975; p. 535), Francis Schmitt, em 1961, apontou 9 disciplinas36 como fundamentais para um projeto cujo título era “The Mens Project” (inspirado na palavra latina para o termo “mente”); em 1962, o NRP incluiu 14 delas37 ; mas em 1967, o coordenador do projeto redefiniu três áreas básicas que delineou a estrutura das neurociências: a neurobiologia molecular (com foco nas pesquisas molecular, subcelular e em nível celular), ciência neural (cujo objetivo era investigar as características da rede neuronal e incluiu as áreas de neuroanatomia, neurofisiologia e neuropatologia) e ciência psicológica ou do comportamento (o que Schmitt denominava de “psicologia molecular”).

35 Schmitt (1985) aponta que, assim como ocorrera no primeiro encontro ISP de Biofísica, em 1958, em que os pesquisadores que se identificavam com a recente área do conhecimento buscaram responder “O que é Biofísica?”, no primeiro encontro em Neurociência, em 1966, o propósito era discutir “O que é Neurociência?” (Idem. p. 18). 36 Eram elas: física dos estados sólidos, química quântica, química física bioquímica, ultraestrutura (microscopia elétrica e difração do raio-X), eletrônica molecular, ciência da computação, biomatemática e pesquisa literária. 37 As áreas: química, bioquímica, neuroquímica, química física, matemática, física, biofísica, biologia molecular, eletrofisiologia, neurobiologia, neuroanatomia, psicologia, psiquiatria e clínica médica. 53

Swazey (1975) argumenta que o NRP foi um projeto catalisador em criar e promover uma comunidade, termos e conceitos “neurocientíficos”, em um novo tipo de pesquisa do cérebro e do comportamento de forma multidisciplinar. Cientistas que pesquisavam em um quadro conceitual e do campo científico de suas formações específicas (como os biólogos moleculares, neuroanatomistas, biofísicos, psicólogos, entre outros) passaram a alocar suas pesquisas com um objetivo comum (pesquisar o cérebro) e em um novo projeto: as neurociências.

Assim, o NRP foi um projeto de estudo que permitiu a interação e a comunicação científica entre pares, um tipo diferente de centro de pesquisas “orientado para avaliação e sondagem do estado da arte [das pesquisas sobre o cérebro], procurando mapear novas direções conceituais e de pesquisa, e provendo novos modos de comunicação e educação entre uma rede mundial de pesquisadores38” (SWAZEY, 1975: 533).

Inicialmente, a idéia de Francis Schmitt, ao criar o NRP, era criar um “colégio invisível” (idem. p. 542), na qual uma rede de pesquisadores sem vínculos institucionais trocassem ideias, informações e especulações de um tópico específico. Assim um grupo central de cientistas, de diferentes disciplinas, promoveria uma série de conferências e workshops que seriam independentes da localização universitária, mas que permitiria o encontro dos associados com suas pesquisas sobre o cérebro e que se uniriam em torno de uma associação que promoveria o intercâmbio dos achados e problemáticas de suas pesquisas (ROSE & ABI-RACHED, 2013).

O American Academy of Arts and Sciences em Brookline, Massachusetts, EUA, e o NRP Bulletin, são considerados por Swazey (1975) os primeiros “espaços” que estruturam e disseminam os programas de estudos, os eventos científicos e as atividades de ensino para aqueles que não conheciam as neurociências, os fundamentos da estrutura e as funções do cérebro. Tal infra-estrutura (o NRP, a aglutinação de cientistas de diferentes institutos em um mesmo local para discutir questões sobre as recentes pesquisas do cérebro e o primeiro jornal de disseminação dos conceitos e fundamentos neurocientíficos recém criados) foi fundamental para forjar e tornar “visível” a primeira “comunidade neurocientífica”.

Ainda segundo Rose e Abi-Rached (2013), a primeira publicação do termo “neurocientista” em 1964, carrega o significado que inspirou a formação da comunidade que seria co-localizada na infra-estrutura criada, então, em Boston, EUA:

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O NRP ainda envolveu muitos elementos chave da infra-estrutura [neurocientífica]: um líder carismático, uma rede de estudantes leais, uma linguagem e nomenclatura em comum, uma economia moral entre membros e, talvez mais do que tudo, certa forma de ver o objeto de investigação, tornando-o pensável e acionável via visão neuromolecular39 (idem, 2013:39). Para Rose e Abi-Rached (2013), outros esforços também são considerados como essenciais na formação da infra-estrutura das Neurociências. Segundo Cowan, Harter e Kandel (2000), Stephen Kuffler (1913-1980) com seu grupo na John Hopkins University - que incluía Vernon Mountcastle (1918-2015), David Huble (1926-2013) e Torsten Wiesel (1924-) – focavam seus estudos na fisiologia elétrica do sistema nervoso. Em 1966, o escopo das colaborações científicas foi ampliado quando Kuffler criou o Departamento de Neurobiologia da Harvard Medical School, o que representou uma das primeiras institucionalizações interdisciplinares das pesquisavas do cérebro e inspirou a formação de outras em diferentes universidades.

Um dos motivos da criação de um espaço para a interação entre disciplinas, segundo Harrison (2000), na década de 1960, foi que muitos neurobiólogos perceberam que o domínio da Biologia sobre as pesquisas de fisiologia elétrica do cérebro eram limitadas. Exemplo desta limitação eram as técnicas de registro elétrico que não conseguiam responder questões como: quais são os requisitos bioquímicos e a membrana nervosa iônica ótima para propagação do impulso nervoso? Quais são as fontes de energia do cérebro? Elas diferem daquelas dos nervos periféricos? Para responder tais questões, diferentes cientistas desenvolveram áreas de pesquisas neurobiológicas: fisiologistas que estudavam a regulação da síntese das proteínas; neuroquímicos, imunologistas, geneticistas moleculares e outras variantes de biofísicos que focaram na biologia do sistema nervoso. E muitos desses pesquisadores se juntaram ao Departamento administrado por Kuffler.

Os cientistas que passaram a atuar em Harvard representavam as áreas que seriam fundamentais para a nova área do conhecimento interdisciplinar e, que junto à Kuffler, formaram a Society for Neuroscience (SfC), em 1969. O psicólogo Neil Miller (1909–2002), o bioquímico Ralph Gerard (1900-1974) e o neurofisiologista Vernon Mountcastle, lideraram a SfC e foram responsáveis por atrair pesquisadores que estavam previamente associados à sociedades de suas disciplinas, como fisiologistas, anatomistas, bioquímicos e psicólogos.

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Por sua vez, David Rioch (1900-1985), da Walter Reed Army Institute of Research (WRAIR)40, criou a divisão de Neuropsiquiatria de seu instituto, com M.G.F. Fuortes41 e Robert Galambos (1914-2010) da neurofisiologia; Walle Nauta (1916-1994) da neuroanatomia; Joseph Brady (1922-2011) e Murray Sidman (1923-) da psicologia experimental; e John Wayne Mason (1924-2014) da Química. O foco de pesquisas do projeto era investigar a arquitetura de todo o sistema nervoso com diferentes métodos e representou, também, um dos primeiros programas unificados das Neurociências.

Segundo Francis Schmitt (1971), durante a década de 1960, foi possível constatar, também, a criação de uma série de jornais e livros cujos títulos continham as palavras “cérebro” e “neurociências”, assim como sociedades multidisciplinares atuantes no emergente campo do conhecimento. Como exemplo, a Brain Research Association do Reino Unido42, a já citada SfN, norte americana, a European Brain and Behavior Organization, em 1968, entre outras comunidades, como a International Neurochemical Society (1965) e a American Society for Neurochemistry43.

Dentre as diferentes comunidades científicas criadas na época, destaca-se a International Brain Research Association (IBRO). A idéia da criação de uma associação internacional que integrasse a comunidade de pesquisa do cérebro surgiu em 1947, por um grupo de neurofisiologistas clínicos, que se reuniram no encontro da Electroencephalography (EEG) Society, em Londres, e criaram a International Federation of EEG and Clinical Neurophysiology (IFEEG). Em 1958, em uma nova reunião da comunidade internacional de eletroencefalografia, os cientistas decidiram de forma unânime a criação de uma organização que representasse as pesquisas do cérebro internacionalmente, que então foi fundada em 1961.

A IBRO, portanto, surgiu como “resposta para a crescente demanda de neurocientistas ao redor do mundo para a criação de uma organização central que atravessaria as fronteiras nacionais e melhoraria a comunicação e a colaboração entre pesquisadores do cérebro” 44.

40 Complexo biomédico de pesquisa criado pelo Departamento de Defesa norte americano em 1953. 41 Não foram encontrados dados biográficos do pesquisador. 42 Não foram encontrados dados do ano de surgimento da Associação. 43 Não foram encontrados dados do ano de surgimento da Associação. 44 A IBRO foi estabelecida como uma “organização não governamental independente, regulada por um Conselho Administrativo, que atualmente é composta por 80 sociedades neurocientíficas. A organização representa mais 75,000 neurocientistas ao redor do mundo”. Disponível em: http://ibro.info/about/history/. Quadro 3, C9. Acessado em: 25/02/2016. T. A. 56

Segundo Rose e Abi-Rached (2013), em 1962, a IBRO iniciou uma pesquisa das instalações de pesquisas e de “massa crítica” existentes no mundo para identificar a amplitude do campo das pesquisas sobre o cérebro. O foco da pesquisa delineou três áreas básicas: ciências básicas modificadas pelo prefixo “neuro” (neuroanatomia, neuroquímica, neuroendocrinologia, neuropatologia, neurofarmacologia e neurofisiologia); um grupo de disciplinas que consistiam de neurocomunicação e biofísica, o que incluía a cibernética e teoria da informação, modelagem matemática, biofísica da membrana e dos nervos celulares, e biologia neuromolecular; e as ciências do comportamento, como comportamento animal, genética comportamental, psicolingüística, sensação e percepção, e alguns aspectos da antropologia, psicologia, psiquiatria e sociologia. Em 1968, utilizando de diferentes critérios para uma nova enquete, 880 grupos de pesquisa e 4245 pesquisadores foram identificados com o recém criado campo das “Neurociências” somente nos EUA.

A criação de tais projetos, departamentos, sociedades e jornais científicos permitiram tanto um alcance conceitual (a integração de distintas abordagens que passaram a pesquisar o sistema nervoso), como a reunião em um mesmo local (institutos e departamentos) de cientistas oriundos de diferentes ramos do conhecimento em torno de cientistas (caso de Schmitt, Kuffler e Rioch), em um mesmo instituto. A localização em comum de pesquisadores trabalhando com diferentes questões, abordagens e métodos, permitiu que novas ideias e técnicas se desenvolvessem rapidamente, a partir de uma infra- estrutura específica para as neurociências.

Assim, estava forjada uma comunidade neurocientífica, inspirada:

Na revolução da engenharia genética, [em que] microorganismos e complexos macromoleculares, incluindo seqüencias de polinucleotídeos especificados (...) podem ser usados na sintetização de uma ampla gama de produtos; desta revolução evidências valiosas também podem emergir e irão iluminar alguns dos incômodos mistérios sobre a função cerebral em particular nos níveis comportamentais e ‘mentais’ superiores (...). Se os campos da genética molecular e neurociências se unirem o impacto pode ser substancialmente maior que [o da] Revolução Industrial, na Inglaterra, [ocorrida] há mais de 200 anos, porque um dos seus alvos centrais seria o cérebro humano e os produtos da mente. Iniciaria também sem dúvidas a formação de um novo campo da ciência no qual, por falta de um nome mais imaginativo, tem sido chamado de ‘neurociência molecular genética’ (SCHMITT, 1985; p. 19-20).

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2.2 - O estilo de pensamento neuromolecular

Até aqui, foi possível verificar no levantamento histórico, que trata do contexto sociopolítico norte americano pós 2ª G.M. caracterizado pela era da Big Science, a formação da comunidade e da infra-estrutura neurocientífica, na qual cientistas com suas formações acadêmicas específicas puderam interagir para construir um projeto de “engenharia biológica da mente” e catalisar diferentes pesquisas sobre o cérebro. Mas também, nesse percurso, formas específicas de se investigar o órgão, ou os estilos de pensamento (FLECK, 2010) característicos da área do conhecimento em questão se modelaram.

A “visão neuromolecular”, conceito cunhado por Rose & Abi-Rached (2013), reflete, justamente, as influências que a Biologia Molecular teve para a criação de uma infra- estrutura interdisciplinar. Tal característica é fundamental para o modo de produção neurocientífico, pois trata-se de um evento que cria a epistemologia e a ontologia do campo de pesquisas emergente, assim como a natureza do objeto e as formas de se conhecer o cérebro.

Sob o risco de simplificação, os citados autores (Idem. 2013: 43), apontam alguns princípios estruturantes de tal estilo de pensamento:

1) O cérebro é um órgão como qualquer outro (mesmo se mais complexo);

2) Assim como outros órgãos, muitos processos neurais básicos e estruturas foram conservados pela evolução. Logo, é possível postular e identificar similaridades não somente entre primatas, mas entre outros animais vertebrados e, em alguns casos, até em outros sub-reinos animais. O uso de modelos animais para pesquisa permite compreender as características que os humanos compartilham com outras criaturas;

3) Processos neurais no cérebro e suas características comuns com outras espécies podem e devem ser analisadas através de seu nível anatômico molecular;

4) Em tal nível, devem ser analisados os processos fundamentais da neurotransmissão, ou a comunicação ao longo e entre neurônios. A comunicação trata-se de uma combinação de transmissão química (através de fenda sináptica) e elétrica (até o próprio neurônio). E os neurônios são de diferentes tipos, pois dependem dos neurotransmissores que utilizam (dopamina, serotonina, acetilcolina, etc.); 58

5) Neurotransmissão implica também a função de outras entidades: canais iônicos, transportadores, receptores, enzimas que catalisam ou metabolizam os neurotransmissores em diferentes áreas e assim por diante. Variações em cada um destes elementos possuem propriedades funcionais significativas e podem ser responsáveis por processos em níveis mais elevados;

6) Cada parte do cérebro (áreas estruturais e diferentes tipos de neurônios que utilizam diferentes tipos de neurotransmissores) possui uma trajetória própria na evolução, com envolvimentos em diferentes funções mentais. As redes de neurônios interconectados podem ser identificadas anatomicamente e visualizadas pela observação dos níveis de ativação das diferentes áreas do cérebro, quando o organismo está realizando diferentes tarefas, ou diferentes estados emocionais, cognitivos, etc;

7) Todos os processos mentais se localizam no cérebro;

8) Qualquer estado mental ou processo (normal ou anormal) e o comportamento associado possui relação com um processo material observável em potencial no funcionamento orgânico do processo neuromolecular do cérebro.

Duas áreas da Biologia Molecular, que estão interconectadas e fundamentais para os princípios apontados acima, são a genética e a genômica. A importância da primeira justifica-se pelo fato de possibilitar aos pesquisadores identificarem o genoma, ou a seqüência de DNA completa de um conjunto de cromossomos, ou ainda o conjunto das informações genéticas (conservadas ou não) de um organismo que são passadas de geração em geração e codificadas nos genes. As propriedades transmitidas podem ser investigadas no fenótipo de um animal (sejam elas suas características físicas ou comportamentais) em laboratório, através de técnicas de indução artificial para provocar mutações nos genes dos animais (ou a mutagenese) e observadas durante a reprodução de seus efeitos na prole ou, se necessário, nas gerações futuras. Diferentes tecnologias são utilizadas para estudar tais modificações e a forma como são carregadas a informação genética em cada linhagem45.

Até o advento da genômica promovida pelo PGH, os cientistas envolvidos com a pesquisa em genética acreditavam que cada gene seria responsável por uma característica particular e que seria transmitida em sucessivas gerações. Para investigarem cada gene, os pesquisadores analisavam uma região do DNA ou a estrutura que carrega função específica

45 Op. Cit. 59 dentro do organismo. Devido a tal tipo de análise individual dos genes, não era possível conhecer quantos deles compunham o organismo humano, nem mesmo como era o padrão de transcrição de RNA para cada gene envolvido46. Assim, na época, para os cientistas que atuavam na Biologia Molecular indicar a quantidade dos genes (acreditava-se que os humanos tinham de 100 a 300 mil) era uma hipótese que implicava em uma estimativa do complexo universo a ser pesquisado ou uma tentativa de definir os genes que “compõem o ser humano” (GILBERT, 1992; p. 83).

Com o tempo tais perspectivas foram refutadas com os avanços do Projeto. O desenvolvimento das pesquisas em genômica conferiu uma perspectiva de mapeamento em uma escala ainda menor do gene, pois permitiu investigar como é construída uma seqüência completa de DNA e seu padrão de funcionamento. Os pesquisadores envolvidos com a genômica passaram a analisar o nível molecular dos pares de base que codificam as proteínas ou que agem para regular a expressão gênica. Dessa forma, as diferentes características genéticas dos indivíduos passaram a ser interpretadas pelas variações moleculares, em que um par de bases do DNA pode substituir outro afetando a natureza da proteína ou da atividade da enzima que foi sintetizada e, conseqüentemente, quais informações genéticas são transmitidas em diferentes gerações de espécies.

O advento da genômica permitiu identificar cerca de 20 a 25 mil de seqüências do código genético que estão espalhadas pelo genoma, ou o que é denominado pelos cientistas de “mapeamento dos genes”. Dessa forma, cada uma das seqüências genéticas passou a ser investigada através de como cada gene é ativado em diferentes processos. A consequência dos avanços das pesquisas moleculares do gene foi o surgimento de um ramo de pesquisas que é a epigenética: estudo das variações “não-genéticas” que podem ou não serem adquiridas durante a vida de um organismo e passadas para outras gerações. Assim, a genômica realinhou o foco das investigações biomoleculares para as mudanças específicas na química do DNA e em proteínas (processo de metilação) que o envolvem, mas que dependem do hábito de vida e do ambiente social do organismo estudado.

O que busco chamar atenção nessa passagem, é que com a genômica a perspectiva de análise dos processos celulares é modificada. Se antes o DNA seria crucial para determinar as características herdadas e transmitidas, com os estudos do processo de metilação, ou da síntese das moléculas no seqüenciamento genético, os cientistas passaram a identificar como um DNA específico é ativado ou não durante a vida.

46 Op. Cit. 60

Concebida dessa forma, a genômica molecular se alinhou à genômica neurobiológica. As pesquisas sobre o cérebro passaram a explorar as bases das variações em componentes moleculares da atividade neural (dos neurotransmissores, ou as enzimas que os metabolizam, as estruturas dos campos receptores, os canais iônicos, os fatores que influenciam a metilação e a expressão genética, ou a neurogênese). A complexidade genômica permitiu aos estudos neuromoleculares do cérebro a identificação das propriedades e variações nos genes que diferenciam o funcionamento do cérebro. Para explorar a relação entre os genes, sua ativação no o cérebro e sua relação com o comportamento, os estudos laboratoriais experimentais com animais tornaram-se fundamentais para compreender o estado normal e as patologias associadas ao sistema nervoso.

Um exemplo da influência da genômica para o estilo de pensamento neuromolecular, são as pesquisas neurocientíficas que conseguem detectar as variações que aumentam ou diminuem a atividade de determinada enzima, a operação de um canal iônico específico, ou a receptividade de um campo receptor e qual procedimento, em uma multiplicidade de combinações, sobrepuja diferenças no funcionamento mental humano, sejam elas normais ou patológicas. Também, os neurocientistas simulam condições ambientais para identificar como tais modificações no cérebro são provocadas ou inibidas em determinados contextos.

Segundo Rose & Abi-Rached (2013), a origem do estilo de pensamento neuromolecular se contextualiza nas décadas de 1950 e 1960, quando muitas indústrias farmacêuticas desenvolveram fármacos para o tratamento de doenças mentais. Muitos achados sobre os mecanismos moleculares do cérebro resultaram de pesquisas que buscavam identificar os modos de ação de drogas em modelos animais, seus estados mentais e comportamento. Tais achados levaram à interpretação de que as patologias cerebrais (distúrbios, perturbações ou mau funcionamento) devem e/ou deveriam estar relacionadas em termos de processos neuromoleculares. A análise da ação neuromolecular, portanto, tornou-se fundamental para a investigação do comportamento do cérebro e seu estado normal ou patológico.

No contexto da origem do “imaginário psicofarmacológico” (Idem, 2013)47, ainda influenciado pela genética, muitos cientistas envolvidos com a área da psiquiatria

47 Segundo os citados autores, esse tipo de imaginário refere-se à interação da produção do conhecimento entre laboratórios, clínica, comércio e o cotidiano de pessoas diagnosticadas com diferentes patologias. Mais especificamente, os autores sustentam que tal interação conectou diretamente as companhias farmacêuticas, a comunidade de pesquisa neurobiológica e a psiquiatria. 61 reivindicavam que haviam descoberto “o” gene da esquizofrenia, da depressão dentre outros estados mentais, algo que foi muito criticado na época, pois tais estudos tiveram problemas de replicação e também implicavam em uma análise do comportamento humano que não se modificava durante o curso da vida, pois era determinado pela formação genética do indivíduo.

No entanto, com os avanços promovidos pelo mapeamento do genoma humano, no final do século XX, a interpretação passou por um nível diferente: as bases individuais de seqüências do DNA e como variações em tais bases podem afetar a proteína sintetizada ou a atividade da enzima em questão, com conseqüências para a susceptibilidade a certas doenças ou como o cérebro responde à ação de certas drogas (ROSE, 2007).

Além da genômica e da psicofarmacologia, um terceiro “imaginário” fundamental e decorrente dos outros já citados para o estilo de pensamento neuromolecular é a plasticidade. Nesta perspectiva, nem a estrutura ou a função cerebral são inscritas no gene durante a gestação, assim como se acreditava com as perspectivas oriundas da genética. A arquitetura cerebral (sua forma fisiológica) está conectada a uma dimensão temporal, não somente do desenvolvimento da fertilização até o nascimento e os primeiros anos de vida. Mas as modificações do cérebro ocorrem no curso da vida, na adolescência, quando adulto e durante décadas, e são relativas à experiência.

Segundo Rose & Abi-Rached (2013), diferentes neurocientistas argumentam que a experiência nos primeiros meses de vida do recém-nascido formata o cérebro através da modificação da metilação do gene. O comportamento maternal com sua prole afeta não só seu desenvolvimento neural e durante a vida, assim como o próprio filho, que está sendo gestado, afeta o comportamento da mãe. Assim, a epigenética tornou-se fundamental para tal argumento, pois consegue captar as formas como a experiência ocorre “debaixo da pele”, em nível genômico.

Inicialmente, a idéia de plasticidade era aplicada no nível da sinapse: as conexões sinápticas são formadas e cortadas em resposta a determinadas experiências. No entanto, com a visão neuromolecular, novas ideias são aplicadas, principalmente aquelas que interpretam a reconexão de funções perdidas no cérebro. Por exemplo, o caso de pessoas que sofrem o acidente vascular cerebral e passam por processos de reabilitação, no qual o cérebro pode ser “remapeado” de acordo com determinadas terapias. Aqui está intrínseca a perspectiva de que novos neurônios são criados durante o curso da vida, dependendo dos estímulos ou inibições que correm devido aos fatores ambientais, ou da experiência de vida de uma pessoa. Com a 62 idéia de plasticidade, os neurocientistas interpretam o cérebro como um órgão aberto à absorção do que ocorre no ambiente e em processos moleculares genômicos, formatando a organização funcional e arquitetura neural, com conseqüências que podem ser passadas para gerações futuras.

Por fim, outro aspecto fundamental para o estilo de pensamento neuromolecular é o “imaginário visual”, associado ao desenvolvimento de tecnologias de visualização cerebral. Inicialmente o Raio-X e a Eletroencefalografia eram utilizadas nas pesquisas neurocientíficas. Depois de algum tempo, alguns avanços foram fundamentais, como: o desenvolvimento da Tomografia Computadorizada, na década de 1970; da imagem de ressonância magnética, na década de 1980. No entanto, são técnicas que não permitiam a visualização da ação do cérebro em tempo real, mas produziam imagens das estruturas e tecidos do órgão.

Outros dois desenvolvimentos tecnológicos posteriores fundamentais permitiram a análise do cérebro em tempo real e que hoje em dia são muito utilizadas nas pesquisas neurocientíficas: a Tomografia por Emissão de Pósitrons e a imagem de Ressonância Magnética Funcional. Com elas não só as estruturas e tecidos do cérebro são visualizados, mas também permitem analisar o funcionamento de como são ativados neurônios na execução de determinadas tarefas e as possíveis correlações com determinados estados mentais: como o amor, o ódio, entre outros. Para Rose & Abi-Rached (2013) o “imaginário visual” é um elemento fundamental para as Neurociências, pois permite aos neurocientistas afirmarem que é possível ver a ação do cérebro em tempo real, as paixões, os desejos, os estados mentais normais ou patológicos, e prover informações sobre a conduta do ser humano e como é possível prevê-la.

2.3 – As primeiras mobilizações para uma agenda governamental em neurociências nos EUA

Nota-se que a origem da formação da infra-estrutura da comunidade neurocientífica se dá no momento da Big Science, quando a Ciência passou a ser foco de políticas específicas nos EUA. No entanto, a formulação de uma PCT que tornasse a neurociência estratégica para os governos de sociedades avançadas industrializadas, ganha ênfase no final da década de 1980.

Nessa época, um grupo de cientistas, administradores e políticos se reuniram para discutir os “notáveis avanços e as oportunidades para avançar os progressos nas ciências neurológicas básicas e clínicas [que] poderiam ser levados à atenção do público e dos 63 representantes eleitos” (GOLDSTEIN, Murray, 1994; 239). Nas reuniões organizadas pelo National Advisory Councils of the National Institute of Neurological Disorders and Stroke (NINDS) e o National Institute of Mental Health (NIMH), os participantes concordaram que seria um momento oportuno para elaborar um projeto de pesquisa nacional que descreveria objetivos neurocientíficos tangíveis e pertinentes às questões de saúde.48.

No encontro foram produzidos relatórios nos quais os participantes apontaram a necessidade de uma “identidade” para tal projeto científico, ou um objetivo específico que mobilizasse diferentes atores sociais, dentre eles, “defensores” do programa de pesquisa dentro e fora do governo norte americano. Algumas questões foram levantadas durante a reunião, como: o projeto deveria ter um formato de um “mega-projeto”, com objetivos e prazos bem definidos assim como o foi o War on Cancer49 ou o PGH? O governo deveria participar ativamente no apoio e no financiamento do projeto, ou grupos de cientistas, profissionais e organizações sociais seriam estimulados a participarem no novo programa de pesquisa do cérebro?

No entanto, na época os líderes do governo nas áreas de Saúde e Ciência foram cautelosos com relação ao aumento de custos com um novo projeto de pesquisa, pois havia um crescente déficit fiscal da economia e o desejo, por parte dos administradores, de manter os esforços de pesquisas já existentes no NIH. Dessa forma, o aumento de custos para uma área da saúde poderia comprometer outras, como o caso de pesquisas para a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida e Alzheimer que já estavam em andamento e foram motivadas por mobilizações populares50.

Em 1989, os primeiros “defensores” do projeto neurocientífico no governo começaram a se manifestar. Silvio Conte (1921-1991), representante do partido Republicano por Massachussets e líder na House of Appropriations Subcomitee (onde atuava como responsável pelo orçamento do NIH) enviou uma carta ao Congresso na qual clamava por apoio ao presidente da época, George W. Bush, que designasse a década de 1990, como a “Década do Cérebro”. O senador Democrata, por Michigan, Donald W. Riegle (1938-) fez o mesmo no Senado. Tais esforços resultaram na House Joint Resolution nº 174, que se trata de uma declaração oficial do governo na qual o presidente destaca a necessidade de esforços

48 Op. Cit.. 49 O War on Cancer trata-se de um projeto do governo norte americano para criar estímulos para a pesquisa da biologia do câncer e terapias eficazes de tratamento da doença. É considerado o National Cancer Act, promulgado em 1971, como o documento fundador de tais esforços. 50 Op. Cit. 64 específicos para “aumentar a consciência pública dos benefícios a serem alcançados pelas pesquisas do cérebro”51. Ou, o que passou a ser designado como a “Década do Cérebro” que iniciaria em 1º de Janeiro de 199052.

No texto da declaração, o presidente norte americano afirma que:

Ao longo dos anos a compreensão do cérebro (...) mudou dramaticamente. No entanto, ainda temos muito a aprender. A necessidade do estudo do cérebro é convincente: milhões de americanos são afetados a cada ano por doenças (...) que vão desde as doenças neurogenéticas às doenças neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer, assim como o Acidente Vascular Cerebral, esquizofrenia, autismo e deficiências da fala, linguagem e audição53. Ainda, segundo o texto, muitos indivíduos e famílias podem ter esperanças de se beneficiarem da nova era de descobertas que está “amanhecendo” nas pesquisas do cérebro, pois:

Microscópios poderosos, grandes avanços nos estudos da genética e avanços nos dispositivos de imagens cerebrais estão dando aos médicos e cientistas cada vez mais conhecimento [sobre o órgão]. Os neurocientistas estão mapeando circuitos bioquímicos do cérebro, o que pode ajudar a produzir medicamentos mais eficazes para aliviar o sofrimento daqueles que têm a doença de Alzheimer ou de Parkinson. Ao estudar como as células do cérebro e produtos químicos se desenvolvem, interagem e se comunicam com o resto do corpo, os pesquisadores também estão desenvolvendo melhores tratamentos para pessoas incapacitadas por lesões na medula espinhal, transtornos depressivos e crises epilépticas. Avanços no campo da genética molecular [prometem render] métodos para tratar e prevenir a doença de Huntington, as distrofias musculares, e outros transtornos que ameaçam a vida54. Na declaração em questão, o presidente afirma que muitas pesquisas sobre o cérebro eram conduzidas pelo NIH, o NIMH, dentre outras agências federais. Mas muitos esforços seriam necessários tanto da iniciativa privada quanto do governo para apoiar as pesquisas em Neurociências. Dessa forma, a produção deveria ser cooperada entre os agentes financiadores, os cientistas e profissionais da saúde atuando de forma multidisciplinar para prover uma “poderosa evidência da determinação de nossa nação para a conquista da doença cerebral”55.

51 Ibid. 52 “House Joint Resolution 174 – To designate the decade beginning January 1, 1990, as the ‘Decade of Brain’”. Página do Congresso norte-americano. Quadro 3, C10. Acessado em: 03/03/2016. 53 Quadro 3, C10. 54 Quadro 3, C10. 55 Quadro 3, C10. 65

Um segundo relatório produzido pelo NINDS, denominado de NINDS Implementation Plan56 esboçou alguns objetivos de pesquisa, em áreas consideradas “oportunas para o avanço da pesquisa (...) da saúde neurológica: o cérebro em desenvolvimento (transtornos do desenvolvimento); o cérebro ferido (traumatismo craniano e medula espinhal); o cérebro falho (esclerose múltipla); e o sentimento cerebral (dor)” (GOLDSTEIN, 1994; 240). Na época, o documento foi considerado por muitos cientistas como um primeiro plano de pesquisas neurocientíficas oficial da administração governamental.

Nota-se aqui que o artigo de Murray Goldstein, que era diretor do NINDS, foi publicado em 1994 e se trata de uma reflexão dos avanços das pesquisas quatro anos depois de anunciada a “Década do Cérebro”. No texto alguns aspectos positivos são apontados nesse percurso, dentre eles de que havia quatro décadas de suporte de pesquisa e com algum “sucesso” no avanço do conhecimento em Neurociências. Por exemplo, a Biologia Molecular e Celular faziam parte do cotidiano das pesquisas neurocientíficas; a identificação do lócus genético da função e disfunção neurológica estava “à frente de outras áreas da pesquisa genética”; a imagem morfológica e dinâmica do cérebro eram tecnologias para estudo in vivo do cérebro humano; os métodos de testes clínicos controlados estavam sendo utilizados para reavaliar a eficácia estabelecida por terapias e para testar a aplicação de novas intervenções clínicas57.

Entretanto, a declaração presidencial, a mobilização dos “defensores” no Congresso e do Senado, e o primeiro plano de pesquisas, não significaram maior financiamento para as pesquisas do cérebro, nem mesmo um projeto de pesquisa oficial coordenado por agências federais do governo norte americano. No Congresso, apenas um aumento modesto foi fornecido para o NINDS e para o NINH. Segundo Goldstein (1994), a “Década do Cérebro” nasceu mais como um “gemido” do que um “grito vitorioso”, pois “os neurocientistas estavam frustrados” e que tal sentimento se devia pelo fato de que “enquanto força pública, a comunidade neurocientífica não havia reconhecido as oportunidades que o Presidente e o Congresso ofereceram”58. Também outros motivos foram elencados para a citada frustração, como: constrangimento fiscal, falta de apoio da comunidade de ativistas (movimentos sociais) e falta de lideranças no governo.

56National Advisory Neurological Disorders and Stroke Council: Implementation Plan: Decade of the Brain. US Dept of Health and Human Services, NINDS-NIH, June, 1990. 57 Ibid. 58 Ibid. 66

Ainda Goldstein (1994), aponta como solução a necessidade de uma estrutura organizacional diferente para concentrar mais recursos. O autor sugeria mais instituições dedicadas à pesquisa neurocientífica coordenando tal projeto junto ao NIH, que permitisse maior colaboração e cooperação com os agentes federais que poderiam, por sua vez, aproveitar-se das oportunidades que as Neurociências ofereciam. Dessa forma, seria possível uma estrutura organizacional centralizada e mais efetiva assim como ocorria em outras áreas de pesquisa, como o caso do PGH.

A “Década do Cérebro”, também trouxe conseqüências positivas. Segundo Goldstein (1994), ao menos, a “ciência neurológica básica e clínica são identificadas como importantes componentes da agenda de pesquisa nacional”. Em um artigo da revista Science, de 1999, os autores Edward Jones e Lorne Mendell59, apontam que o contexto em questão trouxe grande visibilidade pública para as neurociências, com a criação de diferentes estímulos para o campo científico, como: o prêmio “Decade of Brain Award”, elaborado pela SfN, para “figuras de Washington” que ajudassem a promover as pesquisas do cérebro dentro do governo federal norte americano; o Brain Awareness Week que trata-se de uma semana de divulgação dos avanços e benefícios das pesquisas sobre o cérebro (atualmente é realizada em diferentes países do mundo, dentre eles o Brasil); grupos sociais que passaram a reivindicar mais pesquisas sobre doenças específicas do cérebro; e a atenção da mídia muito influenciada pelo reconhecimento da necessidade de manter custos elevados em pesquisas sobre doenças neurológicas e neuropsiquiátricas crônicas e, também, na rápida tradução dos avanços do conhecimento para tratamento de algumas das mais devastadoras distúrbios, como o Acidente Vascular Cerebral e lesão da medula espinhal.

Os autores do artigo apontam, também, o aumento do número de cientistas que passaram a se reconhecer como “neurocientistas”, oriundos de diferentes áreas do conhecimento, com mais de 1000 novos membros sendo adicionados na SfN em cada ano da “Década do Cérebro”. Além de uma “(...) aliança notável entre os líderes do Congresso, administradores, representantes de grupos sociais, os próprios cientistas e a nova geração de líderes do NIH promovendo a causa da Neurociência”60.

59JONES, Edward; MANDELL, Lorne. Assessing the decade of the brain. Science, 30 Apr. 1999. Disponível em: http://science.sciencemag.org/content/284/5415/739. Acessado em 5/3/2016 60 Ibid. 67

Em outro artigo do jornal Cerebrum, publicado pela The Dana Foundation61, do ano de 2010, intitulada de “A década após a ‘Década do Cérebro’”62, diferentes diretores de institutos de pesquisas sobre o cérebro foram entrevistados para avaliarem os avanços das pesquisas neurocientíficas desde a proclamação presidencial em 1990. É consensual dentre os entrevistados, que a “Década do Cérebro” foi um momento decisivo, pois uma série de mudanças conceituais que resultaram dos avanços nas pesquisas sobre o cérebro alterou o panorama de diferentes áreas, da psicologia à economia, educação e o direito.

Por exemplo, a idéia de neuroplasticidade começou a ser esboçada naquela época. Até então, os cientistas envolvidos com a pesquisa do cérebro acreditavam que o órgão passava por mudanças até o seu desenvolvimento e poucas quando adulto. Tal percepção polarizava as interpretações científicas. Alguns pesquisadores afirmavam que a genética determinava o temperamento, a personalidade, as aptidões e as vulnerabilidades às doenças mentais. Outros, afirmavam que se tratava do ambiente, ou de fatores externos da sociabilidade do indivíduo.

No entanto, após duas décadas de pesquisas influenciadas pela genômica, para os neurocientistas era possível afirmar que mesmo o cérebro já “maduro” é muito mais “plástico” e “maleável” do que uma vez pensaram. O órgão se modifica com os estímulos ambientais nas diferentes fases da vida, pois os neurônios são dinâmicos e operam diferentes conexões dependendo da estimulação recebida. A idéia de neuroplasticidade, portanto, resulta em parte dos fatores da herança genética, mas também das alterações dinâmicas da epigenética que influenciam a expressão dos genes. Tais processos são de particular interesse clínico porque diferentes estímulos externos (como tratamento precoce de doenças, dieta, abuso de drogas e estresse) podem afetar a vulnerabilidade de uma pessoa para as doenças, incluindo os distúrbios psiquiátricos63. Segundo o artigo, pode-se afirmar que “finalmente os neurocientistas estão descobrindo os processos cerebrais das doenças mentais”64.

Dessa forma, segundo os neurocientistas entrevistados do artigo da Cerebrum, foi devido à epigenética que o cérebro humano evoluiu e passou a possuir um circuito neuronal complexo em grandes áreas do órgão para processar a informação social (como reações e

61The Dana Foundation é uma organização filantrópica privada que financia as pesquisas do cérebro através de doações, publicações e programas educacionais para o público se informar sobre o potencial das pesquisas neurocientíficas. É a principal promotora do Brain Awareness Week. Disponível em: http://www.dana.org. Quadro 3, C11. Acessado em: 6/3/2016. 62 “Artigo intitulado de ‘A década após a Década do Cérebro’”. Página da The Dana Foundation. Quadro 3, C12. Acessado em: 6/3/2016. T. A. 63 Ibid. 64 Ibid. 68 emoções) e de responder apropriadamente a tais estímulos. A evolução do sistema nervoso se trata, portanto, das diferentes modificações na expressão de genes que influencia a morfologia e o funcionamento peculiar do cérebro de diferentes indivíduos.

Também, outro resultado das pesquisas do cérebro no referido contexto, os neurocientistas ao redefinirem suas pesquisas sobre diferentes patologias a partir dos processos fisiológicos, conseguiram desenvolver novas técnicas de imagem do cérebro em tempo real para estudo de sua estrutura, função e química, assim como ferramentas para mapear o DNA e o RNA. Mais do que pesquisar quatro ou cinco neurotransmissores, na virada do século XX para o XXI, os neurocientistas passaram a investigar os milhares de genes e os circuitos cerebrais que estão associados às doenças mentais com o avanço das técnicas de visualização65.

Portanto, é possível apontar que uma das conseqüências da “Década do Cérebro” foi o aprofundamento da produção do conhecimento sobre as bases neuromoleculares dos processos mentais. Enquanto o PGH avançava, os neurocientistas utilizavam de seus achados para aplicar nas pesquisas sobre o cérebro. Ou seja, trata-se de um momento de consolidação do estilo de pensamento neuromolecular, em que a genômica se associa às pesquisas neurocientíficas, através do desenvolvimento da idéia de neuroplasticidade e da possibilidade de investigação do funcionamento das redes neurais, ou os circuitos cerebrais, com as técnicas de visualização do órgão em tempo real e em nível molecular.

No entanto, a “Década” ainda se contrastava com o seu propósito político inicial, das Neurociências se tornarem uma agenda de pesquisa científica estratégica para o governo, assim como ocorria com o PGH. Duas décadas após a declaração presidencial, que chamava atenção da sociedade para as pesquisas do cérebro, ainda não existia um projeto de larga- escala com diretrizes e objetivos específicos para a área. Por mais que diferentes avanços possam ser citados (como as pesquisas sobre neuroplasticidade), a “Década do Cérebro” foi um contexto de pesquisa “em aberto” em contraste com o empreendimento de pesquisa biomédica que foi o PGH e a decodificação completa do genoma humano66.

Aqui é necessário fazer uma ressalva. Não raro, nos diferentes documentos acessados para investigar o contexto sociopolítico da formação das PCT em Neurociências norte americana, o PGH é citado como uma referência constante, por se tratar de um projeto

65 Op. Cit. 66 “Artigo de avaliação da ‘Década do Cérebro’”. Página da Motherboard. Quadro 3, C13. Acessado em 6/3/2016. 69 coordenado por instâncias do governo federal considerado um “sucesso” na área de Biotecnologia. Formalizado em 1990, o Projeto foi coordenado por 13 anos pelo U.S. Department of Energy (DOE) e o NIH. O projeto coordenado pelo geneticista Francis Collins (1950-) foi inicialmente planejado para durar 15 anos, mas os rápidos avanços tecnológicos ocorridos no período aceleraram a data de conclusão em 200367.

O PGH foi um plano internacional de pesquisas (inicialmente o Wellcome Tust, da Inglaterra formou parceria, mas ao longo dos anos outros países passaram a produzir em colaboração, como Japão, China, Alemanha, França, dentre outros) para mapear e seqüenciar todos os genes do genoma humano. Tal mapeamento tratava-se de: 1) identificar cerca de 20 mil a 25 mil genes do DNA humano; 2) determinar a seqüência dos 3 bilhões de pares de bases químicas que compõe o DNA; 3) armazenar as informações em banco de dados; 4) melhorar as ferramentas de análise de dados; 5) transferir tecnologias para o setor privado; 6) abordar questões éticas, legais e sociais que possam surgir a partir do projeto68.

Outra característica de “sucesso” do Projeto, além dos objetivos de mapeamento do genoma alcançados, foi o duradouro apoio do governo federal que com o tempo transferiu tecnologias para o setor privado. Ao licenciar tecnologias para as companhias privadas e “premiar pesquisas inovadoras”, o projeto “catalisou a multibilionária indústria de biotecnologia dos EUA”69. Segundo artigo do jornal The New York Times, o PGH custou U$$ 3,8 bilhões e, de acordo com uma pesquisa realizada, injetou cerca de U$$ 800 bilhões na economia70. E para os representantes do governo norte americano, a agenda de pesquisa em genômica só conseguiu tamanha “inovação econômica”, pois foi formatada como de larga- escala71.

2.5 – O BRAIN Initiative

Diante do contexto tanto do desenvolvimento da “Década do Cérebro” e do “sucesso” do PGH, em 2012, o presidente Barack Obama lançou um documento oficial do governo no qual manifestava o compromisso em “fortalecer a pesquisa em biociência como

67 “Arquivo de informações do Projeto Genoma Humano”. Quadro 3, C14. Página do Projeto Genoma Humano. Acessado em 10/5/2016 68 Quadro 3, C14. 69 Quadro 3, C14. 70 “Matéria anunciando intenções do governo Obama em criar um projeto de larga-escala para o cérebro”. Página do The New York Times. Quadro 3, C15. Acessado em: 10/5/2016 71 Quadro 3, C13. 70 um dos principais motores da inovação americana e do crescimento econômico”72. Através do Office of Science and Technology Policy (OSTP), foi desenvolvido o National Bioeconomy Blueprint, documento em que é detalhado como o governo elaboraria estratégias de pesquisa para lidar com desafios nas áreas de saúde, alimentação, energia e meio ambiente. Meses depois do anúncio, em Outubro de 2011, o OSTP emitiu o Request for Information (RFI) no qual solicitava do público ideias de áreas prioritárias para desenvolver a “bioeconomia” nacional73.

Como resposta, a SfN emitiu um documento diretamente ao OSTP em que ressaltava a importância que a Neurociência teria no desenvolvimento do “grande desafio” de construir a “Bioeconomia do Século XXI”74. Nele, é enfatizado que investir em pesquisas neurocientíficas, permitiria desenvolver a compreensão e o tratamento dos distúrbios e doenças neurológicas que custam mais de US$ 100 bilhões anualmente aos EUA e a vida de famílias afetadas. Também, segundo o documento, no país a pesquisa médica era considerada uma área importante do esforço nacional para construir e manter a economia de altos salários e de alta tecnologia, além do que investir em tal tipo de pesquisa contribuiria para a revitalização econômica e competitividade global75.

Ainda, no documento da SfN é citado que para lidar com os desafios do plano nacional em bioeconomia, em Maio de 2011, a One Mind for Research76 havia elaborado uma série de diretrizes para as pesquisas neurocientíficas e que tais objetivos deveriam ser aproveitados. O “10-Year Plan For Neuroscience” desenvolvido por um grupo de neurocientistas (da indústria, academia e governo) organizado pela SfN, já trazia o foco para os esforços governamentais na área de Neurociência. Dentre as áreas de pesquisa, foram elencadas: genética, epigenética, o conectoma (ou o diagrama da fiação do sistema nervoso), células-tronco neurais, sistemas de biologia e novas formas de organização científica77.

72 “Plano Nacional de Bioeconomia norte-americano”. Página da Casa Branca. Quadro 3, C16. Acessado em: 10/5/2016. 73 Quadro 3, C16. 74 “Resposta da Society for Neuroscience ao Plano Nacional de Bioecenomia”. Página da Casa Branca. Quadro 3, C17. Acessado em: 11/5/2016. 75 Quadro 3, C17. 76 A One Mind for Research é uma organização independente sem fins lucrativos, com parcerias público- privadas globais entre as comunidades governamentais, para fomentar o desenvolvimento e a implementação de diagnósticos aperfeiçoados, tratamentos e cura, para todos afetados pelas lesões e doenças cerebrais. Disponível em: http://onemind.org/About-Us. Quadro 3, C18. Acessado em: 11/5/2016. 77 Quadro 3, C17 71

Também, outros objetivos para um possível projeto governamental neurocientífico foram delineados em 2012, em um artigo da revista Neuron78. Os neurocientistas autores propõem um projeto de larga-escala, denominado de Brain Activity Map Project, para durar 15 anos. Inspirados pelo “grande desafio de nosso tempo” que é “compreender como o cérebro funciona”, uma “limitação fundamental subjacente é a nossa [neurocientistas] ignorância dos microcircuitos do cérebro, as conexões sinápticas contidas em qualquer região do cérebro”. Segundo os autores, se até então muitas pesquisas conseguiram registrar a atividade individual de diferentes neurônios em diferentes áreas do órgão, dada a sua distribuição em conexões, que operam milhões de neurônios e a plasticidade da arquitetura neuronal, ainda não foram criadas tecnologias que consigam registrar seus arranjos dinâmicos de acordo com os estímulos recebidos, nem mesmo teorias que expliquem como opera a “microcircuitaria do cérebro”79.

Dessa forma, o projeto teria como objetivo, “mapear a complexa circuitaria do cérebro de forma sem precedente”, com técnicas de ressonância magnética em combinação com outras, como nanosensores, sondas de fibra ótica sem fio que poderiam ser implantadas no cérebro ou em células geneticamente modificadas que seriam conectadas com as células do órgão e teriam registradas suas atividades80.

Tanto o documento produzido pela SfN e o artigo publicado pelos neurocientistas surtiu efeito. Em uma entrevista com o principal diretor assistente da OSTP, Phillip Rubin, é anunciada as primeiras ideias do governo norte americano para uma “Neurosicence Iniative”81. Nela, Rubin anuncia os esforços em unir as agências federais e o setor privado para criar financiamento às pesquisas neurocientíficas. Um grupo de trabalho seria convocado para estabelecer as diretrizes do emergente projeto fundamentalmente de pesquisa básica (que reunisse diferentes disciplinas) e para definir como se desenvolveria uma “infra-estrutura aberta para preservar e compartilhar neurociência, juntamente com o desenvolvimento de ferramentas sofisticadas para análise, visualização e modelagem”.

O National Bioeconomy Blueprint junto às manifestações da comunidade neurocientífica norte americana, ganharam força com as estratégias de inovação realizadas pelo OSTP, anunciadas em Julho de 2012, para promover “Grandes Desafios” que faziam

78 “Artigo do Brain Initative Map”. Página da revista Neuron Quadro 3, C19. Acessado em: 11/5/2016. 79 Quadro 3, C19. 80 “Matéria sobre como os cientistas influenciaram a Casa Branca para ter um projeto de larga-escala neurocientífico”. Página do Jornal NBC . Quadro 3, C20. Acessado em: 6/3/2016. 81 “Entrevista com o diretor da OSTP, Philip Rubin”. Página da SfN. Quadro 3, C21. Acessado em: 12/05/2016. 72 parte da “Estratégia Americana para Inovação”. Em um comunicado oficial, o governo anunciou que promoveria “ambiciosos objetivos em escala nacional e global que capturam a imaginação e a demanda de avanços em inovação e descobertas em ciência e tecnologia”, assim como o foi o “Grande Desafio” do Projeto Genoma82.

Como exemplo do contexto, das intenções de financiamento em projetos científicos de larga-escala e da mobilização da comunidade neurocientífica para traçar objetivos para a área, já em 2013, Barack Obama, em um Discurso do Estado83, ao citar as pesquisas neurocientíficas, afirma que:

Se quisermos fazer os melhores produtos, temos também que investir nas melhores ideias. Cada dólar que investimos para mapear o genoma humano retornou U$S 140 para a nossa economia. Hoje, os nossos cientistas estão mapeando o cérebro humano para desvendar respostas para a doença do Alzheimer; desenvolvendo medicamentos para regenerar órgãos danificados (...). Agora não é o momento para destruir esses investimentos criadores de empregos em ciência e inovação. Agora é o tempo para atingir um nível de pesquisa e desenvolvimento não visto desde o auge da Corrida Espacial (...)84. Na declaração presidencial, é possível apontar como o PGH foi uma referência da estrutura que o projeto neurocientífico deveria ter para alinhar os interesses dos neurocientistas e suas pesquisas em andamento, e os do governo no desenvolvimento da economia. Assim como foi possível mapear os 3,3 bilhões de pares de bases dos 23 cromossomos do genoma humano através de um projeto que durou pouco mais de uma década e que envolveu a coordenação das estâncias federais do governo, diferentes institutos e cientistas, também seria possível mapear os 100 bilhões de neurônios e trilhões de conexões do “órgão mais importante do corpo humano”, através de uma PCT específica para a área85.

Finalmente, no dia 2 de Abril de 2013, as aspirações da comunidade neurocientífica são realizadas, com o anúncio do presidente norte-americano, Barack Obama, junto ao diretor do NIH, Francis Collins, do projeto nomeado Brain Initiative 2025: A scientific vision86, que teria início no ano fiscal de 2014. Inspirados pela “visão científica” que os avanços das tecnologias nas imagens do cérebro promoviam, o projeto constituiu as

82 “Grandes Desafios da Estratégia Americana para Inovação”. Página da Casa Branca. Quadro 3, C22. Acessado em: 12/05/2016. 83 “Discurso de Obama do Estado da União”. Página do The New York Times. Quadro 3, C23. Acessado em: 10/5/2016 84 Quadro 3, C23. 85 Quadro 3, C13. 86 “Documento das diretrizes do BRAIN Initiative”. Página do BRAIN Initiative. Quadro 3, C24. Acessado em: 6/3/2016. 73 diretrizes da PCT do governo norte americano em Neurociências, como um “Grande Desafio do Século XXI”, cujo objetivo é “acelerar o desenvolvimento e a aplicação de novas tecnologias que permitam aos pesquisadores produzir imagens dinâmicas do cérebro que demonstrem como células cerebrais individuais e complexos circuitos neuronais interagem na velocidade do pensamento” (NIH, 2014).

Tal “Desafio” do “Projeto Americano” é tratado como uma grande jornada ao “desconhecido”, do “terreno interior”, que é a “província do cérebro humano”87. Para as pesquisas neurocientíficas, o projeto pretende concentrar os esforços das pesquisas em “mapear os circuitos cerebrais do cérebro, medir os padrões elétricos e químicos flutuantes dentro desses circuitos, e compreender como suas interações criam nossas capacidades cognitivas e comportamentais exclusivas” (NIH, 2014: 9). Conseguir identificar os padrões das interações sinápticas e dos circuitos anatômicos básicos que “medeiam processos mentais e comportamentais, como a percepção, a memória, a aprendizagem, o planejamento, emoção e o pensamento complexo”, presentes em todos os cérebros humanos, portanto, permitirá aos neurocientistas compreender a fonte da “variação do comportamento humano”88.

Segundo o documento, assim como o “Programa Apollo”, o desafiador objetivo do Brain exigirá uma série de desenvolvimentos tecnológicos realizados por “cientistas e engenheiros” de diferentes áreas do conhecimento. As tecnologias deverão estar integradas de “forma inédita” para aproveitar as oportunidades desse “momento único na história da neurociência”, em que a inovação tecnológica tem permitido descobertas que levarão a uma “revolução na nossa compreensão do cérebro”. Mesmo que tal oportunidade seja possível devido às novas tecnologias de visualização cerebral, previstas no relatório, “mais inovação é necessária”.

Por exemplo, compreender o “circuito do cérebro” será possível se novas técnicas moleculares forem desenvolvidas para “identificar as conexões específicas entre as células nervosas que mudam quando uma nova memória é formada ou uma nova situação social é encontrada”. Ou, também, “novos métodos de Física e Engenharia para a medição não invasiva e ajuste da atividade dos circuitos de cérebro humano numa escala precisa criaria uma revolução na compreensão e tratamento da doença”89.

87 Ibid. 88 Op. Cit. 89 Op. Cit. 74

A Iniciativa não se trata somente de pesquisa para investigar os “mistérios do cérebro humano”, “um desafio intelectual fascinante por si só”, mas tratamentos para doenças cerebrais, como o Alzheimer, o mal de Parkinson, dentre outros, podem emergir a partir de uma compreensão mais profunda dos circuitos cerebrais e produzir avanços na psiquiatria.

Para a confecção do Brain, o diretor do NIH convocou um grupo de trabalho para produzir um relatório que “catalise um esforço interdisciplinar de alcance sem precedentes”, e que definisse a base científica e os objetivos da iniciativa (com prazos e custos estimados). O grupo de trabalho definiu que a melhor maneira de colocar a “visão [científica do governo] em ação” é acelerar o desenvolvimento de neurotecnologias, assim como refletido no título do projeto90, que permitam a produção de dados para a compreensão das funções do sistema nervoso saudável e patológico91.

A ênfase no “audacioso” e “ambicioso” projeto governamental visa resultados em pesquisa básica, translacional, clínica e que as neurotecnologias “atinjam diferentes áreas”. Para atingir tais focos, o grupo de trabalho estimou um período de dez anos de investimento92 em pesquisa: os primeiros cinco anos voltados para o desenvolvimento de tecnologias (com custos estimados em U$$ 400 milhões por ano) e nos últimos anos o objetivo é integrar tais técnicas que permitam descobertas sobre o cérebro (com custos estimados em U$$ 500 milhões por ano93).

Ao considerar essas diretrizes e “o estado atual da neurociência”, o grupo de trabalho identificou a “análise de circuitos de neurônios em interação como sendo particularmente rica em oportunidade, com potencial para avanços revolucionários”94. Tal objetivo de pesquisa em Neurociências é denominado de “circuito neuronal” o que requer “identificar e caracterizar as células componentes [do cérebro], definindo as conexões sinápticas entre umas e outras, observando os padrões dinâmicos de atividade enquanto seus circuitos se comportam in vivo e perturbando tais padrões para testar sua significância”95. Também, este tipo de análise científica requer a “compreensão dos algoritmos que governam

90Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies – Tradução: Pesquisa do Cérebro através do Avanço de Neurotecnologias Inovadoras. 91 Op. Cit. 92 Que envolverá o NIH, a National Science Fundation (NSF), Defense Advanced Research Project Agency (DARPA) e a Food and Drug Administration (FDA), além de diferentes atores do setor privado. 93 Segundo o documento, o grupo de trabalho faz uma ressalva que tais valores podem ser reavaliados de acordo com os desenvolvimentos do “nível tecnológico” do projeto. 94 Quadro 3, C24. 95 Op. Cit. 75 o processamento de informações dentro de um circuito e entre circuitos que interagem no cérebro como um todo”96.

Após consultas com a comunidade científica sobre os “desafios e oportunidades” do campo neurocientífico, o grupo de trabalho selecionado para produzir o documento com as diretrizes do Brain Initiative elaborou sete áreas prioritárias para coordenar as pesquisas da área. São elas:

1 – Descobrindo a diversidade – Um dos objetivos é descobrir diferentes tipos de células cerebrais, seu papel na saúde e na doença, e identificá-las para prover acesso experimental de diferentes pesquisadores. Ou seja, é uma diretriz que reforça a necessidade de caracterizar todas as células do sistema nervoso através de ferramentas que permitam registrar, demarcar e manipular os neurônios precisamente definidos no cérebro vivo;

2 – Mapas de múltiplas escalas - Esta diretriz foca o potencial que as tecnologias de imagem possuem para mapear neurônios conectados em circuitos locais e distribuídos nos sistemas cerebrais. Tal mapeamento auxilia na compreensão da relação entre a estrutura neuronal e sua função. É fundamental, para o funcionamento deste objetivo, tecnologias “rápidas, menos custosas e escaláveis” para a reconstrução da imagem anatômica dos circuitos neuronais, das entradas e saídas sinápticas no nível subcelular em diferentes escalas de imagem;

3 – O cérebro em ação - Diretriz que orienta produzir uma imagem dinâmica do cérebro em funcionamento, desenvolvendo e aplicando métodos melhorados para o monitoramento em grande escala da atividade neural. A análise constante das imagens requer o aprimoramento de tecnologias existentes assim como o desenvolvimento de novas, que permitam o registro do funcionamento neuronal, o que inclui métodos baseados na óptica, genética molecular, eletrodos, genética molecular e nanociência;

4 – Demonstrando causalidade - É necessário realizar experimentos em animais com técnicas de intervenção que modifiquem os circuitos neurais e seu comportamento. Técnicas como a optogenética, quimiogenômica, bioquímica e modulação eletromagnética, permitem avaliar populações dos neurônios e sua relação com o comportamento de animais. Futuramente as técnicas podem ser utilizadas em experimentos com pacientes humanos;

96 Op. Cit. 76

5 – Identificando princípios fundamentais - O desenvolvimento das pesquisas neurocientíficas permitirá produzir fundamentos conceituais para a compreensão das bases biológicas dos processos mentais através do desenvolvimento de novas teorias e ferramentas de análise. Por ser a neurociência uma área que deriva da interação de diferentes áreas do conhecimento com técnicas específicas, ela vem produzindo dados complexos sobre o funcionamento do órgão. Dessa forma, para avançar na análise dos dados e da teoria sobre o sistema nervoso, devem ser realizadas mais colaborações entre pesquisadores experimentais e cientistas da Estatística, Física, Matemática, Engenharia e Ciências da Computação;

6 – Avançar na neurociência humana - O objetivo desta diretriz é desenvolver tecnologias inovadoras para compreensão do cérebro e sua relação com transtornos mentais; criar e apoiar a investigação em redes do cérebro humano. Seres humanos que consentem no uso de tecnologias para monitoramento cerebral para obterem diagnósticos, ou neurotecnologias para aplicações clínicas, oferecem oportunidades para a pesquisa do funcionamento e mecanismos dos distúrbios cerebrais, os efeitos de terapias e o valor do diagnóstico produzido. Essa oportunidade requer a integração de equipes que atuem com os mais elevados padrões éticos de cuidados clínicos e de investigação. Novos mecanismos são necessários para maximizar a recolha desta informação inestimável e que beneficie pessoas com distúrbios cerebrais;

7 – Do Brain Initiative para o cérebro - Integrar as novas abordagens tecnológicas e conceituais produzidas nos itens anteriores permite descobrir os dinâmicos padrões de atividade neural que são transformados na cognição, emoção, percepção, a ação da saúde e da doença. O resultado mais importante do Brain Initiative será uma compreensão abrangente e mecanicista das funções mentais que emergem das aplicações sinérgicas de novas tecnologias e estruturas conceituais desenvolvidas (NIH, 2014; 6-7).

No documento ainda é citado que durante as discussões sobre as áreas prioritárias do projeto, outros temas surgiram como princípios fundamentais. São eles:

1) Prosseguir estudos em humanos e não humanos em paralelo: o objetivo é compreender o cérebro humano, mas muitas pesquisas serão realizadas em animais;

77

2) Cruzar fronteiras em colaborações científicas interdisciplinares: nenhum pesquisador irá resolver os problemas do cérebro sozinho. As abordagens mais “estimulantes” irão construir pontes entre diferentes áreas que conectem o experimento à teoria, biologia à engenharia, desenvolvimentos técnicos à aplicação experimental, neurociência humana e modelos animais, dentre outras inovações;

3) Integrar escalas temporais e espaciais: uma visão unificada do cérebro cruzará níveis espaciais e temporais, reconhecendo que o sistema nervoso consiste de moléculas que interagem, células e circuitos no corpo todo, e importantes funções podem ocorrer em milissegundos, ou minutos, ou a vida inteira;

4) Estabelecer plataformas de compartilhamento de dados: criar repositórios de conjuntos de dados integrados e públicos, com ênfase na pronta acessibilidade e manutenção central efetiva;

5) Validar e disseminar tecnologia: novos métodos devem ser criticamente testados através da interação entre os produtores de ferramentas e os experimentalistas. Após a validação, mecanismos devem ser desenvolvidos para fazer as novas tecnologias disponíveis para todos;

6) Considerar implicações éticas das pesquisas neurocientíficas: as pesquisas do Brain podem levantar questões importantes sobre o aprimoramento neural, privacidade de dados e a utilização adequada da utilização dos dados na lei, educação e negócios. As pesquisas devem estar de acordo com os mais altos padrões de pesquisa com humanos e animais não-humanos, sob a aplicação das leis locais e federais;

7) Prestação de contas ao NIH, ao contribuinte e às comunidades neurocientíficas em pesquisa básica, translacional e clínica: o Brain possui um escopo interdisciplinar extremamente amplo e envolverá múltiplos parceiros dentro e fora do NIH. Mecanismos de supervisão devem ser estabelecidos para garantir que os fundos da iniciativa sejam investidos em benefício do público e da comunidade científica (NIH, 2014; 7-8).

Também, o grupo de trabalho recomendou a criação de um conselho científico composto por cientistas especialistas dos distintos campos científicos relevantes para o projeto (neurociência, biologia molecular, ciências clínicas, física, entre outros). Dado que um dos objetivos é acelerar os desenvolvimentos tecnológicos e conceituais em neurociências, as diretrizes do projeto Brain serão obsoletas dentro de alguns anos e, para “responder aos 78 desafios futuros” de tal evolução, o conselho científico selecionado estará encarregado de revisar os objetivos estabelecidos no documento com relação ao andamento das pesquisas.

Ainda segundo os itens das áreas prioritárias estabelecidas inicialmente, o número 7 é o que melhor capta a “visão global” que o projeto propõe, pois combina os itens anteriores e as formas de produção científica em uma “ciência única e integrada de células, circuitos, cérebro e comportamento”97 (NIH, 2014; p. 7). Um dos resultados almejados e que consegue captar as áreas prioritárias acima citadas, é exemplificado para o caso de um experimento conseguir registrar tipos celulares que são identificados em uma determinada estrutura anatômica. Tal registro implicaria em um desenvolvimento tecnológico que pode se tornar uma rotina nos experimentos. Outro exemplo, o registro dos comportamentos complexos das populações neurais. Depois da experiência inicial, é possível realizar novos testes, com técnicas de manipulação do circuito neural, que simulem o primeiro registro e possibilite investigar as causas de tais comportamentos98.

Assim, tais diretrizes caracterizam etapas e arranjos para atingir o principal objetivo do Brain que é a produção de dados da modelagem dos circuitos neurais que permita relacionar células individuais com a conectividade, dinâmica populacional e comportamento. Conseqüentemente, ganha relevância a constante produção teórica que consiga responder questões antigas sobre o funcionamento do cérebro e enfatize a probabilidade de novas descobertas e tecnologias. “Em certo sentido, os cientistas do Brain Initiative que aplicam as novas tecnologias de monitoramento [do cérebro] serão como Galileo olhando para os céus com o primeiro telescópio óptico” (NIH, 2015: 7).

Ou seja, para o grupo de trabalho que produziu o documento trata-se de um momento único para as neurociências repetir outros “grandes saltos na história da ciência – o desenvolvimento da física atômica e nuclear, o desvendar do código genético” que irá mudar “a sociedade humana para sempre”. Através do conhecimento aprofundado de como:

(...) nossos cérebros realmente funcionam, nós entenderemos nós mesmos de uma forma diferente, tratar doenças incisivamente, educar nossas crianças eficazmente, praticar o direito e a governança com maior discernimento, e desenvolver maior compreensão de outros cujos cérebros foram moldados em diferentes circunstâncias. Para atingir esta visão, a nossa nação deve treinar e apoiar uma nova geração de cientistas dos cérebros trans-disciplinares e fornecer os

97 T. A. 98 Op. Cit. 79

recursos necessários para liberar suas energias criativas para o benefício de todos (NIH, 2014: 10).

2.6 – Muitas neurociências

Por fim cabe ressaltar que o Brain Initiative não foi o primeiro, nem é o único projeto da área de neurociências que está diretamente associado às diretrizes governamentais. Ou melhor, que se tornou uma área estratégica para o desenvolvimento científico e político de um país. Alguns meses após o anúncio do projeto norte americano, a União Européia anuncia a formulação do Human Brain Project. Também, o Japão elaborou através do Ministry of Education, Culture, Sports, Science and Technology (MEXT), o Brain/MINDSProject, dentre outros projetos nacionais, como o israelense, o canadense, o australiano.

Segundo Rose (2005), uma das características dos projetos científicos na área das Ciências da Vida de sociedades avançadas industrializadas (destacadamente EUA, Europa e Japão), é a produção industrial de pesquisa que envolve equipes grandes de pesquisadores e somas bilionárias de financiamento, que vão desde o setor militar até a indústria farmacêutica. No entanto, nem todas as agendas de pesquisa estão alinhadas com os mesmos desenvolvimentos científicos e contextuais dessas sociedades, pois possuem objetivos diferentes e não necessariamente a neurociência é uma área “estratégica” para o governo, assim como no caso do projeto norte americano em que ela está direcionada para potenciais desenvolvimentos econômicos.

Como exemplo de tais diferenças, no dia 19 de Setembro de 2016, uma “tribo de cerca de 400 neurocientistas, biólogos computacionais, físicos, médicos, conselheiros de ciência do governo e financiadores privados”99 de países com significantes investimentos na área de neurociências, se reuniram em um encontro promovido pela National Science Foundation (NSF) na The Rockefeller University. O motivo de reunião foi discutir formas de “melhorar a colaboração e a coordenação dos esforços globais em investigação fundamental em neurociência”100 entre “projetos internacionais do cérebro emergentes”101.

No encontro, os participantes debateram formas de melhorar a colaboração “transnacional”, como a criação de uma plataforma em que pudessem compartilhar “petabytes de dados significativos e acessíveis a uma nova geração de neurocientistas

99 “Matéria sobre a reunião de neurocientistas de diferentes países na The Rockefeller University”. Página da revista Science. Quadro 3, C25. Acessado em: 26/9/2016. 100 “Matéria sobre reunião para formar coordenação global de projetos em Neurociência”. Página da National Science Foundation. Quadro 3, C26. Acessado em 26/9/2016. 101 Quadro 3, C26. 80 formados para trabalhar dentre disciplinas e fazer sentido de tudo isso”102. No entanto, nenhum plano específico emergiu do encontro.

É significativo que nas diferentes matérias e sites acessados para pesquisar sobre a reunião, é comum citarem que os projetos neurocientíficos norte americano e europeu lideraram tal encontro e que incluíram o “ambicioso plano de 15 anos da China que objetiva compreender as bases neurais das funções cognitivas enquanto desenvolve ferramentas para diagnosticar e tratar as doenças do cérebro precocemente”103.

Dentre as matérias coletadas, uma delas relata que um pesquisador palestino, da Palestinian Neuroscience Initative questionou o quanto essas agendas ambiciosas dos países de industrialização avançada poderiam ajudar colegas em países em desenvolvimento, uma vez que o encontro se tratava de discutir questões relativas à melhora da colaboração internacional das pesquisas neurocientíficas104. Ou seja, chama a atenção de que a tentativa de criar uma infra-estrutura internacional de cooperação em neurociências trouxe as diferenças entre os objetivos de pesquisas desenvolvidas nos países recrutados para o citado encontro.

As diferenças nos projetos neurocientíficos também são ilustradas em uma entrevista com o biólogo e diretor do Institute of Neurosciences do Chinese Academy of Sciences, Mu-ming Poo, publicada na edição de primavera da Neurosciene Quarterly105. O pesquisador cita que nos últimos anos o governo e a comunidade científica chinesa reconheceram que as pesquisas do cérebro são importantes e que os pesquisadores chineses poderiam fazer contribuições substanciais para a área106. Assim foi criado o China Brain Project, “focado em áreas que a China tem força em termos de especialidades dos cientistas e de disponibilidades de recursos (por exemplo, como [quantidade e tipos de] macacos e população de pacientes com doenças mentais”.

O projeto se difere daqueles de larga escala em outros países e enfatiza áreas “relevantes para as necessidades sociais, tais como cuidados da saúde e desenvolvimento de novas tecnologias, (...) [como as de] diagnóstico e intervenção de doenças mentais”107. Os principais objetivos do projeto são: a compreensão da base neural das funções cognitivas;

102 Quadro 3, C25. 103 Quadro 3, C25. 104 Quadro 3, C25. 105 A revista é publicada pela NSF e oferece cobertura de notícias de questões importantes que envolvem a comunidade neurocientífica. Disponível em: https://www.sfn.org/news-and-calendar/neuroscience- quarterly/about-nq. Quadro 3, C27. Acessado em: 26/9/2016 106 “Entrevista com o diretor do Instituto de Neurociência da Academia Chinesa de Ciências”. Página da Neuroscience Quarterly. Quadro 3, ref. C28. Acessado em: 26/9/2016. 107 Quadro 3, C28. 81 desenvolvimento de ferramentas para diagnóstico e intervenção dos distúrbios mentais mais importantes para o país; e desenvolver métodos e dispositivos tecnológicos inspirados no cérebro108.

Por sua vez, o Palestinian Neuroscience Initiative, foi estabelecido em 2009, pela Universidade Al-Quds, como núcleo para um futuro instituto palestino de neurociências. O objetivo do projeto é tanto propriamente de pesquisas específicas das doenças mentais locais, mas notadamente de educação de futuros pesquisadores para a área. Assim, o projeto possui quatro principais diretrizes, dentre elas a criação de uma infra-estrutura de pesquisa em neurociências; aumentar o treinamento de uma nova geração de pesquisadores estudantes palestinos com instituições reconhecidas mundialmente; conduzir pesquisas sobre doenças neurológicas e psiquiátricas típicas do país; sensibilizar a opinião pública sobre os transtornos psiquiátricos e neurológicos entre palestinos109.

Considerações finais do capítulo

O presente capítulo teve como foco destacar os contextos sociopolíticos que configuraram a comunidade e a agenda governamental neurocientífica dos EUA. Alguns aspectos desta trajetória, como a formação da infra-estrutura das pesquisas, a consolidação dos estilos de pensamento e a criação de políticas que coordenam as neurociências, demonstram que arranjos institucionais e a cultura política estão intrinsecamente ligados às dinâmicas da produção científica.

De acordo com a referida perspectiva sociológica, os aspectos sociopolíticos do presente capítulo são destacados para a reflexão dos próximos. Um deles trata-se do contexto da Big Science quando surgiram as ideias da criação de uma área do conhecimento de “engenharia biológica da mente” para a formação do campo neurocientífico. Tal época é caracterizada pelo financiamento governamental norte americano em áreas da C&T consideradas estratégicas, como por exemplo, a da física e a das ciências biomédicas, que se tornaram fundamentais para a segurança nacional e para o crescimento econômico em longo prazo (DENNIS, 2004). Desde meados do século XX, os projetos de larga escala para a ciência caracterizaram a atuação dos diferentes governos dos EUA. Nesse contexto, a ciência

108 Quadro 3, C28. 109 “Projeto governamental em neurociências da Palestina”. Página do Neurosciences Palestinian Initiative. Quadro 3, C29. Acessado em: 26/09/2016. 82 torna-se “grande” por diferentes motivos, como: o aumento dos gastos federais em pesquisa para determinadas áreas estratégicas, do trabalho coletivo e hierarquizado entre cientistas e institutos, a quantidade de pesquisadores, dentre outros aspectos, que modifica profundamente a forma e a dinâmica da ciência (GALISON & HEVLY, 1992).

A coordenação de um projeto de pesquisa dessa magnitude implica em criar objetivos em comum entre os atores sociais envolvidos em sua produção, como áreas do governo, setores da indústria, institutos de pesquisa, tecnologias e o próprio experimento científico. Se de certa forma, o cientista trabalhando em seu laboratório perde a autonomia daquilo que produz, por outro lado, a mudança na escala de produção científica requer o alinhamento de seu experimento com elementos mais amplos da sociedade (idem, 1992). As fronteiras entre a ciência e a sociedade se dissipam dessa forma. E a produção científica pode ser direcionada de acordo com os propósitos dos atores envolvidos, pois os projetos de larga escala não sobrevivem sem as esferas não científicas da sociedade. A ciência torna-se assim uma entidade sociológica, econômica e política em si. E viabilizar a agenda de pesquisa de determinadas áreas da C&T como governável é uma questão política central para as sociedades avançadas industrializadas a partir de meados do século XX.

No levantamento histórico, foi possível verificar que não necessariamente, logo na formação do campo neurocientífico nos EUA, a área tornou-se prioritária para a agenda política do Estado, como o caso da física para o desenvolvimento de armas nucleares. No entanto, algumas características da estruturação do campo neurocientífico se relacionam diretamente com o contexto em questão.

Uma delas, é a localidade das pesquisas do cérebro em áreas do conhecimento distintas, sejam aquelas ligadas à medicina, ou mesmo as que, aparentemente, nada tinham em comum como a física, ou a matemática. A criação de uma infra-estrutura para significar uma área do conhecimento como “neurociência” permitiu mais do que a sua estruturação através de departamentos, jornais, sociedades e institutos, mas a produção de uma cultura propriamente neurocientífica. Essa configuração estrutural permitiu aos cientistas compartilharem a ciência sobre o cérebro que produziam em um “espaço” em comum e é reflexo de um contexto em que diferentes áreas do conhecimento passam a atuar de forma interdisciplinar.

Tal característica na formação da comunidade neurocientífica, historicamente refere-se à inspiração que Francis Schmitt teve com relação à interação de diferentes áreas do conhecimento que promoveram novos achados na genética e na formação da Biologia 83

Molecular. As neurociências foram imaginadas pelo biofísico, principalmente, por causa desse arranjo social do campo científico, que seria fundamental para uma nova dinâmica na produção do conhecimento sobre o cérebro.

Segundo Rose e Abi-Rached (2013), dois aspectos são relevantes para a análise da formação da infra-estrutura que permitiu a significação da comunidade neurocientífica: a criação de um espaço e uma temporalidade. Ou seja, um local no qual fosse possível praticar o novo campo das pesquisas do cérebro e o momento a partir do qual diferentes áreas do conhecimento se identificariam com um campo do conhecimento em comum, a partir do estilo de pensamento oriundo da Biologia Molecular.

No entanto, se Rose e Abi Rached (idem, 2013) selecionaram a história norte americana das Neurociências como elemento possível de análise do qual emerge algo particular para as pesquisas do cérebro, ou uma infra-estrutura que significou e unificou diferentes áreas do conhecimento que pesquisavam um órgão do corpo humano em comum, sugiro que tal “surgimento” é integrado à “paisagem material, moral e social” de uma sociedade local (JASANOFF & KIM, 2015). Ou seja, nesse percurso histórico é possível identificar um passado, o contexto de Big Science e as características destacadas da Biologia Molecular, que são signos de uma possível história das neurociências. Dela, emerge uma figura mítica que foi fundamental na promoção de uma área da ciência (a saber, Francis Schmitt) e também na trajetória de uma comunidade neurocientífica.

Outro aspecto relevante do capítulo, trata-se da formação da comunidade neurocientífica norte americana que se situa em um momento da história da PCT daquele país de quando as agendas de pesquisa tornam-se uma questão essencial para a identidade nacional (DENNIS, 2004). Em uma primeira formulação do conceito de imaginário sociotécnico, no contexto de investigações dos projetos de energia nuclear dos EUA e Coréia do Sul, Jasanoff e Kim (2009) destacam que formas coletivas de vida e de ordem social estão implicadas na concepção e na realização de projetos nacionais de C&T. Freqüentemente, são projetos que recorrem a símbolos nacionais para compor tal imaginário. Assim, o contexto sociopolítico em questão permite analisar o passado e prever as “políticas para essas populações devidamente imaginadas” (SCHWARCZ, L. In: ANDERSON, [1983], 2008; p. 15), no caso aqui a neurocientífica norte americana.

Nos documentos acessados para apurar tal trajetória histórica, diferentes projetos de larga-escala norte americano são citados freqüentemente, principalmente, o PGH. O próprio documento da política oficial do Estado, o Brain Initiative, cita que o projeto das 84 pesquisas neurocientíficas trata-se de um “Grande Desafio”, um “Projeto Americano”, assim como o foi o caso da expedição Apollo e também do PGH110. Dessa forma, os avanços da Biologia Molecular estiveram não só diretamente implicados nos achados das pesquisas sobre o cérebro (ou o estilo de pensamento neuromolecular e da neuroplasticidade, que permitiu investigar o cérebro em seu nível molecular), conforme aponta Steven Rose (2005), e na estruturação da comunidade neurocientífica, mas é um símbolo das próprias conquistas na área de biotecnologia dos EUA e a referência principal na formatação dos objetivos do projeto de larga escala neurocientífico.

Interpreto que citar tais projetos de “sucesso” da política norte americana em C&T, são referências que subsidiam o imaginário sociotécnico (JASANOFF & KIM, 2009; 2015) das neurociências e abrem perspectivas das “novas conquistas” porvir. Para muitos casos de grandes projetos nacionais de C&T, a formulação das agendas de pesquisa implica não só as características locais de uma sociedade, mas como modificá-la, como atingir determinados resultados através da produção do conhecimento, ou como co-produzir a ciência e a sociedade (JASANOFF, 2004). Assim, afirmo que a constante referência do PGH na formação do campo das Neurociências e a centralidade da governança de uma agenda neurocientífica para o Estado norte americano se situam em uma intersecção de duas possíveis co-produções que desestabilizam a sociedade e a própria ciência: a cognitiva e a política (JASANOFF, 2005).

Do primeiro aspecto desestabilizador, o cognitivo, ou a ciência construída enquanto sociedade, interpreto que “mapear a circuitaria do cérebro humano” reflete um objetivo socialmente construído emulado dos resultados científicos do PGH. A perspectiva construtivista auxilia analisar que tal objetivo da agenda de pesquisa do Brain busca promover uma dinâmica de pesquisas semelhante ao do Projeto em genômica, que a partir do fim da década de 1980, funcionou como um sistema experimental (RHEINBERG, 1992 apud. RABINOW, 1999). Para Rheinberg, o processo da descoberta científica envolve o que denomina de tríade experimental: técnica-conceito-sistema.

Nesta perspectiva, os achados da ciência não resultam de uma progressão unilinear das técnicas aos conceitos e então aos sistemas experimentais, ou dos conceitos às técnicas e daí os sistemas. É possível que dois elementos da tríade estejam relacionados em um desenvolvimento científico. Ou três deles. Ou seja, o que Rabinow (1999) sugere ao citar Rheinberg é que as descobertas científicas possuem lógicas que surgem num nexo de relações

110 Quadro 3, C24. 85 que variam. E a variabilidade entre conceitos e sistemas experimentais trata-se da forma como as pesquisas são praticadas e reconceitualizadas dependendo do contexto em que são produzidas.

No documento Brain Initiative, os objetivos cognitivos de “mapear a circuitaria do cérebro” (NIH, 2014), através da visualização do cérebro em tempo real, em seu nível molecular, produzindo dados e possíveis artefatos para melhor registrar sua atividade, são objetivos amplos de pesquisa que demandam tempo, mas que estabelecem uma dinâmica para o experimento científico independente como nesse processo a técnica, o conceito ou o sistema, se relacionam na produção de novos achados. Tal dinâmica para as pesquisas neurocientíficas, estipuladas na agenda oficial norte americana é de fundamental importância para potencializar a produção de diferentes produtos de pesquisa.

Avançando um pouco mais sobre o imaginário sóciotecnico intrínseco aos objetivos do Brain, por mais que seja útil e adequado analisar a dinâmica da produção neurocientífica a partir do conceito de sistemas experimentais, outro sentido do aspecto cognitivo presente na agenda norte americana se relaciona com a cultura política em C&T na qual o projeto foi criado. Contíguo à esta ideia, Paul Rabinow (1999) afirma que não é possível dissociar o experimento científico em si do “local” no qual está inserido. O que é técnico e científico refere-se a um evento complexo, heterogêneo e contingente, pois também é institucional, discursivo e cultural, e aponta para um passado e a emergência de novas práticas e atores (Idem, 1999; 187).

O que busco chamar a atenção sobre os aspectos culturais em tal agenda é amplamente ilustrado em dois trabalhos de Stephen Hilgartner (1995; 2013). Em sua pesquisa etnográfica de mais de dez anos com os diferentes atores que construíram o regime de governança do PGH nos EUA, o sociólogo demonstra que no início do Projeto seus líderes argumentavam que o mapeamento do seqüenciamento do genoma humano transformaria completamente a biologia, as biotecnologias e a medicina. Tratava-se, na visão dos pesquisadores de uma mudança de paradigma em curso na biologia molecular, que passaria a tratar dos problemas da genética não mais de maneira experimental, mas como uma ciência teórica (idem, 1995; 302).

Tecnologias computacionais seriam de fundamental importância nesse deslocamento, pois permitiriam que muitos dados fossem alocados em um mesmo repositório tecnológico, ou uma base de dados, para identificar padrões, comparar estruturas e traçar mecanismos da evolução biológica dentre espécies. Novas questões científicas surgiriam a 86 partir do compartilhamento de dados e permitiriam responder a grande questão para a genética, da época, de como um grupo de genes (e seus produtos protéicos) funcionariam como agrupamentos complexos. Na interpretação de Rajan (2005), a produção da genômica na época resultou de uma articulação da ciência informática com a experimental da biologia molecular e, em certa extensão, pode se afirmar que foi tecnologicamente direcionada.

No entanto, Hilgartner (1995) aponta que no final da década de 1980, nem todos os biólogos compartilhavam a mesma visão positiva sobre o futuro do projeto. Muitos deles se preocupavam com a alocação de recursos para a ciência; se valeria a pena o custo para seqüenciar o genoma inteiro; como treinar jovens cientistas; como seriam as recompensas científicas; qual papel desempenhado no projeto dos “pequenos” laboratórios em relação aos “grandes”; sobre a colaboração internacional entre laboratórios e pesquisadores; na burocratização da pesquisa, dentre outros aspectos. Ou seja, em tal contexto, havia diferentes opiniões sobre questões específicas das pesquisas em genômica que colocava institutos, cientistas, tecnologias e modelos de pesquisa em competição para definir como o projeto deveria ser delineado.

Para que fosse possível a construção de um sistema sóciotecnico em torno do problema do “mapeamento do genoma humano”, diferentes institutos de pesquisa ao redor do mundo adotaram um emergente artefato tecnológico, o sequence-tagged-site (STS), como o meio para definir um objetivo comum de pesquisa para diferentes atores sociais. Tal artefato tratava-se de uma definição genérica para o possível mapeamento que com o tempo se tornou rotina para a comunidade em genômica. O STS implicava em detectar os pequenos trechos de combinação das bases cromossômicas do DNA. Cada trecho é diferente do outro. Assim, o STS permitiria criar pontos de referência de cada cromossomo específico e revelar a distância entre um e outro. Ou seja, o artefato em questão, permitiria localizar todas as seqüências genômicas e torná-las reconhecíveis através da criação de pontos de referência, em uma visualização espacial que demonstraria a relação de cada um desses pontos (idem, 1995; 304).

Assim que tal conceito de mapeamento passou a ser adotada nas pesquisas da comunidade da biologia molecular mundial envolvida com o PGH, os pesquisadores passaram a utilizar diferentes tecnologias em locais específicos do genoma e produziram diferentes tipos de mapas. Cada um deles com específicas informações e pontos de referência do genoma humano. Com a imensa produção de dados, surgiu o problema de como criar uma rede (de pesquisadores, técnicas, organizações, laboratórios, base de dados, materiais biológicos, fundos de financiamento, apoio político, etc.) que pudesse operar em “alto 87 rendimento” produzindo o mapeamento e o seqüenciamento do genoma com poucos erros técnicos (idem, 1995). Ou seja, o problema era de dimensão política, o de coordenação das pesquisas, que pudesse manter estável uma ampla rede sociotécnica em torno do mapeamento.

Por se tratar de um projeto de pesquisa que também envolvia a coordenação da comunidade mundial em genômica, certos arranjos sociais foram necessários para o desenvolvimento do STS. Programas de pesquisa em genômica, com prazos estipulados e fundos de financiamento específicos foram estabelecidos pelo NIH e pelo DOE; através da Comunidade Européia; dos institutos de pesquisa no Japão; e uma sociedade científica internacional, Human Genome Organization (HUGO); que alinharam os diferentes tipos de laboratórios (os mais tradicionais, os “pequenos” e os “grandes”) em torno do desenvolvimento do artefato e da produção do “mapeamento” (HILGARTNER, 2013). Ou seja, além dos aspectos propriamente cognitivos, o STS forneceu uma “linguagem em comum” que pôde agrupar não só diferentes tipos de dados, assim como laboratórios que estavam fisicamente e temporariamente dispersos em uma base de dados em comum coordenada por diferentes instituições (HILGARTNER, 1995; 308).

Do aspecto cognitivo do conceito de co-produção, o STS pode ser interpretado pelo que Star e Griesemer (1989) conceituaram como “objetos de fronteira”. Em tal perspectiva os artefatos sociotécnicos manifestam entendimentos compartilhados entre diferentes atores sociais (no caso aqui apontado da genômica, os “pequenos” e “grandes” laboratórios, dos EUA, Japão, Comunidade Européia, as tecnologias, as sociedades científicas, entre outros) em ações coletivas e que unem diferentes mundos sociais. São artefatos que possuem plasticidade suficiente para se adaptar às necessidades locais, assim como robustos para manter uma identidade em comum (idem, 1989). Tais objetos são “tanto âncoras quanto pontes, devido circularem por diferentes mundos, interagindo entre diferentes categorias de sujeitos, possibilitando certas ações ao mesmo tempo que impossibilitam outras” (FUJIMURA, 1992 apud. ACERO, 2011; p. 28).

O artefato tecnológico em questão, não foi somente uma biotecnologia, mas era também sociotécnica, projetada para agir na comunidade em genômica e no DNA (HILGARTNER, 1995; 309). Os pontos de referência para a pesquisa do genoma foram construídos, portanto, para alcançarem estabilidade, mobilidade e a combinação de dados dentre uma série de atores sociais envolvidos com o Projeto, ou serem o que Latour ([1997], 2000) conceitua como centros de cálculo. O STS permitiu dar maior controle nos resultados 88 de uma rede de laboratórios dispersos e integrar uma série de entidades conectadas ao universo da genômica.

Conforme Hilgartner (2013) a constituição do regime de governança PGH foi um processo negociado, no qual emerge uma nova categoria de “ciência” (a de “larga escala”) e a maquinaria sociotécnica para dinamizar as pesquisas em genômica. Em tal regime, constituído nos anos iniciais do Projeto, é possível analisar uma agenda de pesquisa que alinhou uma série de atores sociais (como os agentes – instituições, pesquisadores, os formuladores da política -, os espaços – laboratórios dispersos em diferentes países e de escala de produção diferente -, as tecnologias – STS e base de dados) e promoveu uma visão “oficial” de quais agentes foram dotados com quais direitos, privilégios e deveres; poderes e obrigações; imunidades e inaptidão; assim que se associaram aos diferentes agentes da maquinaria sociotécnica para controlar o espaço e as coisas na produção científica (idem; p. 397).

Assim, interpreto que o objetivo cognitivo de “mapear a circuitaria do cérebro” (NIH, 2014) do Brain Initiative, implica em uma dinâmica de produção científica que se inspira no PGH. Especificamente, tal objetivo pretende estabelecer um regime de governança “oficial” do campo de ações dos diferentes atores sociais envolvidos com o projeto neurocientífico de larga escala governamental em torno de um objetivo em comum. A idéia de “mapeamento”, portanto, visa operar como um objeto de fronteira e como um centro de cálculo que agrega diferentes atores em uma dinâmica particular e “oficial” na produção do conhecimento. O caráter formal do projeto, que é resultado de um amplo processo negociado entre governo, cientistas, laboratórios e tecnologias, ao selecionar o conceito de “mapear a circuitaria do cérebro humano” orienta a dinâmica da produção neurocientífica enquanto sociedade através de um conceito que permita aglutinar institutos, laboratórios e cientistas envolvidos com a agenda neurocientífica.

A “visualização do cérebro em tempo real”, “em seu nível molecular”, “produzindo dados e possíveis artefatos para melhor registrar sua atividade”, são objetivos amplos de pesquisa que estão conectados à idéia de “mapeamento do cérebro”, assim como o foi com o artefato STS. “Mapear” o órgão em questão, portanto, implica na construção de uma possível infra-estrutura de pesquisas, com suas tecnologias e base de dados que atuará como centros de cálculo, para mobilizar uma ampla rede sociotécnica neurocientífica.

Ou seja, os sentidos cognitivos presentes na formulação da agenda de pesquisa do Brain tem como principal referência o PGH e reforça a idéia de imaginário sociotécnico que utilizo para interpretá-los, pois estão intrinsecamente ligados à dinâmica e o regime de 89 governança da produção do conhecimento que ocorrera na genômica. Um projeto considerado de “sucesso” de uma nação, a norte americana, e que visa reproduzir as modificações que ocorreram na produção científica em uma ampla área das ciências da vida.

O outro aspecto desestabilizador da co-produção (JASANOFF, 2004) presente no Brain, o político, e ainda referente ao PGH, trata-se da construção da sociedade pela ciência. Mais especificamente da criação de uma dinâmica da economia norte americana. Em uma segunda formulação do conceito de imaginário sociotécnico, Jasanoff & Kim (2015) apontam que no mundo moderno a ciência e tecnologia estão implicadas em percepções coletivamente mantidas, institucionalmente estabilizadas e publicamente representadas em formas do futuro desejável. E no caso da criação da agenda de pesquisas do cérebro, trata-se de fortalecer a pesquisa em uma área da biociência como um dos principais “motores da inovação americana e do crescimento econômico”111, o que coloca a C&T como vetores fundamentais da transformação econômica (RAJAN, 2005) e, segundo Jasanoff (2005), é uma característica dos projetos de biotecnologia dos EUA a ideologia particular do progresso tecnocientífico. Para Hilgartner (2007) as ciências da vida tornam-se um típico caso em tal perspectiva na qual são criadas políticas para a dinamização de atividades que envolvem a bioeconomia.

Nos documentos acessados para apurar a trajetória histórica do Brain Initiative, a formulação do projeto e sua justificativa, tanto feita por parte dos formuladores de política, assim como pelos cientistas, estiveram amplamente amparados no “sucesso” econômico que foi o PGH. Por exemplo, no próprio discurso presidencial no dia da divulgação do Brain, o então presidente Barack Obama relembra o passado com o projeto em genômica em que “Cada dólar que investimos para mapear o genoma humano retornou U$S 140 para a nossa economia”112.

Um aspecto fundamental da criação do Projeto Genoma, na segunda metade do século XX, trata-se da expansão das técnicas vinculadas à biologia molecular e os modelos biológicos que permitiram não só a codificação da vida pelo DNA, como também a intervenção do corpo em escala microscópica. A mudança de paradigma dentro das ciências biológicas e sua influência no campo médico ocorrem em paralelo a um contexto de conexão entre os laboratórios científicos e empresas do setor da saúde (ROSE, 2010).

111 Quadro 3, C16. 112 Quadro 3, C16. 90

Um exemplo desse contexto, da importância das Ciências da Vida para a pujança econômica norte americana, é o trabalho de Paul Rabinow (1996; 1999). O antropólogo em sua pesquisa etnográfica da invenção da técnica Reação em Cadeia da Polimerase (RCP) investigou o ambiente e os atores que envolveram a construção do artefato. Rabinow (idem, 1996) retratou como as empresas de biotecnologia, no final da década de 1980, reconfiguraram as fronteiras entre indústria e a ciência através do estudo e uso do artefato sociotécnico.

A RCP foi uma técnica que ampliou a capacidade de não só identificar o material genético (assim como o foi com o STS), mas principalmente manipulá-lo. Ao facilitar a identificação de segmentos precisos do DNA, tal artefato permitiu sua reprodução em milhares de cópias em um curto período de tempo. A clonagem, por exemplo, era uma técnica que se utilizava do material genético de um organismo e permitiu a cópia de segmentos precisos do DNA. Tornou abundante o que antes era escasso. No entanto, sua limitação era a dependência do uso dos organismos vivos para a reprodução. Com o RCP, tal sujeição experimental não era mais possível e permitiu a reprodução de material genético em quantidade ilimitada através de experimentos laboratoriais (idem, 1996).

Especificamente, tal técnica implica em separar, através de aquecimento, as fitas da dupla hélice da molécula de DNA. Sintetizados, cada pedaço pequeno, denominados de prime, é conectado a uma seqüência-alvo complementar de DNA em uma das extremidades das fitas. As polimerases (composta de enzimas – RNA e DNA polimerase - que catalisam a reação de polimerização dos ácidos nucléicos a partir de seus monômeros) começam em cada primer e copiam a seqüência da fita alvo. Em um período curto de tempo, réplicas exatas são reproduzidas. As fitas originais e as cópias são separadas em ciclos subseqüentes. Os primers são reconectados às novas seqüências de fitas e novos processos de polimerase são iniciados. Ao final de vários ciclos, a amostra está enriquecida com pequenos pedaços de DNA que têm a mesma seqüência alvo só que agora amplificada (RABINOW, 1999: 187).

O que é importante ressaltar é que tal técnica foi elaborada por um cientista, Karry Mullis (1944-) que na época estava empregado pela empresa de biotecnologia, a Cetus Coporation, e que em 1987, após uma briga judicial113, se tornou a dona dos direitos da patente da RCP. Em dezembro de 1991, uma empresa multinacional da área farmacêutica comprou a patente da técnica pelo valor de trezentos milhões de dólares e levou ao fim da

113 Para mais ver: RABINOW, Paul. Making PCR: a story of biotechnology. The University of Chicago Press, Chicago. 1996. 91 empresa Cetus. Por sua vez, os primers, artefato produzido pelo RCP, permitiram desenvolver uma série de produtos, como por exemplo, os testes diagnósticos que foram importantes para o desenvolvimento da medicina personalizada114(idem, 1996).

Outro exemplo das transformações da genômica e a biologia molecular junto à economia norte americana é o de Kaushik Sunder Rajan (2003; 2005). Em seu estudo de caso sobre a era “pós-genômica”115 (idem; 2003), o antropólogo aponta que muitas empresas se associaram em consórcio com institutos públicos e privados de pesquisa para a criação de fármacos ao formarem um “domínio público” - que se tratava da base de dados em que os diferentes atores sociais envolvidos com o Projeto acessavam e depositavam informação sobre o conhecimento produzido em genética. Seja para a criação de patentes, ou mesmo para a elaboração de novos produtos farmacêuticos, a circulação do DNA se dava, portanto, de maneira informatizada e permitia aos atores do setor privado o acesso a tal conhecimento, com o intuito de desenvolverem fármacos dentre outros produtos sob a retórica da “inovação”.

Em outras palavras, para Rajan (2003; 2005) a genômica pode ser compreendida e analisada como uma série de eventos históricos, tecnologias, discursos e instituições que ladeiam o seqüenciamento do genoma e sua informatização com o objetivo de criação de mercados e de produtos. Para análise da consequência dessas relações em torno da construção do conhecimento, Paul Rabinow (1999) utiliza do conceito de “biossociabilidade” para descrever as relações sociais que se organizam e se coordenam através de identidades biológicas compartilhadas e que permite o fluxo de informações entre atores com finalidades diferentes, como empresas e institutos públicos. Segundo Rajan (2003), o estudo da genômica pode oferecer um quadro do capitalismo contemporâneo, pois a informação genética torna-se a “matéria-prima” em sua relação com o mercado. A circulação do conhecimento científico, neste caso, é circulação de mercadoria. E dessa forma, uma das principais conseqüências do PGH foi produzir um regime de conhecimento na qual as biotecnologias tornaram-se fundamentais para a economia (RAJAN, 2005).

114 Segundo Rajan (2005) medicina personalizada é um de prática médica que é ajustada ao perfil genético de um indivíduo. 115 Rajan (2003) sugere que a era “pós genômica” é caracterizada por aspectos da época do PGH, como a participação de empresas na produção do conhecimento e produtos relacionados ao genoma. Após o fim do Projeto, as indústrias da área tiveram maior participação na produção do conhecimento em biologia molecular para desenvolver métodos diagnósticos e fármacos. 92

Nikolas Rose (2007) argumenta que um dos aspectos das economias da vitalidade é que são fortemente marcadas pela transformação, por diferentes atores da sociedade envolvidos com o mercado, do conhecimento biomédico em biocapital. Dessa forma, os achados biocientíficos, ao se relacionarem com o mercado, são decompostos em uma série de objetos discretos, que podem ser isolados, delimitados, armazenados, acumulados, mobilizados e trocados, no tempo e no espaço, de acordo com contextos específicos e entre diferentes atores de acordo com objetivos específicos. Nesse processo, os avanços da pesquisa biomédica produzem propriedade intelectual valiosa e que direciona uma nova e altamente lucrativa bioeconomia.

Diante desse contexto sociopolítico, interpreto que os diferentes atores sociais que formularam a agenda da pesquisa neurocientífica, ao justificarem a sua importância através dos impactos que o PGH teve para economia, tratam de direcionar as pesquisas sobre o cérebro através do seu potencial em promover novas dinâmicas econômicas através do novo projeto da área das biociências. Segundo Rajan (2003), as ciências da vida constroem e articulam novos modos históricos de capitalismo. E os projetos governamentais de larga escala em neurociências das sociedades industriais avançadas são modulares para suas economias.

Desse modo, “mapear a circuitaria do cérebro” é um objetivo de pesquisa que se trata de estabelecer uma dinâmica da produção científica que permite produzir achados com o potencial de gerar patentes, diagnósticos, fármacos, dentre outros. Ao interpretá-los através das dinâmicas econômicas promovidas pelo PGH e da era “pós genômica” (RAJAN, 2005), os achados neurocientíficos podem produzir valor na relação com os atores sociais envolvidos com a lógica de mercado.

A partir das referências conceituais de co-produção e imaginário sociotécnico interpreto a agenda neurocientífica norte americana como uma tecnociência, pois estabelece um regime de governança em que o conhecimento científico torna-se uma ferramenta de um discurso que prevê futuros e antecipa cenários (HILGARTNER, 2007). Tais características são comuns aos projetos de larga escala de biotecnologia na área da saúde, que não raro são amparados por discursos promovidos por cientistas, financiadores de pesquisas e os atores do governo que prometem “revoluções” com melhoras significativas do processo de descoberta da cura de determinadas doenças, nos cuidados da saúde e no desenvolvimento econômico (NIGHTINGALE & MARTIN, 2004; HOPKINS, et. al. 2007). 93

As promessas no discurso do “modelo revolucionário” de mudança técnica (idem, 2004; 2007) que acompanham projetos de biotecnologia geram expectativas sobre as mudanças radicais que a pesquisa científica e tecnológica pode promover na área da saúde e na indústria. No entanto, tais promessas são tratadas por Nightingale e Martin (2004) como um “mito”, pois geralmente projetos de larga escala de pesquisa, como foi o caso do PGH não necessariamente trazem impactos rápidos para os objetivos estipulados. Ou melhor, para os citados autores (idem, 2004) os discursos promovidos pelos atores envolvidos com projetos de biotecnologia enfatizam o já refutado modelo linear da inovação: investir em ciência básica com prazos estipulados não necessariamente leva à mudança técnica, gera novos processos de invenção, patentes, ou mesmo resultado em atividades de pesquisa aplicada e no final a introdução de novos produtos e processos comercializáveis. Nos casos das pesquisas que envolvem a área da Saúde, pesquisa básica não implica necessariamente em novas tecnologias médicas, nem mesmo são traduzidas em práticas clínicas.

Interpretar as promessas que sustentam os objetivos do Brain Initiative, fundamentadas na idéia do modelo revolucionário, implica em apontar que não necessariamente o “mapeamento da circuitaria do cérebro”, ou a pesquisa básica com prazo estipulado, produzirá as co-produções almejadas, notadamente, uma “Nova Economia” (NIGHTINGALE & MARTIN, 2004). Destacar tal incerteza traz implicações públicas de como governar a C&T e que ordem sociotécnica é possível promover.

Por fim, destaco a tentativa dos atores sociais envolvidos com o Brain em criar instrumentos para a coordenação e colaboração de pesquisa “transnacional” com países que possuem projetos “significantes” para as neurociências116. Esse esforço de criar um regime de governança para a área liderada pela agenda norte americana busca repetir o que ocorreu, também, com o PGH, que segundo Rajan (2005) resultou em uma política científica caracterizada pelo ímpeto dos EUA em liderá-la. Esse contexto revela não só o quanto o projeto Brain se tornou uma agenda de C&T fundamental da identidade nacional de um Estado, mas também as assimetrias entre as agendas neurocientíficas dentre outros países do mundo e que nem todas seguem os mesmos desenvolvimentos e propósitos.

Dessa forma, a análise histórica dos contextos sociopolíticos da formação da comunidade e do projeto neurocientífico norte americano revela que a C&T estão profundamente implicadas em relações sociais que são mobilizadas por diferentes atores sociais que decidem como, quando e de que maneira irão operar (WINNER, 1980). A

116 Quadro 3, C25. 94 perspectiva sociológica do presente capítulo buscou demonstrar que a história dos artefatos e as redes sociotécnicas são constituídas de escolhas e preferências que demarcam suas características, os comportamentos que incitam, excluem ou que busca regular (CALLON, 1987; MARQUES, et. al., 2006).

A idéia de co-produção, que utilizei para tal análise, permite interpretar que a agenda neurocientífica norte americana promove um regime de governança em que a produção do conhecimento sobre o cérebro está intrinsecamente conectada com a paisagem moral, social e material de uma sociedade (JASANOFF & KIM, 2015). O conhecimento científico e sua corporificação material são produtos de forças sociais e constituem formas de vida social. A sociedade se constrói através da ciência e a produção do conhecimento só existe com os apropriados suportes sociais (JASANOFF, 2004). Tais políticas que buscam dinamizar a sociedade através da tecnociência são performativas, pois conseguem alinhar e construir uma maquinaria técnica e institucional que representem as atividades estipuladas em uma determinada agenda para a ciência (JASANOFF & KIM, 2015).

95

3 – O imaginário da formação da comunidade neurocientífica brasileira

Mais interessante, do nosso ponto de vista, é a utilização de elementos antigos na elaboração de novas tradições inventadas para fins bastante originais. Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer sociedade, um amplo repertório destes elementos; e sempre há uma linguagem elaborada composta de práticas e comunicações simbólicas. Às vezes, as novas tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas; outras vezes, podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos pelos depósitos bem supridos do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais (...) (HOBSBAWN & RANGER, 1984; p. 14). O meu ponto de partida do presente capítulo é que a comunidade neurocientífica brasileira é um produto cultural específico. Para compreender qual o regime de governança da C&T que emerge de tal análise, faz-se necessário considerar as origens históricas dessa comunidade e seus significados. Para tanto, ressalto que escrever uma história sobre as neurociências no Brasil, um país com muitos estados, institutos e universidades nacionais e estaduais, através de uma área do conhecimento que envolve tantas outras, poderia incorrer em uma série de esquecimentos e erros.

No entanto, a partir do trabalho de campo da presente tese, seja nos eventos freqüentados, ou nas entrevistas e conversas informais com diferentes neurocientistas, e nos documentos que acessei para coletar dados sobre a neurociência brasileira, a referência constante a um passado e à “tradição” de pesquisas da área percorreu toda a pesquisa empírica. Ou melhor, para os atores sociais com quem pude contatar foi recorrente citar os cientistas considerados “pioneiros” e os institutos “tradicionais” da área. Aspectos que interpreto como signos de um esforço em criar uma história da comunidade neurocientífica através do exercício da imaginação, que seleciona e oblitera em torno de uma memória. Anderson ([1983], 2008) afirma que a prática da imaginação na construção da história não tem “data de nascimento” em um registro oficial, nem mesmo uma data de “morte”. Não existem causas naturais nesse processo. Mas é uma construção recorrente da memória através de símbolos que significam tal historicidade.

Assim, inspirado no caráter social construtivista da C&T, o presente capítulo trata-se da narrativa sobre a formação da comunidade neurocientífica no Brasil. O argumento principal do capítulo versa que, de acordo com os dados levantados na pesquisa de campo, criar a diferença da comunidade neurocientífica nacional se dá através da elaboração imaginativa de um passado no qual é possível encontrar certa naturalidade e ancestralidade, 96 uma tarefa usual de seleção consciente dos fatos históricos que alicerçam o que é as neurociências no Brasil e uma política coletiva de invenção da comunidade.

Nesse processo, interpreto que o imaginário sociotécnico em questão trata-se de um exercício de seleção de signos que são modulares para consolidar a legitimidade da comunidade neurocientífica brasileira. As neurociências então são imaginadas enquanto “comunidade” em uma estrutura de parentesco, que divide as linhagens geracionais e estabelece o que é a “tradição” das pesquisas da área através de uma árvore genealógica cujas origens estão em universidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, regiões que me atentarei mais especificamente no presente capítulo. A sustentação deste imaginário se dá na referência constante encontrada nos dados levantados durante o trabalho de campo dos neurocientistas fundadores e as tradições “inventadas” (HOBSBAWN & RANGER, 1984) por eles que percorrem as gerações sucessivas.

O presente capítulo se debruça nessa narrativa que emerge do trabalho de campo, que interpreto como uma invenção imaginativa das origens da comunidade neurocientífica brasileira enquanto um processo político. Tal relato dos acontecimentos é caracterizado “(...) pela noção de simultaneidade, que inaugura uma idéia de tempo vazio e homogêneo. Abolem- se divisões cronológicas claras, e em seu lugar se estabelecem regimes de temporalidade que jogam para a esfera do mito o passado e os momentos de fundação” (SCHWARCZ, L. In: ANDERSON, [1983], 2008; p. 12).

3.1 – Por que uma história da neurociência brasileira?

No Instituto do Cérebro (ICe) da UFRN, o neurocientista Sidarta Ribeiro117 me recebeu para uma entrevista. Ao final dela perguntei ao pesquisador quais cientistas julgava interessante entrevistar de acordo com o escopo que ele havia entendido de minha pesquisa. Ele pegou meu bloco de notas e anotou o nome de uma série deles. Dentre os citados percebi que em sua maioria eram neurocientistas de universidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Indaguei à Ribeiro se minha compreensão estava correta: “Sim, Rodrigo, nessas duas regiões é onde se concentra a tradição das pesquisas em neurociências no Brasil”, disse o neurocientista118. Dos 21 pesquisadores que ele anotou, 8 eram do Rio de Janeiro e 6 de São Paulo. Os outros 7 eram da UFRGS, Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e da UFPA. Após uma hora e meia de conversa, tentei uma última pergunta: “Mas como, quando e

117 Retomo a trajetória do pesquisador e do Instituto que lidera no quarto capítulo. 118 Quadro 2, B1. 97 onde começa essa tradição, ou essa história da neurociência brasileira?”. Ribeiro já estava atrasado para outras tarefas, logo conversar sobre uma “história das neurociências no Brasil” demandaria tempo, outra entrevista. Ou, outras entrevistas, agora com diferentes pesquisadores apontados pelo entrevistado119.

A importância dada para uma “tradição” e “história” das neurociências no Brasil, não se restringiu somente à narrativa de Ribeiro. Em 2015, fui ao 9th International Brain Research Organization (IBRO) World Congress on Neuroscience120, no Centro de Convenções Sulamérica, no Rio de Janeiro. O evento se tratava da vinda da “federação global das organizações neurocientíficas”121, ou sociedade neurocientífica de maior representação mundial que congrega as demais em âmbito regional, nacional e internacional, pela primeira vez na América Latina122. A Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC) – associação científica que reúne os pesquisadores “envolvidos com as diferentes facetas do estudo do Sistema Nervoso” no Brasil123 - filiada à IBRO, foi responsável pela organização do evento internacional e em seu comitê científico regional, muitos dos neurocientistas citados por Ribeiro compuseram a direção. Por exemplo, Ivan Izquierdo (UFRGS) foi o “Presidente de Honra”; Roberto Lent (UFRJ) o “Presidente do Comitê Organizador Local”, acompanhado de Cecilia Hedin-Pereira (UFRJ), Luiz Eugênio de Mello (USP) e Stevens Rehen (UFRJ). Dessa forma, o evento de abrangência internacional e nacional, parecia uma oportunidade para encontrar os neurocientistas citados por Ribeiro em um mesmo local.

Nos cinco dias em que o 9th IBRO foi realizado, agendei os dias e horários das palestras em que encontraria aqueles pesquisadores da lista inicial. Dentre eles, aparecia o nome de Suzana Herculano-Houzel, professora associada da Vanderbilt University, dos EUA. A “neurocientista nascida no Brasil”124, “carioca (...) treinada [em neurociências] nos Estados Unidos, França e Alemanha”125 e especialista em neuroanatomia comparada126, ficou

119 Quadro 2, B1. 120 Elaboro de forma breve a história da entidade no segundo capítulo e seus objetivos na nota de rodapé 49. 121 Quadro 3, C9. T. A. 122 Quadro 3, C9. 123 “‘O que faz a SBNeC?’”. Página da Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento. Quadro 3, C30. Acessado em 20/1/2017. 124 “Quem é a neurocientista de plantão?”. Site da neurocientista Suzana Herculano-Houzel. Quadro 3, C31. Acessado em 20/1/2017. 125 “Coluna da Suzana Herculano-Houzel no jornal Folha de São Paulo”. Página do jornal Folha de São Paulo. Quadro 3, C32. Acessado em 20/1/2017. 126 Este é um ramo da pesquisa neurocientífica que inclui métodos de contagem de neurônios em cérebros humanos e em outros animais, e a relação entre área, espessura do córtex cerebral e o número de dobras na superfície do órgão. 98 bastante conhecida na última década não só pelo resultado de suas pesquisas, como também pelo seu “trabalho de divulgação científica”127. A pesquisadora durante algum tempo teve um quadro sobre diferentes temas das neurociências em um programa dominical de um grande veículo da comunicação televisiva128, escreveu uma série de livros sobre diferentes temas que são objetos de estudo da pesquisa neurocientífica e até hoje escreve quinzenalmente em um dos jornais impressos de maior circulação no Brasil129. Também, ela ficou conhecida por ter sido a primeira brasileira a falar na conferência mundial TED Global130.

Na palestra realizada por Herculano-Houzel em um dos auditórios do Centro de Convenções Sulamérica, os espaços reservados para a platéia estavam lotados e muitos interessados em sua apresentação sentaram-se ao chão ou ficaram de pé. Julguei tamanha audiência como resultado de seu trabalho de divulgação científica. Ao final da palestra, após uma série de autógrafos e fotos com o público131, consegui me aproximar da neurocientista e me apresentei. Falei para ela que era sociólogo de formação, mestre e doutorando em política científica e tecnológica, e que estava interessado em conhecer mais sobre as neurociências no Brasil, os grupos e temas de pesquisa mais relevantes da área, além da possibilidade de entrevistá-la. Mal terminara de me apresentar e ela foi logo perguntando: “Você por um acaso conhece o site ‘neurotree’?”. “Não”, respondi132.

“O site reúne as informações de pesquisadores da área de neurociências de diferentes países e se você colocar o nome de um neurocientista norte americano verá que aparece uma árvore genealógica com diferentes pesquisadores, institutos, com várias ramificações. Para os neurocientistas brasileiros é diferente. Se você colocar o nome lá de

127 “Biografia da neurocientista Suzana Herculano-Houzel no Wikipedia”. Página do Wikipedia. Quadro 3, C33. Acessado em 20/1/2017. 128 Quadro 3, C31. 129 Quadro 3, C32. 130 “A mulher que encolheu o cérebro humano”. Reportagem sobre a neurocientista Suzana Herculano-Houzel no site do jornal O Globo. Quadro 3, C34. Acessado em: 20/1/2017. TED (acrônimo de Technology, Entertainment, Design) é uma série de conferências virtuais e presenciais de no máximo 18 minutos, realizada na Europa, Ásia e Américas por uma fundação norte americana para divulgar “ideias que merecem ser divulgadas”. As conferências envolvem diferentes temas da ciência, da economia, da cultura e questões globais, que são proferidas por “pensadores líderes mundiais”. Disponível em: http://www.ted.com/. Acessado em: 20/1/2017. 131 Enquanto aguardava na fila para conversar com a neurocientista, observei uma jovem que teve a sua vez atendida. Emocionada, ela pediu autógrafo em um dos livros publicados por Herculano-Houzel e uma foto: “Olá, Suzana! Estou muito feliz de poder conversar contigo. Faço graduação em Biologia e me inspiro em você para a minha carreira acadêmica! Já estou fazendo Iniciação Científica”, disse a jovem em prantos (Quadro 1, A4). Essa situação não foi incomum durante o IBRO. Nas palestras de outros pesquisadores com trabalho reconhecido entre os pares e de ampla divulgação, como as de Steven Rehen, Ivan Izquierdo e Roberto Lent, filas se avolumaram para fotos e autógrafos (Quadro 2, B4). Interpreto tal situação como resultado do trabalho de divulgação científica que vem sendo feito pelos neurocientistas brasileiros nas últimas duas décadas. 132 Quadro 2, B4. 99 qualquer um aparecerão poucos pesquisadores que geralmente estão ‘sozinhos’, não possuem tantas ‘ligações’ como acontece nos Estados Unidos”, disse a pesquisadora133.

No site134 citado por Herculano-Houzel, há um espaço para busca em que o internauta pode colocar o nome de um neurocientista qual seja desde que este tenha sido cadastrado. Em uma página subseqüente aparecem as ligações genealógicas que o pesquisador em questão possui com outros e a universidade de cada uma dessas conexões. Acima do nome pesquisado, aparecem os orientadores e pesquisadores mais antigos que treinaram o neurocientista, ou que o site classifica como “pais”135. Abaixo estão aqueles neurocientistas que orientou e/ou ensinou a pesquisar, os “filhos”. As informações sobre cada uma dessas árvores são adicionadas por usuários que se cadastram no site. Fiz a busca sugerida pela neurocientista na página de entrada (Figura 5) para tentar entender o que ela disse. Nos termos da busca coloquei pesquisadores “pioneiros” nas neurociências de ambos os países. De fato, no caso de um pesquisador norte americano (Figura 6), é possível analisar que se trata de uma árvore genealógica com bastantes ramificações. Já na de um pesquisador brasileiro (Figura 7), essa árvore possui menos informações.

Figura 5: Página de entrada do site www.neurotree.org. Acessado em 10/7/2015.

Fonte: Elaborado pelo autor (2015)

133 Quadro 2, B4. 134 “Site da árvore genealógica neurocientífica mundial”. Página do Neurotree.org. Quadro 3, C35. Acessado em: 10/7/2015. 135 Quadro 3, C35. 100

Figura 6: Pesquisa no site www.neurotree.org. da árvore genealógica do pesquisador “Torsten Wiesel”, que se localiza na linha vertical no centro da imagem. O pesquisador é sueco, mas conforme apontei no segundo capítulo, foi um dos fundadores de um dos primeiros institutos neurocientíficos dos EUA. Na foto aparecem três ramificações abaixo do neurocientista, mas se deslocar a página para os lados aparecem outras trinta. Acessado em 10/7/2015.

Fonte: Elaborado pelo autor (2015)

Figura 7: Pesquisa no site: www.neurotree.org. da árvore genealógica do pesquisador “Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda” que se localiza na linha vertical no centro da imagem. É possível verificar quatro ramificações abaixo de sua posição na árvore. No próximo subitem do capítulo abordo a importância de suas pesquisas para a Neurociência brasileira. Acessado em 10/7/2015.

Fonte: Elaborado pelo autor (2015) 101

Esse primeiro contato com a neurocientista foi algo que me causou estranheza, pois minha idéia inicial era me apresentar a ela, conseguir trocar contatos, buscar agendar alguma entrevista para então perguntar sobre a história da comunidade neurocientífica brasileira. Mas mal havíamos iniciado a conversa e ela citava uma “árvore genealógica” de forma a comparar a história das neurociências em distintos países, especificamente, a norte americana com a brasileira.

Outra fonte de dados sobre a história da comunidade neurocientífica brasileira que encontrei quando fui ao IBRO, é o próprio site da SBNeC, sociedade científica responsável pela organização do evento. Nele é possível encontrar uma série de informações referentes às atividades científicas que promove. Dentre elas, uma honraria “idealizada por Stevens K. Rehen quando presidente” da Sociedade, em 2006, que é outorgada “[àqueles] pesquisadores seniores” ou “a um neurocientista brasileiro de inquestionável importância, em reconhecimento ao conjunto de suas contribuições às neurociências em nosso país”136, denominada de “Medalha Neurociências Brasil”.

Fiz a busca no site neurotree.org dos nove premiados pela honraria da SBNeC. No site é possível constatar que os premiados são pesquisadores que fazem parte de uma “geração” pioneira de neurocientistas brasileiros137. Interpreto que essa geração premiada é composta por pesquisadores que são precursores da comunidade neurocientífica no Brasil e se divide da seguinte forma: cientistas que tiveram treinamento em alguma área das neurociências com pesquisadores em instituições estrangeiras, mas que inauguraram no Brasil as agendas de pesquisas da área, (Figura 8); cientistas que são vinculados a um pesquisador fundador de Departamentos e institutos universitários no Rio de Janeiro e São Paulo, em alguma área relacionada com as pesquisas do cérebro, mas que iniciaram agendas de pesquisas em neurociências no Brasil (Figura 9).

136 “Página da Medalha Neurociências Brasil”. Página da SBNeC. Quadro 3, C36. Acessado em: 13/7/2015. 137 Quadro 3, C36. 102

Figura 8: Pesquisa no site: www.neurotree.org. da árvore genealógica da pesquisadora “Dora Fix Ventura” agraciada com a “Medalha Neurociências Brasil” em 2010 e que se localiza na linha vertical no centro da imagem. É possível verificar que os “pais” da pesquisadora na árvore genealógica são pesquisadores estrangeiros, da Columbia University, dos EUA, e abaixo seus “filhos”, já formados pela USP, no Brasil. Acessado em 20/7/2015.

Fonte: Elaborado pelo autor (2015) 103

Figura 9: Pesquisa no site: www.neurotree.org. da árvore genealógica do pesquisador “Luiz Carlos Lima Silveira” agraciado com a “Medalha Neurociências Brasil” em 2014 e que se localiza na linha vertical no centro da imagem. É possível verificar que um de seus “pais” na árvore genealógica é “Eduardo Oswaldo-Cruz”, um dos fundadores da neurociência no Rio de Janeiro. Acessado em 20/7/2015.

Fonte: Elaborado pelo autor (2015)

Tais dados - a fala de Sidarta Ribeiro apontando uma “tradição” de pesquisa neurocientífica brasileira; a de Suzana Herculano-Houzel citando um site que congrega informações em uma “árvore genealógica” das neurociências de diferentes países do mundo; e o site da SBNeC, sociedade considerada de maior representação da área das neurociências no Brasil, com honrarias para os pesquisadores pioneiros da área – interpreto como elementos que significam a importância que a elaboração de uma história da área possui para os neurocientistas com os quais tive contato e que esta narrativa está em plena construção. Dessa forma, busquei entrevistar esses pesquisadores, que não só foram citados por Ribeiro, mas principalmente aqueles que ganharam a “Medalha Neurociências Brasil” além de acessar diferentes fontes de informação na mídia para caracterizar como vem sendo imaginado o percurso histórico da comunidade neurocientífica brasileira.

A relevância da “história das neurociências” para os pesquisadores da área não se trata de uma exclusividade de meu trabalho empírico. Marcos Castro Carvalho (2010) em sua dissertação de Mestrado fez uma análise dos dilemas presentes na produção do conhecimento sobre as emoções e o comportamento humano, a partir de uma etnografia realizada no que o 104 autor denomina de “Laboratório de Neurobiologia das Emoções (LNE)” de uma universidade do Rio de Janeiro. Durante a pesquisa de campo, Carvalho (idem, 2010) percebeu a importância que os informantes de seu campo davam para uma “genealogia” de pesquisadores, o que o autor denominou de “parentesco neurocientífico”.

Tal percepção é contígua àquela que tive em meu trabalho de campo sobre a genealogia das neurociências. No entanto, a pesquisa de Carvalho (2010) foi feita a partir da experiência que o autor teve com pesquisadores que considera da “quarta geração”, como mestrandos, doutorandos do LNE, enquanto em minha pesquisa foi possível realizá-la com alguns dos pesquisadores líderes de pesquisa em seus institutos e pioneiros na formação da comunidade neurocientífica brasileira. Dessa forma, conservo a idéia de uma “árvore genealógica”, presente em meus dados de campo e nos de Carvalho (idem), e a divisão por regiões brasileiras (no seu caso, por se tratar de um instituto do Rio de Janeiro, o autor levantou algumas características da formação da comunidade neurocientífica daquela região). Mas proponho de forma diferente as linhagens de parentescos neurocientíficos, ampliando não só a história carioca, como também a paulista.

Diferente da história da formação da comunidade neurocientífica norte americana, onde a criação de uma infra-estrutura permitiu a produção interdisciplinar de pesquisa sobre o cérebro, baseado nos avanços da biologia molecular, a história da neurociência no Brasil trata- se de um evento em termos temporais até mais antigo que aquele dos EUA, mas cuja narrativa está em construção, é recente e dispersa, pois, segundo Ribeiro “(...) a história das neurociências não existe em um livro-texto. Muitas vezes abordamos alguns aspectos dela em nossas aulas na pós-graduação, quando falamos de um conceito, de um tema específico das pesquisas do cérebro. Às vezes é possível encontrar no livro publicado de um pesquisador ou outro, de forma breve. Mas não existe em nenhum livro que essa história esteja contada. Talvez algo no site da SBNeC”138.

Assim, para compor a narrativa da história a seguir, utilizei das entrevistas realizadas com os pesquisadores, as trajetórias daqueles galardoados com a “Medalha Neurociências Brasil”, os seus parentescos no site neurotree, um texto disponível no site da SBNeC escrito por um dos pioneiros da neurociência paulista, César Timo-Iaria (1925- 2005),139 e as biografias de alguns desses pesquisadores também presente na mesma página da

138 Fonte: Quadro 2, B1. 139 “História das Neurociências no Brasil por César Timo-Iaria”. Página da SBNeC. Quadro 3, C37. Acessado em: 10/1/2016. 105 internet140. Nos dados encontrados sobre o parentesco da comunidade neurocientífica do Rio de Janeiro, apresento até a terceira geração de pesquisadores que, atualmente, são professores titulares e líderes de pesquisa na UFRJ, principalmente. Já em São Paulo, apresento tal história sobre a primeira e segunda geração de neurocientistas. Ambas as linhas geracionais paulista, deram início aos estudos sobre o sistema nervoso no estado e alguns desses neurocientistas ainda atuam como líderes de pesquisas em suas respectivas universidades.

O motivo do avanço na história até estas linhas geracionais se dá pelo fato de ser relativo aos dados encontrados em campo. Não se trata de omitir ou esquecer aqueles pesquisadores que também de alguma forma fazem parte da “comunidade neurocientífica brasileira”. Mas de apresentar a forma como a narrativa do imaginário sociotécnico das árvores genealógicas vem sendo construída pelos atores sociais das neurociências e pelos dados que compuseram a pesquisa empírica. Para isso utilizo da narrativa político-biográfica (ANDERSON, [1983] 2008) presente nos dados coletados, com vistas a elencar a biografia dos considerados “neurocientistas” pioneiros de forma a apurar suas agendas de pesquisas, suas redes de parentesco e os motivos pelos quais são modulares na edificação dessa área da ciência no Brasil.

3.2 – Pioneiros cariocas

A narrativa da origem das neurociências no Brasil perpassa algumas das primeiras instituições científicas e símbolos da ciência brasileira. Também, remonta a própria história da fisiologia do sistema nervoso no país que se mistura àquela da “(...) Fisiologia, a disciplina da Biologia que estuda o funcionamento dos seres vivos, segundo a acertada, mas pouco conhecida e ainda menos acatada definição de Jean Fernel, enunciada no século XVI”141.

O contexto em que se inicia tal narrativa é a época da transição do Brasil Colonial (1500-1822) para o Primeiro Reinado (1822-1831)142. De acordo com Roberto Lent (UFRJ),“(...) tinha um pesquisador do Museu Nacional, João Lacerda de Almeida, talvez, não me recordo direito, que era um neurofarmacologista que pesquisava venenos, a toxicologia dos venenos de cobra, que foi um marco do século XIX, aqui no Rio de Janeiro”143.

140 “Biografia de alguns neurocientistas brasileiros na SBNeC”. Página da SBNeC. Quadro 3, C38. Acessado em: 10/1/2016. 141 Quadro 3, C37. 142 Sigo o recorte dos períodos históricos citados em: FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed; 1. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. 143 Fonte: Quadro 1; A4. 106

Por muito pesquisei o nome do citado cientista. O pesquisador em questão é João Baptista de Lacerda (1846-1915), formado em Medicina na Faculdade do Rio de Janeiro144, que desempenhou funções na “Secção de Antropologia, Zoologia e Paleontologia”, do Museu Nacional, onde também foi diretor e subdiretor do Laboratório de Fisiologia Experimental145. Também presidiu a Academia Nacional de Medicina. Baptista de Lacerda tinha “Louis Pasteur como modelo e era seguidor do método experimental”, sendo um dos primeiros “bioantropologistas brasileiros”146. Foi um cientista pioneiro nos estudos dos venenos ofídios, da febre amarela e da microbiologia no Brasil147.

No entanto, segundo Vergara (2005) essa parte de sua produção científica “parece ter caído no ostracismo”, pois atualmente é conhecido nas ciências sociais pelo seu trabalho sobre o “branqueamento” da população brasileira. Na época, Baptista de Lacerda realizou trabalhos de antropologia estudando crânios de índios sambaquis e botocudos (idem, 2005), e também participou do “Congresso Universal das Raças”, realizado em Londres, em 1911, representando o Brasil (SCHWARCZ, 2011).

Talvez, Roberto Lent (UFRJ) na entrevista cita Baptista de Lacerda como um marco da neurociência brasileira devido às suas pesquisas inspiradas na frenologia148. Mas,

144Aqui é necessário fazer uma pequena ressalva para melhor compreender o processo de institucionalização da pesquisa científica no Rio de Janeiro. Por vezes, é citada a “Faculdade de Medicina”, que é comum aos diferentes pesquisadores citados nessa trajetória dos pioneiros cariocas da neurociência brasileira. A Faculdade trata-se daquela criada em 1808, após a transferência da Corte Portuguesa (1808-1821) nomeada então de “Escola de Anatomia, Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro”. Em 1832, ganha o nome de “Faculdade de Medicina”; após uma série de transferências de sua localização, até se estabelecer na Praia Vermelha em 1918; dois anos depois, é incorporada à recém criada “Universidade do Rio de Janeiro”; em 1937, o nome é mudado para “Universidade do Brasil”; e finalmente em 1965, ganha o nome de Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Disponível em: https://ufrj.br/historia. Acessado em: 23/1/2016. 145 “Biografia de João Baptista de Lacerda”. Página da Academia Nacional de Medicina. Quadro 3, C39. Acessado em: 13/1/2016. 146 Quadro 3, C39. 147 Quadro 3, C39. 148 O termo foi criado inspirado nas pesquisas de Franz Gall (1758-1828). O médico e anatomista alemão investigava as funções cerebrais específicas geradas por regiões altamente especializadas e segregadas do sistema nervoso central. Sua perspectiva foi fundamental para atribuir que as funções da mente estavam associadas a locais específicos do cérebro, ou o que Nicolelis (2011) chama de perspectiva “localizacionista”. Gall visualizou no cérebro uma coleção de 27 “órgãos” responsáveis pela faculdade moral ou mental. Segundo Sacks (2010:88), essa divisão foi importante para o que hoje é denominada de funções perceptuais, das sensações de cores e sons, das faculdades cognitivas, da memória, da aptidão mecânica ou da fala e linguagem. Também, de acordo com a perspectiva localizacionista era possível conhecer atributos da personalidade de quaisquer indivíduos simplesmente ao palpar os contornos do couro cabeludo criados pela diferente configuração óssea do crânio, método denominado por Gall de “cranioscopia”. A análise das protuberâncias ósseas revelaria o crescimento de áreas específicas do córtex e refletiria em atributos peculiares como a afetuosidade, orgulho, arrogância, a tendência para praticar crimes, etc. De acordo com essa perspectiva do localizacionismo, o comportamento humano seria reflexo da anatomia de uma área cortical específica. Segundo Sacks (2010), um dos alunos de Gall, Johan Spurzheim (1776-1832), popularizou a idéia de que a forma do crânio estaria associada à personalidade e as faculdades morais dos indivíduos sob o termo “frenologia”, considerada com o tempo uma pseudociência. A idéia recebeu grande atenção de Cesare Lombroso (1835-1909) que criou teorias 107 interpreto como mais provável a menção de tal pesquisador devido ao seu pioneirismo na microbiologia investigando o mecanismo de ação dos venenos de cobras, pois o entrevistado considera Baptista um dos primeiros “neurofarmacologistas” do país. Considerando este tipo de estudo, o humano, quando picado por certos tipos desse animal, tem a ação pré-sináptica do cérebro afetada pelas neurotoxinas do veneno, que atua nas terminações nervosas inibindo a ação da acetilcolina, responsável pelo bloqueio neuromuscular. Como conseqüência, é comum nos pacientes picados por cobra apresentarem paralisias motoras149. Um dos feitos científicos de Baptista de Lacerda foi descobrir “a ação do permanganato de potássio como antídoto de venenos de ofídios (...) [que] salvou a vida de milhares de pessoas antes da descoberta de soros antiofídicos”150.

Assim, interpreto na narrativa de Lent a citação de Baptista de Lacerda como mais provável devido a sua pesquisa experimental com modelos animais para compreender os mecanismos de ação dos venenos de cobra como neurotoxina nos humanos, pois, como é possível verificar no desenvolvimento do capítulo, o estilo de pensamento dos modelos animais151 trata-se de um elemento fundamental para a formação das diferentes gerações de neurocientistas cariocas.

Outro aspecto a ser interpretado, Baptista de Lacerda é citado apenas na entrevista com o Dr. Roberto Lent. Durante nossa conversa, questionei ao neurocientista quando começa a história das neurociências no Brasil, pois na época da entrevista havia intensa midiatização do IINN-ELS, de Natal (RN), e me parecia que aquele instituto era uma pequena parte de uma história mais ampla. Nesse momento o entrevistado responde de forma crítica que quando surgiu o Instituto nordestino, “eles colocaram na página do site deles assim: ‘Aqui começa a Neurociência brasileira’”152 e daí então cita o pioneirismo do neurofarmacologista do século XIX.

sobre a fisiognomia criminosa e levou adiante os conceitos frenológicos. Com o tempo, o trabalho de Spurzheim e Lombroso caiu em descrédito, mas a idéia de Gall acerca da localização da mente no cérebro teve impacto duradouro para as ciências do sistema nervoso. Tais ideias foram extremamente influentes no Brasil, durante o século XIX. Muitos pesquisadores das ciências naturais investigaram o crânio de índios e negros brasileiros como uma forma de tentar explicar o “atraso” do país em questões sociais, políticas e culturais. Como foi o caso do próprio José Baptista de Lacerda, Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), dentre outros. 149 “Informação sobre a ação dos venenos de ofídios”. Página da Secretaria de Saúde do Paraná. Quadro 3, C40. Acessado em 13/1/2016. 150 Quadro 3, C39. 151 Destaquei em itálico, pois o estilo de pensamento dos modelos animas é um elemento analítico importante na trajetória das primeiras gerações de neurocientistas brasileiros. Mais adiante no capítulo retomo a idéia de forma a desenvolvê-la com os dados historiográficos. 152 Quadro 1; A4. 108

A fala de Lent revela não só o cientista precursor, mas principalmente a reivindicação na antecedência carioca no processo de formação da comunidade neurocientífica do país, que se mistura simbolicamente com um dos primeiros institutos científicos brasileiros, o “Museu Nacional”, onde Baptista de Lacerda foi diretor. A sua fundação em 1818, por Dom João VI (1767-1826), com o nome de “Museu Real”, foi uma iniciativa em estimular a produção do conhecimento científico no Brasil e era uma resposta às necessidades sociais imediatas do país colonial. O surgimento da instituição visava, sobretudo, aparelhar a colônia para novas funções como centro do Império português, providenciando a formação de cirurgiões, engenheiros e indivíduos ligados à defesa militar (MOREL, 1979). Na história da formação da ciência brasileira, portanto, o “Museu” surgiu em um momento em que a educação era voltada para cursos e escolas técnico-profissionais, não consistia propriamente um estímulo para a pesquisa científica (idem, 1979).

É dessa forma, que interpreto a citação de João Baptista de Lacerda como um cientista símbolo do imaginário neurocientífico precursor nesses tipos de estudos. Em um primeiro momento por ser pioneiro nos estudos experimentais com animais, que por muito tempo foi o estilo de pensamento dominante da neurociência brasileira. Em um segundo momento, e principalmente, pela reivindicação de uma tradição carioca precursora dos estudos do sistema nervoso no Brasil.

A narrativa de Lent não se aproxima à forma como é explorado o surgimento da comunidade neurocientífica brasileira daquela apresentada no texto publicado no site da SBNeC, apesar de acrescentar elementos simbólicos adicionais à tal história. No texto escrito por um dos pioneiros da neurociência paulista, César Timo-Iaria, a história das neurociências:

(...) confunde-se com a história da própria Fisiologia. (...) Essa vinculação resulta do fascínio que o sistema nervoso sempre exerceu sobre cientistas e leigos, a ponto de que todos os fisiologistas do passado se hajam interessado pela neurofisiologia, ao menos em alguma etapa de sua vida profissional. (...) Outro motivo [da referida vinculação] é que toda e qualquer função do organismo animal, dos invertebrados à espécie vertebrada mais evoluída (por enquanto), o Homo sapiens, é gerada, regulada ou pelo menos modulada pelo sistema nervoso153.

153 Quadro 3, C37. 109

Dessa forma, para o autor do texto, é justamente a complexidade de aspectos do funcionamento do corpo humano relativos ao sistema nervoso que originou a necessidade de maior conexão entre diferentes áreas do conhecimento em torno do interdisciplinar nome “Neurociências”, sendo a raiz dessa aglutinação as investigações em Fisiologia.

O texto apesar de ser um dos primeiros esforços em elaborar uma história da área no Brasil, o próprio César Timo-Iaria trata o termo “Neurociência” como “dispensável”. Para o autor:

(...) em franca colisão com fortes sentimentos de delimitação de território e até mesmo de desconhecimento real do que sejam funções neurais, esse conceito de Neurociência deteriorou e continuaram praticamente as mesmas divisões irracionais, agrupadas agora em dois campos, Neurociência e Comportamento, artefato espúrio, como se os comportamentos fossem independentes do sistema nervoso, que revive o velho conceito da dualidade alma-matéria154. Apesar da hesitação com relação ao uso do termo, Timo-Iaria aponta a trajetória que julga ser pertinente a uma “história neurocientífica” no país. Ao fazê-la, sugere que “o estudo experimental e sistemático da Fisiologia começou, sem dúvida, com os irmãos Álvaro e Miguel Ozório de Almeida, no Rio de Janeiro, os quais também iniciara (principalmente Miguel Ozório) as pesquisas em neurofisiologia”155.

Álvaro Ozório de Almeida (1882-1952), doutorou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e é considerado pioneiro nos estudos da fisiologia e oxigenioterapia hiperbárica no país. Também, desenvolveu métodos de combate à oncilostomíase, lepra lepromatosa, febre amarela e sífilis156. Quando professor assistente de fisiologia e terapêutica da Faculdade de Medicina do Rio, em 1906, trabalhou no Instituto Pasteur, em Paris, onde realizou estágios em laboratórios de fisiologia. Ao retornar para o Brasil, tentou criar uma seção da área de sua especialidade no Instituto Oswaldo Cruz (IOC)157, mas não obteve

154 Quadro 3, C37. 155 Quadro 3, C37. 156 “Homenagem ao Prof. Dr. Álvaro Ozório de Almeida”. Página da OHB-Rio Medicina Hiperbárica Ltda. Acessado em 14/1/2016. 157 O Instituto foi criado em 1900, com o nome “Instituto Soroterápico”, na Fazenda de Manguinhos, no Rio de Janeiro para desenvolver pesquisas sobre a peste bubônica que na época assolava o país. Oswaldo Cruz (1872- 1917) acabara de chegar de seu estágio no Instituto Pasteur, na França, e foi designado como diretor técnico para o desenvolvimento de vacina e soro para a peste. Por uma série de restrições não foi possível desenvolver a vacina, mas o Instituto (que depois mudou para o nome de “Manguinhos”) tornou-se o primeiro centro de entomologia do Brasil e no desenvolvimento de pesquisas na área de Saúde. Com o tempo, muitos estudantes de medicina passaram a buscar o Instituto para desenvolverem pesquisas, estágio e orientação de teses, em diferentes áreas da microbiologia, o que resultou em ampla publicação em periódicos nacionais e internacionais. Em 1908, o governo reconhece a atuação do diretor na erradicação da peste e da febre amarela, e oficializa a denominação do “Instituto Oswaldo Cruz”. O Instituto é considerado pioneiro não só na difusão do conhecimento científico no Brasil, mas também na formação universitária moderna caracterizada pelo ensino, 110 sucesso. Foi diretor da “Inspetoria Geral de Higiene e Saúde Pública do Estado do Rio de Janeiro”, em 1911, mesmo ano em que é nomeado professor “extraordinário de fisiologia” na Faculdade em que concluiu doutoramento, mas não prosseguiu as atividades devido às condições de trabalho na instituição158

Mesmo com os cargos públicos aos quais fora designado, Álvaro Ozório de Almeida prosseguiu seus estudos em um laboratório no porão da residência herdada de seus pais, que era financiado pelos empresários Cândido Gafrée (1844-1919) e Eduardo Palassin Guinle (1842-1912)159. No local, Álvaro desenvolveu pesquisas em parceria com seu irmão Miguel Ozório de Almeida (1890-1953), que, por sua vez, iniciou seus estudos em Engenharia, mas com o tempo desenvolveu interesse pela Medicina e doutorou-se, também, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1911. Para Timo-Iaria, “(...) os dois irmãos montaram um autêntico Instituto de Fisiologia em uma casa, na qual inventaram a Fisiologia brasileira”160.

Miguel ocupou a livre-docência nas áreas de “Fisiologia”, “Higiene” e depois em “Física-biológica”, na mesma Faculdade nos anos posteriores. Em 1919, foi convidado para ser assistente na recém criada seção de fisiologia do IOC. Lá também foi diretor e chefe de serviço entre 1927 e 1941, e chefe de divisão entre 1942 e 1953161.

Nesse período, a atuação de Miguel é destacada, pois, nos documentos acessados para apurar sua trajetória são destacados seus desenvolvimento de pesquisas sobre neurofisiologia, além da sua trajetória marcada pela transição de um laboratório científico “amador” (fechado em 1932) para uma instituição científica, propriamente dita. Suas pesquisas tiveram como principal tema o estudo experimental do mecanismo da epilepsia e os

pesquisa e extensão. Para saber mais sobre a trajetória do cientista e do Instituto ver: http://www.ioc.fiocruz.br/pages/historia_right.htm; BRITO, Nara. (1995). Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira. [online]. Rio de Janeiro, Editora FIOCRUZ. 144 p. ISBN – 85-85676-09-4. Available from SciELO Books. 158 “Biografia Álvaro Ozório de Almeida – Fiocruz”. Página do Dicionário Histórico-Biográfico da Saúde no Brasil (1832-1930). Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Quadro 3, C42. Acessado em 15/1/2016. 159 A sociedade entre os empresários teve início em um comércio de tecidos no centro do Rio de Janeiro, em 1870. Com o tempo, expandiram seus negócios para os setores de estradas, ferrovias e imobiliário. Em 1888, receberam da Princesa Isabel (1846-1921) a concessão por 92 anos do Porto de Santos onde fundaram a “Companhia Docas de Santos” no auge da exportação do café. Também, os empresários fundaram um dos principais hospitais da cidade carioca na época, o “Hospital Gaffré e Guinle”. Para conhecer mais sobre a história da família “Guinle”, ver: BULCÃO, Clóvis. (2015). Os Guinle: história de uma dinastia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 256 p. 160 Quadro 3, C37. 161 “Biografia Miguel Ozório de Almeida – Fiocruz”. Página do Dicionário Histórico-Biográfico da Saúde no Brasil (1832-1930). Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Quadro 3, C43. Acessado em 14/1/2016. 111 processos de inibição e facilitação no sistema nervoso central e periférico, que foram realizados principalmente no IOC.

Outro aspecto relevante é que o “laboratório dos Ozórios”162, tornou-se com o tempo um local conhecido entre os pares e passou a reunir pesquisadores para consultas, pesquisas e estudos163. Dentre eles, destaca-se Paulo Enéas Galvão (1902-1978), que foi discípulo de Álvaro e tornou-se o segundo professor de Fisiologia (em 1941) da Escola Paulista de Medicina (EPM), criada em 1933164. Outro pesquisador de destaque, que também atuou no laboratório, foi Carlos Chagas Filho (1910-2000), que foi influenciado pelas pesquisas de Miguel Ozório e trabalhou com ele. Retomarei sua trajetória mais adiante na institucionalização das neurociências carioca.

O que pode se afirmar desse primeiro período é sua caracterização pela atuação dos irmãos Ozório e retrata uma época em que “inaugura-se a pesquisa mais profissionalizada no Brasil”165. Notadamente, a formação dos institutos é amplamente influenciada pelas trajetórias de diferentes pesquisadores que passaram pelo Instituto Pasteur, na França, e trazem consigo o conhecimento em microbiologia que estava em pleno avanço no país europeu. A atuação desses médicos nas recém criadas cadeiras de Fisiologia na Faculdade de Medicina e em cargos públicos na área da Saúde, no Rio de Janeiro, é marcada por esse tipo de conhecimento.

No entanto, a pesquisa científica experimental em neurofisiologia ainda estava em seu início, pois, como afirma Lent, os irmãos Ozório “publicaram em revistas incipientes”166 na época. Mesmo assim, o laboratório que não estava localizado em uma instituição propriamente científica; a atuação dos irmãos iniciando as pesquisas experimentais em Neurofisiologia; e a iniciação científica de jovens pesquisadores; considero os primeiros elementos simbólicos que significam o contexto de origem da comunidade neurocientífica brasileira.

Ainda referente a este período dos primórdios da pesquisa neurocientífica brasileira, a institucionalização da agenda de pesquisas na área passa pela atuação de dois pesquisadores. Um deles é Aristides Pacheco Leão (1914-1993). Nascido no Rio de Janeiro, o cientista formou-se médico na Faculdade de Medicina, em São Paulo, em 1932, e no final da

162 Quadro 3, C42. 163 Quadro 3, C43. 164 “História do Departamento de Fisiologia da Escola Paulista de Medicina”. Página da Escola Paulista de Medicina - Unifesp. Quadro 3, C44. Acessado em 14/1/2016. 165 Quadro 1; A4. 166 Quadro 1; A4. 112 década de 1930, se mudou para os Estados Unidos onde se tornou mestre e doutor em Fisiologia pela Universidade de Harvard, já em 1943. A tese “Spreading depression of eletrical activity in the cerebral cortex” resultou em um artigo publicado em 1944, no “Journal of Neruophysiology” (VELOSO & GITIRANA, 2001), pelo qual Aristides ficou reconhecido internacionalmente pela “descoberta de um novo fenômeno, uma misteriosa propriedade do tecido cerebral [que] tornar-se-ia um clássico da literatura especializada”167.

A tese de doutorado é resultado da pesquisa proposta pelos seus orientadores nos EUA, Arturo Rosenblueth (1900-1970) e Hallowell Davies (1896-1992), em utilizar o equipamento de EEG para “determinar a propagação de uma descarga elétrica durante epilepsia induzida através do córtex de coelhos anestesiados”168. No uso do aparelho, ao invés de encontrar uma alta atividade dos eletrodos do EEG (hipótese inicial da experimentação) houve uma redução na amplitude do registro da atividade cerebral dos animais, “que se iniciava no local estimulado e era detectado por eletrodos colocados em linha reta e se espalhava lentamente, como uma onda, pela superfície cortical. Essa depressão propagada era reversível, voltando o traçado do EEG [ao] aspecto inicial após vinte e trinta minutos”169. O fenômeno analisado foi chamado por Aristides de “Depressão Alastrante”170, mas com o tempo passou a ser reconhecida como “Onda de Leão”171, e foi importante para melhor compreender e diagnosticar a epilepsia e a enxaqueca.

167 “Biografia de Aristides Pacheco Leão”. Página do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Canal Ciência. Quadro 3, C45. Acessado em: 21/1/2016. 168 Quadro 3, C45. 169 Quadro 3, C45. 170 A Depressão é uma onda de modificação da atividade elétrica das células que se espalha pelo córtex visual a uma velocidade constante e, no fim, a retina volta à sua coloração inicial. Nesse fenômeno, os neurônios ficam por alguns instantes incapazes de responder aos estímulos que recebem dos olhos. É considerado auto- regenerativo, pois é momentâneo. Essa dinâmica do cérebro é o que explica o que os pacientes com crises de enxaqueca reclamam de visão embaçada, sem nitidez, ou o que a literatura médica denomina da fase da “aura visual”. Depressão Alastrante. Canal do IBCCF-UFRJ. 1’34”. Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GBl29Y0tneM. Acessado em 22/1/2016. 171 “Homenagem ao centenário de Aristides Pacheco Leão”. Página da Academia Brasileira de Ciências. Quadro 3, C46. Acessado em 22/1/2016. 113

Figura 10: Aristides Azevedo Pacheco Leão, quando pesquisava na Universidade de Harvard. Ao fundo, o primeiro modelo de Eletroencefalograma (EEG).

Fonte: VELOSO, I. & GITIRANA, B. (2001). Arquivo fotográfico Aristides Azevedo Pacheco Leão. Hist. Cien. Saúde. Manguinhos – online. vol. 8, n. 2. Por sua vez, Carlos Chagas Filho formou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1931, e “manteve estreitos laços afetivos e profissionais com o Instituto Manguinhos” (AZEVEDO, et al.; 2012:704). Afetivo, pois foi onde seu pai, o cientista Carlos Chagas (1879-1934)172, construiu notoriedade científica e pública na instituição; e profissional, pois foi local no qual fez sua iniciação e formação científica. Desde o começo de sua trajetória profissional, Chagas Filho freqüentava o Instituto e por lá fez estágio clínico no Hospital Oswaldo Cruz. Na mesma época também fez parte de sua iniciação científica o laboratório dos irmãos Ozório (idem, 2012). Até 1934, Chagas Filho fez o Curso de Aplicação do IOC, quando foi efetivado pesquisador da Seção de Físico-Químca.

172 O cientista é considerado um dos símbolos do surgimento da ciência brasileira. Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, ficou reconhecido por ter descoberto a ação do protozoário Trypanossoma cruzi (o epíteto homenageia o seu colega Oswaldo Cruz), o agente infeccioso da “Doença de Chagas” e as particularidades biológicas das demais espécies do gênero Trypanossoma. Chagas atuou no Instituto Manguinhos contratado, em 1905, por Oswaldo Cruz, onde fez as referidas descobertas e foi o segundo diretor após a morte do colega, em 1917. Inaugurou o “Hospital Oswaldo Cruz” no ano seguinte e, em 1919, nomeado para atuar no Departamento Nacional de Saúde Pública, quando focou políticas higienistas de combate às epidemias que assolavam a sociedade brasileira. Foi, também, catedrático na área de “Medicina Tropical” da Faculdade de Medicina carioca até o fim de sua vida. Para mais ver: http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/carlos_chagas.html; http://super.abril.com.br/saude/carlos-chagas-historia-sem-fim/. Acessado em 23/1/2016. 114

Já em 1937, o pesquisador presta concurso de livre-docência para a cátedra de Física Biológica da Faculdade de Medicina e é aprovado. Como não era possível acumular cargos no serviço público federal, Chagas Filho afasta-se do IOC:

(...) por acreditar que o desenvolvimento da pesquisa científica dependia da participação de alunos, condição que a Faculdade, recém- incorporada pela Universidade do Brasil, oferecia. Assim, numa reviravolta em sua carreira científica, distanciou-se da medicina tropical e da saúde pública, que caracterizavam as práticas científicas de Manguinhos, para desenvolver um projeto próprio, a biofísica (AZEVEDO, et al.; 2012:704). Ao assumir a cátedra de Física Biológica, na então Universidade Brasil173, Chagas Filho conseguiu colocar em prática tanto a sua agenda de pesquisa em ciências básicas quanto o desenvolvimento da produção do conhecimento com as técnicas modernas de Biofísica, o que foi fundamental para a institucionalização da comunidade neurocientífica brasileira.

Pode se afirmar que três aspectos dessa agenda são relevantes. O primeiro é o retorno de Pacheco Leão para o Brasil, em 1946, quando foi nomeado técnico da cadeira de Física Biológica da Faculdade de Medicina174 e passou a produzir pesquisas sobre a Depressão Alastrante em colaboração com Hiss Martins Ferreira (1920-2009). Para César Timo-Iaria, a parceria foi fundamental na institucionalização das neurociências brasileira, pois a Depressão Alastrante tornou-se uma agenda de pesquisa propriamente brasileira175. Reproduzo uma longa citação da fala de Martins Ferreira sobre o retorno de Aristides Pacheco Leão para o Brasil, que contextualiza as condições de pesquisa na Faculdade na época:

Quando chegou dos Estados Unidos, Aristides foi para um pequeno espaço esconso, atrás do anfiteatro de fisiologia da Faculdade de Medicina da Praia Vermelha. Sua única ferramenta era um canivete de uma lâmina. Com bancada de mesas improvisadas, fios elétricos, varetas de vidros e outras sobras, [Aristides Pacheco Leão] construiu os primeiros eletrodos para captação da atividade elétrica do córtex de coelhos. Promessas de aquisição de eletroencefalógrafo, não bem definidas, levaram-no à procura de algum tipo de aparelho de medida elétrica na preciosa “sucata” existente no antigo laboratório de Física Biológica. Encontrou em perfeito estado de funcionamento um galvanômetro que, por ser de registro óptico e inscrição em película fotográfica, estava abandonado, tal o custo do filme utilizado. Com persistência, engenhosidade e pacientes leituras diretas a cada quinze segundos, em alguns meses funcionava, em seu laboratório, um sistema de detecção de variações lentas de voltagem no córtex

173 Sobre a trajetória das mudanças no nome da Universidade, ver nota de rodapé 150. 174 Quadro 3, C45. 175 Quadro 3, C37. 115

cerebral e, com essa aparelhagem improvisada, prosseguiu seu trabalho176. Além da descoberta da Depressão Alastrante ter dado notoriedade ao pesquisador brasileiro na literatura especializada internacional, já em 1947, Pacheco Leão publicava no próprio Journal of Neurophysilogy os resultados das pesquisas realizadas quando então no Instituto de Biofísica. Para Chagas Filho (2000), a vinda de Leão para o Laboratório recém criado, sedimentava uma linha de pesquisa sobre o sistema nervoso central no Instituto, além de “rapidamente organiz[ar] o laboratório, cercado de seus discípulos” e influenciar a “projeção internacional do Instituto de Biofísica como instituição de excelência” (idem, 2000: p. 102-103).

Na ocasião da entrega póstuma para Aristides Pacheco Leão do diploma de “Presidente Emérito” da Academia Brasileira de Ciências (ABC), em 1994, um reconhecido neurocientista tcheco, Jan Bures (1926-), que construiu sua carreira a partir da descoberta do pesquisador brasileiro e realizou estágios no Instituto de Biofísica com Leão, reconhece sua importância para as neurociências internacional ao afirmar que:

Nos anos seguintes [após a publicação da Depressão Alastrante], ele [Aristides Pacheco Leão] se tornou o chefe de uma escola invisível. A cidade do Rio de Janeiro tornou-se a Meca de pesquisadores dos Estados Unidos, França, Inglaterra Japão, Alemanha, Tchecoslováquia, Dinamarca e Rússia, (...) de diversas áreas que percebiam que a SD177 poderia ajudá-los em algum aspecto importante de suas próprias pesquisas. Seu exemplo mostra que descobertas importantes podem ser feitas por jovens talentosos e que vale a pena dar-lhes o crédito e o reconhecimento que merecem178. Por sua vez, um segundo aspecto da institucionalização da comunidade neurocientífica no país trata-se da elevação do status do “Laboratório de Física Biológica” para a “Cátedra em Física Biológica” no então Instituto de Biofísica, em um decreto-lei de 1945. Em sua autobiografia, Carlos Chagas Filho (2000) relata quando foi chamado pelo então ministro da Educação e Saúde, Raul Leitão da Cunha (1881-1947), para saber o que o governo poderia fazer para a Universidade. Além de responder sobre a necessidade de cátedras em tempo integral, Chagas Filho propôs que fossem criados institutos de ensino e pesquisa em várias disciplinas básicas, tais como Física, Química e Matemática.

176 Quadro 3, C37. 177 Iniciais em inglês da Depressão Alastrante, Spreading Depression. 178 Quadro 3, C45. 116

No fim da conversa, o ministro lhe pergunta: “E por você, o que devo fazer?”. O autor responde: “Criar o Instituto de Biofísica, que terá a função de implantar a pesquisa na Faculdade de Medicina e trazer para o nosso meio métodos físicos que despontaram nos centros maiores depois da Segunda Guerra Mundial, e o desenvolvimento dos métodos eletrônicos” (idem, 2000: p. 93)

Com essa mudança Carlos Chagas Filho, construiu uma agenda de pesquisa com um tema específico para aplicar “técnicas modernas da Biofísica”, em paralelo à formação de um novo modelo educacional, no qual passou a recrutar alunos da Faculdade de Medicina para a iniciação científica179. Sobre o tema de pesquisa, Timo-Iaria considera o biofísico “pioneiro no estudo dos mecanismos de transmissão química, usando como modelo a eletroplaca de peixes elétricos”180. O modelo animal, em questão, tratava-se de o “Poraquê” (Electrophorus electricus), uma espécie de peixe típica da Bacia amazônica, cujo significado do nome em tupi (“pura’ke” ou “puraké”) é “o que faz dormir”, ou “o que entorpece”181. Segundo o Dr. Roberto Lent, “a linha de pesquisa de Chagas era sobre a transmissão sináptica do peixe elétrico, que era o modelo de transmissão sináptica neuromuscular muito utilizado na época”182.

Figura 11: Peixe “Poraquê”.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Poraqu%C3%AA. Acessado em 30/1/2016.

179 “História do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho”. Página do IBBCF da UFRJ. Quadro 3, C47. Acessado em: 24/1/2016. 180 Quadro 3, C37. 181 ARAUJO, R. M.; FERREIRA, A. R.; REIS, A. C. F.; SILVA, J. P. Comentários Filológicos do Diário de Rio Branco, de Alexandre Rodrigues Ferreira: A Fauna Aquática do Rio Branco. Almanaque CiFeFil. 10 Julho de 2006. Disponível em: http://www.filologia.org.br/anais/anais%20iv/civ05_34-46.html. Acessado em 30/1/2016. 182 Quadro 1; A4. 117

A escolha do peixe-elétrico seguia o “problema de um tema pesquisa que reunisse um certo número de características e, principalmente, a de ser um modelo [animal] encontrado se possível somente no Brasil” (CHAGAS FILHO, 2000; p. 94). Assim, tal escolha seguia a idéia do pesquisador em que, por se tratar da década de 1940, “a pesquisa chamada ‘nacional’ deve[ria] tratar de um assunto característico do país, ainda que usando a melhor colaboração técnica e intelectual do estrangeiro” (idem, 2000; p. 94).

Na época, Chagas Filho relata que imaginou, dentre os “modelos abundantes” do país, o bicho preguiça e o vaga-lume como possíveis modelos. O primeiro foi rejeitado, pois já era utilizado em “laboratórios de projeção”, como o da Universidade de Princeton, nos EUA, e era de “difícil manutenção em cativeiro”. O vaga-lume, por sua vez, foi uma indicação de Fernando Costa (1886-1946), ministro da Agricultura de então, quando Chagas Filho teve a oportunidade de visitá-lo em seu gabinete.

O pesquisador reconheceu o “alto interesse de Fernando Costa pela exploração de riquezas brasileiras”, mas com a leitura de bibliografia especializada de estudos com o inseto, chegou à conclusão de que a escolha seria “(...) decepcionante, face ao que se estava fazendo em países mais apetrechados. Ainda mais que, na época, a importação do moderno equipamento produzido durante a guerra era de difícil acesso”. (idem, 2000; p. 94-95).

A idéia de investigar o sistema nervoso do Poraquê surgiu quando Chagas Filho soube de uma expedição ao Amazonas financiada por um milionário norte americano, através do Jardim Zoológico de Nova York, em que o bicho preguiça foi preterido pelo peixe elétrico. O motivo da escolha do animal para a pesquisa norte americana ocorreu, pois o financiador da expedição “(...) tinha sido informado de que, do órgão elétrico do poraquê, poder-se-iam tirar substâncias de ação contra a impotência sexual” (idem, 2000; p. 94).

Com tal informação em mente, o biofísico brasileiro realizou um estágio em Paris, no qual observou em seminários pesquisas relacionada à espécie de raia-elétrica chamada de “Torpedo” para compreender a fisiologia de aspectos eletrofisiológicos em animais. Na volta ao Brasil, Chagas Filho recebeu uma oferta do:

(...) empresário Joaquim [Rolla]183, que, na ante-sala do Cassino da Urca, de sua propriedade, mantinha um aquário repleto de poraquês, com a finalidade de mostrar ao público, muitas vezes embasbacado, a facilidade na produção de eletricidade por animais. Prometeu-me

183 No original, Chagas Filho escreve “Joaquim Rôla”. Corrijo, pois a grafia correta é “Joaquim Rolla” (1899- 1972). O empresário foi dono do Cassino da Urca do Rio de Janeiro. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Rolla. Acessado em 31/1/2016. 118

fornecer aqueles de que eu necessitava e, mais ainda, apresentou-me ao senhor Bernardo Maiman, que, ictiologista amador, trazia do vale amazônico peixes que serviam como atrações circenses. Com essa ajuda, via eu o caminho que desejava seguir. Electrophorus electricus – condutor de eletricidade (...)- era um espécimem biológico que me permitiria estudar, ao lado da transformação bioquímica em energia elétrica, aspectos interessantes da bioquímica, bioestrutura e biologia celular, em estudo comparativo com outros animais, principalmente aquáticos. A multiplicidade de possibilidades de linhas de pesquisas que o animal oferece traz, ainda, a oportunidade de uma investigação multidisciplinar, que é o caminho mais certo para o desenvolvimento científico, infelizmente perturbado, hoje, pela especialização linear (idem, 2000; p. 96). O terceiro aspecto fundamental desse período trata-se simbolismo científico que Chagas Filho herdara do pai184 e de sua própria atuação como cientista, que foram fundamentais para obter recursos para a institucionalização do Instituto de Biofísica. Chagas Filho (2000) pretendia na época fortalecer mais ainda a pesquisa básica e experimental em biofísica ao incluir na Universidade o Museu Nacional (incorporado em 1946) e o Instituto Oswaldo Cruz (que não obteve sucesso). Ainda, segundo o próprio site do Instituto de Biofísica:

Carlos Chagas Filho optou por estabelecer-se e implantar seu projeto na universidade contando principalmente com o fato inegável de que este era um terreno no qual poderia acionar seus recursos sociais e seu capital científico de forma mais eficaz. Alguns dos atores envolvidos na reformulação da estrutura universitária, e que ocupavam postos chave na alta burocracia estatal naquele momento, eram pessoas bastante próximas ao nosso personagem185. Sobre o contexto social da época, o Brasil vivia um momento de transição do Estado Novo (1937-1945) para a redemocratização, mudança política da qual o pesquisador nutria simpatia. Na época, não havia políticas específicas para o desenvolvimento científico no país. Assim, as compensações financeiras vinham tanto de bolsas concedidas pela Fundação Rockefeller e por Eduardo Guinle (1878-1941)186. A associação com a Fundação estrangeira tratava-se de uma forma de criar estágios para pesquisadores brasileiros em outros centros de pesquisa, como o Instituto Curie, em Paris, e também para trazer ao Instituto de

184 No livro autobiográfico, Chagas Filho ao citar as motivações de jovens cientistas buscarem o Instituto de Biofísica para o treinamento científico, afirma: “Creio que a atração do instituto nascia do fato de estar ele muito perto do centro da cidade, único campo em que podia competir com o Instituto Oswaldo Cruz. Creio, ainda, que o nome de meu pai exerceu influência nessa procura e, por fim, a minha relativa mocidade, talvez, o que me permitiu uma grande convivência com alunos pouco mais moços que eu”. (CHAGAS FILHO, 2000; p. 94-95). 185 Ibid. 186 Ibid. 119

Biofísica os cientistas especialistas em Biologia Molecular do Instituto Pasteur, da mesma capital francesa. O intercâmbio de pesquisadores foi não só uma forma de conseguir recursos financeiros para o Instituto carioca, como também, para superar o “(...) atraso nos conhecimentos básicos” da “(...) chamada biologia moderna” (CHAGAS FILHO, 2000; p. 97-98). Interpreto a criação de tais condições de pesquisa como fruto de seu capital científico e simbólico.

Durante esse tempo, o Instituto de Biofísica foi crescendo, principalmente no setor de pessoal. Muito dos jovens que foram procurá-lo resolveram permanecer em seus laboratórios. Verifiquei, então, como tinha sido profícua a transformação do laboratório em instituto, pois, para vários deles [jovens pesquisadores], pude encontrar situações que, embora não fossem ideais, eram equiparáveis às bolsas do Conselho Nacional de Pesquisas187, sem dúvida um dos alicerces da edificação do instituto e um dos elementos-chave do desenvolvimento da ciência brasileira, a partir de meados do século XX. (CHAGAS FILHO, 2000; p. 99). Ainda da criação das condições pesquisa do Instituto, Chagas Filho relata que tinha certa “liberdade administrativa” com a sua situação institucional na qual não tinha o mesmo “peso burocrático” que outras atividades relacionadas ao Estado. O cientista considerava que tinha “independência para dirigir-me às fontes doadoras de recursos, tais como o Congresso Nacional, as fundações estrangeiras, ministérios e personalidades de visão” (idem, 2000; p. 99-100).

Considero a atuação de Carlos Chagas Filho como o primeiro esforço na criação da infra-estrutura neurocientífica no Brasil, pois a sua agenda de pesquisa em torno de um animal tipicamente brasileiro, a associação com Aristides Pacheco Leão e a institucionalização do ensino e a pesquisa em Biofísica, “era a ligação que necessitava com a ciência nacional e com um modelo de política científica voltado para a modernização do país”188.

Para Roberto Lent, a atuação de Carlos Chagas Filho junto com Aristides Pacheco Leão na formação da biofísica no Rio de Janeiro, trata-se da primeira geração de neurocientistas no Brasil. Ao falar sobre a sua ascendência genealógica, o neurocientista afirma que:

187 O autor refere-se ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão criado pelo governo brasileiro em 1951, para o financiamento da produção científica. 188 Quadro 3, C47. 120

Eu sou assim fruto do pioneirismo do Carlos Eduardo Chagas Filho, do Instituto de Biofísica. Então eu sou assim filho de uma terceira geração, não da segunda. Pois a primeira [geração] é do Chagas [Filho], com o peixe elétrico, daí o Aristides com a Depressão Alastrante, e daí a segunda é o Rocha Miranda e o Oswaldo Cruz. E a terceira tem vários que eles formaram como eu, o Rafael Linden, Eliane Volchan, Rozália Mendes Otero...189. Criada as condições de desenvolvimento do Instituto de Biofísica, baseada em uma agenda de pesquisa que envolvia o estilo de pensamento da fisiologia simbolizado pelo peixe elétrico que “representa[va] a valorização em si de um tema da ecologia nacional”190; associada à estrutura de ensino e pesquisa criada que permitiu o treinamento de pesquisadores de forma profissionalizada: “No final da década de [19]50 dois eminentes fisiologistas saíram das fileiras de alunos” de Chagas Filho, Eduardo Oswaldo-Cruz Filho (1934-2015) e Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda (1934-2016). A parceria de ambos trata-se de um elemento característico da segunda geração dos neurocientistas cariocas.

Eduardo Oswaldo-Cruz191 ingressou em 1954, na Faculdade de Medicina da Universidade Brasil. Já no primeiro ano do curso, vinculou-se à Cátedra de Histologia, quando auxiliou seu orientador Bruno Lobo (1913-1995) na publicação de um livro chamado “Embriologia Humana”. Na seqüência, realizou monitoria na Cátedra de Fisiologia192 e auxiliou as pesquisas do professor de Neurofisiologia, Mário Vianna Dias (1914-2003), especialista na investigação de fisiologia comparada, especificamente sobre a organização do córtex cerebral motor de mamíferos silvestres brasileiros, tais como o tamanduá e o bicho preguiça193. Em 1956, Oswaldo-Cruz Filho passou a pesquisar no Laboratório de Física Biológica com Aristides Pacheco Leão, quando desenvolveu trabalhos sobre a bioeletrogênese no músculo cardíaco embrionário (CHAGAS FILHO, 2000). Em 1961, depois de defesa da tese de Doutorado194, Oswaldo-Cruz Filho realizou pós-doutoramento com Vernon Mountcastle, no Departamento de Fisiologia da John Hopkins University, nos EUA, com 195 bolsa do NIH .

189 Quadro 1, A4. 190 Quadro 1, A4. 191 O neurocientista é neto de Oswaldo Cruz. Exploro parte de sua trajetória na nota de rodapé 163. 192 “Biografia de Eduardo Oswaldo-Cruz – ABC”. Página da Academia Brasileira de Ciências. Quadro 3, C48. Acessado em 15/2/2016. 193 “Biografia de Mario Vianna Dias – IOC”. Página do Instituto Oswaldo Cruz. Quadro 3, C49. Acessado em 15/2/2016. 194 OSWALDO CRUZ, E. (1961). Córtex “Associativo” do Cebus: Estudo Eletrofisiológico. (M.D. Thesis Byophisics). Instituto de Biofísica, Faculdade Nacional de Medicina, Universidade do Brasil. 195 A universidade trata-se daquela pioneira na formação da infra-estrutura da comunidade neurocientífica norte- americana. Abordo no subitem 2.1 do segundo capítulo. 121

Por sua vez, Rocha Miranda também ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Brasil em 1953. No mesmo ano, iniciou carreira científica no Instituto de Biofísica, sob orientação de Carlos Chagas Filho e Denise Albe-Fessard (1916-2003)196. É nessa época que conheceu e começou a trabalhar em parceria com Eduardo Oswaldo-Cruz, quando realizou estudos neuroanatômicos e eletrofisiológicos de somestesia e dos gânglios da base de gatos sob orientação da pesquisadora francesa. O resultado de tais investigações foi sua tese de Doutorado, em 1961, intitulada de “Eletrofisiologia do núcleo caudado”197, o que lhe rendeu uma bolsa do NIH de Pós-Doutorado, sob supervisão do chefe de laboratório de 198 neurofisiologia do NIMH, Wade Marshall (1907-1972) .

Quando Oswaldo-Cruz Filho retornou ao Brasil, em 1963, se associou a outros pesquisadores para criar o Laboratório de Neurofisiologia do Departamento de Biologia da Universidade Brasil e, ainda com o mesmo financiamento do Pós-Doutorado, passou a investigar o sistema extrapiramidal199 de marsupiais, especificamente do Gambá (Didelphis marsupialis) no Instituto de Biofísica. No mesmo ano, Rocha Miranda também retornou dos EUA para o Instituto e passou a investigar junto a seu colega da época de graduação. Na década de 1960, as investigações sobre as relações entre o sistema visual e o cérebro do gambá pelos pesquisadores renderam uma série de artigos publicados de atualização do modelo animal. Em 1968, eles publicam um atlas estereotáxico do cérebro do Didelphis200.

196 A neurocientista é reconhecida pelos seus trabalhos sobre o funcionamento da dor no sistema nervoso central. Em 1947, Albe-Fessard desembarcou no Rio de Janeiro para trabalhar como pesquisadora visitante no Instituto de Biofísica, por convite de Chagas Filho. Os pesquisadores se conheceram na época em que o brasileiro fez estágio na França. No Brasil, a francesa realizou pesquisas em conjunto sobre o peixe elétrico e foi orientadora de pesquisa. Disponível em: SQUIRE, L, et al. (1996). The History of Neuroscience in Autobiography. Volume 1. Society for Neuroscience, Washington, D. C. 197 “Currículo Lattes de Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C50. Acessado em: 17/2/2016. 198 “Biografia de Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda – IBCCF/UFRJ”. Página do IBCCF/UFRJ. Quadro 3, C51. Acessado em: 17/2/2016. 199 O sistema extrapiramidal em humanos trata-se da rede neural localizada na medula espinhal que faz parte do sistema motor envolvido na coordenação de movimentos. O sistema é chamado de “extrapiramidal” para diferenciá-los dos tratos do córtex motor que atingem seus destinos passando através das “pirâmides” da medula. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sistema_extrapiramidal. Acessado em: 15/2/2016. 200 OSWALDO-CRUZ, E; & ROCHA MIRANDA, C. E.; (1968). The brain of the opossum (Didelphis marsupialis): a cytoarchitectonic atlas in stereotaxic coordinates. Rio de Janeiro: Instituto de Biofísica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 122

Figura 12: Arco estereotáxico colocado em Figura 13: O “Gambá” (Didelphis marsupialis). O uma cabeça de manequim. O instrumento é marsupial é um animal muito comum na América considerado “minimamente invasivo” na Central e América do Sul. Fonte: área médica e é utilizado não só em https://pt.wikipedia.org/wiki/Gamb%C3%A1- pesquisas, mas principalmente em cirurgias. comum. Acessado em 15/2/2016. O artefato permite estabelecer coordenadas tridimensionais para identificar regiões específicas do cérebro. Fonte: Internet. Acessado em: 17/2/2016.

As pesquisas de Oswaldo-Cruz Filho e Rocha Miranda seguiram a trajetória da agenda imaginada por Chagas Filho, com a escolha de um animal típico da fauna brasileira para as investigações experimentais. A adoção do marsupial como o modelo experimental se deu pelo fato de ser um animal que possui: caracteres gerais de sua classe animal, os mamíferos, o que permitiu comparação com outros animais da mesma classe; circuitos neurais considerados simples, o que permitiu realizar correlações entre forma e função de áreas do cérebro; numerosos estudos neuroanatômicos201. “Entre outras vantagens, o gambá, com uma gestação de 13,5 dias, permite manipulação experimental precoce, tendo em vista que parte do seu desenvolvimento se dá fora do útero”202.

A trajetória dos “Eduardo’s brothers”203é marcada, após a década de 1970 e 1980, por ministrarem aulas no então Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF)204, orientação de alunos em pesquisas experimentais e na direção de cargos relativos à

201 Quadro 3, C51. 202 Quadro 3, C38. 203 A autora da biografia de Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda que consta no site da SBNeC, entrevistou o pesquisador para traçar sua trajetória e cita que a parceria com Eduardo Oswaldo-Cruz Filho com o tempo passou a ser conhecida dentro do Instituto de Biofísica pelo “codinome de /Eduardo brothers/”. Quadro 3, C38. 204 A troca do nome do Instituto de Biofísica em homenagem ao seu fundador foi em 1970. 123 administração da ciência205. No entanto, destacarei alguns aspectos de suas agendas de pesquisa que condizem com a continuidade dos parentescos na árvore genealógica da comunidade neurocientífica.

Tais características são: a continuidade da agenda de pesquisa sobre o sistema visual; daquela iniciada por Carlos Chagas Filho nas pesquisas com modelos animais brasileiros; e no treinamento de jovens pesquisadores que originou a terceira geração de neurocientistas que é constituída, atualmente, de pesquisadores líderes de seus institutos e grupos de pesquisas neurocientíficas, não só no Rio de Janeiro, mas também em Universidades de outras localidades. Segundo Cláudia Vargas, pesquisadora da UFRJ e coordenadora do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) de Neuromatemática (NeuroMat) da USP, os pesquisadores “foram importantes em estabelecer uma cultura em neurociências dos modelos animais”206.

Figura 14: Eduardo Oswaldo-Cruz Filho, o técnico Raymundo Francisco Bernardes e Carlos Eduardo Rocha Miranda.

Fonte: http://www.abc.org.br/article.php3?id_article=4299. Acessado em 16/2/2016.

205 Eduardo Oswaldo-Cruz foi diretor da “Casa Brasil”, em Londres em 1982, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Fez parte do primeiro Grupo de Pesquisadores Conferencistas e membro do Comitê Assessor do mesmo órgão de fomento de pesquisas; Na ACB, foi Secretário-Geral e junto a Aristides Pacheco Leão, implantou as bolsas Fogarty em convênio com o Japão e a Royal Society, de Londres; Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda, foi Diretor e Secratário-Geral da ABC, foi coordenador do programa avançado em Neurociências da UFRJ, presidente do Conselho de Ensino de Graduados e chefe do Departamento de Neurobiologia do Instituto de Biofísica da mesma Universidade. 206 Quadro 1: A12. 124

A agenda de pesquisa de Eduardo Oswaldo-Cruz Filho é reconhecida em um artigo publicado por um de seus antigos orientandos, que escrevera inspirado pela ocasião do recebimento da “Medalha Neurociências Brasil” de seu orientador em 2009, como toda dedicada ao estudo das Ciências Visuais (SILVEIRA, L. C. L., 2009). Muitos dos trabalhos publicados por Oswaldo-Cruz Filho lidam com o contraste da sensibilidade do sistema visual de diferentes animais através de amostras que exemplificam a relação entre espaço e tempo (idem, 2009).

O autor do artigo, Luiz Carlos de Lima Silveira (1953-2016)207, que em 2014 foi agraciado, também, com a “Medalha Neurociências Brasil”, foi orientado por Oswaldo-Cruz Filho no Instituto de Biofísica do Rio de Janeiro, tanto no Mestrado (finalizado em 1980) quanto no Doutorado (em 1985). Na primeira pesquisa, realizou experimentos de acuidade visual no gambá, já na segunda, publicou os resultados da organização do sistema visual em roedores da Amazônia208. Outro orientando que destaco, é Cristovam Wanderley Picanço Diniz (UFPA), que também se tornou Mestre (em 1980), com o estudo eletrofisiológico da condição de refração do Didelphis, e Doutor (em 1987), com a pesquisa sobre as áreas corticais com um animal da Amazônia, a Dasyprocta aguti, ou, a “Cutia”. Ambas as investigações foram realizadas no Instituto carioca209.

Silveira e Picanço Diniz graduaram-se na UFPA e quando terminaram o Mestrado, em 1980, retornam da capital carioca para Belém. Com apoio de Oswaldo-Cruz Filho e com recursos ganhos pela Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), implantam o grupo de pesquisas em neurofisiologia no Centro de Ciências da Saúde210 e o “Programa de Pesquisas Médico-Biológicas em Primatas da Amazônia” da Universidade paraense211. Com o tempo, tal estrutura permitiu criar o “Laboratório de Neurociências e Genética” e a Pós- graduação em Neurociência da Universidade paraense212.

207 Busquei por diversas vezes contatar o pesquisador durante o período do doutoramento. No entanto, não obtive respostas. Quando entrevistei Dora Fix Ventura, ela me informou que o neurocientista encontrava-se enfermo, o que poderia ser o motivo de não conseguir tal contato. Silveira veio a falecer em Julho de 2016. “Notícia falecimento Luiz Carlos de Lima Silveira”. Portal da UFPA. Quadro 3, C52. Acessado em: 10/8/2016. 208 “Currículo Lattes de Luiz Carlos Lima Silveira”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C53. Acessado em 17/2/2016. 209 “Currículo Lattes de Cristovam Wanderley Picanço Diniz”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C54. Acessado em 17/2/2016. 210 Quadro 3, C48. 211 Quadro 3, C52. 212 Na biografia que consta de Eduardo Oswaldo-Cruz no site da Academia Brasileira de Ciências consta ainda que se associou a “outros pesquisadores criando o laboratório de Neurofisiologia do Departamento de Biologia da Universidade de Brasília”. No entanto, não foi possível encontrar maiores informações sobre seu papel no desenvolvimento de tal Laboratório. Quadro 3, C48. 125

Já no próprio IBCCF, da UFRJ, alguns pesquisadores são destacados por Carlos Chagas Filho (2000) como aqueles que constituem a continuidade de sua agenda de pesquisa no “Setor de Neurobiologia” (CHAGAS FILHO, 2000: p. 128) e da segunda geração de neurocientistas cariocas. Dentre eles, Ricardo Gattass (UFRJ). No vídeo feito por ocasião em que recebeu a “Medalha Neurociências Brasil” em 2013, Gattass afirma que: “A nossa geração é uma geração que vê... Vê o doutor Chagas [Filho] com a perspectiva não só de um cientista, mas de um homem de visão. Essa que é a verdade.”213.

O treinamento científico de Gattass no Instituto começou realizando fotografias nos cérebros dos gambás quando Eduardo Oswaldo-Cruz Filho e Carlos Eduardo Guinle Rocha Miranda realizavam pesquisas para compor o atlas do Didelphis marsupialis. No doutorado foi orientado pelo primeiro, com a tese “Complexo posterior talâmico do Cebus apella: estudo anatômico e eletrofisiológico”, defendida, em 1976. Atualmente é professor titular e emérito de Neurociências, um dos líderes de pesquisa do IBCCF e quem deu continuidade àquela de seu orientador.

Sobre seu tema de pesquisa, Gattass “escolheu um programa científico voltado para a análise dos mecanismos neurais responsáveis pela visão do primata” e seu “(...) estudo revelou pela primeira vez [o] núcleo talâmico [pulvinar]”214. Com pesquisas realizadas com o Cebus apella (macaco-prego), o neurocientista tornou-se especialista em estudos sobre áreas e mecanismos ligados à percepção e vias de processamento visual. Com sua equipe de laboratório desenvolveu análises sobre os fenômenos físicos da ativação metabólica rápida do córtex cerebral causados pela estimulação visual natural do mesmo modelo animal215.

Por sua vez, outra parte da terceira geração de neurocientistas cariocas, que condiz com “(...) atividades importantes no campo da fisiologia cerebral também conduzidas pelo grupo de especialistas do Instituto de Biofísica” (CHAGAS FILHO, 2000: p. 129), são aqueles que foram orientados por Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda.“As diversas linhas e pesquisa que foram iniciadas para a análise dessa espécie [o gambá] atraíram numerosos estudantes de pós-graduação para o Laboratório de Neurobiologia II, sob a sua

213 Quadro 3, C36. 214 “Biografia de Ricardo Gattass – ABC”. Página da Academia Brasileira de Ciências. Quadro 3, C55. Acessado em 20/2/2016. 215 Quadro 3, C55 126 chefia, cinco dos quais lideram, atualmente, grupos de neurocientistas no Centro de Ciências da Saúde da UFRJ”216. Destaco entre eles, Rafael Linden (UFRJ) e Roberto Lent (UFRJ).

Entre 1967 e 1970, Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda realizou um pós doutorado na Harvard University, (EUA) no Departamento de Psicologia Experimental. Juntou-se ao grupo liderado por Charles G. Gross (1936-), que tinha experiência em pesquisa sobre o lobo temporal “(...) região cortical até então obscura para a ciência. Nessa época, as únicas certezas sobre o lobo temporal eram sua suma importância para o aprendizado visual. O brasileiro veio acrescentar a este grupo sua experiência em citoarquitetonia e neurofisiologia”217. A estada na época em Harvard permitiu, dessa forma, que Rocha Miranda trabalhasse com a hipótese que, segundo o próprio neurocientista, foi sua principal contribuição para a neurociência: “(...) o estudo das respostas de células isoladas do lobo temporal em microeletródios a estímulos visuais complexos”218.

Quando retornou ao Brasil, no IBCC, passou a realizar trabalhos experimentais sobre o sistema visual com dois modelos animais. Um não-primata, o gambá, e a Macaca mulatta, um primata. Assim, dirigiu seus estudos para as “(...) propriedades de campos visuais no córtex ínfero-temporal (IT) do macaco [que] vieram a contribuir para a compreensão da agnosia visual219 subseqüente à lesão dessa região”220. Na época tais estudos eram realizados no “(...) computador PDP-12, com 4kb de memória que, naquela época, era considerado muito versátil, famoso no mundo inteiro por sua capacidade de processamento de sinais biológicos”221. O computador, conseguido com recursos da FINEP por Eduardo Oswaldo-Cruz Filho, foi o primeiro instalado no Brasil para estudos on-line e em tempo real, montado no IBCCF, onde serviu laboratórios de vários departamentos. Nessa época,

216 “Biografia de Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda – ABC”. Página da Academia Brasileira de Ciências. Quadro 3, C56. Acessado em: 22/2/2016. 217 Quadro 3, C38. 218 Quadro 3, C38. 219 A agnosia é uma perda da capacidade de reconhecer ou identificar, através da visão, pessoas ou rostos (prosopagnosia), sons (agnosia auditiva) e objetos, que são de três tipos: a agnosia visual (incapacidade de reconhecer objetos com a visão), a aperceptiva (incapacidade de lembrar informações sobre os objetos), simultagnosia (incapacidade de reconhecer múltiplos objetos simultaneamente) e associativa (incapacidade de nomear e utilizar objetos). Trata-se de uma perturbação que é consequência de danos cerebrais ou neurológicos no lobo temporal e no lobo parcial, áreas do cérebro responsáveis pela memória e no reconhecimento de objetos. Para saber mais, um reconhecido neurologista norte americano, com diferentes obras de divulgação científica, Oliver Sacks (1933-2015), tem dois livros em que relata casos de seus pacientes que sofriam com tal tipo de distúrbio. Para mais ver: SACKS, OLIVER. (1997). O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e outras histórias clínicas. São Paulo: Companhia das Letras; SACKS, Oliver. (2010). O olhar da mente. São Paulo: Companhia das Letras. 220 Quadro 3, C56. . Acessado em: 22/2/2016. 221 “Um talismã da Neurociência no Brasil”. Texto da ABC em homenagem a Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda. Quadro 3, C57. Acessado em 22/2/2016. 127

Oswaldo-Cruz Filho monta o “Laboratório de Neurobiologia II”, no mesmo Instituto que serviu como aparato para a formação de novos cientistas.

Sobre as pesquisa realizadas nos EUA e como elas influenciaram, posteriormente, as investigações que liderou já no Brasil, reproduzo uma longa citação da biografia de Rocha Miranda:

Ao iniciar este trabalho [do estudo das células do lobo temporal], o grupo [de Rocha Miranda] havia adotado desenho experimental semelhante ao de [David] Hubel & [Torsten] Wiesel222, analisando respostas a estímulos simples, para revelar o processamento dos estágios iniciais da informação visual no córtex cerebral. De fato, as células do lobo temporal exibiam campos receptores aos estímulos visuais e eram muito maiores do que os dos estágios anteriores e sempre incluíam a fóvea. Mas muitas das células davam respostas fracas aos estímulos convencionais, (...) apesar de serem testadas ao longo de várias horas. Por acaso, numa das sessões, durante as projeções com estímulos que faziam numa tela para observar a resposta de uma célula, Rocha Miranda invadiu a tela com sua mão formando uma imagem semelhante à postura das mãos dos macacos. Foi o movimento necessário para que a célula sob estudo, até então gerando poucos impulsos geométricos simples, respondesse com um trem de impulsos de alta freqüência. Estudos subseqüentes vieram confirmar que os estímulos ótimos para as células desse nível de processamento seriam antes estímulos com significado biológico para o animal, como mãos, faces, e outros e não os geométricos dos primeiros estágios. Este fruto do acaso, sabiamente aproveitado, rendeu ao grupo um grande número de artigos e à neurociência uma nova visão do processamento da informação visual em estágios avançados.223 Também, uma das primeiras orientandas de Rocha Miranda, que atualmente é professora titular e chefe do Laboratório de Neurobiologia II, do IBCCF, a Eliane Volchan (UFRJ), contextualiza como eram feitas as pesquisas na época:

Carlos Eduardo nos ensinou a fazer uma ficha para cada penetração de microeletrodo no cérebro do gambá, para cada célula que estávamos estudando, uma documentação fotográfica (...). Nós fotografávamos e filmávamos o experimento, (...) o histograma de cada célula, batíamos na máquina de escrever o relatório de todo o experimento e no dia seguinte discutíamos com o grupo. Nas semanas seguintes, refazíamos todo o experimento e furávamos no cartão de holerite todas as propriedades das células que a gente tinha estudado224.

222 Ambos os pesquisadores norte americanos são citados como aqueles que foram fundamentais na formação da neurociência na John Hopkins University. Para mais, ver o segundo capítulo. 223 Quadro 3, C38. 224 Quadro 3, C57. 128

Tais investigações constituem a característica da próxima geração de neurocientistas sob sua orientação, com os estudos dos sistemas visuais e da neuroanatomia comparada através do Laboratório de Neurobiologia II. Dentre eles, Rafael Linden realizou graduação em Medicina pela UFRJ, em 1975225, com o objetivo de ser cardiologista, mas iniciou sua trajetória acadêmica como monitor de Biofísica e Fisiologia e como estagiário de iniciação científica no IBCC. “Deve sua carreira científica à influência de Carlos Eduardo Rocha Miranda, em cujo laboratório colaborou inicialmente nos estudos sobre a organização morfofuncional do sistema visual do gambá”226. Foi nesse período que adquiriu formação em Neurofisiologia, em especial em Eletrofisiologia. Em 1979, defendeu tese, sob orientação de Rocha Miranda, sobre “(...) a organização das projeções subcorticais do córtex visual” do gambá, quando consolidou sua formação em Neuroanatomia227.

Atualmente, Dr. Linden é chefe do Laboratório de Neurogênese, professor titular do IBCCF, onde também já foi diretor. Nos últimos anos, reorientou suas pesquisas, antes voltadas para estudos anatômicos e fisiológicos, para a abordagem celular e molecular dos mecanismos de morte celular programada no sistema nervoso embrionário. “O Science Citation Index indica que seus principais artigos receberam até 2009 mais de três mil citações em publicações especializadas e fazem parte da bibliografia de revisões e livros- texto editados pelos principais autores da área de desenvolvimento do sistema nervoso”228. Foi agraciado com o “Prêmio César Timo-Iaria”, pela SBNeC em 2010, “(...) pelo conjunto de suas contribuições ás Neurociências e condecorado pela presidência da República com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico”229, em 2007.

Por sua vez, Roberto Lent é apontado, também por Chagas Filho (2000), como um dos principais pesquisadores que deram continuidade às linhas de pesquisa do “Setor de Neurobiologia” (idem, 2000: p. 128-129), do IBCCF. Formado pela Faculdade de Medicina da UFRJ, em 1972, o pesquisador foi o “(...) primeiro aluno de Rocha Miranda depois de seu retorno de Harvard”230. Sob sua orientação, fez Mestrado, intitulado “Estudo experimental das projeções retinofugais no Didelphis marsupialis aurita”, concluído em 1973, e o

225 “Currículo Lattes de Rafael Linden”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C58. Acessado em: 22/2/2016. 226 “Biografia de Rafael Linden – ABC”. Página da Academia Brasileira de Ciências. Quadro 3, C59. Acessado em: 22/2/2016. 227 Quadro 3, C59. 228 Quadro 3, C59. 229 Quadro 3, C58. 230 Quadro 3, C58. 129

Doutorado, sobre a neuroplasticidade do sistema visual do mesmo animal, em 1978231. Na seqüência fez o Pós-Doutorado em Neuroplasticidade no MIT, nos EUA, finalizado em 1982. Atualmente, o Dr. Lent é diretor e professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, onde também coordena o Departamento de Anatomia e atua com divulgação científica para o público mais amplo.

Segundo a biografia do neurocientista no site da ABC:

Seu campo de atuação tem sido o desenvolvimento embrionário e a plasticidade do córtex cerebral e dos circuitos neurais inter- hemisféricos, associando a utilização de técnicas morfológicas aplicadas em cérebros de roedores in situ, fatias de córtex cerebral de roedores cultivadas in vitro, tecido fetal humano estudado postmortem e metodologia comportamental. Durante esse período orientou e formou 5 Doutores que hoje são professores de universidades brasileiras com vocação científica, além de outros alunos que compõem atualmente uma equipe de 12 pessoas. Seus trabalhos geraram as primeiras evidências de resposta plástica de circuitos inter-hemisféricos alternativos, quando o corpo caloso está ausente desde o nascimento. Além disso, permitiram elucidar a seqüência de eventos ontogenéticos que caracterizam a formação das conexões inter-hemisféricas em roedores, relacionados ao estabelecimento da especialização funcional dos hemisférios cerebrais. Recentemente, o acadêmico estendeu sua abordagem experimental para o cérebro humano232. Por fim, outro pesquisador que se destaca na narrativa do imaginário da formação da comunidade neurocientífica carioca trata-se de Fernando Garcia de Mello (UFRJ). O pesquisador, honrado com a Medalha Neurociências Brasil em 2012, iniciou sua trajetória acadêmica na Universidade do Estado da Guanabara (UEG) – que atualmente é a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) – na área de Ciências Biológicas. Graduado em 1968, Garcia de Mello iniciou sua trajetória científica orientado por Hugo de Castro Faria (?) - catedrático de bioquímica daquela Universidade - no Instituto Nacional do Câncer233.

No ano de 1966, quando ainda cursava a graduação em Ciências Biológicas, Garcia de Mello optou por fazer a Faculdade de Medicina na UFRJ. Finalizou tal curso em 1972, mesmo período em que freqüentava a especialização em Biofísica, no IBCCF, por

231 “Currículo Lattes de Roberto Lent”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C60. Acessado em: 4/3/2016. 232 “Biografia de Roberto Lent – ABC”. Página da Academia Brasileira de Ciências. Quadro 3, C61. Acessado em 5/3/2016. 233 “Currículo Lattes de Fernando Garcia de Mello”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C62. Acessado em: 5/3/2016. 130 indicação de Castro Faria234. Iniciou então a pesquisa de Mestrado orientado por Firmino de Castro Torres (1920 – 2011) com pesquisa intitulada de “Contribuição ao estudo da regulação da síntese de ácidos nucléicos em Tetrahymena piriformis”, defendida em 1973235.

Nessa época em que estudou a regulação do metabolismo de macromoléculas em protozoários, Garcia de Mello desenvolveu interesse pelas investigações do Sistema Nervoso Central. No final do ano de 1973, com bolsa da Fogarty Foundation, realizou estudos em Neurobiologia Celular no NIH sob orientação do fisiologista e Nobel de Medicina de 1968, por ter decifrado o código genético236, Marshall Nirenberg (1927 – 2010). “No decorrer de três anos de trabalho [Garcia de Mello] demonstrou que neurotransmissores clássicos tinham papel importante no controle da diferenciação de parâmetros embriológicos do SNC em desenvolvimento”237. Mello retorna ao Brasil em 1976, como Professor Auxiliar do IBCCF, sendo promovido para Professor Adjunto após concurso público e onde montou seu laboratório de Neuroquímica. Em 1980, defendeu sua tese de doutorado, também sob orientação de Firmino Torres de Castro, intitulada de “Aspectos neuroquímicos da diferenciação embrionária da retina de pinto”238. Em 1992 tornou-se Professor Titular do IBCCF, onde leciona e pesquisa até hoje.

3.3 - Pioneiros paulistas

Exploro agora a narrativa da genealogia da comunidade neurocientífica paulista, com o intuito de adentrar a rede de parentesco que originou tais tipos de pesquisa. Para isso, me atentarei principalmente na primeira e na segunda geração de neurocientistas, em referência àquela sucessão geracional carioca, pois foi quando se formaram os primeiros institutos e laboratórios de investigação em Neurofisiologia e Psicofarmacologia, áreas que sedimentam as bases das pesquisas neurocientíficas em São Paulo.

Na historiografia escrita por César Timo-Iaria239 no site da SBNeC, o autor considera Miguel Rolando Covian (1913-1992) o pioneiro na neurofisiologia paulista. Covian, nascido em Rufino, na Argentina, mudou-se para Ribeirão Preto (SP) em 1955, onde

234 “Biografia de Fernando Garcia de Mello – ABC”. Página da Academia Brasileira de Ciências. Quadro 3, C63. Acessado em: 5/3/2016. 235 Quadro 3, C63. 236 “Nirenberg, decifrador do código genético, morre aos 82 nos EUA”. Matéria da página da Folha de São Paulo. Quadro 3, C64. Acessado em 5/3/2016. 237 Quadro 3, C63. 238 Quadro 3, C62. 239 Quadro 3, C37. 131 dirigiu o Departamento de Fisiologia e Biofísica da USP “(...) e lá criou uma escola com ramificações por todo Brasil”240.

Recapitular a trajetória do neurofisiologista argentino, que em 1971 se naturalizou brasileiro, perpassa a sua formação científica naquele país portenho e o contexto social que viveu na época. Covian doutorou-se em Medicina pela Facultat de Medicina da Universidad de Buenos Aires (UBA) em 1943, sob orientação de Bernardo Alberto Houssay (1887- 1971)241. Miranda et. al. (2015) apontam que a formação do pesquisador se deu em um momento de profundas transformações políticas, sociais e culturais promovidas durante o governo de Juan Domingo Perón (1946-1955). Dentre elas, o sistema educacional foi especificamente modificado para o treinamento científico e técnico de profissionais liberais, tais como médicos, engenheiros, dentre outros.

Na época, as universidades argentinas sofreram fortes intervenções do governo federal e, de acordo com Miranda et. al. (Idem), a UBA foi uma delas, o que desapontou a elite intelectual e científica que desejava um governo liberal242. A criação do Instituto de Biologia y Medicina Experimental (IByME), em 1944, em Buenos Aires é resultado dessa controvérsia na comunidade científica. Houssay foi demitido da UBA, em 1943, por conta de sua posição ideológica e política, e foi figura central na criação do Instituto, com financiamento da Fundación Sauberan e da família Braun-Menéndez.

Houssay trata-se de um fisiologista reconhecido mundialmente. Foi galardoado com o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1947 – o primeiro latino americano a ganhar tal honraria na área de “Ciências”. Mesmo com todos os constrangimentos no

240 Quadro 3, C37. 241 Existe uma série de artigos e documentos que vão de aspectos pessoais às posições filosóficas e políticas de Covian, que resgatam elementos históricos e biográficos do cientista, muito em função de uma série de cartas do pesquisador que se tornaram documentos históricos após seu falecimento (DAMASCENO; MASSINI, 2014). Destaca-se aqui que, em diversas dessas publicações, não raro encontram-se citações que o neurofisiologista enfatiza a admiração pelo seu mestre, Bernardo Houssay, chegando a afirmar que o seu maior título foi ter sido seu discípulo. Para mais, ver: COVIAN, M. R. (1979). A essência da Universidade. Ciência e Cultura, 31, 615- 620; HOFFMAN, Annette. (2005). Resgate da memória de uma experiência universitária: a história de Miguel Rolando Covian. In: ICONGRESSO PAULSITA DE MEDICINA. Anais. Ribeirão Preto. 242 Na história que consta no site do IByME, há uma citação da fala de Houssay que ilustra as motivações da criação do Instituto sem vínculos governamentais, que reproduzo em seguida: “Este Instituto es una de las iniciativas más importantes realizadas em nuestro país, para estabelecer un centro de investigaciones científicas desinteresadas, de carácter privado e independiente de los recursos y la dirección del gobierno o de sus dependencias (...) Estamos convencidos que este Instituto debe tener vida permanente para lo cual deberán hallarse recursos y asignarle un personal competente y consagrado”. Disponível em: http://www.ibyme.org.ar/institucion/2/historia. Acessado em: 4/4/2016. 132 andamento de suas pesquisas, Houssay continuou realizando-as em Buenos Aires até o fim de sua vida243.

O Prêmio foi dado ao argentino por consequência de seus experimentos nos quais descobriu que o organismo de um indivíduo, quando passa dias sem repor energias, consome as próprias proteínas do corpo, de forma a suprir a necessidade de ingestão energética. Esse mecanismo para manutenção da vida, em casos extremos, faz com que o organismo “desaprenda” a ingerir energia pela via costumeira do aparelho digestivo e, caso receba comida em tal tipo de situação, adoece. Um hormônio segregado pelo lobo anterior da pituitária, ou hipófise (glândula do cérebro que secreta hormônios responsáveis pelo funcionamento de outras glândulas do corpo), impede o metabolismo de carboidratos. O corpo reage produzindo açúcar no sangue, apresentando pressão alta e sintomas de diabetes. Tal descoberta, já era presente em seu livro “Fisiologia Humana”, lançado em 1945, obra que posteriormente tornou-se instrumento básico de estudo em Fisiologia em diferentes cursos de Medicina no mundo.

Outro pesquisador fundamental na trajetória de Miguel Covian e, que era professor no IByME, foi o chileno Eduardo Braun-Menéndez (1903-1959), seu supervisor de pesquisas entre 1945 e 1948. No fim de tal treinamento, Covian realizou Pós-Doutorado na John Hopkins University, com bolsa de estudos da Fundação Rockefeller, sob supervisão de Curt Richter (1894-1988) – psicobiologista e geneticista que realizou estudos sobre a regulação hipotalâmica nos processos de sono e vigília – e Philip Bard (1898-1977) – pesquisador reconhecido, junto com Walther B. Cannon (1871-1945), pelo desenvolvimento da Cannon-Bard theory, que sintetiza os conceitos sobre como as funções hipotalâmicas se relacionam com as expressões emocionais244. Nesse período, Covian ampliou o treinamento científico em neurofisiologia e sua relação com aspectos psicológicos.

Quando retornou para a Argentina, em 1951, Covian assumiu a cátedra do laboratório de Neurofisiologia no Instituto. No entanto, a década de 1950, foi um período de crise política e econômica no país portenho, com redução nos investimentos federais, aumento da inflação, dentre outros aspectos. Nesse período, o presidente Juan Domingo Perón sofreu forte oposição dos militares, até ser deposto da presidência em 1955. Tal cenário de

243 “Biografia do Prêmio Nobel, Alberto Houssay”. Página do Prêmio Nobel. Quadro 3, C64. Acessado em 19/4/2016. 244 Segundo Miranda et. al. (2015; p. 32), as pesquisas de Philip Bard foram os primeiros desenvolvimentos da psicobiologia nos EUA. 133 turbulência e instabilidade política fez com que o pesquisador temesse até mesmo pela sobrevivência do IByME (COVIAN, 1979).

Na época, as pesquisas de Covian já eram internacionalmente reconhecidas na área de Fisiologia e sabendo das condições da C&T na Argentina, Zeferino Vaz (1908-1981), diretor e fundador da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), convidou o neurofisiologista para ser pesquisador, professor e chefe do Departamento de Fisiologia na universidade paulista.

Para compreender a vinda de Covian para o Brasil, faz-se necessário também compreender o contexto social pelo qual o país passava. As décadas de 1940 e 1950 são recheadas de momentos de instabilidades políticas no país, como a era do Estado Novo (1937- 1945) que marca o fim da primeira ditadura brasileira, comandada por Getúlio Vargas (1882- 1954), e o seu retorno como presidente eleito em 1951, mas cujo governo findou com o seu suicídio. Entre 1954 e 1956, o Brasil chegou a ter dois presidentes em um período curto de tempo, que foram João Fernandes Campos Café Filho (1954-1955) e Carlos Luz (assumiu a presidência por três dias em 1955). O país retoma a estabilidade política somente com a eleição de Juscelino Kubitschek (1902-1976) em 1956.

Nessas décadas, o desenvolvimento científico, aliado da industrialização e da ampliação da educação tratava-se de elemento importante no ideário político do país. Mesmo com as instabilidades na governança federal, a modernização brasileira ocorria baseada na formação de indústrias em diferentes cidades, o adensamento urbano, a construção da capital, Brasília (DF), dentre outro elementos sociais. Assim, promover a ciência e forjar uma comunidade científica brasileira era considerado, em tal ideário, um aspecto chave para o desenvolvimento do país. Dessa forma, o governo brasileiro passou a investir em educação superior e na produção científica nacional. Cenário que colocou a elite científica e intelectual como agente promotora desse processo social.

Como exemplos das transformações sociais e políticas dessa época, algumas agências governamentais de apoio à pesquisa foram criadas como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), em 1947245; a Sociedade Brasileira para o

245 Segundo o site da FAPESP: “A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) foi formalmente criada em 1960 (Lei Orgânica 5.918, de 18 de outubro de 1960) e começou a funcionar efetivamente em 1962 (Decreto 40.132, de 23 de maio de 1962). Entretanto, ela já fora prevista na Constituição Estadual de 1947, graças a um esforço de um grupo de homens de laboratório e de cátedra liderado por Adriano Marchini e Luiz Meiller”. Disponível em: http://www.fapesp.br/28. Acessado em 19/4/2016. 134

Progresso da Ciência (SBPC), em 1948; o CNPq e a Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoas de Nível Superior (CAPES) em 1951 (MIRANDA, et. al. 2015; p. 34).

É nesse contexto que o governo de São Paulo decidiu criar universidades públicas no interior do Estado. Na capital paulista, na Faculdade de Medicina da USP, havia grande número de Livre-Docentes capacitados para atuar em uma nova escola médica. No entanto, não havia consenso entre eles de tal necessidade, pois a ampliação poderia ocasionar “perda da qualidade de ensino”246 na área médica da capital paulista. Mesmo assim, os dirigentes foram favoráveis à criação de universidades, institutos de pesquisa e de ensino superior em outras regiões do Estado. Em 1947, uma Comissão foi criada por Zeferino Vaz, para “estudar a possibilidade de implantação da nova Escola, organizar o currículo e planejar sua instalação”247 assim como a escolha de possíveis cidades que receberiam a nova instituição de ensino. Com a escolha de Ribeirão Preto (SP) e aprovação da estrutura curricular em setembro de 1951, a Faculdade de Medicina passou a funcionar no final do ano, sendo Vaz seu diretor.

A Fundação Rockfeller financiou a criação da FMRP-USP e exigiu a implantação do “modelo americano” que enfatizava: “a pesquisa, a tecnologia e a superespecialização, assim como a separação do ensino básico do clínico e o tempo integral” para professores lecionarem e pesquisarem; a criação de um Hospital Escola e uma Escola de Enfermagem248. Tal “modelo” e financiamento permitiram a criação de prédios e laboratórios para a promoção da Faculdade do interior paulista249.

Para Schwartzmann (1979; p. 227), o Instituto de Biofísica da Universidade do Brasil e a USP, tiveram papel fundamental no processo de criação de um “novo modelo da ciência” para o Brasil, na qual a referência da produção científica não se tratava de somente criar as condições infra-estruturais de pesquisa, como também de associá-la à comunidade científica internacional através de um modelo de ciência que enfatizava a internacionalização dos achados científicos, a ciência aplicada e a implantação do ensino universitário pelos pesquisadores.

246 “História da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto”. Página da FMRP-USP. Quadro 3, C66. Acessado em 19/4/2016. 247 Quadro 3, C66. 248 Quadro 3, C66. 249 Para mais, ver: MARINHO, Maria Gabriela S. M. C; Norte-americanos no Brasil: uma história da Fundação Rockefeller na Universidade de São Paulo, 1934-1953. Campinas/SP: Autores Associados/São Paulo. Universidade São Francisco, 2001. 135

Covian chegou ao Brasil em 1955, mesmo ano da deposição do posto de presidente de Juan Domingues Perón pelos militares, na Argentina, para ser chefe do Departamento de Fisiologia na FMRP-USP - cargo que exerceu até 1974 e entre 1978 e 1982 (DAMASCENO & MASSINI, 2014). No local, o “(...) discípulo do grande Houssay”250 encontrou condições favoráveis para o desenvolvimento de seu trabalho nas áreas de fisiologia endócrina, cardiovascular e nervosa, com grande disposição de animais para a pesquisa experimental, laboratórios bem equipados e diferentes formas de financiamento de pesquisa. Com o passar do tempo, o Departamento de Fisiologia tornou-se um centro de excelência em pesquisa, (MAURO & NOGUEIRA, 2014 apud.MIRANDA, et. al. 2015: p. 35).

De sua produção científica, destaca-se seu laboratório onde pôde ministrar aulas e pesquisas com modelos animais, como ratos albinos, coelhos, Porquinhos-da-índia e gatos. Em primeiro plano, se destaca as investigações sobre o comportamento do sujeito experimental e sua relação com partes específicas do cérebro, especificamente: a amídala, o hipotálamo e a área septal. Essas áreas fazem parte do sistema límbico em mamíferos e são responsáveis pela produção dos comportamentos e emoções. “A amídala é relacionada ao comportamento sexual, assim como a certos sentimentos (tais como o medo e a ansiedade). O hipotálamo é a ponte entre o sistema nervoso e endócrino, principalmente com relação ao controle da temperatura do corpo, a fome e sede. Finalmente a área septal é associada com processos cerebrais reforçadores e punitivos do comportamento do sujeito” (MIRANDA, et. al. 2015: p. 41)251.

Assim, as pesquisas de Covian tiveram três abordagens principais sobre a relação entre a mente e o cérebro: a relação entre a emoção e comportamento; as formas de alimentar determinados comportamentos e suas bases neurais. Diferentes intervenções eram feitas em cobaias para as pesquisas experimentais, tais como lesões eletrolíticas; estimulações elétricas e químicas registradas em atividades neurovegetativas e metabólicas. Dentre os artefatos de pesquisa, eram utilizados os instrumentos estereotáxicos de cirurgia. O pneumógrafo, quimógrafo e polígrafo eram utilizados para a medição das condições neurais e comportamentais relativas às estimativas experimentais do sistema neural, tais como freqüência cardíaca, pressão sanguínea; ritmo respiratório, movimentos do corpo, vocalizações, etc. (Idem, 2015).

250 Quadro 3, C37. 251 T. A. 136

Também, Covian utilizava de outros artefatos e teorias da psicologia para a análise de comportamento. Por exemplo, um artigo publicado em 1973252, com seu aluno de graduação, Frederico Guilherme Graeff (FMRP-USP)253, utiliza da caixa de Burrhus Frederic Skinner (1904-1990)254, para desenvolver pesquisas com ratos de análise comportamental (Figura 3.5). Outro exemplo de tema de investigação, é o artigo publicado em 1974255, com outra discípula de Covian, Anette Hoffman (FMRP-USP), sobre comportamento respondente e estímulo condicionado, inspirado nos conceitos formulados por Ivan Pavlov (1849-1936)256. A presença desses temas e conceitos clássicos da psicologia experimental, no desenvolvimento de pesquisas que sugeriram correlações entre comportamento e a neurofisiologia, constitui o estilo de pensamento da psicobiologia na institucionalização da neurociência paulista (MIRANDA, et. al. 2015).

252 GRAEFF, F., GENTIL, C. G., PEREX, V. L., & COVIAN, M. R. (1973). Lever-pressing behavior caused by intraseptal angiotensin II in water sariated rats. , and Behavior. Vol. 1, May - June, p. 357-359. 253 Retomarei a trajetória do pesquisador mais adiante. 254 O cientista norte americano é reconhecido por ser um dos pioneiros a realizar pesquisa em Psicologia experimental e um dos principais expoentes da corrente teórica denominada de behaviorismo. Tal forma de pensamento tem como pressuposto que o comportamento humano só pode ser analisado a partir do que é cientificamente observável e é resultado de reações do organismo aos estímulos externos. Para a pesquisa empírica deste ramo do conhecimento, Skinner elaborou um artefato tecnológico, uma caixa, com dispositivos para acionamento de água, luz e em alguns casos até choque, para a análise do comportamento de animais de modo a compará-lo com os do humano. No experimento que desenvolveu tal tecnologia que o tornou reconhecido, Skinner privou uma cobaia (utilizava de ratos e pombos também) de alimento e controlava quando colocar água, assim como a iluminação, dependendo do comportamento apresentado pela cobaia que, por sua vez, acionava a barra dependendo do estímulo provocado pelo cientista. O experimento permitiu à Skinner concluir sobre os estímulos ambientais reforçadores no processo de aprendizagem e sua associação com o comportamento humano, ou o que denominou de “condicionamento operante”. O reflexo condicionado trata-se de um comportamento no qual o indivíduo reage a um estímulo casual externo. Já no mecanismo descrito por Skinner, trata-se de um comportamento orientado por mecanismos de premiação ou punição gerados pela experiência do indivíduo em determinadas situações. A diferença da ambos os reflexos é que o primeiro trata-se de uma resposta a um estímulo externo, já o segundo é um hábito adquirido pela ação do indivíduo. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/1917/b-f-skinner-o-cientista-do-comportamento-e-do-aprendizado. Acessado em: 22/4/2016. 255 LICO, M., HOFFMAN, A., & COVIAN, M. (1974). Influence of some limbic structures upon somatic and autonomic manifestations of pain. and Behavior. Vol. 12, May, p. 805 – 811. 256 O pesquisador russo trata-se de um dos fundadores do behaviorismo. As pesquisas de Pavlov tinham como foco a análise do sistema digestivo dos animais. Para isso, realizou experiências com cães para estudar a produção de saliva quando os animais eram expostos a diferentes estímulos alimentares. Com situações controladas de laboratório, o fisiologista percebeu que com o tempo a salivação dos animais ocorria em situações com estímulos que originalmente não causavam tal comportamento. Com isso, Pavlov conseguiu descrever o que ficou conhecido na Fisiologia e Psicologia como o “condicionamento clássico” ou “condicionamento respondente”, que sugere que alguns comportamentos são incondicionados ou inatos, enquanto outros são condicionados, dependendo de situações agradáveis ou aversivas. Disponível em: http://www.cerebromente.org.br/n09/mente/pavlov.htm. Acessado em 22/4/2016. 137

Figura 15: Caixa de Skinner na USP, na década de 1960. Fonte: MIRANDA, et. al. ,2015, p. 43.

Com o tempo, o laboratório de Covian tornou-se um local fundamental para o treinamento de jovens pesquisadores e professores do Departamento de Fisiologia. Segundo Miranda et. al. (2015), na época não havia obrigações excessivas com relação a orientações de pesquisas. Tratava-se de um período em que os próprios professores e líderes de pesquisas consideravam a necessidade de maior treinamento científico, tanto aqueles que já estavam na Faculdade, como os ingressantes. E tornar-se um pesquisador era parte do cotidiano dos professores em atividade.

Um aspecto relevante que destaco das atividades como pesquisador e professor de Covian, são suas propostas para a governança da ciência, que consistia num sistema de normas reguladoras da prática científica. Tal ideário está diretamente relacionado aos contextos de ditadura que o neurofisiologista vivenciou, tanto no Brasil, quanto na Argentina. Ambos os cenários são fundamentais na maneira pela qual Covian compreendia o papel da ciência na sociedade e a forma de treinar jovens cientistas.

Para o neurofisiologista, a educação científica deveria seguir demandas da comunidade médica brasileira que exigia melhor treinamento técnico e científico (COVIAN, 1979). Dentre as mudanças sociais que ocorriam, a necessidade de especialistas com habilidades técnicas atualizadas e com equipamentos modernos deveria fazer parte do 138 cotidiano médico (Idem, 1979). Conforme salientado, a criação da FMRP-USP se contextualiza em tal contexto em que a Escola Médica serviria para atender as expectativas da sociedade civil.

Diante da relação entre ciência e sociedade, o neurofisiologista entendia que o pesquisador não deveria atentar somente à busca do conhecimento científico, como também estudar Filosofia para ter uma consciência apropriada do papel da ciência na sociedade, de forma a controlar suas técnicas e não ser controlado pelo tecnicismo. A técnica deveria estar a favor da ciência e não o contrário (MIRANDA, et. al. 2015). Faço uma longa citação que ilustra tal perspectiva:

The technique is born as a defensive response from mankind against the force of nature, to satisfy imperative needs, such as cold, heat, hunger, etc. Humankind produces a second nature, which modifies and subdues the first one. This first step is born by human needs, because the mankind reigns over this nature that is created … However, in a second step, the technique fails to satisfy basic human needs and it starting creating superfluous needs. When mankind begins to feel need for expendable things for their welfare, starts its via crucis of unhappiness. The dominator becomes dominated by technology and its products. (COVIAN, 1975/2007a, p. 56 apud. MIRANDA, et. al. 2015: p. 37). Para Miranda et. al. (2015) a relação entre Filosofia e Ciência ilustrada no trecho supracitado de um artigo de Covian, soma-se de uma “atitude religiosa” que o cientista deveria ter em mente, pois seria a fonte de princípios morais e que refletiria em sua prática científica. Ciência e religião estariam associadas como uma forma de “treinamento humanístico”, pois o “(...) verdadeiro homem da ciência possui um humor natural para o silêncio e o trabalho contemplativo, eu diria que essa atitude é religiosa mesmo se ele negar Deus” (COVIAN, 1975/2007a, p. 63 apud. MIRANDA, et. al. 2015: p. 37). O treinamento “humanístico e cultural” (Idem, 2015: 38) do cientista, para Covian, seria uma forma de garantir a liberdade de pensamento e da crítica, fatores intrínsecos para o funcionamento da prática científica, de forma a apreender qual o melhor uso deve ser dado à ciência e à técnica.

De acordo com Cândido (2009 apud. MIRANDA, et. al. 2015), três autores impactaram a forma de Covian pensar a dinâmica da ciência. São eles: Marie–Joseph Pierre Teilhard de Chardin (1881-1995) – que foi um padre com treinamento científico em ciências naturais e teologia na França; José Ortega y Gasset (1883-1955) – filósofo espanhol com especialidade em metafísica; e Thomas Merton (1915-1968) – pensador católico que escreveu sobre ativismo, pacifismo e espiritualidade. A partir de tais leituras filosóficas e 139

“humanísticas”, Covian propôs uma agenda para a ciência a partir de três eixos: 1) a verdade; 2) a bondade; 3) e a beleza:

1) Para Covian, o método experimental seria a única forma de atingir a “verdade”. A associação entre especialização e método experimental permitiria a produção do conhecimento mais sofisticado sobre a realidade e assim atingindo a verdade em si. Por outro lado, tal forma de pesquisa poderia gerar uma visão ofuscada sobre a realidade ao considerar que esta é apenas a soma de pequenas parcelas criadas ou descobertas pela ciência. Esse equívoco ou dispersão poderia ser minimizado com a Filosofia e as humanidades; 2) A “bondade” trata-se de uma consequência da “ética”. O pesquisador deveria considerar a ética como resultado de um conjunto de valores e virtudes morais, oriundos do treinamento humanístico na ciência. As concepções de “verdade” e “conhecimento” são os fundamentos da ética do pesquisador. Ainda segundo a perspectiva de Covian, o cientista não deve ficar alheio às demandas sociais e políticas com as quais convive. Daí, a origem da necessidade do treinamento moral; 3) De acordo com Covian, as pessoas e os cientistas devem se “maravilhar” com a experiência da realidade. Elas devem ser curiosas e reconhecerem a “beleza” do mundo, ato que promoveria o “livre pensar”. A criação do conhecimento científico junto com as humanidades resulta em produção de cultura, uma forma de exercitar o pensamento argumentativo e crítico na sociedade (MIRANDA, et. al. 2015: p. 40).

Dessa forma, os imperativos morais e éticos da tríade advogada por Covian, conectam o conhecimento técnico da ciência com a cultura, a sociedade e a política. Especificamente, aquela forma de saber originada em sua relação com as humanidades. Segundo Miranda (et. al. 2015), esse tipo de educação permitiria os cientistas se comprometerem com práticas éticas e mudanças sociais. Assim, Covian pretendia harmonizar a Fisiologia com a Filosofia, o que implicaria a união das humanidades com a “Ciência”. Baseado em tal concepção, o neurofisiologista argentino criou uma área de pesquisa denominada por ele de “interação cérebro-mente”, que representou seu principal interesse pela Neurofisiologia.

140

Um dos seus discípulos que se destacam nessa narrativa histórica da comunidade neurocientífica trata-se do próprio César Timo-Iaria (1913 - 2005), autor de um dos textos de referência do presente capítulo e que constitui a segunda geração de neurocientistas paulistas. O “(...) descendente de Covian, que foi meu mestre em eletrofisiologia”, formou-se na Escola Paulista de Medicina (EPM), em 1952. Seguiu para o Departamento de Fisiologia da FMRP para realizar o Doutorado, defendido em 1961, com o título “Efeitos da estimulação da formação reticular mesencefálica sobre reflexos monossinápticos espinais”257.

Em 1958 e 1959, Timo-Iaria realizou Pós Doutorado na State of New York University, e em 1962, prestou livre-docência com a tese “Efeitos da estimulação do córtex cerebelar sobre motoneurônios”, na FMRP-USP. A atividade científica do pesquisador foi marcada pela descoberta:

(...) de que a glicemia não é regulada pelo balanço passivo glicose- insulina, como ainda se ensina, mas por um sistema neural que se inicia em glicoreceptores sensíveis à citoglicopenia, que medem a glicemia continuamente e acaba no fígado. Em experiência com ratos, gatos, cães e humanos, chegou à conclusão de que a fome não é desencadeada pela hipoglicemia, mas pelo trabalho metabólico do fígado para impedir que a glicemia baixe em função do consumo258. Ou seja, as pesquisas do neurofisiologista da USP, seguiram agenda de pesquisa sobre s fisiologia do sistema endócrino iniciadas por Houssay na Argentina, aprendidas e continuadas através da orientação de Miguel Covian, no Brasil. Timo-Iaria, acrescentou à descoberta do galardoado com o Nobel, o papel do fígado na manutenção dos níveis de glicose em situações de falta de energia no organismo. O órgão possui células glicorreceptoras que funcionam indicando ao cérebro a todo o momento a concentração de glicose na circulação sanguínea. Para o pesquisador, existem glicorreceptores em três partes do organismo: “Os mais potentes estão no hipotálamo, mas também estão presentes no fígado e na região denominada núcleo do trato solitário, localizados na parte mais caudal do encéfalo, sob a nuca”259. Isso significa que em um organismo que não recebe alimentos, o intestino não fornece ao fígado matéria-prima para produzir glicose. Este órgão, por sua vez, mantém os níveis de concentração de açúcar no sangue e aciona as células glicorreceptoras260.

257 “Currículo Lattes de César Timo-Iaria”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C67. Acessado em: 5/6/2016. 258 “Biografia de César Timo-Iaria – ABC”. Página da Academia Brasileira de Ciências. Quadro 3, C68. Acessado em 7/6/2016. 259 “Entrevista César Timo-Iaria sobre a fisiologia da fome”. Matéria da Revista Superinteressante. Quadro 3, C69. Acessado em 7/6/2016. 260 Quadro 3, C69. 141

Outra agenda de pesquisa de relevância do neurofisiologista paulista, trata-se de suas pesquisas iniciadas em meados da década de 1960, em que inicia os registros em eletroencefalografia do sono experimental em gatos e se aproxima da agenda de pesquisa desempenhada por Covian no Brasil. “Descobriu, em 1963 que núcleos da região dorsolateral do tegmento da ponte participam da gênese do sono; todos os especialistas em mecanismos de gênese do sono dessincronizado (fase do sono que ocorrem os sonhos) trabalham atualmente com esses núcleos”261. Na década de 1970, sistematizou as características eletrofisiológicas do alerta, ou vigília, e do sono do rato, animal que passou a ser utilizado para os estudos do sono. Na época, também atuou para a criação do Laboratório de Fisiologia na FMRP-USP, no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) – onde foi professor titular de Fisiologia - e na Faculdade de Medicina da USP, na capital paulista.

Segundo Frederico Graeff (FMRP-USP)262, as pesquisas em Fisiologia realizadas por Covian e Timo-Iaria, sobre o sistema nervoso e sua relação com o comportamento constituem uma das agendas de pesquisa fundamentais que sedimenta a produção do conhecimento da comunidade neurocientífica brasileira. Para o entrevistado, em paralelo a esta agenda desenvolvida na área de Fisiologia, a institucionalização da área de Farmacologia na FMRP-USP também produziu pesquisas básicas e experimentais que contribuíram para sedimentar o estilo de pensamento da psicobiologia no estado de São Paulo.

“Então hoje o que se chama de neurociência comportamental, naquela época, isso já era um avanço porque estava ligada à fisiologia, à farmacologia ou à morfologia, então já surgiu um campo multidisciplinar enfocado naquilo que hoje nós chamamos de neurociência comportamental”263. De forma a compreender como se deu tal desenvolvimento, o neurocientista destaca a atuação de seu “pai” (na linhagem genealógica da comunidade neurocientífica) para a institucionalização das pesquisas psicofarmacológicas, que é Maurício Oscar da Rocha e Silva (1910 – 1983).

Maurício Rocha e Silva graduou-se na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro, quando iniciou carreira científica na área de Fisiologia, atuando como assistente no laboratório dos Ozórios daquela capital carioca. Mudou-se para São Paulo na década de 1930, a convite de Otto Bier (1908 – 1985), imunologista do Instituto Biológico de São Paulo264. Na

261 Quadro 3, C68. 262 Quadro 1; A10. 263 Quadro 1; A10. 264 O Instituto foi criado em 1927 e é considerado o “primeiro centro de formação e debate científico do Estado de São Paulo”. Localizado na capital paulista, seu surgimento se contextualiza em uma época em que o café era 142 capital paulista, Rocha e Silva também freqüentou a Faculdade de Farmácia e Odontologia da USP, quando foi assistente de química biológica do catedrático italiano Quintino Mingoya (1902 - 1981) e assistente científico de André Dreyfus (1897 – 1952), médico de formação e biólogo, um dos fundadores da genética brasileira, na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras, da mesma universidade265.

Em 1937, Rocha e Silva passou a atuar dentro do quadro de pesquisadores no Instituto Biológico, quando então se especializou em imunologia e reação inflamatória com destaque para as pesquisas com a histamina e as enzimas proteolíticas. Uma das suas primeiras pesquisas foi sobre a toxicidade do alecrim (Holocalyx glaziovii) que acometia o gado bovino na região nordeste do estado de São Paulo. O pesquisador conseguiu provar que o animal quando ingeria a planta acabava morrendo com o fígado endurecido e com grande retenção de líquido biliar. Assim, conseguiu solucionar um problema que atendia os objetivos do Instituto em atuar em problemas da área agrícola266.

No entanto, a agenda de pesquisa que deu notoriedade à Rocha e Silva surgiu em colaboração com Otto Bier e tratava-se de investigar os efeitos da histamina e da tripsina, um tipo de enzima produzida pelo pâncreas e que age no duodeno durante a ingestão de alimentos, no final da década de 1930. Na época, o pesquisador tinha a idéia de utilizar em experimentos os venenos de ofídios devido à sua capacidade de degradação de enzimas, ou proteólise. Sabendo do avanço das pesquisas com ofídios em diferentes países do mundo, Rocha e Silva realizou estágios no exterior para aprofundar tais estudos. No retorno ao Brasil em 1942, após um período de dois anos nos EUA, o pesquisador assumiu a chefia da Seção de Bioquímica e Farmacodinâmica do Instituto Biológico.

Após novo estágio em Londres entre 1946 e 1947, onde aprofundou as pesquisas sobre os efeitos da liberação da histamina, o pesquisador retornou ao Instituto Biológico, quando passou a trabalhar em colaboração com o fisiologista Wilson Teixeira Beraldo (1917- 1998), da Faculdade de Medicina da USP, e Gastão Rosenfeld (1912-1990), que acabara de sair do Instituto Butantan para atuar junto à Rocha e Silva, devido às transformações na política científica do estado de São Paulo. um dos principais produtos da economia brasileira. Em 1924, uma forte praga assolou a produção agrícola do país e, tendo em vista os possíveis prejuízos, os barões do café pressionaram a Secretaria de Agricultura para a criação de uma comissão para combate e estudo do parasita, denominado cientificamente de Hypothenemus hampei, ou popularmente de “broca”. Disponível em: http://www.biologico.sp.gov.br/quemsomos.php. Acessado em 10/8/2016. 265 “Biografia Maurício Rocha e Silva”. Página do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Canal Ciência. Quadro 3, C70. Acessado em 10/8/2016. 266 Quadro 3, C70. 143

O Butantan teve uma série de mudanças em sua direção no final da década de 1930 e começo de 1940, realizadas pelo interventor do Estado, Adhemar de Barros (1901- 1969). Em tal período, diferentes diretores assumiram o posto no Instituto. Devido ao espectro ideológico da governança do país e, no caso do estado de São Paulo não era diferente, pesquisadores estrangeiros foram demitidos do Instituto por “serem vistos como uma ameaça à segurança nacional” (TEIXEIRA, 2016; p. 170).

A política científica do Instituto sofre uma nova crise em 1947, quando Eduardo Vaz (1898 – 1962), assume a direção e separa as atividades de pesquisa e produção. Egresso da indústria farmacêutica267, o diretor acreditava que o Butantan “deveria ter como objetivo central a produção de produtos para a saúde pública” (idem, 2016; p. 170) e recebe permissão do governo do Estado para realizar reformas nos estatutos do Instituto. Assim, as atividades de pesquisa no local focaram a preparação de imunobiológicos para a defesa sanitária e os estudos de animais peçonhentos, o que causou o fechamento ou a transferência de laboratórios e pesquisadores para outras instituições, como a USP e a EPM. Tais diretrizes foram consideradas autoritárias e mudaram os rumos da pesquisa no Instituto Butantan, contexto que motivou a mudança de Gastão Rosenfeld.

É nessa época e com tais pesquisadores que Rocha e Silva ganhou notoriedade por ter descrito a ação da molécula que deu o nome de bradicinina, no final da década de 1940. Rosenfeld levou consigo para o Instituto Biológico, amostras do veneno da cobra Jararaca (Bothrops jararaca) que foram utilizados nos experimentos realizados com Rocha e Silva e Wilson Teixeira Beraldo. A descoberta da ação da molécula se deu em consequência dos estudos que Rocha e Silva havia realizado com a histamina. A idéia era investigar a ação do veneno em cães previamente tratados com atropina e anti-histamínicos para torná-los insensíveis. Mesmo assim, o intestino dos cães respondia ao sangue ao contrair-se, o que provou que tal mecanismo não era ativado nem pela acetilcolina (bloqueada pela atropina), nem pela histamina. Ao retirar amostras do sangue do fígado das cobaias, Rocha e Silva notou

267 Na época, o Instituto Pinheiros e o Laboratório Paulista de Biologia eram duas empresas do setor farmacêutico que produziram interação com institutos públicos de pesquisa, tais como o próprio Instituto Butantan, Instituto Pasteur e Instituto Biológico em São Paulo. Eduardo Vaz iniciou sua trajetória na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro e foi orientado por Vital Brazil (1865 – 1950), proprietário do Instituto Vital Brazil criado em 1919, em Niterói, para produção de produtos biomédicos. Vaz criou, em 1928, com Mário Augusto Pereira, outro médico formado na capital carioca e orientado por Brazil, a “Vaz, Pereira e Cia Ltda”, empresa laboratorial para produção de produtos farmacêuticos. Em 1936, o laboratório paulista mudou seu nome para “Instituto Pinheiros S&A”. Para mais, consultar: RIBEIRO, Maria Alice Rosa. (2006). Indústria farmacêutica na era Vargas: São Paulo 1930 – 1945. Cadernos de História da Ciência. Instituto Butantan. Vol. II. pp. 47 – 76. 144 que uma substância produzida pela globulina do plasma havia sido liberada como reação ao veneno da Jararaca, a bradicinina268.

A primeira comunicação da descoberta de Maurício Rocha e Silva, Gastão Rosenfeld e Wilson Beraldo, ocorreu em 1949, na revista Ciência e Cultura, da então recém formada SBPC. No ano seguinte, o trabalho completo foi publicado no American Journal of Physiology269. A bradicinina é uma substância formada por cadeia de aminoácidos de função hipertensora que atua em vários tecidos e órgãos, inclusive em inflamações. É um vaso dilatador que atua na redução da pressão dos vasos arteriais. Tais achados causaram “profundos impactos na indústria farmacêutica e no tratamento da hipertensão e das doenças cardíacas”270.

Aqui se faz necessário um adendo sobre a criação da SBPC, para ilustrar mais ainda a forma como tais pesquisadores da comunidade neurocientífica brasileira percebem a PCT. Na biografia utilizada de apoio para apurar a trajetória de Rocha e Silva, é notável o descontentamento do pesquisador com a política científica da época. Por exemplo, os episódios que ocorriam no Butantan resultantes da intervenção do governador de São Paulo nos institutos da capital e que motivaram a transferência de Rosenfeld para o Instituto Biológico, o “pai da bradicinina”271 classifica o diretor daquele Instituto, Eduardo Vaz, como “um político inescrupuloso e mau cientista”272. Convencido da importância das associações científicas devido à sua experiência em Londres e Estados Unidos, Rocha e Silva se aproximou de outros cientistas líderes de pesquisas de outras instituições, dentre eles José Ribeiro do Valle (1908 – 2000), que decidiram atuar na criação de uma sociedade em defesa da ciência no Brasil e conseguiu motivar uma série de cientistas em prol de tal idéia. Em 8 de Julho de 1948, a SBPC foi criada com 256 sócios fundadores273.

Em 1957, “no auge de uma carreira científica de sucesso”274, Rocha e Silva aceita o convite de Zeferino Vaz, para assumir como professor catedrático o Departamento de Farmacologia da FMRP-USP. O então diretor da “jovem Faculdade, (...) no oeste paulista, [desejava que o local] se tornasse um verdadeiro centro de investigação em farmacologia e

268 Quadro 3, C70. 269 ROCHA E SILVA, M.; BERALDO, W. T.; ROSENFELD, G.; (1949). Bradykinin: a hypotensive and smooth muscle stimulating factor released from plasma globulin by snake venoms and by trypsin. American Journal of Physiology. Feb. 156(2): 261-73. 270 “Matéria sobre as contribuições da FMRP-USP nos estudos sobre hipertensão”. Página da FMRP-USP. Quadro 3, C71. Acessado em: 10/8/2016. 271 Quadro 1; A10. 272 Quadro 3, C70. 273 “História da SBPC”. Página da SBPC. Quadro 3, C72. Acessado em: 10/8/2016. 274 Quadro 3, C72. 145 considerava que Rocha e Silva era o homem certo para realizar essa tarefa”275. Em Ribeirão Preto, o farmacologista continuou sua agenda de pesquisa estudando diferentes aspectos da bradicinina e através dela iniciou o treinamento científico de uma série de discípulos, dentre eles o futuro galardoado com a Medalha Neurociências Brasil, de 2008, Frederico Guilherme Graeff (FMRP-USP).

Na biografia do neurocientista que consta no site da SBNeC, é citado que ele ingressou na graduação da FMRP-USP em 1958. Em tal período, destaca-se a influência em sua formação do modelo norte americano na implantação da Faculdade que aliava ensino e pesquisa. “Desde as primeiras visitas, os alunos adentravam nos laboratórios onde se fazia pesquisa original. Este foi, para Graeff, o primeiro contato com o método científico”276. Ainda em tal período de formação, “a atração pela neurociência”277 começou nas aulas de neuroanatomia do histologista Lucien Lison (1907 – 1984) e da neurofisiologia dos professores argentinos Maria Carmelo Lico (1927 – 1985), Ricardo Francisco Marseillan (1933 – 1981) e Miguel Rolando Covian. Destaca-se também que Zeferino Vaz havia contratado para a Faculdade um psicanalista chileno, Hernan Davanzo Corte278, que buscava integrar os conhecimentos da psicanálise sobre o comportamento e as funções biológicas do cérebro.

Foi nessa época de graduação que Graeff inicia seus contatos com a pesquisa. A Pós-Graduação não era formal no país e a “iniciação” científica se deu pela atuação de seu colega, João Garcia Leme (1936 – 2005), para que Graeff participasse das atividades no laboratório de Rocha e Silva. O primeiro trabalho do futuro neurocientista foi orientado pelo próprio Garcia Leme. “Curiosamente eu comecei a trabalhar com um assunto que eu trabalho até hoje, que foi um neurotransmissor chamado ‘serotonina’279 (...) e era relacionado com um quadro provocado no reação neuromotora do camundongo”280. No entanto, ambos os pesquisadores que auxiliariam Graeff não trabalhavam com a atuação de drogas no organismo e seus efeitos no comportamento. Em Ribeirão Preto, quem mais se aproximava deste campo

275 Quadro 3, C72. 276 Quadro 3, C38. 277 Quadro 3, C38 278 Não foram encontrados dados biográficos do pesquisador. 279 O neurotransmissor é produzido pelo sistema nervoso central do cérebro que conduz impulsos nervosos. A molécula possui papel de regular a ira, o humor, a temperatura corporal, sono e apetite. Disponível em: http://www.infoescola.com/neurologia/serotonina/. Acessado em 10/8/2016. 280 Quadro 1; A10. 146 era o pesquisador do Departamento de Farmacologia, Alexandre Pinto Corrado (FRMP-USP), com quem Graeff aprendeu técnicas de eletroencefalografia em gatos e coelhos281.

O próximo passo do estudo experimental do comportamento em bases biológicas se deu ainda no curso médico, quando estagiou no Departamento de Psicologia Experimental da USP, na capital paulista, dirigido por Carolina Martuscelli Bori (1924 – 2004). No laboratório dirigido pela pesquisadora, o neurocientista aprendeu as técnicas de pesquisa das teorias de Burrhus Frederick Skinner que eram amplamente utilizadas naquela época dentre as psicociências nos estudos do comportamento.

(...) lá aprendeu a treinar ratos utilizando diversos esquemas de reforço. Fiel a suas tendências [de Skinner], sua atenção foi atraída pelo modelo de punição ou de conflito, em que uma resposta do animal é mantida por recompensa e, simultaneamente, suprimida pela apresentação de estímulo nocivo, geralmente, um choque nas patas. Parecia ter algo a ver com a ansiedade282. Após o término da graduação em 1963, inicia o doutoramento no ano seguinte, quando realizou o “’casamento’ intelectual com a serotonina”283 desenvolvendo a tese “Aspectos psicofarmacológicos das ações de drogas que alteram o metabolismo de aminas biogênicas”, no Departamento de Farmacologia da FMRP-USP, sob orientação de Maurício Rocha e Silva, defendida em 1968284. No mesmo ano, realiza Pós-Doutorado na Harvard University, nos EUA, no Setor de Farmacologia Comportamental, do Departamento de Farmacologia com orientação de Frederick Simmons Keller (1899 – 1996)285, colaborador de pesquisas de Skinner. O contato de Graeff com o pesquisador se deu ainda na época em que realizou parte da graduação no Departamento de Psicologia Experimental na capital paulista286.

No relato da biografia de Graeff sobre o estágio em Boston, quando aprofundou suas pesquisas sobre a serotonina, é comentada as dificuldades de adaptação que o neurocientista teve ao clima e a uma “acolhida fria para não dizer gelada a um sul americano

281 Quadro 1; A10. 282 Quadro 1; A10. 283 “Currículo Lattes de Frederico Graeff”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C73. Acessado em: 10/8/2016. Aqui faz-se necessária uma ressalva. Sigo a informação que consta no currículo Lattes de que Rocha e Silva foi seu orientador no Doutorado. No entanto, na biografia do neurocientista no site da SBNeC e no vídeo feito por ocasião do recebimento da Medalha Neurociências Brasil de 2008, é citado Alexandre Corrado como seu mentor na tese. Mantenho as informações do currículo de Graeff. 284 Quadro 3, C73. 285 O pesquisador norte americano é considerado, nas entrevistas de Graeff e de Dora Fix Ventura, como um dos responsáveis pela introdução da pesquisa de abordagem comportamental e biológica no Departamento de Psicologia Experimental da USP, em São Paulo. Retomarei tais aspectos na trajetória de Dora Fix Ventura. 286 Quadro 3, C73. 147

[que] resultaram num tempo nebuloso”287. Somada a tal situação, após seis meses de financiamento do NIH, não havia desenvolvido resultados consistentes publicáveis, algo que repercutia entre seus colegas. “Foi, então, que decidiu tentar alternativas desesperadas”288.

Uma delas foi injetar metisergida, droga que se acreditava útil no tratamento da agitação maníaca, em um grupo de pombos que haviam sido treinados em um esquema de punição (...). Neles, havia medido o efeito anticonflito de vários ansiolíticos benzodiazepínicos. (...) Foi assim que, num sábado, se surpreendeu com o ritmo elevado de bicadas de um pombo injetado com a droga. Quando viu o registro cumulativo ficou impressionado. Havia um anticonflito de magnitude igual ao do mais potente benzodiazepínico. Confessa que teve a sensação de eureka e a intuição de que as dificuldades haviam terminado. Aprendeu depois que este acontecimento se chama serendipity289. A “descoberta ao acaso” (significado de serendipity)290, apontou para a necessidade de compreender o mecanismo da ação anti-conflito. Ao consultar a literatura, Graeff relata que a metisergida291 bloqueia receptores de serotonina. Em seguida, o pesquisador brasileiro junto com o colega alemão Ronald I. Schoenfeld testaram o ácido bromo-lisérgico, uma substância análoga, mas não alucinogênica, que teve o mesmo efeito da metisergida. “Em contrapartida verificaram que um agonista serotonergético acentuava a supressão das bicadas determinada pela punição”. Tais achados foram publicados em 1970, no Journal of Pharmacology and Experimental Therapeutics292. A pesquisa resultou em um dos principais modelos do mecanismo da ansiedade da literatura da área e sustentou investigações sobre o papel da serotonina no comportamento que foram replicadas em outros laboratórios.

287 Quadro 3, C73. 288 Quadro 3, C73. 289 Quadro 3, C73. 290 “Busca do significado do termo ‘serendipity’ no dicionário Cambridge”. Dicionário Cambridge Online. Quadro 3, C74. Acessado em: 10/8/2016. 291 A substância foi desenvolvida na década de 1950, por Frederigo Sicuteri (1920 – 2003), um neurologista italiano que trabalhava para a empresa farmacêutica Sandoz. Na época, era muito comum pesquisas na bioquímica sobre o ácido lisérgico, ou LSD. Dentre seus efeitos, já era reconhecido que o ácido tinha forte ação sobre o neurotransmissor serotonina, tendo efeitos benéficos para enxaquecas, mas com alto poder alucinógeno. Sicuteri realizou experiências com moléculas modificadas do LSD, até conseguir sintetizar a metisergida e demonstrar a sua ação específica na serotonina em pacientes com cefaléia e enxaquecas, sem o efeito alucinógeno. Disponível em: http://www.enxaqueca.com.br/blog/metisergida-obituario/. Acessado em 15/8/2016. 292 GRAEFF, F. G.; SCHOENFELD, R. I. (1970). Tryptaminergic mechanisms in punished and unpunished behavior. Journal of Pharmacology and Experimental Therapeutics. EUA. v. 173, n. 4, p. 277 – 283. 148

Graeff retornou em 1969 para o Brasil, após o término do Pós-Doutorado, com a condição de professor assistente no Departamento de Farmacologia da FMRP-USP. Em 1972, tornou-se livre-docente293. Na biografia que consta no site da SBNeC sobre sua trajetória, é relatado que nesse período e pelos dez anos seguintes, o neurocientista ampliou o laboratório de Psicofarmacologia no Departamento onde atuava, estreitou relações de pesquisa com Miguel Covian, com publicações de trabalhos294 e orientou pesquisas de alunos de pós- graduação295.

Outro momento importante da trajetória destacada em sua biografia trata-se de um novo período de Pós-Doutorado (1978 - 1979), no Departamento de Psicologia Experimental na Universidade de Oxford, em Londres. Em colaboração com Jeffrey Alan Gray (1934 – 2004), desenvolveu um modelo neuropsicológico da ansiedade baseado na relação entre a Matéria Cinzenta Periaquedutal Dorsal (MCDP) e o sistema septo-hipocampal para a inibição do comportamento punido296. Tais pesquisas foram fundamentais para a continuidade de sua agenda de pesquisa no Brasil, quando passou a focar na MCDP e a sua relação com o transtorno do pânico297, investigações que realizou no Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da USP, onde se tornou Professor Titular, em 1986298.

Da biografia do honrado com a Medalha Neurociências Brasil de 2008, destaco uma longa citação de sua visão sobre a PCT brasileira presente em sua biografia no site da SBNeC:

Graeff acredita que sua geração deu um salto importante que foi inserir o Brasil no grupo das nações que produzem artigos científicos de qualidade internacional. Porém pensa que o país falhou na inovação tecnológica e no desenvolvimento. Esta deficiência não deve ser imputada aos pesquisadores, porém à falta de um projeto nacional de desenvolvimento educacional e empresarial. Onde este existiu, que foi na pós-graduação, a resposta da comunidade científica fez-se sentir. (...) Porém, há que apontar riscos no exagero de uma visão por demais utilitarista da pesquisa científica. A fonte da inovação é a criação científica original, muitas vezes distanciada da aplicação imediata. Não se pode confundir cientista ‘que descobre fatos novos,

293 Quadro 3, C73. 294 Ver nota de rodapé 255. 295 Quadro 3, C38. 296 GRAEFF, F. G.; QUINTERO, S.; GRAY, J. A. (1980). Median raphne stimulation, hipocampal theta rythim and threat-induced behavioral inhibition. Physiology and Behavior, v. 25, n. 2, p. 253-261. 297 DEAKIN, J. F. W.; GRAEFF, F. G. (1991). 5-HT and mechanisms of defence. Journal of Psychopharmacology. (Oxford). v.5, n. 2, p. 305-311. 298 Quadro 3, C73. 149

formula hipóteses originais e as verifica experimentalmente’ com operadores de máquinas complexas que produzem fileiras de dados de significado incerto. Só os primeiros serão capazes de interpretá-los e, sobretudo, de formarem a próxima geração de pesquisadores. Desprezá-los é matar a galinha da fábula, para ficar temporariamente, com os ovos de ouro299. Outro neurocientista que compõe a narrativa da comunidade científica paulista e que é contíguo ao estilo de pensamento da fisiologia dos animais é Dora Selma Fix Ventura (USP), galardoada com a Medalha Neurociências Brasil de 2010300. A pesquisadora iniciou sua graduação em 1957, em Psicologia na USP e comenta que no início do curso havia uma série de disciplinas com forte ênfase em ciências humanas, tais como a Antropologia, Filosofia e as teorias psicológicas que se baseavam nos conhecimentos da psicanálise301. “Eu fui vendo que aquilo não me satisfazia, porque eu pensava: na hora que eu for praticar, ter uma atividade clínica, praticar minha profissão, eu vou optar por essa teoria ou por aquela teoria?”302.

Diante de tal impasse, Ventura atribui às aulas do professor visitante Frederick Keller, o seu direcionamento para a pesquisa científica. “Porque ele mostrou para nós alunos, eu estava no terceiro ano da graduação, que era possível fazer experimentação e ter dados controlados, científicos, de uma forma rigorosa em psicologia”303. A aproximação junto ao professor norte americano permitiu à neurocientista a iniciação na ciência e rendeu a sua primeira publicação de artigo304.

Após a graduação, a neurocientista realizou o Mestrado na Columbia University, em Nova York (EUA), sob orientação do professor Keller, entre 1962 e 1964, sendo as disciplinas experimentais e o exame de qualificação os requisitos para adquirir tal título. Lá, se deparou com uma pós-graduação já institucionalizada, algo que não ocorria no Brasil. Segundo ela:

Não se fazia pós-graduação nos moldes que é hoje. As pessoas faziam doutorado depois de contratadas, muito mais tarde. Quando eu cheguei na Columbia, para minha surpresa, eu me deparei pela

299 Quadro 3, C38. 300 Quadro 3, C36. 301 Departamento de popularização e Difusão de C&T (MCTI)/Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast/MCTI). A ciência que eu faço – Dora Fix Ventura 1. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dAt96Day1eE. Acessado em: 25/8/2016. 302 Ibid. 303 Ibid. 304 AZZI, R.; ROCHA & SILVA, M.; BORI, C. M.; VENTURA, D. F.; KELLER, F. S. (1963). Suggested Portuguese translations of expressions in operant conditioning. Journal of Experimental Anlysis and Behavior. v. 6, p. 91-94. 150

primeira vez com um curso de pós-graduação totalmente estruturado, como são os cursos que nós temos hoje no Brasil. Isso não existia, porque nós estamos falando de 1962305. Entre 1964 e 1968, realizou tese de Doutorado em Psicologia Experimental na mesma universidade, orientada por Clarence Graham (1906 – 1971), o que significou uma nova mudança nos seus interesses de pesquisa e as bases de sua trajetória científica, pois passou a investigar a psicofísica da visão humana ao invés do estudo experimental do comportamento, que era a agenda de Keller. “No meu caso do meu doutorado era um teste num sistema ótico que eu montei para estudar especificamente coisas ligadas a percepção temporal de eventos”306.

Não fiquei na área do professor Keller! Porque a área do Keller era de análise experimental do comportamento, área de condicionamento operante e aprendizagem. (...) Eu queria ir além disso. Eu queria saber os mecanismos pelos quais os seres humanos, ou os animais, eram condicionáveis, aprendiam as coisas e o por quê. O que permitia no sistema nervoso deles que eles chegassem a isso? Então na verdade eu queria estudar a relação entre cérebro e o comportamento. E não só o comportamento, ou a relação dos estímulos do meio ambiente e o comportamento que era a área de análise experimental do comportamento. O que era muito interessante. Mas eu queria entrar dentro da caixa preta que é o cérebro307 A pesquisadora justifica que a mudança de foco nas pesquisas, da área de análise do comportamento para o estudo da relação entre estruturas do cérebro e o sistema visual, se deu pelo fato de que a visão seria um “facilitador” para compreender a relação entre estímulo externo e o comportamento, pois “(...) conseguiria muito claramente medir o estímulo visual (...) e a parte anatômica das vias visuais [do cérebro] muito conhecida (...). Muito mais que os circuitos neurais de aprendizagem que até hoje estão sendo elucidados”308. Assim, para Ventura, o estudo da psicofísica humana seria uma forma, também, de investigar a relação do comportamento com o cérebro, “(...) mesmo sem acessar diretamente as estruturas neurais. Mas você faz hipóteses e perguntas sobre que estruturas estão funcionando mediante que situações de estimulação você tá realizando”309.

305 Departamento de popularização e Difusão de C&T (MCTI)/Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast/MCTI). A ciência que eu faço – Dora Fix Ventura 1. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dAt96Day1eE. Acessado em: 25/8/2016. 306 Quadro 1; A8. 307 Departamento de popularização e Difusão de C&T (MCTI)/Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast/MCTI). A ciência que eu faço – Dora Fix Ventura 1. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dAt96Day1eE. Acessado em: 25/8/2016. 308 Ibid. 309 Ibid. 151

Na volta ao Brasil após o doutoramento, a neurocientista passou a freqüentar os congressos da Sociedade Brasileira de Fisiologia, não os da Psicologia, e se aproximou do laboratório chefiado por César Timo-Iaria, que estava na Faculdade de Medicina da USP310. “Eu provavelmente faria alguma coisa ligada à área comportamental e a fisiologia dele. Mas, nos Estados Unidos tinha mergulhado muito em neurofisiologia. Eu queria fazer registro em neurônios individuais e verificar o controle sensorial de uma resposta motora”311. Nesse ínterim, sem uma posição institucional definida, a neurocientista recebeu convite da antiga professora e diretora do Departamento de Psicologia Experimental da USP, Carolina Bori, para instalar o Laboratório de Psicologia Sensorial naquele local.

Então eu tinha aí essa possibilidade de trabalhar com o César [Timo- Iaria] ou de vir para esse departamento. (...) Resolvi que o melhor para mim era vir para a Psicologia. Por quê? Era onde eu teria maior independência, uma carreira mais... Do jeito que eu quisesse... (...) Na Faculdade de Medicina onde seria dominada minha atividade pelas incursões pela faculdade dos médicos, né? Enfim, sentia que eu, como Psicóloga, seria menos valorizada, teria menos espaço, digamos, num ambiente da faculdade de medicina e aqui eu seria mais dona do meu nariz. Então resolvi ir por esse caminho (Fonte: Quadro 1: A8). Dessa forma, com a possibilidade de institucionalização de sua agenda de pesquisa, Ventura conseguiu criar a interação entre a psicologia experimental de análise do comportamento com a psicofísica que aprendeu no doutoramento dentro do Departamento de Psicologia Experimental, do Instituto de Psicologia da USP. “O que eu recebi no Departamento quando cheguei, e era motivo de gozação na minha família, foi um banheiro vazio. Um ‘ex’ banheiro foi meu laboratório”312. Com o tempo, os aparelhos de eletrofisiologia foram chegando e, para desenvolver sua agenda de pesquisa, escolheu um organismo simples, um invertebrado, para investigação, pois “(...) na época se usava muito a idéia de circuitos neuronais, mas com o registro menor de neurônios (...) em um sistema nervoso simplificado do que o sistema nervoso de um vertebrado”313.

No começo das pesquisas o animal escolhido foi a Aplysia, um tipo de lesma do mar, e o lagostim, ou camarão de rio, Metanephrops rubellus. Essas espécies de invertebrados eram muito utilizadas nas pesquisas em neurobiologia na época e ganharam destaque, principalmente, nos estudos realizados em colaboração por Eric Kandel (Columbia

310 Quadro 1; A8. 311 Quadro 1; A8. 312 Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC). Medalha Neurociências Brasil 2010 – Dora Ventura – Parte 1. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zXcCXPz5gzs&t=96s. Acessado em 25/8/2016. 313 Ibid. 152

University, EUA), Paul Greengard (The Rockefeller University, EUA) e Arvid Carlsson (Universidade de Lund, Suécia). Em suas pesquisas, os neurocientistas descreveram os mecanismos da transdução de sinais do sistema nervoso, ou as reações bioquímicas da célula nervosa que são levadas por enzimas ativadas pelos mensageiros secundários, que ocorrem em milissegundos no cérebro. No ano de 2000, ganharam o Prêmio Nobel de Medicina por tal descrição314.

A pesquisadora comenta que com o tempo teve que mudar o modelo animal de suas pesquisas por conta de certos constrangimentos em conseguir o camarão de rio, o que causava empecilhos no andamento de sua agenda de pesquisa: “Eu até comecei com o negócio dos insetos por um acaso porque o camarão de rio, o lagostim que eu usava era muito difícil de pegar lá no litoral e ia e vinha, fazia expedições e para manter vivo... Morria metade pelo caminho e coletar era difícil!”. Ventura relata que para escolha do novo modelo de invertebrado consultou o laboratório ao lado do seu que era chefiado por Walter Cunha (USP), considerado um dos precursores da psicologia animal e etologia no Brasil315, e com quem a neurocientista conseguiu amostras de Atta sexdens (Figura 16), uma espécie de formiga, que passou a utilizar para desenvolver suas pesquisas com eletroretinograma.

Uma das primeiras coisas que eu fiz foi eletroretinograma. (...) Então usamos a comparação de formigas que tem diferenças no número de omatídeos no olho. Então você tem uma formiga que tem um olho que parece quase uma abelha e no outro extremo você tem formiga que tem um olho que tem uma meia dúzia de ‘facetinhas’ assim, os omatídeos são as facetas do olho dela. E uma é noturna e outra é diurna. Uma você pega assim com a mão a outra te engana e corre e dificilmente consegue pegar. Ela tem uma visão muito boa. Então os primeiros estudos que agente fez de eletrofisiologia utilizava desses animais e foram duas teses de doutoramento de dois alunos que estavam ali no começo fazendo isso. Então eu tinha uma idéia de estudar o sistema sensorial e olhar para as respostas elterofisiológicas para fazer os estudos desses sistemas e ver as adaptações desses sistemas aos nichos ecológicos e ver as condições de vida desses animais. Então era um estudo de fisiologia comparada. E psicofisiologia, que era como a gente chamava (Fonte: Quadro 1: A8). A pesquisa com invertebrados constituiu a agenda de pesquisa de Dora Fix Ventura de 1970 até o final de 1980, período em que também desenvolveu pesquisas com a abelha Melipona quadrifasciata (Figura 17), popularmente conhecida como Mandaçaia. Já no

314 “Busca da biografia dos ganhadores do Prêmio Nobel, Eric Kandel, Paul Greengard e Arvid Carlsson”. Página do Prêmio Nobel. Quadro 3, C75. Acessado em 25/8/2016. 315 Para conhecer mais sobre a trajetória do pesquisador, consultar: FUCHS, Hannelore. (1995). Psicologia animal no Brasil: o fundador e a fundação. Psicologia USP, v.6, n. 1, p. 15-42. 153 início do século XXI, a neurocientista adota vertebrados em suas pesquisas, mas especificamente a tartaruga-de-ouvido-vermelho, Trachemys scrypta elegans (Figura 18).

Figura 16: A formiga Atta Figura 17: A abelha Melipona quadrifasciata. Figura 18: A tartaruga Trachemys sexdens. Fonte: Fonte: scrypta elegans. Fonte: https://en.wikipedia.org/wik https://pt.wikipedia.org/wiki/Manda%C3%A7 https://pt.wikipedia.org/wiki/Tartar i/Atta_sexdens. Acessado aia. Acessado em: 25/8/2016. uga-de-orelha-vermelha. Acessado em: 25/8/2016. em: 25/8/2016.

Tais animais fora fundamentais no desenvolvimento de suas pesquisas, pois além de orientar alunos de Mestrado e Doutorado, a neurocientista produziu colaborações com a Freie Universität Berlin, da Alemanha, e com o Instituto de Ciências Biológicas da UFPA, respectivamente. O uso de tais animais para a pesquisa correspondia com o estilo de pensamento dos animais em voga na época, que consistia em estudar as estruturas e funções dos sistemas sensoriais de diferentes organismos de forma a compará-los.

Sobre as pesquisas com a abelha, Ventura junto ao seu colega de Departamento, John Manuel de Souza (USP), produziu investigações em colaboração com um grupo de pesquisas da Freie Universität. O pesquisador, quando esteve em Berlin, desenvolveu um método de registro de sensibilidade espectral que permitiu à neurocientista fazer o que intencionava “(...) desde o início que era o registro de um neurônio e não eletroretinograma que é uma resposta de massa da retina”316. Tais desenvolvimentos técnicos auxiliaram no registro do comportamento das células do olho para compreender como é a visão de cores da uma abelha.

316 Quadro 1: A8. 154

Então a abelha tem três fotorreceptores, algumas espécies podem ter quatro. Mas é muito raro. Mas tem três fotorreceptores só que eles são deslocados no espectro com relação aos nossos. Nós temos um fotorreceptor que tem pico no violeta, no azul e outro no verde, e outro no laranja, não chega a ser vermelho, amarelo. Então é esse trio que dá a nossa visão tricromática. O trio da abelha é no ultra violeta, azul e verde. Ele é deslocado para os comprimentos de ondas mais baixos. Então agente teve que ter todo um sistema ótico que deixasse passar luz ultravioleta, quer dizer, tem toda uma adaptação aí que existe (Fonte: Quadro 1: A8). Sobre a tartaruga, Dora Fix Ventura passou a investigar o animal vertebrado já no final da década de 1990. No entanto, ele não só foi uma mudança no tipo biológico psicofísico estudado, mas consistiu em um momento de produção em colaboração com Luiz Carlos Lima Silveira, da UFPA, e no intercâmbio de estudantes de pós-graduação entre as universidades paulista e paraense. É nesse contexto de colaborações que a neurocientista voltou a orientar e pesquisar o sistema visual em humanos e sua relação com doenças.

Luiz Carlos tinha uma aluna que ia defender uma tese de doutoramento sobre visão de cores em garimpeiros. Eu sabia que ele trabalhava com tipos de células com morfologia da retina. Quer dizer, ele trabalhava com animais da Amazônia naquela época. Mas estudando diferentes tipos de células ganglionares na retina e as projeções delas e os números dessas células na retina. De repente ele tem uma tese com ser humano com visão de cores que eu falei ‘poxa eu quero estar nessa banca’. Aí ele me convidou e nós começamos uma colaboração isso no ano 2000 que temos até hoje, 15 anos de uma colaboração intensíssima. (...) Nós temos laboratórios mais ou menos similares. Podemos fazer mais ou menos os mesmos testes e estamos fazendo avaliação do impacto de doenças no sistema visual. Começou com o problema do mercúrio. Mas tem tido uma porção de outros agentes neurotóxicos. Eu aqui fiz com Parkinson e solventes, especificamente, a gasolina. Frentistas de postos de gasolina expostos ao vapor, a visão de cor deles muda. Fica muito prejudicada. Pegamos também esclerose múltipla (Fonte: Quadro 1: A8). As pesquisas que conduz atualmente com modelos humanos não significou que Ventura abandou as investigações com animais. Tal tipo de pesquisa vem sendo desenvolvida em parceria com o laboratório de Neuroquímica de Fernando Garcia Mello, do Instituto de Biofísica do Rio de Janeiro. Os estudos consistem em investigações de análise de eletrorretinograma de pintos que são com injetados drogas de uso para a oftamologia. São pesquisas que possuem implicações para a medicina317.

317 “Currículo Lattes de Dora Fix Ventura”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C76. Acessado 27/8/2016. 155

No entanto, a pesquisa com humanos constitui um dos focos da atual agenda de pesquisa de Ventura e significou um retorno a alguns problemas de pesquisa em seu doutoramento, agora como orientadora e com direcionamento de seus achados para aplicações clínicas318. Um exemplo que é citado desta trajetória “(...) que foi da formiga até o bebê”, trata-se das investigações de uma aluna que no Mestrado e Doutorado propôs aplicar um “(...) teste de acuidade visual para medir a visão de um bebê recém nascido”319.

No estudo piloto na dissertação e na pesquisa da tese desenvolvida pela aluna de Ventura, foram aplicados testes de acuidade visual com um método chamado “Teste de Teller”. No Doutorado, o estudo completo foi realizado com 1000 bebês, de 0 a 3 anos de idade. A neurocientista conta que o teste foi desenvolvido por uma psicóloga experimental chamada Davida Teller (1938-2011), quando então trabalhava na Seattle University, em colaboração com Velma Dobson (1949-2010), da University of Pittsburgh, ambas as universidades dos EUA.

Durante o desenvolvimento da pesquisa, Ventura relata que Dobson veio ao Brasil e conseguiu criar uma pareceria para publicação de artigos com a cientista norte americana:

(...) [Ela] ficou surpresa porque não esperava ver uma pessoa com PhD da Universidade de Colúmbia aqui nem Psicologia, então achou tudo maravilhoso tudo que a gente estava fazendo e nos contou que o mesmo estudo que agente tinha planejado estava sendo feito lá na Harvard. Eu fiquei muito incomodada com isso e ela falou: ‘Não! É muito bom porque o nosso teste está sendo testado em dois lugares diferentes e vamos ver o quê que acontece’. E os resultados foram muito semelhantes e os artigos resultantes foram publicados na melhor revista da área que é a Back to back, um e em seguida o outro. E o nosso na frente porque o nosso ficou pronto antes. A colega dos Estados Unidos lá, meio enrolada, se atrapalhou e tivemos que esperar. O nosso ficou uns três meses antes esperando o dela, o pessoal da revista até queria publicar e eu falei: ‘Não, dei a minha palavra que a gente ia publicar junto. Eu espero’. (Fonte: Quadro 1: A8). Em paralelo aos estudos de acuidade visual em bebês, a pesquisadora somou a tal agenda àquela iniciada em colaboração com o grupo da UFPA, no “(...) desvendamento de mecanismos que causam perdas visuais decorrentes de doenças”320. Atualmente, a pesquisadora faz parte do grupo Rede ZIKA, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado

318 Quadro 3, C76. 319 Quadro 1: A8. 320 Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC). Medalha Neurociências Brasil 2010 – Dora Ventura – Parte 2. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zXcCXPz5gzs&t=96s. Acessado em 27/8/2016. 156 de São Paulo (FAPESP)321, no qual passou a investigar função visual e desenvolvimento motor e cognitivo em bebês que nascem com o Zika vírus322.

Por fim, durante a entrevista com Frederico Graeff, o pesquisador cita a última linhagem da árvore genealógica da neurociência paulista que deu origem à Farmacologia na capital do estado de São Paulo e que “(...) criou filhotes e netos”323. A ramificação dessa árvore tem como base a atuação de José Ribeiro do Valle para a institucionalização da pesquisa psicofarmacológica e das pesquisas de seu orientando Elisaldo Luiz de Araújo Carlini (UNIFESP), galardoado com a Medalha Neurociências Brasil de 2011.

Segundo Verreschi (2001), José Ribeiro do Valle graduou-se pela Faculdade de Medicina de São Paulo324, em 1932. Nessa época teve início o seu interesse pela psiquiatria e a fisiologia experimental. Em meio ao curso de graduação, o futuro cientista conseguiu um emprego como “estudante interno” no Hospital Psiquiátrico de Juquery325 e ali vivenciou situações com doentes catalépticos. Como na época o Hospital não oferecia estrutura para pesquisas, Ribeiro do Valle optou por iniciar a carreira científica na Faculdade na área de Fisiologia326. No entanto, o período em que teve contato com a psiquiatria influenciou o tema de pesquisa de seu doutoramento (um ano após a graduação de médico), no qual desenvolveu pesquisas experimentais com animais sobre a catatonia experimental, no Laboratório de Fisiologia daquela Faculdade, orientado pelo catedrático Franklin de Moura Campos (1896 – 1962).

Entre 1934 e 1948, Ribeiro do Valle atuou no Instituo Butantan na seção de Fisiopatologia como assistente de Thales César de Pádua Martins (1896 – 1979). O fisiologista formado no Instituto Manguinhos e no laboratório dos Ozórios, no Rio de Janeiro, viera para São Paulo para reger a Cátedra de Fisiologia da recém criada EPM, quando acumulou a função de Assistente-Chefe da Seção de Fisiopatologia e de Endocrinologia

321 “Matéria sobre a reunião da Rede ZIKA”. Página da Revista FAPESP. Quadro 3, C77. Acessado em 27/8/2016. 322 Quadro 3, C76. 323 Fonte: Quadro 1; A10. 324 A Faculdade foi fundada em 1912, com o nome de Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Em 1925 seu nome é trocado para Faculdade de Medicina de São Paulo e em 1934 incorporada à USP. Disponível em: http://www.fm.usp.br/site/Historico. Acessado em: 16/8/2016. 325 O Hospital trata-se de um dos primeiros asilos do estado de São Paulo e foi onde, nas primeiras décadas do século XX, se institucionalizou a prática psiquiátrica paulista. Produzi uma dissertação de Mestrado na qual, em um dos capítulos, busquei traçar uma historiografia das psicociências brasileira nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Para mais ver: CHEIDA, R. (2013). Análise sociológica da “biologização” do TDA/H na psiquiatria brasileira. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica/Instituto de Geociências/Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 326 “Biografia de José Ribeiro do Valle”. Página do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Canal Ciência. Quadro 3, C78. Acessado em: 16/8/2016. 157

Experimental do Butantan (idem, 2001). Martins foi auxiliado por Ribeiro do Valle na Escola durante a implantação do curso de fisiologia e no Instituto seu pupilo atuou como pesquisador associado, quando “(...) fixou definitivamente o jovem médico à experimentação animal” (idem, 2011: p. 203).

Em 1948, após estágio de dois anos no EUA, na Universidade do Texas, da Califórnia e de Chicago, além do IByME da Argentina, Ribeiro do Valle retornou ao Brasil e encontrou desmontada a Seção de Endocrinologia no Instituto Butantan327, em decorrência das mudanças promovidas por Eduardo Vaz. Em entrevista realizada em 1977, Ribeiro do Valle comenta as transformações promovidas pelo: “Não larguei mais o Butantã até [19]47, quando veio um diretor que só queria fazer vacina, querendo transformar o Butantã em fábrica de medicamentos. Aí acabou a ciência”328. Por conta desta situação, o fisiologista junto a outros colegas, formou os laboratórios das cátedras de Farmacologia e Química Fisiológica, e das cátedras de Endocrinologia e Nutrição na EPM. “Em 1956, conseguiu organizar junto com colegas bioquímicos um moderno Laboratório de Bioquímica e Farmacologia, que foi responsável pela formação de grande número de cientistas com vasta produção de trabalhos científicos”329.

Nesse período da institucionalização do laboratório de Farmacologia, Ribeiro do Valle inicia a sua agenda de pesquisa associada à narrativa da comunidade neurocientífica paulista. No início de sua trajetória científica, suas pesquisas estavam relacionadas mais à endocrinologia e sua relação com o comportamento de animais. Por exemplo, além das pesquisas sobre a catatonia, o pesquisador investigou o “leite de papo do pombo”. “O pombo desenvolve no papo uma formação caseosa lactescente que, quando nascem os filhotes, é vomitado na boca deles. Esse leite é resultado do hormônio prolactina, (...) o mesmo hormônio que facilita a produção de leite pela mulher”330.

Outra pesquisa que desenvolveu ainda no início da carreira, trata-se das investigações sobre o dimorfismo postural do cachorro. Ribeiro do Valle descobriu a relação dos hormônios com a postura dos cães ao urinarem (o macho levanta a perna ao fazê-lo e a

327 “Homenagem a José Ribeiro do Valle por Hannah Rotschild”. Página da editora Atualização Terapêutica. Quadro 3, C79. Acessado em 16/8/2016. 328 Disponível em: VALE, José Ribeiro do. José Ribeiro do Vale (depoimento 1977). Rio de Janeiro, CPDOC, 2010, 62 p. 329 Ibid. 330 Quadro 3, C78. 158 fêmea agacha)331. Pesquisa que rendeu uma publicação em colaboração com Thales Martins, veiculada no Brasil em 1946332, e depois na American Physiological Association, em 1948333.

No entanto, já no final da década de 1950, atuando como pesquisador e professor da EPM, Ribeiro do Valle decide mudar o tema das suas pesquisas do estudo da ação dos hormônios da genitália masculina (relativas ao dimorfismo postural do cachorro), que considerava “(...) muito acadêmico”334, para o estudo das plantas, tema que poderia despertar mais o interesse de seus alunos. É nessa época que o então professor ressalta a importância da Maconha (Cannabis sativa) como objeto de investigações para compreensão do cérebro e comportamento.

De maneira que o estudo dos produtos naturais, aqui no laboratório, começou por volta de 1960 com o problema da maconha. Muito antes da maconha ter este impacto social, começamos a estudá-la. Fizemos preparações, ensaiamos, determinamos atividade e ainda continuamos com esse estudo. Mandamos, recentemente, para a Suíça, para o Breden, que é o diretor do Centro de Pesquisas sobre Narcóticos da Organização Mundial da Saúde, três notas sobre a maconha. Uma deles refere-se à influência da luz no crescimento da cannabis sativa (maconha) e à produção de canabinóides, tetraídro canabinol e princípios tóxicos. A outra nota refere-se ao teor de canabinóides de amostras de maconhas confiscadas em São Paulo. (...) A outra nota é sobre o crescimento vegetativo da maconha. Você faz a plantação e vai determinando o índice de tetraído canabinol enquanto a planta está crescendo. (VALLE, 1977. p. 54). Um dos alunos que se interessa pelo tema é Elisaldo Luiz de Araújo Carlini. O então estudante ingressou na Faculdade de Medicina da EPM em 1952, e no segundo ano se aproximou do professor de Farmacologia para começar sua trajetória científica. Em entrevista para o site da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP)335, Carlini comenta que durante o curso decidira por investigar “(...) do corpo humano (...) a parte de cérebro e

331 Quadro 3, C78. 332 Disponível em: MARTINS, Thales and VALLE, J. R. A atitude do cão na micção e os hormônios sexuais. Memória Instituto Oswaldo Cruz. vol. 44, n. 2. 1946. 333 Em outra entrevista, o fisiologista comenta o contexto da direção de Eduardo Vaz no Instituto Butantan logo após ter publicado o artigo: “O Eduardo Vaz usou isso como argumento para fechar a Seção de Endocrinologia do Butantã. Dizia: ‘aquele pessoa fica lá, vendo cachorro mijar. Vê se isso tem importância...’. E, com esse tipo de justificativa, a seção foi extinta”. Quadro 3, C78. 334 Quadro 3, C78. 335 Universidade Virtual do Estado do São Paulo (UNIVESPTV). Vida de cientista – Elisaldo Carlini. Disponível em: http://univesptv.cmais.com.br/vida-de-cientista/vida-de-cientista-elisaldo-carlini. Acessado em: 18/8/2016. 159 comportamento, (...) o psiquismo e a influência de drogas (...)”336. Foi nessa época que “(...) herdou de seu mestre o interesse em estudar a Cannabis sativa (...)”337.

Carlini se formou em 1957 e trabalhou como assistente voluntário da disciplina de Farmacologia até 1960. Em entrevista concedida por Ribeiro do Valle ao “Portal de Divulgação Científica e Tecnológica”, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), o pesquisador ilustra o pioneirismo da sua agenda de pesquisa com a maconha formulada junto ao seu discípulo:

Isso foi em 1958/60. A maconha já despertava a atenção. No entanto, o projeto para prosseguimento do estudo que eu e Elisaldo Carlini redigimos para o (...) NIH foi recusado com a justificativa que o tema não interessava. Não correram dez anos e o problema tornou-se de interesse mundial338. Durante a entrevista para a UNIVESP, Carlini comenta que na época, com os avanços nas pesquisas com a Cannabis junto ao seu professor, nem no laboratório de Ribeiro do Valle e nem em outro do Brasil, conseguiria aprofundar o seu interesse de estudos para compreender como a bioquímica das drogas agem no comportamento humano. “A Psicofarmacologia era praticamente zero no Brasil”339, o que motivou a sua ida para o estágio no exterior.

Segundo Carlini, tal orientação partiu do próprio Ribeiro do Valle: “Ele foi muito sábio, o Ribeiro do Valle: ‘mas antes você tem que aprender bioquímica. Então você vai lá e passa um ano numa faculdade (...) com tradição em bioquímica do cérebro (...) e depois de um ano você vai para um faculdade forte em psiquiatria, psicologia e psicofarmacologia”340. Em 1960, o jovem pesquisador foi contemplado com uma bolsa da Fundação Rockefeller para estudar Bioquímica e Psicofarmacologia na Universidade de Yale, nos EUA, onde fez Mestrado.

Após quatro anos no país norte americano, Carlini voltou para o Brasil, mas não conseguiu cargo público como professor. Passou pelo Instituto Biológico e pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. Em 1970, foi acolhido pela EPM, como professor adjunto onde instituiu o Departamento de Psicobiologia e chefiou a disciplina de Psicofarmacologia.

336 Ibid. 337 “Entrevista Elisaldo Carlini: Um advogado do canabidiol”. Página da Revista Entreteses. Quadro 3, C80. Acessado em 18/6/2016. 338 Quadro 3, C78.. 339 Universidade Virtual do Estado do São Paulo (UNIVESPTV). Vida de cientista – Elisaldo Carlini. Disponível em: http://univesptv.cmais.com.br/vida-de-cientista/vida-de-cientista-elisaldo-carlini. Acessado em: 18/8/2016. 340 Ibid. 160

Em 1978, foi aprovado no concurso para professor titular de Psicofarmacologia. Sobre a época do retorno ao Brasil, Carlini afirma que voltou com:

(...) um conhecimento completamente diferente. Fundei a primeira pós-graduação nos moldes modernos na Escola Paulista de Medicina. Os quatro primeiros doutores formados nos moldes modernos da pós- graduação foram meus alunos e foram lá da Escola Paulista de Medicina. (...) Na área de psicofarmacologia341. Assim, durante as décadas de 1970 e 1980, Carlini foi um dos pioneiros na institucionalização da área da psicofarmacologia no Brasil e, mundialmente, com os estudos da maconha. “Não se tinha muitas informações sobre a maconha (...). Nem fora, porque era pouca a quantidade de trabalhos. Porque a maconha não era, assim, uma coisa elegante para a academia estudar. A parte científica, pouca gente estudava”342. Nessa época, o pesquisador passou a aplicar as técnicas da psicologia experimental (aprendidas durante o período nos EUA) ao administrar em animais o extrato da maconha, de forma a investigar a relação do cérebro com o comportamento.

Carlini relata que na época, com as pesquisas que conseguiu publicar, “(...) eu fiquei conhecido por causa das pesquisas que eu fiz com extratos de maconha, sem conhecer exatamente a estrutura química dos componentes internos”343. Tais publicações permitiram ao pesquisador contatar outros dois químicos estrangeiros que haviam isolado o princípio ativo da maconha (delta-9-THC) e que enviaram seus achados de pesquisas para o brasileiro. O pesquisador, então, passou a administrar os extratos e o princípio ativo da maconha nos animais em experimentos laboratoriais. Percebeu que o delta-9-THC causava efeitos mais intensos e por mais tempo nas cobaias do que o extrato. Também, notou que um princípio inativo da planta, o canabidiol, não causava tais comportamentos, mas que se associado ao princípio ativo causa os efeitos conhecidos da maconha.

O interessante é que quem pela primeira vez mostrou que misturando canabidiol com delta-9-THC em determinadas concentrações se modula melhor o efeito da maconha foi o nosso Departamento de Psicofarmacologia da UNIFESP344. Daqui se originou o trabalho na Inglaterra. Isso é reconhecido internacionalmente. O canabidiol modula o efeito do delta-9-THC, de tal maneira que o delta-9-THC, na presença do canabidiol, gera menos ansiedade e age por um tempo maior. (...) São estudos da década de 1970 e 1980 com trabalhos

341 Ibid. 342 Ibid. 343 Ibid. 344 Em 1994, a EPM tornou-se uma instituição federal e foi renomeada de Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). 161

publicados na British Journal of Pharmacology,Journal of Pharmacy and Pharmacology e European Journal of Pharmacology, revistas de alto nível. Mas nunca conseguimos tirar nada de positivo desses trabalhos aqui no Brasil para gerar algum produto. Não é prioridade para o país345. A fala de Carlini, extraída de uma entrevista para a Revista FAPESP, se contextualiza em um momento em que o cientista comenta que as pesquisas com a maconha avançaram de tal forma a partir de seus achados que, atualmente, em diferentes países, a planta é utilizada amplamente em diferentes investigações científicas346. Os achados desenvolvidos a partir da separação e da interação de diferentes quantidades de canabidiol e o delta-9-THC de seus experimentos influenciaram, não só a comunidade científica mundial que trabalhava ou que passou a investigar a planta, assim como algumas empresas farmacêuticas que sintetizaram o princípio ativo da planta e produziram fármacos para pacientes com diferentes problemas de saúde.

O delta-9-THC é vendido em cápsulas gelatinosas, dada a sua natureza lipídica. Há também um canabinoide sintético, chamado Nabilone, utilizado no Canadá. E acabou de ser lançado também no Canadá e na Inglaterra uma mistura de duas cepas de maconha. Ambas são de Cannabis sativa. Uma delas produz canabidiol, que é o precursor do delta-9-THC. E outra possui alto teor de delta-9-THC. A firma inglesa GW Pharmaceuticals faz dois extratos dessas plantas. A estratégia é misturar os dois, de maneira a ter uma quantidade adequada do canabidiol e do delta-9-THC. Essa mistura foi lançada com o nome comercial de Sativex dentro de uma bombinha, como as de asma, para usar direto na boca. Cada dose libera 5 miligramas do delta-9-THC347. Pode-se afirmar que desde que retornou à EPM e instituiu o Departamento de Psicobiologia da atual UNIFESP, Carlini vem trabalhando para “comprovar que a maconha é uma planta fascinante e pode ser uma eficiente alternativa para o tratamento da epilepsia e dos efeitos colaterais (náusea e vômito) causados pela quimioterapia do câncer além de aliviar as dores miopáticas”348.

Com o impacto de suas pesquisas para questões relacionadas ao consumo de drogas e para a saúde no tratamento de certas doenças, Carlini também atuou para que sua

345 “Matéria ‘Elisaldo Carlini: o uso medicinal da maconha’”. Revista FAPESP. Quadro 3, C81. Acessado em: 22/8/2016. 346No Brasil, o canabidiol foi retirado das substâncias proibidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA – somente em 2015, reclassificando-a como produto controlado, o que segundo Carlini, até então sempre foi um entrave para suas pesquisas. Quadro 3, C80. 347 Quadro 3, C80. 348 Quadro 3, C80. 162 ciência fosse “útil para a população”349. Desde que atuou na Santa Casa, após o estágio nos EUA, o pesquisador desejava conhecer melhor:

(...) a situação das drogas no Brasil (...) e percebi que teria que produzir as informações porque havia poucos dados confiáveis. O jeito foi começar a fazer coleta para deixá-los disponíveis em um arquivo. Começamos procurando trabalhos sobre abuso de drogas em todas as bibliotecas aqui de São Paulo. (...) Boa parte dos trabalhos era antiga e achamos que teríamos de produzir outros estudos, mais atuais. Fizemos o primeiro levantamento entre estudantes nas capitais brasileiras e entre meninos de rua em 1987. Repetimos em 1989, 1993, 1997, 2004 e devemos fazer mais um neste ano. Esses dados são utilizados no Brasil como fonte de informações para se elaborarem políticas públicas educacionais.350 A fim de atender tais interesses, em 1990, Carlini criou o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), localizado do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP, que é uma:

(...) entidade sem fins lucrativos (...) [que] organiza pesquisas e reuniões científicas sobre o assunto drogas, publica livros e levantamentos sobre o consumo de drogas entre os estudantes, meninos de rua, etc. Também mantém um banco de trabalhos científicos brasileiros sobre o abuso de drogas e publica boletins trimestralmente351. Também, em 1990, fundou a Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (SOBRAVIME) e entre 1995 e 1997, atuou como diretor da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, órgão predecessor da atual Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Atualmente é professor aposentado do Departamento de Farmacologia, mas ainda orienta no Mestrado e Doutorado do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP.

3.4 - O surgimento do termo “neurociência” no Brasil

Durante as entrevistas realizadas, é atribuído às sociedades científicas o espaço em que foi possível os cientistas oriundos de díspares áreas compartilharem seus achados sobre o sistema nervoso e formar redes de pesquisas. Foi em uma delas que o termo “Neurociência” passou a significar, especificamente, as pesquisas de abordagem experimental sobre o cérebro no país. Destacarei de forma breve aquelas que significaram o espaço de tal

349 Universidade Virtual do Estado do São Paulo (UNIVESPTV). Vida de cientista – Elisaldo Carlini. Disponível em: http://univesptv.cmais.com.br/vida-de-cientista/vida-de-cientista-elisaldo-carlini. Acessado em: 18/8/2016. 350 Quadro 3, C81 351 “Informações sobre o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas”. Página da UNIFESP. Quadro 3, C82. Acessado em: 22/6/2016. 163 compartilhamento, como a Sociedade Brasileira de Fisiologia (SBFis), a Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental (SBFTE), a Sociedade Brasileira de Psicobiologia (SBPb) e a Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC).

A primeira sociedade que constituiu um espaço de disseminação do conhecimento sobre o cérebro foi a SBFis, criada em 1957, na Faculdade de Medicina da Universidade Brasil, no Rio de Janeiro. Alguns pesquisadores que pertencem à narrativa da história da comunidade neurocientífica foram os fundadores de tal sociedade, tais como Aristides Pacheco Leão, Hiss Martins Ferreira, Carlos Chagas Filho, Thales Martins, José Ribeiro do Valle, Maurício Rocha e Silva. A idéia da criação da SBFis surgiu para congregar “(...) os especialistas em ciências fisiológicas no Brasil, para que, unidos por um só ideal, melhor pudesse desenvolver seus objetivos comuns”352. Dos cientistas pertencentes à história da comunidade neurocientífica, destaca-se Thales Martins, primeiro presidente da Sociedade entre os anos de 1957-1960, e César Timo-Iaria, que presidiu de 1970 até 1976353.

Por sua vez, outro espaço importante para a disseminação do conhecimento sobre o sistema nervoso foi a SBFTE. Frederico Graeff (USP)354, aponta José Ribeiro do Valle e Maurício Rocha e Silva como os fundadores da Sociedade de Farmacologia. Criada em 1966, o “(...) objetivo primordial [da Sociedade] é o de propugnar pelo desenvolvimento da pesquisa e do ensino da Farmacologia e da Terapêutica Experimental” e “(...) se propõe a realizar tais objetivos por meio de reuniões que reverterão a forma de conferências, apresentações de trabalhos originais e simpósios sobre assuntos relevantes da farmacologia e ciências correlatas”355.

Mesmo que ambas as sociedades constituíram os primeiros esforços na criação de um espaço para a disseminação do conhecimento sobre o cérebro, não necessariamente tiveram um foco estrito em tais tipos de estudos. A primeira delas criada com tal objetivo foi a Sociedade Latino Americana de Piscobiologia (SLAP).

A SLAP foi criada em 1971 por iniciativa de Elisaldo Carlini (UNIFESP), com o objetivo de reunir psicólogos, etólogos, psicofarmacólogos, neuroquímicos, neuroanatomistas, psiquiatras, neurólogos, dentre outras pesquisadores latino-americanos das áreas relacionadas,

352 “Página da fundação da Sociedade Brasileira de Fisiologia”. Página da SBFis. Quadro 3, C83. Acessado em: 17/10/2016. 353 Quadro 3, C83. 354 Quadro 1; A10. 355 “Ata de fundação da Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental”. Página da SBFTE. Quadro 3, C84. Acessado em: 17/10/2016. 164 para periodicamente discutir os estudos do cérebro de forma interdisciplinar356. A primeira reunião ocorreu em 1972, em Santiago no Chile e, em 1973, foi realizado do “Congresso Latino-Americano de Psicobiologia” em São Paulo, o primeiro no Brasil.

No entanto a SLAP não demorou muito para ser encerrada. Segundo Dora Fix Ventura (USP), “(...) dada as dificuldades políticas pelas quais passavam todos os países da América Latina, foi se tornando cada vez mais complicado a gente manter a Sociedade. (...). Das cinzas da latino-americana, nasceu a brasileira”357.

Alguns anos depois, em 1977, também por iniciativa de Elisaldo Carlini (UNIFESP), reuniu-se no Departamento de Psicobiologia da EPM, uma série de pesquisadores brasileiros de diferentes regiões do país, das áreas de Psiquiatria, Psicologia, Psicologia Experimental, Psicobiologia, Farmacologia, Neurologia, Morfologia, Anatomia e Nutrição358, para discutir a criação da Sociedade Brasileira de Psicobiologia (SBPb). Na ata de fundação da Sociedade que consta no site da SBNeC, Carlini aponta que o objetivo da nova associação era reunir “(...) os pesquisadores brasileiros interessados no amplo campo de pesquisa sobre o Sistema Nervoso e/ou Comportamento [que estão] dispersos, não havendo oportunidade para reuniões conjuntas”359.

Ainda, durante a reunião, o pioneiro da neurociência paulista ressalta que o objetivo da nova Sociedade era de “complementar e não duplicar”360 as atividades da Academia Brasileira de Neurologia (ABN). Para exemplificar o que entendia como “complementar”, Carlini esclarece que em um Simpósio sobre a “moléstia de Parkinson”, somente ocorreria caso intitulado com um nome mais “(...) genérico de ‘Psicobiologia do Sistema Nigro-Estriatal’, procurando congregar neuroanatomistas, neurofisiólogos, psicofarmacólogos, para, juntamente com neurólogos e psiquiatras, estudarem aspectos básicos do sistema nigro-estriatal e as conseqüências de lesões no mesmo, quer experimentais (em animais), quer espontâneas”361. A idéia de Carlini com o exemplo era que a nova Sociedade congregaria de forma mais ampla as pesquisas experimentais sobre o

356 “Homenagem a Elisaldo Carlini do Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Comportamento”. Página da IBNEC. Quadro 3, C85. Acessado em: 17/10/2016. 357 Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC). Medalha Neurociências Brasil 2010 – Dora Ventura – Parte 2. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zXcCXPz5gzs&t=96s. Acessado em 27/8/2016. 358 “Ata de fundação da SBNeC”. Página da SBNeC. Quadro 3, C86. Acessado em 17/10/2016. 359 Quadro 3, C86. 360 Quadro 3, C86. 361 Quadro 3, C86. 165 cérebro dispersadas em diferentes áreas do conhecimento com aquelas ligadas à Medicina, voltadas para aplicações clínicas que eram disseminadas na ABN.

Em meio à argumentação do que entendia por sociedades “complementares”, o psicofarmacólogo deu um novo exemplo ao sugerir criar uma reunião de Psicobiologia na SBPC, em comum com a SBFTE e a SBFis, especificamente para tratar do assunto “Sistema Nervoso e/ou Comportamento” para conjugar esforços em comum entre as sociedades362.

Na seqüência da discussão do formato que teria a nova Sociedade foi abordado o assunto da nova associação ter “secções ou colégios”363 que seriam divididos pelas áreas de “neuroquímica, neuroanatomia, psicologia experimental e etologia, psicofisiologia e neurofisiologia, psicofarmacologia e psicopatologia, cada uma das quais teria um coordenador”364. Dora Fix Ventura (USP) argumentou que criar tais “(...) secções estariam em contradição com o próprio objetivo da sociedade, que seria o de congregar os interessados em Sistema Nervoso e/ou Comportamento; com as secções seria quase o mesmo que ter mini-sociedades isoladas”365. Na seqüência, Elisaldo Carlini (UNIFESP) buscou esclarecer que os colegiados teriam outras funções como:

1. Difundir a Sociedade para atrair mais sócios; 2. Participações na Diretoria (...) [com a] função importante em escolher os temas interdisciplinares tópicos e convidados a participarem de futuros simpósios; 3. Participar na seleção dos trabalhos que seriam incluídos nas Secções de comunicação que a Sociedade viesse a organizar366. Ainda durante a reunião, ficou decidido que tais “secções” seriam de fato “assessorias”, “(...) para não dar a impressão de mini-sociedades dentro da Sociedade Brasileira de Piscobiologia”. Cada assessoria foi designada com áreas que foram decididas por votação e teriam a finalidade de congregar aqueles que desenvolvem e pesquisam sobre o Sistema Nervoso e/ou Comportamento, em tais assuntos. As áreas congregadas nas assessorias foram as de: Morfologia do Sistema Nervoso, Neuroquímica, Neurofisiologia, Psicofarmacologia, Psiquiatria, Neurologia e Zoologia367.

362 Quadro 3, C86. 363 Quadro 3, C86. 364 Quadro 3, C86. 365 Quadro 3, C86. 366 Quadro 3, C86. 367 Quadro 3, C86. 166

Na época, para Dora Fix Ventura (USP), a formação da SBPb teve “(...) um forte viés de Psicologia experimental”368. Ou seja, segundo a neurocientista, a Sociedade foi formada com base na agenda de pesquisas de pesquisadores que eram da área de Farmacologia, Psicobiologia e Psicologia Experimental, por mais que tenha visado congregar as demais áreas de pesquisa experimental e clínica sobre o sistema nervoso.

Segundo Frederico Graeff (FMRP/USP), o nome “Neurociência e Comportamento”, foi trocado pelo de “Psicobiologia” da SBPb, na década de 1990, por conta da repercussão que havia ganho a “Década do Cérebro” norte americana369. Por sua vez, Dora Fix Ventura (USP) relata o contexto em que tal mudança ocorreu durante sua presidência da SBPb. Extraio um longo relato de sua entrevista que é reveladora dos motivos da Sociedade adotar a nomenclatura “Neurociências”:

(...) ela se transformou de Sociedade de Psicobiologia para Sociedade de Neurociências, porque havia o perigo de ser criada uma Sociedade de Neuroquímica. Então os neuroquímicos não se identificavam como psicobiólogos. Então o acordo para eles criarem uma outra sociedade na época, no início dos anos 1990, foi mudar o nome da sociedade para ‘Neurociências’. (...) Então naquela época que foi a transição, até o Juarez370 veio com o argumento que ele se dirigia a mim para aplacar os dois lados, que ele diz que eu fazia pesquisa que era mais “dura”, do que muitos neurocientistas ligados à institutos de Fisiologia que faziam na época e... Eu era psicóloga. Então eu fazia o meio de campo entre a psicobiologia e o pessoal de mais hard science. E acabei topando. E aí ele disse: ‘A gente tá entrando na FeSBE e você vai ver que a Neurociência vai se tornar a maior sociedade da FeSBE’. E isso ele me falou no início dos anos 1990, quando eu entrei para ser presidente da Sociedade [neurociências]. E de fato... E a FeSBE tinha por exemplo, a Fisiologia era uma Sociedade, a maior da FeSBE aquela época, (...) a farmacologia não era tão grande, (...) mas a Neurociência acabou ultrapassando em número de trabalhos, sócios inscritos. (Fonte: Quadro 1; A8). A fala de Ventura revela as tensões que havia dentre outros grupos envolvidos com a pesquisa do cérebro em utilizar do nome “Neurociências” na época em que foi presidente. A forma encontrada de aplacar àqueles ligados à “neuroquímica” e “fisiologia”, foi justamente o fato de a pesquisadora ser formada e atuar em um instituto de Psicologia,

368 Quadro 1; A8. 369 Quadro 1; A10. 370 Juarez Aranha Ricardo foi professor e pesquisador do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Médicas da USP. Ele foi presidente da SBPb entre 1988 e 1990, antes de Dora Fix Ventura assumir a presidência e modificar o nome da Sociedade. Em 2002, foi criado o “Prêmio Juarez Aranha Ricardo” na SBNeC, para trabalhos de alunos de graduação e pós-graduação. O Prêmio foi uma forma, dos membros diretores da Sociedade, homenagearem o professor que faleceu de forma precoce. Não consegui encontrar maiores informações sobre o pesquisador na Internet. 167 mesmo que seu foco de pesquisa seja a fisiologia visual e sua relação com estruturas do cérebro e o comportamento. Dessa forma, o nome “Neurociências e Comportamento” na SBNeC, significou reforçar a participação dos pesquisadores ligados às áreas de Fisiologia e Psicobiologia – compreendidas mais como hard sciences, ou ciências duras, que investigam aspectos biológicos funcionais e estruturais do cérebro -, e Psicologia Experimental e Farmacologia – interpretadas como ciências que investigam os aspectos biológicos do sistema nervoso e o comportamento.

A manutenção da palavra comportamento como parte do nome tem grande relevância para a área de Psicologia, pois constitui a forma de integrar os psicólogos experimentais na sociedade, valorizando o enfoque no estudo do comportamento. Essa ênfase espelha a motivação original do grupo fundador de integrar psicólogos, estudiosos do comportamento, com os demais ramos da fisiologia, farmacologia, morfologia, e outras áreas de estudo do sistema nervoso (VENTURA, 2010; p. 125). Outro elemento importante da citação da entrevista acima é o que a entrevistada relata com relação à Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE). A Federação foi criada em 1986, com o objetivo de congregar diferentes sociedades de áreas das ciências biológicas que trabalham com o conhecimento produzido de forma experimental. “O campo coberto por esses trabalhos se estende desde as bases moleculares de fenômenos biológicos até o estudo de aspectos da organização social ou animal”. Também, a Federação busca “(...) promover e difundir a atividade científica das áreas do conhecimento correspondente às Sociedades federadas371 (...) e fazer-se representar junto às autoridades governamentais e à sociedade (...) na defesa dos temas relevantes para o desenvolvimento da ciência”372.

Ou seja, o que Dora Fix Ventura ressalta em sua fala é que atualmente a SBNeC trata-se da sociedade científica de estudos do sistema nervoso e do comportamento de maior representação dentre as Sociedades envolvidas com a pesquisa biológica experimental no Brasil. A própria entrevistada produziu um artigo em 2010, no qual buscou realizar um levantamento da participação de artigos SBNeC na FeESBE (Quadro 3), assim como

371 As Sociedades Brasileiras federadas são as de: Biofísica, Bioquímica e Biologia Molecular, Biologia Celular, Fisiologia, Farmacologia e Terapêutica Experimental, Imunologia, Investigação Clínica, Neurociências e Comportamento, Brazilian Association for Research in Vision and Ophtamology, Ciências em Animais de Laboratório, Biociências Nucleares, Departamento de Endocrinologia Básica da Sociedade de Endocrinologia e Metabologia, e Sociedade Brasileira de Toxinologia. Disponível em: http://www2.fesbe.org.br/a-fesbe/. Acessado em: 17/10/2016. 372 “História da Federação de Sociedades de Biologia Experimental”. Página da FeSBE. Quadro 3, C87. Acessado em: 17/10/2016. 168 sintetizou os principais grupos e temas de pesquisa em neurociência no Brasil (Quadro 4), com o intuito de levantar quão representativa é a Sociedade para as pesquisas do cérebro.

É preciso ressaltar que na entrevista com Cláudia Vargas (UFRJ), a pesquisadora conta que o primeiro momento em que um grupo de pesquisas no Brasil foi denominado de “neurociências”, foi o “Programa Avançado de Neurociências”, criado por Rocha Miranda no Instituto de Biofísica carioca, em 1987373. O objetivo era criar:

(...) uma rede de pesquisadores a nível nacional e internacional, que congregasse pesquisadores da Engenharia, Biologia, mas que se identificavam com o termo Neurociências. Então serviu como uma forma de angariar recursos de editais, mas com o tempo se manteve como uma rede integrada de trocas e até hoje existe um seminário semanal que existe na UFRJ coordenado por várias pessoas de diferentes áreas que se identificam com o chapéu da área das neurociências374. Segundo a pesquisadora, já na década de 1990, Rocha Miranda chegou a criar um catálogo que elencasse os pesquisadores brasileiros que se identificavam com o termo “neurociências”. No entanto, não consegui acessar tal documento para identificar como se estruturava as pesquisas em neurociências na época. Assim, é preciso enfatizar que a SBNeC, que utiliza o termo “Neurociências” no plural, por ser associada da IBRO é tida pelos pesquisadores que se identificam com tal sociedade como a mais “oficial” no que tange a representação dos estudos do cérebro e é dela que é possível extrair uma representação da comunidade neurocientífica brasileira.

Destaco a SBNeC ter o seu nome no plural, pois conforme apontado por Carvalho (2010). em uma busca na internet é possível identificar também a Sociedade Brasileira de Neurociência375, que utiliza do termo no singular. Segundo Carvalho, os cientistas com os quais teve contato em seu trabalho de campo alegavam até desconhecer esta segunda Sociedade, que em suas perspectivas está mais associada aos “clínicos”.

No site desta última Sociedade não constam informações sobre a história de como foi criada, nem mesmo as reuniões que realizam. Lá, é possível acessar os “membros científicos” que atuam nela, alguns artigos relacionados à investigação do sistema nervoso e as “áreas de atuação”, como “neuroanatomia”, “neurofisiologia”, “neurologia”, “neuro- cirurgia”, “neuro-imagem”, “odontologia”, “neuropsicologia”, “neuropsiquiatria”,

373 Quadro 1, A12. 374 Quadro 1, A12. 375 “Página da Sociedade Brasileira de Neurociência”. Página da SBN. Quadro 3, C88. Acessado em 20/10/2016. 169

“fonoaudiologia”, “programação neuro-lingüística”, “neuro-pediatria” e “neurovisão”. Também é possível verificar a “missão da sociedade” que é: “Reunir as informações das diversas ciências que estudam mente e o cérebro, formando uma visão ampliada e multidisciplinar, e tornar este estudo utilizável pela humanidade”376.

Apesar das poucas informações sobre a Sociedade em questão, um artigo produzido por Bacheschi e Guerreiro (2004), trata-se de uma análise da “situação das neurociências no Brasil”, e revela essa diferença entre os “(...) neurocientistas clínicos (em contrapartida aos neurocientistas básicos que atuam em laboratórios ou fazem pesquisas experimentais) (...)” (BACHESCI & GUERREIRO, 2004; p. 25). No entanto, a sociedade que os autores são filiados e representam é a ABN (o primeiro autor do artigo era presidente dessa Academia enquanto que o segundo autor o diretor-científico), que se pode afirmar como mais antiga (foi criada em 1962377) e a principal sociedade da área clínica das investigações do cérebro.

Tais usos do termo “neurociência” revelam como diferentes agendas de pesquisa constroem socialmente a ciência. No entanto, segundo os diferentes pesquisadores com os quais tive contato durante a pesquisa de campo e os dados coletados para o presente capítulo, é atribuída à SBNeC o principal espaço em que a pesquisa sobre o sistema nervoso pôde ser difundida no Brasil. Apurar o significado histórico de tal termo e o que representam os galardoados com a Medalha Neurociência Brasil, trata-se de um exercício de compreensão de como vem se edificando a memória de uma área da ciência do país e suas agendas de pesquisa.

Considerações finais do capítulo

O presente capítulo teve como foco apresentar a narrativa sobre as origens da comunidade neurocientífica brasileira. Nela é possível analisar o imaginário sociotécnico de como se constituiu tal área da ciência e as agendas de pesquisas das áreas da Fisiologia, Psicologia Experimental, Psicobiologia e Farmacologia que lhe confere sentido. Nessa recuperação imaginativa da história, foi possível elencar os esforços de pesquisadores do sistema nervoso em criar condições infra-estruturais para a produção científica, as

376 Quadro 3, C88. 377 “Página da Associação Brasileira de Neurologia”. Página da ABN. Quadro 3, C89. Acessado em: 28/10/2016. 170 universidades e departamentos, os modelos animais de suas pesquisas, as tecnologias e as formas de conhecimento que promoveram de forma inédita no país.

Dentre os diferentes elementos dessa trajetória, é possível perceber que até a criação da SBNeC em nenhum momento é citado o termo “neurociências” na formação de um instituto ou em um departamento de pesquisas. Nem mesmo utilizei o termo “neurocientista” para aqueles pesquisadores que não se consideram como tal. Apenas o fiz para aqueles que se intitulavam como ou aqueles que foram ganhadores da “Medalha Neurociências Brasil”.

Assim, de forma a conhecer como o termo neurociência passou a abrigar diferentes pesquisadores do cérebro e ser um vínculo identitário dentre eles no Brasil, durante as entrevistas no trabalho de campo elenquei questões que objetivavam apurar as origens da comunidade, quais institutos e cientistas foram fundamentais nesse processo. Dentre elas, “quando começa as neurociências no Brasil?”, ou “qual o primeiro instituto ou departamento a se intitular como tal?”.

Na resposta dos entrevistados, era comum aparecer certa hesitação em se intitular como “neurocientista”, ou que as pesquisas que vinha produzindo poderiam ser denominadas de “neurociências”. Por exemplo, na entrevista com Frederico Graeff (FMRP-USP), quando questionei o momento em que é possível falar de um “campo das neurociências no Brasil”, ou “qual a área específica que ele considerava sua atuação”, sua resposta foi esta:

Psicofarmacologia foi meu campo desde o início. Então aí tem o seguinte, sabe? É o problema de nomenclatura. Quer dizer, hoje em dia você chamaria toda a pesquisa de Neurociências. Na época não se chamava neurociência! Porque quem pesquisava em sistema nervoso central e principalmente nessa área que me interessa, relacionada com a Psicologia, com Psiquiatria e com comportamento, estava trabalhando com fisiologia, na anatomia funcional e na farmacologia. Ou então nas disciplinas clínicas, né? Na Psiquiatria, na Neurologia. E não havia essa palavra de ‘neurociências’ para encampar todos esses campos. Isso aí acho que apareceu na década de 1990, se não estou enganado. Então em lugar nenhum se chamava neurociência, né? Agora, hoje em dia se você olhar para trás, botar no espelho retrovisor, a gente tava fazendo neurociência. É como a palavra ‘translacional’, que tá na moda e quer dizer que você tá fazendo uma pesquisa básica, mas que tem implicações para aplicações clínicas e vice e versa. São pesquisas básicas orientadas para problemas clínicos. Por exemplo, eu tô fazendo isso há trinta anos. Agora, a palavra “translacional” surgiu agora, no século XXI. (Fonte: Quadro 1; A10).

171

A fala de Graeff é significativa do quanto o uso do termo “neurociência” trata-se de um meio no qual é possível verificar como os atores sociais que se identificam como pesquisadores da área estão lhe conferindo sentido. Contíguo a esta idéia, Rogério Azize (2010) e Marcos Castro Carvalho (2010), revelam que os termos “neurociência”, ou “neurocientista”, são polissêmicos, seja no uso cotidiano dos cientistas trabalhando em seus laboratórios, seja em diversos materiais de divulgação científica das pesquisas do cérebro. Geralmente os autores ou cientistas variam entre uma definição ou outra. E esta significativa variação depende dos contextos de onde ela é produzida. Existe uma multiplicidade de sentidos que significam o substantivo, mas tendo o cérebro ou o sistema nervoso o sujeito central do discurso.

No caso da formulação de uma área de pesquisa específica sobre o sistema nervoso no país, argumento que essa criação é recente e está fortemente arraigada na construção de um imaginário sociotécnico específico de como se desenvolveu tal comunidade de pesquisas. A história de sua comunidade neurocientífica é resultado de um exercício imaginativo. Assim, considero a imaginação de como se formou a comunidade neurocientífica brasileira como um processo político em si de significação constante, que revela as particularidades culturais na prática desse tipo ciência.

Nesse sentido, tratar a neurociência enquanto “comunidade imaginada” não implica que haja uma forma “verdadeira” de organizar a produção das ciências do sistema nervoso, “(...) pois qualquer [comunidade] é sempre imaginada e não se legitima pela oposição falsidade/autenticidade. Na verdade, o que as distingue é o ‘estilo’ como são imaginadas e os recursos que lançam mão” (SCHWARCZ, L. In: ANDERSON, [1983], 2008; p. 12).

O início dessa trajetória imaginativa no Brasil ocorreu na década de 1990, quando o governo norte americano buscou chamar a atenção pública para as pesquisas da área ao anunciar a “Década do Cérebro”. Foi nessa época que Dora Fix Ventura (USP), quando presidente da SBPb, decidiu pelo uso do termo “neurociências” para significar os limites de uma sociedade científica em comum para que os pesquisadores de diferentes áreas e seus achados das pesquisas produzidos sobre o cérebro pudessem circular. Portanto, o início da imaginação de como se constituiu a “comunidade neurocientífica” brasileira dentre os pesquisadores surgiu historicamente quando aquela da sociedade avançada industrializada foi anunciada como um problema público. Foi nesse contexto que surgiu uma consciência dentre os pesquisadores envolvidos com a SBPb em utilizar o termo para significar uma sociedade 172 de pesquisas que abrigasse cientistas envolvidos com o estudo experimental do cérebro no Brasil.

Por sua vez, os cientistas honrados com a “Medalha Neurociências Brasil” da SBNeC, interpreto como símbolos modulares que possibilitam criar as referências das pesquisas neurocientíficas no país, que são heterogêneas, espacialmente diversas e constituem um meio de ressignificação do passado. Tais símbolos são fundamentais para justificar e legitimar a comunidade enquanto neurocientífica, assim como as formas que seus membros compreendem o passado e fazem uso dele para se adequar ao presente. Nesse sentido, o processo imaginativo da história permite unir membros de uma comunidade social em percepções compartilhadas. E é desses elementos simbólicos que surge uma série de dados que compõem a narrativa do presente capítulo.

Considero a honraria um símbolo político e de significação histórica, pois o surgimento da “Medalha Neurociências Brasil” se deu na mesma época da intensa midiatização da inauguração do Instituto Internacional de Neurociências de Natal - Edmond e Lilly Safra (IINN-ELS), em meados dos anos 2000. A primeira Medalha é do ano de 2006, outorgada a Carlos Eduardo Rocha Guinle e Miranda. Na inauguração daquele Instituto nordestino foi veiculado que a neurociência brasileira começava ali, em Natal. Tal afirmação gerou uma série de controvérsias378 e a SBNeC emitiu uma carta, veiculada em um grande veículo da comunicação brasileira, afirmando que “(...) ‘tudo começa em Natal’ pode ser uma expressão de bom efeito midiático, contudo ilusória e que fere a história da ciência nacional”379.

Se a origem da consciência neurocientífica brasileira permitiu a criação de uma sociedade científica que configurou um espaço para as pesquisas do sistema nervoso no país, foi necessário, também, criar os elementos simbólicos para significar quais as agendas de pesquisas que compõem tal área da ciência. Um processo de significação histórica, portanto. A partir desses símbolos emergiram as “tradições” carioca e paulista, e a árvore genealógica dividida por “gerações”, de “pais” e “filhos” dentre diferentes áreas das ciências biológicas. Nesse percurso, o exercício da memória construiu um passado intencionalmente imemorial ”(...) porque toda tradição inventada utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento de coesão grupal” (HOBSBAWN & RANGER, 1984. p: 21).

378 Retomo as controvérsias da criação do Instituto no quarto capítulo. 379 “Nota da SBNeC sobre a origem da neurociência no Brasil”. Canal Ciência e Saúde do portal de notícias Globo. Quadro 3, C90. Acessado em: 12/11/2016. 173

O uso dos termos “tradições inventadas” ou “imaginário da formação da comunidade neurocientífica” não significa que os atores sociais que se identificam enquanto “neurocientistas” ou pertencentes a tal agrupamento, vivem realidades “falsas” como sugere, por exemplo, o conceito de ideologia do arcabouço teórico marxista. Ao se identificaram pelo vínculo identitário das neurociências, esses atores sociais elencam uma série de práticas e regras – tácitas ou normativas – de natureza simbólica, para inculcar os elementos pertencentes à comunidade em questão, como uma forma de se posicionarem a um passado e serem os agentes de sua continuidade.

Nesse sentido, Hobsbawn e Ranger (1984) sugerem que conceitualmente as “tradições inventadas” parecem seguir uma sobreposição de três categorias analíticas:

a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e c) aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de ideias, sistema de valores e padrões de comportamento (idem, p. 17) Dessa forma, por se tratar de um processo inventivo, a narrativa da comunidade neurocientífica brasileira não pode ser explicada somente pelos “contextos históricos” pelos quais emergem suas agendas de pesquisa. A idéia de “contexto”, como uma ferramenta para análise histórica, muitas vezes é tratada dentre as ciências sociais como uma entidade estabilizada, um cenário estável no qual se insere uma sucessão de eventos, com atores sociais e seus papéis previamente estabelecidos (ASDAL, 2012). Também, o mesmo pode ser afirmado para categorias, tais como “sociedade”, “classes sociais”, “social”, “grupos de interesse”, que emergem como conceitos universais, que transcendem no tempo e no espaço.

Para algumas abordagens dos ESCT, a análise histórica é de extrema importância, mas elas rejeitam encadeamentos rígidos dos eventos passados em detrimento de uma análise do agenciamento e da contingência no mapeamento dos sistemas sociotécnicos (JASANOFF, 2015). A consciência ou a inconsciência das escolhas realizadas pelos atores sociais demarcam como os objetos e como as tecnologias vêm a ser (BIJKER, et. al. 1987) e, no caso aqui abordado, como a comunidade neurocientífica se edificou enquanto um grupo social. Segundo Latour (2012), nesse processo de análise sociológica da história da ciência, “(...) não há grupos, apenas formação de grupos” (Idem, p. 49).

174

Nesse processo de invenção da solda histórica da comunidade científica e daquilo que é específico dela, destaco os estilos de pensamentos dos modelos animais: da fisiologia e da psicobiologia. Inspiro-me no conceito de Ludwig Fleck (2010) para discernir que tal estilo de pensamento dos animais “tipicamente brasileiros” é narrado como um meio de interpretação da progressão das pesquisas sobre o cérebro e que foi, explicitamente, ou implicitamente, compartilhado dentre gerações de pesquisadores das neurociências. O Poraquê, o gambá, a formiga e a tartaruga, foram os modelos animais que conformaram o desenvolvimento dos modos de pensar e perceber os objetos ou fenômenos do sistema nervoso, em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Não só o mapeamento das estruturas do cérebro e da neuroanatomia comparada foi fundamental para a formação da tradição carioca, mas a escolha de Carlos Chagas Filho pelo Poraquê em suas pesquisas experimentais é emblemática do quanto formular uma agenda de pesquisa da fisiologia cerebral do animal era uma forma de se associar ao paradigma hegemônico da eletrofisiologia do sistema nervoso na literatura internacional, como pôde ser verificado nos primórdios da neurociência norte americana. A escolha de um animal característico da fauna brasileira foi uma forma de, não só institucionalizar uma área da ciência no país, mas também um meio pelo qual as investigações científicas continuariam e permitiriam dar visibilidade aos investigadores brasileiros entre seus pares da área de fisiologia, localmente e internacionalmente, através dos achados sobre as características cerebrais desses animais típicos.

Também, o mesmo pode ser afirmado para o estilo de pensamento da psicobiologia da tradição paulista fundamentado nos desenvolvimentos da psicologia experimental nos EUA e naqueles que já ocorriam na Fisiologia carioca. As investigações experimentais com objetivo de compreender a relação entre fisiologia cerebral e comportamento marcaram a diferença das agendas neurocientíficas paulistas ao mesmo tempo em que inspirada e aproximada a centros de pesquisas tidos como pioneiros e consolidados. Nesse percurso, destacam-se as áreas da Farmacologia e a Psicobiologia que constituíram laços que sedimentaram os fundamentos institucionais das pesquisas do cérebro na região.

Assim, afirmo que as espécies de animais desempenham um papel central na narrativa do imaginário da comunidade neurocientífica e podem ser interpretados pelo conceito de dispositivos de Bruno Latour ([1997] 2000). Diante desta perspectiva, o Poraquê, os ratos, o gambá, os pombos, as formigas, dentre outros animais utilizados nas pesquisas experimentais, atuaram como artefatos que fizeram parte do treinamento e da associação de 175 pesquisadores de diferentes disciplinas, instituições e que trabalhavam com técnicas, conceitos e teorias específicas. Tais animais foram elementos cruciais na configuração de procedimentos e instrumentos científicos que passaram a ser utilizados nos laboratórios e departamentos recém-criados.

Também foi necessário não só conhecer as formas de procriação, alimentação e manejo desses animais na institucionalização de diferentes agendas de pesquisa, mas também padronizá-los de acordo com os experimentos utilizados na literatura internacional. Existe uma série de conhecimentos sobre como manter os organismos, treinar técnicos para manipulá-los, gaiolas de alimentação, dentre outros aspectos, que permitiu a formação de uma infra-estrutura própria para as pesquisas do sistema nervoso, ao mesmo tempo em que a seleção de diferentes espécies da fauna brasileira para pesquisa foi fundamental para posicionar e significar uma ciência do cérebro particularmente produzida no país.

Para Rose e Abi-Rached (2013), a escolha de animais de diferentes tipos na ciência não se trata, propriamente, de responder questões biológicas específicas. No caso aqui analisado, os estudos de lagostins, camarões de rio ou Poraquês, não significaram apenas a produção de um conhecimento do que é específico da fisiologia de cada espécie, mas explorar questões, processos e funções dos mecanismos neurobiológicos básicos que permite aos pesquisadores afirmar o que é teoricamente “universal” e “generalizável” dentre os animais e, principalmente, para os humanos.

Dessa forma, os achados oriundos de tais pesquisas permitiram acrescentar novas informações, produzidas no Brasil, à enciclopédia do corpo humano. Interpreto o uso dos modelos animais nas investigações do sistema nervoso como “(...) instrumentos que medeiam experimentos e teoria, não para serem avaliados pela sua verdade, mas pela suas habilidades em performarem em experimentos particulares e contextos práticos, (...) entre o mundo das coisas e o mundo das teorias” (ROSE & ABI-RACHED, 2013; p. 92).

Ao mesmo tempo em que o pesquisador investiga as variedades de modelos animais para produzir um conhecimento da teoria “universal” e “generalizável”, o estudo de tais organismos é complexo e heterogêneo, possui especificidades. Tais tipos de investigações constituem as bases e os produtos de estilos de pensamento, artefatos, técnicas, teorias, conceitos e muito trabalho artesanal. Segundo Carrie Friese (2009), inspirada no arcabouço conceitual latouriano, os animais são “modelos de associação”, com legados históricos e heterogêneos de pesquisa, e no caso da narrativa da formação da neurociência brasileira, 176 permitiram associar institutos, agendas de pesquisa, cientistas e tecnologias, em uma cultura da produção científica particular.

Por sua vez, se os estilos de pensamento são formas de compreender os vértices que conectam as diferentes agendas de pesquisa, um segundo aspecto da solda dessa narrativa trata-se do regime de governança que emerge no percurso. Frederico Graeff (FMRP/USP), destaca que na trajetória histórica que as “universidades eram governadas por cátedras, que eram vitalícias”380. A fala do pesquisador revela como as garantias institucionais de prosseguimento da ciência se davam através da posição hierárquica que um cientista possuía na universidade. Assumir a posição de catedráticos, dentro do ordenamento social dos institutos e departamentos, era a forma que um cientista tinha para institucionalizar sua agenda de pesquisa e a infra-estrutura necessária para desempenhá-la. Também, a posição conferia ao seu detentor a capacidade de assegurar as formas de transmissão e de continuidade de sua agenda de pesquisa.

Interpreto que a fala do entrevistado e a narrativa histórica, não possuem em comum a intenção consciente de significar que a governança da comunidade neurocientífica se deu de tal forma hierárquica e individual. A fala de Graeff, por exemplo, se contextualiza na entrevista quando foi questionado sobre como as pesquisas do cérebro, nas décadas de 1960 e 1970, eram organizadas. Nesse momento, o pesquisador relata a importância de Maurício Rocha e Silva na fundação das pesquisas em Farmacologia na capital paulista e a posição que ocupava na universidade. Essa fala é um elemento significativo para compreender como são imaginadas as formas de transmissão das agendas de pesquisas do cérebro entre gerações.

Nesse sentido, Calaça (2001) argumenta que a estruturação científica brasileira, até meados de 1940, era orientada por uma reduzida divisão e especialização do trabalho de pesquisa devido ao modelo europeu de estruturação da universidade que havia sido implantado principalmente no Rio de Janeiro. Esse modelo enfatizava mais “o gênio individual dos descobridores [e] se revelaria como fator imprescindível para a perda de competitividade” (idem, p. 589). Mesmo com a implantação do modelo norte americano, na estruturação do Instituto de Biofísica no Rio de Janeiro, com Carlos Chagas Filho, e na formação da FMRP-USP, como contrapartida do financiamento da Fundação Rockefeller, em meados da década de 1950, a organização institucional da ciência era concentrada nas dinâmicas de pesquisas promovidas pelos detentores das cátedras.

380 Quadro 1; A10. 177

Somado a esse aspecto institucional, Schwartzman (1979, pp. 249-50), ao analisar a formação da carreira científica brasileira, nos períodos de 1940 a 1970, demonstra que, destacadamente no Rio de Janeiro e São Paulo, muitos cientistas eram motivados por vínculos familiares com algum ascendente precursor na ciência (como foi o caso de Carlos Chagas Filho e Eduardo Oswaldo-Cruz Filho, na comunidade neurocientífica), ou algum tipo de relação direta com professores já projetados na incipiente ciência nacional (por exemplo, a relação de Maurício Rocha e Silva e Elisaldo Carlini; Miguel Covian e César Timo-Iaria); também, houve aqueles que se motivaram com a possibilidade de treinamento no exterior, tendo, assim, contato com diferentes condições de trabalho de outros ambientes (como o caso de Dora Fix Ventura, Frederico Graeff, Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda, entre outros).

Schwartzman (1979) elenca tais critérios como uma forma de análise do recrutamento e da continuidade de agendas de pesquisa na comunidade científica brasileira no período citado. A carreira científica, na visão do autor, gerenciada por líderes carismáticos e catedráticos, seria dinamizada por relações mais de ordem pessoal do que contratual. As regras de seleção dos herdeiros científicos se dariam pelas preferências do “padrinho” e pelo grau de proteção do “apadrinhado”, algo típico da ciência brasileira. Relações de reciprocidade, portanto.

Esse aspecto cultural seria um entrave, segundo o sociólogo, para um maior grau de institucionalização da ciência que era incipiente em relação às sociedades avançadas industrializadas, que utilizam de critérios impessoais, como a meritocracia e possuem uma maior diversidade institucional da ciência. Não concordo com a idéia de que a “institucionalização” per se da ciência brasileira era incipiente na época devido a critérios pessoais de recrutamento científico em detrimento dos meritocráticos. Conforme sugere Calaça (2001), tal interpretação se mostra excessivamente internalista e limitada, pois desconsidera aspectos sociopolíticos mais amplos que influenciam na institucionalização da ciência e do próprio Estado brasileiro na época retratada381.

No entanto, o modelo “familiar” do “apadrinhamento” presente na análise sociológica de Schwartzman sobre a ciência brasileira, era oriundo da própria cultura do país e mesmo em instituições com perspectivas modernizadoras era possível encontrar em certos

381 Para mais ver: MOREL, Regina Lúcia de Morais. (1979). Ciência e Estado: a política científica no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz; DIAS, Rafael de Brito. (2012). Sessenta anos de política científica e tecnológica no Brasil. Campinas, SP; Editora da Unicamp. 178 períodos históricos a “patrimonialização” dos grupos precursores e seus discípulos. Na perspectiva do autor, este aspecto referia-se também ao próprio conhecimento (somado ao aspecto cultural e à organização por cátedras) uma vez que a biografia dos pesquisadores se misturava ao desenvolvimento de suas agendas de pesquisas. Dessa forma, a continuidade da comunidade científica é interpretada por Calaça (2001) através do valor “afetivo” presente nas relações “familiares”, entre “pais” e “filhos” que criam e recriam “famílias” através do próprio conhecimento desenvolvido.

Chama a atenção o fato de que o elemento imagético utilizado na narrativa das origens da comunidade neurocientífica brasileira para se referir a um modelo de sociabilidade da área é o de “árvore genealógica”. O modelo “familiar” revela como a governança científica da área no Brasil é imaginada por relações interindividuais, sendo cada pesquisador um “pai” da agenda de pesquisa e das formas de transmissão, reprodução e recrutamento científico dos “filhos”. O que não significa que a imaginação das relações de reciprocidade familiares elimina o mérito na ciência produzida nessa dinâmica.

Nesse processo imaginativo, elencar o conhecimento desenvolvido sobre o cérebro pelos pioneiros é um dispositivo fundamental da narrativa, pois permite soldar como as agendas de pesquisas são transmitidas de “pais” para “filhos” e a diferença dos achados sobre o sistema nervoso produzidos pela comunidade neurocientífica brasileira. Alguns exemplos que representam o mérito dos achados neurocientíficos reconhecidos dentre os pares e internacionalmente, são o Atlas do Didelphis marsupialis, dos “irmãos Eduardo”; os primeiros experimentos com a Cannabis sativa, de Elisaldo Carlini; a bradicinina de Maurício Rocha e Silva, dentre outros.

No caso da comunidade neurocientífica brasileira, interpreto o uso da árvore genealógica junto à seleção simbólica daqueles precursores honrados pela “Medalha Neurociências Brasil”, como uma forma de imaginar uma territorialidade sociotécnica interna de quais agendas de pesquisas que as gerações anteriores e posteriores se relacionam; e como a vinculação territorial estabelece os bens a serem adquiridos e aqueles a serem honrados. Interpreto essa construção da imaginação com o conceito de morgadios científicos382.

382 Retirei a idéia da leitura do livro Comunidades Imaginadas de Benedict Anderson ([1983], 2008). “Morgadios” ou “morgados” é uma forma de organização social da época do sistema feudal de Portugal, na qual os domínios senhoriais eram indivisíveis e inalienáveis até a morte de seu titular, quando o conjunto dos bens era transmitido ao descendente mais próximo na linhagem familiar e assim para as sucessivas gerações. Só que o morgado não se tratava somente dos bens materiais. Ele era respectivo também àqueles “imateriais”, tais como o nome da família e a sua posição social. Assim, o morgado era um patrimônio que correspondia a um ato de regulamentação jurídico-administrativa na qual se transmitiam modelos de comportamento, códigos de conduta e 179

Sugiro o conceito de morgadio científico como um conjunto de modelos e práticas científicas que são imaginadas como bens herdados, que possibilitam aos grupos sociais que os adotam estabelecer os vínculos familiares dentre gerações científicas. Essa imaginação do comportamento linhagístico permite aos atores sociais criar ancoragem em diferentes gerações e é narrada como uma percepção genealógica do real.

Dessa forma, o morgadio científico trata-se de um ato imaginativo que permite estabelecer a jurisdição do patrimônio científico, dos antepassados para aqueles que os herdam. O ato da memória nesse processo é fundamental, pois estabelece aquilo que congrega uma família e aquele que funda a morgadia. Através do exercício imaginativo, a agenda de pesquisa de um antepassado permite incluir grupos e indivíduos de um modo compreendido como concreto e reconhecido por todos. Ou seja, trata-se de um processo no qual o reforço das redes de parentesco possuem implicações práticas no presente.

Assim, a especificidade da prática imaginativa da memória dos antepassados é um ato político e reside precisamente no uso do morgadio científico para fixar o eixo principal da linhagem daquele instituidor a uma série de elementos de prestígio, dentre eles: os conceitos científicos produzidos pelos precursores, os artigos publicados em revistas reconhecidas entre pares, os modelos animais utilizados, as tecnologias inéditas utilizadas na pesquisa de uma área da ciência, dentre outros elementos. E reforço: é um ato de imaginação do que é a memória de uma comunidade científica. Logo, a seleção do que é pertencente a uma linhagem geracional científica, ou não, tem performatividade com o presente e maleabilidade de incluir ou excluir aquilo que é herdado dependendo das circunstâncias do exercício imaginativo. Evocar determinadas agendas de pesquisas como pertencente a uma sucessão geracional possui conseqüências políticas para reunir atores sociais diversos em torno de um grupo social científico.

Por fim, cabe uma análise da narrativa histórica da ciência como um processo político em si. De acordo com a interpretação de Rose e Abi-Rached (20130; p. 30) sobre a perspectiva de história da ciência de Canguilhem, a mobilização e a performatividade de uma narrativa, no caso da presente tese sobre as neurociências, auxilia refletir que na busca de biografias de precursores de um tipo de disciplina científica fabrica-se um artefato, uma

formas de relacionamento com os antepassados que vigorava entre gerações. Nesse tipo de organização social , o exercício da memória era um fator fundamental de vinculação da geração presente com o que era herdado da passada e transmitido para a futura. Para mais ver: ROSA, Maria de Lurdes. (1995). O morgadio em Portugal, séculos XIV – XV. Modelos e práticas do comportamento linhagístico. Lisboa, Editora Estampa (col. Histórias de Portugal. nº 16). 180 simulação de um objeto histórico. Nesse processo, ignora-se o fato de que estes pioneiros possuem sua própria trajetória na ciência e não são agentes de um progresso científico linear, assim como uma narrativa da história científica aparenta ser.

O precursor é um pensador que o historiador acredita que possa extrair de um quadro cultural e inseri-lo em outro, o que equivale considerar conceitos, discursos e atos experimentais especulativos que sejam capazes de deslocar ou recolocar em um espaço intelectual no qual a reversibilidade das relações foi obtida pelo esquecimento do aspecto histórico que o objeto lida (CANGUILHEM, G. 1968, p. 21. apud ROSE & ABI-RACHED, 2013; 30). Da citação acima interpreto que é possível realizar diferentes narrativas da história das ciências através da reinterpretação de quais são os precursores de uma determinada área, ou a partir de diferentes conceitos e problemas, de acordo com os propósitos do presente. Ou mesmo, uma narrativa que implique os objetos de estudos (o cérebro, ou sistema nervoso) estáticos, intactos, em estados brutos, externos ao pensamento que são mais ou menos adequados a uma sucessão de cientistas. Nesse sentido, a neurociência brasileira para existir como comunidade imaginada, é preciso que a recordação real seja substituída por uma recordação mítica dos precursores nesse tipo de ciência. Em outras palavras, o surgimento de uma nova consciência sobre as pesquisas do cérebro brasileira e a constituição de sua legitimidade enquanto comunidade exige também uma nova forma de esquecimento.

Nesse sentido, Rose & Abi-Rached (2013) propõem que se o objeto da “nova ciência do cérebro” é elusivo, vago e inconstante, o que o torna consistente é uma constante referência ao passado. Nesse sentido, Rheinberger (1997) sugere que o “objeto epistêmico” dentro de uma análise historiográfica tem a característica de uma “imprecisão irredutível”. O que significa que ainda que muitas pesquisas fossem produzidas sobre o funcionamento do cérebro e do sistema nervoso, ao adicionar uma nova forma de interpretá-lo (as “neurociências”), o objeto torna-se indefinido. O que torna emergente o surgimento de uma narrativa de toda uma “comunidade neurocientífica” que é intercalada por eventos descontínuos: de marcos simbólicos que nos alertam aquilo que está porvir.

Diante dessa perspectiva, ressalto a fala de Frederico Graeff (FMRP/USP) que destaquei no início das conclusões finais do presente capítulo. Nela, o psicofarmacólogo provoca o uso do terno “neurociências” como algo semelhante aos usos do termo “translacional” dentro de certas áreas da ciência. “De repente”, para determinados pesquisadores, todas as pesquisas sobre o cérebro produzidas no país podem ser aglutinadas sob uma rubrica comum, ou que toda a pesquisa laboratorial básica necessita de aplicação 181 clínica. Para o psicofarmacólogo, o termo neurociência tornou-se um “retrovisor”. Através deste espelho enxerga-se todo o passado como “neurocientífico”.

A provocação feita por Graeff é significativa do quanto a narrativa do que pode ser denominado “neurociência” vem sendo construída. O espelho retrovisor permite àquele que enxerga o que é tal área de pesquisa no Brasil um campo periférico determinado, um horizonte construído pelos próprios neurocientistas que demarcam as territorialidades do que pode ser visto: o mapeamento das pesquisas experimentais do cérebro e suas tradições no país.

Assim, é possível interpretar a mirada retroativa como significativa do quanto a ciência pode ser modificada ou direcionada de acordo com os propósitos dos atores que compõem esse agrupamento social neurocientífico. Não se trata somente de uma interpretação de sua mobilização para compreender o passado, ou como culturalmente ela é diversa ou heterogênea em relação a outros países, ou mesmo o que pode ser enquadrado como um a “tradição” de descendentes legítimos. Mas interpreto como fundamental para o que pode ser feito dela para construir o presente e o futuro das pesquisas neurocientíficas. Tal tipo de mobilização traz em seu cerne os motivos e as razões dessa ação. E é o que busco debater no quarto capítulo.

182

Capítulo 4 – O imaginário neurocientífico durante a Copa do Mundo no Brasil

E aconteceu que, num daqueles dias, estava ensinando, e estavam ali assentados fariseus e mestres da lei, que tinham vindo de todas as aldeias da Galileia, e da Judeia, e de Jerusalém, e o poder do Senhor estava com ele para os curar; E eis que uns homens transportaram numa cama um homem que estava paralítico, e procuravam introduzi- lo, e pô-lo diante dele; E não achando por onde pudessem introduzi-lo, por causa da multidão, subiram ao telhado, e pelas telhas o baixaram com a cama, até o meio, diante de Jesus; E vendo-lhes ele a fé, disse- lhe: Homem, os teus pecados te são perdoados; E os escribas e os fariseus começaram a arrazoar, dizendo: Quem é este que diz blasfêmias? Quem pode perdoar pecados, senão só Deus?; Jesus, porém, conhecendo os seus pensamentos, respondeu, e disse-lhes: Que arrazoais em vosso coração?; Qual é mais fácil? dizer: Os teus pecados te são perdoados; ou dizer: Levanta-te, e anda?; Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra poder de perdoar os pecados (disse ao paralítico), a ti te digo: Levanta-te, toma a tua cama, e vai para tua casa; E levantando-se logo diante deles, e tomando a cama que estava deitado, foi para sua casa, glorificando Deus (BÍBLIA, Lucas, 5:17-25). A narrativa bíblica possui um regime de símbolos que estruturam seu imaginário. As passagens dos diferentes “milagres” de Jesus Cristo são exemplares dessas composições imagéticas. O trecho supracitado é um relato do apóstolo Lucas de um desses atos milagrosos. Nele, a cura de um deficiente físico por Cristo é narrada na sua relação com as dificuldades que os humanos teriam para perdoar seus semelhantes. O “perdão” e a “cura” seriam atos de passagem para os humanos alcançarem a “salvação” ou a “saúde”. Ou mais especificamente no caso do paralítico, a libertação do humano que sofre.

No ano de 2014, a possibilidade de um deficiente físico recuperar os movimentos do corpo ganhou destaque mundial através de um imaginário muito específico de símbolos que representam a nacionalidade brasileira. Naquele ano, a Copa do Mundo de Futebol da FIFA ocorreu no Brasil e, por se tratar da realização do evento no popularmente conhecido “país do futebol”, era uma das edições do torneio mais aguardadas em todo o mundo. Não raramente, durante a abertura, o governo do país-sede reconhece uma oportunidade para “apresentar-se ao mundo”, com representações artísticas que valorizam suas particularidades históricas, culturais e naturais. Nessa narrativa de símbolos que pretensamente exprimem o que é o “brasileiro”, diferentes personagens foram apresentados, como os índios, a abundante e diversa natureza, a batucada do samba, o berimbau da capoeira, os guarda-chuvas coloridos usados na dança do frevo, as baianas com suas roupas típicas do candomblé. Ao perceber essa oportunidade, o governo decidiu apresentar algo que representasse além das características 183 culturais e da biodiversidade do país: um paciente paraplégico vestindo uma veste robótica - ou exoesqueleto - fez o “chute inicial” do evento esportivo.

O artefato tecnológico é um dos desenvolvimentos mais recentes de uma das agendas de pesquisa da neurociência brasileira, mais especificamente, do Instituto Internacional de Neurociências de Natal - Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) e é fruto do projeto denominado “Andar de Novo”, que contou com o apoio de R$ 33 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP)383. A confecção do exoesqueleto contou com uma rede mundial de 156 participantes, oriundos de 25 países, para produzirem partes das tecnologias utilizadas na veste-robótica. Incluiu neurocientistas, engenheiros e profissionais da área de reabilitação de diferentes universidades mundiais.

O neurocientista responsável pelo projeto e coordenador do Instituto, é o brasileiro Miguel Nicolelis, diretor do laboratório de neuroengenharia da Duke University, dos EUA. O pesquisador fez a sua graduação e doutoramento na Medicina da USP em 1989384, quando iniciou as pesquisas com César Timo-Iaria, que nas palavras do próprio Nicolelis é o “(...) pai da neurociência brasileira”385 e seu “(...) herói científico” (NICOLELIS, 2011: p. 398)386. No entanto, após esse período até 2003, ano que marca seu retorno ao Brasil, o neurocientista desenvolveu suas pesquisas na universidade norte americana.

O exoesqueleto apresentado na inauguração do torneio de futebol projetado pelo neurocientista foi denominado de “BRA-Santos Dumont 1”, uma referência ao aeronauta brasileiro Alberto Santos-Dumont (1873-1932), considerado o primeiro homem a voar em uma aeronave controlável com motor a gasolina. O inventor conseguiu tal feito com o seu avião 14-Bis diante de uma platéia em Paris, na França, em 1906, o que fez com que Dumont seja considerado por muitos o “pai da aviação” e um símbolo da ciência brasileira.

383 A FINEP é uma empresa pública de fomento a CT&I em empresas, universidades, institutos tecnológicos e outras instituições, e que busca promover o desenvolvimento econômico e social do país. Disponível em: “Informações sobre a FINEP”. Página da FINEP. Quadro 3, C91. Acessado em 11/9/2015. 384 “Currículo Lattes de Miguel Nicolelis”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Acessado em 5/6/2016. 385 “Matéria: Interface cérebro-sociedade”. Página da Agência FAPESP. Quadro 3, C93. Acessado em: 5/6/2016 386 É preciso enfatizar aqui que afirmar que César Timo-Iaria é o “pai” da neurociência brasileira trata-se de uma afirmação recorrente de Miguel Nicolelis. Em outra matéria, quando do anúncio do falecimento de seu antigo orientador, o discípulo afirma: “Ele criou a neurociência brasileira. Foi um herói. Foi convidado para ficar nos EUA depois que concluiu o pós-doutorado, mas voltou porque achava necessário criar a neurociência no Brasil”. “Morre aos 80 anos César Timo-Iaria, pioneiro da neurociência no Brasil”. Matéria da página da Folha de São Paulo. Quadro 3, C94. Acessado em: 5/6/2016. Tais afirmações são fruto de controvérsias. Não só pelo capítulo anterior no qual, para meus informantes e nos dados coletados, é possível mapear uma genealogia mais antiga e em diferentes regiões da comunidade neurocientífica, como também nas entrevistas realizadas, muitos pesquisadores não concordam com o surgimento das neurociências no Brasil somente através da linhagem de Nicolelis. 184

A paternidade é controversa, uma vez que existem registros de que três anos antes nos EUA, os irmãos Orville e Wilbur Wright haviam voado com o Wright Flyer I. A discussão se estende em argumentos que versam que o invento dos irmãos americanos não alçava vôos por meios próprios e que a aeronave do brasileiro já possuía um sistema de decolagem autônoma. Independente dos fatos que atestam a paternidade, para muitos certamente o avião é um invento brasileiro, e Santos Dumont seu realizador.

No contexto da divulgação do projeto “Andar de Novo”, muitos grupos de pesquisa ao redor do mundo aprimoravam seus exoesqueletos para incrementar a mobilidade de deficientes físicos. Segundo a matéria da revista Piauí, O vôo de Nicolelis: a reedição do 14-Bis na abertura da Copa, de Stefano Pupe387, até a data de sua publicação, em Junho de 2014, onze grupos de pesquisas de diferentes países havia criado seus protótipos robóticos, testado em humanos e divulgado em revistas científicas internacionais. Quatro tipos de exoesqueletos já eram comercializados. Um exemplo deles, foi a veste robótica desenvolvida pela empresa israelense ReWalk utilizada por uma paraplégica britânica para percorrer uma maratona de 42 quilômetros (realizada em 16 dias) em Londres, na Inglaterra388.

A diferença principal do artefato neurocientífico brasileiro é que seria movido por sinais do cérebro do próprio usuário, registrados por uma tecnologia não invasiva (EEG) e permitiria uma pessoa paraplégica dar o pontapé em uma bola de futebol que simbolizaria o início da Copa389. Assim, o exoesqueleto seria desenvolvido com tecnologias inéditas para pessoas incapacitadas de se movimentarem por lesões medulares, pois mesmo que o cérebro produza as descargas elétricas, elas não chegam aos músculos a serem movimentados. A principal idéia do projeto, portanto, foi desenvolver dispositivos não invasivos que captam centenas e milhares dos sinais elétricos que o cérebro produz para regiões do corpo lesionadas e que permitam extrair desses sinais o planejamento motor que o cérebro cria para o ser humano se mover390.

387 “O vôo de Nicolelis”. Matéria da página da Revista Piauí. Quadro 3, C95. Acessado em 10/2/2017. 388 “Paralítica Claire Thomas termina a Maratona de Londres”. Matéria do jornal The Telegraph na página da empresa ReWalk. Quadro 3, C96. Acessado em: 10/2/2017. 389 “Pontapé inicial da Copa: Projeto Andar de Novo entra na fase de testes com pacientes brasileiros”. Portal da Copa. Site do Governo Federal Brasileiro sobre a Copa do Mundo da FIFA de 2014. Quadro 3, C97. Acessado em 03/04/2015 390 MIGUEL NICOLELIS. Brain-to-brain communication has arrived. How we did it. Disponível em: http://www.ted.com/talks/miguel_nicolelis_brain_to_brain_communication_has_arrived_how_we_did_it. Acessado em: 2/12/2014. 185

O desenvolvimento da veste robótica se conecta com experimentos que Nicolelis realizou, durante a década de 1990, quando já estava na Universidade de Duke, em parceria com o neurocientista John Chapin, da State University of New York. O objetivo das pesquisas na época era investigar como grandes redes neurais interagem quando ocorrem determinados tipos de comportamento. Para isso, imaginaram poder registrar as atividades elétricas que o cérebro produz para gerar comportamentos motores. Segundo Nicolelis, o registro seria “um terço de segundo antes da gente começar a se mexer (...). [Tempo em que] o cérebro cria um comando motor, gera toda a seqüência de comandos elétricos que daí são remetidos para a medula espinal e chegam nos músculos”391. Assim, Chapin e Nicolelis denominaram de “interface cérebro-máquina”, um tipo de pesquisa cujo objetivo é “estabelecer uma conexão direta computacional entre o cérebro e um artefato que vai ser controlado por esse cérebro. Seja ele um artefato mecânico, eletrônico ou virtual (...), um braço robótico, uma perna robótica, ou mesmo um avatar, um corpo virtual que está num mundo que não existe”392.

Para investigar essas populações neurais, os pesquisadores realizaram experimentos com macacos que tiveram chips implantados em seus cérebros para registrar as atividades elétricas do órgão. Com tais dispositivos, as cobaias aprenderam a controlar os movimentos de um braço virtual simulado em imagens produzidas em uma tela de computador sem mover o seu corpo. Nas imagens, o braço realiza tarefas no espaço virtual em que seleciona objetos pelo toque e o cérebro do macaco recebe sinais elétricos de volta que descrevem a textura do objeto tocado virtualmente. Assim, o animal pode decidir qual objeto tocar de acordo com as tarefas que apareciam na tela393. O estudo resultou em artigo publicado394 que sugere a possibilidade de um ser humano recuperar os movimentos perdidos devido a alguma lesão com o uso da interface cérebro-máquina e deu a Nicolelis projeção internacional dentre as neurociências, a ponto de ser citada a possibilidade do brasileiro ser um candidato ao prêmio Nobel de Medicina395.

391 MIGUEL NICOLELIS. Interface Cérebro Máquina. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OvqHP7elwTM. Acessado em 10/2/2017. 392 Ibid. 393 Artigo do estudo: Chapin JK, Moxon KA, Markowitz RS, Nicolelis MAL. Real-time control of a robot arm using simultaneously recorded neurons in the motor cortex. Nature Neurosci 2: 664-670, 1999 394 Nicolelis MAL, Chapin JK. Controlling robots with the mind. Scientific American 287: 24-31, October 2002. 395 “Brasileiros ganham projeção internacional”. Página do jornal Valor Econômico. Quadro 3, C98. Acessado em 5/1/2015. 186

Enquanto o projeto “Andar de Novo” era executado, alguns pesquisadores já haviam desenvolvido exoesqueletos com EEG. Um dos primeiros foi o Mindwalker, do pesquisador Guy Chéron, da Universidade Livre de Bruxelas. Outro, foi o NeuroRex, feito por José Luis Contrera-Vidal, da Universidade de Houston. Ambas as tecnologias já haviam sido testadas e com resultados publicados. Contrera-Vidal afirmava, inclusive, que “estaria disposto a mostrá-lo [o NeuroRex], juntamente com o protótipo de Nicolelis”396.

Diante desse contexto, Nicolelis ao batizar seu invento com o sobrenome do famoso aeronauta e ao mobilizar a agenda de suas pesquisas para produzir uma tecnologia com profundas implicações para a área da saúde, equiparava simbolicamente a sua potencial inovação com aquela que produziu uma verdadeira indústria da aviação e buscava estampar a bandeira do Brasil como uma nação que também desenvolveria uma das tecnologias mais surpreendentes da última década.

Para Nicolelis, a idéia de apresentar o exoesqueleto em um momento tão simbólico objetivava demonstrar “um outro Brasil (...), mostrar um país que começou a investir na ciência (...), nos últimos 12, 13 anos, em meios de produção de conhecimento de ponta que vai influenciar milhões de vidas de pessoas. Que tal mostrar para o mundo (...) que aqui está sendo construída uma outra sociedade, um outro país?”397. Dessa forma, os resultados do projeto “Andar de Novo” repetiria o “milagre” bíblico, só que através da “ciência brasileira” durante a inauguração da Copa no “país do futebol”. Nesse jogo de imagens do imaginário sociotécnico neurocientífico, potencialmente o dito popular “Deus é brasileiro” ganharia uma nova roupagem: o Nobel é brasileiro.

Por sua vez, para o governo a decisão de apresentar o exoesqueleto em um evento de tamanha magnitude como a Copa, reforçaria ao mundo a imagem de um país não só de natureza vasta e de cultura vivaz, mas também que era inovador, representada pelo simbólico “chute”. Nesse contexto, a área de Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I) brasileira era mundialmente destacada como parte de seu desenvolvimento econômico em diferentes veículos de comunicação. Um exemplo, pode ser verificado na matéria da capa da revista Nature398, de 12 de Junho de 2014399, que anuncia uma reportagem especial sobre as ”Estrelas da ciência sul-americana”400.

396 Quadro 3, C95. 397 MIGUEL NICOLELIS. Andar de Novo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=apZMhwn4JOE. Acessado em: 10/2/2017. 398 A Nature é uma das mais antigas e prestigiadas revistas científicas do mundo. Nela, muitas áreas do conhecimento ganham destaque, principalmente as Ciências Exatas e Naturais, a Química, Física, as Ciências da 187

A matéria faz um retrato pormenorizado dos investimentos em Ciência e Tecnologia na América do Sul. Mesmo aquém das sociedades de industrialização avançada, as economias dos países do continente estavam aquecendo e os dispêndios de recursos com pesquisa aumentando, dinâmica que revelava a necessidade de investimento em infra- estrutura e políticas que apoiassem a ciência. Na matéria referida, argumenta-se que investir em CT&I é um dos eixos fundamentais para o desenvolvimento econômico e tais ações poderiam significar, em algum tempo, uma reconfiguração da posição dos países sul- americanos na economia mundial.

Ainda em seus primeiros parágrafos, a matéria destaca que o Brasil era a única nação do continente que gastava pouco mais de 1% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em C&T. Algo que “pode parecer herético”, pois no país tradicionalmente conhecido pelas suas conquistas no futebol, os gastos em Ciência eram maiores do que os investimentos feitos para a realização da Copa: US$ 27 bilhões anualmente investidos em C,T&I, enquanto o torneio de futebol consumiu cerca de US$ 15 bilhões401.

Segundo Carlotto (2013), o investimento na área de C,T&I foi uma característica dos governos brasileiros nas últimas duas décadas, especialmente no âmbito federal. Para autora, o “discurso da inovação” é um dos possíveis pontos de continuidade das políticas de dois governos formados por partidos de ideário não só distintos, mas em muitos pontos opostos: o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e de Luiz Inácio “Lula” da Silva (2003-2010). Assim, tais governos buscaram estabelecer diretrizes que dinamizassem a área de C,T&I, “com forte ênfase no incentivo à transformação do conhecimento científico em inovação tecnológica como estratégia para aumentar a competitividade das empresas brasileiras e impulsionar o crescimento econômico do país” (CARLOTTO, 2013: 59).

Vida e Médica, Meio Ambiente, sem contar inúmeras descobertas científicas que foram publicadas, como o raio X, a dupla hélice do DNA, o buraco da camada de ozônio, desde a sua primeira edição em 1869. Seu ranking no fator de impacto de revistas científicas é de 42.35, o que lhe confere grande relevância na publicação científica mundial. Disponível em: http://www.nature.com/. Acessado em 10/10/2014. 399 Stars of south-american science. Nature, 12 de Junho de 2014, vol. 510. Acessado em 10/10/2014. 400 T.A. 401 Os dados publicados pela revista Nature, em Junho de 2014, estavam de acordo com os gastos previstos do governo e baseados na cotação do Dólar norte-americano em relação ao Real na época. Após a realização da Copa, o governo brasileiro através de um site específico da Controladoria Geral da União (CGU), divulgou um balanço orçamentário para a realização do torneio de futebol no qual é possível verificar que os gastos previstos (R$ 27.346.140.056,43) foram ultrapassados em cerca de R$ 500.000.000 (R$ 27.824.646.818,34). Disponível em:< http://www.portaltransparencia.gov.br/copa2014/home.seam. Acessado em: 28/10/2015. No entanto, os dados ainda são fonte de controvérsias, pois, por exemplo, obras de infra-estrutura para estímulo do desenvolvimento local e regional, e que estavam associadas aos investimentos do setor público (que correspondeu a aproximadamente 85%) para a realização do torneio ainda não foram entregues. Ou seja, muito investimento foi feito, mas é previsto que mais seja necessário para terminar obras iniciadas no contexto da realização da Copa. 188

Abaixo, um gráfico relativo aos gastos em C&T do ano de 2000 a 2013, início do segundo governo do presidente tucano até o ano anterior da Copa no Brasil, que ilustra o argumento da citada autora.

Figura 19: Investimento em C&T relativo ao PIB no Brasil entre 2000 e 2013. Disponível em: http://www.mcti.gov.br/noticia/-/asset_publisher/epbV0pr6eIS0/content/aumenta-o-investimento-em-c-t-no- brasil. Acessado em: 17/3/2017.

Algumas iniciativas governamentais representam esse contexto. Por exemplo, o Plano Brasileiro para o Desenvolvimento da Educação (PDE), tinha como objetivo disseminar não só educação de qualidade para regiões afastadas e pobres do país, melhorar a formação de base de professores, mas principalmente orientar a criação de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFET); em 2012, com a divulgação a Estratégia Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação (Brasil, 2012), o governo brasileiro reforçava que o principal desafio dos próximos anos era transformar o país em efetivamente competitivo, desenvolvido e eficiente, a fim de se preparar para a “sociedade do conhecimento”. Desenvolvimento que, segundo as diretrizes governamentais, significava organizar e orientar o rumo da Ciência brasileira em suas possíveis intersecções com a economia.

189

Um exemplo ilustrativo do discurso governamental baseado em investimentos e diretrizes para a área de CT&I é a publicação de um artigo, do ano de 2008 (um ano após o anúncio de que o país sediaria a Copa), da revista Scientific American402 escrito pelo então presidente Lula, o Ministro da Educação, Fernando Haddad, e o neurocientista Miguel Nicolelis. Os autores do artigo argumentam que mesmo atingindo uma estabilidade e prosperidade econômica, o governo brasileiro buscava abordar uma série de questões que “desafiam a maioria das nações em desenvolvimento em todo o mundo”403. Dessa forma, fazia parte do projeto político governamental traduzir os avanços econômicos em “programas sociais que possam melhorar, finalmente, a qualidade de vida de milhões de brasileiros que, até muito recentemente, não tinham esperança de partilha da enorme riqueza do país”.

Também, na época de tais investimentos governamentais, da realização da Copa e do projeto “Andar de Novo”, Miguel Nicolelis vinha se destacando na mídia como uma espécie de porta-voz da ciência brasileira ao lançar, em 2010, o “Manifesto da Ciência Tropical: um novo paradigma para o uso democrático da ciência como agente efetivo de transformação social e econômica do Brasil”404. No documento, o autor enfatiza o papel central que a ciência brasileira deveria assumir para “erradicar a miséria, revolucionar a educação e construir uma sociedade justa e verdadeiramente inclusiva. (...) É hora de aproveitar este momento histórico e transformar o Brasil (...), da democracia e da criação científica, num exemplo de nação e sociedade”. Para que a ciência brasileira alcançasse tais objetivos, o neurocientista propôs “15 metas para a capacitação do Programa Brasileiro de Ciência Tropical (...) [que] permitirá o processo de inclusão social e crescimento econômico (...). [As metas] visam desencadear a massificação e a democratização dos meios e mecanismos de geração, disseminação, consumo e comercialização de conhecimento de ponta por todo o Brasil”405.

Assim, a apresentação dos resultados de um projeto de uma área do conhecimento científico que vinha mobilizando vultosos recursos em diferentes países (como, por exemplo, nos casos do Brain Initiative e do European Human Brain Project) em um momento tão significativo como a realização da Copa no país, simbolizava que o governo brasileiro investia em seu desenvolvimento econômico através da Ciência e que visava se inserir como

402 “Opção do Brasil pela educação científica”. Matéria na página da revista Scientific American. Quadro 3, C99. Acessado em 5/1/2015. 403 T. A. 404 “Nicolelis lança Manifesto da Ciência Tropical: ‘Ela vai ditar a agenda mundial do século XXI’”. Matéria do site Viomundo. Quadro 3, C100. Acessado em 4/12/2014. 405 Quadro 3, C100. 190 um dos principais atores da economia mundial. Tal imaginário sociotécnico foi ilustrado por uma tecnologia desenvolvida por uma das agendas de pesquisa da neurociência brasileira, o que colocou a comunidade neurocientífica em grande destaque. Na seqüência, apresentarei como foi construída a agenda de pesquisa do IINN-ELS, local em que o projeto “Andar de Novo” ganhou forma.

4.1 - A “Cidade Brasileira do Cérebro”

Quando entrei em contato com o tema da pesquisa “Neurociência no Brasil”, até então, algumas palavras-chave aparentavam significar as dinâmicas de pesquisa desta área do conhecimento, como: “Miguel Nicolelis”, “IINN-ELS”, “exoesqueleto”, ou “veste-robótica”, “desenvolvimento econômico e social”, “indústria do cérebro”, “cidade do cérebro”, “futebol”, “Copa do Mundo”, “Lula”, entre outras. Sendo um estudante da PCT brasileira, interpretava que tais palavras significavam metáforas de um país que investia no desenvolvimento econômico através da ciência. Mais especificamente a neurociência. E aparentemente, assim como ocorria nos EUA, o governo brasileiro havia escolhido uma área da ciência para produzir desenvolvimentos cognitivos e políticos parecidos com aqueles almejados com o projeto de larga escala em neurociências da sociedade de industrialização avançada.

Durante o trabalho de campo, busquei dados que corroborassem a hipótese das intenções do governo junto à comunidade neurocientífica brasileira. Ou seja, de que a neurociência era uma área estratégica e coordenada por diretrizes governamentais específicas, assim como o caso do projeto de Big Science norte americano. Pode-se afirmar que a primeira tentativa de organizar uma agenda de pesquisa de âmbito nacional é a criação, em 2007, da Rede Instituto Brasileiro de Neurociência (IBN-NET) que teve apoio da FINEP. A Rede era coordenada pelo Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará e pelo Departamento de Bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e pretendia reunir 125 docentes-pesquisadores e 11 instituições de ensino superior406.

406 Disponível em: Revista Neurociências, Volume 5, Nº 2, abril/junho, 2009. Acessado em 17/10/2013. 191

Em uma matéria da Revista Neurociências & Psicologia407 o autor do artigo e coordenador principal do IBN-NET, Luiz Carlos Lima Silveira (UFPA), informa do que se trata o projeto. Nela, expressa seu desejo de que as pesquisas brasileiras do cérebro crescessem, assim como “observado em muitos países” e que essa dinâmica fosse acompanhada pelas instituições de pesquisa e ensino do país através de “investimentos diferenciados pelas agências de fomento nesse campo da fronteira do conhecimento” (SILVEIRA, 2009a, p. 59).

Para o neurocientista, o investimento por parte das agências de fomento à pesquisa e a mobilização dos pesquisadores da área para criação de projetos se tratava de acompanhar a:

(...) revolução na história do desenvolvimento científico e tecnológico. Ela é dirigida para o funcionamento do cérebro, para a criação de máquinas inteligentes e para o desenho de interfaces entre cérebro e máquina. O Brasil pode desfrutar de uma posição de destaque nessa nova era. Graças a um trabalho de mais de meio século, encontram-se funcionando em muitas universidades e institutos de pesquisa grupos de investigação em Neurociência com um grande número de pesquisadores, já em sua terceira geração. A recente criação do Instituto Internacional de Neurociências de Natal e do Instituto do Cérebro do Hospital Albert Einstein em São Paulo pode servir para atrair jovens neurocientistas, aumentar o intercâmbio entre os cientistas brasileiros e do exterior e criar uma ponte entre a vida acadêmica e as necessidades da sociedade em geral (Idem, p. 59) A matéria é emblemática do momento de destaque que a área das neurociências atravessava. O autor do artigo revela o seu entusiasmo com o contexto internacional das pesquisas do cérebro na época e exalta a potencialidade da ciência brasileira nesse cenário. Mesmo com o lançamento das duas edições do “prestigioso ‘Edital Institutos do Milênio’408 nos últimos dez anos pelas agências brasileiras que financiam ciência e tecnologia, [no qual]

407 A Revista foi criada em 2004 e publicou centenas de artigos da área com os “melhores representantes da ciência brasileira”. Teve a direção editorial desde então de Luiz Carlos Lima Silveira e editor associado Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro (FIOCRUZ). Atualmente a posição é ocupada por Suzana Herculano-Houzel. Dentre os membros do conselho editorial, destaco Dora Fix Ventura (USP), Eliane Volchan (UFRJ) e Rafael Linden (UFRJ), que são pesquisadores que fazem parte daquela trajetória histórica da comunidade neurocientífica brasileira. Assim, interpreto a Revista como um material de divulgação tido como “oficial” da comunidade neurocientífica brasileira. Também, a Revista é publicada com o apoio da SBNeC. Disponível em: http://www.portalatlanticaeditora.com.br/index.php/neurocienciasepsicologia. Acessado em: 10/11/2016. Tal interpretação é amparada no fato que existe uma outra “Revista Neurociências”. Criada em 1993, ela é dirigida pela Associação Neuro-Sono, de São Paulo e voltada para o público da Neurologia e ciências afins. Disponível em: http://www.revistaneurociencias.com.br/. Acessado em 10/11/2016. 408 O “Edital Institutos do Milênio” foi um programa de financiamento de pesquisa criado pelo então Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) de áreas consideradas estratégicas para o desenvolvimento do país. O programa visava estimular a formação de redes de pesquisa entre laboratórios brasileiros “para produzir conhecimento de ponta, sem a necessidade de construir infra-estrutura física”. “Programa Institutos do Milênio avança”. Agência FAPESP. Quadro 3, C101 Acessado em 10/11/2016. 192 nenhum instituto voltado especificamente para Neurociência foi aprovado” (Idem, p. 59), neurocientistas brasileiros conseguiram ter seus projetos de pesquisas aprovados pelas tradicionais agência de fomento à pesquisa, como CNPq, CAPES e FINEP. Tal atuação era significativa do crescimento das pesquisas da área e o IBN-NET seria um possível projeto catalisador de uma agenda de pesquisa do cérebro brasileira. “O apoio da FINEP à criação da IBN-NET pode ser considerado possivelmente como o primeiro apoio de grande monta específico para Neurociência realizado por uma agência de fomento brasileira” (Idem, p.60)

O objetivo cognitivo do projeto era “(...) comparar dados e discutir novos procedimentos e tecnologias, ‘em torno de múltiplos aspectos das bases morfofuncionais de organização do sistema nervoso e dos fenômenos de neurodegeneração que acometem os 409 seres humanos e representam problemas de saúde de enorme relevância para o país’” . No entanto, apesar de toda a sua pretensa representação para a neurociência nacional, a rede IBN- NET não obteve o objetivo almejado de produzir pesquisa em tamanha escala.

Consegui obter poucos dados para compreender os motivos do Instituto não ter se tornado uma agenda neurocientífica nacional410. Segundo Ivan Izquierdo, neurocientista honrado com a “Medalha Neurociências Brasil”, em 2007, e coordenador do Centro de Memória do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o IBN-NET “não vingou, porque não teve dinheiro suficiente, não teve impulso suficientemente grande... Para impulsionar precisaria de um grupo unânime e considerado como bom. Sem isso não se cria. Não há vontade de se fazer igual, de se fazer junto. Tem que ser realmente um grupo de excelência a nível mundial. Faltou massa crítica”411.

Ou seja, interpreto “massa crítica”, grupo “unânime” e de “excelência a nível mundial”, como, possivelmente, a falta de adesão das diferentes universidades e institutos envolvidos no projeto na continuidade e no esforço de conseguir mais verbas para o andamento das pesquisas. Também, possivelmente, a falta de consenso em estabelecer objetivos cognitivos em comum dentre as diferentes agendas de pesquisas envolvidas. Outro

409 “Neurociência brasileira”. Página da revista Mente e Cérebro. Quadro 3, C102. Acessado em 10/11/2016. 410 Durante entrevista com Sidarta Ribeiro (Quadro 1, A1) ele afirma que a IBN-NET “já passou, é passado. Ela acabou não teve continuidade”. O entrevistado não foi claro com relação aos motivos de tal agenda não ganhar o impulso que prometia para a coordenação das pesquisas em âmbito nacional. Tentei por diversas vezes o contato com Luiz Carlos da Lima Silveira, professor do departamento de Fisiologia, da Universidade Federal do Pará (UFPA), que era coordenador da IBN-NET, para saber sobre os motivos da criação de tal agenda de pesquisa e por que ela pereceu (se de fato pereceu). Como apontei na nota de rodapé 212, quando entrevistei Dora Fix Ventura, ela me informou que o neurocientista encontrava-se enfermo, o que poderia ser o motivo de não conseguir tal contato. Infelizmente, Silveira, coordenador principal do projeto, veio a falecer em Julho de 2016. Disponível em: Quadro 3, C52. Acessado em: 10/8/2016. 411 Quadro 1, A7. 193 dado que corrobora esta possível interpretação é o site da Plataforma Sucupira, do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) gerenciado pela CAPES, em que constam alguns dados sobre o IBN-NET412. Na página, consta que o projeto teve início em 1º de Março de 2014, e está “em andamento”, mas “sem financiadores associados ao projeto de pesquisa”. No site, apesar do texto introdutório que reforça a abrangência nacional do projeto, constam apenas como participantes os nomes de Luiz Carlos Lima Silveira, Bruno Duarte Gomes e Dora Fix- Ventura, pesquisadores UFPA e USP, respectivamente.

Por sua vez, diante desse contexto de tentativa de criação de uma agenda nacional neurocientífica, foi o Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN) que passou a ganhar destaque ao “granjear apoio crescente de agências de fomento nacionais e internacionais”413. O Instituto foi inaugurado em 2003, por um grupo de cientistas brasileiros “inspirado no exemplo de Alberto Santos-Dumont, o inventor e aviador brasileiro, que em 1901 tornou-se o primeiro homem a voar em uma aeronave controlável alimentado por um motor”414, que decidiu criar um “instituto de pesquisa dedicado a usar o estado-da-arte da ciência como um agente de transformação social e econômica para uma das regiões menos desenvolvidas do país”.

O núcleo da visão de Nicolelis é uma rede de “cidades da ciência” construída nas regiões mais pobres do Brasil, cada uma delas centrada em um instituto de pesquisa de caráter internacional, especializado em uma área diferente da ciência ou da tecnologia. Uma rede de programas sociais e educacionais envolveria intimamente as comunidades vizinhas com cada instituto, ao mesmo tempo em que melhoraria a infra-estrutura e a qualidade de vida locais. Além disso, a presença desses oásis de conhecimentos estimularia um agrupamento de empreendimentos científicos comerciais à sua volta, nos moldes do Vale do Silício, impulsionando o desenvolvimento regional415. Segundo o então presidente Lula, a criação do Instituto foi uma forma do país ingressar em um seleto grupo de países capazes de desenvolver conhecimento tecnocientífico em “neurologia”, uma área considerada de “grande relevância estratégica", na qual deixa de ser “testemunha das grandes conquistas da ciência e tecnologia moderna, para tornar-se um celeiro de avanço técnico e tecnológicos indispensáveis para o desenvolvimento e prosperidade do país”416.

412 “Dados do projeto IBN-NET”. Plataforma Sucupira. Quadro 3, C103. Acessado em: 10/2/2017. 413 Disponível em: Revista Neurociências, Volume 5, Nº 2, abril/junho, 2009. Acessado em 17/10/2013. 414 Quadro 3, C99. 415 “A construção do futuro”. Página da revista Mente e Cérebro. Quadro 3, C104. Acessado em: 10/3/2017. 416 Disponível em: . Acessado em 1/12/2014. 194

Miguel Nicolelis, Sidarta Ribeiro – então pesquisadores da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, EUA – e Cláudio Mello – pesquisador na época da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon, em Portland, EUA - foram os responsáveis na idealização do IINN para produzir “ciência de ponta” no Rio Grande do Norte (RN)417. Em virtude da posição de destaque que possuía na Universidade de Duke e pela referência internacional conquistada por duas décadas de pesquisa, Miguel Nicolelis foi o cientista responsável para atrair investimentos públicos e privados, bem como conquistar visibilidade internacional para o projeto.

A seleção de RN para a criação do Instituto justifica-se pelo fato do estado brasileiro ser um dos mais carentes no índice de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)418. Os pesquisadores estabeleceram a cidade de Macaíba, da Região Metropolitana de Natal, o local para implantarem o Instituto. Lá, fundaram o “Campus do Cérebro”. No entanto, por falta de infra-estrutura, iniciaram as atividades na capital potiguar. Atualmente elas ocorrem nas duas cidades do Nordeste e em São Paulo, capital.

Segundo o site do Instituto, “a principal missão do IINN-ELS é promover a realização e o crescimento da pesquisa científica de ponta que pode contribuir para o desenvolvimento educacional, social e econômico do Rio Grande do Norte e de toda região Nordeste do Brasil”419. A instituição é autônoma e recebeu diferentes incentivos federais para construção das instalações físicas, mas também capta recursos privados através da Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa (AASDAP), uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) criada para gerenciar os recursos do Instituto. Em 2014, a gestão foi transferida para a Instituição de Ensino e Pesquisa Alberto Santos Dumont (ISD), uma Organização Social (OS), localizada na capital paulista420.

417 “Cientistas brasileiros nos EUA propõem centro de excelência no RN”. Página do jornal Folha de São Paulo. Quadro 3, C105; “Centro de Neurociências deve ser instalado em um período de três anos”. Matéria do jornal Tribuna do Norte coletada nos arquivos da página do IINN-ELS. Quadro 3, C106; “Brasil terá instituto de neurociências com conceito inovador”. Matéria do jornal Diário de Natal coletada nos arquivos da página do IINN-ELS. Quadro 3, C107. Todas as matérias foram acessadas em 1/12/2014. 418 Quadro 3, C107. 419 Quadro 3, C107. 420 “Instituto de Miguel Nicolelis fala sobre obras do Campus do Cérebro em Macaíba”. Matéria da página Macaíba no ar. Quadro 3, C108. Acessado em: 10/2/2017. 195

Um dos principais financiadores privados na formação do Instituto é a filantropa e socialite Lily Safra. A viúva do banqueiro Edmond Safra, fez uma doação em 2006, considerada “a maior da história da ciência brasileira”421. Com isso, Nicolelis fez um acordo com a concessora para que o nome do Instituto ganhasse um adendo de “Edmond e Lily Safra”. Na época, Lily Safra era considerada uma das “mulheres mais ricas do mundo” com uma fortuna avaliada em US$ 1 bilhão422. Parte da origem de seu patrimônio é fruto da herança herdada por ocasião da morte de seu segundo marido, Alfredo João Monteverde, em 1969, que era um dos sócios majoritários da rede de varejo Ponto Frio423. Em 1976, Lily casou-se com Edmond Safra, um dos sócios majoritários do Banco Safra, considerada a primeira instituição financeira do Brasil.

O casal Safra possui uma história particular com a filantropia. Eles atuaram como financiadores de algumas instituições que criaram e que estavam relacionadas com a ciência, como a International Sephardic Education Foundation (ISEF), para promover ensino superior para jovens de origem judaica e pobres; o programa de intercâmbio Lily Safra Intership Program para estudantes de pós-graduação da Brandeis University (EUA); e a Edmond J. Safra Center for Ethics da Harvard University (EUA) que é uma fundação que dá suporte a projetos nas áreas de educação, ciência e medicina424.

O interesse de Lily Safra para financiar projetos relacionados à neurociência se deu por conta do adoecimento pelo mal de Parkinson de Edmond Safra no final de sua vida (o bancário faleceu em 1999)425. Em 2004, a socialite fez duas doações no valor de US$ 10 milhões cada uma para instituições norte-americanas: a Harvard University e a fundação criada por Michael James Fox, um ator norte americano que sofre do mesmo mal que acometia Edmond Safra, para o desenvolvimento de pesquisas e tratamentos de Parkinson426.

Em uma nota divulgada em 2006, pelo jornal O Estado de São Paulo, esclarecendo o motivo da doação de verba para o então IINN de Nicolelis, Lily Safra relata estar “há muitos anos (...) envolvida com as pesquisas na área da neurociência em institutos de renome em todo mundo, apoiando os cientistas em sua busca pela cura de enfermidades

421 Não foram encontrados dados sobre o valor doado por Lily Safra. 422 “Lily Safra faz doação milionária a centro no RN”. Matéria do jornal O Estado de São Paulo coletada nos arquivos da página do Senado. Quadro 3, C109. Acessado em: 13/2/2017. 423 “Drama, glamour e muito dinheiro”. Matéria da página da revista Istoé. Quadro 3, C110. Acessado em: 4/12/2014. 424 Quadro 3, C109. 425 “O mistério de Safra”. Matéria da página da revista Istoé. Quadro 3, C111. Acessado em: 10/2/2017. 426 Quadro 3, C111. 196 devastadoras como a doença de Parkinson e o mal de Alzheimer”427. Também, o “projeto chamou minha atenção porque (...) aborda uma outra área dentre aquelas que tenho atuado por tanto tempo: oferecer oportunidades educacionais para crianças desfavorecidas e suas famílias”428.

As “oportunidades educacionais” que chamou a atenção da filantropa, na citação da nota do jornal Estado de São Paulo, compõem parte dos principais objetivos do conceito de “desenvolvimento social e econômico” que norteia a agenda do IINN-ELS. Dentre os projetos para educação, o Instituto criou a Escola de Educação Básica Lygia Maria Rocha Laporta que tem como objetivo “a realização do programa Educação para Toda Vida, que começa no pré-natal das mães dos futuros alunos, passando pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio”429. O atendimento às mães e às crianças é feito no Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi que, por sua vez, “tem como objetivo atuar na formação, desenvolvimento e educação permanente de profissionais de saúde” e “promover parcerias capazes de fortalecer e auxiliar o Sistema Único de Saúde (SUS)”430. O Centro foi inaugurado em 2008.

Também, faz parte do projeto educacional o Centro de Educação Científica Alfredo J. Monteverde, inaugurado em 2007, que “tem como missão promover a Educação Científica para alunos do Ensino Fundamental II, a fim de oferecer e difundir o exercício da formação científica que não está ao alcance de todos os setores da sociedade, e assim contribuir no processo de inclusão social”431. Todos estes projetos são executados nas cidades de Natal e Macaíba. Em 2010, o projeto educacional científico foi ampliado com a criação do Centro de Educação Científica na cidade de Serrinha, na Bahia, com apoio do Governo do Estado baiano.

Em uma entrevista realizada para o canal Link de notícias sobre internet, tecnologia, games e inovações, do Estado de São Paulo, em 2012, Miguel Nicolelis explica como o projeto educacional está relacionado com a sua idéia de desenvolvimento social através da ciência. Inicia sua fala ressaltando os resultados alcançados do Centro de Saúde que reduziu a mortalidade materna na região de Macaíba e Natal a zero. “As crianças que

427 Quadro 3, C111. 428 Quadro 3, C111. 429 “Site da Escola de Educação Básica Lygia Maria Rocha Laporta”. Página do Instituto Santos Dumont – Ensino e Pesquisa. Quadro 3, C112. Acessado em: 15/3/2017. 430 “Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi”. Página do Instituto Santos Dumont – Ensino e Pesquisa. Quadro 3, 113. Acessado em: 15/3/2017. 431 “Site do Centro de Educação Científica Escola Alfredo J. Monteverde”. Página do Instituto Santos Dumont – Ensino e Pesquisa. Quadro 3, 114. Acessado em 15/3/2017. 197 nascem lá já são alunas da escola no pré-natal. Depois elas entram no berçário e seguem estudando em período integral até o ensino médio”432. Por sua vez, o ensino científico aliado ao ensino básico, o neurocientista afirma que: “Nossa abordagem de ensino de ciência é prática. (...) E contratamos nossos ex-alunos para trabalhar conosco. Na prática estamos pegando crianças que nunca tiveram contato com ciência, colocando-as em um programa de educação e em um laboratório de ponta. E são crianças que, até os 10 anos, não tiveram oportunidades (...)”433.

Nicolelis também afirma que uma das motivações de criar este projeto educacional se deu pela constatação do “dramático” quadro científico brasileiro. “O déficit de engenheiros que o Brasil tem é gigantesco. E esse é um assunto estratégico. A indústria deste século, sem dúvida, é a do conhecimento e estamos em grande desvantagem. Se não acordarmos agora, não precisamos mais acordar. A janela de oportunidade está se fechando – e rápido”434. Ainda, segundo o neurocientista, “meu intuito diz respeito à criação de uma nova geração de brasileiros. Produzindo não apenas cidadãos (...) mas também engenheiros, médicos, cientistas, professores... Pessoas que têm outra visão de mundo. E de Brasil”435.

Ou seja, a principal idéia das escolas do projeto educacional e do atendimento pré- natal para as mães, que são gratuitos, em uma região com baixo desenvolvimento social, é formar os “futuros alunos” que potencialmente trabalharão dentro dos laboratórios do Campus do Cérebro. São crianças que desde a sua formação básica terão acesso à formação científica. De certa forma, pode-se afirmar que o projeto educacional busca desenvolver a própria massa crítica do IINN-ELS, ao mesmo tempo em que promove inclusão social em uma área de baixo índice de desenvolvimento humano segundo o PNUD.

O outro objetivo principal do IINN-ELS para o desenvolvimento social é a transformação econômica da região também através da ciência. Para isso, foi construído em Macaíba um Centro de Pesquisa para promover ensino universitário na área de neurociências e abrigar os laboratórios de pesquisa do IINN-ELS, que são: de Eletrofisiologia e Comportamento Animal; Neurobiologia Celular e Molecular; Microscopia Confocal; e o Centro Cirúrgico. A infra-estrutura ainda abriga um criadouro de primatas credenciado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA) e o

432 Quadro 3, C1. 433 Quadro 3, C1. 434 Quadro 3, C1. 435 Quadro 3, C1. 198 supercomputador Blue Gene/L da IBM, rebatizado de 14-BIS-21, em referência ao invento de Santos-Dumont436, doado pela École Polytecnhnique fédérale de Lausanne (EPFL)437.

Sediado no laboratório da AASDAP em São Paulo, o projeto “Andar de Novo”, por vezes chamado de Walk Again, é símbolo da transformação econômica que o Instituto pretende promover no Nordeste brasileiro naquele Centro de Pesquisa. Para Nicolelis “o Walk Again é a semente de uma nova indústria no Brasil, a da tecnologia de reabilitação. Gostaríamos de usar o Walk Again como projeto-âncora para lançá-lo aqui no Brasil com a construção da infra-estrutura do parque neurotecnológico do Câmpus do Cérebro”438. O neurocientista compara o potencial que a veste-robótica possui com as conseqüências que as tecnologias que surgiram do programa espacial norte-americano tiveram para aquela economia. “Há várias aplicações que surgem desta meta, que chamamos de ‘spin-offs’. (...) Quando os executivos da indústria de games vêem um macaquinho imerso num mundo virtual jogando videogame com a mente, eles vêem o futuro”439.

Os “spin-offs”, ou desdobramentos, são desenvolvimentos da ciência que se tornam “produtos”. No caso daquele programa espacial, o material utilizado nos trajes dos astronautas de fibra de vidro com teflon, que é resistente ao mesmo tempo em que flexível a ponto de permitir o controle de temperatura do corpo, é um exemplo desses desdobramentos. O mesmo material é utilizado na cobertura de ginásios esportivos, em trajes de trabalhadores de indústrias de ambientes com temperatura alta e no uniforme de bombeiros. O teflon atualmente é usado em diferentes tipos de vestimentas. As botas desenvolvidas para as

436 “Página dos Projetos do IINN-ELS – Centro de Pesquisa de Macaíba”. Página do IINN-ELS. Quadro 3, C115. Acessado em: 20/3/2017. 437 A EPFL é a principal sede do projeto Human Brain Project (HBP) e onde atua seu principal coordenador, o neurocientista Henry Markram. O projeto de larga-escala neurocientífico europeu envolve outras 80 instituições europeias e internacionais. Foi anunciado em Outubro de 2013, alguns meses após o projeto norte-americano, com quem também mantém colaborações. O HBP é uma das Future of Emerging Technologies Flagships da União Européia, que são iniciativas de pesquisas de longo prazo tidas como “visionárias” organizadas em larga- escala que abordam “grandes desafios tecnológicos”, em áreas da ciência que “compartilham objetivos unificadores e um roteiro de pesquisa ambicioso”. A origem da idéia do projeto europeu se deu em 2005, quando a EPFL comprou da empresa de computadores IBM o supercomputador Blue Gene, para produzir simulações numéricas em grande escala da coluna neocortical de um rato, que constitui um conjunto de 100 mil neurônios considerados a unidade funcional do cérebro. O Blue Brain Project, coordenado por Henry Markram, com o tempo passou a envolver outras instituições científicas para produzir essa simulação do órgão do rato. Tais colaborações interdisciplinares formaram o núcleo do HBP. O objetivo do projeto de larga-escala, portanto,é criar simulações do funcionamento do cérebro humano em tempo real a partir destes supercomputadores, em um esforço global de cientistas e instituições científicas. “Neuroscience: where is the brain in He Human Brain Project” Página da revista Nature. Quadro 3, C116. Acessado em: 20/3/2017. 438 Quadro 3, C1. 439 Quadro 3, C1. 199 expedições espaciais possuem um sistema de fabricação que hoje em dia são utilizados na indústria de calçados440.

Dessa forma, um dos principais objetivos do Instituto é atrair investidores locais e estrangeiros nas pesquisas das neurociências potiguar, e criar potenciais spin-offs. Tais desdobramentos poderão gerar no futuro a “Cidade Brasileira do Cérebro” na região de Macaíba. Uma informação que corrobora este norteamento da agenda do IINN-ELS, consta no site:

A neurociência moderna está gerando uma variedade de novas terapias e tecnologias. Juntos, esses novos produtos constituirão uma indústria revolucionária, a chamada ‘indústria do cérebro’, que certamente trará um profundo impacto na sociedade. Desde membros mecânicos controlados diretamente pelo pensamento até novos tratamentos para a doença de Parkinson, uma série de achados e descobertas científicas apontam para um futuro muito promissor da neurociência. De fato, mais de 500 empresas, somente nos EUA, estão concentrando suas pesquisas nas diversas maneiras de tratar doenças neurológicas. Essas empresas vêm investindo em pesquisa de ponta e desenvolvimento tecnológico desde o início dos anos 90. Nosso propósito é trazer esse novo campo de desenvolvimento industrial ao Brasil e criar joint- ventures entre o IINN-ELS e lideranças internacionais interessadas em investir na criação e no desenvolvimento da ‘Indústria Brasileira do Cérebro’ 441. A formação do pólo biotecnológico e biomédico que potencialmente criará empresas, joint-ventures, fabricantes de próteses e equipamentos da área da saúde, segundo Nicolelis, permitirá afirmar que “a nossa Califórnia será aqui [em Macaíba]. Este será o Silicon Valley brasileiro do cérebro”442. O principal argumento do discurso inovacionista do neurocientista e que ampara o objetivo de transformação econômica do IINN-ELS, se sustenta na idéia de que “a grande vantagem é que a ciência permite saltos não-lineares (...). A partir disso é possível criar um modelo econômico completamente revolucionário. Coréia, China e Taiwan, com começo muito menos promissor do que o Brasil, conseguiram dar esse salto investindo em ensino e pesquisa”443.

Portanto, na concepção do fundador do IINN-ELS desenvolver pesquisa neurocientífica em Macaíba é fundamental, pois este campo da ciência atualmente está diretamente ligado aos principais segmentos da indústria de biotecnologia, como por exemplo, nos EUA e na Europa, onde existem grandes investimentos da indústria para a pesquisa básica

440 “Da Lua para a Terra”. Página da Revista FAPESP. Quadro 3, C117. Acessado em 20/3/2017. 441 Quadro 3, C117. 442 Quadro 3, C4. 443 Quadro 3, C4. 200 e aplicada em neurociência, além de incentivos federais e de órgãos internacionais444. Assim como nos projetos de bioeconomia daquelas sociedades industrializadas avançadas, os produtos das pesquisas neurocientíficas desenvolvidas no IINN-ELS potencialmente criariam a chamada “indústria do cérebro” no Brasil, com profundos impactos sociais no Estado potiguar.

Ambos os objetivos do IINN-ELS podem ser interpretados pela co-produção (JASANOFF, 2004) dos aspectos cognitivos e políticos resumidos no conceito de “desenvolvimento social”: com atendimento médico e educacional à população em uma das regiões mais carentes do Brasil, e com o desenvolvimento de um conhecimento sobre o sistema nervoso que potencialmente produzirá uma bioeconomia do cérebro tupiniquim.

Na perspectiva de Nicolelis a agenda de pesquisa do Instituto que lidera pretende promover algo inédito na PCT brasileira. Dois lemas que foram amplamente divulgados do momento da inauguração do Instituto até o chute inicial da Copa, que sintetizam o ineditismo são “todos os caminhos levam a Natal” e “o futuro da neurociência/ciência brasileira começa aqui”445. Interpreto que as ideias de criar uma “Califórnia” e o “Silicon valley brasileiro do cérebro”, são imaginários sociotécnicos que simbolicamente expressam o que se entende dessa pretensa nova forma da política científica do próprio Instituto.

Ou seja, a agenda do IINN-ELS promoveria um novo e diferente modo de se fazer ciência que se inspira nos desenvolvimentos que ocorreram no vale do silício norte americano. Região reconhecida por abrigar uma série de empresas de alta tecnologia que se destacam na produção de circuitos eletrônicos, na eletrônica e informática, e que atualmente estão entre as empresas de maior valor do mercado mundial, como: Microsoft, Intel, Google, Facebook, dentre outras. Portanto, a idéia central por trás do objetivo de “transformação econômica” é que o Instituto será um ator central de P&D em neurociências que ofertará tecnologias a empresas, ou mesmo desenvolvendo os seus próprios empreendimentos.

Nesse contexto de intensa exposição pública do IINN-ELS e do projeto “Andar de Novo”, Miguel Nicolelis teve grande destaque e, nas diversas matérias publicadas, o neurocientista passou a dirigir críticas à própria política científica brasileira, o que motivou escrever o Manifesto da Ciência Tropical: Uso democrático para transformação econômica e

444 “História da Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa”. Página da AASDAP. Quadro 3, C118. Acessado em: 4/12/2014. 445 Quadro 3, C4. 201 social do Brasil446. Ao mesmo tempo, foi alçado pelo governo brasileiro como um representante da Ciência brasileira ao presidir a “Comissão do Futuro da Ciência Brasileira”. Na seqüência, abordarei em diferentes dados coletados o pesquisador discutiu a política científica e como ganhou o status de representante “oficial” para o governo da ciência brasileira.

4.1.1 – Um porta-voz da Ciência brasileira?

O tema da política científica brasileira foi recorrente nos diferentes dados levantados sobre a agenda do IINN-ELS. Em uma das entrevistas com Miguel Nicolelis publicada em Janeiro de 2011 no jornal O Estado de São Paulo447, o pesquisador reflete criticamente as condições da ciência brasileira ao comparar com sua experiência nos EUA. Em sua opinião a PCT do Brasil “está ultrapassada. Principalmente, a gestão científica. Foi por isso que eu escrevi o Manifesto da Ciência Tropical”448. O neurocientista exemplifica o que ele entende como “atraso brasileiro” ao citar as “normas absurdas dentro das universidades” que implicam em uma forma “amadora” de fazer pesquisa. Em suas palavras a gestão científica brasileira está “ultrapassada” em relação ao que ocorre nos EUA:

Devemos ter uma carreira para pesquisadores em tempo integral e oferecer um suporte administrativo profissional aos cientistas. (...) Aqui no Brasil há a cultura de que, subindo na carreira científica, o último passo de glória é virar administrador do CNPq (...) ou da FAPESP. (...) Nos Estados Unidos, sou visto como um pequeno empreendedor. Recebo dinheiro do governo americano e uma parcela menor de investimento privado. Tenho assim uma ‘padaria’ que faz ciência: posso contratar o padeiro, o faxineiro e a atendente de acordo com as necessidades do projeto. Esse empreendedorismo não é permitido pelas leis brasileiras. (...) Alguém no topo da pirâmide – o presidente da República ou o ministro da Ciência e Tecnologia – precisa dizer ‘Chega. Acabou a brincadeira’. É um desperdício gigantesco de talento e de dinheiro (...). Há talentos, mas os processos são medievais. E o cientista brasileiro tem muito receio de bater de frente com as autoridades para reivindicar o que ele realmente precisa 449. O pesquisador avança sua reflexão sobre o problema da “gestão científica” comparando as formas dos investimentos públicos e privados feitos pelo governo americano com o brasileiro. Segundo Nicolelis, “eles enfrentam o problema de que as empresas privadas

446 Quadro 3, C100. 447 “’Integração entre cérebro e máquinas vai influenciar a evolução’”. Matéria da página do Estado de São Paulo. Quadro 3, C119. Acessado em: 17/3/2017. 448 Quadro 3, C119. 449 Quadro 3, C119. 202 não costumam investir em pesquisa pura, meio de cultura de onde saem as ideias aplicadas. Contudo o governo não investe só em universidades. Ele também coloca dinheiro em empresas e institutos de pesquisa privados”450. Tal diversidade de investimentos governamentais em pesquisa “pura” e “aplicada” se diferencia do que ocorre no Brasil em que os “mecanismos públicos de financiamento estão voltados para universidades públicas. Sendo assim, você não contrata cientistas e técnicos para um projeto, pois depende dos quadros da universidade. Mas esses quadros estão dando 300 horas de aula por semestre”451. E avança no raciocínio criticando o percentual investido nacionalmente em C&T no Brasil:

O Brasil precisa investir de 4% a 5% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em ciência e tecnologia para encarar a China, a Índia, a Rússia, os Estados Unidos, a Coréia do Sul... Esses são os jogadores com quem devemos nos equiparar. É o mesmo porcentual que já investimos em educação. É essencial realizar os dois investimentos: por um lado, para formar gente e iniciar a revolução educacional que o País precisa; por outro, para usar o potencial intelectual dessas pessoas na produção de algo para o País. Atualmente, investimos 1,3% do PIB. No Japão é quase 4%. Isso explica muita coisa452. O discurso no qual o neurocientista associa o investimento em ciência como uma “questão de soberania nacional”453 está presente também em uma outra matéria, de 2011, na qual justifica o seu reiterado apoio aos governos presidenciais do Partido dos Trabalhadores (PT). No caso, ao ser questionado o motivo de apoiar a candidatura de Dilma Rousseff454, o pesquisador responde que “estamos vivendo o melhor momento da ciência no país. A reputação do Brasil nunca esteve tão alta no mundo”. Um exemplo dos investimentos na área era “a criação dos Institutos Nacionais (de Ciência e Tecnologia [INCT’s] – com recursos (...) do CNPq), incentivo à pesquisa [que] acredito que isso precisa continuar, ser ampliado e mais promovido (...). Precisamos investir e desenvolver uma ciência tropical nacional”455.

Para Nicolelis, a “ciência tropical nacional” estaria “baseada em nossas riquezas humanas e naturais. (...) A ciência precisa estar direcionada às questões fundamentais da sociedade (...). Mas ainda precisamos investir muito no mapeamento de nossas riquezas

450 Quadro 3, C119. 451 Quadro 3, C119. 452 Quadro 3, C119. 453 “Miguel Nicolelis: ‘o Brasil precisa criar uma ciência tropical’”. Página do jornal Último Segundo da página do IG. Quadro 3, C120. Acessado em: 17/03/2017. 454 Eleita em 2011, como candidata do PT, a 36ª presidente do Brasil foi afastada do cargo por um processo de impeachment em 2016. 455 Quadro 3, C120. 203 nacionais para identificar o que pode ser feito nas áreas de medicamentos fontes de alimentos e de energia renovável”456.

Na mesma época, Nicolelis foi convidado pelo então ministro da Ciência e Tecnologia brasileira, Aloizio Mercadante, para presidir a “Comissão do Futuro da Ciência Brasileira”. A Comissão foi criada com o “objetivo [de] fazer um diagnóstico profundo do estado atual da ciência brasileira, recomendar soluções para seus problemas e propor um plano estratégico para os próximos 10 anos”457. Dentre os vinte membros efetivos de diferentes áreas da ciência, além do presidente da Comissão, consta um neurocientista pertencente à comunidade neurocientífica brasileira e três de países estrangeiros (um norte americano, um europeu e um argentino).

A criação da Comissão também se fundamenta no que ocorreu nos EUA. “Comissões já foram utilizadas para avaliar o desastre da Challenger, outros grandes eventos, programas nacionais de ciência” 458. No caso, o pesquisador se refere à Presidential Comission on the Space Shuttle Challenger Accident, composta por membros do governo e da NASA, criada para apurar as causas do acidente com o ônibus espacial Challenger, que ocorreu em 1986, nos EUA. Ou seja, a idéia da criação da Comissão do Futuro da Ciência Brasileira foi unir membros da comunidade científica nacional e do governo de forma a apurar o estado da ciência nacional. Nas palavras do próprio pesquisador:

Comissões são um mecanismo muito utilizado fora do Brasil. Aqui, vamos utilizá-la pela primeira vez para avaliar o estado atual da ciência brasileira, seus processos, mecanismos de fomento, estrutura dos institutos e órgãos de produção científica. O objetivo é fazer um profundo diagnóstico da situação, recomendar soluções e propor um plano estratégico para os próximos dez anos459. Dessa forma, a Comissão atuaria para fazer uma avaliação da situação da política científica brasileira e implantaria propostas de forma a dirimir ou solucionar os problemas diagnosticados. A primeira avaliação que o pesquisador fez quando anunciada a Comissão é que no Brasil “há (...) dissociação do processo científico da sociedade. A ciência brasileira penetra muito pouco no dia-a-dia da população. (...) Qual a missão da ciência no Brasil? Como incentivar um jovem pesquisador? Como estimular a educação científica na vida

456 Quadro 3, C120. 457 “Nicolelis e a Comissão da Ciência Brasileira: Estratégias para o futuro”. Matéria da página da revista Carta Capital. Quadro 3, C121. Acessado em: 17/3/2017. 458 Quadro 3, C121. 459 Quadro 3, C121. 204 brasileira desde a infância? O que fazer para incentivar uma ciência que contribua para o desenvolvimento econômico e social do país?”460.

As datas das matérias coletadas sobre a Comissão são em sua maioria de 2011. A última delas é de Agosto do mesmo ano, que anuncia a inauguração de seu site que seria um canal de trocas com a comunidade científica nacional461. No entanto, por diversas vezes busquei acessar a página e ela encontra-se desativada. Tais dados, ou a falta deles, demonstram que a Comissão não teve continuidade. Interpreto que possivelmente se deve ao fato das diferentes mudanças governamentais que o Brasil passou nos últimos anos (retomo-as no fim do capítulo). Também, interpreto que, possivelmente, ligada à necessidade de Nicolelis dedicar mais tempo no desenvolvimento do projeto Andar de Novo, além das críticas que recebeu até a apresentação do exoesqueleto na Copa, o que levou o pesquisador a um período de reclusão pública, que apresentarei no próximo subitem.

Por fim, Nicolelis também fez críticas ao sistema de ranking de Produtividade de Pesquisas criado pelo CNPq. Para ele os critérios utilizados para avaliarem os pesquisadores que compõem a “elite brasileira”, ou aqueles classificados como 1A, “não é necessariamente correto, porque os critérios para alguém chegar a pesquisador 1A são quantitativos – número de trabalhos, de alunos orientados. Na realidade, não há uma correlação direta entre excelência científica e o fato de ser pesquisador 1A”462. Em sua argumentação, como consequência o cientista está preocupado em construir um currículo baseado em critérios quantitativos: “criou-se no Brasil uma indústria de publicar sem levar em consideração a qualidade do que está sendo publicado”463.

A publicação científica é um negócio como qualquer outro. Mesmo se você considerar as revistas de maior impacto. Também não adianta criar e usar um índice numérico de citações (que mede o número de citações dos artigos de um determinado cientista). Talento não está no número de citações: é imponderável. Meu departamento na Universidade Duke nunca pediu meu índice de citação. Também nunca calculei. Quando sai do Brasil, achei que estava deixando um mundo de lordes da ciência. Fui perguntando nome por nome lá fora. Ninguém conhecia. (...) Críamos uma bolha provinciana que deve ser estourada agora se o Brasil quer dar um salto quântico464.

460 Quadro 3, C121. 461 “Site da Comissão do Futuro da Ciência Brasileira está no ar”. Matéria do site Viomundo. Quadro 3, C122. Acessado: 20/3/2017. 462 Quadro 3, C122. 463 Quadro 3, C122. 464 Quadro 3, C119. 205

Assim, segundo Nicolelis, o ranking utilizado para apreciação do pedido de verbas de projetos para as agências de fomento no Brasil não permitira que “Albert Einstein [fosse] um pesquisador 1A, porque escreveu um número muito pequeno de trabalhos. Só que os poucos trabalhos dele foram geniais e revolucionaram o mundo”. Ainda na perspectiva do neurocientista, o ranking do CNPq implica em uma dinâmica de governança da ciência que restitui o “sistema de cátedras que foram abolidas. É uma hipótese. O fato é que criou uma elite, que determina coisas muito importantes, inclusive quem vai receber financiamento para pesquisas, que acaba prejudicando os jovens cientistas”465.

Contígua a esta crítica, Nicolelis utiliza algumas metáforas sobre a política científica e que simboliza a forma como pensa a dinâmica da comunidade científica uma delas é “não precisamos mais de caciques. Precisamos de índios. Devemos investir na massificação de talentos”466. A outra é: “a comunidade científica é, na média, muito conservadora, não é revolucionária. Como toda igreja, há cardeais e seguidores”467.

Com o tempo as críticas que o neurocientista fez sobre a comunidade científica e os lemas de sua agenda de pesquisa começou a surtir reações através de diferentes exposições públicas de pesquisadores, de tal forma que Nicolelis deu uma declaração dizendo não se considerar propriamente um cientista da comunidade brasileira. Ao ser indagado sobre essa questão, o neurocientista responde:

Sou um pária. Não tenho o menor receio de falar isso. Sou tolerado. Ninguém chega para mim de frente e fala qualquer coisa. Mas, nos bastidores, é inacreditável a sabotagem de que fomos vítimas aqui em Natal nos últimos oito anos. Mas sobrevivemos. O Brasil é uma obsessão para mim. Há muita gente que não faz e não quer que ninguém faça, pois o status quo está bem. Tenho excelentes amigos na academia do País, respeito profundamente a ciência brasileira. Sou cria de um dos fundadores da neurociência no Brasil, o professor César Timo-Iaria, e neto científico de um prêmio Nobel argentino - Bernardo Alberto Houssay. Por isso, foi uma triste surpresa os anticorpos que senti quando eu voltei. Algumas pessoas ficaram ofendidas porque não fiz o beija-mão pedindo permissão para fazer ciência na periferia de Natal. Este ano, na avaliação dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), tivemos um dos melhores pareceres técnicos da área de biomedicina. E o nosso orçamento foi misteriosamente cortado em 75%. Pedi R$ 7 milhões. Recebemos R$ 1,5 milhão. Operamos com um sexto do nosso orçamento. As pessoas têm medo de abrir a boca, porque você é engolido pelos pares. Então,

465 Quadro 3, C119. 466 Quadro 3, C119. 467 Quadro 3, C119. 206

eu fico imaginando um pesquisador que volta para o Brasil depois de estudar lá fora. De qualquer forma, o pessoal precisa entender que voltar para o Brasil é assumir um tipo especial de compromisso. Não é ir para Harvard, Yale... Você deve estar disposto a dar seu quinhão para o País porque ele ainda está em construção. Nem tudo vai funcionar como a gente quer468. As diferentes opiniões do pesquisador nos dados levantados revelam aspectos contraditórios. Ao mesmo tempo em que divulgava sua agenda “inovadora” e que pretendia inaugurar a “ciência brasileira”, realizava críticas à política e às formas de gestão da C&T brasileira. Claramente, tais posições tinham como referência a sua experiência nos EUA. Assim, o pesquisador, em suas próprias palavras, se via como um “pária”, ou como alguém não pertencente a nenhuma linhagem da ciência brasileira, apesar de por vezes revogá-la ao citar César Timo-Iaria. “Quando publicaram que eu tinha dito que seria o maior centro de neurociência no Brasil, esquecendo-se de incluir que era o maior centro privado, o pessoal ficou uma fera, mas eu gostei de cutucar a onça com vara curta”469. Mesmo com esse posicionamento crítico, o pesquisador ainda foi convidado a presidir uma Comissão ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Esse contexto em que a agenda do IINNN-ELS e da exposição pública das opiniões de Miguel Nicolelis levantou uma série de críticas e controvérsias que iluminam essas contradições. Elas emergiram principalmente durante e após a apresentação do projeto “Andar de Novo”, na Copa. Tais dissensos se caracterizaram principalmente pela crítica dos diferentes atores pertencentes àquelas tradições da comunidade neurocientífica, apresentadas no terceiro capítulo, aos resultados alcançados pela veste robótica. Também, esses atores criticaram a representação que a agenda potiguar ganhou enquanto um símbolo da neurociência e da própria ciência brasileira. Apresento-as a seguir.

4.2 – As controvérsias em torno da agenda do IINN-ELS

Durante a realização do trabalho de campo, o primeiro lugar que tentei contato para fazer pesquisa foi o IINN-ELS, mas conforme apontado na metodologia, não consegui realizar entrevistas com os pesquisadores de lá. Mesmo assim, entrei em contato com o Instituto do Cérebro (ICe) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), pois é o local no qual Sidarta Ribeiro, antigo discípulo de Nicolelis e um dos fundadores do IINN- ELS, é diretor e professor titular.

468 Quadro 3, C119. 469 Quadro 3, C119. 207

A criação do ICe possui uma história particular e que possui intersecção com o IINN-ELS. Criado em 2011, o Instituto é sede do Programa de Pós Graduação em Neurociências, em níveis de Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado, da UFRN. O ICe possui várias linhas de pesquisa como a dinâmica do sistema visual, conexões sensorimotoras, neurobiologia celular, comunicação animal, oscilações neurais, papel cognitivo do sono, modelos computacionais de circuitos neurais, neuroengenharia, assim como estudos dos mecanismos e possíveis tratamentos para epilepsia, doenças vasculares, psicoses, depressão e outros transtornos neurais470.

O atual Instituto da UFRN possui intersecção com a formação do IINN-ELS, pois, segundo Sidarta Ribeiro471, ambos foram idealizados em 1995, alinhados ao projeto dos cientistas que pesquisavam fora do Brasil (no caso Ribeiro era da Universidade de Duke, na época, e suas pesquisas eram orientadas por Miguel Nicolelis) e que pretendiam “construir no Brasil um centro de pesquisa de ponta do cérebro capaz de promover ampla liberdade de ideias, excelência científica, formação de recursos humanos qualificados e transformação social”472.

A criação dos Institutos é resultado do projeto “Repatriando Cérebros”, de 2006, liderado por Miguel Nicolelis, cujo objetivo foi trazer de volta para o Brasil diferentes cientistas “top de linha” que saíram para pesquisarem na Europa e nos Estados Unidos, no fim da década de 1980 e 1990, em virtude da escassez de recursos em C&T e a descontinuidade de políticas na época de transição entre a Ditadura Militar (1964-1985) e a Redemocratização. O projeto foi uma parceria entre a UFRN e o IINN-ELS, que na época realizava concursos públicos para professores titulares na área de Neurociências atraindo tais cientistas473.

Ribeiro foi um dentre os oito pesquisadores com carreiras internacionais que vieram através do projeto e que saíram de institutos em países com tradição de investimentos e políticas em C&T, para um estado em desenvolvimento como o RN. Na época, o pesquisador afirmava com entusiasmo a oportunidade de trabalhar no IINN-ELS: “Embora ainda seja difícil em muitos momentos fazer pesquisa no Brasil, é possível dizer com certeza que nunca foi fácil fazer ciência no Brasil”474. Ainda segundo o neurocientista, no país era

470 “História do Instituto do Cérebro – UFRN”. Página do ICe - UFRN. Quadro 3, C123. Acessado em 15/12/2014. 471 Quadro I, A1. 472 Quadro I, A1. 473 “Trazendo cérebros de volta para casa”. Matéria do jornal Tribuna do Norte. Quadro 3, C124. Acessado em 15/12/2014. 474 Quadro 3, C124. 208 possível produzir pesquisa com “condições mínimas para fazer o nosso trabalho (...) mesmo estando [em um instituto – IINN-ELS] em uma rua esburacada”475. Exemplo dos resultados já alcançados e do potencial que havia na oportunidade de trabalhar em seu país natal era “um artigo recentemente publicado em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco [que] foi citado pelo Massachussets Institute of Technology (MIT), uma das maiores instituições de pesquisa no mundo”476.

Sidarta Ribeiro iniciou sua trajetória na Graduação do Instituto de Biologia, da Universidade de Brasília (UnB). Depois fez Mestrado em Ciências Biológicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob supervisão de Ricardo Gattass, cientista da terceira geração da comunidade neurocientífica carioca. Já no Doutorado, Ribeiro estudou Neurociência na Universidade de Rockefeller, em Nova York (EUA), com uma pesquisa sobre o sono, a memória e a evolução do pensamento, orientada por Claudio Mello e Fernando Nottebohm477.

Na seqüência fez o pós-doutorado na Universidade de Duke, na Carolina do Norte (EUA), onde pôde pesquisar no laboratório de Miguel Nicolelis, com quem publicou diferentes trabalhos, dentre eles um que argumenta provar que a memória é consolidada no sono profundo478. Ribeiro, em entrevista de Julho de 2006, declarou com entusiasmo a oportunidade de trabalhar com Nicolelis: “Achava que era megalomaníaco até conhecer Miguel. Ele é o Pelé da ciência brasileira”479.

As pesquisas de Ribeiro têm como objetivo, desde então, investigar mecanismos moleculares, celulares e psicológicos responsáveis pelo papel cognitivo do sono. Em seus experimentos que registram as atividades cerebrais de ratos através de multi-eletrodos, o pesquisador investiga os genes imediatos relacionados à plasticidade do cérebro. Em tais pesquisas, Ribeiro descobriu que quando as cobaias visualizavam objetos novos, as memórias do objeto recém visto agem em curto prazo no hipocampo480 e desaparecem em questão de minutos, mas persistem reverberando no córtex cerebral481 por várias horas após a exploração

475 Quadro 3, C124. 476 Quadro 3, C124. 477 “Currículo Lattes de Sidarta Ribeiro”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C125. Acessado em: 15/9/2015. 478 RIBEIRO, Sidarta et al. (2004). Long-lasting novelty-induced neuronal reverberating during slow-wave sleep in multiple forebrain areas. PLoS Biol 2(1) e24. 479 “Entrevista com Sidarta Ribeiro: ‘Só um sonhador?’”. Matéria da página da Revista Trip. Quadro 3, C126. Acessado em: 15/9/2015. 480 Estrutura do cérebro considerada a principal sede da memória. 481 Camada mais externa do cérebro que desempenha papel central em funções complexas como a memória, atenção, consciência, linguagem, percepção e pensamento. 209 do objeto, o que leva a atuação de duas diferentes porções cerebrais. As pesquisas ainda demonstraram que as fases do sono dos ratos são fundamentais para propagação de memórias dos experimentos com objetos, desde a sua “entrada” (no hipocampo) até seu “destino final” (o córtex).

Na fase do sono Rapid Eye Movement (movimento rápido dos olhos) – considerada a fase em que os sonhos são mais vívidos, os olhos movem-se rapidamente e a atividade cerebral é similar àquela quando acordado – ou a fase onírica do sonho, é disparada a expressão cortical de genes relacionados à estabilização e propagação da memória. As memórias, portanto, são mais dependentes da atuação do córtex do que do hipocampo na medida em que o sono transcorre, migrando da entrada original para redes corticais mais profundas482.

A parceria de pesquisas e na formação do INN-ELS entre Nicolelis e Ribeiro, teve uma ruptura em 2011. Segundo a matéria publicada no jornal Folha de São Paulo de Julho de 2011, “o casamento que na década passada prometeu revolucionar a ciência brasileira”483 teve uma inflexão, pois Ribeiro, que foi primeiro diretor do Instituto entre 2005 e 2011, alegou que um microscópio que custou R$ 6 milhões ficara encaixotado e demorou a ser instalado.

Também são citadas na publicação outras situações em que os novos professores contratados através da UFRN para o IINN-ELS tiveram de lidar. Elas condizem principalmente com um “modelo de gestão centralizador e arbitrário [de Miguel Nicolelis]. Os relatos do grupo pintam um quadro de burocracia, controle e restrição de suas atividades e do acesso a instalações. (...) Nenhuma decisão seria tomada sem passar por ele. Chegou uma hora em que a ruptura [dos professores recém contratados e o IINN-ELS] foi inevitável”484. Na entrevista que realizei com Ribeiro, ele exemplifica algumas situações e os motivos da ruptura:

Quando os professores começaram a chegar em 2009, concursados, eles eram um time. Vamos dizer, ele [Nicolelis] era o técnico e eles eram o time. E ele jamais conseguiu conviver com as pessoas. Ele se deu muito mal com os professores todos. E aí ficou uma situação em que eram eles contra ele, ele contra eles e eu no meio. Isso foi em 2009, 2010 e 2011. E ele começou a fazer uma coisa terrível, pois ele não tava aqui nunca. Eu tinha um equipamento, ele dizia não você não

482 “Currículo de Sidarta Ribeiro – ICe”. Página do ICe – UFRN. Quadro 3, C127. Acessado em: 15/9/2015 483 “Acesso a equipamentos de pesquisas provoca cisão entre cientistas”. Matéria da página do jornal Folha de São Paulo. Quadro 3, C128. Acessado em 15/9/2015. 484 “O chute”. Matéria da Revista Piauí. Quadro 3, C129. Acessado em: 23/9/2015 210

vai instalar equipamento. A gente começou a ficar numa situação totalmente cerceada. E a gente pagava. Pagava-se R$45 mil a ele e nós não podíamos trabalhar lá. Ai chegou uma hora que a gente falou então vamos embora. Chega. Não eram coisas razoáveis. Acho que todo mundo aceitaria um comando razoável. Mas como não é razoável... Você tem equipamento, você vai almoçar daí volta os funcionários colocaram na caixa e falaram: ‘não você não tem autorização para usar’. Mas é um equipamento que eu preciso. Mas não, não pode! Era uma coisa maluca. Aí chegou uma hora que eu tive que escolher. Bom, eu vou ficar com as pessoas que eu considero sãs, que tentam fazer alguma coisa, ou eu vou ficar com uma pessoa que não está aqui, embora eu tenha um laço muito grande, mas faz coisas que não faz sentido. Eu na verdade não tinha interesse em sair, porque perdi meu laboratório todo. Montei, mas perdi tudo. A última coisa que eu queria era sair de lá. E hoje eu me sinto feliz com o Instituto [ICe] aqui485. Por sua vez, segundo a matéria da revista Piauí de Dezembro de 2011, Miguel Nicolelis “(...) avaliou que eles não souberam se acomodar a um ambiente ao qual não estavam acostumados. ‘Em vez de sentar e fazer ciência, queriam gerir um instituto do modo que acham que tem que ser feito. (...) É gente que acabou de sair do pós-doutorado, não tem experiência de gerir um laboratório. Eles não têm tarimba de gestão, não têm experiência de arrecadação de fundos, não têm experiência do que é o Brasil’”486.

Ainda na publicação, Nicolelis argumenta que os cientistas que saíram do IINN- ELS não tinham um índice-H487, assim como o dele - na época segundo a base Scopus seu índice-H era de 40488. “Um índice 10 é muito ruim, é o cara que acabou o pós-doutorado no máximo (...). Eles não têm massa crítica como instituto, ninguém ali tem um índice-H maior que 15, há quem tenha índice 2”489. Ainda sobre a sua produtividade científica, Nicolelis afirmou que “Veja, eu já formei 45 pós-docs [cientistas com pós-doutorado] foram quase 20 teses de Doutorado em 30 anos de carreira na Duke. Meus alunos estão nas melhores

485 Quadro I, A1. 486 “’Daqui não sai mais um ovo’”. Matéria do canal Aliás da página do jornal O Estado de São Paulo. Quadro 3, C130. Acessado em 5/10/2015. 487 O índice-H, ou H-index foi proposto em um artigo de 2005, por Jorge Hirsch, um físico argentino, como uma forma de quantificar a produtividade e o impacto das pesquisas dos cientistas baseada em seus artigos mais citados e em quais revistas que publicaram. Disponível em: http://www.pnas.org/content/102/46/16569.full. Acessado em: 5/10/2015; 488 Quadro 3, C130.. 489 Quadro 3, C130. 211 universidades do mundo: Princeton, Yale, Berkeley. Eu formo gente para ser spalla490 na Orquestra de Berlim, entendeu? Não formo gente para jogar no XV de Jaú”491.

Sobre as críticas à administração do IINN-ELS, Nicolelis afirmou que: “nós podíamos usar o recurso [financeiro] para qualquer coisa, mas usamos para manter as condições de trabalho deles. (...) Só que eles acharam que estavam na Harvard, que tudo estaria à disposição instantaneamente, porque eram os príncipes. Não tem príncipe aqui, eu não sou príncipe. Se eu tivesse conseguido US$ 50 milhões para uma universidade americana, como consegui para esta, tinha uma estátua na frente da universidade”492. Ainda sobre os colegas dissidentes que resolveram montar seu laboratório no ICe, Miguel Nicolelis opina que “Eles que se ocupem em ganhar dinheiro, em arrumar equipamento. Daqui não sai mais um ovo (...). Preciso fazer alguém andar493. Ciência não é assim, me desculpe”494

Na época Sidarta Ribeiro utilizou o próprio argumento de Nicolelis sobre o índice-H para enfatizar sua produtividade e a de seus colegas que saíram do Instituto sob coordenação de Nicolelis para formar o novo Instituto. “Nosso age factor, para a nossa idade495, no Brasil, é bastante alto. (...) Ele pegou pessoas com produtividade bem acima da média, que largaram carreiras internacionais ou que tinham carreiras nacionais estabelecidas, para se estabelecer aqui e segurar o rojão”496.

Sidarta Ribeiro, Sérgio Neuenschwander, Antônio Pereira, Rodrigo Neves Romcy Pereira, Adriano Tort, Dráulio Araújo, Marcos Romualdo da Costa, Cláudio Queiroz, Kerstin Schmidt e Richardson Leão, foram os pesquisadores que migraram do INN-ELS para o ICe497. Após duas semanas do ocorrido entre Ribeiro e Nicolelis, algumas das pesquisas iniciadas na parceria público-privada entre a AASDAP e o INN-ELS passaram a operar em um novo local. Agora em uma universidade pública, na UFRN.

490 Spalla é o nome dado ao primeiro violino de uma orquestra, sendo o instrumentista responsável por afinar a orquestra antes de entrada do maestro, pela execução dos principais solos de uma música e regente substituo, com função de repassar as determinações do maestro aos demais músicos. 491 Quadro 3, C130. “Xv de Jaú” é o popular nome do “Esporte Clube XV de Novembro”, um tradicional clube de futebol da cidade de Jaú, do interior do Estado de São Paulo, que em sua história sempre figurou na competição de torneios inferiores à elite do futebol paulista. 492 Quadro 3, C130. 493 Em referência à veste robótica para um paciente paraplégico que estava em vias de construção. 494 Quadro 3, C130. 495”Jovens cérebros em favor da Ciência”. Matéria da página do jornal Tribuna do Norte. Quadro 3, C131. Acessado em 5/10/2015. A idade dos pesquisadores na época era em média de 31 a 45 anos. 496 Quadro 3, C130. 497 “Site do ICe da UFRN”. Página do ICe - UFRN. Quadro 3, C132. Acessado em 5/10/2015. 212

Diante dos entraves, o grupo de pesquisadores passou a ocupar a casa alugada pela própria Universidade para funcionamento do novo Instituto do Cérebro (ICe), que passaria a ter atividades separadas do IINN-ELS e do financiamento da AASDAP. Na época chegou a ser criada uma comissão para discutir termos para cooperação público-privada entre a agência privada de fomento e o novo Instituto da UFRN. No entanto, a parceria não vingou. A Universidade negociou com o grupo de Nicolelis para resgatar equipamentos que eram de sua propriedade e que estavam nas dependências de seu Instituto, mas que passaram a ser utilizados no ICe sob coordenação da UFRN. A transferência foi financiada pela FINEP498. Assim, diante dos conflitos entre Ribeiro e Nicolelis, dois novos Institutos na área da Neurociência passaram a operar em Natal.

Para o grupo de pesquisadores da UFRN, uma parceria ainda era possível entre os Institutos, contanto que “Dá a César o que é de César. Nós temos interesse em manter uma parceria. No nosso entendimento essa parceria pode funcionar muito bem se aquilo que for público tiver gestão pública, e o que é privado ter gestão privada. (...) [Podemos] interagir cientificamente com colaborações”499. Segundo Sidarta Ribeiro em entrevista:

Muita gente ficou irritada quando o projeto aqui em Natal foi lançado justamente por isso. Lembro que um dos slogans era ‘o futuro da ciência no Brasil começa por aqui’. Isso irritou profundamente as pessoas. (...) Na verdade, o que aconteceu foi um fenômeno de mídia até. De repente o Brasil inteiro achou que o melhor lugar para fazer neurociência era aqui. (...) Durante 2006, 2007 e 2008, a gente tinha um status na mídia que era totalmente descolado da realidade. Mas por quê? Porque tinha a credibilidade dele [Nicolelis] que era enorme, a minha, que é muito menor, mas na minha categoria, com a minha idade, eu estava bancando, eu me mudei para cá e banquei isso. E com o tempo a gente foi recebendo pessoas qualificadas, uma massa e de repente essa distância entre o status e a realidade começou a diminuir. Mas também existia uma estratégia de dizer para as pessoas que a gente estava fazendo uma coisa diferente e muito melhor. Se você for ver os artigos científicos publicados e o que de fato aconteceu, você vai ver que foi muito difícil, que a gente não tinha nenhuma razão para esse triunfalismo e depois que houve a separação isso ficou mais evidente ainda. Porque aqui [ICe-UFRN] a gente veio numa condição muito difícil, ocupar um espaço que não estava preparado, sem equipamento no início e, com muitas duras penas, a gente conseguiu colocar para rodar. Agora nossas publicações estão fazendo isso [Ribeiro acena com a mão, com um movimento que sai da mesa até

498 Quadro 3, C131 499 Quadro 3, C131 213

mais ou menos a altura de sua cabeça], decolou. Lá [IINNE—ELS] não. Afundou. Porque não tem massa crítica500. A entrevista que realizei com Ribeiro ocorreu quatro anos após a UFRN ter alugado a casa onde o ICe se localiza, em um jardim, na parte externa do Instituto, quando pedreiros trabalhavam na construção de um muro. O barulho das pancadas de um martelo percorre o áudio inteiro da entrevista. Um símbolo de que, de acordo com Ribeiro, o ICe “está ainda em construção (...) [e] não está consolidado. Só vai estar consolidado quando tiver um prédio dentro do campus que seja uma sede permanente”501, apesar de ser um Instituto de “vantagem competitiva” pela qualidade dos pesquisadores e as pesquisas que desenvolvem502. “Mas a gente avançou muito, porque temos uma massa crítica muito substancial. Hoje são 17 professores aqui, todos com treinamento internacional, vários estrangeiros e uma produtividade crescente. E não só em número de papers, mas, sobretudo em impacto, seja em número de publicações, como em influenciar... ser levado a sério como instituto de pesquisa”503.

Uma das formas do ICe se estabelecer como uma agenda de pesquisas dentro da comunidade neurocientífica brasileira foi não só a contratação de pesquisadores com carreiras internacionais, a produção de uma quantidade de artigos publicados em revistas de impacto e a formação da infra-estrutura física laboratorial. Interpreto que diz respeito, principalmente, à contratação de pesquisadores e professores que em suas trajetórias acadêmicas foram formados ou orientados em universidades ou pesquisadores pertencentes àquela tradição de pesquisas da comunidade neurocientífica, apontados no terceiro capítulo, e que potencializam a possibilidade de produzir pesquisa em colaboração com esses centros tidos como estabelecidos.

Dentre as pesquisas realizadas no ICe que são feitas em colaborações com outros institutos e universidades que pertencem às tradições da comunidade neurocientífica brasileira, trata-se, por exemplo, daquelas desenvolvidas por Marcos Romualdo Costa (ICe- UFRN). O neurocientista é Doutor em Fisiologia pela UFRJ e Pós-Doutor em Neurobiologia

500 Quadro I, A1. Segundo Ribeiro, massa crítica é “Gente bem formada, que fez pós-doc, que fez doutorado e pós-doc bom. Que tem autonomia”. 501 O pesquisador se refere ao fato do ICe estar localizado na Avenida Nascimento de Castro que é no centro da cidade de Natal, e é perto da sede da UFRN, mas não dentro do campus localizado próximo ao Parque das Dunas, reserva da mata atlântica que é região turística da capital potiguar. 502 Quadro I, A1. 503 Quadro I, A1. 214 pelo Helmholtz Center Munich, da Alemanha504. Fez parte do grupo de pesquisadores contratados e repatriados pela UFRN para fazer parte da equipe do IINN-ELS. Quando voltou ao Brasil ainda era jovem, com 31 anos, mas qualificado para atuar como professor. No ICe, além de lecionar e orientar alunos de Doutorado, Costa é vice-coordenador da Pós-Graduação. Costa, na época da recente formação do ICe afirmou que “tenho certeza que estamos gerando um centro de Neurociência com pesquisa de alta qualidade e de alto impacto. (...) Estamos consolidando uma massa crítica importante”505.

Em suas pesquisas, o neurocientista atua nas áreas de Neurobiologia Celular e Molecular e possui publicações de pesquisa em colaboração com o Instituto de Biofísica da UFRJ, principalmente com Cecília Hedin-Pereira, que foi sua orientadora de Doutorado, e também com Steven Rehen (UFRJ e Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino), com quem mantém um projeto de pesquisa sobre células-tronco, “Reprogramação direta de células somáticas humanas em neurônios para o estudo e tratamento de doenças”506.

Outro pesquisador, que também fez parte da migração entre os Institutos potiguares e que exemplifica a estratégia de pesquisas adotada pelo ICe, é Dráulio Araújo. O pesquisador atuava no campus da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, até 2009. Sua atuação no ICe possui estreitos laços com a tradicional universidade paulista. O físico com doutoramento em Física aplicada à Medicina e Biologia, possui especialidade em Neuroimagem Funcional, mais especificamente com a Ressonância Magnética Funcional (RMf) e Eletroencefalograma (EEG). Suas pesquisas têm como objetivo investigar determinados processos neurais induzidos por técnicas contemplativas como (meditação e yoga) e pelo uso de psicodélicos como a Ayahuasca, bem como seus efeitos antidepressivos, para avaliar mudanças neurais e produzir marcadores507.

Também realiza pesquisas para compreender os fatores de risco do AVC e terapias de reabilitação de perda de fala, cognitiva e de movimentos decorrentes do acidente “Estamos tentando entender como atua, fisiologicamente a reabilitação no cérebro”508. Este projeto é desenvolvido em conjunto no ICe e no Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), com apoio da USP e da UFRJ.

504 “Currículo Lattes de Marcos Romualdo Costa”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C133. Acessado em: 29/9/2015. 505 Quadro 3, C133. 506 Quadro 3, C133. 507 “Currículo Lattes de Dráulio Araújo”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C134. Acessado em: 29/9/2015. 508 Quadro 3, C131 215

Das suas pesquisas feitas em colaboração com centros tidos como tradicionais da comunidade neurocientífica, um artigo publicado em 2012509, em parceria com Sidarta Ribeiro, dentre outros pesquisadores da USP, da UFRJ e do Computational Center do T.J. Watson IBM Research Center, dos EUA, é fruto de suas pesquisas com usuários freqüentes de Ayahuasca em que analisou os efeitos da bebida no cérebro. No estudo, foi possível analisar que as visões alucinógenas que a bebida provoca resultam da ativação de uma extensa rede neuronal que envolve áreas responsáveis pela visão, memória e atenção.

4.2.1 – A controvérsia midiática e com a comunidade neurocientífica

Além dos conflitos que envolveram as agendas de pesquisas potiguares, ocorreram aqueles relacionados à apresentação do exoesqueleto produzido pelo IIIN-ELS com o grande público e com diferentes líderes das agendas de pesquisas comunidade neurocientífica. Muitos desses pesquisadores criticaram a representação que o Instituto teve na mídia como uma agenda que liderava as neurociências no país.

Cercada de muitas expectativas, a veste robótica fruto do projeto Andar de Novo, foi anunciada como um símbolo da ciência brasileira na inauguração da Copa. Segundo a matéria de Junho de 2014, da Revista Superinteressante, mesmo com todo potencial que havia no projeto: “Ainda não está claro se o espetáculo neuro-futebolístico será o marco inicial de uma nova era da humanidade ou se é apenas um golpe publicitário barato (na verdade, não tão barato assim). Mas certamente será um momento simbólico, que será lembrado por muitos e muitos anos, por um motivo ou por outro”510.

No entanto, a expectativa em torno da apresentação logo se tornou frustração: o esperado pontapé inicial feito por um paraplégico com o exoesqueleto foi gravado e retransmitido após o ocorrido. O acontecimento que seria marcante para a Ciência brasileira não foi mostrado ao vivo durante a transmissão, assim como previsto, mas retransmitido alguns minutos após o ocorrido. Como exemplo da frustração gerada na época, o autor de um blog que dedicou uma matéria especial ao exoesqueleto, um ano depois da apresentação afirma: “Eu acompanhei a abertura da Copa ao vivo, na TV, e estava pronto para ficar

509 de ARAUJO. et al. (2012). Seeing with the eyes shut: Neural basis of enhanced imagery following ayahuasca ingestion. Human Brain Mapping. 510 “Milagre ou truque?”. Matéria da página da revista Superinteressante. Quadro 3, C135. Acessado em 10/10/2015. 216 emocionado ao ver o exoesqueleto em ação, exibido para mais de 1 bilhão de pessoas. Em vez disso, eu me distraí por um segundo e perdi o momento. O evento acabou e todos se perguntaram: era só isso mesmo?”511.

Em 14 de Junho de 2014, dois dias após a abertura do torneio de futebol, em matéria da Folha de São Paulo512, Miguel Nicolelis começou a responder as críticas que recebeu e argumentou que a entidade que organizou a Copa no Brasil impediu que o principal resultado do projeto “Andar de Novo” fosse transmitido na íntegra. O neurocientista afirmou que a FIFA lhe avisou alguns meses antes da abertura do torneio que a apresentação do paraplégico com a veste robótica não teria o tempo que inicialmente fora combinado.

“Era o plano original [levantar da cadeira de rodas e realizar o chute], mas com 29 segundos e com a pressão que nós sofremos, simplesmente era impossível fazer. Não teria como ele ir ao meio campo e sair com o robô sem que usássemos um carrinho. Aparentemente a Fifa não permitira isso porque poderia danificar o gramado”513. Mesmo assim, segundo o neurocientista: “O que foi prometido, foi entregue. Depois de 17 meses de trabalho insano, a missão foi cumprida integralmente”514. Por sua vez, a assessoria de imprensa da FIFA informou que a demonstração programada para a abertura do evento foi exatamente igual aos ensaios gerais da abertura e o que era combinado foi realizado515.

Em meio à defesa dos resultados apresentados no evento de futebol, Nicolelis ao longo do tempo passou a admitir que nem todos os objetivos foram alcançados, apesar de ter conquistado alguns: “Tenham calma, não olhem para isso com comentários de futebol. Tem que conhecer tecnicamente e saber o esforço. Robótica não é filme de Hollywood, tem limitações que nós conhecemos. O limite desse trabalho foi alcançado. Os oito pacientes atingiram um grau de proficiência e controle mental muito altos, e tudo isso será publicado”516.

Na época, também, o neurocientista argumentou que o projeto ainda não havia acabado e que os 17 meses, do início das pesquisas até a realização do simbólico chute, era pouco tempo considerando o trabalho que ainda teria pela frente. Dentre eles, a veste robótica

511 “O exoesqueleto de Miguel Nicolelis, um ano depois”. Blog da página do Gizmodo. Quadro 3, C136. Acessado em 10/10/2015. 512 “Nicolelis acusa FIFA de cortar exibição de paraplégico na Copa”. Matéria da página do jornal Folha de São Paulo. Quadro 3, C137. Acessado em 10/10/2015. 513 “’Robótica não é filme de Hollywood’ diz Nicolelis sobre o exoesqueleto”. Matéria do canal Ciência e Saúde da página da Globo. Quadro 3, C138. Acessado em 10/10/2015. 514 Quadro 3, C137 515 Quadro 3, C137 516 Quadro 3, C138. 217 tinha 70 kg e era necessário diminuir o peso em 30%, além de novos testes para avaliar o desempenho dos pacientes para avançar no estudo do exoesqueleto; empresas internacionais demonstraram interesse na tecnologia e em desenvolver mais pesquisas, o que poderia significar mais verba e tempo para aperfeiçoar o exoesqueleto; também o neurocientista previa novas demonstrações da veste em 2015, mas que dependeria da avaliação da FINEP, investidora do projeto; e a publicação dos resultados em revistas científicas demoraria um ano e meio. Sem um número exato de artigos que publicaria, o pesquisador afirmava ter registrado avanços nas áreas de robótica e ensaios clínicos, além dos avanços experimentais científicos517.

Assim, o “maior espetáculo da história da ciência humana desde que Neil Armstrong firmou sua bota branca no solo poeirento do Mar da Tranqüilidade, na Lua, em 20 de Julho de 1969”518, que prometia um jovem paraplégico levantar de sua cadeira de rodas e andar, um feito realizado por um neurocientista brasileiro, estava em uma nova controvérsia.

Segundo Rodrigo Fonseca, diretor da FINEP, representante do órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que financiou o projeto “Andar de Novo”, os resultados prometidos eram diferentes do que ocorrera: “Estávamos informados que a pessoa iria levantar, caminhar e dar o chute na bola”519. Também, Fonseca na matéria citada, revela sua frustração pelo fato da FIFA não ter permitido estampar a marca “FINEP” no exoesqueleto, pois: “Ela faz um controle das marcas que aparecem”520. Mesmo com todas as restrições impostas pela organizadora do evento e as dúvidas com relação aos avanços da veste robótica, o diretor ponderou: “O importante era mostrar ao público que era possível”521.

Se as declarações do diretor da financiadora do projeto demonstraram hesitação com os resultados obtidos pelo exoesqueleto, alguns cientistas também começaram a manifestar suas objeções. Segundo Edward Tehovnik, neurocientista norte-americano, pesquisador visitante da UFRN, com pós-doutorado pelo MIT e que atua na área de interfaces cérebro-máquina, “Nicolelis preferiu uma abordagem secreta. Para a ciência esse tipo de atitude é garantia de fracasso, como se viu na demonstração (...). Trabalho científico é feito por pesquisadores que publicam seus trabalhos, recebem críticas de seus pares e, assim,

517 Quadro 3, C138. 518 Quadro 3, C135. 519 Quadro 3, C137. 520 Quadro 3, C137. 521 Quadro 3, C137. 218 melhoram suas descobertas. Sem isso não há ciência. Não há como saber se o que Nicolelis mostrou na Copa é, realmente, um avanço científico”522.

Não só tornar publico os resultados através de artigos para reconhecimento dos pares foi questionado pelo pesquisador visitante da UFRN, mas também a precisão da tecnologia utilizada. “Sensores de EEG [Eletroencefalograma], como os que teriam sido usados na demonstração, têm o inconveniente de captar outros sinais elétricos, além dos cerebrais. Ele capta também sinais enviados pelos músculos – e quem garante que o exoesqueleto poderia ser movimentado por um sinal elétrico vindo de outra parte do corpo?”523.

Por sua vez, o professor titular do departamento de Ortopedia e Traumatologia da UNICAMP e da Engenharia Elétrica da USP, Alberto Cliquet Júnior, opinou que as dúvidas sobre a validade do uso de sinais cerebrais para o controle do exoesqueleto são grandes e a forma como ocorreu na apresentação da Copa não ajudou a esclarecer tais questões: “A impressão que tivemos é que ele não funcionou. Além disso, um exoesqueleto, para realmente ajudar alguém com lesão medular deve ser simples, prático e funcional. O que vimos pela televisão não vai ajudar paciente algum a andar de novo”524.

Nas entrevistas que realizadas no trabalho de campo, diferentes cientistas líderes das agendas de pesquisas que compõem a comunidade neurocientífica brasileira também se manifestaram contrariados com os resultados do exoesqueleto. Nas críticas que fizeram, é possível constatar como o controverso artefato tecnológico foi uma forma dos pesquisadores refletirem as dinâmicas de pesquisa da própria neurociência brasileira. Na entrevista que fiz com Sidarta Ribeiro, o pesquisador manifestou suas críticas sobre ao exoesqueleto da seguinte forma:

Aquilo ali é uma mistura de ingerência política, excesso de concentração de recurso na mão de uma pessoa, um resultado que para um cientista foi fraquíssimo. Para o povão não da para saber, as pessoas não tem parâmetro para julgar, com essa coisa de ‘ah não teve tempo de mostrar!’. O que tinha para mostrar era aquilo mesmo! Mas a cereja do bolo é o seguinte: aquilo lá não tinha nada de brasileiro. Aquele robô veio de fora. A tecnologia não era boa e não era boa porque não parava em pé. Foi comprada lá no Bom Retiro, lá de Tóquio, se fosse comprado em outro lugar compraria um robô melhor. O robô não fica em pé! O mínimo do mínimo, o robô tinha que ficar

522 “Exoesqueleto: confira algumas dúvidas que ficaram no ar após a demonstração”. Matéria da página da revista Veja. Quadro 3, C139. Acessado em 10/10/2015 523 Quadro 3, C139. 524 Quadro 3, C139. 219

em pé. Os cientistas todos concordaram que aquilo foi um fiasco absoluto. Mas o mais doido que aquilo foi vendido como o desenvolvimento da ciência brasileira, quando não é. Então, você compra um negócio lá fora, põe a bandeira brasileira e diz que é do Brasil. O governo Lula, embora seja um governo que tenha muitas coisas boas e que melhorou muito a ciência no Brasil, aumentou muito o dinheiro para ciência, ao mesmo tempo abriu espaço para essas coisas. Você tem um recurso muito maior, de R$ 33 milhões, que é um valor de três INCT’s [Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia] financiados. Então, a gente não tem um sistema de recompensas e incentivos claros, nem para um lado, nem para o outro. A gente nem diz que é ruim, nem é bom. E também a gente não tem critério para falar: fulano merece R$ 33 milhões, nem R$ 33 milhões merece nada. É uma coisa baseada em quem é amigo de quem. E é assim desde Pero Vaz Caminha. Infelizmente. (Fonte: Quadro I, A1). A fala de Ribeiro compara a soma de recursos levantada pelo projeto “Andar de Novo” com aquela dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT’s), que foram criados em 2008, pelo governo. O objetivo do financiamento conduzido pelo MCTI, através do CNPq, CAPES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e as agências de fomento de pesquisa estaduais, era criar 101 centros de pesquisas multicêntricos, que trabalhassem em redes, com vistas a produzir patentes525. Assim, a idéia dos INCT’s foi induzir as pesquisas que já ocorriam nas universidades para áreas estratégicas selecionadas pelo governo526.

A verba de R$ 553 milhões foi considerada o maior investimento, até então, para consolidar o sistema de pesquisas brasileiro e cada Instituto teve uma verba de cerca de R$ 2 milhões a R$ 7 milhões até 2011, quando os projetos seriam renovados527. Ou seja, o que o neurocientista do ICe ressalta em sua fala ao citar os INCT’s é a excessiva concentração de recursos que Nicolelis teve para realizar o seu projeto em relação ao que vinha ocorrendo com os financiamentos das demais áreas da ciência brasileira.

Mais especificamente, a crítica de Ribeiro é endereçada à falta de transparência na forma de conseguir recursos públicos para o projeto “Andar de Novo”. Nela, utiliza a imagem de Pero Vaz Caminha, o famoso escrivão tripulante da esquadra comandada por Pedro

525 Foram consideradas 19 áreas estratégicas para investimento, como: Biotecnologia, Nanotecnologia, Tecnologias da Informação e Comunicação, Saúde, Biocombustíveis, Energia Elétrica, Hidrogênio e Fontes Renováveis de Energia, Petróleo, Gás e Carvão Mineral, Agronegócio, Biodiversidade e Recursos Naturais, Amazônia, Semi-Árido, Mudanças Climáticas, Programa Espacial, Programa Nuclear, Defesa Nacional, Segurança Pública, Educação, Mar e Antártica e Inclusão Social. “Veja a lista completa dos institutos nacionais de ciência e tecnologia”. Matéria da página do jornal Folha de São Paulo. Quadro 3, C140. Acessado em 3/1/2017. 526 “101 novos institutos ganham R$553 milhões”. Matéria da página do jornal Folha de São Paulo. Quadro 3, C141. Acessado em: 3/1/2017. 527 Quadro 3, C141. 220

Alvares Cabral que chegou ao Brasil em 1500, e que escreveu ao rei de Portugal, Dom Manuel I, a carta tida como um marco do início da história do Brasil. Ao utilizar de tal imagem, o neurocientista quer significar que a aprovação do projeto de Nicolelis pelo governo não se deu por critérios impessoais, mas pela pessoalidade “baseada em quem é amigo de quem” e que segue uma forma tradicional no modo de fazer política no país.

Outra pesquisadora que também mobiliza o imaginário do descobrimento do Brasil para fazer suas críticas à agenda de pesquisa potiguar de Nicolelis, é a ex-presidente da SBNeC, professora titular, líder do Laboratório da Visão da IP-USP e agraciada com a “Medalha Neurociências Brasil” em 2010, Dora Fix Ventura:

A minha opinião é que é uma pessoa que ignorou toda a neurociência que existe no país e ele achou que ele veio fundar a neurociência aqui. Parece que o Pedro Álvares Cabral chegou no Brasil e nós somos índios. A comunidade se ressentiu com isso. E eu acho que houve atritos, da maneira que ele entrou com verbas especificamente destinadas a ele. Então acho que ele entrou por um apadrinhamento político, não querendo tirar o mérito intelectual, científico dele, que isso aí é a ciência que tá julgando e vai julgar. Mas eu acho que todos nós estamos dentro do mesmo sistema de contingências, para usar um termo da psicologia experimental e ele se colocou fora desse sistema de contingências. Então se eu preciso de verbas peço para a FAPESP, passo para o CNPq... Agora que o Lula tem todo o direito de usar a prerrogativa da presidência e investir em um projeto que é considerado interessante, claro que tem. Eu acho que qualquer governo tem o direito de definir alguns projetos e tocá-los, né? Eu acho que a idéia de fazer um centro de pesquisas num local assim como Macaíba, pra mim é uma coisa totalmente maluca, quer dizer, eu jamais usaria dinheiro do país para fazer uma coisa assim. Eu iria num lugar onde já tem infra-estrutura pra começar e depois eu faria projetos. Eu não concordo com o projeto em si: eu acho que nós, em São Paulo, Rio, Porto Alegre, a região mais civilizada, digamos, do país, nós temos imensas dificuldades de terceiro mundo. Você imagina uma região como Macaíba! Então pra você fazer um projeto dessa magnitude, você deveria ir para o centro já. Eu acho que se fizesse em Belém funcionaria. Se fizesse em uma cidade maior, um centro grande, mesmo em Natal. Como eles estão fazendo um Instituto. Mas você se transportar para uma praia deserta, isso aí é quem tá fora do Brasil e tem saudade de praia. Porque eu acho que não é sério. (Fonte: Quadro I, A8). Em sua fala, Ventura usa da imagem de Pedro Álvares Cabral para significar, de forma crítica, Miguel Nicolelis como um “descobridor” da neurociência brasileira e que ele ignorou a população dos neurocientistas “índios” que aqui já existiam. A fala da pesquisadora refere-se especificamente ao momento da conjuntura que deu visibilidade à agenda de 221 pesquisa do IINN-ELS, também criticada por Roberto Lent (UFRJ), ao afirmar que: “eles colocaram na principal página do site deles assim: ’Aqui começa a Neurociência brasileira’. Então ele [Nicolelis] atraiu a ira dos neurocientistas no Brasil porque neurociência aqui começa muito antes”528.

Tal referência simbólica na fala da neurocientista e a crítica do pesquisador carioca são reveladoras o quanto Nicolelis foi considerado um pesquisador que se situa “fora” da comunidade neurocientífica brasileira, ao mesmo tempo em que Fix Ventura reforça a existência de uma área dessa ciência no país com uma dinâmica própria de pesquisa. Dessa forma, de acordo com a fala dos entrevistados, Nicolelis se situa nas margens da comunidade neurocientífica por dois motivos: pois utilizou do artifício do “apadrinhamento político”, diferente do “sistema de contingências”, dos financiamentos das agências públicas de fomento, que mobiliza a infra-estrutura já existente do núcleo neurocientífico e por ter preferido criar sua agenda neurocientífica em “uma praia deserta”, não na “região mais civilizada”, onde a ciência brasileira já é institucionalizada.

O matemático, coordenador do CEPID da USP de Neuromatemática, Antônio Galves, fez suas críticas na mesma direção de Roberto Lent e Dora Fix Ventura, ao apontar a falta de diálogo de Nicolelis com a comunidade neurocientífica na criação de um projeto que significasse de fato um projeto de ciência do país. Mas de forma mais ponderada, ao avaliar que a “iniciativa era boa” e que foi um “imenso esforço em fazer pesquisa de ponta”529.

No entanto, assim que o IINN-ELS “começou a pegar consistência, desmontou” e “criou essa situação embaraçosa de ter dois institutos do cérebro em uma cidade como Natal”530. Na avaliação do matemático o projeto “deu errado”, pois precisava ter “uma certa garantia, sem ter a avaliação de um presidente sozinho. Você tem que ter avaliação dos cientistas!”531. Ou seja, em sua visão, Nicolelis falhou por não ter construído relações com os pares dos centros tradicionais em neurociências quando visou construir o IINN-ELS:

Você não pode pegar um salvador que vem de fora dizendo que aqui no Brasil não tem nada. Tem! Aqui tem. No Rio de Janeiro tem uma tradição de neurobiologia seríssima. Mais forte que São Paulo. São Paulo tinha o professor Timo-Iaria. (...) Quer dizer [Nicolelis] deveria ter feito um quadro institucional um pouco mais forte. Poderia ter dado certo. O cara podia ser o sujeito que inventou a Embraer. Ou seja, um cara sozinho que criou a empresa. Mas o Miguel Nicolelis é

528 Quadro I, A4. 529 Quadro 1, A9. 530 Quadro 1, A9. 531 Quadro 1, A9. 222

um ‘malucão’. Até bem intencionado, quero crer. (Fonte: Quadro 1, A9). Também crítico na forma como o projeto do IINN-ELS poderia ter ganhado maior estruturação se tivesse construído melhores relações com a comunidade neurocientífica brasileira, o neurocientista Steven Rehen (IDOR/UFRJ) afirma que “houve ali uma casualidade de uma boa relação entre o Nicolelis e o PT. Acho que isso tem uma importância grande, mas não vai se sustentar” 532. E que tal tipo de relação “não se sustenta difusamente” na neurociência brasileira. Para criar uma agenda nacional para a área com diretrizes específicas, como pretensamente a agenda do IINN-ELS simbolizou, “vai depender de mais gente envolvida” 533.

O pesquisador ainda ressalta que pertencer à comunidade neurocientífica, para produzir pesquisas e projetos é “mais promissor do que a própria proposta do Nicolelis que depende de uma pessoa só. Enquanto que no caso do ICe [UFRN] você tem dezena de cientistas que estão envolvidos no projeto lá. Isso acho um movimento mais forte. Mas isso não deveria ser exclusivamente em Natal, mas em outras áreas [da ciência] do país também é importante”534.

Contíguo à fala de Sidarta Ribeiro, o neurocientista do CEPID Brazilian Institute of Neuroscience and Neurotechnology (BRAINN) da UNICAMP, Li Li Min, endossa suas críticas às formas de financiamento do exoesqueleto, a pretensa inovação que promoveria a tecnologia e os resultados obtidos do projeto “Andar de Novo”.

Eu acho que o crédito que eu posso dar para o pessoal de Natal, é a questão da visibilidade. Que ninguém fez e isso atraiu muitas pessoas. Só rapidinho, vou te passar um site que saiu em 2010535. Você verá que o exoesqueleto já existia, tinha já uma comercialização. Então você vê que uma pessoa tem R$ 33 milhões, uma verba incomum e não presta contas de como foi usado o dinheiro? Quais os resultados da pesquisa? Como ela foi feita? Será que daquela soma toda de dinheiro não poderia ser investido em outras coisas? Eu vejo que a situação era ruim na época, mas eu vejo que as pessoas não estão isentas de um relato do que se gastou. Agora, o que eu penso é que no Brasil, existe muita gente qualificada e séria trabalhando com neurociências. Só que como você joga tanto dinheiro na pesquisa de uma pessoa, agraciada com uma verba de R$ 33 milhões em um projeto no qual no país existem outros grupos que também trabalham

532 Quadro 1, A6 533 Quadro 1, A6 534 Quadro 1, A6 535 “Empresa japonesa cria e aluga ‘roupa de robô’ que possibilita que vitimas de acidentes voltem a andar”. Matéria da página da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios. Quadro 3, C142. Acessado em: 20/10/2015. 223

com a interface cérebro máquina que pudessem participar? Da produção cooperada deste conhecimento, formando mais pessoas, alunos, que pudessem se envolver para que isso ocorresse. Para mim, não é a questão de se o governo deveria investir ou não. O governo deve e tem que investir. Mas a forma como foi investida que gera discussão. Então eu vejo que é uma situação muito perigosa, no sentido que traz muito descrédito para a Ciência. Cria um mal estar. E é uma tecnologia que segundo a matéria que te mandei era mais fácil você ter comprado, alugado! (Fonte: Quadro I, A3). A fala de Li Li-Min junto à de Sidarta Ribeiro, possuem em comum a informação que o exoesqueleto já havia sido comercializado. No caso da fala do pesquisador da UNICAMP, ele cita uma matéria que divulga uma tecnologia feita por uma empresa japonesa, a Cyvberdine, como um “produto” para “deficientes físicos e vítimas de acidentes conseguirem a andar”536. Ainda segundo a publicação, é citado que hospitais japoneses e lares para idosos do Japão já utilizavam uma versão da roupa que era comprada ou alugada em 2010. Na crítica dos pesquisadores brasileiros, portanto, o exoesqueleto apresentado na Copa não era propriamente uma invenção, ou inovação da ciência nacional, e tratava-se, na perspectiva de Ribeiro, de uma tecnologia falsificada, ao fazer uma alusão ao comércio de produtos pirateados do bairro de Bom Retiro, de São Paulo, capital.

Por sua vez, o neurocientista honrado com a “Medalha Neurociências Brasil”, Ivan Izquierdo (PUCRS), também criticou a inovação que prometia o exoesqueleto:

Que fracasso aquilo lá! O Nicolelis não faz neurociência. Ele produz tecnologia vinculada à neurociência. O que é diferente. A neurociência procura estudar mecanismos gerais de processos animais vivos e como podem ser afetados por alterações bioquímicas, ou farmacológicas. Isso é neurociência. Agora ajudar uma pessoa paralítica a recuperar movimentos é uma aplicação da neurociência, vinculada com a tecnologia no caso. Não é porque alguém quer que ‘Ah! O Nicolelis vai ser o Prêmio Nobel’. Não é geralmente com essa linha de pesquisa. É gente com ciência mais básica. É sempre gente que tem uma descoberta. E a fabricação de um aparelho ou desenho de um aparelho não é uma descoberta. Fazer um aparelho poderá ser bom, poderá não ser bom, poderá promover mais fabricação de aparelho... Não é descoberta. É tecnologia. Sou o cara mais citado da América Latina há vários anos. Nunca precisei de muita tecnologia. Aliás tenho pouquíssima tecnologia. (Fonte: Quadro 1, A7). O neurocientista argentino, mas que construiu sua agenda de pesquisa no Sul do Brasil e é considerado um dos precursores dos estudos do cérebro naquela região, estende suas críticas ao afirmar que o “governo brasileiro não sabe o que é neurociências. Por

536 Quadro 3, C142. 224 exemplo, o CNPq não registra a neurociência como uma atividade. Agora que começou a registrar. Mas até pouco tempo na escrita oficial era Fisiologia e Farmacologia. Neurociência em todo o resto do país era reconhecida como ciência isolada das demais”537. Também, segundo Izquierdo, o não reconhecimento por parte do governo do que são de fato as “neurociências” brasileira, através de incentivos específicos para a comunidade da área e somente privilegiando a agenda de pesquisa um pesquisador que fez sua carreira científica toda fora do país, demonstra que o “Brasil é profundamente conservador, não é um país inovador”538.

Quando questionei ao pesquisador o que considerava por “inovador”, se teria alguma relação com políticas estratégicas assim como ocorriam nas sociedades avançadas industrializadas, ele respondeu enfatizando os feitos científicos de alguns daqueles considerados precursores da comunidade neurocientífica e a pouca diversidade de “escolas de neurociência” no país:

Tem temas e figuras isoladas que tem tido grande destaque no Brasil e depois como conseqüência dessas figuras, escolas. Por exemplo, na Farmacologia houve a escola de Maurício Rocha e Silva, como também Aristides Leão, Carlos Eduardo da Rocha Miranda, o Covian em Ribeirão Preto. E agora tá tendo a minha também. Uma das escolas grandes. Agora são coisas isoladas. Tem que pensar que é um país de 200 milhões de habitantes! Um país que joga na mesma divisão que China, Índia e Estados Unidos! São Paulo tem um ou dois grandes grupos. É pouco para o que é São Paulo, que tem 18 milhões de habitantes. Precisaria mais ou menos umas 20 escolas de neurociência para nivelar com Europa e Estados Unidos. Precisaria de umas 20! Esse é o nosso problema. São Paulo investe muito em Ciência e Tecnologia. É o que mais investe. Mas ainda precisa de muito, apesar de ser o mais avançado do que todos nós (Fonte: Quadro 1, A7). Ou seja, na fala do neurocientista, a tecnologia construída pelo projeto “Andar de Novo” é tida como resultado de uma ciência aplicada e não representa a tradição de pesquisa básica e experimental do sistema nervoso que existe no país. Também, a falta de reconhecimento por parte do governo da existência da comunidade neurocientífica revela um país que para Izquierdo é “conservador”. “Inovação”, em sua perspectiva, seria ampliar as “escolas” de ciência básica de neurociências nas diferentes regiões do país. Ou seja, criar políticas científicas destinadas a ampliar o treinamento da “massa crítica” da área, assim como apontado por Li Li-Min.

537 Quadro 1, A7. 538 Quadro 1, A7. 225

Ambas as críticas se diferenciam das demais até então apontadas, pois sugerem o potencial que o projeto do exoesqueleto tinha para qualificar diferentes estudantes e pesquisadores que participassem de sua execução, ou mesmo na formação de mais escolas de neurociências. Extraio uma longa citação, agora a de Roberto Lent (UFRJ), que é significativa de como as controvérsias em torno do exoesqueleto estimulou um imaginário particular sobre as possíveis dinâmicas de governança da neurociência brasileira. Quando questionado sobre isso, o pesquisador se referenciou nos projetos de larga-escala norte americano e europeu:

A ciência brasileira é bastante diversificada, ela ocupa praticamente todas as áreas do conhecimento, grande áreas do conhecimento, ela tem representação em muitos Estados, em várias áreas do conhecimento no Brasil. O problema é que o pixel é grosso, entendeu?539 Então se eu puder usar esta analogia, se você pegar um país como os EUA ou a Inglaterra, a representação da Ciência é bem diversificada. Mas o pixel é fininho e a resolução bem alta. Se você pegar [grupos de pesquisa no Brasil da] doença de Alzheimer, tem, mas são assim, 4 ou 5 grupos, talvez um pouco mais. Se você pegar os EUA são 580 grupos. Então por isso eu uso a analogia da fotografia “pixelada” que a gente tem a imagem completa, mas o pixel é de grupos grandes. Então o número de pessoas em cada tópico é sempre muito pequeno. Mas isso também não é diferente de outras disciplinas, da Física, da Química. Porque a partir do momento em que você tem políticas científicas para diminuir o pixel, de uma determinada área, é botar dinheiro nela: permitir que os pesquisadores se aproximem, criem linhas de trabalho. E quando você faz isso, não existe uma compreensão das autoridades sobre a Neurociência como existe na Europa e EUA. Então a maneira de você aumentar o pixel é você privilegiar certa área. Você tem que ter a sabedoria de não ser tão ‘miópico’, ou tão detalhista, de escolher uma ‘sub-sub área da área’, mas você não pode ser tão genérico a ponto de não ter prioridade alguma. Então se o governo brasileiro considerar que Neurociência é importante pelo o que ela vai fazer de compreensão da mente, ou de produzir tecnologias voltadas para a educação, para a Saúde então acho que valeria fazer uma intitulação genérica neste sentido. Um exemplo nacional é o dinheiro levantado pelo Nicolelis. Você sabe que é um grupo só, com um projeto só, uma pessoa só com um dinheiro que poucos de nós ou muitos de nós não conseguimos levantar. (Fonte: Quadro I, A4). A fala de Lent é emblemática de como a agenda do IINN-ELS levantou questões relativas às formas de mobilização das pesquisas neurocientíficas no Brasil. A metáfora da imagem pixelada é significativa nesse sentido. Através das características da imagem digital,

539 “Pixel” é um bloco elementar ou célula para construção de imagens na tela. Menor unidade ou ponto de monitor de vídeo cuja cor ou brilho podem ser controlados, de acordo com o Dicionário Michaelis de Português Online. Disponível em: . Acessado em: 20/10/2015. 226 o neurocientista interpreta a política neurocientífica norte americana como de “alta resolução”, na qual, mesmo com uma variedade de grupos e temas de pesquisas da área, existem dinâmicas de pesquisas que estão concentradas em objetivos de investigação por conta de diretrizes governamentais específicas.

Por sua vez, a imagem da trama dos pixels que corresponde à política científica brasileira em neurociências, é “grossa”, ou utilizando do próprio termo citado pelo entrevistado, é “miópica”, sem nitidez. Ou seja, existem poucos grupos que atuam na área e com políticas que resultam em uma forma de produção científica de “resolução baixa”, menos detalhada, com uma imagem “embaçada”, sem foco. Assim, na perspectiva de Lent, falta não só “mais dinheiro” para os pesquisadores “se aproximarem” e “criarem linhas de trabalho”, como também “aumentar o pixel para privilegiar certa área” que não seja tão genérica – sem prioridades -, nem tão “miópica” – sem “nitidez”.

Dentre os diferentes entrevistados, um deles foi mais enfático sobre alguns aspectos positivos da criação do IINN-ELS e do exoesqueleto. Suzana Herculano-Houzel (Vanderbuilt University), afirma que “o Miguel [Nicolelis] tem o mérito fenomenal de enfiar uma idéia na cabeça e correr atrás. Ele decidiu criar um instituto só para financiar, só para captar recursos para a ciência que queria fazer. As pessoas ficaram possessas. Mas francamente, ficaram porque não pensaram nisso antes”540.

Também, a pesquisadora destaca a atenção que Nicolelis conseguiu atrair do governo para as neurociências, um exemplo, em sua opinião, da responsabilidade que o Estado teria para alocar mais recursos para a ciência:

Eu acho fundamental que o governo se reserve o direito de apostar, de financiar pesado em institutos de pesquisa. O que eu acho que incomodou as pessoas e o que despertou o ódio na comunidade neurocientífica no Brasil, é que o Nicolelis soube fazer isso. O Nicolelis soube argumentar com o governo: ‘eu quero montar um instituto de excelência, para isso eu preciso de verba que vai ficar muito acima dos editais universais do CNPq e tudo mais’. Ele argumentou. Ele conseguiu. E ele levou. (Fonte: Quadro I, A4). Destaco aqui que a posição da neurocientista com relação à agenda potiguar do IINN-ELS, relatada na entrevista, foi entremeada de afirmações em que se coloca como uma pesquisadora que não pertence a nenhuma tradição da comunidade neurocientífica brasileira:

540 Quadro 1, A11. 227

“no Brasil eu não tinha padrinho algum”541. Para ela, o fato de ter estudado neurociência fora do país “fez toda diferença, porque eu não fui vítima do tradicionalismo que existe no Brasil, onde você só estuda o que os seus orientadores estudaram e os orientadores destes antes deles. O que para mim é o maior problema da neurociência e da ciência em geral no Brasil que é a falta de diversidade”542.

A neurociência no Brasil é realmente muito recente. Só que de geração para geração não tem havido diversificação. É assim que você tem uma quantidade desproporcional pesquisadores que estudam neurofisiologia do sistema visual. Isso é a tradição do Eduardo Oswaldo-Cruz. A maioria que saiu dessa linha permaneceu estudando córtex e desenvolvimento do córtex. A maçã não cai muito longe da árvore, os alunos se propagam no instituto e você tem verdadeiros guetos formados ao redor dos professores fundadores, digamos, dos institutos (Fonte: Quadro 1, A11). A pesquisadora amplia a sua crítica à comunidade neurocientífica ao apontar que a falta de “diversidade de geração em geração” se deve muito a esses “guetos”, ou “panelinhas” que explicam uma “quantidade desproporcional de pesquisadores que estudam neurofisiologia do sistema visual” no país. Em sua perspectiva, essa dinâmica não é exclusiva da neurociência, mas da própria ciência brasileira.

Então no Brasil as pessoas começam com uma falta de mobilidade na graduação e geralmente entram na universidade na cidade que elas cresceram. Na pós graduação também, você dificilmente vê uma pessoa sair da sua cidade, sair da sua universidade, de onde ela se formou para fazer pós graduação. Tem uma razão econômica fortíssima para isso, porque as bolsas são miseráveis. Então você não consegue se sustentar com uma bolsa de Doutorado, sobretudo se for morar no Rio de Janeiro ou São Paulo. Então a única maneira de você fazer Doutorado é morando na casa de pai e mãe. Então isso já limita a dispersão, a diversificação. (Fonte: Quadro 1, A11). A pesquisadora cita a falta de “diversidade” durante a entrevista quando relatava sua experiência acadêmica fora do país. Esta fala da entrevistada foi uma resposta logo após eu ter questionado o motivo dela se referir, logo que a encontrei no IBRO, no Rio de Janeiro, o site neurotree. Daí então, ela começou a explicar que se comparar a árvore genealógica da neurociência no Brasil com a “estrangeira você verá que há uma fertilização cruzada, onde você tem um pesquisador que adquire certa formação de Doutorado, mas depois nos

541 Segundo o currículo Lattes da pesquisadora, ela se graduou na UFRJ em Biologia Modalidade Genética, fez Mestrado na Cave Western Reserve Univesrity, nos EUA, Doutorado na Université Pierre et Mrie Curie, LISE, na França, e Pós Doutrado na Max Plank Institut Für Hirnforschung, da Alemanha. “Currículo Lattes de Suzana Herculano-Houzel”. Busca no repositório de currículos da Plataforma Lattes. Quadro 3, C143. Acessado em: 3/1/2017. 542 Quadro 3, C143. 228 diferentes pós-doutorados vai pesquisar com outros assuntos, pessoas totalmente diferentes e aprende a pensar em outros assuntos”543. Para Houzel, essa “migração lateral que ocorre na árvore genealógica de outros países” contrasta com a “descendência direta no Brasil que tem muito menos diversificação”544.

Ou seja, na fala da pesquisadora a falta de recursos para a ciência brasileira explica a baixa diversificação das agendas de pesquisa na própria neurociência brasileira. A escassez de condições de pesquisa se mistura com o fato do “cientista ter que trabalhar como professor universitário, um funcionário público que é pago pelas tabelas salariais do governo que são congeladas, engessadas”. Em sua perspectiva, o acúmulo de funções do cientista é um “empecilho enorme, porque o incentivo para se empenhar e trabalhar duro é zero. O incentivo que existe é você continuar lá, sem matar ninguém para não ser despedido”. Assim, a manutenção dos cargos por parte dos cientistas, conseqüentemente, cria um sistema de relações sociais na produção do conhecimento em que “a meritocracia não existe”, é baseada no apadrinhamento dos jovens pesquisadores a continuarem as agendas de pesquisa iniciadas por seus pais.

***

Após o contexto da Copa do Mundo, o Brasil passou por uma série de transformações políticas que refletiram nos investimentos e na organização da área de C&T. O impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, é o marco dessas mudanças que ocorreram nos últimos anos após a Copa. Já no fim do governo da presidente e naquele que o precedeu, uma série de cortes orçamentários sob a justificativa do endividamento público do estado brasileiro foi feito. A área da CT&I é exemplar para a análise dessas modificações. Em 2014, foi previsto nos gastos do Orçamento Geral da União o investimento na área em cerca de 1,66% do PIB, ou cerca de R$ 90 bilhões (Figura 19). Entre 2014 e 2015, houve um corte de 25% dos gastos. No ano de 2016, a redução chegou a mais 37%545, em aproximadamente R$37,1 bilhões do PIB546.

543 Quadro 3, C143. 544 Quadro 3, C143. 545 “Luiz Davidovich: ‘O ministério da Ciência foi demolido’”. Matéria com entrevista do presidente da ABC para a página da revista Época. Quadro 3, C144. Acessado em: 20/3/2017. 546 “Brasil gasta menos que outros países em P&D”. Matéria da página do IPEA. Quadro 3, C145.Acessado em: 20/3/2017. 229

Dentre os diferentes cortes na área de C&T, um exemplo é o programa Ciência Sem Fronteiras (CsF), que “busca promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira por meio de intercâmbio e da mobilidade internacional”547. Somente o programa CsF, consumia cerca de R$ 3,7 bilhões do orçamento anual em 2015. Em 2016, o investimento no programa passou a ser de R$ 1,2 bilhão548.

Também, é significativo que desde o começo dos cortes orçamentários o então Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCT&I) teve 4 ministros. No meio do ano de 2016, o Ministério foi fundido com o das Comunicações, quando assumiu um novo ministro549. Interpreto que o fim daquela Comissão do Futuro da Ciência Brasileira, liderada por Miguel Nicolelis, ocorreu em função dessas diferentes transformações governamentais que o país passou e inviabilizou sua continuidade.

Nesse ínterim, as aparições públicas do neurocientista líder do projeto “Andar de Novo” diminuíram. Algumas delas ocorreram principalmente por ocasião do lançamento nacional, no início de 2016, de seu livro Made in Macaíba: a história da criação de uma utopia científico-social no ex-império dos tapuias. Na obra, o autor guia a leitura para determinadas respostas de algumas das questões que surgiram da controvérsia com o público e com a comunidade neurocientífica durante a intensa divulgação do IINN-ELS e do seu projeto “Andar de Novo”. A primeira parte do livro, por exemplo, é dedicada a explicitar tais questões, com capítulos intitulados como: “Mas por que o Brasil?”; “Mas para que serve essa coisa de ciência?”; “Mas por que Natal?”; “Mas o que significa ciencia como agente de transformação social?”.

Partes do conteúdo dessas respostas foram apresentadas no presente capítulo, que condizem com a maneira como foi formulado e implantado o IINN-ELS, a justificativa de implantar em Natal e Macaíba o projeto científico, educacional e que provê assistência de saúde, como se deu as formas de financiamento de sua agenda de pesquisa, dentre outras. No entanto, em meio aos eventos para divulgação de sua nova obra, é possível elencar algumas matérias coletadas na internet nas quais o pesquisador argumenta a necessidade do governo conduzir maiores gastos na área de C&T, assim como já fazia na época da apresentação do

547 “Programa Ciência sem Fronteiras”. Página do programa CsF. Quadro 3, C146. Acessado em: 20/3/2017. 548 “O corte do Ciência sem Fronteiras em números”. Matéria da página da revista Exame. Quadro 3, C147. Acessado em 20/3/2017. 549 “Informações sobre os últimos ministros de C&T no Brasil”. Página do Wikipédia. Quadro 3, C148. Acessado em: 20/3/2017. 230 exoesqueleto na Copa. Mas agora, ao invés de elogiar os investimentos que vinham sendo feitos na área, passou a realizar críticas aos diferentes cortes orçamentários.

Em uma entrevista realizada em Abril de 2017, para o Jornal do Campus produzido pelos alunos do quarto ano da graduação do Jornalismo da USP, Miguel Nicolelis ao ser questionado sobre a diminuição dos gastos do governo, responde que o período que o país passou entre os anos de 2013 e 2014, foi um período recorde de investimento em C&T. “O Brasil, de repente, tinha aparecido para o mundo. Eu vi este reconhecimento fora do país, as pessoas começaram a falar do [programa] Ciência sem Fronteiras. (...) E, de repente, renunciamos a isto”550. Para o pesquisador as transformações governamentais dos últimos anos são “uma dramática falta de visão, tanto do governo estadual, quanto do federal, pois a ciência é uma questão de soberania nacional e o Brasil está renunciando a sua”551. Assim, a decisão do governo, para o pesquisador, “no momento atual [é de] um país vassalo [em relação a] outras sociedades. E é isso que o Brasil está decidindo. Quer dizer, é isso que está sendo imposto a ele”552.

Ainda segundo o pesquisador, a “renúncia” em investimentos traz conseqüências “devastadoras, como estamos vendo acontecer com a destruição da indústria nacional, de nossa intelectualidade, da educação e com a insegurança jurídica completa. É a remoção de qualquer expectativa para um futuro melhor”553.

Também, dentre as respostas que o pesquisador deu na entrevista para o Jornal, uma delas diz respeito especificamente às controvérsias geradas na comunidade neurocientífica e com o público. Extraio uma longa citação de sua fala:

Quando o Brasil estava investindo em ciência, dando muito dinheiro, há quatro anos, um projeto como o nosso, lá na periferia do Rio Grande do Norte, era extremamente criticado. Nós fomos atacados de todas as formas, inclusive de pessoas aqui da USP. Muitos foram aos jornais e revistas internacionais reclamar do nosso projeto quando o que estávamos fazendo era cuidar de mulheres grávidas, educar crianças e fazer pesquisa em um lugar que ninguém quer ir. Nós construímos um núcleo de altíssima qualidade de ciência como transformador social. Um pequeno imã de excelência em um lugar que nunca viu isso e, mesmo assim, fomos massacrados pelos cardeais da ciência brasileira. É o medo, o terror da competição de alto nível e de uma proposta que traz a sociedade para dentro da universidade e que

550 “O cérebro humano, a ciência brasileira e o golpe político segundo Miguel Nicolelis”. Matéria da página do Jornal do Campus da USP. Quadro 3, C149. Acessado em: 10/5/2017. 551 Quadro 3, C149. 552 Quadro 3, C149. 553 Quadro 3, C149. 231

mostra a esta população excluída que a ciência pode ter efeito em suas vidas. (...) O fato de eu querer voltar para o Brasil e levar a ciência para um lugar que ninguém iria ou foi até hoje, fez com que muitos tentassem destruir esse projeto. Para mim foi chocante, ainda não me recuperei desse trauma. Este provincianismo, egoísmo e elitismo têm que sair da ciência brasileira. Agora estamos indo para as ruas reclamar sobre estes cortes que estamos sofrendo na universidade [na USP, onde a entrevista foi realizada], mas quantas vezes já fomos para as ruas para convidar a sociedade para participar das nossas atividades e desfrutar dos benefícios da ciência? Esse é o problema, esse elitismo deve ser rompido. Você pode ser rigoroso, ser um bom cientista e ainda assim comunicar o que você faz para a sociedade554. Na fala do pesquisador, é possível destacar sua crítica na qual, em um curto período de tempo, o Brasil passou por transformações políticas e econômicas em que a área de C&T foi “renunciada”. A possibilidade do país em ser “soberano” na produção científica e tecnológica mundial, expressada nos investimentos na área, em 2013 e 2014, que poderia reconfigurar sua posição na economia mundial, atualmente não existe e enquadra o Brasil como um país “vassalo”. Ou seja, dependente da C&T e da economia de outros países.

Já a crítica direcionada à “ciência brasileira”, o pesquisador argumenta que o seu projeto “quando o Brasil estava investindo em ciência” foi “extremamente criticado” pelos “cardeais” da ciência, quando o que a agenda potiguar fazia era “cuidar de mulheres grávidas, educar crianças e fazer pesquisa em um lugar que ninguém queria ir”. Ou seja, interpreto que a fala de Nicolelis se refere à capacidade que sua agenda de pesquisa possui em ser mobilizada para além dos muros da produção científica e que a comunidade científica brasileira, mesmo em um momento tão único de investimentos, preferiu dedicar críticas ao seu Instituto ao invés de aproveitar a chance de dinamizar suas agendas em lugares que “ninguém quer ir”.

Por sua vez, os resultados alcançados pela veste robótica, o personagem central do imaginário sociotécnico da agenda de Miguel Nicolelis, tido como um “fracasso” para o público e para os neurocientistas entrevistados, foram apresentados em agosto de 2016. Os primeiros resultados do projeto cujo “objetivo era explorar como as interfaces cérebro- máquina poderiam restaurar a mobilidade de pacientes”, depois de três anos de início das pesquisas, período no qual “o treinamento de reabilitação dos pacientes continuou”555, são apresentados em um vídeo divulgado pelo canal da AASDAP.

554 Quadro 3, C149. 555 AASDAP. Primeiro trabalho clínico do Projeto Andar de Novo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S5cjEuBmUoY. Acessado em: 25/3/2017. 232

O conteúdo do vídeo se baseia em um artigo publicado na revista Scientific Report556, no qual é relatado que os pacientes com lesão medular sofrida há tempos atrás e treinados em longo prazo com a interface cérebro-máquina, tiveram uma recuperação neurológica parcial. O experimento consistiu de um período de 12 meses, no qual 8 pacientes desempenharam uma série de testes com diferentes dispositivos, como o uso de realidade virtual, um dispositivo de marcha robótica e o exoesqueleto. O resultado detectado desses diferentes experimentos terapêuticos foi “a recuperação motora parcial, sensitiva-tátil e de funções viscerais em todos os pacientes”557.

No vídeo são apresentadas imagens dos pacientes paraplégicos, com diferentes tipos de diagnósticos e lesões na medula espinhal, realizando determinadas tarefas. Nelas é possível ver suas atrofiadas pernas se movimentando, algo que há muito não realizavam. Segundo Nicolelis:

Pensamos que, mesmo que clinicamente todos esses pacientes tinham sido diagnosticados repetitivamente nos últimos 10 anos como completamente paraplégicos e não tendo nenhum movimento e nenhuma sensibilidade, talvez de um ponto de vista anatômico, a lesão não tenha destruído todas as fibras da medula espinhal. Algumas podem ter sobrevivido e ficado silenciosas por muitos anos. Devido ao treinamento que criamos envolvendo não apenas o uso de atividades cerebrais para controlar dispositivos, mas também provendo um feedback tátil muito rico e os fazendo andar repetitivamente com o exoesqueleto, podemos ter desencadeado uma reorganização plástica no córtex e, ao reinserir uma representação dos membros inferiores no córtex, podemos conseguir transmitir algumas dessas informações do córtex pela medula espinhal através desses poucos nervos que sobreviveram ao trauma original558. O pesquisador ainda argumenta a hipótese de que, com o desenvolvimento dos experimentos, futuramente “as interfaces cérebro-máquina podem não ser somente uma tecnologia assistiva para recuperar mobilidade. As combinações das interfaces cérebro- máquina com outras terapias podem levar a um novo tratamento” 559.

556 NICOLELIS, M. et. al. Long-Term Training with a Brain-Machine-Interface-Based Gait Protocol Induces Partial Neurological Recovery in Paraplegic Patients. Scientific Reports, 6, 2016. 557 AASDAP. Primeiro trabalho clínico do Projeto Andar de Novo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S5cjEuBmUoY. Acessado em: 25/3/2017. 558 “Treino com exoesqueleto levou à recuperação parcial de paraplégicos”. Matéria do canal Bem Estar da página da Globo. Quadro 3, C150. Acessado em: 25/3/2017. 559 AASDAP. Primeiro trabalho clínico do Projeto Andar de Novo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S5cjEuBmUoY. Acessado em: 25/3/2017 233

Em outro momento, no fim do ano de 2016, foi possível coletar dados sobre o andamento do projeto “Andar de Novo”, quando Miguel Nicolelis proferiu a palestra inaugural do XXV Congresso Médico Acadêmico da Medicina da UNICAMP, evento organizado todo ano pelos alunos da graduação, no qual estive presente. Um dos motivos de sua ida ao evento se deu como parte da turnê de lançamento de seu último livro. O outro, o pesquisador cita que participar da palestra inaugural era uma forma de passar mensagens, ideias e ter contato direto com os jovens alunos que são o “futuro da Medicina e da ciência do país”560. Enfim, ser algum tipo de inspiração para aqueles alunos que estavam fazendo o mesmo percurso que ele fez quando graduando na Medicina da USP.

Ali foi um momento que julguei ser o mais próximo que conseguiria com o neurocientista para conseguir seu contato pessoal e marcar uma entrevista. Ao fim, uma fila se somou para que os participantes do evento que haviam adquirido seu livro conseguissem autógrafos e uma rápida conversa com ele. Eu fui um deles. Mesmo conseguindo seu email particular, tentei contato por diversas vezes, mas não consegui uma resposta sequer.

Durante a palestra que proferiu, Nicolelis tocou em temas tais como a apresentação do exoesqueleto na Copa, o contexto político de investimentos em C&T no Brasil naquele período, críticas sobre o governo atual e o andamento de suas pesquisas. Em meio à fala, o pesquisador embargava à voz como se fosse chorar ao mesmo tempo em que demonstrava certa irritação ao citar as controvérsias geradas pelo seu Instituto. Interpreto que a mistura de emoções se deu possivelmente pelo fato de que a sua utopia simbolicamente expressada no exoesqueleto foi amplamente contestada e, na perspectiva do neurocientista, descontextualizada dos motivos que levou a criar a tecnologia e o IINN-ELS em uma região economicamente pobre do Brasil.

Durante a palestra, Nicolelis também apresentou os mesmo vídeos que utilizei para detalhar alguns dos resultados alcançados com o projeto “Andar de Novo”. Quando é transmitida a imagem de uma das pacientes - com 12 anos de lesão que comprometeu o movimento do tronco e dos membros inferiores, e que há 13 meses vinha fazendo treinamento com os dispositivos da interface cérebro-máquina - levantando uma de suas pernas, o neurocientista relata que não só tais movimentos estavam voltando, assim como a funcionalidade dos órgãos da paciente. O que fez com que ela cogitasse a possibilidade de engravidar. Nesse momento, novamente o pesquisador embarga a voz. Só que ao invés de um sentimento de incompreensão e raiva, a possibilidade de verter lágrimas se devia à alegria.

560 Quadro 2, B6. 234

A expressão dos sentimentos de Nicolelis é algo que interpreto como extremamente significativo de como a sua agenda neurocientífica poderia ser simbolizada de outra forma que não aquela como planejara. Isso, pois, quando a sua utopia emergiu e começou a se materializar, muitos dos personagens que compunham aquele cenário se transformaram. O governo é outro. O investimento em C&T no país diminuiu. O símbolo de um país que se desenvolve com mobilizações significativas nessa área, atualmente, não mais existe. E potencialmente, o exoesqueleto apresentado na abertura da Copa (na qual o time do “país do futebol” sofreu uma épica goleada para um de seus tradicionais adversários) se fosse um fim em si mesmo de suas pesquisas e se a controvérsia pública gerada fosse um tribunal que julga de forma terminante o sucesso da sua tecnologia, sua agenda potiguar seria mais um personagem de um cenário distópico do que do possível futuro de um país.

No entanto, a expressão dos sentimentos de alegria do cientista demonstra que sua utopia e a sociedade futura que visa construir, ainda estão pé. Pacientes começaram a apresentar resultados, mesmo que não planejados, do desenvolvimento de suas pesquisas do projeto “Andar de Novo”. O índice de mortalidade materna em uma das áreas mais pobres no Brasil foi reduzido. Atualmente, 11 mil crianças fazem parte dos projetos educacionais do IINN-ELS561. Tais resultados parecem comprovar as idéias contidas na epígrafe de seu último livro que cita uma famosa frase do cineasta argentino Fernando Birri: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Ou seja, o chute do exoesqueleto e o tortuoso caminho que percorreu são, na verdade, símbolos de uma grande jornada científica que ainda está porvir. E, talvez, sirvam para alimentar as nossas próprias utopias em relação às PCT’s do país em um momento político tão controverso como o atual.

561 “Uma utopia made in Macaíba”. Matéria da página da revista Fronteiras do Pensamento. Quadro 3, C151. Acessado em: 10/6/2017. 235

Conclusões finais

O presente capítulo teve como foco analisar o contexto sociopolítico no qual emergiu uma agenda de pesquisa neurocientífica que buscou representar simbolicamente a neurociência e a própria ciência brasileira. Nesse percurso, foi possível verificar que a ascensão simbólica dessa agenda se deu através de um instituto e uma tecnologia, em um contexto peculiar do imaginário social e das transformações sociopolíticas que o Brasil passava.

Segundo Yaron Ezrahi (1994; 2004), no curso do século XX, o visível impacto da C&T em questões públicas revelou diferentes formas em que elas são encenadas politicamente, tornando-as componentes fundamentais da experiência social na modernidade. Tal concepção política da realidade é refletida em imaginários sociotécnicos que ocorrem em dados momentos em certas sociedades, com seus suportes tecnológicos, culturais e psíquicos específicos.

Para os atores que estão envolvidos em cenários sociotécnicos, investir em seus sentidos simbólicos é uma forma de empoderar a C&T a ponto de gerar objetivos que parecem despolitizados e incontestáveis. Interpretados dessa forma, tais elementos constituem meios de construir retóricas aparentemente consensuais politicamente e a construção de seus significados reproduz a crença de que é possível escapar da imprevisível ação humana em detrimento de uma ordem social invariável dos movimentos da política.

No contexto da Copa, a ciência simbolizava um país que mirava o futuro, uma nova sociedade, que resultaria do progresso neurocientífico e técnico. Potencialmente, uma sociedade de industrialização tardia estaria em um futuro próximo ao lado daquelas de economia avançada. Independente das mudanças políticas que o país experimentava naquele momento (já se discutia, por exemplo, o impeachment da presidente Dilma Rousseff), o exoesqueleto era um pretenso símbolo do “legado da Copa”, de um futuro mais promissor que o presente incerto e indeterminado politicamente. E no horizonte dessa paisagem sociotécnica, a possibilidade da transformação uma das regiões mais pobres do Brasil, que se desenvolveria em passos largos à modernidade. Ou mais especificamente, ao Silicon Valley tupiniquim através da neurociência.

Hsu (2017) explica que um dos aspectos dos imaginários sociotécnicos em sociedades de industrialização tardia é a utilização de políticas, tecnologias, infra-estruturas, que conformam agendas da ciência que são “importadas” de forma a acompanhar padrões 236

“internacionais”. E é comum quando ocorre o que chamo de transferência de imaginários sociotécnicos, que as agendas de pesquisas tenham que se adaptar aos contextos locais. Hsu (idem) ainda destaca que muitas vezes esses imaginários são elaborados para desenvolver certas “zonas especiais”562, ou regiões de um país, através de sonhos utópicos que se baseiam em experiências bem sucedidas de sociedades de industrialização avançada.

No caso específico do IINN-ELS, pode se afirmar que a formação dos objetivos dessa agenda de pesquisa se deu em conformidade com o imaginário sociotécnico daqueles grandes projetos de biociências norte americano (o PGH e o BRAIN), apontados no segundo capítulo. Ou seja, um dos focos dos desdobramentos da pesquisa do exoesqueleto é criar uma bioeconomia semelhante ao que ocorreu com o caso do mapeamento do genoma humano e como pretende o projeto de larga-escala neurocientífico. Para que fosse implantada a agenda do IINN-ELS no interior do Rio Grande do Norte, foi necessário adequá-la às necessidades locais desta região. Atualmente, enquanto o moderno futuro não chega, ou seja, se ainda é dúvida que o desenvolvimento econômico ocorrerá através de um tipo de pesquisa neurocientífica em uma região pobre do Brasil, o Instituto atua em um segundo aspecto de seu conceito de “desenvolvimento social”, que é a assistência educacional e atendimento médico gratuito em Macaíba e Natal.

No discurso do governo, por sua vez, a tecnologia considerada a “semente da indústria da reabilitação” e que realizaria o “milagre” da recuperação dos movimentos de um deficiente físico, era o símbolo de uma série de diretrizes que vinham sendo realizadas na área da C&T que permitiria o Brasil alcançar, finalmente, a “sociedade do conhecimento”. Para alguns autores (MOREL, 1979; SCHWARTZMAN, 1979), freqüentemente as políticas científicas e tecnológicas no país são formuladas para reproduzir certos ideais de desenvolvimento e modernização da sociedade. Tal concepção pressupõe a relação entre ciência e progresso econômico e social de forma triunfal, com seus efeitos modernizantes, capazes de alavancar a própria nação a um patamar mais desenvolvido. Uma perspectiva que freqüentemente se condensa em um discurso governamental que adota a relação da C&T como neutra e determinista (DAGNINO, 2008; DIAS, 2012).

562 No caso analisado por Hsu (idem, 2017), em Hsinchu, cidade ao norte da ilha de Taiwan, um parque industrial de pesquisa básica em semicondutores foi montado pelo governo chinês acompanhado de um mega projeto urbano para desenvolver aquela região do país – o que conferiu atualmente à ilha a referência de “Silicon Valley do Leste”. 237

No entanto, durante a investigação do capítulo foi possível verificar diferentes camadas de significados e referências entre os atores sociais envolvidos no denso cenário da agenda potiguar do exoesqueleto, que são controversos e contradizem a perspectiva determinista e neutra simbolizada pela neurociência no contexto da Copa. Assim, ao investigarmos mais de perto as dinâmicas das agendas das neurociências no Brasil, como se constituiu a comunidade e a origem da infra-estrutura de pesquisas da área, deixamos de falar de toda a “biologia ou fisiologia do cérebro”, ou mesmo da “modernização do país” através da ciência, para nos depararmos com a amálgama de atores sociais que constroem os significados dessa ciência. E os diferentes imaginários sociotécnicos encontrados na pesquisa de campo revelaram formas em que a comunidade neurocientífica brasileira reflete sobre a governança de pesquisas da área.

Um primeiro aspecto a ser destacado trata-se do financiamento do IINN-ELS e do exoesqueleto. Para os diferentes neurocientistas entrevistados, a agenda de pesquisa de Nicolelis não faz parte do “sistema de contingências” que a comunidade neurocientífica está habituada. Interpreto esse dado como referente à captação de recursos por parte do pesquisador para a sua agenda que não se limitou a concorrer aos editais lançados publicamente pelas agências de fomento para a concessão de verbas para pesquisa. Se por um lado, parte do financiamento conquistado pelo neurocientista se deu pela sua relação com uma empresária que decidiu investir em sua agenda – considerado “o maior financiamento privado da história da ciência” -, por outro o pesquisador conseguiu angariar uma série de recursos públicos que foram destinados não só para a construção da infra-estrutura do IINN-ELS, mas principalmente para o exoesqueleto.

Ainda segundo os dados levantados nas entrevistas, o valor destinado à produção da tecnologia é considerado como equivalente a “três INCT’s”. Ou seja, o que os entrevistados destacam é que Nicolelis conseguiu acumular recursos além daqueles disponibilizados pelos recorrentes editais lançados pelas agências brasileiras de fomento à pesquisa (dos quais a comunidade de pesquisa freqüentemente concorre) e isso se deu pelas relações pessoais que construiu com ministros, diretores científicos e o próprio presidente brasileiro.

Para uma série de autores (SCHWARTZMAN, 1979; DAGNINO e VELHO, 1998; DAGNINO, 2007; DIAS, 2012; CARLOTTO, 2013), não raro, na história da institucionalização da política científica e tecnológica brasileira, é possível encontrar diferentes casos nos quais cientistas conseguem exercer influência pessoal em atores que 238 participam de altos escalões do governo. A pessoalidade é um traço comum da relação de pesquisadores com a burocracia do Estado. Dessa forma, percebe-se que a agenda do IINN- ELS foi construída reproduzindo relações tradicionais entre cientistas e o governo. Os processos político-científicos que a constituiu são caracterizados pela concentração de recursos e por uma direção composta por um pesquisador que dialoga diretamente com membros do Estado. Mesmo que haja todo um discurso e um imaginário sociotécnico modernizador que mobilizam a agenda de Nicolelis, a sua atuação repete um modus operandi conservador na forma de fazer a política científica no Brasil.

Assim, para os neurocientistas entrevistados a agenda de Nicolelis não é tida como pertencente à comunidade neurocientífica devido à forma como o pesquisador conseguiu acessar recursos para sua agenda de pesquisa e também por ter dialogado pouco com seus pares já estabelecidos no Brasil quando foi implantá-la. Nos dados levantados, o próprio pesquisador cita ser considerado um “pária”, ou alguém considerado à margem ou excluído de certo convívio social, no caso da comunidade neurocientífica.

Um segundo aspecto que reforça essa interpretação é o contexto da veiculação do lema “a neurociência começa aqui” do IINN-ELS, quando a SBNeC elaborou as “Medalhas Neurociências Brasil”. Argumento que a honraria foi uma forma de significar como se desenvolveu historicamente as pesquisas sobre o sistema nervoso no país, aquilo que é interno à comunidade neurocientífica e aquilo que é externo a ela. Ou seja, os institutos, departamentos e universidades que são imaginados como pertencentes aos limites de uma área do conhecimento denominada como “neurociência” e a agenda do IINN-ELS, respectivamente. Segundo Rose & Abi-Rached (2013) afirmar uma suposta história da ciência e reivindicá-la trata-se de um ato performativo que estabelece o que é interno a tal campo e solidifica o estado presente de uma longa trajetória do progresso do conhecimento.

Nesse processo de imaginação dos símbolos que moldam a história neurocientífica, pode se afirmar que a infra-estrutura elencada para significar esta área do conhecimento segue os padrões da institucionalização da ciência brasileira, como pode ser verificado no terceiro capítulo. E nos contextos sociopolíticos dos quais fazem parte, não é possível verificar formas específicas de governança para as agendas das neurociências no país, assim como ocorreu nos EUA. Quando um projeto tentou ser implantado, como o caso do IBN-NET, um dos neurocientistas entrevistados apontou que um dos motivos de não ter vingado foi a falta de pesquisadores que conseguissem operar suas agendas com objetivos em 239 comum e com a qualidade necessária para a produção de conhecimento que fosse reconhecido mundialmente.

Na perspectiva dos neurocientistas que se consideram de fora da comunidade de pesquisas, Miguel Nicolelis e Suzana Herculano-Houzel, a dinâmica histórica das agendas de pesquisas neurocientíficas no país é caracterizada: por uma falta de “mobilização” e “diversificação”; pela manutenção de certos objetivos de pesquisa que explicam uma “quantidade desproporcional de pesquisadores que estudam neurofisiologia do sistema visual”; que gera uma comunidade científica “muito conservadora” e pouco “revolucionária”; comparativamente com o sistema hierárquico de relações da Igreja Católica, no qual “há cardeais e seguidores”; e a continuidade das agendas de pesquisa são interpretadas como resultado de “apadrinhamentos” que geram “guetos” e “panelinhas”.

Ou seja, através da imaginação sociotécnica de como se constituiu a comunidade neurocientífica brasileira, foi possível levantar dados relacionados à inviabilidade da criação de um projeto de âmbito nacional, a percepção dos pesquisadores “párias” de como se dinamiza as relações sociais entre grupos e gerações de pesquisadores que revelam que a governança das pesquisas da área é orientada pela comunidade de pesquisa, o ator central na formulação da PCT das pesquisas do cérebro no país.

Dagnino (2007) e Dias (2012) apontam que historicamente, por ser a comunidade de pesquisa o ator hegemônico na formulação dos processos político-científicos no país, não raro é possível verificar situações nas quais mesmo que haja diferentes atores (tais como empresas, movimentos sociais, governo, entre outros) com projetos políticos distintos para a produção da ciência, o “modelo cognitivo” da comunidade científica é hegemônico na formulação das políticas científicas, inviabilizando possíveis mudanças na agenda de pesquisa.

No próprio capítulo terceiro, é possível verificar que um dos neurocientistas entrevistados, Frederico Graeff, cita que as agendas de pesquisas eram “governadas por cátedras”. Ou seja, a governança das pesquisas da área dependia da dinâmica implantada por um cientista que possuía tal posição hierárquica. Este, para garantir a sua posição e as formas de continuidade da ciência que produzia, estabeleceu a sua agenda como a forma de conhecimento a ser reproduzida pela comunidade de pesquisa. Interpretação que explica a fala de Suzana Herculano-Houzel que afirma não ter sido “vítima do tradicionalismo” das pesquisas neurocientíficas no Brasil, “onde você só estuda o que seus orientadores estudaram e os orientadores antes deles” e também a “descendência direta” da árvore genealógica da 240 comunidade neurocientífica brasileira. Dessa forma, a transferência de um imaginário sociotécnico para significar um conjunto de agendas de pesquisas como “neurociências”, demonstra que a governança de pesquisas dessa área no Brasil reflete velhas estruturas da institucionalização e organização da ciência no país (CARLOTTTO, 2013).

Por sua vez, a arquitetura político-institucional da ciência no país, com seus órgãos executores vinculados à administração federal, dentre eles a CAPES, o CNPq, a FINEP e o MCTI, é caracterizada por uma atuação top-down (DIAS, 2012). Ou seja, tal maquinaria pública da ciência atua centralizando as ações e definindo quais são as agendas de pesquisa de interesse do Estado, o que inibe a elaboração e gestão mais plural e democrática da atividade científico-tecnológica. Dinâmica que imprime um caráter elitista dos processos político-científicos ao privilegiar a comunidade de pesquisa o ator hegemônico na produção da ciência. Assim, tanto a estruturação histórica da comunidade neurocientífica quanto a agenda do IINN-ELS revelam aspectos tradicionais da ação social na realização da PCT brasileira.

Por sua vez, os imaginários daqueles pesquisadores com agendas de pesquisas que situam às margens da comunidade neurocientífica brasileira, quanto os neurocientistas que dela pertencem, revelam algo próximo do que Hilgartner (1995) verificou na etnografia realizada com os laboratórios e pesquisadores envolvidos no mapeamento do genoma humano nos EUA. Na década de 1980, muitos pesquisadores se preocupavam com uma série de questões administrativas, de alocação de recursos, do treinamento de jovens pesquisadores, o papel dos laboratórios e a sua relação com as empresas, a colaboração internacional entre institutos, entre outros.

O que o sociólogo chama a atenção é que havia diferentes imaginários dentre os cientistas sobre como as pesquisas em genômica poderiam ser alinhadas, o que revelou um problema de dimensão política, o de coordenação das agendas de pesquisa e a maquinaria sociotécnica capaz de conectar diferentes institutos, pesquisadores, entre outros. E de forma análoga, interpreto que as reflexões sobre a governança das neurociências encontradas no trabalho de campo também demonstram imaginários diversos sobre as possíveis dinâmicas das pesquisas da área.

Assim, argumento que a diferença para significar uma área como “neurociência” condiz com a elaboração de um projeto que estabeleça uma agenda de governança da ciência que lhe confira uma dinâmica particular, na qual diferentes atores sociais (grupos de pesquisa, laboratórios, governo ou mesmo empresas) produzirão o conhecimento com objetivos em 241 comum e em âmbito nacional. A significação de uma área de tal forma possibilita a produção do conhecimento coordenado enquanto um sistema experimental com possíveis futuros cognitivos e políticos, seja na produção e desenvolvimento de novos fármacos, ou mesmo para produzir uma melhor compreensão das doenças neurológicas, melhores técnicas de visualização cerebral, entre outros. Mas sob intensa coordenação de como se produzirá conhecimento em um regime específico de governança, o de larga-escala. É justamente essa capacidade de mobilização das agendas de pesquisas e as interações que produzirão em comum que interpreto como a característica específica de uma área denominada como “neurociências”.

O que reforça esse argumento é o segundo capítulo da tese sobre a formação da infra-estrutura das neurociências nos EUA. Por se tratar do local onde o termo “neurociência” emergiu e a infra-estrutura adequada para a produção do conhecimento do cérebro de forma interdisciplinar, conforme sugerem Rose e Abi-Rached (2013), foi nessa sociedade que as pesquisas do cérebro também foram imaginadas com uma forma de governança específica, assim como ocorria em outras áreas da ciência. Com o tempo, significou a criação de um projeto de larga-escala que tem como objetivo coordenar diferentes agendas de pesquisas em uma política oficial de Estado e fortemente identificada com o imaginário sociotécnico de outros grandes projetos da ciência daquele país. Desde os contextos sociopolíticos de origem das neurociências, a produção do conhecimento na área significou a possibilidade iminente de uma agenda da C&T governável para propósitos específicos, que conecta desde o experimento laboratorial até o futuro da bioeconomia daquele país.

Para alguns autores (HILGARTNER, 1995; 2013; 2015a; NIGHTINGALE & MARTIN, 2004) tal forma de governança se refere ao fenômeno biocientífico que emergiu nas últimas décadas como uma arena de rápidas transformações científicas e tecnológicas. No entanto, tais desenvolvimentos não se separam das mudanças institucionais e sociais que incitam, como os riscos e benefícios do uso do conhecimento, as transformações na concepção da subjetividade, dilemas éticos, quais os laboratórios, instituições e agências de fomento que participarão dos projetos biocientífico, entre outros.

Assim, não raro, os imaginários que acompanham as biociências trazem discussões relativas às possíveis formas de governá-las, ou quais arranjos sociais podem ser construídos para que abarquem as escolhas dentre os diferentes atores sociais envolvidos em sua produção (HILGARTNER, 2015b). E dessa forma, uma das contribuições do segundo 242 capítulo, é a reflexão de que a governança do projeto de larga-escala norte americano foi um processo amplamente negociado com diferentes atores sociais e construído com o tempo.

O que não significa que a neurociência brasileira deve seguir os mesmo objetivos cognitivos e políticos do projeto norte americano, ou até mesmo aqueles imaginários sociotécnicos. Nesse sentido, os projetos neurocientíficos chinês e palestino são exemplares para a reflexão dos distintos enquadramentos que neurociência pode ter. O China Brain Project, foca áreas em que a comunidade neurocientífica possui “força” para desenvolver pesquisa básica, reforça a disponibilidade de recursos já existentes, como os diferentes macacos daquela região que se tornaram modelos animais daquelas pesquisas, para criar métodos diagnósticos e formas de intervenção nas doenças que são epidemiológicas naquele país563. Já o projeto palestino foca a criação de futuros pesquisadores, ou “massa crítica”, que estudarão nos centros tidos como consolidados das pesquisas do cérebro, infra-estruturas de pesquisas, produção do conhecimento voltado para as doenças neurológicas e psiquiátricas que são epidemiológicas no país e sensibilizar a opinião pública da necessidade de investimentos em tal área.

No caso brasileiro, a agenda do IINN-ELS e o imaginário sociotécnico no qual foi personagem central, trouxeram uma série de questões relativas às potenciais formas de governar as neurociências no Brasil. Uma delas diz respeito à própria história da comunidade neurocientífica. Se por um lado argumento que imaginar as agendas, institutos, laboratórios e departamentos de pesquisa de como se constituiu tal área do conhecimento é um processo recente e revela a comunidade de pesquisa como o ator hegemônico na definição do modelo cognitivo das pesquisas, ao fazê-lo os atores sociais envolvidos com o que se significa como “neurociência” exaltam as próprias particularidades desse tipo de ciência no Brasil. Por exemplo, nesse percurso foi possível verificar as consideradas tradições de pesquisas do cérebro sintetizadas em algumas agendas das áreas da Fisiologia, Psicologia Experimental, Psicobiologia e Farmacologia, de universidades públicas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Também, os estilos de pensamento da fisiologia dos modelos animais e da psicobiologia. E, mesmo que de forma controversa, as pesquisas da interface cérebro-máquina.

Dessa forma, a imaginação sociotécnica construída pela comunidade neurocientífica ao elencar um passado neurocientífico e legitimá-lo em relação a possíveis significações externas de suas fronteiras, é uma forma de refletir quais as particularidades que

563 POO, M. et. al. China Brain Project: basic neuroscience, brain diseases, and brain-inspired computing. Neuron 92, November 2, 2016. 243 as pesquisas da área poderão se amparar para futuros projetos. Ou seja, tal aspecto refere-se àquilo que de fato a neurociência brasileira pode: quais as áreas de atuação, as tradições de pesquisa, quais os percalços na produção desse tipo de ciência, como a falta de insumos para pesquisa, a qualificação de “massa crítica”, se ela deve atuar em questões específicas da área da Saúde, da Educação, dentre outros aspectos.

É dessa forma que o termo “governança”, proposto por Irwin (2008), é um ferramental para a análise das controvérsias que envolveram a agenda do IINN-ELS e a comunidade neurocientífica brasileira. Tal conceito demonstra que as estratégias de desenvolvimento da C&T abarcam uma série de atividades com uma rede ampla de atores, que podem ser a indústria, o mercado, organizações científicas, grupos sociais, o governo e a própria comunidade de pesquisa dentre outros. Para o caso aqui analisado, interpreto que as controvérsias são relativas às possibilidades de criação de um conjunto de mecanismos com premissas operacionais, modos de pensamento, objetivos de pesquisa que podem ser envolvidos para governar uma área da ação social, no caso, a neurociência brasileira.

Por fim, uma das contribuições da presente tese é justamente responder algumas questões que os próprios entrevistados me faziam durante o trabalho de campo: “onde surgiu esse termo?”; “o que eu sempre fiz foi Farmacologia, de repente chama-se Neurociência e eu não sei o motivo”. Ou seja, com as discussões aqui realizadas, sugere-se refletir sobre como a área das neurociências vêm sendo significada no Brasil pelos atores sociais que a compõe e as potenciais mobilizações cognitivas e políticas que elas incitam. Dessa forma, foi possível apontar as características culturais desse tipo de ciência no país e naquela sociedade de industrialização avançada.

Justamente pelo caráter dinâmico da C&T e as diferentes significações que elas ganham em determinados contextos, pesquisas sociais precisam se dedicar ainda mais às formas como os neurocientistas vêm produzindo colaborações entre institutos e laboratórios; quais as redes de pesquisas que conectam diferentes agendas e como elas se realizam; como são discutidas as possíveis formas de governança para a área; histórias da formação das agendas de pesquisas em diferentes centros, dentre outros.

Nesse sentido, na presente tese indicamos que as agendas de pesquisas podem ser vistas a partir da análise social e política de seus processos de disputas, nos quais é possível investigar como diferentes atores sociais atribuem significados para as dinâmicas dos processos políticos e científicos. O que implica, cada vez mais, debater a partir das ciências sociais os aspectos institucionais, cognitivos e políticos que envolvem as neurociências. 244

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Anexos Quadro 1 – Entrevistas realizadas* Entrevista/ Referência Entrevistado (a) Tipo de registro/Local/Data Dr. Sidarta Ribeiro, professor titular e Presencial; Notas; Gravada/ICe da UFRN, A1 diretor do ICe, UFRN. Natal, RN/4 de Agosto de 2014.

Área de atuação: Neuroetologia, Neurobiologia Molecular e Sistemas Neurofisiológicos.

Temas de pesquisa: Sono, sonho e memória; Genes imediatos e plasticidade neuronal; Comunicação vocal em aves e primatas; Competência simbólica em animais não-humanos. Dr. Sandro Souza, professor titular, ICe, Presencial; Notas; Gravada/ICe da UFRN, A2 UFRN. Natal, RN/4 de Agosto de 2014.

Área de atuação: Genômica e Bioinformática.

Temas de pesquisa: Bioinformática; Genômica; Transcriptoma; Evolução Molecular. Dr. Li Li-Min, professor titular de Skype; gravada/University of Massachussets A3 Neurologia; coordenador de educação e Medical School, Worcester, MA, EUA/ 10 de difusão do conhecimento do CEPID Outubro de 2014. BRAINN, UNICAMP.

Área de atuação: Neurologia, Neurofisiologia e Neuroimagem.

Temas de pesquisa: Epilepsia; Neuroimagem; Neurociências. Dr. Roberto Lent, diretor e professor titular Skype; gravada/ ICB, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ/ A4 do ICB, UFRJ. 20 de Abril de 2015.

Área de atuação: Morfologia, Neuroembriologia e Neuroplasticidade. Temas de pesquisa: Desenvolvimento e plasticidade do córtex e comissuras cerebrais; Quantificação de estruturas cerebrais de diferentes espécies; Estudo do córtex cerebral humano. Dr. Roberto Covolan, coordenador do Presencial; Notas; Gravada/IFGW da A5 Grupo de Neurofísica do Instituto de Física UNICAMP, Campinas, SP/15 de Maio de 2015 Gleb Wataghin (IFGW) e vice-diretor do BRAINN, da UNICAMP.

Áreas de atuação: Ressonância Magnética Funcional, Neuroimagem funcional e Neurofísica.

Temas de pesquisa: Fenomenologia hadrônica e altas Energias; Física da radiação cósmica; Biofísica de processos neurológicos; Estudos multimodais em neuroimagem funcional. 255

Dr. Steven Rehen, professor titular do IC, Skype; gravada/ ICB, UFRJ, Rio de Janeiro, A6 UFRJ e diretor de pesquisa do Instituto RJ/18 de Maio de 2015. D’Or de Ensino e Pesquisa (IDOR).

Área de atuação: Morfologia, Embriologia e Neurobiologia.

Temas de pesquisa: Caracterização de alterações celulares e moleculares associadas à infecção pelo Zika vírus em células neurais humanas; Aplicação do Modelo de Reprogramação Celular Para o Estudo de Transtornos Mentais; Biologia das células-tronco pluripotentes humanas. Dr. Ivan Izquierdo, professor titular de Presencial; Notas; Gravada/IBRO, Rio de A7 Medicina e coordenador do Centro de Janeiro, RJ/10 de Julho de 2015. Memória e de Altos Estudos do Instituto do Cérebro, da PUCRS.

Área de atuação: Biologia da memória e Neurofarmacologia.

Temas de pesquisa: Mecanismos e Neurofarmacologia da memória; Neurofarmacologia da epilepsia. Dra. Dora Fix Ventura, professora titular Presencial; Notas; Gravada/IP da USP, São A8 aposentada do Departamento de Psicologia Paulo/16 de Março de 2016. Experimental e fundadora do Laboratório de Psicofisiologia Sensorial, do Instituto de Psicologia (IP), USP.

Área de atuação: Psicofísica e Eletrofisiologia Visual Clínica.

Temas de pesquisa: Mecanismos visuais básicos: fisiologia, morfologia e comportamento; Psicofísica clínica; Psicofísica e neurofisiologia da visão de cores. Dr. Antonio Galves, professor titular do Presencial; Notas; Gravada/IP da USP, São A9 Instituto de Matemática e Estatística Paulo/16 de Março de 2016. (IME), coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Modelagem Estocástica e Complexidade (NUMEC) e do CEPID em Neuromatemática (NeuroMat), da USP.

Área de atuação: Teoria das Probabilidades, Sistemas Markovianos de partículas e Processos Estocásticos.

Temas de Pesquisa: Estudo probabilístico e análise estatística de redes neurais; Modelos estocásticos de fenômenos neurobiológicos. Dr. Frederico Graeff, professor titular Skype; gravada/Faculdade de Medicina, USP, A10 aposentado da Faculdade de Medicina da Ribeirão Preto, SP/ 3 de Maio de 2016 USP.

Área de atuação: Farmacologia e Neuropsicofarmacologia

Temas de pesquisa: Neurobiologia dos 256

transtornos de ansiedade e depressão; Substrato neuro-humoral dos transtornos de ansiedade; Modo de ação dos medicamentos ansiolíticos; Matéria cinzenta periaquedutal; Modelos experimentais de ansiedade. Dra. Suzana Herculano-Houzel, professora Skype; gravada/ Vanderbilt University, A11 associada da UFRJ e da Vanderbilt Department of Psychological Sciences, University. Nashville, TN, EUA/ 9 de Agosto de 2016

Área de atuação: Morfologia, Neuroanatomia comparada e divulgação científica.

Temas de pesquisa: Método de contagem em neurônios em cérebros humanos e de outros animais; Relação da área e espessura do córtex cerebral e o número de dobras em sua superfície; Composição celular do encéfalo humano e animal; História da neurociência; História da divulgação da neurociência; Interesse do público sobre a ciência. Dra. Cláudia Vargas, professora associada Skype; gravada/ IBCCF, UFRJ, Rio de Janeiro, A12 do Instituto de Biofísica Carlos Chagas RJ/31 de Agosto de 2016 Filho (IBCCF) e coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Neurociências e Reabilitação Motora do Instituto de Neurologia Deolindo Couto, ambos da UFRJ. Também é pesquisadora principal do NeuroMat.

Área de atuação: Neurofisiologia e Plasticidade do sistema motor humano.

Temas de pesquisa: Cognição motora; Interações entre emoção e ação; Plasticidade no sistema motor após lesão central e periférica. Dr. Givago Souza, professor permanente Skype; gravada/UFPA, Belém, PA/19 de A13 na pós-graduação em Neurociências e Setembro de 2016 Biologia Celular e Doenças Tropicais, e coordenador da pós-graduação em Doenças Tropicais, UFPA.

Área de atuação: Fisiologia e Neurofisiologia

Temas de pesquisa: Sistemas sensoriais e motores, com ênfase em neurociência visual, visão espacial, visão de cor, eletro fisiologia e psicofísica visual; Epidemiologia da exposição ao mercúrio de populações amazônicas. * A tabela foi elaborada de acordo com as informações encontradas no “Currículo Lattes” de cada pesquisador e na biografia disponível no site da Academia Brasileira de Ciências. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/; http://www.abc.org.br/. Fonte: Elaborado pelo autor (2016)

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Quadro 2 – Eventos freqüentados no trabalho de campo

Ref. Evento Local/Data Visita ao ICe da UFRN e IINN-ELS. Instituto do Cérebro da UFRN e IINN-ELS, Natal, B1 RN – 2 a 9 de Agosto de 2014. 2nd Congress CEPID BRAINN. Instituto de Pesquisas Eldorado, UNICAMP, B2 Campinas, SP – 13 a 15 de Abril de 2015. 1st Neuromat Young Researchers Workshop. Instituto de Matemática e Estatística, Núcleo de B3 Apoio à Pesquisa em Modelagem Estocástica e Complexidade (NUMEC), USP, São Paulo, SP – 5 a 7 de Maio de 2015. 9th International Brain Research Organization Centro de Convenções Sulamérica, Rio de Janeiro, B4 (IBRO) World Congress on Neuroscience. RJ – 7 a 11 de Julho de 2015.

High-Performance Computing, Stochastic Instituto de Matemática e Estatística, Núcleo de B5 Modeling and Databases in Neurosciences. Apoio à Pesquisa em Modelagem Estocástica e Complexidade (NUMEC), USP, São Paulo, SP – 24 a 29 de Abril de 2016. XXV Congresso Médico Acadêmico da Auditório da Medicina da UNICAMP, Campinas, B6 UNICAMP SP – 7 de Outubro de 2016.

Fonte: Elaborado pelo autor (2016)

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Quadro 3 – Links de matérias, notícias e documentos coletados na internet

Ref./Título: Tipo/data da publicação: Fonte: C1 – Ninguém associa Canal de notícias “Link” do http://link.estadao.com.br/noticias/geral,ningu ciência com soberania Estado de São Paulo. 1ª de em-associa-ciencia-com-soberania- nacional. Abril de 2012. nacional,10000036025. C2 – Remarks by the Portal de notícias da Casa https://obamawhitehouse.archives.gov/the- president on the BRAIN Branca. 2 de Abril de 2013. press-office/2013/04/02/remarks-president- Initiative and American brain-initiative-and-american-innovation. Innovation. C3 – BRAIN Initiative Portal de notícias e https://www.braininitiative.nih.gov. documentos do projeto BRAIN Initiative. C4 – Ciência e cidadania. Página de notícias da revista http://www2.uol.com.br/sciam/artigos/ciencia Scientific American Brasil _e_cidadania.html. no portal da Uol. Abril de 2007. C5 – Medalha Página da Medalha http://www.sbnec.org.br/site/texto.php?id_text Neurociências Brasil. Neurociências Brasil no site o=7#medalhaneurociencia. da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento. C6 – Obama Página da White House https://obamawhitehouse.archives.gov/sites/de administration proposes Office of Science and fault/files/microsites/ostp/brain_initiative_fy1 over $300 million in Technology Policy. 6_fact_sheet_ostp.pdf. funding for the BRAIN Fevereiro de 2015. Initiative. C7 – Presidente Lula Página do Instituto http://www.natalneuro.org.br/noticias_brasil/2 assina documento que Internacional de 007-12dezembro.asp. viabiliza R$ 42 milhões Neurociências de Natal - para o Campus do Cérebro. Edmond e Lily Safra. Dezembro de 2007. C8 - Lula visita projeto Página do Instituto Lula. http://www.institutolula.org/lula-visita- ‘Andar de Novo’ de Abril de 2014. projeto-andar-de-novo-de-miguel-nicolelis. Miguel Nicolelis. C9 – História da Página da International http://ibro.info/about/history/. International Brain Brain Research Research Organization. Organization (IBRO). C10 – House Joint Página do Congresso norte- https://www.congress.gov/bill/101st- Resolution 174 – To americano. congress/house-joint-resolution/174. designate the decade beginning January 1, 1990, as the “Decade of Brain”. C11 – The Dana Página da The Dana http://www.dana.org Foundation. Foundation

C12 - Artigo intitulado de Página da The Dana http://dana.org/Cerebrum/2010/A_Decade_aft “A década após a Década Foundation. Fevereiro de er_The_Decade_of_the_Brain__Compilation/. do Cérebro”. 2010. C13 - Artigo de avaliação Página da Motherboard. https://motherboard.vice.com/en_us/article/ez da “Década do Cérebro”. Abril de 2013. zwzw/a-reborn-decade-of-the-brain-could- cost-america-more-than-money. 259

C14 – Arquivo de Página do Projeto Genoma http://web.ornl.gov/sci/techresources/Human_ informações do Projeto Humano. Genome/index.shtml. Genoma Humano.

C15 - Matéria anunciando Página do The New York http://www.nytimes.com/2013/02/18/science/ intenções do governo Times. Fevereiro de 2013. project-seeks-to-build-map-of-human- Obama em criar um brain.html?_r=0. projeto de larga-escala para o cérebro. C16 – Plano Nacional da Página da Casa Branca. https://www.whitehouse.gov/administration/e Bioeconomia norte- Abril de 2012. op/ostp/library/bioeconomy. americano. C17 - Resposta da Society Página da Casa Branca. https://obamawhitehouse.archives.gov/sites/de for Neuroscience ao Plano fault/files/microsites/ostp/bioecon- Nacional de Bioecenomia. %28%23%20064%29%20Society%20for.pdf. C18 – One Mind for Página da One Mind for http://onemind.org/About-Us. Quadro 3 Research. Research.

C19 – Artigo do Brain Página da revista Neuron. http://www.cell.com/neuron/pdf/S0896- Initiative Map. Junho de 2012. 6273(12)00518-1.pdf.

C20 - Matéria sobre como Página do Jornal NBC. http://cosmiclog.nbcnews.com/_news/2013/02 os cientistas influenciaram Fevereiro de 2013. /18/17007438-how-researchers-shaped-the- a Casa Branca para ter um white-houses-brain-mapping-initiative. projeto de larga-escala neurocientífico. C21 - Entrevista com o Página da SfN. Outubro de http://www.sfn.org/News-and- diretor da OSTP, Philip 2012. Calendar/News-and-Calendar/News/Across- Rubin. the-Field/Philip-Rubin. C22 - Grandes Desafios da Página da Casa Branca. https://obamawhitehouse.archives.gov/blog/20 Estratégia Americana para Abril de 2012. 12/04/09/21st-century-grand-challenges. Inovação. C23 - Discurso de Obama Página do The New York http://www.nytimes.com/2013/02/13/us/politi do Estado da União. Times. Fevereiro de 2013. cs/obamas-2013-state-of-the-union- address.html. C24 - Documento das Página do BRAIN Initiative. http://braininitiative.nih.gov/pdf/BRAIN2025 diretrizes do BRAIN Abril de 2013. _508C.pdf. Initiative. C25 - Matéria sobre a Página da revista Science. http://www.sciencemag.org/news/2016/09/big reunião de neurocientistas Setembro de 2016. -dreams-emerge-big-brain-science-projects. de diferentes países na The Rockefeller University. C26 – Matéria sobre Página da National Science https://www.nsf.gov/news/news_summ.jsp?cn reunião para formar Foundation. Setembro de tn_id=189711 coordenação global de 2016. projetos em Neurociência. C27 – Revista Página da Neuroscience https://www.sfn.org/news-and- Neuroscience Quarterly da Quarterly. calendar/neuroscience-quarterly/about-nq SfN. C28 - Entrevista com o Página da Neuroscience https://www.sfn.org/news-and- diretor do Instituto de Quarterly. Primavera de calendar/neuroscience-quarterly/spring- Neurociência da Academia 2016. 2016/china-qa. Chinesa de Ciências. C29 - Projeto Página do Neurosciences http://neuroscience.med.alquds.edu/ governamental em Palestinian Initiative. neurociências da Palestina. 260

C30 – “O que faz a Página da Sociedade http://www.sbnec.org.br/site/texto.php?id_text SBNeC?” Brasileira de Neurociência e o=2. Comportamento. C31 – “Quem é a Página da neurocientista http://www.suzanaherculanohouzel.com/who- neurocientista de plantão?” Suzana Herculano-Houzel. is-the-neuroscientist-on-c/

C32 - Coluna da Suzana Página do jornal Folha de http://www1.folha.uol.com.br/colunas/suzana Herculano-Houzel no São Paulo. herculanohouzel/?cmpid=menulate. jornal Folha de São Paulo C33 - Biografia da Página do Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Suzana_Herculan neurocientista Suzana o-Houzel. Herculano-Houzel no Wikipedia C34 - A mulher que Reportagem sobre a https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/a- encolheu o cérebro neurocientista Suzana mulher-que-encolheu-cerebro-humano- humano. Herculano-Houzel no site do 8482825 jornal O Globo. Maio de 2013. C35 - Site da árvore Página do Neurotree.org. https://neurotree.org/neurotree/ genealógica neurocientífica mundial. C36 – Página da Medalha Página da SBNeC http://www.sbnec.org.br/site/texto.php?id_text Neurociências Brasil. o=7.

C37 – História da Página da SBNeC. http://www.sbnec.org.br/site/texto.php?id_text Neurociências no Brasil o=3. por César Timo-Iaria. C38 – Biografia de alguns Página da SBNeC http://www.sbnec.org.br/site/texto.php?id_text neurocientistas brasileiros o=4. na SBNeC. C39 – Biografia de João Página da Academia http://www.anm.org.br/conteudo_view.asp?id Baptista de Lacerda. Nacional de Medicina. =412

C40 – Informações sobre a Página da Secretaria de http://www.saude.pr.gov.br/modules/conteudo ação dos venenos de Saúde do Paraná. /conteudo.php?conteudo=1462 ofídios. C41 - Homenagem ao Página da OHB-Rio http://www.ohb-rio.med.br/almeida.html. Prof. Dr. Álvaro Ozório de Medicina Hiperbárica Ltda. Almeida. C42 - Biografia Álvaro Página do Dicionário http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah Ozório de Almeida – Histórico-Biográfico da /pt/verbetes/almalvoz.htm. Fiocruz. Saúde no Brasil (1832- 1930). Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. C43 - Biografia Miguel Página do Dicionário http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah Ozório de Almeida – Histórico-Biográfico da /pt/verbetes/almmigoz.htm. Fiocruz. Saúde no Brasil (1832- 1930). Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. C44 – História do Página da Escola Paulista de http://www2.unifesp.br/dfisio/fisio/historico.ht Departamento de Medicina - Unifesp. m. Fisiologia da Escola Paulista de Medicina. C45 - Biografia de Página do Instituto http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/livro Aristides Pacheco Leão. Brasileiro de Informação em s/aristides_leao_10.html Ciência e Tecnologia. Canal Ciência. 261

C46 – Homenagem ao Página da Academia http://www.abc.org.br/article.php3?id_article= centenário de Aristides Brasileira de Ciências. 3503 Pacheco Leão. C47 – História do Instituto Página do IBBCF da UFRJ. http://www.biof.ufrj.br/pt-br/historia de Biofísica Carlos Chagas Filho. C48 – Biografia de Página da Academia http://www.abc.org.br/~eocruz. Eduardo Oswaldo-Cruz. Brasileira de Ciências.

C49 – Biografia de Mario Página do Instituto Oswaldo http://www.fiocruz.br/ioc/cgi/cgilua.exe/sys/st Vianna Dias. Cruz. art.htm?infoid=247&sid=77.

C50 - Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Carlos Eduardo Guinle da currículos da Plataforma izacv.do?id=K4783568Y2. Rocha Miranda. Lattes. C51 - Biografia de Carlos Página do IBCCF/UFRJ. http://www.biof.ufrj.br/en/noticia- Eduardo Guinle da Rocha completa/1458 Miranda – IBCCF/UFRJ C52 - Notícia falecimento Portal da UFPA. https://ww2.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod Luiz Carlos de Lima =11859 Silveira. C53 - Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Luiz Carlos Lima Silveira currículos da Plataforma izacv.do?id=K4787020Z4. Lattes. C54 - Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Cristovam Wanderley currículos da Plataforma izacv.do?id=K4787773T4 Picanço Diniz. Lattes. C55 – Biografia de Página da Academia http://www.abc.org.br/~rgattass. Ricardo Gattass – ABC. Brasileira de Ciências.

C56 – Biografia de Carlos Página da Academia http://www.abc.org.br/~cerm. Eduardo Guinle da Rocha Brasileira de Ciências. Miranda – ABC. C57 – Um talismã da Texto da ABC em http://www.abc.org.br/article.php3?id_article= Neurociência no Brasil. homenagem a Carlos 4299. Eduardo Guinle da Rocha Miranda. Julho de 2015. C58 - Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Rafael Linden. currículos da Plataforma izacv.do?id=K4783363E0. Lattes. C59 – Biografia de Rafael Página da Academia http://www.abc.org.br/~rlinden. Linden – ABC. Brasileira de Ciências.

C60 - Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Roberto Lent. currículos da Plataforma izacv.do?id=K4783576H5. Lattes. C61 – Biografia de Página da Academia http://www.abc.org.br/~rlent. Roberto Lent – ABC. Brasileira de Ciências.

C62 – Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscacv.cnpq.br/buscacv/#/espelho?nro Fernando Garcia de Mello. currículos da Plataforma _id_cnpq_cp_s=9356303217059472. Lattes. C63 – Biografia de Página da Academia http://www.abc.org.br/~fgmello. Fernando Garcia de Mello Brasileira de Ciências. – ABC. 262

C64 – Nirenberg, Matéria da página da Folha http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2010/01 decifrador do código de São Paulo. Janeiro de /682046-nirenberg-decifrador-do-codigo- genético, morre aos 82 nos 2010. genetico-morre-aos-82-nos-eua.shtml. EUA C65 - Biografia do Prêmio Página do Prêmio Nobel. https://www.nobelprize.org/nobel_prizes/medi Nobel, Alberto Houssay cine/laureates/1947/houssay-bio.html.

C66 – História da Página da FMRP-USP. http://www.fmrp.usp.br/a-faculdade/historia/. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. C67 – Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual César Timo-Iaria. currículos da Plataforma izacv.do?id=K4783847A3. Lattes. C68 – Biografia de César Página da Academia http://www.abc.org.br/~cetiaria Timo-Iaria – ABC. Brasileira de Ciências.

C69 – Entrevista César Matéria da Revista https://super.abril.com.br/saude/a-hora-da- Timo-Iaria sobre a Superinteressante. Maio de fome-porque-precisamos-comer/# fisiologia da fome. 1993. C70 – Biografia de Página do Instituto http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/livro Maurício Rocha e Silva. Brasileiro de Informação em s/mauricio_rocha_e_silva_40.html Ciência e Tecnologia. Canal Ciência. C71 – Matéria sobre as Página da FMRP-USP. http://www.fmrp.usp.br/usp-8-decadas-de- contribuições da FMRP- servicos-contribuicoes-da-fmrp-usp-a- USP nos estudos sobre hipertensao-sob-controle/ hipertensão. C72 – História da SBPC. Página da SBPC. http://portal.sbpcnet.org.br/a- sbpc/historico/historia/

C73 - Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Frederico Graeff currículos da Plataforma izacv.do?id=K4783594T4 Lattes. C74 - Busca do significado Dicionário Cambridge http://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/i do termo “serendipity” no Online ngles/serendipity dicionário Cambridge. C75 - Busca da biografia Página do Prêmio Nobel. http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/medic dos ganhadores do Prêmio ine/laureates/2000/ Nobel, Eric Kandel, Paul Greengard e Arvid Carlsson. C76 - Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Dora Fix Ventura. currículos da Plataforma izacv.do?id=K4727708H5 Lattes. C77 - Matéria sobre a Página da Agência FAPESP. http://agencia.fapesp.br/rede_zika_elenca_prio reunião da Rede ZIKA Fevereiro de 2016. ridades_e_define_estrategias_de_operacao/22 706/. C78 - Biografia de José Página do Instituto http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/livro Ribeiro do Valle. Brasileiro de Informação em s/jose_ribeiro_do_valle_29.html Ciência e Tecnologia. Canal Ciência. C79 – Homenagem a José Página da editora http://atualizacaoterapeutica.com.br/homenage Ribeiro do Valle por Atualização Terapêutica. ns/jose-ribeiro-do-valle.pdf Hannah Rotschild. C80 - Entrevista Elisaldo Página da Revista https://www.unifesp.br/reitoria/dci/entreteses/i Carlini: Um advogado do Entreteses. tem/1905-um-advogado-do-canabidiol canabidiol. 263

C81 - Elisaldo Carlini: o Revista FAPESP. Fevereiro http://revistapesquisa.fapesp.br/2010/02/28/eli uso medicinal da maconha de 2010. saldo-carlini-o-uso-medicinal-da-maconha/.

C82 - Informações sobre o Página da UNIFESP. http://www.cebrid.com.br/sobre-o-cebrid/ Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas. C83 - Página da fundação Página da SBFis. http://www.sbfis.org.br/founders/ da Sociedade Brasileira de Fisiologia”. C84 - Ata de fundação da Página da SBFTE. http://www.sbfte.org.br/ata-de-fundacao/ Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental. C85 – Homenagem a Página da IBNEC. http://www.ibnec.org/Arquivos/Homenagem Elisaldo Carlini do %20Professor%20Elisaldo%20Carlini.pdf Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Comportamento. C86 – Ata de fundação da Página da SBNeC. http://www.sbnec.org.br/site/texto.php?id_text SBNeC. o=17

C87 - História da Página da FeSBE. http://www2.fesbe.org.br/a-fesbe/ Federação de Sociedades de Biologia Experimental. C88 - Página da Sociedade Página da SBN. http://www.sbneurociencia.com.br/html/socie Brasileira de Neurociência. dade.htm

C89 - Página da Página da ABN. http://abneuro.org.br/conteudos/exibir/29/que Associação Brasileira de m-somos. Neurologia. C90 - Nota da SBNeC Canal Ciência e Saúde do http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL sobre a origem da portal de notícias Globo. 15359-5603,00- neurociência no Brasil”. Março de 2007. NOTA+DA+SOCIEDADE+BRASILEIRA+D E+NEUROCIENCIAS+E+COMPORTAMEN TO.html. C91 – Informações sobre a Página da FINEP. http://www.finep.gov.br/a-finep- FINEP. externo/sobre-a-finep

C92 – Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Miguel Nicolelis currículos da Plataforma izacv.do?id=K4757934A4 Lattes. C93 – Matéria: Interface Página Agência FAPESP. http://agencia.fapesp.br/interface_cerebrosocie cérebro sociedade. Agosto de 2005. dade/4256/

C94 – Morre aos 80 anos Matéria da página da Folha http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult César Timo-Iaria, pioneiro de São Paulo. Junho de 306u13348.shtml. da neurociência no Brasil. 2005. C95 – O vôo de Nicolelis. Matéria da página da Revista http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-voo- Piauí. Junho de 2014. de-nicolelis/.

C96 – Paralítica Claire Matéria do jornal The http://rewalk.com/paralysed-claire-lomas- Thomas termina a Telegraph na página da finishes-london-marathon/. Maratona de Londres. empresa ReWalk. Maio de 2012. 264

C97 – Pontapé inicial da Portal da Copa. Site do http://www.copa2014.gov.br/pt- Copa: Projeto Andar de Governo Federal Brasileiro br/noticia/pontape-inicial-projeto-andar-de- Novo entra na fase de sobre a Copa do Mundo da novo-entra-na-fase-de-testes-com-pacientes- testes com pacientes FIFA de 2014. Janeiro de brasileiros. brasileiros. 2014. C98 - Brasileiros ganham Página do jornal Valor http://www.valor.com.br/arquivo/865557/brasi projeção internacional. Econômico. Janeiro de 2011. leiros-ganham-projecao-internacional.

C99 - Opção do Brasil pela Matéria na página da revista https://www.scientificamerican.com/article/br educação científica. Scientific American. azils-option-for-science-education/#. Fevereiro de 2008. C100 - Nicolelis lança Matéria do site Viomundo. http://www.viomundo.com.br/entrevistas/nicol Manifesto da Ciência Novembro de 2010. elis-lanca-manifesto-da-ciencia-tropical-vai- Tropical: “Ela vai ditar a ditar-a-agenda-mundial-do-seculo-xxi.html agenda mundial do século XXI”. C101 – Programa Página Agência FAPESP. http://revistapesquisa.fapesp.br/2001/07/01/pr Institutos do Milênio Julho de 2001. ograma-institutos-do-milenio-avanca/ avança. C102 – Neurociência Página da revista Mente e http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/n brasileira. Cérebro. Julho de 2007. eurociencia_brasileira.html.

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124 – Trazendo cérebros Matéria do jornal Tribuna do http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/traz de volta para casa. Norte. Abril de 2011 endo-cerebros-de-volta-para-casa/178845

125 - Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Sidarta Ribeiro. currículos da Plataforma izacv.do?id=K4784674Y8 Lattes 126 – Entrevista com Matéria da página da Revista http://revistatrip.uol.com.br/146/especial/sidar Sidarta Ribeiro: “Só um Trip. ta.htm. sonhador?”. 127 - Currículo de Sidarta Página do ICe – UFRN http://www.neuro.ufrn.br/instituto/membros/c Ribeiro – ICe. hefes_de_laboratorio/sidartaribeiro.

128 – Acesso a Matéria da página do jornal http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2011/07 equipamentos de pesquisas Folha de São Paulo. Julho de /949791-acesso-a-equipamentos-de-pesquisa- provoca cisão entre 2011. provoca-cisao-entre-cientistas.shtml cientistas. 129 – O chute. Matéria da Revista Piauí. http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao- Dezembro de 2011. 63/questoes-neuroludopedicas/o-chute

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131 – Jovens cérebros em Matéria da página do jornal http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/jove favos da ciência. Tribuna do Norte. Agosto de ns-cerebros-em-favor-da-ciencia/191322 2011. 132 – Site do ICe da Página do ICe – UFRN. http://www.neuro.ufrn.br/ UFRN.

133 – Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Marcos Romualdo Costa. currículos da Plataforma izacv.do?id=K4765390U6 Lattes 134 – Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Dráulio Araújo. currículos da Plataforma izacv.do?id=K4791412T0. Lattes 135 – Milagre ou truque? Matéria da página da revista http://super.abril.com.br/tecnologia/milagre- Superinteressante. ou-truque Novembro de 2014. 136 - O exoesqueleto de Blog da página do Gizmodo. http://gizmodo.uol.com.br/exoesqueleto-um- Miguel Nicolelis, um ano Junho de 2015. ano-depois/ depois. 137 - Nicolelis acusa FIFA Matéria da página do jornal http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2014/06 de cortar exibição de Folha de São Paulo. Junho /1470309-nicolelis-acusa-fifa-de-cortar- paraplégico na Copa. de 2014. exibicao-de-paraplegico-na-copa.shtml. 138 – “Robótica não é Matéria do canal Ciência e http://g1.globo.com/ciencia-e- filme de Hollywood” diz Saúde da página da Globo. saude/noticia/2014/06/robotica-nao-e-filme- Nicolelis sobre o Junho de 2014. de-hollywood-diz-nicolelis-sobre-o- exoesqueleto. exoesqueleto.html 139 – Exoesqueleto: Matéria da página da revista http://veja.abril.com.br/ciencia/exoesqueleto- confira algumas dúvidas Veja. Junho de 2014. confira-algumas-duvidas-que-ficaram-no-ar- que ficaram no ar após a apos-a-demonstracao/ demonstração. 140 – Veja a lista completa Matéria da página do jornal http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2008/11 dos institutos nacionais de Folha de São Paulo. /472540-veja-a-lista-completa-dos-institutos- ciência e tecnologia. Novembro de 2008. nacionais-de-ciencia-e-tecnologia.shtml 141 - 101 novos institutos Matéria da página do jornal http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2008/11 ganham R$553 milhões. Folha de São Paulo. /472809-101-novos-institutos-ganham-r-553- Novembro de 2008. milhoes.shtml 142 - Empresa japonesa Matéria da página da revista http://revistapegn.globo.com/Revista/Commo cria e aluga “roupa de Pequenas Empresas & n/0,,EMI198207-17180,00- robô” que possibilita que Grandes Negócios. EMPRESA+JAPONESA+CRIA+E+ALUGA vitimas de acidentes Dezembro de 2010. +ROUPA+DE+ROBO+QUE+POSSIBILITA voltem a andar. +QUE+VITIMAS+DE+.html. 143 – Currículo Lattes de Busca no repositório de http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visual Suzana Herculano-Houzel. currículos da Plataforma izacv.do?id=K4727050Y3 Lattes. 144 – Luiz Davidovich: “O Matéria com entrevista do http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/05/l ministério da Ciência foi presidente da ABC para a uiz-davidovich-o-ministerio-da-ciencia-foi- demolido”. página da revista Época. demolido.html Maio de 2016. 145 - Brasil gasta menos Matéria da página do IPEA. http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?optio que outros países em P&D. Janeiro de 2017. n=com_content&view=article&id=29255.

146 – Programa Ciência Página do programa CsF. http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/c sem Fronteiras. sf/o-programa

147 – O corte do Ciência Matéria da página da revista http://exame.abril.com.br/brasil/o-corte-do- sem Fronteiras em Exame. Agosto de 2016. ciencia-sem-fronteiras-em-numeros/ números. 267

148 – Informações sobre Página do Wikipédia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_ministr os últimos ministros de os_da_Ci%C3%AAncia,_Tecnologia_e_Inova C&T no Brasil. %C3%A7%C3%A3o. 149 - O cérebro humano, a Matéria da página do Jornal http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/ ciência brasileira e o golpe do Campus da USP. Abril de 2017/04/o-cerebro-humano-a-ciencia- político segundo Miguel 2017. brasileira-e-o-golpe-politico-segundo-miguel- Nicolelis”. nicolelis/ 150 – Treino com Matéria do canal Bem Estar http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2016/08/ exoesqueleto levou à da página da Globo. Agosto treino-com-exoesqueleto-levou-recuperacao- recuperação parcial de de 2016. parcial-de-paraplegicos.htm paraplégicos. 151 - Uma utopia made in Matéria da página da revista http://www.fronteiras.com/artigos/uma- Macaíba. Fronteiras do Pensamento. utopia-made-in-macaiba Fevereiro de 2016.

Fonte: Elaborado pelo autor (2017)

268

Quadro 4: Participação dos trabalhos inscritos pela SBNeC entre 2003 e 2009 na FeSBE

Fonte: VENTURA, Dora Fix. (2010). Um retrato da área de Neurociência e Comportamento no Brasil. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Vol. 26. n. especial. p. 127. Acessado em: 16/10/2016.

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Quadro 5: Grupos de pesquisa em Neurociências no Brasil até 2010

Fonte: VENTURA, Dora Fix. (2010). Um retrato da área de Neurociência e Comportamento no Brasil. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Vol. 26. n. especial. p. 127. Acessado em: 16/10/2016.