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Artigo Selecionado Kosovo Independente ... de Quem? (Visão pessoal de um oficial espanhol)

Pedro Enrique Pérez Mayoral(*)

1 INTRODUÇÃO essa hipótese. Os habitantes do Kosovo, também, não tiveram continuidade étni- O território do Kosovo proclamou, ca durante sua história: o complexo mapa em 17 de fevereiro de 2008, de forma étnico do território kosovar incluiu lati- unilateral e por meio de suas instituições nos, turcos, romenos, “circasianos” (de democráticas, a separação da Sérvia e se origem caucásica), e “gorani” (muçulma- declarou nação independente de Belgra- nos eslavos do sul do Kosovo e de regiões do. Esta ação era previsível há tempo, limítrofes da Albânia e Macedônia), além depois dos acontecimentos ocorridos nos de sérvios e albaneses. últimos anos. Para tratarmos de compre- Nos anais históricos, quase não se reco- ender as razões que esgrimem as partes e nhece o Kosovo até o século XI de nossa que levaram a esse desenlace, bem como era. A região entra na história formando prever as consequências de todo tipo que parte do Império Romano; no entanto, poderiam afetar, não só a região, mas tam- não se tem claro se, em sua totalidade in- bém a Europa em seu conjunto, incluindo tegrava a chamada província da Moésia o resto do mundo, pelo fato deste acon- (ribeirinha ao Danúbio, nas atuais Sérvia tecimento atingir o Direito Internacional, e Bulgária), ou se foi dividida entre esta é preciso fazer antes um repasse histórico e a província da (ribeirinha ao e aprofundar um pouco nas raízes desse Mar Adriático). No ano 395, ao morrer o povo localizado em um dos lugares mais imperador Teodosio I, divide-se o Impé- agitados do Antigo Continente. rio Romano em dois, Oriental e Ociden- tal, ficando o território kosovar incluso 2 APROXIMAÇÃO HISTÓRICA no primeiro. Kosovo, como entidade política ou ter- Duzentos anos depois, de acordo com ritorial diferenciada, apenas existe desde as correntes históricas dominantes, pode- 1945. Antes, seu território foi integrado, mos ver os sérvios irromperem no cená- parcial ou totalmente, aos domínios da rio originários do Cáucaso norte, onde, já Itália fascista; da potência ocupante da no século II, Ptolomeu os tinha localizado Albânia; da Yugoslávia, conseqüência da I (“serboi”). Esta invasão da Península Bal- GM, da Sérvia, e ; do Impé- cânica foi muito significativa, pois a po- rio Otomano; do Reino dos Búlgaros; do pulação eslava se expandiu profusamen- Império Bizantino e do Império Romano. te por toda ela, alcançando, inclusive, a Alguns autores, para respaldarem as as- Grécia e a Albânia. Uma amostra disso pirações de soberania, têm sugerido que são os topônimos com raízes eslavas que o Kosovo foi uma região distinta desde a existem nos países balcânicos não eslavos, Antiguidade, mas os restos arqueológicos como é o caso da Kamenica, no norte da e os registros históricos parecem refutar Albânia e, também, na Macedônia.

108 PADECEME Rio de Janeiro N° 20 1° quadrimestre 2009 Os albaneses têm origens muito menos manja assumiu o controle da Dioclea e claras do que os sérvios. Alguns, apoian- conquistou parte do Kosovo. Seu suces- do-se na origem do idioma albanês atual, sor, o rei Stefan Prvovencani, tomou o dizem-se descendentes dos ilírios, antigos controle do resto do Kosovo em 1216, habitantes dos Bálcãs ocidentais em tem- criando um estado que incorporava a pos romanos, embora haja historiadores maior parte da Sérvia e o Montenegro, romenos que sugerem a descendência dos atuais. antigos trácios, que habitaram o centro e Durante o reinado dessa dinastia – Ne- o leste dos Bálcãs. Historiadores albane- manjic –, muitas igrejas e mosteiros orto- ses afirmam que no século VI os ilírios doxos foram construídos em todo o terri- foram forçados por tribos sérvias rumo tório sérvio, particularmente no Kosovo, ao sul no que hoje é Albânia. Entretanto, que se converteu no centro cultural, eco- esta afirmação é questionada por cronis- nômico, demográfico, religioso e político tas bizantinos, que datam a chegada de do reino sérvio. O soberano usou, alter- albaneses (“alvanoi”) à Albânia atual em nadamente, tanto a sulina cidade kosovar meados do século XI, provenientes do sul de como a atual capital Pristina da Sicília, onde se instalaram depois de como sedes de sua corte. Grandes super- terem lutado como mercenários junto aos fícies de terra foram outorgadas aos mos- árabes na conquista das posses bizantinas teiros ortodoxos pelos sérvios; por isso, a do sul da Itália, no século IX. Essas tri- zona, que incluía partes da Albânia e do bos albanesas, provavelmente, eram ori- Montenegro, ganhou a denominação da ginárias da Albânia do Cáucaso, situada Metohia ou “terra monástica”. As igrejas ao norte do Azerbaijão, não guardando mais proeminentes no Kosovo (o Patriar- muita relação com os ilírios ou trácios, cado do Pec; a igreja da Gracanica, pró- já que falavam uma língua parecida com xima a Pristina; e o mosteiro do Visoki o azeri. Depois da luta contra Bizâncio, Decani, perto de Decani, ao noroeste do impossibilitados de voltarem para a Itá- Kosovo) foram todas fundadas duran- lia e rechaçados pelo Império Bizantino, te esse período. Kosovo era o principal pediram ao Czar sérvio permissão para centro de comércio sobre as rotas que estabelecer-se na parte montanhosa de conduziam aos portos do Mar Adriático, seu reino. além de possuir importante indústria de O território do Kosovo se encontrava mineração. nas franjas externas do Império Bizanti- Quanto à composição étnica da re- no, situado justo no caminho da expan- gião podemos dizer que os três grupos são eslava. De meados do século IX a principais – sérvios, albaneses e romenos meados do XI, foi governado por esla- – foram nomeados explicitamente em vos. O controle bizantino foi reafirmado cartas monásticas ou em decretos, sen- posteriormente pelo poderoso imperador do a maioria de seus nomes eslavos em Basílio “o Matabúlgaros”. Os pequenos comparação com os albaneses. Embora reinos sérvios se encontravam ao norte e seja certo que sérvios batizaram seus fi- a oeste do Kosovo, dos quais Raska (atual lhos com nomes albaneses e vice-versa, Ráscia, na Sérvia) e Dioclea (Montenegro os resultados de um censo efetuado pe- e norte da Albânia) eram os mais fortes. los turcos, em 1455, recém conquistada Em 1180, o governante sérvio Stefan Ne- a região, levando em conta a língua e a

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religião, concluíram por uma maioria sér- aca ao mando do Margrave Ludwig von via. Do que parece não haver dúvidas, é Baden se introduziu em território turco, que os sérvios compunham a população chegando até o Kosovo, capturando, na dominante culturalmente, sendo muito passagem, Belgrado. Muitos sérvios rece- possivelmente, também, a maioria demo- beram com alegria os austríacos e alguns gráfica. deles se uniram ao exército do Margrave. À morte do Czar Stefan Dusan, em Tal não ocorreu com os albaneses que lu- 1355, o reino sérvio se dividiu em peque- taram junto aos turcos para se opor ao nos feudos, durante anos em constante avanço austríaco. A contra-ofensiva tur- disputa. Os turcos, aproveitando a opor- ca do verão seguinte obrigou a retirada tunidade de tal debilidade, se dispuseram austríaca até o norte de Belgrado e, final- à invasão, enfrentando o exército sérvio mente, através do Danúbio até a Hungria, no campo de batalha de Kosovo Polje, na de onde tinham iniciado o avanço no ano tão rememorada pela nação sérvia “Bata- anterior. A contra-ofensiva otomana foi lha do Kosovo” (28 de junho de 1389), acompanhada por represálias tais contra que finalizou com as mortes, tanto do os sérvios que muitos deles, com o Pa- príncipe sérvio Lazar como do Sultão triarca da Igreja Ortodoxa Sérvia à frente, otomano Murab I. Embora a batalha, em viram-se obrigados a fugir com os austrí- princípio, fosse contemplada na história acos. Esse acontecimento foi imortaliza- como um fracasso sérvio, com o tempo a do na história sérvia como o Velika Seoba opinião foi se modificando, pois a Sérvia ou “Grande Migração”, um enorme êxo- manteve sua independência dos turcos e do de centenas de milhares de refugiados seguiu controlando o Kosovo até 1455, sérvios do Kosovo (e do resto da Sérvia) ano em que os turcos o conquistaram. que deixou um vazio, rapidamente ocu- Consequência do domínio turco, ime- pado por muitos imigrantes albaneses. diatamente o Kosovo experimentou um Durante o próximo século e meio, o processo de islamização, inicialmente Império Otomano dominou a Penínsu- centrado nas cidades, mas que se ex- la Balcânica, sem discussão. A partir de pandiu por um período de, pelo menos, 1823, a Grécia obtém sua independên- um século. Muitos dos habitantes cris- cia, seguida, ainda durante o século XIX, tãos se converteram diretamente ao islã, dos demais países balcânicos: Sérvia, Ro- provavelmente por razões econômicas e mânia, Bulgária e Albânia. Já no século sociais, já que os muçulmanos eram os XX, depois da Primeira Guerra Balcâni- únicos sujeitos de direitos e privilégios. ca ,de 1912, que opôs a Liga Balcânica Não obstante, apesar de tanto as igrejas (Grécia, Montenegro, Sérvia e Bulgária) ortodoxas como as católicas e seus fiéis contra a Turquia, Kosovo foi reconhecido padeceram de graves cargas tributárias, a pelo Tratado de Londres (maio de 1913) religião cristã se manteve. como uma parte de Sérvia, momento em Continuando sob o controle turco, aos que mais da metade da população koso- finais do século XVII, Kosovo vai sofrer var ainda era sérvia. Em 1918, depois do um dos acontecimentos fundamentais de final da I GM, os sérvios se converteram sua história, provocado pela guerra entre em parte do recém constituído Reino da Áustria e Turquia (1683-1699). Em outu- Yugoslávia onde, junto a eles, foram obri- bro de 1689, uma pequena força austrí- gados a conviver os ortodoxos montene-

110 PADECEME Rio de Janeiro N° 20 1° quadrimestre 2009 grinos e macedônios, os católicos eslove- quia yugoslava (Chetniks), mas sem rece- nos e croatas, e os muçulmanos bósnios e beram apoio dos aliados por duvidarem kosovares. de sua confiabilidade. Na Albânia, surgiu Já em plena II GM, o fracasso da ini- a guerrilha comunista de Enver Hoxha, ciativa italiana de invadir a Grécia, jus- que tomou o poder ao final da guerra. tificando a presença britânica nesse país, Assim, da mesma forma que as milícias obrigou a Alemanha a intervir na penín- armadas croatas (Ustachas), os grupos sula Balcânica. Em principio, a Yugoslá- armados albaneses (Vulnetari) locais re- via aceitou a presença das forças alemãs, primiram a população sérvia do Kosovo, mas logo, em plena campanha, o ultima- eliminando uma dezena de milhares de to do novo governo yugoslavo, saído de pessoas até 1945. Ao final da guerra e um golpe de estado propiciado pela Grã- com o “restabelecimento” da Yugoslávia, Bretanha, para que a Alemanha retirasse desta vez sob o regime comunista de Josif imediatamente suas forças e a proibição Broz “Tito” (de obscura origem croata, de usar seu território, fraturaram esse ar- perseguiu e eliminou implacavelmente tifício de nação. A divisão da Yugoslávia todos os protagonistas anticomunistas se consumou, saindo à superfície todas as desse período), ao Kosovo lhe foi confe- tensões e ressentimentos atávicos. A nova rido, em 1946, um estatuto de autono- distribuição territorial disposta pelas po- mia dentro da Sérvia, convertendo-se em tências do Eixo – Alemanha e Itália – e província autônoma em 1963. Mais tar- seus aliados da zona – Hungria, Româ- de, em 1974, foi promulgsda uma nova nia e Bulgária – fez que a maior parte Constituição na Yugoslávia e o Kosovo do território do Kosovo se integrasse na alcançou a plena autonomia. As escolas Grande Albânia ocupada pelos italianos, aplicaram um plano de estudos albanês e uma parte menor, ocupada por alemães, com os obsoletos manuais do vizinho al- na Sérvia e na Grande Bulgária. banês Enver Hoxha. Ainda no decorrer da 2º Grande Guer- Ao morrer Tito, em 1980, uma presi- ra, os diferentes territórios da primeira dência coletiva de oito membros (seis das ex- de então se posicionaram Repúblicas da Sérvia, Eslovênia, Croácia, ao lado de cada bando opositor. A Cro- Bósnia-, Macedônia e Mon- ácia, a Albânia e a Bósnia proporciona- tenegro, e dois das províncias autônomas ram à Werhmacht, cada uma delas, uma sérvias do Kosovo e a Voivodina) assu- Divisão de Voluntários de Montanha das me o poder. Durante a década dos 80, a Waffen SS (13ª “Handschar”, 21ª “Skan- tensão entre albano-kosovares e sérvios derberg” e 23ª “Kama”). Por sua parte a aumentou na província. A comunidade Sérvia alimentou, a favor da causa alia- albanesa favorecia cada vez mais a sobe- da, o “Exército Popular de Liberação rania para o Kosovo, enquanto que os e Separação Partizana da Yugoslávia” sérvios, duramente discriminados, estabe- (os partizanos), de inspiração soviética, leceram laços mais próximos com o resto apoiado pelos norte-americanos e britâ- da Sérvia. Em agosto de 1987, Kosovo foi nicos, perseguindo o inimigo alemão no visitado por Slobodan Milosevic, então próprio terreno. Também, na Sérvia se um político em ascensão, que apelou ao organizaram, contra a ocupação alemã, nacionalismo sérvio para impulsionar sua os anticomunistas partidários da monar- carreira política. Tendo reunido em suas

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manifestações grandes multidões cansa- margem da legalidade vigente, foi eleito das das agressões e desmandos sofridos, como “presidente”, por ampla maioria, ele lhes prometeu segurança, dizendo que o líder pacifista Ibrahim Rugova, que “ninguém se atreverá lhes golpear”, e se organizou uma administração paralela à converteu imediatamente no herói dos oficial, reservada esta exclusivamente aos sérvios do Kosovo; por volta do final do sérvios. Essas eleições não foram reco- ano, Milosevic tomou o controle do go- nhecidas nem pelo governo sérvio nem verno sérvio. Em 1989 foi aprovada, me- por nenhum outro governo estrangeiro. diante plebiscito, uma nova Constituição, A resistência da população albanesa que permitiu um sistema multipartidário, do Kosovo à soberania da Yugoslávia, em introduziu a liberdade de expressão e especial à da Sérvia, vinha de longe. Já promoveu os direitos humanos, mas que, em 1968 estalaram sérios incidentes na em contrapartida, reduziu grandemente capital Prístina, que se repetiram poste- os direitos das províncias. Os albano-ko- riormente em 1981. O líder carismático sovares se opuseram fortemente àquela Ibrahim Rugova advogava pela resistên- medida e rechaçaram participar da con- cia não violenta, mas os acontecimentos sulta, por quanto, diziam, sendo um ple- deixavam patente que esta atitude não biscito sérvio e eles uma minoria, sua par- dava resultados. A resistência se foi or- ticipação não teria trocado o resultado do ganizando política e militarmente, e, mesmo. Entretanto, a nova Constituição a partir de 1996, o chamado “Exército teve que ser ratificada pela Assembléia de Liberação do Kosovo” (Ushtria Çliri- do Kosovo, diante da ameaça de tropas mtare Kombëtare UÇK), ao comando de e blindados que rodeavam o edifício. As Hashim Thaçi, criou um estado de guerra mudanças constitucionais devolveram o de baixa intensidade com a polícia sérvia controle da polícia, a justiça, a economia, e a população, dando como resultado a o sistema de educação, a política lingüís- morte de vários milhares de civis de am- tica e os meios de comunicação oficiais bos os lados, até a intervenção da OTAN da província autônoma ao governo sér- em 1999. O UÇK repetidamente atacava vio. A autonomia do Kosovo, finalmente, e perseguia a polícia e a população sérvia, desapareceu ao ano seguinte. atitudes que levaram, em março de 1998, Como resultado das mudanças consti- as unidades antiterroristas do Exército tucionais, os parlamentos de todas as re- Federal Yugoslavo a se uniram à polícia públicas e províncias yugoslavas, até en- sérvia para lutar contra os separatistas do tão integrados apenas por deputados do UÇK. Partido Comunista da Yugoslávia, foram Em uma violenta campanha antiterro- dissolvidos e se realizaram novas eleições rista desencadeada pelas autoridades fe- multipartidárias. Os albano-kosovares derais, coincidente com uma não menos decidiram realizar suas próprias eleições violenta escalada da ação guerrilheira sec- à margem da população sérvia, mas, ao cionista, produziu-se o famoso “Inciden- não alcançar os 50 % de participação do te do Racak”, em 15 de janeiro de 1999. total da população, conforme obrigavam Nele, segundo versão próxima ao UÇK, as leis eleitorais, o parlamento do Kosovo a polícia sérvia matou, a sangue frio, 45 não foi constituído. Posteriormente, em civis desarmados. A missão de observação 1992, em alguns comícios realizados à da Organização para a Segurança e Coo-

112 PADECEME Rio de Janeiro N° 20 1° quadrimestre 2009 peração na Europa (OSCE) no Kosovo, pítulo VII, em que se falava do “Corpo cuja chefia estava a cargo do diplomata Militar de Paz no Kosovo”. O artigo 7 William Walker (antigo responsável nos diz, textualmente: “O pessoal da OTAN anos 80 por uma agência de inteligência não poderá ser preso, interrogado ou de- em El Salvador), deu crédito imediato à tido pelas autoridades da República Fede- dita versão. O massacre foi imediatamen- ral da Yugoslávia. Se alguma das pessoas te condenado pela imprensa ocidental, que formam parte da OTAN for presa ou inclusive, mesmo antes que tivesse sido detida por engano deverá ser entregue investigado. Diversos relatórios forenses imediatamente às autoridades da Alian- realizados à posteriori, entre eles, o re- ça”. Seu artigo 8 diz assim: “O pessoal da alizado pela doutora finlandesa Helena OTAN, com seus veículos, navios, aviões Ranta para a União Européia, levantaram e equipamento, deverá poder se deslocar, sérias suspeitas sobre o fato de que os fa- livremente e sem restrições, por todo o lecidos estivessem, realmente, desarma- território da Federação de Repúblicas Yu- dos. Tampouco se informou na imprensa goslavas, o que inclui o acesso a seu espa- que a zona do Racak era uma “praça-for- ço aéreo e a suas águas territoriais. Inclui- te” da UÇK; que a ação sérvia se execu- se, também, o direito das ditas forças a tou como conseqüência da negativa dos acampar, manobrar e utilizar qualquer guerrilheiros de dialogar para entregar área ou serviço necessário à manutenção, os responsáveis pelo assassinato de dois adestramento e desencadeamento das policiais sérvios, ocorrido uns dias antes; operações da OTAN”. que os sérvios tinham informado à mis- A campanha bélica por parte da Alian- são da OSCE da iminência da operação, ça Atlântica foi posta em marcha sem tendo, inclusive, convidado uma agência autorização prévia das Nações Unidas, de imprensa ocidental (Reuters) para que representando um comprometido prece- recolhesse in situ o desenvolvimento da dente no que afeta ao Direito Internacio- ação; por último, que também houve ví- nal. E mais, os países que deveriam ter timas sérvias. conseguido, no Conselho de Segurança Apesar dessas dúvidas e utilizando, da ONU, a correspondente Resolução de certa forma, o incidente como casus que autorizasse o início das hostilidades belli, a OTAN iniciou uma “guerra não foram os mesmos que utilizaram o direito declarada” contra a Yugoslávia, em 24 de de “veto” para não prosperar Resolução março de 1999, em virtude dessa última contrária proposta por outros membros não haver aceito os Acordos de Rambou- do Conselho de Segurança: a que ordena- illet. Embora a Yugoslávia estivesse dis- ria a paralisação dos ataques. A imprensa posta a admitir, de novo, o princípio de ocidental se entregou a uma campanha autonomia para o Kosovo, assim como, de verdadeira satanização dos sérvios, as partes não militares do acordo, em deixando-os como únicos vitimados no troca se negava, terminantemente, a as- conflito, sem outorgar nenhuma res- sinar os pontos referentes ao livre acesso ponsabilidade à outra parte, ressaltando, das tropas da OTAN e à virtual ocupa- unicamente, os crimes, reais ou supostos, ção pela Aliança Atlântica da totalidade perpetrados por eles. Estes seriam a ver- do território yuguslavo, acrescentados à dadeira razão de caráter “humanitário” última hora como Apêndice “B”, do ca- para justificar os bombardeios da OTAN,

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em razão dos quais se estimou que cer- pertencentes, perfazendo um total máxi- ca de 200.000 pessoas se convertessem mo aproximado – ao princípio da missão em deslocados internos ou refugiados, a –– de 50.000 homens, sendo de 16.000 à maioria deles na Albânia na antiga Re- data da declaração de independência uni- pública Yugoslava da Macedônia, ou no lateral (17 de fevereiro de 2008). Antes Montenegro. Em qualquer caso, as cifras da transferência da autoridade da Sérvia não são confiáveis, devido à ausência de à Aliança, aproximadamente, 300.000 fontes objetivas. sérvios e outros não albaneses fugiram do Os bombardeios da OTAN causaram Kosovo; um grande número deles ainda uma cifra indeterminável de mortos civis vive em campos temporários e refúgios – os sérvios os avaliam em 5.000 e o Ob- na Sérvia. Na atualidade se estima que servatório de Direitos Humanos, em 500 dos 2.000.000 de habitantes que há no – e a destruição de infra-estruturas e in- Kosovo, 120.000 são sérvios, a metade dústrias fundamentais, incluindo outros deles concentrados no norte, na zona da objetivos como a Rádio-televisão Sérvia Mitrovica. e o bombardeio por engano da Embaixa- Apesar da presença das unidades da da da China em Belgrado, que deixaram KFOR, em 17 de março de 2004 esta- inerme e sem capacidade de resposta o laram graves incidentes que produziram Estado Yugoslavo. A orgulhosa Sérvia, várias mortes e a destruição de um gran- centro de gravidade da antiga economia de número de igrejas e mosteiros medie- auto-gestionária da Yugoslávia comunista vais de grande valor artístico. Em 7 de do Tito, independente do Pacto da Varsó- outubro de 2005, a ONU recomendou via e também do mundo ocidental, ficou a iniciação de conversações para atingir destruída e forçosamente em mãos do um acordo sobre o estatuto definitivo da oferecimento de reconstrução da União região, com base no relatório elaborado Européia. pelo enviado especial do então Secretário Como consequência dos acontecimen- Geral Kofi Annan. Em 26 de janeiro de tos, o Conselho de Segurança das Nações 2007, o finlandês Martti Ahtisaari, envia- Unidas ditou, em 10 de junho de 1999, do especial da ONU para o Kosovo, deu a Resolução 1244 autorizando o empre- a conhecer os detalhes de sua proposta go de uma força multinacional (KFOR) para um status definitivo da província, liderada pela OTAN para contribuir com que, embora não fale de independência o processo de consolidação da paz e esta- formal, estabelece um importante grau bilidade no Kosovo, assegurar a liberdade de autonomia tutelada pela comunidade de movimentos das etnias, proporcionar internacional. Os pontos principais do segurança às minorias, manter um am- documento de Ahtisaari estabelecem a biente de segurança dentro de sua zona presença indefinida de forças internacio- de responsabilidade, proteger os bens nais que garantam a segurança, a tutela patrimoniais, reconstruir infra-estruturas política da União Européia através de um e manter contatos com as autoridades representante, a possibilidade de que Ko- civis, religiosas, ONG e população civil. sovo firme acordos e peça o ingresso em Esta força foi composta por um contin- organismos internacionais, a formação de gentes de diversas entidades de 35 na- uma força militar de 2.500 homens com ções, 24 pertencentes à OTAN e 11 não armamento ligeiro, a criação de sete mu-

114 PADECEME Rio de Janeiro N° 20 1° quadrimestre 2009 nicípios sérvios com ampla autonomia e Atrás de sua aprovação, o presidente do fixa medidas para o amparo do legado parlamento kosovar, Jakup Krasniqi, afir- histórico e cultural sérvio. Desse modo, mou que, a partir desse momento, “Ko- prevê a co-oficialidade do sérvio e do al- sovo é um estado democrático, livre e banês, o laicismo do novo estado, a ado- independente”. A população kosovar de ção de medidas para garantir a segurança origem albanesa saiu às ruas a festejar sua da minoria sérvia do Kosovo e um siste- independência, hasteando a bandeira da ma judicial integrado e independente do Albânia e outras, entre as quais se desta- sérvio. Este plano foi criticado pelas au- cavam as dos Estados Unidos, da União toridades sérvias por considerar que abria Européia e da OTAN. Nos dias prévios à a porta para que o Kosovo se tornasse in- declaração de independência, muitos lí- dependente da Sérvia. deres dos principais países manifestaram Em 17 de novembro de 2007, se cele- seu ponto de vista em relação à possível braram eleições legislativas e municipais secessão. Os Estados Unidos, a França, marcadas pela incerteza do futuro status a Alemanha, a Itália e o Reino Unido se da província. O antigo guerrilheiro do mostraram partidários de reconhecer ao UÇK, Hashim Thaçi, ganhou as eleições novo estado assim que se proclamasse sua com 35% dos votos em meio a uma gran- independência. Sérvia, Rússia, Chipre, de abstenção. Thaçi tinha anunciado que Grécia, Espanha, România e outros paí- declararia a independência no caso de ga- ses se mostraram resistentes a reconhecer nhar as eleições. Em dezembro de 2007, a separação. No dia seguinte à declara- a União Européia (UE) decidiu unilate- ção de independência, os países membros ralmente enviar uma “missão estabiliza- da UE adotaram uma resolução conjunta dora” (EULEX) à região do Kosovo. En- que qualificava o Kosovo como um “caso comendou-se ao encarregado da política único”, bem como deixava a cada país externa da União, o espanhol Javier Sola- membro, “segundo suas práticas nacio- na, que preparasse o transpasse da missão nais e suas regras jurídicas”, a liberdade da ONU no Kosovo para mãos européias. de decidir sobre o reconhecimento ou A missão -sem data definitiva para o iní- não da independência da antiga provín- cio- enviaria ao Kosovo 2.000 policiais, cia sérvia. juizes e funcionários de alfândega, além Na Espanha, a notícia da independên- de dotações de segurança e defesa, com cia do Kosovo foi recebida por todas as o fim de que colaborassem na proteção forças políticas de âmbito nacional com das minorias, especialmente a sérvia. Tal manifestações de claro rechaço. O Go- desembarque da UE no Kosovo foi - verno do Partido Socialista (PSOE), por to pela Sérvia e pela Rússia como “uma meio do Ministro de Relações Exteriores, ocupação ilegal”. Finalmente, esta missão Miguel Ángel Moratinos, declarou que teve início em 16 de fevereiro de 2008, “não vai reconhecer o ato unilateral por- um dia antes da declaração de indepen- que não respeita a legalidade internacio- dência. nal”. O Partido Popular, por intermédio Em 17 de fevereiro de 2008, os 109 de seu euro-deputado e membro da Co- deputados do Parlamento do Kosovo vo- missão de Exteriores, Gerardo Galeote, taram a favor da declaração de indepen- qualificou de “má notícia” a declaração dência unilateral com respeito à Sérvia. de independência da região sérvia. Em-

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bora os partidos majoritários espanhóis nifestantes atearam fogo à embaixada dos coincidam em suas apreciações, tal não Estados Unidos. ocorre com os partidos nacionalistas da A Rússia declarou que o apoio à au- Espanha, os quais, evitando as claras dife- todeterminação com base em motivos renças absolutas entre o “caso único” do étnicos no Kosovo suporia um claro pre- Kosovo e as “nacionalidades históricas” cedente para outras regiões européias – espanholas, apresentaram suas críticas ao como a Transnitria (franja da Moldávia Governo Espanhol pela postura mantida. junto à Ucrânia povoada, principalmen- Depois da declaração de indepen- te, por russos); no Cáucaso, a Abjásia e a dência do Kosovo, o primeiro-ministro Osétia do Sul (que querem se separar da sérvio, Vojislav Kostunica, condenou a Geórgia) e o Alto Karabaj (território po- declaração de independência do “falso voado de armênios incluídos no Azerbai- Estado do Kosovo”, afirmando que se jão) – bem como nos Bálcãs, no caso da cometeu “uma violação da lei interna- já mencionada República Srpska (um das cional”. O presidente sérvio, também, duas entidades que conformam à Bósnia). se mostrou contrário à dita declaração, Depois da declaração de independência, afirmando que a Sérvia “não reconhece- a porta-voz do governo russo nas Nações rá nunca a independência do Kosovo”. O Unidas, Maria Zarajova, solicitou uma dia seguinte à proclamação de secessão, reunião urgente do Conselho de Segu- Vojislav Kostunica afirmou que retiraria rança da ONU. Na data de redação deste seu embaixador nos Estados Unidos, pelo trabalho, 22 países reconheceram a nova apoio que esse país prestou ao Kosovo em República, 11 anunciaram que a reconhe- sua independência. Desde o momento da cerão e 17 manifestaram seu rechaço. Os declaração de independência se produzi- acontecimentos futuros nos revelarão a ram incidentes na Sérvia e nos enclaves viabilidade deste novo Estado, a postura sérvios no Kosovo. Em Belgrado, mani- dos até agora resistentes a reconhecê-lo e festantes atacaram com fogo a embaixada a possibilidade de seu ingresso na Organi- dos Estados Unidos, e em Mitrovica, Bel- zação das Nações Unidas. Com relação a grado e (capital da República este organismo, temos a dizer que a única Srpska servo-bósnia) houve manifestações Resolução vigente a respeito do proble- de protesto em que se queimaram ban- ma é a de nº 1244, de 10 de junho de deiras albanesas e norte-americanas. Dois 1999; e, conseqüente a ela, o Direito In- dias depois da declaração de independên- ternacional segue considerando o Kosovo cia se produziram incidentes na fronteira como província integrante da Sérvia. entre a Sérvia e o Kosovo. Manifestan- Nesta aproximação à história do Koso- tes sérvios contrários à independência da vo pretendemos recolher os acontecimen- ex-província sérvia atacaram dois postos tos mais significativos, que dêem uma vi- fronteiriços, o que requereu a interven- são de conjunto da questão kosovar sem ção de militares da KFOR. Em 21 de fe- paixões e, sobretudo, sem julgamentos vereiro, as principais forças políticas da de valor que simplifiquem o problema. Sérvia convocaram uma manifestação em Evita-se, assim, que o trabalho, com seu Belgrado com o lema “o Kosovo é Sér- ponto de subjetividade inevitável, seja via”, à que acudiram dezenas de milhares um prolongamento da versão difundida de sérvios. Depois da marcha alguns ma- pelos mass-média, limitando seu valor

116 PADECEME Rio de Janeiro N° 20 1° quadrimestre 2009 profissional. A seguir, aprofundaremos como “apego dos naturais de uma nação nas particularidades das influências que a ela e a quanto lhe pertence”, mas tam- a declaração de independência de 17 de bém como “ideologia que atribui entida- fevereiro produz nas dimensões regional, de própria e diferenciada a um território continental e global. e a seus cidadãos, e em que se fundam aspirações políticas muito diversas”, ou 3 O NACIONALISMO KOSOVAR ainda, como “aspiração ou tendência de E OS BÁLCÃS um povo ou raça a ter certa indepen- dência em seus órgãos reitores”. Como Antes de desenvolver este subtítulo, se pode ver, o significado do termo dá vamos especular um pouco sobre o sig- margem a que tanto sérvios como alba- nificado do termo “nação”. Para muitos, no-kosovares digam que “sua” Razão é a esse vocábulo está claro e não admite única válida. Com “nação” e “nacionalis- equívocos nem visão distinta à própria; e mo” está aparentado o termo “pátria”, têm razão, a “sua” razão… Mas nem tudo como terra da ascendência masculina. Se é tão simples. Se todos tivessem a mesma a nação for o território de nosso país, a percepção do conceito, não teriam exis- pátria é o receptáculo nacional de todos tido na história tantas guerras chamadas os valores, virtudes e desejos de nossos “civis” por uns e “de liberação” por ou- antepassados, encarnados em nós, pelos tros – e que ninguém procure similitudes que se está disposto a lutar e a oferecer a nestas palavras com as utilizadas em rela- vida. Outro termo não reconhecido pela ção à Guerra da Espanha (1936-39), con- RAE, mas utilizado por alguns autores e flito radicalmente distinto ao estudado existente em outros idiomas, é “mátria” aqui. como terra do nascimento e do sentimen- O dicionário da Real Academia Espa- to. “Pátria” teria, pois, uma significação nhola (RAE) dá os seguintes significados ativa, centrífuga, realizadora e lutadora; ao termo “nação” (do latim. natio -ônis): complementar a “mátria” com uma signi- 1. Conjunto dos habitantes de um país ficação passiva, centrípeta, conservadora regido pelo mesmo governo.// 2. Territó- e tranquilizadora. Aqui podemos nos alar- rio desse país.// 3. Conjunto de pessoas gar nas derivações com um apontamento de uma mesma origem e que geralmen- sobre a expressão “mãe pátria”, utilizada te falam um mesmo idioma e têm uma pelas nações hispano-americanas ao refe- tradição comum. Deixando à margem o rir-se à Espanha como mãe geradora das componente romântico da utilização do emancipadas pátrias (e as conseqüentes termo quando se emprega, por exemplo, mátrias) americanas. nos casos da “nação sioux” ou da “nação Toda pessoa verdadeiramente patri- araucana” em contato com os colonos e ótica deveria estar disposta a lutar por conquistadores, podemos dizer que a “na- sua nação e a morrer por sua pátria, sem ção”, tal como geralmente a entendemos entrar em valorações sobre a “legalida- e cujo significado se refere o dicionário de” e “legitimidade” de um determinado da ERA, surge ao finalizar a Idade Média conflito, no que, por outro lado, haveria e se desenvolve até nossos dias, abrangen- múltiplos pontos de vista. Mas, também, do todo o globo terrestre. devemos ter em conta que a Paz é um va- De “nação” se deriva “nacionalismo”, lor fundamental para o desenvolvimento

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dos povos e a situação à qual deveriam que pacificaram a Bósnia-Herzegovina tender todas as comunidades e nações. (B-H) e, conforme parecia, resolviam de- Os conflitos produzem efeitos cada vez finitivamente o problema nos Bálcãs, não mais desastrosos sobre as pessoas, por se referiam, em nada, ao Kosovo, o que na isso, se devem articular procedimentos e Sérvia se entendeu como reconhecimento executar ações que os limitem. À margem da soberania sérvia sobre o território. deste espírito conciliador que deve pre- Mas, se na antiga Yugoslávia, além das sidir a relação entre os povos, devemos independências pactuadas (pacíficas ou ter presente que as nações não são entes não) da ex-República Yugoslava da Ma- fixos e imutáveis; vivem como sua comu- cedônia (FYROM), da B-H ou Monte- nidade. Vimos ao longo da história nasce- negro, já há precedentes de declarações rem, se desenvolverem e desaparecerem unilaterais de independência – casos da muitas nações, por diferentes causas. Vi- Eslovênia e da Croácia – imediatamente mos nações se desintegrarem e outras se reconhecidas pela “comunidade interna- dilatarem. Onde estaria, pois, o segredo cional”, então, por que este “caso único” da permanência, da vitalidade e da ener- (segundo a UE) divide essa comunidade gia de uma nação? Julgamos que está na internacional?. Deixando de lado os pos- “Vontade”, a um tempo, consciente e síveis interesses geopolíticos e econômi- visceral, de seus habitantes de permane- cos dos atores que propiciaram e agora cerem juntos em uma mesma empresa co- reconheceram o Kosovo independente, o mum, somando ímpetos das semelhanças certo é que a Sérvia reconheceu a invia- e extraindo energias fecundantes de suas bilidade do Estado Yugoslavo – inscrita já diferenças. Quando parte de uma nação em suas origens de 1918 e obviada em se segrega para formar outra diferente, sua reconstrução de 1945 – e cedeu di- esse fato supõe um fracasso do projeto reitos e territórios, a exemplo, o encla- nacional que, ou estava inscrito em sua ve de 300.000 sérvios na Krajina croata. origem por grave defeito de fundação, Durante a progressiva desintegração yu- ou o povo e seus governos não souberam goslava, jamais se tratou sobre o Kosovo, encontrar o instrumento para descobrir, apesar dos acontecimentos recomenda- manter e desenrolar essa “Vontade” de rem, enquanto o fortalecimento do UÇK que falávamos acima. Para encontrar essa e a debilitação do Estado Sérvio esvazia- chave, valem, não só, políticas repressi- ram, cada vez mais, o território kosovar vas, pois estas poucas vezes convencem as de sérvios. Com a intervenção da OTAN, pessoas, são também necessárias políticas a fuga de sérvios foi maciça, se consoli- integralizantes. Em todo caso, e se essa dando o domínio absoluto institucional segregação ou desagregação se apresente e demográfico albano-kosovar, apesar do inevitável, haveria que ser feito o máxi- estabelecimento da missão da KFOR. mo esforço para que fosse pacífica. Supõe-se que, não só os países que se Apliquemos o dito ao caso kosovar: a negam ao reconhecimento, mas também história enfrentou sempre albanos e sér- os outros, são partidários de manter vivo vios; o território do Kosovo sempre teve e possante o Direito Internacional. Por- maioria sérvia até meados do século XX; tanto, haveria uma diferença de inter- a Sérvia sente o Kosovo como o berço de pretação sobre o surgimento dessa nova sua nacionalidade; os acordos de Dayton, nação no espaço internacional. O pro-

118 PADECEME Rio de Janeiro N° 20 1° quadrimestre 2009 blema, então, não seria tanto o fato em países da EU, a qual, para justificar sua si, mas sim, em especial, o modo de se posição, tratou, na Resolução antes co- produzi-lo. José María Aznar, presidente mentada, o Kosovo como um “caso úni- do Governo Espanhol em 1999, em um co”. Mas todos os casos são únicos, até artigo publicado na imprensa italiana, em que apoios importantes resultem em um 21 de fevereiro de 2008, dizia que como “caso similar”. “ajuste de contas” depois da intervenção da OTAN em 1999 “a maioria kosovar- 5 O IMPACTO GLOBAL DO albanesa maltratou a minoria sérvia”, por KOSOVO isso, “reconhecer o Kosovo desta manei- ra equivale a dar crédito à limpeza étnica, O caso que nos ocupa pode ter duas esta vez pelo outro lado”. E termina o ar- direções de influência no âmbito global. tigo dizendo: “no momento, esta questão A primeira em relação com o fato em si e se transformou em um grande engano do a segunda com o modo de realizar-se. Há qual nós mesmos somos culpáveis”. inumeráveis regiões em outros continen- tes, além do europeu, com características 4 O KOSOVO INDEPENDENTE parecidas com as que se dão no Kosovo. E A EUROPA Não vale dizermos que não coincidem to- das e cada uma, pois esses territórios se Alguns comentaristas manifestam que verão com o mesmo direito – internacio- o oferecimento de integração da Sérvia à nal – de decidir sobre seus destinos; quer EU leva implícita a renúncia desta ao Ko- dizer, se consagraria o princípio de auto- sovo e que se a Sérvia eleger a opção de determinação dos povos sem limitações. sua soberania sobre o Kosovo, ficaria sem Assim, longe de tranqüilizar as possíveis os dois. Ressaltam, também, a curiosa zonas em conflito, as vão agitar mais. oferta de integração européia, ao tempo Insistimos em que se não encontrarem em que se cria uma nova nação indepen- apoios definitivos não o vão conseguir, dente. O certo é que os Bálcãs devem ser mas isso seria claudicar ante a lei do mais pacificados de uma vez por todas. A Eu- forte e dar por quitadas as regras interna- ropa não se pode permitir ter em seu ex- cionais de convivência. Seguir-se-ia falan- tremo sudeste um conflito sangrento em do de paz no mundo, ao mesmo tempo vidas humanas e energias sócio-políticas. em que se estaria trabalhando contra ela. Mas a pergunta surge imediatamente: a Em relação à segunda direção de in- forma como se deram os fatos, e a pa- fluência, deveríamos recordar que, como cificação – precária, mas com avanços – dissemos anteriormente, as operações da que os acordos de Dayton propiciaram OTAN de 1999 se desencadearam apoia- aos Bálcãs, vão pelo mesmo caminho ou das em razões “humanitárias” para deter se interferem? As declarações da Sérvia e as ações de “limpeza étnica” realizadas da Rússia referidas mais acima são uma pelos sérvios contra os albano-kosovares, amostra, ou um aviso, do que poderia razões morais muito louváveis; mas não vir em cima dos europeus na Moldávia, avalizadas pela ONU, embora esta, para Bósnia, Geórgia, Azerbaijão e outros ter- legitimar um fato consumado, tenha dita- ritórios do antigo continente. Está claro do a Resolução de Nº 1244, ainda vigen- que o desejo dos albano-kosovares obteve te, legitimando o envio das forças pacifi- êxito pelo apoio dos EUA e da maioria de cadoras da KFOR. Estas seguirão tendo a

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mesma missão, mas em um cenário políti- 6 CONCLUSÕES co completamente diferente. Essa ação da Aliança estabelece um perigoso preceden- Por fim, depois de muitos anos de so- te, pois qualquer nação poderia se achar frimentos, os albaneses do Kosovo alcan- no direito – também internacional – de çaram seu sonho de soberania. O título intervir em territórios estrangeiros por deste trabalho o ressalta: o Kosovo já é motivos “humanitários”, de “segurança”, independente… mas, de quem? A Sérvia “meio-ambientais”... Muitos autores de- o seguirá reclamando durante não sabe- fendem que a globalização da economia mos quanto tempo, mas sua soberania já exige fronteiras difusas e uma soberania não é efetiva. Tampouco é efetiva a sobe- relativa ou limitada. Então, ao hipertro- rania kosovar sobre o território, pois para fiado princípio de autodeterminação de sua sobrevivência dependerá, por muito que falamos no parágrafo anterior, ha- tempo, do amparo da UE e da custódia de veríamos que lhe acrescentar o princípio forças multinacionais. Acreditamos que o fato será, não sabemos por quanto tempo, de “ingerência indefinida”… Se isso se um ponto de fricção na Europa. Por ou- confirmasse, estaríamos conduzidos a um tro lado, o desenlace natural da pretensa mundo inseguro e desequilibrado, onde, nação kosovar seria unir-se a seus irmãos não só as grandes potências imporiam da Albânia. Se para alguns foi um absur- sua vontade sem nenhuma vergonha, mas do o Estado Sérvio incluindo o Kosovo, também – o que é ainda mais sério – , os não é igual absurdo a existência de dois grandes grupos econômicos que, como estados albaneses contíguos? Esta possi- conjuntos de empresas não públicas que bilidade revitalizaria ainda mais a crise. são, só procuram seu próprio benefício e Levamos um século de despropósitos nos não o bem comum. Bálcãs, e já está chegando a hora de que É obvio que em nossa condição de mi- as soluções adotadas se façam com visão litares não somos os mais indicados para de futuro. julgarmos as decisões dos Governos, in- Ouve-se dizer que a geopolítica ressus- clusive estrangeiros, nem as dos organis- citou, e mais, há os que dizem que nunca mos multinacionais aos quais pertencem morreu. Pois bem, a Europa continental, nossas nações e com quem temos um sem a Rússia, encontra-se no campo de compromisso de lealdade para a conse- interesses da “grande ilha” (conjunto das cução da segurança e da paz. Nós somos Américas do Norte e do Sul), potência integrantes de uma instituição do Estado talasocrática (do grego talasós: mar) por que, além de estar comprometida na se- excelência; mas, também, como parte que gurança nacional, é um dos instrumentos é do continente euro-asiático, a “terra co- com que os Governos contam para de- ração” tem interesses próprios devidos a senvolver sua política externa, e nos de- sua condição. O enfrentamento com a vemos ater só a suas decisões, mas, tam- Rússia, a potência geocrática (do grego bém, está em nossa mão assinalar, para as geós: terra) que tenta manter com muita acautelar, as conseqüências negativas que dificuldade sua anterior hegemonia sovi- os acontecimentos futuros possam pro- ética, e o desfalecimento de seu poder, vocar. Este é, no fundo, o objetivo deste tendo em conta o despertar acelerado da trabalho. China na cena mundial aspirando a ser

120 PADECEME Rio de Janeiro N° 20 1° quadrimestre 2009 a nova potência geocrática hegemônica, suas possibilidades e de sua estrutura eco- não convém de maneira nenhuma à Euro- nômica, possa fazer com que os sérvios pa, por mais apoio norte-americano que sejam capazes de, uma vez mais, acordar, tiver. A iniciativa do “escudo antimísseis” mas não de esquecer o que, por muito nos países europeus orientais ex-soviéti- tempo, não poderá ser esquecido. E mui- cos, para prevenir possíveis ataques com to se terá que trabalhar para fazer que os mísseis desde países “fracassados”, está albano-kosovares, seja qual for o status criando uma grande tensão com a Rús- político do Kosovo (nos temendo que seja sia – onde há um escudo, há uma lança irreversível), evitem qualquer provocação e uma espada… – , cujas conseqüências aos sérvios. A única opção para que o Ko- políticas e econômicas afetarão a Europa sovo e outros territórios, também “casos toda. A crise do Kosovo é vista pela Rús- únicos”, não incrementem a instabilidade sia como outra volta de porca para lhe iniciando um caminho confuso e destru- imobilizar, tendo em conta a situação das tivo, é o fortalecimento político e militar ex-repúblicas soviéticas asiáticas e a pre- da UE. A União Européia deve converter- sença ocidental no Iraque e Afeganistão, se na Europa Unida, desenvolvendo uma para não dizer de uma hipotética futura forte política de coesão para alcançar o intervenção no Irã. Isso se pode ver em quanto antes o peso político e militar um mapa-múndi, onde se acham os prin- acorde com o peso econômico que tem, cipais conflitos da atualidade, além do sem renunciar a seus interesses atlânticos. eterno conflito palestino. Não se deve perder tempo, pois nos en- Muito se terão que empregar os diplo- contraremos com muitos óbices, antigos matas e grandes doses de generosidade e novos, mas acreditamos que não falta dos Estados terão que se dar para que o o fundamental para conseguir o triunfo, Kosovo não passe de ser um fato feliz para que é a Vontade da que falávamos mais uns e irritante para outros. Muito se terá acima, imprescindível para darmos à luz que trabalhar para que a EU, através de uma Grande Nação, a Europa.

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(*)O autor é Coronel de Cavalaria (Quadro de Estado-Maior Ativo) do Exército Espanhol. É Oficial Instrutor de Nação Amiga na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (OINA/ECEME/BR) e Oficial de Ligação e Representante do Exército Espanhol ante o Departamento de Educação e Cul- tura (DECEx) e o Comando de Operações Terrestres (COTER), ambos do Exército Brasileiro.(EMail: [email protected])

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