ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246

ISSN 2177-2940 (Online) ISSN 1415-9945 (Impresso) http://dx.doi.org/10.4025.dialogos.v22i1

A questão sul-africana: literatura, colonialismo e masculinidades em (1912), de H. Rider Haggard http://dx.doi.org/10.4025.dialogos.v22i1.36400

Evander Ruthieri da Silva Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Professor substituto de História da Educação na UFPR, [email protected] ______Resumo Palavras Chave: O escopo central do artigo converge na análise e problematização das relações entre História e Literatura; Rider colonialismo e masculinidade na produção literário-intelectual do romancista H. Rider Haggard; colonialismo; Haggard (1856-1925), com destaque para seu romance Marie (1912). A narrativa literária masculinidades. cinge elementos da ficção e realidade ao narrar eventos do passado sul-africano, em especial o Great Trek, período de migrações e deslocamentos de colonos bôeres na década de 1830. No cerne de um contexto imaginado com as marcas da violência e do martírio, Haggard retrata a formação de seu protagonista, o caçador , de modo a promover figurações de virilidade e heroísmo que atuam como respostas ao que muitos de seus contemporâneos sentem e ressentem como crises da masculinidade no fin-de-siècle.

Abstract The South African Question: Literature, Colonialism and Masculinities in H. Rider Keywords: Haggard’s Marie (1912) History and Literature; Rider The central scope of the article converges in the analysis and problematization of relations Haggard; colonialism; between colonialism and masculinity in H. Rider Haggard’s (1856-1925) literary and intellectual production, with emphasis in his romance Marie (1912). The literary narrative masculinities deals with elements of fiction and reality by narrating events from South African past, especially the Great Trek, a period of migrations and displacements of Boer colonists during the 1830s. At the heart of a context imagined with violence and martyrdom, Haggard depicts the formation of his protagonist, the hunter Allan Quatermain, in order to promote virility and heroism, which act as answers to what many of his contemporaries feel and resent as crises of masculinity in the fin-de-siècle.

Resumen Palabras clave: La cuestión sudafricana: literatura, colonialismo y masculinidades en Marie (1912), Historia y Literatura; Rider de H. Rider Haggard La meta central del artículo converge en la análisis y problematización de las relaciones entre Haggard; colonialismo; colonialismo y masculinidad en la producción literario-intelectual del novelista H. Rider masculinidades. Haggard (1856-1925), con destaque para su romance Marie (1912). La narrativa literaria establece una relación entre elementos de ficción y realidad al narrar eventos del pasado sudafricano, en especial el Great Trek, período de migraciones y desplazamientos de colonos bôeres en la década de 1830. En el corazón de un contexto imaginado con las marcas de la violencia y el el martirio, Haggard retrata la formación de su protagonista, el cazador Allan Quatermain, para promover imágenes de virilidad y heroísmo que actúan como respuestas a lo que muchos de sus contemporáneos sienten y resienten como crisis de la masculinidad en el fin-de-siècle.

Artigo recebido em 23/03/2017. Aprovado em 19/02/2018 ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246 230

Introdução nicho da literatura de entretenimento, os romances aventurescos ambientados no Os processos de construção território sul-africano produziam adaptações dos sociocultural das masculinidades, das relações de ideais de honra masculina e cavalheirismo nos gênero e da produção histórica de limites dos interesses políticos coloniais, lugares subjetividades, constituem temáticas que tem em que, livres das restrições sociais e instigado análises a respeito da experiência constrangimentos morais da metrópole, homens humana no tempo. A produção historiográfica comuns e ressentidos, após árduo percurso, recente tem articulado estudos dedicados à transformavam-se em heróis, pioneiros ou problematização da constituição de modelos desbravadores. hegemônicos de masculinidade, por meio de As reflexões deste artigo possuem como práticas e representações sociais, nas dinâmicas foco de análise os vínculos entre masculinidades do cotidiano e nas relações culturais, ou e colonialismo britânico a partir da produção enquanto contraponto, se o ângulo de literária e trajetória do literato H. Rider Haggard abordagem incidir sobre as dimensões (1856-1925), com destaque ao romance Marie problemáticas e conflituosas do ser homem, os (1912), o qual narra a formação de seu herói, o traumas e exclusões produzidas pelos códigos de caçador Allan Quatermain, na África do Sul da virilidade (MATOS, 2001, p.46). Atenção década de 1830. Na primeira parte, discute-se a especial tem sido atribuída às relações entre configuração do que se convencionou masculinidade e “culturas políticas”1, sobretudo considerar como uma crise da masculinidade nas na chamada Era dos Impérios do século XIX, últimas décadas do século, gestada a partir das período em que transformações urbanas nas reformulações nos lugares sociais ocupados por metrópoles e os encontros interculturais nas homens e mulheres. Em seguida, o conceito de colônias promoveram reformulações graduais e bildungsroman (romance de formação) orienta o significativas na valoração social das escrutínio histórico do texto literário em duas masculinidades. dimensões simbióticas: a) das relações entre a No que diz respeito ao imperialismo literatura e a representação do passado da britânico entre as décadas de 1870 e 1900, as história sul-africana, sobretudo as migrações de representações dos territórios coloniais sul- bôeres no Great Trek (1836-1838) enquanto africanos na cultura escrita e literária fornecem instância de formação da nação; b) da formação vértices de interpretação para as ansiedades em e exibição da virilidade de seu protagonista, em torno da manutenção das fronteiras geopolíticas particular a partir de traços de heroísmo militar e raciais do Império, devido aos constantes e proezas físicas, com ênfase na recusa de certo conflitos e rivalidades políticas transcorridas modelo familiar/doméstico de masculinidade. naquela região. Afinal, naquele contexto, literatos, viajantes e historiadores convergiam “A todos os meninos, pequenos e em um ímpeto comum: o escrutínio de origens grandes”: Allan Quatermain, Rider demarcatórias da colonização na África do Sul, Haggard e o romance de aventura bem como das relações interétnicas e resistências nativas frente a tais processos históricos. No O interesse renovado pelos historiadores

1 As “culturas políticas”, compreendidas em seu caráter plural, constituem “um fenômeno de múltiplos parâmetros, que não leva a uma explicação unívoca, mas permite adaptar-se à complexidade dos comportamentos humanos” em relação aos processos políticos que os sujeitos históricos estão envolvidos (BERNSTEIN, 1998, p.250). Além disso, “as representações do passado na historiografia, na literatura e no cinema, colocam-se, no nosso entender, no centro das problemáticas de criação consolidação, difusão e cristalização das culturas políticas. E a sua aquisição e interiorização, tal como consideramos, se inserem também, nas motivações do político” (DUTRA, 2002, p.27). 231 ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246

em torno da formulação de códigos de virilidade manifestam-se tanto em atos concretos quanto atende às necessidades por uma história das na imaginação literária do período, em especial relações de gênero e da produção de nos romances de aventura que fornecem aos subjetividades atenta à construção sócio- seus leitores nada menos que uma cartilha das histórica das masculinidades (TOSH, 1994, necessárias expressões das energias viris. Por pp.179-202). Para os pesquisadores que tratam isso, mais do que simples reflexos do real, a das classes médias vitorianas nas últimas décadas análise dos romances aventurescos produzidos do século XIX, a problematização destes temas neste período requer ênfase na “historicidade e torna-se encorajadora, pois tal contexto potência política dos produtos artísticos” envolveu a produção de centenas de tratados (KAMINSKI, 2013, p.65), para refletir a respeito médicos e discursos morais-religiosos dedicados das interlocuções entre ficção e realidade na à formação física e moral de certa relação entre masculinidade e culturas políticas “masculinidade hegemônica” (CONNEL, do colonialismo. 1995), expressão que referencia um ideal cultural Sob esta ótica, compete mobilizar uma de masculinidade, a partir do qual outras perspectiva teórico-metodológica que privilegie subjetividades mantêm relações complexas de a capacidade da narrativa literária em expressar cumplicidade, inflexão ou marginalização. A rastros de razões e sentimentos partilhados no emergência de ideais como o muscular Christian, passado e traduzidos em forma de texto. Estes que nas décadas de 1840 e 1850 cinge força física elementos convergem com o desafio de pensar e moral religiosa, demonstra a subjetivação de historicamente a potencialidade humana de sentimentos entre os homens das classes médias, expressar posicionamentos políticos por e possibilita “pensar a masculinidade como intermédio da ficção, a qual permite investigar o diversidade no bojo da historicidade de suas “modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, inter-relações, rastreando-a como múltipla, a si próprias, quais os valores que guiavam seus mutante e diferenciada no plano das passos, quais os preconceitos, medos e sonhos” configurações práticas, prescrições, (PESAVENTO, 2012, p.82). A preocupação representações e subjetivações” (MATOS, 2001, com a historicidade inerente à literatura remete a p.47). pensá-la “como substrato para o escrutínio de No que referencia as contribuições dos percepções, representações, figurações, por estudos de gênero para a historiografia do século meio das quais se buscam os movimentos de XIX, atenção redobrada tem sido concedida às instituição de imaginários e da própria situações de exibição da virilidade, suas temporalidade enquanto tal” (CAMILOTTI; modulações sociais e os traumas causados pelo NAXARA, 2009, p.39). Portanto, em um jogo esforço de muitos jovens do período em de vai-e-vem entre ficção e realidade, e no cotejo legitimar-se enquanto homens. Além disso, este de fontes e problemas, visa-se seguir a sintonia período é categorizado como um momento de refinada e as relações simbióticas entre textos e valorização máxima da virilidade, seja por meio contextos no que referencia a produção da crença em suas relações com as teorias raciais, intelectual de Rider Haggard. pelas sagas de exércitos coloniais ou Romance de estreia do personagem revolucionários, a criação dos esportes Allan Quatermain, King Solomon’s Mines, escrito e modernos, a institucionalização de duelos ou a publicado originalmente em 1885, igualmente multiplicação de espaços de sociabilidade assinala a popularidade de H. Rider Haggard exclusivamente masculina (CORBIN, 2013, p.7). enquanto autor de ficções aventurescas no Valores como a coragem, o heroísmo, o continente africano. A trama, ambientada na autossacrifício pela pátria ou pela glória, década de 1880, inicia em Durban (atualmente ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246 232

na África do Sul), quando o caçador Quatermain pragmática da masculinidade, a qual, para é requisitado por Sir Henry Curtis e por seu produzir cidadãos fortes capazes de defender os companheiro, o Capitão Good, para encontrar o limites do Império, situam a reflexão e a irmão do aristocrata, desaparecido em uma capacidade crítica em segundo plano. região desconhecida da África ao buscar por Nestas narrativas, a virilidade e os tesouros associados às lendas das fabulosas sentimentos de ódio racial tornam-se minas do Rei Salomão. Amparados pelo paradoxalmente capazes de trazer à tona o que misterioso mapa redigido por um explorador havia de mais primitivo e bárbaro em homens português do século XVI, Quatermain e seus anglo-saxônicos, relativizando sua condição companheiros partem para Kukuanaland, região racial a partir do que Quatermain categoriza supostamente localizada no extremo sudeste do como “um desejo selvagem de matar e de não Congo. Os aventureiros entram em confronto poupar ninguém” (HAGGARD, 1901, p.191). com a tribo dos Kukuana, governados por um Estas ambiguidades raciais, que aproximam e monarca usurpador, Twala, e pela vil feiticeira comensuram a racialidade e a virilidade de Gagool. Após uma série de incidentes e europeus e africanos em narrativas de aventura violentos conflitos, Quatermain e seus colonial, entrelaçam-se profundamente a duas companheiros destronam Twala, restituem o questões centrais para muitos homens ao fin-de- trono ao seu verdadeiro herdeiro, o bravo e siècle, dimensões interdependentes em que este gentil Ignosi, e encontram as minas de diamante, artigo concentra-se: a manutenção simbólica e garantia do sucesso financeiro da expedição. efetiva do Império Britânico e a revitalização de O heróico Allan Quatermain em King certo modelo de masculinidade vitoriana, Solomon’s Mines personifica as atitudes de Rider baseado em sistemas de representações, valores Haggard com relação às ações e ambiguidades sociais e códigos de normas amparados na encontradas por europeus nos territórios coragem heróica e na honra, no autodomínio coloniais, bem como a valorização de certa corporal e na exaltação da agressividade viril. virilidade amparada em proezas físicas, A publicação de Origins of the Species solidariedade masculina e ímpeto pela aventura. (1859), do naturalista Charles Darwin, promove, A despeito de garantir aos leitores que “sou, para entre muitos de seus intérpretes, uma ser honesto, um tanto quanto covarde, e justificação científica da superioridade racial certamente de nenhuma forma propenso a anglo-saxônica, bem como um poderoso álibi lutar”, o conflito contra as forças de Twala, no para o “cultivo do ódio” entre os vitorianos, isto clímax do romance, evocam em Quatermain a é, a crença na tendência natural ao conflito para paixão pelo combate: “pela primeira vez, senti garantir a sobrevivência dos mais fortes (GAY, meu peito estufado com ardor marcial. 1995, p.46). Entre as décadas de 1880 e 1890, Fragmentos de guerras lendárias, junto com seus leitores, preocupados com o que parecia ser numerosos versos sanguinários do Antigo um declínio no vigor físico e moral de muitos Testamento, germinavam em meu cérebro como homens e mulheres nos centros urbanos, cogumelos na escuridão” (HAGGARD, 1901, atentam-se ao que consideram como a p.190-191). Na escrita de Rider Haggard, a contrapartida da evolução humana, sua masculinidade não se associa necessariamente às degenerescência, parte integrante de diversos qualidades intelectuais, mas sim, e de modo discursos com pretensão científica e de acentuado, ao condicionamento físico e à interpretação social naquele período. Pelo agressividade vista como necessária para menos desde a metade do século, a ideia de um defender a honra e o Império Britânico. retorno ao animalesco e a condições primitivas é Evidenciam, portanto, uma dimensão sistematizada pela obra do alienista francês 233 ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246

Bénèdict-Augustin Morel nos seus estudos sobre estúpido da família” (HAGGARD, 1926, p.5), transtornos mentais e, a partir da década de termos profundamente entrelaçados às ideias de 1870, apropriada pela criminologia de vertente degenerescência da época, ao homem estóico e antropológica, de modo a produzir profusas revigorado. A escassez de recursos financeiros, especulações a respeito dos estigmas externos e sintomática do arrefecimento da aristocracia do comportamento de tipos degenerados. rural da qual sua família estava relacionada, levou Entre os ingleses do último quartel do Haggard a ter uma formação distinta de seus século, estas teorias de degenerescência e irmãos, todos educados em escolas públicas e criminalidade hereditária implicam em certa crise alguns com acesso ao ensino superior. Sua nos códigos de masculinidade hegemônica, trajetória sofre uma inflexão significativa em situação amplificada por uma série de exposés na 1875, quando, aos dezenove anos, é enviado ao imprensa, ao exemplo da descoberta de um território sul-africano para atuar na equipe prostíbulo masculino em Cleveland Street em administrativa de Henry Bulwer, recém-indicado 1889 ou os assassinatos cometidos pelo vice-governador da Colônia de Natal. A estripador de Whitechapel entre agosto e trajetória de Haggard na África do Sul, que posteriormente torna-se fonte para sua escrita novembro do ano anterior, os quais publicamente patologizam a sexualidade literária, é sugestiva dos contextos de experiência masculina, produzindo um imaginário de e atuação política dos sujeitos históricos, dos predadores sifilíticos e enlouquecidos. Doenças “lugares e momentos do mundo da vida previamente consideradas como características cotidiana dos atores, onde esses dão sentidos ao do organismo feminino são identificadas em que dizem e ao que fazem”, capazes de homens, ao exemplo da histeria e da neurastenia, promover “novas formas de compreensão, de situações ilustrativas dos espectros e máculas interpretação e de representação do mundo” que assombram a virilidade finissecular nos (CEFAÏ, 2001, p.19-20). centros urbanos. Disseminava-se uma crença de O envolvimento de Rider Haggard com que, sob a fina e frágil camada de civilidade, os a burocracia imperialista e a ascensão à elite efeitos físicos e morais das experiências branca colonial deixam marcas inegáveis em suas traumáticas da modernidade eram capazes de práticas letradas. Assinalam, por extensão, o trazer à tona o que havia de mais primitivo e envolvimento do jovem com um momento de perverso, ou ainda produzir indivíduos fracos e particular instabilidade política e territorial no anêmicos, especialmente nos centros urbanos. âmbito sul-africano, dividido entre as colônias Rider Haggard compartilha, como britânicas do Cabo e de Natal, as repúblicas muitos jovens da classe média vitoriana nas bôeres do Transvaal e do Estado Livre de décadas de 1870 e 1880, uma ansiedade Orange, e os protetorados africanos de parcial acentuada com relação à degenerescência racial e autonomia: Basutolândia (estabelecido em ao declínio social, palavras-chave para a 1868), Bechuanalândia (1885) e Suazilândia compreensão de diversos contextos culturais no (1893). Após atuar na administração de Bulwer, período (MCCLINTOCK, 2010, p.344). Em sua Haggard passa a integrar a equipe de Theophilus própria interpretação, Haggard era um sinal Shepstone, administrador de Questões Nativas evidente da decadência condicionada de Natal e responsável pela anexação do hereditariamente: sua autobiografia, The Days of Transvaal às possessões britânicas em 1877. Do My Life, escrita em 1912 e publicada período em que permanece no território sul- postumamente em 1926, é uma narrativa de africano, Haggard envolve-se diretamente com revitalização, do trajeto progressivo de uma dois conflitos interétnicos importantes: a guerra “criança estúpida” e “lunática”, o “menino Anglo-Zulu (1879) e a guerra Anglo-Bôer (1880- ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246 234

1881), que resulta na devolução do Transvaal aos das letras iniciada concomitantemente às bôeres pelo primeiro-ministro britânico William funções na administração colonial, pois foi Gladstone, ação que ressentia como “uma correspondente de periódicos como o The grande traição”, “cujo amargor o tempo não Gentleman’s Magazine. Nos anos seguintes, pode obliterar ou diminuir” (HAGGARD, 1926, consolida a carreira de literato com a publicação p.194). de uma série de romances aventurescos e É preciso lembrar que, nas décadas de sentimentais tramados no continente africano, 1870 e 1880, distintos projetos políticos de dentre os quais se destacam King Solomon’s Mines colonização embalavam a relação entre a (1885), She (1887), sobre uma rainha imortal no metrópole britânica e os territórios sul-africanos. interior da África, e Jess (1887), ambientada em Em 1874, com a eleição do governo conservador uma fazenda sul-africana durante a guerra entre de Benjamin Disraeli ao cargo de primeiro- bôeres e britânicos. A condição de membro ministro, a administração do Império atuante nas administrações coloniais na África demonstrou um ativo interesse nos assuntos do Sul e suas experiências de viagens pelo coloniais, o que resultou em tentativas interior do continente africano permitem-lhe reflexões circunstanciadas a respeito das práticas malogradas de estabelecimento de uma confederação que unisse os territórios no políticas em vigência, de modo que seus subcontinente, situação pouco desejada pelas romances são povoados por personagens elites locais, em especial no Cabo, que havia construídos a partir das diversas etnias que recentemente conquistado parcial autonomia. A conviviam no território sul-africano do fin-de- anexação militar do Transvaal, durante uma série siècle. de conflitos entre os bôeres e populações Em linhas gerais, sua produção literária africanas, evidencia o caráter obstinado dos encontra-se perpassada por todo um imaginário setores mais conservadores da política colonial de impérios perdidos e raças esquecidas, por em resposta ao desfecho das malfadadas conflitos portentosos e um desejo de negociações de unificação. Contudo, a eleição de compensação política, econômica ou sexual dos Gladstone ao cargo de premier britânico em 1880 personagens europeus na África, unindo traços conduziu a um idealismo liberal nas ações de certa sensibilidade romântica, racialismo imperiais, que atribuía à Colônia do Cabo a vulgarizado e ímpeto pela aventura. A trajetória responsabilidade financeira pela expansão de Allan Quatermain, narrada em uma série de territorial, sintomático de um protótipo de romances e contos publicados entre 1885 e 1927, “império a baixo custo” (WESSELING, 2008, exemplifica as concepções finisseculares em p.309). A “perda” do Transvaal, alvo do torno da própria ideia de aventura enquanto ressentimento de Haggard no final da guerra, sinônimo de autorrealização e controle do deve ser interpretada enquanto parte destes destino individual. Segundo Sylvain Venayre, direcionamentos conflitantes a respeito da entre o final do século XVIII e o início do questão sul-africana, complexificada pelo período vitoriano, a imagem do aventureiro nacionalismo bôer e pelos conflitos como o associa-se aos limites da legalidade, personagem reino Zulu no mesmo período. marginalizado e incapaz de romper com os Quando regressa à Inglaterra em 1881 e limites geográficos europeus. Contudo, ao fin-de- publica Cetiwayo and his white neighbors (1882), um siècle, particularmente após a Conferência de exercício de “história política” da “Questão Berlim (1884-1885), que oficializa a partilha da Nativa” (HAGGARD, 1882, p.xi) e das relações África, a ideia de aventura assume novas marcas interétnicas no território sul-africano, Haggard simbólicas em articulação às representações confere continuidade a uma inserção no mundo textuais e visuais de espaços geográficos 235 ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246

distantes, desconhecidos e selvagens, de nítidas tipos nórdicos, bem como a menção aos “seus implicações políticas ao visar conferir ancestrais Bersekir” (HAGGARD, 1901, p.193), legitimidade às práticas coloniais (VENAYRE, sugerem o modo como que, para Haggard, a 2011, pp.93-112). virilidade era vista como uma qualidade Ao expressarem uma atitude positiva e redentora e racialmente determinada, admiração em torno dos “mitos do articulando a um só tempo um modelo militar de individualismo moderno” (WATT, 1996), extraordinária bravura e o preceito evolucionista conectados pelo espírito de aventura e pela do direito de sobrevivência ao mais forte. A valorização da ação humana sobre o espaço brutalidade dos golpes e dos ataques de europeus ultramarino ou colonial, estes romances vistos como civilizados, evidencia uma amparam a construção do que poderíamos simultânea revisão dos códigos de virilidade e denominar de heroísmo colonial, fulcro de dos valores imperialistas, na medida em que identificação coletiva, modelo de conduta e ação características associadas às “raças inferiores”, viril, o que em King Solomon’s Mines, por exemplo, ao exemplo do atavismo, palavra chave nas pode ser vislumbrado a partir da descrição do teorias degeneracionistas ao pressupor o retorno de características primitivas, eram apropriadas confronto entre Sir Henry e o usurpador Twala: por estes homens nas colônias reimaginadas pela literatura. Assim, de modo intensamente Um grito de consternação rugiu dos Búfalos [exército formado por simbólico, Sir Henry “vestiu-se como um guerriros nativos] quando o grande guerreiro nativo”, em um “uniforme de guerra” machado de nosso herói caiu por terra; dos Kukuana o qual, além de contar com lâminas e Twala, novamente erguendo sua nativas, “somava-se a um revolver” e causava em arma, lançou-se contra ele num brado. Quatermain a impressão de ser “sem dúvidas, Cerrei os olhos. Quando os abri uma vestimenta selvagem” (HAGGARD, 1901, novamente, foi para ver o escudo de Sir Henry caído sobre o chão, e o próprio p.170). Sir Henry com os grandes braços Como se vê, estas ficções literárias enroscados contra o peito de Twala. tramadas nos territórios desconhecidos do que Para frente e para trás eles balançavam, agarrados um contra o outro feito se convencionou chamar, naquele período, de ursos, esforçando-se com todos os seus “continente negro”, estavam carregadas de poderosos músculos pelo amor à vida e cenários de revitalização viril em resposta às por mais amor à honra. (...) Era um crises de masculinidade ao fin-de-siècle, mas confronto formidável e uma coisa simultaneamente desestabilizam as linhas impressionante de se ver (HAGGARD, divisórias entre distintos grupos étnico-raciais 1901, pp.200-201). em favor de suas qualidades redentoras. Estes romances eram construídos a partir das Nestas e noutras narrativas de virilidade experiências concretas e da imaginação literária ambientadas nas colônias africanas, elementos de romancistas e de muitos dos seus leitores de masculinidade e heroísmo entrelaçam-se a contemporâneos, enfatizando os encontros qualidades raciais, em um esforço de legitimação culturais e as violências interétnicas decorrentes da superioridade física e moral dos tipos anglo- de um processo macropolítico: o imperialismo saxônicos. A visão de Sir Henry revela a britânico no final do século XIX. Por isso, o Quatermain o vislumbrar do “grande posicionamento teórico-metodológico que dinamarquês, pois ele não era mais do que isso, observa a literatura enquanto objeto cultural e suas mãos, seu machado e sua armadura fonte de conhecimento histórico a respeito do enrubescidas pelo sangue, e ninguém poderia tempo pretérito, admite que a “obra literária sobreviver ao seu ataque”. As referências aos ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246 236

encerra, em si mesma, uma função simbólica de “Um cavalheiro inglês, como ele deve comunicação, quase sempre em analogia com a ser”: representações do passado e realidade histórica” (GRAWUNDER, 1996, códigos de masculinidade em Marie p.27). O escrutínio destas narrativas como formas de interpretação e metáfora das políticas Ambientado no território sul-africano coloniais demanda ainda atenção ao fato de que, em meados da década de 1830, Marie narra a nos textos literários, “se cruzam forças sociais juventude de Allan Quatermain, suas relações vivas e cada elemento de sua forma está com os bôeres e os Zulus no interior do impregnado de valorizações sociais” subcontinente, bem como o destino trágico de (GRAWUNDER, 1996, p.114), sintomáticos sua primeira esposa, a jovem Marie Marais. Marie dos sentimentos e das sensibilidades de um insere-se simultaneamente em dois conjuntos da autor, de seu lugar social e circunstâncias produção literária de Rider Haggard: em históricas, catalisados em narrativa textual. primeiro lugar, pertence a uma série de romances ambientados na África do Sul e construídos a As transformações nos lugares sociais partir de relações interétnicas, frequentemente ocupados por homens e mulheres ao fin-de-siècle, conflituosas, entre ingleses, bôeres e africanos, em particular pela emergência dos movimentos cingindo elementos de aventura e sensibilidade que defendiam a emancipação sexual de romântica, em especial no que concerne as mulheres, sua inserção em carreiras profissionais descrições das paisagens naturais da região. Em e ao ensino superior, bem como o direito ao segundo lugar, inaugura uma trilogia de sufrágio, contribuía para criar certo sentimento romances dedicados a eventos históricos na de instabilidade na configuração das relações de África do Sul, e que ainda incluem Child of the gênero. Aos setores mais conservadores, a Storm (1913), o qual descreve o envolvimento de defesa por novos direitos políticos pelas Quatermain com os conflitos entre o monarca mulheres e seu deslocamento gradual da esfera Zulu Cetshwayo e seu irmão Mbuyazi na batalha doméstica para a esfera pública levaram a um de Ndondakusuka, entre 1854 e 1856, e encerra- ardente entusiasmo pelo Império, interpretado se com (1917), dedicado à participação enquanto uma possibilidade de fortalecimento do personagem na guerra Anglo-Zulu de 1879 e, da virilidade. Nesta perspectiva, as colônias, em específico, na batalha de Isandlwana, que distantes das rígidas convenções sociais e das marcou uma derrota britânica em combate restrições morais ou religiosas, tornavam-se contra os Zulus. espaços de ação e aventura, nos quais homens comuns assumiam o manto de conquistadores e Na imaginação literária de Rider Haggard aventureiros (CADY, 2011, p.5-6). Os romances os destinos individuais de seus protagonistas de aventura e a literatura infantil produzida neste confundem-se com os rumos da formação da período, para além de saciar os anseios de muitos nação sul-africana, sobretudo em seu passado leitores comuns pelo gosto do perigo, atuam recente, o que enfatiza a força da literatura no como referenciais para condutas e ações de que se refere às “diversas formas de relação com meninos e homens, os quais, comprometidos o passado que o tornam contemporâneo do com o Império e suas vicissitudes, tornariam-se presente” (CHARTIER, 2011, p.95). Em maior capazes de romper com os limites territoriais. ou menor medida, Haggard fornece aos leitores Desta forma, reveste-se com relevância o fato de impressões literárias de personagens comuns Rider Haggard dedicar as aventuras de sobrepostos a um plano de fundo histórico, Quatermain, em King Solomon’s Mines, “a todos os convertidos em heróis ou heroínas por atos de meninos, grandes e pequenos” (HAGGARD, bravura ou abnegação. E, com certa frequência, 1901, s.p.). constitui destinos ficcionais alternativos às narrativas historiográficas da África do Sul 237 ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246

produzidas por historiadores coloniais, ao rankeana, envolta em uma áurea de exemplo de George McCall Theal e seus imparcialidade e objetividade, enfatiza o caráter volumosos compêndios de documentos arquivístico-documental e a seletividade das históricos, ou nacionalistas afrikaners como o fontes, o que implica na exclusão de livros clérigo Stephanus Jacobus du Toit e suas categorizados como “poesia, ficção e ciências epopeias de martírio bôer e opressão britânica especiais” (THEAL, 1888, p.viii). No que diz durante o Great Trek2. A “grande jornada” de respeito ao deslocamento dos bôeres, opta pela 1836 foi caracterizada pela dispersão geográfica multicausalidade, explicando a insatisfação dos e deslocamento migratório de bôeres, migrantes com a ineficácia das instituições descendentes de holandeses, franceses e imperiais britânicas em oferecer amparo aos alemães, da colônia do Cabo para o interior do colonos e, de modo mais específico, acusando os subcontinente sul-africano, em decorrência de missionários da London Society na Colônia do diversos fatores relacionados à crescente esfera Cabo de “advogar esquemas diretamente hostis de influência política britânica na região. Nas ao progresso da civilização e à permanência da últimas décadas do século XIX, com a ordem” (THEAL, 1888, p.62). emergência do nacionalismo afrikaner, o Great Ao narrar o Great Trek enquanto Trek passa a ser visto como elemento nacional e instância fundacional das colônias sul-africanas e mito de origem da nação sul-africana, parte dos repúblicas bôeres, McCall Theal resgata esforços de muitos intelectuais em conferir integralmente a carta-declaração do líder bôer sentidos explicativos à contemporaneidade, Piet Retief (1780-1838), na qual consta uma lista sobretudo em referência às relações interétnicas de dez motivos e resoluções associadas ao conflituosas e a legitimidade da ocupação deslocamento dos colonos rumo ao Transvaal. A territorial. incorporação do documento histórico atua A “grande jornada” da década de 1830 enquanto demonstração da erudição arquivística ocupa espaço significativo na produção histórica do historiador colonial, e de modo simultâneo, e literária do final do século, e integra os esforços evidencia os investimentos na articulação de de muitos intelectuais em estabelecer elementos uma memória coletiva do passado sul-africano de distinção e origens demarcatórias da que prioriza o protagonismo de bôeres e ingleses ocupação territorial sul-africana. O ímpeto pela a partir de “uma força coesiva, legitimadora e constituição de um campo da escrita do passado, intelectual na evolução de uma mitologia da capaz de fornecer sentidos que explicassem a nacionalidade colonial branca” (SCHREUDER, estratificação social e étnico-racial das colônias e 1986, p.96). Em obras posteriores, repúblicas sul-africanas, fica nítido na atuação do particularmente em sua coletânea History of South historiador colonial George McCall Theal, o Africa, publicado entre as décadas de 1880 e qual, além de produzir inúmeros volumes 1910, o ponto de partida fundamenta-se na dedicados à história sul-africana, compila vasta migração de etnias africanas na região, documentação referente aos processos de particularmente os grupos San e Khoikhoi, bem deslocamento territorial. Em History of the como o impacto causado pelas levas migratórias emigrant Boers in South Africa, publicado em 1888, de Bantos, em especial, os Nguni e os Sotho, o modus operandi do historiador, ao elencar um portanto, a vasta produção intelectual do misto de ímpeto cientificista e inspiração historiador sul-africano não exclui elementos

2 Estas narrativas de caráter histórico ou historiográfico, sugestivas das múltiplas e contraditórias interpretações do passado e do território sul-africano produzidas entre as décadas de 1870 e 1890, estão sendo mapeados pela pesquisa de doutoramento do autor e apontam ao modo como diversos setores sociais e políticos, na colônia e na metrópole, passam a compreender as relações interétnicas e a ocupação do território em um âmbito temporal. ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246 238

singulares de distinção, passíveis de análises é acusado injustamente de ter traído os bôeres e posteriores mais detalhadas. secretamente condenado à morte; para salvar a Alinhavado à valorização do passado sul- vida dele, Marie o entorpece com sonífero, africano enquanto instância fundacional e esconde-o em meio a arbustos e, vestindo narrativa constituinte de sua roupas masculinas, é confundida e assassinada contemporaneidade, Rider Haggard produz por Hernan. Henri, enlouquecido ao descobrir a diversos romances ambientados no Great Trek, morte de sua amada filha, fere mortalmente ao exemplo de Swallow (1899), cuja trama detalha Pereira, o qual é por fim morto por Quatermain as aventuras de uma jovem bôer e uma após este despertar. sacerdotisa africana, The Ghost Kings (1907), A narrativa de Marie, ao abordar as romance que elenca elementos sobrenaturais e trajetórias dos descendentes de holandeses e protagonismo colonial feminino no contexto da franceses huguenotes rumo ao Transvaal, “grande jornada”, e Marie, foco de possibilita refletir a respeito da “construção do problematização deste artigo. Dedicado ao seu passado pelas obras literárias” (CHARTIER, antigo empregador na África do Sul, Sir Henry 2011, p.95). Estas peculiaridades, que revestem a Bulwer, o qual Haggard considera como modelo trama de Rider Haggard com elementos de um de um “cavalheiro inglês, como ele deve ser” romance histórico do passado da colonização (HAGGARD, 1912, p.vi) – portanto, em uma sul-africana, podem ser vislumbrados a partir da gramática que cingia política colonial e utilização de personagens históricos (Dingaan, masculinidade – Marie é originalmente Piet Retief), bem como da representação literária serializado na revista Cassell’s, entre setembro de de eventos (o Great Trek, o massacre de Retief e 1911 e fevereiro de 1912, dois após a formação seus emissários), e inscrevem o período com as da União Sul-Africana que oficializou sua marcas da violência interétnica: “deste período unificação territorial e política. manchado de sangue, eu tentei relatar”, afirma Narrado por Allan Quatermain em sua Haggard na dedicatória, “do Great Trek e de suas velhice, Marie concentra-se nos destinos trágicos tragédias, como o massacre do sincero Retief e de um grupo de voortrekkers aniquilados pelos seus companheiros nas mãos do rei Zulu, Zulus após alcançarem a região de Natal Dingaan” (HAGGARD, 1912, p.vi). O caráter (atualmente KwaZulu-Natal). Parte significativa verossímil é reforçado, por exemplo, pela da narrativa envolve os esforços do jovem utilização de recursos narrativos, tais como um Quatermain em salvar sua noiva, a bôer Marie Prefácio, que assinala a expectativa de que os Marais, e seus compatriotas da ameaça leitores encontrassem “interesse histórico” nos representada pelo expansionismo Zulu entre relatos, e pela incorporação de uma “Nota do 1834 e 1836. Allan ainda enfrenta a rivalidade do Editor”, detalhando como o manuscrito de português Hernan Pereira, homem ganancioso Marie havia sido descoberto entre os papeis que almeja possuir Marie, e a desconfiança e deixados pelo então recém-falecido Allan oposição do pai da jovem, o bôer huguenote Quatermain. Henri Marais. Após Marie e seus familiares A representação do tempo pretérito pela migrarem para o interior sul-africano, Allan narrativa literária, tal qual ilustrado por Marie, ingressa no exército colonial e, ao receber uma possui uma relação simbiótica com o que carta de sua amada, na qual relata o caráter Stephen Greenblatt denomina de “energia malfadado dos trekkers, parte ao resgate da social” (GREENBLATT, 1998), expressão que jovem. No clímax, uma delegação de bôeres, referencia a capacidade da literatura em captar liderados por Piet Retief, é traída e executada elementos da linguagem, de ritos e práticas que pelo monarca dos Zulus, Dingaan. Quatermain circulam no mundo social, ao qual retornam por 239 ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246

meio das apropriações de seus leitores. O expansionismo Zulu na primeira metade do movimento de circulação e negociação entre século, bem como das suas implicações na mundo social e obra literária permite “apoderar- formação de rivalidades com os bôeres. Em sua se de qualquer realidade”, dentre as quais, as jornada rumo ao acampamento dos voortrekkers, “representações do passado”, o que ocorre, por Allan e seu lacaio, um “hotentote”3 chamado vezes, por meio de inflexões e transfigurações Hans, alcançam “um grande kraal chamado dos acontecimentos relatados em outras Fokoti, no rio Umkusi [Mkuze], o qual parecia narrativas mais estritamente historiográficas, estar quase deserto”, exceto pela presença de propondo aos seus leitores “arquétipos, mais do uma mulher idosa, a qual, ao ser indagada a que circunstâncias” (CHARTIER, 2011, p.95- respeito do estado do vilarejo, afirma que “todos 101). Tropos retóricos de martírio e sofrimento haviam fugido para as fronteiras da Suazilândia, demarcam o modo como Rider Haggard, por temendo um ataque dos Zulus, cujos territórios meio de seu narrador, detalha a saga dos começavam para além deste rio”. A despeito da voortrekkers, em um misto de simpatia e empatia ausência de conflitos entre os Tongas e os Zulus, com os destinos trágicos de seus articulistas: a mera presença de “um impi, um regimento nas margens do rio” motivou-os a “ficar longe destas Das trinta e cinco almas originais, sem lanças terríveis” (HAGGARD, 1912, p.61), e contar os nativos, que haviam portanto deslocando-se territorialmente. acompanhado Henri Marais em sua malfadada expedição, sobravam agora Direta ou indiretamente, Haggard apenas nove sobreviventes na nova enfatiza uma questão retomada apenas Maraisfontein (...). O resto, com recentemente pela produção historiográfica: o exceção de Hernan Pereira, morrera de fato de que o período da “grande jornada” dos febre ou de fome, pois quando a febre bôeres coincide com o contexto da mfecane diminuiu com a mudança de estações, a fome estabeleceu-se (...). E então, (“esmagamento”) ou difaqane/lifaqane quanto a biltong, ou carne seca, havia (“martelada”/”migração forçada”) entre 1815 e sido consumida, eles foram movidos a 1838, termos utilizados para descrever “o qualquer oportunidade conhecida aos período de intensas mudanças entre os africanos, famintos, como cavar raízes, ferver a especialmente os Zulus, numa região central do grama, galhos e folhas, capturar território sul-africano que corresponde a partes lagartos e assim por diante. Acredito que estavam efetivamente alimentando- de Natal e do Transvaal” (GOMES, 2015, se de lagartas e minhocas p.211). Estas mudanças são ocasionadas por (HAGGARD, 1912, p.128-129). uma reordenação territorial e pelo surgimento de novas chefias, ao exemplo dos Matabele e dos A despeito de certa unilateralidade na Sotho, que rebelam contra as estratégias construção de seus personagens – Henri Marais, militares e expansionistas dos Zulus. Os por exemplo, é motivado desde o início da trama conflitos gerados pela expansão Zulu teriam por “preconceitos de raça” (HAGGARD, 1912, promovido um vazio demográfico expressivo, p.61) – Haggard complexifica os fatores circunstância que facilita o deslocamento dos históricos relacionados à “grande jornada”, ao colonos bôeres que abandonam a crescente fornecer ênfase à presença nativa nas regiões esfera de influência política britânica na Colônia almejadas pelos bôeres. Com efeito, Marie pode do Cabo. Por extensão, uma série de conflitos ser interpretada como uma narrativa do nas fronteiras orientais da Colônia do Cabo,

3 O termo “hotentote”, utilizado no período para descrever as etnias khoisan, isto é, populações autóctones que não tiveram sua origem associada à Colônia do Cabo, possui hoje reconhecido caráter pejorativo. Utilizo aqui o termo apenas para referenciar a expressão como é utilizada por Rider Haggard no romance Marie. ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246 240

entre britânicos e os exércitos Xhosa, ocasiona posteridade. Não obstante, se o romance sugere perdas materiais e a morte de fazendeiros bôeres, um esforço por parte de Rider Haggard em situações que agravam as hostilidades entre os narrar a formação problemática da nação sul- colonos na região e impulsionam a migração na africana, a trama também deve ser interpretada metade da década de 1830. como uma minuciosa análise da formação do Aqui e em outros de seus romances próprio Allan Quatermain, de sua passagem da ambientados no Great Trek, Haggard parece juventude à vida adulta a partir de códigos de alinhavar-se com a interpretação zulucêntrica da virilidade amparados na defesa da honra e na mfecane, proposta e difundida inicialmente pelo coragem. Neste sentido, convém destaque à historiador George McCall Theal. Enquanto ideia de bildungsroman, expressão oriunda da discursos precedentes a respeito do primeiro crítica literária e que referencia a dimensão quartel do século enfatizavam os efeitos do formal de narrativas dedicadas à formação deslocamento étnico em regiões específicas e cultural e intelectual de seus protagonistas, com com ênfase na multiplicidade étnica envolvida, ênfase no desenvolvimento de traços morais e McCall Theal propôs uma narrativa psicológicos. Em resposta às tensões finisseculares entre triunfos da virilidade e crises geograficamente coesa, que culpabilizava os zulus, uma força política inegável no final da da masculinidade, Rider Haggard remete década de 1870 e ameaça aos projetos estrategicamente a formação de seu herói a um expansionistas, como responsáveis pelo período violento da história sul-africana, capaz genocídio e dispersão étnica que teria de inculcar em Quatermain as qualidades viris ocasionado um esvaziamento territorial, necessárias para sua legitimação enquanto posteriormente ocupado pelos bôeres. Por este homem adulto. motivo, a intencionalidade de McCall Theal Na imaginação literária de Haggard, o visava legitimar a dispersão dos colonos bôeres modelo de virilidade de Allan Quatermain possui na década de 1830 enquanto uma saga em busca um desdobramento inicial, relacionado ao pela liberdade, para longe da presença britânica, recrutamento nas forças militares coloniais, o cujo imperialismo era por ele caracterizado qual fornece garantia de seu fortalecimento como violento e conflituoso (RICHNER, 2005). físico e demonstrações de atos de coragem. O Do historiador colonial, Haggard conserva a reconhecimento da “defesa de Maraisfontein” e centralidade do expansionismo zulu enquanto suas “proezas com o tiro”, no ataque Zulu à elemento motriz dos processos de violência e fazenda de Henri Marais, fizeram com que “as conflito na década de 1830, mas, de modo autoridades me comandassem a servir nas distinto a George McCall Theal, não elabora contínuas guerras Kaffir nas fronteiras e necessariamente uma crítica à força imperial instantaneamente me concederam uma britânica na região, pois a observa como força comissão enquanto uma espécie de tenente em propulsora do processo civilizatório sul- um esquadrão nas fronteiras” (HAGGARD, africano. 1912, p.101). Sua trajetória na defesa do Cabo é Desta forma, pode-se considerar que brevemente mencionada, mas com ênfase em Marie fornece elementos caros à relação entre a um percurso de conquistas físicas, seja por meio literatura e as representações do passado, pois de medalhas ou pelo acúmulo de cicatrizes, afinal integra um campo de narrativas que visam “uma vez fui ferido levemente, e duas vezes fornecer leituras do pretérito recente no afã de escapei quase sem vida. Certa vez fui justificar a contemporaneidade e salvaguardar repreendido por assumir um risco tolo e perder determinadas interpretações da memória alguns homens. Duas vezes fui condecorado coletiva e da história sul-africana para a pelo que chamam de ações galantes” 241 ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246

(HAGGARD, 1912, p.101-102), tais como físico e moral de seus apologistas (KREBS, salvar os companheiros das lanças inimigas ou 1999). executar chefes rivais. Seu esquadrão é enfim No que concerne à formação de meninos dissolvido, e Allan “retorna ao lar, não mais um e adolescentes no último quartel do século XIX, rapaz, mas um homem, com ampla experiência e merece atenção a emergência do escotismo, conhecimento singular dos Kaffirs, sua fundado por Robert Baden-Powell em 1910, linguagem, história, modos de pensamento e militar britânico envolvido na guerra sul- ação”. O contato com os oficiais do exército africana, sob inspiração nas ações do oficial permitem-lhe aprender “as idéias e os hábitos de norte-americano Frederick Russel Burnham. Em um cavalheiro inglês” (HAGGARD, 1912, suas memórias narradas, Haggard estabelece um p.102), indicativo da intersubjetividade e das paralelo indubitável entre Burnham e seu herói dimensões homossociais na construção da Quatermain, ao afirmar que de suas “aventuras virilidade. extraordinárias”, ele havia “conquistado maior Da parte de Haggard, a imagem de uma experiência de fato do que o próprio Allan masculinidade militar, enquanto postulado para Quatermain na ficção” (HAGGARD, 1926, a revitalização do Império Britânico, transparece p.122). Desta forma, contrapondo o em outros dos seus romances de aventura personagem histórico ao herói literário, Haggard publicados naquele período, ao exemplo de sugeria uma linha tênue entre ficção e realidade, Queen Sheba’s Ring (1910). Por intermédio de uma e reitera certo efeito de realidade construído “a tribo africana, os Abati, afetados pela partir da referência a elementos que estão fora “decadência devido ao casamento do próprio texto” (KAMINSKI, 2013, p.69). consanguíneo”, vivendo em uma “terra fértil e Assim como os romances de aventura voltados cercada de montanhas”, cujo pacificismo os para “todos os meninos, pequenos e grandes”, o tornava em um “bando de cães enfraquecidos” escotismo visava traduzir aos jovens valores (HAGGARD, 1910, p.9; p.107), o literato baseados na solidariedade masculina, estabelece uma alegoria ao que observa como a treinamento físico e excelência moral. complacência britânica e a ausência de Em Marie, Haggard acentua a necessária características viris em seus compatriotas. Seu instrução militar em seu personagem Allan amigo e correspondente, o “poeta do Império” Quatermain e reforça sua recusa a uma carreira Rudyard Kipling, corroborava esta religiosa, tal qual seu pai, um missionário inglês interpretação, pois em missiva enviada a na Colônia do Cabo. Para o narrador, “a Igreja Haggard no período posterior à publicação de enquanto uma carreira não me atraía”, talvez Queen Sheba’s Ring destacava “aquilo que você diz “porque eu sabia que enquanto um clérigo, não a respeito do Império e a possibilidade de usar o teria oportunidade de viajar ao norte quando me cenário de seu Queen Sheba’s Ring” (KIPLING; convocassem” (HAGGARD, 1912, p. 100). COHEN, 1965). A necessidade pela Observando retrospectivamente suas escolhas revitalização viril e racial de anglo-saxônicos de juventude, afirma sua satisfação com a opção recebe destaque após diversas derrotas ao longo por tornar-se um caçador, pois “aquilo me era da guerra sul-africana, travada entre soldados adequado; aquele era o buraco insignificante nos ingleses e colonos bôeres entre 1889 e 1902, a assuntos do mundo que eu era destinado a qual mobiliza ampla produção cultural e ocupar”, cujos “únicos dons eram a arte do tiro interpretações múltiplas, contraditórias e e a observação, misturada com um pouco de paradoxais destes processos históricos, filosofia rudimentar” (HAGGARD, 1912, assinaladas por uma constante preocupação com p.101). A escolha consciente por uma carreira os rumos do Império e com o condicionamento militar, e posteriormente pela caça em safáris, o ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246 242

big-game hunting, reforça ideais classistas de geopolítico, já que a escassez de caça nas regiões masculinidade cultivados por muitos homens litorâneas força os viajantes e aventureiros ao dos estratos médios da sociedade no fin-de-siècle, interior do continente, expandindo assim as baseados em contextos homossociais do fronteiras de interesses coloniais. O fato de exército, do esporte ou dos clubes de Quatermain aceitar a proposta dúbia de Dingaan cavalheiros, em detrimento da figura patriarcal aponta ainda a outro elemento recorrente nas enfatizada nas primeiras décadas do século, cuja atividades esportivas e nas caças realizadas por autoridade adquiria legitimação moral ou homens brancos no interior africano, isto é, a religiosa (TOSH, 1999, p.147). percepção de que a expansão das regiões A iconografia textual e imagética de almejadas pelas políticas colonialistas, sobretudo caçadas nas savanas africanas agrega pela British South Africa Company, companhia de expressividade no que diz respeito às figurações colonização fundada pelo magnata da mineração de virilidade em situações coloniais e, em Marie, Cecil Rhodes em 1889, não ocorre de modo auxilia a construir uma áurea de bravura e uniforme, mas sim a partir de negociações, heroísmo em torno de Allan Quatermain. Em comprometimentos e instâncias de coerção ou cooperação com as populações e elites locais. pelo menos duas situações, as habilidades de Quatermain com o tiro ao alvo são requisitadas Além disso, certos saberes a respeito da flora e como sintomático de sua intrepidez: a primeira da fauna fornecidos por informantes africanos delas, concernente a uma disputa com Hernan eram apropriados, incorporados ou descartados Pereira na primeira parte do romance, traduz pelos europeus (CORREA, 2015), situação para o contexto sul-africano os princípios dos metaforizada em Marie pelos encontros entre duelos, a rivalidade entre homens e um indício Allan e os personagens nativos, tais como seu prematuro do caráter insidioso do português. lacaio Hans, a idosa no vilarejo Tonga e a zulu Isto porque, para alcançar o objetivo de acertar Naya, que durante seu aprisionamento informa uma quantidade maior de aves do que seu rival Quatermain a respeito de uma “variedade de inglês, Pereira utiliza de munição adulterada. A assuntos”, entre os quais “a história dos Zulus e de tribos semelhantes, ou a personalidade de segunda situação, de aspecto mais decisivo à 4 sobrevivência dos bôeres, referencia o Chaka , o grande rei” (HAGGARD, 1912, p.294). Adicionalmente, a dependência com aprisionamento pelo Zulu Dingaan, e o pacto firmado com Quatermain, a quem promete a relação ao conhecimento de nativos africanos liberdade dos vootrekkers mediante demonstração complexifica e desestabiliza um dos de seus “poderes mágicos” (HAGGARD, 1912, componentes críticos da masculinidade p.204) com armas de fogo. Estas situações não idealizada e incorporada no imaginário destes estavam apartadas de muitas narrativas de vitorianos: a ideia de que o continente africano viajantes e exploradores no continente africano possibilita o corolário máximo da liberdade de a partir da década de 1880, ao exemplo de ação destes aventureiros, questão central na revitalização da virilidade imaginada pelos Richard Francis Burton e Henry Morton Stanley, os quais intensificam um interesse de europeus romances de aventura (THOMPSELL, 2015, por safáris ao conectarem descrições de perigo, pp.42-72). exotismo e proeza viril com as armas. A construção da masculinidade de Allan Estas narrativas desempenham um papel Quatermain em Marie ainda ocorre de modo relacional, isto é, em articulação ou oposição a

4 Chaka [sic], Shaka Zulu, Tshaka, ou ainda Shaka kaSenzangakhona (1787-1828), foi um dos principais monarcas Zulus no início do século, responsável pelo movimento de expansão e militarização do reino no território entre os rios Tugela e Pongola. Foi assassinado por seu meio-irmão, Dingaan 243 ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246

outros personagens da trama, especialmente ou mesmo maternal, nos seus aspectos Hernan Pereira, que fornece um anti-modelo de exteriores e visíveis” (HAGGARD, 1912, p.16). virilidade e hibridismo racial, por se tratar de um A despeito das restrições concernentes à atuação vilão híbrido de bôer e português, além de uma de Marie no romance, Haggard reafirma a metáfora ao que Haggard observa como a autoridade da personagem sobre os próprios falência dos projetos políticos coloniais sentimentos, ao exemplo do episódio em que a portugueses na região da Baía de Maputo, que jovem confronta seu pai quanto à possibilidade descrevera em 1882 como estando “inteiramente de um casamento arranjado: “como uma mulher nas mãos dos nativos” (HAGGARD, 1882, que tem poder sobre si mesma, eu lhe nego este p.94). Finalmente, sua masculinidade se legitima direito; e por mais que me doa, meu pai, negar- a partir da relação entre Allan e Marie, lhe qualquer coisa, prefiro antes morrer!” categorizada na trama como “um tipo muito (HAGGARD, 1912, p.85). Seu destino, ao incomum de mulher” (HAGGARD, 1912, p.50), desfecho do romance, simultaneamente em especial após tornarem-se noivos, o que confirma sua capacidade de ação e intervenção, possibilita pensar em alguns dos elementos ao salvar Quatermain da morte e legitima seu principais na confirmação das características papel simbólico de esposa dedicada, viris de homens adultos no final do século, isto ambiguamente entrelaçado pela impossibilidade é, o abandono da solteirice, carregada de de sobrevivência. ambiguidades nas narrativas culturais do Se as colônias são interpretadas por período, e a expectativa de edificar um lar – Rider Haggard como espaços de revitalização microcosmo da nação e do Império – sustentado masculina e possibilidade de amor, a resolução pelas atividades produtivas do marido (TOSH, final sugere a incompatibilidade destes valores, e 1994, p.185). Além disso, as entrelinhas desta a impossibilidade da vida doméstica ou no literatura aventuresca, imersas na “articulação e âmbito familiar para Allan Quatermain. A morte conceptualização da realidade ficcional e de Marie, a aniquilação dos núcleos familiares histórica” (GRAWUNDER, 1996, p.118), bôeres e a destruição de Maraisfontein, lar de permitem vislumbrar uma dimensão sensível de Henri e de sua filha, no início do romance, são difícil acesso nos discursos masculinos: o sugestivos das novas configurações subjetivas de sofrimento por amor enquanto parte integrante gênero após a década de 1880, momento em que das figurações de virilidade. a domesticidade passa a ser associada por muitos Ao narrar as possibilidades de ação homens a rotinas tediosas e restrições femininas. feminina nas colônias, Rider Haggard promove No fin-de-siècle, o nível ascendente de homens adaptações dos cultos da feminilidade solteiros e de afiliações a clubes de exclusividade oitocentista, ideário de gênero que valorizava a masculina, bem como o anseio por mulher a partir de qualidades como a sublimação possibilidades de aventura, seja pela prática de da sexualidade, o cultivo da castidade e da esportes, nos exércitos coloniais ou no consumo abnegação, além de sentimentos gentis e dóceis, de literatura, evidenciam a recusa do espectro da elementos integrantes do imaginário do “anjo do domesticidade pressentida por Allan no início de lar”. Esta visão do feminino reforçava as sua jornada: “e então, deixamos o nosso amor diferenças naturais entre homens e mulheres, para voltar as atenções à guerra” (HAGGARD, delegando a estas o gerenciamento da esfera 1912, p.27). A aventura, na perspectiva de privada, por meio do papel de esposa virtuosa e Haggard e de muitos imperialistas, estava em mãe dedicada. Desta forma, Allan Quatermain outro lugar. narra seus sentimentos por Marie como um A análise da obra literária, com atenção misto de “afeição muito discreta, quase fraternal, especial para as relações simbióticas entre textos ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246 244

e contextos no processo de interpretação das Por intermédio de seu romance Marie, práticas políticas coloniais, possibilita Rider Haggard possibilita uma interpretação em argumentar que, em Marie, Rider Haggard pelo menos duas frentes inter-relacionadas: em fornece uma visão do passado sul-africano primeiro plano, o letrado visa narrar a formação fortemente demarcada por expressões de da nação sul-africana, com ênfase no Great Trek masculinidade e aventura, mas também de de 1836-1838, denunciando as violências martírio e sofrimento. Em resposta às crises de interétnicas e os preconceitos raciais, virilidade, sentidas e ressentidas por muitos dos particularmente entre bôeres e ingleses, ao seus contemporâneos, o literato imagina um exemplo da relação de desconfiança de Henri cenário de revitalização masculina e recusa à Marais com o jovem Allan; em segundo plano, a esfera doméstica, estrategicamente ambientado trama atua enquanto bildungsroman, dimensão em um período particularmente violento da formal e estilística que detalha a formação de história sul-africana. Desta forma, esta óptica de Quatermain a partir de elementos capazes de análise e problematização possibilita reforçar a reforçar certo ideário de masculinidade e potencialidade da literatura enquanto fonte de heroísmo colonial, simultaneamente admitindo a conhecimento histórico sobre as certezas e incompatibilidade com valores de incertezas que permeiam a experiência humana domesticidade. Desta forma, seu romance atua no tempo pretérito, de seus sonhos imaginários enquanto resposta às crises de virilidade, e ambições políticas, sobretudo nos derradeiros imaginando a formação de homens fortes e anos da Era dos Impérios do século XIX. bravos no ardor das difíceis condições nas fronteiras do território sul-africano no passado Considerações finais da “grande jornada”, além de evocar situações de heroísmo colonial enquanto corolário das ações Nas últimas décadas do século XIX, os de Allan. discursos de apologistas do racialismo reiteram a existência de níveis hierárquicos entre as Naquele contexto, a literatura de chamadas “raças inferiores” e os europeus aventura e entretenimento, voltada às massas de anglo-saxônicos, assertivas acompanhadas de leitores, desempenha evidente papel político, metáforas de conquista, dominação e destruição, pois se obstina a demonstrar, ao lado de capazes de ilustrar o leitmotiv de “sobrevivência narrativas de missionários, viajantes e do mais forte”, princípio advogado por muitos antropólogos, o que considerava como os traços naturalistas naquele contexto. No campo da naturais de crueldade e ignorância dos povos a produção histórica de subjetividades de gênero, serem conquistados. Na literatura aventuresca estes ideais são mobilizados para legitimar a do período, o imaginário das colônias enquanto formação de uma virilidade militante e agressiva, territórios de absoluta liberdade e ausência de no escopo de assegurar a manutenção das restrições morais estava conectado a fantasias de fronteiras coloniais e a defesa pela expansão do masculinidade revitalizada a partir da violência Império Britânico. Simultaneamente, intelectuais descomedida e desregrada (DEANE, 2011). Ao letrados, médicos sanitaristas e eugenistas entretecer leitores, estes romances evocavam o promovem uma acentuada preocupação com os que Hannah Arendt afirmou ser “um mundo excessos sexuais e a miscigenação racial, que oferecia possibilidades infinitas para crimes sobretudo nas colônias, situações que, somadas em nome da diversão, para uma mistura de a outras particularidades históricas daquele horror e de riso” (ARENDT, 1989, p.220). período, levam a certa patologização da Portanto, estas imagens de heroísmo, aventura sexualidade masculina e um senso de crise nos ou masculinidade no contexto imperialista não códigos de masculinidade hegemônica. são frívolas e tampouco inofensivas, pois 245 ER Silva. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 229 - 246

intencionam a legitimação pública de violências GRAWUNDER, Maria Zenilda. A palavra mascarada: concretas e simbólicas, práticas segregacionistas sobre alegoria. Santa Maria: UFSM, 1996. ou de extermínio, que legaram cicatrizes GREENBLATT, Stephen. Shakespearean inegáveis à África colonial. negotiations: the circulation of social energy in Renaissance England. Los Angeles: University of Referências California Press, 1988. KREBS, Paula M. Gender, race and the writing of ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São empire: public discourse and the Boer War. Paulo: Companhia das Letras, 1989. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

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