Carta da Conjuntura Ponto de Vista Entrevista Possibilidade de juros reais Será que o Brasil está Joisa Campanher Dutra neutros mais baixos descortina finalmente vacinado contra o Diretora do Centro de Regulação novos cenários fiscais populismo econômico? em Infraestrutura (FGV CERI)

Editada desde 1947 • www.conjunturaeconomica.com.br • Abril 2018 • volume 72 • nº 04 • R$ 16,00

Artigos Fernanda Oliveira Fernando de Holanda Barbosa Helio Tollini Joisa Dutra José Roberto Afonso Juliana Jerônimo Smiderle Kleber Pacheco de Castro Lia Baker Valls Pereira Nelson Marconi Rubens Penha Cysne Samuel Pessôa Arrumar a casa para garantir o futuro Demanda mundial ajuda, mas ampliação de mercado para a agropecuária brasileira depende de uma lista de tarefas domésticas que defi nirão sua competitividade AULAS PRÁTICAS, RESULTADOS IMEDIATOS.

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Instituto Brasileiro de Economia | Abril de 2018

Carta da Conjuntura Macroeconomia 8 Possibilidade de juros reais neutros mais baixos 34 Saúde pública tem remédio? descortina novos cenários fiscais A falta de planejamento e a ausência de coordenação Se, num exercício hipotético, se na execução de políticas públicas são problemas que supuser que os juros reais neutros não afetam apenas a saúde, mas são sensivelmente brasileiros estejam se aproximando mais onerosos neste caso devido às características do nível de 3% a 3,5%, por exemplo, econômicas do setor. a equação da sustentabilidade da dívida pública muda de figura. Capa | Agronegócio Neste caso, talvez um pequeno superávit primário, 40 Arrumar a casa para garantir o futuro algo de até 1% do PIB, já seja suficiente para estancar o Embora o cenário internacional crescimento da relação dívida/PIB. tenha ajudado, o agronegócio brasileiro, para aumentar sua Ponto de Vista participação no comércio 12 Será que o Brasil está finalmente vacinado contra o mundial, precisa equacionar populismo econômico? um leque de questões internas O intervencionismo é fruto da que reduzem sua competitividade. Do crédito à inovação interpretação dos economistas tecnológica, passando pela logística e infraestrutura, só heterodoxos brasileiros de que o para mencionar os mais prementes. desenvolvimento e a superação da armadilha da renda média pelos Comércio exterior países de crescimento elevado do 54 Brasil na OCDE: esperanças e controvérsias Leste da Ásia devem-se à intervenção do Estado na economia. O Ministério da Fazenda está empenhado no processo de Entrevista entrada do Brasil na OCDE, 14 “Reforma ainda não permite identificar uma nova entendendo que, entre outras governança para o setor elétrico” coisas, a adesão representará O setor elétrico brasileiro vive um importante processo um “selo de qualidade” para de transição de modelo que pretende enterrar o mau as políticas econômicas do país e, consequentemente, momento vivido desde 2012, quando a soma de ativismo acesso mais fácil a financiamentos. As principais regulatório e hidrologia desfavorável deu início a um organizações empresariais apoiam a iniciativa, mas acúmulo de desequilíbrios operacionais e prejuízos ainda há controvérsias relacionadas com a posição que bilionários para agentes dessa indústria. Em entrevista à o Brasil pretende ocupar no cenário internacional e com Conjuntura Econômica, Joisa Dutra, diretora do Centro de as perspectivas futuras de o país, uma vez aceito, adotar Regulação em Infraestrutura (FGV Ceri), analisa a estratégia políticas ativas de desenvolvimento econômico. do atual governo para ordenar o setor e os possíveis impactos da saída do ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho, em abril, para disputar eleições.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 3 Fundador Richard Lewinsohn Editor-Chefe Luiz Guilherme Schymura de Oliveira Instituição de caráter técnico-científico, educativo e filantrópico, criada em 20 de Editor-Executivo dezembro de 1944, como pessoa jurídica de direito privado, tem por finalidade Claudio Roberto Gomes Conceição atuar no âmbito das Ciências Sociais, particularmente Economia e Administração, Editora bem como contribuir para a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável. Solange Monteiro Praia de Botafogo, 190 – CEP 22250-900 – – RJ Editoria de arte: Marcelo Nascimento Utrine e Teresinha Fátima de Freitas Caixa Postal 62.591 – CEP 22257-970 – Tel.: (21) 3799-4747 Capa e projeto gráfico: Marcelo Nascimento Utrine Ilustração da capa: istockphoto Primeiro Presidente e Fundador Revisão: Mariflor Rocha Luiz Simões Lopes Impressão: Edigráfica Presidente Colaboram nesta edição: Fernanda Oliveira, Fernando de Holanda Barbosa, Helio Carlos Ivan Simonsen Leal Tollini, Joisa Dutra, José Roberto Afonso, Juliana Jerônimo Smiderle, Kleber Pacheco de Castro,, Lia Baker Valls Pereira, Luiz Guilherme Schymura, Nelson Marconi, Rubens Vice-presidentes: Francisco Oswaldo Neves Dornelles, Marcos Cintra Cavalcanti Penha Cysne e Samuel Pessôa de Albuquerque, Sergio Franklin Quintella Secretaria e apoio administrativo Conselho Diretor Melissa Novaes Martin Diniz Rua Barão de Itambi, 60 – 7o andar Presidente: Carlos Ivan Simonsen Leal Botafogo – CEP 22231-000 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 3799-6840 – Fax: (21) 3799-6855 Vice-presidentes: Francisco Oswaldo Neves Dornelles, Marcos Cintra Cavalcanti [email protected] de Albuquerque, Sergio Franklin Quintella. Conjuntura Econômica é uma revista mensal editada pelo Instituto Brasileiro de Vogais: Armando Klabin, Carlos Alberto Pires de Carvalho e Albuquerque, Cristiano Economia, da Fundação Getulio Vargas, desde novembro de 1947. Buarque Franco Neto, Ernane Galvêas, José Luiz Miranda, Lindolpho de Carvalho As manifestações expressas por integrantes dos quadros da Fundação Getulio Dias, Marcílio Marques Moreira, Roberto Paulo Cezar de Andrade Vargas, nas quais constem a sua identificação como tais, em artigos e entrevistas publicados nos meios de comunicação em geral, representam exclusivamente as Suplentes: Aldo Floris, Antonio Monteiro de Castro Filho, Ary Oswaldo Mattos Filho, opiniões dos seus autores e não, necessariamente, a posição institucional da FGV. Eduardo Baptista Vianna, Gilberto Duarte Prado, Jacob Palis Júnior, José Ermírio de A reprodução total ou parcial do conteúdo da revista somente será permitida com Moraes Neto, Marcelo José Basílio de Souza Marinho, Mauricio Matos Peixoto autorização expressa dos editores.

Conselho Curador Assinaturas e renovações Presidente: Carlos Alberto Lenz César Protásio [email protected] Rio de Janeiro: (21) 3799-6844 Vice-presidente: João Alfredo Dias Lins (Klabin Irmãos & Cia.) Outros estados: 08000-25-7788 ligação gratuita Vogais: Alexandre Koch Torres de Assis, Andrea Martini (Souza Cruz S/A), Antonio Alberto Gouvêa Vieira, Eduardo M. Krieger, Estado da , Estado do Rio de Janeiro, Circulação Bernardo Nunes Chefer Estado do , José Carlos Cardoso (IRB-Brasil Resseguros S.A), Luiz Tel.: (21) 3799-6848 – Fax: (21) 3799-6855 Chor, Luiz Ildefonso Simões Lopes, Marcelo Serfaty, Marcio João de Andrade Fortes, Miguel Pachá, Murilo Portugal Filho (Federação Brasileira de Bancos), Pedro Henrique Mariani Bittencourt, Ronaldo Vilela (Sindicato das Empresas de Seguros Privados, de Distribuição DINAP - Distribuidora Nacional de Publicacoes – LTDA Previdência Complementar e de Capitalização nos Estados do Rio de Janeiro e do Av. Doutor Kenkiti Shimomoto, 1678 Espírito Santo), Willy Otto Jordan Neto Osasco – SP – CEP: 06045-390 Suplentes: Almirante Almirante Luiz Guilherme Sá de Gusmão, General Joaquim Maia Brandão Júnior, José Carlos Schmidt Murta Ribeiro, Luiz Roberto Nascimento Publicidade Silva, Manoel Fernando Thompson Motta Filho, Nilson Teixeira (Banco de (21) 3799-6840/41 Investimentos Crédit Suisse S.A), Olavo Monteiro de Carvalho (Monteiro Aranha Participações S.A), Patrick de Larragoiti Lucas (Sul América Companhia Nacional de Seguros), Rui Barreto, Sergio Lins Andrade Instituto Brasileiro de Economia Diretoria: Luiz Guilherme Schymura de Oliveira Superintendência de Clientes Institucionais: Wagner Rezende de Oliveira ISSN 0010-5945Conjuntura Econômica. – Vol. 1, n. 1 (nov. 1947) Superintendência de Estatísticas Públicas: Aloisio Campelo Junior -.- Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1947-v. il.; 28cm. Mensal. Órgão oficial de: Instituto Brasileiro de Economia. Diretores: Nov. 1947-mar. 1952, Richard Lewinsohn; Superintendência de Estudos Econômicos: Marcio Lago Couto Maio 1952-dez. 1968, José Garrido Torres; Jan. 1969-mar. 1974, Sebastião Marcos Vital; Abr. 1974-mar. Superintendência de Planejamento e Organização: Vasco Medina Coeli 1979, Antonio Carlos Lemgruber; Abr. 1979-abr. 1994, Paulo Rabello de Castro; Maio 1994-set 1999, Lauro Vieira de Faria; Out. 1999-nov. 2003, Roberto Fendt; Dez. 2003-jun. 2004, Antonio Carlos Pôrto Controladoria: Regina Célia Reis de Oliveira Gonçalves; Jul. 2004, Luiz Guilherme Schymura de Oliveira. ISSN 0010-5945 1. Economia — Periódicos. 2. Brasil — Condições Econômicas — Periódicos. I. Fundação Getulio Vargas. II. Instituto Brasileiro de Economia. CDD 330.5

4 Conjuntura Econômica | Abril 2018 Nota do Editor Depois de uma safra recorde para as políticas econômicas do país e, consequente- que ajudou o PIB a crescer mente, mais facilidade para a captação de financia- 1% no ano passado – sem a mentos e de investimentos estrangeiros. Além de abrir contribuição da agropecuá- mais a economia brasileira, podendo auxiliar num ria teria aumentado apenas maior fluxo de negócios. 0,4% –, e derrubou os preços dos alimentos, contribuin- Dados do MDIC mostram que dos dez maiores im- do para forte queda da inflação, a agropecuária não deve portadores de produtos brasileiros no ano passado, repetir os excelentes resultados de 2017. No entanto, sete eram membros da OCDE, estando fora apenas as previsões de safra este ano apontam para uma outra China, Argentina e Índia. Entre os dez maiores ven- grande colheita, pouco inferior à do ano passado. dedores de produtos para o Brasil, oito são da OCDE. Mesmo ocupando lugar de destaque no cenário Mas os dados também mostram que o Brasil exporta mundial o setor tem grandes desafios pela frente. Há principalmente produtos primários e importa basica- consenso de que mercado potencial não é mercado ga- mente manufaturas, como pode ser visto a partir da nho, e para continuar conquistando terreno o agrone- página 54 desta edição. gócio não poderá negligenciar uma agenda doméstica Outro assunto bastante sensível à atividade econômi- principalmente nos campos de infraestrutura logísti- ca, o do setor elétrico, é abordado na entrevista com Joisa ca, tecnologia e financiamento, como foi amplamente Dutra, diretora da FGV Ceri – página 15 –, que alerta discutido no I Seminário Desafios e Perspectivas do que, apesar de necessária, a reforma do setor poderá pe- Agronegócio Brasileiro, promovido por Conjuntura nalizar o consumidor ao focar na garantia de capacidade Econômica, cujos principais pontos podem ser lidos a em detrimento do processo de formação de preços. partir da página 40. Os esforços para que o Brasil passe a fazer parte da

OCDE são vistos pelo governo, principalmente pelo Claudio Conceição Ministério da Fazenda, como um “selo de qualidade” [email protected]

28 Teto de gasto como regra permanente Sumário Helio Tollini 32 Um motivo adicional para os elevados juros reais Carta da Conjuntura no Brasil – Rubens Penha Cysne 8 Possibilidade de juros reais neutros mais baixos descortina novos cenários fiscais – Luiz Guilherme 34 Saúde pública tem remédio? – José Roberto Schymura Afonso e Kleber Pacheco de Castro Ponto de Vista Fiscal 12 Será que o Brasil está finalmente vacinado contra 38 Limar Arestas – Solange Monteiro o populismo econômico? – Samuel Pessôa Capa – Agronegócio Entrevista 40 Arrumar a casa para garantir o futuro 14 Joisa Campanher Dutra – Solange Monteiro Solange Monteiro Macroeconomia Comércio Exterior 20 Acesso universal à água e ao esgotamento sanitário 54 Brasil na OCDE: esperanças e controvérsias até 2030: uma meta possível para o Brasil? Joisa Chico Santos Dutra, Juliana Jerônimo Smiderle e Fernanda Oliveira 64 Volta dos superávits comerciais da indústria de 22 Os mecanismos de transmissão da política transformação? – Lia Baker Valls Pereira monetária – Fernando de Holanda Barbosa Índices 24 O impacto da política macro sobre as taxas de I Índices Econômicos lucro setoriais – Nelson Marconi X Conjuntura Estatística

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 5 Mais que Digital Banco do Brasil. O maior parceiro do agronegócio. Porque o campo alimenta e faz o país crescer. Quem é do campo sabe a importância de ter um banco parceiro, com soluções sob medida para todas as etapas da produção. Quem é da cidade reconhece a importância do agronegócio para o país.

É por isso que o Banco do Brasil é o maior apoiador do produtor rural.

bb.com.br/agronegocios Mais que Digital Banco do Brasil. O maior parceiro do agronegócio. Porque o campo alimenta e faz o país crescer. Quem é do campo sabe a importância de ter um banco parceiro, com soluções sob medida para todas as etapas da produção. Quem é da cidade reconhece a importância do agronegócio para o país.

É por isso que o Banco do Brasil é o maior apoiador do produtor rural.

bb.com.br/agronegocios CARTA DA CONJUNTURA Possibilidade de juros reais neutros mais baixos descortina novos cenários fiscais

Luiz Guilherme Schymura Pesquisador da FGV IBRE e doutor em economia pela FGV EPGE

Desde 2015, o Brasil vive sob o sig- a retomada, espera-se que seja recu- no de uma crise fiscal latente, que se perada parcela do que se perdeu em interpõe entre o momento presen- termos de resultado primário (e já há te e uma trajetória de crescimento indicações do início deste processo). sustentável de médio e longo prazo. Contudo, ficou claro nos últimos No final de 2015 e início de 2016, o anos que o arcabouço institucional quadro se tornou agudo, desestabili- por trás das despesas obrigatórias zando preços fundamentais da eco- ou rígidas da União condiciona um nomia, como câmbio e juros. De lá aumento do gasto bem acima do PIB para cá, os mercados se acalmaram em condições normais de temperatu- e a economia recentemente retomou ra e pressão. A receita tributária, por o crescimento. Ainda assim, há pra- sua vez, também cresceu acima do ticamente um consenso de que, sem produto durante o boom de commo- equacionamento do desequilíbrio dities, camuflando o desequilíbrio fiscal estrutural, em algum momento estrutural, mas claramente esta fase o país novamente será engolfado por acabou. Assim, as estimativas dos colocaria a relação dívida/PIB numa crises econômicas. analistas apontam uma trajetória trilha descendente. O problema, po- A razão para esse diagnóstico é explosiva de crescimento da dívida rém, é que ninguém vê como a regra simples. Desde 2011, o resultado bruta como percentual do PIB, que possa ser mantida nos próximos anos primário do setor público consolida- já saiu de 51% em 2011 para 75% sem mudanças drásticas nos gastos do caiu 4,6 pontos percentuais (p.p.) em fevereiro de 2018. As estimativas obrigatórios e rígidos, das quais, por do PIB, de superávit de 2,94% em são de que siga crescendo, se drásti- enquanto, não há nem sinais. Tudo 2011 para déficit de 1,69% em 2017 cas medidas fiscais não forem toma- somado, a visão predominante é de (o déficit atingiu 2,49% do PIB em das, e de que se aproxime de 90% do que há uma bomba-relógio fiscal 2016). A grande recessão de 2014 a PIB em alguns anos. ticando enquanto a economia bra- 2016 é, naturalmente, responsável A emenda do teto dos gastos em sileira prossegue funcionando num por parte dessa deterioração. Com tese interromperia essa expansão e ambiente de frágil estabilidade.

8 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CARTA DA CONJUNTURA

Existe, entretanto, uma variável Quão estimuladora – e, portan- da equação fiscal que pode estar mu- to, quão abaixo do neutro estão os dando de forma significativa, e para atuais juros – já é uma questão mais melhor: os juros reais da economia aberta ao debate. É fato que a eco- brasileira, que impactam o custo fi- nomia brasileira está em recupera- nanceiro da rolagem da dívida públi- ção, e que a política monetária é um ca. Como se sabe, o Brasil há décadas dos fatores deste processo. Por outro exibe taxas reais de juros extrema- lado, a retomada ainda é muito gra- mente elevadas, quando se tomam dual, e alguns cálculos indicam que comparações internacionais. A cha- a liberação do FGTS no ano passado mada taxa real neutra é uma variável respondeu por uma parcela signifi- não observável, mas ao longo dos úl- cativa do estímulo à demanda. Será timos anos trabalhou-se com a ideia possível que o nível atual dos juros de que ela estaria em pelo menos algo como 5% a 6% ao ano. Num cálculo extremamente sim- plificado, juros reais de 6% sobre A chamada taxa real uma dívida de 70% do PIB geram uma despesa de 4,2% do PIB. Su- neutra é uma variável pondo-se que o PIB cresça 2% ao ano em termos potenciais, é preciso não observável, mas ao um superávit primário de pelo menos longo dos últimos anos 2% do PIB, aproximadamente, para estabilizar a dívida como proporção trabalhou-se com a ideia do produto. Como hoje se projeta um déficit primário em torno de 2% de que seria de pelo menos do PIB para 2018, há uma distância de 4 p.p. do produto a percorrer, en- algo como 5% a 6% ao ano tre cortes de gastos e aumentos de receitas, para frear a dinâmica ex- plosiva da dívida pública. A novidade recente é que se en- reais esteja menos distante do neutro xerga a possibilidade de uma queda do que crê a análise convencional? dos juros reais neutros no Brasil, que Esta é uma questão em aberto. pode já estar ocorrendo. Hoje, os O fato é que, se, num exercício juros reais medidos pelas operações hipotético, se supuser que os juros de swap de um ano encontram-se em reais neutros brasileiros estejam torno de 2,5%, mas há consenso de se aproximando do nível de 3% a que este nível está claramente abaixo 3,5%, por exemplo, a equação da do patamar neutro. Assim, a econo- sustentabilidade da dívida pública mia está sendo estimulada pela polí- muda de figura. Neste caso, talvez tica monetária, com a Selic já tendo um pequeno superávit primário, sido reduzida a 6,5%. algo de até 1% do PIB, já seja sufi-

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 9 CARTA DA CONJUNTURA

ciente para estancar o crescimento juros neutros no Brasil. Uma ques- da relação dívida/PIB. Neste cená- tão associada a essa é do hiato do rio, o “gap” de resultado primário produto. Se a variável, também não poderia estar em torno de 2% do observável, estiver no extremo ne- PIB, ou pouco mais, algo que pode- gativo das projeções, de 8% do PIB, ria ser preenchido quase que plena- os juros abaixo do nível neutro po- mente pelo simples processo de re- dem durar mais tempo, comparado cuperação cíclica da economia e da à hipótese de que o hiato esteja mais receita tributária. perto de 3%, como quer a corrente Bráulio Borges, pesquisador asso- de analistas na outra ponta do inter- ciado da FGV IBRE, fez cálculos que valo de estimativas. Isto, evidente- indicam que o resultado primário que mente, também impacta a dinâmica estabiliza a relação entre a dívida bru- da dívida pública. Porém, enquan- to a diferença do hiato do produto num ou no outro extremo do inter- valo de projeções é a de garantir um Se, em exercício hipotético, ou dois anos a mais (ou a menos) de juros abaixo do nível neutro, juros se supuser que juros reais neutros mais baixos podem produzir uma redução do custo fi- reais neutros do Brasil nanceiro de rolar a dívida pública vão para 3% a 3,5%, por muito mais duradoura. Mas quais fatores poderiam es- exemplo, a equação da tar levando a uma redução de longa duração, ou até permanente, dos ju- sustentabilidade da dívida ros reais neutros no Brasil? José Jú- lio Senna, pesquisador associado da muda de figura FGV IBRE, destaca o cenário inter- nacional de baixos juros e elevado apetite por risco, que levou a uma queda generalizada de prêmios de ta do governo geral e o PIB guarda risco de países emergentes, incluin- uma relação aproximada de um para do o Brasil. Ele nota adicionalmente um com o diferencial, em p.p. do PIB, que os salários e a inflação têm rea- entre a Selic real ex-post (deflaciona- gido pouco à queda do desemprego da pelo IPCA) e o crescimento em vo- no mundo desenvolvido, o que pode lume do PIB. Assim, para um mesmo estar ligado a fatores tecnológicos e crescimento do PIB, a redução em 1 às expectativas de inflação muito p.p. do PIB da Selic real significa uma baixas (inferiores às metas dos prin- redução do superávit primário estabi- cipais bancos centrais). Sem infla- lizador igualmente de 1 p.p. do PIB. ção, não há razão para que os juros Existe, evidentemente, enorme internacionais subam de forma mais incerteza quanto ao nível exato dos firme. Avanço tecnológico e expec-

10 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CARTA DA CONJUNTURA

tativas inflacionárias reduzidas são vancagem e restrições ao crédito tan- mudar para melhor o funcionamen- fenômenos que podem ser bastante to do lado da demanda de famílias e to da economia nacional, liberando duradouros – consequentemente, a empresas quanto por parte da oferta potencialidades e proporcionando pressão baixista nos prêmios de ris- dos bancos. O mix fiscal, parafiscal um ritmo de crescimento mais for- co dos emergentes também pode ser e de crédito, portanto, tornou-se te – o que também é positivo para a de longa duração, condizente com contracionista a partir de 2015, e relação dívida/PIB, numa espécie de juros reais neutros brasileiros em pode condicionar uma fase relativa- círculo virtuoso. níveis mais baixos por prazo bas- mente longa de juros reais neutros É aconselhável temperar esse tante dilatado. mais baixos – imaginando-se que otimismo, entretanto, por diversas Samuel Pessôa, pesquisador as- vai demorar até que haja condições razões. Tanto Senna quanto Pessôa sociado da FGV IBRE, destaca um para uma política fiscal e parafiscal notam que os juros reais de prazo fator interno que também pode expansionista e um novo boom de muito longo das NTN-Bs resistem comprimir os juros reais neutros crédito privado. em níveis em torno de 5%, num sinal por bastante tempo. A partir do iní- de que os mercados ainda esperam cio da década passada, o Brasil vi- que a bomba-relógio do desequilí- veu um longo período em que fato- brio fiscal estrutural seja desativada res fiscais, parafiscais e creditícios Combinação de fatores antes de retirar do cenário o risco criaram uma permanente pressão de solvência do Brasil. Fernando expansionista na economia brasi- externos e internos Veloso, pesquisador da FGV IBRE, leira, contrabalançada por juros é particularmente cético quanto a reais altos para segurar a inflação. pressionando juros reais contar com juros reais neutros bai- De um lado, o arcabouço institu- neutros no médio prazo xos como uma variável provável nos cional e o bom momento econômi- anos à frente. Para ele, é provável co faziam o gasto público crescer levaria à visão mais que o prosseguimento da expansão aceleradamente acima do PIB. Por global sincronizada reative pressões outro, reformas nos instrumentos benigna das perspectivas inflacionárias e nos juros nos países de garantias no primeiro manda- ricos, assim como as incertezas elei- to de Lula deflagraram um boom econômicas brasileiras torais no Brasil podem recolocar no de crédito privado. Posteriormen- tabuleiro pressões sobre o risco país te, o governo conduziu uma forte e a taxa de câmbio. Nesta visão, expansão de crédito pelo BNDES e contar com o bônus de juros reais outros bancos públicos. A combinação entre fatores exter- neutros substancialmente mais bai- A partir da grande recessão de nos e internos pressionando os juros xos é um risco que não vale a pena 2014 a 2016, o regime descrito aci- reais neutros no médio prazo, descri- correr quando se pensa numa estra- ma mudou radicalmente. A política ta acima, leva a uma visão mais be- tégia de política econômica para o fiscal e parafiscal tornou-se necessa- nigna das perspectivas econômicas Brasil de hoje. riamente contracionista, devido ao brasileiras. Há mais tempo para re- retorno de sérios problemas de sol- constituir o equilíbrio fiscal de longo vência relativos à trajetória da dívi- prazo, ao mesmo tempo em que esta O texto é resultado de reflexões apresentadas da pública como proporção do PIB. tarefa pode ser mais fácil e exigir em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento O boom de crédito, por outro lado, reformas menos drásticas. Ao mes- traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa foi eliminado pela recessão, sendo mo tempo, juros reais neutros mais feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a con- substituído por uma fase de desala- baixos de forma duradoura podem fecção deste artigo.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 11 PONTO DE VISTA

Será que o Brasil está finalmente vacinado contra o populismo econômico?

Samuel Pessôa Pesquisador associado da FGV IBRE

Como já discutimos mais de uma vez zados que foram seguidamente vota- neste espaço, a profunda crise que se dos e apoiados pelo sistema político, abateu sobre a economia brasileira a como, por exemplo, o aumento real partir do segundo trimestre de 2014 do salário mínimo. Ou seja, a expan- – a taxa de investimento iniciou seu são do gasto público a uma veloci- processo de queda no quarto trimes- dade superior ao crescimento do PIB tre de 2013 –, e que acabou por se resultou do funcionamento normal tornar a segunda maior perda de PIB de nossa economia. per capita e a mais longa crise dos Os problemas demoraram a apa- últimos 120 anos, resultou do esgo- recer porquê, entre 1999 e 2011, o tamento de duas dinâmicas. crescimento da receita de impostos e pontos percentuais (p.p.) do PIB, O contrato social da redemo- contribuições acompanhou a eleva- ou 0,83 p.p. por ano. cratização – o desejo da sociedade, ção do gasto e, portanto, também se A deterioração fiscal promovida expresso no texto constitucional de manteve permanentemente acima da pelo nosso contrato social da rede- 1988 e que tem sido repactuado e expansão da economia. mocratização foi agravada por outra referendado em todos os pleitos elei- Evidentemente os impostos cres- agenda. Esta não era uma agenda da torais desde então, de construir no cerem além da economia não é uma sociedade, mas sim dos intelectuais Brasil um Estado de bem-estar social situação que se possa sustentar in- e economistas petistas. Tratou-se da do padrão europeu continental – definidamente. Quando, a partir de agenda intervencionista ou nacional- produziu uma profunda crise fiscal. 2012, o crescimento dos impostos desenvolvimentista. O gasto público cresceu a taxas e contribuições passou a acompa- O intervencionismo é fruto da acima da expansão da economia de nhar a expansão do PIB, começa- interpretação dos economistas 1992 até 2014, saindo de 11% do mos a cavar nosso buraco fiscal. heterodoxos brasileiros de que o PIB para quase 20%. Esse crescimen- Entre 2008 e 2014, o país saiu de desenvolvimento e a superação da to espetacular da despesa pública re- um superávit primário de 3,5% do armadilha da renda média pelos sultou de diversas medidas, inclusive PIB para um déficit de 1,5% PIB. países de crescimento elevado do de dispositivos não constitucionali- Fantástica piora fiscal de cinco Leste da Ásia devem-se à inter-

12 Conjuntura Econômica | Abril 2018 PONTO DE VISTA

venção do Estado na economia. A política fiscal. Esse otimismo tirava gências que os economistas e inte- coluna pensa diferente. Para nós, a da equipe econômica o sentido de lectuais petistas têm com os demais excelente performance econômica urgência em combater a deteriora- profissionais da ciência econômica dessas sociedades deve-se ao ótimo ção fiscal quase monótona que ocor- em relação à natureza do funcio- desempenho educacional e às eleva- reu entre 2008 e 2014, com exceção namento da economia. Os ingleses díssimas taxas domésticas de pou- do ajuste fiscal promovido por Dil- diriam que são diferenças de Eco- pança. Este segundo fator é fruto ma em 2011. nomics. Não se trata de diferentes da avareza do Estado de bem-estar O segundo é o entendimento de que preferências sobre a forma de or- social daquelas nações. o desenvolvimento dos tigres asiáticos ganizar a produção e a distribuição Em função do entendimento que resultou do intervencionismo. da riqueza. Ou seja, em princípio as os intelectuais e economistas petistas A questão é saber: houve algum diferenças de pensamento ocorrem tinham (ou têm) da experiência dos aprendizado? Será que os economis- sobre temas em que há um lado cer- tigres asiáticos, todo um pacote de tas e intelectuais petistas e, principal- to e um lado errado. medidas foi por aqui tentado, princi- O nível de punição política do PT palmente após a mudança de guarda pelo desastre econômico associado no Ministério da Fazenda, com a saí- à nova matriz econômica foi muito da de e a chegada de Será que os economistas, elevado. Adicionalmente, há o reco- . Referimo-nos a ini- nhecimento de diversos economistas ciativas como: recriação da indústria intelectuais petistas petistas da necessidade da Reforma naval; alteração do marco regula- da Previdência. Nossa leitura do de- tório do petróleo; requerimentos de e os políticos do PT bate público recente é que deve ter conteúdo nacional; capitalização do havido algum grau de aprendizado BNDES em mais de R$ 450 bilhões; saem da crise com um pelos economistas e intelectuais pe- alteração do marco regulatório do tistas. Certamente o petismo não setor elétrico etc. entendimento diverso do saiu ganhando com a desorganiza- As medidas elencadas no pará- funcionamento de uma ção que foi promovida pela nova grafo anterior geraram custos para matriz na economia. o Tesouro Nacional, muitas vezes economia de mercado? Talvez tenha se reduzido a pres- escondidos na forma de equalização são por pautas populistas no pro- de taxas de juros – isto é, subsídio a cesso eleitoral de 2018. Neste caso, empréstimos não explicitados no or- o debate da campanha será mais re- çamento. Dessa forma, foram políti- mente, os políticos do PT saem da alista e racional do que o ocorrido cas que agravaram a piora fiscal que crise com um entendimento diverso nas últimas eleições presidenciais, já estava contratada pelo padrão de do funcionamento de uma economia especialmente na de 2014, em que escolha social de nossa sociedade. de mercado? o nível de mistificação econômica Assim, afirmar que a É importante notarmos que as da candidatura vencedora foi avas- formulação da política econômica divergências de que tratamos – o salador. Uma campanha melhor pela heterodoxia tinha dois enten- efeito da política fiscal sobre o cres- certamente é um prenúncio de um dimentos sobre o funcionamento de cimento e os fatores que condicio- governo mais capaz de lidar com os uma economia de mercado que agra- naram o desenvolvimento e a supe- imensos desafios brasileiros. Será varam a crise. O primeiro é um enor- ração da armadilha da renda média uma ótima notícia para todos se o me otimismo em relação ao impacto pelos países asiáticos – são de na- aprendizado discutido por esta co- sobre o crescimento econômico da tureza positiva. Ou seja, são diver- luna tiver efetivamente ocorrido.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 13 ENTREVISTA

Foto: Andre Telles

“Reforma ainda não permite identificar uma nova governança para o setor elétrico”

Joisa Campanher Dutra Conjuntura Econômica — Abril marca a saída do ministro de Minas e Diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura (FGV Ceri) Energia, Fernando Bezerra Coelho Fi- lho, em meio a dois processos impor- tantes: a privatização da Eletrobras e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro a reforma do setor elétrico. Considera que esses projetos correm risco? O setor elétrico brasileiro vive um importante processo de transição de modelo que São temas efetivamente importantes, pretende enterrar o mau momento vivido desde 2012, quando a soma de ativismo aos quais acrescentaria o novo marco regulatório e hidrologia desfavorável deu início a um acúmulo de desequilíbrios opera- regulatório do gás natural. O ministro cionais e prejuízos bilionários para agentes dessa indústria. Em entrevista à Conjuntura de Minas e Energia foi uma grata sur- Econômica, Joisa Dutra, diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura (FGV Ceri), presa, pois foi capaz de arregimentar analisa a estratégia do atual governo para ordenar o setor e os possíveis impactos da um conjunto de pessoas respeitadas. saída do ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho, em abril, para disputar eleições. Paulo Pedrosa (até março, secretário Nessa conversa, Joisa também alerta que, apesar de necessária, a reforma do setor elétri- executivo do MME), Luis Barroso co poderá penalizar o consumidor ao focar na garantia de capacidade em detrimento (presidente da Empresa de Pesquisa do processo de formação de preços. “Sem tratar da mecânica de funcionamento, do Energética – EPE), já tínhamos o Rui processo da formação de preço, continuaremos empilhando coisas com impacto seve- Altieri à frente da Câmara de Comer- ro sobre o consumidor, seja ele residencial, comercial ou industrial, com prejuízo para a cialização de Energia Elétrica (CCEE) economia e para a competitividade”, conclui. e o Luis Barata como diretor-geral do

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Operador Nacional do Sistema (ONS). investimentos supercolateralizados e bustíveis fósseis. Criou-se um encargo Somando Pedro Parente (presidente com uma alocação de risco ainda in- setorial, a Conta de Desenvolvimento da ) e Wilson Ferreira (pre- cipiente, fruto da própria arquitetura Energético (CDE), e buscou-se a ex- sidente da Eletrobras), é o dream team do setor – não só do ponto de vista pansão das energias renováveis. Isso que muita gente pediria se encontrasse de regulação setorial, mas de seguros, tudo vai gerando custos, que em 2012 um gênio da lâmpada. Wilson e Pedro de mercado de capitais. Então esses são percebidos pelo consumidor in- foram escolhas felizes porque não são elementos todos caracterizam um am- dustrial como excessivamente onero- apenas conhecedores de suas áreas, biente em que a percepção de risco sos. Nesse momento, nossa economia mas executivos muito testados. Pedro ainda é muito grande. já sofria os reflexos da crise econô- Parente esteve à frente da Câmara de Com a expansão de investimen- mica mundial de 2008/09 e os efeitos Gestão da Crise de Energia no raciona- tos em geração, transmissão e distri- do barateamento da energia com a mento de 2001/2002, e Wilson condu- buição, conseguimos universalizar o exploração do shale gas nos Estados ziu a CPFL, onde fez transformações, acesso à eletricidade. Hoje mais de Unidos, pressionando nossa indústria, atuando no centro da carga da ativi- 98% da população conta com acesso que nesse momento se tornou um dos dade econômica do país, investindo grandes vetores por pressão de au- em energia renovável, testando novas mento da competitividade. tecnologias. Algumas organizações Como resposta a essa pressão, a públicas são como submarinos, têm O BNDES, que até há presidente oferece aos uma inércia que precisa se enfrentar e agentes a possibilidade de renovarem as existe um conjunto muito pequeno de suas concessões antecipadamente, ade- pessoas capazes de dar a guinada que pouco foi pilar do rindo a novas regras. E com a MP 579, essas empresas mereciam. que depois vira lei, se estabelece um ob- modelo de expansão, jetivo muito claro de promover ganhos No caso do setor elétrico, essa ten- de competitividade. Nesse momento, o dência à inércia se soma a um qua- agora tem uma nova Brasil começa a enfrentar dificuldades dro financeiro grave, não é? na operação do sistema, começa a ter Vale contextualizar o cenário que essa política operacional. A que acionar geração termelétrica mais equipe encontrou em 2016 e suas ra- cara não contratada, que acabou por zões. A partir de 2004 o setor elétri- forma como vai se inserir produzir um desarranjo que o governo, co fez uma reforma importante que comprometido com a questão eleito- permitiu expandir o sistema atraindo será diferente ral, não contorna adequadamente. Aí investimentos em geração de grande começa a fase que chamamos de ativis- vulto, num primeiro momento não mo regulatório, em que foram edita- necessariamente renováveis, mas de- das mais de 50 medidas, leis, decretos, pois em grandes empreendimentos MPs, portarias. O resultado, em 2016, hidrelétricos distantes dos centros de à energia elétrica, ainda que tenha di- é um quadro de fragilidade econômi- cargas e, por questões ambientais, sem ficuldade de pagar por ela. Mas come- co-financeira, altamente judicializado, grande capacidade de reserva, mas a ça a se criar um conjunto de impactos com empresas distribuidoras tendo preços competitivos. E assim se viabi- fruto das políticas distributivas. Sem que arcar com compromissos frutos de lizou a capacidade de geração para os juízo de mérito, a política de universa- empréstimos contraídos após 2012 e consumidores atendidos pelas distri- lização quis abarcar toda a população um quadro de afluências mais irregular buidoras, no ambiente regulado, que do país com o mesmo custo de gera- que encareceu a geração, entre uma sé- representam mais de 75% do consu- ção para quem está no sistema inter- rie de dificuldades. mo de energia no país. Um dos susten- ligado ou no sistema isolado. Mas o táculos dessa expansão foi o BNDES, custo de geração no sistema isolado é Como avalia a atuação inicial desse que em um determinado modelo tinha mais alto, pois é alimentado por com- dream team?

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Para que os agentes que promoveram tas lacunas, elementos que estão pen- dito é que a contratação de lastro se a judicialização do sistema renuncias- dentes de regulamentação posterior, dará conforme critérios estabelecidos, sem a esse direito, era preciso ter clare- e estamos tratando de uma reforma seja pelo MME, seja pela própria za de qual proposta teriam em troca. E que vai mudar de maneira importante Aneel, e os recursos arrecadados en- o problema foi que a nova equipe não o que é a estrutura de contratação do tre todos os agentes serão alocados conseguiu apresentar uma alternativa setor. Ela está propondo o estabeleci- numa instituição centralizadora – que para resolver o problema emergen- mento do que chamamos de um mer- num primeiro momento poderia ser cial. A proposta de reforma do setor cado de capacidade, que no projeto é a CCEE. Aqui no Ceri, consideramos elétrico só aparece numa minuta para identificado na divisão de contratação que há vários elementos dessa contra- consulta pública em julho de 2017, já de lastro e energia. Além disso, o BN- tação de capacidade que não estão es- como proposta legislativa, dando aos DES, que até há pouco foi pilar desse tabelecidos, e que não é possível tratá- agentes 30 dias para contribuir. Para processo de expansão, agora tem uma los separadamente. muita gente aquilo foi uma surpresa, nova política operacional. Não é que Veja, a reforma é necessária, pois todo mundo se mobilizou, somando ele não tenha recursos, mas a forma aponta a vários caminhos impor- centenas de contribuições. O problema tantes, como equacionar o risco hi- é que, quando termina esse prazo de drológico, revisar subsídios – fator consulta, sai a proposta de privatiza- fundamental, já que as políticas distri- ção da Eletrobras, e depois a proposta A recessão nos deu butivas e os encargos criados no setor para o gás. E agora o ministro sairá na tiveram importante papel no desequi- primeira quinzena de abril deixando líbrio que levou a 2012. Mas ela ainda uma série de dúvidas, sendo as mais um tempo, mas este não não permite identificar com clareza o imediatas sobre quem vai substituí-lo que é uma nova governança do setor, e qual a efetiva capacidade de se levar serviu para afastar e governança é um tema fundamental adiante esses projetos. principalmente em países com insufi- nossas preocupações, ciente capacidade institucional. Qual a sua opinião? Concretamente, existe uma dificulda- pois três meses atrás O que é sensato priorizar enquanto de muito clara. Um dos méritos desse a reforma do setor elétrico ainda processo é que em nenhum dos casos estávamos tensos se ia está em discussão? o governo entrou com medida provi- Existem alguns pontos que de fato são sória. Por outro lado, se defendemos o chover ou não emergenciais. A questão da alocação diálogo, dependemos da disposição do do risco hidrológico que hoje se dá Congresso em apreciar essas propostas, através do Mecanismo de Realocação e estamos às vésperas de eleições. Mas de Energia (MRE) precisa ser revista isso deverá, no máximo, desacelerar o imediatamente, porque ela funcionou processo, não o reverter. Do ponto de como vai se inserir será diferente, e num contexto de menor incerteza em vista da Eletrobras, fazer as privatiza- isso tem consequências. É claro que relação ao regime de afluência. O go- ções será muito difícil no horizonte de gostaríamos que esse financiamento de verno tem, dentro de sua proposta, tempo que temos. É desafiador, porque longo prazo do setor passasse a incluir uma tentativa de promover ajustes, já sequer o Tribunal de Contas da União mais agentes já estabelecidos, do Brasil fez uma tentativa, tem negociado com (TCU) se manifestou em relação aos e de fora do país. Mas esses outros fi- agentes na extensão dos contratos de pré-editais das distribuidoras. No caso nanciadores exigem uma estrutura de concessão. Isso demanda introduzir das demais reformas, minha opinião é alocação de riscos para garantir taxas um pouco mais de disciplina econô- que a proposta para o setor de gás é de retorno razoáveis, uma arquitetura mica para pensar o desenho desse muito mais madura do que a do setor institucional diferente que não está pre- sistema, quer do ponto de vista da ca- elétrico. A do setor elétrico tem mui- vista no projeto de reforma. O que está pacidade, que o governo identificou

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através dessa forma de separação de ser feita pelo regulador do sistema tar da mecânica de funcionamento, do lastro e energia, quer do desenvolvi- brasileiro de pagamentos, seja a CVM, processo da formação de preço, conti- mento de um mercado, que é o que ou seja o BC. A proposta não diz isso. nuaremos empilhando coisas com im- aparece na proposta agora. Toda a desarticulação que temos hoje pacto severo sobre o consumidor, seja Atualmente, no Brasil, não se usa de impedimentos de pagamentos que ele residencial, comercial ou industrial, o mercado para contratação de ener- estão refletidos na CCEE por conta com prejuízo para economia e para a gia elétrica. Os distribuidores que da judicialização não ocorreria num competitividade. Ainda mais se a gente atendem à maior parte da carga con- sistema que fosse regulado de acordo pensar que temos um horizonte de pre- tratam no longo prazo, e o mercado como defendemos. Com a reforma, o ocupação quanto à segurança e confia- livre faz contratação bilateral em governo está buscando estabelecer essa bilidade de suprimento. A recessão nos mercados. Então, não temos um mer- competência formal para a Aneel, mas deu um tempo, mas este não serviu cado transparente, e o atual processo isso não vai garantir à agência capa- para afastar nossas preocupações, pois de formação de preços não consegue cidade efetiva de entender esse ­outro três meses atrás estávamos tensos se ia responder nem produzir incentivos universo. Isso é um equívoco. chover ou não, se isso impactaria a in- corretos, gerar bons preços para os flação. Isso jamais poderia estar acon- consumidores, e nem gerar condições tecendo. Então como é que, mesmo para o financiamento de longo prazo. com interessados em investir, com con- Ou seja, garante o funcionamento da Hoje as tarifas de tratação de longo prazo, ainda ficamos indústria, mas, do ponto de vista da preocupados com segurança, confiabi- sociedade, deixa a desejar. lidade de suprimento, e ainda por cima Aqui vale ressaltar um detalhe: eletricidade são muito com preço alto? É óbvio que tem um quem fez reestruturação de mercado problema aí, que precisa ser enfrenta- no mundo caminhou estabelecendo caras, penalizam a do, e ainda não está dito como. primeiro o mercado de energia, e depois o mercado de capacidade. O competitividade da E a iniciativa atual de revisão, como Brasil está querendo fazer uma re- disse, trata do processo de forma estruturação pelo caminho inverso, indústria, e temos um invertida? com uma contratação de capacidade Na minha forma de ver, sim. E sabe sem ter solucionado o problema do grande nível de perdas qual a consequência dessa inversão? processo de formação de preço atra- A gente continuar pagando sem ter vés do mercado de energia. O que se não técnicas os sinais corretos, algo perverso para está fazendo na reforma é aumentar o consumidor. Esse é que é o ponto. o que chamam de granularidade, está O consumidor está subrepresentado dizendo: eu terei preços determina- nessas discussões, e isso se reflete no dos com maior frequência e isso é im- preço, na inflação. portante porque as novas fontes têm Para o consumidor, seja por falta de intervalos de resposta mais rápidos. chuva, seja por mudança de mode- Como destacou há pouco, se olhar- Então preciso de preços que acompa- lo, questões relacionadas à energia mos apenas para o fato de que os nhem isso. Mas o processo de forma- preocupam do ponto de vista infla- leilões de energia (geração e trans- ção de preços não está mudando. cionário. Considera que essa revisão missão) atraíram quase R$ 40 bi- Outro ponto dessa proposta im- poderá pesar no bolso? lhões em investimento no ano pas- portante do ponto de vista do fi- Pela natureza da nossa atuação aqui sado, a sensação é de um ambiente nanciamento é que ela prevê que as no Ceri, a gente já tem um viés na for- de negócios muito melhor, não? ­contratações em mercados organiza- ma de pensar, de uma perspectiva mais Em primeiro lugar, leilão de geração dos sejam reguladas pela Aneel, quan- estrutural. Toda a nossa conversa até não dá vazio, sempre há vários inves- do defendemos que a regulação deve aqui evidencia o fato de que, sem tra- tidores cadastrados a dar uma oferta.

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Além disso, a energia renovável está A China efetivamente tem investido nição de investimentos em infraes- ficando mais barata no mundo, e na em infraestrutura ao redor do mundo, trutura no Brasil. Qual a orientação América Latina há vários exemplos então um termômetro de adequação dada quanto ao setor elétrico? de contratação de energias renováveis desse ambiente seria nossa capacidade Firmamos um contrato em 2017 a preços muito competitivos, como de atrair investidores diversificados. com o banco e temos colaborado Chile, México e Argentina. Quando se Eu diria que, nesse sentido, temos na discussão de sua estratégia de olha ao longo das indústrias de infraes- conseguido fazê-lo A Enel, por exem- atuação para o período 2019-23. trutura, é inegável que o setor elétrico plo, comprou o controle da Celg, Começamos com energia, depois fi- goza de uma posição privilegiada na concessionária de distribuição em zemos análises dos setores de trans- arquitetura de alocação de risco, ain- Goiás, e tem feito vários investimen- portes e saneamento. Em linhas da que aqui não seja suficientemente tos em energia solar; a Engie investiu gerais, revisitamos o histórico do boa para equacionar o financiamento na hidrelétrica de Jirau; a Iberdrola setor, mostrando como ele se ex- de longo prazo. A proposta que está na Elektro... São evidências de inves- pandiu às custas da competitivida- sendo trazida pelo projeto de reforma tidores internacionais sendo atraídos, de da economia, destacamos que é implica arrecadar recursos, canalizá- um grande veículo de arrecadação los e depois levar para os agentes. É de impostos, seja no âmbito federal quase uma tentativa de solucionar essa quanto estadual, e suas implicações. talvez menor participação do BNDES. Nossos preços são Mas uma das questões que perpas- O problema é que isso não necessa- sa todas as discussões que temos riamente nos diz se o processo de for- feito é a necessidade de projetar a mação de preço vai melhorar. Hoje as tão elevados que demanda futura. Quando falamos tarifas de eletricidade são muito caras, do período 2019-23, esse horizonte penalizam a competitividade da indús- criam uma oportunidade coincide com o da reforma do se- tria, e temos um grande nível de perdas tor elétrico, e também da transição não técnicas. Pode-se alegar que con- para o consumidor se energética que está ocorrendo em seguimos atrair investidores porque te- âmbito mundial. No caso do Bra- mos contratos em energia renovável de tornar um “prosumidor”, sil, a mudança parte do decréscimo muito longo prazo, inclusive compara- da participação hidrelétrica na ge- tivamente à experiência internacional, que também ração de eletricidade. Agora esta- num mercado que já está testado, que mos chegando a 20 GW de energia já faz leilões há muito tempo. Do pon- produz energia eólica, estamos prestes a começar to de vista de ativo de infraestrutura, uma onda de solar no país que em é um bom investimento. Mas a gente nível mundial já está florescendo ainda não conseguiu produzir uma ar- bastante, fruto do baratea­mento quitetura que nos dê bons resultados da tecnologia. Poderemos, breve- do ponto de vista de financiamento e investidores tradicionais, que têm mente, assistir a uma expansão da para além desse ambiente. histórico no mercado internacional de micro e minigeração distribuída, a energia. E em um momento de revisão partir de renováveis. Nossos preços A dominância de investidores chine- de estratégia em que o setor de energia são tão elevados que criam uma ses pode ser um indicativo de que o passa por uma transformação, eles fa- oportunidade para o consumidor interesse pelo mercado brasileiro se zem investimentos greenfield no Bra- se tornar um “prosumidor”, que concentra em jogadores menos pre- sil – diferentemente dos chineses, que também produz energia. Precisa- ocupados com a percepção de risco? preferem ativos já implantados. mos pensar em uma reforma que Tudo o que tem se dito é que gostaría- consiga coerência nos incentivos mos de contar com investimentos que Atualmente o Ceri assessora o BID, que os agentes enfrentam. Porquê, trouxessem uma certa diversificação. provendo informações para a defi- mesmo que comecemos a assistir a

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uma participação crescente de con- seja ele convencional ou não conven- revisar o papel do Estado na década sumidores com capacidade de gera- cional – fronteira que ainda não en- de 90, sendo o setor de telecom o ção, as evidências em nível mundial frentamos. E temos a possibilidade de primeiro a ganhar atenção, pois já indicam que na esmagadora maio- importação através dos terminais de contava com uma inovação tecnoló- ria dos casos os consumidores não GNL. É fundamental entender o que gica em curso. O Brasil se engajou se desconectam do grid. Então esse será esse papel do gás para conseguir- nessa onda, e depois da privatiza- grid tem um papel de backup e está mos harmonizar essa disponibilidade. ção da Telebras começa a investir provendo serviços que precisam Não é apenas a demanda do setor elé- e promover a universalização do ser remunerados. trico, mas também a industrial, que acesso à telecomunicação. A admi- A transformação que está ocor- tem importante papel para consumi- nistração do presidente Lula com rendo no setor elétrico está apon- dores eletrointensivos. E tem muita Dilma Rousseff como ministra le- tando a uma maior flexibilidade. tecnologia disponível no mundo, já vantou outra rodada do programa Quando geramos mais eletricidade acessível no Brasil, que poderia aten- de universalização de energia elétri- a partir de fontes intermitentes, es- der a usuários em menor escala. ca, o Luz para Todos, colocando as tamos aumentando a variabilidade distribuidoras de eletricidade como na oferta. Então precisamos ter re- agentes do processo, mas a um cus- cursos do lado da demanda para to que hoje a gente está tendo que fazer frente a isso. Não dá para A recessão atingiu essa enfrentar. E agora temos outra fron- pensar que a gente tem uma de- teira muito clara, de promover aces- manda que não reage a preço. Por so universal ao saneamento. A gente isso entra essa questão de recursos indústria (de saneamento) tem uma parcela da população que distribuídos, eficiência energética recebe água conectada, mas temos – que será grande fonte de atração no momento em que ela um atraso muito grande na capaci- de investimento através de PPPs. dade de coletar o esgoto e tratá-lo. Um exemplo é o da iluminação começava a se mover. Isso ocorre num cenário que tem pública, com projetos de parceria muitas características importantes, público-privada estruturados com O pior que pode haver com uma população majoritaria- apoio de recursos internacionais, mente urbana, e um volume de per- que parece que agora vão decolar. em infraestrutura é o das muito grande. Com o lançamen- E o veículo elétrico, que é um tema to do PAC, em 2007, e logo o PAC2, fundamental para o Brasil, que po- stop and go observa-se um aumento da escala de tencialmente tem uma indústria de investimentos, mas estes levam tem- biocombustíveis capaz de desempe- po para maturar. E a recessão atin- nhar ou atender à parte das neces- giu essa indústria no momento em sidades do setor automotivo. que ela começava a se mover. Isso E aí também entra a importância E no setor de saneamento, quais as teve impacto perverso, pois o pior da reforma do setor de gás no Brasil. recomendações dadas ao BID? que pode haver em infraestrutura Quando inauguramos a participação Sempre tivemos no país a percepção é o stop and go. Na retomada des- privada no petróleo em 1997, tínha- de abundância de recursos hídri- ses investimentos, também precisa- mos a percepção de que o gás tinha cos como se o país fosse um gran- remos levar em conta que se trata uma participação marginal. Hoje, en- de depositário, mas hoje do ponto de indústrias em transformação em tretanto, o cenário é de mais deman- de vista econômico acho que temos nível mundial, e os marcos regulató- da e, potencialmente, mais oferta. Já clareza de que uma coisa é um país rios precisarão se adequar para isso, temos uma capacidade de produção ter recursos e outra é conseguir pro- refletindo esse momento de mudan- offshore, mas também temos poten- mover desenvolvimento. As indús- ças, com clareza para pactuar con- cial ainda desconhecido no onshore, trias de infraestrutura começaram a tratos com parceiros privados.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 19 MACROECONOMIA

Acesso universal à água e ao esgotamento sanitário até 2030: uma meta possível para o Brasil?

Joisa Dutra Juliana Jerônimo Smiderle Fernanda Oliveira Diretora da FGV CERI e Pesquisadora da FGV CERI Pesquisadora da FGV CERI doutora pela FGV EPGE

O Brasil sediou, entre os dias 18 e 23 de sua coleta (SNIS, 2016). Esse dé- de março, em Brasília, o 8o Fórum ficit aumenta ainda mais quando se Mundial da Água (WWF), principal avaliam individualmente os estados. evento internacional sobre o setor. No caso do Amapá, por exemplo, Os debates versam sobre os Obje- 64% da população não tem aces- tivos de Desenvolvimento Sustentá- so à água potável e, em Rondônia, vel (ODS), os quais fazem parte de 96% da população é excluída da um plano de ação para erradicação coleta de esgoto. Destaca-se que as da pobreza definido pela Organiza- áreas subnormais e as regiões menos ção das Nações Unidas (ONU) em desenvolvidas economicamente no 2015. Os 193 países membros da país são aquelas com maior déficit organização, incluindo o Brasil, se no acesso aos serviços. comprometeram a alcançar as me- Ainda, contrariamente ao preco- tas dos ODS até o ano de 2030.1 nizado na Política Nacional de Re- O Fórum trata principalmen- cursos Hídricos (Lei no 9.433/97) e te do ODS 6, que tem como uma no ODS 6, a água não está sendo de suas metas o acesso univer- utilizada de maneira racional. Com- sal e equitativo à água potável e prometem a sustentabilidade do se- ao saneamento adequado. Muito tor a alta perda de água na distribui- embora o país tenha assumido o ção – em média 38% no Brasil – e o compromisso, o contexto nacional baixo índice de tratamento de esgoto deixa os especialistas pouco oti- de financiamento de longo prazo e – apenas 41% do esgoto gerado é de mistas quanto a possibilidade de o alocação de risco. fato tratado. Brasil atingir estas metas em ape- Cerca de 17% da população bra- Para completar o desafio, há nas 12 anos. Para além do déficit sileira – 33 milhões – ainda carece de evidências de que os produtos de no acesso, a descrença é explicada acesso ao serviço de abastecimento crédito hoje disponibilizados para pela baixa eficiência na prestação de água potável. Quando o tema é investir na expansão da rede são do serviço e pela dificuldade na esgoto, 48% da população total – inadequados para as necessidades expansão, inclusive por problemas mais de 96 milhões – não se beneficia do setor. O diagnóstico inclui difi-

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culdade na elaboração de projetos ração dos investimentos e a sustenta- 2 (falta de um pipeline de projetos), e Cerca de 17% da bilidade financeira. percepção de risco elevado, fruto da Por fim, em âmbito nacional, não fragmentação e falta de harmoniza- se pode ignorar as ações existentes. ção no ambiente regulatório. Mesmo população – 33 milhões – A Fundação Nacional de Saúde (Fu- quando o financiamento ocorre, de nasa – Ministério da Saúde) distri- maneira geral, a execução das obras não recebe água potável. bui equipamentos para tratamento de saneamento é bastante morosa, de água, desenvolvidos pela própria mais longa que o próprio ciclo po- E 48% da população total entidade, para municípios de até 50 lítico. De acordo com pesquisa rea- mil habitantes. Tem-se, também, a lizada em 2016 pela FGV CERI, ao – mais de 96 milhões – não entrada em operação da transposi- analisar os contratos firmados entre ção do rio São Francisco, que levará os anos de 2007 e 2015 no âmbito tem acesso aos serviços água para o semiárido nordestino. do Programa Saneamento para To- O momento atual é palco de ini- dos do PAC, constatou-se que 66% de esgoto ciativas promissoras para o desen- do total de obras ainda não estavam volvimento do setor de saneamento concluídas cerca de nove anos após – principal desafio de infraestrutura o início de sua contratação.3 no Brasil. O Plano Nacional de Sa- O cenário é pouco otimista e os Boas iniciativas também podem neamento Básico (Plansab) está em investimentos realizados nas últimas ser encontradas na América Latina. processo de revisão. Espera-se que décadas – que não superam 0,5% do A Colômbia, que planeja o setor des- o diagnóstico realizado seja realista, PIB – são tidos como insuficientes de 2004, prevê o aumento do total de com soluções factíveis. Além disso, o para avançar diante da situação que esgoto tratado dos atuais 41% para governo federal, ciente dos desafios o país vive. Diante deste panorama, 68% em 2030. Para tanto, prevê- do setor, trabalha na elaboração de atingir a meta do ODS 6 se coloca se a construção de quatro estações um projeto de lei que visa diminuir a como um verdadeiro desafio para o de tratamento de esgotos (ETEs) e percepção de risco. Se o assunto for Brasil. O que é preciso fazer, então, a ampliação de outras duas. Já no bem tratado, tem o potencial de tra- para avançar? Peru, acesso a microcrédito permite zer maior estabilidade jurídica para o Durante o 8o Fórum Mundial da a pessoas de baixa renda construir setor, fortalecer a regulação e, conse- Água, lições internacionais foram instalações sanitárias dentro de suas quentemente, criar um ambiente atra- apresentadas para superar este de- habitações, garantindo, assim, o efe- tivo a investimentos. Não obstante safio, algumas incluindo soluções tivo acesso à água potável. todas essas medidas, o avanço no se- flexíveis para promover acesso a As iniciativas internacionais re- tor depende de uma política coerente, água e saneamento. Este é o caso portadas compartilham também de uma governança adequada, monito- da França, que conta com um setor vontade política e conscientização da ramento e conscientização social. de saneamento já em estágio ma- população acerca da essencialidade duro, embora ainda careça de ser- dos serviços. As discussões ocorridas viço universal de coleta de esgoto. em Brasília deixam claro que avanços 1Para mais detalhes, ver https://nacoesunidas. A fim de promover a expansão do no setor dependem do entendimento, org/pos2015/agenda2030/. acesso, algumas prefeituras france- por parte dos tomadores de decisão e 2Segundo o BNDES, no ano de 2017, apenas 1% sas substituíram a solução tradicio- da sociedade em geral, de que investi- dos recursos para financiamentos do banco em saneamento foram efetivamente investidos nal – construção de rede coletora mentos em água e saneamento geram – dos R$ 70 bilhões disponibilizados, cerca de – e se responsabilizaram pela im- externalidades positivas para toda a apenas R$ 760 milhões foram utilizados de fato. Fonte: comunicação oral no WWF. plantação e manutenção de fossas população. E ainda que se trate de 3 sépticas, serviço que passou a ser serviços públicos indispensáveis, deve Veja documento FGV CERI “Efetividade dos in- vestimentos em saneamento no Brasil” disponí- cobrado pelo poder público. ser garantida uma adequada remune- vel em ceri.fgv.br.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 21 MACROECONOMIA

Os mecanismos de transmissão da política monetária

Fernando de Holanda Barbosa Professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV EPGE)

Na reunião de 21 de março último, flação caiu de 10,67% em 2015, para uma maneira indolor de combate à o Copom fixou a taxa de juros Selic, 2,95% em 2017, isto é, uma redução inflação? Um fato estilizado das eco- do mercado interbancário em 6,5% de 7,72%. Conclusão: a redução de nomias de mercado é que os preços ao ano, a taxa mais baixa desde que cada 1% na taxa de inflação custou dos bens e serviços não são flexíveis, o regime de metas de inflação foi 0,85% na taxa de desemprego. como os preços das ações e de várias implantado em junho de 1999. A Muitos analistas acreditam que commodities. Este fenômeno é co- meta da taxa de inflação é de 4,5% a redução da taxa de juros não tem nhecido como inércia. Num mundo ao ano, com um intervalo de 3% a sido acompanhada por uma forte ex- com inércia, os preços não se ajus- 6%. Em 2014, a taxa de inflação pansão da economia. Para analisar tam imediatamente às mudanças na de 6,41% foi acima da meta. Des- esta questão é necessário compreen- política monetária. O resultado des- de o primeiro semestre de 2013 o der como funcionam os mecanismos te comportamento é o custo social Copom começou a aumentar a taxa de transmissão da política monetária. do combate à inflação. de juros, que chegou em 30 de julho Os mecanismos de transmissão pro- O Banco Central quando aumen- de 2015 a 14,25% ao ano, ficando curam descrever como a política mo- ta a taxa de juros torna os ativos neste patamar até a reunião de 1 de netária afeta a produção e o emprego denominados em moeda doméstica setembro de 2016. Logo em seguida na economia. Os principais canais mais atrativos. A entrada de capitais o Copom iniciou a política de redu- de transmissão da política monetária estrangeiros provoca a apreciação da ção da taxa de juros que deve ser são os seguintes: 1. taxa de juros; 2. taxa de câmbio, barateando os bens encerrada na próxima reunião do taxa de câmbio; 3. preços de ativos; importados e desestimulando as ex- dia 16 de maio próximo. 4. crédito; e 5. expectativas. portações. A produção e o empre- Uma causa importante da gran- A taxa de juros é o principal ca- go doméstico diminuem. Quando o de recessão brasileira que começou nal de transmissão da política mo- Banco Central reduz a taxa de juros, no primeiro semestre de 2014 foi a netária. No curto prazo, quando o os ativos domésticos ficam menos política monetária. A inflação teve Banco Central aumenta (diminui) a atrativos, provocando a depreciação seu pico em 2015, quando alcançou taxa de juros nominal ele aumenta da taxa de câmbio, que desestimula 10,67% ao ano. O custo social de (diminui) a taxa de juros real. O au- as importações e incentiva as expor- combate à inflação quando ela ultra- mento (diminuição) da taxa de juros tações. A produção e o emprego do- passa dois dígitos é muito elevado em real diminui (aumenta) o dispêndio. méstico crescem. qualquer país do mundo. No Brasil O dispêndio afeta a produção e o A política monetária afeta os pre- a taxa de desemprego aumentou de emprego. A queda na produção e o ços dos ativos: quando os juros sobem 6,8% em 2014 para 13,4% em 2017, aumento do desemprego provocam os preços dos ativos caem, e quando um aumento de 6,6%. A taxa de in- a queda da taxa de inflação. Existe os juros diminuem os preços dos ati-

22 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CONJUNTURA MACROECONOMIA

vos sobem. Quando os preços dos ati- aos bancos. Isto permite um acesso monetária já teriam produzido me- vos sobem, a sociedade fica mais rica maior ao crédito. O aumento do cré- lhores resultados se não fosse o pro- e tende a gastar mais na compra de dito acarreta o aumento da produ- blema fiscal dos governos federal, es- bens e serviços. Os empresários, por ção e do emprego. taduais e municipais. Todos eles com sua vez, aumentam os investimentos. O Banco Central pode influenciar déficits insustentáveis a longo prazo. A consequência é o aumento da pro- as expectativas dos agentes econômi- Alguns nem sequer conseguem pa- dução e do emprego. cos divulgando com clareza e preci- gar os salários de seus funcionários. Numa economia de mercado o são suas ações e processos decisórios. Adicione-se ao problema fiscal os crédito é essencial para a produção Por exemplo, no regime de metas péssimos investimentos dos gover- e a comercialização de bens e servi- de inflação, o sucesso deste regime nos Lula e Dilma que não aumenta- ços. Quando a política monetária é acontece quando a sociedade usa a ram a capacidade produtiva do país. expansionista, com redução da taxa meta de inflação para o reajuste dos Ademais, alguns setores importantes de juros, o Banco Central expande valores nominais dos seus contratos da infraestrutura sujaram suas mãos a quantidade de moeda na econo- e os mercados financeiros precificam na Lava Jato e lutam para sobrevi- mia, que acarreta o aumento dos a taxa de inflação esperada com base ver. Junte tudo isto com a incerteza depósitos dos bancos, e, portanto, a na meta de inflação. Este mecanismo política da eleição presidencial des- capacidade de crédito dos mesmos. de transmissão atua diretamente te ano: qual o caminho do Brasil, o Outro fator importante no crédito sobre os preços, reduzindo o custo neopopulismo do passado recente, a são as garantias oferecidas aos ban- social no combate da inflação, em política de empurrar com a barriga cos por quem toma emprestado. A termos de redução da produção e que adotamos na década de 80, ou redução da taxa de juros aumenta aumento do desemprego. uma política reformista para con- os preços dos ativos, e, portanto, os Num mundo onde somente exis- sertar o que está errado? A novela valores dos colaterais que os indiví- tisse o problema da inflação, os me- é emocionante e não existe qualquer duos e as empresas podem oferecer canismos de transmissão da política garantia de um final feliz.

Assinaturas e renovações [email protected] Rio de Janeiro: Outros estados: (21) 3799-6844 08000-25-7788 (ligação gratuita)

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 23 MACROECONOMIA

O impacto da política macro sobre as taxas de lucro setoriais

Nelson Marconi Professor da FGV EAESP

Um argumento que adoto constan- ria desencadeado novamente até que temente nos meus artigos nesta Con- as margens voltem a se igualar. juntura Econômica reside no distinto Pois bem, os dados não mostram impacto exercido pela política ma- que essa equalização entre taxas de croeconômica sobre os diversos seto- lucro ocorra na economia brasileira, res produtivos. Neste artigo, demons- consideradas as margens operacio- tro como se comportam as margens nais como proxy. Os diversos seto- de lucro setoriais, cuja diferenciação res apresentam margens de lucro dis- estaria na base do argumento acima, tintas ao longo do tempo, e mesmo e explico qual sua relação com a po- com a crise recente e o declínio das lítica macro. margens observadas em alguns seto- A teoria econômica tradicional res, essa diferença permaneceu. afirma que os diversos setores, quan- Em trabalho desenvolvido junta- do atuam em mercados competitivos, mente com João Guilherme Machado, tendem a apresentar taxas de lucro doutorando na FGV, calculamos as próximas com o passar do tempo, margens de lucro de setores da indús- já que uma eventual superioridade tria, comércio, serviços e construção dessa taxa em um setor resultaria civil a partir das pesquisas anuais do em maior concorrência, volume de IBGE. Não é possível calcular as taxas investimentos, oferta e, por conse- de lucro pois não há informações sobre quência, redução da taxa de lucro o estoque de capital em cada setor, mas neste setor. À medida que outros se- foi possível calcular as margens totais, tores fossem explorados, ocorreria operacionais e Ebitda. Neste texto es- movimento semelhante. Essa movi- tão incluídos os resultados das mar- mentação de investimentos entre se- gens operacionais, por não computa- tores leva, após algum tempo, a uma rem as receitas e despesas financeiras, equalização das taxas de lucro entre que não estão diretamente envolvidas os diversos setores. Uma vez que sur- na produção e vendas das empresas. ja um novo setor ou uma inovação, Os gráficos 1 e 2 mostram os re- nos moldes schumpeterianos, que sultados das margens operacionais resulte em taxas de lucro mais altas (receitas (-) despesas operacionais/ nessa atividade, o processo acima se- receitas operacionais) para alguns

24 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CONJUNTURA MACROECONOMIA

destes setores, entendidos como os administrativo, locação de mão de mais relevantes para esta discussão. A queda da margem obra e segurança, entre outros) per- A escala adotada é a mesma nos dois maneceu relativamente estável no gráficos, de modo a possibilitar me- período analisado, e superior à dos lhor comparação visual. Nota-se, se- de lucro, observada em chamados serviços modernos (servi- gundo o gráfico 1, que os setores de ços técnico-profissionais, telecomu- construção e extrativo mineral (exce- diversas áreas, explica nicações e informação, entre outros) to petróleo) possuem margens de lu- que, ao contrário dos primeiros, cro operacionais bem superiores, no parcela relevante podem sofrer concorrência externa, primeiro caso possivelmente devido e são declinantes a partir de 2013. à ausência de concorrência externa, e da redução dos Já o comércio varejista possui, tradi- no segundo devido à abundância de cionalmente, margens operacionais recursos naturais que gera ganhos de investimentos no reduzidas, como é de conhecimento produtividade inerentes ao setor, além geral, pois seu ganho maior advém do efeito derivado dos preços exter- período recente do giro das mercadorias e volume de nos das commodities; mesmo que a vendas, mas mesmo assim observou sua margem tenha caído nos últimos uma ligeira melhoria nos últimos anos, permanece em um patamar bem anos pois, como já discutimos ou- mais elevado que a dos demais setores, período recente foi o de obras para tras vezes, o consumo foi o motor da dada a sua superioridade incontestá- infraestrutura, devido à queda nos in- economia brasileira até o aguçamen- vel ao longo do período analisado. vestimentos e aos impactos decorren- to da crise. O único subsetor da construção (não tes da operação Lava Jato. No gráfico 2 estão destacados os incluído no gráfico) cuja margem de A margem de lucro dos serviços resultados para a indústria, na mes- lucro sofreu uma redução maior no tradicionais para empresas (apoio ma escala do gráfico 1, conforme já

Gráficos 1 e 2: Margens operacionais (em %) de diversos setores da economia brasileira

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Comércio varejista Construção Serviços tradicionais para empresas Serviços modernos Commodities primárias extrativas

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Manufaturados de baixa e média-baixa tecnologia Commodities industrializadas derivadas de commodities agrícolas e extrativas

Manufaturados de média-alta e alta tecnologia

Fonte das informações básicas: pesquisas anuais da indústria, comércio, serviços e construção civil, com cálculos dos autores. mencionado, para facilitar a compa- justificativa para os empresários mia brasileira, buscando a priori- ração. Primeiro, ressalta-se que as menos eficientes estarem atuando zação dos setores que geram bens margens são inferiores às dos seto- nestes dois setores? e serviços mais inovadores e com res que não enfrentam concorrência A queda da margem de lucro, maior valor adicionado, passa ini- externa ou usufruem de vantagens observada em diversas áreas, ex- cialmente pela correção desses de- comparativas. As margens são ainda plica parcela relevante da redução sequilíbrios macroeconômicos. A menores, e declinantes, nos setores dos investimentos no período re- melhoria da situação fiscal tem, que produzem bens com maior con- cente. E, mais que isso, o nível da certamente, um papel importan- teúdo tecnológico. margem de lucro em dois setores te a desempenhar nesse processo. Portanto, a análise mostra que tão relevantes como a indústria Outras melhorias em áreas como os setores mais relevantes sob o sofisticada e os serviços modernos educação, infraestrutura, logística, ponto de vista da estrutura pro- restringem ainda mais os investi- redução da burocracia e demais re- dutiva da economia brasileira (por mentos nos mesmos e, dada a sua formas microeconômicas também gerarem mais inovações, empregos estreiteza, permite-nos afirmar que são importantes, certamente, mas em quantidade satisfatória e de boa erros de política econômica afetam não solucionarão o desequilíbrio qualidade e salários idem), a indús- mais intensamente estes setores gerado pelo binômio juros altos – tria que produz bens que embutem que outros; particularmente, juros câmbio valorizado. Ainda que os média e alta tecnologia e os servi- altos, câmbio valorizado e salários juros básicos estejam caindo, há ços modernos, apresentaram mar- crescendo muito acima da produ- muito que se fazer ainda para redu- gens menores que a maioria dos tividade tendem a prejudicar mais zir as taxas ao tomador final. E, em demais setores, e declinantes nos estes setores que outros. relação à taxa de câmbio, perma- últimos anos. Não seria razoável Por isso continuo insistindo que nece valorizada. Aguardemos para argumentar que essa inferioridade o primeiro passo para retomar o ver se no futuro próximo essas dis- se deve à ineficiência; qual seria a crescimento consistente da econo- torções serão corrigidas.

26 Conjuntura Econômica | Abril 2018

MACROECONOMIA

Teto de gasto como regra permanente

Helio Tollini Consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados

Desde a crise financeira internacio- da anualmente na Lei de Diretrizes nal de 2008, vários países instituí- Orçamentárias – LDO, o que per- ram novas regras fiscais e reforça- mite o seu ajuste ao ciclo. ram as já existentes. Quase todos Até o advento em 2016 do Teto os países desenvolvidos utilizam de Gastos, regra de vigência tem- pelo menos uma regra fiscal, sen- porária, as regras fiscais sempre do que a maioria dispõe de mais de tiveram como ênfase principal o uma. As regras fiscais impõem uma curto prazo. A preocupação oficial restrição duradoura à política fiscal com resultados fiscais no médio e por intermédio do estabelecimento longo prazos somente se manifes- de limites numéricos a agregados tou quando o novo governo con- orçamentários, evitando que ela vivia com resultados primários seja objeto de mudanças substanti- negativos e enfrentava dificulda- vas. Na prática, essas regras visam des para aprovar reformas econô- corrigir incentivos distorcidos e micas fundamentais. Esses fatores conter pressões para gastar excessi- levaram à oportuna proposição de vamente, particularmente em tem- regra constitucional indutora de pos favoráveis. uma inflexão progressiva nas des- No Brasil, as regras atualmen- pesas públicas. te adotadas são de resultado fiscal A maioria das medidas que afe- (primário, regra de ouro); dívida tam receitas e despesas tem impli- (consolidada, mobiliária) e despe- cações orçamentárias que vão bem sas (pessoal, teto de gastos). Ao além do habitual ciclo anual. Como contrário de outros países, aqui resultado, o horizonte de apenas as regras sobre resultados fiscais um ano não permite um planeja- não são flexibilizadas em períodos mento fiscal sólido, que conside- de crise. Isso só é possível porque re o impacto ao longo do tempo temos uma definição leniente da das decisões tomadas no presente. regra de ouro (sujeita a interpreta- Para ampliar o horizonte da polí- ções permissivas e que contempla tica fiscal, os países desenvolvidos todas as despesas de capital) e pelo dispõem de um Cenário Fiscal de fato de ser a meta primária defini- Médio Prazo (CFMP) incorporado

28 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CONJUNTURA MACROECONOMIA

a um Quadro das Despesas de Mé- O teto global da despesa, de ca- dio Prazo (QDMP). O horizonte de apenas ráter impositivo, poderia ser fixado No Brasil, temos um CFMP com dois anos de antecedência, com precário, incluído anualmente na os tetos globais dos exercícios sub- LDO, que não permite uma gestão um ano não permite sequentes sendo apenas de caráter efetiva da política fiscal no médio indicativo. Exemplificando, o pro- prazo. Além do horizonte tempo- um planejamento fiscal jeto de LDO 2019 traria o total da ral curto, de apenas dois exercícios despesa para 2019, o teto global de subsequentes ao que se refere a lei, sólido, que considere caráter impositivo para 2020 e tetos as receitas e as despesas, os juros globais de caráter indicativo para e os resultados primário e nomi- o impacto ao longo 2021 e 2022. Uma vez aprovado o nal são apresentados numa tabela teto global impositivo da despesa fiscal de apenas cinco linhas. Pior, do tempo das decisões para 2020, o valor assim definido as projeções dos fluxos de receitas não poderá mais ser alterado, nem e despesas para os dois exercícios tomadas no presente na LDO 2020, nem na própria lei subsequentes são imprecisas, feitas orçamentária para 2020. sem fidedignidade. Mais complexo seria o aprofun- Um CFMP bem concebido, com damento do CFMP, incorporando-o horizonte temporal alongado e boas regra fiscal existente. Com as metas a um QDMP, que vai além da ques- estimativas dos principais agrega- anuais dadas e estimativas fidedig- tão fiscal ao introduzir outra dimen- dos das receitas e das despesas pri- nas das receitas anuais, saberíamos são, a que trata da questão alocativa márias, exige ainda que as metas qual o montante máximo previsto dos recursos públicos. fiscais para cada um de seus anos para a despesa global em cada exer- Com o QDMP, os governos derivem do objetivo da política fis- cício, que se constituiriam nos tetos conseguem alocar anualmente, em cal no longo prazo ou de alguma globais das despesas. base rolante, os recursos públicos

O processo simplificado de um QDMP Top-down:

Cenário Tetos Agregação/ Revisão e macrofiscal setoriais pactuação de aprovação tetos preliminares demandas: agregados tetos definitivos (1) (2) (6) (8)

Botton-up:

Gastos Revisão de Inclusão de Preparação existentes prioridades; novos do (espaço fiscal) programas orçamento

(3) (4) (5) (7)

Fonte: Fortis, M. e Gasparini, C. “Plurianulidade orçamentária no Brasil: diagnóstico, rumos e desafios” ENAP 2017.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 29 CONJUNTURA MACROECONOMIA

às prioridades estratégicas defini- predefinir os tetos globais que serão das para o médio prazo, ao mesmo Adotar um QDMP perseguidos no médio prazo. Ade- tempo em que asseguram a disci- mais, o QDMP apresenta a vanta- plina fiscal. Nele são estimados os gem de ser relativamente rígido no custos futuros das atuais políticas significa introduzir uma médio prazo e ao mesmo tempo públicas de cada setor e, em para- flexível no longo prazo, pois além lelo, os órgãos setoriais preparam orientação de médio do horizonte temporal mais curto listas contendo as novas iniciativas permite ajustes anuais por conta de gastos que pretendam iniciar prazo ao processo de sua base móvel. Acresce que ter durante o horizonte temporal do um QDMP significa dispor de uma QDMP. Ambos os grupos de gastos orçamentário, e não alternativa vigente para nortear a concorrem pelo espaço fiscal dis- política fiscal quando a regra do ponível em cada exercício financei- a instituição de um Teto de Gastos expirar ou, eventu- ro do QDMP. almente, substituí-la caso venha a De forma transparente, deve-se orçamento plurianual ser suprimida. empregar um processo interativo Para que o QDMP funcione a em que a restrição fiscal advinda do contento, precisaria haver uma le- CFMP “dialogue” com a estratégia gislação superior que determinasse de alocação advinda dos órgãos se- melhor alternativa parece ser a alo- a sua instituição, principalmente toriais. Nesse ambiente, os setores cação por área temática, dado que o quanto ao caráter impositivo e ir- competem por recursos limitados, Congresso se habituou a organizar retratável dos tetos e subtetos defi- destacando-se as escolhas que pre- a apreciação do projeto de lei orça- nidos com antecedência. A melhor cisam ser feitas em termos de polí- mentária por área temática. Desde opção, que garantiria plenamente o ticas públicas. Dessa forma, o es- 2006 o projeto de lei orçamentária teto antecipado irretratável, seria in- paço para decisões discricionárias é tem sido dividido em dez áreas temá- serir dispositivo na Constituição. Al- reduzido, bem como se identificam ticas, número esse elevado para 16 a ternativamente, poderia constar da medidas que precisam ser adotadas partir de 2015. nova Lei Complementar de Finanças para viabilizar o cumprimento dos Importante frisar que há meca- Públicas, projeto aprovado pelo Se- tetos globais da despesa. nismos para introduzir alguma fle- nado e que se encontra em discussão De posse do teto global das despe- xibilidade na alocação de recursos na Câmara dos Deputados. sas e da estimativa de custos futuros por áreas temáticas. Alguns países Portanto, adotar um QDMP das políticas públicas, os subtetos não distribuem a totalidade do significa introduzir uma orienta- por área temática (cuja soma seria teto global, separando uma parte ção de médio prazo ao processo igual ou inferior ao teto global) po- para a constituição de reservas, orçamentário, e não a instituição deriam ser definidos com um ano de que normalmente são percentuais de um orçamento plurianual. Se antecedência, sendo os subtetos do crescentes do teto ao longo dos funcionar bem na forma proposta, ano subsequente apenas de caráter anos. Muitas vezes, as reservas são a antecedência dos tetos e subtetos indicativo. Exemplificando, o proje- distinguidas entre aquela que serve impositivos poderia ser futuramen- to de LDO 2019 fixaria os subtetos para atender mudança na conjun- te ampliada. Por fim, a prática do de caráter impositivo para 2019 e os tura econômica, e aquela que serve QDMP pode consolidar uma cul- subtetos de caráter indicativo para para atender mudanças decorren- tura de priorização estratégica nos 2020 e 2021. tes de nova orientação política. ministérios, reforçando aspectos Nos países que adotam um QDMP Interessante notar que o QDMP antes relegados a um segundo pla- a alocação dos recursos pode se dar seria compatível e complementar no, como o planejamento, a avalia- por ministério, área, setor, função ao Teto de Gastos, cuja existência ção de desempenho, a responsabili- ou programa. No caso do Brasil, a facilita a montagem do CFMP ao zação e a transparência.

30 Conjuntura Econômica | Abril 2018

MACROECONOMIA

Um motivo adicional para os elevados juros reais no Brasil

Rubens Penha Cysne Professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV EPGE)

Os motivos para uma determina- instituições (falta de competição na da variável endógena (como juros provisão de recursos ao poupador) reais) de uma economia apresentar ou políticas (taxação na interme- valores usualmente dissonantes da- diação financeira). queles que se observam em outras Após esse tipo de parametriza- economias podem ser associados a: ção, se o objetivo, além de positivo, 1. gostos e tecnologia; 2. institui- for também normativo, precede-se à ções e 3. políticas. identificação de variáveis controlá- Nesse tipo de partição, políticas veis pelo governo que possam levar fiscais expansionistas como expli- ao objetivo desejado (no caso, me- cação de juros elevados, por exem- nores juros). plo, se encaixam no último item. O objetivo deste artigo é destacar Judiciário ineficaz ou concentração uma variável classificável na rubri- bancária, por outro lado, podem ser ca “gostos e tecnologia”, que pode visualizados do ponto das institui- implicar, quando do endividamento ções vigentes. Elevado desconto do público, em maior consumo agre- futuro (impaciência) estaria atrela- gado e maior valor de equilíbrio da do a gostos e tecnologia. taxa de juros. A variável é o grau de Explicações que unem variáveis altruísmo entre grupos ou gerações. usualmente trabalhadas como en- A conjectura subjacente à pro- dógenas a outras variáveis na mes- posição é que o Brasil, apresentan- ma categoria (também endógenas) do maior dissociação social do que devem ceder lugar a características a média dos demais países de inte- antecedentes da economia. Ou a pa- resse, se diferenciaria dos mesmos râmetros de maior controlabilidade. no que diz respeito à solidariedade Por exemplo, o argumento de intertemporal (ou transversal) entre que os juros no Brasil são altos diferentes grupos ou dinastias. porque a poupança é baixa pode- Se válida a conjectura, o que evi- ria regredir a gostos (impaciência), dentemente requer comprovação

32 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CONJUNTURA MACROECONOMIA

empírica, estabelece-se uma explica- terá que pagar a mais de imposto ção adicional para os elevados juros O endividamento na data t. reais no Brasil ainda que, queremos Por hipótese, uma dinastia to- crer, provavelmente de baixa monta mada em separado não internaliza relativa no que diz respeito à ques- público acaba os impostos a serem pagos pelas tão quantitativa. demais, que estão ainda nascen- Do ponto de vista intertemporal, desta forma por do. Ela desconta o futuro à taxa o argumento é bem desenvolvido na r-(n-m)+n= r+m. teoria. Exemplos nesse sentido se dão levar a uma elevação Segue daí que o valor atual do em Blanchard (1985), Buiter (1989) aumento de taxação do governo a e Weil (1989). A extensão de ordem do consumo e a uma se dar na data t é igual a exp ((r- transversal, em uma economia com (n-m))t) exp((-(r+m))t) = exp(-nt). diferentes agrupamentos, é também elevação da taxa Ou seja, para o indivíduo, o gover- possível conceitualmente. no postergar a taxação e elevar a Tomemos uma economia com de juros dívida interna em R$ 1 no momen- pleno grau de solidariedade entre to zero implica a percepção de um grupos e gerações, onde valha a aumento da riqueza disponível (em ideia de consumidor representativo poder aquisitivo do instante inicial) e equivalência ricardiana. Nesta, caso sobem, relativamente ao caso de 1- exp(-nt) > 0. se o governo troca taxação (aqui, anterior (com equivalência ricardia- O endividamento público acaba sempre não geradora de distorções na), quando isso não ocorria, o con- desta forma por levar a uma eleva- de preços) hoje por taxação ama- sumo privado, a demanda agregada ção do consumo e a uma elevação da nhã, elevando seu endividamento, e a taxa de juros. taxa de juros.2 Isso não ocorreria na o perfil de consumo privado não Um pouco mais formalmente, presença de altruísmo entre dinas- se altera. O consumidor represen- imaginemos para uma população tias. Cabe avaliar o ponto empiri- tativo não é sujeito a restrições de inicial suficientemente grande uma camente, comparando o Brasil com crédito, desconta a dívida à mesma taxa n de nascimento e m de morte. outros países. taxa que o governo e a sua restri- O crescimento populacional (aqui, ção orçamentária intertemporal igual ao aumento do número de di- permanece constante. nastias não conectadas por altruísmo 1 Imaginemos agora um cenário recíproco) ocorre à taxa n-m. O argumento se desenvolve da mesma forma para taxas de juros variáveis no tempo. mais realista, que conjecturamos ser Suponha, para simplificar, que a 2Pode-se mostrar que a elevação da taxa de mais usual no Brasil do que em ou- taxa de juros inicial seja constante juros será tão maior quanto maior a taxa de tros países. Nesse, as dinastias (de e igual a r.1 E que a probabilidade nascimentos. tamanho constante, para simplifi- de um indivíduo ter uma vida su- car), otimizando seu consumo hoje, perior a t unidades de tempo seja Referências bibliográficas não internalizam os impostos a se- dada por P(T≥t)=exp(-mt). T é o Blanchard, O. Debt, deficits and finite hori- rem pagos no futuro por aqueles que tempo de vida. zons. The Journal of Political Economy, v. 93 -2, 1985. estão ainda por nascer. Para o governo, reduzir em um Nesse caso, a dinastia tenderá a real a taxação hoje mantendo cons- Buiter, W. H. “Death, population growth and debt neutrality”. Economic Journal, 98, 279-293, descontar o futuro a uma taxa su- tante sua restrição orçamentária jun. 1989. perior àquela usada pelo governo, significa ter que aumentá-la em ter- Weil, P. Overlapping families of infinitely- rompendo a equivalência ricardia- mos per capita, de forma a manter lived agents. Journal of Public Economics, na. Imagine, nesse contexto, que constante sua restrição intertem- 38, 1989. o governo eleva a dívida, taxando poral, de exp ((r-(n-m))t) na data Este artigo manifesta as opiniões do autor, não re- menos hoje e mais no futuro. Nesse t. Esse é o valor que cada dinastia presentando necessariamente as opiniões da FGV.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 33 MACROECONOMIA

Saúde pública tem remédio?

José Roberto Afonso Kleber Pacheco de Castro Economista, pesquisador do FGV IBRE Economista, doutorando do e professor do IDP PPGCE/Uerj, consultor

Recente pesquisa CNI/Ibope reve- considerado baixo em comparações la que pouco menos da metade dos internacionais. O grande diferencial brasileiros aponta a saúde como um aparece na composição desse gasto dos três principais problemas do país com os governos respondendo por – apenas corrupção e desemprego são pouco mais de 40% daquele total – mais citados. Se assemelha ao apurado peso relativo dos governos de países pelo Datafolha em meados do ano pas- ricos é mais que o dobro disso.1 O sado: a saúde era o principal problema setor privado na saúde se tornou tão para 37% dos entrevistados. Desde grande no Brasil que apenas hospi- 2014, naquela pesquisa da CNI/Ibope tais e clínicas (sem contar planos e era apontado que governos deveriam seguros de saúde) arrecadam perto priorizar a saúde e nela focar seus es- de R$ 10 bilhões anuais em impos- forços de políticas públicas. tos federais (fora a contribuição pre- Pesquisas populares refletem a tris- videnciária), superando a indústria te realidade da saúde pública no país. automobilística, que mal arrecada Não faltam problemas, como gestão R$ 8 bilhões/ano. ineficiente, desperdício de recursos, Uma razão essencial para o gover- regulamentação inapropriada, “ju- no gastar pouco é que não conseguiu dicialização” da saúde, altos custos até hoje encontrar uma solução equi- do setor, baixa informatização, falta librada para financiar bem a saúde. de prioridade política. Dois aspectos Um arranjo criativo foi adotado pela nevrálgicos serão abordados neste Constituição de 1988, que inovou com breve artigo: o financiamento e as o conceito de seguridade (somando a relações federativas. saúde à previdência e assistência) e É sábio o povo quando reclama diversificando as contribuições sociais prioridade do governo para saúde (antes incidentes apenas sobre salá- pois o brasileiro é quem menos par- rios), para alcançar também fatura- ticipa nesse gasto nacional, exigindo mento e lucro (e, depois, também teve que famílias e empresas aportem mais movimentação financeira por um bom do que no resto do mundo. Como um tempo). A Previdência cada vez mais todo, se gasta no país mais de 9% deficitária, desde servidores até regime do PIB com saúde, que não pode ser geral, ocupou todo esse espaço.

34 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CONJUNTURA MACROECONOMIA

Participação das esferas de governo na execução e no financiamento das despesas públicas com saúde - 2002 e 2016 70%

60%

50%

40% União 30% Estados % do Total 20% Municípios

10%

0% 2002 2016 2002 2016 Execução Financiamento

Elaboração própria. Fontes primárias: Siga Brasil e BSPN/STN.

A saúde optou por vinculações, vel a tais tributos. Um bom exemplo financiamento e mais da metade da nem sempre eficientes. Vinculada ao deste problema reside na trajetória despesa realizada com saúde no país. PIB, depois à receita corrente líqui- recente da carga tributária brasilei- De outro lado, essa função já conso- da, e, a partir de 2018, congelada ra: este indicador recuou no biênio me um quarto do orçamento muni- em termos reais – o expediente que 2014/15 e recuperou no seguinte cipal consolidado, quando a vincu- evita queda maior do orçamento, po- (2016/17), mas baseado em receitas lação constitucional demanda 15% rém, não permite crescer e se aproxi- outras (como royalties de petróleo) apenas da receita de seus impostos mar dos padrões mundiais. Se ficou que não os impostos contados na e transferências constitucionais. dependendo de governos estaduais base de cálculo das vinculações de Mais uma vez pode ser constatado e municipais, cuja vinculação incide educação e saúde. que saúde cresceu de importância sobre impostos e transferências cons- Sem maior presença federal e com relativa no gasto não financeiro das titucionais, porém estes são cada vez estados em situação pré-falimentar, os prefeituras entre 2002 e 2016, assim mais decadentes, como no caso do municípios passaram a ostentar uma como nos estados, e na contramão ICMS e do FPE/FPM, que muito de- responsabilidade crescente na saúde do menor peso relativo no governo pende de tributar mercadorias numa pública. Sendo a unidade do governo federal, como o gráfico a seguir. economia cada vez mais de serviços. mais próxima dos usuários do sistema, Poucas outras ações de governo no Devido ao caráter contínuo do as prefeituras foram mais pressionadas Brasil são executadas com uma intera- gasto com a saúde, seu financiamen- a aportar parcela crescente de recursos ção tão forte entre todas as unidades to no âmbito público baseado apenas próprios, inclusive para suprir a menor federadas do país. A forte e crescen- na receita de impostos (altamente participação das esferas superiores, seja te descentralização no setor de saúde correlacionados ao ciclo econômico) no financiamento, seja na execução di- apresenta uma clara vantagem que resultaria em inevitável estrangula- reta dos gastos. Isto é evidenciado no está relacionada ao fortalecimento mento em tempos de recessão, como gráfico que compara o peso relativo de da atenção básica, especialmente com já alertado pelos autores.2 cada uma das três esferas de governo o programa de saúde da família, que Se o sistema nacional já depende no financiamento e no gasto, em 2002 tende a reduzir desigualdades regio- em demasia do arrecadado por tribu- e em 2016. nais.3 A ausência efetiva de coorde- tos indiretos, a vinculação da saúde Chama a atenção que municípios nação federativa entre os agentes de e da educação é ainda mais vulnerá- já respondem por cerca de 30% do saúde contribui fortemente para gerar

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 35 CONJUNTURA MACROECONOMIA

Participação da saúde nas despesas não financeiras do setor público por esfera de governo - 2002 e 2016 30%

25%

20%

15% 2002

% do Total 2016 10%

5%

0% União Estados Municípios Média (SPC) Elaboração própria. Fontes primárias: Siga Brasil e BSPN/STN. problemas: é “[...] um sistema frag- isso levará à menor participação das pela população, dependerá de se equa- mentado, que dificulta o acesso, gera empresas, porque terão menos empre- cionar outras questões que fogem aos descontinuidade assistencial e com- gados para oferecer plano de saúde). hospitais em si. Reformar a Previdên- promete a integralidade da atenção Como é muito descentralizado tal cia (para sobrar algum espaço no orça- ofertada” (Lavras, 2011).4 gasto público no país e muito depen- mento social), o orçamento (para não A falta de planejamento e a ausên- dente de impostos incidentes sobre depender de vinculações disfuncio- cia de coordenação na execução de mercadorias, a saúde dependerá mais nais), o sistema tributário (para não se políticas públicas são problemas que do que outras funções governamen- “desfinanciar” com tributos sobre ba- não afetam apenas a saúde, mas são tais de que seja feita uma boa e pro- ses decadentes), a gestão pública (para sensivelmente mais onerosos neste funda reforma tributária, que não se modernizar e fazer mais e melhor caso devido às características econô- apenas permita taxar a economia com menos recursos). É preciso mudar micas do setor. Os seus fatores de pro- compartilhada, como recupere e for- muito, em muitas áreas, de forma con- dução são tipicamente dispendiosos e taleça as finanças estaduais e munici- sistente, ainda que não se fará tudo de a utilização de alguns aparelhos (des- pais, as que mais gastam com saúde. uma só vez. Remediar a saúde vai além de equipamentos de diagnóstico, até A grande oportunidade envolve a de sua área de atuação. clínicas e hospitais) requer um nível gestão do sistema de saúde que pre- de escala que é incompatível à maior cisa passar por uma revolução, em parte dos municípios brasileiros. linha com a modernização da rede

A revolução tecnológica em curso privada. Investimentos baratos em 1Ver base de dados da OMS e alerta recente de abre, ao mesmo tempo, um leque de governo eletrônico permitiriam unifi- André Medici, como em “Propostas para me- desafios e oportunidades. car e nacionalizar cadastros, para ex- lhorar a cobertura, a eficiência e a qualidade no setor saúde”. In: Brasil: a nova agenda social, É inquestionável que será cada vez plorar as grandes bases de dados de Bacha e Schwartzman (ed.), 2011. mais demandado gastar em saúde (a modo a permitir maior racionalidade 2“A crise (do financiamento) da saúde”, começar pela tendência do envelheci- nos serviços e ganhos monumentais Conjuntura Econômica, v. 70, n. 5, p. 22-24, 2016. mento da população) e, em particular, de produtividade. É preciso tornar 3Conforme ASSIS, Marluce Maria Araújo; JESUS, Washington Luiz Abreu de. Acesso aos serviços de o governo brasileiro terá que necessa- único o sistema de saúde brasileiro, e saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo riamente responder por parcela maior não por decreto, mas por realidade. de análise. Ciência & Saúde Coletiva, nov. 2012. do gasto nacional com saúde (porque Enfim, priorizar e equacionar mi- 4Conforme LAVRAS, Carmen. Atenção primária há uma tendência estrutural à redução nimamente a saúde pública no Brasil, à saúde e a organização de redes regionais de atenção à saúde no Brasil. Saúde e Sociedade, do emprego com carteira assinada e como demandado majoritariamente dez. 2011, p. 871.

36 Conjuntura Econômica | Abril 2018

FISCAL

Limar arestas Revisão de benefícios capitaneada pelo Ministério de Desenvolvimento Social deve gerar economia próxima de R$ 10 bilhões em 2018

Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Tempos de desequilíbrio fiscal de- e R$ 5,3 bilhões – somados à econo- tadas no ano passado, deverão inibir mandam disposição para ordenar as mia prevista com as anulações que o seu mau uso. A primeira é a fixação contas, e uma das formas mais virtu- MDS espera realizar em 2018. Nas da data de cessação do benefício de osas de se começar a arrumação é ter 252 mil perícias realizadas nos dois 120 dias para os casos em que não como princípio a eficiência no gasto. últimos anos, de um total de 552 mil haja definição de prazo para recupe- No Ministério do Desenvolvimen- benefícios a serem revistos, o percen- ração, com o segurado prescindin- to Social (MDS), esse trabalho teve tual de cancelamento foi de 80%, ou do de perícia médica para voltar ao início em 2016, e o balanço parcial 201 mil, às quais se somaram outros trabalho. A segunda é a ampliação da revisão de alguns benefícios tem 10%, ou 26,7 mil, de cessação por da carência para obtenção de um surpreendido até a técnicos do setor, não comparecimento. novo benefício, de quatro para seis devido à dimensão das fraudes e irre- “Este ano multiplicamos nossa meses. A expectativa do MDS é de gularidades acumuladas no sistema, capacidade de realização de perícias que, com o final desse trabalho, os desvirtuando o objetivo das políticas por dez, e com isso esperamos con- benefícios de auxílio-doença se esta- e pressionando o orçamento. cluir o trabalho até maio”, afirma bilizem próximo de 1,1 milhão. Alberto Beltrame, secretário-exe- Beltrame, lembrando que essa veloci- O aumento de capacidade para cutivo do Ministério de Desenvolvi- dade amplia os ganhos para este ano, realização das perícias também per- mento Social, afirma que somente a já que o cancelamento é imediato. “E mitiu ao MDS iniciar em março a re- revisão do auxílio-doença poderá ge- é uma economia que se manterá a visão de 995 mil aposentadorias por rar uma economia de R$ 9,9 bilhões cada ano”, diz. Para evitar um novo invalidez. A norma do INSS é de que este ano, reduzindo a despesa total descarrilamento no sistema de con- esse benefício seja monitorado a cada com o benefício de R$ 29 bilhões cessão no futuro, o secretário afirma dois anos mas, segundo Beltra- em 2016 para R$ 20 bilhões em que se retomará a obediência aos me, também não vinha sendo 2018. Esse valor vem de ganhos prazos de revisão previstos na lei, de cumprida. “Identificamos com cancelamentos de benefí- seis meses, que nos últimos anos não mais de 1,4 milhão cios indevidos revisados em estavam sendo cumpridos. Além dis- de casos acima 2016 e 2017 – respectiva- so, duas mudanças nas regras de ob- desse prazo”, mente, R$ 500 milhões tenção do auxílio-doença, implemen-

38 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CONJUNTURA FISCAL

Evolução dos benefícios emitidos de auxílio-doença 1.900.000 1.700.000 Ago/16 1.827.225 1.500.000

1.300.000 Fev/18 1.354.711 1.100.000

900.000 Dez/18 700.000 1.134.199 (projeção) 500.000 Jul/00 Jul/11 Set/98 Set/09 Abr/03 Fev/05 Abr/14 Fev/16 Out/97 Out/08 Jan/95 Jan/06 Jan/17 Jun/01 Jun/12 Dez/95 Dez/06 Dez/17 Nov/96 Nov/07 Nov/18 Ago/99 Ago/10 Mar/04 Mar/15 Maio/02 Maio/13 PRBI Contrafactual Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social.

conta. Novamente, o percentual de Outras frentes julho de 2017, a Secretaria de Ava- cancelamentos tem superado a expec- Além dos chamados benefícios por in- liação e Gestão da Informação (Sagi) tativa do MDS. “Imaginávamos um capacidade, outros programas têm sido do MDS identificou 151,6 mil bene- nível de cessação em torno de 5% a alvo de revisão do MDS. Entre eles, o ficiários acima da faixa de renda de 10%. Nos primeiros 20 dias de mar- Bolsa Família, com a identificação e ½ salário mínimo. “De lá para cá, ço, com 69,7 mil benefícios revisados, cancelamento, nos últimos dois anos, entretanto, não conseguimos cancelar chegamos a 27,9%, ou 19 mil”, conta de 593,4 mil benefícios fora do perfil nenhum benefício”, lamenta o secre- o secretário. estabelecido, gerando a liberação de tário, apontando como barreira um No caso da aposentadoria por in- R$ 1 bilhão. “Nesse caso, os recursos emaranhado burocrático de difícil so- validez, Beltrame lembra que a eco- foram revertidos para novos candida- lução. “Se tivesse sido cancelado em nomia a ser gerada acontecerá num tos elegíveis ao Bolsa Família”, explica julho, até março já teríamos economi- prazo mais longo, devido às regras de Beltrame, afirmando que essa econo- zado R$ 1 bilhão”, diz. Para reverter transição previstas. No caso de o bene- mia possibilitou zerar a fila de solici- essa situação, o MDS e a Casa Civil fício ter sido concedido há cinco anos tantes em agosto do ano passado. redigiram um decreto que prevê o blo- ou mais, o pagamento só se encerra- Nesse esforço de verificação, o queio do benefício em no máximo 90 rá por completo depois de um ano e Benefício de Prestação Continuada dias após a primeira notificação. “Ao meio, sendo seis meses de pagamento (BPC) é o que mais trabalho tem dado invés da mensagem por carta, a noti- integral, seis meses de 50% do valor e ao ministério. O BPC garante o paga- ficação passará a ser feita no banco, 25% nos seis meses finais. No caso de mento de um salário mínimo ao ido- no momento em que a pessoa resga- benefícios com menos de cinco anos, so (65 anos ou mais) ou pessoa com ta o benefício, e será repetida por no o benefício integral fica mantido pela deficiência cuja família tenha renda máximo duas vezes, cada uma com quantidade de meses que correspon- per capita inferior a ¼ do salário mí- prazo de 30 dias para que o notifi- dam aos anos de aposentadoria. “Na nimo – estendida, por jurisprudência, cado se inclua no Cadastro Único ou aposentadoria por invalidez, o aper- a ½ salário mínimo. Em 2017, o BPC comprove que a renda adicional não é feiçoamento da gestão se dará com o atendeu 4,5 milhões de pessoas, tota- de sua família”, explica Beltrame. “O cumprimento da norma. A gente vai lizando R$ 46 bilhões. Pela regra, o texto passa por avaliação jurídica e, se limpar esse passivo e a partir daí res- benefício precisa ser revisado a cada tudo estiver OK, o decreto poderá ser peitar o prazo, melhorando a gover- dois anos, mas desde 2008 não era publicado em abril, dando uma nova nança do sistema.” monitorado, afirma Beltrame. Em dinâmica para o processo”, conclui.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 39 AGRONEGÓCIO

Arrumar a casa para garantir o futuro Demanda mundial ajuda, mas ampliação de mercado para a agropecuária brasileira depende de uma lista de tarefas domésticas que definirão sua competitividade

Solange Monteiro, de São Paulo e Rio de Janeiro

40 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CAPA AGRONEGÓCIO

O agro e o PIB (%) Ela foi a estrela do crescimento em 2017. Sem a safra recorde de 238 PIB PIB ex-agro PIB do agro milhões de toneladas de grãos re- gistrada no ano passado, que le- 2017 1% 0,40% 13 vou a atividade da agropecuária a 2018* 2,80% 3% -0,2 um salto de 13%, o PIB brasileiro teria crescido apenas 0,4%, menos 2019* 2,80% 2,70% 3,4 da metade do 1% registrado. Essa participação de peso – que também O agro e a inflação (%) se estendeu para a queda do IPCA –, no ano que marcou a saída da Preços Preços Bens IPCA Serviços Alimentos economia de um doloroso período administrados livres Industriais de recessão, parece ter sacudido a Arrumar a casa 2017 2,9 8 1,3 4,5 -4,8 1 inércia binária que costuma con- trapor indústria e campo como mo- 2018* 3,3 6 2,4 3,2 1,2 2 tores da economia, tão combatida para garantir *Projeção. Fonte: FGV IBRE. por representantes do setor como o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues. “Precisamos compreen- o futuro der o papel do agro para o país, e e ganhar mercados na próxima dé- frango, 33,4%, seguida pela suína, não para o agricultor”, disse à Con- cada. Projeções de longo prazo fei- 28,6% e a bovina, com 20,5%. juntura Econômica em setembro de tas pelo Ministério da Agricultura, “De modo geral, a perspecti- 2017, revelando o desejo de promo- Pecuária e Abastecimento (Mapa) va futura para o agro brasileiro é ver uma “fraternidade siamesa” en- em agosto do ano passado davam magnífica, pois o mundo continua- tre rural e urbano. conta de um aumento de 24% na rá precisando de mais alimentos”, Este ano não deverá contar com produção e 17% na área planta- diz Renato Conchon, do Núcleo o mesmo impulso do agro. De acor- da até a safra 2026/27, puxado Econômico da Confederação Na- do às estimativas do FGV IBRE, em principalmente pelas culturas de cional da Agricultura (CNA), esti- 2018 a contribuição do setor para milho, soja e trigo. Uma evolução mando um aumento médio da de- o PIB será negativa em 0,2 ponto menor do que na década iniciada manda agrícola global de 1,1% ao percentual, puxada principalmente em 2006/07 – de 63% na produ- ano até 2050. “Se olharmos para por uma queda na safra de grãos. ção, segundo a Conab – mas que os resultados do agronegócio no Segundo projeções de março da está alinhada ao ritmo do comér- ano passado – US$ 96 bilhões em Companhia Nacional de Abaste- cio mundial que, de acordo à FAO, exportação e US$ 82 bilhões de re- cimento (Conab), a colheita de continuará crescendo, mas na me- sultado na balança comercial – po- grãos deverá cair para 226 milhões tade do ritmo registrado na déca- demos perceber de que potencial se de toneladas. Mesmo assim, ainda da passada. Para a produção de trata, isso sem mencionar o mer- será a segunda melhor safra da his- carnes, a estimativa era de acrés- cado interno brasileiro, de mais de tória, espelhando a disposição de cimo de 28% no mesmo período, 200 milhões de pessoas”, completa um setor que ainda quer expandir com maior crescimento da carne de Luiz Cornacchioni, diretor execu-

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 41 CAPA AGRONEGÓCIO

tivo da Associação Brasileira do Para discutir essa agenda, o verdade, falamos de uma linha que Agronegócio (Abag). FGV IBRE e a revista Conjuntura é secularmente declinante, em que Mas os especialistas do setor que Econômica promoveram dia 16 de identificamos alguns picos de pre- fazem coro no otimismo também março, em São Paulo, o I Seminário ço – como na crise do petróleo, no compartilham do diagnóstico de que Desafios e Perspectivas do Agrone- boom de demanda chinesa – mas mercado potencial não é mercado gócio Brasileiro. Na ocasião, Celso cuja tendência é cadente”, diz. ganho, e para continuar conquis- Vegro, diretor técnico do Instituto Formular cenários plausíveis de in- tando terreno o agro brasileiro não de Economia Agrícola (IEA), desta- vestimento em produção nesse con- poderá negligenciar uma agenda do- cou a importância cada vez maior texto, diz Vegro, demandará o uso méstica principalmente nos campos da produtividade em um cenário cada vez mais intensivo de tecnolo- de infraestrutura logística, tecnolo- cujo horizonte é de queda de preço gias de ponta. Entre as implicações gia e financiamento. das principais commodities. “Na dessa mudança está a demanda de um perfil mais qualificado de mão de obra. “Se compararmos, por Brasil deve ampliar a oferta exemplo, a evolução do número de ocupações por estabelecimento no 2016/17 2026/27 variação % cultivo da cana e numa empresa de sementes certificadas na última dé- Produção (mil t) 232.024 288.173 24,5 cada, já identificamos a tendência Grãos Área plantada (mil ha) 60.362 70.828 17,3 de estagnação no primeiro e de au- mento no segundo”, exemplifica. Frango (mil t) 13.440 17.930 33,40% O que também significa intensifi- cação de uso do capital em detri- Carnes Bovina 9.500 11.444 20,5 mento do trabalho. “Se observar- Suína 3.815 4.905 28,6 mos os últimos 20 anos, enquanto a participação do setor agrícola no Total 26.755 34.278 28,1 PIB mundial se manteve na casa dos 6%, a participação da mão de obra empregada no setor caiu de Entre os grãos, destaque para soja e milho 25% para 9%”, diz Alan Bojanic, (variação % projetada entre 2016/17 e 2026/27) representante da FAO no Brasil. 37,8 Bojanic lembra que até 2050 a 33,5 população mundial se aproximará 29,7 de 10 bilhões, será predominante- 27,9 mente urbana, e com hábitos ali- 23,4 mentares diferentes, com maior in- 17,6 serção de proteína animal, lácteos e processados. O que exigirá do Brasil mais empenho no acesso a mercados. “Na agropecuária, a dificuldade des- se acesso envolve uma área cinzenta de barreiras não tarifárias que, como

Produção Consumo Exportação observava o ex-diretor da OMC Pas- cal Lamy, muitas vezes refletem valo- Soja Milho res culturais, escolhas e prioridades, Fonte: Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Secretaria de Política Agrícola. o que dificulta uma negociação”, diz

42 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CAPA AGRONEGÓCIO

Lia Valls, pesquisadora da Economia Vegro, da IEA, lembra que nesse Aplicada da FGV IBRE. Luís Rangel, campeonato o Brasil ainda depen- secretário de Defesa Agropecuária de do resultado de outras partidas. do Ministério da Agricultura, acres- Principalmente a que o presidente centa que a sofisticação da demanda Trump disputa contra o livre-comér- também se reflete na complexidade cio. Para Vegro, apesar de a recen- de normas a serem observadas, en- te sobretaxa imposta pelos Estados volvendo proteção ao meio ambien- Unidos ao aço e alumínio – da qual te, respeito às relações trabalhistas, o Brasil conseguiu escapar – poder informações claras e detalhadas, “o representar ganhos no curto prazo que demanda uma modernização da para as commodities agrícolas bra- defesa agropecuária, principalmente sileiras, que devem ganhar participa- no aspecto da comunicação de ris- ção no abastecimento dos mercados co”. Rangel destaca que, no traba- asiáticos no caso de retaliação chine- lho de acesso a mercados, não existe sa, no longo prazo os efeitos devem lógica matemática. “Abrimos recen- ser ruins para o comércio internacio- temente o mercado sul-coreano para nal como um todo. “Medidas prote- mangas e agora conseguimos abrir cionistas partem da visão equivoca- para os suínos, mas tivemos a decep- da que trata déficit comercial como ção de ter de operar com 35% de ta- prejuízo. Isso poderá gerar um efeito rifa”, exemplifica. A estratégia, para cascata de retaliações que transfor- “Medidas protecionistas Marcos Jank, CEO da Asia- mará o comércio mundial numa eco- partem da visão equivocada Agro Alliance, é estar cada vez mais nomia de balcão”, compara. presente: reforçar o posicionamento Nada, entretanto, que deva dis- que trata déficit comercial diplomático e comercial sempre que trair o setor das tarefas domésticas como prejuízo” possível, principalmente na Ásia, re- pendentes, que garantirão a muscu- Celso Vegro, Instituto de gião onde o crescimento de mercado latura do agro brasileiro para en- Economia Agrícola (IEA) será mais intenso (ver página 52). frentar qualquer cenário. Foto: Piti Reali

Demanda cresce, mas desacelera Projeção para commodities selecionadas, em volume 7,70 5,93

3,83 2,96 3,32 2,12 2,08 1,37 1,63 1,45 0,43

-0,26 -1,45

-3,68 Milho Soja Carne de porco Carne de frango Carne bovina Ethanol Biodiesel

2007-16 2017-26

Fonte: OECD/FAO (2017), “OECD-FAO Agricultural Outlook”, OECD Agriculture statistics (database), http://dx.doi.org/10.1787/agr-data-en.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 43 CAPA AGRONEGÓCIO

Crédito seguro e governança

Um dos elementos de apoio ao 2%”, afirma. “Hoje, o crédito rural veio do aumento da presença do agronegócio que não acompanhou atende a apenas 30% da demanda financiamento de fornecedores de a magnitude do aumento da produ- de custeio dos produtores. Recursos sementes, fertilizantes, entre ou- ção em área (57% nos últimos 25 públicos e dos compulsórios que tros insumos, e de tradings, na anos) e produção (248% no mesmo os bancos por lei podem deixar de antecipação do pagamento de ex- período) e hoje preocupa os atores recolher desde que direcionados a portações. Esse arranjo, comenta do setor é o financiamento. Con- esse setor são pouco para a deman- Fernando Lobo Pimentel, sócio da chon, da CNA, ilustra esse distan- da que temos”, completa Cesário Agrosecurity Consultoria, demons- ciamento comparando a fatia do Ramalho da Silva, vice-presidente trou ser virtuoso em momentos orçamento público dedicada à fun- da Abramilho, ex-presidente da So- como a crise financeira internacio- ção agricultura na década de 1980 ciedade Rural Brasileira. nal de 2008/09, e na última reces- e no período mais recente. “Entre O equilíbrio à baixa presença são brasileira, em que a atividade 1980 e 1988, esses gastos represen- do crédito financeiro – que em ou- no campo não foi comprometida. tavam 8,5% do orçamento. Entre tros países cobre grande parte da Mas, quando cresce muito e de- 1990 e 2015, essa média caiu para demanda dos produtores rurais – sordenadamente, também deixa

Evolução da área assegurada e valor subvencionado pelo Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR) 783

558 560 499 411 318 253 158 165 117 61 31 1,7 2,2 4,6 6,5 4,7 4,4 5,1 9,8 9,8 2,6 5,4 4,8

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017

Área assegurada (milhões hectares) Total subvencionado (em R$ milhões)

Fontes: Atlas do Seguro Rural. Ministério do Planejamento.

44 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CAPA AGRONEGÓCIO

transparecer vícios. Atualmente, na Cédula de Produto Rural (CPR) segundo Pimentel, o volume des- brasileira. “Mas lá eles já criaram se crédito comercial alcança os uma central de registro eletrônico R$ 200 bilhões. Como compara- de todas as operações, que é o que ção, o valor de crédito rural pro- nos falta”, diz. gramado no Plano Agrícola Pecuá- Entre os elementos que compro- rio (PAP) para a safra 2017/18 é de metem o cenário do crédito, o mais R$ 188 bilhões, sendo R$ 155 bi- citado entre os especialistas é a bai- lhões para custeio e R$ 38 bilhões xa presença do seguro rural, que para investimento. “Esses atores hoje cobre menos de 10% da área comerciais buscam profissionalizar cultivada. Em entrevista à Conjun- seu crédito, para apresentar linhas tura Econômica em setembro de diretas mais robustas em operações 2017, o ex-ministro da agricultura estruturadas. E é uma atividade Roberto Rodrigues, coordenador normal, da mesma forma que mon- do Centro de Agronegócio da FGV tadoras de automóveis têm na ofer- EESP, moderador do seminário, ta de financiamento uma forma de tratou do seguro rural como “o fidelizar clientes”, diz. “O proble- grande fantasma” quando se trata ma é que, no caso do agro, hoje os da falta de crédito. “De longe, o se- bancos não enxergam o que o pro- guro rural é a mais importante pla- dutor deve para as fornecedoras e taforma para um agro competitivo “Hoje os bancos não tradings, e estas não enxergam o e duradouro, e que infelizmente que acontece no sistema financei- tem tido seus recursos fortemente enxergam o que o produtor ro. Dado o montante envolvido, contingenciados”, afirmava. Diag- deve para fornecedoras e isso gera um fator de risco sistêmi- nóstico corroborado por Conchon, tradings, e vice-versa. Dado o co”, completa Pimentel. da CNA. “Não temos uma política montante envolvido, isso gera Para melhorar a governança ampla que atenda às necessidades do sistema e possibilitar um cres- de um país tropical. Uma indústria um fator de risco sistêmico” cimento da agropecuária sem so- de automóveis, se ficar parada, tem Fernando Lobo Pimentel, bressaltos, Pimentel defendeu no prejuízo. Mas ela não tem custo. Já Agrosecurity seminário realizado por esta re- um produtor tem que produzir e Foto: Piti Reali vista a criação de uma central de pode enfrentar chuva demais, sol registros de ônus e gravames de demais, pragas, questões inerentes qualquer natureza – já em discus- que não se equilibram sem um se- linhas de investimento não prio- são em Brasília – que transpareça o guro adequado”, exemplifica. E a ritárias para ampliar o Prêmio do nível de alavancagem de cada ator, conseqeunte falta de escala, diz Sil- Seguro Rural (PSR)”, diz. “Outra para que este seja enfrentado com va, torna o seguro caro. “No ano frente seria pegar parte da subven- sua capacidade de geração de caixa passado, fiz seguro pagando 8% so- ção de taxa de juros neste momento e permita uma avaliação adequada bre o valor da produção, enquanto em que a Selic está baixa e transfe- para a cessão de crédito. Ele cita nos Estados Unidos esse percentual rir para a subvenção de prêmio de como exemplo o caso da Ucrâ- não passa de 3%”, compara. seguro, fomentando um aumento nia, que após a crise financeira de Na opinião de Conchon, uma do volume e área de cobertura, in- 2008/09 teve que buscar alternati- das alternativas para melhorar esse centivando a participação do finan- vas de financiamento para o agro e quadro seria revisar as linhas pú- ciador bancário”, sugere Pimentel. em 2014 criou um modelo de ope- blicas de apoio ao agro. “O cober- O sócio da Agrosecurity ainda cita ração de penhor de safra inspirado tor é curto, talvez coubesse limitar o desenvolvimento de modelos de

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 45 CAPA AGRONEGÓCIO

Recursos públicos para custeio e investimento seguros com custo de sinistro mais baixo, de programados para 2017/18 menor custo para o produtor, como os vincula- (em R$ milhões) dos a índices de chuva e produtividade. Cami- nho apoiado por Silva, que vê na oferta privada Crédito rural (geral) 74.130 a saída para a ampliação desse mercado. “Para que isso aconteça, precisamos saber mais sobre Pronamp 18.000 o país – o cadastro ambiental rural (CAR), por Funcafé 4.890 exemplo, tem ajudado a ampliar nosso conhe- cimento sobre as propriedades rurais brasilei- Fundos constitucionais 3.580 CUSTEIO ras –, e priorizar a transparência”, diz o ex-pre- Estocagem de álcool 2.000 sidente da Sociedade Rural Brasileira. “Temos LCA (taxa controlada) 13.650 uma produção anual de 230 milhões de tone- ladas de grãos; há 20 anos, eram 60 milhões. Recursos livres 34.000 Não dá para contar só com o apoio de recursos TOTAL 150.250 públicos. Estes devem garantir o financiamento de agricultura familiar, de pequeno porte, que Moderfrota 9.200 demanda tratamento especial”, diz. Moderagro 640 Outro elemento que influencia indiretamen- te o mercado de crédito e não pode ser negli- Moderinfra 600 genciado quando se pensa em um crescimento ABC 2.130 virtuoso do agro no longo prazo, na opinião de Pimentel, é o tributário. “O atual modelo tri- PCA 1.600 butário induz o produtor a atuar como pessoa Inovagro 1.260 física, que é maioria no setor. Mesmo os que hoje faturam R$ 1 bilhão ao ano seguem nesse Pronamp 3.710 regime, algo que não se vê em outro lugar do INVESTIMENTO Prodecoop 1.700 mundo”, diz. Segundo o consultor, a falta de pejotização no agro traz duas consequências. Procap-Agro 2.200 “Ao invés de se capitalizar, o produtor acaba Fundos constitucionais 5.884 reinvestindo na atividade para não ter lucro, e fica sem caixa quando há problema de sa- Bancos Coop. 600 fra. Sem caixa e sem seguro, terá problema Provenova Rural 1.500 de crédito”, diz. Além disso, Pimentel explica que a contratação de financiamento com em- BNDES - Agro 2.000 presas comerciais (fornecedoras de insumo e Outros a juros livres 5.125 tradings) como pessoa física traz insegurança jurídica, por não estar definido se essa contra- TOTAL 38.149 tação deve ser regulada pelo código civil ou do TOTAL PROGRAMADO 188.400 consumidor, o que altera o ônus da prova em caso de cobrança de dívida. “Se a tributação da Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2017/18 - Mapa. agricultura fosse revisada, de forma a gravar o produtor somente nos anos em que de fato ele tenha registrado ganho, e num valor razoá- vel, se poderia trabalhar para regular também a pejotização no setor a partir de um nível de faturamento”, diz.

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Logística o velho nó

O descompasso entre o avanço da tio do grão, comparando-os com os Ferreira, entretanto, é otimista produção e das vias de escoamento ganhos se eles contassem com toda a quanto ao futuro do escoamento de continua sendo problemático para melhoria potencial no transporte de grãos pelo norte do país, a começar o agronegócio. E o trecho da BR- sua produção. “No caso da tecnolo- pelo avanço do projeto da ferrovia 163 que cruza o em gia, sua competitividade aumentaria Ferrogrão, que fará o trajeto de cer- direção aos terminais portuários de de 13% a 18%, dependendo do sis- ca de mil quilômetros de Sinop (MT) Miritituba, no Pará – de onde os tema atualmente usado pelo agricul- a Miritituba. “Há grandes chances grãos seguem pelo rio Tapajós até tor; já a melhoria logística propor- de que a Ferrogrão seja licitada no Santarém, e de lá para o exterior cionaria ganhos de 34% a 38%. É início do segundo semestre”, diz, –, segue como ícone dessa dificul- uma grande diferença. Não há o que indicando o interesse de grandes dade. O ponto crítico são 90 qui- discutir”, afirma, ressaltando ainda a tradings – entre elas Bunge, Cargill lômetros ainda não asfaltados dos necessidade de investimento privado. e ADM – em acelerar o projeto. quais, nas estimativas de Edeon “O orçamento federal previsto e exe- “Essa ferrovia tem tudo para fazer Vaz Ferreira, diretor executivo do cutado em 2017 totalizou 212 km o diferencial de preço. Pelo proje- Movimento Pró-Logística da Apro- de rodovias. Não há recursos para to apresentado, o frete baixaria a soja, apenas 60 km serão concluí- cobrir o que necessitamos, incluindo R$ 80 por tonelada para o mes- dos este ano. “Não é o desejável, ferrovias e hidrovias.” mo percurso que hoje fazemos a porque estamos perdendo competi- tividade. Para se ter uma ideia, o valor de frete adequado para esse Evolução da capacidade de embarque de soja e milho trecho seria de R$ 145 por tonela- pelos portos brasileiros da, mas hoje está em R$ 230, devi- do à incerteza de quanto um cami- nhão precisa esperar para concluir a passagem”, diz. Para ilustrar o peso dessa defa- sagem entre produção e logística, Evaristo Eduardo de Miranda, chefe- 34 83 68 108 92 30 geral do Grupo de Inteligência Terri- Capacidade em 2016 (t) Capacidade potencial Aumento potencial (%) torial Estratégica (Gite) da Embrapa, em 2025 (t) cita estudo da Embrapa que calcula Arco Norte (portos de Itacoatiara, Santarém, Belém/Barbacena, Santana/Macapá, Itaqui/São Luís) os ganhos de competitividade que os produtores de soja do norte de Mato Arco Sul (portos de Salvador, Vitória, Santos, Paranaguá, São Francisco do Sul, Rio Grande) Grosso conquistariam se adotassem toda a tecnologia de ponta no plan- Fonte: Embrapa Territorial.

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acordo de cooperação assinado com A essa iniciativa se soma o Plano as autoridades do Canal do Panamá Nacional de Logística (PNL), apre- para a realização de estudos visando sentado a consulta pública pela Em- à utilização do canal para transporte presa de Planejamento e Logística de grãos brasileiros. (EPL) no dia 16 de março. “Essa ini- Outro motivo de confiança dos ciativa resgata a capacidade de pla- especialistas é o aprimoramento dos nejamento que o Estado foi perdendo dados disponíveis para o planeja- com o tempo”, diz José Carlos Me- mento logístico do setor. “Não ha- daglia Filho, diretor-presidente da via no Brasil um sistema de gestão EPL. “A ideia é trabalhar o conceito da macrologística da agropecuária. do Geipot (Grupo Executivo de In- Enquanto na área de mineração ne- tegração da Política de Transportes, nhum projeto novo acontece sem criado em 1965) e mirar ao exemplo envolver a questão logística, o agro da Empresa de Planejamento Ener- nunca contou com essa inteligência gético (EPE), que projeta o avanço territorial”, diz Miranda, indicando do setor elétrico no horizonte de que o agronegócio já superou a mine- dez anos”, descreve. O PNL detalha ração em demanda da malha viária, matrizes de origem e destino com a com 1,6 bilhão de toneladas – levan- quantidade total de carga movimen- do em conta insumos, produtos e co- tada por grupo de produtos, levando produtos de 40 cadeias – contra 1,4 em conta diferentes cenários de pro- “O orçamento federal previsto bilhão dos minérios. “São cerca de jeção de demanda. Somando projetos e executado em 2017 42,7 milhões de fretes por ano, que em rodovias e ferrovias do programa precisam ser organizados”, afirma. Avançar e uma lista de obras de ade- totalizou 212 km de rodovias. Esse levantamento foi feito através quação em ferrovias, o PNL projeta Não há recursos para cobrir o do “Sistema de Inteligência Territo- que até 2025 seja possível reduzir que necessitamos” rial Estratégica da Macro-logística os valores médios de frete em 14%, Pecuária Brasileira”, uma base de no agregado das atividades econô- Evaristo Eduardo de Miranda, dados georreferenciada ­disponível micas, gerando uma economia de Embrapa no site da Embrapa (www.embrapa. R$ 54,7 bilhões ao ano e a redução Foto: Piti Reali br/macrologistica) que reúne infor- de gargalos logísticos em 60%, de mações como cargas da agricultu- 31,6 mil km para 12,6 mil km. “Os R$ 230”, diz. A projeção do Movi- ra na malha viária; análise gráfica, ganhos se dão principalmente com mento Pró-Logística é de que, enca- numérica a cartográfica da produ- a melhor utilização da malha que minhando os projetos ferroviário, ro- ção; modelagem das exportações de temos hoje”, diz, destacando o im- doviário e hidroviário previstos para grãos e delimitação e qualificação pacto das três rodovias qualificadas a região, em 2025 o arco norte tripli- das bacias logísticas. “Temos o deta- no PPI: a Norte-Sul, “que estamos que o atual volume de escoamento lhamento de dez cadeias, que nos dá prestes a publicar o edital de leilão”; de grãos, de 26 milhões em 2017. subsídios para estudar como precisa- a Ferrogrão, “que temos condições “No futuro, a capacidade de movi- mos combinar os modais. Em maio de lançar o edital ainda em 2018”, mentação se equiparará à dos portos realizaremos um seminário para e a Fiol, “cujo trecho que está sendo do Sul/Sudeste, que deverá saltar dos apresentar o sistema, incorporando projetado, com conclusão este ano, atuais 84 milhões de toneladas para sugestões técnicas, para então tra- passa por uma zona de produção de 107 milhões”, afirma. E, para facili- balhar conexões de micrologística e minério, mas sua continuidade abar- tar o caminho para a Ásia a partir do com projetos estaduais”, descreve o cará a produção agrícola do centro norte do país, Ferreira ainda cita um executivo da Embrapa. para o oeste da Bahia”.

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Inovação reflexo do futuro

Outro item dessa agenda de compe- e buscar alimentos mais saudáveis, potência agrária a novas tecnologias titividade abordado no seminário da que trarão mais valor nutritivo, pre- que hoje já têm impacto comprova- Conjuntura Econômica foram os de- venção de doenças, além de novas do na produtividade do setor. Entre safios tecnológicos que a agropecuá­ texturas, sabores e tamanhos”, diz elas, Machado aponta o ganho gera- ria deverá enfrentar para garantir Tito Ryff, vice-presidente da Socie- do pela substituição do uso de fertili- não apenas ganhos de produtivida- dade Nacional de Agricultura (SNA), zantes – em sua maioria importados, de em um cenário de preços caden- comparando os horizontes da agri- com preços atrelados à cotação do tes como adequação às mudanças cultura de alta precisão – que soma petróleo – pelo sistema de fixação na demanda futura por alimentos e tecnologia da informação, robótica e biológica de nitrogênio na cultura da por energia limpa, respondendo à nanotecnologia –, da biotecnologia e soja. “Somente na safra de 2016/17, iniciativa global de mitigar possíveis da engenharia genética a cenários de a adoção desse método trouxe uma impactos provocados pelas mudan- quase ficção científica. economia de US$ 20 bilhões”, diz ças climáticas. “Se até recentemente No caso brasileiro, Rui Machado, Machado. Do lado da pecuária, o o foco da inovação na agropecuária chefe-geral da Embrapa Pecuária Su- especialista cita o uso de câmeras se concentrou em formas de pou- deste, ressalta que o investimento em térmicas infravermelhas para medir par terra, trabalho e capital, daqui pesquisa e inovação tem transforma- o ponto de abate do gado, evitan- por diante estará em poupar água e do o agro brasileiro há várias dé- do deslocamentos dos animais e sua energia, reduzir o tempo de cultivo cadas, da conversão do cerrado em consequente perda de peso. “Acom-

Uso de tecnologia reduz importação de fertilizantes déficit, em bilhões de US$ 9,64 9,16

7,78 7,36 6,48

2013 2014 2015 2016 2017 Produção de grãos 2012/13: 188 milhões/ton Produção de grãos 2016/17: 238 milhões/ton Fonte: Anuário Estatístico da Anda.

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panhamos o estudo de caso numa fa- cio (Abag). O apoio técnico e trans- zenda de confinamento com 50 mil ferência tecnológica aos produtores cabeças de gado em 120 hectares. – em geral, de médio porte – é co- Levando em conta que cada desloca- financiado por uma rede de fomen- mento para pesagem representava a to formada em 2012 por Embrapa, perda de 200 gramas por animal, o a cooperativa Cocamar e empresas sistema evitou uma perda total de 10 como John Deere e Syngenta. “No toneladas de carne”, afirma. início de abril lançaremos a segun- Outro exemplo de inovação que da etapa desse trabalho”, afirma nos últimos anos tem garantido ga- Matturo, indicando que o progra- nhos a muitos produtores brasileiros ma já está próximo de abranger 14 é o programa de integração lavoura- milhões de hectares. O lançamento pecuária-floresta (ILPF), que promo- transformou a rede de fomento em ve cultivos sucessivos ou simultâneos associação e somou Bradesco e SOS aliados à pecuária e à eventual con- Mata Atlântica entre os participan- servação ou recuperação ambiental tes. Rodrigo Lima, diretor-geral da numa mesma área. Com esse siste- Agroícone, ressalta a importância ma, os produtores têm aperfeiçoado do uso da ILPF para promover a am- suas técnicas e estendido o período pliação da área agricultável do país rentável de seu campo. “Em uma sem desmatamento, a partir de pas- fazenda em Altônia (PR), que ade- tagens que hoje registram baixa pro- “Só no cerrado existem riu ao programa em 2014 e passou dutividade. “Só no cerrado existem 18,5 milhões de hectares de a intercalar o plantio de soja com a 18,5 milhões de hectares de áreas áreas de pastagem de alta e produção de carne, a renda saltou de de pastagem de alta e média aptidão R$ 530 por hectare antes da reforma para agricultura, que nos próximos média aptidão para agricultura” para R$ 4,9 mil”, exemplifica Fran- 20 anos poderão ser incorporadas”, Rodrigo Lima, Agroícone cisco Matturo, vice-presidente da diz Lima, ressaltando que a região Associação Brasileira do Agronegó- conta com a vantagem de registrar Foto: Piti Reali menor risco climático e consequente perda de safra. “O Brasil levou ao Transporte: o desafio também é ambiental Acordo de Paris a meta de restaurar 15 milhões de hectares, e aí temos participação de cada atividade no total de emissões de gases do uma oportunidade”, inclui. efeito estufa, na geração e uso de energia no Brasil A preocupação ambiental tam- 43% bém tem direcionado o agronegócio a atender a fins não alimentares, 31% como a geração de energia. Nessa frente, o Brasil poderá ganhar novo impulso com o programa Renova- 16% bio, que promete a criação de um 10% mercado no qual produtores de biocombustíveis comercializarão créditos de carbono com distribui- doras de combustíveis fósseis, que transporte indústria energia elétrica outros deverão cumprir metas preestabele- Fonte: MME, com dados de 2014. cidas de emissões de gases de efeito

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estufa. Criado e aprovado no Con- sumo oscilará entre 77,1 bilhões e gresso em apenas um ano, e cujo 97,1 bilhões de gasolina equivalen- decreto de regulamentação foi as- te. Em 2017 nossa produção foi de sinado pelo presidente em meados 49 bilhões de gasolina equivalente, o de março, o projeto tem sido come- que inclui etanol anidro e hidratado. morado especialmente pelo setor de Levando em conta nossa capacidade etanol, que busca previsibilidade de de produção atual, significa déficit preços e demanda logo de um pe- de 28 a 48 bilhões de litros.” ríodo de intervenção de preços que O diretor da Datagro citou a im- levou muitas usinas a fechar suas portância da adoção da tecnologia portas. “Já quantificamos US$ 1,6 de carro elétrico que use biocom- trilhão projetados de investimento bustível, como sendo a de menor até 2026”, diz Plínio Nastari, dire- impacto ambiental. Ele também tor da consultoria Datagro. lembrou que, apesar de o Brasil ter Nastari defende que as externa- uma matriz elétrica considerada a lidades do programa abrangem ob- mais limpa do mundo, ainda pre- jetivos de políticas em várias áreas. cisa reduzir a pegada ambiental do Ainda no campo dos combustíveis, setor de transportes, que concentra cita o potencial de reduzir a alta de- a maior parte das emissões de gases pendência brasileira de importação de efeito estufa do país, 43% do to- de derivados de petróleo. No seminá- tal, muito acima da média mundial, “Já quantificamos rio, traçou cenários da demanda por de 23%. “E isso apesar de contar- combustível do ciclo Otto para 2030 mos com 26,8% de renováveis na US$ 1,6 trilhão projetados tomando variações médias do PIB de matriz de combustíveis”, diz. “Isso de investimento em 2% a 3,5% ao ano, e uma elasticida- aponta às oportunidades que temos biocombustíveis até 2026” de do ciclo Otto de 1,22 para cada em recuperar a extensa área hoje Plinio Nastari, Datagro ponto percentual de PIB. “A partir ocupada por pastagens degradadas dessas premissas, a projeção de con- com cana; estimular que a meta Foto: Piti Reali

de mais que dobrar a produção de Efeitos da adoção da ILPF milho nos próximos oito anos seja cumprida também para produção 10 de etanol; e impulsionar o aumento do percentual de esmagamento da soja, gerando mais valor agregado. 5 Se ampliarmos o esmagamento de 40% para 65% do total produzi- 0 do permitiremos que a produção de biodiesel cresça de 4,2 bilhões Índices de desempenho para 18 bilhões de litros/ano. Isso -5 Eficiência Mudança Mudança Consumo Uso de Uso de Consumo de Geração possibilitará geração de renda des- tecnológica no uso no uso de água insumos insumos energia própria, centralizada, expandir a geração direto indireto agrícolas veterinários reúso e da terra da terra e matérias- autonomia distribuída, e transformar exceden- primas tes em biocombustíveis para reduzir Fonte: Embrapa, 2017. a pressão logística”, defende.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 51 CAPA AGRONEGÓCIO

Foto: Divulgação

“Temos que reforçar nossa presença nos grandes mercados”

Marcos Jank CEO Asia-Brazil Agro Alliance, em Cingapura

Conjuntura Econômica – Como ficiente de plantas habilitadas para O frango neste momento está so- avalia o potencial de crescimento atender aos volumes de carnes de frendo um processo de investiga- da demanda asiática por proteína ave e bovina que são requeridos. ção antidumping na China. No ano animal e das exportações brasilei- Na carne bovina, apesar de o Bra- passado o setor açucareiro recebeu ras de carne para essa região? sil ser hoje o segundo maior ex- a imposição de uma salvaguarda O aumento da demanda tem se portador do mundo e ter o maior da China que simplesmente baniu confirmado, e ainda existe muito rebanho comercial, atualmente cin- o Brasil do mercado. Se somar açú- espaço para crescimento por aqui. co grandes países asiáticos encon- car e frango, são exportações de A média anual de consumo de car- tram-se literalmente fechados para US$ 1,7 bilhão por ano para esse ne na Ásia é de 30 kg per capita, o Brasil: Japão, Coreia, Tailândia, país. Basicamente, temos buscado contra 10 kg nos países mais po- Indonésia e Vietnã. Fizemos um le- conversar com a indústria chinesa bres do mundo, e muito aquém do vantamento a partir do consumo para encontrar mecanismos que consumo da camada mais rica da atual de carne bovina desses paí- permitam o acesso a esses dois pro- população global, da ordem de 100 ses, calculando quanto isso repre- dutos. Também existe neste mo- kg de carne por ano. A despeito sentaria se eles estivessem abertos mento bastante interesse da China dessa enorme demanda potencial, à importação de carne brasileira. em etanol. Hoje o país sofre com entretanto, não está garantido que Tomando como premissa uma ven- poluição do ar e está preocupado a carne brasileira chegará a esses da equivalente à média registrada em se mostrar proativo na área de mercados, pois existe um impor- pelo Brasil em suas atuais exporta- mudança do clima. tante desafio de acesso. Neste caso, ções, somente esses cinco mercados principalmente relacionado a ques- poderiam somar vendas anuais de Nesse caso, qual a estratégia? tões sanitárias, técnicas, e mesmo cerca de US$ 1 bilhão. O movimento mais antigo, que barreiras burocráticas – como a continua acontecendo, é o de au- lentidão no processo de habilitação Há mais de um ano você repre- mentar a mistura de etanol na ga- de plantas exportadoras. Por exem- senta exportadores brasileiros de solina. A China – tanto quanto plo, recebemos quase todos os dias carne e de açúcar e etanol na Ásia. Japão e Índia – tem um programa pedidos da China para aquisição Quais os temas mais sensíveis para atingir 10% de mistura de de pés de frango, que eles gostam hoje no caso dessas commodities etanol. Mas como os programas muito, mas não temos número su- em sua agenda de trabalho? não são mandatórios, o percentual

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real de mistura hoje gira em torno em 2017, somando agora repre- de 2% nesses países, volumes bai- O Brasil fez uma sentações em capitais como Nova xos em relação a suas próprias me- Delhi, Hanoi, Bangkok e Pequim). tas. O foco está no potencial futuro Como é fundamental que o setor do desenvolvimento do etanol ce- revolução indiscutível privado também se faça mais pre- lulósico, mas eles poderiam desde sente aqui na Ásia. já importar o etanol de cana. Além no campo, mas disso, acompanhamos o desenvol- A falta de acordos comerciais tam- vimento da tecnologia de células a infelizmente ainda bém mina possíveis canais institu- combustível dos carros elétricos, de cionais para a gestão de uma crise? interesse dos chineses, que também temos dificuldades Veja, uma das coisas que faz com pode ser benéfica para o etanol. que esses países que mencionei – Outra questão importante nesse imensas para Austrália, Nova Zelândia, Chile e quesito é a forte pressão dos Esta- Canadá – estejam mais presentes é dos Unidos. Eles estão com exce- consolidar acordos porque eles não têm mercado in- dente de etanol de milho e o pre- terno importante, o que os torna sidente Trump colocou a “faca no totalmente dependentes da expor- pescoço” dos países que registram tação. Isso os impele a desenvolver grande superávit comercial com os de sofrer um fechamento em série. uma estrutura voltada para o co- EUA, forçando-os a abrir mercado Entretanto, para garantir mercado, mércio exterior que particularmen- aos produtos americanos. São can- não basta mandar missão quando te considero admirável, coberta por didatos a essa preferência em favor tem uma crise. Quando comparo o acordos – em geral de preferências dos EUA o etanol de milho e o fran- Brasil com Nova Zelândia, Chile, tarifárias ou de livre-comércio – e go. Esse é um dos fatores por trás Canadá e Austrália, países meno- estruturas de representação muito do problema que estamos tendo na res que a gente, a nossa estrutura mais robustas que as que o Brasil China, somado à combinação de de resposta, de participação no po- possui. Esses acordos comerciais barreiras tarifárias e não-tarifárias, licy making, é inferior. Temos que preveem uma série de gatilhos, en- sanitárias e burocráticas. reforçar imediatamente nossa pre- tre outros instrumentos. Por exem- sença física nos grandes mercados, plo, quando o presidente Trump Recentemente, em fevereiro, tive- e particularmente na Ásia, destino anunciou a sobretaxa ao aço e ao mos novo desdobramento da Ope- de 50% da exportação do agrone- alumínio, abriu imediatamente a ração Carne Fraca. Como avalia o gócio brasileiro. Na área sanitária, porta aos parceiros do Nafta, Ca- posicionamento da representação todos os dias tem algo acontecendo nadá e México. Ainda que essa diplomática e comercial do gover- em algum lugar do mundo, e o que ação seja horrorosa, uma volta ao no brasileiro para proteger os mer- os países querem, em muitos casos, passado e um reforço ao desmonte cados importadores do Brasil? é simplesmente esclarecimentos rá- do sistema multilateral de comér- Esse segundo episódio não teve pidos e completos sobre temas es- cio, foi assim que aconteceu: uma tanta repercussão, pois foi apre- pecíficos. Em março, por exemplo, preferência clara aos países com os sentado como sendo um problema houve uma epidemia de gripe avi- quais há acordos comerciais assi- localizado, do passado. Mas no ária na Ásia. Então vários países nados. Acho que o Brasil fez uma primeiro episódio, em que se ques- perguntam ao Brasil o que estamos revolução indiscutível no campo, tionou diretamente a qualidade da fazendo para evitá-la. A atitude re- mas infelizmente a gente ainda tem carne, a reação imediata do gover- cente do Ministério de Agricultura dificuldades imensas para consoli- no foi boa. O Brasil exporta US$ 18 de aumentar o número de adidos é dar acordos comerciais, que deve- bilhões em carnes para mais de 150 absolutamente necessária (passou riam se somar a uma maior presen- países do mundo, e corria o risco de oito pessoas em 2015 para 22 ça física. (S.M.)

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 53 COMÉRCIO EXTERIOR

Brasil na OCDE: esperanças e controvérsias

Chico Santos, para Conjuntura Econômica, do Rio de Janeiro

O Plano Marshall, batizado com o para Cooperação Econômica Euro- Econômico (OCDE). Canadá e Esta- nome do secretário de Estado norte- peia (OCEE), em 1948. O lado so- dos Unidos, em abril de 1961, foram americano que o arquitetou, George cialista reagiu criando o Conselho os primeiros a formalizar a entrada Marshall, nasceu em julho de 1947 para Assistência Econômica Mútua para o novo organismo de caráter in- pela necessidade absoluta de recons- (Comecon, na sigla em inglês), lide- tercontinental. Ao longo do restante trução de uma Europa arrasada pela rado pela União Soviética e formado do ano de 1961 os demais países fun- 2a Guerra Mundial. Embora formal- inicialmente também pela Alemanha dadores assinaram suas adesões, exce- mente fosse um plano voltado para Oriental (derrotada, a Alemanha fora to a Itália que aderiu formalmente em toda a Europa, na prática tinha como dividida em duas – Oriental, comu- março de 1962. endereço a Europa Ocidental capita- nista, e Ocidental, capitalista), Polô- O primeiro país de fora desse con- lista, uma vez que do lado Oriental, nia, Tchecoslováquia (hoje, Repúbli- certo euro-americano a entrar para a a União Soviética, aliada na vitória ca Tcheca e Eslováquia), Bulgária, OCDE foi o Japão, em abril de 1964, contra o nazifascismo, tinha seus Hungria e Romênia. dando caráter mundial à organiza- próprios objetivos de consolidação Em 14 de dezembro de 1960 Esta- ção. Derrotado na guerra e expansão do regime socialista e a dos Unidos, Canadá e mais 18 países de 1939 a aliança acabou ali mesmo. europeus egressos da OCEE realiza- Começava a chamada “guerra fria”, ram a convenção que oficializou a hostilidade velada entre os dois regi- a criação da Organização mes, à sombra do arsenal atômico de para Cooperação e ambos os lados, encerrada no começo Desenvolvimento dos anos 1990 com a queda do Muro de Berlim, a reunificação da Alemanha e o esfacelamento da União Soviética. Os US$ 13 bilhões do Plano Marshall (valores da época) despejados pelos Es- tados Unidos permitiram reconstruir a infraestrutura e retomar o crescimento econômico da Europa Ocidental, vi- rar a chave da máquina de produção americana para tempos de paz e cons- truíram um biombo contra a expansão soviética para, grosso modo, além da margem esquerda do rio Danúbio. Para gerenciar aquela montanha de dinheiro foi criada a Organização

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1945 ao lado de Alemanha e Itália, o Japão também recuperara rapidamen- Recomendações da OCDE para aperfeiçoar te seu poderio econômico, sob a batu- as políticas macroeconômicas do Brasil ta americana, e era um aliado vital do Ocidente no lado asiático do tabuleiro • Implementar o ajuste fiscal planejado por meio de cortes permanentes político-econômico mundial. Entre nos gastos. 1969 e 1973 outros três parceiros es- • Reformar o sistema de aposentadoria. tratégicos, Finlândia, Austrália e Nova • Desvincular os pisos dos benefícios do salário mínimo. Zelândia, aderiram ao grupo, consoli- • Deslocar mais recursos para as transferências que chegam aos pobres, dando ainda mais a imagem popular incluindo o Bolsa Família. da OCDE de “Clube dos Países Ri- • Definir a indicação do presidente do BCB e dos membros do Copom com cos”. O membro-fundador mais pobre termo fixo. é a Turquia, estrategicamente situada • Diminuir as políticas de apoio industrial voltadas a setores e localidades na divisa entre Europa e Ásia, com específicas, inclusive incentivos fiscais. produto interno bruto per capita (PIB per capita) de US$ 25.655 em 2016 se- • Avaliar os programas existentes de apoio industrial. gundo dados da própria OCDE. • Reforçar os procedimentos de denúncia e leniência. Os dados de comércio exterior • Restringir as indicações políticas, principalmente nas empresas estatais. do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) mos- Fonte: Relatório OCDE – “Construindo um Brasil mais Próspero e Produtivo” (Fevereiro/2018) . tram que dos dez maiores impor- tadores de produtos brasileiros em 2017, sete são membros da OCDE, O Ministério da Fazenda está em- ricos. O primeiro foi o México, em estando fora apenas China, Argen- penhado no processo, entendendo 1994, país cuja adesão resultou na tina e Índia. Entre os dez maio- que, entre outras coisas, a adesão re- saída do Grupo dos 77 (G-77), o bloco res vendedores de produtos para presentará um “selo de qualidade” de países em desenvolvimento criado o Brasil, oito são da OCDE. Mas para as políticas econômicas do país em 1964 no âmbito da Conferência os dados também mostram que o e, consequentemente, mais facilidade das Nações Unidas para o Comércio Brasil exporta principalmente pro- para captação de financiamentos e de e Desenvolvimento (Unctad) e que dutos primários e importa basica- investimentos estrangeiros. O Itama- conta atualmente com 134 membros. mente manufaturas. rati já designou o embaixador Carlos O México é atualmente o membro da Atualmente com 35 membros, o Márcio Cosendey para representar OCDE com o menor PIB per capita, “clube” já não é tão de ricos assim e o país na organização. As principais US$ 18.535 em 2016, segundo dados se propõe a disseminar e uniformizar organizações empresariais apoiam a da organização. normas de políticas econômicas e de iniciativa, mas ainda há controvérsias Começaria em seguida um pro- relacionamento comercial em 34 relacionadas com a posição que o Bra- cesso de convites e adesões englo- áreas temáticas, incluindo políticas sil pretende ocupar no cenário interna- bando países recém-saídos do bloco de consumo, assuntos tributários, cional e com as perspectivas futuras de soviético, como República Tcheca e previdência, governança, investi- o país, uma vez aceito, adotar políticas Hungria e Polônia, todos em 1996 mento estrangeiro e outras. Em 30 ativas de desenvolvimento econômico. juntamente com a Coreia do Sul, esta de maio de 2017 o Brasil formali- Somente após a derrocada do blo- já uma potência econômica que tam- zou seu pedido de ingresso na or- co soviético é que a OCDE abriu suas bém saiu do G-77. Outros seis países ganização e agora aguarda o “sim”, portas à entrada de novos países além seriam admitidos nos anos seguintes, equivalente ao convite para integrar dos fundadores e dos quatro que ade- sendo quatro da Europa Oriental, o grupo, para iniciar o processo de riram até 1973, incluindo alguns que Israel e Chile. O Chile foi aceito em adesão que pode durar vários anos. já não podiam ser classificados como 2010 e segue como membro do G-77.

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Três países que receberam o “sim” es- da Argentina, Mauricio Macri, seu o Brasil já participa de 37 dos 240 ins- tão em processo de adesão, incluindo apoio à entrada do país na organi- trumentos legais da OCDE e está em os latino-americanos Colômbia, cujo zação, gerando especulações de que processo de adesão a outros 61. Ainda processo de enquadramento tramita os argentinos estariam à frente no segundo o CCGI, a OCDE possui cer- desde 2013, e Costa Rica, convidada processo de admissão. ca de 250 comitês, grupos de trabalho em 2015, assim como a ex-república Mas agora em março, durante e grupos especializados, distribuídos soviética Lituânia. A Rússia também visita ao Brasil para divulgar o rela- por 34 áreas temáticas. estava no pacote de adesões já na con- tório “Construindo um Brasil mais “A OCDE tende à universaliza- dição de convidada, mas o processo Próspero e mais Produtivo”, conten- ção”, afirma o embaixador José Alfre- de admissão foi suspenso em 2014 do várias recomendações de políticas do Graça Lima, conselheiro do Centro após a anexação da Crimeia, até en- e reformas com vistas a fortalecer o Brasileiro de Relações Internacionais tão parte da Ucrânia, pelos russos. arcabouço macroeconômico e regu- (Cebri) e um dos mais experientes Outros cinco países além do Bra- latório do país, o secretário-geral da negociadores na área comercial da sil pleiteiam entrar na OCDE e tam- OCDE, Angel Gurría, disse que o diplomacia brasileira. “Os compro- bém aguardam convite, entre eles os Brasil está mais bem posicionado en- missos assumidos não são mandatá- vizinhos Argentina e Peru. Os outros tre os atuais pleiteantes por já fazer rios e irão trazer o que a gente mais são Bulgária, Romênia e Croácia, parte, há muito tempo, de um gran- precisa: maior inserção nas correntes todos do Leste Europeu. Dos cinco, de número de comitês e instrumen- de comércio e atração de investimen- segundo as estatísticas da OCDE, tos legais da organização. tos”, acrescenta. Para Graça Lima, a somente o Peru possui PIB per capi- Segundo dados compilados pela era do “clube dos ricos” já ficou para ta inferior ao brasileiro (US$ 12.225 equipe do Centro de Comércio Glo- trás e o Brasil não deve deixar passar em 2014, contra US$ 15.243 do Bra- bal e do Investimento (CCGI) da FGV, a oportunidade como, segundo ele, já sil em 2016). No ano passado, o pre- coordenado pela professora e pesqui- fez no passado. sidente dos Estados Unidos, Donald sadora da Escola de Economia de São O embaixador entende que dei- Trump, manifestou ao presidente Paulo (FGV EESP) Vera Thorstensen, xar passar a oportunidade de entrar para a OCDE é permanecer no que chamou de “ativismo típico dos anos Entre os dez maiores importadores do Brasil, 1970” quando, na sua avaliação, o sete são da OCDE Brasil vivia uma “ilusão de autossu- (em US$ bi FOB) - 2017 ficiência [industrial]” quando o que precisava era de melhores condições Valor Membro da Principal produto importado/ de acesso a mercados. A conclusão da (US$ bi) OCDE valor (US$ bi) Rodada do Uruguai em 1995, criando China 47,49 Não Soja/20,31 a Organização Mundial do Comércio EUA 26,87 Sim Petróleo/2,65 (OMC) e incorporando a ela o Acor- Argentina 17,62 Não Automóveis/4,77 do Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, Holanda 9,25 Sim Tubos flexíveis ferro e aço/1,08 na sigla em inglês) e abrindo as portas para um mundo mais globalizado te- Japão 5,26 Sim Minério de ferro/1,40 ria, segundo a análise de Graça Lima, Chile 5,03 Sim Petróleo/1,51 sepultado esse passado. Alemanha 4,91 Sim Café cru em grãos/0,88 O embaixador esteve à frente nos Índia 4,66 Não Petróleo/1,50 anos seguintes das negociações que buscavam um amplo acordo do Mer- México 4,51 Sim Automóveis/0,49 cosul com a União Europeia, ainda Espanha 3,81 Sim Petróleo/0,96 em pauta, e também da tentativa Fonte: MDIC. frustrada de criação de uma Área

56 Conjuntura Econômica | Abril 2018 CONJUNTURA COMÉRCIO EXTERIOR de Livre-Comércio das Américas Dos maiores exportadores para o Brasil, (Alca). “Tive o privilégio de iniciar oito são da OCDE os esforços para colocar o Brasil em (em US$ bi FOB) 2017 uma nova inserção”, relembra Graça Valor Membro Principal produto/valor Lima, lembrando que de lá para cá (US$ bi) da OCDE (US$ bi) quem deu um salto de qualidade no China 27,32 Não Demais produtos manufaturados/4,63 Brasil foi o setor agropecuário e não a indústria que se buscava proteger. EUA 24,85 Sim Óleos lubrificantes (diesel)/4,47 “A indústria caiu muito no período Argentina 9,43 Não Veículos de carga/1,88 e hoje se busca recuperá-la até em Alemanha 9,23 Sim Demais produtos manufaturados/1,63 prejuízo dos serviços”, argumenta, Circuitos integrados e microconjuntos Coreia do Sul 5,24 Sim criticando as políticas ativas, como eletrônicos/1,39 o Inovar Auto (proteção à indústria México 4,24 Sim Automóveis/0,66 automobilística) criado no governo da ex-presidente Dilma Rousseff. Itália 3,96 Sim Demais produtos manufaturados/0,65 O conselheiro do Cebri também Japão 3,76 Sim Demais produtos manufaturados/0,63 releva o argumento segundo o qual França 3,72 Sim Demais produtos manufaturados/0,54 o Brasil perderia protagonismo no Chile 3,45 Sim Catodos de cobre/0,96 cenário internacional ao entrar para Fonte: MDIC. uma organização na qual não terá posição de liderança como teve, por exemplo, no G-20 Comercial, criado Os empresários ainda não falaram tou sua candidatura a entrar para a em 2003 com o objetivo de pressio- sobre seus interesses”, pondera. OMC nós criamos dentro do Centro nar por um acordo de liberalização O temor de Pinheiro é que o Bra- um núcleo concentrado em estudar do comércio agrícola no âmbito da sil acabe colocando o carro à frente o tema”, conta Thorstensen, expli- OMC, rejeitado por países europeus dos bois, ou seja, que entre para uma cando que quem trabalhou na sede como a França. “O Brasil é o quinto organização internacional que exige da OMC, em Genebra, “olhava com maior país do mundo e uma das dez determinadas regras tributárias, por um certo desprezo” para a perspecti- maiores economias, não precisa de exemplo, e que só depois, por pres- va de entrar para a OCDE. retórica para ter voz”, rebate, argu- são dessa organização, vá tomar as “Dizia-se que era muito mais impor- mentando que no agronegócio o país medidas que já deveria ter tomado tante investir na OMC, que a OCDE “é um protagonista sem precisar fa- por decisão própria. “Não me pa- não tinha mecanismos de solução de zer qualquer anúncio”. rece razoável entrar para uma or- controvérsias”, conta, realçando que ganização internacional para depois hoje a OMC está em crise, pressiona- mudar sua regulação doméstica. O da pelo desejo dos Estados Unidos de Clube de boas práticas Brasil deveria adequar primeiro sua acabar com mecanismos de solução Sem ser contrário à proposta de ade- legislação”, argumenta. de controvérsias, enquanto a OCDE são, o presidente do Sindicato Na- Criado em 2010 quando a eco- é comparada com o Fundo Monetá- cional da Indústria da Construção nomista Vera Thorstensen retornou rio Internacional (FMI) e com outras Pesada (Sinicon), Evaristo Pinheiro, ao Brasil após 15 anos em Genebra organizações globais. Na avaliação sugere que o Brasil amplie o debate e (Suíça) como assessora econômica da da pesquisadora, “a OCDE funciona os estudos que permitam uma maior Missão do Brasil na OMC, o CCGI hoje como o secretariado do G-20”, participação do setor empresarial no da FGV vem procurando fazer exa- não o G-20 Comercial, mas o bloco encaminhamento do tema. “Até ago- tamente esse aprofundamento de es- que reúne o G-7, grupo dos sete países ra tenho visto basicamente o governo tudos reclamado pelo presidente do mais ricos do mundo, e os principais dizendo que é bom, que é positivo. Sinicon. “Quando o Brasil apresen- países emergentes, inclusive o Brasil.

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Com base nos estudos do núcleo O outro ponto relevante que a especial do CCGI, a professora da A OCDE é o centro do professora da FGV EESP destaca, FGV EESP faz um balanço dos prós já mencionado acima, é o fato de e contras relacionados com o pleito o secretariado da OCDE ter poder brasileiro de entrar para a OCDE, G-20. Não faz sentido ser e funcionar, enquanto o secretaria- começando pelos contras. Em rela- do da OMC, apesar de contar com ção ao argumento de que o país corre do G-20 e não da OCDE. centenas de funcionários, não nego- o risco de perder soberania, Thors- ciar nada, segundo ela, desde 2002. tensen argumenta que os estudos fei- É como ser passageiro Thorstensen acrescentou, ainda, que tos pelo núcleo no site do Ministério após a aceitação do pleito brasileiro das Relações Exteriores (MRE) mos- de milhagem quando as pela OCDE o país terá de três a qua- tram que o Brasil faz parte de cerca tro anos para negociar os termos da de 200 acordos e os levantamentos discussões importantes sua adesão e os instrumentos impor- feitos na Organização das Nações a tantes para o país participar. Unidas (ONU) apontam que o país estão na 1 classe Áreas consideradas sensíveis para o já assinou 35 tratados multilaterais. país, como a tributária, a de meio am- “Se em todos esses acordos e tra- biente e o código de fluxo de capitais, tados o Brasil soube defender seus in- no entendimento da especialista, o teresses, o que o impede de defendê- Sobre a perspectiva de o Brasil per- Brasil vai aderir e em seguida negociar los também na OCDE?”, pergunta, der a posição de liderança que ocupa as exceções. Em relação a fluxo de ca- ressaltando que em cada acordo que no G-77 ao entrar para a OCDE, tro- pitais, ela não vê risco de o país perder um país assina ele perde um pouco cando-a por uma condição de “pobre seus instrumentos de defesa em caso da própria soberania, submetendo- entre os ricos”, a pesquisadora argu- de crise do balanço de pagamentos, se ao princípio da reciprocidade que menta que atualmente nem o Brasil é lembrando que neste caso a maior au- rege as negociações internacionais. mais um país pobre e nem a OCDE é toridade multilateral é o Fundo Mone- “Mas é importante participar da go- mais o “clube dos ricos”. “O Brasil é tário Internacional (FMI) cujo artigo vernança global”, arremata. um emergente perdido na sua própria 7o já prevê que o país atingido possa Em relação ao argumento de história e a OCDE quer atrair países resgatar seus instrumentos de defesa. que a adesão sairá onerosa para o emergentes”, afirma, acrescentando “Hoje o FMI está muito mais aberto e país, a pesquisadora considera este não ter simpatia por teses terceiro- flexível do que antes”, afirma. um ponto de pouca relevância. Se- mundistas como a que está implícita gundo ela, o custo anual para o na questão do protagonismo no G-77. país será entre US$ 10 milhões e Do lado dos argumentos a favor, Preço de transferência US$ 20 milhões, quantia que con- Thorstensen destaca antes de mais O advogado Leonardo Castro, sócio sidera “nada” para um país que fe- nada o que considera relevante no da área tributária do escritório CTT chou 2017 com um PIB na casa dos atual “status” da OCDE: “A OCDE Advogados, disse que tem feito vários US$ 2 trilhões. Em relação ao argu- não é mais um ‘clube dos ricos’, mas estudos para clientes interessados em mento de que o Brasil já faz parte dos um ‘clube de boas práticas governa- saber qual o impacto para as empresas instrumentos e comitês da OCDE mentais’, e é disso que o Brasil pre- da adesão do Brasil à OCDE. Segun- que lhe interessam, Thorstensen re- cisa”. Como segundo ponto a favor, do ele, na área tributária, são três os toma o tema do G-20 para rebater: a pesquisadora ressalta os métodos pontos principais de divergência que “A OCDE é hoje o centro do G-20. da organização. “A OCDE trabalha precisam ser negociados: o preço de Não faz sentido ser do G-20 e não por pressão. Ela pega o país e mostra transferência, que impacta os negócios da OCDE. É como ser passageiro de sua foto em relação aos demais. E o entre matriz e filial da mesma empre- milhagem quando as discussões im- Brasil está mal na foto em todas as sa, os acordos para evitar bitributação, portantes estão na 1a classe”. formas de comparação”, aponta. ambos envolvendo o Imposto de Ren-

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da (IR) e o modelo de imposto sobre O problema, de acordo com o ad- tornado inviável qualquer tentativa valor agregado, o IVA dos europeus e vogado, é que o Brasil às vezes en- de simplificar ou unificar o que Cas- o ICMS e PIS/Cofins no Brasil. tende que determinadas negociações tro define como “um ornitorrinco”. As regras de preços de transfe- devem ser interpretadas como pres- No frigir dos ovos, o especialista rência, explica Castro, existem para tação de serviços e não como trans- em tributação entende que o Brasil te- evitar o chamado “negócio de pai ferência de tecnologia, por exemplo, ria a ganhar entrando para a OCDE, para filho” entre empresas do mes- tornando o negócio passível de tri- até porque nos casos de divergência ele mo grupo localizadas em países dife- butação na fonte. Segundo Castro, o terá “poder para brigar com os aliados rentes e que resultam em pagamento tema tem gerado celeuma, com acu- sentado à mesa”. Castro enxerga a en- de menos IR do que deveria ser efe- sações de que o Brasil estaria subver- trada na OCDE como “uma questão tivamente pago. Busca-se no mundo tendo o modelo da OCDE, e deve de evolução e de sobrevivência em um inteiro fazer com que a diferença en- dar trabalho para que seja alcançada cenário globalizado”. tre o preço que é razoável e o preço a desejada convergência. cobrado receba uma taxação pesada O terceiro ponto corresponde a de IR. As diferenças estão nos méto- uma reforma há muito reclamada pe- Exceções são possíveis dos para definir esse preço razoável. las empresas domésticas brasileiras: Para o diretor de Relações Internacio- No caso brasileiro, segundo o espe- a simplificação dos tributos sobre nais da Federação das Indústrias do cialista, a lei determina que o preço é consumo, como ICMS e ISS. Castro Estado de São Paulo (Fiesp), Thomaz o custo mais uma margem fixa sobre explica que a União Europeia UE) Zanotto, o primeiro aspecto a ser a qual é cobrado o IR, enquanto na harmonizou tudo no IVA, o Imposto entendido em relação ao pleito brasi- OCDE o cálculo do imposto é feito sobre Valor Agregado, adotado tam- leiro de entrar para a OCDE é que a sobre o preço de mercado daquele bém pelo Reino Unido, enquanto os organização “não possui um tribunal produto. Simplificadamente, o pro- Estados Unidos tributam o consumi- de contenciosos, sendo o cumprimen- blema para a conversão do Brasil ao dor final por meio do Imposto sobre to das normas verificado por pressão método da OCDE, segundo Castro, Vendas. No Brasil a tributação ocorre dos pares”. Isso, segundo ele, signifi- é que a definição do preço de merca- sobre cada operação e há uma grande ca que dentro dela é possível se nego- do demanda estudo econômico, vale disparidade de alíquotas, dependendo ciar um cronograma ou mesmo que dizer, custo, algo que não precisa ser do ente federativo, o que até hoje tem sejam aceitas exceções.”. feito no sistema brasileiro. Na questão da bitributação, Cas- tro explica que acordos internacionais Setor público domina financiamentos à infraestrutura são celebrados para definir como será Distribuição dos financiamentos à infraestrutura por bancos ou setores tributada a renda nos negócios entre financiadores (participação percentual no total) dois países. Por exemplo, salário, só 53 um dos países tributa. Em outros ca- sos, o IR é dividido de modo que a carga tributária seja equivalente à de um dos países envolvidos na negocia- 28 ção. O modelo da OCDE, adotado pelo Brasil em tratados de bitributa- 13 ção com vários países, como Japão, Suécia, Suíça e outros, diz que em ca- 6 sos como de pagamento por transfe- rência de tecnologia ou de royalties, o BNDES Outros bancos públicos Bancos nacionais Bancos estrangeiros IR não deve ser pago no país receptor privados privados da transferência. Fonte: OCDE/BCB.

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México é o mais pobre dos atuais membros da OCDE Para as empresas, Zanotto enten- Países da OCDE por data de adesão e PIB per capita em 2016 de que a adesão brasileira significa maior previsibilidade nos negócios Data de adesão PIB per capita (US$) e maior valorização dos ativos uma Alemanha 29/9/1961 48.943 vez que haverá maior alinhamento Austrália 7/6/1971 48.178 de regras. Significa também acesso a linhas de crédito mais baratas que Áustria 29/9/1961 50.503 muitas vezes só existem para empre- Bulgária 13/9/1961 46.607 sas de dentro dos países da organiza- Canadá 10/4/1961 44.793 ção. Mas, assim como todos os espe- Chile 7/5/2010 22.727 cialistas entrevistados, o diretor da Coreia do Sul 12/12/1996 36.532 Fiesp adverte que não se deve esperar Dinamarca 30/5/1961 490.921 uma tramitação rápida do processo Eslováquia 14/12/2000 32.730 de adesão, lembrando que a Colôm- Eslovênia 21/7/2010 30.460 bia está nessa batalha desde 2013. Mesmo o Brasil já estando alinha- Espanha 3/8/1961 36.332 do com 88% das regras da OCDE, Estônia 9/12/2010 29.741 segundo levantamento encomenda- EUA 12/4/1961 57.591 do pelo Itamarati, Zanotto adverte Finlândia 28/1/1969 43.378 que as avaliações serão minuciosas e França 7/08/1961 41.364 que entre os pontos que faltam con- Grécia 27/9/1961 26.765 vergir “temos várias jabuticabas que Holanda 13/11/1961 50.551 poderão gerar alguns problemas”. Hungria 7/5/1996 26.701 Um deles seria o dos acordos para evitar bitributação. Outra, a da tri- Irlanda 18/8/1961 72.485 butação sobre valor agregado. “É Islândia 5/6/1961 50.666 um problema nosso. Não podemos Israel 7/9/2010 37.270 sobreviver ao sistema tributário que Itália 29/3/1962 38.380 temos aqui. Temos que fazer a refor- Japão 28/4/1964 42.293 ma tributária”, dispara. Letônia 1/7/2016 25.590 Para o diretor da Fiesp, fazer a Luxemburgo 7/12/1961 102.019 reforma tributária e a reforma pre- México 18/5/1994 18.535 videnciária devem ser “prioridades zero” para qualquer que seja o presi- Noruega 4/7/1961 58.792 dente da República eleito em outubro Nova Zelândia 29/5/1973 38.346 deste ano. “Não se trata de imposi- OCDE – 42.162 ções da OCDE, nós sabemos que não Polônia 22/11/1996 27.058 está funcionando”, afirma. E quanto Portugal 4/8/1961 30.658 ao fato de a OCDE ser vista como um Reino Unido 2/5/1961 42.662 clube de países ricos, Zanotto provo- República Tcheca 21/12/1995 34.753 ca: “Então, o que estamos fazendo Suécia 28/9/1961 48.853 fora dele? O Brasil é um país rico, só que mal administrado”. Suiça 28/9/1961 63.889 Da mesma forma que a Fiesp, a Turquia 2/8/1961 25.655 Federação das Indústrias do Estado Fonte: OCDE. do Rio de Janeiro (Firjan) também

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apoia o esforço do atual governo e empresas ricas exigem um ambiente brasileiro para que o país seja acei- O Brasil é o quinto saudável em termos macro e microe- to na OCDE. “Acompanhamos para conômico”, afirma o conselheiro do ver o que pode repercutir em termos Cebri.“Claro que você tem que abrir práticos para nossas empresas, mas maior país do mundo e seu mercado, mas simultaneamente uma das bandeiras da Firjan é a da está abrindo para suas empresas mer- melhoria do ambiente de negócios”, uma das dez cados dez vezes maiores do que o seu”, disse Pedro Spadale, gerente da Fir- defende. Rzezinski avalia que esses jan Internacional, explicando que o maiores economias, movimentos de intercâmbio dão à em- aperfeiçoamento da legislação traba- presa “uma reputação importante no lhista, já alcançado, a mudança da não precisa de retórica mundo”, citando o caso da Embraer. legislação tributária, redução da bu- “Não é à toa que o único acordo [da rocracia, dos prazos e a melhoria da para ter voz em OCDE] do qual o Brasil é ‘full mem- qualidade da educação, temas con- ber’ é o aeronáutico”, disse. O execu- siderados fundamentais pela OCDE, qualquer fórum tivo também entende que as questões são também pontos considerados vi- tributárias não serão problema para a tais pela entidade fluminense. adesão do Brasil. “É preciso ter olhos “A OCDE é essencialmente um para o que está sendo negociado. Nin- fórum de intercâmbio de boas práti- que trabalha buscando exercer in- guém entra abrindo seu mercado de cas, de facilitação do comércio e dos fluência. Em segundo lugar, ele en- uma vez. Há regras de transição.” investimentos”, resume. E antes de tende haver a compreensão de que, Para o economista e consultor mais nada, adverte, “o Brasil precisa com o crescimento da instituição e a Carlos Geraldo Langoni, ex-presi- demonstrar que compartilha das prá- entrada de países em graus diferentes dente do Banco Central (1980-1983) ticas usuais dos membros da organi- de desenvolvimento, países como o e atualmente diretor do Centro de zação, processo que costuma levar Brasil precisam, por exemplo, lançar Economia Mundial da FGV, a en- pelo menos três anos”. Mas o fato de mão de instrumentos como o BNDES trada para a OCDE “é apenas uma o Brasil já ser o país não membro que para desenvolver sua infraestrutura. etapa de um processo mais amplo participa do maior número de comitês Para o executivo Henrique Rze- no qual o Brasil precisa se engajar” e instrumentos legais da entidade é um zinski, também membro do Conselho e que tem como chave principal a aspecto favorável, na interpretação de do Cebri e ex-presidente da Câmara abertura econômica que ele chama Spadale. Embora incluindo pontos es- Americana de Comércio do Rio de de “a reforma esquecida”. senciais, como os 12% que faltam – o Janeiro (Amcham Rio), a OCDE tem Langoni destaca que o Brasil saiu gerente da Firjan ressalta que não dei- o lado positivo de colocar o Brasil de uma corrente de comércio (expor- xa de ser alentador o fato de que con- como participante de “um grupo de tações mais importações) em torno sulta feita pelo Itamarati mostrou que países que oferecem vantagens entre de 12% do PIB para cerca de 24% em 88% dos casos o Brasil já está ali- si”. Permite acessar financiamentos a 25% a partir da primeira abertura nhado ou não teria dificuldade para se a juros menores e funciona como promovida pelo governo de Fernan- alinhar aos instrumentos da OCDE. um selo de qualidade. “Estando na do Collor de Mello (1990-1992), mas Mas o Brasil, uma vez dentro da OCDE, você já está naturalmente não avançou, enquanto países vizi- OCDE, não estaria engessado a um com um ‘rating’ melhor.” nhos seguem aumentando seus graus manual de política econômica orto- A perspectiva de troca de informa- de abertura, tendo o Chile alcançado doxa, sem espaço, por exemplo, para ções de oportunidades de investimen- 40%. “A abertura tem impacto direto fazer políticas de desenvolvimento tos em um grupo seleto, para Rze- no crescimento. Ela eleva a taxa de in- alternativas? Spadale entende que, zinski, é “fundamental” às empresas vestimento e aumenta a produtivida- antes de mais nada, a OCDE não é do país com potencial de crescer. “País de, via ampliação da transferência de uma organização normativa, mas rico é o país que tem empresas ricas tecnologia”, resume.

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 61 CONJUNTURA COMÉRCIO EXTERIOR

Para entrar, que seja em companhia dos Brics

O debate sobre o pleito brasileiro para ser aceito como membro efe- tivo da OCDE expõe novamente a divisão que permeia o pensamento político-econômico do país entre ortodoxos e desenvolvimentistas. Entre estes últimos, a resistência ao desejo fica evidente, seja por receio de perda de protagonismo no terre- no diplomático, seja pelo temor de pleitear simplesmente a adesão sem que as sugestões de políticas da or- “levar em conta o papel do Estado ganização acabem tornando-se im- os emergentes, especialmente no ter- em países em desenvolvimento”. positivas sob pena de desfiliação. reno econômico. A Rússia estava em O ex-ministro afirma também ser O ex-ministro (Re- processo de admissão na OCDE até um fato que o Brasil, perderá lide- lações Exteriores de 1993 a 1995 e de 2014, quando a efetivação do convite rança entre os países do G-77 mes- 2003 a 2010 e da Defesa de 2011 a foi suspensa. Os demais Brics, junta- mo que não saia dele por imposição 2015), pré-candidato do PT ao gover- mente com a Indonésia, são tratados dos parceiros da OCDE no caso de no do estado do Rio de Janeiro, elogia no site da organização como “Key uma aceitação do seu pleito pela or- os estudos da organização – “eu até os Partners”, ou parceiros-chave. O ex- ganização. “O Brasil perderá muita utilizei no governo” –, mas questiona chanceler entende que “em muitos liderança. O país só liderou a criação a adesão pura e simples a ela e suge- sentidos” eles são os países com os do G-20 da OMC (G-20 Comercial) re que se for feita, que seja a partir de quais o Brasil tem mais afinidade. “E porque não era da OCDE”, disse, re- uma estratégia conjunta com os par- nenhum é da OCDE!” alçando a afinidade brasileira tanto ceiros dos Brics, com poder para mu- Na forma individual como o tema com os emergentes quanto com os dar a própria OCDE. “Não há nenhu- está sendo encaminhado pelo Brasil, países pobres da África que se sen- ma urgência, teria que ser olhado em Amorim é taxativo: “O Brasil não tem representados quando não estão conjunto com os Brics, até para mudar vai ganhar nada. Não é um acor- e o Brasil está presente em um fórum a OCDE”, disse em entrevista. do comercial. É para parecer rico”, de decisões internacionais. Brics é a sigla para a organização dispara, afirmando que para não Do ponto de vista da oportunidade internacional criada em 2006 por perder o chamado selo de qualida- do pleito, Amorim classifica a inicia- Brasil, Rússia, Índia e China, com de representado pela adesão às nor- tiva como “desastrada”, entendendo incorporação posterior da África do mas da organização, essas normas que ela teria mais representatividade Sul, buscando explorar afinidades, acabam sendo obrigatórias. Para o se apresentada pelo novo governo que uma vez que são países líderes entre diplomata e político, é imprudente será eleito em outubro, ultrapassando

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o atual momento de debilidade políti- a OCDE, você aceita seus códigos”, ca. “Eu seria contra, mas se fosse apre- Para o ex-ministro Celso pondera o diplomata, afirmando ser sentada por um governo eleito a pro- “um equívoco” achar que as negocia- posta teria mais representatividade”, Amorim, é imprudente ções na OCDE são semelhantes às que questionou. Como exemplo de que o se desenvolvem no âmbito da OMC. pleito do Brasil foi posto na geladeira, pleitear uma adesão do “Na OMC as negociações são multila- o ex-ministro cita o fato de o ex-secre- terais, buscando uma ordenação mais tário de Estado dos Estados Unidos favorável para todos”, argumenta. Rex Tilleson, ter excluído o país da Brasil à OCDE sem O ex-ministro diz estar enganado viagem que fez à América Latina no quem pensa que o Chile e o Méxi- começo de fevereiro deste ano. levar em conta o papel co têm alguma influência na OCDE, Na avaliação de Amorim, o pleito ressaltando que o Chile tem popu- brasileiro resultou de uma “ofensiva do Estado em países em lação e economia muito pequenas ultraliberal da área econômica do go- e afirmando que o México até ago- verno”. Alinhado com o pensamento desenvolvimento ra nada conseguiu com sua adesão desenvolvimentista, Amorim ressalta ao bloco. Segundo sua avaliação, o que mesmo sendo vista como fechada objetivo do ex-presidente mexicano a economia brasileira chegou a se co- Carlos Salinas ao conduzir a entra- locar entre as sete maiores do mundo. metade do PIB mundial” e que te- da do seu país na OCDE, em 1994, “O Brasil ainda precisa de proteção riam organizado o mundo segundo era alcançar o livre trânsito de pes- para desenvolver sua indústria”, dis- seus interesses. O papel da OCDE soas entre México e Estados Unidos. se, ressaltando que o que gera atração seria coordenar as posições dos paí- “Acabou conseguindo um muro pelo de investimento estrangeiro “é a eco- ses desenvolvidos nos organismos qual talvez tenha que pagar”, ironi- nomia crescendo”. econômicos internacionais em har- zou em referência ao muro que o Outro diplomata de peso da cor- monia com os objetivos desse círculo presidente norte-americano, Donald rente desenvolvimentista, o embaixa- sob a liderança norte-americana. Trump, pretende construir ao longo dor Samuel Pinheiro Guimarães Neto “A China é hoje a maior potência da fronteira entre os dois países. (foi secretário-geral do Itamarati na econômica do mundo e não quer en- Após ressaltar que Japão (1964) gestão de Amorim, de 2003 a 2009 e trar para a OCDE para não tornar e Coreia do Sul (1996) já entraram ministro-chefe da Secretaria de Assun- sua política econômica prisioneira dos para a OCDE quando eram eco- tos Estratégicos do governo de 2009 a códigos da organização”, exemplifica. nomias desenvolvidas, no caso co- 2010), propõe começar a análise pelo Guimarães entende que o mundo segue reano, fruto de um “planejamento entendimento do que seja a OCDE. dividido entre países industrialmente rigoroso”, Guimarães disse que o “Criada com o Plano Marshall para desenvolvidos e países subdesenvolvi- Brasil deve fazer o mesmo, entrar ajudar na reconstrução da Europa, ela dos, exportadores de matérias-primas, para a OCDE quando for um país passou depois a fazer a coordenação sendo que o Brasil permanece enqua- desenvolvido, capaz de enfrentar das políticas dos países desenvolvidos drado entre os últimos, exportando, as carências da maior parte da sua e a negociação de compromissos (códi- basicamente, matérias-primas e pro- população. “Não se pode construir gos) de política econômica”, analisa. dutos semi-industrializados. um país para uma população de 25 O segundo ponto ressaltado pelo Neste contexto, o interesse dos paí- milhões a 30 milhões de pessoas que embaixador é que, na sua avaliação, ses desenvolvidos seria continuar com- pagam Imposto de Renda”, disse, a organização é “altamente influen- prando as matérias-primas brasileiras realçando que grande parte dessas ciada pelos Estados Unidos que após e exportando para cá seus produtos pessoas também enfrenta dificulda- a 2a Guerra Mundial tinham mais da industriais. “Quando você entra para des para viver. (C.S.)

Abril 2018 | Conjuntura Econômica 63 COMÉRCIO EXTERIOR Volta dos superávits comerciais da indústria de transformação?

Lia Baker Valls Pereira Pesquisadora da FGV IBRE e professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Uerj

Após anos seguidos de déficits co- ficientes para explicar a trajetória vas e a taxa de câmbio após 2003 ini- merciais, a indústria de transfor- da balança comercial do setor? cia uma trajetória de valorização cam- mação registrou saldos positivos O gráfico 1 mostra os saldos co- bial (gráfico 2). Entre 2001 e 2007, a em sua balança comercial em 2016 merciais dos três setores desde 2001, taxa de câmbio real efetiva caiu 32%. e 2017. Os valores são baixos se quando a balança comercial foi posi- No entanto, o crescimento do comér- comparados com a agropecuária e tiva após seis anos seguidos de déficit. cio mundial registrou taxas acima de o setor extrativo. Em 2016 e 2017, Observa-se que a volta dos superávits, 5% no período de 2003-2007 (gráfico os saldos foram respectivamente: a partir de 2002 até 2007, foi lidera- 3), o que contribuiu para o crescimen- agropecuária (US$ 25,7 bilhões e da pela indústria de transformação. to das exportações brasileiras. US$ 33,8 bilhões); extrativa (US$ O superávit do setor passa de US$ 8,1 Os déficits no saldo da indústria de 18,5 bilhões e US$ 30 bilhões); e bilhões para US$ 33,6 bilhões entre transformação entre 2008/2009 são transformação (US$ 1,6 bilhão e 2002 e 2005, depois recua e em 2007 explicados pela crise mundial mais a US$ 1,1 bilhão). A previsão de uma foi de US$ 21,7 bilhões. A partir de contínua valorização do câmbio. Os maior taxa de crescimento em 2018 2008, os déficits se acumulam e, em anos de 2010 e 2011 são marcados junto com uma taxa de câmbio rela- 2014, atingem o maior valor da série pela influência da China que irá sus- tivamente estável sugere que o déficit que foi de US$ 58,9 bilhões. No perío- tentar e impulsionar a demanda mun- irá voltar para a indústria de trans- do de superávit, a economia brasileira dial. Para o Brasil, o resultado foi a formação. Esses dois fatores são su- registrava taxas de crescimento positi- crescente importância dos superávits da agropecuária e da indústria extra- tiva em contraposição aos déficits da indústria de transformação. A líder no Gráfico 1: Saldo da balança comercial por comércio mundial não demanda pro- grandes setores em US$ bilhões 80 dutos industriais do Brasil. A partir de 2011, o câmbio re- 60 gistra desvalorização até 2015, o 40 comércio mundial cresce a taxas in- 20 feriores a 3% e o déficit da indústria 0 de transformação chega a US$ 58,9 -20 bilhões em 2014. A economia bra- Agropecuária Extrativa -40 sileira, após atingir crescimento de Transformação Saldo 7,5% em 2010, chega em 2014 com -60 crescimento de 0,5%. -80 Os dados citados são conhecidos,

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 mas sugerem que não é possível expli- Fonte: www.funcex.com.br. car o desempenho dos saldos comer-

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crescimento das exportações. Logo Gráfico 2: Taxa de câmbio real efetiva: deflator é preciso formular uma política co- IPBrasil, IPC países mercial compatível com uma política 120 industrial que assegure a competitivi- 100 dade do setor. Esse não é um debate novo. No 80 início dos anos 2000, mesmo após a 60 desvalorização cambial de 1999, era consensual que as manufaturas bra- 40 sileiras precisavam de um “choque de 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 competitividade”. Redução do custo Fonte: Banco Central do Brasil. Brasil com as políticas horizontais Gráfico 3: Crescimento (%) no volume de de melhoria da infraestrutura, inves- comércio mundial timento em pesquisa e desenvolvi- 20 mento, reforma tributária, assegurar 15 condições de financiamento e pro- 10 postas de políticas verticais voltadas 5 para setores selecionados estavam na 0 -5 agenda de debates sobre as diretrizes -10 da política comercial. -15 No momento atual, esse debate

2016 volta à cena. Erros no uso de instru- 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2017P

Fonte: www.wto.org. mentos como a política de conteúdo local, aumento nas tarifas de impor- tações e desonerações tributárias que ciais da indústria de transformação tuário perdem espaço no mercado levaram ao questionamento da políti- apenas com as variáveis macroeconô- mundial. Alguns outros associados a ca brasileira na Organização Mundial micas de crescimento e câmbio. Essas novas tecnologias, como os celulares, do Comércio não excluem a questão são sempre relevantes e a redução do que começavam a crescer perderam do desenho de uma política comercial déficit da indústria a partir de 2015 é também para os países asiáticos, em e industrial. Aumentar a produtivida- influenciado pelo recuo na demanda especial a China. Um exemplo foram de é precondição para o crescimento por importações associado à reces- as exportações de telefones celulares das exportações, mas acoplar esse são doméstica e os efeitos da desvalo- que estavam entre os dez principais debate a experiências exitosas de for- rização cambial. No entanto, cenário produtos exportados pelo Brasil entre talecimento da indústria doméstica de valorização cambial e crescimento 1999 e 2005 e foi o segundo principal concomitantemente com ganhos no econômico presentes na primeira dé- produto de exportação para os Esta- mercado mundial faz parte da agen- cada dos anos 2000 não impediram dos Unidos entre 2000 e 2003. da. Nesse caso, novas diretrizes po- o registro de superávits comerciais. O Não será suficiente garantir câm- dem ser pensadas onde o foco ao invés que mudou? bio competitivo e esperar que o co- de ser o setor passa a ser a firma. A entrada da China e de econo- mércio mundial cresça para que se Políticas que facilitem as transações mias em desenvolvimento asiáticas, mantenha superávit na balança da in- comerciais, que estimulem a procura como Vietnã, levaram ao acirramen- dústria de transformação. Ademais, por certificações de qualidade, apoio to da concorrência internacional. Al- a questão crucial não é a produção de com acompanhamento para avaliação guns produtos tradicionais da pauta qualquer superávit, que sempre pode de políticas de incentivo à incorpora- brasileira da indústria de transfor- ser alcançado em momentos de reces- ção de novas tecnologias são algumas mação como calçados e itens de ves- são e/ou protecionismo, mas garantir das diretrizes a serem detalhadas.

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