1992 – O centenário da Casa de e a “geração cara-pintada”

Márcio Luís de Oliveira1

empre estive convicto de que, dos dois institutos compromete a estabi- diferentemente do sistema parla- lidade constitucional. Smentarista de governo, o sistema Em contrapartida, o sistema presidencialista não possui mecanismos presidencialista, quando sofre uma institucionais para otimizar a resolução agrura política mais séria, coloca pe- das adversidades de governabilidade. rigosamente em risco a segurança das No sistema parlamentarista, uma crise instituições constitucionais. Em tais envolvendo o Primeiro-Ministro e seu circunstâncias, não raramente são prati- Gabinete ou uma instabilidade de com- cados golpes de Estado, ainda que sob a posição no Parlamento se resolve facil- frágil aparência de um processo legal de mente com a destituição do Gabinete impedimento, conforme ocorreu recen- che ado pelo Primeiro-Ministro ou com temente no Paraguai, com a destituição a dissolução do Parlamento; e nenhum do Presidente Fernando Lugo. De qualquer forma, no presi- 1 Doutor e Mestre em Direito pela Universidade dencialismo, o término antecipado de Federal de . Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal um governo por motivações jurídico-po- de Minas Gerais. Advogado e consultor jurídico. líticas é sempre um processo traumá-

Revista Brasileira de Estudos Políticos | Série “Estudos Sociais e Políticos” 63 Edição Comemorativa dos 120 anos da Faculdade de Direito da UFMG (1892 - 2012) | n. 40 | p. 59 a p. 77 | 2012 1992 – O centenário da Casa de Afonso Pena e a “geração cara-pintada”

tico para a sociedade e para o sistema No inicio de 1992, a grave situa- constitucional; e na grande maioria das ção econômico-social pela qual passava vezes em que ocorrer gera a ruptura da o país, após sucessivos e desastrosos ordem estabelecida. Contrariamente, as planos econômicos, foi severamente in- quedas de governos e as dissoluções de tensi cada pela rápida deterioração da Parlamentos fazem parte da dinâmica legitimidade e da legalidade do Governo da governabilidade institucionalizada Collor. O Brasil parecia caminhar para no modelo parlamentarista e, por isso, um caos institucional; e quem presenciou elas di cilmente se convertem em sérios aquele período não se esquece do temor problemas jurídico-políticos. En m, o de um golpe de Estado com a possibilida- parlamentarismo possui mecanismos de de retorno da ditadura militar, ainda para “amortecer” crises e amenizar suas recente na memória nacional. consequências constitucionais. Depois de vários planos econô- E pensando exatamente nesse micos que prometiam a “salvação da assunto – o processo de impedimento do pátria”, o “salvador da pátria” em pessoa Presidente da República como instituto – Presidente Fernando Affonso Collor de constitucional de nalização antecipada Mello –, caía em desgraça, envolvido em de um governo, especialmente no siste- sérias acusações de corrupção. Enquanto ma presidencialista – é que relembro o a sociedade vivenciava, há anos, uma colapso do Governo Collor em 1992. forte recessão econômica, acompanha- da de hiperin ação, o cenário políti- Passados vintes anos daquele co-jurídico tornou-se, repentinamente, contexto histórico, posso reconstituí-lo sombrio. em minha memória sob a perspectiva Em síntese, o contexto do início de um jovem estudante de Direito que, dos “anos 90” era, para os brasileiros, à época, era recém-ingresso na Casa de o de uma gravíssima crise econômica, Afonso Pena. piorada por uma potencial ruptura De fato, o processo político- institucional. O ainda frágil sistema jurídico que culminou na derrocada do democrático-constitucional estava para Governo Collor foi um momento único ser colocado à prova. nas vidas dos jovens estudantes conheci- Entretanto, quando a economia dos como “geração cara-pintada”. e a política caminham juntas para o

64 Revista Brasileira de Estudos Políticos | Série “Estudos Sociais e Políticos” Edição Comemorativa dos 120 anos da Faculdade de Direito da UFMG (1892 - 2012) | n. 40 | pp. 63 - 69 | 2012 Márcio Luís de Oliveira cadafalso da história, a sociedade não gastada perante a opinião pública que, só tem a chance de purgar os seus erros contrariando o seu pedido de apoio, como o de encontrar novas perspectivas. milhares de pessoas – majoritariamente E já transcorridas duas décadas daquele estudantes secundaristas e universitários episódio, constato, com serenidade, que – saíram às ruas vestidos com alguma o povo brasileiro soube se reerguer. roupa preta e de rostos pintados de preto, Como estudante de Direito, e sob o grito de ordem “Fora Collor!”... pude vivenciar – juntamente com meus aquele domingo, 16 de agosto de 1992, colegas, professores e funcionários da foi conhecido como “domingo negro”. Vetusta – a realização de um processo Nos diversos movimentos jurídico-político raríssimo na história estudantis que se seguiram, a cor preta dos povos regidos por uma efetiva que simbolizava o luto político foi, aos Constituição. Lembro-me, em detalhes, poucos, sendo substituída pelas cores das fortes acusações feitas contra a pes- verde e amarela de “esperança e cida- soa do Presidente e de sua esposa, além dania”... os estudantes, em consonância de seus colaboradores mais próximos. com inúmeras instituições da sociedade Inesperadamente, o homem todo-po- civil organizada, estavam mobilizados e deroso da “Casa da Dinda” tornava-se determinados a destituírem, pelo direito, exposto pela mídia e por sua própria o Presidente indigno do cargo. família, acusado de vários crimes... e a Na Vetusta, acompanhávamos, Presidência da República passava a ser passo a passo, cada movimento do pro- investigada por uma notória Comissão cesso jurídico-político que se instaurava. Parlamentar de Inquérito: a “CPI do No local onde hoje estão os andares PC” (“PC” era Paulo César Siqueira superiores da nossa biblioteca, próximo Cavalcante Farias, ex-tesoureiro da à sede do Centro Acadêmico Afonso campanha eleitoral do Presidente e então Pena, havia um espaço que, à época, era articulador do esquema de corrupção e carinhosamente chamado de “aquário” de trá co de in uências no Governo). pelos alunos. Ali, e também na cantina, Em meados de agosto de 1992, reuniam-se os estudantes, professores e a imagem do Presidente estava tão des- servidores que acompanhavam, pela te-

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levisão que fora instalada, o movimentar concedeu a palavra e eu pude, naquele das peças no tabuleiro jurídico-político momento, me manifestar a favor do da nossa história recente. “Fora Collor” em nome de todos os meus Algumas aulas eram suspensas colegas que se encontravam nas salas de para que pudéssemos acompanhar o aulas... Como não poderia ser diferente, noticiário... passeatas e manifestações fui movido pela “juventude raivosa” na ocorriam, com muita frequência, na minha manifestação, indignado com Praça Afonso Arinos, comprometendo todas as ilegalidades que eram atribuídas a regularidade de nossas aulas. Muito ao esquema de corrupção em Brasília, barulho... e muita “festa democrática”... sob a conivência e a participação da já é assim que posso, com justiça, resumir maculada instituição da Presidência da aqueles nossos encontros estudantis. República. Em uma daquelas primeiras e Nunca vou me esquecer daquele agitadas manifestações na Praça Afonso momento! Pela primeira e ainda única Arinos, lembro-me que as centenas de vez na minha vida, eu me dirigia a uma alunos que lá se encontravam pergun- multidão de colegas, em uma praça taram, em alto som – e por intermédio pública, em prol do direito e da demo- de um líder estudantil –, se os alunos da cracia... e tenho orgulho de ter sido um Faculdade de Direito não iriam aderir “cara-pintada” desde aquele 16 de agosto ao movimento, cancelando suas aulas de 1992. naquele dia. Indignado com a conti- Na medida em que o processo nuidade das aulas, em uma Faculdade de impedimento do Presidente passou de Direito, quando o direito estava no a ser uma realidade, a Vetusta Casa de foco da nossa história, saí de sala e fui Afonso Pena celebrou os seus primeiros ao encontro dos demais estudantes. Ao 100 anos de vida em 1992, em um con- chegar próximo do carro de som, pedi a texto jurídico-político de a rmação da palavra ao estudante que se utilizada do democracia e do direito. Nossos renoma- alto falante. Relatei-lhe que eu era aluno dos professores tiveram a oportunidade da Faculdade de Direito e que eu queria de expor, a favor ou contra o Presidente, expor a opinião sabidamente majoritá- suas teses jurídicas e suas opiniões polí- ria dos alunos da Vetusta. Ele então me ticas sobre o processo de impedimento

66 Revista Brasileira de Estudos Políticos | Série “Estudos Sociais e Políticos” Edição Comemorativa dos 120 anos da Faculdade de Direito da UFMG (1892 - 2012) | n. 40 | pp. 63 - 69 | 2012 Márcio Luís de Oliveira e suas consequências para a nossa recém e a Ordem dos Advogados do Brasil instalada “ordem constitucional-demo- - OAB, representadas, respectivamen- crática”. te, por Barbosa Lima Sobrinho e por Dentre as manifestações de um Marcelo Lavenére Machado, protoco- notório professor – de quem me permito lizaram na Câmara dos Deputados o omitir o nome – um episódio não posso pedido de impedimento do Presidente. A deixar de registrar. Tal professor, que Comissão Parlamentar Especial, instau- saía do elevador próximo ao Centro rada por ato da Mesa Diretora, presidida Acadêmico Afonso Pena, atribuía a si pelo Deputado Ibsen Valls Pinheiro, teve próprio e em alta voz a autoria de um como relator o Deputado Federal Nelson parecer jurídico que “mudaria o curso Jobim que, em suas conclusões, mani- da história do país”. festou-se favoravelmente à autorização O parecer, diziam alguns, seria para o processamento de Collor de Mello favorável ao Presidente. Contudo, aquele pelo Senado. famoso documento não foi lido em pú- Após célere tramitação, em 29 blico e até há quem duvide que ele tenha de setembro de 1992 a Câmara dos instruído o processo de impedimento. Deputados autorizou a instauração do Mito ou verdade, o famoso parecer en- processo de impedimento do Presidente. trou para a centenária história da Casa Foi uma sessão memorável e que contou de Afonso Pena! com ampla participação dos parlamenta- Aquele segundo semestre de res. Do total de 503 membros da Câmara 1992 foi mesmo inesquecível para nós dos Deputados, 441 votaram a favor do que integrávamos a comunidade da processamento e 38 votaram contra, Vetusta. Cada passo da marcha do im- contabilizando-se ainda 23 ausências peachment foi acompanhado por nós... e 1 abstenção. Em , foi e alguns se dirigiram em caravanas até instalado um telão na Praça Sete para Brasília, acompanhados de milhares de que todos os cidadãos pudessem acom- outros estudantes de todas as regiões do panhar a votação nominal e aberta dos país. Foi um momento áureo daquela Deputados. Nós, estudantes da Vetusta, juvenil militância política. estávamos presentes na praça lotada Em 1º de setembro de 1992, a de milhares de estudantes e de cida- Associação Brasileira de Imprensa - ABI dãos entusiasmados. Naquela data, o

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Congresso Nacional deu início à queda disso, a Praça Afonso Arinos tornou-se do Presidente e à vitória do “Movimento o logradouro público para onde se diri- pela Ética na Política”, iniciado meses giam os inúmeros grupos estudantis da antes. cidade. Concomitantemente, toda a mí- Instaurado o processo, em 2 dia nacional dava ampla e minuciosa co- de outubro o Presidente foi afastado do bertura dos acontecimentos em Brasília. cargo e substituído pelo Vice-Presidente, No Senado, cuja Mesa era , que há muito tempo ha- Presidida pelo Senador Carlos Mauro via se afastado politicamente de Collor Cabral Benevides, o processo de im- e a favor de quem não pesava qualquer pedimento passou à presidência do indício de participação no “esquema Ministro Sydney Sanches, do Supremo PC”. Em torno de Itamar Franco, diver- Tribunal Federal. Ainda que asseguradas sas lideranças políticas e sociais de todo a Collor de Mello todas as garantias o Brasil celebraram um “pacto de gover- constitucionais, o processo se avolumava nabilidade”, de modo a a rmar a legiti- em provas documentais e testemunhais midade e a autoridade da Presidência da que o colocavam em situação cada vez República, após terem sido severamente mais constrangedora perante a opinião comprometidas pela desastrosa gestão pública. de Collor de Mello. Finalmente, na sessão de jul- Nos três meses seguintes, a Casa gamento de 29 de dezembro de 1992, de Afonso Pena foi palco de grandes antes dos debates entre a acusação – debates a respeito dos rumos jurídicos comandada pelo Ministro aposentado e políticos do processo. Discutíamos, do Supremo Tribunal Federal, Evandro entre nós e com nossos professores e Lins e Silva, o “advogado do povo” – e os funcionários, as inúmeras questões a defesa de Collor – José Moura Rocha, referentes ao . Nas salas de Inocêncio Mártires Coelho, dentre ou- aula, nas reuniões dos órgãos colegiados, tros advogados –, o Presidente Collor nos intervalos das aulas o tema central apresentou sua renúncia. Perplexos, os era o “Caso Collor”. Todos tinham uma Senadores suscitaram uma dúvida im- opinião a ser dita, ainda que as manifes- portante: o processo de impedimento tações pudessem ser convergentes. Além estaria ou não extinto?

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Entretanto, o ato de renúncia Pena foi testemunha de muitos momen- fez com que o Senado suspendesse o tos célebres da nossa história republi- julgamento por algumas horas para que cana. Golpes de Estado e restaurações o Vice-Presidente Itamar Franco pudesse democráticas zeram parte da vivência assumir a titularidade da Presidência de seu corpo de professores, alunos e da República em uma sessão histórica funcionários. E somados a tantos “cau- realizada na Câmara dos Deputados. sos” em seu currículo, a presença da Em seguida, e contrariando a opinião “geração cara-pintada” nos arquivos da de muitos juristas, o Senado voltou a se Vetusta cou indelevelmente registrada reunir e decidiu, por 73 a 8 votos, dar no marco do seu primeiro centenário... prosseguimento ao julgamento, uma vez um momento do qual me orgulho de ter que a renúncia do então Ex-Presidente feito parte. Collor fora apresentada quando a sessão já havia se iniciado. Assim, caria pre- judicada a matéria referente à perda do Sítios consultados na inter- cargo, mas ainda deveria ser deliberada net: a questão da suspensão dos direitos po- www.camara.gov.br líticos do ex-Presidente. E o julgamento adentrou pela www.senado.gov.br madrugada. Depois de diversas ma- www.stf.jus.br nifestações dos parlamentares e dos advogados de acusação e de defesa, na manhã de 30 de dezembro, às vésperas de um novo ano, o Senado editou a Resolução nº 101, que o cializava, por 76 votos – havendo 3 votos contrários e 2 abstenções –, a condenação de Collor de Mello por crime de responsabilidade e a consequente suspensão de seus direitos políticos pelos 8 anos seguintes. Tenho certeza de que, em seus 120 anos de existência, a Casa de Afonso

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