16 ESPECIAL CRESS/RJ História Dona Ivone Lara e o Serviço Social té a aposentadoria, ela se apresentava às pessoas como “Yvonne Lara, assis- Minha Verdade tente social”, e não como (Ivone Lara e Délcio Carvalho) cantora ou compositora, lembra a jornalista Mila ABurns na biografia, de 2009, intitulada Eu tenho a minha verdade “Nasci para sonhar e cantar: Dona Ivone Lara... ”. Fruto de tanta maldade que já Pioneira, em 1965, Dona Ivone já tinha conheci feito história no samba. Foi a primeira mulher a assinar uma composição do Me deixa caminhar a minha enredo de escola de samba, como ela vida mesma apontou: “Antigamente, a mulher sofria mesmo muito preconceito. Quem Livremente assinava os eram meus primos O que desejo é pouco Fuleiro e Hélio. Minha família me proibia”, como cita a professora Graziela Scheffer Pois não duro eternamente autora da tese “Serviço Social, formação Nada poderá me afastar brasileira e questão social: na cadência do pioneirismo carioca”, apresentada ao do que eu sou Programa de Doutorado de Serviço Social (UFRJ). Antes da aposentadoria, em 1974, já não via outra alternativa se não estudar. Ela usando o nome Dona Ivone Lara, sem “y”, mesma dizia que tinha estudado muito e já lançou seu primeiro disco solo, iniciando a tinha para si exemplos de mulheres que se consolidação de sua carreira artística. destacavam profissionalmente por esta via. Em 1977, quando se aposentou como Àquele momento, foi sua escolha para buscar assistente social no hospital psiquiátrico o “sonho seu”! do Engenho de Dentro, no , No entanto, Dona Ivone Lara carrega outro Yvonne Lara da Costa decidiu assumir legado: foi uma das primeiras assistentes definitivamente sua persona sambista e sociais negras, que é identificada como partiu para conquistar o país com suas herdeira do legado ancestral da resistência músicas e seu jeito brejeiro de cantar e das mulheres negras em suas manifestações dançar. A série de shows que fez com africanas no Rio “o samba, a capoeira, as o cantor e compositor Roberto Ribeiro danças de roda, a religiosidade da Umbanda”, Graziela Scheffer autora da tese “Serviço Social, formação brasileira e questão social: pelo Brasil, em 1978, dentro do projeto como a qualifica a professora da Faculdade de na cadência do pioneirismo carioca , pode ser considerada a Serviço Social da UERJ, em sua pesquisa sobre grande alavancada em sua carreira musical, as pioneiras do Serviço Social. sociais do Rio Janeiro, ‘A colaboração lhe bate que havia começado bem antes, no tempo No Rio de Janeiro dos anos 1940, viu a à porta... visitadoras sociais e a biopolítica em que mulheres não entravam na ala de oportunidade de fazer um curso superior no cotidiano operário (1944-1953), lançado compositores das escolas de samba. gratuito e decidiu que cursaria enfermagem. pela EDUERJ, em 2013, Ana Lúcia Vieira Os caminhos traçados para a jovem Foi na Escola Anna Nery, onde a formação aponta que esse trabalho era voltado para o negra, recém-saída de um colégio àquela época era voltada para a atuação na registro do modo de vida dos trabalhadores. interno, órfã e criada pelos tios, não eram Segunda Guerra Mundial, sem vinculação A formação profissional tinha forte ênfase nas os que ela queria para si. Sempre em religiosa, mas norteada pelo apelo patriótico. técnicas de inquérito (entrevista) nos espaços movimento, não estava em seus planos Todavia, suas escolhas a apontavam para intrafamiliares. Nessas visitas domiciliares, ser trabalhadora da fábrica de tecido Nova caminhos que ultrapassavam a dimensão além de entrevistas em forma de “inquérito América, onde hoje funciona o Shopping dos cuidados biomédicos, optando por ser social”, elas determinavam hábitos de higiene Nova América no subúrbio de Del Castilho, enfermeira-visitadora social. e regras de conduta”. no Rio de Janeiro. Ela queria enveredar Em seu texto para a revista Serviço Social No mesmo artigo, Graziela nos brinda pelos caminhos do samba, mostrando e Sociedade, Professora Graziela Scheffer nos com uma fala de Dona Ivone Lara que foi feita seu talento e criatividade para compor ajuda a identificar essa particularidade: durante seu trabalho de enfermeira e depois e cantar. Mas, mulher, negra e pobre, “Em seu estudo sobre as visitadoras de enfermeira visitadora-social: ESPECIAL CRESS/RJ 17

“Porque tem uma coisa, a visitadora de ícones do samba como Aniceto, Mano com a realidade social imposta, com social não é supervisora, ela já não trabalha Décio da Viola e Silas de Oliveira. letras marcadas pela luta e resistência. diretamente com o médico. Ela trabalha, Passou toda sua vida profissional no Aos 96 anos, Dona Ivone ainda é símbolo sim, em prol do doente, atendendo às campo da saúde mental, tendo o privilégio dessa resistência. Muito debilitada, Dona Ivone Lara e o Serviço Social necessidades do doente e da família do de ter trabalhado com a psiquiatra Nise da não deixa de acompanhar sempre que doente. E justamente o Serviço Social já cuida Silveira, que foi sua supervisora na unidade pode, juntamente com o neto, André dessa parte. É completamente diferente. E de saúde. foi uma das Lara, eventos do samba, como a 2ª outras coisas mais. Agora, sendo que depois, primeiras mulheres psiquiatra do Brasil, e Festa Literária do Samba e Resistência com o Serviço Social, ele se expandiu mais, a ficou famosa pelo uso das artes plásticas Cultural (FliSamba), realizada em julho gente fez mais coisas, foi aonde eu tive que em contraposição aos tratamentos de de 2017, na qual recebeu, ao lado de fazer a pós-graduação, que era pra poder eletrochoques e lobotomia, usados na , também outro ícone, a ter outros conhecimentos e fazer jus ao meu década 1950. Dona Ivone Lara, assistente homenagem especial do evento. diploma de assistente social. [...] E eu já tava social e enfermeira, trabalhou juntamente A partir de sua obra, Graziela reafirma toda influenciada como assistente social, com a psiquiatra na época na implantação a necessidade de ainda nos debruçarmos então eu quis ser assistente social. ” dos métodos artísticos na saúde mental. sobre o legado histórico desta profissão, Também passou a realizar atividades que traz algumas representações da Dona Ivone Lara e o surgimento do Serviço musicais com os pacientes internados. resistência feminina contra os valores Social no Rio de Janeiro Mesmo tendo trabalhado por vários da sociabilidade burguesa reproduzidos anos na saúde mental, ao lado da Dra. estrutural e conjunturalmente. Em sua pesquisa acerca do surgimento Nise da Silveira, Dona Ivone Lara é pouco “Dona Ivone representa, na história do Serviço Social na cidade, Graziela aponta mencionada como assistente social profissional, uma síntese da cultura que este emerge de três braços centrais: o aposentada, ao passo que na enfermagem carioca das mulheres negras no samba direito, a saúde e a educação. ela é considerada madrinha. Essa trajetória e do grupo de resistência laica liderado “Em 1936, ocorreu o primeiro curso de Dona Ivone é resgatada pela professora por Maria Esolina no Rio de Janeiro. intensivo de Serviço Social promovido e nesta edição especial do Praxis, ano em É importante investirmo em estudos pelo Juizado de Menores, que formou 26 que o Código de Ética Profissional de 1993 sobre fundamentos históricos aliados assistentes sociais. Entre essas profissionais, faz 25 anos, que o Conselho Regional do Rio à análise dos processos de resistência Maria Esolina Pinheiro, liderança do de Janeiro faz 55 anos e para reafirmarmos da profissão” sintetiza a professora em movimento laico da profissão. Em 1937 a campanha do triênio do Conjunto CFESS/ depoimento exclusivo para o Praxis. acontece oficialmente a criação da primeira CRESS, “Assistentes Sociais no combate Na liberdade do sonho cantado Escola de Serviço Social no Rio de Janeiro, ao Racismo”, resgatar Dona Ivone Lara por Dona Ivone fica a trajetória de uma pela Igreja Católica, hoje seria a PUC-RIO. Em como assistente social tem um significado mulher incrível, à frente do seu tempo, 1938 surge o segundo curso intensivo, que expressivo para a história da profissão, que cantava o samba e sambava o canto, deu origem ao que hoje é o Curso de Serviço principalmente ao ser apontada também ecoando sua voz em harmonia, “traz a Social da Universidade Veiga de Almeida, como “pioneira”, pobre e negra, com família pureza de um samba / sentido, marcado dirigido por Terezita Porto na época. Nesse oriunda do subúrbio carioca. de mágoas de amor / um samba que mesmo ano, foi fundada Escola de Serviço Graziela nos aponta que Dona Ivone mexe o corpo da gente / e o vento vaio Social da Anna Nery (UFRJ), articulada à Lara foi da primeira geração de formação de enfermagem. Em 1944, foi assistentes sociais que não seguiam o fundada a Escola Técnica de Serviço Social perfil da “primeira leva” - “composta Cecy Dodsworth, atualmente Faculdade de por filhas de grandes fazendeiros, que Serviço Social da UERJ, fruto da militância de perderam as suas fortunas com a crise Maria Esolina Pinheiro pela educação laica, do café e foram obrigadas a se inserir democrática e popular.” no mercado de trabalho. Elas vêm de Dona Ivone é expressão do movimento uma alta classe e viram classe média. de laicidade do serviço social, que começa São mulheres que têm uma cultura, a se dissociar da igreja. Ela formou-se em falavam idiomas, tocavam piano. Então enfermagem em 1943. Classificada entre a primeira geração é uma geração as dez primeiras da turma, foi admitida que vem desse caldo cultural, mas pelo Ministério da Saúde, indo trabalhar na também decadentes. Quando abre o Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. serviço social é um momento delas se De 1945 até 1947 fez a faculdade de Serviço projetarem, nas políticas sociais. ” Social na escola Anna Nery. Na sequência Em suas obras, a eterna Joia Rara foi admitida pelo Serviço Nacional de expressava seu descontentamento Doenças Mentais e contratada pelo Hospital Gustavo Reidel, onde permaneceu até a aposentadoria. No mesmo ano que se forma Ivone Lara recebe uma assistente social casa com Oscar Costa, homenagem dos médicos do filho de Alfredo Costa, presidente da Escola Engenho de Dentro de Samba Prazer da Serrinha e fica amiga (acervo família da artista, s/d)