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O Tempo Das Lebres – José Antônio Feitosa Apolinário

O Tempo Das Lebres – José Antônio Feitosa Apolinário

O Tempo das Lebres Ensaio sobre um rebento contemporâneo

José Antônio Feitosa Apolinário

O Tempo das Lebres Ensaio sobre um rebento contemporâneo

José Antônio Feitosa Apolinário

RECIFE - SERRA TALHADA - SERTÃO DO PAJEÚ 2018

A obra O Tempo das Lebres: ensaio sobre um rebento contemporâneo está registrada sob o número 778.436, no dia 29 de Junho de 2018, no Escritório de Direitos Autorais (EDA), da Biblioteca Nacional, órgão do Ministério da Cultura do Brasil.

Capa, editoração e revisão ortográfica do autor.

A643n Apolinário, José Antônio Feitosa. O tempo das lebres: ensaio sobre um rebento contemporâneo/ José Antônio Feitosa Apolinário. Recife: O Autor, 2018. 102 p.

ISBN: 978-85-906454-2-9

1. Filosofia. 2. Contemporaneidade. 3. Ética.

I. Título.

CDU869.0 (81)-3 CDD B869.3 PeR-BPE 18-609

A presente publicação pode ser livremente copiada, compartilhada, reproduzida em meios físicos e armazenada em meios eletrônicos.

“Como avaliar, com efeito, tudo o que representa para uma sociedade moderna o desenvolvimento de um ethos flexível, de um novo tipo de personalidade cinética e aberta?”

Gilles Lipovetsky (O império do efêmero, p. 206.)

SUMÁRIO

Prefácio de Gilfranco Lucena dos Santos (05) Introdução: sob o fascínio da lebre (09) 1. Velocidade como valor?! (15) 2. Uma curta história da aceleração (23) 3. O contemporâneo: outra experiência do tempo (32) 4. Conceito de descartabilidade (41) 5. A miséria da demora (53) 6. Moralidade da rapidez (67) 7. Política da pressa (81) 8. Parando por enquanto: sobre partículas e pessoas (91) 9. Referências (95)

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Prefácio

– Avia, Menino!

Era a advertência que eu sempre recebia de minha avó, quando eu executava com lerdeza alguma pequena tarefa que se me propunha. Aviar, em qualquer tarefa, tornou-se a tendência fundamental de nosso tempo. Neste seu “Celeritas”, Antônio Apolinário nos leva a compreender a respeito da avidez por velocidade, típica de nosso tempo, que não se trata simplesmente de uma tendência, mas de uma potência ou força (δύναμις) estatuída como valor, que se insurge temporaneamente como moral das lebres. Neste ensaio, que é erigido como uma consideração filosófica da era da pressa, a lebre se torna o símbolo de uma moral emergente. A moral das lebres, animal leve e rápido, estabelece a rapidez como critério e horizonte último de toda ação, mesmo que pareça ser apenas fundamentalmente uma qualidade nas coisas. Ou seja, a rapidez não é só fato, é valor que leva à pressa como uma espécie de síndrome. Este livro nos leva do fato à essência, na medida em que descreve o movimento da vontade que erige a rapidez como valor. Não se trata, portanto, da mera atestação de um diagnóstico; como o próprio autor há de assegurar, o problema que o deixa aperreado não é a compreensão da velocidade erigida como uma qualidade fundamental dos meios de produção e das forças produtivas, mas o “desvio dessa velocidade [...] da condição de qualidade técnica à condição de qualidade moral” e força de vontade. O sussurro de Galileu Galilei, que, constrangido pelo Tribunal Inquisidor, acabou por dizer: “E pur si muove!”, é belamente introduzido como um simbólico start do que o autor denomina “história da aceleração”. Pois a Terra não está mais parada: ela se move! E tal mobilidade instaurada na história não somente estabelece uma modernidade cinética, mas hypercinética, na medida em que a aceleração e a velocidade são introduzidas como valor; e estas, deixa claro nosso autor, não servem apenas à determinação matemática da mobilidade natural, mas foram assumidas como valor econômico (pelo capitalismo estrutural), como valor ético (pelas instituições sociais) e inclusive como valor estético (pelo movimento futurista). A tecnociência, na qual se resolve o espírito do tempo, tem-nos imposto o limite máximo como meta (a velocidade da luz, representada na física pelo “c” de “celeritas”) para que, no esforço de alcança-lo, sejamos finalmente dilacerados, e o espírito finalmente subsista tecnicamente para além dessa matéria viva, que se tornou obsoleta. O tempo e o espaço do indivíduo são engolidos pela operação em rede. A instituição da velocidade como valor pelo espírito de nosso tempo configura o exaurimento das forças vitais. A descartabilidade dos produtos emerge como um índice desse estigma da velocidade. Há até mesmo que se perguntar se mesmo os produtos de alta qualidade estão mesmo marcados pelo caráter de durabilidade que prometem. A busca do mais novo e do mais moderno, própria do consumismo desenfreado, animado pela publicidade, torna mesmo o produto high-quality algo rapidamente passageiro. O autor nos deixa claro como o efêmero passou a ser o objeto do desejo. As próprias relações interpessoais tornaram-se efêmeras e desejáveis como efêmeras. O próprio prazer se torna obsoleto e, rapidamente, a repetição do mesmo se torna enfadonho. A

6 fuga é propriamente do tédio, do entediante e do tedioso. A demora se instaura como miséria. Como nos diz nosso autor: “querer a velocidade em seus mais distintos heterônimos constitui um traço” – e porque não dizer o traço fundamental – “da experiência humana contemporânea”. Nesse contexto, a lentidão e a demora, a síndrome da tartaruga, oposta à da lebre, emerge como “incapacidade de acompanhar e assimilar fluxos”. O curioso é o paradoxo de que se quis o carro para chegar mais rápido e agora, por causa do trânsito, tornou-se insuportável tolerar a miséria da demora e do atraso. Assim, despreza-se a lentidão, e a pressa vê-se enaltecida. Tendo estabelecido esse diagnóstico, o autor o julga como critério moral, através de uma sentença lapidar: “um ethos de fluxos rápidos... só vem a ser quando o desejo da velocidade torna-se amplamente gozado, alimentado, uma pandemia psíquica e existencial”. “Quer-se a rapidez!”. É esse querer dilacerante que aponta para uma ultrapassagem de ampla repercussão para a humanidade: trata-se quiçá da ultrapassagem do humano pelo espírito do tempo. Parece mesmo até que é o humano que se despede. Por um impulso do querer leveza e rapidez em toda ação, a moral das lebres estabelece a velocidade como critério e horizonte último de toda ação, apesar de ser ela apenas uma qualidade nas coisas. É este estatuto moral dado à pressa que erige também uma política dromocrática, lembra nosso autor, cuja ideia-força fundamental é a urgência. Quando a rapidez deixa de ser uma mera qualidade nas coisas, torna-se uma espécie de síndrome e se erige como valor pelo movimento da vontade, somos conduzidos do fato à essência. Mas ela retorna como vontade de engendramento do valor. O “Estado- empresa” e o “político-empresário” têm que corresponder à urgência na gestão pública. As políticas emergenciais certamente se alicerçam também aí. Nosso autor descreve de maneira emblemática essa situação: “... capitalizar o tempo de um mandato, de um período de gestão, capitalizando por sua vez interesses de grupos de poder político e econômico à vida pela ampliação de seus tentáculos, funciona como o verme na fruta a condicionar um governo do tempo que antecede o governo dos povos”. E se por ventura “somos” mesmo “o que somos porque desde tempos míticos- imemoriais saímos do lugar”, não ter mais lugar anuncia-se como nosso último desterro. A desterritorialização dos povos e dos indivíduos tornou-se a chave fundamental. No tempo das lebres nem sequer precisamos mais de lugar. Pela primeira vez, o lugar se tornou, em escala planetária, qualquer lugar. O cidadão do mundo, o cosmopolita, não pode restringir-se ao que foi já compreendido como próprio do animal, possuinte de um habitat e constrangido a ele. O ambiente humano é o mundo, constituível e reprodutível pela sua capacidade de sobreviver tecnicamente em qualquer lugar. Transcender o habitat, com vistas a sobre-viver em espaço técnico ou mesmo tecnológico, tornou-se o destino fundamental da civilização contemporânea. Diferentemente do lugar, o local é agora um âmbito no qual o lugar já foi ultrapassado (transcendido). Local é já um espaço de jogo tecnificado. Na localização alienada já se perderam as reminiscências ambientais da habitação, da moradia, e ainda mais fundamentalmente da região e do território no qual habita o indivíduo. A condição da estadia humana no espaço cibernético é o prolongamento da estadia em múltiplos locais ao mesmo tempo pela conexão. Em estado de conexão, já

7 não importa o deslocamento ou a localização da estadia, mas unicamente a instantaneidade e manutenção da conexão. O encontro já não se dá em função da estadia em um lugar ou do deslocamento para um lugar, mas em função da conexão. Daí a importância ou mesmo exigência da conexão em tempo integral, e a necessidade de que as condições de conexão instantânea estejam para todo local em qualquer lugar. A conectividade não pretende jamais exigir o deslocamento; o acesso a qualquer local tem que estar sempre à mão. Desse modo, a produção do espaço cibernético implica uma relativa superação da experiência do lugar. O sítio (site) virtual não e mais o sítio do camponês, nem mais nada que indique o estar situado em um lugar no qual se habita e vive, muito menos o estar situado em um território a partir do qual se tira seu sustento, nem ainda uma região com a qual o indivíduo se constitui em uma relação de enraizamento. O espaço produzido no sítio virtual é um espaço cibernético de conectividade eletrônica, que se sobrepõe ao sítio regional e territorial em que a terra se impõe como um lugar de habitação. A experiência e vivência em jogo no sítio virtual é fundamentalmente desterritorializada. Verdade é que a velocidade com a qual o mundo cibernético convoca o viver humano ultrapassa ou transcende não somente condições de vida espaço-temporais humanas. Ela exige mais do que a vitalidade orgânica humana pode fornecer. O organismo humano acaba por não poder se tornar capaz de corresponder às exigências do tempo das lebres. E neste sentido, permitamo-nos um devaneio: talvez possamos mesmo pensar que no tempo das lebres o próprio espírito se busca, e, pela técnica, procura ultrapassar o humano para encontrar-se e ampliar o alcance de suas possibilidades, ampliar seu poder de ação. Pela tecnociência, o espírito busca ultrapassar essa matéria animada, que não mais suporta as demandas de expansão exigidas pelo espírito do tempo. Ao estabelecer como meta este máximo limite físico que é a velocidade da luz, a tecnociência, na qual se resolve o espírito de nosso tempo, nos impõe uma tarefa impossível de realizar, sem que sejamos dilacerados; talvez, desse modo, somente o espírito há de sobreviver tecnicamente para além dessa matéria viva na qual hora subsiste e que se tornou obsoleta. O homem se esforça em manter-se por resignação, como uma espécie de pobre esforço do espírito vivente. O esforço do homem para valorizar a si mesmo parece não passar de um esforço resignado e mesmo talvez ressentido, para se fazer valer como meio e instrumento suficiente para o espírito. Mas a vida tornou-se obsoleta como um meio para as demandas espirituais de nosso tempo. Nosso tempo é o do exaurimento das forças vitais. Se não houver uma salvífica dialética da suprassunção, talvez só reste ao homem duas possibilidades: ou o humano se despede, ou há de constituir seu retorno ao reino natural ao qual pertence. Talvez ele deixe que a técnica seja técnica e tome conta do universo, e se restrinja ao seu ponto de permanência, ao grão de poeira estelar aos qual pertence, o sistema técnico assumindo-o como um organismo inferior, transitando pelo universo. Na tecnociência e seus projetos de expansão, não há propriamente uma potencialização do humano, mas do espírito, através de sua capacidade fundamental: a inteligência aliada, talvez, ao desejo escondido do espírito de se expandir e manter- se. Pois o organismo humano tornou-se obsoleto, face à possível “forma de vida” sintética que se vislumbra.

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Em seu estágio atual, aquilo que a inteligência procura desenvolver (isto é, aprofundar e ampliar) é um meio pelo qual ela possa subsistir, e de modo cada vez mais funcional e eficaz, e que suplante, de uma vez por todas, sua dependência de um organismo vivo (seu estágio vital). Resta saber se essa inteligência não vital (isto é, sintética) pode ser ainda intencional, ou é simplesmente informacional. Puro saber em um meio material mais durável (quiçá perene) será o ato intencional fundamental da inteligência? Vale salientar, porém, que de acordo com John Searle, “o computador tem sintaxe, mas não tem semântica”. Esta potencialidade e fraqueza do computador indica justamente o oposto daquilo que Heráclito falara do “senhor cujo oráculo está em Delfos”, o oráculo da inspiração mântica, que tinha a capacidade de comunicar aos seus ouvintes o sentido que se escondia atrás dos acontecimentos. Segundo Heráclito: “O senhor cujo oráculo está em Delfos nem diz (οὔτε λέγει) nem esconde (οὔτε κρύπτει), mas dá sentido (ἀλλὰ σημαίνει)” (DK 93: ὁ ἄναξ οὗ τὸ μαντεῖόν ἐστι τὸ ἐν Δελφοῖς οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει ἀλλὰ σημαίνει). Certamente, agora ocorre o contrário com a inteligência artificial cibernética. Parafraseando Heráclito, poderíamos dizer: o cibernético não dá sentido, mas logografa e criptografa, o que soaria em grego do seguinte modo: ὁ κιβερνετικῆς οὔ σημαίνει ἀλλὰ λέγει καἰ τε κρύπτει. Podendo esta sentença ser talvez traduzida assim: o computador informa e guarda, mas não comunica, uma vez que a atitude propriamente semântica e, por assim dizer, hermenêutica, consiste fundamentalmente em comunicar um sentido compreendido, coisa que, parece, a Inteligência artificial não está em condições de fazer. O computador calcula, ou seja, enuncia, logografa e criptografa, mas não pensa, isto é, não significa, não tem semântica, só sintaxe; não é hermenêutico; não interpreta como quem elabora uma compreensão significativa. Contudo, “O mundo governado pela informação e” que só pode ser “contrariado pela comunicação”, como disse certa vez Milton Santos, exigirá para as relações comunicativas um outro tempo. O tempo das lebres não se subjugará aos limites do tempo da comunicação. Este pesa demais, é lento demais, espera demais. O tempo das lebres não pode nem sabe esperar. O tempo das lebres não tem tempo para organismos pesados demais. Ele é leve demais. Não haveremos de alcançá-lo.

Gilfranco Lucena dos Santos Outubro de 2017 a outubro de 2018...

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Introdução

Sob o fascínio da lebre

Não me parece equivocado afirmar que em alguns momentos temos a sensação de que nossas vidas, em tudo aquilo que elas possuem de ordinário, edificante, singular e coletivo, caracterizam-se por um ritmo acelerado, uma pressa duramente naturalizada, uma ausência de freios que parecemos canonizar sem sequer oferecê-la à reflexão. Também não seria um equívoco assegurar que essa espécie de insight afigura-se quase sempre se esvaindo pela descarga perante as ambivalências do ‘é assim mesmo’, vitimizadoras da própria reflexão. Não raro escutamos quase como um estribilho de canção pop entoada nas bocas de muitos um sonoro Não há tempo pra pensar! Ora, então o que houve com o tempo? Não está mais entre nós? Logo nós que tradicionalmente somos reputados os únicos entes dotados de pensamento?! Haveria então uma situação em que o tempo deixou de existir uma vez que não nos é mais ofertada a oportunidade de pensar?! Certamente não. Quando me refiro a tais formas de vida, incluindo a minha própria, remeto à experiência histórico-cultural dos existentes humanos hodiernos. De fato, e mesmo aquém da meditação, não será necessário demasiado esforço para sentir as várias mãos e braços (e até mesmo pontapés) dentro e fora de nós (usufruindo aqui das categorias de interioridade e exterioridade, por uma peculiar exigência didática), empurrando-nos contínua e velozmente, motorizando-nos, compelindo-nos a aduzir ‘performances’ cada vez mais ‘altas’. Trato aqui de uma imagem imanente, de uma figura fática do humano que se pretende doravante construída-compreendida: o protagonista de uma experiência existencial cuja fluidez é indiscernível da volatilidade retroalimentadora e ao mesmo tempo parasitária dos condicionantes das estruturas econômicas, mercadológicas, tecnológicas, e, por sua vez, sociais e culturais do mundo contemporâneo. Evidentemente, a ‘racionalização’ da vida humana nas grandes metrópoles, a tecnicização dos processos de produção, a maquinização reprodutivista de diversas práticas antrópicas (do trabalho à diversão, passando pelas relações sexuais), a ode à cibernética, a planetarização das máquinas automobilísticas, armam, junto a outros elementos, o proto-quadro sintomatológico e, concomitantemente, o cancro mesmo desde o qual é possível inferir os ‘epifenômenos’ da velocidade e da rapidez dos quais somos coetâneos. Um ‘mundo administrado’, como analisara Adorno1, no qual o pensamento crítico escorre pelas mãos sepulcrais da indústria cultural, essa titeriteira das ‘consciências’, é interpretativamente o mesmo mundo que prepara a entronização tardia da celeridade não somente como critério a um new life style, mas como potência biocultural, histórica, social, e porque não dizer, moral, cuja epidemização figurar-se-ia amiúde relegada às margens das discussões culturais, éticas e políticas,

1 Cf. Adorno, Theodor. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 239-240.

10 que têm emergido mais ou menos nas últimas quatro décadas, não fosse a preocupação de alguns intelectuais2. O boom dos meios de comunicação de massa (os mass media), os quais, segundo Peter Sloterdijk, constituiriam o novo locus etéreo das massas no final do século XX3, o encurtamento dos prazos e a simultânea diminuição das distâncias tanto na perspectiva da telemática quanto no funcionamento do mercado mundial globalizado, passando pelo horizonte irreversível da interconexão entre os povos em função dos diversos meios de transporte, a desenfreada consubstanciação entre saciedade, auto-realização e consumismo (a questão é o feixe de tempo entre desejo, satisfação do desejo, vir a ser de outro desejo – suposto processo profilático contra a frustração, o fracasso e talvez a própria morte), o individualismo catalisado pela novíssima concorrente ao estatuto ontológico de realidade, a realidade virtual, todos pensados não como substâncias, mas como processos, fluxos, movimentos, rizomas4, constituem dinâmicas que engendraram e continuam engendrando uma espécie de antropocinética – em sentido diferente, mas próximo da noção de Jaime Barrios Peña5 – completamente outra à situação humana. Porém, uma inquietação me toma de assalto: voltando à impressão que antes havíamos sinalizado, não estaria aqui cometendo um erro ao olhar toda uma época – a nossa época – por uma única janela, quando, entre os parquíssimos imperativos totalizantes que nela ainda parecem respirar, mesmo depois de mortos, somos lançados em um pluralismo óptico-epistêmico? Confesso não saber ser hábil como os ‘pechincheiros’ no balcão contemporâneo das epistemologias. Sequer sei se tenho em mãos algo como um encaminhamento metodológico. Mas o terei se e somente se o desdobramento – por meio de uma simples reflexão – de uma impressão inicial puder ser reputado algo como uma metodologia. É isso que aqui tentarei efetuar. Fio-me na referida impressão, insight, ou interpretação prévia (sem operar distinções significativas entre tais termos), cujo poder sensório-fisiológico, prima facie, dá a entender que convence de modo simples, tal como demonstra a opinião comum, na qual se revela sua face mais corriqueira: Tudo hoje é muito rápido! exclamam uns, Hoje tudo passa depressa! falam outros; por vezes dizemos ou escutamos sonoros Não podemos perder tempo!, Que ótimo! Fomos rapidamente atendidos!, ou ainda, Que bom que tudo se resolveu rapidamente! Aparentemente banais, ou rebentos de contextos de significação social bastante arraigados (como me parece passível de interpretação o caso do Fomos rapidamente atendidos!), expressões como Tudo hoje é muito rápido! suscitam ou me endereçam de alguma maneira àquela impressão. Bem ou mal denotam uma sensibilidade, um não-estar-indiferente para com a velocidade a desvencilhar-se de seus motores propulsores (para dizer alguns, a dimensão da produção e da economia6,

2 Alvin Toffler, Paul Virilio, Peter Sloterdijk, Gilles Lipovetsky, Marc Augé, Guy Claxton, Bernard Stiegler, Olgária Matos, Eugênio Trivinho, Pierre Sansot, Nicole Aubert, Harmut Rosa, Judy Wajcman, Thomas Hylland Eriksen, Maria Rita Kehl, Carl Honoré, Robert Hassan, entre outros. 3 Cf. Sloterdijk, Peter. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. 4 Cf. Deleuze, Gilles; Guatarri, Félix. Introdução: rizoma. In: Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. 5 Cf. Barrios Peña, Jaime. Arte mestizo em América Latina: discurso e mutación cultural quinientos años después, 1492-1992. Buenos Aires: Fénix editorial, 1989. 6 Marx e Engels.

11 da técnica7, da guerra8, da tecnologia e da realidade virtual9), a qual, ao ganhar vida separada destes, esculpe modos de ser hegemônicos nas culturas ocidentais, ocidentalizadas e que estão por ‘ocidentalizar-se’, formas outras de configuração das relações interculturais e interpessoais, hábitos, transtornos psíquicos, crenças, patologias, comportamentos, alterações nas íris, na compreensão de si e do em torno de si. No entanto, trata-se efetivamente de algo típico de nosso contexto histórico- cultural? A impressão de viver em uma ‘cultura da aceleração’ é uma exclusividade do homem dos fins do século XX e início do século XXI? Entre as muitas estórias escutadas na infância, a famosa disputa entre a tartaruga e a lebre é certamente uma das mais frequentadas. A lebre, veloz e ladina, propõe uma corrida ao vagaroso e brando quelônio, que a aceita de pronto. O fim da narrativa é sabido de todos: a lebre cochila enquanto a tartaruga sossegadamente ultrapassa o ponto de chegada, vencendo a peleja. Na fábula atribuída a Esopo, e recontada por La Fontaine, a lebre perde a competição. Mas no cotidiano das complexas sociedades hodiernas, ali onde estouram as mais rotineiras e habituais relações socioculturais, há muito cruzou a linha de chegada. Mas, por que a lebre? Se dermos razão a La Fontaine quando afirma que toda fábula ‘é uma pintura em que cada um pode encontrar seu próprio retrato’, divisaremos que não se trata meramente de um disjuntivo que antecede uma escolha cultural (tartaruga ou lebre?). Noutras palavras, a corrida tornou-se um modo de ser entranhadamente hegemônico. Correr passou a ser predominantemente nosso modo de estar no mundo (que é esse, aqui e agora), de onde se segue que o estar estático neste mundo é uma espécie de contrafactualidade ante o sendo cinético neste mundo. Destarte, encarnações da tartaruga (da lentidão tomada como mortificante, sinônimo de necrosamento, e impeditivo do sendo cinético) são tidas por expurgáveis: da leseira burocrático-estatal aos congestionamentos de trânsito, da vagarosidade intencional dos trâmites políticos à espera na fila do caixa de supermercado, da velhice vivida à maneira da cadeira de balanço à demora de um analgésico em fazer efeito, do atraso do voo à ‘chatice’ das imagens paradas do cinema de autor, de tudo julgado arrastado, prolongado, extenso, prolixo. Há nisso algo daquilo que Virilio profetiza, reportando-se à condição do homem ocidental no século XX: “o estacionamento é a morte aparece-lhe efetivamente como a lei geral do Mundo”10. Não estamos perante uma questão de funcionamento adequado ou ‘melhor’ das instituições públicas ou privadas, da organização do Estado ou do setor de serviços, mas diante de uma entronização da rapidez que se faz sentir desde as vivências mais ordinárias, cuja celeridade frenética é não apenas constatável, mas, segundo suspeitamos, moralmente desejável. No entanto, a lebre dorme... O ensaio experimental que agora apertas entre os vossos dedos ou lês numa tela de cristal líquido não se pretende um estudo minucioso sobre o tempo e menos

7 Cf. Heidegger, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002; Spengler, Oswald. O homem e a técnica. Lisboa: Guimarães, 1993. 8 Cf. Virilio, Paul. A velocidade de libertação. Lisboa: Relógio D’Água, 2000. 9 Cf. Lévy, Pierre. O que é o virtual?. São Paulo: Editora 34, 1996; Lévy, Pierre. As tecnologias da inteligência. São Paulo: Editora 34, 1994; Simondon, Gilbert. Du mode d'existence des objets techniques. Paris: Aubier, 2008. 10 Virilio, Paul. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p. 72.

12 ainda uma sistemática ponderação sobre a moralidade. Apenas, e o que já é digno de grande desconfiança, se pretende uma interpretação intersticial: quer-se e julga-se orbitando nos possíveis limites e distâncias entre temporalidade e moralidade na experiência existencial contemporânea. Evidentemente, não os esgota, sequer acredita dizê-los em sua totalidade. Coloca-se, decerto, a serviço de algumas impressões – e isto num sentido muito próximo ao humeano11 – acerca das múltiplas formas de vida, de realização de si, de coabitação, expostas pelo tecido social de nossa época. Com efeito, é tão-somente uma tentativa diagnóstica que busca problematizar, chacoalhar e interpretar, não o conceito de pós-modernidade (talvez ele ainda nem tenha nascido, talvez seja natimorto), mas aquilo que experimentamos enquanto efetivamente nascidos nesta época, viventes e co-viventes neste mundo, e não menos fazedores dele, cujo rótulo comum é precisamente mundo pós-moderno. Não estamos mais em um tempo em que vige apenas um olhar ciclópico12. Experienciamos o que autores como P. Virilio, J. F. Lyotard, F. Jameson, A. Heller, D. Harvey, J. Habermas, G. Lipovetsky, Z. Bauman, P. Lévy, M. Augé, P. Sloterdijk, entre outros, entendem ser a chamada ‘pós-modernidade’, ‘supermodernidade’ ou ‘hipermodernidade’. Particularmente, entre os difusos aspectos que constituem essa experiência sócio-político-cultural, encontro-me cada vez mais persuadido de que há uma ode, uma idolatria, um clamor à velocidade que invade as ações e relações humanas. Minha hipótese básica é a de que o valor moral bem e o adjetivo moral bom, reportam-se mais agudamente no bojo de suas significações atuais à velocidade, à rapidez, à aceleração, à pressa, ao vai logo! tão habitual em nossas vivências mais cotidianas e próximas. Dessa perspectiva, tem-se fortalecido para mim o entendimento de que o modo de julgar passa a ser instaurado da seguinte forma: algo é bom se é rápido, se é veloz, se não nos faz ‘perder tempo’, se realiza o mais depressa possível qualquer coisa. Dito de outra maneira: se consegue nos levar mais rápido à nossa efêmera condição ‘perene’... Portanto, tencionamos pensar a velocidade não simplesmente como medida de tempo desde a perspectiva dinâmica da Física (uma compreensão da experiência do tempo à qual não poderemos de certo modo nos furtar), mas como valor, mais precisamente, como critério de valor pelo qual usualmente vem-se cada vez mais se julgando moralmente uma ação, uma intenção, uma relação humana. Com base no pressuposto segundo o qual o mover-se está para a existência humana assim como a circularidade para o círculo, aquilo de que me ocupo doravante é exatamente a maneira como tal mover-se vem se efetuando e em que medida é abstraído ou hipostasiado como valor. Não se trata de se deixar conduzir por indagações do tipo: o que nos move? Por que nos movemos assim? Ou o que nos move para que nos movamos dessa maneira? Pensadores contemporâneos da cultura nos ofertam significativas chaves nessa direção ao se referirem, por exemplo, ao mercado, ao consumismo, à globalização, ao hiperindividualismo, ao hedonismo, à ausência de grandes referências de sentido (fim das metanarrativas), entre outros vetores, todos interpretativamente plausíveis. Aqui, em forma de aposta, pretendo partir dos sintomas que parecem eles mesmos ganhar o status de causa da doença, confundindo-se com ela.

11 Cf. Hume, David. Ensaio acerca do entendimento humano. Seção II. 12 Cf. Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. § 14.

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A própria língua portuguesa falada em terras brasílicas, no elástico e imponderável cardápio dessa sintomatologia, dá-nos uma oportuna ilustração semântica: o termo ‘logo’, cuja raiz etimológica reside na expressão grega logos, a qual designava ‘palavra’, ‘discurso’, e somente depois ‘análise’, ‘estudo’, ‘razão’13, alterou- se, passando a indicar imediatez, maior brevidade, ligeireza na ação. Faça logo isso! ou Resolva logo isso!, de onde se segue que o logos liquefaz-se transformando-se em exigência de rapidez, imperativo de velocidade, e, conforme conjeturamos, sinal de prescrição moral. Em nosso tempo, as ações devem orquestrar-se mediante o reclamo de um Grande Logos das estruturas somado àquele que restou dos escombros da subjetividade, gritando em nossos tímpanos: Logo! Rápido! Acreditamos ser um tanto quanto óbvia essa sensação de que Feidípedes de Atenas rivaliza hoje em pé-de- igualdade com qualquer exemplo de conduta a ser seguido na tradição (Aquiles, Sócrates, Buda, Cristo, Madre Teresa, seja lá quem for), posto que, hegemonicamente, vive-se nos moldes de uma maratonização da vida, de uma necessidade naturalizada de pole position (a volta mais rápida – best lap – é a volta do ‘melhor’, é a volta do ‘aristocrata’ das pistas do social), sem esquecer das densas articulações possíveis entre velocidade e poder. Nesse sentido, não é apenas a constatação de um processo de aceleração cada vez mais intenso a estourar em epidêmicas formas de conduta, atitudes e comportamentos que me levou à reflexão, mas sim a impressão de que ele passou a ser querido. Tomando as rédeas de tais intuições, o presente ensaio busca em seu capítulo inicial responder se é possível considerar a velocidade tal como a penso, para além de sua compreensão conceitual no domínio das ciências objetivas (velocidade como medida de espaço e tempo), como um valor no mercado contemporâneo de valores da conduta humana. Se ela, a título de suposição, instaurar-se-ia como valor a uma nova e difusa forma de antropotécnica14. Em seguida, tento construir uma hermenêutica histórico-cultural das dinâmicas de aceleração dos povos, tencionando interpretar como alguns modos de ser hegemônicos historicamente constituídos tornaram-se catalizadores do modo de ser dominante na dinâmica existencial contemporânea. Trata-se de correr o risco de pensar quais os motivos, interesses, estruturas, discursos e configurações de poder que nos fazem desembocar no quase total automatismo hipercélere de nossa época, o mesmo que se ergue paradoxalmente em meio a um intenso individualismo. Na terceira parte, ensaio um exame da filiação entre tempo e velocidade na condição cultural-existencial contemporânea, buscando compreender nexos entre tempo simbólico e temporalidade e suas implicações quanto à defesa de uma outra experiência temporal por nós construída, vivida e retroalimentada, intrinsecamente determinada e envolvida pela celeridade. O quarto capítulo intenta uma análise do conceito de descartabilidade à luz das categorias de obsolescência, duração e efemeridade, concebendo tal conceito como importante chave ao entendimento da submissão dos indivíduos à lógica de regulação pelo mercado e à conclamação sem freios ao consumo. A quinta parte do livro manuseia o questionamento ora proposto, tematizando o que acredito ser provisoriamente uma ‘psicologia da espera’, cuja hipótese principal articula-se a uma crucificação da demora. Nesse momento, tento

13 Cf. Cassin, ; Apter, Emily; Lezra, Jacques; Wood, Michael. Dictionary of untranslatables: a philosophical lexicon. New Jersey: Princeton University Press, 2014. p. 420. 14 Em um sentido pensado a partir de Peter Sloterdijk e Fábian Ludueña Romandini.

14 analisar o acontecer existencial humano – em suas expressões mais cotidianas e ordinárias –, o qual implica o estar com os outros e o ser com os outros. Como já frisei, em sua face contemporânea tal acontecer dá a impressão de uma assídua e enérgica estigmatização da experiência da demora, da lentidão, da espera (e outros correlatos), em nome de uma glorificação da ligeireza. Essa glorificação é tratada justamente no capítulo seguinte, oportunidade em que abordo aquilo que interpreto como uma moralidade da rapidez ou um ethos de altas velocidades, levando em conta possíveis aspectos que o plasmam. O sétimo capítulo reside numa tateante compreensão da marcha pulsante da velocidade até então aventada, na condição de determinante/determinado das/pelas esferas política e econômica. Considero-o um desdobramento do capítulo anterior. A derradeira parte foi pensada à maneira de um não-acabamento, tão-somente admitido como provisório e aberto, enfatizando o espírito que desde o começo anima o presente ensaio cujo compromisso é tentar edificar uma interpretação plausível sobre uma impressão geratriz do problema a ser aqui perquirido: creio estar sendo compreensível na medida em que indico que não se trata da simples constatação de um processo de aceleração cada vez mais intenso, pois, ao que parece – insisto – ele passou a ser querido. Mas, de que vale um livro se não podemos dele desconfiar?! Meu ceticismo me lança e me acompanha na errância de uma interpretação que se pretende possível, quiçá, plausível. De agora em diante, o que se processa nessas páginas nasce das intuições dos muitos autores que coabitam este autor, sem jamais anuviar os elementos possivelmente lidos como rebentos do que há de imaginação em sua própria intuição. Suspeito que devam ser irmãs, pois entre o imaginado e o intuído não nos parece haver fronteiras, ao menos fixas. E mais: suspeito que sou seduzido por mim mesmo quando me deixo seduzir por um objeto de investigação que construí. Se há aqui uma intuição, uma inquietação norteadora, ela é gerada pelas impressões já mencionadas, que este autor tem e que crê dividi-las com vários outros existentes humanos, quando de seu deparar-se com uma implícita-explícita coroação da celeridade por todos os lados. Talvez, das quatro célebres questões kantianas (O que posso conhecer? O que posso esperar? O que devo fazer? O que é o homem?), esse ensaio flerte mais com a segunda, abrindo mão de vinculá-la – como faz o filósofo alemão – exclusivamente ao domínio da religião: o apressamento generalizado das formas de vida no contemporâneo faz sufocar as diversas modalidades de espera nele vividas, inclusive a religiosa. Dessa perspectiva, e em tom de hesitação: estaríamos desde há muito sob o fascínio da lebre?!

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Capítulo I

Velocidade como valor?!

“No diagnóstico do presente se tem de introduzir uma dimensão cinética e cinestética, porque, sem esta, tudo quanto se disser sobre a Modernidade passa ao lado do que há de mais real”15.

Penso não haver dúvidas acerca das percepções elementares que inúmeras vezes nos levam a concluir que temos vivido mais apressadamente. Nas dinâmicas profissionais, de alimentação, formação, lazer, nas relações sexuais, entre outras, o fenômeno da rapidez tem atuado sob a indumentária dos padrões de eficiência, dos fast foods, dos diplomas de cursos com duração meteórica, do consumo frenético nos shoppings centers, e da transa curta de gozo ligeiro (nos antípodas do sexo tântrico, em nosso contexto talvez ‘tétrico’). Em todos eles, respiram-se os ares de um modo geral de vida em que o ‘não se pode perder tempo’ tornou-se uma espécie de lema unificante. Alvin Toffler o prenunciara no início da década de 1970 ao escrever que já havia à época “um amplo acordo — em um setor que abarca desde os historiadores e os arqueólogos até os cientistas, sociólogos, economistas e psicólogos — sobre o fato de que muitos processos sociais estão se acelerando de um modo impressionante e inclusive espetacular”16. E Maria Rita Kehl o evidencia: “nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio. É preciso ‘aproveitar’ o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem descanso”17. A evidenciação do aumento do ritmo dos fluxos circulatórios dos grandes espaços urbanos nos últimos dois séculos, e das interações em tempo real garantidas pelo espaço-tempo virtual nas últimas três décadas confirmam tal experiência: há – quero crer – um quase consensual existir numa teia de estruturas fluidas, frouxas, condicionantes-condicionadas, ininterruptamente agenciadas, cujas aparelhagens articulam-se e funcionam de maneira hipercélere, aparelhagens estas com as quais terminamos por nos confundir enquanto partículas móveis co-determinantes. Diante disso, fortes inclinações em mim operantes começam a atuar: ponho- me a buscar motivos e levantar conjeturas, supondo o caráter multifatorial do fenômeno. Em que medida a forte organização do setor de serviços – setor econômico que mais se desenvolveu e se desenvolve no capitalismo atual – teria ou não uma relação direta com essa hipótese, uma vez que se vive basicamente para o consumo, e isso enquanto tendência mundial? Não haveria um tipo de transposição ou transferência do modus de relacionar-se na prestação de serviços em geral para os modos como se dão as relações humanas mais ordinárias, sobretudo aquelas

15 Sloterdijk, Peter. A mobilização infinita: para uma crítica da cinética política. Lisboa: Relógio D’Água, 2002. p. 27. 16 Toffler, Alvin. El ‘schock’ del futuro. Barcelona: PLAZA & JANES, 1973. p. 14. 17 Kehl, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009. p. 125.

16 experienciadas nas grandes metrópoles de consumo? Noutras palavras: poderia dizer que o modelo das relações de serviço tornou-se o modelo por excelência das relações humanas? Até que ponto esse modo de acontecer humano (situado historicamente) não estaria vinculado à lógica de mercado e, por sua vez, à lógica da produtividade, dos serviços, da eficácia, da imediatez, do resultado, tão caras aos processos mercadológicos catalisados nas entranhas do capitalismo tardio, sob os guarda-chuvas do neoliberalismo e da globalização? Noutra direção, também não contribui para tanto o momento niilista visceralmente apinhado ao esvaziamento de sentido de valores outrora tidos por absolutos, ou, quando as referências tradicionais e modernas de valor passam a carecer de sentido e de capacidade coerciva? E isso sem que se desemboque necessariamente em um pessimismo extravagante, mas apenas, como garante Gilles Lipovetsky, em uma desértica “indiferença”18. Num corrimão próximo, não colaboraria igualmente o esmorecimento do “grande relato”19 e a simultânea imersão da diferença aliada à explosão de um pluralismo epistêmico-cultural para o qual cada vez mais se dá vez e voz, a reverberar um sem-número de referências de valor? Elencando ainda outras suposições à questão, não me parecerá falaciosa a afirmação segundo a qual um hipertrófico mobilismo, orquestrado inicialmente sob as batutas da grande indústria (sobretudo a automobilística20 e a aeronáutica) e inflamado por seus desdobramentos mais diversos e sutis (o supersônico, a escada e a esteira rolantes, as vias expressas, o trem bala,...), obteve uma posição irreversível na armação cultural moderna. Ele veio e com ele as engrenagens produtivas e a gigantesca teia urbana tiveram armados os seus circos: nesse sentido, Metrópolis (1927) de Fritz Lang e Tempos modernos (1936) de Charles Chaplin, são vislumbres pre/denunciadores de um horizontalizador processo de esquizofrenização cinética. Mover-se, deslocar-se, ir de um lugar a outro, e isso de forma cada vez mais rápida, parece ter forçado o humano em meio às estruturas metropolitanas a enredar-se em uma marcha cujas marcações tornaram-se destrambelhadas: a pulsação ultracardíaca da vida urbana contemporânea poderia ser tomada como um resultante desse mobilismo levado a incontroláveis consequências. Quiçá esse hipotético fator (que por sua vez já se constitui como conjunto de fatores) seja aquele cuja força se fez notar mais nitidamente no século XX, em termos de achatamento das distâncias, compressão, para não dizer de uma quase total aniquilação do tempo e do espaço21, contribuindo para novos sintomas que perfazem e configuram nossa época. Por fim, outra conjetura diz respeito à presença determinante dos computadores na experiência humana hodierna. Embora muitos ainda não tenham acesso, sobretudo nos países periféricos e pobres, eles não cessam de compor nosso

18 “Deus morreu, as grandes aspirações se extinguem, mas ninguém está dando a mínima importância, eis a alegre notícia, eis o limite do diagnóstico de Nietzsche em relação à tristeza européia. O vazio dos sentimentos e o desmoronamento dos ideais não trouxeram, como era de se esperar, mais angústia, mais absurdo, mais pessimismo” (Lipovetsky, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2005. p. 19. Grifo do autor). 19 Lyotard, Jean-François. O pós-moderno. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 69. 20 “O automóvel fortalece no seu possuidor a ideia de liberdade do movimento, dando-lhe o sentimento de ganhar tempo, de não perder um minuto, neste século da velocidade e da pressa” (Santos, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 42). 21 Cf. Augé, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.

17 horizonte de referência mundano. Se o século XX pode bem consistir na história da transição de uma existência com máquinas para uma existência maquínica, e isso muito além dos predições de Isaac Asimov, o século XXI oferta-nos uma paisagem na qual a máquina e o humano curvam-se solenes à inteligência artificial. Entusiastas como Scott Klososky em seu livro The Velocity Manifesto, convencem-se que “a tecnologia é o principal catalisador por trás da crescente velocidade das mudanças em nosso mundo [...] a velocidade da inovação tecnológica tem aumentado ao longo dos séculos, e isso cresceu exponencialmente com o advento do computador mainframe. Logo após, o PC alterou nossas vidas, personalizando a tecnologia.”22. Para o mundo das organizações é certo que a velocidade já vem operando como um valor fundamental (Taylor e Ford há muito valsando no salão), e que a equação recurso tecnológico = aceleração = aumento da produtividade = usura, já se concretizou na automação dos sistemas industriais, passando pela prestação de serviços, ecoando faustosa nas bocas dos CEOs, managers e coaches, around the world. O que nos preocupa aqui é o possível fato de seu transbordamento para as relações humanas em geral, principalmente nos labirintos sociais contemporâneos. Ademais, usando uma alegoria biológica, PCs, celulares, notebooks, smarthphones, tablets, e outros gadgets, são como pequenas células de um gigantesco e ilimitado organismo em velocíssimo movimento de expansão – o virtual. Difícil é colocar-se em desacordo com Pierre Lévy sobre o que compreende ser o processo de virtualização e seu caráter decisivo para a tecedura humana própria do terceiro milênio: “certamente nunca antes as mudanças das técnicas, da economia e dos costumes foram tão rápidas e desestabilizantes. Ora, a virtualização constitui justamente a essência, ou a ponta fina, da mutação em curso”23. A desvinculação de uma delimitação espacial constituiria um dos principais modos de dar-se da virtualização: “a empresa virtual não pode mais ser situada precisamente. Seus elementos são nômades, dispersos, e a pertinência de sua posição geográfica decresceu muito”24. Essa ‘não-presença’ que marca o elemento virtual e o seu caráter não-fixo, parece ao mesmo tempo ser um eco e um condicionante da macrotendencial não-fixação vinculada ao humano atual. Por mais que consistamos em corporeidades, em espacialidades indeterminadas num contínuo processo de construção- desconstrução, tornamo-nos aquilo que somos mediante ações multicondicionadas. Viver e agir implicam necessária e fundamentalmente o mover-se na condição de determinação de si (ligação seminal que se exprime, por exemplo, na interpretação da ‘alma’ enquanto ‘aquilo que move’, e na ideia segundo a qual a relação umbilical entre vida e movimento é pressuposta na distinção platônica entre ‘animado’ e ‘inanimado’25). Bernard Stiegler chega mesmo a concluir que para a condição humana “a conquista da mobilidade, como mobilidade sobrenatural, como velocidade, é mais significativa que a inteligência – ou, melhor dizendo, a inteligência não é mais que um tipo de mobilidade, uma relação singular com o espaço e com o tempo”26. Por essa via, e sem entrar numa longa, mas não menos relevante discussão, viver é de alguma

22 Klososky, Scott. The velocity manifesto. Harnessing technology, vision e culture to future-proof your organization. Austin: Greenleaf Books, 2011. p. 10. 23 Lévy, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 11. 24 Lévy, Pierre. O que é o virtual. Op cit. p. 19. 25 Cf. Platão. Fedro. 2. ed. Belém: EDUFPA, 2007. 245 d. 26 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo I: El pecado de Epimeteo. Hondarrabia: Argitaletxe Hiru, 2002. p. 220. Grifo meu.

18 maneira, colocar-se em movimento, o que na disposição humana também ocorre no horizonte do agir. Em particular, é possível entrever na condição humana contemporânea a valorização de um modo inteiramente novo de fundir ação e movimento: trata-se de um agir-mover-se sob o signo da rapidez que, tal como ocorre no processo de virtualização indicado por Lévy, relega qualquer fixação (o permanecer parado) ou ‘posição geográfica’ como um valor menor. E mais: relega a experiência da demora, e todos os seus correlatos, à condição de máxima contrafigura: “o homem contemporâneo vive tão completamente imerso na temporalidade urgente dos relógios de máxima precisão, no tempo contado em décimos de segundo, que já não é possível conceber outras formas de estar no mundo que não sejam as da velocidade e da pressa”27. Por tais vias, o hardware não é um simples tropo da corporeidade dos sujeitos pulverizados que de algum modo viemos a ser, graças ao bem-sucedido casamento entre microeletrônica e informática. Na típica fala publicitária (por vezes desnecessária quando o produto é um gadget, que em nossos dias talvez se venda por si próprio) e para além dela, a afirmação de John Walkenbach sobre o Microsoft Excel 2010 soa atestadora: “no que diz respeito ao hardware do computador que você usa para executar o Excel, quanto mais rápido melhor”, e isso sem dispensar o velho e requentado jargão propagandístico do banalizado telos (finalidade) dos antigos discursos éticos (a vida feliz), ao ancorar-se em uma suposta obviedade que soaria ruidosa aos ouvidos do jovem Nietzsche: “e, é claro, quanto mais memória em seu sistema, mais feliz você será”28. Novamente, o entusiasmo de Klososky a esse respeito é bastante ilustrativo: “eu adoro ir rápido e eu sei que as coisas mudam rapidamente, e ainda estou boquiaberto com quantos novos aplicativos baseados na web surgem a cada semana e como rapidamente as pessoas os adotam, em seguida, em seus processos diários. E a velocidade de mudança só vai aumentar”29. Não cabe somente à parte física do computador executar a parte virtual de modo adequado – ela deve fazê- lo rapidamente. Nisso residirá sua virtude. Isto não é um trocadilho: da era industrial até a antessala da idade das tecnologias computacionais, não cabe ao humano somente executar ações de modo adequado – ele deve fazê-lo rapidamente. Nisso também residirá sua virtude. O problema que aqui me aperreia consiste no desvio dessa velocidade, à qual somos compelidos e que simultaneamente nós mesmos nos compelimos, da condição de qualidade técnica à condição de qualidade moral. Mais que o simples mover-se, consoante a hipótese de Paul Virilio, “se ser é estar excitado, ser vivo é ser velocidade, uma velocidade metabólica que a tecnologia se dedica a aumentar e aperfeiçoar, como soube fazer para as espécies animais”30. No entanto, o que propriamente entende-se por velocidade aqui? É possível interpretar velocidade como um valor? Pode ela perfilar-se num suposto rol de valores de conduta em tempos de sujeito sepultado? O conceito de velocidade sedimentado no âmbito da física acha apreciações iniciais já na filosofia clássica. Aristóteles, por exemplo, entende ser a ideia de velocidade atrelada de modo fundamental à meditação sobre o movimento, afirmando

27 Kehl, Maria Rita. O tempo e o cão. Op. cit. p. 123. 28 Walkenbach, John. Microsoft Excel 2010: dicas e truques – mais de 200 segredos para maximizar sua produtividade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 1. 29 Klososky, Scott. The velocity manifesto. Op. cit. p. 10. 30 Virilio, Paul. A arte do motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p. 108. Grifo do autor.

19 que todo movimento é dotado de velocidade31. Na física clássica, Newton define em termos opostos, velocidade e lentidão, pensando ambos umbilicalmente vinculados ao conceito de movimento: “velocidade é a intensão do movimento, ao passo que a lentidão é a diminuição do movimento”32. Assim delimitada, velocidade é uma medida da relação entre espaço e tempo, é uma variação que se dá no intervalo de tempo do mover-se de um dado ente físico em um determinado espaço, constituindo assim uma trajetória matematicamente ponderável, levando em conta uma determinada ordem de grandeza. De algo ontologicamente dedutível, velocidade passa então a algo calculável. Isso significa que se torna possível, desde então, identificá-la, descrevê-la, dizê-la, concebê-la por meio de representações matemáticas. O que buscamos guardar dessa compreensão resta na ideia de ‘intensão’ enquanto aumento, ganho, vigor, veemência, condizentes à intensidade do movimento. Nessa direção, no domínio físico em geral, poder-se-ia dizer que o movimento dá-se sob três pressupostos: necessidade, espontaneidade e indeterminabilidade (esse último à luz da física moderna). Entretanto, ao levarmos em conta o movimento antrópico, ou o mover-se ligado à situação humana, não soará estranho conceber a ideia de que ‘ultrapassamos’ o domínio físico do movimento – sem dele se desvencilhar – na medida em que nos lançamos no âmbito da cultura (da ressignificação, da constituição de sentido). Ao fazê-lo criamos um sem-número de modos de mover-se (técnicas, métodos, disciplinas, num sentido foucaultiano33) indissociáveis de modos de fazer(-se) e ser plurais, configuradores de dinâmicas conflituosas e agonísticas desde as quais se fenomenaliza a atividade humana pro- motora da cultura. Em outras palavras, conjeturamos aqui a existência de modos de mover-se humanamente orquestrados aos quais se ligam relações de velocidade que em última instância são produtos culturais, não constituindo, por sua vez, objeto de ocupação científica para físicos. A partir desse registro de acordo com o qual o humano move-se para além das determinações físicas em razão da cultura, adoto uma concepção de velocidade próxima à visão relacional-relativista definida por Virilio em A Arte do Motor: “a velocidade não é um fenômeno, é a relação entre os fenômenos”34. É preciso dizer aqui que não se pretende hipostasiar a velocidade, pensá-la como se fosse uma coisa. Não a observo com lentes de aumento absolutizantes que a reivindicariam como uma substância autônoma; e, por essa via, me aproximo também do entendimento de Stiegler, para quem a velocidade em si mesma não é nada. Conforme escreve em sua obra La Técnica y El Tempo II: La Desorientación, “não se deve compreender em um sentido substancialista o que aqui denomino velocidade. A velocidade é a experiência que temos de uma diferença de forças: a velocidade em si não é nada. ‘Velocidade’ expressa a prova e o ato de um potencial constituído pela negociação de

31 Cf. Aristóteles. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. 1052b 27-31. 32 Newton, Isaac. O peso e o equilíbrio dos fluidos. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 55. Grifo do autor. 33 “Implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma realidade de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar ‘as disciplinas’” (Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 164). 34 Virilio, Paul. A arte do motor. Op. cit. p. 122. Grifo do autor.

20 tendências”35. Pelo contrário, enquanto construto cultural multifatorial tal relação assumiu e assume configurações distintas, múltiplas. Contudo, considerada desde a experiência histórico-cultural das sociedades ocidentais ou ocidentalizadas nas últimas três/quatro décadas, experiências estas que de alguma forma perpassam espacialidades outrora tidas por desligadas umas das outras (a vida veloz não oferece seu antagonista senão em controladas doses homeopáticas, alastrando-se da megalópole à pequena comunidade interiorana), a velocidade parece agudizar-se de modo macrotendencial na ação humana sob o signo tensionante da rapidez. A velocidade como relação que liga um fenômeno a outro, na experiência cultural hodierna, qualifica-se enquanto rapidez. Ademais, entendo essa concepção de velocidade como um valor, e este último interpretado sob a batuta nietzschiana, na condição de produto de avaliações emergidas de correlações entre forças, agenciamentos, que constituem o tecido dinâmico das relações vitais entre humanos, os quais são erigidos sob o caráter da transitoriedade. Enquanto tal, valor concerne à imposição de uma interpretação de mundo edificadora de modos de agir, e, por conseguinte, de uma moral como forma de organização vital36. Com base nisso, tenta-se aqui sugerir que a velocidade tornou- se um valor retroalimentado na/pela cultura contemporânea, o qual fez e faz eclodirem modos de relacionar-se entre humanos, entre humanos e objetos, entre humanos e técnicas, entre humanos e mundo, estranhos a outras épocas e fundadores de novas antropotécnicas ou antropotecnologias. Segundo Sloterdijk, antropotécnicas são processos de produção e autoprodução de seres humanos37; e mais particularmente, essa autoprodução dar-se-ia por meio de exercícios na condição de processos pelos quais nos qualificamos para realizar algo a cada vez que o repetimos38. Fábian Romandini afirma ser a “antropotecnia ou antropotecnologia as técnicas pelas quais as comunidades da espécie humana e os indivíduos que as compõem agem sobre sua própria natureza animal com o intuito de guiar, expandir, modificar ou domesticar seu substrato biológico [...] a própria história da espécie homo sapiens até a atualidade coincide, então, com a história das antropotecnologias (econômicas, sociais, educativas, jurídico-políticas, éticas) que têm buscado incessantemente fabricar o humano como ex-tasis da condição animal”39. A intensificação de um movimento humano que vem a ser cada vez mais célere, não se daria porque a sociedade veio se organizado tal como uma incomensurável Matrix determinante, ou pelo fato de ela ser um acontecimento universal irrefreável (muito longe disso!), mas porque essa intensidade entrou de uma

35 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo II: la desorientación. Hondarrabia: Argitaletxe Hiru, 2002.p. 21. Grifo do autor. 36 “Valores foi o homem que primeiramente pôs nas coisas, para se conservar – foi o primeiro a criar sentido para as coisas, um sentido humano! Por isso ele se chama ‘homem’, isto é, o estimador. Estimar é criar: escutai isso ó criadores! O próprio estimar é, de todas as coisas estimadas, o tesouro e a joia. Apenas através do estimar existe valor: e sem o estimar seria oca a noz da existência” (Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 58). 37 Cf. Sloterdijk, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. 38 Cf. Sloterdijk, Peter. Has de cambiar tu vida. Sobre antropotécnica. Valencia: Editorial Pre-Textos, 2012. 39 Romandini, Fábian Ludueña. A comunidade dos espectros I. Antropotecnia. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2012. p. 9. Grifo do autor.

21 vez por todas, e nisso mora a hipótese que aventamos e o risco que queremos correr, na esfera do desejo. Pelo dito, não teríamos que considerar a esfera do desejo como esfera condicionante-condicionada, fonte dinâmica de movimento? Não é da ordem do desejo estatuir-se em propulsor de ações, mediatizadas ou não pelas mais distintas instituições humanas? E mais: não haveria nesses corpos desejantes hodiernos uma espécie de desejo de rapidez coexistindo com o desejo do desejado? Ou é da natureza do próprio desejo o ser rapidamente saciado? Abdicando aqui da realização de uma meta-teoria do desejo, ou uma reflexão mais aguda sobre tal ideia, buscando adotar uma perspectiva associada à psicanálise e ao pensamento contemporâneo (especialmente a interpretação deleuzeana), entendemos ser o desejo “qualquer forma de movimento em direção a um objeto cuja atração espiritual ou sexual é sentida pela alma e pelo corpo”40. Desaconselhando a manutenção dessas distinções essencialistas (corpo e alma), e do desejo como falta (à maneira de Schopenhauer), eis o que nos interessa: tal como um movimento movente, o desejo consiste numa propensão à realização de algo (como potência), e, nesse sentido, o que parece estar em jogo no modo das relações sociais contemporâneas é o fato de que o tempo dessa realização deve regular-se segundo práticas de rapidez que são tão desejadas quanto aquilo mesmo que se estabelece como objeto de desejo ou gozo. Enquanto humano enredado nos inícios do século XXI, no âmago das sociedades ditas globalizadas, plurinformacionais, mortificadoras das distâncias mediante o parâmetro virtual, meu desejo mistura-se ao desejo de rapidez. Por essa via, se for válida a afirmação de Deise Juliana Francisco, de acordo com a qual “um dos atravessamentos em nosso cotidiano é a velocidade”, ao depreendê-la como um “índice a partir do qual podemos dimensionar as relações sociais, pois regula as relações, acelera o movimento, destituindo o tempo da sociedade de Bem-Estar para a sociedade da instantaneidade, do gozo do momento”41, então resta possível interpretar, num exercício reflexivo que se sabe tateante, a velocidade como um valor regulador das relações, intersubjetivamente co- determinado. Com efeito, rapidez, celeridade, ligeireza, brevidade, aceleração, serão nomes mediante os quais se enunciam os modos da velocidade (modos de mover-se) na experiência cultural em que nos encontramos. Não se trata de uma interpretação que defende uma posição determinante das estruturas, mas um acontecer de interações entre os múltiplos e quiçá imponderáveis fatores que em frouxas e efêmeras coalizões constituem a experiência sociocultural contemporânea, e as máquinas ou subjetividades desejantes – talvez uma tentativa de realizar uma despretensiosa ontologia desse ‘agora’ que é o nosso. Dito isto, não estaríamos talvez ensaiando uma ontologia do presente42, seguindo rastros foucaultianos?

40 Roudinesco, Élizabeth; Plon, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 146. Como esclarece Maria Rita Kehl, implicando a meu ver o mover-se em um intervalo de tempo configurador do desejo, o “sujeito do desejo” em psicanálise seria “um intervalo sempre em aberto entre o tempo próprio da pulsão e o tempo urgente da demanda do Outro” (Kehl, Maria Rita. O tempo e o cão. Ibidem. p. 112). 41 Francisco, Deise Juliana. Por uma psicologia que se diz social: contemporaneidade, tecnologia e subjetividades. In: Rivero, Nelson. Psicologia social: estratégias, políticas e implicações. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. p. 99 42 Cf. Foucault, Michel. Qu’est-ce que les Lumières?. In: Dits et écrits. Vol. IV. Paris: Gallimard: 1994, p. 688.

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Ao adotar a interpretação viriliana de velocidade, compramos igualmente seu diagnóstico dromológico sobre as fronteiras culturais do século XX: “não há mais ‘revolução industrial’ e sim ‘revolução dromocrática’, não há mais democracia e sim dromocracia, não há mais estratégia e sim dromologia”43. Com essa última palavra, Virilio se refere a uma ciência dedicada a compreender a velocidade nas dinâmicas políticas e culturais da contemporaneidade, seus possíveis efeitos e desdobramentos. Talvez a necessidade de uma tal ‘ciência’ instaurar-se-ia pela admissão inicial da impressão conforme a qual teríamos nos tornado, hegemonicamente, seres dromomaníacos: “a família burguesa rui, a troca de parceiros é tolerada, o adultério mais facilmente admitido, os corpos se expõem livres do peso das vestimentas e logo liberados de corpetes, as diferenças físicas entre os sexos se atenuam, nos mexemos, movimentamos vinte e quatro horas por dia, somos febris, excitados, agitados a torto e a direito”44. Dentro desse quadro, não interpreto velocidade como algo que vem a ser unicamente pela aceleração da produção capitalista (admitindo-se por ora que as estruturas capitalistas acionaram o botão da motorização do humano moderno): ela igualmente estoura em um sentido narcísico, performático, que nos parece mesmo simultâneo àquele estrutural, quanto à sua volátil sedimentação. Aventuro-me ao apontar as relações de prestação de serviços, o niilismo, o hipermobilismo e as tecnologias computacionais da era do virtual, como os seus principais vetores hodiernos, e compreendendo-a de uma perspectiva relacional, lanço a conjetura pela qual me sinto afeiçoado: a velocidade vem se tornando um valor moral. Qual o preço da celeridade? Não importa, ele é pago! Ele não é passível de discussão, uma vez que a celeridade mesma parece ter se tornado um dogma, não sem ter antes se tornado uma obstinação.

43 Virilio, Paul. Velocidade e política. Op. cit. p. 56. 44 Virilio, Paul. A arte do motor. Ibidem. p. 83.

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Capítulo II

Uma curta história da aceleração

“A história se acelera”45.

E pur si muove! Galileu já não teria anunciado o porvir da civilização moderna ao sussurrar essas palavras? E inclusive acionado o tiro de revólver (e inclusive o de misericórdia) que deu início à corrida? A afirmação do movimento planetário do doravante astro autônomo, e ao mesmo tempo destronado, a contornar um sol cuja luz servirá de metáfora-mor da racionalidade culminante no século XVIII, representaria talvez um simbólico start ao que ensaiarei aqui sob o nome de uma história da aceleração. A possibilidade de uma hermenêutica histórico-cultural das dinâmicas de aceleração dos povos, das diversas formas assumidas pelos fluxos antrópicos, vem, a meu ver, apoiada por um pressuposto somado a uma questão que me serve de guia: admitindo que nas experiências das sociedades humanas no final do século XX e início do XXI estouram novos modos de relacionar-se do humano, mediatizados por uma infinidade de processos que de maneira gradual intensificam o ritmo das mais distintas formas assumidas pelas relações humanas (consumismo, individualismo, espetacularização, realidade virtual, inteligência artificial, tempo real, para dizer alguns), que motivações, interesses, estruturas e narrativas, poderiam reconhecer-se como fiandeiras históricas dessa condição? Assentindo desde já que qualquer análise dessa questão será inelutavelmente limitada pela opção de um viés interpretativo, coloco-me em direção à criação de um caminho que se quer tão-somente ao lado de outros meandros possíveis. Dessa perspectiva, acredito que as circunstâncias de armação e o próprio desenvolvimento do capitalismo constitui um dos lugares plausíveis desde os quais é legítimo pensar essa indagação, uma vez que ele mesmo se confunde – não sem uma tonelada de problemas – com a imagem histórico-social do que mais tarde se intitulará modernidade, tomada apenas enquanto “categoria narrativa”46. A percepção desde a qual as dinâmicas de produção constitutivas da estrutura47 econômica do capitalismo industrial contribuem para o estabelecimento de modos de configuração da vida social, consiste num locus argumentativo que nos possibilita compreender de um horizonte macroscópico algumas razões pelas quais os povos nelas enredados tiveram sua existência profundamente modificada por uma aceleração cotidiana sem volta, que Goethe compreendia como uma ‘pressa diabólica’ em sua diagnose da

45 Augé, Marc. Não-lugares. Op. cit. p. 29. 46 Jameson, Frederic. Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 53. Conforme indica Jameson, “para Marx a modernidade é simplesmente o capitalismo” (Jameson, Frederic. Modernidade singular. Op. cit. p. 97). 47 Aqui manuseamos uma concepção de estrutura pensada à maneira de Fernand Braudel ao pensar a história como movimento célere: “uma estrutura é um corpo subtraído à gravidade, à aceleração da história” (Braudel, Fernand. Escritos sobre história. 2. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005. p. 107). Portanto, as estruturas não são fixas, mas dinâmicas, tensas em suas composições efêmeras, continuamente moldadas.

24 modernidade, nomeando-a com o neologismo Velozciferisch (velocidade + Lúcifer). Esta transfixou as relações de trabalho, alastrando-se das relações interpessoais às relações do próprio ‘sujeito’ consigo mesmo, alterou de modo substantivo a experiência do tempo, recriou a paisagem urbana, redimensionando por tudo isso a imagem de ser humano e de mundo que os povos empurrados nos bolsões da modernidade outrora portavam. Nas palavras de Lipovetsky, “com a modernidade, impõe-se um regime de temporalidade radicalmente inédito, dominado pela dissolução do eixo tradicional do passado legislador e por uma aceleração formidável da velocidade dos processos sociais”48. A esse respeito, Adorno e Horkheimer são um tiro certeiro. A ideia de coisificação vinculada ao engendramento da razão instrumental, efeito das agências capitalistas de produção em massa, revela o estrago: “com a coisificação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo. Ele se reduz a um ponto nodal das reações e funções convencionais que se esperam dele como algo objetivo. O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas”; e, além disso, asseguram os frankfurtianos, “o aparelho econômico, antes mesmo do planejamento total, já provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre os comportamentos dos homens”49. Nos bastidores lógico-ontológicos desse tornar-se coisa, mora o entendimento marxista segundo o qual a condição histórico-social dos existentes humanos é condicionada pelas relações de produção em uma época50. Porém, e sem tomar partido por uma leitura ortodoxo-determinística dessa afirmativa, a crítica recusará seu suposto caráter estruturalista51, ou então, salientará o reducionismo de certas interpretações, ressaltando o potencial agenciador dos sujeitos sociais inscrito no conceito de luta de classes, como é o caso de Terry Eagleton: “a afirmação de que para Marx tudo é determinado pela economia é uma supersimplificação absurda. O que molda a história, a seu ver, é a luta de classes; e as classes não são redutíveis a fatores econômicos [...] é sintomático que falemos de classes sociais, e não de classes econômicas. Marx escreve sobre as relações ‘sociais’ de produção, bem como sobre revolução ‘social’. Se as relações sociais de produção têm prioridade sobre as forças de produção, fica difícil ver como algo francamente rotulado como ‘o econômico’ possa ser o motor primordial da história”52. Tomando distância dessa discussão, o que nos interessa pensar no instante em que fazemos menção a esse conceito, uma vez que a luta de classes é concebida por Marx e Engels como motor da história, é a metáfora do motor. Sendo semanticamente ‘aquilo que move’ ou ‘aquilo que produz movimento’ (força movente, princípio gerador de movimento, em um sentido cuja tradição se mantém praticamente intacta a contar da Física de Aristóteles), a palavra ‘motor’ deriva do

48 Lipovetsky, Gilles. Da leveza: para uma civilização do ligeiro. Lisboa: Edições 70, 2016. p. 106. 49 Adorno, Theodor & Horkheimer, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 35. 50 Para Marx e Engels haveria “uma conexão materialista dos homens, a qual é condicionada pelas necessidades e pelo modo de produção é tão velha como os próprios homens – uma conexão que assume sempre formas novas e que, por conseguinte, apresenta uma história” (Marx, Karl & Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Moraes, 1984. p. 33). 51 É o caso de Cornelius Castoriadis, que “nega o primado das relações econômicas, pois estas não podem ser erigidas em sistema autônomo e regidas por lei próprias” (Manieri, Dagmar. Teoria da história: a gênese dos conceitos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 137). 52 Eagleton, Terry. Marx estava certo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 74.

25 verbo latino movere, o qual, além de corresponder ao verbo mover, também abarca o verbo comover53. Numa passagem d’A Ideologia Alemã, afirmam os autores, “a força motora da História, também da religião, da filosofia e de todas as demais teorias, não é a crítica, mas sim a revolução”54. Não será então um acinte se entendermos que a luta de classes confunde-se com a própria transformação revolucionária, e mais: que revolução e luta de classes fundem-se como a única força propulsora de transformação das bases materiais/espirituais de uma sociedade. Nessa senda, indago-me se o ‘motor’ só funciona uma vez... Se unicamente atua no entreato de um modo de produção a outro, como no caso da peleja entre os sistemas feudal e burguês. Uma coisa parece soar eloquente: no capitalismo, o motor jamais desliga! Marx e Engels perecem convencidos disso: “a burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de sua produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das relações sociais [...] O contínuo revolucionamento (Umwälzung) da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes”55. No feudalismo, a inalterada realidade dos costumes de produção revelaria uma vivência do tempo que a ininterrupta marcha do Umwälzung capitalista atropelou, no afã de garantir a tensa perenização da sociedade burguesa. Essa contínua transformação das relações sociais, sem a qual não é possível assimilar a mecânica de armação e desenvolvimento do capitalismo burguês, é um motor construído e realimentado historicamente nas diversas expressões da interdependência contingente entre indivíduo e estrutura, com o qual outros tantos motores da cultura foram criados e acionados, aumentando ‘a toque de caixa’ suas performances. Ao tecer um comentário acerca do anjo da história de Walter Benjamin, Jameson nos oferece a aguda percepção que o filósofo alemão exibia sobre essa motorização da história, destacando que “o vento da tempestade que ele [Benjamin] identificou com a história, ou em outras palavras com o capitalismo, deve ser imaginado como aumentando de intensidade, de ano para ano e de período para período”, entendendo essa qualidade como própria da “temporalidade do capitalismo – com suas mudanças cada-vez-mais-rápidas de estilo e de moda”56. Mas nos parece mais que isso: o movimento contínuo a arrebentar num sem-número de desdobramentos da vida moderna, que ultrapassam e desmantelam a cisão entre produção estrutural e subjetiva, acabou por erigir a velocidade praticamente como fim em si mesmo. É nesse sentido que Guillhermo Giucci aposta na ideia de uma modernidade cinética, ao asseverar que “a velocidade se impõe como a base da civilização moderna”57; e Paul Virilio articula velocidade e civilização na ficção discursiva ínsita à última configuração do poder político da modernidade tardia, selada pelas rápidas antecipações e previsões na administração das formas renovadas de guerra (sobretudo ante a Guerra Fria) de uma meteorologia política dromocrática58.

53 Magalhães, F. Dicionário português-latim. São Paulo: Editora LEP S.A., 1960. p. 217. 54 Marx, Karl & Engels, Friedrich. A ideologia alemã. Op. cit. p. 48. 55 Marx, Karl & Engels, Friedrich. Manifesto do partido comunista. 14. ed. São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2008. p. 69. 56 Jameson, Frederic. Modernidade singular. Ibidem. p. 153. 57 Giucci, Guillhermo. A vida cultural do automóvel. Percursos da modernidade cinética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. p. 48. 58 Cf. Virilio, Paul. Velocidade e política. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p. 129.

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Todavia, a empresa capitalista precisaria de uma dama, uma dama-motor, com a qual pudesse valsar, como até hoje o faz, sobre nossas cabeças: a ciência adentra o salão, completando o triangular eixo de sustentação do grande mito do século XIX: capitalismo, ciência e progresso. Certamente, e guardando a ambiguidade da expressão, a ciência é um motor produtor de motores. “Criadora de uma quantidade inédita de movimentos”, escreve Virilio, “a inovação do motor, que dá de uma só vez o que o tempo só permite pouco a pouco (Morand) acostumou seus habitantes a revisitar o planeta não mais como seres submetidos a leis físicas e prisioneiros do relógio saintsimoniano, mas como seus rebeldes, seus marginais, seus foragidos”59. O saber científico fundou as condições de criação de um aparato técnico-tecnológico que cresceu exponencialmente em diversas direções, invadindo, reconfigurando e produzindo, para além da natureza, circuitos de interação humana: da organização da administração pública à vivência privada nas residências da classe média vitoriana. Nesse sentido, a simbiose entre ciência e técnica constitui um fato novo que fabricou não apenas uma armação inteiramente nova da situação humana, mas o fez com uma velocidade ainda não experienciada, pois, tal como entende Bernard Stiegler, “a técnica é uma formidável aceleração da produção do novo”60. Pois bem, ao motor científico corresponde o motor técnico. José Ortega y Gasset assegura tal vínculo em sua reflexão acerca da técnica, diagnosticando que “os criadores da nova ciência se deram conta de sua consubstancialidade com a técnica”, ao passo que o elo entre conhecimento e manipulação do mundo havia atingido um ponto ignorador de limites; ademais, Ortega examina a obra Que é a Tecnocracia? de Allen Raymond, e nela o problema do tecnicismo que resultou na transmutação do trabalhador fabril em “motor humano”, efeito da profunda transformação que se operou desde a época de James Watt e seu aperfeiçoamento do motor a vapor. Nas palavras de Ortega, “mudanças cada vez mais rápidas ocorreram desde então. O progresso social, até então desconhecido, avançou lentamente no princípio, depois deu uma carreira, levantou voo, e avançou com a rapidez”61. A linguagem não nos deixa enganar: as narrativas do progresso contêm em seu âmago, em seu mix de progresso científico-econômico-social, a medida da velocidade, algo consumado pela entrada perempta da técnica na armação das sociedades modernas. Stiegler parece estar atento a isso ao cogitar que “a especificidade da técnica moderna obedeceria em uma parte essencial à velocidade de sua evolução”, entendendo ser uma história geral da técnica, para além de seu devir moderno, a “história de uma aceleração que também determinou, segundo Braudel, la história mesma”62. Na administração das dinâmicas de trabalho fabril a materialização do tempo enquanto valor não pode prescindir da forjadura de performances produtivas cujo objetivo procedural é a velocidade, condição de possibilidade do crescimento do lucro, da qual a lógica capitalista não mais abrirá mão63. Fez-se então necessária uma ciência

59 Virilio, Paul. A arte do motor. p. 79/80. Grifo do autor. 60 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo II. Op. cit. p. 241. 61 Ortega y Gasset, José. Meditación de la técnica. 7. ed. Madrid: Revista de Occidente, 1977. p. 115/116. 62 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo I. Op. cit. p. 43/44. Grifo do autor. 63 Segundo Olgária Matos, “as determinações econômicas aceleram o tempo por meio dos mecanismos de mercado. Fascinados, dirigentes empresariais buscam o lucro a curto prazo, com obsessão pela performance e pelo desempenho produtivo anfetamínico” (Matos, Olgária. Advinhas do tempo: êxtase e revolução. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. p. 54).

27 no sentido de uma performática do labor que, paradoxalmente, ao condenar o trabalhador à fixidez dos movimentos repetitivos e neuroticamente controlados, sedimentou uma devoção humana à velocidade encarnada na figura deífica do automóvel levada à enésima potência: “Taylor e Ford estavam obcecados com o problema do tempo perdido na produção. A imagem é surpreendente: a semi- imobilidade dos operários na linha de montagem estimula uma intensificação brutal do movimento planetário”64. A velocidade transmutada em fetiche, em realização do eldorado cinético pela automobilidade, algo fenomenalizado na presença frequente do vínculo propagandístico entre carro e animal, como aponta Giucci: “são emblemas de força e velocidade os que energizam o motor: jaguar, leão, puma, cavalo. Na origem das marcas há um pequeno jardim zoológico”65. Essa dromofauna sintetiza-se no indivíduo ao volante em cada arranque, freio brusco, em cada ronco de motor anomatopéico, tal como escreve Saramago: “os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata”66. Com efeito, o aumento da velocidade nos meios de produção capitalista, sob as batutas do desenvolvimento técnico exercido pelas ciências, é um dos capítulos mais fundamentais, senão o mais fundamental a uma história da aceleração; significa dizer que a aceleração da produção constitui ao mesmo tempo uma etapa decisiva e um continuum histórico à/na atual experiência ultracinética. O acontecer histórico, por ser humano – como um fazer-se no tempo –, implica formas de mover-se, e estas, determinadas relações de velocidade entre elas. Sendo assim, admito nesta análise que as formas de mover-se do humano coletivo se modificam plasmando devires múltiplos, nos quais o sucessivo coexiste ao simultâneo, ao disruptivo e ao irruptivo. Talvez a constatação a que chega Virilio deva ser compreendida nesse viés, “constatação que diz respeito à mudança de velocidade da história: tempo longo, tempo curto, tempo real”, uma vez que “o tempo que muda é a velocidade que se modifica e a história que muda de lugar e que atinge, finalmente, um limite insuperável de aceleração”67. O ‘insuperável’ desse limite parece guardar um vínculo intersticial com o ‘incontrolável’ da técnica, ao passo que a permanente aceleração nos meios de produção pro-move a massificação da velocidade consubstanciada a uma massificação da rapidez da qual me creio coetâneo. Mas os motores até então postos em jogo aqui – capitalismo e ciência – tiveram de contar com outro um tanto quanto meta-histórico e superexigente: o desejo. À vista disso, uma hermenêutica da aceleração necessita perpassar uma compreensão de possíveis discursos cujos núcleos apresentaram o desejo de velocidade como o desejo a ser doravante desejado. A publicidade se encarregara de parte significativa desse trabalho, e pode-se mesmo dizer que sua origem está mancomunada com esse objetivo. Mas a arte do início do século XX, a literatura e a poesia em especial, através do futurismo inaugurado por Filippo T. Marinetti, tomou para si não só o propósito de mitificação da velocidade, mas a celebrou como nova religião-moral. O Manifesto Futurista (publicado em 20 de fevereiro de 1909 no jornal francês Le Figaro) instauraria uma

64 Giucci, Guillhermo. A vida cultural do automóvel. Op. cit. p. 236. 65 Ibidem. p. 40. 66 Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 11. 67 Virilio, Paul. A arte do motor. p. 124/125. Grifo do autor.

28 concepção de velocidade enquanto valor fundante a uma estética literária, que, a um só golpe, fez o encômio da aceleração e anunciou o desterro da imobilidade. Sua crítica literária passava impiedosa por uma rejeição das figuras tradicionais do hirto e do moroso, pois “desde então”, escreve o italiano, “a literatura exaltou uma imobilidade pesarosa, êxtase e sono”, cujo contraponto não poderia ser outro: “nós afirmamos que a magnificência do mundo foi enriquecida por uma nova beleza: a beleza da velocidade”. Não obstante os arroubos fascistas de seu autor, esse salmo carrocêntrico da velocidade às divindades metálico-motorizadas derramou seu aroma (e também o mau cheiro oriundo da combustão) nas mais distintas expressões artísticas (pintura, escultura, teatro, música, cinema68), batizando o futurismo como a primeira grande declaração pública de sua querença. Noutros termos, nos palimpsestos do manifesto podiam notar-se palavras de ordem: Queremos a velocidade! Reivindicamos uma vida veloz! O belo está no rápido, no célere! Se o manifesto de 1909 enaltece uma atividade artística devotada à velocidade, A Nova Religião-Moral da Velocidade (de 11 de maio de 1916) vem à tona como uma espécie de programa prático-religioso destinado a torná-la, para além da condição de valor estético das sociedades industriais automotobilizadas, o paradigma moral a qualquer sociedade humana doravante, a civilidade cinética. Mas uma religião não se sustenta sem uma divindade: um deus sentado em um trono, meditabundo ou preso em uma cruz é uma afronta! Hélio, Hermes, Zéfiro, deuses da circulação, potestades motorizadas, materializam-se nas máquinas impulsionadas por motores de combustão ininterruptamente aperfeiçoados consoante a teleologia do novo desejo divino. Mas a literatura parece ter dado um passo a mais nessa divinização com o escritor francês Paul Morand: não bastava tematizar a velocidade, era preciso uma forma literária veloz. Num de seus artigos publicados no Le monde, Deleuze tece o seguinte comentário acerca do escritor: “a extrema importância de Paul Morand, mal percebida hoje, está em ter ele introduzido, por volta de 1925, a velocidade na literatura, no próprio estilo, em relação com o jazz, com o automóvel e o avião”69. Uma estilística pulsante como antídoto contra uma até então hegemônica forma literária estática. Com efeito, na afirmação de Giucci em torno da impressão de alguns intelectuais da metade do século XX, em consonância com a nota do historiador Stephen Kern, “concordava-se que o taylorismo e o futurismo, a nova tecnologia, a nova música e o cinema tinham feito o mundo correr”70. O discurso ideológico da celeridade foi tecido e retorcido por uma até o momento desconhecida epidemização do deslocamento, compressão das distâncias e fronteiras que esculpiu novas estruturas, menos rijas, cujo fundamental atributo é o estar em fluxo. Para mim, esse estar em fluxo é seduzido pela mesma lógica teleológica do desejo de velocidade à medida que pretende engendrar condições concretas de

68 Alguns nomes do movimento vanguardista italiano: o compositor , os escritores Luciano Folgore, Mina Della Pergola, Emma Marpilero, Francesco Cangiulo; os artistas plásticos , , , Benedetta Cappa Marinetti, Mario Sironi, , , Gino Galli; os cineastas Anton Giulio Bragalia, Ivo Illuminati, Remo Chitti, Carlo Ludovico Bragaglia, e no teatro, Ettore Petrolini, Rodolfo Tonino e Antonio Fornari. Fora da Itália, destacam-se os trabalhos dos russos Vladimir Maïakovski e Vadim Shershenevich, do polonês Bruno Jasieński, do peruano Alberto Hidalgo, entre outros. 69 Deleuze, Gilles. Hélène Cixous ou a escrita estroboscópica. In: A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2004. p. 185. 70 Giucci, Guillhermo. A vida cultural do automóvel. Ibidem. p. 51.

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‘ganho de tempo’ – esta velha-nova moeda – por intermédio da equação ideologicamente construída entre eficiência e rapidez, instaurando assim uma economética, um ethos da economia radical de tempo que transita frenético do trabalho para a vida social, desta para a existência individual e psíquica, e vice-versa. Grandes sistemas de transportes, aeroportos, estações ferroviárias, autoestradas, paradas de ônibus, agências de viagens, redes hoteleiras (nutridas pela mundialização do turismo e do business), engenharia de tráfego, engenharia de produção (o exemplo do toyotismo de Taiichi Ohno), complexificação dos sistemas de circulação de produtos, os shopping centers, os supermercados, o delivery; proliferação dos meios de comunicação de massa: explosão de plataformas (todos ao mesmo tempo agora, TVs, PCs, gadgets), circulação de informação em ritmo industrial, informação- fragmento, informação-vômito de uma úlcera comunicativa indômita; informação instantânea, simultânea, recobrindo o universo telemático, ocorrendo em uma incomensurabilidade galopante. Em síntese, como diz Augé, “estamos na era das mudanças de escala”71. Não é preciso ir muito longe: a aceleração endógena já se tornou endêmica: já transbordou para dentro dos corpos humanos, pulverizada em incontáveis e complexos motores aceleradores da cultura contemporânea. O capítulo seguinte, que ainda está sendo escrito porque se concebe inacabado, dessa curta história da aceleração começa exatamente por essa constatação de alto grau de consensualidade, pois as dinâmicas humanas no mundo contemporâneo não podem comparar-se em termos de aceleração com aquelas vividas em outras épocas, porquanto nem mesmo a história conseguiu livrar-se dela, pois, “a ‘aceleração’ da história corresponde de fato a uma multiplicação de acontecimentos na maioria das vezes não previstos pelos economistas, historiadores ou sociólogos. A superabundância factual é que constitui o problema”72. É nela, na superabundância factual, que Augé afirma residir a origem da supermodernidade, e suas três figuras da transformação acelerada e de excesso postas em sua tentativa de refundação da antropologia desde aquilo que denomina não- lugares: o tempo e a mudança no modo como o percebemos e o usamos; o espaço e a mudança em relação à sua experiência, cada vez mais encolhido e esfumaçado; e, por fim, a figura do ego e seu retorno em uma posição de centralidade nas narrativas históricas hodiernas. Não-lugares, escreve o antropólogo, “são tanto instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são estacionados os refugiados do planeta”73. Não-lugares são canais, dutos, aceleradores de partículas- gente, são fluxos rizomáticos, sintomas nítidos do processo histórico de coação à ultradeambulação. Noutra paragem, Stiegler examina consequências paradoxais da aceleração no século XXI. Em primeiro lugar, trata do caráter performativo das informações em sua consubstancialidade com a velocidade, frisando terem atingido uma infinita proliferação ao ponto de se tornarem intratáveis para nós. Este autor constata o frenesi em construir inteligências artificiais (softwares e programas de toda sorte) que nos permitiram tratá-las, quando já havíamos esgotado nossa capacidade de fazê-lo

71 Augé, Marc. Não-lugares. Ibidem. p. 34. 72 Ibidem. p. 31. 73 Augé, Marc. Não-lugares. Ibidem. p. 36.

30 humanamente. Nesse contexto, o segundo efeito denotado inscrever-se-ia sob as batutas de uma neurose da antecipação, da previsibilidade e calculabilidade, que revestiria a velocidade de uma objetividade estratégica e, ao mesmo tempo, fabricaria um clima de urgência perene. “Sendo as novas sínteses sobredeterminadas pelo imperativo econômico de rentabilidade”, afirma Stiegler, “a velocidade levada ao seu limite é a palavra chave de um dispositivo cujo principal efeito pode ser caracterizado como estado de urgência generalizado”74. Nosso século é o das tecnopolis! Em seu reinado os novos artefatos tecnológicos vigoram sob o selo de uma permanente corrida inovadora financiada por grandes corporações tecno-industriais. O paradoxo consiste no fato de o avanço à máxima velocidade desse ‘mecanismo generalizado’ conviver com a escancarada perda de sua glamourização em razão de efeitos considerados hostis. Segundo o Bernard Stiegler, a viralização do mencionado estado de urgência resultaria não somente dos meios de circulação e transporte de indivíduos, mas em simultâneo das redes de circulação de informação. A urgência é hóspede da indústria que a presentifica na busca de eliminação das ameaças provenientes dos resultados não calculáveis e imprevisíveis da aceleração, e mais ainda: ela viralizou-se nas ocorrências cotidianas das tecnocidades, contaminando-engendrando condutas. Àquele “ar de hospital”, cheirado, olhado e escutado por Nietzsche, em toda forma “de ‘Europa’ sobre a terra”75, acrescentamos o fato de que estamos bem dentro dele e que queremos atendimento urgente, conforme a ilustração de Stiegler: “um acidente entre uma ambulância e um carro de polícia que, transgredindo as leis normais de circulação, que afluiram ao local de uma mão esquerda similar, oferece uma imagem da situação ordinária que engendra a tendência estrutural à aceleração. A mesma estrutura se acha tanto nos efeitos voláteis das telecomunicações como na antecipação dos acessos à memória em geral – trata-se aqui da velocidade, e de maneira mais geral, do ganho enquanto ganho de tempo; da antecipação sobre o futuro, onde a antecipação tecnológica industrial põe a técnica em crise e em estado de urgência permanentes”76. Com o atestado de óbito da estabilidade, a permanente situação de urgência instalou-se invadindo os corpos sociais, ressignificando o âmbito simbólico e ideológico da esperança atrelada ao desenvolvimento técnico que, fatigada e decaída por sobre os contrastes impingidos pela dinâmica velocíssima de tal desenvolvimento, vê-se obrigada a abandonar os barcos de porvires precisos – talvez, o derradeiro sopro natimorto de um idealismo político de beira de calçada, o qual ainda julga ingenuamente operativa a ideia de progresso ou melhoramento da humanidade. Assim, do ministério da defesa à lavanderia, tudo urge! Tudo deve ser realizado não simplesmente como se, mas como de certeza requeresse imediatamente uma resolução. “No século XXI”, conclui Olgária Matos, “nada é realmente proibido e, no entanto, nada é realmente possível porque não há laços estáveis e a monotonia é tanto mais terrível quanto menos se vislumbra um futuro. Vive-se pressionado por ‘urgências’”77. Será que aceitamos quase passivamente o desembocar em uma nova forma de automatismo? Fechamos um acordo com um quase total automatismo

74 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo II. Ibidem. p. 209. 75 Nietzsche, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. III - § 14, p. 111. 76 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo II. Ibidem. p. 212/213. Grifo do autor. 77 Matos, Olgária. Adivinhas do tempo. Op. cit. p. 56.

31 hipercélere? E isso, mesmo em tempos de intenso individualismo e ode à personalização? Essa história da aceleração como profunda aceleração da história parece ter chegado a uma história que se faz para devorar-se a si mesma de forma instantânea, ouroboro engolindo a própria cauda: ou tal interpretação deve ser julgada trôpega e unicamente encobre a necessidade de requisição de uma totalidade histórica que ainda estaria em vias de instauração, ou, deve ser reputada plausível, ao lançar mão de expedientes reflexivos que suscitam uma compreensão de elementos percebidos numa intersticial conexão, numa maquinação multifatorial, configuradores de realidades em constantes fluxos velozes. Há muitas, pequenas e grandes, ocultas, abertas e descontentadoras histórias da aceleração a serem escritas! Numa dessas tentativas, o antropólogo norueguês Thomas Hylland Eriksen em seu livro Tyranny of the Moment: Fast and Slow Time in the Information Age, publicado no ano de 2001, situava a seguinte questão: “hoje em dia, começamos a esperar impacientemente a resposta de cerca de 30 segundos depois de pressionar a tecla ‘Enviar’ na tela. Essa forma de aceleração tem vários tipos de consequências, sem falar dos efeitos colaterais”78. Para onde foram, nos em quase todos os casos em que hoje, em 2017, apertamos esta mesma tecla, os referidos 30 segundos? O que dizer depois de experiências como estas, nas quais o próprio ouroboro esfumaça-se diante de nossos olhos ou sequer entra em jogo? Em nossa época, cada dia se passa como se pisássemos num acelerador de 360 graus, que é enxergado, nos limites de nosso olhar presente, como infinito. A grande síntese que ocorre debaixo de nossos pés, em frente aos nossos olhos, por dentro de nossos sistemas digestivos, de nossos cérebros, está na interdependência entre economia de tempo e alta velocidade. Nesse sentido, é indispensável pensar a própria experiência humana do tempo ante a démarche de uma ‘patológica’ institucionalização da aceleração.

78 Eriksen, Thomas Hylland. Tyranny of the moment: fast and slow time in the information age. London: Pluto, 2001. p. 58.

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Capítulo III

O contemporâneo: outra experiência do tempo

“Tempo e Espaço morreram ontem. Nós já vivemos no absoluto, porque nós criamos a velocidade, eterna, omnipresente”79.

Embora possa dar a entender que separo focos temáticos pelos capítulos desse ensaio, os vejo intercambiantes e indispensáveis ao trato da conjetura que ora avento sobre uma visceral articulação entre velocidade e moral na cultura hodierna. Um desses focos diz respeito à noção de tempo, ou melhor, à construção sociocultural de uma experiência do tempo na e com a qual nos percebemos enredados, sendo concomitantemente seus entusiastas fiandeiros. Selada por uma hipertrófica dinâmica de compressão opressiva, de hiperceleridade, essa experimentação do tempo enlaça em sua complexa efetivação, dimensões da temporalidade humana (o caráter transitório da existência, a finitude) e ingredientes das modernas estruturas de tempo, tornados frouxos e volatilizados pela paisagem hipermoderna, instituindo-se coletivamente como um modo particular de sentir durações, períodos, movimentos, esperas, prazos, promessas, desde um entendimento do tempo enquanto significação socialmente compartilhada e ininterrupto construto social. Numa distinção cara à tradição filosófica, essa outra experiência do tempo que emerge no contemporâneo passa e se constrói pelos intercruzamentos e tensas ligações entre um tempo objetivo (enquanto próprio do mundo, das estruturas, do cronômetro, do Big Ben) e um tempo subjetivo (enquanto tempo psicológico, tempo da vivência e do indivíduo, enquanto memória 80). Se as condições materiais arvoradas pelo motor capitalista transformaram o tempo em valor, em moeda de troca, a velocidade foi a reboque: com sua assunção a valor desejado, dá-se uma maneira outra de regulação-organização vital na cultura contemporânea que é marcada menos por uma ‘vivência do tempo’ que por um ‘jogar com o tempo’. Tendente à hegemonia, este jogar predomina sobre o experimentar a passagem do tempo (o ócio contemplativo, o bucólico escutando os uivos do vento); sua única regra consiste em ganhar, obter vantagem sobre o tempo, vencê-lo, dominá- lo, dele fazendo o perpétuo adversário e não o inimigo a ser aniquilado. O conflito com o tempo resulta assim obsoleto, uma vez que Cronos não nos engole mais: nós que o engolimos e regurgitamos. O tempo cujo poder se mantinha e se consolidava na devoração, esfarela-se na completude desse devorar, edificada pela nova experiência do tempo real: nesta, o tempo devorou-se a si mesmo, um Cronos auto-teopófago comeu-se a si mesmo, um Anti-Cronos, de tal sorte que as chances de um mito ter sido permutado por outro não são pequenas.

79 Marinetti, Filippo Tommaso. Manifesto futurista. Le Figaro. Paris, 20 de fevereiro de 1909. 80 Cf. Agostinho. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2004. Livro XI.

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De acordo com Norbert Elias, embora possamos senti-lo como algo a nos coagir, como é próprio de qualquer símbolo social, o tempo também é aprendido81. Considerando o fenômeno apenas em sua face contemporânea, penso essa aprendizagem em termos de uma experimentação sedimentada na relação simultânea – e não menos agonística – entre a autocoerção (ou autodisciplina, ou exercício antropotécnico) dos indivíduos, operada nos agenciamentos com o tempo social, estabelecidos pelos esquemas lógicos da cultura capitalista industrial e pós-industrial, e a angustiante lida existencial-individual do humano consigo mesmo enquanto pura efemeridade (finitude). Arrisco então afirmar, num sentido eurístico, uma espécie de mutualismo entre tempo simbólico-cultural (de fora para dentro, posição exógena) e temporalidade (de dentro para fora, posição endógena), os quais se flecham e constituem-se mutuamente. Ainda segundo Elias, a modernidade inaugura um processo autorregulatório irreversível mediante a concretização de um tempo que se impõe ‘de fora para dentro’, gerando o desenvolvimento de técnicas de disciplinamento humano, e que “exerce uma pressão relativamente discreta, comedida, uniforme e desprovida de violência, mas que nem por isso se faz menos onipresente, e à qual é impossível escapar”82. Esse aspecto asseverado por Elias parece-me complementado por Olgária Matos, quando a autora reitera o cunho intrinsecamente sutil dessa pressão: “embora não haja obrigatoriedade explícita de submissão ao tempo dos mercados e das revoluções tecnológicas, as pessoas se habituaram a obedecer sem mesmo ser necessário forçá-las”83. Creio que tal arranjo é em parte subjacente à forma como nossas condutas socioculturais ocorrem hoje, embora tenhamos subvertido mecanismos de regulação temporal nos modernos devires históricos, e continuamos a fazê-lo, o que desconstrói a dureza e assimetria de uma relação pautada unicamente na obediência. Decerto, o modelo de compreensão, como suscita Marshall Berman, é o da luta: “O homem moderno arquetípico, como o vemos aqui, é o pedestre lançado no turbilhão do tráfego da cidade moderna, um homem sozinho, lutando contra um aglomerado de massa e energia pesadas, velozes e mortíferas”84. Na era moderna, das sociedades administradas e do controle de corpos (biopolítica), o tempo é experienciado na relação direta e indireta com dispositivos criados e efetivados a fim de garantir a retroalimentação dessas mesmas sociedades: relógios, jornadas de trabalho, cumprimento de prazos, intervalos e períodos programados (para descansar, alimentar-se, divertir-se), horas-extras, cronogramas,... O calendário – um velho ente cultural – recebendo novos e múltiplos sentidos, sofistica-se, é inchado por compromissos econômicos, sociais, políticos, morais, estéticos e outros tantos85.

81 Cf. Elias, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 20. 82 Elias, Norbert. Sobre o tempo. Op. cit. p. 22. 83 Matos, Olgária. Advinhas do tempo. Ibidem. p. 56. 84 Berman, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 190. 85 De acordo com Elias, “o fato de essa sensibilidade ao tempo, onipresente e sempre vígil, ser o sinal de um processo de civilização é algo que só se evidencia, sem dúvida, ao compararmos esse habitus social com o de homens que vivem em sociedades de estrutura mais simples, menos exigentes quanto à exatidão temporal. Durante milênios, houve grupos humanos que puderam viver sem relógios e sem calendários. Os membros dessas sociedades tampouco tinham que desenvolver um tipo de consciência individual que os obrigasse a se orientarem permanentemente em relação ao contínuo escoar do tempo, o que não significa que fossem desprovidos de toda e qualquer consciência individual” (Elias, Norbert. Sobre o tempo. Ibidem. p. 23. Grifo meu).

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Doravante, estão todos condenados a orientar-se. Sendo sociedades do cálculo, as sociedades modernas asseveram o funcionamento de suas instituições por meio do fracionamento e da sucessividade na efetuação das tarefas mais ordinárias (cada coisa ao seu tempo!), instaurando assim múltiplas e incontáveis microcronologias auto- regulatórias, devires particulares cujas teias são elastecidas em função das dinâmicas de subjetivação e poder próprias às relações com as estruturas. A bitola moderna da experiência do tempo vige na razão direta de sua complexificação, simultânea à complexificação das sociedades industriais cujas tesouras rasgaram temporalidades socioculturais fundadas em sociedades ainda-não e/ou até-então-ainda-não industrializadas. Parece-me insuspeito declarar que, compreendidas em seu conjunto, as temporalidades da modernidade fundam uma maneira de relacionar-se com o tempo que, condicionada em boa parte por diversos determinantes formados no decorrer de seu acontecer, floresce na diferença pela pluralidade com que vigora. São ‘tempos’ variados configuradores de uma unidade polimorfa do tempo enquanto ‘tempo da produtividade’. Contudo, essa é a bitola que vem nos convocando à experiência hodierna do tempo? Ou esta possuiria outros aspectos distintivos? Sem dúvida, a experiência do tempo real marca visceralmente uma divisa entre a experiência moderna e a vigente do tempo. A primeira ainda figura configurando-se pelo fenômeno da passagem: duração e distância entram em cena no efetivar-se das diversas temporalidades marcadas pela organização cotidiana da vida moderna (do trabalho ao lazer, do sexo ao sono, da fruição estética à realização de uma simples refeição). Não se trata da mera passagem do tempo (o que nos coloca em pé de igualdade com existentes humanos nos quais a percepção do tempo já estaria consumada desde há muito), mas de durações rigorosamente controladas, racionalizadas em esquemas e padrões pré-concebidos e tornados hegemônicos que são, no limite, à custa da emersão de tensões duramente mantidas, retorcidos, desconstruídos e redefinidos por transações coletivas ou individuais. Na segunda, vive- se o esvaziamento das durações mediante o fim das distâncias86 e esperas. Não é mais preciso aguardar: o real time da computação inaugura a experimentação do imediato- temporal, e esta sobrepuja as possibilidades unicamente técnicas daquela ao invadir a esfera humana do desejo. O que não quer dizer que a moderna experiência do tempo tenha de todo morrido: ela é tão presente quanto, mas há muito não está mais sozinha. Como pensa Stiegler, o tempo real é algo como um não-tempo, e sua existência atrela-se ainda à lógica do capital e do tempo da produção. Conforme escreve, “o ‘tempo real’: esse é quiçá o aspecto fundamental da técnica contemporânea; quiçá, é também o desmoronamento tecnológico no qual a diferença

86 Algo já alertado em Ser e Tempo por Heidegger, no segundo quartel do século XX, na condição de inclinação do humano para a proximidade: “na presença reside uma tendência essencial de proximidade. Todos os modos de aumentar a velocidade com que, hoje, de forma mais ou menos forçada lidamos, impõem a superação da distância. Assim, por exemplo, com a ‘radiodifusão’, a presença cumpre hoje o dis-tanciamento do ‘mundo’ através de uma ampliação e destruição do mundo circundante cotidiano, cujo sentido para presença ainda não pode ser avaliado” (Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2012. p. 159). Na trilha heideggeriana, Virilio infere do desaparecimento das distâncias a aniquilação da presença fática: “com o telégrafo, as distâncias e os territórios evaporam, com as técnicas do tempo real é o fim da presença real” (Virilio, Paul. A arte do motor. Ibidem. p. 55).

35 idiomática como diferença étnica é sepultada na diferença técnica e com ela, uma certa época do tempo. O que hoje se denomina ‘tempo real’ é o tempo industrial, a produção industrial do tempo por meio das ‘indústrias de programas’ cujos produtos ‘suspendem’ todos os programas tradicionais”, concebendo que com essa “expressão englobamos todos os fenômenos de transmissão de informação ‘ao vivo’. Portanto, o que chamamos ‘tempo real’ não é o tempo; talvez seja mesmo a destemporalização do tempo ou a ocultação do tempo; e sem dúvida, ainda é o tempo industrialmente ‘ganho’, isto é, também perdido – quer dizer, radicalmente apreendido a partir do relógio que é o capital, modalidade extrema da ‘preocupação’”87. O tempo real implicaria então o triunfo da diferença técnica sobre a étnica e as experiências simbólico-temporais desta, bem como a suspensão dos ‘programas’ tradicionais (os diversos modos cultural e historicamente consolidados de transmissão de informações), enquanto consequência gerada e nutrida pela indústria de produção de softwares. A ação de transmitir informações sofre um redimensionamento estrutural, e a vivência da duração que lhe é ontologicamente intrínseca, é posta em xeque pela transmissão instantânea. Com efeito, se o tempo real não é sequer tempo, podendo mesmo conotar a experimentação de sua morte como desrealização, isso significa que figura como aquilo que esvazia a percepção da duração e da passagem. Utilizando um vocabulário bergsoniano88, não se trata somente do confisco do tempo físico calculável compreendido como sucessão, mas inclusive condiz a uma nítida ressignificação do tempo existencial-qualitativo, entendido como duração, ironicamente denominada ‘tempo real’ por Henri Bergson: “nós não pensamos o tempo real. Mas nós o vivemos, porque a vida transborda a inteligência”89. O tempo real bergsoniano, considerado inabarcável pela consciência, consiste no fluxo uno e contínuo da vida90, distinguindo- se do fenômeno do real time da era ciberespacial, cujo caráter fundamental acha-se em um consciente deparar-se com a desaparição de durações temporais calculáveis, e por sua vez, do sentido da distância. O tempo da contemporaneidade é o tempo da escassez de tempo. Digno de vasta plateia, esse fenecimento do tempo pelo tempo real quer-se operatório no cotidiano da temporalidade que arquitetamos e nutrimos na condição de contemporâneos: o ‘não tenho tempo’, o ‘me falta tempo’, ‘o tempo passou e nem notei’,... A linguagem enuncia um tempo que não se possui, que se esfumou. E nossas falas não deixam escapar uma aparente oposição: ‘fulano toma muito meu tempo’, ‘não me faça perder tempo’, ‘isto é uma perda de tempo’, frases nas quais se declara o objeto em questão como posse material e bem abstrato (donde tempo perdido = tempo não ganho). Sobre conceber o tempo como algo que se possui de tal maneira que, em função desse pressuposto, poder-se-ia dá-lo, ofertá-lo, Derrida é um tiro no alvo: “se há algo que em nenhum caso se pode dar, este algo é o tempo, posto que

87 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo II. Ibidem. p. 96-97. Grifos do autor. 88 Cf. Bergson, Henri. Duración y simultaneidad. Buenos Aires: Del Signo, 2004. 89 Bergson, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 43. 90 “Para Bergson”, escreve Maria Rita Kehl, “a duração implica a sensação subjetiva de indivisibilidade do movimento de nosso corpo, tanto no espaço quanto no tempo. A duração é uma espécie de ilusão necessária para manter o sentimento de (alguma) continuidade em nossa existência; ilusão, sim, porque se o movimento fosse realmente indivisível, o instante não existiria” (Kehl, Maria Rita. O tempo e o cão. Ibidem. p. 138).

36 não é nada e posto que, em qualquer caso, não pertence propriamente a ninguém”91. Esse tempo que é tido como tido é rebento de uma experiência marcada pela objetificação e coisificação do tempo – enquanto produto das estruturas econômicas e sociais da modernidade: não seria hipoteticamente implausível dizer que a lida humana histórico-cultural com uma noção de tempo como algo que se detém, retém, se tira e se dá, enquanto meu, ganha força e feição na fisiologia dessas estruturas. Mas não estariam elas mesmas conduzindo a orquestra em direção a uma outra objetificação? Em realidade, o tempo da ‘perda de tempo’ quer-se morto, e igualmente, o ‘desaparecimento’ do tempo que não se tem, ambos fazendo despontar um acontecimento letal: o assassinato das durações. Não seria o real time o mais recente e contundente capítulo da querença paradoxal de matar/dominar o tempo com a qual nos habituamos? Prevendo um alarido, pergunto se terá a ode ao tempo real ensejado em nós o desejo de pôr fim às durações da temporalidade em geral. Se não me equivoco sobre isso, ao menos uma coisa parece soar razoável: a experiência do tempo real sepulta a equação tempo = espera. No velório da duração, entoam-se elegias para a espera, ao lado do ataúde geográfico do espaço. É plausível atestar que a entrada cabal na lógica das redes na atualidade confere outra valência e simultaneamente outra forma de objetivação ao tempo. Seguindo Eugênio Trivinho, entre outros rasgos, as redes vicejam na base “da anulação do território geográfico, da supressão do espaço físico, da compressão do tempo na instantaneidade, da instituição da velocidade como vetor da cultura”92. Para ele, as redes seriam estruturas ausentes, imperceptíveis, deduzidas de seus efeitos, e, portanto, intangíveis, implicando a admissão de uma imaterialidade tão-somente ligada a uma inapreenssível volatilidade pluricondicionada. Segundo entende, as redes eclodem no modo de ser da circularidade tautológica, apresentando cinco características fundamentais: não territorialidade, invisibilidade, altíssima velocidade, interatividade e demasiada saturação. Juntas, tais características fomentam as condições para que o engolimento do espaço pelo tempo constituísse a meta por trás da marcha tecnológica, sendo as estruturas políticas e econômicas, as primeiras a realizá-la: “nas últimas décadas, desinveste-se no espaço e investe-se no tempo. Abdica-se daquele para se conquistar este. Essa tendência é implementada por governos e grandes corporações de países de todo mundo, em especial os mais avançados. O desenvolvimento de tecnologias que conquistam o tempo, isto é, que permitem ‘instantaneizar’ as práticas e desenvolver processos na velocidade da luz, surge atualmente como primeiro fator ou o grande termômetro do avanço tecnológico das nações”93. Entretanto, há algo mais denso ocorrendo em razão da lógica de redes: a filiação entre tempo e velocidade extrapola o âmbito das práticas computacionais94,

91 Derrida, Jacques. Dar (el) tiempo. I. La moneda falsa. Buenos Aires: Paidós, 1995. p. 36. 92 Trivinho, Eugênio. Redes: obliteração no fim de século. São Paulo: Annablume/FAPESP, 1998. p. 13- 14. 93 Op. cit. p. 32. Grifo meu. 94 Nas palavras de Stiegler, “as informações circulam pelas redes à velocidade da luz, nas interfaces dessas redes se encontram sistemas de tratamento que trabalham à velocidade da luz e os tratamentos são antecipações: nessas condições, o receptor habitual das informações, o quem, ao mesmo tempo que pensa, parece excluído porque não pensa suficientemente rápido e deve automatizar os processos de antecipação. Para isso utilizam-se os dispositivos cibernéticos chamados ‘tempo real’” (Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo II. Ibidem. p. 213. Grifo meu).

37 sendo uma das talhadeiras a esculpir a condição cultural e existencial contemporânea. Esse transbordamento implica ao humano a incorporação de novos automatismos, sob pena de exclusão das atuais relações técnicas e culturais. Em tal contexto, a transformação objetiva do tempo inevitavelmente instila uma transformação subjetiva, e vice-versa. Achamo-nos edificando outra experiência temporal, pois, “com o advento da instantaneidade, altera-se a percepção do tempo”95, e inaugura-se a era do lapso, do “tempo ultracurto”96. Sem negligenciar aqui os importantes alertas epistêmicos de Elias e Braudel sobre o risco de toda tentativa de analisá-lo97, entendo que passamos – e estamos passando – a perceber o tempo, e a nos perceber em razão disso, orientando-nos por uma marcha tecnológica que elevou o instantâneo a categoria determinante na reconstrução social e simbólica do ‘tempo’ que hoje protagonizamos. É nesse sentido que, conforme garante Trivinho, Virilio postula um efeito direto dessa alteração na vida psíquica, em termos de uma imbricação sem volta: “diante da velocidade tecnológica do sistema, alteram-se o tempo dos processos internos dos indivíduos e a noção de vida biográfica. A alta velocidade no plano objetivo precisa ter correspondência no aumento de velocidade metabólica (do corpo e, principalmente, da mente). Do ponto de vista psíquico, os indivíduos têm que se tornar mais ágeis e velozes, não só para acompanhar os fluxos, mas também para não perdê-los”98. Analisando essa singular condição detectada por Virilio, identifico alguns pontos decisivos à hipótese aqui entabulada: a atestação de um condicionamento dos indivíduos pela estrutura, pela ‘velocidade tecnológica do sistema’, o qual implica a adoção de uma velocidade humana corpórea e psíquica análoga àquela (mimetização da velocidade técnica), não pode ser somente tomada como dispositivo acomodatício- adaptativo; há, a meu ver, um acervo de novas práticas, formas de agir e pensar, que são e prosseguem sendo inventadas na peleja direta com uma vida a cada dia mais arquitetada por um inescapável sistema de tecnologias e uma lógica de redes a nos fisgar involuntária e continuamente. Em decorrência disso, faz-se necessária uma

95 Ibidem. p. 33. 96 Ibidem. p. 41. 97 Consoante Elias, “o conceito de tempo não remete nem ao ‘decalque’ conceitual de um fluxo objetivamente existente nem a uma forma de experiência comum à totalidade dos homens, e anterior a qualquer contato com o mundo. O tempo não se deixa guardar comodamente numa dessas gavetas conceituais onde ainda hoje se classificam, com toda a naturalidade, objetos desse tipo” (Elias, Norbert. Sobre o tempo. Ibidem. p. 11). E, nas palavras de Fernand Braudel, “não há um tempo social com uma única e simples corrente, mas um tempo social com mil velocidades, com mil lentidões que quase nada têm a ver com o tempo jornalístico da crônica e da história tradicional. Creio assim na realidade de uma história particularmente lenta das civilizações, nas suas profundezas abissais, nos seus traços estruturais e geográficos” (Braudel, Fernand. Escritos sobre história. Ibidem. p. 25). Por essas razões, não obstante dê a entender que escapa a esse pressuposto em função da armação linguística dos argumentos apresentados neste ensaio, minha discussão abdica de conceber a reflexão ora empreendida, e motivada por uma impressão cotidiana, como identificação de um universal da cultura, tentando somente posicionar-se na condição de compreensão de algo interpretado como tendência forte e operante na pluralidade de modos de ser atuais, cuja singularidade histórico-cultural não encontra pários. 98 Trivinho, Eugênio. Redes: obliteração no fim de século. Ibidem. p. 42. Grifo nosso. Marshall MacLuhan compreendia esse fenômeno como próprio da condição humana, afirmando que “fisiologicamente, no uso normal da tecnologia (ou seja, de seu corpo em extensão vária), o homem é perpetuamente modificado por ela, mas em compensação sempre encontra novos meios de modificá-la” (Macluhan, Marshal. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 65)

38 psicofisiologia da velocidade que dê conta de um conjunto de novíssimas antropotécnicas estourando numa paisagem escancarada em possibilidades de ser: por sobre os fluxos objetivos, técnicos, estruturais das dinâmicas tecnológicas nasceram crostas de fluxos culturais, sociais, procedimentais equiparáveis, redefinindo de modo torrencial nossa lida com o tempo, e tal nascedouro mantém-se ativo. Porém, concomitantemente, a impressão é a de que temos usado muito uma expressão própria do reino automobilístico, ‘ficar para trás’, para designar o fato de não ser possível o acompanhamento dos fluxos, e, por conseguinte, de novos modos de existência e práticas sociais, ‘perdendo-os’. A questão está na qualidade dos fluxos, pois, mesmo podendo apresentar descontinuidades entre si, são contagiados pelo substrato da rapidez. Logo, suspeito haver uma antropologia da velocidade respirando nos bastidores de tal arranjo sociocultural, que reza na seguinte cartilha: ou produzimo-nos a nós mesmos como seres velozes e ágeis, incorporando outras pulsações rítmicas e consumando novas intensidades, or die. É por esse meandro que interpreto o excerto no qual Virilio assevera que “a velocidade significa Tempo ganho, no sentido mais absoluto, já que ele se torna Tempo humano diretamente arrancado à Morte”99, e recupero o tropo cosmogônico de um movimento contrário a Cronos (anti-cronológico, anti-biográfico), insinuando ser o tempo comprimido do tempo real o estandarte máximo de um deus conquistado. Parafraseando Gilles Deleuze de maneira assumidamente ruim ao sentenciar que “Cronos quer morrer”100, penso, pelo contrário, que Cronos quer boas pastilhas de freio. Quiçá deva-se admitir que as figuras da economia temporal possam haurir uma genealogia no âmbito de nossa animalidade, como sugere Ortega ao tratar das necessidades animais apinhadas ao humano – comer e beber –, supondo ser a necessidade de ganho de tempo uma condição de satisfação das primeiras: “a satisfação dessas necessidades geralmente impõe outra necessidade: a de mover-se, caminhar, isto é, suprimir as distâncias, e, como às vezes importa que tal supressão se realize em muito pouco tempo, o ser humano necessita suprimir o tempo, encurtá-lo, ganhá-lo”101. Lembro-me da sentença de Stiegler e seu aroma orteguiano, convidando- nos a enveredar em um recurso filogenético: “a vida é conquista da mobilidade”102. A cinética por detrás desta filogênese, abraçando a conjetura ora aduzida, corroboraria a uma Weltanschauung (cosmovisão) da história humana enquanto processo de constante intensificação do movimento antrópico cuja finalidade declarada seria borrada pelo fato de não estar decidido se se trata dela mesma (a satisfação das necessidades animais de autoconservação) ou da própria dinâmica supressória do tempo pelo humano. Tento-me a indagar se entre nós, o dito processo não se tornou fim. Convenço-me que de algum modo fizemos da modernidade tardia o palco teatral cujos holofotes iluminam o esvaziamento de precedência entre fim e processo (meio): o protagonista se ausentou. Se o pôr-se em movimento deve ser compreendido como ínsito àquilo que efetivamente vive, no vivente humano isso parece converter-se numa dinâmica de apressamento como diferença, marca da temporalidade humana que, embora

99 Virilio, Paul. Velocidade e política. Ibidem. p. 34. 100 Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 169. 101 Ortega y Gasset, José. Meditación de la técnica. Op. cit. p. 26. 102 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo I. Ibidem. p. 36.

39 mutante e plurívoca, firma-se mediante um imemorial combate em oposição ao tempo que deve ser vencido pela velocidade. Se o espectro da finitude tem peso nesse processo, ou se se pode considerá-lo engendrado por um ‘telos oculto’, providencialista, dotado de um atributo soteriológico, são questões que deixamos para entusiastas elucubradores dispostos a tratá-las. Há outras perguntas que me parecem mais oportunas aqui: é possível afirmar que chegamos ao momento histórico ou ‘pós- histórico’ de auto-esclarecimento quanto à aceleração intrínseca a nosso ser-no- mundo? Enquanto contemporâneos, tornamo-nos conscientes da extensa trajetória do viver humano como atividade de intensificação da mobilidade? A fim de manuseá-las, alinho-me à conclusão de Sloterdijk: “só para nós, em presença dos efeitos da aceleração própria da Modernidade tardia, é que o fenômeno da pura mobilidade se tornou susceptível de ser experimentado e pensado”103. A distinção a ser anotada aqui reside no fato de Sloterdijk pensar a modernidade desde uma interessante chave interpretativa, a cinética. Para ele, o projeto moderno corresponde à entrada peremptória da mobilização na condição humana, donde se segue que apenas com o advento desse projeto inicia-se rigorosamente uma cinética civilizadora enquanto motor latente das instituições da modernidade. Tentando me manter vigilante a respeito das premissas expostas acima, quais sejam, o palpite orteguiano segundo o qual comprimimos o tempo para atender às nossas necessidades naturais (um claro ingrediente filogenético), e a conclusão sloterdijkiana desde a qual o fenômeno da automobilização (pressupondo uma ode ao encurtamento do tempo) é julgado o elemento distintivo da modernidade, cuja tomada de consciência só nos é facultada agora, questiono-me aonde chegamos e se estamos mesmo em uma ‘época’ que reúne para tanto aspectos singulares, ou se não nos achamos sentados nas ruínas da modernidade, clamando por ideais ainda modernos. Ao menos, algo se apresenta como óbvio: é difícil opor resistência aos fenômenos com os quais já coabitamos e nos achamos envolvidos, impossível não aderir a eles, não apenas porque somos pressionados e severamente induzidos a fazê- lo (e nisso parece residir a atual indústria de guerra da velocidade104), mas porque – isso a título de conjetura – passamos a querer tais fenômenos, e, na razão direta disto, cultivamos outra experiência com o tempo, içando temporalidades eivadas pela aceleração. Logo, caso estejamos a presenciar e simultaneamente investir em uma temporalidade patológica, como indica Matos105, na qual o tempo é esvaziado de significado e coroa-se rei o estresse (estado de permanente superexcitação e desorquestração homeostática), talvez, muito além da necessidade de uma psicologia das intensidades e consultórios virtuais, seja preciso efetuar uma sóbria reflexão acerca do que podemos nos tornar ou já estamos nos tornando, sem incorrer em

103 Sloterdijk, Peter. A mobilização infinita: Op. cit. p. 49. 104 Composta pelas indústrias informáticas, de produção de programas, pelas técnicas de realidade virtual e telepresença, pelas ciências cognitivas, biotecnologias, pelas novas mídias e interações em tempo real informático, os quais em conjunto vêm instaurando outro modo de compreensão do próprio acontecer e mesmo o vir a ser de uma nova época, denominada por Stiegler tempo-luz, suspeita de plantar as condições para uma concomitante pandemia do tempo real como único válido e um eclipsamento da diferença: “o tempo-luz é a época da diferença em tempo real, uma saída do tempo diferido específico da história do ser que parece constituir um ocultamento da diferença e ameaça a todas as diferenças” (Stiegler, Bernard. Ibidem. p. 403). 105 Cf. Matos, Olgária. Advinhas do tempo: êxtase e revolução. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. p. 56.

40 respostas catastrofistas ou romantizações apologéticas, com base na temporalidade inaugurada com a experiência do real time enquanto critério. Não se trata de um apelo. De alguma forma, a filosofia, as ciências humanas e sociais já incidem sobre esse assunto. Contudo, ainda tateantes, ou, concedendo-me uma insinuação, doravante tateantes... Quem sabe?! Apenas uma tarefa afigura-se a meu ver indispensável: qualquer investigação com o mínimo de retidão intelectual que hoje se debruce sobre o tempo nas mencionadas áreas de conhecimento não pode furtar-se a uma apreciação da existência do tempo real. O alerta de Trivinho vem a calhar: “prescindir de apreender esse fenômeno – num tempo em que ele se encontra banalizado pela absorção das redes digitais no cotidiano –, mais que implicar renúncia à elaboração reflexiva da lógica da vida humana em condições mediáticas avançadas, põe em risco o próprio fundamento do empreendimento teórico sobre o processo civilizatório atual”106. Há então um novo processo civilizatório em curso? Ou há, talvez, um novo curso – particularmente ultrarrápido – para o processo civilizatório? Não hesito em reconhecer que adentramos, à proporção que construímos um arranjo social e culturalmente compartilhado, em uma época na qual a velocidade adquire um caráter axial. E quem hesitará?! Sentimos suas demandas em nossos nervos, suas exigências de aumento do ritmo cardíaco, do trabalho, da diversão, do almoço, do sexo; ouvimos suas ladainhas nos vocabulários das muitas bocas cotidianas deambulando nas ruas, nos programas interativos da TV, na radioweb, na reclamação do patrão, do cliente; deixamo-nos afetar por seus chamamentos, seduzir por suas ofertas, promessas, juras, ‘Black Fridays’; absorvemos a toque de caixa os meios quase totêmicos mediante os quais passamos a adorá-la, cultuá-la, celebrá-la, exorcizá-la, e os trocamos continuamente sob a expectativa de fazê-lo cada vez mais e melhor. E sem que sequer percebamos, desejamo-la! Toda uma sintomatologia debruçada diante de nós e em nós. Como diria um recifense ao arregalar os olhos frente ao espantoso: ‘sem brincadeira’, existe um ‘quê’ de Nostradamus em Marinetti e um ‘quê’ de marinettiano nos interstícios da atual experiência do tempo.

106 Trivinho, Eugênio. Cibercultura e existência em tempo real: contribuição para a crítica do modus operandi de reprodução cultural da civilização mediática avançada. E-Compós. Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Comunicação, ago-dez., 2007. p. 03.

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Capítulo IV

Conceito de descartabilidade

“Como havia notado Karl Marx, no mundo moderno o consumo físico foi substituído pelo consumo moral: quase sempre substituímos os objetos antes que se quebrem, pois as altas taxas de inovação os tem tornado antiquados ou ‘anacrônicos’ muito antes de sua vida útil haver acabado. Nesse sentido, nossa relação com o mundo dos objetos tem mudado profundamente ao influxo das velocidades cada vez maiores da modernidade”107.

Que possíveis pretensões existem nos bastidores da elaboração de um conceito? Quando chega ao proscênio, ele se apresenta puro, maquiado, portando um figurino e brilhantes adereços, e, em curvagradecimento, ganha da plateia aplausos calorosos, vaias altissonantes ou ambos. Acredito ser próprio de qualquer tentativa de conceituação um compromisso gozoso e gerador de alívio: quem a faz quer dar conta de um afã particular que julga dividir com os outros, buscando por intermédio daquela, livrar-se deste. De algum modo, nas profundezas do pensar há uma roda de ciranda na qual o explicar, o dar sentido e o aliviar-se dão-se as mãos, sincronizam-se em coreografia. Pensar e escrever, confessemo-lo, é terapêutico! Desse ponto de vista, e admitindo minha presunçosa e esquizofrênica dupla condição de analista e analisando, tentarei a partir de agora exercitar a criação de um conceito de descartabilidade, interpretando por seu intermédio um traço que, conforme suponho, consiste num dos pilares objetivos a uma cultura da velocidade. Para esse intento, elejo um percurso que inicia com uma reflexão sobre o dispositivo da obsolescência no cerne da produção industrial de mercadorias, seu significado no interior do capitalismo e seu incontestável esboroamento noutros âmbitos humanos, sustentando que o mencionado dispositivo, que parece ocorrer de acordo com um mecanismo de ampliação, começa no âmbito das mercadorias, espraia-se para o domínio dos serviços e ocupações, avançando compulsoriamente para as relações interpessoais, e assim, para os processos de subjetivação efetuados no ente humano contemporâneo. No segundo momento, discuto a ressignificação e simultânea valorização da efemeridade em nossa época, e as implicações de uma suposta inversão de sentido do efêmero na composição das lógicas culturais pós-

107 Rosa, Harmut. Alienación y aceleración: hacia una teoria crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Katz Editores: Buenos Aires, 2016. p. 77. Grifo do autor.

42 industriais, que, conforme penso, está transcorrendo debaixo de nossos narizes, e talvez, o faz instaurando uma racionalidade outra na qual o em andamento (o rizomático) vem à tona, sem que para isso haja a aniquilação do permanente. Sigo esse fio condutor a fim de operar um sentido de descartabilidade que verta um conteúdo hermenêutico plausível acerca do propósito ora embandeirado: identificar elementos que dão suporte à ideia de que temos nos organizado na condição de massa humana cada vez mais internalizadora e altamente sequiosa de celeridade. Não consigo observar de outra maneira: desde o último século, a compressão objetiva do tempo, em suas diversas manifestações cinético-civilizatórias modernas, acaba por ser alimentada na medida em que nutre o próprio encurtamento capitalista do valor de uso da mercadoria, esta uma quase natimorta. Trata-se de uma relação simbiótica de interestimulação a partir da qual temporalidade, tempo de produção e tempo dos produtos interpenetram-se, um reciprocamente empurrando o outro ‘ladeira abaixo’. A meu ver, compreender esse arranjo requer uma radiografia da expansão capitalista no tocante ao valor de uso (ou de utilidade), e de modo particular, de como a noção de ‘útil’ passa a ser considerada, em linha direta com a dita expansão. Na análise levada a cabo por István Mészáros, valor de troca e valor de uso possuem uma relação umbilical e não independente no âmago do modo de produção capitalista. Essa tese se reflete na percepção em harmonia com a qual, esteja ou não em uso, toda mercadoria conserva sua utilidade quanto às demandas de expansão do capitalismo. “Que uma certa quantidade de valor de troca”, escreve o filósofo, “foi realizada na mercadoria em questão através do próprio ato de venda independentemente de ser ela, na sequência, sujeita a uso constante, a pouco ou a nenhum uso (por exemplo a câmara fotográfica, que posso usar apenas uma vez por ano, nas férias, se tanto), conforme o caso. O capital define ‘útil’ e ‘utilidade’ em termos de vendabilidade: um imperativo que pode ser realizado sob a hegemonia e no domínio do próprio valor de troca”108. A sujeição do valor de uso ao de troca expõe uma das intersticiais praxes promotoras da dilatação do capital, mediante a introdução sistêmica do decréscimo de utilização da mercadoria em consonância com o aumento do poder de compra dos indivíduos, gerando, por sua vez, a criação contínua de demanda por outra mercadoria. Ainda segundo Mészáros, um vultoso determinante desse fenômeno consiste na ânsia de expansão dos canais de acumulação de capital, uma vez que as mercadorias destinadas ao consumo de massa passam a ser reputadas insuficientes para este fim, tornando “necessário divisar meios que possam reduzir a taxa pela qual qualquer tipo particular de mercadoria é usada, encurtando deliberadamente sua vida útil a fim de tornar possível o lançamento de um contínuo suprimento de mercadorias superproduzidas no vórtice da circulação que se acelera”109. Um circulus é assim startado de maneira a conferir à utilização concreta de um produto uma a cada dia mais célere diminuição tendencial, algo mantido como um dos meios fundamentais ao desenvolvimento histórico do capitalismo no século XX. Como enfatiza David Harvey, “no domínio da produção das mercadorias, o efeito primário foi a ênfase nos valores e virtudes da instantaneidade (alimentos e refeições instantâneos e outras comodidades) e da descartabilidade (xícaras, pratos, talheres, embalagens,

108 Mészáros, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 660. Grifo do autor. 109 Ibidem. p. 670. Grifos do autor.

43 guardanapos, roupas etc.)”110. Com efeito, é justamente o referido encurtamento deliberado o berço da ideia de obsolescência. Expresso objetivamente, a obsolescência diz respeito à intencional redução da duração do valor de utilidade da mercadoria, no seio da qual é inoculada uma artificial e constante necessidade de substituição, propulsora dos fluxos circulatórios capitalistas. No gerenciamento total da cadeia, a chamada ‘obsolescência programada’ controla esse fracionamento do tempo de vida útil dos produtos, selando-os com uma duração predeterminada (a crônica mercadológica de uma morte anunciada) em clara articulação com uma consequente geração de demanda, criadora da vertigem consumista da pseudonecessidade de compra. Descartalização é o nome do fenômeno: com uma dupla finalidade – aumentar o acúmulo e agigantar o sistema do capital – cabeças como a de Alfred P. Sloan Jr.111 implantaram a lógica do descarte crescente que tem na velocidade seu meio de efetivação e fundamento tático. Um de seus primeiros exemplos ocorreu em 1928, quando executivos da indústria de lâmpadas optaram em diminuir para 1.000 horas o tempo de vida útil daquelas, aumentando exponencialmente o ritmo das vendas112. Lâmpadas como aquela acesa há mais de 100 anos em Livermore devem soar em tom anedótico ou serem hieratizadas como ‘claras’ manifestações do sagrado, sobretudo para que a condição de abertura a outra possibilidade produtivo-existencial, e o potencial crítico-reflexivo que ensejam sobre a referida lógica enquanto contrafiguras do capital, não venham à tona. Indo adiante na discussão, é possível discernir algumas tipologias da obsolescência. De um ponto de vista estrutural, porém intercambiante e copertencente, penso haver uma distinção entre obsolescência objetiva e subjetiva. A primeira define-se pelo caráter técnico referente à ostensiva despotencialização da potência de utilidade da mercadoria através de fatores previamente calculados: redução estratégica do potencial de funcionamento, utilização sistemática de materiais de pouca ou baixa qualidade, quase nenhuma resistência e rápida deterioração, prazos de validade encurtados propositadamente, instituição de modelos anuais (mormente na indústria automobilística), produção de mercadorias com recursos autodestrutivos, estabelecimento do fim de serviços de manutenção para certos produtos113, entre outros. A segunda inclui complexas dinâmicas psíquicas de recepção e internalização da referida despotencialização, com participação considerável da máquina publicitária na criação artificial de novas exigências de consumo e supostas necessidades, na medida em que estimula o desejo permanente de troca, o desejo pela nova mercadoria. Se a alma da obsolescência objetiva reside no made to break, aquela que impulsiona a obsolescência subjetiva convoca-nos a engendrar um acrítico ethos do descarte, ambas pagando tributo a Sloan: “através da obsolescência psicológica, o presidente da GM tinha garantido que sua companhia permaneceria como a primeira

110 Harvey, David. A condição pós-moderna. 16. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 258. 111 Executivo estadunidense responsável pela concepção de obsolescência planejada, presidente da General Motors entre os anos 20 e 30 do século passado. 112 Veja-se Faro, Isaías; Faro, Ciro. Educação socioambiental e sustentabilidade. São Paulo: Biblioteca 24 Horas, 2013. p. 34. 113 Para Mészáros, já é possível presenciar “o ‘extermínio’ deliberado das habilidades e dos serviços de manutenção, para compelir os clientes a comprar dispendiosos produtos ou componentes novos, quando os objetos descartados poderiam facilmente ser consertados” (Mészáros, István. Para além do capital. Ibidem. p. 670).

44 em produção de automóveis na América em décadas [...] Sloan doou-se ao máximo para achar novas vias para diminuir a durabilidade e aumentar a obsolescência”114. Uma coisa fica evidente desde então: por trás do sorriso de cada executivo de qualquer grande corporação ao observar sua conta bancária, está o sorriso de Sloan. Há muitas conexas motivações para que se ponha em prática uma obsolescência forçada, embutida, anunciada, artificial: clara maximização dos lucros, incremento de capital, aumento da competitividade (prenhe de um spenceriano darwinismo social), redução de custos de produção, aumento da produtividade,... Para que tudo isto obtenha fôlego, foi necessário tornar obsoleto o objeto, envelhecê-lo, envilecê-lo até, com a maior brevidade possível, como condição necessária ao novo que é tornado desejado, como na atestação de Hannah Arendt, ao afirmar que “a rápida industrialização destrói constantemente as coisas de ontem para produzir os objetos de hoje”115. Porém, uma contrafigura poderia emergir aqui, mediante a seguinte pergunta: e as mercadorias de alta durabilidade e qualidade? Até que ponto elas não poriam em xeque a lógica interna da produção industrial do século XX, adensada pela obsolescência planejada? Em primeiro lugar, conforme interpreto, somente depois da instauração e epidemização da obsolescência na dinâmica de consumo de massas é que a mercadoria de alta durabilidade e qualidade (chic, exclusiva, vip) adquire um valor mais elevado, ou melhor, pôde adquiri-lo; em segundo lugar, e em realidade, ela esteve à disposição para a diminuta rede de consumo das esferas sociais de maior poder aquisitivo, mais ou menos nos últimos 80 anos. O produto high-quality só chega aos lares das classes médias como opção extra- ordinária, após a esmagadora coerção do mais barato (não obstante os alertas da velha expressão segundo a qual o barato sai caro). Outra contrafigura poderia ser o atualíssimo retorno do vintage enquanto estilo de vida e fruição do passado. O que é interessante é que esta contrafigura recupera o suposto objeto obsoleto, impondo, conscientemente ou não, uma crítica levemente mordaz da própria obsolescência. Assim como o produto de alta durabilidade e qualidade, o vintage enquanto retorno do supostamente ultrapassado (e porventura reprimido) só é possível após a consolidação do consumo massificado: não me parece existir uma tendência ao vintage, inclusive com uma significativa e evidente adesão da própria indústria, antes do século XXI. Será esse futuramente o destino do disquete? Adiantando ainda mais a discussão, no momento em que serviço é igualmente tomado por mercadoria, efetivamente é submetido à mesma lógica: também ele, em algum instante, deve cair em desuso. Aqui faço um breve parêntese para aludir ao fato, o qual não deve ser esquecido, de que se tratam de âmbitos ontológicos distintos: a mercadoria como tal é objeto propriamente, produzido com vistas à troca mercadológica; e o serviço, por sua vez, consiste numa ação, atividade, destinada a um fim específico. No entanto, o serviço (e igualmente as ocupações ou profissões) assume radicalmente o caráter de mercadoria (assim como bens e recursos), sobretudo nos arranjos capitalistas tardios, uma vez que é penetrado por um tipo de obsolescência articulada em profundidade com as transformações técnicas e tecnológicas inoculadas – porquanto vantajosas em termos de lucratividade – nos

114 Slade, Giles. Made to break: technology and obsolescence in America. Cambridge: Harvard University Press, 2006. p. 42-43. 115 Arendt, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 62.

45 modos de organização da vida socioeconômica e cultural da qual somos coetâneos. Temperando com uma pitadinha de Marx: se entendo o trabalho humano historicizado na ossatura capitalista como equivalente à realização de um serviço (e não no conhecido sentido onto-antropológico que o filósofo alemão lhe concede), posto que é meio para a produção de mercadorias, disso seria dedutível a fórmula trabalho = serviço = mercadoria, válida apenas dentro do modo de produção capitalista. Logo, se o trabalho converteu-se em mercadoria no dito modo de produção, não poderia ser diferente com as diversas e futuras formas que assume no interior do mesmo, inclusive enquanto serviço. A obsolescência dos serviços recrudesce em consonância com a entrada em cena de processos de autonomização e substituição, norteados por alterações substanciais demovidas mediante uma sistêmica e ao mesmo tempo irreversível adesão à microeletrônica, à informática, à nanotecnologia, à robótica e às novas racionalidades pós-industriais. A título de ilustração, caixas eletrônicos, caixas virtuais de supermercado, cancelas eletrônicas, entre outros sistemas de autosserviço, demarcam a instauração de um princípio que propende a uma maior autonomia técnica dos indivíduos consumidores, inseparável de substituições efetivas de determinados serviços e a reboque, da redistribuição de pessoas ou mesmo subtração destas de seus postos de trabalho. Hoje, tendências de arrefecimento de interesse sobre produtos e serviços são milimetricamente monitoradas. A duração de ambos no mercado (duração = tempo de sucesso) é condicionada externamente pelo consumidor, que, em alguma proporção, enquanto massa consumidora, promove permanências, amplia durações, ou simplesmente ajuda a enterrá-las. Para além da máquina do capital, ou seja, fora do contexto do mercado, é possível haver outras formas do obsoleto? Seriam essas possíveis formas produzidas em conexão com a lógica capitalista da obsolescência? Nos meios acadêmicos cresce o debate a respeito de uma suposta obsolescência do corpo no horizonte do pós-humanismo. Alguns futurólogos, apesar das sentenças dignas de ficções científicas hollywoodianas que proferem, lançam problemas cuja relevância vem se materializando como se saltassem de páginas de HQs para a vida cotidiana. Um dos motivos elencados refere-se ao corpo humano tornado obsoleto e àquilo que chamamos neosoteriologia do ciborgue, da máquina como derradeiro lugar de realização da promessa (pós)humanista de potencialização do humano, amparo pós-metafísico e realização da utopia. Conforme aponta André Gorz, “a tecnociência produziu um mundo que ultrapassa, contraria, viola o corpo humano pelas condutas que exige, pela aceleração e pela intensificação das reações que solicita. A contradição entre os saberes e as necessidades corporais, de um lado, e as ‘necessidades’ da megamáquina tecno-econômica, de outro, tornou-se patológica”116. Citando Finn Bowring, o qual assegura que o corpo humano veio a ser um entrave à reprodução das máquinas, Gorz conclui que chegamos ao ponto em que “o homem é ‘obsoleto’; é preciso pois dotá-lo de próteses químicas para ‘tranquilizar’ seu sistema nervoso estressado pelas violações que ele sofre, e lhe fornecer próteses eletrônicas, destinadas a aumentar as capacidades do seu cérebro”117. Noutra senda, várias instituições, de universidades a empresas de engenharia, têm experienciado a obsolescência de técnicas em função das reconfigurações organizacionais

116 Gorz, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005. p. 81. 117 Gorz, André. Op. cit. p. 82.

46 impulsionadas pelas TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação), que igualmente carregam a mesma insígnia de um supérfluo povir. Há ainda quem defenda narrativas sobre a obsolescência das utopias políticas no fim do século XX e início do XXI, mediante a declaração da impossibilidade de arregimentação da humanidade em torno do estabelecimento de uma utopia social universal, no sentido de criação de uma cosmopolis, em razão da queda filosófica do conceito de universalidade (moral, dos valores, política), advento que tornou desarrazoado sustentar a possibilidade de realização das utopias. Este é o diagnóstico de Étienne Balibar, o qual reconhece na contemporaneidade o “momento no qual as figuras utópicas da universalidade tornaram-se obsoletas por sua própria natureza”118. Por essas e outras razões, há muito acordamos em um mundo onde a obsolescência desprendeu-se das mercadorias119 e introduziu-se na esfera das ações poiético- produtivas e da linguagem filosófica, onde encontrou morada como uma entre outras chaves interpretativas da contemporaneidade. Levando em conta tal ‘desprendimento’, é possível afirmar então uma espécie de ‘transcendência’ da lógica da obsolescência da mercadoria, do âmbito próprio das relações de mercado para o domínio das relações humanas? Que essa lógica foi de algum modo transferida para as relações interpessoais? Mediada de um lado pela conversão do trabalho (e dos serviços) em mercadoria, e de outro, pela catalisação da velocidade, a obsolescência invade as relações humanas, segundo um modo particular de expressão: o desejo de efemeridade. Sendo assim, é por meio dos citados fenômenos que caem em seu colo as brechas a partir das quais se instala como um vírus na maneira de relacionar-se e construir-se das subjetividades jogadas nas complexas urbes neocapitalistas contemporâneas. Dito aristotelicamente, o efêmero é um predicado essencial do obsoleto. Em raso linguajar metafísico, nada pode vir a ser obsoleto cujo conteúdo e forma não sejam eles mesmos efêmeros. Na ontologia da mercadoria reina uma consciente cibernética do transitório: stakeholders atuam garantindo que ela entre e saia de circulação, torne-se obsoleta, e isso o quanto antes, enquanto a roda roda. No modo de dar-se das relações interpessoais, muito além das relações de prestação de serviço, pessoas tornam-se dispensáveis, descartáveis, na razão direta em que medram processos de objetificação do outro em clara tensão com processos de afirmação da alteridade. Vínculos sociais e afetivos confundem-se com práticas de consumo: hoje os laços são tênues, voláteis, permutáveis, substituíveis por novos e diferentes laços, sem muito alvoroço (uma vez que não nos percebemos mais tão condicionados a agir segundo coerções morais e regras rígidas); em nossa época, relações se desgastam, ou dito de outra forma, se consomem, se esgotam e, simultaneamente, abrem vias para outras relações, e outras, e outras,... Pulsões afetivas são trocadas como roupas (os jovens dizem ‘ficar’, quando em realidade não é isso, falta um complemento adequado: ‘ficar por um lapso curtíssimo de tempo’). Ninguém mais se apresenta

118 Balibar, Étienne. Politics and the other scene. Londres: Verso, 2002. p. 148. 119 Uma questão na perpendicular: protagoniza a mercadoria um drama meteórico? Mesmo adquirindo valor humano, descoisificando-se ao fetichizar-se, não parece jamais abandonar a condição de ‘coisa’ na medida em que é devolvida ao limbo da inutilidade em razão da obsolescência assegurada pela divina precedência da permuta, e, no limite, pela santificação da acumulação?

47 seriamente incomodado com o fato de que assim como as coisas (os objetos, as mercadorias e os serviços) pessoas também são permutáveis120. Mas, convenhamos, o efêmero nunca foi bem visto! Se Platão é um dos responsáveis por isso, não chega aqui a constituir um problema. Perante a história da desvalorização do transitório, a de sua valorização começa a quebrar a casca. Um dos elementos essenciais das narrativas filosóficas e religiosas metafísicas é a condenação do movimento, uma neurose em criar recursos e estratégias para vencer a qualquer custo o tempo, o mutável, o fluente, visando paradoxalmente redimir o ente humano de sua irredimível finitude. Dessa perspectiva, não haveria então uma cinética da antiguidade, mas tão-somente uma estática do mundo antigo, cujo único investimento afinal é erguer toda sorte de dispositivos para alçar voo aos campos elísios da imobilidade: “para homens que de modo algum podem fazer as pazes com a transitoriedade, não há maior promessa de salvação do que aquela que reside na descoberta do imóvel”121. O que um hirto Parmênides a pensar com uma das mãos sob o queixo, um Sidarta Gautama em posição búdica e um Jesus Cristo na cruz parecem manter em comum: a translúcida e serena partilha do eterno. Pedimos licença a Sloterdijk para sugerir que, se o mundo antigo centra-se em libertar-se da transitoriedade através de retesados meditabundos adoradores de obeliscos, e a modernidade enceta com o ‘mover-se para adiante’ da subjetividade cinética, o contemporâneo é a experimentação ultraveloz desse mover-se, o tempo das lebres. Contudo, estamos presenciando e vivificando uma inversão em curso: o passageiro, antes desvalorizado, estigmatizado, passa a granjear cada vez mais valor. A aceitação do efêmero vem conduzindo ao desejo do efêmero, que é manifestação concreta do desejo de rapidez, do amor ao efêmero. O refrão no cântico do propalado ‘pós-tudo’ no qual nos embrenhamos é ‘morte à permanência’. O permanente prefigura como doentio, degenerado, fraco (não ocultamos aqui certa verve nietzschiana). Durações válidas hoje são aquelas que de tão velozes não são sequer percebidas. Mas isso não viceja sem tensões de toda ordem. Uma luta silente entre permanência e impermanência respira atualmente, dentro-fora de cada um de nós, impelindo-nos a viver e conviver de acordo com a fugacidade de um sendo que é incessante abandono e assunção de ser. Renova-te! Bradam programas de TV matinais, canais por assinatura, milhares de vídeos no Youtube, conversas em salas de chat, igrejas neopentecostais, católicas carismáticas, teorias pedagógicas, coachings empresariais e CEOs de grandes organizações. “Toda cultura de massa-midiática”, garante Lipovetsky, “tornou-se uma formidável máquina comandada pela lei da renovação acelerada, do sucesso efêmero, da sedução, da diferença marginal”122. Micro-antropogonias continuamente em fluxo e sob demanda engendram metamorfoseamentos na direção inversa aos modos de ser duráveis e longevos de

120 Esta já era uma preocupação de Alvin Toffler na década de 1970, ao antever a presença crescente do fenômeno da aceleração na cultura, e as transformações que acarretaria ao âmbito das relações humanas: “começamos a ver mais claramente como o impulso acelerador na sociedade afeta o indivíduo. Pois, esta fragilização das relações do homem com o lugar é paralela ao rompimento de suas relações com as coisas. Em ambos os casos, o indivíduo se vê forçado a atar e desatar seus laços com maior rapidez. Em ambos os casos, sente uma aceleração do ritmo da vida” (Toffler, Alvin. El ‘schock’ del futuro. Op. cit. p. 69). 121 Sloterdijk, Peter. Op. cit. A mobilização infinita. p. 96. 122 Lipovetsky, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 238.

48 outrora, atentas às chamadas de atenção dos mass media, os quais também já escorregaram para o olho do furacão: “os meios de comunicação não combatem mais somente tudo o que dura, a paz como o resto, são eles agora que não têm mais tempo, mais prazos”123. Tentando não evocar o ímpeto dos julgamentos de valor, penso estarmos mais abertos à efemeridade, compreendendo-nos como ‘corpos onde habitam muitas almas’, à maneira de Nietzsche124, sem demasiado alarmismo; fizemo-nos tipos humanos camaleônicos, nômades: supomo-nos muitos, tanto na horizontalidade como na verticalidade existencial. O lema do pórtico hipermoderno é desapegue-se! Nada precisa ser duradouro! Adios à chatice de uma enfadonha eternidade. O duradouro é declarado não só entediante, mas indiferente, algo unicamente pensável no seio de uma ‘cultura do presente’. Nesse sentido, o parâmetro do consumismo pode ser levado em conta no fato de que temos desenvolvido performances existenciais entronizadoras do descartável como um tipo de princípio motor de nossas relações com coisas, acontecimentos, e, principalmente, com o outro. Em particular, o consumismo ligado a produtos e serviços das TICs assumem um caráter vetorial digno de impressionar: se, como enxerga Renato Cordeiro, “a criação permanente de necessidades começa a governar as ações humanas, [e] os bens de consumo passam a condicionar todo o corpo social”125, haveria uma ilustração mais nítida disso do que a forma como temos lidado com o gigantesco complexo de gadgets atualmente disponíveis? E mais, com o consumo paranoico de informação, mastigada e tão logo cuspida? Não há lugar para eleatas em uma Campus Party! O fato de a informação ter alcançado um volume estratosférico ajusta-se à quinta-essência da lógica do descate. A ‘sexta’ consiste na ultravelocidade em que a informação é proporcionada e em que vai para o lixo, virtual ou não. O que se põe em jogo neste fenômeno não é exatamente a informação, mas a velocidade em que é transmitida. Sob a ótica de Stiegler, o jornal que compro hoje, “amanhã não valerá nada porque uma informação é aquilo cujo valor está unido ao tempo de difusão que é tanto mais informação quanto menos conhecida é”126. Embora haja uma exaltação da efemeridade a imprimir formas de sentir, perceber, escolher, programar a realidade mais ordinária de nossas vidas diárias, isso não significa que ela tenha engolido o imóvel por completo. A tensão entre obsolescência e durabilidade no domínio das mercadorias encrustou-se nas interrelações humanas tal como uma espécie de dialética do que/de quem deve ser rapidamente posto de lado e do que/de quem deve perdurar. Entretanto, enquanto tensão, mantém a dinâmica conflitiva sob um regime de auto-alimentação, pois, não ouso entendê-la no prisma de um termo final, de uma reconciliação hegeliana. O permanente não perdeu inteiramente seu encanto, somente teve que aprender a coabitar um mundo organizado segundo um esquema cultural que lhe é ao mesmo tempo antagônico e alternativo. A moda seria um exemplo disso, como Lipovetsky a vê.

123 Virilio, Paul. A arte do motor. Ibidem. p. 54. Grifo do autor. 124 Cf. Nietzsche, Friedrich. Além do bem e do mal. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. § 19, p. 25 125 Cordeiro, Renato Carporali. Da riqueza das nações à ciência da riqueza. São Paulo: Loyola, 1995. p. 143. 126 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo II. Ibidem. p. 172. Grifos do autor.

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Para o pensador francês, “a lógica econômica realmente varreu todo ideal de permanência, é a regra do efêmero que governa a produção e o consumo dos objetos. Doravante, a temporalidade curta da moda fagocitou o universo da mercadoria, metamorfoseado, desde a Segunda Guerra Mundial, por um processo de renovação e de obsolescência ‘programada’ propício a revigorar sempre mais o consumo”127. O efêmero passa a ser um dos princípios organizadores da cultura contemporânea, e, vestindo-se da lógica de drástica aceleração da moda (esta tomada como parâmetro), ganhou inequiparável velocidade; isto é, a moda injetou-lhe combustível hiperaditivado e um motor de incontáveis cavalos-de-força, tornando-lhe incisivo nas atuais práticas de consumo e socialização: “as indústrias culturais são de ponta a ponta indústrias de moda, a renovação acelerada e a diversificação são aí vetores estratégicos”128. No entanto, mesmo aparentando ser ‘antimetafísca’ no mais alto grau, mesmo instaurando-se como vitória do impermanente sobre o permanente, do perecedouro sobre o idêntico a si mesmo, a moda é igualmente constituída por arquiteturas romanas: é difícil negar haverem estruturas perduráveis em seu universo, que se mantêm em tensão com as exigências coercitivas de mudança. Há algo de velho na nova coleção! Portanto, “o produto cultural se molda em fórmulas já experimentadas, é inseparável da repetição de conteúdos, de estruturas, de estilos já existentes”, correspondendo então a “um misto de forma canônica e de inédito”129. Neuróticos, compulsivos, obsessivos espraiam-se nos logradouros reais e digitais em busca de novidades, e isto, sem que se esteja somente sob as injunções do sistema do capital: “a obsolescência ‘dirigida’ dos produtos industriais não é o simples resultado da tecnoestrutura capitalista, tendo-se, antes, enxertado numa sociedade em grande parte entregue aos arrepios incomparáveis do novo”130. Uma psicologia da novidade, que marca a maneira com a qual lidamos com o efêmero e consagramos templos ao imediato, precisaria então vir à tona. Após essas cogitações sobre a obsolescência e o enaltecimento do efêmero, a noção de descartabilidade afigura-se situada em um duto razoável desde o qual pode emergir. Nessa direção, e a meu ver, alguns aspectos soam decisivos. Em primeiro lugar, uma vez que a derradeira jogada da celeridade obsolescente consiste na ingressão da mercadoria no reino do imediato, consonante com uma transitoriedade tecnicamente armada para conceder ao produto um ‘lépido piscar’ de utilidade quase concomitante ao seu desuso (mal vem ao consumo e... Your time is over!), a condição de descartável passa a empossar-se do ser da mercadoria do mesmo modo que sua avaliação enquanto tal é claramente naturalizada, e ungida em qualidade-mor no cerne dessa ‘ontologia do presente’. Ou, subscrevendo Cordeiro, “uma quantidade crescente de produtos começa a ser vendida para utilização imediata seguida do seu

127 Lipovetsky, Gilles. O império do efêmero. Op. cit. p. 185. Grifo meu. 128 Ibidem, p. 241. 129 Ibidem, p. 243. Conforme menção de Lipovetsky, Edgar Morin já havia sinalizado esse ‘duplo’ constitutivo no cerne da cultura de massas: “a concentração técnico-burocrática pesa universalmente sobre a produção cultural de massa. Donde a tendência à despersonalização da criação, à predominância da organização racional de produção (técnica, comercial, política) sobre a invenção, à desintegração do poder cultural. No entanto, essa tendência exigida pelo sistema industrial se choca com uma exigência radicalmente contrária, nascida da natureza própria do consumo cultural, que sempre reclama um produto individualizado, e sempre novo” (Morin, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 25). 130 Lipovetsky, Gilles. O império do efêmero. Ibidem. 212.

50 abandono: a civilização do descartável”131. Em segundo lugar, e ocorrendo quase à sombra, serviços e/ou profissões outrora indispensáveis à teia trançada entre os setores da economia vão se esfumando e outros novos vão surgindo, protagonizando papeis relevantes nos palcos do hoje, e sem qualquer garantia de longevidade, convalidando a situação segundo a qual a lógica da prestação de serviços e do mercado de ocupações, não obstante em menor escala que a indústria, abarca da mesma maneira a prática sistêmica do descarte. Telefonistas, arquivistas, digitadores (para não dizer datilógrafos), agentes de viagens, caixas de supermercado, de banco, técnicos de contabilidade, cobradores de ônibus, de pedágio, dentre outras ocupações, se já não foram inteiramente descartadas, estão bastante próximos de sê- lo. Além disso, por conta dos impactos da informatização, estudiosos anteveem que no interstício de duas décadas presenciaremos cada vez mais a substituição de certas profissões por robôs e sistemas informáticos. Analisando quais seriam as possíveis ocupações suscetíveis de serem informatizadas e robotizadas nos próximos vinte anos, partindo da proposição de um modelo algorítimico específico, Benedikt Frey e Michael Osborne argumentam que, “em grande parte, já é quase tecnologicamente possível automatizar qualquer tarefa, contanto que estejam agrupadas quantidades suficientes de dados para reconhecimento de padrões”132. Nisso reside uma outra face da ‘civilização do descartável’. Em terceiro lugar, contento-me em apresentar o vaticínio de Toffler no ano de 1970: “os homens do passado e do presente vivem vidas de ‘transitoriedade relativamente baixa’: suas relações tendem a ser duradouras. Por outro lado, as pessoas do futuro vivem em uma condição de ‘transitoriedade alta’, uma condição em que a duração das relações se abrevia, e sua mudança se dá sumamente rápido. Em suas vidas, as coisas, os lugares, as pessoas, as ideias e as estruturas organizadas se ‘gastam’ mais depressa”133. Como vejo, o fato inédito aqui se embasa na velocidade com que tais eventos vêm ocorrendo: das planejadas dinâmicas de descarte aos processos de subjetivação que levam a relações humanas instituídas sob a lógica do desgaste e efeitual permuta, há uma rapidez intrínseca e sem precedentes culturais. Enquanto modo da velocidade, a rapidez transforma-se mediante ininterrupto processo de atualização, contínua permuta de velocidades numa escala progressiva ad infinitum para mais velocidade, para incremento de velocidade. Por esse motivo, e de forma paradoxal, a própria velocidade queda sob o jugo da descartalização134. No tempo em que arranjos sócio- histórico-culturais dessa natureza tornam-se perceptíveis aciona-se, segundo entendo, o ser interpretante em nós: pomo-nos a buscar/inventar razões e fabricar tal qual torneiros mecânicos peças com as quais possamos encaixar o real estilhaçado, conferindo-lhe um sentido. Nesse horizonte, penso ser a descartabilidade o modo de ser descartável, abandonável, de todo ente (coisas, objetos, pessoas, valores, lugares) cuja razão de existir é determinada pelo desfrute substituível, consorciado com uma transitoriedade gerada pela velocidade como valor. Há um manter-com, um continuar- junto, de que é destituído tudo aquilo que assume a condição de descartabilidade. No limite, a descartabilidade não está circunscrita à utilidade, mas ao desfrute (o fato de

131 Cordeiro, Renato Carporali. Da riqueza das nações à ciência da riqueza. Op. cit. p. 142. 132 Frey, Carl Benedikt; Osborne, Michael A. The future of employment: how susceptible are jobs to computerization? Oxford University Martin School, set., 2013. p. 23. 133 Toffler, Alvin. El ‘schock’ del futuro. Ibidem. p. 33. 134 Cf. Virilio, Paul. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p. 57.

51 que se utilize um objeto, uma ferramenta, por exemplo, pode ser compreendido como uma espécie de desfrute; mas, desfrutar não se reduz a utilizar, sendo aquele, ao menos assim o concebo, de maior abrangência, pois, acha-se no campo estético da existência humana, o qual substantivamente extrapola o domínio das relações de utilidade: posso desfrutar de uma praia, de um pirão de peixe, de um Abelardo da Hora, sem precisar utilizá-los135). Ela dimana de uma conjuntura, uma circunstância (justamente esta na qual parecemos nos encontrar), que a elege como uma indumentária com a qual se revestem as relações, sendo fruto da importação das relações estatuídas no domínio das mercadorias para o âmbito das relações humanas. Nessa direção, atira Zygmund Bauman: “todos temos aprendido amargamente que num abrir e fechar de olhos nossos ativos podem se transformar em dívidas e os troféus mais reluzentes, em lápides. As modas vão e vem a uma velocidade vertiginosa, todos os objetos de desejo tornam-se obsoletos, desagradáveis e até produzem rejeição antes de haver tido tempo de serem desfrutados plenamente”136. Numa face da moeda, o ente é descartável quando não me valho mais dele. Noutra face, mais representativa do fenômeno ora lido, a descartabilidade invade o domínio dos existentes quando passamos a velozmente substituir desfrutes não só porque admitimos viver em estruturas regidas pela obsolescência, mas também porque passamos a desejar que desfrutes possam ser rapidamente substituídos por outros, o que em última instância continua em trânsito. Damos a entender, como indivíduos contemporâneos, que ameaçamos arrancar do último lugar da longa duração o próprio prazer, afogando-o num rio onde corre intrépido um Heráclito de jet ski. Cada vez mais coisas e indivíduos, muito além de substituírem-se uns aos outros (no velho adágio marxista da reificação), colocam-se em um mesmo nível, figurando existirem para serem trocados, substituídos, abandonados, dispensados, no primeiro impulso. Toffler acreditava inclusive na exequibilidade de uma mensuração dessa efemeridade com a qual nos relacionamos com o mundo: “é possível projetar um ‘índice de transitoriedade’ que revele a rapidez com que estabelecemos e rompemos relações com as coisas, lugares, pessoas, organizações e estruturas informais compreendidas em nosso meio ambiente”137. Mensurável ou não, a transitoriedade, antes um motivo da metafísica da natureza, institui-se em efêmero manipulado na realização do círculo capitalista que vai da produção ao consumo, para derramar-se no caldeirão da hodierna cultura ocidental/ocidentalizada, e impor-se por meio da descartabilidade acelerada. Além do mais, penso eu, a descartabilidade é ao mesmo tempo um dos motores e um dos sintomas do tipo de experiência que estamos construindo: ela é um vetor entre vetores, todos engalfinhados. Faz coro com a aceleração, a rapidez, a pressa, a incapacidade de esperar,... Só me parece possível reconhecer sua presença em uma experiência de mundo na qual há um curto-circuito que de algum modo perpassa uma gama de costumes, flechando-os, e de tal sorte convocando-os, pressionando-os, obrigando-os, persuadindo-os a adotar maneiras de ser favoráveis a

135 Reconheço que essa é uma questão que naturalmente exigiria mais fôlego meditativo, uma vez que abre possibilidades fecundas para se pensar possíveis conexões, distinções, tensões entre o utilizável e o desfrutável, entre uma relação instrumental (técnica) e uma relação estética com os entes, e os transbordamentos e flexamentos existentes entre elas, algo que pode ser empreendido em outra ocasião. 136 Bauman, Zygmund. Modernidad líquida. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2004. p. 172. 137 Toffler, Alvin. El ‘schock’ del futuro. Ibidem. p. 324.

52 uma existência lébrica. Nas fraturas de uma ‘mania de totalidade’ praticamente perene, mania difícil ou até mesmo improvável de esquivar-se, aventuro-me em afirmar que a obsolescência, a aceleração do transitório, a descartabilidade e o apressamento do mundo compõem um sumário da velocidade como um dos principais valores esquemáticos de nosso tempo. Não por acaso, enquanto escrevo esse capítulo meu smartphone fenece.

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Capítulo V

A miséria da demora

“A paixão não quer esperar; o trágico na vida de grandes homens está, freqüentemente, não no seu conflito com a época e a baixeza de seus semelhantes, mas na sua incapacidade de adiar por um ou dois anos a sua obra; eles não sabem esperar”138.

As observações contidas neste livro estão a serviço, insisto, de algumas impressões. Acredito que essas impressões terminam por convergir para uma espécie de intuição de síntese, formulada de modo experimental pela seguinte proposição: querer a velocidade em seus mais distintos heterônimos constitui um traço da experiência humana contemporânea. Com efeito, entre as impressões acima aludidas que possivelmente ofereceriam suporte a essa hipótese, aquela condizente a uma tendência generalizada em não mais considerar a espera como uma possibilidade de relacionar-se com o mundo, e, portanto, com os outros e consigo, em franca correspondência com um reproche quase apriorístico da lentidão na cotidianidade das relações humanas, chama atenção em particular. Nesse sentido, não parecemos nos tornar cada vez mais incapazes de esperar? E na razão direta de tal indagação, pode-se dizer que presenciamos e contribuímos para uma sistemática crucificação da demora, aparentemente atuante nas vivências mais habituais e mais insólitas protagonizadas em nossas grandes urbes? Ou apenas extraio dos complexos pontos de fuga do mundo atual, pontos estes nos quais se dão aos montes os referenciais de conduta dos indivíduos, uma mera parcela, quiçá um pedaço, de um turbilhão para o qual toda tentativa de explicação é digna de gargalhada, uma vez que minha empresa não passaria de hipostasiação e fantasismo? Não estaria assim destinado a claudicar? Nietzsche diria, casualmente, trocar um erro por outro139. Pois bem, nisso creio consistir este exercício reflexivo. Ademais, não pretendo me ocupar de tais questões sem reconhecer que são questões minhas. Embora não me canse de tatear um ‘fora’, um ‘diferente-de-mim’, enquanto res interpretans. Significa dizer que caminho calçado, persuadido de que estou descalço. Ora, mas não é isso que ocorre com qualquer interpretação? Não está o intérprete calçado com seus próprios sapatos ao pisar o objeto interpretado, pensando tocá-lo diretamente? Reservo-me uma parcela de ambiguidade.

138 Nietzsche, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 60 § 61. 139 Cf. Nietzsche, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Prólogo § 4, p. 10.

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Autojustificações à parte, trago à tona alguns sinais, sintomas delineadores da mencionada impressão a fim de iniciar esse trabalho edipiano, essa tentativa de diagnosticar, pois, interpretar é igualmente clinicar. Isso posto, entre diversos fenômenos transcorridos mais ou menos nas últimas três décadas, teimo em destacar alguns, a meu ver, representativos: numa ponta, um sem-número de remédios e/ou tratamentos que prometem curas em um curto espaço de tempo, perda de peso ou ganho de massa muscular velozmente, rápida tonificação da potência sexual para homens, intervenções cirúrgicas para quem não ‘precisa’ esperar (lipoaspiração, gastroplastia e outras), uma penca de cosméticos, produtos e tratamentos estéticos a garantir expedito rejuvenescimento, queima de gordura (criolipólise, toxina botulínica, hertix, manthus, massagem modeladora, e inclusive Phydias, para os entusiastas da proporção helênica). Noutra ponta, o forno de micro-ondas, o juicer ou expremedor de laranjas, fatiadores, fornos elétricos, torradeiras, panelas elétricas: Pierre de Coubertin mal tomou a sopa e a cozinha transmutou-se em pista para velocistas; e já que estamos na cozinha, a meu ver, um dos locais mais emblemáticos da sintomatologia posta em voga: macarrão, arroz, lasanha, pizza, bolos, e novamente a sopa, todas iguarias instantâneas, e todo ementário do reino dromogastronômico das fast-foods. Caso Brillat-Savarin tenha razão quando assegura que somos aquilo que comemos140, não seria implausível dizer de processos de subjetivação e identificação que se realizam também por meio da rotina de uma dromogastronomia quase estrutural. Pois bem, o que há em comum nesses exemplos senão uma espécie de pragmática da rapidez? Um conjunto de casos de despresentificação da espera, da duração, da demora? Há ainda outras tantas ilustrações advindas dos mais distintos âmbitos de nossa cotidianidade, algumas inclusive caracterizadas por componentes pitorescos. Uma das formas culturalmente vividas de realização do sexo em terras brasílicas, principalmente em se tratando de casos extraconjugais e análogos, é emblematicamente chamada rapidinha, serviço ofertado por alguns motéis cujo atributo singular está no breve período de tempo disponibilizado (geralmente uma hora) para usufruir das instalações e efetivar a prática sexual rápida (donde provavelmente o nome emblemático), realizada em grande medida, queremos crer, nos horários de intervalo de trabalho141. Em Amsterdã, um escorregador foi colocado na saída de uma estação de metrô para que transeuntes (sobretudo executivos apressados) consigam ganhar tempo, não obstante os seus designers haverem declarado que fora projetado com o fim de ofertar mais ludicidade ao ramerrame dos passantes. Mas, para além dos exemplos que soam anedóticos, há outros mais ‘sérios’ como as esteiras rolantes distribuídas pelos aeroportos do mundo, que, no limite, permitem insinuar um duplo aspecto nelas guardado: ser ao mesmo tempo condição para o descanso do peso das malas e a ‘necessidade’ de continuar a marcha (não se pode parar!). Aeroportos, assim como outros não-lugares, no vocabulário de Augé, não admitem a espera, sendo construtos cinético-culturais que visam em última

140 Cf. Brillat-Savarin, Jean-Anthelme. A fisiologia do gosto. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 15. 141 Nesse sentido, a sentença de Honoré sobre o privilégio do resultado sobre o processo parece-me acertada: “nossa cultura da pressa ensina que chegar ao destino é mais importante que fazer a viagem – e o sexo é afetado por essa mesma mentalidade da meta de chegada” (Honoré, Carl. Devagar: como um movimento mundial está desafiando o culto da velocidade. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 193)

55 instância suprimi-la. Porém, sem nenhuma possibilidade de êxito, posto que a mesma mantém-se em seus perímetros como uma viva contradição insubordinável. Ora, é inconteste o fato de sermos igualmente responsáveis pela arquitetura de uma vida marcada por prazos, deadlines, cumprimento de agendas, à qual desde há muito dissemos sim! e como que naturalizamos. Nesse sentido, e para dar a pensar acerca de uma psique medonha que temos arvorado em razão disso, afirma Carl Honoré: “qualquer coisa ou pessoa que se interponha em nosso caminho, que nos force a moderar o ritmo, que nos impeça de conseguir exatamente o que queremos no momento em que queremos passa a ser um inimigo”142. Se em algum momento da história da filosofia Rousseau foi acusado de querer que seres humanos voltassem a andar como quadrúpedes, parecemos aplicar a mesmíssima lógica com relação à vida cultural e econômica anterior: há atualmente um Rousseau para ser acusado de defender que nós, urbanoides de um suposto ‘pós-tudo’, quanto a uma hoje incontável quantidade de modos de ser, deveríamos voltar às vivências lentas de outrora? No mundo em que Marinetti pronunciou seu evangelho de uma nova religião-moral da velocidade ao escrever as palavras que constam no fim desta frase, ela já se constituía em objeto massivo de adesão?! – “A velocidade, tendo em essência a síntese intuitiva de todas as forças em movimento, é naturalmente pura. A lentidão, com análise essencialmente racional de todo o cansaço em repouso, é naturalmente impura. Após a destruição do bem e do mal antigo, criamos um novo direito: a velocidade, e um novo mal: a lentidão”143. Nesse sentido, a apologia da velocidade não foi efetivamente levada a cabo pelos futuristas do século XX: de fato, somente agora ela começa a traçar seus primeiros contornos, pois, comparada ao movimento artístico supostamente vanguardista, uma época inteira é um colosso. No germinar dessa ‘época’, circunstâncias de espera, arranjos em que há fenomenalização da espera, inclusive na condição de espera coletiva, tornam-se laboratórios da ansiedade, da agitação, da impaciência. Demora e espera são irmãs, e as leituras que se fazem de uma e de outra, leituras umbilicais, são formas culturalmente consagradas de avaliação e interpretação e, por essa razão, significações psicossociais compartilhadas, tornadas hegemônicas e que, por serem históricas, podem tornar-se fracas e perder sua potência mediadora. A título de contraponto, se poderia recorrer à diferenciação instaurada por Georg Simmel entre um tipo metropolitano de indivíduo e um tipo interiorano, com a intenção de aclimatar o fenômeno recrudescente da negação do par espera/demora, e a simultânea intensificação dos ritmos da vida humana, apenas em circunscrições metropolitanas. Segundo o sociólogo alemão, o traço distintivo do que denomina “tipo metropolitano de individualidade” consistiria na acentuação dos estímulos nervosos, na superafetação da sensibilidade do indivíduo lançado nas teias da cidade grande. “Com cada atravessar de rua”, escreve Simmel, “com o ritmo e a multiplicidade da vida econômica, ocupacional e social, a cidade faz um contraste profundo com a vida de cidade pequena e a vida rural no que se refere aos fundamentos sensoriais da vida

142 Honoré, Carl. Devagar: como um movimento mundial está desafiando o culto da velocidade. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 23. 143 Marinetti, Filippo Tommaso. A nova religião-moral da velocidade. Giornale L’Italia Futurista, Roma, 11 Mar., 1916.

56 psíquica”144. Apesar de concordar com a compreensão de Simmel, apropriada a uma hermenêutica das bases sensoriais dos indivíduos socialmente imersos em distintos contextos e da urbanidade no final do XIX e em boa fatia do XX, penso que hoje parecemos ultrapassar esse binômio aparentemente estanque, e vivenciar uma mudança na qual estes horizontes supostamente separados, cruzam-se, complementam-se, hibridizam-se, reengendram-se simbioticamente. Muito além da motocicleta substituindo o jumento nos interiores do nordeste brasileiro, há transformações expressivas na divisão do trabalho, possibilitação de mobilidade social, e a adoção de estilos de vida urbanos em espaços ditos rurais (e vice-versa), efeitos da implementação de políticas sociais, de duros processos de globalização, do acesso à tecnologia e da entrada na cibercultura. E este não me parece ser um acontecimento isolado. Por esse caminho, julgo que a compreensão simmeliana do indivíduo da metrópole agrega sentido à análise aqui intentada, na medida em que indica o caráter intenso de seus estímulos, algo que, em termos psicofisiológicos contemplaria a própria intensificação rítmica justificadora dos sintomas de eliminação da experiência da demora e, por sua vez, da espera, mas que não se encontra exclusivamente fixado em Nova York, São Paulo ou Tóquio, ou quaisquer outras metro ou megalópoles do planeta, ocorrendo também, por certo em menor proporção, em circunscrições humanas da sobredita ‘vida rural’. A pergunta levantada por Virilio vem a calhar, à medida que apresenta um motivo legítimo à preocupação ora entabulada, abrindo uma fundamental frente de análise: “o que resta da razão sã que era a arte de produzir uma razão e controlar a espera pelo que chega, uma vez que produzir velocidade é justamente suprimir a espera e a duração?”145. O significado desta ‘razão sã’ exposta pelo filósofo como doadora de um sentido justificador ao ato de esperar, segundo vejo, vincula-se a uma longa tradição hermenêutica edificada no horizonte das meditações éticas clássicas e medievais. Nos discursos filosóficos acerca das virtudes, cuja forma e conteúdo são parte substantiva da arquitetônica das éticas teleológicas, não figuraria desacertado afirmar que as virtudes da prudência e da paciência contêm ou abrangem, em alguma medida, a dimensão da espera. Esse ‘controle da espera pelo que vem’ remete a reflexões éticas desde há muito problematizadas e cravejadas mediante críticas com as quais tais reflexões passaram duramente a coexistir no reino das ideias, e sem as quais, fantasmas dogmáticos, que estão sempre sobrevoando suas cabeças, poderiam voltar com suas zombarias. No entanto, e sem pretender reeditar o debate sobre a validade das mesmas, considero importante manusear as citadas virtudes unicamente em uma direção heurística, com o intuito de situar a negação da espera e da demora enquanto fruto da alteração por parte da vida cultural contemporânea de certas prescrições morais oriundas de fortes tradições filosóficas e religiosas. Desobedecendo ao clichê de iniciar pelos antigos, peço vênia para citar na íntegra uma passagem que julgo de uma exitosa condensação sobre a questão que por ora examino, intitulada Saber esperar, cujo autor é o pensador espanhol Baltasar Gracián: “é prova de um grande coração quando se têm grandes reservas de paciência. Nunca se afobe ou nunca dê vazão às emoções. Domine-se e dominará aos outros. Vagueie pelas vastas dimensões do tempo rumo ao centro da oportunidade. A

144 Simmel, Georg. A metrópole e a vida mental. In: Velho, Otávio G (Org.). O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p. 12. 145 Virilio, Paul. A arte do motor. Ibidem. p. 83. Grifo meu.

57 hesitação sábia tempera os acertos e amadurece os segredos. A muleta do tempo é mais poderosa que a clava de aço de Hércules. O próprio Deus não castiga com as mãos de ferro, mas com os pés de chumbo. Um maravilhoso ditado: ‘O tempo e eu enfrentamos quaisquer outros dois’. A sorte dá recompensas maiores àqueles que esperam”146. Nela, consigo entrever uma síntese entre helenismo e cristianismo quanto aos motivos morais que preservam uma defesa do esperar sob a égide escancarada da virtude cristã da paciência, e da virtude helênica da prudência, única apta a produzir no humano uma ‘hesitação sábia’. No aforismo de Gracián há uma correlação entre a disposição de esperar, a serenidade, a magnanimidade e a maturidade, todas dispositivos caros à defesa do caráter autárquico, do autocontrole das paixões, inerente às antigas éticas gregas, culminante em Aristóteles (‘domine-se e dominará aos outros’), cuja virtude central é justamente a prudência (phronesis); bem como um elogio à paciência, a uma dose de passividade e incolumidade, de sábio sereno pisando sobre brasas, de Daniel na cova rodeado por Leões famintos. Desse modo, podem-se identificar menções à relevância ética da espera naquilo que há de moralista e preceptístico em alguns pensadores antigos e medievais. Em Sêneca, por exemplo, é exequível deduzir uma articulação muito pouco provável nos dias atuais entre prazer e espera: “agradece antes pelo que recebeste; espera o restante e fica contente por ainda não estar repleto: é prazeroso ter algo a esperar”147. Nestas palavras há a consciência de uma incompletude no lançar-se para algo que virá ou que deve advir, a qual, no limite, emana como justificação ontológica à espera. No pensamento medieval, entre as chamadas ‘virtudes principais’, Tomás de Aquino elencou a paciência – esta, ligada umbilicalmente à espera –, ao citar um excerto do apóstolo Tiago: “aquilo que é perfeitíssimo parece ser o principal. Ora, isso pertence à paciência, pois, conforme a Carta de Tiago, ‘a paciência produz obra perfeita’. Logo, a paciência deve ser afirmada como virtude principal”148. Com efeito, o esquema lógico messiânico e soteriológico do judaísmo e do cristianismo demanda uma moralidade que faz da atitude de esperar um modo de conduta imprescindível a uma ética da transcendência humana para o âmbito do divino transcendente. Em outras palavras, naquele que incorpora essa atitude há uma dupla espera remissiva: espera-se o messias e a própria salvação após a morte – nos autem sperabamus, esset redempturus Israel, escreve Antônio Vieira em um de seus Sermões149. Hesitando em tomar a espera por prazerosa (à maneira de Sêneca) e indissociável do esquema escatológico cristão, Vieira problematiza o esperar e o ser esperado, lendo o primeiro como fonte de tormentos e castigo divino. Para o pensador jesuíta, a espera como castigo e aturdimento é dirigida particularmente aos judeus por terem cometido, segundo ele, o delito de levar Jesus à morte. Dessa perspectiva, haveria uma potência do ausente no ato de esperar, da qual parece tratar Comte- Sponville quando afirma “que só podemos esperar o que falta: a esperança é a própria falta, na ignorância e no tempo. Só esperamos o que não temos, o que não sabemos, o

146 Gracián, Baltasar. A arte da prudência. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. p. 22. Aforismo 55. Grifo meu. 147 Sêneca. Sobre a ira/Sobre a tranquilidade da alma: diálogos. São Paulo: Peguin Classics/ Companhia das Letras, 2014. p. 114. 148 Tomás de Aquino. Suma Teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2003. v. IV, p. 164. 149 Veja-se o Sermão da primeira oitava da páscoa (1617), de António Vieira. A frase latina quer dizer ‘até então nós esperávamos que Israel fosse redimida’.

58 que não podemos. Pelo que a esperança, dizia Spinoza, é inquietude, ignorância, impotência”150. Ao tratar o tema em voga em meados do século XX, Pedro Entralgo entrega à espera uma condição ontológica existencial, concebendo que “enquanto ser vivente, o ser humano não pode não esperar, existe e tem que existir esperando”151. Para ele, a espera é simultaneamente atitude e atividade no humano: é hábito atrelado ao ente e ao mesmo tempo operação, donde a sentença todo esperar supõe um operar (um algo a fazer). Mas o que chama atenção em Entralgo é sua afirmação sobre uma estrutura básica da existência humana denominada por ele “espera vital”152, hábito primordial do humano correspondente ao pathos de continuar vivendo, o qual se confundiria com o que o autor denomina esperança genuína, atitude e atividade intrínseca à condição de vivente humano, que desfaz o significado dominante do esperar sob o jugo da passividade. Esta se daria mediante determinados modos de espera, desde os quais a própria espera é subtendida como esperança, sem que haja, nesse instante do pensamento de Entralgo, uma distinção entre uma e outra. Tendo isto em conta, o autor enumera dois modos de espera, a esperança mosaica (um esperar receptivo, porém ativo, enquanto expectatio) e a esperança hesiódica (um esperar criativo). Conforme o filósofo, “seja expectativa ou criação, a atividade da espera humana acaba sendo ‘recriação’, elaboração original de algo recebido e já de algum modo elaborado”153. Igualmente contrário a uma ideia petrificante de espera e mais orientado a um sentido propriamente político desta, Ernst Bloch sentencia: “o que importa é aprender a esperar. O ato de esperar não resigna: ele é apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso. A espera colocada acima do ato de temer, não é passiva como este, tampouco está trancafiada em um nada”154. No filósofo alemão é também a esperança que entra em jogo na tematização da espera. Seu conteúdo é redimensionado no horizonte de uma ressignificação da utopia na esteira de um ‘otimismo militante’ catalisador de ‘sonhos diurnos’ (propulsores utópicos da condição histórico-política humana), balizado pela Docta spes ou esperança compreendida enquanto princípio que move o humano ‘para adiante’, para um futuro aberto. “A função utópica”, escreve Bloch, “arranca os assuntos da cultura humana do leito pútrido da mera contemplação e desse modo descortina sobre cumes de fato galgados o panorama ideologicamente desimpedido do conteúdo da esperança humana”155. Por isso para Bloch esperar requer um aprendizado, demanda uma compreensão da dimensão do futuro como aberta à realização histórica e política, compreensão esta que uma esperança como mera contemplatio embotaria. O que pretendo mostrar ao trazer à discussão tais concepções é a presença de uma relação umbilical entre esperar e esperança, quer no âmbito do discurso teológico judaico-cristão quer no discurso filosófico contemporâneo. Desvincular tais noções não é tarefa fácil e nem é aquela proposta aqui. O intento consiste em fazer ver como a

150 Comte-Sponville, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 189. 151 Entralgo, Pedro Laín. La espera y la esperanza: historia e teoria del esperar humano. Madrid: Alianza Editorial, 1984. p. 514. Grifo meu. 152 Entralgo, Pedro Laín. La espera y la esperanza. Op. cit. p. 516. 153 Ibidem. p. 519. 154 Bloch, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: EdUERJ; Contraponto, 2005. v. 1. p. 13. 155 Op. cit. p. 157. Grifo meu.

59 razão de ser do esperar assume diferentes matizes156 (de uma espera passiva psicologicamente desesperadora, aflitiva, enquanto falta, a uma espera como condição ontológica, como proprium da existência humana, passando por um esperar assertivo que aduba a transformação social); e como, em alguma medida, tais matizes conservam ou de alguma forma precisam manter presentes as virtudes da prudência e a da paciência: com uma ou outra variação sobre o tema o aforismo de Gracián continua valendo, pois ambas prosseguem sendo co-requisitos à espera, não importando ser esta ativa ou passiva. Voltando à indagação de Virilio sobre a supressão da espera e da duração, e o simultâneo destronamento de uma ‘razão sã’, cultivadora pacienciosa de uma espera necessária à consecução daquilo que vem, penso que a produção de uma tal racionalidade é atropelada cotidianamente pela produção de racionalidades outras marcadas em profundidade pela velocidade. Nos limites da experiência de mundo contemporânea, cada novo implemento técnico, cada nova configuração do trabalho, cada nova forma de atuar e reconfigurar papéis sociais, cada novo processo de personalização, parece vir-a-ser na razão inversa da manutenção de condutas que assentem prazenteira ou favoravelmente o ato de esperar. Como em Bloch e Entralgo, o próprio esperar precisou passar por uma inversão: ser reputado ativo, criativo, agente, atuante. A eficácia e a eficiência adentram irrefreáveis nas mais variadas dinâmicas humanas, fazendo sucumbir modalidades da espera e da demora: poucos são aqueles que hoje se dispõem a aprender alguma coisa com Jó. Nem mesmo a atividade mental escaparia à aceleração, como entende Guy Claxton: “na sociedade ‘ocidental’ contemporânea (que agora efetivamente encobre o globo) nós parecemos ter gerado uma pressão interna, uma psicológica cultura da velocidade, e a necessidade de controle – espelhando a cultura externa da eficiência e da produtividade – na qual o acesso a modos lentos da mente foi perdido”157. Tampouco o psiquismo e a produção de subjetividade se veem livres dela, como indica Maria Rita Kehl, “a sociedade contemporânea vem produzindo – e sofrendo com isso – uma invasão de formas imaginárias desse Outro apressado, que não admite nenhum tempo ocioso que não seja rapidamente preenchido por ações que visam satisfação imediata”158. Ainda de acordo com a psicanalista em seu estudo sobre o vínculo intersticial entre a aceleração da vida e o problema da depressão na contemporaneidade, é possível salientar dois componentes que caracterizam a formação do tipo de sujeito no interior dessa sociedade: primeiramente, tais sujeitos se constituiriam pela ininterrupta mitigação da imaginação, do pensamento espontâneo e do próprio tempo do compreender, mitigação esta demandada pela necessidade de êxito em boa fatia das ações do cotidiano estar ligada à habilidade em responder rapidamente ao mar de estímulos a que somos diariamente convocados. No limite, isso requer ‘centramento’, ‘ação racional’, ‘objetividade’, neuroses de todos os tipos, e nada de “devaneios, pelas fantasias, por reminiscências espontâneas”, uma vez que “essas formas ‘dilatadas’ da atividade psíquica distraem os sujeitos das exigências

156 Na filosofia contemporânea outros autores apresentam compreensões do esperar, além dos já citados. Nessa direção, veja-se: Buber, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 2009. Heidegger, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2012. 157 Claxton, Guy. Hare brain, tortoise mind: how intelligence increases when you think less. Londres: Fourth State, 1997. p. 11. 158 Kehl, Maria Rita. O tempo e o cão. Ibidem. p. 141.

60 impostas pelo presente absoluto”159. Disso resultaria que “um dos efeitos dessubjetivantes da velocidade é o empobrecimento da imaginação”160. O segundo ponto que me chama atenção no trabalho de Kehl residiria na identificação de uma alteração qualitativa na formação do psiquismo – compreendido pela autora como uma “instância temporal” desde a qual a atividade psíquica vem a ser mediante o espaço de tempo entre tensão e satisfação de necessidades – em função dos condicionamentos da vida hodierna: “a aceleração do tempo do Outro atropela o tempo de espera fundamental na constituição do sujeito”161. A maternidade vivida neste célere tecido temporal coloca na mãe a pressa em atender aos apelos do infante, enquanto importante ilustração da dita alteração: “o comportamento automático de rapidez e eficiência, característico das mães razoavelmente boas do terceiro milênio – mães excessivamente preocupadas com seu desempenho e angustiadas com o pouco tempo que poderão dedicar a seus bebês –, tende a abreviar o tempo vazio necessário para instaurar o trabalho psíquico, trabalho de representação do objeto de satisfação, em seus bebês. Não pensemos, portanto, no futuro depressivo como um bebê abandonado ou mal-amado, mas como uma criança poupada, em demasia, da necessidade de suportar o que Freud chamou de tensão de necessidade”162. Porque criado na diminuição assídua desse intervalo propício à constituição psíquica e, dentre outras coisas, ao desenvolvimento de autoconfiança e capacidade imaginativa, estamos vendo crescer um exército de sujeitos incapazes de suportar esperar?! É isso que nos espera?! Concebendo uma distinção apenas recursiva, a reflexão se ocupa aqui do ‘esperar por’ e não do ‘esperar que’, este último designando o ‘ter esperança’ referido à matriz judaico-cristã, e que, de toda forma, funciona como combustível para a já citada ressignificação blochiana da utopia. A nosso ver, o ‘esperar por’ corresponderia ao cumprimento de expectativas ordinárias, cotidianas, cujo peso da dimensão de futuro é leve se comparado ao peso de um agora-presente: diz respeito ao ‘esperar’ atrelado à geração de uma expectativa acerca de uma possível ação de outrem com relação a nós, ambientado nas teias de relações interpessoais mais comuns, cujo fundo condiz a compromissos morais associados a complexas articulações de significados estabelecidos e reapropriados nas esferas socioculturais em que vivemos. Mas esse ‘esperar por’ parece esvaziar-se. Em nossa época a espera é amaldiçoada: Você não precisa esperar mais! Dizem slogans de clínicas especializadas em lipoaspiração, bancos vendendo empréstimos consignados e consórcios, a indústria farmacêutica e seus antiácidos contra a azia. Não lidamos com um paradoxo, mas com uma alteração: de uma espera salvífica, outrora fundamento das demais formas de espera (pelo governo, pelo patrão, pelo dia de amanhã, pela loteria, pela graça divina,...) para uma espera do tipo make yourself. Esta, por sua vez, implica na tentativa de aniquilação da equação espera = duração = demora, constituindo-se como uma espera que não se quer espera163.

159 Kehl, Maria Rita. O tempo e o cão. Ibidem. p. 160. 160 Ibidem. p. 189. 161 Ibidem. p. 274. Grifo da autora. 162 Ibidem. p. 274/275. Grifos da autora. 163 Ou ainda, conforme Carl Honoré, é como se a espera, para ter algum valor, precisasse se tornar produtiva e utilizável, “para fazer com que não pareça tanto uma espera” (Honoré, Carl. Devagar. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 12).

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Que lugar há para a paciência e a prudência em nossa performática cotidiana quando o entusiasmo da compressão do tempo e do célere cumprimento das expectativas reina entre nós? Quando os ‘hiatos’ e os ‘entre’ tornam-se inimigos de nosso sistema nervoso, como exigir dessas duas senhoras que se façam presentes? Nessas ocasiões, não é a uma consciência moral que recorremos, mas a ansiolíticos. Ademais, claro está que o demorar não é um ‘negativo’ a priori, pois no deleite, no prazer, na fruição, o desejo de demora e duração é um desejo acoplado: ele é requerido e co-experienciado. Já o atraso é um modo de interpretação da demora, o que significa dizer que nem toda demora é atraso: só há atraso dentro de uma lógica temporal específica, a do compromisso, que fora engolida pelas dinâmicas organizacionais do capitalismo. Porém, em geral, a demora deve ser evitada – sentença que hoje concorre mui fortemente à condição de máxima moral – e sua figura arquetípica, a lentidão, defenestrada. Talvez, a incapacidade de esperar e a condenação da lentidão em incontáveis experiências do cotidiano hipermoderno digam muito sobre a velha peleja humana contra o tempo e a tentativa de redimir-se da finitude. Se esperar tem se tornado algo insuportável em função da demora ocasionada pela lentidão, esperas, somente aquelas suportáveis, porque admitidas pelos sistemas e convenções da experiência sociocultural pós-industrial. Moramos num contexto onde a paciência é finalmente escancarada como hipocrisia. Sai de cena o Anticristo e entra na trama o Antijó. Em tese, a lentidão consiste na incapacidade de acompanhar e assimilar fluxos. Procedimentos e processos lentos, pessoas lentas, automóveis e trânsito lentos, processadores lentos, internet lenta, morosidade das instituições, na contramão da nítida intensificação164 da velocidade elevada à condição de parâmetro técnico e ao mesmo tempo moral, eis a minha conjetura, a qual em sua dinâmica alostática acaba por expurgar quaisquer incorporações da demora: ineficiência, ineficácia, improdutividade, desatualização, entre outras. Em termos metabólicos, rendimento e alto desempenho produtivo conjuminam-se com uma rápida executabilidade, num intervalo etário que encosta e estaciona seus extremos: crianças numa ponta em sua circunstância de ainda-não-servíveis, e idosos numa outra, já-não- mais-servíveis. Todavia, no seio desse mesmo intervalo, há tipos de indivíduos que se percebem excluídos ou semi-incluídos pelo fato de, como aponta Trivinho, personificarem a lentidão: “na atualidade, seria preciso dizer que não é o homem alijado da experiência mas o homem lento – aquele de uma baixa velocidade metabólica – que se sente excluído do calendário”165. Ou, como nos alerta Guicci, “não há lugar para a lentidão na era da aceleração, quando velhice e velocidade são inimigas”166. Muito embora soe taxativa esta asserção de Giucci, por outro lado o autor situa uma mania antagônica que cresce junto com essa mania de aceleração, em um sentido particularmente técnico, ao ponderar que “a mania de velocidade se estende progressivamente ao corpo social e passa a contaminar o modo de experimentar o tempo. Essa mania também fomentou o seu oposto, a valorização da lentidão. As coisas ‘rápidas’ são malfeitas, mal pensadas, mal executadas”167. É nesse sentido que

164 Sobre a relação entre vida hodierna e intensidade, cf. Trivinho, Eugênio. Redes: obliteração no fim de século. São Paulo: Annablume/FAPESP, 1998. p. 43-44. 165 Trivinho, Eugênio. Redes: obliteração no fim de século. Ibidem. p. 42. 166 Giucci, Guillhermo. A vida cultural do automóvel. Ibidem. p. 44. 167 Ibidem. p. 46.

62 importa chamar a atenção para o fato de haver um clima generalizado de reprovação da lentidão, e isso me parece razoável, o que não implica na deposição por completo de seus entusiastas. Em um artigo intitulado O elogio da lentidão, Milton Santos analisa aquilo que julga ser uma tendência dominante, registrada no final do século XX e início do XXI, em reputar a “velocidade como uma necessidade e a pressa como uma virtude”, tendência esta que presumivelmente faria com que os excluídos dos processos de eficácia e atualização “fossem arrastados a participar incompletamente da produção da história”168. No escrito, Santos objetiva desconstruir a ideia desse rumo homogeneizante da tecnologia e da velocidade, compreendendo-a como um discurso que toma uma parte pelo todo: a velocidade seria tão-somente fruto da necessidade de competitividade de grandes empresas (mormente as de tecnologia), mas que por conta de certos processos de globalização passou a ser canonizada e eleita signo do mundo atual: “na medida em que as grandes empresas transnacionais ganharam dimensões planetárias, a tecnologia se tornou um credo generalizado, assim como a velocidade. Ambas passam a fazer parte do catecismo da nova fé”169. Ademais, Santos assegura que a alta velocidade seria um atributo de poucas firmas e instituições (uma parcela pequena da humanidade), destituído de sentido (sem um telos intrínseco), prestando-se tão-só à competitividade explícita cuja serventia moral ou social ainda não estaria claramente delineada. A “velocidade hegemônica atual”170 embora apreciável não seria imprescindível, devendo ser pensada enquanto imperativo político e não técnico. Dessa perspectiva, afirma Santos: “é possível dispor da maior velocidade tecnicamente possível no momento e não utilizá-la. É possível fruir da modernidade nova, atual, sem ser obrigatoriamente o mais veloz [...] Numa situação em que se combinam técnicas e tempos e velocidades diferentes, sem que um deles obrigatoriamente arraste os demais, se impõem forçosamente soluções políticas que não passem obrigatoriamente pela economia e suas conhecidas paixões inferiores”171. Lançada ao horizonte político, a expressão velocidade acharia na palavra cidadania – em suas três vertentes principais (cidadania política, social e econômica) – um limitador referente à prática política e social, desde a qual a sujeição a condicionantes tecno-econômicos não seja a praxe: “quanto mais se afirmam essas diversas vertentes da cidadania, maior é a garantia de que a ‘velocidade’ pode ser limitada”172, no sentido de potencializar uma difusão dos benefícios da modernidade (democracia), possibilitadora de uma reconfiguração do papel do Estado nacional. Há três pontos que despertam interesse na leitura de Santos: defender tecnologia e velocidade como necessárias e hegemônicas seria próprio de um discurso generalista que toma ‘a parte pelo todo’; tal discurso (estimulado pela planetarização de algumas empresas de tecnologia) pretenderia arrastar-convencer os não participantes (os excluídos da vida tecnológica) a orientar-se para este novo ‘credo generalizado’; e por fim, a ‘velocidade’ (componente das corporações tecnocapitalistas) é compreendida como algo que pode – e até mesmo deve – ser

168 Santos, Milton. Elogio da lentidão. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 mar. 2001. 169 Ibidem. 170 Ibidem. 171 Ibidem. 172 Ibidem. Grifo meu.

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‘limitado’ por práticas de cidadania política, social e econômica. Não obstante concorde com elementos da referida leitura, principalmente quando Santos indica a possibilidade de uma coexistência democrática entre as múltiplas técnicas e velocidades que coabitam o mosaico sociocultural e econômico da contemporaneidade, situando o problema da exclusão dos homens lentos173, penso que há dois pontos dissonantes entre sua crítica e minha interpretação: primeiro, o autor dá a entender que manuseia um sentido técnico-instrumental de velocidade: velocidade como algo utilizável. Essa visão propriamente técnica impede, a meu ver, de diagnosticar o poder- ser da velocidade como possibilidade axiológica ao humano hodierno, uma vez que ela é desterrada dos hipotéticos canais produtivos aqui apontados (hiperexpansão dos serviços, consumismo, microeletrônica e sepultamento do grande relato), tomada isoladamente enquanto característica do modo de funcionamento de instituições privadas transnacionais, sem, portanto, ser considerada a partir do terreno da condição humana e, em particular, de modos de organização metabólico-cinéticos cujos sintomas, efeitos, motores, já se fazem sentir para além das circunscrições supostamente estanques das inúmeras e complexas formas de vida do contemporâneo. Em segundo lugar, os mesmos processos de globalização aos quais se refere Santos, de algum modo e paradoxalmente permitiram e permitem tanto a apropriação técnica como a ingressão na experiência da velocidade a indivíduos, grupos sociais e comunidades que nela, com ela e por meio dela, subvertem e recriam as próprias condições sociais, econômicas, culturais e existenciais, e porque não dizer suas condições de cidadania, nas quais se encontram em seu aí mundano174. Tal agenciamento implica que essa rede de arrasto das tecnologias céleres e da cibercultura não pode ser exclusivamente lida em termos de dominação econômica ou como um novo catecismo. Por exemplo, poderia Milton Santos imaginar o potencial guardado pelo uso das redes virtuais na arregimentação de indivíduos para fins políticos? Para a viabilização de manifestações públicas que vão da primavera árabe às ocuppies, que a partir desses suportes estouram mundo afora? Ora, não se pode dizer que os ‘arrastados’ alteram os ‘arrastadores’ politicamente a seu favor?

173 Nessa direção, esclarece Paola B. Jacques: “Quando Milton Santos fala dos homens lentos, ele se refere principalmente aos mais pobres, aqueles que não têm acesso a velocidade, os que ficam à margem da aceleração do mundo contemporâneo” (Jacques, Paola Berenstein. Elogio aos errantes: a arte de se perder na cidade. In: Jeudy, Henri Pierre; Jacques, Paola Berenstein (Orgs.). Corpos e cenários urbanos: territórios urbanos e políticas culturais. Salvador: EDUFBA, 2006. p. 124). Nesse estudo, Jacques faz uma interessante análise da lentidão na experiência urbanística trazendo à tona um prisma duplo acerca da condição de uma errância lenta, ela seria ao mesmo tempo um estado de espírito e uma crítica: “o estado de espírito errante é lento, mas isso não quer dizer que seja algo nostálgico ou relativo a um passado, quando a vida era menos acelerada, como buscam os adeptos do neo- urbanismo. Porém, esta lentidão também pode ser vista como uma crítica ou denúncia da aceleração contemporânea, aquela buscada pelos urbanistas neo-modernos, ávidos de meios de circulação cada vez mais velozes” (Op. cit. p. 123). 174 Um rico exemplo disso consiste na apropriação tecnológica de toda uma cadeia de produção musical por parte de grupos periféricos, que, segundo a tese de doutorado defendida por Manoel Sotero Caio Netto, a partir dela criam identidades culturais independentes, tornando-se por vezes reconhecidos pela própria indústria musical dromotecnológica. Cf. Caio Netto, Manoel Sotero. Práticas culturais em contextos periférico-urbanos e suas inter-relações/interpelações: ações coletivas, processos de identificação e apropriações tecnológicas nos gêneros musicais kuduro e cumbia villera. Recife: Programa de Pós-Graduação em Sociologia PPGS/UFPE, 2016.

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Hoje, é difícil não dar o braço a torcer para o fato de que “as redes digitais realmente se estendem e colonizam todos os recantos do corpus socioeconômico”175. Porém, a ideia de uma determinação predominantemente tecnológica da aceleração dos ritmos da vida social ainda não constitui consenso. Judy Wajcman faz coro entre aqueles que criticam o determinismo tecnológico por trás de algumas teorias que começam a compreender o fenômeno: “embora as mudanças econômicas, tecnológicas, sócio-estruturais e culturais das sociedades modernas tenham alterado de forma sem precedentes a experiência do tempo, a imagem não é uniformemente acelerada. Se nos falta tempo para o trabalho, os pais, a amizade, o lazer e a participação cívica, isto não se dá simplesmente em função das máquinas, antigas ou novas. As tecnologias em si não conduzem à velocidade ou à desaceleração”176. Penso que o fato de não ‘conduzirem à velocidade’ não significa que não se estabeleçam nalgum momento na experiência social contemporânea como mecanismos de pressão que, a meu ver, sozinhos ou por si mesmos, sem o elemento de adesão mediado pelo desejo do indivíduo, decerto não ofereçam capacidade de coerção. Aqui não se nega o fato de haverem velocidades; o que se intenta compreender, partindo da constatação atual da intensificação da velocidade como relação entre humano e mundo, humano e coisas, humano e humano, é justamente a impressão de que ela se tornou matéria de desejo, sonho de consumo. Tampouco que a ‘velocidade técnica’ não gera um quantitativo inaudito de reprogramações sociais e econômicas cujos impactos já revolvem os mais diferentes âmbitos da vida cotidiana, das relações trabalhistas à educação das crianças, na condição de integrante do combo lógico do digitaler Kapitalismus177. Se há um temor da hiperceleridade, um evitar a qualquer custo a sua dentada vampiresca, o tornar-se um zombie, este realmente não é um problema de natureza científica ou tecnológica, mas um problema ético- existencial. Como antídoto e contraponto, autores bradam um novo imperativo ético: desacelere! Como sinaliza Glotz, “a resposta para a aceleração produzida pelo capitalismo digital é ‘desaceleração’. Disso se desenvolve precisamente uma autêntica filosofia. Suas palavras-chave são chamadas de ‘reflexão’, ‘sentido’, ‘viver para além da economia’, ‘ecologia’, ‘senso comum’ e inclusive, ‘desaceleração’. A nova ideologia está se espalhando tal como uma mancha de óleo”178.

175 Hassan, Robert. Empires of speed: time and the acceleration of politics and society. Leiden/Boston: Brill, 2009. p. 80. 176 Wajcman, Judy. Pressed for time: the acceleration of fife in digital capitalism. Chicago: University of Chicago Press, 2015. p. 10. 177 Glotz, Peter. Der digitaler Kapitalismus. Der Spiegel. Berlin, 27 de setembro de 1999. (Der Spiegel - Essay). Neste artigo, Peter Glotz apontou a mudança no estatuto do capitalismo, de um capitalismo industrial para um capitalismo digital, configurado dentre outras coisas por um crescimento econômico que se vale de uma galopante redução do emprego (ou de um desemprego estrutural) em razão de diversos novos desenvolvimentos (produção virtual, automatização, comércio eletrônico, banco virtual,...), e caracterizando-se por uma “elevada taxa de transformação da velocidade”. 178 Glotz, Peter. Der digitaler Kapitalismus. Op. cit. Em sua tese de doutorado, Daniel F. de Oliveira apresenta a desaceleração como pressuposição àquilo que intitula práticas ciborguianas epistêmicas, considerando o potencial de condição para a aprendizagem que ela carregaria. Cf. Oliveira, Daniel Figueiredo de. Sobre humanos e máquinas: marcos epistêmicos, ontológicos e éticos do ciborgue e aprendizagem humana na cultura digital. João Pessoa: Programa de Pós-Graduação em Educação/UFPB, 2017.

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É preciso proteger-se contra a aceleração! Ao menos é o que parecem sugerir autores como Pierre Sansot179, Pascale d’Erm180 e Carl Honoré181, na medida em que propõem contrafiguras existenciais a uma utopia da lentidão, à maneira da obra kunderiana homônima182: cidades lentas, slow atitude, um encômio da lentidão enquanto contramoral da velocidade, uma nova arte de viver (nouvel art de vivre). Absorvidos por esse tema, Simon e Vas indagam-se sobre como buscar o quelônio interior que haveria em cada um de nós, ante o modelo multitarefas da vida contemporânea, próprio de uma ‘sociedade do desempenho’, consoante o pensamento de Byung-Chul Han183. Ambos afirmam: “o culto da velocidade nos contaminou, é momento de desaceleração”184, levando em conta a constatação de acordo com a qual “nossa sociedade é governada pela ditadura do curto prazo. Todo mundo quer tudo imediatamente”; e arrematam, tal como os acusadores de Sócrates, ao assegurarem que “nossa propensão à velocidade perverte igualmente as gerações mais jovens”185. Não haveria nessas ilações uma melodia subterrânea em tom de revival? Parafraseando um sarcasmo voltairiano, seriam então tais autores os novíssimos candidatos a ‘Rousseaus’ do contemporâneo? Tentando não tomar partido nessa pendenga dicotômica entre velocidade e lentidão, mas, ao mesmo tempo, admitindo haver uma distinção qualitativa entre elas, o que por sua vez permitira pensá-las em termos de oposição186, suponho que essa démarche (palavra melhor não há por ser uma empreitada operada por maioria francesa) em nome de uma estilística existencial embebida na lentidão somente tornou-se uma bandeira – e, diga-se de passagem, uma bandeira europeia – quando se reconheceu na carne o fenômeno cultural da hiperceleridade. Contudo, não obstante compreenda as justificativas para tal démarche, e até reivindique para mim mesmo aspectos dessa estilística, não me filio ao pressuposto que me parece subjacente a ambas, condizente a uma espécie de condenação da velocidade como vetor cultural. Nesse sentido, povoo-me de inquietações que de algum modo não me empurram à pura e simples adesão a um dos lados, mas me mantêm aberto a possibilidades de itinerários outros quanto à apreciação da referida oposição: por exemplo, em que medida não pertencemos a uma época em trânsito, marcada por complexas dinâmicas de resistência, aceitação parcial, radical negação, hesitação, próprias de períodos que antecedem a eclosão de arranjos socioculturais que, embora efêmeros, emergem como sérios candidatos a uma longa e não menos tensa duração? Posso garantir que gerações vindouras de cibernativos, sem recorrer a argumentos distópicos, estarão dispostas a assumir esse modelo de lentidão? A adotar sem prescrição médica ou coerção explícita uma arte de viver fleumática? A quererem operar desintensificações em seus modos de existir? Diante delas, prossigo. “Dizer que

179 Sansot, Pierre. Du bon usage de la lenteur. Paris: Payot, 1998. 180 d’Erm, Pascale. Vivre plus lentement: un nouvel art de vivre. Paris: Ulmer, 2010. 181 Honoré, Carl. Devagar: como um movimento mundial está desafiando o culto da velocidade. Rio de Janeiro: Record, 2005. 182 Cf. Kundera, Milan. A lentidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 183 Cf. Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015. 184 Simon, Caroline; Vas, Romy. Au secours, tout va trop vite! Comment retrouver sa tortue intérieure? Dossier: La lenteur. Faces B Magazine. Paris, n° 1, 2012. p. 18. Disponível em www.facesb.fr 185 Simon, Caroline; Vas, Romy. Op. cit. p. 19. 186 Cf. Deleuze, Gilles; Guatarri, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. p. 31/32.

66 hoje a velocidade está ultrapassada é uma inverdade tão evidente quanto a que consiste em enaltecer a lentidão”187. Talvez, essa frase de Virilio possa apimentar a tempero da discussão que pomos à mesa: lentidão em doses controladas, sem, contudo, abrir mão do home banking e do fast food – não é necessário glorificar a ligeireza para nela e com ela, no mínimo, guardar vínculos e inclusive querê-la em alguma medida, apesar da clareza crítica acerca de suas motivações e motores. O enaltecimento da rapidez não me parece ser decorrente de outra coisa senão do desejo de rapidez; e este, porque humano, é rebento da colonização do desejo de uma quantidade cada vez mais imponderável de indivíduos sequiosos de velocidade, em um processo alostático.

187 Virilio, Paul. Estética da desaparição. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. p. 107.

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Capítulo VI

Moralidade da rapidez

“É ingênuo acreditar que possa existir uma sociedade sem celebrar ideais e normas mais ou menos drásticos que se exercem sobre o corpo. Em todas as sociedades conhecidas, o corpo é corrigido, modificado, marcado por sinais muito diversos”188.

No diálogo de Platão Laques, Sócrates indaga a personagem homônima acerca do que poderia ser considerado idêntico em todos os casos de coragem por ele perfilados: a coragem da tropa, dos cavaleiros, de todo tipo de combatente, dos que se arriscam no mar, diante das enfermidades, da pobreza, das dores, terrores, paixões e prazeres. Laques, por sua vez, não entende a questão colocada em torno da essência da coragem, permitindo a Sócrates expor uma ilustração didática: “coloco um exemplo, como se perguntasse a vós o que é a rapidez, que se dá no correr, no tocar a cítara, no falar, no compreender e em outras muitas coisas, e que em geral, no que vale a pena dizer, possuímos nas ações das mãos, pernas, boca, voz e no pensamento. Não é assim que a julgas?”189. E continua o filósofo, “se, em tal caso, perguntassem- me: ‘Sócrates, como defines isso que tu denominas ‘rapidez’ em todos os casos?’ Eu responderia que a capacidade de realizar em pouco tempo muitas coisas eu a chamo ‘rapidez’, tanto no que diz respeito à voz como à corrida e tudo o mais”190. A conceituação de rapidez apresentada no diálogo platônico nos lança direto ao ponto: temos preferido fazer em pouco tempo muitas coisas? Mas alguém então sabiamente redarguiria: ‘mas quem é esse sujeito oculto do temos?’, e delimitando o pronome da primeira indagação, responderia: esse quem corresponde a um nós que é corpo metropolitano, citadino, cibernativo, migrante cibercultural, cosmopolita, workaholic, nômade, máquina desejante de serviços, predominantemente ocidental, e ao mesmo tempo, é a menina do campo no WhatsApp e o agricultor analfabeto na ‘cinquentinha’. Inclusive, não há como negar o contágio: infoexcluídos, semiconsumidores, e tantos outros ‘escanteados’ e invisibilizados sociais,... Seria equivocado dizer que também estes desejam o desejo de rapidez? A aceleração é implacável. Doença?! Remédio?! Catástrofe humana?! Humana reinvenção?! Promessa utópica?! Distopia?! Ou nem uma coisa nem outra?! Ou ainda: essa não é a questão?! O que está em jogo: a rapidez como um modo de fazer que produz um modo de ser. Quanto a isto não parece haver dúvidas. Injunções para admitir outro modo de vida selado por uma armação vital compressora da

188 Lipovetsky, Gilles. Da leveza. Op. cit. p. 111 189 Platão. Laques. Madrid: Gredos, 2012. 192a-b. 190 Op. cit.

68 demora, por várias tarefas a realizar, pelo curto prazo, pela hiperconectividade, vêm fazendo da celeridade a liga de uma cimentação cultural outra. Se o tenebroso diagnóstico de Postman sobre a cultura do tecnopólio191 afirma uma inteira sujeição do humano à tecnologia e a paralisia da atividade pensante (quem pensa doravante é a máquina!), aqueles que hoje se candidatam a construtores do estado da arte sobre a discussão em torno da velocidade no mundo contemporâneo – para além da prenunciação de uma hecatombe exequível –, tateiam suas motivações, sintomas, significações, pactos e impactos, visando compreendê-la e, nalguns casos, arriscando prognósticos e receituários. Importa agora expor algumas dessas perspectivas a fim situar o horizonte atual no qual emerge a tematização da associação entre velocidade, aceleração e cultura. No terreno de uma sociologia do tempo devedora da Teoria Crítica old school, Harmut Rosa propõe uma teoria da aceleração social baseada na categoria de regime temporal a fim de compreender a organização das sociedades modernas e lançar luz sobre a própria experiência temporal da modernidade tardia. Proclamando ser a lógica da aceleração social um conceito unificante com qual seria possível analisar o regime temporal que silenciosamente governa os indivíduos nas referidas sociedades, regime este cujas estruturas estabelecem uma conexão entre os domínios micro e macroscópico destas sociedades, o sociólogo alemão repõe o antigo problema oriundo do pensamento ético grego, qual seja, o que é uma vida boa?, e mais precisamente, indaga a respeito da necessidade de reformas que significativa parte de nossas vidas atualmente reivindicam, enquanto fio condutor de sua real preocupação: pensar a aceleração social de nossa época como promotora de modos de alienação. Conforme escreve Rosa, “em sua forma atual ‘totalitária’, a aceleração social conduz a formas de alienação social graves e empiricamente observáveis, que podem ser consideradas como obstáculo principal para a realização do conceito de uma boa vida na sociedade tardomoderna”192. Nessa direção, e mesmo depois das críticas pós-estruturalistas ao conceito de alienação, o autor supõe que sua teoria demanda a determinação conceitual do que viria a ser uma vida não-alienada, propondo então como meandro a recuperação de momentos de experiências humanas não alienadas, na busca de um critério mínimo que, por assim dizer, poderia ser denominado ético. Nesse sentido, Rosa distingue três categorias de análise da aceleração social: a aceleração tecnológica, a aceleração da mudança social e a aceleração do ritmo de vida. A primeira condiz às transformações impingidas pela tecnologia às sociedades; a segunda, às mudanças cada vez mais céleres das próprias sociedades (dos valores ao

191 Cf. Postman, Neil. Tenopólio: a rendição da cultura à tecnologia. São Paulo: Nobel, 1994. 192 Rosa, Harmut. Alienación y aceleración: hacia una teoria crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Op. cit. p. 11. Há outras obras do autor que tematizam o sentido da aceleração na modernidade e hipermodernidade. Cf. Rosa, Harmut. Accélération: une critique sociale du temps. Paris: La Découverte, 2010; Rosa, Harmut. Social acceleration: a new theory of modernity. New York: Columbia University Press, 2013. O fenômeno da aceleração também tem sido frequentado por outros estudiosos, escritores e ensaístas nas últimas duas décadas. Cf. Gleick, James. Faster. New York: Hachette Book Group, 2000; Scheuerman, William. Liberal democracy and the social acceleration of time. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2004; Hassan, Robert. Empires of speed: time and the acceleration of politics and society. Leiden/Boston: Brill, 2009; Havelock, Ronald. Acceleration: the forces driving human progress. New York: Prometheus Books, 2011; Wajcman, Judy. Pressed for time: the acceleration of life in digital capitalism. Chicago: The University of Chicago Press, 2015; Colvile, Robert. The great acceleration: how the world is getting faster, faster. New York: Bloomsbury USA, 2016. Alguns deles citados neste ensaio.

69 habitus); e a última – a que mais nos interessa –, postulada como foco principal do debate atual em torno da aceleração cultural, é “definida como um incremento do número de episódios de ação e experiência por unidade de tempo; quer dizer, é a consequência do desejo ou necessidade sentida de fazer mais coisas em menos tempo”193. Ora, se a capacidade de realizar em menos tempo muitas coisas é propriamente o que define a rapidez (e assim declarou Platão pela boca de Sócrates no Laques), o desejo que Rosa avalia ser sentido pelos indivíduos na modernidade e na modernidade tardia, de realizar em menos tempo mais coisas, enquanto traço essencial da aceleração do ritmo de vida, nada mais é do que o próprio desejo de rapidez. Porém, a meu ver, nisso está implicado não somente o fazer muitas coisas em um menor tempo possível, mas também o desejar que a ação (minha, de outrem, e mesmo de autômatos) se realize ela mesma em um menor tempo possível. Não atribuindo à tecnologia um peso de causação quanto à aceleração social, Rosa a qualifica apenas como facilitadora, dotando-a ao que tudo indica de um caráter suplementar194; por outro lado, entende ser “o acréscimo na velocidade da produção” responsável por transformações fundamentais na “relação entre humanos e seu entorno material”195. Segundo o autor, não vem ao caso julgar se a aceleração social se trata de algo bom ou mau, mas de passar a considerá-la um problema para a reflexão filosófica hodierna, uma vez que ela “nos dirige para um desenvolvimento que em grande medida tem passado inadvertido pela filosofia social”196, compreensão com a qual me afino. Outra variação sobre o tema advém da reflexão em torno do modo de organização da sociedade hodierna, baseada no imediatismo e na rapidez, retratada por Nicole Aubert, que, diferente de Rosa, parece aderir a um juízo de valor em relação ao fenômeno da aceleração, transposto em uma metáfora fisiológica: vivemos em uma sociedade enferma por uma determinada forma de experienciação do tempo, um tempo adoecedor, celebrado em um difuso culto à urgência. Saímos de um modo de organização social de ‘tempo longo’, no qual as ações do indivíduo eram enumeradas em anos, adentrando assim, escreve a autora, “num modo de ‘tempo curto’, sociedade do zapping, do ‘rápido’, dos clipes e das propagandas, em que ele é estimulado a viver a intensidade sem duração, e de obter dos resultados a eficácia imediata”197. Ao contrário da interpretação de Rosa, que não concede à tecnologia um caráter determinante mas apenas facilitador da aceleração social, a socióloga francesa compreende que “a principal explicação para esse reino da urgência é de natureza ao mesmo tempo econômica e tecnológica”198. Conforme concebe a autora, a urgência seria um rebento da lógica interna da produção capitalista orquestrada sob as batutas do quanto mais rápido o trabalho, maior o ganho econômico (eis o velho adágio frankliniano!), no horizonte de uma concepção linear de tempo enquanto tempo- rentável, tempo-usura. No olhar de Aubert, a urgência parece consistir num dado

193 Rosa, Harmut. Ibidem. p. 30/31. Grifo do autor. 194 “A tecnologia em si não é uma causa da aceleração social [...] A tecnologia é uma condição facilitadora do incremento” (Rosa, Harmut. Ibidem. p. 40. Grifo do autor). 195 Rosa, Harmut. Ibidem. p. 76/77. 196 Rosa, Harmut. Ibidem. p. 80. 197 Aubert, Nicole. Le culte de I’urgence: la société malade du temps. Paris: Flammarion, 2003. p. 27. Igualmente, em linha de raciocínio análoga à autora em voga, Cf. Jean-Louis, Servan-Schreiber. Trop vite! Pourquoi nous sommes prisonniers du court terme. Paris: Librairie générale française, 2012. 198 Aubert, Nicole. Op. cit. p. 37.

70 objetivo da máquina econômica, nela nasceu, cresceu e acabou por assenhorar-se da dinâmica produtiva de tal maneira que o saber lidar com a urgência passou a ser um valor de eficiência, tornando-se por sua vez um hábito, o qual, a meu ver, exorbitou as fronteiras do trabalho, da produção e do consumo. Se tudo doravante urge, a parcela de responsabilidade da malha tecnológica nesse processo divinizador do short time pelo indivíduo contemporâneo é sustentada pela autora, uma vez que “a busca da velocidade, culminando com a instantaneidade do tempo real que aboliu a espera e suprimiu a espessura da duração, confere ao indivíduo uma supremacia aleatória e momentânea. Ao tornar-se aparentemente mestre do tempo, cai simultaneamente sob o jugo da urgência”199. Estaríamos, dessa perspectiva, numa sociedade-hospital e doentes do tempo? Aubert sinaliza alguns exemplos a uma possível sintomatologia dessa abrangente de à urgência: a perda de vínculos sociais (na França atual, a título de ilustração, isto ocorreria em razão da diminuição da carga horária de trabalho que por sua vez não implicou em qualidade de vida para os trabalhadores, pois, desde então, eles precisam executar a mesma quantidade de trabalho em menos tempo); a criação da falsa ideia de heroísmo do indivíduo multitarefas (do ‘funcionário do mês’ ao indivíduo repleto de ‘habilidades e competências’, multicapaz e plurifacetado); apesar de reconhecer que a urgência pode significar um estímulo para alguns, para outros pode gerar um sem- número de distúrbios psicossomáticos (ansiedade, compulsão, depressão, exaustão) que conduziriam a alterações no próprio caráter dos indivíduos; o sentimento de perda de controle quanto às incessantes demandas e em função da pressão contumaz por um alto padrão de desempenho e eficiência, o qual transbordaria para a própria perda do autocontrole. Em grande medida, a preocupação da autora figura habitando sobre a tentativa de apreender quem é esse ser humano fiador da urgência, ou desejante de rapidez. Trata-se, em suas palavras, de “um indivíduo dominado pela necessidade de satisfação imediata, intolerante à frustração, exigindo tudo e logo, num contexto em que a satisfação dessas necessidades é possível não somente pela permanente ‘hiperescolha’ da sociedade de consumo, mas também pela quase-instantaneidade com a qual qualquer desejo pode ser satisfeito. Este indivíduo, então, não é apenas um homem-presente, no sentido que acabamos de ver, é ainda mais um homem-instante, que vive no ritmo do instante presente, indo de um desejo a outro em um nervosismo e uma impaciência crônicos que são a expressão de uma incapacidade para se inscrever não só em um projeto menor, mas também em qualquer continuidade de si”200. Eis aqui, arriscando-me a dizer, o protagonista hipermoderno da celeridade sociocultural: um supressor da espera na razão direta da velocidade do gozo; alguém que expressa, como se pode ver, um modo de ser que radicalmente transmuta a experiência do tempo no tempo técnico-produtivo das estruturas, transmutando-se a si mesmo.

199 Aubert, Nicole. Ibidem. p. 71. 200 Aubert, Nicole. Ibidem. p. 261. Grifo da autora. Em Tyranny of the moment, Thomas H. Eriksen sentencia que o maciço fluxo de informações de nossa época preencherá de tal sorte as lacunas temporais, ameaçando a experiência do ‘antes e depois’ e do ‘aqui e lá’, e mesmo do ‘aqui e agora’ pela rápida compressão do tempo, que as categorias subjetivas de passado e futuro estariam prestes a desaparecer em face da tirania do momento. Cf. Eriksen, Thomas Hylland. Tyranny of the moment: fast and slow time in the information age. London: Pluto, 2001.

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Num outro trilho, assim como no front de uma declaração de guerra contra aquilo que considera um endeusamento da velocidade está Carl Honoré, um dos declarados entusiastas do chamado Slow Movemment201. Em Devagar, um mix de lente jornalística, autoajuda e ativismo moral, atira o autor: “o nosso amor à velocidade, nossa obsessão em estar sempre fazendo cada vez mais em tempo cada vez menor foi longe demais; transformou-se num vício, numa espécie de idolatria”202. Dessa perspectiva, sua recomendação pode ser sintetizada pelo adágio precisamos ir mais devagar!, e seu princípio de vida, uma noção de equilíbrio que, embora romantizada e pouco aprofundada, aparenta querer albergar-se numa réstia epicurista. Isto porque algumas ideias aparentadas à filosofia epicurista, como tranquilidade (‘Devagar por dentro’), valorização da reflexão, mais qualidade e menos quantidade, vêem à tona no ensaio instilado pelo autor em propor uma maneira de ser enaltecedora da lentidão. Como se sabe, em Epicuro, a vida feliz somente é possível mediante ausência de dores no corpo e de transtornos na psique, enquanto sinônimo de prazer, algo que segundo ele emergiria entre outros elementos do simples ‘come apenas o necessário’, à reflexão sobre os motivos e efeitos de nossas escolhas (prudência). É precisamente nisto que consiste o seu hedonismo: “quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações na alma”203. Numa possível correlação, assinala Honoré: “em nossa época hedonista, o movimento Devagar não deixa de ter um trunfo de marketing na manga: promete prazer”204. Sem pretender engrossar o caldo crítico de acordo com o qual o movimento Devagar é considerado um atavismo luddita (eu diria talvez até mesmo saint- simoniano), penso que ao atestar a marcha da aceleração sociocultural em andamento, Honoré não faz outra coisa senão sugerir o seu antípoda lógico-binário – a desaceleração – como princípio de conduta, bem como elenca uma série de projetos de vida coletivos e individuais (sobretudo na Europa e nos EUA) que têm tomado essa direção. Ao fazê-lo, entende ser o movimento Devagar defensor de uma outra relação cinética do indivíduo consigo mesmo e com as estruturas (autopolicialesca e de resistência), e favorecedor de uma suposta ‘globalização virtuosa’. Movimentos como o Slow food e o Città Slow seriam provas de que essa tentativa vem sendo experimentada, conforme o autor. Quanto ao primeiro, um elogio à produção de alimentos e ao ato de comer sem pressa, reconhece-se uma crescente adesão das

201 Vale destacar que desde o final do século XX, há movimentos de enaltecimento da lentidão, de adoção de hábitos lentos, originados a partir da Itália. Para Lipovetsky, “face aos ditames da urgência e do desempenho, diversas correntes apelam à luta contra a aceleração frenética da época, a aproveitar o tempo para viver, a saborear os momentos vividos. Prolongando o movimento slow food surgido em 1986, afirmam-se novas vias que buscam a qualidade de vida pelo abrandamento dos ritmos cotidianos: slow money, slow management, slow city, slow sex, slow tourism, é a época do elogio da lentidão, da atitude slow life que privilegia o melhor sobre o mais, o ser sobre o ter, a qualidade sobre a quantidade” (Lipovetsky, Gilles. Da leveza: para uma civilização do ligeiro. Lisboa: Edições 70, 2016. p. 69/70). 202 Honoré, Carl. Devagar: como um movimento mundial está desafiando o culto da velocidade. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 14. 203 Epicuro. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). São Paulo: UNESP, 2002. p. 43. 204 Honoré, Carl. Op. cit. p. 313.

72 pessoas ao redor do globo: feiras e eventos internacionais, nichos de mercado criados, hinos dedicados ao capitalismo verde. Mas o paradoxo é inevitável: em que medida a produção ‘devagar’ de alimentos mercadologizáveis não precisa conviver com formas de comunicação, distribuição e comercialização global próprias da velocidade técnica? Embora produzidos lentamente por seu caráter sustentável, tais alimentos não terão de participar do jogo do mercado se os seus produtores pretenderem elastecer suas vendas? Noutra ponta, questiono: Slow Food enquanto hábito diário, ou mesmo semanal, para quem?! Não seria necessário substituir por inteiro o sistema armado de produção-distribuição que aí está? Não teria de ser o movimento, por isso mesmo, revolucionário? Por um lado, ouço ressoar no Slow Food um cântico à singularidade e à personalização alimentar (da produção ao consumo próprio do que fora produzido), e uma proposta de etiqueta à mesa; por outro, um propósito quase dândi, e simultaneamente um movimento de resistência, nas pegadas de Rosa: “a resistência intencional contra o incremento da velocidade da vida e a ideologia da desaceleração, são, claramente, reações às pressões de e para a aceleração”205. Já as cidades que adotaram a premissa organizacional da lentidão ao serem estruturadas por indicadores tais como menos tráfego, mais espaços públicos de lazer e convivência, mais arborização, menos barulho, incentivo à produção agroecológica de alimentos, e outros mais, figuram arvorando-se em verdadeiros protótipos urbanísticos do Devagar. Isso não ocorre sem reviravoltas nos costumes, e estas não vêm a ser sem uma gama de coerções e constrangimentos que lhes são peculiares. Para exemplificar, citemos Honoré ao apresentar o cotidiano de Bra, uma aldeia italiana que aderiu ao Città Slow: “até os mais jovens estão reagindo bem. O ginásio aquático de Bra aboliu a música pop em respeito ao espírito Devagar”206. Pergunto-me se as cidades lentas, para que de fato o sejam, não precisariam isolar-se, o que me parece não ser muito crível em se tratando de cidades cujo potencial turístico parece aumentar justamente em função dessa adesão, e, por conseguinte, os fluxos de turistas e com eles a reboque tudo aquilo que supostamente se quer bem longe. Como desconectá-las do mundo? O próprio Honoré enuncia o dilema, reconhecendo que “em certa medida, Città Slow é vítima de seu próprio sucesso: a perspectiva de uma vida Devagar atrai turistas e forasteiros, o que traz consigo também a velocidade, o barulho e a agitação”207. Barulho e agitação embotam o epicurismo social e uma espécie de ‘retorno à natureza’ desses movimentos que, por esta razão, não podem evitar serem em certa medida duplamente taxados de conservadores e atávicos. Além disso, ao tratar dos motoristas candidatos a pilotos, o autor assegura que “a única maneira de vencer a guerra contra a velocidade é ir mais fundo, reformulando toda a nossa relação com a própria velocidade. O que é preciso é que queiramos dirigir mais lentamente”; e para tanto, coloca a seguinte indagação: “como é possível conter o instinto para acelerar?”208. Nesse diapasão, Honoré cita Len Grimshaw, validando que a culpa pelo excesso de velocidade é de cada um de nós, motoristas Patetas! Ora, se Honoré fala da existência de um ‘instinto para acelerar’, como culpar um instinto?! Seguindo então essa interpretação, se a fome for

205 Rosa, Harmut. Alienación y aceleración. Ibidem. p. 67. Grifo do autor. 206 Honoré, Carl. Ibidem. p. 107. 207 Honoré, Carl. Ibidem. p. 109. 208 Honoré, Carl. Ibidem. p. 122.

73 considerada um instinto, como afirma Bloch, então eu deveria culpar esse instinto pelo fato de só comer Big Macs e coisas do tipo?! Bem, o que parece ser digno de uma adesão razoável é o fato de que, em termos histórico-civilizacionais, os instintos são tratados como a escória: é preciso extirpá-los! É também com vistas à possibilidade de reconquista de um patrimônio psíquico apaziguador que o autor joga suas fichas no yoga, na meditação, no budismo e outras práticas oriundas de culturas milenares que vivem no extremo leste, sem atentar para aquilo que Lipovetsky pensa a respeito: “o regresso da religiosidade e dos saberes antigos exprime menos uma ‘mudança de paradigma’ do que o prolongamento do espírito de eficácia e do consumismo por outros meios”209. Porém, por vezes, a argumentação de Honoré dá a entender que retira de seus subterrâneos uma intencionalidade contraditória. A passagem a seguir, na qual é defendida a educação em casa, é, no limite, uma demonstração de como a linguagem pode nos levar ao cadafalso e nos arrancar o argumento sem que sequer percebamos: “bem de acordo com a filosofia Devagar, a educação em casa não significa desistir ou ficar para trás. Pelo contrário, estudar em casa revela-se na realidade altamente eficiente. Como todo mundo sabe, nas escolas perde-se muito tempo: os alunos têm de pegar condução para ir e para voltar para casa; fazer intervalos obedecendo a ordens; assistir a aulas de matérias que já dominam; ficar se esfalfando com deveres de casa irrelevantes. Quando se estuda sozinho em casa, o tempo pode ser aproveitado de maneira mais produtiva. As pesquisas mostram que as crianças educadas em casa aprendem mais depressa e melhor que os colegas formados em salas de aula convencionais”, afiançando ainda que “como as crianças educadas em casa aprendem a matéria mais rápido, dispõem de mais tempo livre para a recreação”210. ‘Alta eficiência’, ‘perda de tempo’, ‘aproveitamento produtivo do tempo’, ‘aprender mais depressa’, ‘mais rápido’, ora, porque justamente a lógica a qual Honoré combate desde o início surge avassaladora no discurso sobre a educação dos filhos? É então a desaceleração é um privilégio de adultos? No fundo, o que justifica algumas ‘práticas do Devagar’ parece ser paradoxalmente a efetivação de ‘práticas da Velocidade’: as estruturas da aceleração continuam firmes e em alguns casos, como se vê acima, são ademais enfatizadas. Não obstante, compreendida a velocidade em termos de veneração, a cruzada crítica de Honoré consiste em fazer o elogio do freio, com pequenas pitadas de um epicurismo para a classe média: “viver Devagar significa nunca se afobar, nunca tentar ganhar tempo só para ganhar tempo. Significa manter-se calmo e imperturbável mesmo quando as circunstâncias nos obrigam a apressar as coisas”211. Nesse sentido, o autor acredita que estão reunidas em nossa época as condições para que essa veneração da velocidade seja revertida, uma vez que já somos capazes de perceber seus perigos e efeitos contraproducentes. Alguns problemas que subjazem ao projeto de Honoré afloram aqui. Primeiramente, viver de forma apressada versus viver de fato: isto não parece implicar um saber sobre o viver que o encapsula numa dada forma histórico-cultural-fisiológica do viver humano? Não seria esse argumento uma petição de princípio que supõe uma verdadeira compreensão da vida para, em razão dela, construir um contradiscurso em

209 Lipovetsky, Gilles. Da leveza. Op. cit. p. 65. 210 Honoré, Carl. Ibidem. p. 297. Grifos meus. 211 Honoré, Carl. Ibidem. p. 309.

74 relação à outra? Em segundo lugar, o desacelerar como imperativo ético heteronômico não acaba por criar uma tensão entre a suposta recuperação da experiência de um tempo212 e a suposta novidade de uma outra experiência do tempo como tempo lento. Esse tipo de posição ética e política não seria comum em fases de transição entre paradigmas axiológico-culturais?! Não é o tipo de discurso que se faz possível historicamente como apelo contrário àquilo que se fortaleceu e se tornou hegemônico, no sentido da reafirmação conservadora do cômodo e confortável já vivido?! Até que ponto no fundo desses movimentos o que se estabelece como prioridade é a melhora da qualidade de vida, da saúde? Ir de biclicleta para o trabalho e dizer um basta à carrocracia pode significar uma atitude de desaceleração, mas o que se visa com isso senão a tentativa de melhorar a qualidade de vida? Como então ensejar à desaceleração que se torne um fim e perca a condição de meio, quando a rapidez candidata-se intensamente a ultrapassar a condição de meio para tornar-se um fim em si mesmo? Com estas e outras perguntas na mão, trago à tona pontos da crítica desferida por Lipovetsky às correntes do Slow Movemment em seu livro Da Leveza. Não obstante pareça concordar com a impressão de que o mundo técnico esteja longe de fazer valer a promessa orteguiana da técnica (o esforço para diminuir esforço), resultando ao contrário em ritmos de vida cada vez mais demenciais, Lipovetsky questiona o potencial dessa “utopia da vida aliviada”, problematizando a meu ver de modo sagaz o destino desses movimentos: “à escala planetária, é menos a cidade ‘aliviada’ que se perfila no horizonte do que a cidade hipertrófica. Sonhamos com a cidade lenta mas é a ‘cidade em movimento’ que progride”213. Parafraseando o autor francês, aqueles que estão nas filas das livrarias dos grandes shoppings centers, continuam esperando impacientes e irritadiços para comprar os best sellers do encômio à lentidão. Por isso mesmo, em suas palavras, “o ideal da slow life tem todas as possibilidades de encontrar muitos adeptos intermitentes, com ‘contrato de duração limitada’, e nenhuma hipótese de se instituir como modelo geral da vida”214. Sendo o sujeito hipermoderno marcado por um agenciamento policrônico e lúdico com o tempo, conforme o entendimento lipovetskyano, a lentidão é tão-somente uma possibilidade dentro do jogo existencial, permutável, assim como a velocidade. A leveza, esse Leitmotiv nietzschiano, entra em cena com Lipovetsky enquanto princípio interpretativo ao ensaio de depreensão de um modo de ser propriamente hipermoderno. O ‘leve’ e o ‘ligeiro’ são tomados desde uma plurissignificância que abrange a eliminação do peso das instituições socioculturais como a religião, a moral e o direito, das estruturas materiais (nanotubos, Claytronics,...), mas que ao mesmo tempo diagnostica uma redimensionada continuidade do espírito de gravidade (insegurança psicológica, insuportabilidade com respeito ao corpo, ansiedade estética). O que Lipovetsky aparenta asseverar no âmago de sua interpretação é a vinculação em profundidade existente entre leveza e velocidade não apenas em referência à experiência social, histórica e cultural das sociedades contemporâneas, mas a uma ‘ontologia do presente’ que compreende inclusive as técnicas atuais e, nas próprias técnicas, a forjadura de um real outro. Enxergando a tendência à aceleração como um princípio que iniciou e se alastrou com

212 Enviando-me ao conservadorismo de Saint-Simon e o retorno utópico aos laços sociais do medievo. 213 Lipovetsky, Gilles. Da leveza. Ibidem. p. 70/71. 214 Lipovetsky, Gilles. Da leveza. Ibidem. p. 71.

75 a modernidade, sentencia o autor: “vivemos em sociedades nas quais o princípio de aceleração é reforçado por outro princípio, o princípio da leveza”215. Esta última insurgiu então para retroalimentar a primeira e vice-versa, sem que se possa definir com clareza os limites e as consequências desta interpenetração: “na nossa época, a leveza, ao mesmo tempo que a velocidade, é orientada por uma dinâmica hiperbólica”216. Afim de estabelecer um olhar consubstanciador para ambos os princípios, eu os nomearia, sem perder a chance de inocular a metáfora ora escolhida, como princípios lébricos. Diante da impressão que move esse ensaio, agora claramente compartilhada porque decididamente sentida, observada e discutida por autoras e autores no contemporâneo, a linguagem tende a evocar alguma espécie de sentido designador para o fenômeno, sem perder de vista o misto de plausibilidade, razoabilidade e queixumes que um tal sentido, de fato, tem de carregar consigo. “‘Sociedade de alta velocidade’, ‘sociedade da aceleração’, ‘fome de tempo’ e ‘mundo fugidio’”217, são termos arriscados por Judy Wajcman na tentativa de dar conta de um modelo de vida social, e ao mesmo tempo de arranjo sociocultural ao que tudo indica imperante nas últimas três décadas. Esse modelo, como o vejo, edificado por complexos e em alguma medida interconectados motores catalisadores (consumismo, sepultamento da metanarrativa moral, hedonismo, microeletrônica e tecnologias digitais, recrudescimento do setor de serviços, o modo de organização do trabalho e da produção, dentre outros) nutre a aceleração ao passo em que é nutrido por ela, numa dinâmica de retroalimentação que faz emergir a pervasividade da velocidade. A opção que fiz foi a de pensar se esse modelo sociocultural deixaria escapulir por suas frestas e orifícios uma forma de moralidade. Se em seu seio eclodiriam maneiras típicas de julgar e avaliar moralmente ou não, e modos de conduta que estariam como que associados a essas maneiras de apreciação. Mas porque então usar uma palavra tão esgarçada? Quase uma palavra- banida do vocabulário filosófico hodierno, próxima talvez do ‘triste fim’ daquela igualmente iniciada com ‘m’218, outrora defenestrada? No entanto, quando ocorreu a existentes humanos deixar de produzir costumes e, por conseguinte, morais? Quando abriram mão de conceber valores morais enformadores de suas ações e agências? ‘Conteudizar’ a existência com sentidos e significações sobre certo e errado, bom e ruim, permitido e proibido? Na hipótese de isso ter realmente acontecido, não teria sido desde esse dia, como sentenciou Nietzsche219, esvaziada a noz da existência? Poder-se-ia garantir que sempre que houver querer por parte do humano, haverá moral? Se vivemos em uma época pós-moral, como querem alguns, não seria mesmo necessário perguntar que concepção de moral recebeu o prefixo pós e quais aquelas que sobreviveram sob os seus escombros, já que jamais houve uma única moral? A fim de discutir tal possibilidade, parto de uma definição de moral entabulada por Nietzsche enquanto “teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno ‘vida’”220. Por essa via, moral pressupõe um determinado modo de

215 Lipovetsky, Gilles. Da leveza. Ibidem. p. 115. 216 Lipovetsky, Gilles. Da leveza. Ibidem. p. 124. 217 Wajcman, Judy. Pressed for time: the acceleration of fife in digital capitalism. Op. cit. p. 01. 218 Metafísica. 219 Veja-se Capítulo I, nota n° 31. 220 Nietzsche. Além do bem e do mal. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. § 19, p. 25.

76 organização vital humano, um arranjo vital/sociocultural que emerge historicamente, e no seio do qual são erigidas dinâmicas de relação de dominação entre indivíduos e grupos de indivíduos, seladas pela transitoriedade. O que me parece imprescindível na acepção nietzschiana para a noção que ora almejamos construir reside no caráter não universal e não metafísico da moral, em sua condição de produto histórico e psicofisiológico, e em considerar as relações de dominação produtoras de hierarquias de duração relativa no fluxo histórico como criadoras de estruturas dinâmicas e plurais de imposição visceralmente ligadas a estruturas dinâmicas e plurais de resistência. Em outra senda, concordo com MacIntyre ao afirmar que qualquer filosofia moral – enquanto investigação sobre os motivos, valores e conceitos que determinam modos de ser e formas de conduta – exige uma sociologia que lhe dê conta. Sendo assim, o discurso filosófico-moral, nas palavras do filósofo, “pressupõe alguma afirmação de que esses conceitos estejam expressos ou, pelo menos, possam estar contidos no mundo real social”221. Vejo-me até o momento tentando exercitar precisamente isso: juntar indícios, ouvir sinais e trazer à luz quem também já os vem juntando e ouvindo. Também levantamos nossas orelhas para o que diz Sloterdijk, arriscando pensar as armações morais dos indivíduos igualmente com base no conceito de antropotécnica, o qual abrange processos pelos quais humanos produzem-se a si mesmos por meio de exercícios, sendo estes, por sua vez, definidos como “qualquer operação mediante a qual se obtém ou se melhora a qualificação do que atua para a execução seguinte da mesma operação”222. Embora tal conceito tenha um peso na compreensão/apreensão simultânea das condições de engendramento da ontogênese e da sociogênese humana, atrevo-me a pensar que ele pode ser articulado para o entendimento sobre concomitantes processos de autoplastia e criação de parques humanos por seres humanos no contexto das transformações comportamentais e de conduta das sociedades contemporâneas. Em conformidade com a visada antropotécnica sloterdijkiana, “os hábitos não estão dados a priori, pois precisam ser construídos no curso de adestramentos e exercícios bastante longos; crescem mediante um comportamento de repetição mimética para converterem-se, a partir de um determinado ponto de seu desenvolvimento, em um empenho próprio apoiado na vontade do sujeito”223. Por essa via, acreditamos ser razoável conceber a moral aqui aventada como antropotécnica porquanto resultante de labirínticas interações entre regimes de criação, autocriação e exercícios que se dão nas relações indivíduo- estrutura, indivíduo-indivíduo em nosso tempo, o tempo das lebres. Com efeito, depois da morte da moral como paranoia e megalomania sobram, entre outras, as seguintes alternativas: moral como terapêutica, como estilística da existência, como modo de ser-viver (artigo definido aniquilado, todas no plural, múltiplas morais). Talvez seja essa última concepção a que melhor se aferra àquilo que denominamos moralidade da rapidez ou ethos de altas velocidades. Moralidade aqui proposta não na condição de conjunto de prescrições universais, normativismo, ou dever fundado na razão (à maneira de Kant), ou ainda como uma forma de emotivismo radical, mas quiçá como algo movido por um hipotético ‘consenso do desejo’ ou um ‘alinhamento de desejos’ (do corpo, da volição) mediatizado menos por uma

221 MacIntyre, Alasdair. Depois da virtude. Bauru: EDUSC, 2001. p. 51. 222 Sloterdijk, Peter. Has de cambiar tu vida. Sobre antropotécnica. Valencia: Editorial Pre-Textos, 2012. p. 17. 223 Sloterdijk, Peter. Has de cambiar tu vida. Op. cit. p. 219.

77 racionalidade comunicativa (Habermas), e mais por uma racionalidade instrumental (Weber) e quem sabe por um certo amplexo de ambas. Evidentemente, o que se pretende aqui é executar um modo de compreensão dos costumes no contemporâneo e, portanto, uma interpretação de condutas e de modos de julgar condutas. A meu ver, as determinações econômicas e técnicas não podem ser o único fator condicionante da aceleração do tempo: elas de fato concorrem para o moderno ponta pé histórico da celeridade. Nesse ponto, há sentido no que afirma Matos: “os homens desejam, sentem e pensam o que os poderes sociais e as instituições requerem deles”224. Todavia, em nosso tempo, dividem com a esfera do desejo, esfera marcantemente alostática, a condição de determinante (ao mesmo tempo condicionante-condicionada). Com isso não fecho a questão, considero que podem e até devem existir outras esferas, inclusive inauditas. Indo mais fundo, entendo que um ethos de fluxos rápidos (quase um anti-ethos em sentido aristotélico) só vem a ser quando o desejo de velocidade torna-se amplamente gozado, alimentado, uma pandemia psíquica e existencial. Numa sentença: quer-se a rapidez! Ela é este acontecimento a flechar indivíduos e coletividades que em última instância transmutou-se em acontecimento querido. Conforme escreve Deleuze, “o acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera [...] ele é o que deve ser compreendido, o que deve ser querido, o que deve ser representado no que acontece”225. Querer o acontecimento pode servir enquanto fórmula à compreensão dessa assunção do desejo hibridizada de maneira tensa com o propriamente tendencial que advém das estruturas. Nesse sentido, há uma moralidade da rapidez que aflora e se instala tanto na maneira como são realizadas as mais ordinárias ações cotidianas, das mais antigas de que se tem notícia (caminhar, comer, fazer sexo) às novíssimas atividades recém- albergadas pelos dicionários (zapear, tuitar, blogar, baixar), quanto, e de forma capital, nos discursos. Estes constituem um horizonte a partir do qual nítidas aproximações de significado são encontradas. Levando em conta que bem e mal, máximas expressões do reino da moral ocidental dominante (judaico-cristã), escafederam-se como substâncias destituíveis de crítica filosófica (salvaguardando-se apenas no âmbito religioso), e que, em razão da epidemização da técnica e de um relacionar-se com um mundo cada vez mais ancorado na técnica e tracionado pelo útil, espalhou-se consideravelmente o uso dos adjetivos bom e ruim, afirmo que hoje há um pleito muito concorrido para subsumir tais conceitos, sendo a rapidez e a lentidão constitutivas de uma chapa bastante forte. Noutros termos, há claras indicações discursivas de acordo com as quais se tem associado o valor moral bem e o adjetivo moral bom a significações tais como veloz, rápido, ágil, célere, e outras expressões correlatas. No cotidiano discursivo dos indivíduos hipermodernos é possível escutá-los julgando moralmente segundo a seguinte fórmula: ações, atitudes e pessoas são boas se são rápidas, se não nos proporcionam perda de tempo, se realizam o mais depressa possível qualquer coisa que nos diga ou, e o que é mais interessante, lhes diga respeito. Por oposição, julgam-se ações, atitudes e pessoas como ruins se são lentas, demoradas, se se espera por elas (pessoas) ou por aquilo que realizam (ações) – e demasiadas vezes não precisa ser muito.

224 Matos, Olgária. Advinhas do tempo. Ibidem. p. 17. 225 Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. Op. cit. p. 152. Grifos nossos.

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Não se trata de fazer aqui, à maneira nietzschiana, uma genealogia da moral das sociedades globais contemporâneas. Trata-se antes de recorrer a Nietzsche muito mais para com ele pensar a conjetura segundo a qual elementos fundamentalmente amorais alicerçam a conduta humana ou a ‘moral’ em uma dada época. Este é exatamente o caso: a velocidade técnica em sua versão moderna, capitalista-industrial, das comunicações, do setor de serviços, da microeletrônica, da cibercultura, e a fast life como seu inevitável desdobramento, tudo isso consistindo em um âmbito não- moral desde o qual emana uma moralidade da rapidez. Complexos processos de internalização, agenciamento e influência recíproca, antropotécnicas, confluem para que a rapidez converta-se em valor desejado e cada vez mais querido. Não são poucos os sinais e ressignificações. Nesse mesmo diapasão, o uso habitual da palavra ‘prático(a)’ como adjetivo acaba por designar ‘rápido’, ‘sem demora’, e por causa dessa semântica, ‘fácil’, ‘simples’, ‘que não requer esforço’, fazendo com que o sentido de prático (πρακτικός) oriundo da filosofia grega – que designa ação humana – receba esse acréscimo simbólico. O curioso é que ao designar o campo das ações humanas, tal palavra indica os terrenos da ética e da política, conforme a distinção aristotélica das ciências, e, de alguma forma, termina aludindo ao conjetural acordo entre moral e velocidade ora pensado. Aos que aderem a ela ou se veem em seu âmago como a mosca se vê na sopa, essa moralidade cinética faz uma exigência capital: o tratamento de tudo o que vive como motor, lidar com os outros e conosco como se lidássemos com motores. Dito de outro modo: tratar tudo que vive como se fosse um motor prestes a realizar tudo de forma rápida e cada vez mais acelerada, como uma nova lei, e porque não dizer, uma nova lei moral, conforme vaticinara Virilio: “tornado passivo, até inerte, pelo uso das diversas próteses do transporte e das transmissões instantâneas, o homem não verá mais necessidade de economizar esforço físico, daí este surgimento de uma nova lei de sentido contrário, já que se trata, desta vez, de tratar o que vive como um motor, uma máquina para acelerar constantemente”226. A questão que coloco a Virilio, a qual não parece que tenha dela se ocupado, é precisamente a que inspira este livro: se não estamos no momento em que a ‘motorização do que vive’ não é unicamente constatada, mas querida. Mas não seria tal motorização derivada da mobilidade intrínseca à antropogênese? Reconheço que talvez aquilo que Slorterdik denomina ‘ser-para-o-movimento’ possa configurar uma explicação de natureza onto-antropológica para algo porventura mais visceral à condição humana e ao próprio desenvolvimento desta. Digo isto porque somos o que somos porque desde tempos mítico-imemoriais saímos do lugar: “no ser-para-o-movimento, pulsam os motivos que parecem vir do âmago daquilo que nós próprios queremos e devemos querer”227. Nesse contexto, Virilio assinala essa suposta face íntima do espírito (cultura) da velocidade pelas vias da concorrência e da rapidez tornada necessidade, e em seu cerne, a reboque vai o corpo pela contínua alteração dos ritmos vitais e transformações intra-orgânicas que há muito já batem à porta: “desde a origem da vida, a corrida é eliminatória: eliminatória para o predador capaz de alcançar sua presa mais rapidamente, igualmente eliminatória para as sociedades humanas incapazes de desenvolver a aceleração de sua produção e distribuição. Ora, nessa corrida, a concorrência selvagem elimina não somente o

226 Virilio, Paul. A arte do motor. Ibidem. p. 108. 227 Sloterdijk, Peter. A mobilização infinita. Ibidem. p. 34.

79 adversário (o animal excessivamente lento) mas também elimina elementos de seu próprio corpo”228. Passível de consenso, o fato de que a longínqua aventura humana da mobilidade é decerto o start não me parece incoerente. Mas, a qualidade dessa mobilidade muda com o advento do espírito moderno, o qual em sua condição de modernidade tardia assume uma singular fenomenalização ao mesmo tempo em que adquire autoconsciência. Os latinos já nos davam indícios de uma indistinção que faz o mover-se carregar-se de um protosentido de velocidade e excitação (algo condenável porque pecaminoso para frequentadores de cenóbios, mosteiros e abadias): o movere fia-se umbilical ao commovere229 - lidamos com um modo do mover-se que comove na medida em que excita, sacode, impressiona, choca, engendrando um modo de ser cuja singularidade é errática. “Ética cinética”230, “Fun morality”231, “uma outra maneira de ser”232, a título de hipótese, nomes outros a meu ver para tentativas convergentes àquilo que intitulo moralidade da rapidez. Quando ao rápido atribui-se o caráter de valor orientador para ações humanas derivando da velocidade como um dos valores-mor da sociedade contemporânea, o dramático jogo de nossas antropo e socioplastia continua: fruições rápidas, muitas, em intervalos de tempo sempre menores; o rápido saciamento da fome, da libido; sofrer em menor tempo possível; livrar-se rapidamente do que dói, incomoda, transtorna, perturba; resolver depressa tudo o que se refere à aracnídea teia social na qual nos prendemos, inclusive mantendo-se permanentemente on line para tal; não precisar esperar ao clicar o enter para o download; glorificar e glamourizar o imediato, todas ilustrações de uma sintomatologia do não menos sintomático desejo de rapidez. Se se trata de um niilismo moral renovado e antitrágico, este ainda não é o fórum para tal debate. Tal como iniciei esse capítulo, retorno a Platão para endossar que continuamos tendo ‘ruínas romanas e ideias gregas’, como já disse o poeta. No Crátilo, quando do exame da tese de acordo com a qual os nomes teriam sido atribuídos aos entes pelo fato de tais entes se encontrarem em movimento, Sócrates faz a Hermógenes a seguinte consideração em torno da palavra ‘bom’: “Passemos agora a ‘bom’; este nome foi posto para significar aquilo que é admirável em toda a natureza uma vez que, estando os entes em marcha, há neles velocidade e há também lentidão. Ora, não é o todo, mas uma certa parte dele, a parte rápida, que é admirável. E a esta parte admirável que é dada a designação de ‘boa’”233. Aparentemente destituída de quaisquer incômodos que lhe oferecessem suspeitas ou expedientes investigativos, essa afirmação platônica esconde ao passo que mostra o motivo que serve de base à reflexão aqui traçada cuja profundidade de suas raízes e o tamanho de suas implicações ainda fornecerão trabalho ao pensamento. A questão sobre a existência de uma moralidade da rapidez como algo que brota das entranhas da cultura pós- moderna (e não como algo que eu quisesse prescrever ou pictografar em uma tábua), fazendo com que bom equivalha a rápido no julgamento que há muito extrapolou o âmbito da velocidade técnica, derramando-se concomitante na consideração judicativa

228 Virilio, Paul. A arte do motor. Ibidem. p. 94. 229 Cf. Magalhães, Fernão de. Dicionário português-latim. São Paulo: Editora LEP S.A., 1960. p. 94. 230 Giucci, Guillhermo. A vida cultural do automóvel. Ibidem. p. 66. 231 Lipovetsky, Gilles. Da leveza. Ibidem. p. 37. 232 Virilio, Paul. Estética da desaparição. Op. cit. p. 106. Grifo do autor. 233 Platão. Crátilo. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 84. 412a-c.

80 sobre e na estruturação de modos de ser-agir-relacionar-se dos indivíduos hodiernos, está doravante enunciada à maneira de uma experiência reflexiva. De fato, essa parece ser uma questão em que se pôs uma pedra, e que em face da impressão de uma pressa generalizada nos mais distintos setores e vivências do cotidiano das complexas sociedades do século XXI, começa a se tornar digna de ser pensada. A admiração pelo rápido e a aversão ao lento que Platão já assinalara na ontologia do movimento delineada no Crátilo acha uma indumentária moral na contemporaneidade, embolando natureza, espírito, técnica e desejo.

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Capítulo VII

Política da pressa

“Uma cultura em guerra contra a procrastinação é uma novidade dentro da história moderna”234.

Em meio à generalizada regência do imediato, procrastinar tornou-se condenável. Nada, mas nada mesmo, pode ser adiado! Toda ação deve ser imediata; a resposta – efetiva, retórica, midiática, propagandesca ou não – não pode tardar. Porém, talvez em nenhum outro âmbito da ação humana essa inclinação do espírito de nosso tempo se encarne de modo tão curioso quanto na política (o que não quer dizer que responder imediatamente implique em realizar de fato o interesse público ou a justiça social). Em se tratando de um campo fecundo em ardis e toda sorte de torções, resta claro, a meu ver, que uma política do imediato não significa uma ação política imediata. No entanto, há uma velocidade intrínseca à política contemporânea, outrora diagnosticada por Virilio desde a semente plantada com a guerra fria, e que atualmente adquire ares de característica recursiva do discurso político e da efetividade da ação política. Dois filões para uma tateante compreensão dessa suposta coadunação entre velocidade, discurso e prática política – partindo-se das dinâmicas e interações entre Estados, governos, grupos de interesses, movimentos sociais e outras organizações coletivas – podem ser propiciados pelas ideias de poder dromocrático e de urgência. Nesse sentido, tento elaborar aqui uma apreciação dessa marcha da celeridade da qual somos coadjuvantes e protagonistas na condição de determinante e determinada das/pelas esferas política e econômica, enquanto desdobramento do capítulo anterior, à maneira de quem apenas pretende chamar atenção para alguns aspectos que permitam sugerir que essa velocidade estrutural é produtora de pressa, e esta, por sua vez, uma fiel retroalimentadora. De início, acredito ser necessário operar uma distinção. Pressa e velocidade não significam o mesmo, uma vez que velocidade consiste em um modo de relação com o tempo que pode variar; pressa é um estado de experimentação psíquica do tempo como duração cuja característica central reside na compressão da extensão temporal para realizar ações. Contudo, o estar com pressa, é uma possibilidade psicológica interpretável com base em circunstâncias admitidas como plausíveis. Tornar a pressa frequente ou constante, eis o que aparenta estourar por muitos dos flancos da experiência sociocultural atual – com isso, por nada mais se pode esperar, e ninguém mais pode esperar: decreta-se simplesmente que nem nada nem ninguém mais são esperáveis. No final da década de 1960, Paulinho da Viola lançava a música Sinal fechado, cuja letra expõe a seguinte interlocução: Me perdoe a pressa, é a alma dos nossos negócios! Qual? Não tem de quê! Eu também só ando a cem... Uma pressa essencialmente justificada em razão do temor da repressão do regime ditatorial

234 Bauman, Zygmund. Modernidad líquida. Op. cit. p. 170.

82 vigente à época em terras brasílicas, e em simultâneo, um discurso duplamente sinalizador: registra tanto o costume de pedir perdão e desculpar-se pela pressa, quanto assinala a metáfora da corrida para uma moderna cotidianidade vertiginosa. Hoje, a pressa de alguém já não é algo deselegante a ponto de gerar um pedido de desculpas, nem motivo para taxar os outros de mal educados. Ter pressa, fazer as coisas com pressa, açambarcar-se na velocidade técnica dos afazeres hodiernos é natural. Diria hipoteticamente que estamos em um presente no qual o hábito de pedir perdão por se estar com pressa desloca-se para o estar lento, para o ‘vai demorar’, denunciando algo típico de uma relação intersticial com macro e microestruturas de poder que há muito deambulam avexadas por nossas correntes sanguíneas e culturais. Não obstante junte-me ao coro dos que vêm em Virilio uma postura pouco otimista com relação à sociedade da informática e à cibercultura, penso que sua reflexão sobre como estruturas políticas de controle emergiram segundo uma lógica dromológica arvorada sob a velocidade técnica de transferência de informação no final do século XX, constitui um caminho pelo qual é necessário passar, reconhecendo inclusive, sem que isso consista numa integral adesão, que motivos virilianos ressoam entre algumas das páginas deste livro. Propondo-se a interpretar a prática política em geral à luz da mobilidade (circulação e mobilização das massas, rápidas vias de comunicação e deslocamento, ruas tomadas), e o poder do Estado na condição de policiamento mantenedor do sistema viário, para além da visão marxista do poder institucional como relação de opressão de uma classe sobre outra, Virilio considera que o discurso político acabaria por confundir, de modo mais ou menos consciente, “a ordem social com o controle da circulação (das pessoas, das mercadorias)”235. Em escala planetária, tratar-se-ia então de uma poliorcética236 enquanto luta institucional generalizada contra a inércia, mediante um espírito oposto a Zenão de Eléia: a negação administrativa do imobilismo para a qual a imagem da flecha parada é moral e politicamente abominável. Pontuando-o, ademais, como um elemento comum às formas de governo instauradas no derradeiro século, o filósofo francês escreve que “pode-se mesmo dizer que a ascensão do totalitarismo é perfeitamente equiparável ao desenvolvimento do controle estatal sobre a circulação das massas”237. Conforme vejo, é precisamente a identificação dessa “coação à mobilidade”238 e do controle dos fluxos deambulatórios com o exercício do poder estatal após a segunda grande guerra e o avanço da economia de mercado que representa um dos aspectos centrais do pensamento viriliano, e que está em jogo na análise ora traçada. O que não significa dizer que com isso admito uma depreensão coisificante do conceito de poder, aqui assumido como relacional, interacional e dinâmico, à maneira de Foucault. Com efeito, o controle político dos corpos é operacionalizado a partir do controle da velocidade dos corpos, algo que remete a uma espécie de biopolítica baseada no gerenciamento da mobilização, das manobras e movimentos dos indivíduos e, por sua vez, das estruturas sociais. Para o filósofo, “não nos enganemos:

235 Virilio, Paul. Velocidade e política. Ibidem. p. 28. 236 Técnica de realização de cercos militares. 237 Virilio, Paul. Velocidade e política. Ibidem. p. 29. 238 Ibidem. p. 40/41. Algo reiterado pelo autor em sua obra Estética da Desaparição: “já em Velocidade e Política mostrei como a modulação e a manipulação das velocidades vetoriais (a política logística) tinham sido, nos diversos conflitos militares e revolucionários, os elementos mais certeiros da coesão das massas na Europa e nos Estados Unidos” (Virilio, Paul. Estética da desaparição. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. p. 51).

83 os drop-out, a geração beat, automóveis, trabalhadores migrantes, turistas, campeões olímpicos, agentes de viagens, etc., as democracias industriais-militares souberam fazer, indiferentemente de todas as categorias sociais, soldados desconhecidos da ordem das velocidades, das velocidades cuja hierarquia o Estado (Estado-maior) controla cada vez mais, do pedestre ao foguete, do metabólico ao tecnológico”239. Se no plano internacional, a geopolítica corresponde a uma guerra de velocidade (a corrida armamentista é apenas uma de suas faces), para a qual o quem chegar por último é a mulher do padre! poderia muito bem servir de lema encabeçador, no plano do poder hierárquico do Estado-Máquina a questão é a regulação dos corpos-veículos no interior de estruturas dinâmicas de velocidade. Eis o comando dromocrático das massas em circulação, visando à consolidação da política como eficiência gerencial e diretiva do tempo humano, em meio a uma urbanidade fluida na qual o espaço desaparece, cuja lógica de saber/poder cede lugar à lógica do poder/mover, “ao exame das tendências, dos fluxos”240. Assim sendo, conforme Virilio, “o último poder seria mais o da antecipação que o da imaginação, até o ponto em que governar seria apenas prever, simular [...] o poder seria comparável apenas a uma espécie de ‘meteorologia’, ficção precária onde a velocidade tornar-se-ia subitamente um destino, uma forma de progresso, ou seja, uma ‘civilização’”241. Desde um registro lógico-interpretativo alternativo e nem por isso destituído de contundência argumentativa, o diagnóstico viriliano articula velocidade e poder, considerando que a efetivação de poder pelas macroestruturas do Estado (poder político) e do mercado (poder econômico) na história contemporânea recente se dá sob a forma da velocidade: “‘você não tem corpo, você é corpo!’”, exclamava ontem Wilhelm Reich, ao que o poder e suas técnicas respondem hoje: ‘Você não tem velocidade, você é velocidade!”242. Isso implica na associação em profundidade entre uma concepção de inscrição civil lapidada em dinâmicas pautadas em uma incessante mobilidade cada vez mais célere, e sutis e escancarados dispositivos de controle e manipulação que enformam tais dinâmicas. Numa tacada: se há um poder coercitivo do Estado, e também do Mercado, que sobreviveu às críticas pós-estruturalistas, ele advém de modo cutâneo e subcutâneo como velocidade, transformando por intermédio de uma dromopolítica do corpo, indivíduos em seres hipercinéticos. Me parece que ao mesmo tempo em que sutilmente incorpora a ideia foucaultiana de disciplina, a novidade de uma dromopolítica do corpo residiria cirurgicamente na aceleração das dinâmicas de escritura do poder nos corpos. Conforme escreve Foucault, “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas entretanto são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do

239 Virilio, Paul. Velocidade e política. Ibidem. p. 113. Grifo do autor. 240 Ibidem. p. 57. Conforme elucidativa interpretação de Moraes, “o poder-mover provoca a impotência na percepção do real que, a partir das máquinas de visão, seduzem os corpos com seu poder-comover. Assim, a velocidade assume a forma de ‘motor da História’, à medida que não atua apenas na máquina, mas se transporta para as consciências, jogando papel decisivo em nosso cotidiano. O paradigma- máquina é a velocidade e está incorporado no agir social – exigimos velocidade das máquinas e dos corpos; corpos velozes, dinâmicos, aptos a atender às vicissitudes do capital” (Moraes, Ronaldo Queiroz de. Paul Virilio: pensador do instante contemporâneo. Contexto & Educação. Ijuí: Editora UNIJUÍ, Ano 17, n. 65, jan./mar., 2002, p. 45). 241 Ibidem. p. 128. 242 Ibidem. p. 51.

84 controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna”243. O que figura esborrando das palavras de Virilio é a extrapolação desses processos sob a insígnia da velocidade. Performática, desempenho, rendimento, substituição do moroso, deslocabilidade, eficiência, nomes outros para o mix de velocidade e poder nas organizações da vida social e da cultura. Se o prognóstico viriliano não oferece alento a dromonativos e dromomigrantes, ao enxergar na civilização tecnológica um perigo indomável tanto para a liberdade quanto para a reflexão, porquanto torna de acordo com ele pandêmicos o cegamento e a mordaça da expressão política (contaminando igualmente a própria ação política) – algo susceptível de críticas e desacordos demasiado justificáveis –, trago à tona sua visão a fim de me convencer de que as injunções da sociedade política contemporânea e as formas de organização das relações de trabalho, produção, consumo, obedecem ou vêm obedecendo ao domínio de uma colossal velocidade técnica cujos desdobramentos são, entre outros possíveis ou ainda não visíveis, a catalisação psicológica da pressa acompanhada da generalização de sua experiência, e, em simultâneo, o engendramento da rapidez como valor moral caro às relações intersubjetivas de nosso tempo. Nesse sentido, pressa e rapidez não são meros epifenômenos: são co-partícipes realimentadores da dinâmica do poder dromocrático. A meu ver, o policiamento estatal sob suas diversas feições (aparelho policial, alfândega, vigilância voyeurista, radares de trânsito, agências reguladoras, e outras mais) consiste no modo de institucionalização do poder político a condicionar a maneira como devemos nos mover na perspectiva de uma cidadania circulatória. Ao mesmo tempo, essa dromocracia não vigora sem o combustível de um mercado imperioso a impor a mudança contínua, a condenação do poupar na razão direta da ode ao esbanjamento com o imediato, a equação de acordo com a qual velocidade de execução corresponde a eficiência nos resultados, pico de valorização monetária, correntistas acorrentados a correntes prometeicas correndo atrás de tendências, desvios, deslocamentos, efemeridades de um capitalismo quase quântico. Mas não nos enganemos: isso não ocorre sem adesão! Não vem a ser sem conglomerados de vontades desejosas que lhe azeitam e tracionam. Nesse sentido, a experiência urbana afigura-se exemplar: o flâneur de Baudelaire (o andarilho urbano fruidor da cidade), esse protótipo da modernidade analisado por Walter Benjamim244, é ipsis literis ultrapassado pelo hiper-flâneur contemporâneo. Indiferente à urbe, este último adota o mover-se e o relacionar-se em ritmo frenético quase como um fim em si mesmo, na medida em que o ser-fazer ligeiro, o deslocamento libidinal para as curtas durações no universo das relações que trava, lança-o na impermanência de uma vida que é um devir circulatório.

243 Foucault, Michel. Vigiar e punir. Op. cit. p. 163. 244 Benjamin, Walter. Obras escolhidas III - Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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Outro componente importante à atestação de uma política da pressa, tal como a interpreto, reside na construção discursiva de uma narrativa da urgência que soa conforme três variações de sentido: primeiro como propósito hermenêutico, por se estabelecer em modo de dizer o acontecimento e elaborar uma ontologia do presente; segundo, como justificação performática sobre o que aí está e precisa estar (uma apologética da aceleração), saída da boca interessada de dirigentes políticos e de grandes corporações do mercado globalizado; e em terceiro, como ‘retórica de balcão de bar’, adequada tanto às corridas eleitorais quanto ao cotidiano dos ocupantes de cargos públicos nas democracias liberais contemporâneas. Posiciono-me entre os que utilizam a noção de urgência a fim de interpretar a maneira como as dinâmicas políticas e econômicas entraram na ordem da velocidade técnica desdobrada em velocidade-valor. Nesta, o selo da urgência é impresso em tudo: da renovação ininterrupta e com intervalos cada vez menores de produtos, serviços, experiências de consumo de um mercado lébrico (la madre obsolescencia), à rapidez do recebimento e à pressa da resposta ao turbilhão de informações diárias, horárias, em tempo real, vomitadas em fluxo contínuo e incomensurável pelos mecanismos de imprensa, mídias e redes sociais, acompanhados de cobrança imediata da opinião pública e dos setores das sociedade civil, dando forma a uma experiência política inteiramente outra em termos históricos. Nas palavras de Lipovetsky, “a rapidez das mudanças tecnológicas implica doravante a mobilidade das decisões, a adaptação cada vez mais rápida ao mercado-rei, a aptidão para a maleabilidade e a experimentação no risco. A gestão do futuro entra na órbita do tempo breve, do estado de urgência permanente”245. Já vivemos no momento histórico no qual toda procrastinação deve ser proscrita, algo confirmado por diversos sintomas que advêm de uma única rajada da tecnologização institucionalizada, do sepultamento das distâncias, da hiperconectividade (network society), entre outros aspectos que, no limite, consolidam a pressa em produzir efeitos elevando estes últimos à condição de parâmetro e assim por diante. É dessa perspectiva que técnicas que instrumentalmente buscam aperfeiçoar processos produtivos, administrativos, gerenciais, logísticos, processos de controle sob os mais diferentes nomes (otimização, eficiência, padrão de qualidade, etc) associam a esse aperfeiçoamento a incorporação da celeridade típica da convergência sistêmica de tecnologias de informação, muito além da economia de tempo – essa indissociável sombra de Taylor. Também em razão disso, a empresa capitalista digital, a tecno-empresa, firma-se definitivamente em modelo geral de administração, e as entidades públicas julgadas mediante pesadas alcunhas descortinadoras de sua morosidade óbvia parece não ter outro caminho, uma vez que a nova ordem mundial já se instalou em nossa casa e até deitou em nossa cama: o gerencialismo invade a gestão pública. A segunda variação de sentido da urgência aparece quando a máquina pública passa a funcionar à maneira da máquina privada, adotando mecanismos de gestão do tempo, de encurtamento do tempo, de cumprimento de metas e deadlines, diante da qual, e, performativamente, o corpo político dirigente (que em muitos países, sobretudo nos periféricos, é formado por rebentos de suas elites econômicas), associado ao corpo empresarial, constrói uma apologia da aceleração. Não há política da pressa sem o liberalismo em sua forma atual. Sua entidade política: o Estado-empresa. A personificação de sua guardiania: o empresário-político. O elemento novo é parasitário

245 Lipovetsky, Gilles. O império do efêmero. Ibidem. p. 316.

86 da correria concorrencial que penetra em todas as esferas de organização das instituições públicas (produtivismo, ranqueamento, competição entre setores,...), instalando um regime de urgência superestimado pelos pacotes discursivos oriundos das prateleiras do campo político hodierno246. Nessa direção, Nicole Aubert afirma que o fato ocorre em países ricos, onde a urgência baseia-se na “concorrência e na guerra econômica”247 generalizada pelo corpo social, de modo diferente de como acontece em países pobres, estes últimos fadados segundo a autora a reduzir a urgência a uma batalha contra a inanição. O que chama atenção em sua percepção é a hipótese de que o estágio de urgência contínua em que estão enredadas as grandes economias globalizante-colonizantes tem sua razão de ser atrelada a um mote ontológico-existencial: seu controle estratégico do tempo, sua cada vez mais célere tentativa de manter-se operando, desenvolvendo, inovando, maximizando lucros, é, em realidade, fruto do pavor de seu próprio desaparecimento248. Na ditadura do curto prazo, da qual tais economias são criadoras e ao mesmo tempo vítimas, condenam-se a si mesmas a crescer exponencial e desesperadamente na contramão de um futuro por se apagar. Na política a velocidade está na ordem do dia! A terceira variação da urgência no âmbito de uma política da pressa é bipolar: é inserida como valor fundamental nos títulos de programas de governo, políticas públicas, institucionais, econômicas, parcerias público-privadas, ao passo que vem à frente nos atos de fala como tópica retórica, recurso persuasivo em época de pathos dromológico. Não é à toa que se pode identificar nas últimas décadas um sem-número de ações de governo nas mais distintas pastas e em diversos países, cujos nomes claramente resguardam o espírito da urgência em um duplo sentido: enquanto sinalização de um modelo de governança e apelo retórico. Programa de Aceleración del Crecimiento Económico (México), Modelo Aceleración del Aprendizaje (Colômbia), Federal Business Acceleration Program (EUA), International Accelerator for American University (EUA), Dairy Acceleration Program (EUA), Biofutures Acceleration Program (Austrália), Gas Acceleration Program (Austrália), ÖPNV-Beschleunigungsprogramm (Alemanha), Programa de Aceleração do Crescimento (Brasil), para dizer alguns exemplos de ações que, se efetivamente não conseguem ser realizadas – ou não são mesmo realizadas – de acordo com o que o espírito que as anima indica, ao menos o revelam de modo nítido. Esse fetichismo da aceleração no terreno político inevitavelmente vem no combo: tudo precisa ser feito ou precisa ser dito que se fará com mais pressa, com a urgência que doutras vezes não foi levada em conta, e isto ‘porque é necessário’, ‘porque é a melhor forma’, ‘porque nunca foi feito assim’, ‘porque são os novos tempos’, ‘porque

246 No caso do produtivismo que invadiu a universidade, quiçá o mais tradicional lugar da produção de longo prazo, e particularmente, as universidades públicas brasileiras nas últimas décadas (para dizer de nosso próprio quintal), vale a pena escutar Boaventura de Sousa Santos: “quem trabalha hoje na universidade sabe que as tarefas universitárias estão dominadas pelo curto prazo, pelas urgências do orçamento, da competição entre faculdades, do emprego dos licenciados etc. Na gestão destas urgências floresce tipos de professores e condutas que pouco préstimo ou relevância teriam se, em vez de urgências, fosse necessário identificar e potenciar as emergências onde se anuncia o longo prazo” (Santos, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2011. p. 112). 247 Aubert, Nicole. Le culte de I’urgence. Ibidem. p. 312. 248 Cf. Aubert, Nicole. Le culte de I’urgence: la société malade du temps. Paris: Flammarion, 2003. p. 320.

87 o mercado exige’, mesmo que a ação enquanto tal não represente nenhum tipo de alteração logística, prática, organizacional quanto à maneira como historicamente ações do gênero são executadas, urge propagandeá-la como se assim o fosse. Os efeitos retóricos desse louvor ao imediato muitas vezes jogam com a categoria de futuro. De fato, há motivos plausíveis para operações políticas que visam à garantia mínima de condições razoáveis de cidadania para gerações vindouras, considerando as democracias contemporâneas. Porém, capitalizar o tempo de um mandato, de um período de gestão, capitalizando por sua vez interesses de grupos de poder político e econômico ávidos pela ampliação de seus tentáculos, funciona como o verme na fruta a condicionar um governo do tempo que antecede o governo dos povos. Nesse sentido, os discursos articulam o velho e o novo na lábia da classe política: reeditam o antigo caráter salvífico do chefe (mesmo que espiritualizado na persona tecnocrata, no tecnopolítico), em conexão com uma semântica da urgência imbricada nas decisões, ações e medidas, pouco importando se se fundamentam ou não em dados científicos provenientes de respeitadas agências internacionais ou ‘universidades norte-americanas’. No horizonte de uma política da pressa tem sido muitas vezes vantajoso para grupos de poder, partidos e elites dirigentes, construir, alimentar e difundir um clima generalizado de urgência que justifica – apenas de modo retórico – uma série atos de governança. Trata-se de uma estratégia lúdica, apoiada taxativa no verossímil: ‘se não fizermos nada agora o futuro não está assegurado’ (das reformas neoliberais às políticas ambientais, dos subsídios agrícolas às políticas de imigração). E isto conforme a praxe das disputas que perfazem o ambiente político: não há tempo para verificar a pertinência ou não dos atos, para averiguar sua real necessidade, há tão-só o conflito das interpretações rivais, e uma delas cairá no fosso após a peleja. Naturalmente, o significado de urgência é então articulado ao de antecipação da catástrofe: por meio dele é preciso fazer crer em um futuro próximo como futuro vacante. Este talvez seja o grande paradoxo de uma política da pressa: enquanto em seu campo de ações promove a engorda galopante de mercados temerosos por seu desaparecimento em um porvir quiçá de escassez distópica, no discurso alimenta esse mesmo temor a fim de validar midiaticamente seus atos de governança. Ademais, já são apontados os cálculos, instituídos os diagnósticos, divulgadas as parciais acerca das consequências sociais, econômicas, psicológicas, cognitivas, ontológico-existenciais, e outras mais, dessa política tornada padrão. Quanto a isso, importa-me dar ouvido àqueles que acredito serem ajuizados, deixando em suspenso quaisquer acenos àquilo que poderia derivar de visões catastrofistas249. Compartilho da percepção de Stiegler ao situar o perigo ocasionado por um “paradoxo da velocidade” que é intrínseco tanto aos processos tecnológicos quanto às dinâmicas que constituem a atual experiência humana e nela a própria política: “o cálculo e a velocidade engendram tantos riscos para não correr o risco do indeterminado, o risco, quer dizer, a carência de origem. O que hoje domina é um certo sentido do risco que em seu mesmo princípio tende a ocultar o outro - o outro sentido, que é o outro como outro”250. Se com Ortega a questão é o que fazer com o esforço que não veio a ser

249 Numa perspectiva aproximada à discussão sobre biocatastrofistas e tecnoprofetas realizada por Dominique Lecourt (Cf. Lecourt, Dominique. Humano pós-humano: a técnica e a vida. São Paulo: Loyola, 2005). 250 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo II. Ibidem. p. 214. Grifos do autor.

88 quando o apogeu da técnica consiste no esforço para poupar esforço, com Stiegler será necessário perguntar o que fazer com o risco que fora substituído por um outro, nessa permuta contínua de riscos? Assim como a fumaça do conclave, não deverão tais riscos um dia vir à luz? A planta é uma só. À medida que cresce a roseira esbelta do entusiasmo produtivo das indústrias tecnológicas com o aumento imponderável de aparatos técnicos que vão sendo inseridos a toque de caixa numa cotidianidade arranjada tecnologicamente a cada nanosegundo, compondo assim um caminho sem volta, cresce de igual forma uma raiz feia e indesejável responsável, em termos stieglerianos, por um “verdadeiro colapso da euforia tecnocrática” que se traduz na experiência humana hodierna: “engarrafamentos, aumento dos riscos provocados pela intensificação da circulação e pela melhoria nos resultados de velocidade, instalação de um ‘estado de urgência’ generalizado provocado não só pelas máquinas que fazem circular os corpos, mas também pelas redes de transporte de informação”251. Com efeito, um dos aspectos do governo do tempo é, como já salientei, a prática de previsão e antecipação (de fluxos monetários a abalos sísmicos) em intervalos a cada dia mais curtos. Levando em conta essa característica, Stiegler chama a atenção para a maneira como cada vez mais sistemas de inteligência artificial vem substituindo os indivíduos quanto à tomada de decisão – isto inclusive porque o volume de informações tratáveis em curtíssimo tempo já não pode ser comportado como tarefa unicamente humana. Nesse sentido, o autor indica possíveis problemas que incidem sobre “as tomadas de decisões e os prognósticos, pela delegação dos procedimentos de decisão para máquinas, necessária porque o homem não é rápido o suficiente para controlar os processos dos intercâmbios de informações (como é o caso das redes de bolsa de valores eletrônicas), mas espantoso desde o momento em que é combinado com as máquinas para destruir, por exemplo, no caso das redes polemológicas que pilotam mísseis, ‘convencionais’ ou não, iminente possibilidade de destruição em massa [...] Todo o mundo se preocupou com os efeitos da calculadora sobre as competências aritméticas das gerações futuras, ou com os corretores automáticos sobre a ortografia, mas o problema se estende para dispositivos técnicos mais complexos e ‘sábios’: bancos de dados, sistemas especializados, sistemas de base de conhecimento, sistemas de apoio à decisão, etc”252. Essa incapacidade de tomar decisões rápidas no momento em que estas se tornaram arquetípicas revela que presenciamos o predomínio do automático como suporte para mais velocidade. É igualmente dessa perspectiva que o fenômeno da desorientação teorizado por Stiegler permite compreender o modo de dar-se atual da rigorosa convergência entre técnica e tempo253. Embora a considere como originária à condição humana, a face atual da desorientação emergiria do aparecimento das tecnociências e do desaparecimento do espaço e do tempo em razão do tempo real (destruição do contexto), implicando na liquefação do que o filósofo francês entende serem elementos concomitantes a uma concepção de filogênese humana pensada como

251 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo I. Ibidem. p. 134. 252 Ibidem. p. 135. Grifos do autor. 253 “Hoje em dia se produz uma conjugação da questão da técnica e da questão do tempo, visível por causa da velocidade da evolução técnica, das rupturas da temporalização (acontecimentização) que ela provoca e os processos de desterritorialização que a acompanham, todas elas mudanças que exigem uma consideração nova da tecnicidade” (Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo I. Ibidem. p. 36. Grifo do autor).

89 inseparável da técnica, quais sejam, a calendariedade (o situar-se em uma programação reprodutível no devir temporal garantidora de uma elementar coesão social) e a cardinalidade (a orientação geográfica)254. Em suas palavras, “a desorientação é esta descontextualização, esta desaparição do lugar”255, experiência para qual a velocidade tem um papel primordial.256 Essa desrealização do espaço, da referência contextual, e com ela, de próprio situar-se histórico, seria produto do que Sloterdijk intitula terceira onda da globalização. No tocante à “sensibilidade geral sobre o espaço” a referida globalização seria promotora da desespacialização da Terra, conforme escreve o filósofo alemão: “instaura um ponto quase sem dimensão ou uma malha composta de pontos de interseção e linhas, que não significam outra coisa que enlaces entre calculadores separados por distâncias discricionárias. Se a segunda onda, contando com velocidades baixas e médias, havia colocado em relevo ante a percepção humana a imensa extensão do planeta, a terceira, com altas velocidades, volta a fazer desaparecer a sensação de amplitude da Idade Moderna”257. Nessa direção, um ponto de tensão é colocado por Stiegler ao sustentar haver um sofrimento da desorientação resultante da impossibilidade de constituição da mencionada cardinalidade, imposta pela contínua recrudescência da velocidade técnica a partir da revolução industrial que, no limite, aprofundou “dramaticamente o atraso entre o sistema técnico e as organizações sociais como se fosse uma negociação aparentemente impossível”258. Apesar de concordar com esta compreensão, indago a Stiegler se não estaríamos na época em que esse ‘atraso’ tem sido ultrapassado e essa negociação, com todas as precariedades e assimetrias que ela enseja, fechada. Aposto fichas no fato de que as organizações sociais vêm se reprogramando mediante agenciamentos políticos duros bem como dialógicos com o sistema técnico, tornando esse reprogramar-se o imperativo de sua manutenção dinâmica em tempos lébricos. E, simultaneamente, o próprio sistema técnico – embora seja necessário reconhecer que a queda-de-braço entre ambos tende para o lado deste – vem se alimentando (quer doce quer amargamente) de injunções advindas das organizações sociais. Uma política da pressa e uma moralidade da rapidez são hipóteses pensáveis com base no fenômeno da aceleração social em que nos achamos lançados. Para além de simples desdobramentos, constituem co-acontecimentos que se determinam mutuamente. Onde indivíduos julgam que a rapidez de uma ação implica seu caráter elevado e, não necessariamente nessa ordem, que aquele que a realiza é por isso mesmo ‘bom’, a gestão da política e da economia – num abraço colado entre Estado e mercado – há muito já vigora em conformidade com o aparelhamento da velocidade técnica, no seio de uma sociedade das altas velocidades. Esta decerto nos coloca diante de impasses e contradições tais como a utilização desenfreada de lógicas de previsibilidade e antecipação que ao mesmo tempo convivem com uma incapacidade quase crônica de avaliar os possíveis efeitos provenientes do espírito que há por trás

254 A esse respeito veja-se Pinto Neto, Moysés. Bernard Stiegler, pensador da tecnologia e do humano. Dois Pontos. Curitiba/São Carlos: UFPR/UFSCAR, v. 12, n. 1, Abril, 2015. p. 11-119. 255 Stiegler, Bernard. La técnica y el tempo II. Ibidem. p. 17. Grifo do autor. 256 Há proximidade com Virilio nesse ponto: “[...] Nós não percebemos mais naturalmente suas lentidões do que suas acelerações, não percebemos o que seria a realidade do próprio tempo em que o movimento se dá. O movimento é o cegamento” (Virilio, Paul. A arte do motor. Ibidem. p. 64). 257 Sloterdijk, Peter. En el mundo interior del capital: para una teoría filosófica de la globalización. 2. ed. Madrid: Ediciones Siruela, 2010. p. 30. 258 Ibidem. p. 10.

90 dessa lógica da aceleração social. Quando de modo aparentemente otimista William Scheuerman assevera que “a real questão está em como podemos aproveitá-la para a causa da remodelação da vida pública e, mais geralmente, da democracia liberal”; e ainda, que é possível “conciliar as manifestações de aceleração social que uma sociedade decente poderia sensivelmente descartar”259, parece-me que isso de uma forma ou de outra já ocorre. Acredito apenas que não se deve considerar que aconteça segundo o modo de uma escolha minunciosamente pensada e planejada. Trata-se em muitas ocasiões de uma tomada de decisão à maneira do ou vai ou racha! O novo liberalismo democrático não pode ser concebido fora dos imperativos da indústria tecnológica e da ação tecnocrática, e isso em todas as variações em que vige nos países nos quais é modelo político. Ora, as democracias liberais já não tem aproveitado (ou ‘se aproveitado’) em grande monta a aceleração social? Já não tem obedecido a esse acontecimento inevitável como o fiel obedece ao próprio desejo?

259 Scheuerman, William. Liberal democracy and the social acceleration of time. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2004. p. 59/60.

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Parando por enquanto

Sobre partículas e pessoas

Quinta-feira, oito e quarenta da manhã de um vinte e nove de janeiro do ano de dois mil cento e noventa e três. Você consumia um café goma arábica quando soube pelo feed de notícias de seu personal nanogadget que a última empresa de vôos comerciais havia decretado falência, e que suas aeronaves seriam doadas a diversas sucursais do Museu de Aviões Hipersônicos. Lembro-me bem, naquele dia tinhas combinado um encontro com Clarice, que estava ofertando uma consultoria na capital chilena. Faltavam exatos vinte minutos para encontrá-la, e consumias teu café sem aquela antiga pressa de outros tempos. Havias restituído o ânimo após uma noite aguda e sem sonhos. Solstício de inverno em Triunfo, meses sem chuva... Precisavas antes pegar uma encomenda em Recife – uma vez que Clarice estava bastante ocupada e não poderia ela mesma fazê-lo naquele instante. Mal tomastes teu banho e já te achavas no conturbado Bairro da Boa Vista, para buscar um bolo de rolo cujo sabor enterrava- nos em nossa infância. A ‘morte das distâncias’ e o ‘aniquilamento da circulação’ experimentadas em cada ir e vir instantâneo, a isso denominou-se revolução. Interessante à época... Naquele tempo a tarifa era caríssima, mas tuas condições te propiciavam isso. Hoje, ora, o que dizer de hoje?! Todos têm acesso às cápsulas transcursivas – como se vê na propaganda da Teleport Corporation “uma cápsula e o mundo aos seus pés”, algo tornado tão natural para nós quanto comer em pratos ou usar bot-repelentes. Um dedo a estalar e fizestes Recife e Santiago simplesmente inexistirem como lugares: as fronteiras, os limites territoriais, os milhares de quilômetros, a vivência dos percursos, a experiência da viagem, desaparecendo – tudo aparecendo como um só lugar. Não se tratava de um processo de regeografização com o qual novos limites e expansões são definidos: aquilo envolvia a perda quase integral de uma série de referências (sensoriais, cinestésicas, urbanas, estéticas...) com as quais organizávamos nossos microssistemas sócio-afetivos. Não conseguíamos nomear o fenômeno. Doravante, encontrávamos num mundo em que tudo passava a ser teletransportado... Os estudos atuais em física de partículas concluem sobre a impossibilidade de realizar deslocamento de entes de um lugar para outro em nível macro, e, portanto, do teletransporte sob uma considerada ordem de grandeza. No entanto, em nível micro, o teletransporte quântico já é uma realidade, mas não enquanto deslocamento de matéria ou energia, mas de informações. O início pretensamente literário dessas derradeiras colocações não indica um exercício de futurologia ou a transfiguração de um desejo incauto oriundo dos recônditos inconscientes deste autor. Antes, objetiva aludir àquilo que a literatura autoproclama como algo que lhe é próprio: conceder ao impossível o status de possibilidade. É ela que continua sendo o lugar por excelência desde onde a experiência projetiva do humano lança sentidos sobre a própria experiência do presente. Toda literatura é uma peleja com o tempo e o contexto dos quais emana. Levando isso em conta, se nalgum momento dei a entender que por

92 essas páginas orbitei pelo literário ou quase-literário é porque nele encontrei um espaço de conforto, uma tutela, para a tecedura de sentido, pois, em grande medida, o pensar não é muito diferente da criação artística. Insinuo afirmar ainda que parte significativa dos livros de filosofia começam apontando uma lacuna que não foi tratada ou sequer tocada, a qual não foi preenchida, e que, em seguida, seus/suas autores/as autodeclaram-se capazes de dar conta dela, o que não é o caso deste ensaio. Alegar que ninguém conseguiu enxergar ainda o que unicamente a partir de mim passou a entrar no campo de visão por intermédio deste livro seria no mínimo uma bazófia. Se há uma coisa que os que tentam produzir pensamento no contemporâneo precisam é de uma rotina policialesca no próprio pensar, e isto em razão do reconhecimento da hipertrofia da única virtude cristã aplaudida por Nietzsche: a honestidade intelectual. A tarefa meditativa aqui registrada é resultante de uma impressão cotidiana que se acredita intersubjetiva, quer dizer, compartilhada com outros coexistentes humanos. Por outro lado, não duvido de que este livro constitua um solilóquio de forças subjetivas que em mim habitam, prenhes de expressão, as quais tomam essa impressão como pretexto e pré-texto. Ela nasce de uma simples e habitual ida a uma casa lotérica no centro da cidade de Serra Talhada, Sertão Pernambucano, para o pagamento de uma conta de energia elétrica. Na ocasião, este autor posicionou-se no final de uma fila onde havia quatro pessoas, das quais a penúltima e antepenúltima, duas senhoras aparentando faixa etária balzaquiana, trocavam palavras em tom módico com os olhos fixos nos caixas de pagamento e, mais precisamente, nas atendentes. Se a natureza plantou em nós orelhas isto não chega a ser um problema, mas, plantou também um mundo para ouvir. Uma das senhoras fala sobre a demora no atendimento e que estava apressada, e a outra devolve uma fala que, em simultâneo, serviria ou não como base de escolha para sua interlocutora, e abrição de portas, insight para os meus ouvidos: ‘eu prefiro aquela atendente porque ela é rápida, aquela outra é lenta! Ela é boa porque é rápida!’. O mundo é o poço de onde dimanam todas as inspirações, e isto parece ser um ponto pacífico. A discussão que propus neste ensaio começa a eclodir. Ela vem sendo construída com o fôlego necessário nas três últimas décadas, mas talvez ainda precise de algumas outras para adentrar o terreno por demais duro e compactado das discussões filosóficas contemporâneas. Concebo que há portas de entrada já erguidas: a filosofia da técnica, a filosofia da tecnologia, as questões filosóficas em torno do pós- humanismo, são aquelas que por ora me vem à mente; contudo, podem e até mesmo devem haver outras. Suspeito que isso em alguma proporção se deve àquilo que reconheço como uma dificuldade que rondou essa empreitada interpretativa: a captura ou apreensão da velocidade e de seus correlatos como objeto de reflexão, sobretudo, por referir-se a uma tentativa de reflexão ética. Numa pergunta: o problema não estaria mesmo no paradoxo de querer capturar o que rigorosamente nos foge por entre os dedos? Aprisionar pela linguagem, essa carcerária por excelência, algo cuja natureza é estar em fuga contínua? Não obstante admita a incômoda presença dessa tensão interna, em nenhum momento ela constituiu um interdito à efetivação do propósito deste ensaio. Igualmente, é necessário reconhecer que o fenômeno se oferece à linguagem, dando indícios e sinais ao exercício hermenêutico enquanto texto aberto que se

93 apresenta em condutas, comportamentos, modos de ser, decisões, idiossincrasias, agenciamentos. Negá-la como algo que aí está é faltar com o bom senso: a velocidade como advento do espírito moderno capitalizou-se de forma tal que sua assunção à condição de valor tornou-se inevitável. A temporalidade redimensionada pelo tempo real, pela experiência do presente imediato a circunscreve. A aceleração consolida-se ao mesmo tempo como seu evento técnico (industrial, urbanístico, mercadológico, comercial, político, armamentista) e histórico-social (povos em circulação, ode à mobilidade, consumo frenético, obsolescência, desaparecimento das distâncias, desterritorialização, ubiquidade tecnológica, hipernomadismo). Em seu contexto floresce uma condenação a priori da demora, da espera e da lentidão em geral, no mesmo canteiro onde germina uma exortação da rapidez, e sua candidatura a designativo de moralidade. Seu perceptível quadro sintomatológico em nós: impaciência, agitação, ansiedade, irritabilidade, agressividade, atropelo da fala alheia (desprestígio do valor da escuta do outro), vigília quase ininterrupta (é preciso manter- se on line), a pressa (para a qual há inclusive uma síndrome e um modo de governança), entre outros ainda residentes no limbo do inaudito. A metáfora de uma sociedade quântica onde coabitam deambulatórias pessoas-partículas agitadas, chocando-se umas com as outras, indiferentes, como corpos em fluxo – e o que vale é o fluxo! – não é de se jogar fora. Não será um equívoco dizer que a imagem pintada por Sloterdijk diz muito acerca de nós mesmos: “onde ainda acontece que os muitos esbarrem fisicamente em si mesmos, como massa de horário de pico e engarrafamento, como multidão em reunião involuntária, eles mostram em cada um de seus átomos a tendência de passar apressados por si mesmos como por um obstáculo, e se amaldiçoar, qual uma impertinência, um excesso, como matéria no lugar errado”260. Todavia, não se pode esquecer de pontuar que tais sociedades são em seu âmago verdadeiros palcos de combates: há indivíduos e grupos humanos que em múltiplas escalas e variações aderem ou são constrangidos a aderir, adotam temporariamente ou para toda a vida, fogem de sua sombra em busca de ar fresco e epicurismo mitigado ou ajustam-se apaixonadamente, denotando um processo complexo que se acha em jogo no que se refere ao ingresso nesse modelo social. Noutras palavras, uma vez considerando a velocidade como uma espécie de estrutura determinante, será saudável e oportuno dar ouvidos a Georg Simmel, pois, muitos são aqueles que lhe opõe resistência: “a pessoa resiste a ser nivelada e uniformizada por um mecanismo sociotecnológico”261. Dessa perspectiva, uma moralidade da rapidez cujo traço nodal é o desejo pelo célere não tem sua origem num pai edipiano que funda o tabu da lentidão, numa lei universal da aceleração intrínseca ao humano como um sujeito transcendental, ou numa classe dominante que a impõe como superestrutura ideológica a um proletariado passivo. Ela emerge do jogo cotidiano com os diversos vetores aqui tratados, das digladiações, celeumas, acordos e negociações com esses vetores, passando a enformar ações e condutas, modos de ser, bem como a se estabelecer como padrão de julgamento moral em razão de sua entrada e razoável estabilização na esfera do desejo. Uma tal moralidade não pode ter o peso gravitacional característico das morais historicamente sedimentadas em tradições culturais hegemônicas, e que

260 Sloterdijk, Peter. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 23. 261 Simmel, Georg. A metrópole e a vida mental. In: Velho, Otávio G. O fenômeno urbano. Ibidem. p. 11.

94 ainda encontram-se por aí nas prateleiras do contemporâneo mercado de morais, sob novas indumentárias e reconsiderando não raras vezes a quantidade desse peso para menos ou para mais. Ademais, assim como qualquer hipótese interpretativa, tal compreensão acha-se passível de problemas e, por sua vez, de críticas que devem ser esperadas. Sobre o que tenho dito, não é aconselhável descartar o que Descartes parece nos assegurar: “as maiores almas são capazes dos maiores vícios, assim como das maiores virtudes; e aqueles que só caminham muito lentamente podem avançar muito mais, se sempre seguirem o caminho certo, do que aqueles que correm e dele se afastam”262. Muito além do raciocínio claramente geométrico transcrito nessas linhas é preciso levar em consideração que, diferentemente do que elas expressam, vivemos em uma época na qual há indícios de que não queremos chegar longe, queremos chegar logo. Se é plausível eleger um nome a mais para a fila enorme das tentativas de batismo dessa época que é a nossa, digo então que estamos no tempo das lebres, e, por enquanto, paro.

262 Descartes, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 05.

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