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12 DE JULHO; “ DEMOLITION NIGHT”: MANIFESTAÇÕES DE INTOLERÂNCIA NA DÉCADA DE 1970 AMERICANA

Felipe Castro Lazarini Prof. Marco Antônio Neves Soares (Orientador)

RESUMO

No ano de 1979, na cidade de , ocorreu um violento protesto contra o estilo musical Disco, estilo este característico de um novo espaço social; a discoteca. O protesto ocorreu em um estádio, de baseball, onde 55.000 raivosos torcedores, incitados por um popular radialista, atiraram de vinil ao campo, e em seguida invadiram-no por uma horda furiosa de mais de 7.000 pessoas, isso após a implosão de um amontoado de discos. O resultado alem do estádio em farrapos, foram 39 pessoas presas e centenas de feridos. Tal protesto que se realizou na implosão de discos de uma forma de arte (Disco Music) associada aos negros, homossexuais e latinos, é a fonte para o debate acerca dos conflitos sócio-culturais. Os setores que manifestaram um repúdio aos excessos libertários e movimentos que caracterizaram a década de 1960 em confronto com forças antagônicas, como o das lutas dos direitos civis, movimentos estudantis, anti-guerra e feministas.

Palavras-chave: Intolerância; Protestos reacionários da década de 70; Disco Music .

700 “E aqueles vistos dançando, foram tidos por loucos, por aqueles que não podiam ouvir a música.”

Friedrich Nietzsche

Chicago Tribune, 13 de julho de 1979.

O objetivo desse artigo é trazer a tona do meio acadêmico, o debate acerca de temas como liberdade de expressão, música, identidade, racismo e intolerância, mesmo quando esta é manifestada inconscientemente. Para realizar tal objetivo, faço uso de um protesto, tomado como um evento histórico, por meio de fontes áudio visuais, que no caso específico são noticiários televisivos, assim fazendo uso desta fonte com o intuito de gerar interpretações no campo da cultura, do imaginário e do simbólico.

A relevância social deste trabalho baseia-se no argumento de que, ao longo da História, o homem manifesta suas tensões e anseios, de maneira violenta e ritualística muitas das vezes, de maneira dissimulada ou explícita, consciente e inconscientemente, apropriando-se de signos

701 culturais, destinados à expiação de sua intolerância. Assim, é digno de discussão não só no meio acadêmico, como nas escolas, o estudo das manifestações de intolerância, a fim de criar indivíduos mais reflexivos, propícios a fazer o mundo um lugar mais igualitário, mais cônscios de sua identidade, das relações sócio-culturais, como a alteridade e a tolerância.

Influenciado pelo livro Metahistory332, do historiador Hayden White, onde este exorta aos historiadores a utilizarem novas perspectivas na produção da historiografia, como fazer uso dos recursos literários, formas de narrativas alternativas na escrita do historiador, a fim de enriquecer tanto o discurso histórico, como também a imaginação do leitor. Todavia, o paradigma que mais me achou interessante foi o do recorte temporal, onde White, inspirado pela famosa obra de James Joyce; Ulisses, cuja trama se insere no recorte de tempo de apenas um dia. Assim, inspirei-me na produção de uma historiografia e por fim, uma reflexão que se baseava em um curto espaço de tempo, de um fato, de curta duração, que no caso específico é um protesto que deveria se desenrolar em um curto espaço de tempo, o de um intervalo de uma partida de baseball. Porém esse protesto ultrapassou não só o limite de tempo de um intervalo, como também ultrapassou os limites geográficos do estádio de baseball, como também se transcorrera pelas ruas de Chicago. O protesto analisado aqui, compreendendo esse curto recorte de tempo, é demasiadamente rico de significados mais amplos, de longa duração, ou seja, que se inserem em um recorte temporal maior, objeto pelo qual vai originar uma reflexão acerca do protesto. Este toma forma de ritual, podendo-se extrair inumeráveis elementos simbólicos, que podem suceder muitas e ricas interpretações acerca, da sociedade, da cultura, enfim, de nós humanos.

332 WHITE, Hayden. Metahistory The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe. 1973, The Johns Hopkins University Press, Baltimore-Londres. 702 A segunda fonte utilizada é um artigo do historiador americano Joshua Zeitz333, onde em seu artigo, Rejecting the Center: Radical Grassroots Politics in the 1970s, descreve e interpreta o protesto, refletindo sobre a conjuntura social, que Chicago e sua região se encontrava, seus conflitos sócio-culturais e a sensação de Guerra Fria, ao fracasso americano do combate no Vietnã, e de uma sensação de pessimismo político, devido aos escândalos envolvendo corrupção da política central.

O campo do simbólico é por demais imperceptível, agimos por ele inconscientemente, ou cônscios, a todo o momento. Exercendo uma relação direta, praticamente carnal com a cultura, onde nunca deixamos de exercer elementos deste campo, essa proximidade, muitas das vezes nos incuti a idéia de uma certa naturalização de elementos de nossa cultura. Elementos que vão de uma simples escolha ao se vestir, à realização de atos de extrema violência. Exercer uma reflexão, a fim de criar um estranhamento desses elementos da cultura, e em especial aos atos de violência é por demais necessária em nossa época.

É explícito o tom intolerante e quase lúdico do protesto de , que a princípio se destinava a ser um mero e quase ingênuo entretenimento do intervalo de um jogo de baseball, com o intuito a princípio somente de atrair a volta do público aos estádios, ou seja, uma mera atração de entretenimento.

333 ZEITZ, Joshua. Rejecting the Center: Radical Grassroots Politics in the 1970 Second-wave Feminism as a Case Study. Journal of Contemporary History, 2008, http:/jch.sagepub.com 703

Chicago Tribune, 13 de julho de 1979.

Então no quente dia de 12 de julho de 1979, na cidade de Chicago, ocorre este violento protesto contra o estilo musical Disco, estilo este característico de um novo espaço social; a discoteca, cujas primeiras se originam no final da década de 1970 nos subúrbios de Nova York, e logo se espalharia pelos Estados Unidos, por fim pelo mundo. Preservando certos elementos das pioneiras discotecas, constituindo toda uma cultura, musical a princípio, logo a cultura Disco, cria uma tradição, que vai desde a decoração, como o uso de luzes e globos espelhados, a moda e o cabelo, como também influencia a já consolidada indústria cinematográfica.

A Discoteca teve como cerne fundamental de sua criação, alem de ser um espaço destinado à dança, e sociabilização, também era concebido como um espaço libertário alternativo, pois entre os freqüentadores, havia a sensação de uma maior liberdade de expressão e sexual, onde independente da idade, traz a sensação de juventude. Logo esses signos foram apropriados pela indústria cultural e pelos meios de comunicação.

O protesto realiza-se 18 meses após o lançamento do famoso filme „Saturday´s Night Fever‟, estrelado pelo ator John Travolta e com

704 trilha sonora do grupo . Este filme exerceu uma profunda influência cultural nos Estados Unidos e no resto do mundo. No Brasil além do surgimento das recém-nascidas discotecas, percebemos a influencia pela novela de TV; Dancin´Days, de Gilberto Braga, estrelada por Sônia Braga.

Grande parte de nosso imaginário quando nos referimos a cultura Disco, ou seja da discoteca, nos vem sempre a mente elementos oriundos deste filme. Este contribuiu muito para a construção da representação em nosso imaginário da discoteca. Este imaginário é por demais idealizado, muito diferente das primeiras discotecas, que surgiram nos subúrbios de Chicago, em galpões abandonados, nos anos 70. Assim a discoteca daquela época faz parte de uma cultura marginal, e como qual foi alvo de manifestações de intolerância e conservadorismo contra as liberdades sexuais da época. É expressivo que o alvo do protesto não é exclusiva e essencialmente destinado a essa cultura cheia de glamour retratada no filme que usou a maioria de atores brancos, bem diferente do público a que freqüentava realmente as discotecas.

Na partida que ocorreu em Comiskey Park no dia 12 de julho, que reuniu mais 80 mil pessoas que, no seu lado exterior estavam de 10.000 a 15.000 pessoas que não conseguiram entrar, e do lado interno 55.000 raivosos torcedores, devido ao resultado da partida, que até o intervalo estava perdendo, incitados por , um popular radialista, a grande massa anelar atirava discos de vinil ao campo, e gritavam frases como “Disco Sucks”, logo em seguida o gramado foi invadido por uma horda furiosa de mais de 7.000 pessoas, isso após a implosão organizada de um amontoado de discos. Tudo isso no intervalo do jogo de baseball. Consequentemente a partida teve que ser cancelada, devido a falta de condições para o retorno e término do jogo. O gramado se encontrava coberto de pedaços de discos de vinil. O resultado foi alem

705 do estádio em farrapos e vários distúrbios urbanos, foram 39 pessoas presas e centenas de feridos.

Chicago Tribune, 13 de julho de 1979.

Steve Dahl adentrou ao gramado, de Jipee, jaqueta e capacete militar, munido de microfone e bombas, estas destinadas a implosão de gravações de vinil de Disco Music. Com as palavras de ordem; “Disco Sucks!”, Dahl gerou uma enorme descarga social, a massa excitada logo, estende seus “estandartes” com as já citadas palavras de ordem. Logo surgiram pequenos incêndios e finalmente aconteceu um estouro da multidão, e tal tomamos pelo conceito de massa334, esta que logo torna-se praticamente um organismo vivo, que se baseia na densidade, com comportamentos que refletem algo de nossa condição humana.

A quebra das industrias do aço, gerando uma massa de desempregados, criou uma grande tensão nas classes operárias. Tal fato teve como resultado o decréscimo na venda de ingressos das partidas de baseball, ou seja, os estádios andavam vazios. Com isso a administração do Comiskey Park, em Chicago, realizou uma parceria com uma rádio, a The Loop, assim o ingresso que antes custava 30 dólares, na partida do dia 12 de Julho, o preço do ingresso seria 98 centavos, ou seja menos de

334 CANETTI, Elias. Massa e Poder; trad. Rodolfo Krestan. Editora Melhoramentos; Brasília, 1983. 706 1 um dólar335, para as pessoas que levassem pelo menos 4 discos de „Disco‟. Daí a explicação de tamanho público. Podemos verificar que além do baixo preço, outro fator também atraiu a grande massa, o fato da promessa da explosão de gravações de Disco.

Tal protesto que se realizou na implosão de gravações de Disco Music, uma forma de arte associada aos negros, homossexuais e latinos, e é a fonte para uma reflexão dos conflitos sócio-culturais. Os setores que manifestaram um repúdio aos excessos libertários e movimentos que caracterizaram a década de 1960 em confronto com forças antagônicas, como o das lutas dos diretos civis, movimentos estudantis, anti-guerra e feministas.

Para analisar tal protesto que se insere na esfera das massass, fiz uso da obra de Elias Canetti; Massa e Poder. Canetti diz que todo temor do ser humano e todas as distancias que o homem criou em torno de si, tem como origem o medo de ser tocado. Porém nas massas esse medo se perde. Pois qualquer pessoa que se aperte contra nós, torna-se idêntica a nós mesmos. O homem quando ligado à massa, desprende-se de todas as suas distâncias e diferenças, sentem-se iguais. Essa igualdade é momentânea, podendo gerar algumas vezes momentos de ódio ou felicidade, e em função deste momento feliz, no qual ninguém é mais do que ninguém, é que os homens se tornam massa.

A massa deseja a densidade e tem sempre uma meta, muitas das vezes é de difícil identificação, porem sempre há a meta. Essa massa do estádio de Comiskey, que a princípio é comportada, mantida em forma de anel, com todos de costas para a cidade e por que não, para suas ordinárias vidas, tendo um foco somente, o centro do gramado. A massa a fim de extravasar suas tensões, assistindo ao combate esportivo, como

335 ZEITZ, Joshua. Rejecting the Center: Radical Grassroots Politics in the 1970 Second-wave Feminism as a Case Study. Journal of Contemporary History, 2008, http:/jch.sagepub.com 707 nos tempos romanos, ela deseja mais do que o simples espetáculo, ela quer também exorcizar suas tensões. No estádio, onde se forma essa massa anelar, as tensões se sobrecarregam, as pessoas ficam com liberdade restrita, onde só podem movimentar os pés e usar suas vozes, muitas vezes cria-se uma tensão. Dessa tensão pode-se originar uma descarga336, que é verificada na mudança dessa massa anelar, contida e fechada, para uma massa aberta e disforme, com uma meta que é o centro do campo, onde antes estavam com suas atenções centradas no centro do espetáculo. As pessoas inconscientemente querem também fazer parte daquele espetáculo, perdem sua individualidade, começam a fazer parte da massa, que como o fogo, destrói por onde passa, podendo aumentar sua capacidade destrutiva a medida que vai crescendo, ou seja, a medida que vão se integrando mais pessoas à essa massa, e assim como fogo muitas das vezes, está fadada ao seu desfecho inevitável.

Chicago Tribune, 13 de julho de 1979.

A massa incontida, com gritos espasmódicos, exorciza suas tensões, ateando fogo a enorme pilha de discos, no meio do gramado, correndo e se esquivando ao mesmo tempo da polícia que logo teve que tomar uma iniciativa, a de reprimir o “ritual” a afagos de cacetetes, em

336 Ibid. pág. 14 a 17. 708 meio a inúmeras tentativas de funcionários do estádio de apagar as dezenas de focos de incêndio. Deve-se salientar que nesse protesto, que a princípio era um mero jogo de baseball, havia pessoas de todas as idades e gêneros, porém é perceptível a predominância de homens brancos.

De preferência, a massa destrói casas e coisas. Como muitas vezes se trata de objetos frágeis, como cristais, espelhos, vasilhames, quadros e louças, existe uma tendência a se acreditar que seria justamente essa fragilidade das coisas que incita a massa a destruição. É bem verdade que o ruído produzido pela destruição, o barulho das vidraças se partindo fornece uma contribuição importante ao encanto da coisa toda: são os vigorosos vagidos de uma nova criatura, os gritos de um recém-nascido.337

O fogo tem poder simbólico por demasiado grande, desde as cavernas o homem tem uma relação dúbia com o fogo, onde este muitas das vezes podia-lhe garantir a vida, aquecendo-o do frio, como também podia trazer-lhe a morte da maneira mais temida pelos homens. Quando o protesto saiu fora de controle, podemos notar, com o surgimento de alguns focos incendiários, que a massa, realizava suas fogueiras e aglomeravam ao seu redor de forma que chega a tornar-se ritualística. Atirando sobre as fogueiras a “ameaça”; de Michael Jackson, , Glória Gaynor, e muitos artistas que não faziam parte da cultura Disco, porém estavam ali, na fogueira devido ao fato muitas das vezes de serem de artistas negros. O uso de fogueiras para a destruição de artefatos culturais, representativos, como livros, pinturas, bandeiras e como aqui, discos de vinil, é por demais visto ao longo da História humana, desde as fogueiras de livros da inquisição e dos nazistas, à ficção de Truffaut338.

337 Ibde. Pág. 16. 338 Aqui refiro-me ao filme Fahrenheit 451, de 1966 do diretor de cinema francês François Truffaut. 709

Cena de Fahrenheit 451.

710 Fogueira de livros promovidas pelos nazistas em 1933.

É indiscutível o lado simbólico do fogo, tido sempre a priori como a representação da destruição máxima, como também o símbolo que nos remete ao ideal de renovação. Porém quando os atuantes desse protesto se agitam e ateiam fogo aos discos, eles declaradamente desejam uma renovação na música, por meio da eliminação da Disco, da indústria cultural e dos meios de comunicação. Entretanto, inconscientemente, sua raiva, é destinada aos ouvintes de Disco Music, e não contra o estilo em si. No caso a classe média, branca, reacionária, usa a cultura Disco, como expiação de suas tensões sócio-culturais. O pensador que se aventura nessa empreitada, a de desconstruir discursos, a fim de fazer uma reflexão acerca da cultura, deve-se sempre estar atento ao não dito, e ter sempre em mente que muitos dos atos humanos, violentos ou não, são feitos de maneira inconscientemente. Assim tentando desvelar a ideologia expressa nesse protesto, verifica-se traços específicos da sociedade americana, idiossincráticos a realidade de 1979, com mecanismos sociais singulares, mas também nos mostram traços de nossa sociedade como um todo, principalmente atualmente, onde a massificação da nossa cultura, e apropriação da arte pelos meios de comunicação, gerando uma cultura ditada por uma indústria, se torna cada vez mais uma característica de nossa época.

711 O mundo das ideologias não é unicamente o espelho da „má consciência‟ da camada dominante; pode até vir a sê-lo, mas o que importa de modo primordial é o fato de desvelar, quando lido com a atenção, os mecanismos profundos que se acham em curso na infra-estrutura.339

A cultura torna-se maior que o indivíduo e, portanto se apropria não somente de um único indivíduo, mas a cultura se sobressai e se mostra de maneira explícita na massa humana. Essa cultura que é a „teia‟ com a qual o homem se relaciona não só com outros homens mas com o seu ambiente. Assim a cultura guia tanto para a violência ou para a paz, para a vida ou para a morte.

Chicago Tribune, 13 de julho de 1979

339 SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira do século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. pág. 305. 712 Referencias Bibliográficas:

CANETTI, Elias. Massa e Poder; trad. Rodolfo Krestan. Editora Melhoramentos; Brasília, 1983.

SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira do século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

WHITE, Hayden. Metahistory The Historical Imagination in Nineteenth- Century Europe. 1973, The Johns Hopkins University Press, Baltimore- Londres.

ZEITZ, Joshua. Rejecting the Center: Radical Grassroots Politics in the 1970 Second-wave Feminism as a Case Study. Journal of Contemporary History, 2008, http:/jch.sagepub.com

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