Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Reitor Prof. Dr. Sandro Roberto Valentini Vice-Reitor Prof. Dr. Sérgio Roberto Nobre Pró-Reitor de Pesquisa Prof. Dr. Carlos Frederico de Oliveira Graeff Pró-Reitora de Extensão Universitária Profa. Dra. Cleópatra da Silva Planeta FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS Diretor Prof. Dr. Murilo Gaspardo Vice-Diretora Profa. Dra. Nanci Soares

Comissão Editorial UNESP - Câmpus de Franca Presidente Prof. Dr. Murilo Gaspardo Membros Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes Profa. Dra. Analúcia Bueno Reis Giometti Profa. Dra. Cirlene Aparecida Hilário da Silva Oliveira Profa. Dra. Elisabete Maniglia Prof. Dr. Genaro Alvarenga Fonseca Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz Engler Profa. Dra. Hilda Maria Gonçalves da Silva Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França Prof. Dr. José Duarte Neto Profa. Dra. Josiani Julião Alves de Oliveira Prof. Dr. Luis Alexandre Fuccille Profa. Dra. Paula Regina de Jesus Pinsetta Pavarina Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira Profa. Dra. Rita de Cássia Aparecida Biason Profa. Dra. Valéria dos Santos Guimarães Profa. Dra. Vânia de Fátima Martino Ana Cristina Nassif Soares Luciana Lopes Canavez (Orgs)

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro

Campus de Franca 2019 © 2020 Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Franca Contato Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP 14409-160, Jd. Petráglia / Franca - SP [email protected] Diagramação e Revisão Sandra Aparecida Cintra Ferreira (STAEPE) Carlos Alberto Bernardes (STAEPE)

Organizadora da Obra Profa. Dra. Luciana Lopes Canavez Profa. Dra. Ana Cristina Nassif Soares

Responsável editorial e capa Hiago Andrioti Cordioli

Comissão Científica Ana Cristina Nassif Soares, Andreia Aparecida Reis Carvalho Liporoni, Cirlene Hilário da Silva Oliveira, Daiene Kelly Garcia, Eliana dos Santos Alves Nogueira, Elvira Godiva Junqueira, Fernanda de Oliveira Sarreta, Frederico Daia Firmiano, Frederico Thales de Araújo Martos, Luciana Lopes Canavez, Maria Cristina Piana, Nayara Hakime Dutra Oliveira, Paulo Henrique Mioto Donadeli, Yvete Flávio da Costa

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro / Luciana Lopes Canavez (organizadora). – Franca:UNESP – FCHS, 2019. 328 p.

ISBN: 978-65-86378-09-2

1. Políticas públicas. 2. Aposentadoria. 3. Benefício de prestação continuada. 4. Reforma trabalhista. I. Título. II. Canavez, Luciana Lopes.

CDD – 340 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira – CRB8/8773 ANAIS DO VIII FÓRUM SOCIOJURÍDICO: OS DEMONTES DA SEGURIDADE SOCIAL NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO – 2019

Coordenação científica do evento Luciana Lopes Canavez, Ana Cristina Nassif Soares, Ana Gabriela Mendes Braga, Nayara Hakime Dutra Oliveira

Comissão avaliadora das sessões de apresentação de trabalhos Adriana Pereira Souza, Ana Cristina Nassif Soares, Cirlene Hilário da Sil- va Oliveira, Elvira Godiva Junqueira, Edney Wesley Antunes, Júlia Len- zi Silva, Lucas Laprano, Luciana Lopes Canavez, Maicow Lucas Santos Walhers, Maria Luiza Rocha Silva, Rosana Medeiros Veluci Gajardoni, Victor Luiz Pereira de Andrade

Comissão organizadora do evento Adriana Regina de Almeida, Ana Cristina Nassif Soares, Ana Gabriela Mendes Braga, Júlia Lenzi Silva, Leliana Fritz Siqueira Veronez, Luciana Lopes Canavez, Maria Bernadete Saldanha Lopes, Nayara Hakime Dutra Oliveira, Victor Luiz Pereira de Andrade

Realização Unidade Auxiliar – Centro Jurídico Social – UA-CJS/UNESP Departamento de Serviço Social – DSS/UNESP Departamento de Direito Público – DDPb/UNESP Departamento de Direito Privado, Processo Civil e do Trabalho - DDPPCT/UNESP

Programa de Pós-Graduação em Direito

Programa de Pós-Graduação em Serviço Social Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - FCHS/UNESP

Patrocínio Olinto Café

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...... 11

PROGRAMAÇÃO...... 13

PRECARIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE Amanda Lima Reis

Adriana Giaqueto Jacinto...... 15

DESAFIO DA CONCESSÃO DA APOSENTADORIA ESPECIAL AO CONTRIBUINTE INDIVIDUAL Lara Costa Andrade Camila Migotto Dourado Daiene Kelly Garcia Gabriela Cabral Roque...... 31

O ACESSO AO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA: DIREITO GARANTIDO Juliana Aparecida dos Santos...... 51

O USO ARBITRÁRIO DA MEDIDA PROVISÓRIA NA RESTRIÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS Antônio Ricardo Carneiro Filho Vinícius Moreno Gonzales...... 65

A REFORMA DA PREVIDÊNCIA E SEUS REFLEXOS SOBRE OS SISTEMAS DE REPARTIÇÃO E CAPITALIZAÇÃO Yasmin Commar Curia Douglas Marques...... 83 OS IMPACTOS DA RADICALIZAÇÃO DO IDEÁRIO NEOLIBERAL NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: O PERIGO DO ASSISTENCIALISMO NA ATUAL CONJUNTURA Jenifer Lisboa Rafaela Cavalcanti Christiane Flausino Rafael Gonçalves dos Santos...... 105

A REFORMA TRABALHISTA E SEUS REFLEXOS NA REFORMA DA PREVIDÊNCIA Larissa Carolina Lotufo da Costa Nathalia Neves Escher Fernanda da Silva Miguel Giovanna Gomes de Paula...... 119

O “PENTE-FINO” DO INSS E SEUS REFLEXOS NA SEGURIDADE SOCIAL BRASILEIRA: O IMPACTO NA SAÚDE FÍSICA E MENTAL DOS USUÁRIOS ATENDIDOS PELA UNIDADE AUXILIAR CENTRO JURÍDICO SOCIAL (UACJS) Luiz Antonio Martins Cambuhy Júnior Maria Clara Silva Laurenti Talita Santos Lira Ana Carolina Gracio de Oliveira...... 139

A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL E O CONSENSO DE WASHINGTON: UM OLHAR CRÍTICO PRELIMINAR Moisés Coelho Castro...... 153 FORMAÇÃO DOS TRABALHADORES DO SUS: POSSIBILIDADES E ALTERNATIVAS PARA A CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE Gabriela Cristina Braga Bisco Edilaine Dias Lima Fernanda de Oliveira Sarreta...... 169

O DIREITO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DE EXPECTATIVAS SOCIAIS: JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E FUNDAMENTOS JURÍDICO-EPISTEMOLÓGICOS DAS SENTENÇAS NAS DEMANDAS POR MEDICAMENTOS À BASE DE CANABIDIOL Gustavo Azevedo Souza...... 185

O PAPEL DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO NO SUS EM TEMPOS DE CRISE NA SEGURIDADE SOCIAL Guilherme Araújo Morelli Costa André Luís de Souza Júnior João Pedro Costa Moreira Renan Jorge Neves...... 207

O VÍNCULO EMPREGATÍCIO NO SISTEMA MAIS MÉDICOS E SEUS IMPACTOS JURÍDICOS Letícia dos Santos Arco de Pani Vitor Silva Muniz Jordana Martins Perussi...... 227

30 ANOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS CONQUISTAS E ÓBICES À CONSOLIDAÇÃO DO PROGRAMA NO BRASIL Renan Batista de Carvalo Ester Segalla dos Passos...... 243 O DESMONTE DA SEGURIDADE SOCIAL PELO TRABALHO UBERIZADO Stephanie Bortolaso Nathália Galvão...... 263

GRADES QUE ROUBAM DIREITOS: A TRAJETÓRIA DE MULHERES EGRESSAS DO SISTEMA PRISIONAL NO ACESSO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS Cirlene Aparecida Hilário da Silva Oliveira Amanda Daniele Silva...... 283

A VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR CONTRA MULHERES, CRIANÇAS E ADOLESCENTES: ALGUMAS REFLEXÕES Mayara Simon Bezerra Maria Cristina Piana...... 307

PAUPERIZAÇÃO SOB A ÓTICA DO GÊNERO: A MULHER E SEU ESPAÇO NO MUNDO DO CAPITAL Ana Clara Cabral Afonso Milena Donato Camilo...... 319 APRESENTAÇÃO

A presente publicação é resultado dos estudos, pesquisas e debates do VIII Fórum sociojurídico que teve como tema central de debate: “Os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro”, que ocorreu nos dias 01 e 02 de outubro de 2019, na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus Franca. Os artigos aqui apresentados, de responsabilidade de suas/seus autoras/es, foram fruto de reflexões apresentadas no evento, dentro dos sete eixos temáticos de discussão: Eixo 1: PROJETO CONSTITUCIONAL INCONCLUSO DE SEGURIDADE SOCIAL: DESAFIOS DO PRESENTE, PERSPECTIVAS FUTURAS Eixo 2: A PREVIDÊNCIA SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL Eixo 3: ALTERAÇÕES NAS POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: DIREITO SOCIAL X ASSISTENCIALISMO Eixo 4: PROPOSTAS E ALTERAÇÕES DA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA E SEUS IMPACTOS NO MUNDO DO TRABALHO Eixo 5: AS ENCRUZILHADAS DO SUS: AVANÇOS E RETROCESSOS NA GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE Eixo: 6: AS POLÍTICAS DE SEGURIDADE SOCIAL COMO MECANISMOS DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Eixo 7: PROTEÇÃO SOCIAL E RELAÇÕES DE GÊNERO: AS INTERFACES DA VULNERABILIDADE O evento é realizado pela Unidade Auxiliar Centro Jurídico Social – UACJS, que é vinculada aos departamentos de ensino dos cursos de Serviço Social, de Direito Público e de Direito Privado, de Processo Civil e do trabalho, e aos programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito e Serviço Social. O momento histórico em que vivemos, com o ataque a direitos tão duramente conquistados, fez com que a comissão organizadora do evento

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 11 escolhesse como tema central de debate para o VIII Fórum sociojurídico “Os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro”, por entendermos nossa responsabilidade enquanto Unidade Auxiliar na defesa dos direitos dos vulneráveis econômico e socialmente, e do nosso papel enquanto integrantes de uma Universidade Pública na discussão e proposição de reflexões e soluções para os problemas sociais. Num momento em que se discutia a reforma da previdência com a tramitação da Emenda Constitucional nº 6, de 2019, denominada como reforma da previdência, que aprovada, implantou uma série de modificações, dentre elas, retirar do texto da constituição vários dispositivos que regem a Previdência Social, deixando a regulamentação a cargo da Lei Complementar, flexibilizando dessa forma novas alterações. As modificações impactaram diretamente os segurados, criando novas regras menos benéficas e dificultando o acesso aos benefícios previdenciários e assistenciais. A leitura das reflexões apresentadas auxiliarão os leitores a entender melhor as modificações realizadas. Esperamos que a leitura possa contribuir com novas pesquisas e reflexões sobre a temática e que possamos continuar lutando pela manutenção de direitos tão duramente conquistados!

Profa. Dra. Luciana Lopes Canavez Supervisora da Unidade Auxiliar – Centro Jurídico Social

12 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro PROGRAMAÇÃO DO EVENTO

Dia 1º de outubro de 2019 – Terça-feira

Anfiteatro II

09h30 – Palestra: “O projeto de país e o desmonte do sistema de seguridade: onde seguimos?” Ms. Júlia Lenzi Silva Graduada e mestra em direito pela UNESP, Doutoranda em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP. Consultora de Direito Previdenciário de LBS Advogados

19h – Palestra: “Reorganização da proteção social no contexto de crise” Dra. Alejandra Pastorini Corleto Graduada em Serviço Social pela Universidad de la República. Mestra mestra e doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Dia 2 de outubro de 2019 – Quarta-feira

08h30 – Grupos de trabalho para apresentação dos artigos científicos aceitos. 13h30 – Grupos de trabalho para apresentação dos artigos científicos aceitos.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 13

PRECARIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE

Amanda Lima Reis*

Adriana Giaqueto Jacinto**

RESUMO: A fim de compreender como a reestruturação produtiva tem impactado nas políticas sociais, este artigo propõe-se a refletir sobre as conformações deste processo na precarização das políticas sociais e o tratamento que vem sendo dado à questão social. O reordenamento do capital, pautado pela ideologia neoliberal, modifica as respostas do Estado ao enfrentamento da questão social, recorrendo à privatização da proteção social e ao retorno a filantropia. Outro movimento que reflete a precarização das políticas sociais constitui-se na estratégia de atribuir à assistência social o papel de enfrentamento da pobreza, levando à “assistencialização” da proteção social. Esse processo acarreta consequências para a atuação do assistente social, que vê as demandas para seu trabalho reconfiguradas para a gestão da extrema pobreza. Palavras-chave: reestruturação produtiva. políticas sociais. questão social. ideologia neoliberal. ABSTRACT: In order to understand how productive restructuring has impacted social policies, this article aims to reflect on the conformations of this process in the precariousness of social policies and the treatment that has been given to the social issue. The reorganization of capital, based on neoliberal ideology, modifies the state’s responses to the confrontation of the social question by resorting to the privatization of social protection and the return to philanthropy. Another movement that reflects the precariousness of social policies is the strategy of attributing to social assistance the role of confronting poverty, leading to the “welfare” of social protection. This process has consequences for the work of the social worker, who sees the demands for his work reconfigured for the management of extreme poverty.

Keywords: productive restructuring. social politics. social issues. neoliberal ideology.

INTRODUÇÃO

Frente à radicalização das expressões da questão social na contemporaneidade, que consiste no objeto de atuação do assistente social, faz-se fundamental e urgente desvelar a sua essência. A contradição entre capital e trabalho tem como resultado a desigualdade que, em determinado patamar de elevada pauperização dos trabalhadores no

* Bacharela em Serviço Social pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) – UNESP, campus de Franca, discente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social/ Mestrado pela UNESP, membro do grupo de pesquisa GEDUCAS. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/6471384627613093. ** Professora Doutora do Departamento de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) – UNESP, campus de Franca, coordenadora do grupo de pesquisa GEDUCAS. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4041167773252557.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 15 capitalismo monopolista denominou-se de questão social, conceituada por Iamamoto enquanto: [...] o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna- se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por parte da sociedade. (IAMAMOTO, 2015, p. 27). As políticas sociais configuram-se em formas de enfrentamento da questão social e estabelecem uma relação entre Estado, capital e trabalhadores. Do momento histórico da gênese da questão social até os dias de hoje, as políticas sociais assumiram conformações distintas, tendo em vista vários determinantes econômicos, políticos e sociais imbricados na trama da história. Os contornos que a política social assume hoje delineiam-se no receituário neoliberal de ataque ao Estado social e ajustes fiscais no corte de gastos para a proteção social e na acumulação flexível do capital para a esfera produtiva. A reestruturação produtiva do capital e ideologia neoliberal consistem, assim, nos fatores que explicam a ação combativa do capital e, portanto, analisá-los é imprescindível para chegar às explicações da precarização e dos desmontes das políticas sociais. Consoante a esse processo de reforma do Estado e ataque aos direitos sociais, o trabalho profissional dos assistentes sociais também é reformulado e reduzido à gestão da pobreza, tornando, desse modo, fundamental a reflexão da política social para o Serviço Social.

1 APARATO CRÍTICO

A gênese da questão social data do momento do desenvolvimento do capitalismo monopolista e desvelamento das precárias condições de trabalho e sobrevivência dos trabalhadores, denominada de pauperismo. A “lei geral da acumulação” realiza-se na exploração do trabalho pelo capital e tem como consequência o aumento da riqueza ao passo da acentuação da pobreza. As crises advindas do capitalismo configuram-se em momentos de esgotamento do padrão vigente de acumulação de riquezas e necessidade de reordenamento do capital. Isso traduz-se em mecanismos que possibilitam a obtenção de mais retorno sobre a exploração da força de trabalho, como na ampliação da jornada e/ou intensificação do trabalho. O

16 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro desenvolvimento das forças produtivas encontra-se diretamente vinculado a esse processo de acumulação, uma vez que possibilita a utilização de menor quantidade de força de trabalho em menor tempo. O capital, para manter seu elevado nível de concentração de riquezas, realiza movimentos de reestruturação a fim de garantir o retorno ao patamar de lucratividade: “Todas as transformações implementadas pelo capital têm como objetivo reverter a queda da taxa de lucro e criar condições renovadas para a exploração da força de trabalho.” (NETTO, 2012). Esse processo foi visto na década de 1970 com a crise do modelo de produção fordista. O quadro de reestruturação do capital nesta década teve seu desenrolar com a crise de superprodução do modelo produtivo e econômico estabelecido pelo fordismo-keynesianismo. O paradigma inaugurado pela doutrina político-econômica keynesiana e pelo modelo de produção em massa do fordismo, conhecido como padrão de acumulação fordista-keynesiano, lançou as bases para a viabilidade do desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social ou Welfare State. O modelo de produção fordista pautado na produção em série e utilização de muita mão-de-obra, acarretando no assalariamento de grande contingente de trabalhadores, e o keynesianismo, enquanto política econômica de intervenção do Estado na garantia do pleno emprego e regulação do mercado, trouxeram certa estabilidade na empregabilidade dos trabalhadores e da economia. Essa dinâmica propiciou um consenso entre capital, Estado e trabalhadores e a possibilidade de mecanismos mais democráticos serem executados, conforme relata Netto (2012): “Aparentemente, o taylorismo-fordismo e o keynesianismo, feitos um para o outro, consolidariam o ‘capitalismo democrático’: a produção em escala encontraria um mercado em expansão infinita e a intervenção reguladora do Estado haveria de controlar as crises”. O sucesso da estratégia econômica keynesiana, assentada em uma política de intervenção do Estado assegurando direitos sociais, marcou um período em que se acreditou ser possível controlar as crises do capital, período este que ficou conhecido como “anos dourados” do capitalismo ou os trinta anos gloriosos. Passado o contexto de instabilidade pós Segunda Guerra Mundial e retomada dos lucros, a efetividade desse padrão de acumulação entra em declínio, com base nos seguintes fatores: “[...] busca de superlucros, associada a uma revolução tecnológica permanente (e sua generalização), a ampliação da capacidade de resistência e, ainda, a intensificação do processo de monopolização do capital [...]”. (BEHRING, 2003). O

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 17 esgotamento desse padrão de acumulação se dá pela superprodução, inviabilizando ao capital a manutenção das suas taxas de concentração de riquezas, e também com o desenvolvimento das forças produtivas, levando à substituição do modelo fordista-keynesiano pelo padrão toyotista: “Em uma década de grande salto tecnológico, a automação, a robótica e a microeletrônica invadiram o universo fabril, inserindo-se e desenvolvendo-se nas relações de trabalho e de produção do capital”. (ANTUNES, 1995). Visando à adequação da produção de acordo com a demanda e utilizando aparato tecnológico, o toyotismo caracteriza-se por ser um padrão de acumulação flexível (HARVEY, 1993). É uma base de produção denominada de acumulação flexível do capital tendo em vista as particularidades das introduções tecnológicas e da velocidade e momento exato da produção, adjetivando, assim, sua dinâmica adaptável tanto à produção quanto às relações sociais dela decorrentes. Nestes termos, a flexibilização não permeia apenas o ambiente produtivo, mas também as relações de trabalho inerentes a esse sistema, assim como a legislação do Estado que a respalda. Os contratos e regimes de trabalho perpassam essa flexibilização através de desregulamentação das leis do trabalho, que permitem maior controle sobre os trabalhadores, além de rebater na sua organização enquanto classe. Para dar suporte às mudanças advindas da nova organização da produção e, intrinsecamente relacionada com as necessidades políticas, a ideologia neoliberal vem para embasar e justificar as transformações societárias em nível político e econômico. A partir da crise do modelo de acumulação de bases taylorista-fordista instalada nos anos 1960, a ideologia neoliberal passa a vigorar com mais intensidade, atacando veementemente a política keynesianista e a intervenção estatal. O neoliberalismo repercute na política econômica através da defesa do Estado mínimo e do mercado para regular as relações, considerando a intervenção estatal e a pressão dos sindicatos os responsáveis pela crise econômica, pois minavam as bases de acumulação do capital. O embasamento teórico e intelectual para o retorno dos princípios liberais teve como grande expoente Frederick Hayek (1899- 1992) e sua obra “O caminho da servidão”, de 1944. Este trabalho retoma a ideia liberal de que apenas um mercado livre das regulações estatais pode oferecer o desenvolvimento pleno dos indivíduos e da liberdade, uma vez que estimula a concorrência e, como consequência, a prosperidade da sociedade (ANDERSON, 1995). Assim, o neoliberalismo representa uma reação teórica, política e ideológica ao intervencionismo estatal, que

18 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro teve como principal expoente o Estado de Bem-estar Social. Impõe, neste sentido, contenção de gastos relativos as políticas sociais, o retorno de um nível de desemprego essencial para diminuir a atuação dos sindicatos, aumento dos juros e redução de impostos que incidiam sobre as rendas (ANDERSON, 1995). O receituário neoliberal propõe reformas do Estado que seguem as orientações e acordos firmados junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), pautadas por uma política econômica regressiva, uma vez que volta-se para o capital financeiro em desvantagem do capital produtivo, altas taxas de juros, manutenção do sistema tributário regressivo e indireto, com maior tributação sobre os ganhos do trabalho e menos do capital, privilegiando o pagamento dos juros da dívida pública. Ao mesmo tempo, a questão social agudiza-se em tempos de desemprego em patamares elevados, refletindo a autonomização da produção. Hoje, com o advento tecnológico e científico, as pessoas tornam- se cada vez mais inúteis para a produção do capital, que, entre outras nuances, realiza-se enquanto capital financeiro. O capital financeiro não comporta o assalariamento em massa dos trabalhadores, que cada vez mais são desnecessários aos interesses da esfera não produtiva do capitalismo. A falta de trabalho ou emprego, que é a condição da sobrevivência dos homens neste modelo de organização, impossibilita a manutenção da sobrevivência dos homens, consistindo, assim, em um ataque ao próprio homem tornado mercadoria. Trazendo em números, neste ano (2019) o desemprego no Brasil atingiu 13, 4 milhões de pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em outras palavras, a mão de obra de milhares de pessoas atualmente, frente ao que se pode chamar de terceira revolução industrial, é desnecessária e sobrante. Vive-se hoje uma terceira revolução industrial acompanhada das profundas transformações mundiais. Assim como em etapas anteriores do desenvolvimento industrial, radicais mudanças tecnológicas envolveram uma ampla expulsão da população trabalhadora de seus postos de trabalho. Atualmente, segmentos cada vez maiores da população tornam-se sobrantes, desnecessários. Essa é a raiz de uma novo problema de amplos segmentos da população, cuja força de trabalho não tem preço, porque não têm mais lugar no mercado de trabalho. (IAMAMOTO, 2015, p. 33, grifos do autor). Além de deixar milhares de pessoas desempregadas e na miséria, esse contingente de desempregados funciona como mecanismo de pressão

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 19 para submeter aqueles que estão trabalhando a aceitarem as condições de trabalho precárias, acarretando no achatamento dos salários de forma mais direta e rápida. A precarização e informalização das relações do trabalho são cada vez mais evidentes e rebatem nas condições de existência da classe trabalhadora, acarretando doenças físicas e mentais relacionadas ao trabalho. As transformações no mundo do trabalho vêm acompanhadas de profundas mudanças na esfera do Estado, consubstanciadas na Reforma do Estado, exigida pelas “políticas de ajuste”, tal como recomendadas pelo Consenso de Washington. Em função da crise fiscal do Estado em um contexto recessivo, são reduzidas as possibilidades de financiamento dos serviços públicos; ao mesmo tempo, preceitua-se o “enxugamento” dos gastos governamentais, segundo os parâmetros neoliberais. Cabe, entretanto, indagar: o enxugamento do Estado para quem? (IAMAMOTO, 2015, p. 34). Assiste-se à ruptura da forma de sociabilidade capitalista pautada no acesso ao emprego, na proteção ao trabalho, uma vez que as necessidades da reestruturação produtiva demandam outro tipo de relação trabalhista. Ao mesmo tempo em que o processo de espoliação se intensifica, as políticas sociais se tornam cada vez mais insipientes com os cortes orçamentários justificados na tão apregoada crise e necessidade de ajuste fiscal dos Estados. O Estado atual representa o rompimento com a aliança entre as classes a fim de se assegurar patamares satisfatórios de uma sociabilidade, uma vez que o alicerce na qual se estabeleceu o Estado social, o trabalho assalariado e regulamentado, encontra-se em declínio.

2 DESMONTE DAS POLÍTICAS SOCIAIS E ASSISTENCIALIZAÇÃO DA PROTEÇÃO SOCIAL

É a partir das tensões e conflitos entre as classes sociais, do processo de pauperização da classe trabalhadora e do desnudamento do lado sombrio do capitalismo que ao Estado é reclamado assegurar a ordem social e, com isso, ocorre o surgimento das políticas sociais e garantias de direitos aos trabalhadores. Já aqui evidencia-se o processo pelo qual os direitos são adquiridos, qual seja, através de lutas e reivindicações. É válido ressaltar o caráter contraditório dessas conquistas, pois constituem- se também enquanto necessidades inerentes ao funcionamento do capital.

20 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Para a compreensão do quadro contemporâneo de precarização das garantias sociais é fundamental situar a relação entre a questão social e as políticas sociais: assim como a questão social tem raiz no desenvolvimento do capitalismo, as políticas sociais são a conjugação de ações voltadas a dar respostas a essa situação. As respostas dadas frente à pauperização da classe trabalhadora passaram por diversas conformações a depender das necessidades do capitalismo e desenho do sistema produtivo, como evidenciado anteriormente na relação entre fordismo e política keynesiana. Traçada a relação da reconfiguração do capital e as bases políticos e econômicas necessárias para sustentá-la, pode-se compreender o quadro de precarização das políticas sociais e de decadência dos sistemas de proteção social. O cenário atual desenha-se nos desmonte das políticas sociais e dos direitos trabalhistas em resposta à crise do capital e reestruturação do sistema econômico produtivo. Essa crise exige respostas que se materializam na ideologia neoliberal em ataque aos direitos sociais, que são responsabilizados pela crise fiscal dos Estados. Neste contexto de acirramento e crise, o Estado é chamado a dar respaldo para a implementação de projetos conservadores que assolam os direitos sociais conquistados ao longo de anos e resultado de muita luta dos trabalhadores. No caso brasileiro, essas mudanças sociais de apelo neoliberal esbarram na tardia inauguração do sistema de proteção social (saúde, previdência e assistência social) trazida pela Constituição Federal de 1988, enquanto expoente máximo do processo de redemocratização do país. Esta, também conhecida como “Constituição Cidadã”, vem garantir direitos sociais e estabelecer a legitimidade das políticas sociais, bem como a responsabilidade do Estado. O tripé do sistema de Seguridade Social brasileiro procura romper com a lógica de discriminação através da universalização da saúde e a assistência social garantida a quem dela necessitar. Especialmente com relação à assistência social ocorre um enorme avanço na conquista de um direito, pois, nesse momento, ela passa a ser responsabilidade do Estado e não da filantropia e benemerência. A inserção tardia do Brasil na construção e legitimidade de políticas sociais enquanto direitos e responsabilidade do Estado reflete as particularidades da formação histórica do país, marcada “por uma herança histórica colonial e patrimonialista”, como aponta Iamamoto (2011, p. 128). A desigualdade é uma característica persistente na história brasileira, marcada pela acentuada concentração de riquezas nas mãos de poucos.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 21 Todo esse processo de conquistas de direitos no Brasil vem na contramão da direção mundial de predominância do neoliberalismo e enfrentamento do Estado de Bem-estar Social. O projeto de proteção social desenvolvido no bojo da redemocratização brasileira, portanto, encontra desde seu início embates e dificuldades de efetivação. A década de 1990 efetivou no país a onda neoliberal com o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso e o seu Plano Diretor de Reforma do Estado. A contrarreforma do Estado brasileiro, como denomina Behring (2003), seguiu as orientações e políticas econômicas dos organismos internacionais, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Central, preconizadas no Consenso de Washington. Neste ínterim, as garantias sociais previstas na Constituição não tiveram condições de se efetivar por várias questões estruturais e de financiamento. As orientações neoliberais vão se corporificando no país em torno do novo consenso de reformas, transferindo a responsabilidade da proteção social do Estado para a sociedade e para o mercado, reconfigurando as políticas sociais para a focalização da extrema pobreza. O arcabouço neoliberal traz, assim, as propostas do enfrentamento da questão social, pautada no trinômio: privatização, focalização e descentralização (BEHRING, 2003). A lógica orçamentária de controle fiscal do Estado dá-se com cortes de gastos públicos para as políticas sociais, levando à privatização e refilantropização da questão social. A mercantilização e desresponsabilização do Estado para com a proteção social acontece com destaque na saúde, educação e previdência, pois se constituem em espaços lucrativos para as empresas. A saída para a “crise” fiscal do Estado é encontrada no mercado que oferece melhores serviços para aqueles que podem pagar, mudando, assim, a lógica de direito para a lógica do consumo. Já aqueles serviços que não podem ser oferecidos pelo mercado, como a assistência, são transferidos para a sociedade civil. Nesse campo, cresce a atuação das organizações não-governamentais e o terceiro setor como um retorno à filantropia e benemerência. As políticas sociais que ficam para o Estado ganham contornos focalistas e refletem o consenso de enfrentamento da questão social voltadas para a extrema pobreza, perdendo de vista o princípio da universalidade e dimensão de direito da proteção social: “os serviços estatais para pobres são, na verdade, pobres serviços estatais” (MONTANO, 2010, p. 195). O minimalismo das políticas sociais reflete o consenso presente nas orientações neoliberais, em relação ao foco na extrema pobreza. Outra

22 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro tendência evidenciada na atuação precária e focalista do Estado na proteção social diz respeito ao corte assistencial da proteção social: Ao contrário de caminhar na direção da consolidação de direitos, a modalidade que irá conformar as políticas sociais brasileiras será primordialmente o caráter assistencial. Com isto o desenho das políticas sociais brasileiras deixa longe os critérios de uniformização, universalização e unificação em que se pautam (ou devem pautar) as propostas do Welfare State. Em contraposição à universalização utilizarão, sim, mecanismos seletivos como forma de ingresso das demandas sociais. (SPOSATI, 2014, p. 34). O critério da universalidade de acesso não chega a ser efetivado quando se alargam os critérios para acesso, trazendo um viés restritivo e seletivo das políticas sociais. Somado a esta tendência e, ainda, a presença marcante do desemprego estrutural, as manobras encontradas para enfrentar a situação tem sido a centralização da assistência social dentro das políticas da Seguridade, estabelecendo a relação entre trabalho e assistência social no capitalismo. Como apontado por Boschetti (2016), existe uma lógica de atração e rejeição entre o trabalho e a assistência social no capitalismo uma vez que aqueles capacitados para o trabalho, quando não o têm, dependem da assistência, sendo assim impelidos uma para a outra. A atração ocorre no aumento da procura da assistência social pelos trabalhadores que não encontram trabalho e a rejeição quando não podem acessar a assistência por não ter direito a ela. Este quadro complica-se nos países subdesenvolvidos como o Brasil, em que o Estado de Bem-Estar Social não teve condições de ser efetivado e os níveis de desemprego são alarmantes: Nos países do capitalismo periférico que não instituíram o Estado social ampliado e nem uma ‘sociedade salarial’, essa tensão de atração e rejeição atinge o limite do tolerável: quanto maior o grau de desigualdade, de pobreza, de desemprego e de ausência ou insuficiência da proteção vinculada ao trabalho (seguro-desemprego, seguro-saúde, previdência, pensões) maior a necessidade e demandas por assistência social. Contudo, nesses países, a assistência social é ainda mais marginal ou inexistente como política social e suas ações, ainda mais limitadas, restritivas e focalizadas, até hoje sofrem com interpretações equivocadas que escanteiam para o campo da filantropia e a relegam ao limite da reprodução da superpopulação relativa estagnada incapacitada ao trabalho. (BOSCHETTI, 2016, p. 107).

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 23 Neste contexto, a proteção social, estabelecida no Sistema de Seguridade Social, tende a voltar sua atenção para a assistência social, o que Mota (2010) chama de “assistencialização” da proteção social. No entendimento desta autora: “Essa reforma implica uma passivização da ‘questão social’, que se desloca do campo do trabalho para se apresentar como sinônimo das expressões da pobreza, e por isso mesmo, objeto do direito à assistência e não ao trabalho” (MOTA, 2010). Esses desdobramentos são consubstanciados na vida dos trabalhadores e famílias, levando-os a aceitarem condições mais precárias de trabalho que entre outros aspectos, não resguardam os direitos do seguro e evidenciam o desmonte que sofre a previdência social. Também explica a forte propaganda do empreendedorismo enquanto solução para o desemprego. Confere, desta forma, ao indivíduo a responsabilidade por sua situação, atribuindo a falta de empenho da sua parte à situação de exclusão e pobreza em que se encontra. Ainda se pontuam os limites nos orçamentos que acabam por criar critérios para o acesso à assistência e, deixando de fora os demandantes da política de Assistência Social, que não necessariamente vão se enquadrar nos critérios para ter acesso a ela. Daí decorre um dos fatores que contribuem para Mota coloca a amplitude desta discussão: Mais do que viabilizar medidas que alteram o escopo da seguridade social brasileira inscrita na Constituição de 1988, o que está em discussão é o próprio desenho da proteção social no Brasil em face da construção de um novo modo de tratar a ‘questão social’ brasileira, focando-a enquanto objeto de ações e programas de combate a pobreza à moda dos organismos financeiros internacionais, donde a centralidade dos programas de transferência de renda. (MOTA, p. 140, 2010). É preciso, ainda, que alguém execute esse sistema débil das políticas sociais do Estado, fazendo a triagem daqueles mais miseráveis entre os pobres, uma vez que não é possível com parcos recursos atender a todos. Como resposta a esse processo, os critérios de elegibilidade para se enquadrar no perfil de acesso a essas políticas são enrijecidos e colocam cada vez mais em cheque a universalidade. O reordenamento das políticas sociais, segundo o receituário neoliberal e orientações dos organismos internacionais, acaba por limitar o trabalho do assistente social, que passa a ser requisitado para administrar a pobreza: Atestar o grau de carência passa a ser uma preocupação básica. É ela o ‘passaporte’ para o ingresso no aparato das exigências institucionais. E aqui reside, inclusive, uma das funções

24 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro persistentes dentre as atribuições dos assistentes sociais: a triagem socioeconômica. O assistente social é o profissional legitimado para atribuir o grau de carência do ‘candidato’ a usuário e o Serviço Social é a tecnologia que dá conta da racionalidade desse processo. (SPOSATI, 2014, p. 46). Implica também na intensificação da burocracia para identificar os mais pobres entre os pobres, sendo necessário um atestado de pobreza dessa população segundo os rígidos critérios para acesso, contribui para estigmatizar ainda mais essas pessoas já alijadas de condições dignas de trabalho e vida, e rebate esse processo em precarização das condições de trabalho desses profissionais: “[...] convive-se com salas sem condições de sigilo, móveis antigos, ausência de equipamentos e de condições de registro, falta de manutenção, de material de consumo e de investimentos em bens de capital e equipamentos” (BEHRING, 2003). Quando não são humilhados segundo os critérios para acesso às políticas, os pobres são culpabilizados e criminalizados pela situação de penúria, fato que se presencia no fenômeno da criminalização da questão social (IANNI, 1994) e que evidencia o esgotamento de opções mais civilizatórias e o adensamento da barbárie social presente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões aqui propostas procuraram demonstrar a relação existente entre o desenvolvimento das forças produtivas e suas implicações para a organização do trabalho e para a proteção social. Os estágios de desenvolvimento do modo de produção, estudados aqui, demonstram que eles exprimem determinações para as relações sociais e correspondem, cada qual, a formas determinadas de enfrentar as crises advindas do esgotamento do seu padrão de acumulação de riqueza. No bojo do ideal neoliberal de ataque e reforma do Estado com o intuito de desresponsabilização do mesmo frente às refrações da questão social, a proteção social assume uma configuração precária e débil. No contexto da atual crise do capital marcado pelos níveis históricos e exorbitantes do desemprego e trabalhos precários, acentuam- se os desafios e demandas para a área da assistência social, colocando esta política na centralidade do enfrentamento da questão social. Este cenário de desemprego, desproteção e precarização do trabalho caracteriza os tempos atuais e conformam, para o campo da proteção social, novas

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 25 tensões e arranjos, impondo também às profissões, como o Serviço Social, demandas e desafios complexos. Os assistentes sociais podem ser levados a atuarem na administração da pobreza em consonância com a focalização das políticas sociais traduzidas em burocratização e restrição nos critérios de acesso. Ao mesmo tempo, é preciso inserir estes profissionais enquanto trabalhadores assalariados e pertencentes à divisão social e técnica do trabalho e, portanto, submetidos a ela. Reafirma-se assim, a imprescindível tarefa de desvelar essa realidade, como salienta Iamamoto (2015): “É necessário, hoje, repensar a questão social, porque as bases de sua produção sofrem, na atualidade, uma profunda transformação com as inflexões verificadas no padrão de acumulação”. Portanto, fundamental é compreender a conjuntura das respostas do Estado para o trato da questão social na contemporaneidade, e por fim debruçar sobre os rebatimentos e reflexos para o trabalho dos assistentes sociais. Desta maneira será possível compreender os limites e possibilidades do trabalho profissional do assistente social e a indispensabilidade de formação profissional que implique competência teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa. O projeto ético- político representa, nestes tempos um importante direcionamento para uma ação crítica, para a práxis profissional do assistente social condizente com a defesa dos direitos sociais, da democracia, da liberdade e igualdade. Respaldado por uma visão crítica, o profissional poderá desvelar o fato imerso na imediaticidade e superficialidade, partindo do cotidiano em que se encontra a vida de todos os dias e contribuir na retomada do protagonismo da classe trabalhadora.

REFERÊNCIAS

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26 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro BRASÍLIA. Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais na Política de Assistência Social. Disponível em: http://www.cfess.org.br/ arquivos/Cartilha_CFESS_Final_Grafica.pdf. Acesso em: 10 jul. 2018. BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. BOSCHETTI, Ivanete. Assistência social e trabalho no capitalismo. São Paulo: Cortez, 2016. IANNI, Octavio. A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994. IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 26. ed. São Paulo: Cortez, 2015. IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na cena contemporânea. In: Capacitação em serviço social e política social: o trabalho do assistente social e as políticas sociais. mod. 4. Brasília: UNB, 2000. IBGE. Agência IBGE notícias. Disponível em: https:// agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/ noticias/24283-desemprego-sobe-para-12-7-com-13-4-milhoes-de- pessoas-em-busca-de-trabalho. Acesso em: 25 ago. 2019. MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2010. MOTA, Elizabete (org.). O mito da assistência social: ensaios sobre Estado, política e sociedade. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2010. SPOSATI, Aldaiza de Oliveira et al. Assistência na trajetória das políticas sociais brasileiras: uma questão em análise. 12, ed. São Paulo: Cortez, 2014.

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DESAFIO DA CONCESSÃO DA APOSENTADORIA ESPECIAL AO CONTRIBUINTE INDIVIDUAL

Lara Costa Andrade* Camila Migotto Dourado** Daiene Kelly Garcia*** Gabriela Cabral Roque****

RESUMO: A partir do questionamento acerca da possibilidade de concessão de aposentadoria especial ao contribuinte individual, o presente trabalho analisou obras e artigos científicos que abordam tal assunto, bem como a legislação vigente, a fim de encontrar uma resposta para a indagação. Ainda que não seja um posicionamento consolidado em relação à temática ora desenvolvida, o direito à aposentadoria especial, benefício concedido a empregados e trabalhadores avulsos que, tendo trabalhado por 15, 20 ou 25 anos, a depender do caso concreto, submetidos à exposição de agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou associados e, portanto, em condições especiais, as quais podem causar danos à saúde e integridade física, o que implica na necessidade social de sua concessão, é defensável por parte significativa da doutrina e reconhecido em diversas decisões judiciais também para o contribuinte individual, inclusive quando não cooperado. Assim, utilizando o método hipotético-dedutivo, pretende-se analisar se, de modo a compatibilizar a necessidade de proteção social aos trabalhadores que suportam riscos de prejuízos à saúde à necessidade de prévio custeio dos benefícios previdenciários, a aposentadoria especial poderia ser concedida aos contribuintes individuais. Palavras-chave: aposentadoria especial do contribuinte individual. atividade especial. direito previdenciário. ABSTRACT: From the question about the possibility of granting special retirement to the individual taxpayer, this paper analyzed works and scientific articles that address this subject, as well as the current legislation, in order to find an answer to the question. Although it is nota consolidated position in relation to the theme now developed, the right to special retirement, benefit granted to employees and freelance workers who, having worked for 15, 20 or 25 years, depending on the specific case, subjected to exposure of agents harmful, chemical, physical, biological or associated and, therefore, under special conditions, which may cause damage to health and physical integrity, which implies the social necessity of its concession, is defensible by a significant part of the doctrine and recognized in several court decisions. also for the individual taxpayer, even when uncooperative. Thus, using the hypothetical-deductive method, it is intended to analyze whether, in order to match the need for social protection to workers who bear risks of health damage to the need for previous costing of social security benefits, special retirement could be granted to taxpayers individual. Keywords: individual taxpayer’s special retirement. special activity. social security law. * Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6045502231667076 ** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1833906794695866 *** Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca. Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Currículo Lattes: http://lattes. cnpq.br/7299317482235839. *** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9154930158618044.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 29 INTRODUÇÃO

O artigo terá como objeto de estudo a aposentadoria especial do contribuinte individual. O trabalho busca analisar a temática e avaliar se é cabível a concessão de aposentadoria especial para os contribuintes individuais. Verifica-se que não há uma convergência de entendimento quanto à legislação vigente e as obras produzidas no que diz respeito à concessão da aposentadoria especial aos contribuintes individuais, em especial aqueles que não são cooperados, uma vez que a lei previdenciária permite que os cooperados que exercem atividades especiais tenham direito à aposentadoria especial. A aposentadoria especial pode ser compreendida como uma espécie de aposentadoria por tempo de contribuição, em virtude de alguns pontos semelhantes entre os dois benefícios, a partir da redução do tempo necessário à inativação, de modo que sua concessão é realizada a partir do exercício de atividades tidas legalmente como prejudiciais à saúde ou à integridade física. Desse modo, é possível considerá-la como um benefício de natureza previdenciária, cujo objetivo é reparar financeiramente o trabalhador que executava suas funções em condições de trabalho inadequadas. Em regra, por força do artigo 64 do Regulamento da Previdência Social (Decreto nº 3.048/1999), faz jus à aposentadoria especial o indivíduo que trabalha como empregado, trabalhador avulso e contribuinte individual cooperado, estando excluído desse direito o contribuinte individual não cooperado. Há um rol no inciso V do artigo 9º do Regulamento da Previdência Social expressando quais segurados são considerados como contribuintes individuais. Nota-se que o enquadramento do trabalhador como contribuinte individual é feito por exclusão: aquele que não se encaixa em nenhuma outra categoria de segurado será enquadrado como contribuinte individual. Como exemplo de trabalhadores que são considerados contribuintes individuais e poderiam se beneficiar da aposentadoria especial, têm-se profissionais liberais como médicos, dentistas e advogados, bem como outros profissionais, a exemplo do membro do conselho tutelar edo condutor autônomo de veículo rodoviário, dentre outros. A Lei de Benefícios da Previdência Social, ao instituir, nos artigos 57 e 58, que tratam da aposentadoria especial e da conversão de

30 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro tempo especial em comum, não excepcionou o contribuinte individual, apenas exigiu que o segurado, sem qualquer limitação quanto à sua categoria (empregado, trabalhador avulso ou contribuinte individual), trabalhasse sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física. Lado outro, o Regulamento da Previdência Social não incluiu o contribuinte individual não cooperado no rol de segurados com direito à aposentadoria especial. Assim, o reconhecimento do referido direito tornou-se controverso. Em razão da previsão normativa de recolhimento de contribuição adicional específica para o benefício de aposentadoria especial, disposta nos parágrafos 6º e 7º do artigo 57 da Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei nº 8.213/1991), tornou-se predominante a compreensão segundo a qual o reconhecimento da atividade especial está condicionado às hipóteses de financiamento do referido benefício por meio de contribuição adicional realizada pela empresa, destacando-se que o contribuinte individual não colabora para o financiamento específico do benefício de aposentadoria especial, exceto quando cooperado, hipótese na qual as contribuições são realizadas pela empresa cooperativa. O tema abordado pelo presente trabalho é de notória relevância, pois a exigência de tempo de atividade e contribuição inferior àquele necessário para a obtenção de aposentadoria por tempo de contribuição se verifica em razão do exercício de atividades consideradas prejudiciais à saúde, constituindo uma compensação social ao trabalhador que contribui para as demandas sociais em prejuízo de sua própria saúde. Faz-se necessário refletir acerca da importância desse benefício, em razão de seu caráter compensatório, bem como da (im)possibilidade de estender a proteção social almejada pelo legislador na previsão desse benefício aos contribuintes individuais, em especial àqueles não cooperados, os quais, apesar de sujeitarem-se às condições prejudiciais à saúde, mesmo ante à omissão ou inércia do legislador relativa à previsão de contribuição específica pelo contribuinte individual não cooperado. Ademais, diante da Proposta de Emenda à Constituição nº 6, de 2019, que se encontra em tramitação, cumpre destacar algumas propostas de modificações quanto à aposentadoria especial, visto que tais proposições impactam diretamente a proteção social, mormente quanto ao trabalhador que se sujeita às condições especiais e, em razão disso, recebe – atualmente – tratamento diferenciado.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 31 Pretende-se, assim, o exame da legislação vigente acerca do assunto, de modo a elaborar uma pesquisa substancial acerca da aposentadoria especial do contribuinte individual e colaborar para o debate acerca da proteção social em face dos riscos inerentes à saúde do trabalhador, analisando a compatibilização entre os princípios do prévio custeio e da proteção social, o que se fará por meio de método hipotético-dedutivo, a partir da análise de obras jurídicas e legislações relativas ao tema.

1 ASPECTOS GERAIS DO CONTRIBUINTE INDIVIDUAL

O contribuinte individual é definido a partir de uma negativa, ou seja, todos que não se enquadram na hipótese de segurado obrigatório encontram-se reunidos nesta categoria. Desta forma, o rol de contribuintes individuais é amplo e genérico, reunindo diversos trabalhadores sem grandes semelhanças entre suas atividades (IBRAHIM, 2012, p. 201). Ainda assim, há dispositivos enumerando quais trabalhadores são considerados como contribuintes individuais. Conforme inciso V do art. 9º do Regulamento da Previdência Social (Decreto nº 3.048/1999), são contribuintes individuais: a) a pessoa física, proprietária ou não, que explora atividade agropecuária, a qualquer título, em caráter permanente ou temporário, em área superior a 4 (quatro) módulos fiscais; ou, quando em área igual ou inferior a 4 (quatro) módulos fiscais ou atividade pesqueira, com auxílio de empregados ou por intermédio de prepostos; ou ainda nas hipóteses dos §§ 9o e 10 deste artigo; b) a pessoa física, proprietária ou não, que explora atividade de extração mineral - garimpo, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou por intermédio de prepostos, com ou sem o auxílio de empregados, utilizados a qualquer título, ainda que de forma não contínua; c) o ministro de confissão religiosa e o membro de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa; d) o empregado de organismo oficial internacional ou estrangeiro em funcionamento no Brasil, salvo quando coberto por sistema próprio de previdência social; e) o brasileiro civil que trabalha no exterior para organismo oficial internacional do qual o Brasil é membro efetivo, ainda que lá domiciliado e contratado, salvo quando coberto por regime próprio de previdência social;

32 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro f) o titular de firma individual urbana ou rural, o diretor não empregado e o membro de conselho de administração de sociedade anônima, o sócio solidário, o sócio de indústria, o sócio gerente e o sócio cotista que recebam remuneração decorrente de seu trabalho em empresa urbana ou rural, e o associado eleito para cargo de direção em cooperativa, associação ou entidade de qualquer natureza ou finalidade, bem como o síndico ou administrador eleito para exercer atividade de direção condominial, desde que recebam remuneração; g) quem presta serviço de natureza urbana ou rural, em caráter eventual, a uma ou mais empresas, sem relação de emprego; h) a pessoa física que exerce, por conta própria, atividade econômica de natureza urbana, com fins lucrativos ou não. Frente a generalidade das alíneas “g” e “h”, o trabalhador filiado ao Regime Geral de Previdência Social que não seja classificado nas outras categorias de segurado obrigatório ou facultativo poderá ser enquadrado como contribuinte individual (AMADO, 2016, p. 301). Ademais, esta tem sido a categoria em maior expansão no Brasil dos dias atuais, tendo em vista que é mais vantajoso para as empresas contratarem prestadores de serviços no lugar de empregados. Logo, não são assegurados os direitos trabalhistas nem os benefícios previdenciários, o que acarreta na falta de proteção social e de recolhimento das contribuições previdenciárias (IBRAHIM, 2012, p. 206). Cita-se como exemplo de trabalhadores que se enquadram nas hipóteses previstas nas mencionadas alíneas: cooperado de cooperativa de produção, microempreendedor individual, notário ou tabelião, médico residente, bolsista da Fundação Nacional do Exército, árbitro e seus auxiliares, membro de conselho tutelar, condutor autônomo de veículo rodoviário, dentre outros (AMADO, 2016, p. 305-308). Nessa perspectiva, a questão da contribuinte individual pode ser relacionada com a contribuição adicional que decorre dos riscos ambientais do trabalho com o contribuinte individual. Primeiramente, esta última, também conhecida como SAT (Seguro Contra Acidentes de Trabalho) ou RAT (Riscos Ambientais do Trabalho), visa custear o benefício acidentários, estando prevista no art. 22, II da Lei nº 8.212/1991, sendo assim, compreende-se do dispositivo que o SAT não pode ser destinado para a aposentadoria especial, a qual pode ser suportada pela contribuição disposta no art. 57, §§ 6º e 7º da Lei nº 8.213/1991. Em suma, enquanto a contribuição adicional pode ser definida como a contribuição por atividade

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 33 especial, o SAT pode ser conceituado como contribuição acidentária (VELLOSO, 2010, p. 03-04). Destaca-se que Sérgio Pinto Martins (2011, p. 94) utiliza a expressão “segurado obrigatório individual” no lugar de contribuinte individual por considerar que o art. 12 da Lei nº 8.212/1991 trata de segurados. No entanto, o presente artigo adota o termo “contribuinte individual”, tendo em vista que este é utilizado pela maioria dos estudiosos do tema. Por conseguinte, a denominação escolhida por Sergio Pinto Martins expressa uma característica importante do contribuinte individual, qual seja, a obrigatoriedade. O contribuinte tem a responsabilidade pessoal de recolher a contribuição mensalmente até o décimo quinto dia do mês subsequente ao mês de recebimento da renda (BARROS JÚNIOR, 2012, p. 25). O art. 21, caput, da Lei nº 8.212/1991 estabelece que o contribuinte individual deverá recolher o percentual de vinte por cento do respectivo salário-contribuição, correspondendo à alíquota de contribuição desta categoria de segurado. Além disto, a empresa contratante possui a obrigação de recolher onze por cento do valor pago como remuneração ao contribuinte individual. O ente público que contratar tal contribuinte para prestação de serviços eventuais também deverá descontar onze por cento sobre a quantia remunerada (CASTRO; LAZZARI, 2012, p. 250). No entanto, há a possibilidade de o contribuinte individual ter recolhido a porcentagem de cinco por cento do salário mínimo e queira se aposentar contando o tempo de contribuição de acordo com o previsto no art. 94 da Lei nº. 8.213/1991. Este dispositivo determina em seu caput que “[...] é assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição na atividade privada, rural e urbana, e do tempo de contribuição ou de serviço na administração pública”. Para tanto, o contribuinte individual [...] deverá complementar a contribuição mensal mediante recolhimento, sobre o valor correspondente ao limite mínimo mensal do salário de contribuição em vigor na competência a ser complementada, da diferença entre o percentual pago e o de 20%, acrescido dos juros moratórios equivalentes à taxa SELIC (CASTRO; LAZZARI, 2012, p. 252). A inscrição do contribuinte individual na respectiva categoria é prova suficiente para o pagamento das contribuições no prazo devido e daquelas em atraso. Ou seja, a inscrição do contribuinte individual possibilita

34 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro a comprovação de que este possuía vínculo com a Previdência Social. Desta forma, nos casos em que o contribuinte não realiza o recolhimento da contribuição na data correta, a inscrição regular dele constitui prova da atividade cadastrada, permitindo que seja feita a contribuição em atraso (MAUSS; TRICHES, 2016, p. 267 apud MAROTTA, 2018, p. 64). O Regulamento da Previdência Social, em seu art. 18, caput e inciso III, determina que o contribuinte deve ser cadastrado no Regime Geral de Previdência Social, comprovando seus dados pessoais e outras informações úteis e necessárias para sua identificação, sendo que o contribuinte individual deve apresentar documento que demonstre sua condição ou exercício de atividade profissional, seja liberal ou não. Isto é considerada a inscrição regular do contribuinte individual. Se a atividade exercida pelo contribuinte individual não for cadastrada no Instituto Nacional do Seguro Social, ele deverá realizar a primeira contribuição tempestiva para que esta sirva como presunção de atividade. Ou ainda, caso o contribuinte tenha inscrito a atividade exercida e não tenha recolhido a contribuição junto ao INSS, ele deverá demonstrar o exercício efetivo da função durante o período requerido por meio da Retroação de Data de Início das Contribuições (MAROTTA, 2018, p. 65-66). O art. 23, caput, da Instrução Normativa nº 77/2015 define que a Retroação de Data de Início da Contribuição é “[...] o reconhecimento de filiação em período anterior a inscrição mediante comprovação de atividade e recolhimento das contribuições”. Outrossim, o parágrafo único do mesmo dispositivo estabelece que se o contribuinte individual estiver incluído no Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social, seu pedido de reconhecimento de filiação poderá ser deferido independente do recolhimento das contribuições, desde que haja o exercício de atividade remunerada comprovado.

2 APOSENTADORIA ESPECIAL: CONCEITO E CONDIÇÕES

No ordenamento jurídico brasileiro, a previsão legal da aposentadoria especial deu-se, inicialmente, com a Lei nº 3.807/1960, conhecida como Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), em que o art. 31 disciplinava a hipótese de aposentadoria antecipada pelo segurado que realizou atividade entendida como penosa, perigosa ou insalubre no decorrer de sua vida laboral (MAROTTA, 2018, p. 02).

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 35 Todavia, a Lei nº 3.807/1960 foi posteriormente alterada pela Lei nº 5.890/1973 e pela Lei nº 5.440-A/1968, sendo que na atualidade, a matéria possui amparo legal na Lei n. 8.213/1991, mais especificamente em seus arts. 57 e 58 (MAROTTA, 2018, p. 02). Já no âmbito da Constituição Federal de 1988, a temática encontra-se disciplinada no §1º do art. 201 (MANTOVANI, 2016). É preciso destacar que a aposentadoria especial se fundamenta juridicamente por ser um direito de natureza previdenciária, tendo como escopo a compensação feita àquele contribuinte que laborou em condições de risco, em detrimento de sua saúde ou ainda de sua integridade física. No entanto, para haver a concessão é necessária a existência de contribuições pelo contribuinte, atrelado ao tempo de serviço, além da exposição ao risco (MANTOVANI, 2016). A aposentadoria especial pode ser definida como uma modalidade de aposentadoria por tempo de contribuição, a partir da diminuição do tempo necessário à inativação, sendo que sua concessão se dá em razão do exercício de atividades classificadas como prejudiciais à saúde ouà integridade física. Assim, pode-se considerá-la como um benefício de natureza previdenciária que tem a finalidade de reparar no âmbito financeiro o trabalhador que laborava em condições de trabalho inadequadas (CASTRO; LAZZARI, 2018, p. 751). Isto posto, “a aposentadoria especial é um benefício que visa garantir ao segurado do Regime Geral da Previdência Social uma compensação pelo desgaste resultante do tempo de serviço prestado em condições prejudiciais à sua saúde ou integridade física” (RIBEIRO, 2011, p. 23). De acordo com a definição apresentada por Ítalo Romano Eduardo e Jeane Tavares Aragão Eduardo (2016, p. 275) a aposentadoria especial é cabível ao segurado que tenha trabalhado durante 15, 20 ou 25 anos, conforme o caso, e sido submetido a condições específicas que violem a saúde ou integridade física desse trabalhador. A aposentadoria especial assemelha-se à aposentadoria por tempo de contribuição em virtude de o requisito para sua obtenção ser o atingimento de certo tempo de contribuição, ainda que de forma reduzida. Apesar de que a nocividade do meio laboral seja elemento necessário para seu gozo, não se exige a comprovação de incapacidade laborativa, fato este que a afasta de forma notável da aposentadoria por invalidez (BRAGANÇA, 2012, p. 179). Ademais, a previsão normativa encontra-se no art. 201, §1º, da Constituição Federal, o qual dispõe que:

36 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro §1º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar. Ainda que o dispositivo ora em tela faça a exigência de lei complementar a fim de ser regulamentado, a Lei nº 8.213/1991, em seus artigos 57 e 58 que abordam tal conteúdo, exigência essa que decorreu da Emenda Constitucional nº 20/1998, momento em que a Lei nº 8.213/1991 já estava vigente, o que afasta qualquer dúvida sobre sua constitucionalidade. A Emenda, previa em seu art. 15: “Até que a lei complementar a que se refere o art. 201, § 1º, da Constituição Federal, seja publicada, permanece em vigor o disposto nos arts. 57 e 58 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, na redação vigente à data da publicação desta Emenda”. Assim, persiste a validade das normas retiradas a partir dos artigos 57 e 58 da Lei nº 8.213/1991, alçados à categoria de lei complementar. Além disso, a aposentadoria especial é tratada no Regulamento da Previdência Social nos artigos 64 a 70 (BRAGANÇA, 2012, p. 179). O benefício em análise refere-se à incapacidade laboral decorrente de atividade que prejudique a saúde ou a integridade física do trabalhador, ora segurado, que exerça suas funções submetido a exposição de agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou associação de agentes que sejam prejudiciais, o que infere na necessidade social de sua concessão (VIANNA, 2014, p. 527). No que concerne aos requisitos para concessão da aposentadoria especial, devem ser comprovadas a carência e, nos termos da lei vigente à época da prestação do serviço, a efetiva exposição, habitual e permanente, a agentes nocivos à saúde e à integridade física que configurem realização de trabalho em condições especiais. Deve-se observar a necessidade de, até 28 de abril de 1995 – data do advento da Lei nº 9.032/1995, de 28 de abril de 1995 –, comprovar o desempenho da atividade com enquadramento profissional, e, após 29 de abril de 1995, comprovar a atividade especial por meio da apresentação dos formulários especificados em lei, consoante a época do exercício da atividade. Há ainda a necessidade de que seja atendido o binômio nocividade- permanência. Quanto à necessidade, essa poderá ser medida quantitativa

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 37 (sendo nocivo o agente que supera certos limiares de tolerância ou doses) e qualitativamente (de modo a decorrer da simples presença do agente, que garante a presunção de nocividade). Já em relação à permanência, há a exigência de que o trabalhador tenha prestado serviços durante 15, 20 ou 25 anos, em conformidade com o caso, submetido ao agente nocivo, de forma não ocasional nem intermitente (BRAGANÇA, 2012, p. 180). Conforme o art. 57 da Lei nº 8.213/1991, posto que tenha sido cumprida a carência exigida pela lei, será devido ao beneficiário que tenha trabalhado durante 15, 20 ou 25 anos, como já afirmado, não sendo exigida idade mínima como requisito para a concessão, já que de forma contrária à legislação anterior, a Lei ora referida não tem como requisito concessivo o lapso de idade (BRAGANÇA, 2012, p. 180). Outra questão que as diferenciam é que a nova Lei, que tem como marco a Lei nº 9.032/1995, não faz presunção da existência do agente nocivo, muito menos que o simples exercício de certas profissões trará como garantia o direito ao benefício. Assim, não há mais a aplicação do Anexo II do Decreto nº 83.080/1979 e parcialmente do Anexo do Decreto nº 53.831/1964, a respeito de ocupações. Assim, o segurado terá de comprovar, além do tempo de trabalho, que havia exposição aos agentes nocivos químicos, físicos biológicos, bem como a associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física, pelo tempo equivalente à exigência prevista na lei para sua concessão, conforme o disposto no art. 57, § 4º, Lei nº. 8.213/1991 (BRAGANÇA, 2012, p. 180). No tocante aos beneficiários da aposentadoria especial, conforme o regramento adotado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), art. 64, caput, do Decreto nº. 3.048/1999, será devida a concessão do benefício em análise ao segurado empregado, trabalhador avulso e contribuinte individual, sendo necessário, em relação a este último, que seja filiado à cooperativa de trabalho ou de produção. Além disso, em relação ao contribuinte individual que trabalha de forma eventual e sem relação de emprego, o INSS tem interpretado que, a partir de 29 de abril de 1995, não será permitido que tal atividade seja enquadrada como especial, já que não há forma de comprovar a exposição a agentes nocivos causadores de danos à saúde e à integridade física, de maneira habitual e permanente, não ocasional nem intermitente. Há também o entendimento que não há fonte de custeio contemplada pela Lei nº 9.732/1998 em relação ao contribuinte individual (CASTRO; LAZZARI, 2018, p. 758). Isto porque, por força do art. 195, §

38 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 5º, da Constituição Federal, nenhum benefício da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total. A concessão de aposentadoria especial, bem como a conversão de tempo exercido sob condições especiais em tempo de trabalho comum, previstas nos artigos 57 e 58 da Lei nº 8.213/1991, se fundamentam na contraprestação prevista no parágrafo 6º do referido art. 57, combinado com o art. 22, inciso II, da Lei nº 8.212/1991, havendo, portanto, indicação legislativa específica de fonte de custeio. Embora a Lei nº 9.732/1998 não trate expressamente sobre a fonte de custeio da aposentadoria do contribuinte individual, a contribuição adicional ao SAT (Seguro por Acidentes de Trabalho), também chamado de RAT (Riscos Ambientais do Trabalho), apresenta como finalidade financiar a aposentadoria especial. Referida contribuição será de 6, 9 ou 12% para empregados e cooperados de cooperativas de produção e 5, 7 ou 9% para cooperativas de trabalho. Tais alíquotas podem ser reduzidas ou majoradas pelo índice FAP (Fator Acidentário de Prevenção), conforme previsto nos §§ 1º e 2º do art. 202-A do Decreto nº 3.048/1999. Desta forma, a contribuição adicional incide “[...] sobre as remunerações pagas a segurados que desempenham atividade especial e, portanto, terão direito ao referido benefício – ou, pelo menos, à conversão do tempo especial em comum” (VELLOSO, 2010, p. 3). Contudo, os autores utilizados como base teórica para o presente artigo, Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari entendem essa interpretação de exclusão de segurados como equivocada, já que a Lei de Benefícios não dispõe acerca de qualquer restrição nesse aspecto, e a especialidade da atividade advém da exposição aos agentes nocivos, e não da relação de emprego existente, o que pode ser entendido pelo exemplo apresentado pelos autores: Tenha-se, por exemplo, um fabricante de cristais que exerce a atividade de forma autônoma: pela norma interna do INSS, não faria jus a benefício de aposentadoria especial; da mesma forma, os demais profissionais que atuam expostos a agentes nocivos e que não possuem vínculo empregatício. (CASTRO; LAZZARI, 2018, p. 759). Ademais, há precedentes jurisprudenciais que admitem o reconhecimento do tempo especial e o direito à aposentadoria especial ao contribuinte individual, a qualquer tempo, posto que o art. 57 da Lei nº. 8.213/1992 não traz nenhuma restrição. Nesse mesmo aspecto, houve a

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 39 edição da Súmula 62 da Turma Nacional de Uniformização, a qual dispõe que: “O segurado contribuinte individual pode obter reconhecimento de atividade especial para fins previdenciários, desde que consiga comprovar exposição a agentes nocivos à saúde ou à integridade física” (CASTRO; LAZZARI, 2018, p. 759). Por conseguinte, tem-se o Informativo de Jurisprudência nº 570 proferido pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, com base no Recurso Especial nº 1.436.794/SC (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2015), conforme ementa: PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. APOSENTADORIA ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535 DO CPC. NÃO CARACTERIZAÇÃO. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE ESPECIAL. SEGURADO CONTRIBUINTE INDIVIDUAL NÃO COOPERADO. POSSIBILIDADE. COMPROVAÇÃO DA ATIVIDADE ESPECIAL. REVISÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 7/STJ. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E NESS PART NÃO PROVIDO. 1. Não há violação do artigo 535 do Código de Processo Civil, pois in casu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região analisou integralmente todas as questões levadas à sua apreciação, notadamente, a possibilidade de se reconhecer ao segurado contribuinte individual tempo especial de serviço, bem como conceder o benefício aposentadoria especial. 2. O caput do artigo 57 da Lei 8.213/1991 não traça qualquer diferenciação entre as diversas categorias de segurados, elegendo como requisitos para a concessão do benefício aposentadoria especial tão somente a condição de segurado, o cumprimento da carência legal e a comprovação do exercício de atividade especial pelo período de 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos. 3. O artigo 64 do Decreto 3.048/1999, ao limitar a concessão do benefício aposentadoria especial ao segurado empregado, trabalhador avulso e contribuinte individual cooperado, extrapola os limites da Lei de Benefícios que se propôs regulamentar, razão pela qual deve ser reconhecida sua ilegalidade. 4. Tese assentada de que é possível a concessão de aposentadoria especial ao contribuinte individual não cooperado que cumpra a carência e comprove, nos termos da lei vigente no momento da prestação do serviço, o exercício de atividade sob condições especiais que prejudiquem a sua saúde ou sua integridade física pelo período de 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte cinco) anos. 5. Alterar a conclusão firmada pelo Tribunal de origem

40 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro quanto à especialidade do trabalho, demandaria o necessário reexame no conjunto fático-probatório, prática que esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. 6. Recurso especial parcialmente conhecido e nessa parte não provido (grifo nosso). Em estudo de jurisprudências existentes no país, observou-se a existência de três acórdãos do Supremo Tribunal Federal com a busca do termo “aposentadoria especial do contribuinte individual”. Realizando-se a mesma pesquisa na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça foram encontrados 66 acórdãos, evidenciando uma maior abordagem sobre a matéria, sendo que o Informativo de Jurisprudência nº 570, citado acima, demonstra o posicionamento adotado. Ademais, a mesma busca realizada na jurisprudência do TNU resultou na quantidade de 81 acórdãos, enquanto foram encontrados 5.259 acórdãos em busca jurisprudencial no site do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Logo, a análise jurisprudencial e bibliográfica permite auferir a possibilidade de concessão da aposentadoria especial ao contribuinte individual, tendo em vista que o art. 57 da Lei nº. 8.213/1991 não especifica qual categoria de segurado poderá ser beneficiado pela aposentadoria especial. Além disso, o Ministro Relator, na página 7, pontua que as fontes de custeio relacionam-se com os benefícios previdenciários, de modo a impedir que ocorra um eventual desequilíbrio na Previdência Social. No voto dos autos (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, 2019) o Desembargador Federal Relator Paulo Afonso Brum Vaz afirma não haver óbice à concessão de benefício de aposentadoria especial ao contribuinte individual, inclusive o não cooperado, porque: o art. 195, caput e incisos, da Constituição Federal, dispõe que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta” e ressalta que a rigor, sequer haveria, no caso, necessidade de específica indicação legislativa da fonte de custeio, uma vez que se trata de benefício previdenciário previsto pela própria Constituição Federal (art. 201, § 1º c/c art. 15 da EC n. 20/98), hipótese em que sua concessão independe de identificação da fonte de custeio (STF, RE n. 220.742-6, Segunda Turma, Rel. Ministro Néri da Silveira, julgado em 03-03-1998; RE n. 170.574, Primeira Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 31- 05-1994; AI n. 614.268 AgR, Primeira Turma, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 20-11-2007; ADI n. 352- 6, Plenário, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, julgada em

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 41 30-10-1997; RE n. 215.401-6, Segunda Turma, Rel. Ministro Néri da Silveira, julgado em 26-08-1997; AI n. 553.993, Rel. Ministro Joaquim Barbosa, decisão monocrática, DJ de 28- 09-2005), regra esta dirigida à legislação ordinária posterior que venha a criar novo benefício ou a majorar e estender benefício já existente. A realidade precede à forma. Se os elementos técnicos contidos nos autos demonstram a natureza especial da atividade, não guardam relevância a informação da atividade na GFIP ou a ausência de recolhimento da contribuição adicional por parte da empresa empregadora. O que importa é que a atividade é, na realidade, especial. Abre-se ao Fisco, diante de tal identificação, a adoção das providências relativas à arrecadação das contribuições que entende devidas. O raciocínio é análogo às situações de trabalho informal pelo segurado empregado (sem anotação em carteira ou sem recolhimento das contribuições previdenciárias). A discrepância entre a realidade e o fiel cumprimento das obrigações fiscais não implicará, jamais, a negação da realidade, mas um ponto de partida para os procedimentos de arrecadação fiscal e imposição de penalidades correspondentes. Isto posto, a concessão de aposentadoria especial ao contribuinte individual representa um direito do contribuinte individual, levando-se em conta também o tempo de contribuição que o segurado dispõe. Nessa perspectiva, cabe evidenciar que a proteção social é prevista em esfera constitucional, de modo a assegurar ao contribuinte a garantia de seus direitos básicos, bem como impedir que lhe seja desrespeitado o acesso a um sistema universal. Por fim, atrelando-se o assunto ao presente contexto, é importante mencionar a PEC 6/2019, que atualmente encontra-se em tramitação. A proposta coloca fim à possibilidade de conversão do tempo especial em tempo comum. Quanto ao direito à aposentadoria especial, será mantido, bem como a exigência do tempo de contribuição de 15, 20 ou 25 anos, conforme a especialidade. No entanto, prevê algumas modificações referentes à aposentadoria especial, como por exemplo, a exigência de pontos resultantes da soma do tempo de atividade especial com a idade do trabalhador. Ademais, a proposta prevê a alteração do salário-de-benefício, o qual, atualmente, corresponde a 100% da média salarial e, de acordo com a indicação da proposta, será de 60% da média salarial aos 15 ou 20 anos, conforme a especialidade, acrescidos de 2% para cada ano adicional de recolhimento. Assim, para receber 100% do salário-de-

42 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro benefício, o trabalhador deverá cumprir o tempo de 15, 20 ou 25 anos de atividade especial, bem como, tendo desempenhado atividades especiais que exigem 15 anos de exercício, cumprir 35 anos de contribuição; e, tendo desempenhado atividades especiais que exigem 20 ou 25 anos de exercício, cumprir 40 anos de contribuição. (PORTAL DE NOTÍCIAS DO SENADO FEDERAL, 2019). Tais proposições têm gerado grandes discussões entre aqueles que entendem ser necessária tal exigência e aqueles que defendem que a referida exigência configura obstáculo à efetivação do direito à previdência social. De fato, embora a proposta de Emenda à Constituição não retire o direito à aposentadoria especial do ordenamento jurídico pátrio, impõe demasiado ônus ao trabalhador que suporta prejuízo à saúde no desempenho de atividades de relevância social e, em razão disso, faz jus à proteção social diferenciada. A partir da nova proposta, o benefício pode perder o seu caráter preventivo, posto que, para obter um valor de benefício que seja digno e viabilize o piso vital mínimo, o trabalhador que desempenha atividades especiais será forçado a trabalhar por tantos anos quanto aquele que desempenha atividades comuns; lado outro, caso opte por afastar-se de suas atividades, suportará considerável prejuízo econômico, o que é incompatível com a proteção social a que faz jus, a qual deve se efetivar na dimensão laboral e, igualmente, na dimensão econômica. Deve-se ressaltar que, consoante afirma Ladenthin (2008, p. 1-15), “A aposentadoria especial é espécie de prestação previdenciária, de natureza preventiva, destinada a assegurar proteção ao trabalhador que se expõe efetivamente a agentes agressivos prejudiciais à saúde ou à integridade física [...]”. Assim, é evidente que o direito em comento, bem como o direito à conversão do tempo especial em tempo comum, visa conferir ao trabalhador que se arrisca em prol de determinada atividade a justa compensação social, buscando minimizar as desigualdades entre esse trabalhador e aquele que opta por atividades que não oferecem o mesmo grau de risco à saúde e à integridade física. O não reconhecimento do direito à aposentadoria especial ou à conversão do tempo especial em tempo comum representa ofensa aos princípios constitucionais e previdenciários constitucionais na medida em que afastam os segurados de um sistema universal e igualitário que ofereça proteção social nos termos do planejamento constitucional, em especial no que concerne aos direitos à saúde, à qualidade de vida e à dignidade.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 43 Assim, a efetivação da proteção social prevista na ordem constitucional deve se sobrepor à exigência infraconstitucional de prévia fonte de custeio para a concessão do benefício, mormente se considerados os argumentos acima. Ademais, a Lei Constitucional prevê o benefício, devendo o princípio ser aplicado para os novos benefícios. Contudo, pode-se ressaltar que mesmo que não houvesse previsão, o custeio pode ser realizado de forma coletiva ou, ainda, no limite, poder-se-ia exigir do contribuinte individual o custeio, todavia, não poderia, em hipótese alguma, negar-lhe o direito. Por fim, uma eventual reforma do sistema previdenciária deve partir do pressuposto de que o referido sistema deve se coadunar com a ordem constitucional de modo a garantir o piso vital mínimo na velhice e a efetivar os direitos à igualdade, à saúde e à qualidade de vida. Não se pode abdicar da compensação preventiva àqueles que, suportando o risco, desempenham importantes atividades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contribuinte individual é o segurado que se encontra descrito no rol do inciso V do art. 5º do Regulamento da Previdência Social. Ainda que a definição deste segurado seja feita por exclusão, é possível notar certas semelhanças entre os diversos tipos de trabalhadores enquadrados nesta categoria. Verifica-se que é responsabilidade pessoal do contribuinte individual recolher a contribuição à Previdência Social. Desta forma, o contribuinte individual deverá recolher a alíquota de 20% de sua renda. No entanto, há casos em que o segurado recolher apenas 5% do salário mínimo e demanda a aposentadoria por tempo de contribuição. Tal aposentadoria pode ser concedida desde que haja o recolhimento da quantia suficiente para totalizar o correspondente à contribuição que deveria ter sido feita mensalmente. Como comprovação da condição de contribuinte individual, o segurado deverá se cadastrar no Regime Geral de Previdência Social, apresentando documento que comprove o exercício de sua atividade remunerada. No caso de a atividade exercida pelo contribuinte não ter registro no Instituto Nacional de Seguro Social, o contribuinte deverá proceder com o recolhimento da primeira contribuição tempestiva, de modo que esta servirá como presunção de atividade; ou poderá utilizar a retroação

44 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro de data de início das contribuições como meio de prova do exercício de atividade profissional durante o período de tempo de contribuição. A aposentadoria especial, que pode ser enquadrada como um benefício de natureza previdenciária, é uma modalidade de aposentadoria por tempo de contribuição, já que sua concessão se dá em razão do exercício de atividades consideradas como prejudiciais à saúde ou à integridade física, que tenha trabalhado durante 15, 20 ou 25 anos. Referido benefício tem como finalidade a reparação, de forma financeira, do trabalhador que exercia suas atividades em condições de trabalho consideradas inadequadas pela lei. Ademais, a contribuição adicional para o benefício da aposentadoria especial é entendida de modo que deve estar condicionada ao reconhecimento da atividade especial às previsões de financiamento deste benefício por meio da contribuição adicional realizada pela empresa. Assim, infere-se que, exceto no caso das contribuições realizadas pela empresa cooperativa, o contribuinte individual não auxilia especificamente para a aposentadoria especial. Em conformidade com posicionamento adotado pelos autores utilizados como base teórica para a elaboração deste trabalho, Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari, os quais entendem a interpretação de exclusão de contribuintes individuais da aposentadoria especial como equivocada, isso porque a Lei de Benefícios não apresenta qualquer restrição nesse aspecto, ademais, a especialidade da atividade advém da exposição aos agentes nocivos, e não da relação de emprego existente, pode-se concluir que o contribuinte individual faz jus à aposentadoria especial, desde que comprovada a carência e, igualmente, comprovado o desempenho da atividade em condições especiais, nos termos da lei vigente à época do desempenho da atividade. Considera-se, diante do exposto ao longo do presente trabalho, que a aposentadoria especial é um benefício que pode ser também concedido ao contribuinte individual, desde que cumpridos os requisitos previstos em lei. Nesse contexto, a aposentadoria especial deve atender a certos requisitos para que seja concedida, como carência e, conforme a lei da época da prestação do serviço, a efetiva exposição, habitual e permanente, a agentes nocivos à saúde e à integridade física que configurem realização de trabalho em condições especiais. Além disso, é preciso atentar-se à data de 28 de abril de 1995, a qual refere-se ao advento da Lei nº 9.032/1995,

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 45 para que seja feita a devida comprovação da atividade, conforme o que previa anteriormente a esta data e como está previsto agora. Cumpre ressaltar que a temática da aposentadoria possui grande complexidade, o que requer análise complementar das regras relativas à comprovação da atividade especial de acordo com a lei vigente ao tempo do desempenho do trabalho. A efetivação do direito à aposentadoria especial do contribuinte individual revela-se imperiosa para a eficácia do sistema protetivo social. Todavia, ante às questões polêmicas aqui apontadas, referida efetivação ainda não ocorre de modo pacífico no âmbito administrativo, ante a negativa do Instituto Nacional do Seguro Social com base na ausência de previsão legal e fonte de custeio, e, apesar do permissivo jurisprudencial, ainda não se pode falar em segurança jurídica nem mesmo na via judicial. Além disso, o assunto é um dos objetos de alteração da PEC 6/2019, evidenciando ainda que poderão ocorrer mudanças em algumas das regras vigentes na atualidade, as quais podem distanciar ainda mais o trabalhador da proteção social a que faz jus.

REFERÊNCIAS

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48 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim. Aposentadoria Especial: regime geral da previdência social. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2011. SERTÃO, Alex. PEC 6/2019: agora a aposentadoria especial do servidor público tem regra de transição que garante integralidade e paridade, mas há um detalhe. [S. l.], mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/ artigos/72589/pec-6-2019-agora-a-aposentadoria-especial-do-servidor- pub lico-tem-regra-de-transicao-que-garante-integralidade-e-paridade- mas-ha-um-detalhe. Acesso em: 29 ago. 2019. VELLOSO, Andrei Pitten. A Contribuição Acidentária (SAT/RAT) e o Polêmico FAP. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 37, p. 1-30, ago. 2010. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus. br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artig os/edicao037/ andrei_velloso.html Acesso em: 27 ago. 2019. VIANNA, João Ernesto Aragonés. Curso de direito previdenciário. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 49

O ACESSO AO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA: DIREITO GARANTIDO?

Juliana Aparecida dos Santos1*

RESUMO: O direito e o acesso ao benefício de prestação continuada (BPC) no âmbito nacional ainda é muito limitado e frágil, nem toda população tem acesso fácil a informação e muitos menos sobre seus direitos legais. Neste artigo, o principal objetivo é demonstrar como é complicado e dificultoso a concessão do benefício administrativamente e quão humilhante é depender das políticas públicas assistenciais no Brasil. Para demonstrar tal dificuldade, foram realizadas pesquisas jurisprudenciais com objetivo de mostrar que na grande maioria dos casos, o cidadão precisa ingressar com uma ação judicial e recorrer ao poder judiciário para tutelar um direito garantido pela Constituição Federal de 1988. Palavras-chave: benefício. assistência. direito. ABSTRACT: The right and access to continuing benefit (BPC) at the national level is still very limited and fragile, not every population has easy access to information, let alone about their legal rights. In this article, the main objective is to demonstrate how complicated and difficult it is to administer the benefit administratively and how humiliating it is to depend on public welfare policies in Brazil. To demonstrate this difficulty, jurisprudential research was conducted to show that in the vast majority of cases, citizens need to file a lawsuit and resort to the judiciary to protect a right guaranteed by the Federal Constitution of 1988. Keywords: benefit. assistance. law.

INTRODUÇÃO

Este artigo irá tratar sobre a Seguridade Social, no âmbito da Constituição Federal de 1988, especialmente sob a ótica das políticas de assistência social, mais precisamente sobre a concessão do benefício de prestação continuada da LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social). Nesse contexto, permite-se fazer uma análise da assistência no Brasil, como Estado Social, contemplando a Assistência Social como política pública de direito. A LOAS foi criada cinco anos após a promulgação da Constituição de 1988, com o objetivo de regulamentar os dispositivos constitucionais em questão, ou seja, estabelecendo os requisitos infraconstitucionais para a concessão do benefício assistencial. O presente artigo irá analisar e demonstrar que o direito ao benefício de prestação continuada em âmbito nacional ainda é muito frágil, não sendo de acesso fácil aos que de fato necessitam de tal benefício, * Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC). Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0841056481470923.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 51 embora seja de suma importância para população menos favorecida em termos financeiros. Neste artigo vamos discutir também quais são os requisitos e características legais para concessão do benefício assistencial sob a égide do princípio da dignidade da pessoa humana e à luz da jurisprudência. Neste trabalho, o objetivo principal é demonstrar como e quão humilhante é depender das políticas públicas assistenciais no Brasil, bem como as dificuldades do requerimentos administrativo e a necessidade da intervenção do poder judiciário, a fim de obter o acesso ao bem tutelado e garantido pela Constituição Federal de 1988.

1 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A REGULAMENTAÇÃO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL COMO POLÍTICA PÚBLICA

A Constituição de 1988, mais conhecida como Constituição Cidadã, juntamente com a Seguridade Social configuram-se como um sistema de proteção social aos cidadãos, constituído de princípios e regras com o objetivo de assegurar a obtenção de meios para atendimento às necessidades essenciais dos indivíduos, diante de contingências sociais não adequadas, assegurando-lhes uma vida digna, através da concessão de benefícios e prestação de serviços para obtenção do bem estar social. Deste modo, a Constituição Federal, em seu artigo 6º, relaciona os direitos sociais, dentre eles a saúde, previdência social e assistência, como constituintes dos direitos da seguridade social. Ademais, em seu artigo 194, caput, definiu seguridade social como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (BRASIL, 1988). De acordo com Alexandre de Moraes (2007, p. 2073), a “Seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. A Assistência Social é um dos pilares da Seguridade Social ao lado da Previdência Social e do direito à saúde e, por integrá-la, é regida pelos mesmos princípios e objetivos. O surgimento da Assistência Social decorreu da necessidade de amenizar os sofrimentos da população de baixa renda que eram exploradas pela burguesia. Assim, a Política de Assistência Social foi inserida no campo democrático dos direitos sociais.

52 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro A Assistência Social foi disciplinada pela Lei nº 8.742, de 07.12.1993 (BRASIL, 1993) – Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que a definiu como “Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”. O benefício de prestação continuada (BPC), previsto na Constituição Federal e na Lei Orgânica de Assistencial Social (LOAS), tem natureza de assistência social e sua concessão exige o preenchimento de determinados requisitos legais e a condição jurídica de poder requerê- lo, administrativa ou judicialmente. Diante das condições previstas na lei, a assistência social dispensa contribuição anterior e pretérita. O objetivo principal é manter uma condição digna de vida ao maior número de pessoas que estão em situação de pobreza. Assim, a Assistência Social representa a atuação estatal no sentido de atender os cidadãos, independentemente de contribuição direta aos cofres públicos, criando serviços e valores com fim de propiciar acesso aos mínimos sociais, mais precisamente no sentido de garantir e preservar a dignidade humana. Não é apenas o fornecimento pelo Estado de um valor pecuniário, mas o acesso a serviços que garantam o mínimo de bem estar social aos cidadãos. Diante disso se conclui que a natureza jurídica deste benefício é de direito social, inserido no ramo do direito público, ou seja, não um favor ou uma benesse do Estado e sim um direito social. O benefício de prestação continuada apresenta requisitos constitucionais e infraconstitucionais para sua concessão. A Constituição dispõe sobre o benefício em seu artigo. 203, inciso V. Extraem-se dali os seguintes requisitos: ser portador de deficiência ou ser idoso, não possuir meios de prover seu próprio sustento ou de ter sua manutenção provida pela própria família. O artigo 203, inciso V, prevê, ainda, “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei” (BRASIL, 1988). O benefício de prestação continuada da Assistência Social (BPC) possui essa denominação por ter um trato sucessivo, continuado, ou seja, é uma prestação pecuniária mensal, no montante de um salário mínimo. Tem duração indefinida, porém, deve ser revisto a cada dois anos,

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 53 a fim de verificar se ainda persiste a situação inicial que motivou a sua concessão, judicial ou administrativa, de acordo com o art. 21 da Lei nº 8.742/93 (BRASIL, 1993). O BPC não pode ser cumulado com outro benefício da Seguridade Social, ou de outro regime previdenciário, conforme o art. 20, § 4º, da Lei nº 8.742/93 (BRASIL, 1993). As únicas exceções admitidas, previstas, são o benefício de assistência médica e a pensão especial de natureza indenizatória. A norma infraconstitucional sobre a concessão do benefício para idosos está elencada na Lei n° 8.742/93, artigo 20, que dispõe a idade mínima de 65 (sessenta e cinco) anos, estabelecida pelo Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) em seu artigo 34. Portanto, para fins de concessão do benefício, é considerado idoso aquele que tem 65 anos ou mais. No que tange ao portador de deficiência, a lei, em seu artigo 20, § 2°, define deficiente como aquele incapacitado para o trabalho e para vida independente em razão de anomalias ou lesões de caráter irreversível, ou seja, ainda que seja um direito, o benefício está vinculado a incapacidade para atividade laboral, para vida social e ou para vida civil. A partir de 2015 (com a alteração realizada pela Lei nº 13.146/2015), o art. 20, § 2º, da Lei nº 8.742/93 (BRASIL, 1993), prevê: Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Portanto, a deficiência deve ser compreendida como um impedimento de longo prazo (não necessariamente definitivo ou permanente) de natureza biológica que traz restrições biológicas e sociais para a pessoa portadora de deficiência. Além dos fatores estabelecidos idade ou deficiência, a renda mensal familiar per capita deve ser inferior a ¼ do salário mínimo. Nas condições sociais atuais em que vivemos, a definição de ¼ do salário mínimo per capita é um fator limitativo do acesso e só se inserem neste requisito as famílias em situações de pobreza ou de pobreza extrema. O indivíduo, para ter direito ao benefício, deve requerê-lo administrativamente, comparecendo a uma agência do Instituto Nacional

54 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro de Seguro Social (INSS). Deve ser comprovada, no caso dos idosos, a idade mínima exigida, por meio documental. No caso de deficiência, realiza- se a perícia para comprovar tal condição. Também deve ser comprovada a incapacidade de sustento pelos componentes do grupo familiar e a renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo. Caso não seja concedido, abrem-se as portas da via judicial para a discussão do direito, porém nada impede de requer diretamente na via judicial, embora muitas vezes a negativa da via administrativa é exigida. Percebe-se que o acesso a um direito garantido constitucionalmente passa por situações bastante humilhantes tanto para o requerente como para sua família. Contudo, na prática se exige a apuração socioeconômica das condições pessoal e familiar do requerente, ainda que a renda seja superior (o que foi uniformizado a partir do julgamento dos Recursos Extraordinários nº 567985 e 580963, pelo Supremo Tribunal Federal). É permitida a concessão a mais de uma pessoa do mesmo grupo familiar, desde que observadas as exigências legais (art. 19 do Decreto nº 6.214/2007), o que abrange a inclusão de seu valor no cálculo da renda familiar. Cumpre mencionar e citar um novo requisito para concessão do BPC, trazidos pela MP nº 871/2019, que acrescentou o § 12 ao art. 20 da Lei nº 8.742/93. O parágrafo 12 do art. 20 da Lei nº 8.742/93 inclui um requisito formal para o recebimento do BPC: “São requisitos para a concessão, a manutenção e a revisão do benefício as inscrições no Cadastro de Pessoas Físicas – CPF e no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – Cadastro Único, conforme previsto em regulamento” (BRASIL, 1993). Os objetivos principais do CadÚnico é integrar os programas sociais do Governo Federal, além de identificar e caracterizar, sob o aspecto socioeconômico, as famílias brasileiras de baixa renda, tornando-se como requisito obrigatório para ter acesso aos serviços da Assistência Social, bem como para requer o BPC.

2 VISÕES JURISPRUDENCIAIS SOBRE O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA (BPC)

O BPC tem diversos pontos polêmicos, sendo o principal deles a renda per capita muito baixa. Num país com grande número da

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 55 informalidade do trabalho e grande desigualdade social, a LOAS mostra- se um mecanismo, ainda que insuficiente, para o debate sobre bem estar e direito da . Por isso a importância de uma apuração socioeconômica das condições reais do grupo familiar do requerente, mesmo quando a renda per capita é superior a ¼ do salário mínimo, sendo muito importante avaliar os gastos com alimentação, medicamentos e outros itens básicos à saúde e o bem estar social. No tocante aos limites objetivos, de que a renda mensal per capita deve ser igual ou inferior a ¼ do salário mínimo, podemos visualizar o recente julgado do Superior Tribunal Federal o RE nº 567.985/ MT, o qual reconheceu a repercussão geral da questão constitucional e, por maioria, negou provimento ao recurso extraordinário e declarou a inconstitucionalidade do § 3º do Art. 20 da Lei nº 8.742/93. Cabe informar também que a Turma Nacional de Uniformização seguiu o entendimento fixado pelo STF. Com referência ao parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), pode-se afirmar que o Benefício de Prestação Continuada pode mudar o critério da renda per capita mensal de ¼ do salário mínimo para ½ salário mínimo, o que faz com que mais pessoas possam alcançar o benefício e nele se amparar, sobreviver e ter um mínimo de dignidade como pessoas humanas (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2013). PREVIDENCIÁRIO LATO SENSU – BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA – CONCESSÃO – REQUISITOS VERTIDOS NO ART. 20 DA LEI 8.742/93 – IDOSO – RENDA “PER CAPITA” FAMILIAR INFERIOR A ½ SALÁRIO MÍNIMO – BENEFÍCIO DEVIDO. I – O critério objetivo de miserabilidade previsto no art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 restou modificado para ½ salário mínimo, por força das Leis nº 9.533/97 e nº 10.689/2003. II – Recurso improvido. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2013) O Superior Tribunal de Justiça também se manifestou sobre a matéria, fixando as seguintes teses:

Tema 185: A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria

56 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2009)

Tema 640: Aplica-se o parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03), por analogia, a pedido de benefício assistencial feito por pessoa com deficiência a fim de que benefício previdenciário recebido por idoso, no valor de um salário mínimo, não seja computado no cálculo da renda per capita prevista no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2015) Assim, resta claro que o critério objetivo de renda per capita familiar previsto no artigo 20, parágrafo 3º da LOAS não deve ser considerado a única forma de se comprovar que pessoas não possui recursos financeiros. Para exemplificar, vejamos um julgado do STJ: RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA, QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIARFOR SUPERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício mensal, independente de contribuição à Seguridade Social, à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. 2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742/93, alterada pela Lei 9.720/98, dispõe que será devida a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas portadoras de deficiência que não possuam meios de prover à própria manutenção, ou cuja família possua renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo. 3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232/DF (Rel. para o acórdão Min. NELSON JOBIM, DJU 1.6.2001). 4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 57 das condições básicas de subsistência física, esse dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente a o cidadão social e economicamente vulnerável. 5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo. 6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar. 7. Recurso Especial provido. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2009). Diante do caso prático acima, conclui-se que a limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, uma vez que o objetivo desse dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente ao cidadão social e economicamente vulnerável e não ficar restrito a um critério objetivo. Não é diferente do entendimento dos Tribunais Regionais Federais (TRFs) das diversas regiões, bem como nas Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais: há um entendimento quase que predominante no sentido de que o julgador poderá usar outros fatores para definir o caráter de miserabilidade do grupo familiar ao qual pertence a pessoa portadora de deficiência ou o idoso que requereu o Benefício da Prestação Continuada (BPC). Vejamos alguns julgados: EMENTA: BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. CONCESSÃO. PESSOA COM DEFICIÊNCIA. CONDIÇÃO SOCIOECONÔMICA. MISERABILIDADE. PREENCHIMENTO DE REQUISITOS. BENEFÍCIO DE RENDA MÍNIMA. EXCLUSÃO. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. TUTELA ESPECÍFICA. 1. O direito ao benefício assistencial, previsto no art. 203, V, da Constituição

58 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Federal, e nos arts. 20 e 21 da Lei 8.742/93 (LOAS) pressupõe o preenchimento de dois requisitos: a) condição de pessoa com deficiência ou idosa e b) situação de risco social, ou seja, de miserabilidade ou de desamparo. 2. Reconhecida a inconstitucionalidade do critério econômico objetivo em regime de repercussão geral, bem como a possibilidade de admissão de outros meios de prova para verificação da hipossuficiência familiar, cabe ao julgador, na análise do caso concreto, aferir o estado de miserabilidade da parte autora e de sua família. 3. Deve ser excluído do cômputo da renda familiar o benefício previdenciário de renda mínima (valor de um salário mínimo) a partir da data em que o pai da autora completou 65 anos. 4. Preenchidos os requisitos, é de ser concedido o benefício assistencial desde a data em que o pai da autora completou 65 anos. 5. Deliberação sobre índices de correção monetária e taxas de juros diferida para a fase de cumprimento de sentença, a iniciar-se com a observância dos critérios da Lei 11.960/2009, de modo a racionalizar o andamento do processo, permitindo-se a expedição de precatório pelo valor incontroverso, enquanto pendente no Supremo Tribunal Federal decisão sobre o tema com caráter geral e vinculante. 6. Ordem para implantação do benefício. Precedente. (BRASIL, Tribunal Regional Federal da 4ª Região, 2018).

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO REPETITIVO. ARTIGO 543-B, §3º E 543-C, §7º, INCISO II, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. PRESSUPOSTO DE MISERABILIDADE. REFORMA DO JULGADO ANTERIORMENTE PROFERIDO. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. 1. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, já que configura um elemento para se aferir a necessidade, presumindo-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo. Precedentes do C. STF e C. STJ. 2. No presente caso, a incapacidade para o trabalho e para a vida independente não foi objeto de controvérsia, visto que não contestada pelo INSS. A autora é portadora de grau severo de paralisia cerebral desde os seis meses de idade, que a incapacita total e permanentemente para a realização de atividades de vida civil independente, apresentando grau acentuado de retardo mental e déficit neurológico,

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 59 necessitando de controle medicamentoso e tratamento ambulatorial. 3. Considerando que a Assistência Social tem caráter não contributivo, devendo ser prestada a quem dela necessitar (art. 203 da CF/88), não se pode negar que, quando o Estado não cumpre o seu dever quanto à educação, à saúde e à previdência social dos membros do grupo familiar do deficiente e do idoso, os gastos extraordinários realizados com essas necessidades podem ser excluídos do valor bruto da renda mensal do grupo familiar para fins de aferição da renda mensal per capita atinente ao requisito exigido para a obtenção do benefício assistencial de que trata o § 3° do art. 20 da Lei n° 8.742/93.4. Preenchidos os requisitos necessários à concessão do benefício assistencial. 5. Resta evidente a indevida cessação do benefício assistencial da autora, em 09/11/2002, uma vez que a situação econômica do seu grupo familiar se manteve inalterada desde a concessão do benefício, fazendo jus ao seu restabelecimento desde essa época. 6. Corrigem-se as parcelas vencidas na forma do Manual de Orientação de Procedimentos para os Cálculos na Justiça Federal, e, ainda, de acordo com a Súmula n° 148 do STJ e n° 08 desta Corte, restando afastada a prescrição quinquenal, em virtude do disposto no art. 103, parágrafo único, da Lei nº 8.213/91 c.c. o art. 198, I, do C.C..7. Os juros de mora incidem desde a citação inicial, à razão de 0,5% (meio por cento) ao mês, a teor do que dispõem os artigos 219 do Código de Processo Civil e 1.062 do Código Civil de 1916. A partir de 11.01.2003, data de vigência do novo Código Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, nos termos do artigo 8º, caput e § 1º da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, deverão ser computados nos termos dos artigos 406 deste diploma e 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, em 1% (um por cento) ao mês. E, ainda, a contar de 30.06.2009, data que passou a viger a Lei nº 11.960, de 29 de junho de 2009, a qual alterou o artigo 1º – F da Lei n.º 9.494, de 10 de setembro de 1997, os juros incidirão uma única vez, até o efetivo pagamento, e serão aqueles correspondentes aos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança. 8. Honorários advocatícios fixados no importe de 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação (art. 20, § 3º, do CPC), observando-se o disposto na Súmula 111 do C. Superior Tribunal de Justiça. Isento de custas, por ser a autora beneficiária da justiça gratuita. 9. Agravo legal a que se dá provimento para, reformando-se o julgamento anteriormente proferido, nos termos do art. 543-B, §3º e 543-

60 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro C, §7º, inciso II, do CPC, conceder à parte autora o benefício assistencial (LOAS) desde a data da cessação do benefício e estabelecer os critérios de fixação dos juros e correção monetária. (BRASIL, Tribunal Regional Federal, 2014) Diante da análise dos julgados do TRF4 e TRF3 apresentados acima, resta claro que o entendimento predominante é de que é possível a concessão do BPC àqueles que possuam renda per capita superior a ¼ do salário mínimo. Assim, a análise da situação socioeconômica e o grau de miserabilidade em que se encontra o requerente é de extrema importância. Ocorre que na maioria das vezes o requerente precisa ingressar no judiciário para tutelar um direito assegurado pela Carta Magna, pois a esfera administrativa analisa apenas a letra da lei e não aprofunda o estudo dos casos solicitados. Seria apropriado que essa análise fosse realizada na esfera administrativa no momento em que é feito o requerimento, pois, com isso, estaria agilizando e desafogando o judiciário, bem como proporcionando com mais celeridade o bem-estar de muitos cidadãos com uma abrangência muito maior da população, pois nem todos que necessitam desse benefício têm informações claras de como proceder e nem mesmo sabem que pela via judicial é possível ser o benefício concedido, tendo em vista serem essas pessoas humildes e, muitas vezes com acesso restrito a informação sobre seus direito legais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível concluir, por meio das análises da lei, dos julgados e levantamentos expostos, que a possibilidade de se obter êxito na solicitação de Benefício de Prestação Continuada (BPC) administrativamente diretamente ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), na maioria das vezes pode não ser tão positivo. Portanto, sendo negado administrativamente tal benefício, junto ao INSS, torna-se extremante necessário ingressar com uma ação judicial junto à Justiça Federal, buscando garantir um direito que a Constituição Federal do Brasil determina expressamente, sendo o poder judiciário o único meio pelo qual o cidadão pode alcançar esse objetivo, haja vista os diferentes entendimentos, na maioria dos julgados, vão a favor do cidadão, conforme demonstrado pelas jurisprudências dos Tribunais.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 61 REFERÊNCIAS

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62 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro MARTINEZ, Wladimir Novaes. Direito Previdenciário. São Paulo: LTr, 1988. t. 3. MARTINEZ, Wladimir Novaes. Princípios de Direito Previdenciário. 4ª ed. São Paulo: LTr, 2001. MARTINEZ, Wladimir Novaes. Temas Atuais de Previdência social. São Paulo: LTr, 1998. MICHELOTI, Marcelo Adriano. Benefício Assistencial: novo limite objetivo para a análise da renda per capita. Revista de Direito Social. Porto Alegre: Notadez, v. 5, n. 18, p. 29-33, abr./jun. 2005. MIRANDA, Jediael Galvão. Direito da Seguridade Social: direito previdenciário, infortunística, assistência social e saúde. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. São Paulo: Revista do Tribunais, 2006. NUNES, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002. OLIVEIRA, José de. Reforma Previdenciária: lei de benefícios comentada. São Paulo: Saraiva, 1999. PEREIRA JÚNIOR, Jose Aldízio. A ampliação de benefícios previdenciários por meio da analogia. Revista IOB Trabalhista e Previdenciária. Porto Alegre: Síntese, v. 19, n. 226, p. 196-214, abr. 2008. PEREIRA JÚNIOR, José Aldízio. Do Conceito de grupo familiar para o fim de concessão do benefício assistencial. Revista IOB Trabalhista e Previdenciária. Porto Alegre: Síntese, v. 20, n. 229, p. 215-221, jul. 2008. RIBEIRO, Eduardo Antonio. Benefício assistencial de prestação: nova interpretação à luz do Estatuto do Idoso. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos. Bauru: Edite, n. 41, p. 309-314, set./dez., 2004.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 63 ROCHA, Daniel Machado da; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do advogado, Esmafe, 2008. ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antonio (coord.). Curso de Especialização em Direito Previdenciário. Curitiba: Juruá, 2006. v. 2. SANTOS, Juliana Aparecida dos. Benefício de Prestação Continuada previsto na Constituição Federal: requisitos para concessão e cessação à luz da dignidade da pessoa humana. 2009. 69f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo, 2009. TEPERINO, Maria Paula (coord). Comentários à Legislação Federal Aplicável às Pessoas Portadoras de Deficiência. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

64 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro O USO ARBITRÁRIO DA MEDIDA PROVISÓRIA NA RESTRIÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS

Antônio Ricardo Carneiro Filho1*

Vinícius Moreno Gonzales2**

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo analisar a constante edição de Medidas Provisórias, competência originária do poder executivo, de maneira tal que a alteração desarrazoada do texto normativo, no que tange às garantias da seguridade social, fere os princípios constitucionais do Estado de Direito, da segurança jurídica e da proteção à confiança, através da análise lógico-normativa, principiológica e jurisprudencial, especialmente no entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Palavras-chave: medidas provisórias. seguridade social. instalibidade jurídica. ABSTRACT: This paper aim to analyze the constant editions of the provisional mesures, competence originating from the executive branch, in such a way that the constant unreasonable changes of the normative text, in referenes of the social security, injure the constitutional principles of rule of the law, legal certainty and protection of trust, trough the analyze logical normative, principles and legal precedentes, exclusively from the Superior Justice Tribunal. Keywords: provesional measures. social security. legal instability.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a interferência da constante edição de Medidas Provisórias acerca de um mesmo tema, qual seja a alteração da carência necessária para readquirir a qualidade de segurado da Previdência Social, nos princípios constitucionais e no cenário jurídico, tanto como necessidade de validade, como de garantia de direitos. Como ponto de partida de estudo, faz-se necessária a compreensão do instituto da Medida Provisória, sua formação histórica, seus pressupostos, sua previsão legal, e sua aplicabilidade, que posteriormente será analisada à égide do direito previdenciário, principalmente no que tange às alterações de carência. Em seguida, buscando respaldo constitucional, definir-se-á a relevância da Seguridade Social e a necessidade de garantia e efetivação das normas previstas na Constituição, além de sua auto exequibilidade, tanto no ordenamento jurídico, quanto na esfera do direito administrativo. Fixados os conceitos, buscar-se-á explanar os benefícios que englobam a categoria por invalidez, bem como seus dois pressupostos * Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista – UNESP “Júlio de Mesquita Filho”. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3250866926789764. ** Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista – UNESP “Júlio de Mesquita Filho”. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7359664117282876.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 65 legais: a comprovação da incapacidade laborativa e a qualidade de segurado, uma vez completa a carência necessária para o exercício do direito individual subjetivo. Por fim, através da relação entre as Medidas Provisórias editadas nos últimos cinco anos e a instabilidade jurídica ocasionada, demonstrar- se-á a ofensa aos princípios constitucionais do Estado de Direito, da Segurança Jurídica e da Proteção à Confiança, de maneira tal, que a atuação do gestor público no poder executivo, através da edição arbitrária de MPs, instiga a desconfiança do cidadão na estabilidade da garantia de seus direitos pelo Estado.

1 A DIVISÃO DOS PODERES, SUAS COMPETÊNCIAS FORMAIS E SUAS FUNÇÕES

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 positiva em seu artigo 2º o princípio da separação de poderes, enunciando que os Poderes da União são independentes e harmônicos entre si, englobando o Legislativo, Executivo e o Judiciário. Desse modo, apesar do princípio expressar uma separação, urge ressaltar que a independência e a harmonia não são sinônimas de separação estrita, haja vista a necessidade de os três Poderes atuarem de maneira conjunta para alcançar o interesse público. Essa interação permite que alguns Poderes se sobreponham aos outros em determinados momentos específicos. Em síntese: Feito esse breve e necessário registro, é de se notar que a Constituição Federal de 1988 tratou de regular as relações entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário no seu Título IV (Da Organização dos Poderes). Ali jazem as normas constitucionais que estruturam cada um dos Poderes, estabelecendo as respectivas atribuições, bem como aquelas que regulam o relacionamento entre os órgãos de Poder, dispondo, ainda, sobre os direitos e obrigações de seus membros. Pois bem, da análise desse conjunto normativo, pode-se de logo concluir que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu várias situações que legitimam a atuação de um Poder sobre o outro, ou seja, hipóteses em que a Constituição conferiu a possibilidade de um determinado poder exercer um controle sobre a atividade confiada a outro. (MEDEIROS, 2008, p. 196). Nessa via, os Poderes da República adquirem duas funções: típicas e atípicas. A função típica diz respeito às atribuições comuns do próprio

66 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro poder, enquanto a função atípica se refere às prerrogativas extraordinárias. No caso do Poder Executivo, temos que a função típica é gerir e administrar a máquina pública, enquanto a função atípica se traduz pela edição de Medidas Provisórias, leis delegadas, e julgamento dos processos oriundos do contencioso administrativo (MORAES, 2010). Destarte, no plano das funções atípicas, a edição de Medidas Provisórias por parte do Poder Executivo se tornou um fenômeno extremamente importante no ordenamento jurídico pátrio, pois todos os Presidentes da República eleitos após a redemocratização utilizaram- se desse instituto. Dessa maneira, insta consignar algumas observações sobre tal instituto, adentrando no seu histórico e na atual formatação prevista na CF de 1988.

2 A MEDIDA PROVISÓRIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: ATUAL FORMATAÇÃO E RAÍZES HISTÓRICAS

A Medida Provisória está prevista no artigo 62 da Constituição Federal, o qual sofreu diversas mudanças com a Emenda Constitucional de nº 32 de 2001. O caput desse artigo enuncia, ipsis litteris: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”. Esses requisitos devem ser preenchidos de maneira simultâneas, não podendo ser completo apenas um ou outro. O parágrafo primeiro do mesmo artigo enuncia algumas restrições quanto as matérias que podem ser disciplinadas pelas MPs, tais como: nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos, direito eleitoral, direito penal, processual penal e processual civil, entre outras matérias de extrema importância. Posteriormente, entre o § 3º e o § 12 existe a regulação dos seus trâmites legais para aprovação, vigência e perda de eficácia:

§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. § 4º O prazo a que se refere o § 3º contar-se-á da publicação da medida provisória, suspendendo-se durante os períodos de recesso

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 67 do Congresso Nacional. § 5º A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais. § 6º Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando. § 7º Prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional. § 8º As medidas provisórias terão sua votação iniciada na Câmara dos Deputados. § 9º Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional § 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. § 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas. § 12. Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manter-se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto. Apesar de ser amplamente utilizada pelos chefes do Executivo após a redemocratização, a Medida Provisória possui uma origem distante, remetendo aos antigos Decretos-Lei utilizados pela Ditadura Militar. Esses mesmos Decretos-Lei tiveram origem no decreto legge italiano, o qual foi previsto na Constituição de 1947 do país peninsular. Comentando sobre a proximidade do decreto-lei e do decreto legge italiano: O modelo mais próximo do decreto-lei brasileiro, instituto que antecedeu a medida provisória, encontra-se no Direito italiano e é denominado de decreto legge. Patenteia-se isto já na designação, pois medidas provisórias são a tradução literal da expressão italiana provvedimenti provisori. Trata- se de mecanismo com força de lei, de iniciativa do Governo, adotado em hipóteses excepcionais de necessidade e urgência. (MAIA, 2015, p. 5)

68 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Salvaguardadas as diferenças e as devidas proporções, a Medida Provisória possui suas raízes fundantes no decreto legge italiano e, consequentemente, no Decreto-Lei. Em razão disso, a Medida Provisória foi pensada para ser uma medida extraordinária adotada tão somente em casos de relevância e urgência, que demandariam uma resposta mais célere por parte do Executivo, resposta a qual não poderia esperar pelo tempo de tramitação do rito Legislativo Ordinário. No entanto, como foi citado acima, os governos pós Constituição de 1988 utilizaram-se de maneira demasiada desse instituto, sem se atentar aos requisitos formais de relevância e urgência. Entre as consequências mais notórias desse uso irrestrito das medidas extraordinárias, podemos destacar duas: violação do princípio da separação de poderes e insegurança jurídica. Ao editar diversas Medidas Provisórias, o Executivo acaba por exercer tipicamente uma função que é, em sua origem, atípica. E como o encargo de legislar presente na MP é de responsabilidade do Legislativo, o Chefe do Executivo acaba por invadir a esfera daquele poder. Assim sendo, existe uma hipertrofia do poder administrador, que acaba predominando sobre o Congresso Nacional. Enquanto isso, o Poder Legislativo se torna apenas uma casa ratificadora de MPs, haja vista a necessidade de manifestação do Parlamento sobre a aprovação ou não das Medidas, nos moldes já comentados. Em segundo lugar, podemos citar a exacerbada insegurança jurídica derivada da edição de constantes medidas provisórias, situação fulcral no desenvolvimento do trabalho. Como a Medida Provisória é regida pelo princípio tempus regit actum, caso não seja aprovada pelo Congresso, ou no caso de aprovações com ressalvas, os dispositivos não ratificados perdem sua eficácia com efeito ex tunc, em regra. Todavia, a Constituição Federal deu poderes para o Parlamento regular as relações jurídicas oriundas dessas medidas provisórias recusadas ou alteradas, como também concedeu a opção de o legislador quedar-se inerte frente às MPs enviadas ao Congresso. Em outras palavras, após a mudança ou rejeição da Medida Provisória editada, poderá o Congresso editar um Decreto disciplinando as relações jurídicas sob a égide dessa MP, atribuindo-lhe efeito ex-tunc. No entanto, em caso de não manifestação, a Medida Provisória acaba por receber efeitos ex nunc de maneira automática, continuando a MP regendo as relações oriundas no interregno de sua vigência. Dessa maneira, se torna recorrente o fato de vários temas possuírem legislação diversa em um

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 69 curto intervalo de tempo, acarretando em uma imensa insegurança jurídica para todos os cidadãos.

3 A SEGURIDADE SOCIAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO E O DIREITO FUNDAMENTAL À PREVIDÊNCIA

Os direitos sociais são citados diversas vezes no texto da Carta Magna de 1988. No preâmbulo enuncia-se a criação de um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais. O próprio Capítulo II, Título II do Texto Constitucional trata somente acerca dessa gama de direitos, quais sejam: saúde, educação, alimentação e, o mais relevante para esse artigo, o da previdência social. Esses direitos sociais deixaram de ser apenas opções e diretrizes que poderiam ser acolhidas ou não pelo administrador, passando a possuir plena eficácia dentro do ordenamento jurídico. Nesse sentido: Na nossa experiência constitucional antes restrita a Constituições Garantistas que tutelavam as liberdades formais como repositórios de promessas vagas (BARROSO, 2003), os direitos sociais remetidos à esfera programática de meras linhas diretórias aos poderes públicos e tidos como dotadas de eficácia limitada, passam a gozar de exequibilidade plena1, permitindo sejam os bens e interesses que tutela exigíveis perante o Estado (COSTA MOURA, 2016, p. 633). A partir desses marcos constitucionais e jurisprudenciais, a Previdência Social assumiu uma nova dinâmica dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Além de ser um direito fundamental (artigo 5º, XXIII), o legislador, o administrador e o julgador se viram impelidos a acolherem todos os direitos sociais, sob pena de violarem explicitamente as normas da Constituição, de tal modo que: Pela análise da positivação, o direito previdenciário é, inegavelmente, um dos direitos fundamentais do Homem e nos dias de hoje está inserido dentro da técnica de proteção social denominada Seguridade Social. Ele, pela característica fundamental, é objeto de debate e preocupação em todas as nações, não apenas do Brasil, e não é assunto recente. (ZANINI, 2013, p. 132).

1 A jurisprudência do Superior Tribunal Federal está consolidada nesse sentido, vide RE nº 285.276/RS-AgR (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2015), RE nº 493.892/RN- AgR (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2013); RE nº 415.861/RS-AgR (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2012).

70 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Dessa maneira, insta consignar que a previdência social está prevista dentro do conceito de seguridade social. O artigo 194 da CF/88 enuncia, in verbis: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. O artigo 201 trata sobre a organização do sistema previdenciário brasileiro e os benefícios a serem fornecidos. Esse sistema previdenciário engloba os segurados obrigatórios e facultativos filiados ao Regime Geral da Previdência Social – RGPS, o qual é norteado por diversos princípios, entre eles: , vedação ao retrocesso social e proteção ao hipossuficiente (LAZZARI, 2018). Também deverá o RGPS prezar pela universalidade da cobertura e do atendimento e seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços. Tendo em vista todas essas normas e diretrizes impostas, as quais também estão submetidas aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, as autoridades dos três poderes, principalmente do Executivo, devem ter como observância estrita esses parâmetros. O desprezo para com esses moldes não só será ilegal, como também estará eivado pelo vício da inconstitucionalidade material. Nessa via, nos últimos tempos tornou-se extremamente comum editar MPs alterando a carência necessária para readquirir as qualidades de segurados dos benefícios por incapacidade, quais sejam: auxílio- acidente, auxílio-doença e aposentadoria por invalidez. E, assim como será desenvolvido ao longo do artigo, os segurados dependentes desses benefícios tiveram seus direitos extremamente afetados, haja vista a mudança para o preenchimento dos requisitos necessários para a concessão dos mesmos.

4 OS BENEFÍCIOS POR INVALIDEZ E SEUS REQUISITOS LEGAIS

Um dos institutos previstos e garantidos pela Seguridade Social, e que sofre grandes alterações através da edição de Medidas Provisórias é o da invalidez, ramificado através dos benefícios de: Aposentadoria por Invalidez; Aposentadoria por Invalidez Acidentária; Auxílio Doença; Auxílio Doença Acidentário; e Auxílio Acidente, sendo que todos os benefícios de caráter acidentário podem ter ou não vínculo com o labor,

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 71 sendo estes considerados acidentes de qualquer natureza, e aqueles acidente do trabalho. Os benefícios por invalidez são devidos aos segurados da Previdência Social que possuem limitações para desenvolver seu labor habitual, e consequentemente, promover seu sustento. Essa limitação pode ser total e permanente, total e temporária, ou ainda parcial e permanente, caracterizando os benefícios de Aposentadoria, Auxílio Doença, e Auxílio Acidente, respectivamente, previstos na Lei nº. 8.213, de 24 de julho de 1991, nos arts. 42 e 59, in verbis. Art. 59. O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.

Parágrafo único. Não será devido auxílio-doença ao segurado que se filiar ao Regime Geral de Previdência Social já portador da doença ou da lesão invocada como causa para o benefício, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento dessa doença ou lesão.

Por sua vez, o art. 42 enuncia que:

Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser- lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição. § 1º A concessão de aposentadoria por invalidez dependerá da verificação da condição de incapacidade mediante exame médico-pericial a cargo da Previdência Social, podendo o segurado, às suas expensas, fazer-se acompanhar de médico de sua confiança. § 2º A doença ou lesão de que o segurado já era portador ao filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social não lhe conferirá direito à aposentadoria por invalidez, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento dessa doença ou lesão. Sendo assim, uma vez constatada a incapacidade, o requisito cumulativo para a concessão do benefício é o número de carências mínimo,

72 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro que não é considerado apenas nos casos acidentários, com fulcro no art. 26, I, da Lei 8.213/91: “Independe de carência a concessão das seguintes prestações: I – pensão por morte, salário-família e auxílio-acidente”. Na letra da lei, tem-se a definição de carência sendo: “Art. 24. Período de carência é o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências” (Lei 8.213/91). O número mínimo de contribuições vertidas à autarquia pública para caracterizar o direito ao pleito dos benefícios por invalidez encontra- se no art. 25 da mesma lei in verbis, “A concessão das prestações pecuniárias do Regime Geral de Previdência Social depende dos seguintes períodos de carência, ressalvado o disposto no art. 26: I – auxílio-doença e aposentadoria por invalidez: 12 (doze) contribuições mensais”. Cumprida a exigência do art. 25, o segurado pode requerer seu direito durante todo o período em que permanecer na qualidade de segurado, inclusive no denominado “período de graça”, que consiste no lapso temporal em que o indivíduo permanece segurado pela Previdência Social, mesmo após parar de verter contribuições, detalhado pelo artigo 15 do Plano de Benefícios da Previdência Social. Uma vez fora da qualidade de segurado, o assistido pela Previdência necessita de um número mínimo de meses de serviço e/ou contribuição para que possa dar entrada em um novo benefício, e esse período necessário para recuperar seu direito anteriormente adquirido sofre constantes alterações legais.

5 A INTERFERÊNCIA DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS E O PRINCÍPIO DO TEMPUS REGIT ACTUM

Neste cenário, a edição de Medidas Provisórias influencia diretamente no entrave que o segurado encontra no momento em que busca efetivar seu direito legalmente previsto, uma vez que a constante alteração do número mínimo de meses de serviço e/ou contribuição necessários para dar entrada no requerimento administrativo constitui um cenário de instabilidade jurídica. A primeira previsão para readquirir a qualidade de segurado necessária requisitava um terço do período previsto no art. 25 da LBPS, posteriormente, durante a vigência da MP 739/2016 passou a ser necessário

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 73 o período completo, que adiante voltou a ser um terço, e com o advento da MP 767/2017 mais uma vez os doze meses tornaram-se requisito, e ainda com sua conversão em Lei 13.457/2017 passa a ser necessário metade do período previsto no art. 25. Neste ano, com a edição da Medida Provisória 871/2019, os meses necessários para readquirir a qualidade de segurado, que desde 2017 eram seis, passaram pela terceira vez ao período integral previsto na LBPS, e com sua conversão em Lei 13.846/2019, hoje o requisito passa a ser de apenas metade. Contudo, analogicamente ao princípio tempus regit actum, o requerimento administrativo deve considerar como condição apenas o tempo necessário para readquirir a qualidade de segurado no momento do pedido, ou ainda na data de início da incapacidade, respeitando o fato de que os proveitos financeiros somente retroagem uma vez que o direito é acionado, ou seja, ao momento do requerimento, nesse sentido, entende o STJ: PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. TERMO INICIAL. SÚMULA 83/STJ. 1. O termo inicial da concessão do benefício previdenciário de aposentadoria por invalidez é a prévia postulação administrativa ou o dia seguinte ao da cessação do auxílio- doença. Ausentes a postulação administrativa e o auxílio- doença, o termo a quo para a concessão do referido benefício é a citação. Precedentes do STJ. 2. Dessume-se que o acórdão recorrido está em sintonia com o atual entendimento do STJ, no sentido de que o termo inicial para a concessão do benefício assistencial é a data o requerimento administrativo, razão pela qual não merece prosperar a irresignação. Incide, in casu, o princípio estabelecido na Súmula 83/STJ: “Não se conhece do Recurso Especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.” 3. Recurso Especial não provido. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2019)2. Dessa forma, além de analisar todas as alterações, é importante atentar-se ao prazo de vigência de cada deformação legal, visto que a data de início da incapacidade deve ser posterior a data em que o indivíduo completa a qualidade de segurado, e esta, por sua vez, varia de acordo com a previsão normativa vigente. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça disserta: 2 Os seguintes recursos também vão no mesmo sentido: AgInt no AREsp 980.742/SP (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2017); REsp 1559324/SP (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2018).

74 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. SÚMULA 284/STJ. MILITAR REFORMADO. INVALIDEZ. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. ETAPA DE ASILADO. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS PREVISTOS NA LEGISLAÇÃO ENTÃO VIGENTE. LEGISLAÇÃO SUPERVENIENTE. NOVAS EXIGÊNCIAS. INAPLICABILIDADE. 1. A ausência de esclarecimento acerca de quais seriam os vícios de omissão e contradição constantes do aresto recorrido inviabiliza o conhecimento do recurso especial pela alegada violação ao art. 535 do CPC. Incide, na espécie, por analogia, a súmula 284 do Supremo Tribunal Federal. 2. Se no momento da obtenção do benefício o militar preenchia os requisitos exigidos pela legislação em vigor para seu recebimento, não se lhe pode aplicar legislação posterior, que estabelece novos critérios, sob pena de malferimento ao princípio tempus regit actum. 3. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013).3 No âmbito do direito previdenciário, o princípio, in verbis, pode ou não ser benéfico ao requerente, já que ao mesmo tempo em que uma lei benéfica anterior deve ser aplicada pois vigente durante o período de início da moléstia, uma que prejudique o direito da parte também pode, restringindo cada vez mais a possibilidade de concretizar as diretrizes constitucionais acerca da Seguridade Social.

6 INSTABILIDADE JURÍDICA, O PRINCÍPIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, DA SEGURANÇA JURÍDICA, E DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA

As alterações realizadas pelas Medidas Provisórias ao decorrer dos anos, além de cercear a possibilidade de concessão do direito, caracterizam um confuso cenário jurídico que afronta o princípio constitucional da segurança jurídica, que decorre na obrigação e na permissão nas quais a lei é responsável por garantir. Previsto no art. 5º, XXXVI, da Carta Magna, o princípio da segurança jurídica é ligado a confiança do indivíduo em um ordenamento de constantes mutações, e além de embasar todo o ordenamento jurídico,

3 Nesse sentido: REsp 1353736/PR (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2012); REsp 1236676/PR (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2011).

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 75 também serve de norte ao âmbito da administração pública, solidificando um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Trata-se, portanto, da confiabilidade que o cidadão tem na garantia de seus direitos estabelecidos em um ordenamento, ao ponto de prevê-los, formulando e materializando-se em uma espécie de “paz jurídica”, como disserta o jurista e filósofo e professor do direito alemão, Karl Larenz. O ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do outro e não tem mais remédio que protege, porque pode confiar (...) é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto, da paz jurídica (LARENZ, 1985, p. 91). Essa confiança é construída e depositada ao gestor público, de forma tal que este deve atender aos anseios e demandas sociais, principalmente no âmbito da administração pública. Conforme disserta Mello (2008, p. 124-125) “o direito brasileiro propõe-se a ensejar certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social e a segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações do homem: a da segurança em si mesma”. A mudança de disposições legais é inevitável, a atualização e adequação do direito faz-se necessária, todavia, da maneira como vem sendo feita, ou seja, com sete alterações que versam sobre a mesma matéria, – qual seja o requisito de número mínimo de meses de contribuição para readquirir a qualidade de segurado – , nos últimos cinco anos, formulam uma afronta ao princípio constitucional da segurança jurídica. Este encontra-se ramificado através de conceitos como certeza, estabilidade, previsibilidade e confiança. Sendo o princípio da proteção a confiança uma subdivisão do pensamento até então analisado, nele incumbe-se a mesma linha de raciocínio, ou seja, trata-se de uma continuidade a ser observada pelo legislador, tanto quanto ao aspecto de previsibilidade, ex ante, quanto ao de estabilidade, ex post. Nesse sentido, defende Canotilho: Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito –

76 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos. (CANOTILHO, 2012, p. 257). Consoante a Canotilho, Mafinni também correlaciona o princípio da segurança jurídica como um intermediador entre a proteção a confiança e o Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1º da Carta Magna. [...] o estado de coisas que é almejado pela proteção da confiança, consubstanciado na estabilidade das relações jurídicas, em face de condutas ou promessas advindas da atividade da Administração Pública, compõe a noção de segurança jurídica, a qual, por seu turno, é um dos elementos conformadores do Estado de Direito, cuja posição constitucional não se pode colocar em dúvidas. (MAFINNI, 2005, p. 73). Logo, o cenário de constantes alterações legais referente a recuperação da qualidade de segurado através do número mínimo de carências interfere diretamente no direito garantido pela Seguridade Social de alcançar, através do requerimento administrativo, os benefícios previdenciários, e na análise em questão, os benefícios por invalidez, que sofrem constantemente em um quadro instável. Nesse contexto, no qual o segurado não consegue depositar sua crença em uma linearidade normativa, muito menos sentir-se seguro da concretização de seus direitos, os princípios do Estado Democrático de Direito, da Segurança Jurídica e da Proteção à Confiança são constantemente desrespeitados, levantando a discussão sobre a constitucionalidade das MPs até então editadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No caso concreto das Medidas Provisórias que tratam sobre a carência dos benefícios por invalidez, os respectivos presidentes da República deveriam agir com prudência e respeito às normas constitucionais, sejam as que tratam sobre a MP em si, sejam as que tratam sobre os direitos sociais e a seguridade social. Todavia, não é esse o cenário encontrado. Ao observarmos as respectivas Exposições de Motivos apresentadas como fundamentação

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 77 para a edição das MPs 739/2016, 767/2017 e 871/19, podemos notar um patente desrespeito aos princípios analisados. Em nenhum momento os respectivos ministros responsáveis pela elaboração dessas exposições sustentaram uma constante normativa. Tal inconsistência fático-normativa afeta diretamente os princípios constitucionais que versam acerca da confiança e da expectativa do indivíduo, e apesar de contarem com legitimidade formal, afetam o fundamento garantidor da validade jurídica, e consequentemente, do próprio Estado Democrático de Direito. Além disso, a constante edição de medidas provisórias incide diretamente sobre os direitos constitucionais de efetivação do ordenamento norteado pela Seguridade Social, restringindo-os através de um requisito formal, qual seja a composição do número mínimo de meses de contribuição exigido para readquirir a qualidade de segurado. De forma mais expansiva, além de atingir diretamente o segurado, em sua qualificação, o hábito constante de legislar exercido pelo poder executivo acaba por sobrepor as pautas propostas inclusive pelo próprio poder do qual essa competência faz-se originária, vez que o trâmite de MPs possui caráter prioritário, ultrapassando as pautas do Congresso Nacional. Por fim, fugindo da esfera administrativa, as causas judiciais previdenciárias que tratam da concessão dos benefícios por invalidez, com exceção dos casos acidentários, devem atentar-se em todas as fases processuais acerca da data definida como início da incapacidade. Isto se dá pelo fato de que, aplicando o princípio do tempus regit actum, a depender da data de início da moléstia, nos casos em que esta se dá em momento pretérito, o segurado necessitará de um período divergente para adquirir o requisito concomitante a essa para a procedência do feito, a qualidade de segurado. Dessa forma, a maneira arbitrária e desarrazoada que o poder executivo tem recentemente utilizado em sua lacuna constitucional de legislar, afeta diretamente a possibilidade de concretização dos direitos sociais previdenciários embasadores da Seguridade Social, pondo em risco a validade e a legitimação da confiança depositada pelo indivíduo em um Estado social, democrático, e garantidor de direitos.

78 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro REFERÊNCIAS

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Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 81

A REFORMA DA PREVIDÊNCIA E SEUS REFLEXOS SOBRE OS SISTEMAS DE REPARTIÇÃO E CAPITALIZAÇÃO

Yasmin Commar Curia1*

Douglas Marques2**

Resumo: O presente artigo ressalta a importância da manutenção do pacto de gerações como a lógica fundante do sistema previdenciário. Depois de apresentar a evolução da previdência no Brasil e enquadrá-la, na atualidade, como um dos pilares da Seguridade Social, sintetiza os princípios da obrigatoriedade e da solidariedade com o fim de diferenciar os sistemas de repartição do sistema de capitalização. Discute em que medida as mudanças propostas pela reforma da previdência, na forma da PEC 06/2019, favorecem um sistema em detrimento do outro e suas possíveis implicações práticas. Conclui que, embora a reforma não aparente ter a pretensão de substituir o seguro social, fortalece o sistema privado, controlado pelos fundos de pensão, que tende a agravar a concentração de renda e a desigualdade social. Palavras-chave: previdência social. regime de repartição. regime de capitalização. reforma da previdência. Abstract: The present article emphasizes the importance of the maintenance of the generation pact as the essential logic of the pension system. After showing the pension evolution in Brazil and delimit it, in present, as one of the pillars of Social Security, synthesizes the obligation and solidarity principles in order to differentiate the distribution system from the capitalization system. It discusses as far as the changes proposed by the pension reform, in the form of PEC 06/2019, promote a system to the detriment of the other and their possible practice implications. It concludes that, although the reform doesn’t have the pretension to replaces the social security, it reinforces the private system, controlled by pension funds, that tend to aggravate the income concentration and the social inequality.

Keywords: social security. distribution regime. capitalization regime. pension reform.

INTRODUÇÃO

Desde os primórdios dos tempos, a preocupação com o futuro assola o ser humano, daí a necessidade de reservar uma parte dos recursos do hoje para manter a sobrevida do amanhã. Ocorre que as crises econômicas e financeiras, em âmbito mundial e/ou nacional, comprometem o dia a dia do cidadão, que, muitas vezes, não conta com reservas suficientes para manter-se no presente, quem dirá para planejar o futuro. Nesse cenário, emerge a figura do Estado, que, não obstante a * Graduanda em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Campus de Franca – SP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3367623816300411. ** Graduando em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Campus de Franca – SP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5441088292034727

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 83 malfadada inviabilização do modelo de bem-estar social, é convidado a intervir para manter minimamente as condições de vida digna para o povo. Isto é, impõe-se o dever de instituir um pacto social apto a incentivar o sentimento de solidariedade social coletiva a fim de obter um equilíbrio justo para a consagração da dignidade da pessoa humana, garantindo um mínimo existencial. A intenção, portanto, de viabilizar um sistema previdenciário público não é manter altos padrões de vida, mas sim, garantir, pelo menos, o necessário para a sobrevivência. A questão é que dificuldades de financiamento da Previdência social, em um primeiro momento, podem estimular o desenvolvimento do regime de capitalização, uma vez que este está baseado nos fundos de pensão, que supostamente constituiriam uma grande fonte de financiamento das empresas e contribuiriam, assim, para o crescimento econômico em geral. A prática demonstra que esta, na verdade, não é a melhor solução e, por isso, justifica-se a avaliação dos reflexos que um possível incentivo ao sistema privado traria para o seguro social. No primeiro capítulo, será feita uma abordagem, sob o ponto de vista histórico, sobre as principais características e marcos regulatórios sobre a previdência no Brasil, com a finalidade de identificar os avanços e retrocessos, até a promulgação da Constituição Federal de 1988, que instituiu, verdadeiramente, o modelo de Seguridade Social, instituindo um projeto de universalização dos direitos sociais do qual a Previdência Social é parte integrante. No segundo capítulo, contemplar-se-á os princípios da obrigatoriedade e da solidariedade com enfoque na sua importância e indispensabilidade na sustentação do seguro social, para, então, a partir disso, fundamentar a principal diferença entre o sistema de repartição e o de capitalização, cujos aspectos fundamentais foram objeto do terceiro capítulo. No derradeiro, abordar-se-á as principais alterações propostas pela Proposta de Emenda Constitucional nº 06/2019, em trâmite no Congresso Nacional, visando a desvendar o mito do “déficit” da previdência e a esclarecer os possíveis reflexos sobre os regimes consolidados no País. Para tanto, esta investigação será conduzida por meio do método hipotético-dedutivo, empregando-se a técnica da revisão bibliográfica da doutrina especializada no direito previdenciário, bem como artigos científicos e notícias recentes sobre a matéria em voga.

84 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 1 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA PREVIDÊNCIA: DA LEI ELOY CHAVES À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O processo histórico da previdência social, “não é linear nem tão pouco ‘evolutivo’, ele se constitui de avanços e retrocessos relacionados ao grau de articulação e de força política angariada pelos distintos grupos de interesses em conflito” (SILVA, 2015, p. 124). O Brasil somente veio a conhecer, verdadeiramente, as regras de caráter geral, em matéria de previdência social no século XX. Período em que, consoante destaca Júlia Lenzi Silva (2015, p. 125), houve a intensificação do processo de industrialização e, por conseguinte, a urbanização e, com esta, o agravamento da precariedade das condições de trabalho e a intensificação da exploração da mão de obra. No passado, a despeito das previsões constitucionais, havia apenas diplomas isolados sobre a matéria. A doutrina majoritária aceita, como marco inicial da previdência a publicação do DL nº 4.682/1923, mais conhecido como Lei Eloy Chaves, criador das Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) nas empresas de estrada de ferro. A partir das contribuições dos trabalhadores eram garantidas a ele a aposentadoria e pensão a seus dependentes em caso de morte. Com isso, criaram-se entidades que se parecem com as entidades fechadas de previdência complementar da atualidade (CASTRO, 2017, p. 55). As CAPs eram entidades de natureza civil, pois o Estado tão somente, através da lei, determinava a obrigatoriedade de sua criação, não participando do custeio, nem da administração das mesmas. Assim, essa fase ficou conhecida como “Organização da Previdência por empresas”. Isso, contudo, acabou criando parâmetros distintos de qualidade dos serviços prestados e no valor dos benefícios concedidos. Além disso, esse sistema excluía a maioria do trabalhadores, ficando mais restrito a certos grupos, notadamente aqueles com maior organização política e os ocupantes de cargos centrais. A Lei Eloy Chaves, portanto, para além de ter favorecido uma abordagem paternalista e elitista da questão social, foi resultado da pressão do recente movimento sindical operário acompanhado pela crise do regime liberal (SILVA, 2015, p. 129). Na década de 1930, dá-se início a uma nova fase da previdência. É criado o Ministério da Educação e Saúde e as Caixas são substituídas pelos institutos de aposentadorias e pensões - IAPs, dirigidos pelos sindicatos. A princípio, foi criado o Instituto de Aposentadoria e Pensões

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 85 dos Marítimos (IAPM), depois, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPC), o Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (IPASE) e, em 1938, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas (CASTRO, 2017, p. 56). Nesse diapasão, Júlia Lenzi Silva (2015, p. 136) salienta que a partir da fundação de tais institutos, finalmente, a previdência pode ser caracterizada como “social”, pois o Estado, com a Constituição Federal de 1934, passou a participar do seu custeio e administração. Até que o governo getulista tentou enquadrar o sistema IAPs como o marco da previdência brasileira em detrimento do sistema de CAPs outrora consolidado. Segundo aponta a referida autora (LENZI, 2015, p. 136), esta foi uma “estratégia de apropriação das conquistas operárias” e uma “técnica de propaganda política para a manipulação da opinião pública”. A partir de então, houve um esforço para separar as medidas de caráter previdenciário e as medidas de cunho assistencial, de modo que aos IAPs competiria as primeiras e às CAPs, as segundas. Nesse sentido, começou a ganhar relevo a relação entre o benefício previdenciário e a prévia contribuição. Além das questões de natureza política, que incentivaram o interesse do Estado no controle do sistema previdenciário, emergiu a questão econômica, voltada para o regime de capitalização. Sendo que a opção por este regime aproxima o país do seguro privado e, por conseguinte, o afasta da finalidade de redistribuição de renda, inerente ao modelo de repartição. Isso porque, diferentemente deste, o sistema de capitalização não se organiza com base na solidariedade, advindo a sua base de valores da diferença entre as receitas e as despesas, visando a garantir o retorno financeiro. Sob essa lógica, do lucro, a previdência transformou-se em um instrumento de captação de poupança individual como forma de angariar investimentos para a própria industrialização. Tanto que os recursos foram investidos nas empresas estatais e hidrelétricas (SILVA, 2015, p. 138-140). Tal estratégia do governo varguista manteve-se até a década de 1960, quando, então, foi criada a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), que trouxe normas uniformizadoras para os institutos existentes. Ainda, esta Lei promoveu a reconhecimento da mera formalidade da teoria da contribuição tripartite, na medida em que desonerou a parcela contributiva da União. Somente a partir do golpe militar, de 1964, o sistema previdenciário passou a estar vinculado ao conceito de segurança nacional. Em 1967, com o surgimento do Instituto Nacional de Previdência

86 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Social, INPS, eles foram, finalmente, unificados e passaram a ser geridos pelo erário público, mas excluídos os rurais, os domésticos e funcionários públicos. Os rurais foram incluídos somente com a Lei Complementar nº 11 de 1971 e os empregados domésticos com a Lei nº 5.859/72. Em 1977, a Lei nº 6.435 regulou a possibilidade de criar instituições de previdência complementar, tanto em relação às entidades de caráter fechado (Decreto nº 81.240/78) e de caráter aberto (Decreto nº 81.402/78). Além disso, foram criados o Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social - IAPAS e o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social - INAMPS (CASTRO, 2017, p. 58). Cabe destacar, nesse ínterim, que, durante o governo dos militares, a previdência social também se tornou objeto de interesse da iniciativa privada. A recessão econômica, em uma conjunta de ampliação da cobertura previdenciária, implicou uma crise de confiabilidade do sistema público de previdência, especialmente no que tange aos valores dos benefícios. Os fundos de pensão, então, aproveitando-se desse cenário, ganharam impulso, na medida em que passaram a fornecer planos privados de aposentadoria para quem podia pagar pelo mesmo. Sendo que, já, à época, essa expansão era vista de maneira positiva pelo Estado, pois reduzia, de certa forma, a pressão popular sobre o sistema público (SILVA, 2015, p. 156-158). Apesar dessa herança militar, esse cenário de crise econômica e social, no contexto da redemocratização, trouxe a necessidade de novas definições para elencar as metas brasileiras sobre o tema da previdência. Nesse processo, alguns setores atribuíram ao Estado a capacidade de realizar funções redistributivas e equalizadoras através das políticas sociais. Havia um otimismo preponderante que pode ter relevado, a princípio, a necessidade de mudanças estruturais para a melhoria de vida da população. Tal concepção de política social alimentou os projetos de cunho social no processo constituinte, seguindo uma tendência internacional de recolocação da questão previdenciária (PEREIRA NETTO, 2002, p. 68). Por conseguinte, vivenciaram-se grandes avanços na Constituição Federal de 1988, no que se refere à ordem social, notadamente à seguridade social, incluída no Título VIII, a partir do art. 193, introduzindo um conceito até então inexistente. Segundo Pinto Martins (2016, p. 32), a seguridade social pode ser definida como: O conjunto de princípios, de regras e de instituições destinado a estabelecer um sistema de proteção social aos

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 87 indivíduos contra contingências que os impeçam de prover suas necessidades pessoais básicas e de suas famílias, integrado por ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, visando a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Pode-se dizer, então, que a seguridade social visa a garantir a todos um mínimo existencial, ou seja, a garantia dos direitos mais baixos com o fim de atender, com proficiência, a dignidade humana, inadmitindo, nesse sentido, restrições ou minorações que objetivem banalizar as prestações da seguridade social. Em relação à saúde, a Constituição Federal dispôs sobre as ações e serviços de saúde, que deveriam integrar uma rede regionalizada e hierarquizada e constituir um sistema único. A regulamentação do Sistema Único de Saúde foi então estabelecida em 1990, através do conjunto de duas leis, a Lei nº 8080/90 (Lei Orgânica de Saúde - LOS) e a Lei nº 8.142/90, tendo, nos termos do art. 5º daquela lei, os seguintes objetivos: identificação e a divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde; a formulação da política de saúde destinada a promover, nos campos econômico e social, a observância da redução de riscos de doença e de outros agravos; a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas. A assistência social é a mais antiga de todas e é prestada, basicamente, a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, visando a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice, à promoção da integração ao mercado de trabalho, a habilitação e reabilitação de pessoas portadoras de deficiências, bem como sua integração à vida comunitária e a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Enfim, a assistência social que garante o mínimo social na sua base, mesmo para aqueles que nunca conseguiram integrar o sistema capitalista, mesmo aquele que sempre necessitou de auxílio, é a ele que deve ser prestada a assistência social. A previdência social, por sua vez, protege necessidades decorrentes de contingências expressamente previstas na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional, tais como aquelas decorrentes de doença, invalidez, velhice, desemprego, morte e proteção à maternidade, mediante contribuição, concedendo aposentadorias, pensões, dentre

88 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro outras, mediante o pagamento de contribuições. Isto é, somente aquele que contribui tem direito subjetivo à prestação na hipótese de a ocorrência da contingência prevista em lei gerar a necessidade juridicamente protegida. A obrigatoriedade desta contribuição ocorre sempre que a lei determinar e isso constitui num reflexo da solidariedade que deve existir no sistema. A indispensabilidade da contribuição e a solidariedade são fatores que a diferencia em relação à assistência social e à previdência privada (PEREIRA NETTO, 2002, p. 162). Sendo que esta última é facultativa, diferentemente dos outros regimes básicos que compõem a previdência, o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e os Regimes Próprios da Previdência Social (RPPS) dos servidores públicos e militares. Com efeito, em 1990, foi criado o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a substituir o INPS e o IAPAS nas funções de arrecadação, bem como nas de pagamento de benefícios e prestação de serviços, aos segurados e dependentes do RGPS. Em 1991, foram publicadas a Lei nº 8.212, que trata do custeio da Seguridade Social, e a Lei nº 8.213, que trata dos benefícios da Previdência. Posteriormente, as atribuições no campo da arrecadação, fiscalização, cobrança de contribuições e aplicação de penalidades, bem como a regulamentação da matéria ligada ao custeio da Seguridade Social foram transferidas, em 2007, com a Lei nº 11.457, para a Secretaria da Receita Federal do Brasil (CASTRO, 2017, p. 59). Nesse sentido, Júlia Lenzi Silva (2015, p. 160), afirma que, a despeito do caráter contributivo do sistema previdenciário, esse conceito integrador de Seguridade Social, que contempla a complementariedade entre suas áreas constituintes, é fundamental para a implementação do projeto de universalização dos direitos sociais, para além do vínculo formal de emprego. Evidencia-se, a partir disso, a necessidade de reconhecer- se o sistema de seguridade como um “sistema maior”, do qual podem ser extraídas as propostas, atuações e políticas de saúde, assistência e previdência social de modo a buscar garantir uma “máxima proteção social possível a todos”. Destarte, segundo a autora, a previdência social não pode estar limitada ao “seguro social”, de modo que, eventuais considerações devem ser feitas de modo sistemático, considerando o universo mais amplo da seguridade social, não de forma segmentada e independente.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 89 2 OS PRINCÍPIOS DA OBRIGATORIEDADE E SOLIDARIEDADE NO ÂMBITO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

A Seguridade Social conta com princípios gerais que lhe servem de fundamento e de alicerce, conferindo-lhe o sentido e identidade, de modo a condicionar e orientar a sua compreensão, tanto para a sua aplicação e integração, quanto para a elaboração de novas normas (DIAS, 2013, p. 6). Entre eles destacam-se a solidariedade, a obrigatoriedade, a subsidiariedade, a imprescritibilidade, o princípio da automaticidade das prestações e os princípios da unidade e unicidade. Também existem os princípios específicos, previstos no art. 194, parágrafo único, da CRFB/88, são eles: universalidade, uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, a seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços, irredutibilidade do valor dos benefícios, equidade na forma de participação no custeio, diversidade da base de financiamento, caráter democrático e descentralizado da gestão participativa. No âmbito da previdência social, ganham relevância especial dois princípios fundamentais: o da obrigatoriedade e o da solidariedade, por isso, para os fins do presente trabalho, ora merecem destaque.

2.1 O princípio da obrigatoriedade

De acordo com o princípio da obrigatoriedade, a participação dos membros da coletividade, nas ações de seguridade social, para que esta efetivamente atinja os seus objetivos, deve ser obrigatória. Isto é, a fim de se garantir o bom funcionamento da seguridade social, é obrigatória a presença de toda a coletividade. O que significa dizer que não será cobrado nenhum tipo de benefício para aqueles que dependem de assistência, mas todos os outros que podem contribuir, devem fazê-lo. No âmbito da obrigatoriedade, constata-se o princípio técnico da automaticidade da filiação e, consequentemente, da contribuição. Com efeito, aquele, portanto, que exerce algum tipo de atividade remunerada, mas não é abarcado por um regime previdenciário próprio, está automaticamente ligado ao regime geral da previdência social, sendo obrigatórias as contribuições. Inclusive, diz-se que tem origem histórica, pois enquanto as técnicas de proteção social eram optativas, foram incapazes de suportar encargos. Por isso, quando o Estado interessou-se

90 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro pela gestão da previdência, a obrigatoriedade impôs-se como condição para a própria sobrevivência da instituição (MARTINEZ, 2011, p. 105). Por isso, para alguns autores, o princípio da obrigatoriedade é explicado com base em dois argumentos “miopia social” e a “proteção dos prudentes”. No sentido de que, em tese, mesmo as pessoas que trabalham e que teriam a possibilidade de cuidar do próprio futuro, de maneira adequada, não têm a visão ou disciplina suficientes para poupar. Sob essa lógica, torna-se necessária a intervenção do governo para proteger os membros mais prudentes da sociedade contra os mais “acomodados” e “imprudentes” (PEREIRA NETTO, 2002, p. 164). Como diria Martinez (2011, p. 120), “privar-se hoje, em benefício do amanhã, contraria o espírito dissipador e fugaz do homem moderno, vivendo em um mundo de incertezas de toda ordem”. Assim, é no reconhecimento da necessidade de participação de toda a coletividade na empreitada da proteção social e da imprescindível subordinação do interesse individual ao interesse coletivo, que se institui a participação compulsória dos membros da comunidade como mecanismo de obtenção das metas da solidariedade social instituída pela técnica da seguridade social.

2.2 O princípio da solidariedade

Conforme destaca Noa Piatã Bassfeld (2014, p. 184), somente em um regime de filiação obrigatória, protetora de todos os trabalhadores; de caráter contributivo, que preveja a participação deles e de outros contribuintes para o financiamento do sistema; e que preserve o equilíbrio de contas, protegendo os cidadãos contra os “imediatismos populistas” e “privatarias espoliantes”, empreendidos pelos governos de ocasião às custas do sistema previdenciário, é possível existir uma Previdência Social suficientemente efetiva e apta à perpetuação do sistema, buscando, assim, assegurar a segurança social, compreendendo a previdência quando das situações de desemprego involuntário comum na sociedade capitalista. Nesse sentido, pode-se afirmar que a obrigatoriedade é condição para a solidariedade efetivar-se. Com efeito, a seguridade social constitui um instrumento protetor, preventivo e assistencial, cujo objetivo é amparar os membros da sociedade de qualquer contingência social. Contudo, como uma ação individual não seria suficiente para tanto, todos os membros da sociedade devem trabalhar no sentido de efetivar a proteção social em face de tais necessidades.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 91 Segundo Wladimir Novaes Martinez (2011, p. 74-75), na previdência social, a solidariedade significa, basicamente, a contribuição da maioria em favor da minoria, sendo constante a alteração entre uma e outra. Na seguridade social, a diferença fundamental reside na clientela ser maior e o custeio ser indireto, através de exações, cuja contribuição é fixada segundo a capacidade coletiva de consumir. O início mais remoto da solidariedade social é natural, já que “quando o homem primitivo deixou a horda como aglomerado humano e organizou-se no grupo preparatório da sociedade, teve de observar a mútua ajuda, ser solidário”. A solidariedade, contudo, encontra limites na própria sociedade, tanto diretamente, no que tange aos contribuintes destinatários da norma, quanto indiretamente, quando existem pessoas contribuindo sem serem beneficiárias e outras beneficiárias sem contribuírem (assistência social). Nesse sentido, especialmente no âmbito da previdência, destaca- se a solidariedade no âmbito do custeio do sistema, no sentido de que a aplicação subsidiária do princípio da capacidade contributiva aqui se faz necessária, pois o sistema, a princípio, exige daqueles que ganham mais, um pagamento de contribuição maior em relação àqueles que ganham menos ou mesmo em relação aos que não têm, sequer, a mínima condição de verter contribuições. Por isso, segundo Martinez (2011, p. 79), o fulcro da solidariedade é “retributivo”, na medida em que “quem tem maiores ingressos tem maior participação nos benefícios da sociedade; pode usufruí-la em maior escala. Deve, portanto, contribuir materialmente com parcela maior”. Sob o enfoque da solidariedade intergeracional, ganha destaque o chamado de “pacto entre gerações”. Ou seja, a população ativa, através de suas contribuições sociais, efetua o pagamento dos benefícios concedidos aos idosos e aposentados economicamente inativos, bem como, na esperança de que no futuro, quando se tornem inativos, sejam também sustentados pelos novos ativos. Ou seja, “os não necessitados de hoje, contribuintes, serão os necessitados de amanhã, custeados por novos não necessitados que surjam” (HORVATH JUNIOR, 2006, p. 65). Além da solidariedade intergeracional, fala-se em solidariedade inter-regional, considerando o seu caráter nacional, a renda total da previdência é a soma da renda de todos os Estados do País, com isso, uma região que consegue contribuir mais, financia a carência de outra que contribui menos. Também a interpessoal, que contempla a solidariedade entre os próprios segurados, afinal, existe a possibilidade de uma pessoa

92 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro pagar a contribuição previdenciária por toda a sua vida e vir a morrer, sem deixar descendentes, antes de poder usufruir. Esse dinheiro, então, pode servir para assistir uma pessoa que contribuiu pouco, mas se acidentou ou adoeceu precocemente. Existe ainda o caso dos dependentes (art. 16, Lei 8.216/91), aqueles que são contemplados sem terem contribuído para o sistema (PEREIRA NETTO, 2002, p. 166-167). A grande questão é alcançar um ponto de equilíbrio a partir do qual possa ser garantida uma relação razoável entre as prestações com as contribuições individuais, sem que isso implique o afastamento do princípio da solidariedade. Nesse ínterim, manter a relevância e aplicabilidade desse princípio, buscando as melhores condições em um sistema que não dispense a atuação do Estado e permita que o indivíduo, a depender da sua força contributiva, possa complementar o benefício que venha a ganhar no futuro.

3 O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E A DIFERENÇA ENTRE O SISTEMA DE REPARTIÇÃO E O REGIME DE CAPITALIZAÇÃO

O sistema previdenciário brasileiro é composto por três subsistemas: o Regime Geral de Previdência Social, os regimes jurídicos próprios de previdência, que adotam o sistema de repartição, e a previdência complementar que adota o sistema de capitalização. A grande questão é que este, além de ser inacessível para a maioria das pessoas, diferentemente daquele, independente dos ideais da solidariedade e da obrigatoriedade.

3.1 O sistema de repartição: o Regime Geral de Previdência Social e o Regime Próprio de Previdência Social

De acordo com a CFRB/88, em seu art. 201, o Regime Geral de Previdência Social, RGPS, é um regime de previdência mais amplo, responsável pela proteção da maioria dos trabalhadores brasileiros (GOES, 2018, p. 17). O RGPS abrange obrigatoriamente todos os trabalhadores da iniciativa privada e é regido pela Lei nº 8.213/91, intitulada de “Plano de Benefícios da Previdência Social”, sendo de filiação compulsória e automática para os segurados obrigatórios, bem como permite que aqueles

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 93 que não têm regime próprio filiem-se como facultativos (CASTRO; LAZARINI, 2017, p. 94). A Lei nº 9.717/98 estabelece regras gerais para o funcionamento dos Regimes Próprios de Previdência Social. Os beneficiários de Regime Próprio de Previdência Social – RPPS - são os magistrados, ministros, conselheiros do Tribunal de Contas, membros do Ministério Público, militares e servidores públicos ocupantes de cargo efetivo de quaisquer poderes da União, Estados, Distrito Federal e dos municípios, incluídas suas autarquias e fundações (GOES, 2018, p. 17). Tais agentes públicos não se inserem no RGPS, então, lhes são assegurados estatutos próprios que dispõem sobre seus direitos previdenciários e a participação destes no custeio do regime diferenciado (CASTRO; LAZARINI, 2017, p. 99). Cabe ressaltar que não são amparadas por regime próprio as pessoas físicas que trabalham em empresas públicas e em sociedade de economia mista; estas são seguradas do RGPS. Igualmente, os ocupantes de cargo em comissão, cargo temporário ou emprego público são segurados do RGPS. Também estão abarcados no RGPS os ocupantes de cargo efetivo de municípios que não possuem regime próprio de previdência. Caso uma pessoa seja amparada por regime próprio e venha a exercer, concomitantemente, uma ou mais atividades abrangidas pelo RGPS, será segurada obrigatória do RGPS em relação a estas atividades, podendo inclusive, ter duas aposentadorias: uma pelo RGPS e outra pelo RPPS. Este deverá oferecer a seus segurados, de acordo com o art. 40 da CFRB/88, no mínimo, os seguintes benefícios: aposentadoria por invalidez, por tempo de contribuição, por idade, compulsória e por morte (GOES, 2018, p. 17-21).

3.2 O sistema de capitalização: a Previdência Complementar

O Regime de Previdência Complementar é facultativo, isto é, a pessoa pode entrar ou se retirar desse sistema conforme sua vontade. Trata- se de uma faculdade dada à sociedade de ampliar sua renda quando vier a se aposentar. Entretanto, a adesão a este regime não exclui a obrigatoriedade de filiação no RGPS ou RPPS, conforme cada caso. De acordo com a Lei Complementar nº 109 de 2001, as entidades de previdência complementar podem ser fechadas e abertas. Estas são constituídas somente na forma de sociedade anônima, instituem e operam benefícios em forma de renda continuada ou pagamento único, acessíveis

94 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro a quaisquer pessoas físicas. Já aquelas têm que se organizar sob a forma de fundação ou sociedade civil, sem fins lucrativos. De acordo com o art. 31, I e II, da LC nº 109/2001, elas são acessíveis aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas e aos servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, entes denominados patrocinadores e aos associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, denominadas instituidores. Ainda sobre a classificação, as entidades de Previdência Complementar podem ter natureza pública ou privada. As primeiras são Entidades Fechadas de Previdência Complementar, instituídas pela União, Estados, DF ou municípios, restritas aos servidores efetivos que sejam vinculados à RPPS. Como houve a uniformização do teto entre os dois regimes, RGPS e RPPS, restou ao servidor basicamente a opção pelo benefício previdenciário complementar, a partir da adesão ao fundo de pensão fechado do funcionalismo. As privadas, por sua vez, são organizadas de forma autônoma em relação ao RGPS, e serão facultativas, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado (GOES, 2018, p. 21-23). Com efeito, nesse modelo de capitalização, a participação do Estado é mínima e a do empregador, por sua vez, varia de acordo com a normatização de cada um dos sistemas. A questão é que, no sistema de capitalização, a contribuição advém do próprio segurado, já que o beneficiário cumprirá com o número de cotas ou o valor a fim de garantir o sistema para si e os seus dependentes. Por outro lado, no sistema de repartição, as contribuições sociais são destinadas a um fundo único, do qual provém os recursos para a concessão de benefícios a qualquer beneficiário que atenda aos requisitos previstos na legislação previdenciária (CASTRO, 2017, p. 50).

4 REFORMA DA PREVIDÊNCIA: FAVORECIMENTO DO SISTEMA PRIVADO EM DETRIMENTO DO PÚBLICO?

Conforme leciona Juliana Presotto Pereira Netto (2002, p. 150-153), entende-se que a previdência privada só deve existir em caráter complementar, na medida em que é inerente a ela o risco na acumulação de reservas e, portanto, esse não pode ser o princípio norteador do sistema previdenciário como um todo, o qual deve manter seu caráter

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 95 eminentemente social, voltado para o enfoque de redistribuição de renda gerido pelo Estado com suas garantias e reservas técnicas. A mera vontade de participar da previdência privada não é o suficiente, pois, ao contrário do que ocorre no âmbito da previdência social, no qual a relação jurídica se forma automaticamente, pelo mero exercício de atividade remunerada, no caso da previdência privada, é fundamental que o sujeito em questão seja dotado de capacidade contributiva, sem a qual nada se concretiza. Ou seja, é preciso que o interessado tenha disponibilidade de fundos para custear esses benefícios, o que os torna inacessíveis à grande parte da população brasileira e demonstra seu caráter elitista. Fato é que somente aquele trabalhador, com melhor poder aquisitivo, encontra, nessa modalidade de previdência, uma alternativa para manter seu padrão de vida após a aposentadoria, o que a previdência pública não lhe fornece (PEREIRA NETTO, 2002, p. 154). O problema é que, embora, a princípio, possa parecer ser mais vantajoso, para um certo grupo de pessoas, optar por plano de previdência privada em detrimento da pública, esta situação implica total falta de solidariedade dentro do sistema. Isso porque, se assim se admitisse, aqueles com maior poder econômico e maior capacidade contributiva, invariavelmente, iriam optar por mecanismos individuais de previdência, enquanto aqueles de menor poder aquisitivo pouco poderiam poupar em termos de seguridade social. Daí a ideia de incentivar-se a contribuição em prol da solidariedade, em que aqueles que tem maiores condições serão chamados a contribuir com o sistema em favor do todo. Nesse diapasão, Juliana Presotto Pereira Netto (2002, p. 160) afirma que não seria interessante para o sistema o incentivo a uma previdência privada que, em vez de complementar, viesse a implicar a privatização total da previdência. Se assim o fosse, não só estaria rompida a solidariedade social historicamente construída, como também implicaria a solidariedade econômica, afinal, os trabalhadores teriam indisponíveis os investimentos por longas datas para que servissem ao incremento de atividades produtivas e a própria exploração do trabalho, “colocando-se o direito a serviço da economia e a desserviço do povo” (GNATA, 2014, p. 92). As entidades fechadas de previdência complementar possuem ativos que representavam, em 2015, conforme dados da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp), cerca de 12,2% do PIB nacional. Apesar de tais recursos serem investidos em ativos de renda fixa, normalmente títulos públicos, os

96 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro valores destinados aos mercados mobiliário e imobiliário e a investimentos representar cerca de 30% desse total. Para tanto, o interessado em investir deverá analisar quais são os recursos elegíveis para o tipo de investimento que busca e como este pode vir a ser estruturado. Fato é que os recursos geridos pelas entidades de Previdência Complementar já alcançam valores muito expressivos no Brasil, os quais tendem a crescer em ritmo maior que o próprio crescimento do país. Além disso, a reforma da previdência, proposta pelo Governo Federal, consolida um cenário de redução da expectativa da população em relação aos benefício que se espera receber do regime geral ou do regime próprio. Em razão disso, espera-se um aumento dos recursos aportados em fundos de Previdência Complementar (MALVAR, 2017, passim). Nesse ínterim, Bouzid Izerrougene (2009, p. 38) destaca que é comum, em momentos de crise econômica e financeira, ganhar destaque o espectro do déficit da Previdência Social, colocando-se, na pauta, inclusive, a substituição do regime de repartição (previdência pública) pelo regime de capitalização (previdência privada). As dificuldades de financiamento da Previdência social, em um primeiro momento, podem estimular o desenvolvimento do regime de capitalização, uma vez que este está baseado nos fundos de pensão, que constituiriam uma grande fonte de financiamento das empresas e contribuiriam, assim, para o crescimento econômico em geral. Por outro lado, o regime de capitalização não resolveria os problemas associados às oportunidades de investimento e à taxa mínima de retorno, que podem implicar a retirada precoce ou antecipada da força de trabalho mais velha do mercado. Além disso, vislumbra-se uma limitação da ampliação da poupança, já que, após um período de crescimento dos fundos de pensão, chega o momento inevitável em que os participantes começam a sacar seus recursos. Outrossim, alguns autores sustentam que os efeitos do sistema de seguridade, sobre o nível de poupança, são reduzidos e se dão em longo prazo; assim, frustrada estaria a expectativa de que o regime de capitalização aumenta o nível de poupança e favorece a acumulação do capital. Ou seja, o aumento da poupança não implica necessariamente crescimento econômico. Nesse sentido, um regime previdenciário apenas seria benéfico para o investimento quando aumentasse o estoque de capital de equilíbrio, sem reduzir a taxa de lucro, mantendo o rendimento do capital acima da soma da taxa de crescimento demográfico mais a taxa do progresso técnico. Do contrário, a suposta elevação de poupança, pelo

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 97 regime de capitalização, pode engendrar mais instabilidade econômica do que crescimento (IZERROUGENE, 2009, p. 39-41). Outra questão relevante, em relação a esse regime, são elevados custos da gestão e falhas de regulação, já que os fundos de pensão são administrados por instituições privadas. É imprescindível, nesse sentido, a existência de elevados padrões de governança corporativa e transparência na gestão do ativo que recebe o investimento das entidades. Recomenda-se a manutenção de comitês independentes de auditoria e de órgãos de gestão compostos por profissionais independentes e a divulgação periódica de contas auditadas por terceiros e, em matéria de compliance, impõe-se a necessidade de identificação de práticas corruptas e anticompetitivas ou outras infrações legais que expõem as empresas a riscos reputacionais e de sanções demanda medidas mais enérgicas (MALVAR, 2017, passim). A antiga proposta de reforma da previdência, segundo apontam Lena Lavinas e Eliane de Araújo (2017, p. 616), já propunha “alterações que fragilizam o desenho e a cobertura originais da previdência pública, tal como desenhada quando da repactuação do contrato social”. Vale-se de, praticamente, dois argumentos: o envelhecimento da população brasileira e a necessidade de elevar-se a taxa de poupança das famílias, em prol, portanto, do fortalecimento desse referido regime de capitalização. Quanto ao envelhecimento da população, as autoras questionam o grau de transparência dos métodos utilizados na projeção dos resultados previdenciários, denunciando a necessidade de considerar-se outras variáveis importantes, ao mesmo tempo, ressaltam que as estatísticas não estão isentas de erro. Em relação à aposta na expansão da previdência privada como solução para os problemas de natureza macroeconômica, é importante levar em consideração que o regime de capitalização não necessariamente contribui para resolver os problemas de natureza fiscal. Além disso, a transição de um regime para o outro implica custos elevados aos trabalhadores ativos, na medida em que estes terão que contribuir não só para o pagamento de aposentadorias do fundo público, como também para o fundo individual. Ela também, conforme apontam os estudiosos, não resolve necessariamente o problema demográfico, porque, invariavelmente, “os aposentados sempre dependerão das gerações subsequentes para prover o trabalho para produzir os bens de que necessitam para consumir” (LAVINAS; ARAÚJO, 2017, p. 624).

98 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Ademais, os títulos do governo se tornam uma dívida do Estado a serem pagos, em algum momento, por contribuintes ao serem resgatados. Inclusive, nesse sentido, destaca-se que grande parte do volume de recursos públicos são destinados ao pagamento de juros e encargos da dívida. Prioriza-se, na verdade, estes em detrimento do sistema de seguridade social, já que se retira valores que, a princípio, deveriam ser destinados a cobrir as despesas dos encargos sociais. Isso porque foi criado um mecanismo especialmente para esse fim, trata-se da Desvinculação das Receitas da União (DRU) a partir do qual é possível desvincular 30%, de acordo com a alteração decorrente da aprovação da PEC 87/2015, do produto arrecadado de forma livre, independentemente de qualquer vinculação previamente estabelecida, comprometendo, portanto, os mecanismos de financiamento da seguridade instituídos na própria Constituição Federal. Por isso, conforme interpreta Júlia Lenzi Silva (2015, p. 181), contribui para fomentar a lógica do mito do déficit previdenciário, cuja manutenção privilegia a dívida pública financeira em detrimento da social. Nessa lógica, Segundo Denise Gentil (2019, p. 47), o déficit primário do orçamento fiscal converte-se em superávit, que se destina ao pagamento de juros elevados ao mesmo tempo que privilégios se perpetuam e as desigualdades de distribuição de renda se perpetuam. Com efeito, conforme aponta, houve geração de superávit em todos os anos do resultado da Seguridade Social para o período de 2007-2016. Em 2011, alcançou o patamar de R$ 79,9 bilhões. Depois desse período, houve a progressiva redução desse superávit a partir da adoção de uma política econômica mais conservadora do governo. Nesse sentido, destaca-se que as contribuições previdenciárias e sociais dependem do nível de emprego formal, do patamar salarial e da produção e faturamento da indústria. A rigorosa proposta para a reforma da Previdência Social provocou uma “corrida para a aposentadoria” de servidores públicos e de trabalhadores do setor privado (GENTIL, 2019, p. 176). Conforme explica François Chesnais (2005, p. 51-52), os assalariados aposentados deixam de ser “poupadores” e tornam-se, ainda que sem plena consciência, partes interessadas das instituições cujo modus operandi repousa na centralização de rendimentos fundados na exploração dos assalariados ativos, invariavelmente, tanto nos países onde se criaram os sistemas de pensão por capitalização, quanto naqueles onde se realizam as aplicações e as especulações. Nesse sentido, os planos de poupança salarial fazem de seus beneficiários “indivíduos fragmentados”, cuja

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 99 personalidade social está dividida: de um lado, os assalariados e, de outro, os membros auxiliares das camadas rentistas da burguesia. A proposta de reforma da previdência, ora em tramitação no Senado Federal para aprovação, propõe alterações que, pela via reflexa, acabam estimulando a expansão dos fundos privados de capitalização. Ela pretende fixar a idade mínima e elevar o tempo de contribuição. Nesse cenário, Lena Lavinas e Eliane de Araújo (2017, p. 627) asseveram que: A opção pelos sistemas privados parece evidenciada nesse conjunto de desincentivos e limites ao sistema de repartição simples, tornando os fundos privados abertos atrativos, porque menos sujeitos à intervenção do governo. A referida opção é justificada, além da chamada crise do regime público, pelo fomento que poderia conferir ao crescimento econômico e ao investimento, mediante o estímulo à poupança individual no longo prazo. Assim, apesar de o sistema de repartição e o sistema de capitalização serem independentes, podem tanto se favorecerem mutuamente, quanto desgastarem-se reciprocamente. As modificações propostas pela reforma da previdência tendem a fortalecer o sistema complementar privado, que rejeita a perspectiva da solidariedade, tão cara ao sistema previdenciário. Ao mesmo tempo, a expansão deste último, ao contrário do que defendem os otimistas, não contribui para o aumento do investimento, tampouco para a ampliação do mercado de capitais, serve, antes, para estimular a concentração de renda (LAVINAS; ARAÚJO, 2017, p. 634). A questão da privatização do sistema previdenciário brasileiro, conforme destaca Fábio Zambitte Ibrahim (2015, p. 30), encontra defensores com fundamento na necessidade de redução do gigantismo estatal, de benefícios melhores para os aposentados, além de ganhos de escala na economia. Por outro lado, questiona-se a licitude de criação de cotas compulsórias da sociedade em prol de entidades privadas e o retrocesso que poderia significar o retorno à contribuição facultativa. Nesse sentido, o autor entende que a previdência social é demais relevante para ser colocada, exclusivamente, sob o crivo do ramo privado de seguro. Isso porque o sistema privado implicaria risco, especialmente porque, a depender da época da aposentadoria, poderia expor as pessoas ao abandono, notadamente em época de crises financeiras. Enquanto o modelo adotado pela maioria dos países é o chamado de pay as you go, o Chile, na década de 80, durante o regime ditatorial, adotou um sistema no qual as contribuições dos trabalhadores não seriam destinadas a um fundo público, mas sim para entidades privadas, as Administradoras de Fundos

100 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro de Pensões (AFPs), compulsoriamente. Ao ente público restou apenas a função de estabelecer regras, ou seja, adotou um modelo privatizante de previdência, no qual a existência de um seguro social, sob o fundamento da solidariedade, é inviabilizada. A privatização chilena, tal como apontam os especialistas, além de gerar valores da aposentadoria baixos, que são inferiores ao necessário para as necessidades básicas, implica uma uniformização dos investimentos, pois as administradoras são obrigadas a cobrir taxas de retornos de investimentos baixas. Além disso, falta educação financeira para que as pessoas fiscalizem o trabalho das AFPs (REVERBEL, 2017, passim). Além de receber críticas mundo afora, o país precursor da privatização, diante da situação alarmante, viu-se obrigado a tomar medidas de caráter social, como, por exemplo, a partir da instituição de um “aporte previsional solidário”, destinado às pessoas cujos valores cotizados fossem insuficientes (CASTRO, 2017, p. 52). Nesse ínterim, Eduardo Fagnani, em relação ao cenário brasileiro recente, em entrevista ao IHU-On-line (2019), entende que provavelmente, daqui algumas décadas, o pessoal do regime geral também vai estar no regime de capitalização, ou seja, a grande massa da população estará num sistema assistencial precário e de baixo custo. Assim, estar-se-ia afastando-se da seguridade social, fundamentada no “pacto das gerações”, e aproximando-se do assistencialismo e para o sistema de seguro individual, os mencionados planos de capitalização, cuja responsabilidade é do indivíduo e não do Estado, sendo que, conforme analisa, a população não tem condições de investir em um plano desses. Por isso, sem condições de atender os requisitos para os benefícios do INSS e sem condições de arcar com um plano de previdência privado, a pressão recairá sobre a assistência social, cujo valor do benefício também foi rebaixado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1988 desenhou um sistema de Seguridade Social composto por três pilares fundamentais, a saúde, a assistência social e a previdência social. Nota-se, portanto, que a previdência social não é única peça nessa lógica de garantia de direitos mínimos relacionados ao princípio da dignidade da pessoa humana. Além dos direitos assegurados pelo Sistema Único de Saúde, a assistência social confere assistência para os necessitados, independentemente de qualquer contrapartida financeira do beneficiário, para garantir-lhes o mínimo existencial. A previdência social, por sua vez, existe para proteger os cidadãos das mazelas do futuro, em que, possivelmente,

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 101 não se terá mais a disposição necessária para garantir a subsistência. Cria-se, então, um fundo público, no qual os trabalhadores de hoje sustentam os de amanhã, na mais perfeita lógica do pacto entre as gerações. As mudanças recentes e a crise política, social e econômica fazem com que os representantes do povo sintam a necessidade de reformular esse sistema, a pretexto de acabar com um suposto déficit nas contas públicas. De acordo com Denise Gentil (2019, p. 161), na verdade, o resultado financeiro da previdência é obtido a partir de uma manobra contábil que desconsidera o que está estabelecido na Constituição Federal em relação à integralidade das receitas vinculadas à Seguridade Social. A partir da análise dos dados recolhidos entre os anos de 1995 e 2005, a autora verifica que o resultado é superavitário, porém, uma boa parte dos recursos é desviado através do mecanismo da DRU e destinado, por exemplo, à amortização da dívida pública. Nesse cenário, os fundos de capitalização são beneficiados, em detrimento do princípio da solidariedade, que está na base do sistema de seguridade social. Por isso, entende-se que a superação dos problemas atuais perpassaria pelo reforço do sentimento de solidariedade, com o equilíbrio a partir do qual possa ser garantida uma relação razoável entre as prestações com as contribuições, garantido a efetividade da redistribuição e, no geral, do sistema de seguridade consolidado.

REFERÊNCIAS

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102 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro CASTRO, Carlos Alberto de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. CHESNAIS, François. O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos. In: CHESNAIS, François (org.). A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. Trad. Rosa Marques e Paulo Nakatani. São Paulo: Boitempo, 2005. DIAS, Clara Angélica Gonçalves. Os princípios constitucionais da seguridade social. Revista Eletrônica do Instituto Sergipano de Direito do Estado, 2013. GENTIL, Denise Lobato. A política fiscal e a falsa crise da seguridade social brasileira: uma história de desconstrução e de saques. 1. ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019. GNATA, Noa Piatã Bassfeld. Refundando a solidariedade social no direito previdenciário. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Área de concentração: Direito da Seguridade Social. Orientador: Jorge Luiz Souto Maior. São Paulo, 2014. GOES, Hugo. Manual de direito previdenciário: teoria e questões. 14. ed. Rio de Janeiro: Ferreira, 2018. HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito Previdenciário. 6. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2006. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 20. ed. Rio de janeiro: Impetus, 2015. LAVINAS, Lena; ARAUJO, Eliane de. Reforma da previdência e regime complementar. Brazil. J. Polit. Econ., São Paulo, v. 37, n. 3, p. 615-635. MACHADO, Ricardo. Da seguridade social ao seguro social. Reforma previdenciária pretende sepultar o pacto de 1988. Entrevista especial com Eduardo Fagnano. Instituto Humanitas Unisinos (IHU On- Line), 2019. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/ entrevistas/586966-da-seguridade-social-ao-seguro-social-reforma- previdenciaria pretende-sepultar-o-pacto-de-1988-entrevista-especial- com-eduardo-fagnani. Acesso em: 07 de set. 2019.

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104 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro OS IMPACTOS DA RADICALIZAÇÃO DO IDEÁRIO NEOLIBERAL NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: O PERIGO DO ASSISTENCIALISMO NA ATUAL CONJUNTURA

Jenifer Lisboa1* Rafaela Cavalcanti**

Christiane Flausino3***

Rafael Gonçalves dos Santos****4 RESUMO: Através desse artigo possibilitamos uma reflexão sobre a consolidação de um projeto neoliberal radical, no atual contexto político, econômico e social e seu impacto para a política de seguridade social: assistência social, previdência social e saúde. O presente trabalho, trata-se de um estudo teórico desenvolvido por estudantes de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Unesp-Franca/SP que estagiam na área sócio-jurídica, em busca de apresentar os impactos que os desmontes das políticas sociais tem nas condições de vida de milhões de trabalhadores e maneiras de resistência diante um cenário de agravação da pobreza, e das refrações da questão social no Brasil. Palavras-chave: assistência social. previdência social. política de saúde. ABSTRACT: Through this article we allow a reflection of the consolidation of a radical neoliberal project in the current political, economic and social context and its impact on social security policies: social assistance, social security and health. This paper is a theoretical study developed by students of Social Work of the Faculty of Humanities and Social Sciences Unesp-Franca/ SP, who are interning in the socio-legal area, seeking to presente the impacts that the dismantling of social policies has in the life conditions of millions of workers, ways of resistence in face of a worsening poverty scenario and the refractions of the social issue in Brazil. Keywords: social assistance. social security. health policy

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por finalidade pesquisar o impacto da radicalização neoliberal na contemporaneidade, contemplando os acontecimentos do governo Temer ao governo Bolsonaro; as regressões para a política de seguridade social enquanto ferramenta de direitos sociais e o perigo do assistencialismo, a fim de abordar a situação da Política da Seguridade Social que focalize a Previdência Social e as contrarreformas;

* Graduanda do Curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS – Campus Franca). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3150464679900170. ** Graduanda do Curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS – Campus Franca). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5605644819687393 *** Graduanda do Curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS – Campus Franca). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4339060307991842. **** Graduando do Curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS – Campus Franca). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1302469706363604.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 105 a LOAS na assistência social, o SUS, e os desafios presentes nos espaços socio-ocupacionais frente aos desmontes da Política de Assistência Social, junto aos riscos e consequências para as famílias usuárias. Ademais, procurou-se estabelecer uma reflexão sobre o perigo do assistencialismo e sobre formas de resistência frente ao cenário regressivo, que será apresentado ao longo deste trabalho. Primordialmente a Política de Assistência Social se inscreve na esfera da Seguridade Social que é composta por três dimensões: previdência social, assistência social e saúde. O presente trabalho busca trazer algumas considerações acerca dos desmontes que essa política vem sofrendo atualmente, e suas consequências para as famílias incluídas nos programas. No Brasil, os direitos sociais foram reconhecidos tardiamente e são pro dutos da pressão operária e dos movimentos sociais, como ocorreu com a Constituição Federal (CF) de 1988, quando tais direitos foram frutos das lutas pela redemocratização do país. A Carta Constitucional ousou garantir o trabalho como direito social e a Previdência Social (PS) como parte do maior sistema de proteção social já implantado no país, configurando a Seguridade Social (SS), juntamente com a Assistência Social e a Saúde, num importante mecanismo para a efetivação do estado democrático de direito. (LOURENÇO; LACAZ; GOULART, 2017, p. 467). Para a presente reflexão, se faz situar o fenômeno crescente dos critérios de seletividade para a concessão de benefícios previdenciários cada vez maiores; fator que agrava a pobreza e promove políticas cada vez mais focalizadas. Neste sentido, ao pensar em uma pesquisa para atuar nesta realidade, considera-se importante traçar uma ação de articulação com bases nos direitos sociais, focalizado no eixo da Seguridade Social e no impacto causado pelo neoliberalismo às famílias usuárias da política aqui abordada, pois é um direito que lhes deve ser assegurado. Em tempos de ataques frontais e de radicalização do ideário neoliberal, é preciso reafirmar o compromisso ético-político na elaboração, na consolidação, na defesa e expansão dos direitos sociais. Enquanto permanecermos inseridos na lógica do sistema capitalista, o Estado não deixará de permanecer ao capital. Segundo Mascaro (2015, p. 11), a compreensão do Estado e, sobretudo, da política exige a análise de sua posição relacional, estrutural, histórica, dinâmica e contraditória a partir

106 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro da perspectiva de totalidade da reprodução social. Logo, observa-se que, sob a égide do capital, algumas reformas no âmbito dos interesses da classe trabalhadora são logo revogadas, haja vista que a política capitalista objetiva expandir as taxas de lucro e de acumulação, de modo a acentuar a exploração da classe trabalhadora. Em virtude das medidas adotadas para a legitimação do projeto de austeridade fiscal, pode-se destacar a Emenda Constitucional (EC) n° 95, promulgada em 15 de dezembro de 2016, sendo esta uma medida de radicalidade que prevê o congelamento dos gastos sociais por 20 anos, cultivando a premissa de que é preciso economizar para pagar a dívida pública e gerar superávit primário. Contudo, o Brasil apenas obteve déficit primário nos dois últimos anos da década de 1990 do século XX. Assim, ao analisar os impactos provocados por esta emenda em relação ao orçamento das políticas sociais, verifica-se que, na política de assistência social, o seu orçamento sofreria uma queda em 1,26% do Produto Interno Bruto (PIB) de 2015 para 0,70% em 2036 (PAIVA et al., 2016), o que provocaria prejuízos para as garantias constitucionais da seguridade social.

1 SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL

O Sistema Único de Assistência Social – SUAS, consiste em uma das principais reformas do Estado brasileiro na democracia no âmbito da política social, e isso se deve ao fato de construir dispositivos relacionados à elaboração de uma política pública estatal. O SUAS é reconhecido como um modelo estatal, público e democrático. O governo federal, através do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS, institucionalizou na ordem jurídica brasileira o SUAS como sistema de gestão descentralizado e participativo da assistência social, alterando significativamente a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, Lei nº 8.742/1993. O SUAS foi proposto pela IV Conferência Nacional de Assistência Social, em 2003, e foi formalizado através da Política Nacional de Assistência Social – PNAS de 2004 e da Norma Operacional Básica – NOB de 2005, aprovados por resoluções do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS. Segundo Ariane Rego de Paiva e Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato (2017, p. 1067), alguns estudos que analisam a política pública de Assistência Social a partir da formulação do SUAS vêm demonstrando que as mudanças institucionais e normativas ocorridas em

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 107 2003/2004 foram fortemente influenciadas pelos resultados eleitorais de 2002, quando foi possível uma nova composição dos atores no cenário governamental e em espaços do processo decisório da agenda pública e da formulação de políticas. O SUAS trouxe novos conceitos à política de assistência social e suas ações têm buscado fortalecer a concepção de política não contributiva do Sistema de Seguridade Social, destinada a um público amplo. Logo, as políticas sociais revelam em sua história um caráter de controle dos pobres e da moralização da pobreza; ajustamento dos “improdutivos” e “incapacitados” a um padrão normativo dominante. Segundo Jucimeri Isolda Silveira (2017, p. 489), a configuração do padrão de proteção social brasileiro, erguido na era dos monopólios, caracteriza-se pela fragmentação, seletividade e focalismo em resposta às múltiplas expressões da questão social, justificada política e teoricamente por perspectivas conservadoras, expressas, especialmente, na defesa de instituições como a família tradicional; na valorização das hierarquias sociais; na naturalização da desigualdade e das assimetrias nas relações de poder; e no controle das insurgências produzidas nas contradições de classe, pela criminalização dos movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos. Nota-se que a política de assistência social possui um histórico de reprodução da desigualdade, associando-se aos mecanismos e dispositivos de controle dos indivíduos e famílias; de criminalização dos pobres e ajustamento social, através da integração aos programas sociais. Verifica-se que na década de 1990 essa política manteve-se submetida à prática neoliberal. As políticas públicas implementadas pós-Constituição Federal de 1988 auxiliaram para o desenvolvimento humano, especialmente nas políticas de educação, saúde e assistência social, em cumprimento aos objetivos constitucionais, com ênfase na redução da pobreza e na estruturação de sistemas e politicas de proteção aos direitos humanos. Segundo Jucimeri Isolda Silveira (2017, p. 498), a construção da esfera pública na assistência social entre 2005 e 2015 demandou um esforço coletivo que priorizou a qualificação política e legal do direito à proteção não contributiva. Movimento indispensável no espectro dos avanços e lutas emancipatórias políticas, mas insuficiente se não for acompanhado de conteúdo e processo ético-político constitutivo dos projetos coletivos, no sentido da emancipação humana. Ou seja, a dimensão normativa do direito foi fundamental, mas requer mais materialidade e incorporação

108 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro na agenda política da sociedade civil, das forças sociais, no conjunto das reivindicações e lutas cotidianas da população usuária. Porém, nos últimos anos temos enfrentado um cenário de avanço do neoliberalismo, que ocasiona o desmonte dos sistemas estatais, as contrarreformas e perda de inúmeros direitos conquistados ao longo dos tempos, gerando o aprofundamento das desigualdades e das crises. Deparamo-nos também com o avanço das ideologias conservadoras ultradireitistas, que concebe para as políticas públicas um caráter meritocrático e gerencialista. Algumas medidas neoliberais que causaram impactos nas bases estruturantes do SUAS podem ser destacadas: a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias com base no executado de 2016, o que implicou na redução de recursos para 2017; congelamento de recursos pelos próximos vinte anos, com a aprovação do Novo Regime Fiscal (PEC n° 55) e implantação do Programa Criança Feliz, definido pelo Conselho Nacional de Assistência Social como Primeira Infância no Suas (Resolução nº 20, de 24 de novembro de 2016), sem discussões coletivas e aprofundadas nas instâncias do SUAS, e aprovação no mês seguinte do decreto que cria o referido programa. Essas medidas de caráter neoliberal reforçam o cenário de grandes retrocessos em políticas e direitos sociais. O que presenciamos são, portanto, os desmontes dos sistemas públicos estatais. Vivenciamos um momento de redução e de descontinuidade dos sistemas estatais e das políticas de proteção aos direitos humanos, com evidente redução do Estado e supremacia dos interesses do capital.

2 MERCADORIZAÇÃO DO SUS: OS DESMONTES DA POLÍTICA DE SAÚDE

A Saúde Parte da tríade da seguridade social, a política de saúde se apresenta enquanto direito de todos e uma responsabilidade do Estado, que se materializa por meio do Sistema Único de Saúde, o SUS. Seu orçamento é garantido pelos termos do artigo 195 da Constituição Federal de 1988, sendo financiado por meio dos recursos da União, Estado e Municípios, ou seja, é financiado por toda sociedade de modo que são quem, por meio da contribuição dos impostos sociais financiam os fundos, neste caso específico, o orçamento da Seguridade Social.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 109 O avanço neoliberal no Brasil, sustentado pela interferência mínima do Estado em nome dos lucros do capital, enfrenta desafios na tentativa de universalização do SUS, haja vista que Constitucionalmente a União deve receber 30% dos fundos da Seguridade Social, mas isso nunca aconteceu. A situação se agrava quando a EC 95/2016 que prevê para o ano de 2017, 15% da Receita Corrente Líquida seguida do congelamento do financiamento por 20 anos, na condição de ajustar somente de acordo com a inflação sem considerar o desenvolvimento econômico, prevendo ainda a desoneração dos fundos da saúde. Diferentemente da regularidade revista na EC 86/2015, em que 15% da REC teria um aumento progressivo e seria direcionada ao SUS no período de 2015 à 2020. A austeridade fiscal, hoje implantada, prevista na Emenda Constitucional nº 95/2016, que institui Novo Regime Fiscal, a conhecida Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Teto, ou PEC do Fim do Mundo, a partir da qual a saúde, que já sofre com a ausência de financiamento adequado, teve o seu orçamento congelado a partir de 2016, aumentando as dificuldades já vivenciadas pelo setor, uma vez que haverá ampla redução do gasto público per capita com saúde, conjugada a desobrigação dos governos de alocarem mais recursos, ainda que ocorra o crescimento econômico (VIEIRA; BENEVIDES, 2016. apud LOURENÇO; GOULART; ANUNCIAÇÃO et al., 2019) Ao passo que o desincentivo do financiamento Estatal da política de saúde acontece, a saúde privada é privilegiada com isenções fiscais. Um exemplo disto são as isenções fiscais concedidas entre 2009 e 2011, no valor de R$447 milhões aos hospitais Sírio Libanês e Albert Einstein (FERRATO, 2008). Assim, é evidente que existe um projeto de desmonte do Sistema Único de Saúde, que dá prioridade ao mercado e ao individual, o que é direito coletivo. Deixa de financiar a política que consolida o direito à saúde pública, de acordo com a Constituição, plena e gratuita, em nome de uma crise discal do Estado. Não podemos esquecer jamais que a expansão das finanças de mercado, assim como o financiamento da dívida pública nos mercados de títulos, são fruto de políticas deliberadas. Como se vê até mesmo na atual crise na Europa, os Estados adotam políticas altamente “intervencionistas”, que visam a alterar profundamente as relações sociais, mudar o papel das instituições de proteção social e educação, orientar as

110 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro condutas criando uma concorrência generalizada entre os sujeitos, e isso porque eles próprios estão inseridos num campo de concorrência regional e mundial que os leva a agir dessa forma (DARDOT; LAVAL, 2016 apud LOURENÇO, 2017, p. 357) Com a expansão do número de pacientes, verifica-se a inexistência do gerenciamento realizado pelo Estado no fornecimento de serviços públicos de saúde. Logo, o Estado passa a comprar serviços ofertados pelo sistema privado, o que contribui para a privatização da saúde pública frente ao sucateamento dos aparelhos médicos, haja vista a emergência de um sistema de americanização perverso, onde os serviços fornecidos pela saúde privada não passam por fiscalizações, seja para a realização de consultas médicas, exames, internações e consumo de medicamentos.

3 AS CONTRARREFORMAS RUMO AO DESMONTE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

O sistema previdenciário brasileiro vem sofrendo ataques constantes de contrarreforma, em nome da contenção de gastos públicos e mercados de capital, o que se torna mais agressivo no ano de 2016, com o descomprometimento do governo com políticas sociais. A exemplo disso tem-se a MP nº 767, de 06 de janeiro de 2017, editada pelo Presidente da República na ocasião, , reestabelecendo tudo o que fora instituído no que se refere ao benefício cortado na MP nº 739/2016. A medida, embora não tenha sido convertida em lei, em seu período de vigência, até a transição de governo, foi suficiente para rebater diretamente na população mais pobre. Segundo o jornal Brasil de Fato (2019) acerca dos dados encaminhados pelo Ministério da Cidadania ao jornal, até 31 de dezembro de 2018, foram realizadas 1,2 milhão de perícias (472.313 de auxílios-doença e 712.756 de aposentados por invalidez). Entre os benefícios analisados, 369.637 auxílios-doença e 208.953 aposentadorias foram cessadas. Outros 73.722 (45.726 de auxílios-doença e 27.996 de aposentadorias por invalidez) foram cancelados por não comparecimento, e 74.798 (36.953 auxílios-doença e 37.845 aposentadorias por invalidez) foram cessados por óbitos e decisões judiciais. Além disso, a equipe econômica do governo, ao ser procurada pelo mesmo jornal, não apresentou os objetivos da MP e nem os critérios para os cortes de benefício de quem já estava aposentado por invalidez. Outro fato foi que os médicos peritos do INSS tiveram acrescido o valor de R$ 60 por exame realizado.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 111 Na transição de governo, a situação de descaso para com milhões de trabalhadores vem se agravando. Dando continuidade ao processo já iniciado no governo anterior, a destruição da previdência continua muito além de uma operação de pente fino, dessa vez no governo . A MP 871 do INSS foi sancionada pelo atual presidente assim que assumiu o cargo e aprovada pelo Congresso no início de junho. O projeto determina a revisão de benefícios como auxílio-doença, salário maternidade e auxílio-reclusão. Aprovada com o argumento da necessidade de economia, contraditoriamente, os servidores que constatarem irregularidades vão receber pagamentos extra, assim como os médicos peritos que executar sua tarefa fora do expediente. Sem ingenuidades na análise, a perícia sempre está propensa a negar. Além disso, segundo dados da Previdência Social, sete em cada dez segurados que passaram pela revisão perdem os benefícios. Não à toa, apenas em 2017, de acordo com a Advocacia Geral da União, aproximadamente 1,3 milhão de novas ações foram ajuizadas contra o INSS. As MPs foram até agora o caminho percorrido para a PEC 06/2019 que coloca fim ao sistema de previdência social, em nome do regime de capitalização: é a materialização do desmonte da previdência pública, resultando em propostas que implicam graves consequências a vida de milhares de trabalhadores que não terão seus direitos sociais assegurados. Segundo Patrícia Soraya Mustafa (2018, p. 104), Denise Gentil (2006), Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) (2016), e Fagnani (2015, 2016, 2017), a seguridade social não é deficitária, haja vista que este sistema dispõe de um rol de contribuições estabelecidas no artigo 195 da Constituição Federal de 1988, dentre eles, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), Contribuição Social do PIS/Pasep, a contribuição de empregados e empregadores para a seguridade social, além dos recursos dos concursos de prognósticos. Observa-se que o Parlamento passou a definir os orçamentos destinados para o campo dos direitos sociais, o qual vale ressaltar que os mesmos não carregam a pretensão de assegurar a satisfação dos interesses e das necessidades sociais básicas da classe trabalhadora. Com isso, Löwy (2016, p. 65) caracteriza o Parlamento como “[...] uma cambada de parlamentares reacionários e notoriamente corruptos [...]”, constituída por partidos de direita composta pela “[...] bancada BBB: da bala (deputados ligados à polícia militar, aos esquadrões da morte e às milícias privadas),

112 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro do boi (grandes proprietários de terra, criadores de gado) e da Bíblia (neopentecostais integristas, homofóbicos e misóginos)”. (MUSTAFA, 2018, p. 103 apud LOWY, 2016, p. 65).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o desvelamento das políticas neoliberais e de suas sucessivas transformações no campo da produção a partir da década de 1970, é notório que o avanço direitista destas políticas expressa, segundo Alves (1996), um intrínseco controle do trabalho pelo capital, haja vista os impactos que atingem principalmente a classe trabalhadora com a expansão do desemprego, com a queda do salário mínimo em decorrência do aumento da mão de obra, além do desmonte dos postos de trabalhos não-qualificados e da redução de gastos com políticas sociais. A partir da radicalização do neoliberalismo, é notório que a expansão das contrarreformas que objetivam suprimir os recursos da previdência social para fomentar, por exemplo, o capital estrangeiro, tem contribuído para a aniquilação das possibilidades de reversão do quadro de supressão das estratégias de defesa e de garantia dos direitos previdenciários em contraposição à sua violação. Concomitantemente, ao analisar as consequências provocadas pelo sistema capitalista na vida da população atendida pelo(a) assistente social, a partir da emergência de políticas sociais focalizadas que passaram a introduzir critérios de elegibilidade rigorosos para a concessão de benefícios previdenciários fornecidos pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), cabe aos profissionais que compõem os espaços socio-ocupacionais desenvolverem, sobretudo, direções sociais e estratégias articuladas às lutas e interesses da classe trabalhadora, de modo a fortalecer uma cultura crítica de defesa dos direitos e deveres da população usuária. Com a emergência das novas configurações familiares, vale destacar que a monoparentalidade feminina é a composição familiar que mais apresenta demandas em relação ao acesso às políticas de assistência social. Diante deste cenário, é importante enfatizar que, com a divisão sexual do trabalho, no contexto de uma sociedade hetero-patriarcal- capitalista sustentada sob uma hierarquia e pela divisão de competências e atribuições, a contrarreforma da previdência social não afetará somente os homens submetidos a condições precárias de trabalho, mas principalmente as mulheres, pois além de receberem um salário inferior aos dos homens,

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 113 desempenham uma carga horária de trabalho superior, alcançando a média de oito horas a mais por semana em relação ao trabalho doméstico não remunerado. A maioria das mulheres trabalhadoras possui vínculos com postos de trabalho precários, com baixas remunerações (recebendo um valor inferior em relação aos homens nos mesmos postos de trabalho) diante da expansão das terceirizações e privatizações. Surgem, dessa forma, novos desafios a serem enfrentados no âmbito do SUAS, haja vista a expansão do ideário neoconservador sob as políticas sociais a partir de um caráter fragmentado, moralizador, seletivo e com um financiamento aquém em relação ao que seria preciso para a sua operação na conjuntura social. Logo, a população usuária passa a não dispor de políticas de proteção social para o atendimento de suas necessidades sociais básicas com a emergência do controle moralizante da população que dispõe de programas de transferência de renda, as quais apresentam dificuldades de acesso aos serviços e benefícios das políticas sociais. Trata-se de negar e de anular conquistas arduamente obtidas, agora sob a égide da austeridade, sinônimo de supressão de direitos sindicais, trabalhistas e sociais, ao mesmo tempo em que são congelados, com o “ajuste fiscal”, re cursos vinculados à educação, à saúde, o que se acompanha de forte ataque à PS (LACAZ, 2016. apud LOURENÇO, LACAZ, GOULART. p. 483). Ademais, diante desta conjuntura adversa, é preciso reafirmar a necessidade dos usuários(as) dos serviços prestados assumirem, juntamente com os profissionais que compõem os espaços socio-ocupacionais, ações de resistência e de enfrentamento da radicalização dos campos de violência e de violação dos direitos sociais enquanto força estratégica de luta e defesa para a efetivação da política de assistência social como direito universal, como direito ao financiamento público e, principalmente, como direito à sua construção democrática e participativa.

REFERÊNCIAS

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Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 117

A REFORMA TRABALHISTA E SEUS REFLEXOS NA REFORMA DA PREVIDÊNCIA

Larissa Carolina Lotufo da Costa1*

Nathalia Neves Escher2**

Fernanda da Silva Miguel3*** Giovanna Gomes de Paula****

RESUMO: A Lei nº 13.467, aprovada em 13 de julho de 2017, trouxe à tona a antiga forma de se pensar o contexto labor-ambiental a partir de substanciais mudanças nos dispositivos celetistas. O atual cenário de crise econômica, que se acentua desde 2008, encorajou a instituição de medidas flexibilizatórias da legislação trabalhista, visando ao estímulo da produção e da competitividade. Dentre as alterações trazidas pela Reforma Trabalhista estão as novas formas de contratação, tais como o teletrabalho, o trabalho intermitente e a terceirização da atividade-fim. Estas novas formas de trabalho, aliada ao texto que tramita no Senado pela PEC 06 de 2019, conhecida como Reforma da Previdência, trará, se aprovado, uma série de implicações no contexto do trabalhador para o recebimento de uma aposentadoria digna no futuro e manutenção do emprego. Assim, o objetivo do presente estudo consiste em analisar o impacto das alterações legislativas promovidas pela Lei nº 13.467 de 2017 no contexto da atual Reforma da Previdência, bem como analisar o caso concreto da implementação do seguro privado no Chile, para verificar a viabilidade desta implementação no Brasil. Para tanto, adota-se, como método de procedimento, a pesquisa bibliográfica e, como método de abordagem, o dedutivo. Palavras-chave: reforma da previdência. reforma trabalhista. Chile. desemprego. ABSTRACT: The law nº 13,467, approved on July 13, 2017, brought the old way of thinking about the labor-environmental context from substantial changes in the celetist devices. The current scenario of economic crisis, which has been intensifying since 2008, has encouraged the introduction of flexible labor law measures aimed at stimulating production and competitiveness. Among the changes brought about by the Labor Reform are the new forms of hiring, such as teleworking, intermittent work and outsourcing of the core activity. These new forms of work, allied to the text in the Senate by PEC 06/2019, known as Social Security Reform, will bring, if approved, a series of implications in the worker’s context for receiving a decent retirement in the future and maintaining the workforce. job. Thus, the objective of the present study is to analyze the impact of the legislative changes promoted by Law No. 13.467 / 17 in the context of the current Social Security Reform, as well as to analyze the concrete case of the implementation of private insurance in Chile, to verify the feasibility of this implementation. in Brazil. Therefore, the bibliographic research is adopted as a method of procedure and, as a method of approach, deductive.

* Graduanda em Curso de Direito e Bacharela em Jornalismo pela UNESP pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Currículo Lattes: http://lattes. cnpq.br/2558983985888879. ** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7717550928348545. *** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0188244816829753. **** Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0464257953975211.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 119 Keywords: social security reform. labor law reform. Chile. unemployment.

INTRODUÇÃO

A Previdência Social insere-se no tripé da seguridade social – juntamente com a saúde e a assistência social – (art. 194, CRFB/88) e caracteriza-se como um direito social disposto no artigo 6º da CRFB/88, sendo, portanto, um direito fundamental assegurado a todos os trabalhadores, de forma que aqueles que não trabalham ainda são abarcados pela saúde e pela assistência social, por meio de contribuições indiretas. Neste sentido, trata-se de uma conquista dos indivíduos garantida pela Lei Maior, não podendo os direitos estabelecidos nela serem suprimidos por legislação infraconstitucional. A Seguridade Social, da forma como é garantida hoje, estabelece três formas principais de solidariedade entre os cidadãos, quais sejam, a solidariedade intergeracional, inter-regional e interpessoal, garantindo desta forma a efetivação do princípio da proteção social. Aqueles que contribuem hoje estão pagando para que os inativos possam ter uma vida digna e assim por diante, de forma linear a todos os estados do Brasil, sem diferença por região e condição contributiva do trabalhador, gerando, de forma concreta, uma corrente de solidariedade por meio da própria contribuição. Com o advento da Reforma Trabalhista, novas formas de contratação eclodiram no país, trazendo insegurança ao trabalhador, modalidades de subemprego e altos índices de desemprego em todas as regiões. Dentre as formas surgidas no contexto da Lei nº 13.467/2017, destaca-se a figura do teletrabalhador, da terceirização da atividade-fim e do trabalho intermitente. A nova forma de pensar o trabalho por meio da ideia de flexibilização tem mascarado a desregulamentação de preceitos trabalhistas conquistados há anos. Assim, diante destas alterações já implementadas, busca-se analisar os principais reflexos da Reforma Trabalhista na Reforma da Previdência, em tramitação por meio da PEC nº 06/2019, a qual, se implementada, poderá acarretar em uma drástica diminuição de benefícios e de contribuintes, de acordo com o cenário atual de desemprego e subemprego, a exemplo do que se caracterizou no Chile, após o implemento do Seguro Privado no país. Portanto, o objetivo do presente trabalho consiste em analisar o impacto das alterações legislativas promovidas pela Lei nº 13.467/17

120 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro no contexto da atual Reforma da Previdência, bem como analisar o caso concreto da implementação do seguro privado no Chile, para verificar a viabilidade desta implementação no Brasil. Para tanto, adota-se, como método de procedimento, a pesquisa bibliográfica e, como método de abordagem, o dedutivo.

1 A PREVIDÊNCIA SOCIAL NO ORDENAMENTO PÁTRIO

A Previdência Social insere-se no tripé da seguridade social – juntamente com a saúde e a assistência social – (art. 194, CRFB/88) e caracteriza-se como um direito social (art. 6º, CRFB/88) sendo, portanto, um direito fundamental de segunda dimensão. Esta categoria de direitos ganhou força no século XX, com o aumento das reivindicações por normas positivadas de cunho trabalhista, previdenciário, dentre outros. É nessa época também que há um grande aumento de constituições consideradas mais sociais, a saber a Constituição Mexicana de 1917, que foi a primeira a utilizar o termo “previdência” em seu texto constitucional. No Brasil, o advento da Magna Carta de 1988 elevou ao máximo patamar a proteção social brasileira e, por conseguinte, a previdência social, sendo esta regulamentada pela União, que detém competência concorrente para legislar sobre matéria previdenciária (art. 24, inc. XII, CRFB/88) – e não privativamente, visto que há, por exemplo, servidores públicos, tanto estaduais quanto municipais, que se sujeitam a regimes previdenciários próprios. Antes de prosseguir, cabe explorar o que se entende por Previdência Social, visto que é um conceito bastante antigo que passou por diversas concepções. Assim, considera-se a previdência social brasileira, conforme disciplinada pela CRFB/88 um “seguro sui generis, pois é de filiação compulsória para os regimes básicos (RGPS e RPPS), além de coletivo, contributivo e de organização estatal, amparando seus beneficiários contra os chamados riscos sociais” (IBRAHIM, 2013, p. 27) (grifos nossos). Os riscos sociais a que o autor se refere são os elencados pelos incisos do art. 201, CRFB/88: Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 121 II – proteção à maternidade, especialmente à gestante; III – proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; IV – salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. (grifos nossos) Portanto, a Previdência Social possui a finalidade de assegurar aos trabalhadores segurados – depende, necessariamente, da contribuição do segurado – e sua família que sejam abrangidos, mediante transferência de prêmios numa situação eventual e futura de risco social, garantindo o mínimo existencial às pessoas abrangidas pelos benefícios ou serviços. Seguindo esse entendimento, Sérgio Pinto Martins (2008, p. 278) define: É a previdência social o segmento da Seguridade Social, composta de um conjunto de princípios, de regras e de instituições destinado a estabelecer um sistema de proteção social, mediante contribuição, que tem por objetivo proporcionar meios indispensáveis de subsistência ao segurado e a sua família, contra contingências de perda ou de redução de sua remuneração, de forma temporária ou permanente, de acordo com a previsão da lei. Nesse sentido, dispõe o art. 3º, da Lei nº 8.212, de 1991, que disciplina “sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências”: Art. 3º A Previdência Social tem por fim assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, idade avançada, tempo de serviço, desemprego involuntário, encargos de família e reclusão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.

1.1 Formas de solidariedade na Previdência Social

Em “Da Divisão do Trabalho Social”, Émile Durkheim (1999), nos Capítulos II e V, inaugura os conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica (ou devida): aquela, própria de sociedades menos complexas, em que há compartilhamento de crenças e valores pelos indivíduos; esta, característica das sociedades complexas e atuais, em que há uma divisão econômica do trabalho social expressiva e enorme

122 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro diversidade de valores, em que se insere o sistema do direito, estabelecendo direitos e obrigações, bem como prevendo direitos e garantias individuais, direitos sociais e mínimos existenciais a toda essa coletividade. Nesta linha, a Previdência Social insere-se na solidariedade orgânica, na medida em que os segurados o são, ainda que não queiram, pois a filiação é compulsória e essa é uma das maneiras pelas quaisa Previdência Social é mantida, dentre outras formas, também disciplinadas pela Lei 8.212, de 1991: Art. 10. A Seguridade Social será financiada por toda sociedade, de forma direta e indireta, nos termos do art. 195 da Constituição Federal e desta Lei, mediante recursos provenientes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de contribuições sociais. (grifos nossos) Art. 11. No âmbito federal, o orçamento da Seguridade Social é composto das seguintes receitas: [...] II – receitas das contribuições sociais; [...] Parágrafo único. Constituem contribuições sociais: [...] c) as dos trabalhadores, incidentes sobre o seu salário- de-contribuição (grifos nossos). Dessa maneira, identificam-se três formas de solidariedade inerentes ao sistema previdenciário brasileiro: a) solidariedade regional, pois ainda que um estado da Federação arrecade menos que outro estado, há um equilíbrio gerado pelos que arrecadam mais; b) solidariedade intergeracional, visto que aqueles que se aposentaram ou estão prestes a se aposentar contam com a contribuição das pessoas que estão ativas no mercado de trabalho e que contribuirão com a Previdência Social – “redistribuindo os recursos [...] aos indivíduos das gerações presentes para atender às necessidades de gerações passada” (OLEA, MANUEL AFONSO apud CORREIA; CORREIA, 2007, p. 100); e c) solidariedade interpessoal, existente entre os próprios segurados – “redistribuindo os recursos entre aqueles que os têm, em um período determinado, e os que não os têm, no mesmo período, ou seja, do empregado ao desempregado, do sano ao enfermo” (OLEA, MANUEL AFONSO apud CORREIA; CORREIA, 2007, p. 100). Nesta linha: [...] em entendimento unânime, este [o princípio da solidariedade] é o mais importante princípio e, por isso, denominado fundamental, ou seja, uma vez ausente, impossível falar-se em seguridade social. Tal afirmação

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 123 prende-se ao fato de a seguridade social abranger toda uma coletividade, tendo por contribuintes aqueles que, com capacidade contributiva, contribuem em favor daqueles desprovidos de renda (CORREIA; CORREIA. 2007, p. 99). Destarte, o princípio da solidariedade é base do seguro social e, por conseguinte, da Previdência Social brasileira atual, sem a qual perderiam suas sustentações, aproximando-nos dos sistemas de capitalização individual, a ser tratado no próximo capítulo.

1.2 Formas de contribuições previdenciárias

Definido o princípio basilar não só da Previdência Social tal qual conhecemos hoje, mas também de toda a Seguridade Social, cabe- nos identificar as formas de contribuição atuais que sustentam o sistema previdenciário brasileiro. Assim, são contribuintes, conforme os capítulos I e II da Lei nº 8.212, de 1991: a) os segurados obrigatórios: I) empregados – “considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário” (art. 3º, CLT); II) empregados domésticos – “os que prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial desta” (art. 7º, alínea a, CLT), integrados à previdência social por força da Emenda Constitucional nº 72, de 2013, que alterou o parágrafo único do art. 7º, CRFB/88; III) contribuintes individuais – são aqueles que não se enquadram em nenhuma das outras quatro categorias de segurados obrigatórios, como os empresários e os autônomos; IV) trabalhadores avulsos – aqueles que não possuem vínculos empregatícios, a despeito de prestarem serviços a algumas empresas, conforme o art. 1º, Lei nº 12.023, de 2009; V) segurados especiais – dispostos no art. 9º, VII, do Decreto nº 3.048, de 1999; b) os segurados facultativos – que contribuem por conta própria, tal como disciplina o art. 11, do decreto citado logo acima; c) as empresas e os empregadores domésticos;

124 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro d) a União – “a União é responsável pela cobertura de eventuais insuficiências financeiras da Seguridade Social [...], na forma daLei orçamentária Anual” (art. 16, parágrafo único, Lei nº 8.212/1991) Os contribuintes da Previdência Social que são empregados, inclusive domésticos, trabalhadores avulsos, contribuintes individuais e facultativos a custeiam cada qual com suas peculiaridades, que em linhas gerais, dá-se por meio de uma fração sobre o salário-de-contribuição mensal, conforme arts. 20, 21 e 28 da Lei nº 8.212, de 1991. Já as empresas contribuem obrigatoriamente, de acordo com as porcentagens estabelecidas no arts. 22, 22-B e 23, da supracitada lei, a depender das atividades empresariais exercidas. Enquanto que a contribuição dos empregadores domésticos está disposta no art. 24.

2 A REFORMA TRABALHISTA E A ALTA DO DESEMPREGO

A Reforma Trabalhista foi implementada no Brasil com a Lei nº 13.467 de 13 de Julho de 2017. Desde a sua vigência, as mudanças propostas pela Reforma têm trazido inúmeras discussões, principalmente pela maneira que elas estão relacionadas a diversas outras áreas sociais e do Direito, sendo uma delas a Previdência. O Direito do Trabalho possui um papel fundamental na interferência das políticas públicas que dizem respeito à distribuição de renda na população, tendo como objetivo elevar a condição social e econômica do trabalhador através da venda da sua força de trabalho. Para o trabalhador, portanto, o trabalho não significa apenas uma relação de emprego como fonte de subsistência, mas também um meio de inserção social. Nesse sentido, a Reforma Trabalhista apresenta pontos muito prejudiciais ao empregado, principalmente quando diz respeito às novas formas de contratação, conforme apontam Severo e Souto Maior: A Recomendação 198 da OIT citada como Recomendação do Relacionamento Empregatício, de 2006, estabelece que normas trabalhistas devem “garantir proteção efetiva aos trabalhadores que executam seus trabalhos no contexto de uma relação de trabalho” e precisam ser ajustadas e implementadas “em concordância com as leis e as práticas nacionais em consulta com as organizações mais representativas dos empregadores e dos trabalhadores”, o que – bem sabemos – não ocorreu com as Leis 13.429/17 e 13.467/17. (MAIOR; SEVERO, 2017, p. 43).

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 125 Cabe lembrar que a mídia tem veiculado a ideia de que o Brasil vem passando um período de crise econômica nos cofres públicos, e essa compensação está se difundindo por meio das leis trabalhistas e previdenciárias que afeta diretamente o trabalhador empregado tanto no exercício dos seus direitos quanto na busca por eles. Nota-se que em meio a esta crise, cresce também o número de desempregados, desocupados, desalentados e subocupados. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em estudo realizado em julho de 2019, a taxa de desemprego no Brasil entre 2013 e 2019 teve seu nível mais elevado em 2017, oscilando de maneira tímida em 2018 e 2019, sem abaixar consideravelmente, sendo que o nível mais baixo apresentado se mostrava no ano de 2014. É válido ressaltar que a taxa do desemprego no Brasil teve seu registro mais alto em 2017, coincidentemente com o ano em que foi outorgada a Reforma Trabalhista. Isso não é por acaso, uma vez que é importante considerar que retirar direitos trabalhistas não será a solução para consertar o problema econômico do país; pelo contrário, mexer nos direitos do trabalhador reflete em outros problemas como a Previdência Social.

2.1 Reforma Trabalhista: novas formas de contratação

As novas formas de contratação da CLT adicionadas pela Lei nº 13.467/17 apresentam um retrocesso para o mundo do trabalho. Passar-se-á à análise de algumas destas formas, quais sejam: o teletrabalho, trabalho intermitente e terceirização da atividade-fim. Todas inovações trazidas pela Reforma Trabalhista que acarretam a precarização do trabalho e contribuem para a crise previdenciária brasileira. Segundo o art. 75-B da CLT: Art. 75-B. Considera-se teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo. Parágrafo único: O comparecimento às dependências do empregador para a realização de atividades específicas que exijam a presença do empregado no estabelecimento não descaracteriza o regime de teletrabalho. (BRASIL, 1943)

126 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Embora tal artigo tenha sido inserido em 2017, tal prática não era só recorrente como havia previsão similar no artigo 6º da CLT, denominada trabalho em domicílio; em outras palavras, as únicas mudanças efetivas são a retirada dos direitos trabalhistas da fixação de horas culminado ao pagamento de horas extras. Outro ponto que merece destaque no que concerne ao teletrabalho diz respeito às hipóteses de recebimento do benefício previdenciário quando ocorrer acidente de trabalho. Como diferenciar um acidente de trabalho de um acidente doméstico nos casos em que o trabalhador não possui horário fixo e trabalha em casa? E ainda, se for possível estabelecer um horário fixo para um teletrabalhador, por que não se pode contabilizar suas horas extras? Estas questões circundam esta nova modalidade trabalhista, ainda sem respostas concretas, o que provavelmente se resolverá de maneira nebulosa pelos magistrados em cada parte do país, conforme o caso concreto, deixando o trabalhador à mercê de uma decisão baseada no livre convencimento do juiz, em cada vara. Isto posto, o impacto, assim, é o empregado ganhar sempre menos, reduzindo a possibilidade de que o trabalhador seja capaz de poupar recursos para o futuro, diante do salário baixo, bem como reduzir suas hipóteses de benefícios conforme sua contribuição. Quanto à terceirização, é certo que a figura do trabalhador terceirizado não é recente no Brasil, sendo a principal mudança trazida pela Reforma Trabalhista a possibilidade de terceirização da atividade-fim. Atualmente, a terceirização se mostra como um reflexo da própria sociedade, cada vez mais fragmentada, pragmática e versátil. Neste contexto, sentindo-se inseguro com os mesmos impactos econômicos, políticos e culturais que a empresa sofre, conforma-se com o que lhe é oferecido e aceita a condição que lhe é determinada. De acordo com dados retirados do estudo “Terceirização e Desenvolvimento, uma conta que não fecha”, da CUT em parceria com o DIEESE, oito em cada dez acidentes de trabalho ocorrem envolvendo trabalhadores terceirizados e o mesmo percentual se reflete ao número de mortes destes trabalhadores. Em reportagem para Agência Brasil, Graça Costa, Secretária Nacional da CUT, informou que, em 2011, por exemplo, o setor elétrico registrou 79 mortes por acidentes em 2011, sendo 80% das vítimas funcionários terceirizados (RABELO, 2015). Além disso, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (DIEESE) publicou, em 2017 as notas nº 172 (DIEESE, 2017a)

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 127 e nº 175 (DIEESE, 2017b), as quais tratam das principais consequências ao trabalhador quando da aplicação da Lei nº 13.429/2017, principalmente quanto à legalização da terceirização da atividade-fim da empresa. Notou-se, a partir dos estudos, que a terceirização diminuiu o número de empregos formais, uma vez que aumentou consideravelmente o índice de rotatividade dos empregos. Informa a DIEESE (2017b) que, em 2014, de cada 100 vínculos ativos, 40 eram rompidos; já nos setores tipicamente terceirizados, o número aumenta para 80 vínculos rompidos. Esta elevada taxa de rotatividade é preocupante ao passo que representa o medo e a insegurança ao trabalhador sobre estar empregado no final do mês, ou da semana, o que o faz aceitar, cada vez mais, a redução de salário e condições precárias de trabalho para permanecer inserido no mercado (DIEESE, 2017b). Com isso, os reflexos na previdência são gritantes, tanto quanto ao valor da contribuição – e consequentemente da aposentadoria – quanto aos benefícios referentes a acidente de trabalho, e, por fim, pela saída de empregados, portanto, contribuintes, para o trabalho informal, sem qualquer garantia de benefícios previdenciários. Quanto ao trabalhador contratado de maneira intermitente, os reflexos previdenciários são ainda mais drásticos. Nesta modalidade, o empregado atua apenas quando é convocado, de forma que o salário varia conforme o número de horas ou dias trabalhados. Pela lei, deve-se receber, pelo menos, o valor proporcional ao salário mínimo pela hora. Portanto, muitos trabalhadores receberão menos de um salário mínimo por mês, e poderão (não há obrigatoriedade) pagar a diferença entre a contribuição incidente sobre seu rendimento mensal e o mínimo exigido pela Previdência Social. Doutrinadores como Severo e Souto Maior (2017) consideram essa como sendo a pior das alterações propostas pela Lei nº 13.467, pois a precarização do trabalho nela é notoriamente inteligível. Assim, além da clara fragilização da remuneração, ainda altera a garantia de contrato pelo empregado, mesmo existindo características evidentes de uma relação de emprego. Mais uma vez, diminuem-se as condições de contribuir para a Previdência ou mesmo de prevenir- se para o “futuro”, buscando guardar economias, uma vez que a remuneração hoje, na maioria dos casos, é satisfatória apenas para o subsídio do empregado.

128 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 2.1.1 O desemprego e o revés na reinserção no mercado de trabalho

O trabalho é o meio pelo qual o indivíduo se insere na sociedade e a transforma, pois ele socializa o homem de maneira objetiva no lugar em que permanece, e devido a isso o emprego é importante, não apenas pelo subsídio. Em países onde a taxa de desemprego é alta, é comum a ocorrência de altas taxas de suicídio, sendo a associação absolutamente plausível, como é o caso do Chile, por exemplo, que registrou o maior número de suicídio de idosos do mundo, em decorrência da falta de benefício previdenciário e impossibilidade de sobrevivência (REDAÇÃO HYPENESS, 2018). Sendo assim, no contexto brasileiro, além de deixarem de contribuir para a Previdência estando desempregados, quanto mais velhos se tornam, menores são as chances de reinserção no mercado de trabalho, uma vez que as empresas priorizam pessoas mais jovens, principalmente impulsionadas pelas novas formas de contratação, com redução de salários e desvalorização da mão-de-obra qualificada e experiente. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2011) estimou que em 2011 7,3 milhões de trabalhadores brasileiros ficaram desempregados. Desses, 73% não tinham experiência e qualificação necessária para concorrer aos empregos existentes no país para serem reinseridos no mercado. Visto isso, é evidente a relação estrita entre emprego e cidadania, principalmente quando se analisa que o indivíduo que não conseguiu se reinserir no mercado de trabalho, em breve será considerado idoso e necessita de tratamento humanitário, conforme os ditames do Estatuto do Idoso, de forma que “deve ser efetivamente assegurado a todo idoso, o direito de associação e convívio, garantindo a participação no processo de produção, re-elaboração e fruição dos bens culturais, educacionais e sociais”. (BRAGA, 2005, p. 134). Tal fato não é verificado na prática, pois, à medida que o idoso não consegue trabalhar para garantir seu sustento, fica prejudicado pela Reforma da Previdência. Todas essas constatações são controversas entre si, dado que a Previdência por si só não consegue garantir o subsídio daqueles considerados idosos, todavia a Reforma Trabalhista e todo o cenário de desemprego dificultou a reinserção do idoso ao mercado de trabalho. Conclui-se, portanto, que o Estatuto do Idoso, bem

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 129 como os direitos trabalhistas não são mais tratados como prioridade no ordenamento jurídico.

3 DIREITO COMPARADO: UM VISÃO CHILENA E COMO ISSO SE COMUNICA COM AS TRANSFORMAÇÕES NO CENÁRIO DE SEGURIDADE SOCIAL BRASILEIRO

O Chile foi o primeiro país latino-americano a implementar reformas de cunho estrutural em moldes neoliberal, inclusive aplicando as reformas ao sistema previdenciário. A reforma chilena data do período ditatorial do país – governo Pinochet, de 1973 a 1990 – e “tais reformas se orientaram pela afirmação do caráter subsidiário do Estado e expansão dos mercados em várias áreas, com retração da indústria, fragilização da organização sindical e dos direitos dos trabalhadores” (OLIVEIRA; MACHADO; HEIN, 2019, p. 1). O Brasil passa por um momento socioeconômico similar no que concerne à recessão econômica, o que tem motivado o Estado a implementar reformas internas em seus sistemas e estruturas. Como elucidado anteriormente, duas reformas de destaque e que se interconectam, das quais: i) a Reforma Trabalhista de 2017, implementada pelo governo do ex-presidente Michel Temer e ii) a Reforma Previdenciária, em vias de implementação durante o governo do atual presidente, Jair Bolsonaro. A Reforma Previdenciária encontra a sua principal motivação nos déficits subsequentes que têm sofrido e que chegou ao montante de R$ 268,8 bilhões no ano de 2017, segundo informações do Instituto Nacional do Seguro Social (MORTARI, 2018). Destaca-se que a ideia de déficit previdenciário não é unânime entre os pesquisadores, sendo que muitos afirmam que à medida que o custeio da Seguridade Social abrange não só empresa e empregados, como contribuintes indiretos, não há o que se falar é escassez de recursos. E, neste contexto, não se pode deixar de notar que a reforma previdenciária brasileira atual, representada pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 6/2019, é amplamente influenciada pelo pensamento neoliberal predominante na reforma previdenciária chilena. Importante contextualizar ainda que tal manobra se encontra na contramão do que se almejava durante a reforma constitucional de 1988: [...] o Brasil, na redemocratização, adotou na Constituição Federal de 1988 uma concepção abrangente de Seguridade

130 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Social, que abarca as políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social. O modelo brasileiro de Previdência enfatiza os direitos sociais garantidos por um sistema público universal por intermédio de benefícios sociais contributivos e não contributivos 3. Além disso, se baseia no regime de repartição, em que trabalhadores ativos contribuem para um fundo que paga os benefícios dos inativos em cada período, configurando um pacto entre gerações. A inserção na Seguridade foi importante para a defesa de outras fontes de financiamento e expansão de benefícios não contributivos. Em que pesem as dificuldades, manteve-se o caráter público e solidário da Previdência diante de propostas de reformas nas décadas seguintes, orientadas para a contenção de gastos e reforço de mecanismos de capitalização, na lógica de seguro individual (OLIVEIRA; MACHADO; HEIN, 2019, p. 1). Apesar de tal anseio constitucional, o governo Bolsonaro propõe uma reforma previdenciária – encabeçada pelo Ministro da Economia – baseado na capitalização individual, em substituição ao modelo de repartição, adotado atualmente. A proposta de Guedes era da previdência individual, como no Chile, em que a pessoa deposita o valor que fica administrada por um fundo de previdência, para ir para um grande fundo ligado ou não ao governo. Com isso, os grandes bancos poderiam administrar o fundo por licitação. As diferenças centrais entre ambos sistemas baseiam-se no fato de que, enquanto o modelo de repartição prevê que trabalhadores ativos sustentem a aposentadoria de trabalhadores inativos, no modelo de capitalização cada cidadão contribui para sua própria aposentadoria. Neste sentido e, devido à proximidade da proposição com o sistema adotado no Chile, é interessante analisar o modelo chileno, observando suas vantagens e desvantagens, de modo a prevenir que o Brasil cometa os mesmos erros que o país pioneiro na adoção do sistema cometeu1. O governo chileno compreende a seguridade social como “el conjunto de medidas tomadas por el Estado y la sociedad para proteger a los trabajadores y a sus familias, aliviando su necesidad económica ante una contingencia o riesgo social” (CHILE, 2019). Apesar do governo chileno pontuar que as reformas no sistema previdenciário da década de 80 garantiriam um maior equilíbrio social e 1 De acordo com informações do economista chileno Andras Uthoff, 79% das pensões chilenas encontram-se abaixo do salário mínimo (US$ 420) e 44% encontram-se abaixo da linha de pobreza, o que permite compreender que “o sistema acabava empobrecendo toda a classe média quando se aposentava” (MORTARI, 2018).

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 131 harmonização econômica para a população, nem todos os planejamentos propostos e aplicados repercutiram nos resultados esperados. Dentre as vantagens trazidas pelo modelo estão a ausência de interferência estatal direta, diminuição dos gastos públicos com previdência e individualização da contribuição. Já como desvantagens, destaca-se que o modelo não abrange a todos, diminuindo a proteção social, que a variação de renda dos trabalhadores impede que a contribuição seja linear, e que um alto custo de administração é pago pelos contribuintes. É evidente que qualquer modelo previdenciário a ser adotado trará consigo aspectos positivos e negativos, todavia, o problema enfrentado pelo sistema adotado pelo governo chileno é o efeito reverso ao esperado: o modelo trouxe mais desigualdade social e menos proteção social aos cidadãos do país. Esse efeito ainda ricochetou em problemas a mais para o Estado, ao obrigar o governo chileno a atuar em 2013 e injetar dinheiro na previdência para complementar a aposentadoria daqueles cidadãos cuja aposentadoria encontrava-se abaixo de 100 mil pesos. Com efeito, observa-se que o modelo de capitalização a ser adotado pelo Brasil deve ter em mente tais possíveis efeitos negativos e remodelar o sistema de maneira a mitigar a possíveis desvantagens para que a reforma seja mais benéfica do que maléfica. Destaca-se que o modelo de capitalização foi retirado do texto da PEC 06/2019, porém não está fora na mesa de negociação. Nada impede que ela volte na forma de um projeto de lei autônomo, que era a ideia inicial do ministro Paulo Guedes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar o histórico da Seguridade Social no Brasil, foi possível concluir que o país passou por uma série de conquistas trabalhistas e previdenciárias que culminaram no nascimento da Constituição Federal de 1988 como a base de direitos fundamentais garantidores da proteção social do indivíduo como ser humano e como trabalhador. Ocorre que as novas Reformas que eclodem no país recentemente têm ido na contramão dos preceitos fundamentais garantidos constitucionalmente, em nome da crise econômica e da ideia neoliberal extremada que mascara a desregulamentação e a precarização em forma

132 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro de “flexibilização”, veiculada na mídia como um preço justo a ser pago em detrimento da melhora da economia. A Reforma Trabalhista, com o objetivo de garantir mais empregos tem, ao contrário, aumentado o número de trabalhadores informais e de desempregados (sem contar no número de acidentes de trabalho) os quais, ao perderem seus empregos garantidos há anos, concedem seu lugar a trabalhadores que se submetem às novas formas de contratação que mais caracterizam subempregos, podendo levar ao recebimento menor do que um salário mínimo. Com isso, não só os direitos trabalhistas, como a própria base da previdência é afetada, uma vez que diminuem o número de contribuintes, a quantia a ser contribuída diante dos salários baixos e, ainda, a proteção social dada aos trabalhadores quando da ocorrência de acidentes de trabalho. Neste sentido, em um contexto de busca por retirada de burocracia na contratação de demissão dos trabalhadores, insere-se a proposta de capitalização individual da previdência, ou seja, transição do seguro social para o seguro privado. Ao elaborar um projeto com este cunho, o governo está não só retirando a proteção social do trabalhador do Estado, como prejudicando toda a coletividade, uma vez que, no decorrer do tempo, quando todos os indivíduos que hoje não estão conseguindo se reinserir no mercado de trabalho, ou ainda que se inserem em subempregos, não conseguirem contribuir mensalmente em seu seguro privado, a obrigação de conceder uma vida digna aos idosos será de toda a população, pagando esta conta que hoje pode parecer garantir superávit, mas no futuro, quebrará ainda mais o país, a exemplo do que ocorreu no Chile. Portanto, é dever do jurista e do pesquisador de todas as áreas de humanidades informar-se sobre os reflexos destas reformas para o indivíduo, e ter consciência que no Estado Democrático de Direito estabelecido pela Constituição Federal de 1988. É dever de todos garantir uma vida digna para o cidadão, para a família e para o idosos, sendo assim, as consequências das decisões de hoje, virão para todos amanhã.

REFERÊNCIAS

BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Direitos do Idoso. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

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Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 137

O “PENTE-FINO” DO INSS E SEUS REFLEXOS NA SEGURIDADE SOCIAL BRASILEIRA: O IMPACTO NA SAÚDE FÍSICA E MENTAL DOS USUÁRIOS ATENDIDOS PELA UNIDADE AUXILIAR CENTRO JURÍDICO SOCIAL (UACJS)

Luiz Antonio Martins Cambuhy Júnior1*

Maria Clara Silva Laurenti2**

Talita Santos Lira3***

4Ana Carolina Gracio de Oliveira****

RESUMO: São consolidados na Lei n° 13.846 de 2019 o Programa Especial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade e o Programa de Revisão de Benefícios por Incapacidade, popularmente conhecidos como “pente-fino do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)”. Ambos foram esboçados no ano de 2016 com a proposição de medidas provisórias, sucessivos atos unilaterais do Presidente da República com força normativa. Desde então, a cessação de benefícios analisados e revisados causa instabilidade entre os segurados da Previdência Social brasileira, principalmente entre aqueles que possuem como única fonte de renda essas aposentadorias, pensões e auxílios previdenciários. Sob os princípios da Seguridade Social definidos na Constituição Federal de 1988 – garantidora de direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social – e a partir de análise de requerimentos judiciais e administrativos sob a assistência sociojurídica da Unidade Auxiliar Centro Jurídico Social evidencia-se, neste, artigo, as contradições normativas e fáticas da “Lei do Pente-Fino”, a qual, na tentativa falha de camuflar o desmonte do sistema previdenciário brasileiro, coloca em risco cidadãos em vulnerabilidade socioeconômica. Palavras-chave: seguridade social. reforma previdenciária. saúde. ABSTRACT: The Law n. 13.846 of 2019 reinforces the “Special Program to Analyse Benefits with Indication of Irregularities” and the “Program to Review Benefits for Incapacity”, commonly known as “Fine tooth-comb of the Brazilian Social Security Institute”. Both were sketched in the year of 2016 with the proposition of provisional measures, successive unilateral acts by the President of the Republic that possesses normative force. Ever since, the cessation of analysed and reviewed benefits has caused instability among the individuals covered by the brazilian Social Security * Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho”. Vinculado ao Projeto de Extensão Universitária: Cidades Saudáveis e Sustentáveis – Políticas Urbanas em Matéria de Meio Ambiente e Saúde. Currículo Lattes: http://lattes. cnpq.br/4799451816929651. ** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho”. Vinculada ao Projeto de Extensão Universitária: Laboratório do Direito: Informando para e Exercício da Cidadania. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7964795416534956. *** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho”. Pesquisadora financiada pela PROEX – Pró-Reitoria de Extensão Universitária e Cultura sob a orientação da Profa. Dra. Luciana Lopes Canavez. Vinculada ao Vinculada ao Projeto de Extensão Universitária: Laboratório do Direito: Informando para e Exercício da Cidadania. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8895570984198735. **** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho”. Pesquisadora financiada pela PROEX – Pró-Reitoria de Extensão Universitária e Cultura sob a orientação do Prof. Dr. Daniel Damásio Borges. Vinculada ao Projeto de Extensão Universitária: Cidades Saudáveis e Sustentáveis – Políticas Urbanas em Matéria de Meio Ambiente e Saúde. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7552808807907457.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 139 services, especially those who have Social Security retirements, pensions and sickness benefits as their only income source. From the Social Security principles defined by the Federal Constitution of 1988 – guarantor for health, social security and social assistance rights – and from the analyses of judicial and administrative requirements under the socio-legal assistance of the Social-Legal Center Auxiliary Unit becomes evident, in this article, the normative and factual contradictions around the “Fine-toothed Comb Law”, which, in the failed attempt to conceal the brazilian Social Security dismantling, puts at risk citizens in socioeconomic vulnerability. Keywords: social security. pension reform. health.

INTRODUÇÃO

No presente artigo abordaremos a Medida Provisória nº 871/2019, também conhecida como “pente-fino dos benefícios do INSS”, convertida na Lei nº 13.486/2019, sancionada pelo Presidente da República em 18 de junho de 2019. O principal objetivo é analisar as principais mudanças advindas com a promulgação da lei e os reflexos trazidos à vida e à saúde dos trabalhadores aposentados, especialmente àqueles atendidos pela Unidade Auxiliar Centro Jurídico Social (UACJS), da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca. Seu desenvolvimento é composto pela análise da referida lei, indicando quais os impactos trazidos para a seguridade social brasileira e sua relação com a vida e a saúde dos trabalhadores aposentados. Além disso, também abordaremos a relação da lei com o projeto de reforma da previdência que atualmente tramita no Senado Federal. Cumpre destacar que temas de extrema complexidade deveriam estar sendo tratados na pauta da Reforma da Previdência, porém, foram sancionados como lei através da medida provisória. Adota-se como metodologia, além de análise normativa e conjuntural, análise e leitura dos processo administrativos e judiciais de ações de restabelecimento de benefício previdenciário sob a assistência sociojurídica da UACJS. Para a produção deste artigo, devido ao grande número de processos, examina-se com maior atenção aqueles cujos requerentes vivem com HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana). Nenhum dado ou informação específica dessas pessoas é exposta aqui, apenas informações recorrentes em todos, ou na maioria absoluta dos processos. Portanto, analisaremos os impactos na vida e saúde dos aposentados, tanto do ponto de vista prático, quanto do ponto de vista legal da promulgação da Lei nº 13.486/2019. Por fim, também faremos levantamento de alguns casos com dados da Unidade Auxiliar Centro

140 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Jurídico Social, como também analisaremos a relação da lei com o projeto de reforma da previdência.

1 MEDIDA PROVISÓRIA Nº 871

A Medida Provisória nº 871, também conhecida como “pente fino dos benefícios do INSS”, foi convertida na Lei nº 13.486/2019, sancionada pelo Presidente da República em 18 de junho de 2019. A referida lei institui no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) alguns programas especiais para realizar a análise e revisão de diversos benefícios administrados pelo INSS. A previsão é que as análises durem até o final de 2020, podendo ser prorrogadas até o ano de 2022. De acordo com o art. 1º, I, da Lei nº 13.486/2019: Art. 1º Ficam instituídos, no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS): I – o Programa Especial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade (Programa Especial), com o objetivo de analisar processos que apresentem indícios de irregularidade e potencial risco de realização de gastos indevidos na concessão de benefícios administrados pelo INSS. Para o Programa Especial de Análise, será concedido aos servidores do INSS um pagamento adicional para aqueles que analisarem processos com indícios de irregularidades após seu horário de trabalho. Além disso, também ficou estabelecido pagamento adicional aos peritos médicos que realizarem perícias após seu horário de atendimento, ou seja, quando realizarem horas extras. O art. 8º da lei determina o rol de quais são os indícios de irregularidades a serem analisados pelo Programa Especial, sejam eles: I – potencial acúmulo indevido de benefícios indicado pelo Tribunal de Contas da União ou pela Controladoria-Geral da União; II – potencial pagamento indevido de benefícios previdenciários indicado pelo Tribunal de Contas da União e pela Controladoria-Geral da União; III – processos identificados na Força-Tarefa Previdenciária, composta pelo Ministério Público Federal, pela Polícia Federal e pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia; IV – suspeita de óbito do beneficiário;

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 141 V – benefício de prestação continuada, previsto na Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, com indícios de irregularidade identificados em auditorias do Tribunal de Contas da União e da Controladoria-Geral da União e em outras avaliações realizadas pela administração pública federal, permitidas, se necessário, a colaboração e a parceria da administração pública estadual e da administração pública municipal, por meio de procedimentos a serem definidos em cooperação com os Ministérios competentes; VI – processos identificados como irregulares pelo INSS, devidamente motivados; VII – benefícios pagos em valores superiores ao teto previdenciário adotado pelo Regime Geral de Previdência Social. O Programa de Revisão de Benefícios é destinado a revisar os benefícios que não passaram por perícia médica nos últimos 6 (seis) meses e que não possuem data de término previsto ou não possuem indicativo de reabilitação profissional para o segurado. Ademais, também serão revisionados os beneficiários de Prestação Continuada (BPC) que estiverem sem revisão por um período superior a 2 (dois) anos. Assim como no Programa Especial de Análise, os peritos do Programa de Revisão também receberão um bônus no valor de R$61,72 (sessenta e um reais e setenta e dois centavos) para cada perícia realizada extraordinariamente, ou seja, além do seu horário regular de trabalho. Nos casos em que for constatada a irregularidade do benefício, o trabalhador será notificado pelo INSS através de meio eletrônico ou pessoalmente nas agências. O beneficiário que resida em área urbana terá o período de 30 (trinta) dias para se manifestar e apresentar sua defesa; já o beneficiário que resida em área rural, o agricultor familiar e o segurado especial terão o período de 60 (sessenta) dias para se manifestar. Após a suspensão do benefício, haverá o período de 30 (trinta) dias para o beneficiário recorrer.

2 IMPACTOS NA SEGURIDADE SOCIAL BRASILEIRA

A Lei nº 13.486/2019, recentemente promulgada, traz diversas mudanças para a saúde e para a vida prática dos trabalhadores e aposentados que dependem dos benefícios administrados pelo INSS. Inicialmente, podemos destacar os bônus que os peritos irão adquirir quando realizarem perícias médicas extraordinárias. Pode-se

142 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro concluir que, em curto prazo, as perícias extraordinárias irão ser realizadas com maior frequência, já que serão de maior proveito econômico para os peritos, fato este que acarretará prejuízo da realização das perícias regulares, levando a uma maior demora na concessão e prorrogação dos benefícios. Podemos também destacar a maneira com que se dará a intimação do beneficiário que estiver sendo analisado, como explicado no tópico anterior, caso seja constatada a irregularidade do benefício, sendo o segurado avisado através de notificação eletrônica ou por meio das agências bancárias. O que ocorre, na verdade, é que o segurado encontra enormes dificuldades para acessar processos administrativos, seja através do chamado “MEU INSS”, disponibilizado digitalmente, seja por meio físico, o que acaba dificultando a apresentação de recurso dentro do prazo estipulado pela lei. Ademais, também cumpre ressaltar que parte da população não está incluída digitalmente, principalmente os segurados do INSS. Sendo assim, nos dois tópicos seguintes iremos analisar especificamente as mudanças ocorridas em relação a determinados benefícios e o impacto dessas mudanças na saúde dos trabalhadores e segurados.

2.1 Impacto legal

Uma das maiores inovações legislativas da Constituição Federal de 1988, fruto de seu tempo, foi a preocupação em estabelecer um amplo rol de direitos sociais e garantias para a universalização de serviços básicos ao cidadão, ainda na esteira do fim do Regime Militar e da necessidade de disciplinar um novo sistema jurídico, desta vez democrático e garantista. Dentro dessa realidade, o legislador dedicou um capítulo da Carta Magna somente para dispositivos que delimitavam o sistema de Seguridade Social, incluindo os seus três pilares: a saúde, assistência e previdência. Nestes termos, dispôs as diretrizes do sistema: Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: I – universalidade da cobertura e do atendimento;

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 143 II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV – irredutibilidade do valor dos benefícios; V – eqüidade na forma de participação no custeio; VI – diversidade da base de financiamento; VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados Com a aprovação da Lei nº 13.846/2019, a preocupação do legislador se inverte: em contexto de crise econômica, com o pretexto de desonerar o orçamento público, ocupa-se em realizar uma série de mudanças que atingem todo o sistema de Previdência, com o único objetivo de restringir benefícios vigentes. Dessa maneira, a lei como um todo nasce em afronta ao princípio de universalização da Seguridade Social – o primeiro previsto constitucionalmente, inclusive –, uma vez que formula mecanismos para diminuir a quantidade de benefícios atualmente financiados pelo governo. Nota-se ainda que não houve grande preocupação do legislador em adequar-se à legislação básica vigente, especialmente aquela que conceitua as espécies de benefícios concedidos pelo sistema de Seguridade Social, a exemplo da Lei nº 8.213/1991. Assim, a forma como se dispõe acerca do objetivo central da nova lei (a revisão de benefícios sem avaliação há pelo menos seis meses) já se faz contrária, por exemplo, à própria natureza do benefício da aposentadoria por invalidez, espécie de benefício por incapacidade que, por definição, não possui previsão de término (o aposentado por invalidez é aquele que foi considerado insusceptível de reabilitação, segundo o art. 42 da Lei nº 8.213/91), o que, entretanto, a enquadra no art. 1º, II, a, da nova lei e que tem levado muitos benefícios desta categoria a serem revistos, em desconformidade legal. A convocação destes segurados, que contavam com a garantia legal dessa aposentadoria para conseguirem sobreviver com a doença que deve acompanhá-los durante toda a vida, é grave retrocesso na busca por construir uma nação que garanta minimamente segurança jurídica aos seus cidadãos e os permita viver uma vida com dignidade, como determina a própria Constituição Federal.

144 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 2.2 Impacto prático na vida e saúde dos beneficiários

Nesse contexto (ou tentativa) de Estado neoliberal, o desmonte das políticas públicas e grandes alterações em legislações, como a reforma da Previdência Social, se tornam cada vez mais evidentes e sérias. O acesso aos benefícios previdenciários está cada vez mais restrito, tanto por via administrativa, quanto judicial. Conquistar e prorrogar um benefício se tornou exceção meio a tantos novos pedidos indeferidos e benefícios cessados. Torna-se indispensável, portanto, analisar o impacto prático na vida e saúde dos beneficiários causado por essas legislações. A Lei nº 8.213/91 (responsável por estatuir sobre os Planos de Benefícios da Previdência) dispõe já em seu artigo 1º que o cerne da existência da Previdência Social é o de garantidor e provedor de meios que possibilitem a vigência digna daqueles que não mais podem trabalhar: A Previdência Social, mediante contribuição, tem por fim assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente. Não há escusa, portanto, por parte do Estado, de garantir aos contribuintes da Previdência Social meio de sustento frente às situações alocadas. Cabe salientar que o dever por parte do Poder Público de garantir vida digna aos cidadãos é constitucional, não apenas infraconstitucional, como detalha o art. 196º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988): A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. A matéria relativa à revisão dos benefícios tem sido tratada desde 2016 apenas através de Medidas Provisórias, que, como cumpre salientar, é um ato unipessoal do Presidente da República, tendo força imediata de lei (ou seja, já gerando efeitos) sem antes mesmo de passar pelo crivo do Poder Legislativo e ser amplamente discutida, ferindo o próprio clamor e vontade da democracia. Em análise crítica, muito fácil reconhecer a fragilidade da democracia brasileira. Quando essa “caça” aos beneficiários

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 145 do INSS teve início, três anos atrás, o Chefe de Estado não havia sido eleito democraticamente para o cargo, representando interesses além de diversos da sua antecessora impeachmada e de fato eleita, , o que instaurou todo o sistema de “revisão” que hoje nos deparamos. Medidas provisórias, portanto, se demonstram inadequadas para tratar de assuntos de tamanha relevância.

2.2.1 Levantamento com dados da Unidade Auxiliar Centro Jurídico Social (UACJS) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca

Ao nos deparamos com casos práticos de demandas previdenciárias, já sob a sombra dessas legislações, nos surpreendemos com o que de fato ocorre. A maioria dos benefícios cessados ao serem revisados não apresentavam alterações no quadro de saúde dos favorecidos. As perícias, que ocorrem de forma extraordinária, se demonstram imparciais, favorecendo a autarquia e raramente relatando o real estado dos periciados. Como há de se esperar, os beneficiários com benefícios cessados são os mais vulneráveis no aspecto socioeconômico. Grande parte já possui mais de 40 anos, além de baixo grau de escolaridade, o que dificulta o reingresso ao mercado de trabalho, ainda mais reconhecendo o período que esses beneficiados permaneceram afastados. A maioria dos contribuintes já havia sido beneficiada com outro benefício que não a aposentadoria, como o auxílio-doença, que também não permite o trabalho laboral. Entre os usuários que tiveram seus benefícios encerrados e entram com ações de restabelecimento, a maioria dependia exclusivamente desse rendimento para sua sobrevivência e não só, mas de todo seu núcleo familiar, expondo-o a uma realidade de extrema vulnerabilidade. O princípio garantido na Carta Magna de 1988, em seu art. 1º, inciso III, que se refere à dignidade da pessoa humana, está comprometido a partir do momento em que esse núcleo familiar não tem mais condições de suprir suas necessidades mínimas. Ademais, em quase nenhum dos casos estudados o beneficiário possui imóvel próprio, colocando em risco de situação de rua não só um indivíduo, mas toda a sua família. Cumpre reiterar que os quadros de saúde que inicialmente ensejaram os pedidos pouco sofreram melhoras, quando não pioras. Não faltam laudos médicos, receitas de remédios, prontuários de atendimento e relatos de que a suposta melhoria não ocorreu de fato, só no imaginário do perito. A maioria das doenças são crônicas e progressivas, obrigando

146 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro os beneficiários a se submeterem a exaustivos tratamentos, que incluem medicações de alto custo, grande parte das vezes não providos pela rede pública. Em decorrência dessas doenças, grande parte do rendimento anteriormente recebido já era destinado às idas e vindas da farmácia, agora, sem nenhum tipo de renda, muitos tratamentos estão sendo abandonados, o que agrava o estado de saúde dos usuários, afastando-os ainda mais da possibilidade de retorno ao espaço laboral. Analisou-se para este artigo, especificamente, processos judiciais de restabelecimento de benefício previdenciário em que os autores são portadores de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida)1, tiveram benefícios revisados mesmo sem melhoras em seu quadro de saúde, após longo período de recebimento e de afastamento da atividade laboral. Em todos eles, apesar da juntada aos autos, há desconsideração do histórico médico do beneficiário, o qual comprova indubitavelmente as moléstias incapacitantes da AIDS e do HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana), mesmo sob tratamento por notável período de tempo. É comum a contração de doenças oportunistas, como pneumonia, levando a grandes períodos de internação e afastamento da atividade laboral, além de danos permanentes aos órgãos vitais e outros sintomas incômodos e incapacitantes como vertigens, dores generalizadas, atrofia nos ossos e face, perda de força nos membros, insônia, inconstância e redistribuição de massa corporal, devido à agressividade dos remédios antirretrovirais, os “coquetéis”. Assim, torna-se utópico o ingresso dessas pessoas no mercado de trabalho, principalmente àquelas portadoras de doenças crônicas, progressivas e sem cura, como a AIDS. A Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), na Súmula 78, pacífica a questão: “Comprovado que o requerente de benefício é portador do vírus HIV, cabe ao julgador verificar as condições pessoais, sociais, econômicas e culturais, de forma a analisar a incapacidade em sentido amplo, em face da elevada estigmatização social da doença”. Nesse sentido, a análise das condições socioeconômicas, culturais e pessoais do beneficiário importa tanto quanto a análise de

1 Compreendemos a problemática em torno da estigmatização social do HIV/AIDS e, principalmente, em torno das pessoas que vivem com a doença. Neste artigo, fazemos a diferenciação entre HIV e AIDS pois os laudos médicos periciais analisados utilizam a nomenclatura “AIDS” ou “SIDA”, visto que os pacientes em questão estavam com a contagem de células CD4 abaixo de 200. Abaixo desse patamar, é imprescindível a correção da deficiência imunológica com coquetéis de medicamentos, os quais causam os sintomas descritos nos laudos médicos analisados e neste artigo.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 147 sintomas e condições físicas. Afirmando, ainda mais, a incapacidade laborativa do beneficiário portador de HIV/AIDS. Os requerentes dos restabelecimentos beneficiários analisados mostraram significativa estabilização em seu quadro de saúde coma possibilidade de dedicação integral ao tratamento médico necessário, sendo esta facilitada, ou garantida por completo, pelo recebimento dos benefícios previdenciários em questão, visto que é imprescindível uma rotina severamente disciplinada em relação aos medicamentos e alimentação, por exemplo. A narrativa não diz respeito apenas àqueles beneficiários portadores da AIDS, mas a todos àqueles portadores de doenças incapacitantes e que dependem integralmente dos auxílios e das aposentadorias da Previdência Social para sua subsistência e de sua família, ou seja, grande parte daqueles beneficiados pelo regime da Previdência Social brasileira. Dito isso, importa ressaltar que os indeferimentos de benefícios e de restabelecimento de benefícios previdenciários não só agravam o quadro físico, mas também prejudicam, significativamente, o quadro psicológico desses beneficiários. Muitos deles ultrapassam a angústia usual e decorrente das moléstias que lhe acometiam anteriormente para sofrimento mental incapacitante. É expressivo o aumento do diagnóstico de transtornos mentais relacionados ao humor e ao estresse – como transtorno depressivo, de ansiedade e do pânico – desenvolvidos, ou agravados, pela espera da possível não subsistência nos meses em que aguarda o deferimento, ou não, de benefício já deferido anteriormente e, por vezes, vitalício, como é o caso da aposentadoria por invalidez.

3 RELAÇÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA COM A REFORMA DA PREVIDÊNCIA

A manutenção do sistema público de Previdência Social brasileiro, historicamente, é uma das áreas que mais exigem investimentos orçamentários da União. Essa necessidade de investimentos cresceu à medida em que a Constituição Federal ampliou este sistema e em que o país caminha para a superação do bônus e o fechamento da chamada janela demográfica. Dessa forma, com o declínio dos Estados de Bem-Estar Social e a ascensão do neoliberalismo a partir da década de 90, mundialmente inúmeros

148 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro governos têm se empenhado em desenvolver políticas de austeridade que, quase como regra, têm atingido os sistemas previdenciários públicos, cujas realidades muito se assemelham à brasileira. O Brasil é prova desta tendência: de 1994 para cá, todos que ocuparam a Presidência da República aprovaram reformas que restringiram o alcance da Previdência Social, umas em maior, outras em menor grau. Por outro lado, a profunda desigualdade social, somada às ainda precárias condições de trabalho no país, motiva o fato da população brasileira ter o seu direito à aposentadoria como uma de suas pautas prioritárias, o que sempre colocou os governos em situações delicadas no momento da propositura de reformas, todas marcadas por protestos e descontentamento popular, seja somente de setores organizados ou da própria sociedade como um todo. Para driblar essas dificuldades, os governos sempre se valeram de um minucioso tato com o discurso a ser utilizado, sempre valorizando primordialmente quatro aspectos: a necessidade demográfica, o excesso de gastos, o combate a privilégios e o combate às fraudes. Foi valendo- se especialmente deste último aspecto que o Governo Jair Bolsonaro se ancorou para a elaboração da MP 871, posteriormente convertida na Lei nº 13.846/19, uma espécie de aprofundamento da política de “pente-fino do INSS” do Governo Temer e “antessala” da PEC 06/2019 (a PEC da Reforma da Previdência). Assim, já preparando o discurso para aprovação da Reforma da Previdência, o Estado investe inicialmente em uma medida que não altera as regras de concessão dos benefícios, mas determina novas regras para a realização de perícias e revisão destes, o que na prática ensejou inúmeros indeferimentos de pedidos já há muito vigentes, ora com base legal suficiente, ora sem, como pode ser comprovado pela análise de casos do Centro Jurídico Social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contexto de crise econômica e a mudança de rumos nas perspectivas do Estado Brasileiro têm representado grandes desafios para o nosso sistema de Seguridade Social. Se este parecia consolidado sob a égide da Constituição Federal de 1988, mudanças legislativas recentes, como a política de pente-fino no INSS e a Reforma da Previdência, têm ignorado muitos princípios constitucionais e até mesmo conceituações

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 149 legais para diminuir o acesso dos nossos cidadãos a este sistema, ainda que muitas vezes até mesmo por dispositivos que carecem de democracia, como as medidas provisórias. Com o pretexto de combater fraudes e desonerar a União em tempos de restrições orçamentárias, observa-se que tais políticas não têm atingido verdadeiramente nenhum dos dois objetivos. Para um número reduzido de fraudes reais combatidas, centenas de segurados têm visto os seus benefícios serem indeferidos mesmo sem qualquer alteração em seu quadro de saúde, como nos apresenta a análise de casos realizada. Sem esses benefícios, muitos tornam-se incapazes de continuar seus tratamentos e até mesmo de despender gastos essenciais para a sua sobrevivência. Retornam para a gigante estatística de desemprego e acabam inclusive contribuindo para o quadro de agonia econômica da nação. As revisões, que surpreendem muitos brasileiros, ignoram benefícios concedidos para doentes sem nenhuma possibilidade de recuperação e até mesmo as previsões legais da própria lei, como é o caso dos portadores do vírus HIV que são convocados para realizar as perícias. Ao mesmo tempo, ao impor uma espécie de gratificação pelas perícias realizadas – inclusive fora do período de trabalho destes profissionais –, a legislação adota uma visão individualista do mundo de trabalho, onde, por meio desta valorização pecuniária, incentiva trabalhadores a superarem seus próprios direitos a uma jornada de trabalho digna para que possam se incorporar às expectativas do governo. Em meio a este contexto, é notável a importância de mecanismos legais como os de controle de constitucionalidade, para que se possa minimamente garantir a efetivação dos princípios constitucionais que baseiam toda a nossa ordem legal e principalmente o nosso sistema de Seguridade e Previdência Social. Além disso, deve-se sempre saudar a resiliência dos segurados brasileiros, que, mesmo em uma fase de suas vidas em que deveriam gozar a da proteção especial a que têm direito, encontram forças para se defender das arbitrariedades periciais e das políticas de austeridade em institutos que acabam sendo verdadeiros polos de resistência, como são os escritórios de assistência jurídica a exemplo do Centro Jurídico Social da FCHS – UNESP.

150 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro REFERÊNCIAS

BADARI, João. As Principais Alterações trazidas pela MP 871 nos benefícios previdenciários. JusBrasil, [s. l.], jan. 2019. Disponível em: https://joaobadari.jusbrasil.com.br/artigos/665177684/as-principais- alteracoes-trazidas-pela-mp-871-nos-beneficios-previdenciarios. Acesso em: 01 set. 2019. BRASIL. [Constituição (1988)] Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 10 set. 2019. BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 25 jul. 1991. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 10 set. 2019. BRASIL. Lei nº 13.846, de 18 de junho de 2019. Institui o Programa Especial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade [...]. Brasília: Presidência da República, 19 jun. 2019. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13846.htm. Acesso em: 10 set. 2019. BRASIL. Medida Provisória nº 871, de 18 de janeiro de 2019. Institui o Programa Especial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade [...].Brasília: Presidência da República, 19 jan. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2019/Mpv/mpv871.htm. Acesso em: 10 set. 2019. BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Súmula 78. Órgão Julgador: Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU). Julgamento em: 11 set. 2014. Disponível em: https://www.cjf.jus. br/phpdoc/virtus/sumula.php?nsul=78. Acesso em: 04 set. 2019. FERREIRA, Afonso. Pente-fino do INSS começa hoje e pode cancelar benefícios; veja como evitar. UOL Economia, [s. l.], jul. 2019. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/07/12/ inss-comeca-pente-fino-beneficios.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 10 set. 2019.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 151 LOURENÇO, Edvânia Ângela de Souza; LACAZ, Francisco Antonio de Castro; GOULART, Patrícia Martins. Crise do capital e o desmonte da Previdência Social no Brasil. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 130, p. 467-486, set./dez. 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/ pdf/sssoc/n130/0101-6628-sssoc-130-0467.pdf. Acesso em: 02 set. 2019. PEREIRA, Aliny Cristini; BRADBURY, Fernanda; ROSSETTI, Estefani Serafim; HORTENSE, Priscilla. Avaliação da dor e fatores associados em pessoas que vivem com HIV/AIDS. Rev. Latino-Americana de Enfermagem, vol. 27, Ribeirão Preto, jul. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 11692019000100341&lang=pt. Acesso em: 10 set. 2019. REDAÇÃO BANCÁRIOS DF. Os impactos da MP do ‘pente- fino’ do INSS na saúde do trabalhador. Bancários DF, [s. l.], jun. 2019. Disponível em: https://bancariosdf.com.br/portal/artigo-os- impactos-da-mp-do-pente-fino-do-inss-na-saude-do-trabalhador/. Acesso em: 03 set. 2019. REDAÇÃO REDE JORNAL CONTÁBIL. MP 871/2019: O Pente-fino do INSS está de volta, veja o que vai mudar. Rede Jornal Contábil, [s. l.], jun. 2019. Disponível em: https://www.jornalcontabil.com.br/ mp-871-2019-o-pente-fino-do-inss-esta-de-volta-veja-o-que-vai-mudar/. Acesso em: 03 set. 2019.

152 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL E O CONSENSO DE WASHINGTON: UM OLHAR CRÍTICO PRELIMINAR

Moisés Coelho Castro*

RESUMO: Este artigo apresenta um olhar crítico preliminar sobre o discurso desenvolvido pelo governo para justificar a reforma da previdência em andamento no Brasil. Com o fim de desmistificar a narrativa acerca da necessidade de uma reforma, esse trabalho analisa o argumento TINA – There Is No Alternative, como referência para a construção do discurso em defesa da reforma, bem como, apresenta o tema do Consenso de Washington como a principal justificativa da necessidade de reformas estruturais na Previdência brasileira para atender às exigências e ideais do neoliberalismo econômico. Ao que tudo indica, o discurso em favor da referida reforma previdenciária parece fazer parte de um propósito bem delineado por estruturas de poder econômico e financeiro, no contexto do capitalismo e liberalismo econômico, com o fim de produzir um desmonte dos sistemas de proteção social em países como o Brasil, por exemplo. Palavras-chave: reforma da previdência. Consenso de Washington. estado mínimo. ABSTRACT: This article presents a preliminary critical at the speech developed by the government to justify the pension reform in Brazil. In order to demystify the narrative about the need for reform, this paper analyzes the argument TINA – There Is No Alternative, as a reference for the construction of the discourse in defense of the reform, as well as presents the theme of the Washington Consensus as the main justification of the need for structural reforms in the Brazilian Social Security to meet the demands and ideals of economic neoliberalism. The speech in favor of the said social security reform seems to be part of a purpose well delineated by economic and financial power structures, in the context of capitalism and economic liberalism, in order to produce a dismantling of social protection systems in countries, such as Brazil. Keywords: pension reform. Washington Consensus. minimal state.

INTRODUÇÃO

Hannah Arendt, em sua contundente obra “As origens do totalitarismo”, evidencia que o ato de compreender é muito mais explicar a realidade, pois se apresenta como um mecanismo propulsor de resistência e transformação: A convicção de que tudo o que acontece no mundo deve ser compreensível, pode levar-nos a interpretar a história por meio de lugares-comuns. Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. * Mestre em Direito pela Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, Unesp (Franca/ SP); Docente do Curso de Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais, Unidade de Passos (Passos/MG). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2671125659713265.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 153 Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso século colocou sobre nós – sem negar sua existência, sem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja. (ARENDT, 1975, p. 10). Tentando ouvir e aceitar a provocação de Arendt, este artigo procura encarar a realidade brasileira no contexto de uma crise econômica abrangente, que tem provocado mudanças substanciais no modelo de Estado, afetando as relações de trabalho e o sistema de proteção social. No ano de 1988, com a promulgação da Constituição Federal, o Brasil adotou um modelo de proteção social amplo e abrangente, visando à construção de uma ordem social fundamentada na dignidade humana e em prol do bem-estar e da justiça social. Para atender à nova ordem constitucional, o Brasil promulgou uma série de leis, sistematizando a rede de proteção social no âmbito da seguridade social em toda a sua amplitude. Destacam-se, entre outras: Lei nº 8.080, de 1990 – conhecida como Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde; Lei nº 8.212, de 1991 – Lei Orgânica da Assistência Social; Lei nº 8.213, de 1991 – Planos de Benefícios da Previdência Social; e Decreto nº 3.048, de 1999 – Regulamento da Previdência Social. Há mais de trinta anos, o modelo de proteção social, instituído pela Carta Magna, embora passando por mudanças específicas, relevantes ou não, e longe de ser um projeto concluso, tem sido reafirmado pelos governos democráticos pós-constituição, que mantiveram o núcleo básico de proteção nas três áreas de atuação da seguridade social – saúde, previdência e assistência social –, contemplando o ideal da nova ordem social, na tentativa de aproximar o Brasil dos seus objetivos em construir uma sociedade livre, justa, igualitária e solidária. Não obstante, o modelo de ampla proteção social, que persistiu em todos os governos democráticos parece ter chegado ao fim com as mudanças estruturais e sistemáticas pelas quais vem passando o Estado brasileiro, especialmente, nas relações de trabalho e, principalmente, com a grande possibilidade de uma contundente reforma da previdência, proposta pelo atual governo do Presidente Bolsonaro, que acontece em um contexto de crise dos sistemas de seguridade social no mundo. Ao final da primeira década do século XXI, considerando a Europa e a América Latina, os países passaram a enfrentar as incertezas e imprevisibilidades decorrentes de mais uma crise do sistema capitalista

154 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro financeiro globalizado, desestabilizando economias, até então, sólidas, seguras e estáveis, colocando em xeque os sistemas de proteção social construídos em muitos lugares sob a influência dos modelos dewelfare states. As pesquisadoras Júlia Lenzi Silva e Juliana Presotto Pereira Netto (2013, p. 51-52), em um artigo da época, chamaram a atenção para os efeitos dessa crise mundial, entre os quais: desestruturação dos sistemas produtivos, desindustrialização dos países europeus, aumento dos índices de desemprego, precariedade do mercado de trabalho, desigualdade social, empobrecimento da população, e, sobretudo, o que as autoras chamam de “desmonte dos sistemas de proteção social”. No enfrentamento da crise, governos e estados passaram a justificar esse “desmonte” construindo uma narrativa em favor da diminuição dos gastos públicos diante da escassez de recursos para a manutenção da rede de benefícios e serviços sociais às suas populações. Como parte dessa narrativa, os governos de países como o Brasil, por exemplo, buscaram construir argumentos para legitimar socialmente a necessidade de reformas nos sistemas de seguridade social, na tentativa de minimizar o Estado protecionista, distanciando-o, cada vez mais, do modelo de welfare state. No ano de 2016, o Brasil passou a discutir, com mais veemência, o tema da reforma previdenciária no governo de Michel Temer, alçado à Presidência da República com o impeachment da Presidente Dilma Rouseff, que resultou na perda de seu mandato, fato que representou uma ruptura no poder, interrompendo um ciclo de mais de 12 anos de governo do Partido dos Trabalhadores, sabidamente um governo que sempre postulou um discurso de proteção social. O novo governo inaugurou uma era de 20 anos de congelamento dos gastos públicos, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que, dramaticamente, nada contribuiu para combater a crise econômica brasileira, mas produziu efeitos negativos na proteção aos direitos sociais no país, principalmente, porque o referido congelamento dos gastos públicos se tornou o start para a construção de diversos argumentos falaciosos que passaram a fazer parte de um discurso de poder, desenvolvido para justificar a necessidade de uma série de reformas políticas com o fim de diminuir o tamanho do Estado e propalar o desmonte do sistema de proteção social no Brasil. Como parte dessas falácias, destacam-se: a necessidade de uma reforma trabalhista para promover a desregulamentação e a flexibilização das relações de trabalho com o fim de diminuir o desemprego e criar novos postos de trabalho; congelamento

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 155 dos gastos públicos para conter a crise econômica; reforma do sistema de seguridade social para diminuir o suposto déficit da previdência e garantir a sua sustentabilidade etc. Restaram evidentes, ao final do então governo Temer e no atual governo Bolsonaro, estas falácias, haja vista que as medidas postuladas e concretizadas nem diminuíram a taxa de desemprego, nem, tampouco, amenizaram a crise econômica. Ao contrário, agravaram a situação de desemprego, diminuíram a renda do trabalhador em razão da flexibilização das relações de trabalho e da desregulamentação, e, principalmente, com o aumento da terceirização, agravando o empobrecimento da população. Resta saber se a reforma da previdência, conduzida pelo novo governo, que, ao que tudo indica, conseguirá levá-la à concretização, irá produzir, de fato, a diminuição do déficit da previdência e acelerar o crescimento da economia para o melhor bem-estar da população brasileira. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), hoje vinculado ao Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, ainda no governo Temer, em 2018, fez duras críticas ao congelamento dos gastos públicos, evidenciando que: “[...] em vez de melhorar o déficit público, o congelamento tem aprofundado desigualdades socioeconômicas na sociedade, com impactos desproporcionais para pessoas em situação de vulnerabilidade” (CAVALCANTI, 2018). O CNDH, ainda, produziu, durante a sua 40ª Reunião Ordinária, em 13 de setembro de 2018, a Agenda de Direitos Humanos para Presidenciáveis, com o objetivo de cobrar posicionamentos dos, então, candidatos à Presidência da República nas últimas eleições, acerca dos seus compromissos com os direitos humanos, inclusive, solicitando aos candidatos – a quem fosse eleito naquele ano, que se comprometesse a revogar a referida emenda constitucional. Para o CNDH: A EC-95 contraria os objetivos centrais da Constituição de 1988 e de diversos tratados internacionais, em destaque, a Agenda Global 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Neste contexto, a aprovação das reformas trabalhistas, a terceirização e a anunciada reforma da previdência, também como agenda prioritária do atual governo, representam ameaça contundente aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais. (CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS, [s. d.]). Indubitavelmente, o cenário brasileiro, no contexto de crise mundial, impõe a necessidade de um olhar mais crítico para esse discurso

156 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro ou narrativa em favor de mudanças substanciais e estruturais no sistema de proteção social no Brasil, que, em verdade visam à diminuição do Estado. Propõe-se, neste artigo, um olhar crítico sobre a o discurso construído em favor da reforma da previdência no Brasil com o fim de desmistificar mais uma falácia do poder, uma vez que a narrativa acerca da necessidade de uma reforma, neste momento, não oferece claras justificativas acerca do real déficit do sistema previdenciário brasileiro, nem, tampouco, se esse sistema, a manter o espectro de proteção social com a garantia de direitos em favor de um mínimo existencial e do bem estar da população, de fato, levará a previdência à “bancarrota”. Ao que tudo indica, o discurso em favor da referida reforma previdenciária parece fazer parte de um propósito bem delineado por estruturas de poder econômico e financeiro, no contexto do capitalismo e liberalismo econômico, com o fim de produzir um desmonte dos sistemas de proteção social em países como o Brasil, por exemplo, que ainda vem mantendo características bem fortes do modelo de Estado protetor, mais próximo aos modelos de welfare states. Para alcançar esse intento, parte-se de uma análise preliminar da doutrina There Is No Alternative (TINA), que parece ser a base argumentativa dos governos recentes no Brasil (Temer e Bolsonaro) para a construção da narrativa em favor de uma política de reformas na direção de um Estado mínimo. Em seguida, procura-se inserir na discussão o tema do Consenso de Washington (CW), que parece ser a verdadeira justificativa plausível para se entender o discurso em favor das reformas que visam a diminuir o estado brasileiro no contexto do capitalismo e liberalismo econômico. Trata-se de um olhar crítico sobre o tema da reforma da previdência social no Brasil à luz de uma pesquisa bibliográfica preliminar, seguindo os delineamentos do método dialético aplicado à pesquisa jurídica, que busca uma compreensão da realidade a partir das suas contradições, in casu, presentes nos discursos e narrativas que tentam trazer validade à necessidade de mudanças no sistema de proteção social. Em um movimento dialético, contradições precisam ser consideradas em busca da verdade, especialmente porque os argumentos construídos nesses discursos e narrativas, indubitavelmente, escondem, falaciosamente, as reais justificativas e intensões da defesa da reforma da previdência no cenário político e econômico brasileiro.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 157 1 O ARGUMENTO TINA EM DEFESA DAS REFORMAS NO ESTADO BRASILEIRO

Fruto da chamada doutrina There Is No Alternative (TINA) (ARRUDA, 2007), que literalmente significa “não há alternativa”, desponta-se a ideia de uma “[...] suposta supremacia inconteste do modelo capitalista neoliberal como forma de organização econômica-estatal” (SILVA; NETTO, 2013, p. 52), que entre outros desdobramentos, conduz ao argumento de que essa forma de organização é obrigatória a todos os países que desejam o desenvolvimento econômico. O argumento TINA, como é conhecido, é fruto do thatcherismo na Inglaterra da década de 1970. O slogan é associado a Margaret Thatcher, quando primeira-ministra do Reino Unido (1979-1990), que afirmou não haver alternativas ao modelo de desenvolvimento que propôs para a Inglaterra em seu mandato. O argumento, reconhecidamente falacioso pela crítica, foi ampliado e passou a ser utilizado para consubstanciar a ideia de que não há alternativas às leis do mercado, ao capitalismo e ao neoliberalismo econômico. Não obstante, a força que esse argumento alcançou nos países do mundo parece ser confrontada diante das incertezas e inseguranças inerentes ao mundo capitalista. De fato, não é possível dizer que o capitalismo se apresenta como a última alternativa ao desenvolvimento de todos os povos, porque parece que os males sociais, ao contrário do que se possa imaginar, têm sido agravados nos estados que abraçaram esse modelo de produção. Guardadas as devidas proporções, o contexto brasileiro e o discurso em favor das reformas e políticas que visam a diminuir o tamanho do Estado parecem semelhantes, em muito, ao contexto britânico no thatcherismo. Em uma luta ferrenha contra o sindicalismo britânico, Margaret Thatcher, defendeu um discurso contrário à garantia de direitos sociais à população inglesa no pós-guerra, uma vez que o Estado protetor seria o principal obstáculo à implantação da chamada “modernização” do Estado, ou seja, à implementação do neoliberalismo. Assim, os conservadores, que voltaram ao poder na Inglaterra, iniciaram um projeto de enfraquecimento das políticas públicas e de proteção social, instituídas pelos governos trabalhistas anteriores de Harold Wilson e James Callaghan (1974-79), em uma tentativa clara de diminuição do poder dos sindicatos. De acordo com Pedro Fasoni Arruda,

158 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Buscava-se estabelecer um novo consenso no seio da burguesia, no sentido de que apenas com uma forte determinação política e intransigência quanto aos princípios ideológicos seria possível encerrar o ciclo dos reformistas no poder e estabelecer as bases para a retomada do desenvolvimento econômico e social. Thatcher e os novos conservadores elaboraram uma retórica nacionalista que, servindo de plataforma eleitoral, deveria garantir também a coesão de um novo bloco no poder: “Vamos devolver o ‘Grande’ à Grã-Bretanha”, costumavam repetir. [...] a retórica thatcherista buscou polarizar radicalmente as discussões entre a esquerda e a direita, ao afirmar não haver alternativas viáveis ao seu projeto de reforma do Estado. Daí surgiria outro slogan de forte repercussão: “TINA” (there is no alternative). (ARRUDA, 2007, p. 144) A partir da influência e da força de Thatcher, a “Dama de Ferro”, desenvolveu-se um discurso ou uma narrativa em favor das reformas do Estado inglês, evidenciando que quem se posicionasse contra esse projeto seria condicionado como inimigo do desenvolvimento, com um forte discurso de polarização. Não havia meio-termo, apenas direita e esquerda. Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não é mera coincidência. Assim, o thatcherismo construiu um discurso agressivo contra a chamada cultura da dependência e em favor do Estado mínimo para conduzir a Inglaterra à recuperação econômica e ao desenvolvimento em uma luta ferrenha em defesa da moral e contra a corrupção e a ineficiência das instituições, comandadas pelos governos trabalhistas anteriores. Valendo-se do argumento TINA, o novo governo inglês passou a empurrar “goela abaixo” um novo modelo de Estado como única alternativa, supostamente, viável à economia e ao desenvolvimento. Recentemente, o Ministro da Economia Paulo Guedes, do novo governo Bolsonaro, utilizou esse tipo de argumento ao defender a ideia de que a reforma do sistema previdenciário no Brasil seria uma espécie de ultima ratio, a última solução, ou seja, a última alternativa viável para que ocorra uma mudança radical em direção à aceleração da economia e ao desenvolvimento econômico em terras tupiniquins. Considerado um ministro com “superpoderes” no governo Bolsonaro, com status de “superministro” e com “carta branca” para conduzir o Brasil ao desenvolvimento econômico, e, para muitos, a última esperança da economia brasileira, Paulo Guedes utilizou a narrativa de que se não houver uma reforma consistente do sistema previdenciário brasileiro

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 159 renunciaria ao cargo de Ministro da Economia, exatamente, porque não há outras alternativas – ou se faz a reforma ou o país quebra. Em entrevista exclusiva para a Revista Veja, o ministro deixou muito claro: Se não fizermos a reforma, o Brasil pega fogo. A velha Previdência quebrou. Não vamos ter nem dinheiro para pagar os funcionários. Vai ser o caos no setor público, tanto no governo federal como nos estados e municípios. A Previdência é hoje um buraco negro, que engole tudo ao redor. O déficit tem crescido cerca de 40 bilhões de reais por ano. A reforma é urgente, porque os mercados não vão esperar muito mais. Eles fogem antes. A engolfada pode vir em um ano, um ano e meio. (BRONZATTO, 2019). Diante da visão apocalíptica do “superministro”, o discurso agressivo ganha ares de pressão “ou vai ou racha”. Paulo Guedes anuncia que, se não houver uma reforma satisfatória, se aprovar apenas uma “reforminha”, abandona o cargo: “Pego um avião e vou morar lá fora. Já tenho idade para me aposentar [sic]” (BRONZATTO, 2019). Para o ministro, uma reforma da Previdência que não economize no mínimo 800 bilhões de reais é uma “reforminha”. Fica evidente que o modelo de argumento utilizado pelo Ministro da Economia é do tipo TINA, ou seja, não há alternativa para a economia no Brasil, senão a reforma da previdência. Distantes no tempo e nas dimensões conjunturais entre os países, as reformas propostas por Margaret Thatcher na Inglaterra e as de Paulo Guedes no Brasil guardam semelhanças. Assim como na “Rainha dos Mares”, o “País do Samba” enfrenta um período de possíveis grandes mudanças estruturais na sua organização como Estado. O novo governo, capitaneado pelo Ministro da Economia, com a proposta de reforma da previdência, inaugurou uma série de medidas que, supostamente, visam a tirar o país do atoleiro. Após um esforço exclusivo em defesa da Reforma da Previdência, já aprovada em dois turnos pela Câmara dos Deputados e ainda em tramitação no Senado Federal, mas em vias de aprovação, Paulo Guedes promete, ainda, diversas medidas que supostamente podem alavancar a economia e dobrar o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, uma espécie de “Plano Guedes” (BRONZATTO, 2019). Por trás desse discurso intenso em favor das reformas, que, supostamente, representam a última alternativa – argumento TINA –,

160 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro há, também, um viés bem dobrado e escondido: a diminuição do Estado, o retrocesso social na proteção a direitos, o desmonte do sistema de seguridade social e, imprescindivelmente, um voo alucinado e sem volta em direção ao neoliberalismo. Além da reforma da previdência, da liberação dos saques do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), destacam-se: a disponibilização de bilhões de reais dos depósitos compulsórios, que os bancos são obrigados a reservar; a diminuição da taxa básica de juros, a SELIC; entre outras medidas que foram prometidas por Paulo Guedes para alavancar a economia brasileira. O grande problema é que, mesmo com tais medidas em andamento e uma expectativa do governo extremamente positiva de sucesso em relação à reforma da previdência, ainda, não é possível ver efeitos práticos. O povo continua empobrecendo, enfrentando o desemprego, a subutilização e, pior, o desalento no mundo do trabalho. Com efeito, o que se vê, em verdade é uma semelhança nos discursos do Novo Governo brasileiro com o discurso de Thatcher, na Inglaterra. Em referência à narrativa da “Dama de Ferro”, Pedro Fassoni Arruda esclarece: Seus discursos em favor de temas como recuperação da competitividade, da meritocracia e do fortalecimento da individualidade, contra o poder excessivo das organizações, além da defesa moral da família e seu combate aos privilégios e à “ditadura dos sindicatos”, estavam intimamente relacionados com uma visão de mundo sectária que defendia um individualismo proprietário radical, antiestatista, anticoletivista e contra qualquer tipo de controle sobre a propriedade privada. (ARRUDA, 2007, p. 144). Ao que tudo indica, os argumentos e discursos do novo governo aproximam-se do tipo TINA, quando apresentam as reformas como grande necessidade e única alternativa, embora não ofereçam uma clara visão dos possíveis resultados satisfatórios.

2 O CONSENSO DE WASHINGTON: UMA CRÍTICA PRELIMINAR

Se toda a narrativa, discursos e argumentos do novo governo giram em torno das reformas para a diminuição do Estado brasileiro como a única alternativa para o crescimento econômico, torna-se extremamente necessária uma análise crítica de outras possíveis justificativas para as

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 161 referidas reformas que não seja, especificamente, a situação econômica caótica porque passa o Brasil em um contexto de crise mundial. Entre essas outras possíveis justificativas para o discurso em prol da diminuição do Estado, encontra-se o denominado Consenso de Washington (CW), nome dado a uma importante reunião que ocorreu em novembro de 1989, na cidade de Washington, com a presença de representantes do governo dos Estados Unidos (EUA), do Banco Mundial (BM), do Fundo Monetário Internacional (FMI), e, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Durante a década de 1980, órgãos mundiais propulsores e defensores do neoliberalismo perceberam que o Estado se tornou um empecilho para o desenvolvimento econômico de muitas nações, especialmente, em um contexto de ascensão e reestruturação capitalista neoliberal. Diante dessa percepção, tais órgãos reconheceram a necessidade de uma ação que pudesse tratar desse obstáculo à disseminação da visão neoliberal a muitas nações, especialmente, na América Latina, que ainda mantinham uma estrutura de Estado protetor, do tipo welfare state. Convocada pelo Institute for International Economics, sob o título Latin American Adjustment: How Much Has Happened? (literalmente: “Ajuste da América Latina: quanto aconteceu?”), essa reunião produziu uma série de conclusões, que edificaram uma espécie de agenda, que passou a ser denominada Consenso de Washington. Como propósito principal da reunião, despontou-se a necessidade de avaliar as reformas empreendidas pelos países latino-americanos e o crescimento econômico destes países com o objetivo de evidenciar outra necessidade – a diminuição do Estado, ou seja, conduzir, especialmente, os países da América Latina aos ideais do Estado mínimo (BATISTA, 1994). O CW estabeleceu a ideia de que os países que desejassem o apoio do FMI, do BMI, do BID e dos EUA, deveriam se submeter à agenda criada, adotando diversas medidas, importantes para a diminuição do Estado e para o desenvolvimento da economia, sob a ótica neoliberal. O diplomata brasileiro Paulo Nogueira Batista (1994), em sua análise crítica sobre o CW, demonstrou claramente a intenção dos EUA de associar a cooperação financeira externa do FMI, BM e BID à adesão dos países às medidas estabelecidas na agenda do Consenso. Entre essas medidas a serem observadas pelos países latino-americanos, destacam-se, principalmente: a redução dos gastos públicos; a abertura comercial; a liberação e desregulação da

162 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro economia; a reforma tributária; a privatização das empresas estatais; a desregulamentação: flexibilização das leis econômicas e trabalhistas; e a diminuição do Estado protetor. A propaganda e a oferta de cooperação financeira externa pelo CW chegaram ao Brasil e foram bem aceitas, especialmente, pelos setores mais importantes da economia. Paulo Nogueira Batista esclarece que a proposta acabaria cabalmente absorvida por substancial parcela das elites políticas, empresariais e intelectuais da região, como sinônimo de modernidade, passando seu receituário a fazer parte do discurso e da ação dessas elites, como se de sua iniciativa e de seu interesse fosse. Exemplo desse processo de cooptação intelectual é o documento publicado em agosto de 1990 pela Fiesp, sob o título “Livre para crescer – Proposta para um Brasil moderno”, hoje na sua 5ª edição, no qual a entidade sugere a adoção de agenda de reformas virtualmente idêntica à consolidada em Washington. (BATISTA, 1994). No Brasil, a agenda do CW se desdobrou, nitidamente, em diversas ações que ainda estão em curso, tais como: a revalorização da agricultura de exportação e abandono do processo de industrialização; a dependência econômica dos EUA; a diminuição do Estado protetor com a retração das garantias a direitos sociais e a transposição para o Estado mínimo; o favorecimento de grandes empresas multinacionais e do setor financeiro por meio de reformas trabalhistas e flexibilização de normas; as reformas no sistema de seguridade social, especialmente, com reformas no sistema previdenciário, a que muitos chamam de desmonte da proteção social; a desestatização ou privatização: venda das empresas estatais e favorecimento para que grandes empresas internacionais dominem setores importantes como, petróleo, minério, setor financeiro etc. De acordo com Marcus Marktanner e Jörg Winterberg (2009, p. 38): “[...] o Consenso de Washington foi projetado inicialmente como um pacote de reformas para a América Latina”. Os países que desejassem o apoio dos EUA, FMI, BM e BID, deveriam se obrigar a adotar as medidas e estratégias neoliberais, principalmente, para diminuir o papel do Estado na economia. Importante para esse estudo preliminar, indubitavelmente, é o espectro de discursos e argumentos que foram criados para legitimar essa agenda, especialmente, no que concerne ao sistema de seguridade social. O argumento do tipo TINA, por exemplo, está presente no discurso que propala o fim do Estado-Providência ou evidencia a crise do Welfare

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 163 State1. Também pode ser encontrado na ideia de que a única solução para o problema do equilíbrio financeiro e atuarial dos sistemas de previdência social no Brasil e em toda a América Latina é uma reforma e não uma “reforminha”, como já evidenciou o Ministro da Economia no Brasil. O próprio BM, em 1994, em seu informe “Averting the Old Ages Crisis” (“Como evitar a crise da velhice”, em tradução livre) (THE WORLD BANK, 1994), afirmou categoricamente que os sistemas públicos de previdência fracassaram, devendo ser substituídos por sistemas privados, evidenciando que a única alternativa para os sistemas de previdência social é transposição para um novo sistema a partir de grandes reformas estruturais, quiçá, favorecendo a transposição do sistema público para os sistemas privados de previdência. Percebe-se um esforço muito grande por esses órgãos que defendem e postulam o neoliberalismo em diminuir o tamanho do Estado. Um estudo do BM sobre a necessidade de reformas nos sistemas previdenciários do mundo – “Old-Age Income Support in the 21 st Century” (“Apoio à Renda dos Idosos no Século XXI”, em tradução livre), estabeleceu que a maioria dos sistemas de aposentadoria no mundo não cumpre seus objetivos sociais, contribuem para distorções importantes no funcionamento das economias de mercado e não são financeiramente sustentáveis, quando exigidos por uma população em envelhecimento (HOLZMANN; HINZ, 2005). Para a análise de Marcus Marktanner e Jörg Winterberg, o CW, em verdade, não conseguiu conduzir os países envolvidos ao desenvolvimento econômico, especialmente na América Latina, pelo contrário: Frequentemente tais estratégias conduziram a uma redução da capacidade fiscal e ao aumento das desigualdades de renda. Atualmente, muitos países em vias de desenvolvimento se lamentam porque são mais as tensões socioeconômicas geradas do que os benefícios aferidos em função das maiores oportunidades de consumo. Uma vez que o crescimento se limita às camadas mais favorecidas da sociedade, surgem as tensões sociais. Como consequência de tudo isso se nota uma resistência, não somente contra o Consenso de Washington e os conceitos neoliberais, mas também contra o mercado e mesmo a democracia. Então o problema não é o mercado ou a democracia. O problema deriva do fato de o Estado não assumir adequadamente seu

1 Nesse sentido, cf. BARREIROS (2009) e VICENTE (2009).

164 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro papel no processo do desenvolvimento. (MARKTANNER; WINTERBERG, 2009, p. 37). O maior problema que envolve a agenda do CW é o descaso e a desconsideração pelas questões sociais. Paulo Nogueira Batista esclarece: O Consenso de Washington não tratou tampouco de questões sociais como educação, saúde, distribuição da renda, eliminação da pobreza. Não porque as veja como questões a serem objeto de ação numa segunda etapa. As reformas sociais, tal qual as políticas seriam vistas como decorrência natural da liberalização econômica. Isto é, deverão emergir exclusivamente do livre jogo das forças da oferta e da procura num mercado inteiramente auto-regulável, sem qualquer rigidez tanto no que se refere a bens quanto ao trabalho. Um mercado, enfim, cuja plena instituição constituiria o objetivo único das reformas [sic]. (BATISTA, 1994). Em verdade, o ideal neoliberal dominante na agenda do CW está distante de um Estado protetor em defesa dos direitos sociais. Ao contrário, postula a diminuição do Estado e desmonte da rede e da ordem de proteção social por ele instituída.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há mais de 30 anos o Brasil adotou um sistema de proteção social que segue, em linhas gerais, ao modelo de welfare state. Aos trancos e barrancos, a ordem social disposta na Constituição de 1988, enquanto projeto inconcluso e longe de alcançar o ideal de plena proteção e garantia da dignidade humana pela construção de uma sociedade livre, justa, igualitária e solitária, vem sendo mantida como uma espécie de garantia mínima às partes mais vulneráveis da população brasileira. Durante esse tempo, os governos democráticos vêm impondo mudanças no sistema de seguridade social, mas, até o momento, não se viu nenhuma proposta de reforma tão grave em favor do desmonte de proteção social como se vê no governo atual. Mesmo que todos os governos pós-Constituição tenham implantado mudanças, a ordem social idealizada a partir de um Estado protetor ainda vinha sendo mantida “aos trancos e barrancos”. Este artigo procurou lançar um olhar crítico sobre a realidade do sistema de proteção social no Brasil, levantando dois temas de grande relevância para os estudos e análises acerca da reforma da previdência que

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 165 vem tramitando no Legislativo: o argumento do tipo TINA – There Is No Alternative, e o Consenso de Washington. O primeiro tema, torna-se fundamental para as discussões, exatamente, porque o modelo TINA de argumentação está presente nos discursos de legitimação da necessidade de reforma previdenciária no Brasil e, também, na narrativa em favor da diminuição do Estado e do desmonte do sistema de seguridade social como a única alternativas viáveis para o crescimento da economia, desenvolvimento do país e concretização de todos os ideais neoliberais e capitalistas. O segundo tema, um pouco mais complexo e que demanda um aprofundamento mais elaborado, desponta-se, em verdade, como uma das principais justificativas para a necessidade de reformas presente nos discursos do poder. Para atender a uma agenda elaborada pelo Consenso de Washington, os países da América Latina, como o Brasil, por exemplo, se viram obrigados a aderirem à essa agenda, cujo ideário neoliberal impõe a necessidade de mudanças estruturais na própria configuração do Estado, na tentativa de abolir de vez o modelo de proteção social próprio do welfare state. Assim, a reforma da previdência, que tem sido levada a termo no Brasil, não acontece porque o país corre o risco de ir à “bancarrota”, porque é incapaz de contemplar tantos direitos sociais e garantias à população e, tampouco, porque o sistema de previdência vai falir. Não! As reformas postuladas pelo Governo brasileiro obedecem a um programa estabelecido deliberadamente em Washington e capitaneado pelos EUA, BM, FMI e BID, que, entre outras intensões, pretendem provocar a transposição do Estado de proteção social para o Estado mínimo e empurram o Brasil para as tramas e teias de uma agenda neoliberal em nome de um possível crescimento econômico no futuro. Diante dessas primeiras reflexões que se apresentam, apenas como um olhar crítico possível sobre o tema da reforma da previdência no Brasil, sabe-se que a discussão está aberta para novas referências e compreensões. Este artigo procurou oferecer mais uma contribuição para essa discussão tentando seguir o que Hannah Arendt tão bem delineou sobre a atitude de compreender, como encarar a realidade, atentamente, na esperança de poder resistir a ela, incondicionalmente.

166 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro REFEFÊNCIAS

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168 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro FORMAÇÃO DOS TRABALHADORES DO SUS: POSSIBILIDADES E ALTERNATIVAS PARA A CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

1Gabriela Cristina Braga Bisco*

2Edilaine Dias Lima**

3Fernanda de Oliveira Sarreta***

RESUMO: A saúde no Brasil foi assegurada a partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que representa um dos maiores avanços em relação aos direitos sociais a partir da universalização do acesso de forma igualitária e equânime para toda população. Para a efetivação do SUS, foi necessária a mobilização de diversos atores sociais que defendiam desde a concepção ampliada do conceito de saúde à formação qualificada de profissionais que atuam dentro do sistema. Dessa forma, a formação e Educação Permanente em Saúde (EPS), se constitui como um importante mecanismo para o fortalecimento do SUS a partir de uma formação qualificada, capaz de compreender as reais necessidades de saúde e sociais da população usuária do SUS. Essa estratégia é considerada um caminho importante para a efetivação do direito social à saúde, uma vez que uma formação qualificada capaz de integrar desde os cursos de formação até espaços de educação permanente dentro dos serviços de saúde, possibilita um desvelamento da realidade social, além de fortalecer as equipes de saúde para buscar alternativas de enfrentamento para as dificuldades do trabalho cotidiano. Palavras chave: saúde; direito; formação em saúde. ABSTRACT: The health in Brazil was ensured from the creation of SUS (Single Health System), which represents one of the greatest advances in relation to the social rights from the universality of the access in an equal and impartial for all the population. It is necessary the mobilization of several social actors to carry out SUS, they have defended from the extended health conception to the qualified formation of professionals who acts inside the system. This way, the formation and Permanent Health Education constitute as an important mechanism to the strength of SUS from a qualified formation, capable of understanding the real and social health needs ofthe SUS users. This strategy is considered an important way to carry out the social right to health, because a qualified formation is capable to integrate since the formation courses until the spaces of permanent education inside the health services. It is possible to present the social reality, as well as strengthening the team of health to search alternatives to face up the difficulties of everyday work. Keywords: health; right; health formation * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP. Pesquisadora financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, sob orientação de Fernanda de Oliveira Sarreta. Membro do Grupo Quavisss – Política de Saúde e Serviço Social. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6414265264706025. ** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP. Pesquisadora financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, sob orientação de Fernanda de Oliveira Sarreta. Membro do Grupo Quavisss – Política de Saúde e Serviço Social. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2065839597671215. *** Doutora, mestre e graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – FCHS, Câmpus de Franca-SP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP. Líder do Grupo Quavisss – Política de Saúde e Serviço Social. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9852924287537869.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 169 INTRODUÇÃO

A formação para os trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) consiste em uma política pública para trabalhadores adequarem sua prática profissional de forma condizente com modelo de atenção a saúde, disposto na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). Historicamente, a defesa de um novo modelo de atenção à saúde foi tratada amplamente pelo Movimento da Reforma Sanitária brasileira, que dentre suas postulações suscitava um conceito ampliado de saúde, tendo em vista que o modelo de atenção médico-curativista focado na doença não respondia às necessidades de saúde da população, sendo necessário um novo modelo que imputasse à determinação social como maior responsável pelo adoecimento dos sujeitos. Ainda, sustentava que saúde deveria ser reconhecida como um direito social universal e que, para isso, o governo deveria implementar um sistema público de saúde descentralizado que permitisse a participação popular. Tais requisições foram debatidas amplamente na 8ª Conferência Nacional da Saúde, realizada em 1986 em Brasília. A maior conquista a partir desta conferência e do Movimento de Reforma Sanitária foi o reconhecimento da saúde como direito de cidadania, onde a Constituição determinou a instituição de uma política de saúde pública a toda população, sem nenhum tipo de discriminação, sendo esta política financiada pelo poder público e, ainda, com a participação da sociedade civil exercendo o controle da gestão da política de saúde. Ocorre que a implementação do SUS, regulamentado pela Lei nº 8080, denominada Lei Orgânica de Saúde (LOS) e pela Lei nº 8.242 de 1990, coincidiu com implementação do projeto de governo neoliberal, este sustentando que as políticas protetivas de seguridade social eram responsáveis pela crise econômica, sendo necessário cortar gastos sociais, instituindo um Estado Mínimo. A LOS também determinou ao Estado a criação de uma política para formação de recursos humanos na saúde, mas devido ao contexto político econômico, o Estado instituiu a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) somente em 2004, na tentativa de concretizar o que foi preconizado pela Reforma Sanitária, pela Constituição e pela LOS. Nesse sentido, entende-se a política de Educação Permanente em Saúde (EPS) como estratégia criada pelo SUS para qualificar os recursos humanos da saúde, em busca de um atendimento mais humanizado e

170 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro condizente com às necessidades de saúde da população, ou seja, para que seja concretizado os SUS constitucional.

1 REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA E CONSTRUÇÃO DO SUS: CAMINHOS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DA SAÚDE

Na década de 1980, o Brasil vivenciou um processo de democratização e uma efervescência política e social que culminou em uma nova Constituição, que buscou de alguma forma a expansão de direitos sociais. Neste período, novos sujeitos começaram a participar das discussões sobre política e sobre as reais condições e direitos da classe trabalhadora e da população. Na área da saúde, esse momento de efervescência política mobilizou a população e entidades representativas na luta pela saúde pública e de qualidade. As principais propostas debatidas por esses sujeitos coletivos foram a universalização do acesso; a concepção de saúde como direito social e dever do Estado; a reestruturação do setor através da estratégia do Sistema Unificado de Saúde, visando profundo reordenamento setorial com um novo olhar sobre a saúde individual e coletiva; a descentralização do processo decisório para as esferas estadual e municipal, o financiamento efetivo e a democratização do poder local através de novos mecanismos de gestão – os Conselhos de Saúde. (BRAVO, 2006, p. 96). Nesse sentido, no final da década de 1970, surge um movimento no Brasil, com a participação de trabalhadores de diversos setores da saúde, além da população usuária dos serviços em busca de uma saúde pública e para todos. Um dos principais marcos na área da saúde no que se refere à luta pela democratização e pelo direito universal, foi a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986 em Brasília, que culminou em um processo denominado Movimento de Reforma Sanitária. O movimento foi o marco da representatividade desses sujeitos coletivos, que incluíam trabalhadores da saúde, sindicatos, associações de moradores e movimentos sociais, que tinham como objetivo questionar e debater propostas com a intenção de estabelecer as responsabilidades do Estado em relação à saúde, questionando o direcionamento que estava sendo dado à saúde até então. De acordo com Finkelman (2002, p. 242), os princípios da Reforma Sanitária brasileira eram:

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 171 1) A melhoria das condições de saúde da população; 2) o reconhecimento da saúde como direito social universal; 3) a responsabilidade estatal na provisão das condições de acesso a esse direito; 4) a reorientação do modelo de atenção, sob a égide dos princípios da integralidade da atenção e da equidade; 5) a reorganização do sistema com a descentralização da responsabilidade pela provisão de ações e serviços. Os sujeitos coletivos que fizeram parte deste movimento defendiam a melhoria das condições de vida da população, além de uma nova formulação da política de saúde no Brasil, que deveria possuir como princípios fundamentais a integralidade e a equidade dos serviços, além da responsabilidade do Estado para assegurar o direito à saúde para toda população. A preocupação central dos sujeitos que discutiam a Reforma Sanitária é a responsabilidade do Estado na área da saúde e nas políticas sociais, na análise de Bravo (2006, p. 101), “[...] pautando-se na concepção de Estado democrático de direito”. Após a aprovação da Constituição, as principais propostas e reivindicações da Reforma Sanitária foram aprovadas, ou seja, a saúde passou a ser considerada como direito universal, cabendo ao Estado o dever de provê-la com integralidade e equidade à todos os indivíduos; definição e criação de um Sistema Único de Saúde (SUS), com a integração de forma hierarquizada de todos os serviços públicos de saúde, com descentralização, atendimento integral e participação da comunidade. O SUS foi assegurado a partir da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), no artigo 196, que define a saúde como: [...] direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988). Dessa forma, o conceito de saúde é ampliado e definido não somente como a ausência de doenças, considerando também a redução do risco de adoecimento e o agravamento de doenças, e, especialmente, o desenvolvimento de atividades de prevenção e promoção associadas à assistência em saúde. Além disso, a Constituição prevê que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, abrangendo fatores condicionantes e determinantes para a saúde da população (BRASIL, 1988). Além do texto constitucional, o SUS passou por uma afirmação por meio da Lei Orgânica da Saúde, Lei nº 8.080 de 1990 (BRASIL, 1990)

172 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro e a Lei nº 8.142 de 1990 (BRASIL, 1990) que reafirmam seus princípios, diretrizes e formas de organização e gestão do sistema. Por meio dessa legislação específica, são assegurados os princípios fundamentais do SUS como o direito ao atendimento universal e gratuito, uma nova forma de organização da política de saúde, incluindo desde o direito ao acesso a recursos e serviços de prevenção e promoção à saúde, ao atendimento de alta complexidade e acesso a medicamentos de forma gratuita; o direito ao atendimento de forma integral, envolvendo várias dimensões que contribuem no processo saúde-doença que envolvem o indivíduo e a comunidade; e o direito à equidade, no sentido de tratar as diferenças, prioridades e necessidades de acordo com o risco e vulnerabilidade. O processo de transição para a saúde pública no Brasil foi um processo de mudança que surgiu em um momento de efervescência política em que muitos atores sociais como trabalhadores da saúde, usuários e gestores passaram a pensar o processo saúde-doença de forma ampla, considerando que a questão social é inerente a esse processo e que os fatores sociais de determinada população influenciam diretamente a saúde da mesma. O direito à saúde foi incorporado à Seguridade Social brasileira que compreende o direito ao acesso à assistência social, previdência e saúde. Bravo (1996, p. 9), considera que a Seguridade Social é: (...) a corporificação legal e institucional de um acordo societário que se construiu como base de nosso processo de transição à democracia. Em outras sociedades latino- americanas, com uma experiência democrática muito mais densa, a transição teve o caráter de reconstrução da institucionalidade democrática. No caso brasileiro, dada a escassa e frágil experiência democrática anterior, a transição constituiu-se no momento de criação dos instrumentos e processos democráticos. Nunca a noção de cidadania e de direitos sociais havia ido tão discutida e vivenciada em nossa sociedade (1996, p. 9). A partir da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e da regulamentação do SUS, a saúde passou a ser reconhecida como política pública e enquanto política de direito universal. Como política pública, o SUS tem como objetivos: Art. 5º – I – a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde;

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 173 III – a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas (BRASIL, 1990). Portanto, é dever do Estado garantir condições para que as pessoas tenham acesso aos serviços de saúde tanto para prevenção de doenças como para recuperação, devendo observar que múltiplos fatores incidem na saúde dos indivíduos. O SUS deve ser organizado a partir das seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em casa esfera do governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade. (BRASIL, 1988). Estas diretrizes representam conquistas expressivas do ponto de vista da responsabilidade na gestão da saúde, ou seja, do atendimento integral que considera não apenas a recuperação da saúde de indivíduos, grupos e comunidades, do mesmo modo, da prevenção e da participação da comunidade nas decisões sobre a gestão e planejamento da política de saúde, destacando o papel dos Conselhos de Saúde. De acordo com Raichelis (2006, p. 78), os Conselhos e os espaços democráticos de participação social nas decisões sobre a saúde do país fortalecem: [...] a ideia de que os espaços de representação social na organização e gestão das políticas sociais devem ser alargados para permitir a participação de novos e diversificados sujeitos sociais, principalmente os tradicionalmente excluídos do acesso às decisões do poder político. Ainda, segundo a autora, “[...] são espaços que estão sendo construídos pela ação coletiva de inúmeros sujeitos sociais” (RAICHELIS, 2006, p. 84). E ainda “[...] podem provocar mudanças substantivas na relação Estado-sociedade [...] e contribuir com a construção/consolidação de uma cultura política contra-hegemônica, por meio da prática da socialização da política e da distribuição de poder” (MORONI; CICONELLO, 2005, p. 39 apud RAICHELIS, 2006, p. 84). Contrariando os princípios fundamentais do SUS, Filho (1982) analisa que, como o recurso governamental para a saúde não é capaz de oferecer assistência à toda população brasileira, a população necessita buscar a saúde suplementar através dos planos de convênio. Esse processo está sendo cada vez mais fortalecido no país, o que demonstra o afastamento

174 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro do Estado de suas responsabilidades e a presença do setor privado na política pública de saúde, além dos crescentes processos de terceirização. No SUS, como nos bairros periféricos, há descuido com ambiência, com a eficiência da gestão pública e, o mais grave, com as pessoas que usam e trabalham no sistema. O SUS vem se transformando, gradualmente, em mais um espaço dominado pela racionalidade da velha e tradicional promiscuidade da política brasileira. Em síntese, o SUS vem conformando uma ética, uma estética e um padrão de funcionamento em correspondência com o modo de vida da maioria; em muitos aspectos e situações, confirmando um padrão de descaso e de desrespeito à dignidade humana (CAMPOS, 2018, p. 5). A análise de Campos (2018) demonstra que cada vez mais o SUS está sendo enfraquecido tanto pela própria política que é cada vez mais seletiva e focalizada, quanto pelos próprios gestores e trabalhadores da saúde que parecem se conformar com a atual situação do Brasil e da política nacional de saúde. A luta por uma política de saúde universal e para garantia dos princípios e das diretrizes do SUS, é uma luta coletiva. É preciso também, lutar contra as desigualdades sociais e econômicas, buscando uma sociedade justa e igualitária, por meio de políticas públicas que fortaleçam os direitos da população. Campos (2018, p. 5) aponta que a defesa do SUS deve ser um compromisso da sociedade civil para reforçar o movimento de luta pela Reforma Sanitária: [...] a defesa do SUS, da democracia e dos direitos sociais, nesse momento em particular, depende da sociedade civil mais do que do Estado e dos políticos profissionais. Depende da revitalização do movimento sanitário e de sua articulação com amplos setores da sociedade – movimentos de luta por direitos, como o das mulheres, dos idosos, das populações indígenas e negra, dos portadores de patologias, das várias crenças religiosas que participam também da vida social, dos sindicatos, enfim, temos que verbalizar um projeto inclusivo de sociedade e, especificamente, de direito à saúde. É preciso retomar o processo histórico de reivindicações por um sistema que seja capaz de atender toda a população. Para isso é necessário o fortalecimento de ações sociais para diminuição de desigualdades e na direção de melhores condições de vida para a população, investindo em uma constante melhoria da infraestrutura das cidades pensando em uma

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 175 reforma urbana capaz de modificar a estrutura. É preciso, ainda, fortalecer as ações de todas as áreas do SUS, desde a atenção básica até as de alta complexidade e, principalmente, a parte de gestão e de financiamento das ações de saúde, priorizando o atendimento público (CAMPOS, 2018). Para transformar essas ações em realidade, é preciso ainda alterar o modo de financiamento das políticas de proteção social incluídas na Seguridade Social, a partir de uma mudança econômica.

2 EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE: POSSIBILIDADES PARA DO SUS

A formação para os recursos humanos da saúde esteve presente nas propostas debatidas na 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986. Conforme Gigante e Campos (2016) a proposta era uma capacitação ou reciclagem permanente dos trabalhadores da saúde que estivesse inserida junto ao sistema regional e hierarquizado de atenção à saúde. Consta na Constituição de 1988, inciso IV do artigo 200 (BRASIL, 1988) que compete ao SUS propiciar condições para uma formação dos recursos humanos que irão trabalhar na política de saúde pública. Essa ação de formação e capacitação só ocorreu após a implementação do SUS, regulamentado através do conjunto de duas leis: Lei Orgânica de Saúde (LOS) nº 8.080 de 1990 e Lei nº 8.242 de 1990, conforme já explicitado anteriormente. A LOS ratifica a determinação constitucional, dispondo no inciso III do artigo 6º que compete ao SUS a formação de recursos humanos para o trabalho em saúde. Além disso, dispõe ser de competência comum, a serem partilhadas entre município, estado e governo federal, o planejamento e a implementação de uma política para formação dos trabalhadores da saúde (BRASIL, 1990). Essa articulação deve envolver a formação dos recursos humanos na saúde do ensino técnico, superior, pós-graduação lato sensu e stricto sensu, estabelecendo um aperfeiçoamento contínuo. Deve estimular a dedicação exclusiva dos trabalhadores da saúde e estabelecer uma articulação com as instituições de ensino dos cursos de saúde para que a formação dos estudantes seja qualificada; efetivar o tripé ensino, pesquisa e extensão; incentivar a oferta de estágios e residência multiprofissional, para atender as exigências do Conselho Nacional de saúde (CNS), conforme artigo 27 da LOS (BRASIL, 1990).

176 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Esse processo contribui para a formação profissional dos trabalhadores de saúde, com o contato na graduação e pós formação com o cotidiano do trabalho em saúde, percebendo os desafios a serem enfrentados e as possibilidades que serão traçadas para integralidade da saúde. Tais indicações foram reafirmadas durante a 9ª Conferência Nacional de Saúde de 1992, indicando a necessidade do Estado de destinar recursos financeiros para custear a formação permanente dos trabalhadores da saúde. Percebe-se que, mesmo com o sistema normativo brasileiro e a criação de uma política para formação dos trabalhadores da saúde a partir da Constituição de 1988, o Estado demonstra não ter interesse em implementar essa política pública, pois na lógica do capital de manutenção da ordem vigente e das desigualdades sociais, a preocupação não consiste em uma efetivação do SUS constitucional. Em 1998 ocorreu a 10ª Conferência Nacional de Saúde, que em seu relatório final orientava ao Ministério da Saúde a fazer uma articulação com o Ministério da Educação, determinando prazo para elaboração de um plano para formação de recursos humanos para saúde. Essa orientação indica a necessidade de inserir disciplina de saúde pública aos cursos de graduação, no intuito de assegurar uma formação humanizada e a criação de cursos de especialização na área da saúde pública, entre outras (CNS, 1998). Nos anos seguintes, permanece a situação, mas somente em 2003, na 12ª Conferência Nacional de Saúde, foram traçadas estratégias para formação de recursos humanos no SUS, indicando a Educação Permanente em Saúde (EPS) como caminho, pois constatou-se que a formação acadêmica dos trabalhadores de saúde estavam distanciadas das necessidades de saúde da população e dessa forma, incumbiu-se ao SUS instituir a capacitação dos trabalhadores de saúde para superar as lacunas da formação acadêmica (BRASIL, 2003). De acordo com Ceccin e Feubehecker (2004, p. 44): Uma proposta de ação estratégica para transformar a organização dos serviços e dos processos formativos, as práticas de saúde e as práticas pedagógicas implicaria trabalho articulado entre o sistema de saúde (em suas várias esferas de gestão) e as instituições formadoras. Colocaria em evidência a formação para a área da saúde como construção da educação em serviço/educação permanente em saúde: agregação entre desenvolvimento individual e institucional, entre serviços e gestão setorial e entre atenção à saúde e controle social.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 177 A formação acadêmica dos cursos de saúde não é voltada para saúde pública; as especialidades são mais valorizadas assim como procedimentos cirúrgicos de média e alta complexidade. Está inserida na cultura dos estudantes a vinculação das profissionais de saúde com obtenção de lucro, e dessa forma os profissionais recém-formados não quem atuar na saúde pública e no SUS. Nesse sentido, Gigante e Campos (2016) explica que a 12ª Conferência Nacional de Saúde reconheceu que o problema estava no modelo de atenção à saúde, por isso, torna-se necessária uma formação qualificada para que os trabalhadores da saúde realizem um atendimento humanizado aos usuários do SUS, e para corrigir as deficiências da formação acadêmica é essencial uma formação permanente inserida no processo de trabalho no SUS. Analisando a 12ª Conferência Nacional de Saúde, Sarreta (2012) afirma ser imprescindível fortalecer uma articulação entre a política de saúde pública e a política de educação, inserindo espaços de ensino e aprendizagem no SUS para implementar uma conexão do ensino ao serviço através de ações de EPS. É necessária uma ação conjunta entre políticas públicas para fortalecimento da educação permanente em saúde, pois na atualidade a precarização do trabalho, a falta de recursos humanos, acumulo de funções, baixos salários e a falta de investimentos no SUS retiram a motivação dos trabalhadores para implementar a EPS. A proposta do Ministério da Saúde foi a criação de polos de formação para os trabalhadores da saúde em cada região de saúde, incumbindo ao Estado disponibilizar recursos para concretização dos polos. Segundo a Política Nacional de Formação e Desenvolvimento para o SUS (BRASIL, 2003) a implementação de polos regionais de EPS decorre da articulação entre governo federal, estadual e municipal, ministério da saúde e da educação. A implementação da política para formação de recursos humanos do SUS ocorreu por meio da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), através da Portaria nº 198 GM/MS do Ministério da Saúde em 2004, na tentativa de legitimar as propostas da Reforma Sanitária consolidadas na Constituição de 1988, através de uma formação inserida no serviço, visando o fortalecimento do SUS. (BRASIL, 2004). Essa política que reafirma os princípios democráticos do SUS e atravessa suas diferentes ações e instâncias foi ciada

178 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro para implementar a atenção integral e consolidar o modelo de atenção proposto pelo SUS a partir de experiências e possibilidades concretas, com referência nas características locais e regionais, e ainda valoriza o desenvolvimento da autonomia e o protagonismo dos sujeitos envolvidos nos processos de produção da saúde (SARRETA, 2009, p.15). Mas, em pouco tempo, identificou-se que a política nacional não atendia a realidade de saúde de todas as regiões do Brasil, pois alguns locais não ofereciam estrutura para desenvolver a EPS conforme estipulado na PNEPS. Assim, em 2007 o Ministério da Saúde através da Portaria MS/GM nº 1.996 de 2007, inseriu mudanças na PNEPS para atender as especificidades regionais, sendo necessário readequar a gestão da política de EPS. (BRASIL, 2007). A portaria supracitada institui diretrizes para a constituição dos polos de EPS, devendo envolver os estudantes, instituição de ensino, profissionais da saúde, instituições que ofertam serviços públicos de saúde, representantes do poder público, assim como movimentos sociais. Ressalta-se que as reuniões devem ser periódicas, para assegurar o fortalecimento da EPS. Inicialmente, foram constituídos polos para implantação da EPS, contribuindo para reformulação da atenção à saúde. Porém, a tentativa de aliar educação no serviço para mudanças na atenção à saúde encontra desafios para sua estruturação e funcionamento como a disparidade na implantação dos polos em cada região do país. Por isso, foram essenciais as alterações inseridas na política nacional de EPS, pois algumas regiões não conseguiram articular gestão e atenção à saúde com a criação de polos formadores para atender as peculiaridades regionais. (FIGUEIREDO, 2012 apud GIGANTE; CAMPOS, 2016). A formação permanente para recursos humanos do SUS é essencial para realização de um trabalho profissional de qualidade e eficiência, que coloque em primeiro lugar a necessidade social de acordo com as especificidades de saúde de cada região. Ocorre que na atual conjuntura neoliberal, o trabalho em saúde enfrenta desafios, como os cortes de investimentos para política de saúde, precarizando o acesso a serviços do SUS e também o trabalho em saúde, com as terceirizações e outros arranjos de trabalho. Por isso, ratifica-se que a EPS prescinde do envolvimento de todos sujeitos que integram o SUS, como instituições de ensino, gestão,

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 179 atenção à saúde e o controle social, pois estes constituem o quadrilátero da formação para saúde (CECCIN; FEUBEHECKER, 2004). Na atual conjuntura neoliberal, necessita-se de uma gestão participativa, profissionais da saúde comprometidos com a defesa do SUS, com competência para o trabalho interdisciplinar, articulando ações com outros setores na busca de atender as necessidades de cada região de saúde, criando estratégias para mobilização da população e participação para acompanhar a execução da política de saúde, através do controle social. Segundo SARRETA (2009, p. 111), [...] a reorganização das práticas de atenção à saúde requer o investimento no processo de formação permanente, para que o profissional seja capaz de agir com criatividade e senso crítico e desenvolva uma prática que envolva ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação. O SUS cresceu de forma vigorosa, mas o crescimento foi sem qualidade, sem políticas adequadas e sem a preparação de seus trabalhadores. Diante dessa complexidade, um dos desafios na saúde é o investimento na gestão do conhecimento. Exige aprender um novo modo de fazer saúde e a busca de novas alternativas. As potencialidades da EPS visam à transformação do modelo de atenção à saúde, através da inserção da educação no serviço em polos de cada locorregião, sendo imprescindível empenho e articulação do quadrilátero da saúde para a concretização de um espaço democrático que defende as concepções da Reforma Sanitária. Essa formação qualificada, atendendo aos princípios do SUS, pode contribuir para o fortalecimento do sistema e para um desvelamento da realidade social dos usuários que acessam os serviços de saúde, possibilitando uma efetivação e ampliação de direitos.

CONCLUSÃO

Constata-se que a política de saúde pública é uma conquista histórica no Brasil, após tanta mobilização, luta, enfrentamentos, especialmente a luta pelo reconhecimento do direito a saúde travada pelo Movimento da Reforma Sanitária para transformação do modelo de atenção à saúde. Vimos que a formação de recursos humanos para a saúde sempre esteve presente nos debates coletivos, desde o movimento em defesa da criação do SUS assim como nas Conferências Nacionais de Saúde,

180 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro especialmente na 12ª conferência em 2003, que construiu subsídios importantes para formulação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) de 2004, propondo a inserção da educação no serviço de saúde, na tentativa de transformar o cotidiano de trabalho em saúde condizente com as suas necessidades. A regulamentação do SUS com a LOS e a Lei nº 8.242 de 1990, foi um importante passo para o atendimento das necessidades de saúde da população e para que o Estado assumisse tal responsabilidade, por meio da operacionalização da LOS, contando com a participação da sociedade civil para acompanhar os atos do governo na gestão da política de saúde. Contrariando os objetivos da Reforma Sanitária e de todos os avanços consideráveis do SUS, o projeto neoliberal ganhou força na década de 1990, reafirmando o projeto privatista e a focalização das políticas sociais nos mais pobres. Dessa forma, “[...] a afirmação da hegemonia neoliberal no Brasil tem sido responsável pela redução dos direitos sociais e trabalhistas, desemprego estrutural, precarização do trabalho, desmonte da previdência pública, sucateamento da saúde e educação” (BRAVO, 2006, p. 100). As consequências da orientação neoliberal recaem nas políticas sociais e na política de saúde para o desmonte do SUS, sendo que os recursos governamentais que deveriam ser repassados para o setor público são cada vez mais destinados ao setor privado. Diante deste cenário, é necessário o fortalecimento do Movimento de Reforma Sanitária, uma vez que ele não é um movimento acabado e está em constante transformação, buscando sempre a reafirmação dos princípios do SUS. Fortalecer esse movimento é fortalecer a participação popular democrática nos espaços de decisão como os Conselhos e as Conferências, ampliando e fortalecendo o direito universal à saúde e a política de formação permanente dos trabalhadores em saúde. É necessário a superação dos desafios impostos pela lógica neoliberal para efetivação da EPS, pois esta é uma possibilidade para transformação do modelo de atenção em saúde, na perspectiva de um SUS constitucional e democrático.

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Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 183

O DIREITO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DE EXPECTATIVAS SOCIAIS: JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E FUNDAMENTOS JURÍDICO-EPISTEMOLÓGICOS DAS SENTENÇAS NAS DEMANDAS POR MEDICAMENTOS À BASE DE CANABIDIOL

Gustavo Azevedo Souza1*

RESUMO: O presente trabalho abordará a temática da judicialização, quanto o direito à saúde. Observando-se a nova atuação do Judiciário, advindo de um contexto sócio-político de efetivação dos preceitos constitucionais, conseguiu promover algum avanço ao acesso universal à saúde, mais especificamente, uma análise nas sentenças sobre o fornecimento de medicamentos à base de canabidiol. Para a análise desse fenômeno há o exame das decisões judiciais nas três instâncias do Poder Judiciário, focando principalmente na construção do discurso dos Magistrados. Palavras-chave: judicialização. direito à saúde. maconha medicinal. poder judiciário. ABSTRACT: This report will deal with the issue of judicialization, as well as the right to health. Observing the new action of the Judiciary, coming from a socio-political context of effectiveness of the Constitutional precepts, managed to promote some progress in universal access to health, more specifically, access and supply of cannabidiol based medicines. For the analysis of this phenomenon there is the examination of the judicial decisions in the three instances of the Judiciary Power, focusing mainly on the construction of the Magistrates’ speech.

Key-words: judicialization. right to heath. medicinal marijuana. judicial power.

INTRODUÇÃO

A presente proposta de investigação faz parte de um estudo mais amplo, intitulado “Demandas e lutas sociais no Brasil na encruzilhada entre o Direito e a Política: expectativas, experiências e resistências”, que constitui atualmente o projeto trienal do docente orientador Agnaldo de Sousa Barbosa. O trabalho será desenvolvido no âmbito do DeMuS – Estudos em Direito e Mudança Social, grupo de pesquisa coordenado pelo professor, cadastrado no DGP/CNPq e certificado pela instituição. Perante o atual cenário de profundas transformações político- sociais, o Poder Judiciário assume um novo papel nas relações com a sociedade, havendo interferência de forma direta e indireta em um espaço outrora caracterizado pela hegemonia de outros Poderes, acarretando a emergência de novas estruturas no cotidiano. Tomando por base o contexto destacado, o presente trabalho tem como propósito a análise da mobilização judicial e a promoção do direito * Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Bolsista pelo Programa de Iniciação Científica – PIBIC/CNPq. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4462548717306120.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 185 constitucional de acesso à saúde, especificamente nas demandas quanto aos medicamentos à base de canabidiol perante os tribunais. Assim, a intenção da investigação das sentenças proferidas nos Tribunais possui uma intenção de comparação entre os fundamentos jurídico-epistêmicos que norteiam os magistrados na hora de construir seu discurso e, ainda, observar se essa nova postura tem conseguido promover a avanços no acesso universal à saúde.

1 O FENÔMENO DA JUDICIALIZAÇÃO

O quadro institucional clássico de separação dos poderes pensado por Montesquieu adquiriu novas formas na sociedade moderna, principalmente no tocante à ampliação da atuação dos tribunais e seus magistrados, originando assim um novo papel político para o Judiciário, que além de sumo guardião das leis, recebe o poder de efetivação dessas normas. Nesse sentido, a atuação do Judiciário decorre de um momento histórico de transformação política-institucional, marcado fundamentalmente por um novo olhar sobre a capacidade de emancipação social dos antigos personagens políticos, conforme defende o sociólogo Boaventura de Souza Santos (2003)1. O aumento do Poder Judiciário foi algo inédito, uma vez que sempre fora considerado um mero aplicador de leis e solucionador de conflitos, que não deveria interferir em questões de ordem política, e desembocou em dois fenômenos polêmicos: o ativismo judicial e a judicialização da política. No tocante ao ativismo judicial, Canavez assevera que “a tônica repousa em um elemento de natureza comportamental, ou seja, dá-se espaço à prevalência das visões pessoais de cada magistrado quanto à compreensão de cada qual das normas constitucionais” (CANAVEZ, 2013, p. 39), enquanto que a Judicialização acontece de forma coletiva entre os juízes e os tribunais e sua interpretação advém da busca da efetivação do texto constitucional. De forma simplista, define-se o fenômeno da Judicialização como a intervenção do Poder Judiciário nos conflitos sociais, com o intuito de efetivar os direitos fundamentais outorgados na Constituição Federal, 1 O renomado sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2003) foi responsável por questionar em seu livro “O Direito Pode ser Emancipatório?”, sobre a transição histórica sofria após as teorias sociológicas políticas modernas, em que ocorre uma reocupação de grupos marginalizados de espaços tradicionalmente ocupados por uma lógica positivista segregadora, com o objetivo de serem seus direitos reconhecidos.

186 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro conforme observa Canavez (2013, p. 72): “o juiz torna-se, desta maneira, um protagonista direto da questão social”. Contudo, vários fatores colaboraram para intensificar a ampliação da atuação dos Tribunais como o esvaziamento das estruturas tradicionais de representação política brasileiras, cuja expressão é o descrédito nos partidos políticos e no Congresso Nacional para defesa dos interesses da população (SARMENTO, 2008). Outro fator que facilitou a mudança foi o contexto político- histórico da outorgação da Constituição Federal de 1988, a qual favoreceu a mudança sofrida entre os poderes dos entes governamentais. A nova Carta tem por princípio fundante e fim principal do Estado a dignidade da pessoa humana (BARCELLOS, 2008). Além disso, reconheceu os direitos individuais e sociais e atribuiu-lhes eficácia imediata, transformando-os em direitos subjetivos, passíveis de serem exigidos do poder público. Pela ótica de Canavez, a “Constituição não se tratava de um documento estritamente político, isto é, um convite a realização de políticas públicas com uma dependência exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo, sem qualquer ingerência do Judiciário, mas sim uma norma jurídica, de aplicabilidade imediata” (CANAVEZ, 2013, p. 15). Com vistas a possibilitar tal exigência, o artigo 5º da Constituição Federal, em seus incisos XXXV e LXXIV, estabeleceu o direito integral e gratuito à justiça aos mais necessitados, com a criação das Defensorias nos Estados Federados e uma nova postura institucional do Ministério Público, e também garantiu a todos a tutela jurisdicional preventiva ou reparatória relativa a um direito, o que significa a possibilidade de recorrer ao Poder Judiciário para garantia de um direito constitucional. A forma do novo papel dos princípios dentro da Carta Magna surge com a Doutrina da Efetividade, a qual reconhece a força normativa das normas constitucionais, em que os princípios ganham um atributo imperativo e de aplicação direta nos casos concretos. Nesse sentido, Barroso explica: “Na prática, em todas as hipóteses em que a Constituição tenha criado direitos subjetivos – políticos, individuais, sociais ou difusos – são eles, como regra, direta e imediatamente exigíveis, do Poder Público ou do particular, por via das ações constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurídico” (BARROSO, 2007). Pode-se então afirmar que o fenômeno da judicialização é uma consequência do constitucionalismo moderno, afetando todo o mundo ocidental, como observado nas Cortes americanas ou qualquer Estado

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 187 democrático de direito que tenha a finalidade de promoção e defesa dos Direitos Humanos. Nesta senda, Hirschl (2004, p. 16) observa: “a transferência, via reformas constitucionais de uma parcela significativa de poder das instituições representativas para o judiciário”. Além do mais, relembrando os ensinamentos de Bourdieu (1989), percebemos que o Direito não cria nada que não possa obter o reconhecimento da sociedade e, no caso brasileiro, o aumento da influência do Judiciário foi legitimado na realidade social de escassos recursos, grande quadro de desigualdade social e insuficiência na aplicação políticas públicas para a promoção da cidadania. Contudo, tal atuação incomum por parte dos tribunais e seus magistrados criam também muita resistência política e doutrinária a esse comportamento. A principal crítica feita reside na alegação de falta de legitimidade de atuação do Judiciário, a qual pode representar a usurpação do poder decisório inerente às funções administrativas e legislativas, funções originárias dos outros poderes federados. Podemos concluir que a análise de questões pelo Judiciário, antes nunca discutidas, é uma consequência direta da promulgação da Constituição Federal, que em seu texto estabelece como finalidade do Estado de Direito a promoção e defesa da dignidade da pessoa humana, abarcando direitos políticos, civis, sociais e econômicos. O direito à saúde, responsável por grande número de processos dentro das Cortes em todo Brasil, mostra-se como principal setor interferido pelo Poder Judiciário. Por isso, a seguir tentaremos analisar como ocorre a efetivação do acesso à saúde pelas vias judiciais e como os atores sociais têm respondido a esse novo quadro institucional.

2 DIREITO À SAÚDE:A JUDICIALIZAÇÃO AO ACESSO À SAÚDE

A judicialização da saúde é um reflexo do nova conjuntura institucional estabelecida após 1988, com uma Carta Magna que não é apenas uma carta de intenções, e sim um texto normativo político vinculante, tendo como finalidade a efetivação plena e direta de seu conteúdo, no qual se estabelece uma agenda programática de atuação de todos as esferas governamentais para a promoção e defesa dos direitos humanos, bem como da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, torna-se necessária a análise do texto constitucional no tocante a saúde para melhor entender o funcionamento do fenômeno

188 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro da intervenção judicial em questões que envolvem esse direito. O art. 196 da CF estabelece: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação .O constituinte foi inovador ao determinar a universalidade do acesso à saúde, ou seja, todo cidadão brasileiro tem o direito de ingressar no meios de proteção da saúde, como por exemplo, a hospitais, aos medicamentos e as políticas públicas. Como consequência, a vida com condições mínimas de existência e o bem-estar social de todos os cidadãos são assegurados neste artigo. Outro aspecto importante está no fato de como o Estado deve se comportar perante a essa questão. O texto normativo determina que é sua responsabilidade direta o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Em outras palavras, cabe à União, Estados e Municípios garantir o acesso à saúde a todos os cidadão. Tal imposição é um avanço na proteção dos direitos humanos, pois outrora não existia a obrigação por parte do governo de assistir seus cidadão no quesito da saúde. Ademais, a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90) visa concretizar e organizar o estabelecido no texto constitucional, criando o Sistema Único de Saúde (SUS), pensado como um conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais, municipais e da Administração direta e indireta. Também consolida princípios de como deve ser sua gestão e direção dos serviços prestados, reforçando o princípio da universalidade da saúde, e define os princípios da subsidiariedade e da municipalização. No tocante à responsabilidade de cada ente da federação, a supracitada lei estipula a responsabilidade de todos no fomento ao serviços que efetivem o direito à saúde, pois através da Constituição a saúde ganha um aspecto maximizado em sua execução por parte do Estado. Em função disso, todos da Administração direta e indireta podem ser responsabilizados pela violação do direito fundamental à saúde, ou mesmo quando o serviço prestado por eles não alcance sua finalidade. Destarte, a universalização da saúde, além de trazer mais segurança a esse direito, escancarou a deficiência dos órgãos governamentais de

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 189 aplicação desse direito fundamental, a falta de investimento em áreas consideradas primordiais, ou ainda o investimento errado e sem o planejamento, criando um cenário de quase ruptura institucional. Os problemas enfrentados vão desde a deficiência de infraestrutura nos serviços ambulatoriais e hospitalares, sobretudo nas unidades de urgência e emergência, no fomento de politicas públicas para prevenção do bem-estar social e também no fornecimento de medicamentos. Como consequência desse contexto social, resulta a interferência do Poder Judiciário, na tentativa de obrigar os entes da Administração, responsável pelo direito à saúde, a efetivar o proposto na Constituição. Contudo, tal interferência tem características próprias, cabendo a esse trabalho uma análise sobre o fenômeno. Sobre o funcionamento da ingerência do Judiciário, ocorre no momento em que o cidadão, tendo o acesso aos serviços de saúde negado, ou mesmo quando lhe são prestados de forma insatisfatória, ingressa sozinho ou com a assessoria da Defensoria ou do Ministério Público com ação no Poder Judiciário. Grande parte dessas ações tem em seu conteúdo o pedido de entrega de medicamentos que estão fora das listas oficiais de fornecimento de remédios e em casos de tratamento alternativos ou novos. Porém, em muito aspectos, é criticada essa construção epistemológica-jurídica por parte do Judiciário, que os condiciona à intervenção dos atos administrativos sobre o acesso à saúde. A primeira crítica de viés programático aponta que o Judiciário não teria legitimidade para tal intervenção ao direito à saúde. Como base, os defensores dessa corrente utilizam-se do texto do art. 196 da Carta Magna, na qual expõe o “dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas”; por isso, não seria função dos Tribunais exercer uma política pública de forma judicial para efetivar o direito à saúde. Outro fator polêmico na judicialização da saúde está na análise quanto à questão financeira do Estados. Os que defendem esse posicionamento alegam que a concessão de medicamentos se baseia em um comportamento individualista dos conflitos sociais, principalmente os que envolvem a saúde. Ainda alegam a crise financeira dos cofres públicos, visto que as soluções individualistas só prejudicariam o erário e as políticas coletivas, resultando teoricamente em um aprofundamento das desigualdades sociais. Contudo, nesse aspecto, os tribunais têm se pronunciado a favor do fornecimento de medicamentos, como se observa na sentença:

190 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema –que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 1997). E por último existe uma crítica minoritária que alega que os magistrados, por não terem formação na área de saúde, teoricamente não entenderiam do sistema de saúde e seus tratamentos, por isso sua interferência ocorreria por pessoa alheia aos procedimentos, impossibilitando que pessoa capacitada para exercer a função o faça. Tal posicionamento não apresenta grande relevância, porém demonstra, junto com os outros pontos polêmicos supracitados, que todas as críticas têm como base a alegação de que a interferência do Judiciário viola a supremacia da Administração Pública. Nesse sentido, o próprio Ministro Barroso em seu artigo responde essa alegação de violação do quadro institucional e, além disso, demonstra como deve se comportar o Judiciário nesses assuntos envolvendo o Direito ao acesso à saúde: (...) a atividade judicial deve guardar parcimônia e, sobretudo, deve procurar respeitar o conjunto de opções legislativas e administrativas formuladas acerca da matéria pelos órgãos institucionais competentes. (...) Em suma: onde não haja lei ou opção administrativa implementado a Constituição, deve o Judiciário agir” (BARROSO, 2007). Para melhor entender essa controvérsia jurídica, assevera Canavez: “A polêmica no tocante ao direito à saúde não é a sua definição como essencial a uma vida digna, mas sim o estabelecimento do conteúdo a que o Estado estará obrigado a prestar a todos, de forma gratuita e universal” (CANAVEZ, 2013). Como observado, a Judicialização da saúde ocorre em decorrência de um contexto político-social de proteção e promoção da cidadania, tendo como objetivo a dignidade da pessoa humana. Além disso, estabelece nossa Carta Magna a adoção do Estado Democrático de Direito, no qual se estabelece mínimas regras de atuação de todos os agentes do poderes públicos, implicando dentre elas a efetivação do acesso universal à saúde.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 191 Por causa disso, a atuação das Cortes e de seus magistrados pode causar controvérsia por ser um comportamento anormal ao pré-estabelecido na doutrina clássica de separação dos poderes; contudo, tal atitude de interferência advém de uma nova percepção social e política, provida de interpretação extensiva da Constituição Federal. Assim, analisado o novo comportamento dos juízes, resta agora analisar mais profundamente o caso da maconha, sua utilização em medicamentos e suas consequências no mundo jurídico, através das decisões dos magistrados e a resposta dos outros atores sociais. Por isso, analisaremos previamente a questão da maconha medicinal e depois mais profundamente os julgados de fornecimento de medicamento à base de canabidiol.

3 A QUESTÃO DA MACONHA MEDICINAL

Para melhor entendimento, torna-se necessária um breve introdução sobre o objeto específico desta pesquisa, que seria a maconha medicinal, ou seja, medicamentos que tenham em sua composição o canabidiol como parte fundamental. A Cannabis sativa é conhecida há séculos pelas suas propriedades recreativas e medicinais. Encontramos relatos de seu uso em várias civilizações antigas, principalmente as localizadas na América Latina. Está no centro das atenções por ser a droga ilícita mais utilizada no mundo e pelos debates atuais sobre sua legalização para uso terapêutico e recreativo. O termo “maconha” descreve a preparação de flores, folhas e pequenos caules da planta Cannabis sativa. O Brasil, seguindo o pensamento da comunidade internacional, posicionou-se a favor da proibição do uso da maconha, fenômeno que foi chamado de “guerra às drogas”, uma política pública que entregou nas mãos das polícias o dever de solucionar esse problema, onde a prisão ganhou um novo sentido, resultando no encarceramento em massa da população negra, jovem e periférica. Nesse sentido, o Estado tem endurecido o combate ao uso e ao tráfico de substâncias ilícitas, entre elas a cannabis, e por essa razão, em 2006, qualificou o tráfico dessas componentes como crime hediondo, conforme observa-se: Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,

192 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; II – semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas; III – utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas. Assim sendo, a legislação brasileira criminaliza o tráfico da maconha, que por consequência proíbe o uso com finalidade recreativa, proibindo também o cultivo doméstico, em uma lógica proibicionista; contudo, esse posicionamento só fortaleceu o crime organizado, que viu nesse setor uma grande chance de enriquecimento ilícito, e ainda só contribui com o aumento da criminalidade e da violência. Nos casos de uso da cannabis para fins terapêuticos ou medicinais, o posicionamento segue a lógica proibicionista, que durante muito tempo, mesmo conhecendo os efeitos positivos para combater algumas doenças, tinha sua utilização coibida, proibindo inclusive a produção de remédios que usassem os canabinóides no âmbito nacional e impedindo sua importação. Entretanto, devido a um movimento de pessoas que começaram a recorrer a tutela do Poder Judiciário, baseado no direito à saúde, conseguindo em juízo o fornecimento desses medicamentos, este posicionamento passou a ser revisto. O posicionamento da ANVISA, no tocante à maconha, segue o determinado pela legislação, em que a maconha é considerada como ilegal, exceto para fins médicos e científicos, de forma controlada e supervisionada, isto é, não impede a utilização com objetivos médicos e a

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 193 realização de pesquisas, sendo possível, inclusive, o registro de patentes de medicamento à base de substância. Porém, a ANVISA tem posição contrária ao cultivo doméstico da cannabis destinado a fins científicos ou médicos, incluindo a obtenção de insumo para a fabricação de medicamentos registrados ou para o eventual tratamento de pacientes autorizados pelas autoridades governamentais, alegando que o tema merece regulamentação ou projeto específico. Vale reiterar que a agência reguladora permite a pesquisa que tenha como objeto a cannabis e seus derivados com finalidade terapêutica, já permitida no Brasil, mas, em geral, os pesquisadores dependem de importações. Para realizar o estudo, basta que a instituição interessada solicite autorização à ANVISA. A maconha tem um protagonismo em muitos conflitos sociais, por isso quando analisado esse material não se pode esquecer de seu papel social, que infelizmente através de uma guerra às drogas infrutífera, serve como meio para assegurar as desigualdade sociais, incentivando um olhar discriminatório.

4 ANÁLISE DE SENTENÇAS: FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS À BASE DE CANABIDIOL

Após analisarmos epistemologicamente o fenômeno da judicialização da saúde através da literatura jurídica e das ciências sociais, torna-se necessário observar como os tribunais têm utilizado desses arcabouços teóricos para elaborar suas decisões que envolvem a distribuição de medicamentos a base de canabidiol. Nesta senda, foi realizado o levantamentos de julgados com base na consulta de processos de 1º e 2º graus do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), assim como na consulta de jurisprudência do STJ e do STF. A investigação de tais sentenças proferidas tem ainda o intuito de comparar e analisar os fundamentos jurídico-epistêmicos que norteiam os magistrados nos tribunais de primeira e segunda instância e aqueles que orientam os ministros do STJ e STF. O levantamento jurisprudencial feito, no primeiro momento, indicou alguns resultados sobre o comportamento dessas demandas judiciais perante o sistema processual, visto que nos tribunais superiores a pesquisa revelou que não existe, até o momento de finalização dessa pesquisa, qualquer julgado que tenha com conteúdo o fornecimento de medicamentos à base de canabidiol.

194 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Dessa forma, as demandas concernentes à maconha medicinal ficam represadas principalmente nas primeiras instâncias do Judiciário, que podem ser causadas por vários fatores: o primeiro é a dificuldade burocrática para os processos chegarem em tais instâncias, e que por isso demandam mais esforços e mobilização. Podemos ainda ponderar que existe certa harmonia nas decisões das primeiras instâncias que servem como barreira para as mesma chegarem nos tribunais superiores. Contudo, a ausência de pronunciamento do STF e do STJ sobre esses casos não indica indiferença, já que as referidas cortes são agentes fundamentais para favorecer a instrumentalização do judiciário na tentativa de solucionar os conflitos sociais. Ademais, preliminarmente, observa-se algumas similaridades nos processos, dando como exemplos o fato de que a maioria dos litigantes são crianças que são representados por seus pais ou tutores, e a concentração do período temporal, visto que todos foram propostos depois de 2013, o que pode indicar como fator a crise política. Nesse sentido, como medida para facilitar a análise, foram selecionados quatro casos que apresentam peculiaridades e conseguem expressar a construção epistemológica-jurídica das decisões dos Tribunais. O método utilizado para interpretação dos dados coletados fundamenta- se na literatura especializada no assunto da judicialização da saúde e, posteriormente, na análise da construção do discurso adotado nas sentenças.

4.1 Princípio da universalidade e da igualdade no acesso

O julgado do processo de nº 1040239-11.2016.8.26.0053 (SÃO PAULO [Estado], 2017c) demonstra como os juízes têm julgado os pedidos de fornecimento de medicamentos a base de canabidiol para garantir o acesso à saúde. Em resumo, o processo tem como conteúdo uma ação de obrigação de fazer/dar, onde o paciente requeria que o município de São Paulo e a Fazenda do Estado de São Paulo (requeridos) fornecessem medicamentos à base de canabidiol, pois aquele sofria de doença Neoplasia Glial Temporal esquerda e de Astrocitoma Difuso, grau II. Na contestação, alegaram o município e a Fazenda Pública que tal pedido deveria ser declarado improcedente pelo fato do autor não ser considerado hipossuficiente, ou seja, poderia pagar pelo tratamento, e defendiam que o remédio não era registrado para a comercialização pela

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 195 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e que o SUS fornecia terapias alternativas com semelhante resultado. Na decisão proferida pela juíza observa-se claramente como o Poder Judiciário tem se posicionado nessas questões e quais os artifícios jurídicos usados para a construção epistemológica-jurídica de seus argumentos. Como observado, a juíza construiu seu pensamento utilizando o art. 196 e 200 da Constituição Federal, determinando que haveria responsabilidade direta dos entes federados na efetivação do acesso universal e igualitário à saúde. Nesse sentido expôs na sentença: Desse modo, pela regra constitucional aplicável, o Estado tem o dever de garantir a saúde das pessoas e da comunidade, seja por meio de uma política preventiva(através de campanhas para a promoção e proteção da Saúde,ou seja,por informação da população,pela instituição do médico de família,pelas campanhas de vacinação,etc)seja por meio de uma política remediadora(recuperação da saúde por meio de tratamento medicamentosos). (SÃO PAULO [Estado], 2017c). Pela análise da sentença, a juíza afastou a ideia da contestação de que o fornecimento não seria procedente por causa do paciente ter condições de bancar o tratamento, apontando o princípio da universalidade da saúde, pelo qual todos os cidadãos têm direito a seu acesso e o Estado tem dever de fornecê-la, fundamentando-se na interpretação do texto constitucional. Sobre a alegação por parte dos representantes do poder público que defendiam que o medicamento não constava nas listas de fornecimento, por ser muito oneroso aos cofres públicos, e ainda existirem outros medicamentos com semelhantes efeitos, na sentença a juíza estabeleceu que a consequência do princípio da universalidade e da igualdade no acesso a saúde está na imposição do Estado de fornecer o medicamento que demonstra melhores efeitos no paciente, mesmo que seja muito oneroso aos cofres públicos ou que tenha alternativas de tratamento. Em seguida, sobre a alegação por parte dos representantes do Estado, que defendiam que a ANVISA não permitira a comercialização do remédio em solo brasileiro, a juíza anexou em sua sentença notícia do contrário, em que a agência sanitária passou a permitir a comercialização e exportação de remédio com base de canabidiol. Em suma, a sentença é um exemplo de como os tribunais estão se posicionando sobre o fornecimento de medicamentos à base de canabidiol, principalmente sobre como o Judiciário responde, utilizando a dignidade

196 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro da pessoa humana e o direito à saúde, às críticas sobre fornecer remédios que estão fora das listas oficiais de medicamentos. Ainda sobre o direito ao acesso a saúde, a alegação do Estado de que o paciente poderia arcar com os custos do tratamento e por isso o poder público não teria nenhuma responsabilidade, cai por terra com a interpretação feita pela magistrada de que a universalidade da saúde afasta essa barreira econômica feita pelo município e pela Fazenda do Estado de São Paulo.

4.2 Responsabilidade dos agentes públicos

Em síntese, o processo nº 1024142-98.2017.8.26.0602 (SÃO PAULO [Estado], 2017b) trata-se de pedido feito por Mariana Luz, representada por sua curadora Silvana Amaral da Silva, em razão daquela apresentar um quadro clínico de epilepsia e síndromes epilépticas idiopáticas definidas por sua localização (focal/parcial), com crises de início focal e retardo mental não especificado. Sustenta que já fez uso de diversos medicamentos, todavia não obteve um controle adequado para sua moléstia. Deste modo, para um melhor tratamento, seria necessário fazer uso do medicamento Revivid Whole Hemp Drops 1000 mg, 30 ml (30 gotas de 12/12 horas, salvo revisão médica – princípio ativo: canabidiol), consoante orientação médica. Destarte, ajuizou ação visando a obrigar a Fazenda do Estado de São Paulo a fornecer medicamentos à base de canabidiol para a requerente devido sua situação clínica. Em contestação, alegou a Fazenda do Estado, preliminarmente, generalidade do pedido. Aduziu, em linhas gerais, que não dispunha de recursos e equipamentos necessários para realização de tratamento específico. Sustentou que o pedido não merecia prosperar, visto que prejudicaria toda a coletividade, em detrimento de um particular e, ainda, que caberia ao Poder Executivo o estabelecimento de prioridades, segundo critérios de convivência e oportunidade, salientando que a distribuição de recursos para a área da saúde não é feita de modo aleatório, ao sabor de prioridades ou conveniências conjunturais. Portanto, a Fazenda Pública do Estado de São Paulo declarou que haveria uma ingerência, ou seja, violação de competência entre as esferas do poder público, em razão da invasão de atribuições do Poder Executivo

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 197 pelo Judiciário, e que este não poderia transformar-se em órgão gestor dos recursos destinados à saúde pública estatal. Nesse sentido, observa-se que na contestação o Estado baseou sua argumentação na ideia de que o Poder Judiciário não teria competência para agir nesses casos e, quando o faz, cria um quadro institucional desarmonioso, pois dois atores estatais (Estado e os Tribunais) se confrontam na aplicação de políticas públicas. Assim sendo, em sentença a juíza fundamentou sua decisão em dois principais argumentos: o direito à saúde e a responsabilidade do Estado em promover o seu acesso, assegurando a seus cidadãos uma vida digna. Para tanto, utiliza-se do entendimento do Supremo Tribunal Federal, por meio do voto do Ministro Celso de Mello, que diz: O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. (SÃO PAULO [Estado], 2017b). Desse modo, em sua construção jurídica, estabelece que de acordo com os os preceitos legislativos, advindos da Constituição e da Legislação Complementar, cabe as todas esferas estatal (União, Estados e Municípios) o fornecimento de medicamentos, tratamentos e entre outros, que possibilitem a efetivação plena do direito à saúde, e que o mesmo texto normativo determina ao Judiciário a competência para ser agente fiscalizador, e por isso não seria um desrespeito ao Estado de Direito. Nesse sentido decide: Em resumo, a única leitura possível da Carta da República e da legislação pertinente, ao estatuir a obrigação estatal de prover a saúde dos necessitados, é a de que ela atribuiu a todos os entes federativos o mister de fornecer medicamentos garantidores de uma vida digna e cabe ao Judiciário garantir o cumprimento dessa promessa constitucional do Estado brasileiro sem que isso o transforme em cogestor dos recursos destinados à saúde pública. (SÃO PAULO [Estado], 2017b). Assim, em sua decisão, a magistrada rebate as críticas feitas pela Fazenda Pública, pois argumenta que a ingerência dos tribunais não é inconstitucional, visto que não ultrapassa as competências governamentais e mesmo que a sentença do fornecimento da saúde tenha um caráter individualista, ou seja, resolve a questão do acesso à saúde a apenas

198 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro dos pleiteantes, essa interferência cumpriria o estabelecido no texto constitucional em que o Judiciário teria a função de agente fiscalizador.

4.3 Responsabilidade dos agentes privados

Na apelação de nº 1105111-88.2016.8.26.0100 (SÃO PAULO [Estado], 2018) impetrada no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na comarca de São Paulo, em que o apelante Flavio Tadeu Sepicam pleiteava o fornecimento de medicamento a base de canabidiol em face de Bradesco Saúde S.A. Trata-se, em resumo, de demanda ajuizada por beneficiário, com a finalidade de obter cobertura para tratamento de “doença de Parkinson”, por meio do uso do medicamento “canabidiol”. A operadora se negava a fornecer o remédio porque considerava ilícita sua importação, à míngua de registro na ANVISA, bem como ausente cobertura contratual para medicamentos experimentais não previstos no rol da ANS e de uso domiciliar. O autor alegava que não existia óbice legal à importação do medicamento “canabidiol”, uma vez que a ANVISA autorizava o ingresso excepcional da droga no país para uso pessoal, e que o fato de o medicamento ser ministrado fora do ambiente hospitalar não retirava a obrigatoriedade de fornecimento, pois era imprescindível ao tratamento da doença. Em primeira instância, a sentença não acolheu o pedido do autor, por considerar que, embora possível a importação, a operadora não estaria obrigada a fornecer medicamento de uso domiciliar, o que demonstra certa anormalidade na decisão do juiz a quo, visto o entendimento jurisprudencial de que o medicamento fornecido pode ter natureza de uso domiciliar. Nessa senda, o magistrado determinava que não há mais espaço jurídico para argumentar se a importação medicamento pretendido é ilegal, visto que através de uma regulação específica da agência reguladora (ANVISA), a RDC nº 17/2015, permite-se a importação de medicamentos que utilizem em sua composição o canabidiol. Desse modo, o plano de saúde argumentava que não havia fornecido o medicamento por sua natureza experimental, e também pelo fato de seu uso ser domiciliar, não sendo obrigado a fornecer o medicamento. Por outro lado, apontava o apelante a fragilidade do seu quadro médico e que outros medicamentos não tinham mostrado efeitos no combate a sua doença.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 199 A sentença do magistrado indicava a gravidade do caso em tela, devido à fragilidade demonstrada pelo autor, e por isso afirma que o medicamento pretendido não teria um caráter meramente experimental, haja vista que para a manutenção da saúde do apelante, ele precisava urgentemente do remédio. Em sua argumentação, o magistrado estabelece que o caráter experimental e de uso doméstico não justifica a negativa de cobertura do tratamento médico: Assim, salvo hipóteses de comprovada teratologia, não é lícito ao plano de saúde interferir arbitrariamente na relação médico-paciente para julgar desnecessário procedimento expressamente recomendado pelo profissional que acompanha de perto o quadro de saúde do paciente. [...] Negar o fornecimento do medicamento, nessas circunstâncias, equivale a recusar cobertura ao próprio tratamento da patologia do paciente, uma vez que a finalidade de sua utilização é justamente atuar para evitar a progressão da doença grave que acomete o autor. Ademais, como a hipótese não trata de adoção de tratamento domiciliar em substituição de outro equivalente em regime hospitalar, por mera conveniência do paciente, não se afigura razoável a recusa, considerando o objeto do contrato. (SÃO PAULO [Estado, 2018). Destarte, este julgado traz uma situação um pouco diferente, no tocante às direito a saúde e a judicialização do acesso à saúde, visto que entre as partes do processo estavam dois agentes de direito privado, o autor como pessoa física e o plano de saúde como pessoa jurídica. Assim, adentra-se em uma discussão muito interessante e importante, qual seja, se pessoa de natureza privada tem a responsabilidade de promoção do direito à saúde, e se o texto constitucional e a interpretação dos tribunais sobre esse assunto abarcam esses agentes. Para fortalecer sua posição, o juiz utiliza de jurisprudência para demonstrar como o Poder Judiciário tem apreciado casos parecidos, como observa-se nos julgados: PLANO DE SAÚDE Nulidade da sentença por cerceamento de defesa Inocorrência. PLANO DE SAÚDE Tratamento com medicamento “Canabidiol (CBD-THC) 2,5” Negativa de cobertura Descabimento Questão que se submete aos ditames do Código de Defesa do Consumidor Incabível negar cobertura de tratamento ao segurado sob o fundamento de

200 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro que o procedimento não possui registro no país ou não está previsto no rol da Agência Nacional de Saúde Demorados trâmites administrativos de classificação não podem deixar o paciente a descoberto, colocando em risco bens existenciais Incabível, ademais, a negativa de cobertura do medicamento de que necessitou o demandante, sob o fundamento de que é importado Recurso desprovido. (TJSP; Apelação 1046736-52.2016.8.26.0114; Relator (a): JOSÉ ROBERTO FURQUIM CABELLA; Órgão Julgador: 6a Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas – 1a Vara Cível; Data do Julgamento: 18/08/2017; Data de Registro: 18/08/2017). (SÃO PAULO [Estado], 2018). Em continuidade, o julgado da 7ª Câmara de Direito Privado, Foro Regional VIII – Tatuapé – 4ª Vara Cível: Ação de Cobrança Plano de Saúde Reembolso de despesas com medicamento Autora portadora de síndrome parkinsoniana (CID 10 G20) Operadora recusou cobertura de medicamento importado a base de canabidiol A operadora pode, na avença celebrada, estabelecer quais enfermidades são cobertas pelo seguro, mas não o tipo de tratamento, intervenção, exame e afins (médicos, cirúrgicos, hospitalares, domiciliares, etc.) a ser prescrito Súmula 102 do TJSP Dever de fornecimento de medicamento importado foi criado pela Lei no 9.656/1998 que, por ser lei especial posterior, prevalece sobre leis gerais e anteriores (Leis no 6.360/1976 e no 6.437/1977) que proibiram importação de medicamento não registrado na Anvisa Sentença mantida – Recurso improvido. (TJSP; Apelação 1017712-40.2015.8.26.0008; Relator (a): LUIZ ANTONIO COSTA; Órgão Julgador: 7a Câmara de Direito Privado; Foro Regional VIII – Tatuapé – 4a Vara Cível; Data do Julgamento: 07/06/2017; Data de Registro: 08/06/2017). (SÃO PAULO [Estado], 2018). Isto posto, observa-se que devido a natureza contratual existente entre as partes, isto é, entre o consumidor e o plano de saúde, cabe a responsabilização de empresas privadas que tenham como atividade econômica a saúde, na promoção do direito à saúde, enquadrando, através de uma interpretação analógica, as empresas do setor nos preceitos constitucionais que inicialmente foram pensados para o poder público.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 201 4.4 Proibição do cultivo doméstico

Trata-se de habeas corpus preventivo de nº 1023358- 65.2017.8.26.0071 (SÃO PAULO [Estado], 2017a), da Comarca de Bauru, Foro de Bauru, da 3ª Vara Criminal, impetrado por Daniel Deperon de Macedo, em favor de Carlos Alberto Valero Figueiredo e Maria Stela de Figueiredo Avelar, figurando como autoridade coatora o delegado titular da delegacia de polícia de Avaí e o comandante do batalhão de polícia militar de Bauru e Avaí, pleiteando a concessão da ordem de habeas corpus preventivo para que as autoridades coatoras fossem impedidas de proceder à prisão em flagrante dos pacientes pela produção artesanal de Cannabis sativa, assim como a apreensão dos vegetais. O filho dos pacientes, Pedro Figueiredo, é portador de espectro de autismo e epilepsia de difícil controle. Os representantes do paciente alegavam que por causa do excesso de burocracia e também do alto custo do medicamento, devido sua importação, tornara-se inviável a compra desses medicamentos, razão pela qual começaram a fabricar o extrato do canabidiol. Argumentaram que ocorreu uma diminuição drástica das convulsões sofridas pelo filho, decorrente do uso do extrato produzido artesanalmente da planta da cannabis. Na sentença, o juiz estabelece, a partir de uma lógica legalista, que dentro da legislação brasileira proíbe-se o cultivo de maconha, mesmo que a sua finalidade seja terapêutica ou medicinal, como observa-se no trecho de sua fala: No item 7, por sua vez, está dito que: “fica permitida, excepcionalmente, a importação de produtos que possuam as substâncias canabidiol e/ou tetrahidrocannabinol (THC), quando realizada por pessoa física, para uso próprio, para tratamento de saúde, mediante prescrição médica, aplicando-se os mesmos requisitos estabelecidos pela Resolução da Diretoria Colegiada – RDC no 17, de 6 de maio de 2015.(Incluído pela Resolução – RDC no 66, de 18 de março de 2016). Dessa maneira, tendo em vista a regulamentação supra, somente se admite, em relação à utilização da cannabis, medicamentos registrados na Anvisa, ou a importação de produtos mediante prescrição médica. Assim, o extrato produzido artesanalmente da planta cannabis não se enquadra dentre as hipóteses de licitude da utilização do canabidiol ou tetrahidrocannabinol.

202 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Destarte, ausente regulamentação permissiva, o pedido não pode ser atendido. (SÃO PAULO [Estado], 2017a). Ademais, sob o argumento o preço elevado do remédio importado, o magistrado defende que se a família não pode arcar com as custas, deveria o paciente socorrer-se da via judicial, para obrigar o Estado a fornecer o produto, já que, como é sabido, a saúde é direito de todos e dever do Estado. Percebe-se nesta decisão o que foi apontado sobre o novo papel do Direito em uma sociedade em transição, sobretudo, o que denomina- se do paradigma “emancipação versus regulação estatal”, afirmado por Santos (2003), isto é, o Judiciário na contemporaneidade exerce um papel progressista em sua defesa da dignidade de pessoa humana, contudo esse processo é limitado pelo que se chama de espaço do possível, em que, no caso em tela, ocorre a promoção do acesso à saúde dentro do aspecto capitalista. Nessa senda, observa-se que o cultivo doméstico da maconha traria mais independência e rapidez para os pacientes e suas famílias, visto que ele não necessitaria de pleitear frente aos agentes estatais o fornecimento do medicamento, que como já analisamos pode demorar, e ainda pode-se ver obrigado a adentrar os trâmites judiciais para efetivar seu direito, além de o cultivo proporcionar uma via mais barata.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constata-se a partir da análise das sentenças judiciais uma nova postura dos tribunais e seus magistrados uma mudança decorrente primeiramente de um período de transição dos pensamentos revolucionário e regulador (SANTOS, 2003), e também pela ocupação dos espaços de uma ideologia contra-hegemônica, que tradicionalmente era responsável, em um passado próximo, pela legitimação de um projeto político-segregador. Inicialmente, o objetivo dessa pesquisa foi investigar se a judicialização da saúde trouxe algum avanço na proteção desse direito fundamental, assegurado pelo texto constitucional, utilizando como ferramenta metodológica a literatura vigente sobre o assunto e o exame das decisões judiciais das três instâncias do Judiciário. Dessa análise, verificou-se certo avanço na efetivação do acesso universal à saúde, visto que as decisões proferidas pelo Judiciário garantiram às pessoas que buscaram essa tutela uma condição de vida digna, efetivando assim o proposto no texto normativo.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 203 Contudo, mesmo apresentando um aspecto progressista, a judicialização é uma consequência direta da crise política, advinda do esvaziamento dos espaços políticos, em que busca-se a tutela do judiciário para promover políticas públicas, que deveriam ser aplicadas pelas outras esferas do Estado. Portanto, mesmo essa nova atuação dos magistrados de efetivarem os preceitos constitucionais, faltam mais estudos sobre suas consequências nos conflitos sociais, gerando a questão sobre qual será o limite do direito em promover um projeto político emancipador, ou se a forma efetivação de direitos traz efetivamente alguma mudança coletiva.

REFERÊNCIAS

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204 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 1105111-88.2016.8.26.0100. Relatora: Des. Viviani Nicolau. Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado. Julgamento em: 19 fev. 2018. Disponível em: https://bit.ly/37oQXRY. Acesso em: 05 set. 2019. SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo nº 1023358-65.2017.8.26.0071. Juiz de Direito: Cláudio Augusto Saad Abujamra. Órgão Julgador: 3ª Vara Criminal do Foro de Bauru. Julgamento em: 22 ago. 2017a. Disponível em: https://bit. ly/39xuFAh. Acesso em: 05 set. 2019. SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo nº 1024142-98.2017.8.26.0602. Juíza de Direito: Karina Jemengovac Perez. Órgão Julgador: Vara da Fazenda Pública do Foro de Sorocaba. Julgamento em: 28 jul. 2017b. Disponível em: https://bit. ly/2JzoYH0. Acesso em: 05 set. 2019. SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo nº 1040239-11.2016.8.26.0053. Juíza de Direito: Maricy Maraldi. Órgão Julgador: 9ª Vara de Fazenda Pública do Foro Central. Julgamento em: 17 abr. 2017c. Disponível em: https://bit.ly/3obb7Wc. Acesso em: 05 set. 2019. SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Ético-Jurídicos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. (org.). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 533-586. SOUZA, Maria Hildete S. C. et al. A intervenção do Poder Judiciário no setor de saúde suplementar: tutelas antecipadas como instrumento de garantia da assistência à saúde no Brasil. Divulgação em saúde para debate, Rio de Janeiro, n. 37, p. 44-60, jan. 2007.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 205

O PAPEL DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO NO SUS EM TEMPOS DE CRISE NA SEGURIDADE SOCIAL

Guilherme Araújo Morelli Costa*1

André Luís de Souza Júnior**2

João Pedro Costa Moreira3***

Renan Jorge Neves4***

RESUMO: O presente trabalho visa a entender a questão da saúde pública na ótica da crise atual da seguridade social, e como o orçamento participativo pode ser uma alternativa para a melhor eficiência de recursos diante dos problemas enfrentados. O Brasil se encontra atualmente em um momento delicado, com menos investimento em saúde pública e com uma eficiência de alocação de recursos públicos pouco ideal, agravada ainda mais pela crise da seguridade social. Através de uma análise lógico-argumentativa, somadas à historicidade do direito à saúde e da seguridade social, conclui-se que o orçamento participativo, ferramenta de democratização das decisões públicas, tem o potencial de modificar e melhorar a situação do Sistema Único de Saúde e da saúde pública em geral, mesmo em tempos de crise. Palavras-chave: saúde pública. seguridade social. orçamento participativo. eficiência. ABSTRACT: This paper aims to understand the issue of public health from the perspective of the current social security crisis, and how participatory budgeting can be an alternative for better resource efficiency against the problems faced. Brazil is currently at a delicate time, with lower investments in public health and an subpar allocation of public resources, further aggravated by the social security crisis. Through a logical-argumentative analysis, and also using the historicity of the right to health and social security, it can be concluded that participatory budgeting, a tool for democratization of public decisions, has the potential to modify and improve the situation of the Unified Health System and public health in general, even in times of crisis. Keywords: public health. social security. participatory budgeting. efficiency.

INTRODUÇÃO

O direito à saúde é um fenômeno que sofreu alterações durante os anos e hoje passa por várias dificuldades para sua efetiva realização, tanto no Brasil como no mundo. Em governos recentes, o direito à saúde, em especial a saúde pública, encontra-se uma situação de crise em seu financiamento e execução. * Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Franca/SP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1675730448218433. ** Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Franca/SP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6236658554818128. *** Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Franca/SP. Bolsista pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC/CNPq. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6818512764269713. **** Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Franca/SP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4088526029545682.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 207 Não apenas a saúde pública, mas também a própria seguridade social brasileira em geral se encontram com problemas. Em 2019, as áreas da saúde, educação e cidadania tiveram aproximadamente R$ 7,5 bilhões em verbas congeladas (RESENDE, 2019). E a tendência é de mais cortes. Dessa forma, fica imprescindível a aplicação de novas formas de arrecadação e financiamento do sistema de saúde brasileiro. O orçamento participativo e a melhoria da eficiência com participação da população podem se mostrar como uma alternativa para a realização dos objetivos da seguridade social, do direito à saúde e da universalização do SUS.

1 O DIREITO À SAÚDE

1.1 Evolução e consagração no direito interno

O direito à saúde foi sendo integrado ao longo dos governos brasileiros em suas constituições. Porém, em vários momentos de forma discreta. A Constituição de 1891 pouco empregava a expressão “saúde’’ em seu texto, apenas fazia uma breve alusão a ela no artigo 175, quando afirmava que “a aposentadoria poderia ser dada aos funcionários públicos em caso de invalidez nos serviços da Nação’’. A saúde iria então surgir como uma questão social no período cafeeiro graças ao trabalho assalariado (MARTINS, 2008, p. 41). Através da Constituição de 1934, com suas previsões de proteção ao trabalhador, a saúde, na forma de assistência sanitária e médica, é garantida para o trabalhador e gestantes, dando para estas o direito a descanso sem prejuízo de seu salário, além de também instituir a previdência mediante contribuição igual da União para empregador e empregado nos casos de velhice e acidentes de trabalho. Dessa forma a saúde passa a ser condição de direito subjetivo do trabalhador. A Constituição de 1937, por sua vez, concentrou-se em abranger os riscos sociais (MARTINS, 2008, p. 42). Apesar da criação do Ministério da Saúde, em 1950, com o objetivo de ampliar a proteção à saúde, a Constituição de 1946 ainda vinculava a assistência à saúde ao trabalhador, não caracterizando como universal. No entanto, em 1954, foi criada a Lei nº 2.312, que dispunha sobre normas gerais de “defesa e proteção à saúde’’ com a afirmação sobre o dever do Estado e da família nesse quesito. Tal lei foi posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 49.947 de 1961 (Código Nacional de Saúde) e afirmou

208 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro que as observâncias da regulação de saúde são dever não apenas do direito público e privado, como de qualquer pessoa física ou jurídica. Ambas as leis foram revogadas pela Lei nº 8080/90, a Lei Orgânica Nacional da Saúde. Em geral, do início do século passado até o final dos anos sessenta, o sistema de saúde brasileiro priorizava o combate a doenças em massa através de campanhas públicas. (MARTINS, 2008, p. 43-44). Com o advento da Constituição de 1967, e a partir dos anos setenta, o foco do sistema de saúde passa a ser a assistência médica curativa e individual, com expansão da cobertura assistencial. Em 1975, cria-se, por meio da Lei nº 6.229, o Sistema Nacional de Saúde, que separa as ações de saúde pública das ações de atenção às pessoas. Em 1979, surge o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), importante marco para a mudança do modelo de atenção à saúde para um modelo de expansão da cobertura (MARTINS, 2008, p. 46). A Constituição de 1988 inova ao tratar da saúde como parte integrante do próprio interesse público e como princípio-garantia em benefício do indivíduo, ao contrário das anteriores que colocavam a assistência à saúde como algo exclusivo dos trabalhadores. Em seus artigos 196 a 200, a Carta Magna assegura o exercício do direito à saúde e afirma que este é direito público oponível ao Estado (artigo 198). A Constituição ainda incorpora as propostas feitas pela Reforma Sanitária brasileira e cria o Sistema Único de Saúde (SUS), posteriormente regulado pelas Leis nº 8.080/90 e 8.142/90. A Lei Orgânica Nacional da Saúde ratifica a concepção de saúde disposta na Declaração dos Direitos do Homem, e inclui tanto o dever do Estado como o dever da família, pessoas e empresas na realização dos objetivos do sistema de saúde moderno (MARTINS, 2008, p. 51). Na Carta Magna, a saúde é um direito social e de todos, e parece que ela adota o conceito de saúde como um completo bem-estar físico, social e mental, acompanhando a ideia da comunidade internacional (ROCHA, 2011, p. 17).

1.2 Consagração no direito internacional

O direito à saúde universal é algo considerado recente na comunidade internacional. Por muito tempo, vários povos e culturas se utilizavam de conceitos diferentes e imprecisos sobre o que vem a ser a saúde (ROCHA, 2011, p. 16).

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 209 Na Grécia Antiga, havia pensamentos diferentes sobre o tema: alguns pensadores imaginavam que a saúde estava relacionada com o meio- ambiente e condições de vida do ser humano, enquanto outros defendiam que ela era apenas a mera ausência de doenças (ROCHA, 2011, p. 16). Após a Segunda Guerra Mundial, somente com a reorganização política internacional e com a criação da Organização Mundial de Saúde em 1946 é que a saúde passa a ser reconhecida como um direito fundamental de todo ser humano, independente de sua raça, religião, opinião política e condição econômica. Para a OMS, a saúde não seria apenas a mera ausência de doenças, mas sim um completo bem-estar físico, social e mental. (ROCHA, 2011, p. 16). O primeiro tratado internacional sobre a saúde pública na OMS foi a Convenção-Quadro da OMS para Controle do Tabaco, adotada pelos 192 Estados-membros e sendo uma resposta à epidemia de tabaco no planeta, entrando em vigor em 2005. Foi o acordo com maior número de adesões na história da Organização das Nações Unidas, demonstrando a crescente preocupação com a questão da saúde no mundo (BUSS, 2018). A Promoção da Saúde surgiu pela primeira vez com Henry Sigerist, na década de 40, que identificou os pilares da medicina como a promoção da saúde, prevenção de doenças, recuperação do enfermo e reabilitação. Em 1986, a Carta de Ottawa ampliou o conceito de Promoção de Saúde incorporando dimensões socioeconômicas a ela. Assim, foi feita a Primeira Conferência Internacional em Promoção da Saúde na cidade de Ottawa, no Canadá, identificando os pré-requisitos para a saúde como a paz, educação, habitação, poder aquisitivo, ecossistema estável e conservação dos recursos naturais. A partir disso foram feitas outras conferências para a Promoção da Saúde (MARTINS, 2008, p. 29). Wal Martins analisa, de forma concisa, os objetivos de tais conferências: Pelos princípios referidos, bem como pelas estratégias sugeridas em ditas Conferências, podemos afirmar de forma resumida que, pelo âmbito de uma perspectiva global, faz- se essencial a ampliação do rol de elementos necessários, para alcance da Promoção da Saúde em sua integralidade. Nesse período da história, o que se tentava demonstrar era a necessidade de: 1. Busca de realização de um ambiente sustentável à saúde; 2. Combinação de ações; 3. Conciliação dos interesses econômicos e dos propósitos sociais de bem-estar; 4. Diminuição das desigualdades (equidade

210 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro social); 5. Equidade de tratamento e atendimento; 6. Estímulo à cooperação entre os povos (solidariedade); e 7. Fortalecimentos dos mecanismos de Promoção da Saúde (MARTINS, 2008, p. 32). Dessa forma, a cooperação internacional é um dos importantes mecanismos para a melhor eficiência e execução dos sistemas de saúde no Brasil e no mundo. Através da ajuda e interação entre os povos, novos conceitos e estratégias são postas em prática para que a dignidade da pessoa humana seja efetivada de forma correta e sustentável.

1.3 O financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS)

A Lei nº 8.080/90, em seu artigo 31, afirma que o orçamento da seguridade social irá destinar ao SUS os recursos necessários para a realização de suas atividades. Art. 31. O orçamento da seguridade social destinará ao Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com a receita estimada, os recursos necessários à realização de suas finalidades, previstos em proposta elaborada pela sua direção nacional, com a participação dos órgãos da Previdência Social e da Assistência Social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (BRASIL, 1990). A própria Constituição Federal de 1988 garante a universalidade do acesso à saúde e destina os recursos próprios da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios e recursos da seguridade social para o financiamento do SUS. A Emenda Constitucional nº 29/2000 acaba ainda por definir os percentuais mínimos de investimentos dos entes da federação para a saúde pública (CARVALHO E SANTOS, 2006, p. 197). A referida emenda adota um sistema de financiamento tripartite: os Municípios e Distrito Federal devem destinar 15% do produto da arrecadação de seus impostos, enquanto os Estados devem destinar 12%. No caso da União, a Emenda do Teto dos Gastos Públicos (EC 95/2016) afirma que atualmente e no futuro a União deve aplicar o montante de execução financeira do exercício anterior, corrigido apenas pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo. Um detalhe importante é que a Lei Complementar nº 141/2012, que dispõe sobre valores mínimos a serem aplicados anualmente em ações e serviços públicos de saúde, afirma em seu artigo 27 que quando os recursos transferidos estiverem sendo

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 211 utilizados de maneira diversa do artigo 3º da mesma lei (são despesas de saúde a vigilância em saúde, capacitação de pessoa, desenvolvimento científico, saneamento, entre outras) os mesmos devem ser devolvidos ao Fundo de Saúde do Ente Beneficiário. (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS, 2018). A Constituição Federal, em seu artigo 198, definiu a organização e aplicação dos recursos dos entes brasileiros: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade. [...] § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre (...). (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) (BRASIL, 1988). No parágrafo 3º do mesmo artigo, é dito que por Lei Complementar, reavaliada de cinco em cinco anos, serão estabelecidas questões como os percentuais que a União deve aplicar na saúde, normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas nas esferas de poder, entre outros. (BRASIL, 1988). Além dos recursos já citados, a Emenda Constitucional nº 29/2000 e o artigo 195 da Constituição ainda colocam que recursos de outras fontes também integram o orçamento da saúde, e são considerados recursos de outras fontes aqueles que podem ser prestados sem prejuízo da assistência à saúde, que não interferem no atendimento médico-hospitalar e não estão diretamente ligados ao atendimento assistencial como as perícias e a assistência técnica. Outras fontes incluem recursos de doações, ajudas, contribuições, taxas e multas no âmbito do SUS, entre outras. E todas as receitas geradas pelo SUS serão depositadas em fundos contábeis de saúde (CARVALHO E SANTOS, p. 202).

212 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 2 SEGURIDADE SOCIAL

A sociedade é composta, em essência, por indivíduos singulares que, em conjunto, são capazes de proporcionar desenvolvimento, comodidades e bem-estar uns aos outros e, por conta disso, amparar cada um desses cidadãos é fundamental para o fortalecimento da própria sociedade. É neste esteio que se desenvolve a seguridade social, mecanismo que preserva o corpo social de determinados eventos que afetam direta ou indiretamente sua dignidade (FERREIRA, 2017). Tais medidas protetivas constituem-se em direitos que devem ser providos tanto pela administração pública, em função do interesse público, como pela própria sociedade. Para Sérgio Pinto Martins, O Direito da Seguridade Social é o conjunto de princípios, de regras e de instituições destinado a estabelecer um sistema de proteção social aos indivíduos contra contingências que impeçam de prover as suas necessidades pessoais básicas e de suas famílias, integrado por ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, visando assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (MARTINS, 2011, p. 21). Em termos legais, a seguridade social trata-se de um conjunto de atos praticados pela administração pública, em parceria com a sociedade, buscando assegurar os direitos inerentes à saúde, previdência e assistência social, conforme os dizeres do artigo 194 da Constituição Federal. Cabe, neste artigo, recortarmos o primeiro pilar da seguridade social, a fim de entendermos como se constrói o principal programa de saúde do Estado brasileiro, o SUS, dentro do contexto da seguridade social.

2.1 Surgimento e evolução

Ao nos dispormos a estudar a crise da seguridade social no Brasil é preciso que entendamos como se dá seu amparo jurídico na atualidade. Para isso, fica indispensável trazer a este texto uma análise histórica e sua consequente evolução. Nas palavras de Waldemar Ferreira, “nenhum jurista pode dispensar o contingente do passado a fim de bem compreender as instituições jurídicas dos dias atuais” (FERREIRA, 1962, p. 1). A partir do momento em que o ser humano constitui-se em grupos, independente do sistema de organização dos indivíduos, existem os que padecem de miserabilidades, tais como enfermidades,

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 213 velhice, neonato e invalidez, impossibilitando que determinadas células deste corpo não consigam, por si só, sobreviverem em meio aos vários desalentos aos quais estão submetidos. “Assim, a sociedade humana é chamada permanentemente, em todas as épocas, em qualquer estágio do seu desenvolvimento, a encarar esse problema” (ZELENKA, 1959, p. 8). A primeira noção de organização estruturada para proteção aos pobres e necessitados encontram-se registrada ainda no Império Romano (27 a.C. – 476 d.C.), pela figura do pater familiae, o qual gerenciava a proteção da família (vínculo sanguíneo em linha reta ou colateral). Para os demais desalentados desta sociedade, cabia a expectativa da exploração de seus corpos e trabalhos, pelos quais recebiam uma quantia para subsistência (BRAGA, 2017, p. 12). Por outro lado, outra linha aponta que mesmo na Roma Antiga existia um sistema de solidariedade e amparo aos marginalizados, organizado pelo pater familias. “A família romana, por meio do pater familias, tinha a obrigação de prestar assistência aos servos e clientes, em uma forma de associação, mediante contribuição de seus membros, de modo a ajudar os mais necessitados” (MARTINS, 2011, p. 4). Avançando alguns séculos, para a Inglaterra do século XVI, presenciamos o fenômeno do êxodo rural, responsável por trazer massas de trabalhadores das zonas rurais para os centros urbanos, na expectativa de melhores condições de vida. O sistema de emprego inglês não conseguiu absorver a grande quantidade de pessoas, o que culminou em uma legião de andarilhos nas ruas inglesas, elevando os níveis de violência que assustaram a Coroa Inglesa. Em resposta, no ano de 1601, foi editada a Poor Relief Act (Lei dos Pobres), a qual trazia um caráter assistencialista (primeira lei sobre assistência social), com a criação de asilos e albergues, além de um auxílio financeiro que permitia aos pobres a subsistência. Essa “oficialização da caridade” – como foi dito, certa vez – tem importância excepcional: colocou o estado na posição de órgão prestador de assistência àqueles que – por idade, saúde e deficiência congênita ou adquirida – não tenham meios de garantir sua própria subsistência (RUSSOMANO, 1978, p. 12). Outro marco no enredo da seguridade social foi a Revolução Francesa, a qual carregava como bandeira o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Os ideais que deflagraram a revolução também foram base de sustentação para um dos mais importantes documentos de Direitos

214 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Humanos da história da humanidade, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 02 de outubro de 1789. Tal documento tornava universal os direitos inerentes à existência humana, resguardando os mais necessitados por meio de uma efetiva proteção social. Assim dispõe o artigo 21 do referido documento: Os auxílios públicos são uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos infelizes, quer seja procurando-lhes trabalho, quer seja assegurando os meios de existência àqueles que são impossibilitados de trabalhar (FRANÇA, 1793). Chegando ao século XX, a seguridade social ganhou respaldo constitucional com a Constituição do México de 1917. A Carta protegia os trabalhadores na medida em que responsabilizava o empresariado pelos acidentes e moléstias no trabalho, garantindo aos laborantes indenizações.

2.2 A Evolução da Seguridade Social no Brasil

Preocupações acerca da seguridade social no Brasil remontam aos anos de 1500, quando Braz Cubas criou um plano de pensão para os empregados da Santa Casa de Santos. Em 1821, Dom Pedro I assegurou aposentadoria aos professores com 30 anos ou mais de serviço, além de um abono de ¼ do salário para os que continuassem na carreira. É possível notar que o tema seguridade acompanha o desenvolvimento do Brasil como nação e, para fins didáticos, vamos analisá-lo no contexto brasileiro levando em consideração os textos constitucionais que pautam nossa história. No bojo da Constituição de 1824 pouco se assegurava aos indivíduos. Por menos, garantia o estabelecimento de socorros públicos, que viriam a ser regulados por lei posterior. O Código Comercial de 1850, por sua vez, estipulou que os vencimentos de trabalhadores acidentados no curso do trabalho não seriam interrompidos por um prazo de três meses. A Constituição de 1891 inovou ao dar início às tratativas sobre aposentadoria. Em seu artigo 75 determinou que a “aposentadoria só poderá ser dada aos funcionários públicos em caso de invalidez no serviço da Nação”. A previdência social, por sua vez, foi instituída pela Lei Eloy Chaves (Decreto n° 4.682, de 1923), com a criação de Caixas de Aposentadoria e Pensões para os ferroviários nacionais. Em 1930, as Caixas de Aposentadorias e Pensões se disseminaram, abrangendo outras categorias profissionais onde cada uma delas passava a ter um fundo

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 215 próprio, com contribuições advindas do trabalhador, empregador e governo. Já na Era Vargas, a Constituição de 1934 suportava “assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante” (art. 121, I, d). (MARTINS, 2011). Passada a Era Vargas, promulga-se o texto constitucional de 1946, que traz, pela primeira vez, a expressão “previdência social”, substituindo “seguro social”, dando início, portanto, a sistematização constitucional da matéria previdenciária. Além disso, delegou à União a competência em legislar sobre os pilares da seguridade social: “(...) de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde” (art. 5º, XV, b). É também da União, na Constituição de 1967, a competência para estabelecer planos nacionais de educação e saúde, conforme seu inciso XIV do artigo 8º. Sendo assim, é preocupação da União trabalhar para a efetivação da saúde nos termos da seguridade social. A Constituição Federal de 1988 foi um marco quando se fala em seguridade social. Quando recortamos para o pilar da saúde, foco deste artigo, observamos um aumento expressivo da palavra “saúde” no texto constitucional. Passamos de 2 menções para 80, um crescimento de 3.900% (BRASIL, 1988). O texto não se limita a questões meramente políticas, mas avança em um terreno de cidadania, positivando direitos que garantem a existência do homem de forma digna, buscando, ainda, os chamados “direitos sociais”, previstos nos artigos 5º e 6º do referido texto constitucional. (BRAGA, 2017).

3 SITUAÇÃO DA SEGURIDADE SOCIAL NO BRASIL

A Seguridade Social no Brasil está em queda de prestação de serviço e em risco de colapsar. Nesse sentido, o governo vem cortando verbas dos gastos discricionários nas mais diversas áreas, inclusive na Seguridade Social (CARNEIRO, 2019). As verbas na área da Saúde foram as mais afetadas, além uma reforma da previdência tramitar no Parlamento (RESENDE, 2019). Ela visa a aumentar a idade necessária para que os trabalhadores se aposentem, além de realocar os funcionários públicos para o Regime Geral de Previdência Social. Com isso, o governo pretende diminuir os gastos. Já em relação a quão bem são alocados os recursos da seguridade e a quem estes se destinam, é melhor que se faça uma análise separada da sua composição. O sistema de saúde brasileiro é progressivo, ou seja, os recursos se destinam aos que financeiramente mais necessitam. De acordo com o

216 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Banco Mundial, 60% dos recursos gastos em saúde pública se destinam aos 90% mais pobres (ARAUJO; PONTES, 2017). Mas a saúde ainda peca em questão de eficiência de alocação de recursos e de produtividade dos médicos, segundo o mesmo estudo.

3.1 O financiamento da Seguridade Social

Para a área, no Brasil, o financiamento é feito tanto pela União, quanto pelos estados e os municípios, de acordo com o artigo 195 da Constituição Federal, valendo-se da captação dos recursos de forma direta ou indireta da sociedade, através de empregadores, trabalhadores e pela receita dos concursos de prognósticos, formando o que se chama de modelo contributivo, que recai sobre todos (CASTRO; LAZZARI, 2017). Essa receita é proveniente, em sua maioria, das Contribuições Sociais Estritas ou Previdenciárias, mas também das Dotações Orçamentárias (IBRAHIM, 2016). Via de regra, as Contribuições Sociais vêm da União, para os seguintes casos: Constituem contribuições sociais, as quais são exigidas com base nas leis que as instituíram, e que estão agrupadas no Regulamento da Previdência Social (parágrafo único do art. 195 do Decreto n. 3.048, de 6.5.1999): – as das empresas, incidentes sobre a remuneração paga, devida ou creditada; – aos segurados e demais pessoas físicas a seu serviço, mesmo sem vínculo empregatício; – as dos empregadores domésticos, incidentes sobre o salário de contribuição dos empregados domésticos a seu serviço; – as dos trabalhadores, incidentes sobre seu salário de contribuição; – as das associações desportivas que mantêm equipe de futebol profissional, incidentes sobre a receita bruta decorrente dos espetáculos desportivos de que participem em todo o território nacional em qualquer modalidade desportiva, inclusive jogos internacionais, e de qualquer forma de patrocínio, licenciamento de uso de marcas e símbolos, publicidade, propaganda e transmissão de espetáculos desportivos; – as incidentes sobre a receita bruta proveniente da comercialização da produção rural;

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 217 – as das empresas, incidentes sobre a receita ou o faturamento e o lucro; – as incidentes sobre a receita de concursos de prognósticos. Enquanto as Dotações Orçamentárias, via de regra, são provenientes dos estados e municípios no tratamento de seus servidores (IBRAHIM, 2016). Fazendo um recorte dos recursos da União, a distribuição de gastos primários, nos quais se incluem os da Seguridade Social, se dá da seguinte forma de acordo com o Relatório Resumido de Execução Orçamentária de Abril de 2018: 58% pra previdência; 13% com pessoal; 9% com saúde; 2% com bolsa família; 8% com educação; 9% um conjunto de outras despesas primárias (TAFNER; NERY, 2018).

4 CRISE NA SEGURIDADE SOCIAL

De maneira geral, existe um problema fiscal no Brasil por conta do descontrole da dívida pública e o crescimento da despesa com gastos obrigatórios. De fato, o Brasil não tem superávit primário de suas contas desde 2014. Isso põe em risco a Seguridade Social (TAFNER, NERY, 2018). A população brasileira envelhece a uma taxa acelerada, mais rapidamente do que aconteceu em países da Europa (TAFNER, NERY, 2018). Por conta desse envelhecimento, todos os gastos da Seguridade Social precisam ser potencializados para que se continue garantindo tais direitos. Por exemplo, com a configuração atual, a Seguridade Social começará a consumir mais de 80% das despesas primárias, ou “reais”, dentro de uma década, impossibilitando o Estado de gastar com outras políticas públicas que a população necessita e até mesmo manter sua dívida controlada. Ou seja, a saúde será ainda mais sufocada (TAFNER, NERY, 2018). Isso poderá ocorrer porque para a quantidade de idosos que o país tem atualmente, os gastos com Seguridade consomem considerável parcela do PIB. Comparando o Brasil com outros países com critérios idênticos em questões previdenciárias, por exemplo, o mesmo está afastado da média dos gastos: países que têm entre 5% e 10% da população acima de 65 anos, como o Brasil, despendem entre 2% e 6% do PIB com previdência, enquanto o Brasil gasta entre 10% e 15%. Além de que, países que gastam a mesma porcentagem do PIB que o Brasil com previdência têm uma

218 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro porcentagem entre 15% e 20% de população acima dos 65 anos (NEMER; GÓES, 2018 apud TAFNER; NERY, 2018). E tendo em vista o já citado veloz envelhecimento da população, com o atual mecanismo de Seguridade Social, serão consumidos mais do que a média para uma quantidade ainda maior de idosos no futuro, por conta do gasto que o envelhecimento gera na Saúde, mas principalmente nas outras área da Seguridade. Isto fará com que as despesas primárias do Brasil aumentem de 59% em 2019 para quase 80% em 2026 (TAFNER; NERY, 2018), o que impedirá que o Estado invista em outras áreas ou aumentará a dívida de forma não saudável.

4.1 Crise na saúde pública

O rápido envelhecimento atinge a Saúde Pública, como se lê: A capacidade de financiar os sistemas de Saúde vem sendo ameaçada na maior parte dos países devido a mudanças no perfil demográfico (envelhecimento da população combinado com a diminuição das taxas de natalidade), ao aumento da incidência de doenças crônicas que consomem muitos recursos durante longos períodos, ao aumento da expectativa de vida, a constante introdução de novas tecnologias e medicamentos e, em alguns casos mais específicos, ao custo associado à violência e morte por causas externas (MINISTÉRIO DA SAÚDE; ORGANIZAÇÃO PAN- AMERICANA DE SAÚDE, 2013). Outrossim, a inflação de produtos e serviços relacionados à área da saúde são maiores que o restante do mercado, devido ao aumento da demanda e ao desenvolvimento tecnológico, ambos causados pelos fatores acima expostos. Ou seja, a crise na saúde se dá pois o Estado está com dificuldades de manter e equilibrar seus gastos; cada vez mais pessoas necessitam de um serviço cujo orçamento diminui e a inflação faz com que os produtos e os serviços médicos sejam mais caros em relação aos outros produtos do mercado conforme decorre o tempo e também pela incapacidade do Brasil em tornar o uso de seus recursos com saúde mais eficientes.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 219 5 DESCENTRALIZAÇÃO E EFICIÊNCIA NO SISTEMA DE SAÚDE PÚBLICA

Como já salientado, o financiamento da seguridade social, e por consequência da saúde pública, é dever de toda a sociedade, englobando todos os entes da federação. Pela análise constitucional, mais precisamente do inciso I do art. 198, percebe-se que o serviço público será organizado de forma descentralizada (BRASIL, 1988). Entende-se como descentralização o processo de reforma do Estado composto por um conjunto de políticas públicas que transfere a responsabilidade, recursos ou autoridades de níveis mais elevados do governo para níveis inferiores, no contexto de um tipo específico de Estado (FALLETI, 2006, p. 33 apud LOPES, 2017, p. 42). No Brasil, a descentralização se iniciou na década de 80, porém a descentralização administrativa do financiamento dos serviços de saúde se iniciaram nos anos 90 (FALLETI, p. 51 apud LOPES, p. 43). Ao tratar do emprego mais eficiente dos recursos destinados à saúde pública, compreende-se o termo no sentido de custo e benefício, ou seja, a administração aplicando de melhor forma seus recursos. Para concretização, então, a gestão municipal deve aplicar, principalmente, o controle da execução orçamentária das políticas públicas, com a alocação dos recursos nas áreas prioritárias para desenvolvimento do bem-estar da população (LOPES, p. 57-58).

5.1 Eficiência dos gastos em saúde pública no Brasil

Em relatório elaborado pelo Banco Mundial, notou-se que o Brasil, quando comparado com a maioria dos países membros da OCDE, investe menos em saúde pública e de forma menos eficiente, já que o mesmo resultado obtido poderia ser alcançado com o mesmo nível de gastos (ARAUJO; PONTES, 2017). Observa-se que a eficiência varia de município, ainda mais quando se considera fatores como localização geográfica e número de habitantes. Destacando-se os que estão localizados nas regiões sudeste e sul (ARAUJO; PONTES, 2017). E entre as soluções, sugere-se a racionalização da rede de prestação de serviços (ARAUJO; PONTES, 2017), o que a nosso ver

220 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro engloba não apenas o serviço prestado, mas também a melhor aplicação do orçamento público.

6 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO

6.1 Municipalização e participação popular

Com o descrédito dos cidadãos com as instituições políticas de representação e com as decisões centralizadas, que não eram mais capazes de oferecer soluções as questões sociais, passou-se a expandir a competência dos entes regionais, no movimento denominado municipalização (AMARAL, 2015, p. 128). Como parte desse processo, foram ampliados os locais para participação popular na esfera governamental, regulamentados principalmente pelo Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257/2001, que já em seu art. 2º prega a gestão democrática e a realização audiências para participação da população na administração (AMARAL, p. 129). O artigo 44 da referida lei trata especificamente da participação popular na gestão orçamentária, estabelecendo a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual. Sendo esses instrumentos de participação obrigatórios para a aprovação dos projetos na câmara municipal (AMARAL, p. 131). O art. 4º, inciso III, alínea f, chama essa política no orçamento de “gestão orçamentária participativa”, que tem por objetivo a satisfação das necessidades locais (AMARAL, p. 131).

6.2 Democratização

Com o modelo de descentralização, surge a oportunidade de ampliação da participação popular, assim, impede-se que o cidadão expresse sua vontade apenas através do voto, passando a influenciar mais diretamente na atuação do governo (NETO, 2009, p. 68). Sobre o tema, Genro e Souza discorrem A principal riqueza do Orçamento Participativo é a democratização da relação do Estado com a sociedade. Essa experiência rompe com a visão tradicional da política, em que o cidadão encerra a sua participação política no ato

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 221 de votar, e os governantes eleitos podem fazer o que bem entenderem, por meio de políticas tecnocráticas ou populistas e clientelistas. O cidadão deixa de ser um simples coadjuvante para se tornar protagonista da gestão pública (GENRO E SOUZA, 2001, p. 29 apud CRUZ NETO, 2009, p. 68). Ao se tratar dos modelos de orçamento participativo, há que se falar no lato sensu, em que discussões com pautas previamente estabelecidas são realizadas e a população é consultada, porém não decide, e no stricto sensu, em que a população participa da decisão, não cabendo o governo decidir sozinho (CRUZ NETO, p. 72-73). Apesar de haver em um dos modelos uma participação mais ativa da população, os dois seguem o preceito de democratização das decisões e da participação popular para alocação eficiente de recursos.

6.3 Orçamento participativo como ferramenta de eficiência

Com a diminuição dos investimentos públicos em saúde, um dos pilares da seguridade social, o orçamento participativo pode fazer parte da solução, pelo já comentado papel de democratização das decisões, e também por permitir uma melhor destinação do capital disponível. A eficiência da participação da população em escala municipal já é reconhecida externamente, a Recomendação nº R (81)18 do Comitê dos Ministros dos Estados-membros da União Europeia apontou que esse modelo tende a tornar as práticas estatais mais eficientes e deve ser estimulado (ALVES, p. 140-141). Nesse mesmo sentido, Boaventura de Sousa Santos propõe o orçamento participativo como elemento importante na reforma do Estado, apresentando como contraponto a ideia de que eficiência está relacionada com a diminuição do aparato dos entes públicos (SANTOS, 2002, p. 319 apud ALVES, p. 171-172). Assim, a eficiência do orçamento participativo é oriunda de ser uma ferramenta diferenciada de governança que possibilita a construção de uma agenda comum e gera uma relação de confiança entre administrador público, políticos e cidadãos, o que favorece alcançar uma decisão consensual e eficiente (ALVES, p. 205). Diante o exposto, entendemos que o orçamento participativo é parte importante da solução do financiamento do sistema de saúde público. Salienta-se que sua obrigação já é relevante por ser a

222 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro concretização da participação popular na gestão do governo, respeitando os preceitos constitucionais. Todavia, o enfoque aqui dado é no quesito de eficiência, permitido pela participação popular por apontar as áreas prioritárias e supervisionar a execução; pela descentralização e democratização das decisões administrativas; e pelo embasamento em soluções consensuais que reforçam a confiança dos cidadãos nas instituições e em seus agentes e vice-versa. Em época de corte de financiamento e crise na seguridade social, a melhora da eficiência é imprescindível para ser possível o acesso universal à saúde, reforçando a importância do orçamento participativo como ferramenta útil para esse fim.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo presente estudo, observa-se que o direito à saúde vem cada vez mais se mostrando presente nos ordenamentos jurídicos, tanto pátrio como no internacional, principalmente desde a Segunda Guerra Mundial. No caso do Brasil, há considerável avanço com a promulgação da Constituição de 1988, que institui um modelo de saúde pública universal, que será custeado por recursos da seguridade social, que por sua vez é de responsabilidade de todos. Então, com a crise no sistema de seguridade há também o risco de retrocesso na saúde pública, nesse caso, representado principalmente pelo Sistema Único de Saúde. Agrava-se a problemática com a forma pouco eficiente que os recursos públicos são empregados, sendo a solução dessa questão parte fundamental para efetivação do direito à saúde. Nessa perspectiva, o orçamento participativo pode ser utilizado nessa questão. Entre as características principais do orçamento participativo está à tomada de decisões com a participação popular e também que a execução das mesmas tenha supervisão da população. Como consequência, há alocação de recursos para as áreas prioritárias com maior controle, em outros termos, uma aplicação mais eficiente com menos risco de subtrações. Concluindo, o orçamento participativo, além de uma ferramenta de democratização das decisões, é um instrumento capaz de tornar a administração pública mais eficiente, o que é importante em todas as ocasiões e principalmente em crises.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 223 REFERÊNCIAS

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226 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro O VÍNCULO EMPREGATÍCIO NO SISTEMA MAIS MÉDICOS E SEUS IMPACTOS JURÍDICOS

1Letícia dos Santos Arco de Pani*

2Vitor Silva Muniz** Jordana Martins Perussi***

3

RESUMO: O Programa “Mais Médicos” no Brasil foi criado em 2013 durante o governo de Dilma Rousseff, e possuía como intuito ampliar o atendimento médico em áreas mais carentes atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivo do artigo é de exemplificar, através do projeto em questão, os avanços e retrocessos que sofre a saúde pública brasileira, mais especificamente focar no vínculo jurídico estabelecido com os médicos do programa, a sua não caracterização como vínculo empregatício, se a função social do contrato está presente no mesmo e quais são suas consequências fáticas. O texto possui uma abordagem essencialmente teórica, respaldada principalmente na análise do edital n° 11 de maio de 2019 do Programa e em revisão bibliográfica, além de uma abordagem mais prática em se tratando dos efeitos e consequências reais do tipo de vínculo jurídico estabelecido e a maneira como os médicos participantes, especialmente os cubanos, foram tratados em território nacional, a partir análise de notícias e declarações. Palavras-chave: Mais Médicos. SUS. função social do contrato. vínculo jurídico. ABSTRACT: The More Doctors in Brazil program, was created in 2013, during Dilma Rousseff’s government, and its intention was to enlarge the medical treatment in the poorest areas attended by “Sistema Único de Saúde (SUS) ”. The article’s purpose is to exemplify, through the project in matter, the improvements and regress that the brazilian public health suffers, more specifically to focus in the juridic bond established with the program’s doctors, it’s not description as an employment bond, if the social function of the contract exists and what are its phatic consequences. The text has an essentially theoretic approach, backed mainly in the analysis of the 11° edital from may 2019 of the program and in bibliografic revisions, besides a more practical approach about the real effects and consequences from the kind of juridic bond established and the way the participants doctors, specially the cubans, were treated in national territory, from the analysis of news and statements. Keywords: Mais Médicos. SUS. social function of contracts. juridic bond.

INTRODUÇÃO

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) tinha por objetivo cumprir com o disposto no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, o qual coloca o Estado como responsável por assegurar, através de medidas sociais e econômicas, o direito à saúde para toda a população. Essa medida é considerada um avanço no que tange à garantia da dignidade humana * Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5235204947434594. ** Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1218827956988558. *** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4321421883828600.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 227 e dos direitos fundamentais inerentes aos cidadãos. O Sistema Único de Saúde abrange a totalidade do território brasileiro, tendo em vista o objetivo do Estado em fornecer de maneira efetiva um sistema de saúde público e de qualidade. Sua ampla estrutura permite que sejam realizadas ações que englobam desde o atendimento primário até um procedimento complexo, como um transplante de órgão. Não obstante, a grande extensão do território brasileiro não permite que todos os estados se encontrem em situação de igualdade social e, principalmente, financeira. Por esse motivo, os recursos em algumas áreas do país são escassos e na maioria dos casos torna-se inviável a ideia da efetivação do direito ao acesso à saúde para a população. Diante do exposto, o governo brasileiro criou no ano de 2013, com base na Lei nº 12.871, um projeto chamado “Mais Médicos para o Brasil” com o intuito de levar para as áreas mais carentes do país um atendimento médico especializado. O programa permite que médicos brasileiros ou estrangeiros realizem um serviço de ensino, pesquisa e extensão no país, atendendo a população de lugares onde havia anteriormente a falta desses profissionais. Com a criação do programa foram abertos os editais de contratação para que os médicos interessados pudessem se vincular caso atendessem a todos os requisitos exigidos. A partir da análise desses editais é possível identificar que o governo brasileiro criou uma nova relação jurídica na tentativa de não enquadrar a contratação desses profissionais na relação de trabalho comum no território nacional. A decisão tomada pelo governo ocasionou diversos impactos na vida dos profissionais que se vincularam ao programa, isto porque estes perderam direitos e garantias essenciais para o exercício pleno de seus serviços no país. Com base na comparação dos editais com as normas da Consolidação das Leis Trabalhistas, na análise da função social do contrato e um estudo sobre as consequências dessa medida na vida prática desses profissionais, é possível depreender se a forma de contratação interferiu na efetividade do programa e, por conseguinte, na tentativa do governo brasileiro em assegurar o direito à saúde por meio do Sistema Único de Saúde.

1 COMO SE CARACTERIZA A RELAÇÃO DE TRABALHO QUE PERMITIU A CRIAÇÃO DE TRABALHO DO PROGRAMA “MAIS MÉDICOS” NO BRASIL

Criada no ano de 2013, a Lei nº 12.871 legislou sobre os aspectos fundamentais que embasaram a consolidação do programa “Mais médicos”

228 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro no Brasil. Dentre esses aspectos principais encontram-se os objetivos do programa, as regras para a prática legal da medicina no país e – o tópico de maior relevância para o presente artigo – as condições e critérios que regem a relação empregatícia dos médicos que aderiram ao projeto. A partir de uma análise do texto de lei e dos editais lançados posteriormente pelo programa para a convocação de profissionais, é possível identificar uma distorção da relação trabalhista já existente no ordenamento jurídico brasileiro, isso porque a referida lei caracteriza a relação dos médicos com o programa como um serviço de pesquisa, ensino e extensão, na tentativa de afastar o gênero trabalhista do contrato. A relação fática através da qual os médicos exercem a medicina por meio do “Projeto Mais Médicos para o Brasil” corresponde a uma relação jurídica já regulamentada por lei: a relação de trabalho. Relação de trabalho que já tem a sua natureza jurídica definida: uma relação de emprego nos termos da Consolidação das Leis do Trabalho (SOARES; BOTELHO, 2016, p. 192). Para depreender de forma mais clara o óbice causado por essa medida, é necessário compreender como se caracteriza atualmente a relação de trabalho no contexto brasileiro e identificar quais são os pilares que servem de base para esse vínculo. Segundo uma visão do direito trabalhista brasileiro, somam-se 4 os pilares que caracterizam um contrato de trabalho: subordinação, pessoalidade, onerosidade e habitualidade. Segundo Carla Teresa Romar (2018, p. 130), “existe relação de emprego sempre que os serviços prestados por uma pessoa física a outrem se revestirem de características específicas que os diferenciam de outras formas de prestação de serviços”. A subordinação é o pilar que norteia a relação entre empregado e empregador, criando uma espécie de hierarquia entre os mesmos; em face disso tem-se uma obrigação de obediência do empregado para com o empregador inerente ao contrato desde que não se caracterize como medidas abusivas. O segundo pilar é composto pela pessoalidade, o que significa que a contratação foi efetivada mediante as qualidades e especificações do trabalhador em questão; ou seja, o trabalhador se mostrou apto para o serviço e qualificado para compor o quadro de funcionários do local. A onerosidade garante que exista uma relação de ganho recíproco entre o funcionário, que presta serviços e vende sua força de trabalho em troca de um pagamento, e o empregador, que recebe os lucros dos serviços prestados

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 229 e em troca paga as devidas prestações aos funcionários. Por fim, temos a não eventualidade que está presente no artigo 3º da CLT: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”, que indica que o serviço a ser prestado pelo empregado pode ser de caráter permanente ou incidental, dependendo da necessidade do contratante. O mais recente edital (Edital nº 11, de 10 de maio de 2019) lançado pelo programa adotou as mesmas diretrizes do edital de abertura do ano de 2013 no que tange à configuração da relação de trabalho dos médicos para com o governo brasileiro, mantendo, assim, a nomenclatura “serviço de ensino, pesquisa e extensão”. Nesse mesmo edital, especificamente dentro do subtópico 11, são enumerados os direitos, deveres e obrigações ligados à vinculação do profissional ao programa “Mais Médicos para o Brasil”, discriminando o valor da bolsa-formação, data do pagamento, a carga horária demandada pelo serviço, entre outros pontos. Não obstante, diante de um estudo comparativo entre as especificidades do edital de contratação e as normas contidas na CLT – Consolidação das Leis do Trabalho –, são encontrados inúmeros fatores que tornam possível o enquadramento dessa relação à figura trabalhista já tratada pelo Decreto-Lei nº5.452, de maio de 1943. O primeiro item a ser julgado é a definição de empregador trazida pela CLT em seu artigo 2º: “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos de atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços”, que identifica essa figura jurídica mediante a assimilação dos riscos da atividade econômica e sendo aquela que coordena uma prestação de serviço, ficando responsável pelo pagamento de um salário ao empregado. No caso do programa “Mais Médicos para o Brasil”, os profissionais da área médica prestam serviços ao governo brasileiro em troca de um salário e ficam também protegidos de qualquer incidente ocorrido no local de trabalho. O edital recentemente lançado determina um montante mensal de R$ 12.386,50 a ser pago até 5º dia útil de cada mês, em troca de uma carga horária correspondente a 40 horas semanais. Esses fatores indicam a existência de uma relação de trabalho e a ocorrência de uma distorção dessa relação feita pelo governo brasileiro. Exemplificados no edital: 11.1.3.1. A bolsa-formação é paga até o 5º (quinto) dia útil do mês subsequente ao mês do desenvolvimento das atividades

230 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro de integração ensino-serviço, e proporcionalmente aos dias de desenvolvimento de atividades 11.1.1. Para a execução das ações de aperfeiçoamento no âmbito do Projeto será concedida aos médicos participantes bolsa-formação com valor mensal de R$ 12.386,50 (doze mil, trezentos e oitenta e seis reais e cinquenta centavos, que poderá ser paga pelo prazo máximo de 36 (trinta e seis) meses, prorrogáveis apenas na hipótese prevista na Portaria Interministerial nº 1.369/MS/MEC, de 8 de julho de 2013 e respectivas alterações. b) cumprir, semanalmente, 8 (oito) horas em atividades acadêmicas teóricas e 32 (trinta e duas) horas em atividades nas unidades básicas de saúde no Município ou carga horária condizente com as possibilidades conferidas pelas regras do Programa; Ademais, as normas trabalhistas do Brasil determinam a obrigatoriedade da Previdência Social para todos os trabalhadores em seu artigo 71º da CLT, asseguram uma jornada de trabalho de 40 horas semanais, e especificam penalidades cabíveis quando o profissional contratado não realiza adequadamente o serviço para o qual foi designado. Todas essas especificidades encontram-se no edital (Edital nº 11, de 10 de maio de 2019) de contratação dos médicos com interesse de participação no programa nos tópicos de Disposições Gerais e Dos Direitos, Deveres e Obrigações. Não obstante, também são indicadores da existência do vínculo empregatício na relação entre o governo brasileiro e os médicos do programa. Como confirma os seguintes tópicos do edital: 11.1.1.1. Será descontado, para fins previdenciários, para os médicos participantes que se enquadrem como contribuintes individuais nos termos da legislação do Projeto, o valor de R$ 624,33 (seiscentos e vinte quatro reais e trinta e três centavos), o que perfaz o recebimento líquido de R$ 11,744,17 (onze mil, setecentos e quarenta e quatro reais e dezessete centavos. 11.1.12. O médico participante enquadra-se como segurado obrigatório do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), na condição de contribuinte individual, na forma da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, ressalvados da obrigatoriedade os médicos intercambistas, nos termos do artigo 20, da Lei 12.871/2013, devendo observar os tempos de carência estabelecidos para a concessão dos benefícios como salário maternidade e auxílio doença, bem como demais requisitos exigidos nas leis Previdenciárias.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 231 12.4. O descumprimento das condições, atribuições, deveres e incursão nas vedações previstas nos Programas de Provisão sujeitará o médico às penalidades previstas nos termos das respectivas normas regulamentares Outro aspecto a ser analisado é que a Lei nº 12.871/2013 afasta não somente a figura da relação trabalhista; ela também não permite que o contrato seja enquadrado como uma residência médica, tampouco como um estágio. Isto porque a primeira opção se trata de uma especialização que acontece sob orientação de um profissional já qualificado na área, não se enquadrando nos objetivos do programa, e a segunda opção não pode ser considerada pois para se configurar como um serviço de estágio seria necessário que os inscritos no programa ainda se mantivessem na condição de estudantes, o que também não ocorre quando analisadas as condições e requisitos para vinculação no “Mais Médicos para o Brasil”. Segundo o art. 17 da lei nº 12.871/2013, os médicos intercambistas são profissionais que atuam em cursos de pós-graduação e especialização nas modalidades de ensino, pesquisa e extensão mediante a percepção de uma bolsa-auxílio, sendo que, de acordo com o preceito legal, a atividade prestada não caracteriza “vínculo empregatício de qualquer natureza. (SOARES; BOTELHO, 2016, p. 197) Destarte, cabe falar sobre a existência de um vínculo empregatício no que tange à contratação dos médicos para o programa “Mais Médicos para o Brasil”. A partir de uma visão jurídica do assunto e posterior análise das condições do edital de contratação, fica evidente que a adoção de uma nova figura jurídica, criada a partir da Lei nº 12.871/13, em sua essência nada mais é do que a relação de trabalho já consolidada anteriormente pela CLT no ano de 1943 através do Decreto-Lei nº 5.452/1943. Diante do exposto, cabe uma análise da função social do contrato realidade entre as partes.

2 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO PROGRAMA MAIS MÉDICOS

Neste tópico, será analisado se existe ou não o princípio da função social do contrato na relação jurídica dos médicos que prestam serviço no âmbito do programa “Mais Médicos para o Brasil”. É importante definirmos e compreendermos o que seria tal função para depois inseri-la no programa governamental em questão.

232 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro É um princípio contratual de ordem pública, o qual emergiu com o novo Código Civil de 2002, visto que este adotou como um de seus princípios norteadores a “socialidade”, e é um meio de limitação da liberdade contratual. Encontra-se respaldado pelo seu artigo 421: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. É importante enfatizar que ele não elimina o princípio da autonomia contratual, como evidenciado na I Jornada de Direito Civil, em seu 23º Enunciado: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana. É relevante salientar que a mesma possui o caráter de cláusula geral, ou seja, o juiz possui autonomia para preencher o entendimento da mesma com valores jurídicos, morais, econômicos e sociais, além de poder agir de ofício, isto é, o juiz deve aplicá-la independentemente de pedido das partes. Após essa breve explicação, é necessário, agora, analisar a presença ou ausência de tal princípio no vínculo jurídico estabelecido com os médicos do programa. O mais recente edital lançado pelo programa conta com uma seção destinada a esclarecer os Direitos, Deveres e Obrigações dos participantes do projeto, portanto seria a mais adequada para analisar a função social do contrato. Como diria Carlos Roberto Gonçalves, em sua obra Direito Civil Brasileiro (2012, p. 29): É possível afirmar que o atendimento à função social pode ser enfocado sobre dois aspectos: um, individual, relativo aos contratantes que se valem do contrato para satisfazer seus interesses próprios, e outro público, que é o interesse da coletividade sobre o contrato. Nessa medida, a função social do contrato somente estará cumprida quando a sua finalidade – distribuição de riquezas – for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato apresentar uma fonte de equilíbrio social. A princípio, ao fazermos uma análise puramente contratual do programa, ele parece atender aos requisitos de justiça e equilíbrio social.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 233 O interesse público é visivelmente uma preocupação, visto que o intuito da própria política em questão é de diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias do SUS (Sistema Único de Saúde), justamente para reduzir as desigualdades regionais na área da saúde. Um projeto com tal objetivo claramente está visando o bem da coletividade. Quanto ao aspecto individual do contrato, ou seja, relativo aos contratantes, podemos perceber que os médicos contratados aparentam ser possuidores de muitos benefícios, nos levando a crer que esteja presente a função social do contrato em tal vínculo jurídico acordado. É importante salientar que mais adiante neste artigo analisaremos se faticamente existem desvantagens pelo vínculo jurídico estabelecido com os médicos do programa não se caracterizar como um vínculo empregatício, mas por ora, ao analisarmos os direitos e deveres, nos parece que sua finalidade foi atingida de maneira justa. Vamos então evidenciar algumas das condições presentes no edital ratificado em maio de 2019. Os médicos devem cumprir uma carga horária semanal de 40 horas, sendo que 32 horas seriam em atividades básicas de saúde do município, e as outras 8 horas realizando trabalhos acadêmicos. Tal valor poderia ser entendido como uma jornada diária de 8 horas, semelhante à antiga CLT de 1943, nos mostrando que apesar deles serem regidos pelo CRM (Conselho Regional de Medicina), e não possuírem um vínculo empregatício, ainda possuem uma carga horária semanal semelhante e não abusiva. Cabe fazer uma observação que com a reforma da CLT, a jornada diária agora pode chegar a 12 horas. Contudo, elas devem ser seguidas de um descanso de 36 horas. Além disso o trabalhador não pode exceder o tempo máximo de 48 horas, contando as horas extras, e o tempo total mensal é o mesmo presente no código anterior de 220 horas. Basicamente existe uma diferença maior na maneira como as horas poderão ser redistribuídas de acordo com a vontade do empregador e trabalhador, mas se crê preferível usar como base de comparação ao vínculo jurídico do Programa Mais Médicos à antiga CLT por ter maior amparo estatal. Além disso, é concedido aos médicos participantes uma bolsa- formação no valor mensal de R$ 11.744,17. Tal valor pode ser considerado adequado e não abusivo dependendo da maneira como analisarmos. Por exemplo, o salário mínimo no Brasil é de R$ 998,00, se analisarmos por esse fator, a bolsa-formação dos médicos participantes é até 11 vezes maior que tal valor. Podemos, contudo, analisar por uma ótica diferente. A Federação

234 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Nacional dos Médicos (Fenam), recomenda um salário mínimo de R$ 14.134,00 para 20 horas semanais trabalhadas, por tal aspecto, o valor da bolsa-formação seria baixo, visto que sua jornada semanal é o dobro disso. Ainda, existe a Lei nº 3.999, de 15 de dezembro de 1961, a qual estabelece que os profissionais da Medicina deveriam ganhar no mínimo 3 salários mínimos para 20 horas trabalhadas. Por essa lógica, a bolsa-formação novamente estaria em um patamar até superior a esse. Em geral, os profissionais da área tendem a ganhar um valor próximo a esse, evidenciando para nós que apesar de haver controvérsias a depender do filtro utilizado para analisar a bolsa-formação, não nos parece que ela seja um valor extremamente mínimo ou abusivo, aparentando não ferir a função social do contrato. Os médicos do programa ainda possuem direito a um sistema previdenciário. De acordo com o Edital n° 11, de 10 de maio de 2019, será descontado para fins previdenciários dos médicos que se enquadrem como contribuinte individual nos termos da legislação do Projeto, o valor de R$ 624,33, o que perfaz o recebimento líquido de R$ 11.744,17. O fato dos inscritos no programa possuírem um programa previdenciário evidencia uma certa preocupação e amparo para com eles também. Existe ainda uma ajuda nos custos do transporte e a possibilidade de trazer consigo familiares. O médico participante e seus dependentes legais terão as despesas com passagens custeadas pelo Ministério da Saúde para o deslocamento do endereço de origem. Contudo, cada médico participante terá direito ao deslocamento de, no máximo, dois dependentes. É importante destacar outra restrição que ocorre quando o médico e seu cônjuge ou companheiros sejam ambos médicos participantes do Projeto, o direito ao deslocamento dos dependentes será concedido a apenas um dos médicos. Os participantes do “Mais Médicos para o Brasil” ainda possuem respaldo quando precisarem fazer um afastamento de até 15 dias, por conta de problemas de saúde pessoal ou de um dos dependentes legais, sem haver prejuízo da bolsa-formação. Ainda nessa linha de pensamento, é assegurada às médicas participantes, as quais estejam gestantes, uma licença maternidade de um período equivalente a 120 dias, a partir do oitavo mês de gestação ou 28 dias antes do parto. O Decreto-Lei nº 5.452 de 01 de maio de 1943 – ou seja, a antiga CLT –, traz em seu artigo 392 a consolidação dos direitos da licença maternidade e é possível fazer uma observação quanto a esses.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 235 O período de tempo oferecido para a empregada gestante é o mesmo: até 120 dias sem prejuízo do emprego ou do salário. Mas é interessante que a CLT respalda com os mesmos direitos e prazos uma mulher que adota uma criança ou adolescente. Concluindo, o último edital ratificado do Programa Mais Médicos (Edital n° 11 de 10 de maio de 2019) traz consigo diversas especificidades e muitos outros direitos, deveres, dúvidas, obrigações entre outras coisas que o médico participante deverá se atentar e seguir. Para os fins deste artigo, foram evidenciados apenas alguns desses direitos para mostrar como aparentemente a função social do contrato está presente neste programa governamental. Visto que tanto o interesse da coletividade está sendo atendido pelo contrato e pelo programa, e as partes contratantes encontram-se em uma posição de ambas serem respeitadas, preservando o princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto seus interesses próprios são sanados. É importante, por fim, salientar que esta parte fez uma análise meramente teórica do edital, do que deveria ser o Programa Mais Médicos e quais deveres e direitos estariam acordados entre as partes. Ainda serão analisadas as consequências práticas de tal relação jurídica.

3 OS IMPACTOS PRÁTICOS DO VÍNCULO DO PROGRAMA MAIS MÉDICOS

Portanto, diante de tudo que foi exposto, é importante considerar as implicações do vínculo gerado pelo programa Mais Médicos para o Brasil no desenvolvimento profissional e pessoal dos próprios abarcados pelo projeto, enquanto médicos que devem zelar pelo atendimento qualitativamente adequado para com os pacientes que se encaminham aos estabelecimentos públicos de saúde em busca de encontrar meios de sanar seus problemas através do Sistema Único de Saúde. Este, por sua vez, é encarregado de efetivar o cumprimento do artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil, responsável por posicionar a saúde enquanto um direito social disponível a todos aqueles que se encontram sob o manto constitucional sem qualquer diferenciação. Assim, a ideia apresentada remete à asseguração da dignidade da pessoa humana e tudo que disso decorre enquanto função social do contrato do programa em questão, visto que, na ordem teórica, não se tem um contrato trabalhista, mas sim civil, no qual impera o já referido preceito de ordem pública.

236 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro É mister que se analise o edital do programa de 2019, sendo que este nasceu no governo de Dilma Rousseff em 2013 e foi aplicado desde então como um dos maiores programas do governo federal para as demandas da saúde básica. Observando o item 10 do documento supracitado – “Das ações de aperfeiçoamento e avaliação no âmbito do projeto Mais Médicos para o Brasil” – e suas disposições, é importante destacar a constante menção aos termos “ensino”, “pesquisa” e “extensão”, comuns do ambiente acadêmico e que preconizam justamente a publicização do aproveitamento daquilo que é desenvolvido no meio científico, garantindo que a sociedade usufrua dos conhecimentos científicos de maneira equitativa enquanto o médico se desenvolve durante os anos de seu contrato, tendo suporte para progredir em seus estudos, o que revela um caráter bilateral da função social do contrato, que traz crescimento aos que se beneficiam com o ensino enquanto atende às demandas por saúde pública em, principalmente, municípios com quadro médico insuficiente, possuidores de elevadas taxas de pobreza e baixo Índice de Desenvolvimento Humano. Cabe ainda destacar que no âmbito do médico que se desloca para o Brasil, há de se fazer notar a preocupação acerca do custeamento do deslocamento de até dois dependentes junto ao bolsista, dando a devida relevância ao fator familiar na realização pessoal dos profissionais e seus impactos nas demais áreas da vida dos mesmos, fazendo com que o projeto exceda as simples considerações profissionais formais na elaboração do contrato estudado por ora, já que tal limitação em enxergar o quadro completo que envolve toda a logística de saída de um país a outro ou mesmo de migrações relativamente curtas seria danoso e poderia afetar a capacidade em atingir os fins desejados, graças a motivos sociais que fogem às compreensões que dizem respeito apenas a equipamentos ou diplomas. Tal tipo de incentivo humanizado e preocupado com a manutenção dos médicos representa uma dinâmica extremamente importante no tratamento para com os profissionais atraídos a países subdesenvolvidos, onde não se tem a atratividade das condições nacionais, principalmente por conta da alocação dos profissionais em áreas carentes, diferentemente do que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a simples possibilidade de permanência em um país de maior IDH e melhores garantias de futuro já representam um prêmio para aquele que pretende exercer a medicina em território americano. Entretanto, em contraponto, cabe ressaltar a crítica noticiada em relação à postura do maior parceiro brasileiro no envio de médicos

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 237 estrangeiros, Cuba, um país acusado por restrições aos direitos civis dos médicos em solo internacional, que representariam violações aos direitos humanos, além da retenção de parte significativa do valor mensal pago pelo governo brasileiro como compensação pelo trabalho médico exposto no edital trabalhado no presente artigo. Estas questões, inclusive, foram apontadas e acusadas com preocupação pelo CFM ainda em 2013, órgão que também criticou a ausência da exigibilidade da revalidação de diploma dos médicos que ingressaram no país. Assim, aparentemente as situações acusadas pelo CFM não foram levadas em consideração pela justiça brasileira, ainda que possivelmente vivenciadas no território nacional, onde impera a lei constitucional brasileira que assegura a liberdade e a dignidade em seus sentidos mais profundos, contrariando diretamente qualquer restrição colocada por demais Estados. Ainda que se tenha o vínculo apresentado como um contrato dotado de finalidade social – em teoria, que entretanto parece violada na prática pelas especificidades que atingem a maioria dos médicos abarcados pelo projeto, que são de origem cubana – permissivo, por suas características específicas, à efetivação do programa em questão e a consequente mitigação da danosidade de distribuição iníqua de apoio médico nos diferentes municípios e mesmo bairros (no caso das grandes cidades) brasileiros, a ausência de enquadramento enquanto acordo trabalhista apoiado na Consolidação das Leis do Trabalho, que gerou preocupação e críticas por vários especialistas da área trabalhista no que tange às condições da relação de trabalho do programa Mais Médicos (substituído pelo atual Mais Médicos pelo Brasil) desde o ano de 2013. Segundo Antonio Rodrigues de Freitas Júnior, professor do Departamento de Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo, em entrevista à Folha Política, o presente caso de contrato representaria justamente o que se pode entender do artigo 9º da CLT, sendo uma tentativa de fugir da legislação trabalhista para a possibilitação de um acordo contratual com regras próprias. Assim, pode-se compreender acerca da fala de Antonio, que o contrato do programa Mais Médicos representava uma maneira de garantir uma relação trabalhista amorfa no universo da interação entre empregador-empregado-trabalho executado, além de formar características específicas para todo o quadro que circunda essa relação central de emprego. Portanto, nos colocando perante a afirmação do professor da USP, temos um exemplo de uma ação em que o próprio Estado, para a execução

238 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro de uma política pública da área da saúde, prioritária e alvo de grandes exigências desde as manifestações de 2013, abriu mão da garantia das assegurações trabalhistas que só podem ser protegidas pelo respeitamento ao peso normativo do código legislativo pertinente à relação social que se coloca no cerne do debate: a relação trabalhista. Apesar da contratação de médicos estrangeiros, a relação empregatícia que se efetiva com o trabalho em território nacional deve ser regida pelo justrabalhismo local, fazendo convergir o princípio de soberania e o critério de territorialidade, conforme afirma o doutrinador Mauricio Godinho Delgado (2017, p. 265). Tendo isso em mente, a não correspondência entre o contrato e a CLT, dentro da qual deveria se inserir, representa um passo em direção à heterogeneidade do tratamento desses profissionais em relação aos demais trabalhadores que exercem atividade remunerada regularizada em território nacional, perdendo-se a garantia da concessão de benefícios como o décimo terceiro salário, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e férias, de acordo com as disposições do código pertinente à relação de trabalho. Como exemplo do prejuízo decorrente da não obediência à CLT, tem-se o julgamento do Mandado de Segurança nº 23.919 DF 2017/0315230-9 pelo Superior Tribunal de Justiça, com relatoria do Ministro Herman Benjamin: o caso em questão tratava do desligamento de um médico do Programa Mais Médicos sem possibilidade de renovação do vínculo e nem nova aplicação ao projeto sob alegação de que o afastamento foi voluntário (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2017). Se, em tal episódio, houvesse amparo da legislação trabalhista, o médico contaria com diversos benefícios decorrentes da rescisão, podendo, portanto, contar com verbas que lhe seriam concedidas por serem asseguradas no entendimento jurídico trabalhista, ao contrário do que se dá na esfera do contrato civil estabelecido no programa, que não segue os parâmetros do Direito do Trabalho. Se não bastasse o não recebimento de tais benefícios, a ausência da coercitividade da Justiça Trabalhista pode ser explicação plausível para o descumprimento pelos municípios das ajudas de custo prometidas aos médicos contratados, como noticiou O Estado de S. Paulo em 2014, ano desde o qual se verificou um agravamento da crise econômica brasileira, que vulnerabiliza ainda mais a posição dos entes municipais no que tange a apoiar os profissionais estrangeiros conforme o que foi acordado (PEREIRA; CAMBRICOLI, 2014).

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 239 Assim, todos os benefícios de um contrato firmado especificamente para o caso dos médicos que ainda atravessam a trajetória de acumulação de conhecimento e experiências na área da Medicina, e de acordo com o interesse coletivo de um país que clama por atendimento público de qualidade no ramo da saúde, parece cair por terra perante uma impotência econômica e jurídica do Estado em reger relações especiais de prestação de serviço, sem contar com os mecanismos adequados à efetivação dos direitos socioeconômicos e trabalhistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme se pode perceber no primeiro tópico do presente artigo, o vínculo que é analisado por ora se apresenta em um formato diferente do padrão tido no meio empregatício como base para o estabelecimento de relações de trabalho, o que não significa que de fato o contrato entre médicos e o Estado brasileiro fuja desse tipo de ligação, mas indica um desenquadramento estratégico da relação trabalhista através de um contrato de ordem civil para a consecução dos fins do projeto governamental, sem que se prenda aos direitos e deveres especificamente indicados na Consolidação das Leis do Trabalho. Portanto, no plano formal, que não considera o impacto de tal atitude no meio fático, tem-se uma incorretude pelo ponto de vista normativo. Em um segundo momento, pode-se compreender que, apesar das imperfeições normativas do contrato firmado enquanto deslocado do eixo trabalhista, tem-se uma contratação que, vista isoladamente, atende aos ditames da finalidade da função social em garantir que o vínculo firmado seja frutífero a partir da visão de uma coletividade social que deve tirar proveito dessa relação bilateral. Portanto, os fins da política pública representam o legítimo exercício do poder político em idealizar e executar políticas públicas que possibilitem a garantia dos direitos básicos do cidadão do mundo, sendo a saúde uma figura essencial nesse quadro. Ainda, o segundo tópico demonstrou a garantia ao médico de valores salariais relevantes e planejamento previdenciário, que faz com que o lado contratado também tenha a possibilidade de tirar proveito do que foi firmado. Portanto, do ponto de vista objetivo analítico, se tem um contrato positivo e benéfico. Por fim, entretanto, analisando a situação fática de atuação dos médicos abarcados pelo projeto, se tem uma problemática que ofende

240 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro justamente os fins sociais do contrato e debilita o Sistema Único de Saúde por parte do âmbito profissional, que se encontra desamparado pela incapacidade orçamentária municipal e pela ausência de proteção jurídica brasileira trabalhista. Assim, o programa Mais Médicos para o Brasil se torna prejudicial para a classe médica na ordem fática pela dificuldade de implementação de um contrato trabalhista, aplicado de maneira desconfigurada na área civil, e prejudica, em tal ponto, o Sistema Único de Saúde.

REFERÊNCIAS

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Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 241 CAMBRICOLI, Fabiana. Contratos do Mais Médicos desrespeitam as leis trabalhistas e podem ser anulados, dizem juristas. JusBrasil, [s. l.], 2013. Disponível em: https://folhapolitica.jusbrasil.com. br/noticias/113684313/contratos-do-mais-medicos-desrespeitam- as-leis-trabalhistas-e-podem-ser-anulados-dizem-juristas. Acesso em: 24 ago. 2019. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. CFM denuncia Governo Federal por restrição de liberdade de médicos cubanos. Brasília: CFM, 23 ago. 2013. Disponível em: http://portal.cfm.org. br/index.php?option=com_content&view=article&id=24102:cfm- denuncia-governo-federal-por-restricao-de-liberdade-de-medicos- cubanos&catid=3. Acesso em: 24 ago. 2019. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 2017. GONÇALVES, Carlos Robert. Direito Civil Brasileiro: contratos e atos unilaterais. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MAGENTA, Matheus. Mais Médicos: como programa ‘economizou’ um terço do orçamento ao diminuir internações hospitalares. BBC News Brasil, São Paulo, 23 nov. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/ portuguese/brasil-46243372. Acesso em: 24 ago. 2019. LENZA, Pedro (coord.). Direito do trabalho. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. PEREIRA, Pablo; CAMBRICOLI, Fabiana. Medicos cubanos moram em república, vivem de cesta básica e pagam ônibus. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 08 fev. 2014. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/ noticias/geral,medicos-cubanos-moram-em-republica-vivem-de-cesta- basica-e-pagam-onibus,1128239. Acesso em: 24 ago. 2019. OLIVEIRA, Felipe Proenço de et al. Mais médicos: um programa brasileiro em uma perspectiva internacional. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 19, n. 54, p. 623-634, set. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S141432832015000300623&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 26 ago. 2019. SOARES, Elaine Cristina; BOTELHO, Marcos César. A relação de trabalho dos médicos no projeto “mais médicos para o brasil”. Revista do Direito Público, Londrina, v. 11, n. 3, p. 189-223, dez. 2016.

242 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 30 ANOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS CONQUISTAS E ÓBICES À CONSOLIDAÇÃO DO PROGRAMA NO BRASIL

1Renan Batista de Carvalo*

2Ester Segalla dos Passos**

RESUMO: O Sistema Único de Saúde é um programa que oferece acesso à saúde gratuita e pública a todos os brasileiros, sendo implementado através da Constituição Federal de 1988. De fato, este é reconhecido intencionalmente pela oferta dos mais variados tratamentos médicos, que vão desde procedimentos simples de rotina até complexas cirurgias para o transplante de órgãos. Operando através de três princípios basilares – universalidade, equidade e integralidade – o SUS, recentemente, comemorou três décadas desde sua implementação, fato que trouxe a tona as questões pertinentes a sua efetividade e importância para o Brasil. Entretanto, verifica-se que apesar da sua operacionalização no país por mais de trinta anos, o mesmo ainda não se encontra consolidado. Por certo, o presente artigo visa traçar um panorama acerca das conquistas obtidas pelo SUS na democratização do acesso à saúde, bem como identificar e explanar os principais óbices para a sua efetiva consolidação no país. Para tanto, será fundamental a análise minuciosa tanto da estrutura do programa, como também de qual forma a conjuntura político-econômica afeta seu pleno desenvolvimento. Através do exame dos relatórios do Ministério da Saúde e órgãos adjuntos acerca do desempenho do SUS, em conjunto com insumos obtidos por artigos de revistas especializadas, visa-se contribuir a respeito da real importância do programa para a saúde brasileira e se de fato todo o dispêndio para sua manutenção é válido. Palavras-chave: SUS. saúde. conquistas. obstáculos. ABSTRACT: The Unified Health System is a program that offers free and public access to health for all Brazilians, being implemented through the Federal Constitution of 1988. In fact, the program is recognized internationally for its offer of the most varied medical treatments, ranging from simple routine procedures to complex organ transplant surgeries. Operating through three basic principles – universality, equity and completeness – SUS recently celebrated three decades since its implementation, a fact that has brought to light the issues pertinent to its effectiveness and importance to Brazil. However, despite its operation in the country for over thirty years, the program is not yet consolidated in Brazil. Certainly, this article aims to provide an overview of the achievements of SUS in democratizing access to health, as well as to identify and explain the main obstacles to its effective consolidation in the country. For this, it will be essential to thoroughly analyze both the structure of the program, as well as how the political-economic conjuncture affects its full development. Through the examination of the reports of the Ministry of Health and adjunct agency about the performance of SUS, together with items obtained by articles from specialized journals, we aim to contribute about the real importance of the program for Brazilian health and if indeed all expenditure for its maintenance is valid. Keywords: SUS. health. achievements. obstacles.

* Graduando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0101322642432079. ** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6923355933834593.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 243 INTRODUÇÃO

Recentemente, o Sistema Único de Saúde comemorou trinta anos desde seu surgimento no Brasil. De fato, sua implementação foi de expressiva importância para diversas parcelas da população, na medida em que permitiu o acesso a um sistema de saúde universal e gratuito, o qual é resultado de reivindicações históricas da sociedade que buscavam a democratização do alcance a tratamentos de saúde de qualidade. Frente a isto, o acesso à saúde tornou-se dever do Estado expressamente previsto na Constituição Federal de 1988, apresentando- se como direito fundamental positivado no Brasil. Entretanto, embora a comemoração de três décadas do SUS simbolize um significativo êxito, verifica-se que o sistema público de saúde brasileiro, desde o princípio, apresenta uma série de embates e resistências que dificultam e enfraquecem sua expansão e efetividade. O presente artigo visa a analisar quais foram as principais conquistas obtidas e quais as dificuldades a ser enfrentadas pelo Sistema Único de Saúde brasileiro a fim de permitir sua consolidação no país. Deveras, serão verificadas as deficiências preponderantes em sua estrutura que impedem a operacionalização plena, bem como de qual forma estas podem ser superadas com o intuito de possibilitar o amplo acesso à saúde de qualidade pelos brasileiros, tal como previsto na Constituição Federal de 1988. Por certo, através de uma sintética análise histórica da criação do SUS, será possível verificar com maior clareza os embates estruturais do programa e o contexto político-econômico em voga, o qual afeta cabalmente a questão da quantidade de recursos destinados para assegurar a política de saúde pública nacional. Ademais, debater-se-á se é necessária a promoção de reformas no sistema tributário e político para a melhora do desempenho do mesmo. Neste sentido, também será levantado de qual maneira os benefícios concedidos ao mercado privado de planos de saúde afetam a sua efetividade, assim como as suas perspectivas frente aos indícios de sua privatização. O estabelecimento do referido panorama de impasses enfrentados pelo SUS possibilitará sua contraposição aos seus resultados positivos alcançados até o momento no Brasil. Para tanto, hão de ser tomados parâmetros estatísticos e documentais, tais como a eficácia de campanhas de vacinação, os índices de mortalidade infantil, expectativa

244 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro de vida atual, número total de atendimentos promovidos, número de hospitais e unidades de atendimento, e também a real efetividade no combate a doenças transmissíveis. Visa-se, portanto, através da colheita dos referidos dados conjuntamente com o paralelo entre os mesmos, aferir se de fato o Sistema Único de Saúde brasileiro é efetivo e funcional para a sociedade, podendo assim ser estipuladas as mais prováveis perspectivas futuras para a saúde pública brasileira na vigente conjuntura político-econômica. Desse modo, poder-se-á concluir a respeito da importância e papel do SUS na melhora da qualidade de vida da população nacional e democratização ao acesso da saúde de qualidade e universal.

1 SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: ANTECEDENTES

A princípio, cumpre pontuar que o fomento à saúde consiste “em um conjunto de estratégias e formas de produzir saúde, no âmbito individual e coletivo, visando a atender as necessidades sociais de saúde e a melhoria da qualidade de vida” (MALTA; REIS; JAIME et al., 2018). Por certo, outrora à implementação do Sistema Único de Saúde nos moldes conhecidos, era responsabilidade do Ministério da Saúde, em conjunto com os estados e municípios, a promoção de política assistencialista médico-hospitalar para a população. Neste período, o caráter do programa apresentava-se essencialmente como filantrópico, sendo concedidas oportunidades de acesso à saúde para aqueles que não detinham condições financeiras para arcar com tratamentos de qualidade e, consequentemente, privados. Neste diapasão, foi implementado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), o qual, em meados de 1974, foi renomeado para Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), cujo papel precípuo consistia na prestação de assistência para aqueles que fossem associados a tal órgão. De fato, isto significa que apenas eram atendidos os trabalhadores contratados em regime formal de labor, ou seja, vinculados à Previdência Social, bem como seus dependentes. Isto posto, durante o regime militar enfrentado pelo país na segunda metade do século XX, é perceptível depreender que a saúde não era acessível a todos os brasileiros, sendo que a população, principalmente aquela composta por desempregados e mais necessitados, não era

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 245 contemplada com os tratamentos e assistências médicas oferecidas na época pelo poder público. Com isso, após o término do período ditatorial e a redemocratização do país, tornaram-se marcantes reinvindicações pelo acesso à saúde por diversas camadas da sociedade nacional, principalmente aquelas mais fragilizadas. De fato, o marco histórico que inaugurou a implementação do Sistema Único de Saúde foi a aprovação da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, qual seja a Lei Orgânica da Saúde. Insta mencionar o surgimento de relevantes movimentos em prol da universalização da saúde, tais como o Movimento da Reforma Sanitária (VIACAVA, 2018, p. 1731), cuja conquista foi a expressa previsão na Constituição Federal de 1988 que a saúde é “direito de todos e dever do Estado”. Neste sentido, restaram inclusive estabelecidas as bases para a criação do SUS, bem como foram definidos preceitos iniciais acerca do financiamento do programa, o qual seria oriundo do orçamento da seguridade social e dos entes da administração pública. A princípio, com a autorização legislativa para implementar o SUS, é válido colacionar que sua concretização foi gradual, sendo que contou com a ajuda direta do INAMPS, que só foi extinto três anos posteriormente. Desse modo, de acordo com o relatório do Ministério da Saúde “O Sistema Público de Saúde Brasileiro”, apresentado no Seminário Internacional Tendências e Desafios dos Sistemas de Saúde nas Américas em 2002, o SUS “inicia a sua atuação na área da assistência à saúde com caráter universal, utilizando-se de uma instituição que tinha sido criada e organizada para prestar assistência a uma parcela limitada da população”. Com isso, operando através de seus três princípios basilares, qual seja a universalização, equidade e integralidade, o Sistema Único de Saúde é tomado como exemplo mundial no tocante ao acesso à saúde por todos e a qualquer tempo, proporcionando desde procedimentos simples, como a medição arterial, até mesmo a complexidade que envolve o transplante de órgãos. Isto posto, se faz necessário pontuar quais foram os avanços obtidos pelo SUS em relação aos dados estatísticos do cenário da saúde no Brasil. Com isso, será possível delimitar as áreas pelas quais o programa apresentou efetiva melhora, assim como aquelas que ainda padecem de investimentos. Desse modo, será possível verificar as razões pelas quais o Sistema Único de Saúde não se encontra consolidado no país. Por certo,

246 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro apesar de inúmeros avanços obtidos na qualidade de vida do brasileiro nos últimos anos, a conjuntura estrutural do sistema juntamente com as instabilidades políticas e econômicas enfrentadas pelo país colocam em xeque seu desenvolvimento pleno e, mormente, sua continuidade.

2 OS AVANÇOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

Por certo, constatou-se que o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma conquista social garantida pela Constituição Federal de 1988, sendo de suma importância para o avanço de inúmeros indicativos de saúde no país. De fato, apesar das deficiências, é axiomática a relevância do SUS para a assistência médico-hospitalar do país, principalmente para a parcela mais carente da sociedade. De início, é importante destacar que corriqueiramente a avaliação que se faz do SUS é baseada em fatos mostrados pelos meios de comunicação, por exemplo. Estes retratam uma parte da realidade vivida por muitos brasileiros, caracterizada pela insuficiência entre a demanda e a oferta. Em contrapartida, o trabalho desenvolvido pelo SUS não se restringe apenas ao atendimento médico, estendendo-se para diversas áreas de prevenção e controle de disseminação de doenças. Nesse sentido, cabe mencionar um trecho do texto publicado recentemente pelo renomado médico Drauzio Varella, no jornal Folha de São Paulo, em que há a menção de que somente os brasileiros com carteira assinada tinham direito à assistência médica, pelo antigo INPS. Com isso, “os demais pagavam pelo atendimento ou faziam fila na porta de meia dúzia de hospitais públicos espelhados pelo país ou dependiam da caridade alheia, concentrada nas santas casas de misericórdia [...]” (VARELLA, 2019, p. 1). De fato, outro trecho interessante é quando há a referência aos grupos sociais que não eram abarcados pela assistência médica, sendo enquadrados como indigentes sociais: “os trabalhadores informais, os do campo, os desempregados e as mulheres sem maridos com direito ao INPS. As crianças não tinham acesso a pediatras e recebiam uma ou outra vacina em campanhas bissextas organizadas nos centros urbanos [...]” (VARELLA, 2019, p. 1). Por certo, um dos exemplos dos avanços alcançados pelo SUS, o qual inclusive começou antes mesmo da sua implementação, é a prevenção e tratamento das doenças que assolavam o país. Este combate foi promovido

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 247 através de programas como Programa Nacional de Imunizações, Programa Saúde da Família ou o Tratamento de Doenças como a AIDS, entre outros. Frisa-se ainda que a tentativa de democratização do sistema de saúde público do país é algo a se exaltar, e percebe-se que na prática tal investida em alguns bons casos é observado, como nos programas citados anteriormente. Nesse contexto, segundo o que consta no “Blog da Saúde”, vinculado ao Ministério da Saúde, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Brasil é uma referência internacional de política pública de saúde. “Desde que foi criado, em 1973, o programa busca a inclusão social, assistindo todas as pessoas, em todo o país, sem distinção de qualquer natureza”. (ROCHA, 2015, p. 1) Assim, “[...] As vacinas do programa estão à disposição de todos nos postos de saúde ou com as equipes de vacinação, cujo empenho permite levar a imunização mesmo aos locais de difícil acesso”. (ROCHA, 2015, p. 1) Nesse sentido, foi através de campanhas de vacinação que o Brasil conseguiu erradicar doenças como a poliomielite, varíola e busca como metas mais recentes a erradicação do “sarampo, a eliminação do tétano neonatal e o controle de outras doenças imunopreveniveis como Difteria, Coqueluche, e Tétano acidental, Hepatite B, Meningites, Febre Amarela, formas graves da Tuberculose, Rubéola e Caxumba [...]”. (ROCHA, 2015, p. 1) Como visto, o Programa Nacional de Imunizações é de extrema importância, já que significou grandes avanços para a saúde e consolidação de um dos pilares do SUS, qual seja a democratização do acesso à saúde. Assim, o fato do programa ser descentralizado demonstra sua primordial importância para a melhora da saúde do país. Outra política de relevante papel social sob a tutela do SUS é o Programa Saúde da Família. Segundo informações contidas no portal Pense SUS, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz, a “saúde da família está no primeiro nível de atenção no Sistema Único de Saúde (SUS) e é considerada uma estratégia primordial para a organização e o fortalecimento da atenção básica”. (CASTRO et al., 2017, p. 1) Através do programa há um “acompanhamento de um número definido de famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada, são desenvolvidas ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação [...]” (CASTRO et al., 2017, p. 1) entre outros.

248 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Nesse contexto, é interessante notar que o trabalho desenvolvido pelo programa Saúde da Família busca fazer com que os profissionais (médicos, enfermeiros, agentes comunitários, entre outros) tenham um estreitamento de vínculos com a população, de modo a ampliar as relações e conhecimentos com aquela área atendida. Deveras, tem-se como estratégia de trabalho conhecer a realidade das famílias atendidas através de “cadastramento e diagnóstico de suas características sociais, demográficas e epidemiológicas” (CASTRO et al., 2017, p. 1), buscando identificar os problemas de saúde que mais atingem aquela determinada população. Por isso, é perceptível o desenvolvimento de um trabalho relevante para a sociedade brasileira, demonstrando a integração entre os profissionais e os pacientes atendidos. Essas ações do programa são avanços na prestação de serviços à comunidade, destacando que nos anos 1970, surgiram “os primeiros projetos-piloto de medicina comunitária, realizados por instituições acadêmicas e Secretarias de Saúde, que desaguaram, em 1979, num programa de atenção primária seletiva, o Programa de Interiorização das Ações de Saúde” (CASTRO, et al., 2017, p. 1). Por fim, cumpre destacar que outro notável avanço desenvolvido pelo SUS, o qual inclusive apresenta repercussão internacional, é o programa de Controle do HIV/AIDS. Sua importância abrange desde o campo da prevenção, com distribuição de preservativos e medicamentos para pessoas que suspeitam ter contraído o vírus a fim de evitar possíveis infecções, até o tratamento efetivo da doença após o diagnóstico. Segundo Drauzio Varella, em entrevista ao site Aids.gov, vinculado ao Ministério da Saúde, em reportagem feita por Aêde Cadaxa “se não tivesse adotado essa política, hoje, ao invés de 860 mil, o Brasil teria 18 milhões de brasileiros com HIV [...]”. (VARELLA, 2018, p. 1). O famoso médico comparou o Brasil à África do Sul, que não possui a política de cuidados e prevenção gratuitos da doença e possui cerca de 10% da população infectada. Verifica-se aqui a magnitude do Sistema Único de Saúde, que visaà prevenção e tratamento para uma doença tão implacável como a AIDS, possibilitando condições dignas de vida para aqueles os quais adoeceram em virtude desta enfermidade. De fato, diante de todo o exposto, é possível identificar uma série de avanços promovidos pelo SUS ao acesso de assistência médica ampla, impactando significativamente na vida de milhares de brasileiros. Assim, as campanhas de vacinação tiveram grande influência nas quedas extraordinárias do número da taxa de mortalidade infantil, que “decresceu

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 249 de 53,7 a 15,6 por 1000 NV, com uma redução de mais de 2/3” (LEAL; SZWARCWALD; ALMEIDA et al., 2018, p. 1) no período de 1990-2015 e, ao mesmo tempo, houve um aumento na expectativa de vida, que passou de 66,9 anos em 1991 para 76 anos em 2017, segundo dados do IBGE, publicados em uma reportagem do site G1. Por certo, depreende-se que a universalização da saúde é um objetivo que deve ser buscado e aprimorado de forma progressiva, já que, conforme estatisticamente comprovado, o Sistema Único de Saúde apresenta resultados sólidos de sua luta e efetividade no tratamento e prevenção de inúmeras doenças no Brasil.

3 ENCRUZILHADAS DO SUS: FATORES INTRÍNSECOS E EXTRÍNSECOS QUE RETARDAM SEU DESENVOLVIMENTO

De fato, são categóricos os relevantes avanços proporcionados pelo Sistema Único de Saúde para a democratização do acesso à saúde no Brasil. Por certo, restou comprovada a sua vital importância para toda a sociedade brasileira, em particular para as camadas mais necessitadas, o que pode ser facilmente verificado através da redução dos índices de mortalidade infantil, decréscimo da propagação de doenças transmissíveis e aumento da expectativa de vida do país. Entretanto, apesar das benesses supracitadas, o SUS, desde sua criação, enfrenta uma série de problemas internos e externos, os quais são responsáveis por impedir sua consolidação plena, assim como prejudicam a perpetuação do desempenho de suas atividades no Brasil. De fato, tornar- se-ão alvos de análise as questões pertinentes ao financiamento, relação público-privado e privatização do Sistema Único de Saúde. Frente ao exposto, é possível separar as problemáticas enfretadas pelo SUS em dois grandes grupos: o primeiro é aquele realcionado às suas questões estrututais, bem como acerca do seu financiamento e repasses entre os entedes federativos. Já o segundo está conectado com fatores extrínsecos ao SUS, ou seja, relação com os planos privados e efeitos da política neoliberal adotada pelo Brasil, fatores que influenciam diretamente no seu desenvolvimento e ampliação.

250 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 3.1 Financiamento do SUS: impasses para sua consolidação no Brasil

Isto posto, conforme anteriormente mencionado, a partir da Constituição Federal de 1988 tornou-se dever do Estado a promoção da saúde. Por certo, é coerente supor que, frente a expressa menção na Carta Magna, o poder público passaria a despender pesados investimentos à saúde a fim de garanti-la. Porém, não é o que se verifica, haja vista que “o gasto federal com o SUS é mantido por volta de 1,7% do PIB que, juntado ao dos Municípios e Estados, totaliza entre 3,6 e 3,9% do PIB” (SANTOS, 2018, p. 1731). Deveras, os recursos destinados para o financiamento das políticas sociais do Brasil, dentre elas a saúde, “são provenientes de impostos, contribuições e taxas cobradas pelo Estado sobre a produção, consumo, renda e patrimônio” (BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2011b). Ademais, a responsabilidade para o financiamento do SUS é tripartite, ou seja, a União, os Estados e Municípios apresentam o compromisso para a destinação de verbas obtidas através do recolhimento de tributos para financiar estas políticas. Ressalta-se que, visando à colaboração conjunta entre as três esferas da administração pública, foi implementada a EC nº 29/2000, atualmente em vigor através da Lei nº 141/2012. De fato, a referida legislação objetivou atingir um alto grau de solidariedade entre os entes, possibilitando assim uma gestão ampla e efetiva do SUS. Entretanto, aquela apenas “acirrou as disputas por ampliação da arrecadação tributária municipal, uma vez que o percentual de aplicação definido se dá sobre a base de arrecadação” (CELUPPI; GEREMIA; FERREIRA et al., 2019, p. 307). Cabe aqui mencionar que a Constituição Federal almejou descentralizar a responsabilidade pela promoção das políticas públicas, criando assim uma série de competências para os mais variados entes políticos. Insta mencionar que esta medida promoveu a redução de independência de determinados Estados, objetivando assim evitar o abuso de autoridade na implementação e revogação de políticas ligadas à saúde. Ocorre que, como o SUS foi estruturado para operar sob o modelo tripartite de gestão, é de suma importância para seu funcionamento que de fato haja a autonomia de cada ente federativo a fim de permitir que, principalmente cada município, desenvolvesse seus métodos de operação na saúde com fulcro nas particularidades de cada região. Deveras, verifica-

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 251 se a fundamental relevância desta política no próprio movimento liderado pelos municípios no final do século XX, cujo lema foi “municipalização é caminho”, o qual reiterava a necessidade de transferências da competência de gestão de serviços ligados à saúde dos Estados e União para os Municípios (SANTOS, 2018, p. 2046). Os municípios têm sido o esteio do SUS para a população. Mais de 40% dos estados não aplicam o mínimo de 12% na saúde; contudo 100% dos municípios aplicam acima do mínimo de 15% na saúde, chegando a média de 26%. Afora a questão da modernização da Administração Pública que é criticada a quatro cantos, sem que se mova uma palha para a sua mudança. Os problemas são identificados e divulgados, ante uma paralisia absurda daqueles que detém o poder para promover mudanças nas estruturas da Administração Pública (SANTOS, 2018, p. 2046). Desse modo, resta evidenciado a problemática relativa ao financiamento em conjunto com a estrutura organizacional do SUS. Sua operacionalização tripartite encontra profundos impasses na burocrática atuação dos entes federativos, cujas competências e responsabilidades ainda conflitam. Ademais, a autonomia reduzida dos municípios, cujas demandas são muito distintas uns entre os outros, apresenta-se como um óbice ao pleno funcionamento do programa. Frente a toda a situação enfrentada pelo Sistema Único de Saúde, encontra-se ainda a ocorrência do fenômeno de desfinanciamento do mesmo, ou seja, há a redução progressiva da arrecadação tributária e fiscal que seriam destinadas para a área da saúde pelo governo federal. Em tese, esse tipo de gasto poderia atender aos seguintes objetivos governamentais, de forma combinada ou não: patrocinar o consumo de planos de saúde; fortalecer a regulação dos preços do mercado de planos de saúde; reduzir a fila de espera e o tempo de espera nos serviços especializados do setor público; diminuir a carga tributária dos contribuintes que enfrentam gastos catastróficos em saúde; reduzir os gastos com bens e serviços privados de saúde da força de trabalho inserida no polo dinâmico da economia; e promover benefício fiscal (OCKE-REIS, 2018, p. 2037). Neste diapasão, é de categórica importância mencionar a Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Esta foi responsável pelo congelamento dos gastos públicos por duas décadas, impossibilitando “o

252 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro crescimento das despesas totais e reais do governo acima da inflação, nem mesmo se a economia estiver bem” (MARIANO, 2017, p. 261). De fato, há apenas a possibilidade de aumento dos subsídios de uma determinada área se houver necessariamente a redução destes em uma outra. Assim, é fato incontroverso que o crescimento de vários campos do Brasil será cabalmente prejudicado em virtude da aprovação da EC nº 95/2016 (FIGUEIREDO; PRADO; MEDINA et al., 2018, p. 38), uma vez que mesmo em casos de expansão da economia nacional, esta não será acompanhada pelo desenvolvimento de campos fundamentais do país, como a educação e saúde. Sem essa exclusão do teto, o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) nos Estados e Municípios será fortemente atingido, pois cerca de 2/3 das despesas do Ministério da Saúde são transferidas fundo a fundo para ações de atenção básica, média e alta complexidade, assistência farmacêutica, vigilância epidemiológica e sanitária, entre outras, a cargos dos entes federados (MARIANO, 2017, p. 262). Por certo, a implementação da EC nº 95/2016 foi resultado da aprovação da PEC 241, a qual tinha como justificativa para sua propositura o suposto déficit gerado pelo governo anterior, fazendo necessário assim o corte de verbas para que fosse possível restabelecer o equilíbrio econômico (MARIANO, 2017, p. 267). Entretanto, salienta-se que o Governo Temer, ao aprovar a EC nº 95/2016, apenas “deu continuidade e aprofundou a hegemonia contrária ao SUS, tornando-o ainda mais reduzido, com o risco de se tornar um simulacro” (PAIM, 2018, p. 1724). Assim sendo, frisa-se ainda que a fixação do período de congelamento de recursos por duas décadas é tempo mais do que necessário para a profunda alteração das bases do Sistema Único de Saúde, fato que invariavelmente resultará na acentuação de seu sucateamento (GIOVANELLA; MENDOZA-RUIZ; PILAR, 2018). Diante do exposto, é axiomático depreender que a situação da saúde pública não será solucionada “enquanto persistir o dilema entre a universalidade do SUS diante da sua dificuldade de financiamento público” (FIGUEIREDO, PRADO; MEDINA et al., 2018, p. 44-45). Desse modo, os problemas estruturais e de financiamento enfrentados pelo programa apresentam agora mais um fator de desvantagem, o qual apenas precariza a situação do SUS.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 253 3.2 Relação público-privada e privatização do Sistema Único de Saúde

Do exposto, cabe a realização agora da análise de um relevante fator que atinge o desempenho do SUS, qual seja os planos de saúde privados. De fato, o surgimento dos planos de saúde privados no Brasil remontam a meados do século XX, através da “inserção dos trabalhadores em empresas que mantenham a assistência médico-hospitalar como um dos itens de suas cestas de benefícios ou adquiridos individualmente através dos orçamentos familiares” (BAHIA, 2001, p. 333). Deste período até o presente, várias passaram a ser as concessões do governo federal para o desenvolvimento de planos de saúde privados. Dentre estas concessões, destacam-se a criação da Agência Nacional de Saúde (ANS) pela Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000, cuja responsabilidade do órgão era a defesa dos interesses públicos na assistência suplementar à saúde, ou seja, objetivava a regulação e de desenvolvimento dos planos privados (SANTOS, 2018, p. 1732). A partir de meados da primeira década dos anos 2000, amplo, fortemente subsidiado e facilitado financiamento público proveniente do BNDES e do BID para edificações dos hospitais privados de grande porte, conveniados com o SUS e credenciados por grandes empresas de planos e seguros privados de saúde. Assim como para instalação de hospitais próprios dessas empresas (SANTOS, 2018, p. 1732). Deveras, é possível verificar que, concomitantemente à implementação dos SUS, sempre houve investimentos e concessões pelo governo federal para as empresas privadas de plano de saúde, as quais ofereciam, de modo geral, os mesmos serviços prestados pelo programa público. Neste diapasão, é de suma importância mencionar as isenções fiscais e tributárias concedidas às empresas privadas de saúde, principalmente em decorrência MP nº 619/2013, a qual estendeu a estas a renúncia fiscal de contribuições como PIS e COFINS. Assim, depreende-se que a crise enfrentada pelo Sistema Único de Saúde, desde seu surgimento, não se restringe apenas à sua estruturação e precário financiamento. Em contrapartida, estende-se ao campo político, no qual se verifica a adoção de uma gama de medidas e legislações que vão de encontro ao desenvolvimento de um sistema de saúde pública de qualidade e gratuita, sendo que, na sua ineficiência, socorrem-se muitos

254 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro brasileiros dos planos privados que apenas alimentam a indústria da mercantilização da saúde. Para os defensores do SUS não é fácil lidar com essa contradição. O mercado pode agravar as distorções deste tipo de sistema, dado que o aumento do gasto privado e do poder econômico acabam corroendo a sustentabilidade do financiamento estatal, conduzindo a um círculo vicioso, caracterizado pela queda relativa do custeio e do investimento na saúde pública. E, de igual modo importante, a regulação de sistema duplicado é muito mais complexa para o Estado, uma vez que o mercado cobre também serviços ofertados pelo setor público Não é à toa que há certo consenso entre os analistas de políticas de saúde de que os maiores desafios (do SUS) são políticos, pois supõem a garantia do financiamento do subsistema público, a redefinição da articulação público- privada e a redução das desigualdades de renda, poder e saúde (OCKE-REIS, 2018, p.2036). Porém, a problemática da relação público-privado não se restringe apenas ao exposto. A relação de interdependência entre ambos os sistema é histórica, atingindo demasiadamente a questão sobre a quem pertencem os estabelecimentos físicos nos quais ocorrem quase a totalidade dos atendimentos à população brasileira (VIACAVA, 2018, p. 1754). Neste quesito, é possível verificar a relação de sujeição entre o público e o privado, na medida em que grande parte dos hospitais e clínicas são privados, embora haja atendimentos pelo SUS. Por outro lado, as unidades de “pronto-socorro” são públicas, mas há o atendimento pelo sistema de planos de saúde privados. Se, por um lado, o SUS necessita dos serviços privados para garantir a atenção à população, a maioria dos estabelecimentos privados dependem dos recursos públicos por atenderem exclusivamente ao SUS ou serem de uso misto, especialmente os hospitais e as unidades de SADT (VIACAVA, 2018, p. 1754-1755). Ora, é visível que a relação público-privado apresenta raízes profundas no contexto brasileiro, inclusive cabendo ressaltar que os planos privados anteviram o próprio Sistema Único de Saúde, o qual, conforme mencionado, apenas surgiu no período de redemocratização. Assim, cabe-se aqui frisar que não cabe para o caso concreto o corte por completo de todas as concessões e subsídios oferecidos pelo governo às

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 255 empresas privadas, haja vista que há uma nítida dependência entre ambos, os quais não existiriam ou operariam de modo minimamente satisfatório na ausência do outro. Frente a todo este cenário, no qual o jogo político alimenta as empresas que oferecem os planos privados em conjunto com a deficiências históricas do SUS, traz-se assim a discussão acerca da sua privatização. Por certo, os principais defensores desta medida posicionam-se com fulcro na ineficiência do programa e nos preceitos liberais do Estado mínimo (CELUPPI; GEREMIA; FERREIRA et al., 2019, p. 305), afirmando pela maior efetividade na saúde brasileira caso houvesse sua transferência apenas para o sistema privado. Em contrapartida, é inconteste o prejuízo que tal medida acarretaria para parcela significativa da sociedade brasileira, a qual sequer apresentam condições para prover seu próprio sustento em meio à crise econômica e política que atinge o Brasil. Diante do exposto, já há indícios que demonstram tratativas para uma futura privatização da saúde pública. Dentre eles, pode-se ressaltar a recente criação da Federação Brasileira de Planos de Saúde (Febraplan), a qual foi criada em 2018 e se apresenta como uma “nova entidade representativa dos planos e seguros privados” (CELUPPI; GEREMIA; FERREIRA et al., 2019, p. 307). De fato, através desta, já foram propostas reuniões que discutem uma saída para a saúde brasileira frente à situação em que se encontra, principalmente diante do congelamentos dos gastos públicos pela EC nº 95/2016 e limitação dos investimentos na contratação de recursos humanos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Por certo, toda essa conjuntura conta ainda com o apoio midiático, o qual fomenta a manipulação da opinião pública, que passará a coadunar passivamente com a entrega da saúde pública brasileira para o setor privado. De fato, historicamente no Brasil, o papel preponderante e decisivo das mídias é fomentador da aprovação de medidas nem sempre benéficas para a população mais carente do país, sendo responsável por desempenhar “função primordial no que se refere a manipulação popular, imposição ideológica e destruição das políticas públicas sociais, principalmente o SUS” (CELUPPI; GEREMIA; FERREIRA et al., 2019, p. 307). Restaram demonstrados os vários fatores e políticas que podem determinar a privatização do Sistema Único de Saúde. Certamente, caso seja adotada esta medida extrema pelo poder público, passando assim a totalidade da administração e gestão da saúde brasileira para o setor privado, são axiomáticos os impactos negativos que decorrerão desta deliberação.

256 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Dentre elas, tem-se a expressa contrariedade ao texto constitucional, marco da redemocratização do Brasil, fato que demonstra que em cerca de três décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988 já não mais é possível aplicá-la na realidade vigente do país. Neste sentido, destacam-se também os óbices que serão sofridos pelos profissionais da saúde, frente “a precarização das condições de trabalho, diminuição de salários, desestabilização dos direitos trabalhistas e priorização da lógica quantitativista de produção na assistência à saúde” (CELUPPI; GEREMIA; FERREIRA et al., 2019, p. 309). Defende-se a privatização do asseguramento e da prestação de serviços de saúde, sob o argumento de que a provisão privada seria mais eficiente, afirmação que carece de evidências. Prestadores privados respondem a demandas e não às necessidades de saúde da população; se instalam em áreas de maior desenvolvimento socioeconômico; ofertam serviços mais rentáveis; prestam mais serviços desnecessários e mais frequentemente violam padrões da boa prática médica; são menos eficientes e têm resultados inferiores em saúde do que os serviços públicos. Porém, proveem atenção mais oportuna e cuidados mais personalizados (GIOVANELLA, MENDOZA-RUIZ; PILAR, 2018, p. 1766). Portanto, conclui-se que o Sistema Único de Saúde possui entraves estruturais, os quais o acompanham desde seu surgimento, porém os mais árduos são aqueles ligados à conjuntura política e econômica do Brasil. Com efeito, verifica-se que os maiores desafios a serem superados são os progressivos cortes de seu financiamento em conjunto com o equilíbrio entre a atuação do setor privado na saúde e as ameaças de privatização. Deste modo, será possível a continuidade do sistema de promoção de saúde universal e gratuita, passando a reunir também a excelência necessária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto, percebe-se o quanto o SUS, apesar das problemáticas apresentadas, é importante para o desenvolvimento da saúde pública brasileira. Foi demonstrado como ele influenciou diretamente na melhora de vários indicadores e como desempenha um papel de destaque na democratização da saúde, possibilitando através da descentralização do sistema, o acesso a saúde as mais diferente regiões do país.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 257 Além disso, verificaram-se as dificuldades que o sistema vem enfrentando ao longo dos anos, como aquela relacionada ao financiamento, o qual impacta diretamente na ampliação e na qualidade do serviço prestado para a população. Assim, merecem destaque decisões políticas como a PEC 95/2016, que congelou os gastos públicos por um período de 20 anos, dificultando o aumento de repasse para áreas como o da saúde. Além disso, as medidas de isenções fiscais e tributárias concedidas às empresas privadas de saúde, como a MP nº 619/2013, mostram o favorecimento do setor privado pelo Estado. Outro ponto importante é o modo como o SUS é representado através dos grandes meios de comunicação. Muitas vezes, é enfatizado o sistema como algo deficitário e que não funciona, o que acaba por colaborar com discursos que pregam contra o sistema. Desse modo, acaba atrapalhando uma maior compreensão do papel desempenhado pelo Sistema Único de Saúde, que apresenta bons resultados em muitas áreas. Por fim, é interessante constatar que o SUS representa uma relevante conquista social inserida na Constituição Federal de 1988, já que antes de seu surgimento muitas pessoas sequer tinham acesso à saúde. É importante verificar, também, que aquele apresenta ainda muitos pontos para evoluir, especialmente no que concerne à questão do financiamento e estruturação, possibilitando assim o maior acesso por todos os brasileiros. Portanto, conclui-se que a principal problemática que circunda a consolidação plena do SUS é aquela relacionada à sua estrutura, mas, principalmente, uma questão política, uma vez que sucessivas aprovações de leis e emendas, em conjunto com os incentivos concedidos ao setor privado colocam em que xeque a funcionalidade plena do SUS.

REFERÊNCIAS

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262 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro O DESMONTE DA SEGURIDADE SOCIAL PELO TRABALHO UBERIZADO

1Stephanie Bortolaso* Nathália Galvão**

RESUMO: O mundo do trabalho se transforma e se remodela de acordo com a sociedade em que está inserido. Atualmente, a coletividade goza de um amplo aporte tecnológico e uma busca incessante de informatização das tarefas e relações humanas como forma de facilitar e atender o bem-estar social, além de se adequar aos anseios econômicos do mercado. Diante de tal cenário surge uma nova lógica laboral que reformula aspectos basilares do direito trabalhista. Tal perspectiva permite que surja o trabalhador por aplicativo, mais especificamente o trabalhador ligado à empresa Uber, ou, trabalhador uberizado. Tais profissionais oferecem serviços de mobilidade, mas em contraponto não usufruem das seguranças jurídicas e previdenciárias, previstas aos trabalhadores popularmente conhecidos como trabalhadores formais. Tal fenômeno tem repercutido negativamente dentro do espectro trabalhista necessitando, portanto, de um estudo mais detalhado, enfatizando suas problemáticas e apresentando alternativas para estes impasses. Palavras-chave: contribuição. Uber. trabalho. uberização. decreto. ABSTRACT: The labor world changes and reshapes itself according to the society in which it operates. Currently, the community enjoys a wide technological support and an incessant search for computerization of human tasks and relations as a way to facilitate and meet social welfare, in addition to adapting to the economic aspirations of the market. In the face of such a scenario, a new labor logic emerges that reformulates basic aspects of labor law. This perspective allows the worker who falls within the logic of applications to emerge, more specifically the worker linked to the Uber company, or the uberized worker. These professionals offer mobility services, but in contrast they do not enjoy the legal and social security provided for such formal workers. Such a phenomenon has had negative repercussions within the labor spectrum, thus requiring a more detailed study, emphasizing its problems and presenting alternatives to these impasses. Keywords: social contribution. Uber. labor. sharing economy. law. decree.

INTRODUÇÃO

No decorrer das últimas décadas, o avanço da tecnologia e a rapidez por troca de bens e serviços têm ganhado um papel cada vez mais importante dentro da sociedade contemporânea, ao passo que são esses os mecanismos que ditam da forma mais simples como o ser humano deve se relacionar com a natureza e a sociedade como um todo. Diante deste panorama, é incontestável a influência tecnológica nas relações de trabalho em suas mais modernas configurações, perpetuando avanços e novos meios de tecnologia, além de resultar em novas relações trabalhistas. É também * Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7299317482235839. ** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7299317482235839.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 263 nesse contexto que surge um novo tipo de trabalhador, preocupado em aproveitar as demandas do mercado, que usa como vantagem o apreço pela digitalização e informatização das relações humanas. Retrata bem essa realidade a empresa Uber, grande fomentadora de mobilidade urbana, sendo responsável pela consolidação do termo e fenômeno da uberização, traduzindo-se em um novo tipo de interação entre empregador e trabalhador, no qual é retirado todo vínculo legal da relação de trabalho, se declarando, portanto, como uma forma de mediação entre os consumidores e seus prestadores de serviço. A uberização traz como maiores atrativos a facilidade e bom rendimento para os trabalhadores, no entanto, essa nova forma de empregabilidade realmente é benéfica aos seus contribuidores? Qual o papel do Estado e das políticas públicas dentro desse novo mercado? No Brasil, com uma Justiça Trabalhista habituada em identificar os requisitos legais do vínculo empregatício, a fim de garantir a proteção dos trabalhadores e manter um sistema previdenciário, pautado em relações de trabalho específicas e delimitadas, nota-se certa dificuldade das previsões legais em abarcar a fluidez e maleabilidade desses novos contextos e aplica-las ao trabalhador uberizado. Permite-se que haja duas alternativas: uma delas é comprovar o vínculo no desempenho de sua atividade e assim reivindicar seus direitos junto a empregadora – Uber – ou, como segunda opção, se encaixar nos moldes legais estabelecidos para os contribuintes individuais e validar um mínimo de benefícios e garantias. O presente artigo tem como objetivo analisar as dinâmicas do processo de uberização na sociedade neoliberal, desde o seu surgimento, a estrutura que configura e sua pretensão em preencher uma lacuna, deixada pela falta de mobilidade urbana nos grandes e pequenos centros e evidenciada pela falta de um sistema de transporte público eficiente e de qualidade. Ademais, busca-se discutir os reais impactos sobre a vida dos trabalhadores que são atraídos pela expectativa de obtenção de emprego, alta rentabilidade e disponibilidade de mercado, e, no entanto, são submetidos a condições precárias, não só de infraestrutura, mas de amparo previdenciário e trabalhista, frente ainda à omissão Estatal para tal cenário.

1 O PROCESSO PÓS-MODERNO DE UBERIZAÇÃO

É inegável que o momento evolutivo da sociedade atual é sem precedentes, já que nunca antes a humanidade foi detentora de tamanho

264 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro conhecimento tecnológico. Em contrapartida, o que já vem se mostrando como resultado deste momento e reconfiguração do sistema capitalista é o fato de que os avanços científicos, em seus mais variados âmbitos, vêm impactando negativamente a estrutura social e economia global, no que diz respeito ao trabalhador e suas garantias, principalmente, na esfera previdenciária. Desde a Primeira Revolução Industrial, como um caminho lógico do capital, os meios de produção foram se tornando cada vez mais elaborados, sob o objetivo de garantir maior produção em menor tempo, causando as subsequentes Segunda e Terceira Revolução Industrial (esta marcada pela computadorização e pelo toyotismo – especialização; aquela, marcada pela metalurgia, fordismo e taylorismo). A grande diferença é que a presente evolução, que para muitos já configura uma Quarta Revolução Industrial (SCHWAB, 2016), potencializou todos os modelos de exploração anteriores e se tornou tão ampliada que ultrapassou a mera esfera econômica e produtiva, atingindo as esferas pessoais e subjetivas cada vez mais. Ainda, é possível afirmarmos que os avanços tecnológicos hodiernos vêm se concentrando na esfera digital – o uso da internet mudou nossas perspectivas da vida no geral. A comunicação foi preponderadamente digitalizada e hoje a internet monopoliza a difusão de informação. As atuais empresas de mídia migram seus esforços para tornar cada dia mais eficiente os meios virtuais, em detrimento dos antigos meios de comunicação, outrora dominantes. Com essa nova lógica, os meios de produção e os meios de comunicação são fundidos num só modelo produtivo e social pós-moderno. Essa fusão pode ser imediatamente percebida ao observar o processo de plataformização dos serviços – ou seja, uma onda de novos empregos sendo gerados através de plataformas digitais ou os popularmente conhecidos aplicativos. O exemplo mais claro dessa configuração é a empresa Uber, cujo nome deu raiz ao termo “uberização” que hoje é utilizado como sinônimo de todo esse novo processo.

1.1 O surgimento do trabalho uberizado

É de suma importância, no entanto, antes de adentrarmos mais longamente no funcionamento do contexto desenhado acima, entendermos a conjuntura que permitiu que a digitalização pudesse se propagar, consequentemente levando o modelo produtivo uberizado a

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 265 emergir. Importante consignar que todo o panorama em que se insere a pós-modernidade, a digitalização, a uberização, é também chamado de “economia compartilhada” ou “economia do compartilhamento”, que, conforme postula o autor americano Tom Slee (2017, p. 21), “é uma onda de novos negócios que usam a internet para conectar consumidores com provedores de serviço para trocas no mundo físico”. A priori, a noção que se deve ter em mente é que o sistema capitalista atual emprega como seu carro-chefe o pensamento político neoliberal, este se compreende “como a prática de governança e de reestruturação do Estado, originado do predomínio do capital financeiro em relação ao capital produtivo, em nível global” (PRADO, 2005). Através desse conceito, depreende-se que sua força material se infiltra em todos os âmbitos da sociedade, ultrapassando a economia e ditando também o modo de vida social e, principalmente, a política – reestruturando a posição que o Estado irá adotar perante os possíveis cenários. Assim, “os papéis básicos do governo numa sociedade livre – prover os meios para modificar as regras, regular as diferenças sobre seu significado, e garantir o cumprimento das regras por aqueles que, de outra forma, não se submeteriam a elas” (FRIEDMAN, 1971, p. 32), demonstrando que a lógica neoliberal se baseia na tentativa constante e planejada de desmonte daquilo que já fora tutelado pelo Estado – desmonte da regulamentação e fiscalização estatal sobre os direitos fundamentais e a efetivação de boas condições de trabalho à população, assim como as consequentes infraestruturas que garantam sua qualidade de vida e seguridade social. Tais direitos haviam sido conquistados arduamente através da luta de classe e dos trabalhadores formais e da reivindicação popular, e a sua tentativa de efetivação sempre fora empreendida pelo governo através do desenvolvimento de políticas públicas. Portanto, conclui-se que os fatores que compõem a economia compartilhada, ou são expressões do próprio neoliberalismo, ou foram ardilosamente utilizadas por ele, sendo seu fim o desmonte estrutural e acumulação de recursos nas mãos dos detentores do capital.

1.1.1 Os processos de globalização e de digitalização

Com o panorama apresentado, é preciso agora analisar os fatores em si que contribuíram para a consolidação do modelo uberizado – fatores estes que se inserem, todos, na pós-modernidade. Como produto de modificações nas ciências que se arrastam desde o fim do século

266 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro XIX, conforme afirma o pensador Jean-François Lyotard (2009), a pós-modernidade se viu aflorar entre o fim do séc. XX e início do séc. XXI. Este período é marcado por uma postura de rejeição de ideologias advindas do iluminismo e da racionalidade moderna. Para os pensadores pós-modernos, essas ideologias foram abordadas de maneira utópica – seja por acreditarem em religiões, seja pela crença, quase sacra, da construção de um mundo novo e melhor (LYOTARD, 2009). Nesse sentido, a sociedade pós-moderna se mostra descrente quanto a idealismos e não concebe verdades sólidas imutáveis (BAUMAN, 2001), o que gera um sentimento de futilidade (LYOTARD, 2009) seguida da “afirmação da efemeridade e da fragmentação, do descontínuo edo caótico” (CARCANHOLO e BARUCO, 2008, p. 4) – o que levou Bauman (2001) a chamar a pós-modernidade de modernidade líquida. Em uma sociedade que rejeita os ideais e os valores, não é difícil entendermos como o capital conseguiu se difundir e potencializar, através do uso do ideal neoliberal. Sobre esta ideologia da satisfação, Gilles Lipovetsky (2009) explica como o narcisismo se torna desenfreado, transformando todos os aspectos da sociedade em uma cultura do consumo em massa – desconsiderando todas as individualidades das civilizações, além de sua redução a legiões de meros consumidores. Apesar da referida fragmentação, a apropriação do capital neoliberal, conforme expande seu processo de dominação, mostra sua característica principal – sua habilidade de tornar processos já existentes em processos escaláveis – cuja aplicação tem a capacidade de chegar a níveis globais. Sendo assim, noções como consumo e trabalho adquirem roupagem de mundialização, não existindo mais as barreiras territoriais à sua aplicação. Essa capacidade é expressa pelo processo de globalização – definida pelo Professor Eleutério F. S. Prado (2005, p. 1) comoa “mundialização do capital” – que provoca uma espécie de pós-colonização mundial; e pelo processo de digitalização dos meios, que imprime velocidade inigualável a esta propagação global. Nesse contexto, diversos elementos, outrora tidos como não comercializáveis, passaram a ser comercializados, tal qual o conhecimento; enquanto outros, que sempre foram vendidos, serão barateados e precarizados, tal qual a força de trabalho. Quanto a essa necessidade constante de renovar seus “pastos” de exploração, e transformar sempre que necessário as formas de explorar e relacionar elementos já apropriados, Bauman (2010) chama de “capitalismo parasitário”.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 267 1.2 Considerações sobre o funcionamento das plataformas

A partir da compreensão conjuntural, é possível inferir que essas novas empresas plataformizadas, que operam pelos meios digitais, não são mais a figura tradicional de empresa empregadora. A maior diferença, no entanto, é que, embora ainda tenha características de tomadora de serviços, as plataformas se recusam a admitir que possuem sequer as mínimas ligações legais e sociais com os trabalhadores para se definir como tais, preferindo afirmar que pertencem a um meio de campo muito mais imparcial – como se fossem meras mediadoras entre o consumidor e o prestador de serviço individual, autônomo. Nesse sentido, essas empresas primeiramente buscam eliminar ou obscurecer o vínculo empregatício, de forma que os trabalhadores, convencidos pelo livre-mercado neoliberal, pelas ideias meritocráticas de que seu futuro depende apenas de si mesmo (e não da oferta escassa de empregos e da ação controladora e assistencial do Estado) e que todos podem ser bem sucedidos, vide o empreendedorismo idealizado e exacerbado pela pós-modernidade, se lançam à sorte nestas subformas de trabalhos, sem contrato, sem tutela governamental. Essa atitude é ainda corroborada pela descrença quanto ao Estado – o cidadão deixa de acreditar que o governo irá prover e, portanto, deixa de exigir qualquer reação do mesmo. O trabalho uberizado consegue, assim, subordinar o trabalhador diretamente ao capital (FONTES, 2017, p. 18), assim como impede a luta social pela efetivação de seus direitos trabalhistas e previdenciários e pela devida aplicação das políticas públicas. Os Estados capitalistas realizaram um duplo movimento: reduziram sua intervenção na reprodução da força de trabalho empregada, ampliando a contenção da massa crescente de trabalhadores desempregados, preparando-os para a subordinação direta ao capital. Isso envolve assumir, de maneira mais incisiva, processos educativos elaborados pelo patronato, como o empreendedorismo e, sobretudo, apoiar resolutamente o empresariado no disciplinamento de uma força de trabalho para a qual o desemprego tornou-se condição normal. (FONTES, 2017, p. 49) Nesse contexto, o trabalhador passa a ser visto como um microempresário, ou um “nanoempreendedor” de si próprio, e a empresa, como uma mera parceira, conforme explica a Professora Ludmila Costhek Abílio (MACHADO, 2017, p. 21):

268 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Este trabalhador passa a ser definido como um microempreendedor, que tem liberdade sobre seu próprio trabalho, que não tem patrão, que administra sua própria vida para sobreviver. Um trabalhador que arca ele próprio com os riscos, com uma série de custos, e não conta com os direitos que vinham associados à exploração de seu trabalho. Com a não identificação de vínculo empregatício nas relações de trabalho uberizado, profunda discussão jurisprudencial é gerada, obrigando os países a tomarem decisões nesse sentido. Porém, ainda não existe legislação específica ou arcabouço jurídico suficientemente forte para gerar conceitos e abordagens de direito consolidadas, sendo, até agora, facultado a cada país a forma de resolver as lides do trabalho plataformizado, de acordo com seu entendimento e a atenção do caso a caso, ressaltando a omissão, pelo menos até o presente momento, de órgãos reguladores internacionais tais quais a Organização Internacional do Trabalho. Apesar desta volatilidade jurídica, é importante ressaltarmos, porém, que algumas características da uberização já se mostram definitivas e podem comprovar que essas empresas detêm a subsunção real do trabalhador. Conforme explica a Professora Ludmila Costhek Abílio (2017), a primeira dessas características é o fato de que o trabalhador está em constante fiscalização exercida pelos aplicativos, através de satélites que monitoram não só sua localização, mas seu total rendimento, sua produtividade segundo a segundo; e, pela apuração desse desempenho as empresas lhe ofertam mais serviços ou não (os motoristas mais bem avaliados na empresa Uber e com mais corridas são compensados com ainda mais corridas – assim como corridas mais lucrativas ou mais perto). Da mesma forma, cabe totalmente à empresa os repasses das verbas pelo trabalho. Essa situação configura uma centralização absoluta do trabalhador nas mãos da empresa “parceira”: Aparentemente, há apenas um aplicativo de computador a conectar motoristas e usuários. Isso é falso, pois, entre eles, há um credenciamento (para os motoristas e usuários), um cartão de crédito e um rastreador do movimento do motorista, todos totalmente arbitrários e autocráticos. Somente envolvem direitos para os proprietários do capital, escassas garantias para os usuários e nenhum direito para o trabalhador, salvo o de receber parcela do que produziu. (FONTES, 2017, p. 57).

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 269 Outra característica consolidada das empresas por aplicativos que merece nossa atenção é o fato de que o trabalhador, embora controlado e fiscalizado pela empresa, segundo a visão de ser seu próprio micro- empresário, arca com todos os riscos e custos de sua produção. Se trata de um mecanismo de terceirização desses custos e riscos a multidões de trabalhadores individuais, que passam a ser tratados da mesma forma que o processo de terceirização das últimas décadas encarregava empresas: “Na prática, tal transferência é gerenciada por softwares e plataformas online de propriedade dessas empresas, os quais conectam usuários trabalhadores a usuários consumidores e ditam e administram as regras (incluídos aí custos e ganhos) dessa conexão” (ABÍLIO, 2017a). A porcentagem que a Uber pega para si é dita como apenas uma parte dos ganhos devido ao fato de que ela fornece os meios de produção – que aqui não são mais os meios tradicionais, como a maquinaria (tanto que o próprio carro em si não pertence à Uber – o que a difere das empresas de táxi) – o novo meio de produção da economia compartilhada é simplesmente a capacidade de agenciar a força de trabalho pela digitalização – pela união entre mão de obra disponível (que o mercado não capacita mais absorver) e mercado consumidor ávido (FONTES, 2017, p. 56). Por fim, outra mudança essencial que a nova configuração capitalista neoliberal impõe é o desmonte e a descrença estrutural nas ferramentas estatais, o que leva o trabalhador, como já dito, a ser subordinado diretamente ao capital – o que implica em um profundo desamparo social e econômico sobre eles e faz com que toda uma classe social majoritária seja orientada, regrada e motivada, frente ao mercado consumista, pela pura e simples necessidade de sobrevivência. E, para completar essa situação catastrófica, no momento em que o trabalhador uberizado se encontra incapacitado de continuar a trabalhar – seja por idade, por acidente ou por doença – este se vê desamparado previdenciariamente.

2 A PREVIDÊNCIA E O TRABALHADOR UBERIZADO

Tendo sido, até agora, traçado todo um panorama crítico sociológico do universo do trabalho uberizado e o desmonte que o mesmo traz aos âmbitos de proteção do trabalhador e qualidade de vida dessa classe, passamos a uma análise jurídica, mais fatídica, da forma pela qual a legislação previdenciária vem abordando a questão do trabalho uberizado e suas consequências sobre os desmontes da estrutura do bem estar social –

270 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro que embora nunca realmente atingido, deveria ser o mote governamental. Vale lembrar que todas as leis e regulamentações desenvolvidas no sentido do trabalho plataformizado são ex post – ou seja, primeiro se consolidou a situação fática do trabalho uberizado e somente depois o direito veio a seu encalço, embora o mesmo Estado de direito tenha contribuído ex ante, por ação ou omissão, para a formação da situação fática de precarização, conforme contou a Profa. Virgínia Fontes (2017, p. 53). Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a postura que o Brasil vem adotando, até o momento, nos faz crer que o tratamento ideal para os trabalhadores uberizados é o de contribuinte individual. Essa conclusão se dá devido ao fato de que, por exclusão, os motoristas de aplicativo não podem ser classificados como empregados, conforme o rol taxativo do artigo 11 da Lei nº 8.213/1991. Nesse sentido, em 2018 foi chancelada pelo então Presidente Michel Temer a Lei nº 13.640, que, alterando a Lei nº 12.587/2012, regulamenta o transporte remunerado privado individual de passageiros – ou seja, passa a contemplar a maioria das modalidades de aplicativos que oferecem tal serviço. A Lei nº 13.640/2018, por seu art. 4°, inciso X, incluiu os transportes por aplicativos como espécie de mobilidade urbana e os definiu como sendo um transporte remunerado privado de passageiros, não aberto ao público, cujos usuários e motoristas devem estar cadastrados em plataformas de rede (BRASIL, 2018). Essa inclusão foi muito comemorada pelos aplicativos em questão, que a consideram o reconhecimento judicial que tanto buscavam – ou seja, sua inclusão no ordenamento jurídico brasileiro representava sua exoneração das discussões que questionam sua legitimidade e legalidade de atuação dentro do país (FORTINI, 2018). A reação dessas empresas não poderia ter sido diferente – afinal, embora o reconhecimento legislativo tenha sido feito, a legislação nada disse sobre o vínculo empregatício, não pautando obrigações a estas empresas, conforme afirma Marco Aurélio Serau Junior (2019): “O objetivo central dessa norma foi o aspecto regulatório, de Direito Público e Econômico, não se tratando de uma regra de Direito do Trabalho”. No mais, a Lei nº 13.640/2018 conferiu competência aos municípios e ao Distrito Federal para regulamentar e fiscalizar o referido transporte, observando os princípios e diretrizes da lei para garantir a segurança e eficácia na prestação do serviço, assim como a efetividade desta. Enfatizando que, por regulamentar e fiscalizar, o poder público federal delegou às municipalidades o dever de cobrar tributos (art. 11-A, inciso I), e de cobrar a contratação do

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 271 seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT), além de exigir que os motoristas se inscrevam como contribuintes individuais do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), de acordo com o inciso II da Lei nº 8.213/91. Novamente o legislador se mostrou omisso em delegar obrigações às empresas por aplicativos e deixou recair todo o ônus de seu trabalho sobre o trabalhador em si, obrigando-o a despender ainda mais recursos financeiros, em momentos de escassez para a população, ao invés de exigir tais ônus dos detentores do capital, confirmando, novamente, o modelo neoliberal que esta lei se pautou. Uma coisa que a lei de 2018 deixou certa é que os motoristas vinculados a aplicativos devem contribuir à previdência individualmente. Importante consignar que a Lei nº 12.587/2012 já tornava obrigatório aos motoristas a contribuição individual junto ao INSS. O que muda, agora, porém, é que os motoristas vinculados às plataformas são incluídos no rol dos motoristas em geral – já que o transporte por aplicativo foi considerado forma de mobilidade urbana, devendo se tornar, obrigatoriamente, contribuintes individuais, o que até 2012 não havia sido objetivamente reconhecido. Assim, no dia 14 de maio de 2019 foi promulgado o Decreto n° 9.792, que consagrou empresas como a Uber e semelhantes como detentoras de total direito em explorar o trabalho no ramo do transporte urbano, através de um tipo de “microterceirização” e que esses trabalhadores uberizados são, para o Direito Previdenciário, contribuintes individuais. Para não dizer que tal decreto foi de todo prolixo, vemos que a novidade está no fato de que foi institucionalizada a possibilidade de escolha, por parte do motorista uberizado, pela inscrição junto ao INSS como microempreendedor individual (MEI), desde que preenchidos os requisitos da Lei Complementar nº 123/2006, art. 18-A, conforme parágrafo único do artigo 2º da referida lei, ou contribuinte autônomo. A única responsabilidade conferida às empresas é a de comprovar junto ao INSS o cadastro do motorista em seu sistema, mantendo sigilo. O Decreto nº 9.792/2019 ainda afirma, em seu art. 4º, que o motorista deve recolher sua contribuição por iniciativa própria, conforme art. 30 da Lei nº 8.212 – o que não é estranho, já que o mesmo é aplicado a todos os contribuintes individuais (assim como aos facultativos).

272 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 2.1 O vínculo empregatício e a nova ordem laboral

O significado do enquadramento dos motoristas trabalhadores da nova ordem laboral como contribuintes individuais merece análise própria. Nota-se que, embora este entendimento não entre na esfera do direito do trabalho em si, como já citado, ele colabora para a compreensão de que as empresas plataformizadas não são realmente empregadoras – ou seja, não estão em uma posição de tomadora de serviço e portanto, não devem ser oneradas com os decorrentes encargos que essa posição sustenta, tal qual é o caso dos encargos previdenciários. No entanto, quando tal classificação é dada a essas empresas, tem se consolidado no panorama jurídico que as mesmas nada devem ao sistema de seguridade social, de forma que o encargo recai sobre o próprio trabalhador. Nesse ponto, é levantada novamente a discussão sobre a existência ou não do vínculo empregatício e sobre a injustiça social, uma vez que o trabalhador uberizado está sujeito a jornadas extensas, sob condições exaustivas, frente a rendimentos pequenos, sob a constante fiscalização e controle da plataforma, entre outros fatores, construindo uma realidade que contrapõe-se diretamente ao conceito de não vinculação do trabalhador. O tratamento jurisprudencial da Justiça do Trabalho, no entanto, vem decidindo pelo não reconhecimento do vínculo empregatício, embora a discussão não seja pacificada dentro do cenário jurídico, há juízes que reforçam o não reconhecimento reiterando a alta porcentagem de retorno dada ao motorista, assim como a autonomia que este goza para cumprimento dos horários e prestação do serviço, ressaltando ainda que pode o trabalhador recusar chamados. As vitoriosas decisões que decidiram pelo reconhecimento do vínculo empregatício nos casos dos trabalhadores por aplicativo mostram grande avanço e verdadeira forma contra-hegemônica de se pensar dentro do contexto neoliberal. No entanto, a dúvida que se estabelece é como o Poder Judiciário continuará a decidir sobre a questão, uma vez que a legislação previdenciária (através dos decretos citados, que estabeleceram o trabalhador uberizado como contribuinte individual) deixou evidente que sua posição é pelo não reconhecimento do vínculo empregatício.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 273 2.2 O trabalhador uberizado como autônomo ou como microempresário individual

É consolidado, até o momento, que os trabalhadores uberizados se encaixam na categoria de contribuintes individuais. Os contribuintes individuais são descritos pela Lei Orgânica nº 8.212/1991, conhecida como Lei da Seguridade Social, dentro do que expõe o art. 12, inciso V e suas alíneas. Para tanto, são considerados contribuintes individuais os profissionais liberais, trabalhadores autônomos e empresários, ressaltando que contribuinte individual é pessoa física que trabalha por conta própria (profissional liberal e autônomo) que podem contribuir para a Previdência Social. Contudo, após os questionamentos levantados neste artigo depreende-se que os trabalhadores uberizados não podem ser classificados como profissionais liberais, uma vez que não possuem qualificação técnica específica como é exigido dos profissionais que integram tal categoria, tais quais médicos, advogados, engenheiros, entre outros. De tal forma, resta a esses trabalhadores a possibilidade de se adequarem a categoria de autônomos ou microempresários. No entanto, para ser autônomo, deverá o profissional realizar registro junto à prefeitura de sua comarca, o que implicará no pagamento do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), além de ter que contribuir com 20% sobre sua remuneração mensal. Tal cobrança impacta diretamente na renda adquirida pelos motoristas de uber e outros aplicativos de locomoção urbana, dado que a porcentagem de impostos se faz muito alta quando colocada diante do quanto ganham mensalmente, tornando a regulamentação desses trabalhadores mais difícil. Atentando para tal realidade, o poder público permitiu, que nesses casos, o contribuinte autônomo opte pelo plano simplificado do INSS que exige o pagamento de apenas 11% (PSPS), de acordo com a Lei Complementar nº 123/2006, alterada pela Lei Complementar nº 127/2007 (SANTOS, 2014) ou ainda contribuir com 5% se comprovada a baixa renda. Entretanto, ao adquirir uma destas duas alternativas menos onerosas – de contribuir com 11% ou 5% (de acordo com a que melhor respalda seus ganhos), visto o alto imposto cobrado para se adequar aos requisitos do regime previdenciário, o trabalhador perde, automaticamente, o seu direito de aposentadoria por tempo de contribuição, uma vez que não terá o tempo em que contribuir nessas modalidades registrado em sua certidão de tempo de contribuição (CTC). Ou seja, o trabalhador que não

274 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro possuir renda suficiente para contribuir em integralidade, deixará de obter o benefício previdenciário da aposentadoria por tempo de trabalho. Por outro lado, o que o Decreto nº 9.792/2019 propõe em seu art. 2º, parágrafo único, é a possibilidade de o trabalhador por aplicativo se tornar um microempreendedor individual, desde que atenda aos requisitos do art. 18-A, da Lei Complementar nº 123 de 2006 (BRASIL, 2019) que afirma: “Art. 18-A. O Microempreendedor Individual – MEI poderá optar pelo recolhimento dos impostos e contribuições abrangidos pelo Simples Nacional em valores fixos mensais, independentemente da receita bruta por ele auferida no mês, na forma prevista neste artigo”. Nesse sentido, é possível ver as supostas vantagens em se tornar MEI, pois é dada a facilidade de contribuir apenas com um valor mínimo e fixo, que girará em torno dos R$ 50,00 (cinquenta reais) mensais. Os microempreendedor individual foi uma modalidade lançada pela Lei Complementar nº 128 de 2008, na tentativa de formalizar o trabalho dos trabalhadores autônomos e empreendedores individuais, elaborando diversos requisitos para tal, que não nos compete enumerar. O que se deve ressaltar, no entanto, é o fato de que ao adquirir a condição de MEI, o trabalhador uberizado perde sua possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição, da mesma forma como acontece com o trabalhador autônomo que contribui de forma simplificada, uma vez que o plano previdenciário para os MEI é um plano, por si só, simplificado. Ainda, a possibilidade do motorista Uber se tornar MEI é um claro apelo ao incentivo neoliberal ao empresariado, privatizando até mesmo uma pessoa individual, para interesses de outros maiores – o que gera o fenômeno da “pejotização”. A pejotização é a transformação de uma pessoa física (mais especificamente, um trabalhador que deveria ser celetista – nos moldes pré Lei de Terceirização – Lei 13.429/2017) em uma pessoa jurídica, constituindo uma microempresa, para que esta pessoa possa ser contratada como empresa para prestar um serviço, ou seja, para que seja terceirizada (o que não seria permitido se fazer com pessoas físicas); prestando serviços para outras empresas maiores e detentoras do grande capital, sob regulação mínima e sem vínculo empregatício. Portanto, a pejotização atua “camuflando uma relação de emprego especialmente pela presença da subordinação e com a finalidade singular de afastar o dever de pagamento das verbas e dos encargos trabalhistas e previdenciários, conduta que, por certo, continua sendo considerada ilegal” (WEITZEL, 2018).

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 275 Apesar de imoral e até mesmo ilegal, a constituição de microempreendedores é muito comum no ordenamento brasileiro, como solução a uma situação de crise dos empregos – os trabalhadores marginalizados, em geral, optam por se submeter a trabalhos informais ou a transformações claramente antiéticas, tudo para conseguirem garantir seu sustento, conforme já discorrido, devido ao crescimento e dominação do modelo de trabalho, economia e sociedade uberizada, neoliberal e pós-moderna, conforme já descrito. Portanto, a própria constituição previdenciária do trabalhador como contribuinte individual já é um caminho de conquistas neoliberais e um desmonte do Estado do Bem-Estar Social e do Estado protetivo, da regulamentação e do amparo aos cidadãos, uma vez que tanto optando por ser autônomo, como optando por ser MEI, o motorista por aplicativo não é visto como um empregado, e o vínculo entre as plataformas e os trabalhadores já é descartado pela seguridade social brasileira e pelo direito previdenciário. Porém, as opções que são oferecidas aos trabalhadores apresentam suas complicações. A longo prazo, a opção mais vantajosa seria a opção de ser trabalhador autônomo, contribuindo com o teto de 20% sobre os ganhos mensais, de forma que, futuramente, o trabalhador poderá se aposentar por tempo de contribuição e terá pensão maior. No entanto, diante de uma situação de crise financeira, onde a concorrência pelo trabalho é potencializada, ou que existe uma impossibilidade material de abrir mão de parcela tão elevada de seus gastos sem comprometer a sobrevivência própria e da família do trabalhador, o ganho imediatista se mostra muito mais atraente, sendo priorizado perante a garantia de direitos e futuros benefícios. Esse contexto leva o cidadão brasileiro a optar pelos planos simplificados de previdência. O problema se torna, então, alarmante, uma vez que abrir mão de sua aposentadoria por tempo de contribuição, ao optar pelos planos simplificados, faz com que os trabalhadores, em caso de não serem acometidos por doenças ou vítimas de acidentes, ficam inteiramente dependentes da aposentadoria por idade. A aposentadoria por idade, por sua vez, é um tópico que sofreu recente alteração pelo Projeto de Emenda Constitucional n° 06 de 2019, em vias de aprovação, que fala que as idades mínimas de aposentadoria por idade para homens será de 65 anos e para mulheres será de 62 anos. No entanto, os índices de expectativa de vida tendem a fazer o caminho contrário – a idade mínima para se aposentar aumenta e a idade máxima (geral) que se viver, diminui, conforme a economia compartilhada se espalha e a exploração desenfreada do trabalho das massas pobres domina, perante um país de pobreza

276 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro sistêmica (o que gera diversos outros problemas tais quais a violência e o encarceramento em massa). Por fim, apresenta-se o Decreto nº 9.729/2019, em conjunto com as leis anteriores que foram citadas e com a iminente reforma da previdência, evidenciando a forma com a qual o sistema capitalista mostra suas facetas planejadamente individualistas e exploratórias. Notadamente, expõem os seus objetivos de acumulação de capital nas mãos dos membros das mesmas classes privilegiadas, assim como a fundamental e pungente subjugação dos trabalhadores, que dia após dia perdem sua consciência de classe. Tal dominação agora é “camuflada” pelos ideais pós-modernos de mercado, ao passo que a base laboral do mundo moderno passa a ser constituída de trabalhadores informais. Assim: Nunca ficou tão evidente que a própria forma de organização da sociedade capitalista impele à conversão generalizada da esmagadora maioria da população em massa trabalhadora fragmentária, desprovida ao máximo de direitos e de defesas frente ao grande capital e com jornadas de trabalho necessário crescentes, além do aumento do tempo de trabalho direto e indireto, pelo recuo das aposentadorias. Nunca ficou tão claro o papel do Estado como agenciador ex ante, apoiado em entidades empresariais, elas também “sem fins lucrativos”. Agora, trata-se de disciplinar a necessidade direta, reduzindo- se a intermediação tradicional do despotismo fabril. O Estado deve converter-se em controlador ex post (pelo convencimento e pela violência) dessas massas de trabalhadores, assegurando sua docilidade e disponibilidade para formas de sujeição ao capital desprovidas de direitos. Tanto a rapinagem empresarial, como a escala da concentração e centralização, assim como o papel cumprido pelo Estado, estão evidentes. A questão dramática é por que, nessa enorme explicitação das relações sociais, ocorre paralelamente um aparente recuo da consciência de classe e das lutas dos trabalhadores para a superação do capital? (FONTES, 2017, p. 63). Diante de tal contexto, o Direito, por sua vez, revela-se como mera ferramenta, atuando no mesmo sentido das grandes forças capitais, reforçando o status quo já imposto pelo sistema capitalista e tendo as forças jurídicas, legislativas e o Executivo, já enviesados e sem qualquer intenção de proteção ou de promoção de justiça e igualdades.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 277 CONCLUSÃO

A busca durante o desenvolvimento do presente artigo se configurou em expor todos os nossos posicionamentos político-ideológicos, de entendimento de mundo, sociedade, trabalho e principalmente, do Direito como objeto que busca, deveras, uma mudança social, frente ao tema discutido. No entanto, diante à densa análise feita, notamos a necessidade constante da participação popular, na construção desta nova lógica laboral que é verificada no mundo contemporâneo, a fim de que a sociedade não se torne mais um mero instrumento de opressão, como nota-se atualmente. Buscamos também, através do desenho de um panorama crítico, demonstrar ao leitor como medidas imediatistas e leis esparsas tendem a prejudicar a promoção dos direitos básicos aos cidadãos que atendem a essa nova lógica do mercado, além de obscurecer a responsabilidade das grandes corporações para com os direitos trabalhistas. Intentou-se provocar o desconforto, frente a decadente estrutura das relações laborais e do sistema em que vivemos. De tal forma, referendamos as constatações citadas sempre à luz de diversos pensadores, pontuando o objetivo final do sistema neoliberal como algo a ser repensado, além da reiterada concentração de renda de uma pequena parcela da população em detrimento das liberdades e direitos adquiridos pela parcela majoritária ser um fator extremamente prejudicial à construção de uma nova lógica das relações de trabalho. Conclui-se que, de acordo com a posição diminuta que o Estado obtém dentro do modelo econômico e social da uberização e do modelo político neoliberal, é evidente que a população passa a perder direitos, a não ser mais tutelada e fiscalizada em seu trabalho e infraestrutura, de forma que as políticas públicas que buscavam promover a justiça social, ainda que incipientes, agora se tornam inexistentes impedindo, portanto, a luta social. Assim, acreditamos na luta social pelos direitos trabalhistas, pela promulgação de políticas públicas, como forma de pressão social aos três poderes, principalmente no que diz respeito ao Direito. Por fim, ressaltamos que existem alguns possíveis caminhos de mudança, como por exemplo, a provocação massiva do Judiciário como aparelho capaz de contornar os retrocessos legislativos consolidados, ponderando que a via judiciária, por ser, obviamente, um caminho sobrecarregado e, por natureza, insuficiente, mas fundamental para avançarmos aos próximos níveis de tensão.

278 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Em conjunto, vemos nos movimentos sociais populares, sindicais, partidários ou não, um exemplo de força e engajamento para insurgir, ao passo que as vontades do povo se consolidarão como soberanas, cumprindo seu papel essencial ao funcionamento da lógica social atual. Portanto, devemos ter nossas ideologias em mente, e paciência – o futuro é inexorável.

REFERÊNCIAS

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Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 281

GRADES QUE ROUBAM DIREITOS: A TRAJETÓRIA DE MULHERES EGRESSAS DO SISTEMA PRISIONAL NO ACESSO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS

1Cirlene Aparecida Hilário da Silva Oliveira* Amanda Daniele Silva** RESUMO: As reflexões aqui apresentadas compõem parte de um estudo maior cuja finalidade foi analisar o trabalho dos assistentes sociais com mulheres egressas do sistema prisional através da atuação nas Centrais de Atenção ao Egresso e à Família – CAEF’s. Mediante pesquisa bibliográfica e de campo traçamos um panorama das inúmeras situações de vulnerabilidade social a que estão sujeitas tais mulheres, e que estão diretamente relacionadas ao não acesso a políticas públicas, principalmente as que compõem o tripé da seguridade social – Saúde, Assistência Social e Previdência Social. Analisando as particularidades de gênero, identificamos que a ausência ou insuficiência de tais políticas, somadas ao desemprego no contexto pós-prisão, atinge a mulher de forma mais intensa que o homem, pois a ela está vinculada a responsabilização com a casa e os filhos. Utilizaremos alguns dados levantados na pesquisa para fundamentar o aporte teórico e dar maior clareza ao debate. Palavras – Chaves: egressas. sistema prisional. políticas públicas. ABSTRACT: The reflections presented here are part of a larger study whose purpose was to analyze the work of social workers with women graduates of the Prison System through their work in the Centers for Attention to the Egress and Family – CAEF’s. Through bibliographic and field research we draw an overview of the countless situations of social vulnerability to which these women are subjected, which are directly related to the lack of access to public policies, especially those that make up the tripod of social security – Health, Social Welfare and Social Security. Analyzing the gender particularities, we identified that the absence or insufficiency of such policies, added to the unemployment in the post-prison context, affects women more intensely than men, because to her is linked to responsibility with the house and children. We will use some data raised in the research to substantiate the theoretical contribution and clarify the debate. Keywords: egress. prison system. public policy.

INTRODUÇÃO

Quando um homem é preso, comumente sua família continua em casa, aguardando seu regresso. Quando uma mulher é presa, a história corriqueira é: ela perde o marido e a casa, os filhos são distribuídos entre familiares e abrigos. Enquanto o homem volta para um mundo que já o espera, ela sai e tem que reconstruir seu mundo. (QUEIROZ, 2015, p. 44). As palavras de Queiroz (2015) expressam, de forma explícita e realista, as dificuldades adicionais impostas às mulheres encarceradas * Assistente Social, Doutora e Docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UNESP – Universidade Estadual Paulista – FCHS/Franca. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0751155377760945. ** Assistente Social da Prefeitura Municipal de Franca, Doutora em Serviço Social pela Unesp – Campus de Franca. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8801375307320746..

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 283 quando alcançam a tão almejada liberdade. Ser mulher já é desafiador numa sociedade como a brasileira, que ainda não conseguiu garantir efetivamente a igualdade de direitos e deveres entre os gêneros. Ao homem ainda são atribuídas maiores qualificações e competências que às mulheres que ocupam a mesma posição que eles. A vivência da mulher é, até os dias de hoje, muito direcionada ao espaço privado, à administração e responsabilização pelos assuntos afeitos ao lar e à educação dos filhos, sendo que, quando opta ou necessita abdicar dessa dedicação exclusiva às questões familiares para dividir sua atuação com o mercado de trabalho, é duramente censurada, principalmente quando não consegue estabelecer uma conciliação entre os papéis de trabalhadora, mãe e dona de casa. Esta associação direta da mulher ao espaço doméstico acaba por desvalorizar sua atuação no mercado de trabalho, colocando-a em posição de subordinação em relação ao homem. A identidade da mulher como trabalhadora, portanto, vai estar sempre associada a seu papel de reprodutora. Essa imagem básica, originária da mulher família, mãe, dona- de-casa vai estar sempre a frente. O trabalho, por exemplo, é tratado no masculino e o trabalho produtivo é feito pelos trabalhadores. É ao homem que se associa a imagem de trabalhador, de provedor da família. Essa imagem da mulher vai trazer limitações a uma adequada colocação no mundo do trabalho. (CARLOTO, 2002). Assim, se da mulher trabalhadora são cobradas inúmeras respostas quanto às demandas da família e da casa, o que dizer das exigências postas às mulheres que, por inúmeros motivos1 (muitos deles relacionados à manutenção da família), envolvem-se na prática de atos ilícitos, cumprem pena privativa de liberdade e retornam ao comando de suas famílias? A mulher que já foi presa sofre muito com o preconceito e rejeição, tanto da sociedade de forma geral, como da família, de amigos, conhecidos e autoridades que comumente julgam que seus atos criminais a afastaram do papel que deveria exercer como mãe e dona de casa. Até mesmo 1 Em nossas pesquisas anteriores (SILVA, 2011; SILVA, 2014) identificamos que as maiores motivações que levam a mulher à prática de atos infracionais estão relacionadas à família. Sendo, em sua grande maioria, chefes de famílias monoparentais femininas, estas mulheres adentram à criminalidade (principalmente ao tráfico de drogas) como forma de conciliar as necessidades de manutenção da casa e dos filhos, o desemprego e ausência de políticas públicas. Sendo uma prática que pode ser executada dentro de casa, estas mulheres não precisam se afastar do ambiente familiar para exercê-la. Há também os casos em que as mulheres adentram à criminalidade porque são obrigadas (pela necessidade concreta de sobrevivência ou em respeito à regras estabelecidas no mundo do crime) a darem continuidade aos “negócios” do companheiro quando este é detido.

284 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro no crime há a hierarquização, na qual as mulheres ocupam espaços de menor visibilidade e poder, bem como a recriminação delas, por parte dos homens criminosos, por terem deixado as práticas criminais interferirem no cuidado dos filhos. [...] Para a mulher, ser marginal nunca será uma arte, será sempre uma desonra. O próprio malandro vai recriminá- la por estar presa, largando os filhos a sua própria sorte. Ele, o homem, pode. Seja malandro, operário, estudante, o homem sempre pode afastar-se dos filhos se assim o exigir sua ocupação. A mulher nunca. Essa exigência que conflitua todas as mulheres, atinge mais ainda aquelas que não podem orgulhar-se de seu meio de vida, mesmo que o façam para sustento dos filhos. (LEMGRUBER, 1983, p. 86) Assim, esta hostilização que vem de todas as partes faz com que o recomeço da vida da egressa seja, conforme apontou Queiroz (2015) na epígrafe, a (re)construção de seu mundo. Na grande maioria dos casos, a realidade cotidiana não está como as mulheres deixaram ao ser presas; pelo contrário, a saída da prisão requer que elas iniciem a montagem de um “quebra-cabeça”, do qual muitas peças já não se encaixam mais ou sequer existem. Em muitas situações não existem mais casas para onde voltar, os filhos estão espalhados entre amigos e conhecidos, o companheiro está recluso ou já se encontra em outro relacionamento. A saída da prisão é um começar do zero, cujo ponto de partida é a porta da penitenciária e a chegada não tem destino definido. Mediante esta realidade a ser enfrentada pelas egressas, nos é importante analisar quem são estas mulheres que deixam o cárcere, quais são suas demandas, suas dificuldades e os subsídios que a prisão lhes ofereceu para defrontar com os desafios da nova realidade.

3 A VULNERABILIDADE SOCIAL DA EGRESSA DO SISTEMA PRISIONAL

A invisibilidade da mulher encarcerada já foi algo explicitado por nós e outros autores (SILVA, 2011; SILVA, 2014; ESPINOZA, 2004; ANGOTTI, 2012; QUEIROZ, 2015; SOARES; ILGENFRITZ, 2002; HOWARD, 2006); tais obras tiveram enquanto objetivo principal a explanação do modo em que vivem estas mulheres, as violações de direitos que sofrem e o abandono a que estão sujeitas neste sistema inacessível e eminentemente masculino como é o

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 285 prisional. Conforme já apontamos anteriormente, apesar de o número de mulheres encarceradas ter crescido significativamente nos últimos anos, elas ainda continuam sendo a minoria no Sistema Penitenciário; e esta pouca representatividade faz com que tais mulheres, bem como suas demandas, tornem-se imperceptíveis aos “olhos” do Estado, da população livre e dos pesquisadores. Tal realidade repercute mais drasticamente quando estão na condição de egressas, pois, se pouco se sabe de mulheres que estão presas sob a tutela do Estado, quem se interessará em reunir informações de mulheres egressas do sistema prisional? Quem são estas mulheres? Como e onde estão (sobre) vivendo? Quais as políticas públicas específicas para este segmento populacional estão disponíveis? No intuito de buscar respostas a estas perguntas, realizamos um estudo bibliográfico e de campo junto aos assistentes sociais das Centrais de Atenção ao Egresso e à Família2, cujo principal objetivo foi identificar como a atuação destes profissionais viabiliza a efetivação de Direitos Humanos às mulheres egressas do sistema prisional. Constatamos que se trata de uma parcela populacional constantemente negligenciada em suas demandas e com acesso negado a políticas públicas, o que as tornam invisibilizadas perante o poder público e ainda mais dependentes de políticas como a Assistência Social. O Ministério da Justiça e Segurança Pública realiza anualmente3 o levantamento de informações sobre o Sistema Penitenciário – INFOPEN, o qual reúne dados sobre o perfil da população carcerária, estabelecimentos prisionais e a gestão dos serviços ofertados. Nos anos de 2014 e 2016 foram feitos levantamentos específicos sobre a mulher presa – INFOPEN Mulheres. Entretanto, estes relatórios, e nenhum outro do Ministério da Justiça, não trazem informações sobre as pessoas que deixaram o cárcere, tornando-se esta população anônima aos “olhos” da sociedade. Apesar de a Lei de Execuções Penais estender o atendimento ao egresso e estabelecer de que forma se dará tal assistência, não há 2 Trata-se de equipamentos públicos cuja finalidade é prestar atendimento direto ao egresso, por meio de sua contextualização nos âmbitos familiar e comunitário, visando sua autonomia e postura cidadã, de modo que lhe seja possível retomar o convívio social com dignidade. As CAEF’s são unidades estatais espalhadas por todo estado de São Paulo, segundo já informamos, cuja localização para implantação é determinada por pesquisas realizadas nas Varas de Execuções Criminais que indicam a demanda existente, ou seja, a média mensal de presos liberados condicionalmente e, também, daqueles que cumpriram integralmente suas penas e passarão à condição de egressos, tornando-se público alvo das Centrais. 3 Atualmente estes dados mostram-se um pouco defasados, pois o último levantamento realizado foi em 2016.

286 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro dados oficiais de quem e quantos sejam estes egressos, onde elesse encontram e como vivem. Wolff (2016) ao traçar postulados, princípios e diretrizes para uma política de atendimento às pessoas egressas do sistema prisional conclui que não existe um perfil exato da população egressa, mas apenas estudos pontuais e focalizados que, mediante a escuta de operadores do Direito, profissionais do sistema penitenciário, estudiosos e as próprias pessoas que deixaram a prisão, permitem apontar indicadores da condição vivenciada pelos egressos, sendo eles: mobilidade; documentação; fragilidade dos vínculos familiares e comunitários; trabalho; moradia; antecedentes criminais e preconceito; defasagem informacional; acesso à justiça; e vinculação ao mundo do crime. Egressas retratam, em muitos aspectos, as condições vulneráveis das próprias mulheres encarceradas, isto é, a saída recente da prisão, bem como a estadia no cárcere, não lhes proporcionaram mudanças significativas no que diz respeito à escolaridade, ocupação profissional e condições financeiras. Pelo contrário, o cumprimento de pena privativa de liberdade afasta ainda mais homens e mulheres da condição de cidadãos e do usufruto de direitos sociais básicos. Percebe-se que a violação de direitos estende-se para além das grades, acompanhando estas mulheres em seu processo de conquista da liberdade. A insegurança de encarar o mundo após longo período de aprisionamento é somada à incerteza de ser bem recebido pelos familiares, isto quando eles existem. Há muitos casos de homens e mulheres que saem da prisão e não têm para onde ir. Não há amigos, parentes ou conhecidos para acolhê-los. Inúmeros são os casos em que os egressos não têm sequer condições de pagar por uma condução que os leve para longe dos entornos da prisão. Em casa, a vida familiar com conflitos e contradições permanecem. De ambas as partes há despreparo: por um lado, o egresso que é avisado em questão de horas sobre sua libertação e sem preparo para encarar o “mundão”, pois a instituição prisional determina outro ritmo, outra forma de viver; por outro lado, os familiares que ansiosos pela saída não se preparam para receber um sujeito deteriorado pela prisão, pelo sofrimento estéril. (BARROS, 2011, p. 69). O contexto de vulnerabilidade para o qual as egressas retornam é intensificado pelo histórico pessoal de cada uma, que é marcado por violações e fragilidades advindas da vida anterior e posterior ao cárcere.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 287 As mulheres egressas atendidas pelas CAEF’s4 são, em sua maioria, jovens – 73% estão entre 26 e 35 anos –, as quais apresentam baixa escolaridade, uma vez que 59% declararam ter apenas o ensino fundamental incompleto, atestando o não acesso ao direito à educação básica no período escolar ou sua continuidade durante a reclusão. Gráfico 1. Faixa etária predominante das egressas.

Fonte: Elaborado por Amanda Daniele Silva. Gráfico 2. Escolaridade predominante das egressas.

Fonte: Elaborado por Amanda Daniele Silva. Esta defasagem escolar implica diretamente na colocação no mercado de trabalho, a qual não acontece ou se dá de forma precária, mal remunerada e desvinculada dos direitos trabalhistas, pois o trabalho penitenciário não prevê registro em carteira em nem contribuição ao 4 Apresentaremos no decorrer deste artigo dados obtidos em nossa pesquisa por meio da aplicação de questionário a 34 unidades de CAEF’s e entrevista semiestruturada com 8 assistentes sociais trabalhadores destas unidades.

288 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Regime de Previdência Social, ficando os encarcerados totalmente desprotegidos. Este cenário é resultado também da indisponibilidade do trabalho dentro da prisão ou da oferta de atividades que em nada qualificam as mulheres para a vida em liberdade, o que vai totalmente contra a determinação da Lei de Execução Penal – Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (LEP) em seu art. 32, o qual prevê que: “Na atribuição do trabalho deverão ser levadas em conta a habilitação, a condição pessoal e as necessidades futuras do preso, bem como as oportunidades oferecidas pelo mercado”. Lemgruber (1983) e Espinoza (2004) relatam a diferenciação na oferta de trabalho a homens e mulheres presos, sendo que a eles são disponibilizadas atividades que lhes capacitam profissionalmente e lhes dão oportunidade de continuar o ofício na vida em liberdade, mesmo que de forma autônoma. Já a elas, são propiciadas ocupações que não as qualificam e não lhes possibilitam ascensão social, pois são tarefas tradicionalmente reservadas às mulheres e associadas ao cuidado do lar, contribuindo, assim, para a continuidade do processo de exclusão social que já as acompanhava antes do cárcere. [...] é possível encontrar algumas diferenças que reforçam as desigualdades entre homens e mulheres. Apesar de ambos desenvolverem atividades precárias em função de sua condição de pobreza, a situação das últimas é mais grave porque sua exclusão precede o ingresso na prisão, permanece durante sua estada e se pereniza depois da obtenção da liberdade. Isso significa que o estigma de serem “mulheres e pobres” as acompanha permanentemente no exercício das atividades laborativas. De catadoras de lixo, empregadas domésticas, vendedoras ambulantes, atendentes, engraxates de sapato, costureiras, passarão a trabalhar na prisão como passadeiras, arrumadeiras, costureiras, entre outras ocupações de mínima relevância no mercado de trabalho. (ESPINOZA, 2004, p. 135). A quase totalidade das CAEF’s participantes – 88% – relatou que as egressas atendidas ainda se encontram desempregadas e uma pequena parcela – 12% – está desenvolvendo atividades no mercado informal, sendo nula a porcentagem de mulheres empregadas formalmente.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 289 Gráfico 3. Situação das egressas com relação ao mercado de trabalho.

Fonte: Elaborado por Amanda Daniele Silva Assim, verificamos que não tendo acesso ao trabalho, tais mulheres ficam sujeitas à ajuda de terceiros ou ao recebimento de programas da Política de Assistência Social (como é o caso do programa Bolsa Família), sendo tais alternativas paliativas e emergenciais, não atendendo a integralidade das demandas que as mulheres egressas e suas famílias apresentam. Com isto, imprescindível se faz o estabelecimento de políticas e projetos que possam atendê-las na especificidade de suas vulnerabilidades trazidas pelo cárcere, dando-lhes oportunidades concretas de se inserirem na condição de cidadãs detentoras de direitos.

3.1 Políticas públicas para egressas e egressos do sistema prisional

A implantação de políticas públicas para segmentos vulnerabilizados específicos não é uma tarefa fácil e natural; isto é, tais políticas não passam a existir a partir do momento em que estas populações são identificadas. Num Estado como o nosso, no qual o modelo Social Democrático de Direito vigora, as normatizações não têm o intuito apenas programático, mas devem promover também a transformação social por meio do estabelecimento de direitos, deveres e garantias fundamentais. No entanto, a positivação de leis por si só não garante a efetivação de mudanças sociais necessárias. Para isto, é preciso que o Estado disponha de ferramentas que operacionalizem e implementem os direitos previstos na Constituição Federal e demais legislações infraconstitucionais; neste cenário surgem as políticas públicas, as quais não se resumem numa ação

290 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro isolada e sim no conjunto de ações cuja operacionalização ultrapassa os atores estatais e atinge a colaboração da sociedade civil. Uma política pública possui dois elementos fundamentais: intencionalidade pública e resposta a um problema público; em outras palavras, a razão para o estabelecimento de uma política pública é o tratamento ou a resolução de um problema entendido como coletivamente relevante (SECCHI, 2013, p. 2). Contudo, o estabelecimento de políticas públicas para encarcerados e egressos e do Sistema Prisional enfrenta ainda mais dificultadores, pois, conforme já refletimos no decorrer deste estudo, a forma como esta população vive, suas necessidades e violações sofridas não são de interesse público, ou seja, não provocam alta comoção social ao ponto de que tenha expressiva quantidade de defensores de suas causas; pelo contrário, há mais pessoas que concordem com as condições degradantes das prisões, do que lutem pela efetivação de direitos desta parcela populacional. No que se refere especificamente aos egressos do sistema prisional, as políticas que lhes fazem alusão estão inseridas no rol das políticas penais ou criminais, ou melhor, das políticas que focalizam ações de prevenção e repressão da criminalidade. Com isto, as ações propostas no decorrer dos tempos não tiveram enquanto eixo principal o atendimento especificamente das demandas dos egressos, mas sim a proposição de ações que repercutissem nos interesses de bem estar da sociedade como um todo. A urgência da constituição de um atendimento aos egressos manifesta-se, sincronicamente, aos primeiros debates sobre a questão penitenciária, os quais foram dirigidos pelos Congressos Penitenciários Internacionais a partir do final do século XIX. O primeiro congresso foi realizado em Londres em 1872 e, de acordo com Ferreira-Deusado (apud WOLFF, 2016, p. 14), o atendimento ao egresso foi colocado como uma necessidade a ser assumida pelo Estado, o qual deveria conceder subvenção regular às sociedades que se dispusessem a trabalhar com este segmento, conferindo-lhes um caráter oficial. Todas as ações propostas visavam assegurar um sistema de vigilância oficial que garantisse o atendimento “tanto dos interesses do condenado, como da sociedade”. O II Congresso, realizado em Estocolmo em 1878, deu continuidade a tais prerrogativas, defendendo que “[...] a proteção a dar aos ex-reclusos adultos é complemento indispensável de uma boa disciplina penitenciária reformadora” (WOLFF, 2016, p. 14), ou seja, o

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 291 atendimento ao egresso era concebido como a continuidade do tratamento repressor e vigilante, ao qual estava submetido na prisão, com o intuito de possibilitar seu harmônico retorno à sociedade. A política penitenciária reforçava, assim, seus dois focos principais: a reforma do apenado e o caráter preventivo da pena, com ênfase na proteção da sociedade. Foi o que se evidenciou no IV Congresso Internacional de São Petersburgo, no qual seus anais registraram a necessidade de interlocução dos serviços de polícia e segurança pública visando: [...] garantir aos condenados restituídos à liberdade toda e qualquer recaída no crime, e a proteger a própria sociedade contra novos prejuízos e perturbações resultantes do mau procedimento d’esses indivíduos, sem que, todavia, careça ser revelada a verdadeira situação d’elles e sem os inquietar ou perturbar sua vida livre. (FERREIRA-DEUSADO, apud WOLFF, 2016, p. 15). A realização destes Congressos Internacionais contribuiu para a articulação dos países participantes, os quais constituíram a Comissão Internacional Penal e Penitenciária, por meio da organização da Liga das Nações5, que teve como uma das conquistas a apresentação do Conjunto de regras sobre o modo de tratar os presos em 1930. Este documento configurou-se como precursor das Regras Mínimas para Tratamento de Presos (Regras de Mandela), promulgadas em 1955 pela ONU (e revisadas em 2015), as quais incorporaram doutrinas de direitos humanos enquanto parâmetro na reestruturação do sistema penal. Apesar de terem enquanto objeto principal os reclusos, estes dois documentos mencionaram a necessidade de atenção à população egressa, sendo observado um avanço na concepção do atendimento, o qual deixa de ter foco na prevenção do crime em benefício à proteção da sociedade, para se preocupar com as reais condições de vida do egresso e as dificuldades a serem enfrentadas na trajetória pós-prisão, propondo um suporte que ultrapasse a oferta de bens materiais e atinja ações que visem à diminuição do preconceito social contra esta população. O primeiro conjunto de regras mencionava, no item 54, que era necessária uma preocupação com a assistência posterior ao livramento, e que ela deveria começar ainda durante o período da prisão e ser organizada na base em um estudo exato das condições de vida do preso e de seus parentes.

5 Fundada ao final da Primeira Guerra Mundial, esta organização internacional foi antecessora da Organização das Nações Unidas – ONU.

292 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Deve ter em vista proporcionar ao liberado a possibilidade de levar uma vida leal e regular. (WOLFF, 2016, p. 16). Regra 90 A tarefa da sociedade não termina com a liberação de um preso. Deve haver, portanto, agências governamentais ou privadas capazes de prestar acompanhamento póssoltura de forma eficiente, direcionado à diminuição do preconceito contra ele e visando à sua reinserção social. (ONU, 2015). No que se refere especificamente às mulheres encarceradas, em 2010, a ONU elaborou uma série de normas internacionais para nortear o tratamento de mulheres encarceradas em todo o mundo, conhecida como “Regras de Bangkok”. Tais normatizações apresentaram-se como um significativo avanço nas discussões a respeito do encarceramento feminino, visando a garantir condições dignas de aprisionamento para as mulheres, bem como condições favoráveis à sua transição da prisão para a liberdade, de modo a concretizar sua reintegração social em consonância com suas demandas e de sua família (principalmente de seus filhos). A regra 47 deixa explícito o papel de toda sociedade neste processo de acolhimento e suporte às mulheres que deixaram a prisão: Regra 47 Após sua saída da prisão, deverá ser oferecido às mulheres egressas apoio psicológico, médico, jurídico e ajuda prática para assegurar sua reintegração social exitosa, em cooperação com serviços da comunidade. (ONU, 2010). Apesar de o Brasil ser signatário de tais tratados e ter tido participação efetiva nas discussões propostas nos congressos internacionais a partir de 1930, uma análise histórica das legislações nacionais referentes à execução penal e, principalmente, da aplicação delas na realidade vivenciada, nos permite afirmar que, até o momento, os princípios e recomendações advindos das convenções da ONU não foram incorporados em políticas públicas consistentes em nosso país, o que indica a necessidade de estímulo à internalização eficaz de normas de direito internacional e, acima de tudo, de direitos humanos no Brasil. Observamos que as primeiras legislações brasileiras que tinham enquanto foco o egresso do sistema prisional não obtiveram êxito em suas execuções ou sequer foram colocadas em prática. Este foi o caso da proposta, pelo Ministério da Justiça, de criação de um patronato de egressos penitenciários, em 1910, o qual nunca entrou em exercício. Tentou-se um

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 293 avanço no atendimento aos egressos por meio da promulgação do Decreto nº 16.665 de 1924, o qual, por meio do Código Penal ainda vigente (de 1890), regulou o livramento condicional e a criação dos Conselhos Penitenciários. Por meio deste decreto, reconheciam-se os patronatos públicos e privados como colaboradores dos Conselhos na acolhida, assistência e controle dos liberados. Art. 16. O liberado ficará sujeito à vigilância do diretor do estabelecimento penal, de onde sair, auxiliado pelo Patronato Jurídico dos Condenados e pelo Patronato das Presas no Distrito Federal, e pelos patronatos análogos nos outros pontos do território nacional. Art. 17. Essa vigilância terá os seguintes efeitos: 1º Proibir ao liberado a residência, estadia ou passagem em certos locais não permitidos pela sentença; 2º Ordenar visitas e buscas nas casas dos liberados, sem limitação alguma em relação ao tempo em que puderem ser feitas, e sem dependência de prova ou de expedição de mandado especial; 3º Deter o liberado que transgredir as condições constantes da sentença, até ulterior deliberação do Conselho Penitenciário, a quem dará logo conhecimento do facto. (BRASIL, 1924). Aqui, importante se faz apontarmos a análise feita por Wolff (2016, p. 17) sobre a origem da denominação “patronato”, utilizada pelas legislações brasileiras no que se refere à execução penal: 1 – Antig. Qualidade ou direito do patrão em relação ao cliente, em Roma. 2 – Autoridade ou qualidade de patrão. 3 – Padroado, patrocínio. 4 – Estabelecimento onde se abrigam e educam menores (apud MICHAELIS). Esses significados revelam a ideia de uma autoridade (patrão) que cuida, concede algo ou abriga alguém hipossuficiente. Tendo como finalidade a prestação de assistência e orientação aos egressos, bem como a fiscalização do cumprimento do livramento condicional, os patronatos deveriam ser utilizados como os principais órgãos de mediação entre as pessoas que deixaram a prisão e os serviços, programas e projetos disponíveis na sociedade. Entretanto, as atribuições estipuladas no Decreto nº 16.665 expressam que a preocupação com a assistência ao liberado tem posição secundária frente à necessidade de manter a severa vigilância sobre sua vida. O possível avanço na modernização da pena, empregado pela criação do livramento condicional, diluiu-se mediante os

294 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro mecanismos utilizados para a efetivação do atendimento ao liberado, o qual foi majoritariamente caracterizado pelo controle e repressão sobre os que deixam a prisão. Neste contexto, evidenciou-se a seletividade e direcionamento da ação policial e penal, cujos principais alvos eram os indivíduos pertencentes às camadas pobres, os negros e os desempregados, uma vez que esta repressão às expressões da questão social era justificada como forma de garantir a emergência do capitalismo industrial no país. O Código Penal de 1940 continuou seguindo a mesma linha ideológica repressiva, no que diz respeito aos liberados condicionais. Em seu artigo 63 foi estabelecido que “O liberado, onde não exista patronato oficial subordinado ao Conselho Penitenciário, fica sob a vigilância da autoridade policial.” (BRASIL, 1940). Rocha (apud Wolff, 2016, p. 18) manifesta a incongruência ainda existente neste Código Penal ao permitir a atuação policial frente à inexistência de patronatos, uma vez que se trata de instituições com objetivos totalmente opostos: [...] sendo o projeto de nosso Código Penal calcado no Código suíço, dele transcrevendo trechos na íntegra, distanciou-se fundamentalmente do que possui ele de mais salutar no que tange à vigilância dos liberados condicionais. O Código Penal suíço proíbe expressamente a participação da autoridade policial na vigilância dos liberados condicionais [...] A finalidade da polícia é repressiva, enquanto a patronagem é um generoso trabalho de recuperação. Somente com a promulgação da LEP é que o atendimento ao egresso deixou de ser visto como uma progressão do controle e vigilância exercidos aos apenados, para ser compreendido como um direito da pessoa que é posta em liberdade e uma possibilidade de prevenção à reincidência criminal. Assim, a LEP deixa nítido que o atendimento ao egresso deve visar à sua reintegração à sociedade, principalmente por meio da oferta de alimentação e alojamento, de modo que ele possa dar início à retomada de sua vida. Os artigos 78 e 79 deram visibilidade e estabeleceram as atribuições dos patronatos na função fundamental de atendimento aos egressos: Art. 78. O Patronato público ou particular destina-se a prestar assistência aos albergados e aos egressos (artigo 26). Art. 79. Incumbe também ao Patronato: I – orientar os condenados à pena restritiva de direitos; II – fiscalizar o cumprimento das penas de prestação de serviço à comunidade e de limitação de fim de semana;

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 295 III – colaborar na fiscalização do cumprimento das condições da suspensão e do livramento condicional. (BRASIL, 1984). Assim, estes estabelecimentos, sendo públicos ou privados, devem estar aptos a atender os egressos, acolher suas demandas e singularidades e fazer a intermediação entre eles e a sociedade liberta, principalmente no que diz respeito à inclusão no mercado de trabalho e retorno à convivência familiar e comunitária. Em pesquisa iniciada pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2017, em parceria e com a consultoria do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), foi identificado que em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Espírito Santo, Paraná e Paraíba há experiências, das mais diversas, no atendimento aos egressos do sistema prisional, sendo por patronatos, organizações da sociedade civil ou algum outro órgão público equivalente, como é o caso das CAEF’s em São Paulo. (BRASIL. Ministério da Justiça, 2017). O patronato atua também na fiscalização da execução penal nos casos de penas restritivas de direitos e cumprimento de livramento condicional e prestação de serviços à comunidade, o que permite evitar desvirtuamento da sentença condenatória, isto é, possibilita acompanhar que aos reclusos sejam restritos apenas os direitos explícitos na condenação, bem como concede-os o acesso às informações sobre suas situações judiciais. Os patronatos, assim como as CAEF’s, atuam no resgate da cidadania dos egressos, visando sua reintegração social de forma respeitosa e permeada pela garantia de direitos. Em um Estado onde existem tantos fatores de marginalização social, como a desigualdade patrimonial entre indivíduos, o Patronato evita que o “status” de egresso seja mais um fator à marginalização, quando busca na prática o resgate a dignidade desse e o faz internalizar que é um cidadão, e que em momento o deixou de ser, devendo assim exercer seus direitos. (LEITE; SOUZA; CARVALHO et al., 2014). Entretanto, a atuação isolada destes órgãos em cada estado da federação ou municípios não garante a efetivação de uma política pública específica para egressos do sistema prisional. É necessário que sejam estabelecidas ações em âmbito federal para a sensibilização da sociedade em prol deste segmento populacional cujas marcas da prisão são traços mais significativos que a própria humanidade presente em cada indivíduo. É imprescindível que as políticas, ações e programas para as pessoas

296 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro egressas do sistema prisional visem mais que a oferta de bens materiais, transformando-se em instrumentos de eliminação ou, pelo menos, diminuição, dos óbices que impedem os homens e mulheres egressos do sistema prisional a viverem dignamente e livres da criminalização e julgamento dos demais setores da sociedade. [...] a política de atendimento às pessoas egressas do sistema prisional deve se constituir de modo a apresentar alternativas para que os sujeitos encarcerados possam, apesar da prisão, encontrar ferramentas mínimas para romper com as barreiras de exclusão e estigmatização, permitindo-lhes assumir trajetórias emancipatórias capazes de reduzir suas vulnerabilidades, inclusive frente a novos processos de criminalização. (WOLFF, 2016, p. 6). Como avanço nestas discussões e proposições de políticas públicas para a pessoa egressa do sistema prisional e, especificamente para a mulher, em 16 de janeiro de 2014, foi instituída pela Portaria Interministerial nº 210 a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (PNAMPE), cujo objetivo primordial foi reformular as práticas do Sistema Prisional brasileiro, buscando incluir as especificidades de gênero como forma de garantir os direitos das mulheres dentro dos estabelecimentos penais, assim como fortalecer a atuação conjunta das esferas do governo e da sociedade civil no acolhimento das egressas e suas famílias após o cumprimento da pena. A PNAMPE compreende que a reintegração social se inicia dentro do cárcere e que é dever do poder público assegurar assistência às pré-egressas, visando um retorno à liberdade caracterizado pelo acesso às informações e aos direitos básicos. Uma das diretrizes da política deixa explícita esta preocupação: X – fomento ao desenvolvimento de ações que visem à assistência às pré-egressas e egressas do sistema prisional, por meio da divulgação, orientação ao acesso às políticas públicas de proteção social, trabalho e renda (BRASIL. Ministério da Justiça, 2014). Outro ponto de destaque da PNAMPE, o qual pode ser observado em uma de suas metas, é a necessidade de articulação intersetorial para o atendimento integral às demandas das egressas, considerando o grau de vulnerabilidade em que deixam a prisão e a carência de orientações quanto a direitos elementares como, por exemplo, a retirada de documentos.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 297 VI – promoção de ações voltadas às pré-egressas e egressas do sistema prisional, por meio de setor interdisciplinar específico, observando: a) disponibilização, no momento da saída da egressa do estabelecimento prisional, de seus documentos pessoais, inclusive relativos à sua saúde, e outros pertences; b) articulação da secretaria estadual de administração prisional com os órgãos responsáveis, com vistas à retirada de documentos; e c) viabilização, por meio de parcerias firmadas pelo órgão estadual de administração prisional, de tratamento de dependência química, inclusão em programas sociais, em cursos profissionalizantes, geração de renda, de acordo com os interesses da egressa. (BRASIL. Ministério da Justiça, 2014). Ainda não há avaliações e resultados da aplicabilidade desta política em âmbito nacional, mas, o lançamento de um diagnóstico específico sobre a população penitenciária feminina em todo país– INFOPEN Mulheres –, a partir de 2014, cumpriu a primeira meta da PNAMPE de criação e reformulação de bancos de dados exclusivos das mulheres encarceradas. Entretanto, tal levantamento estatístico ainda tem muito em que avançar para poder incluir os dados das mulheres egressas do sistema prisional, pois, conforme já evidenciamos, pouco ou quase nada se sabe sobre esta população. Enquanto não existir uma estatística oficial ou conhecimento específico das pessoas que, de modo geral, deixaram a prisão, o atendimento de suas demandas não pode ser negligenciado, pelo contrário, é necessário que haja um esforço das políticas públicas, principalmente nas áreas de assistência social, saúde, educação e trabalho, para que os egressos sejam identificados e o processo de exclusão em que estão sujeitos seja rompido, bem como as vulnerabilidades superadas. Em parceria com o PNUD, o Depen está em fase de construção de uma Política Nacional de Atendimento às Pessoas Egressas do Sistema Prisional, e a Wolff (2016) ficou a incumbência de apontar os postulados, princípios e diretrizes indispensáveis para a compreensão da pessoa egressa para além do crime cometido e da pena cumprida. A autora pondera que uma política pública para egressos do sistema prisional deve considerar, acima de tudo, que a condição de vulnerabilidade social em que estas pessoas já se encontravam (e para a qual, muitas vezes, vão retornar) se acrescerá à condição de vulnerabilidade penal, potencializando os estigmas e preconceitos sofridos, tornando-os alvos cada vez mais certeiros da seletividade penal. Deste modo, os egressos

298 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro devem ser entendidos e atendidos na complexidade e especificidade de suas demandas, de forma que as ações a eles dirigidas não busquem a mera adaptação social e sim a possibilidade de eliminação (ou pelo menos diminuição) das inúmeras violações de direitos vivenciadas. Sendo atingidos por múltiplas refrações da questão social, os egressos devem ser público prioritário das políticas sociais, visando à modificação da situação de extrema carência em que se encontram, principalmente no tocante à renda e à garantia de condições dignas de sobrevivência. Com isto, consideramos oportuno apresentar algumas experiências de políticas públicas, tanto do governo federal, quanto do estado de São Paulo, no tocante à reintegração social de egressos do sistema prisional. Sendo o trabalho a atividade central na sociedade capitalista, o qual pode incluir ou excluir os indivíduos das inúmeras relações sociais que permeiam o cotidiano, verificaremos que todas as ações se baseiam na reintegração social do egresso por meio da inclusão no mercado de trabalho, todavia, são ações articuladas entre inúmeros atores, as quais não tiveram seu foco apenas na pessoa egressa, mas sim na interlocução dela com a sociedade, visando a real assimilação, por ambas as partes, das consequências do encarceramento para todos, de modo que eliminar tais consequências, seja uma tarefa mútua e não apenas uma responsabilidade pessoal do egresso.

3.1.1 Programa Começar de Novo

“Quem já pagou pelo que fez, merece a chance de Começar de Novo”. (Conselho Nacional de Justiça) Instituído pela Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 96 de 27 de outubro de 2009, o Programa Começar de Novo visa à reintegração social de presos e egressos por meio da oferta de postos de trabalho e cursos profissionalizantes. Através da sensibilização da sociedade para a questão carcerária, este programa busca a cooperação de empresas no processo de retorno dos egressos à vida social, eliminando, assim, as chances de reincidência criminal. O parágrafo primeiro do art. 2º da resolução deixa explícita a corresponsabilidade de diferentes órgãos e segmentos sociais na efetivação deste programa. § 1º O Projeto será implementado com a participação da Rede de Reinserção Social, constituída por todos os órgãos do Poder Judiciário e pelas entidades públicas e privadas, inclusive Patronatos, Conselhos da Comunidade,

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 299 universidades e instituições de ensino fundamental, médio e técnico-profissionalizantes; (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça, 2009). Para a operacionalização do programa, o CNJ criou o Portal de Oportunidades, disponibilizado no sítio do Conselho6 na rede mundial de computadores (Internet), cujo objetivo é promover a intermediação entre as empresas e os egressos pretendentes às vagas através do cadastramento de ambos. De acordo com as informações disponibilizadas pelo Portal, até o presente, foram ofertadas 17.808 vagas de emprego, com preenchimento de 12.987. Atualmente há 572 vagas disponíveis. Já para os cursos profissionalizantes foram liberadas 8.054 oportunidades e não há vagas ociosas no momento. Este programa configura-se como uma política pública, uma vez que materializa os direitos previstos na Constituição Federal ems seus artigos 5º, inciso XLIX, o qual assegura aos presos o respeito à integridade moral, e 6º, que estabelece o trabalho e a educação como direitos sociais devidos a todo cidadão. (BRASIL, 1988). Outras características que enquadram o programa no rol das políticas públicas são a sua multiplicidade de ações e o envolvimento de órgãos públicos, privados e da sociedade civil na execução das atividades7.

3.1.2 Selo RESGATA

A Portaria nº 630, de 03 de novembro de 2017, do Ministério da Justiça, criou o Selo Nacional de Responsabilidade Social pelo Trabalho no Sistema Prisional – RESGATA, o qual visa a incentivar e reconhecer a responsabilidade social de empresas, órgãos públicos e empreendimentos de economia solidária que absorvem mão de obra de pessoas em privação de liberdade, cumpridores de penas alternativas e egressos do sistema prisional, de modo a contribuir para mudar paradigmas, superar preconceitos, criar oportunidades e fortalecer a cidadania. Art. 2º – O objetivo do Selo RESGATA é incentivar, estimular e reconhecer as organizações que utilizam mão de obra oriunda do sistema prisional brasileiro, de forma a ampliar as vagas de trabalho proporcionando melhores condições de reintegração social. (BRASIL. Ministério da Justiça, 2017). 6 Cf. http://www.cnj.jus.br/projetocomecardenovo/index.wsp. 7 Para melhor esclarecimento sobre o programa, o CNJ disponibiliza a “Cartilha do Empregador” em http://www.fiesp.com.br/indices-pesquisas-e-publicacoes/ cartilha-do-empregador/.

300 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro A vigência do selo é de um ciclo (um ano) e deve ser renovado, caso haja interesse da organização em continuar no programa. No primeiro ano de atuação, o selo certificou 112 empresas, as quais, tendo benefícios no que diz respeito aos encargos tributários8, desenvolveram suas ações para com apenados e egressos, de modo a possibilitar alterações em suas condições concretas de vida, assim como contribuir para o combate ao preconceito e desigualdade entre eles e os demais trabalhadores, pois, de acordo com Reale Junior (2008, p. 8) “A maneira da sociedade se defender da reincidência é acolher o condenado, não mais como autor de um delito, mas na sua condição inafastável de pessoa humana”. Assim, dentre as determinações a serem cumpridas pelas empresas participantes do selo RESGATA, destacamos: VIII – desenvolver iniciativas que contribuam para modificar a realidade socioeconômica das pessoas em privação de liberdade e egressos, tais como: a) dar oportunidade para a absorção dos trabalhadores oriundos do sistema prisional e de justiça criminal em postos de trabalho, com os mesmos critérios de tratamento dispensados aos trabalhadores livres; b) realizar ações para que o trabalho tenha caráter educativo e produtivo; c) incentivar a formação escolar ou profissional dos presos trabalhadores; e d) incentivar a contribuição à Previdência Social. (BRASIL. Ministério da Justiça 2017). Este selo configura-se como mais uma possibilidade de política pública para garantir os direitos básicos aos egressos do sistema prisional, articulando a responsabilidade da sociedade civil na promoção destas garantias e na mudança da trajetória de vida destes indivíduos, os quais, deixados à margem por muito tempo, buscam a construção de seu protagonismo na sociedade.

8 As empresas poderão deduzir do imposto devido, em cada período de apuração, os encargos sociais incidentes sobre a remuneração dos empregados egressos do sistema prisional. Estariam contemplados nessa dedução os encargos sociais devidos à Previdência, ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), ao salário-educação, às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e ao seguro contra os riscos de acidentes de trabalho.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 301 3.1.3 Pró-Egresso

O Programa Estadual de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário – PRÓ-EGRESSO – é específico do estado de São Paulo e foi instituído pelo Decreto nº 55.126 de 07 de dezembro de 2009 com o objetivo de atuação em duas frentes específicas: encaminhamento de egressos do sistema prisional paulista ao mercado de trabalho e qualificação profissional de sentenciados que cumprem pena nos estabelecimentos prisionais, bem como dos que se encontram em livramento condicional ou egressos. Este programa é resultado da ação integrada entre a SAP, a Secretaria de Empregos e Relações de Trabalho (SERT) e a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia (SDECT) e tem como objetivo potencializar o trabalho de reintegração social já desenvolvido pelas CAEF’s e demais estabelecimentos prisionais. A operacionalização é bem próxima a do programa “Começar de Novo”, consistindo num cadastro de vagas de emprego por meio do programa já existente no estado – Emprega São Paulo9 – sendo disponibilizadas vagas específicas para os egressos, as quais podem ser acessadas por meio de órgãos da SAP (dentre eles as CAEF’s) ou em qualquer Posto de Atendimento ao Trabalhador (PAT) no estado. Já os cursos profissionalizantes são ministrados por meio do programa Via Rápida10, cujo objetivo é a capacitação profissional em curto tempo com foco nas novas exigências do mercado de trabalho e nas necessidades de mão de obra da região onde os beneficiados residem. Dentre o público prioritário de vagas estão as mulheres chefes de família e os egressos do sistema prisional. Ainda é ofertada uma bolsa de estudo para custear o deslocamento e a alimentação dos alunos durante os cursos, com duração aproximada de 3 meses.

9 O programa Emprega São Paulo, pertencente à Secretaria de Empregos e Relações de Trabalho, é um portal que reúne empregadores que ofertam vagas e cidadãos em busca de emprego. Há disponibilização de vagas por segmentos populacionais específicos, sendo eles: pessoas com deficiência, jovens aprendizes, egressos do sistema prisional e ampla concorrência. 10 O Via Rápida é um programa do Governo do Estado de São Paulo, coordenado pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, que oferece cursos básicos para capacitar gratuitamente a população que está em busca de uma oportunidade no mercado de trabalho ou que deseja ter seu próprio negócio.

302 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de a colocação no mercado de trabalho ser um elemento chave para a retomada da vida em liberdade, temos de estar conscientes que esta ação isolada não tem efeitos consistentes na vida de pessoas cujas violações de direitos atingem todas as esferas da vida social. Aos egressos do sistema prisional e, principalmente às mulheres, devem ser oportunizadas políticas, programas, projetos, ações e serviços que envolvam também a retomada dos vínculos familiares, a garantia de condições dignas de sobrevivência a elas e seus filhos, o acesso à informação, à cultura, ao lazer, à saúde, à educação, enfim, à cidadania plena, sendo esta entendida aqui como a participação na construção e usufruto dos direitos não apenas individuais, mas os sociais, econômicos, políticos e culturais. Egressos e egressas do sistema prisional têm de deixar de serem vistos como sujeitos do sistema penal para serem compreendidos como atores de suas próprias trajetórias de vidas, as quais não devem ser associadas ao crime cometido no passado e sim à humanidade que deveria ter estado presente antes, durante e depois da prisão. A eles não basta a concessão de meios direitos. A complexidade de suas vulnerabilidades exige a garantia de direitos humanos. É necessário, ainda, evidenciar a importância de profissionais comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e livre de relações de opressão, dominação e preconceito para o atendimento e resgate da cidadania destes homens e mulheres cujo cárcere subtraiu a integridade. O caminho é longo, é obscuro, mas percorrê-lo significa garantir dignidade humana.

REFERÊNCIAS

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306 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro A VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR CONTRA MULHERES, CRIANÇAS E ADOLESCENTES: ALGUMAS REFLEXÕES

1Mayara Simon Bezerra* Maria Cristina Piana**

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo trazer algumas reflexões sobre a violência sexual intrafamiliar contra mulheres, crianças e adolescentes. Traz uma breve reflexão sobre a violência, que é um fato presente em nossa sociedade, discutindo a seguir o conceito de violência intrafamiliar e violência sexual, perpassando ainda sobre a questão de gênero, mostrando a importância desta no estudo da violência sexual intrafamiliar. Elencamos ainda alguns órgãos e aparatos legais que prestam atendimento e visam à punição desta violência. Palavras-chave: violência sexual. mulher. criança/adolescente. gênero. ABSTRACT: This article aims to give some reflections on sexual intra-family violence against women, children and teenagers. Provides a brief reflection on violence , which is a fact present in our society, arguing the following the concept of domestic violence and sexual violence, even traversing on gender issue, showing the importance of the study of intra-family sexual violence. Also we are proposing some legal organs and apparatuses that provide care and seek to punish this violence. Keywords: sexual violence. woman. child/teenager. Gender

INTRODUÇÃO

A violência é um fato presente em todas as sociedades desde seus primórdios, fazendo parte da vida cotidiana, perpassando toda a história e desenvolvimento da humanidade. Todos nós possuímos, de certa forma, um convívio diário com a violência, mesmo que isso se dê com intensidades e formas diferenciadas. Na maioria das vezes passa por despercebida, sendo considerada algo normal, rotineiro, vista por nossos olhos como se não fosse violência. Não há espanto, indignações, reações... Vale lembrar aqui de Marina Colasanti, que em seu livro de crônicas “Eu sei, mas não devia”, traz um texto com este mesmo nome, onde retrata cenas de nosso cotidiano em que vamos nos acostumando a certas coisas e não deveríamos, e mesmo sabendo que não, continuamos a nos acostumar.

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Paulista UNESP–Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca/SP, Brasil. Bolsista Capes. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3669428988761160. ** Doutora em Serviço Social. Docente do Departamento de Graduação e no Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Paulista UNESP – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca/SP, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq. br/7793568359077064.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 307 Assim acontece com a violência, algo presente na sociedade, que de certa forma, se acostumou com esta. Conforme citado acima, e segundo Odalia (2006): “O viver em sociedade foi sempre um viver violento. Por mais que recuemos no tempo, a violência está sempre presente, ela sempre aparece em suas várias faces”, através das relações estabelecidas desde os primórdios da sociedade. Existem várias formas de violência, no qual podemos citar: violência intrafamiliar; violência sexual; violência física; violência psicológica; negligência; violência estrutural; violência institucional; violência patrimonial; abandono; autonegligência; violência interpessoal; violência simbólica, etc. Neste trabalho nos atentaremos sobre a violência sexual intrafamiliar contra mulheres, crianças e adolescentes, discorrendo sobre esta forma de violência e alguns aparatos no que diz respeito ao atendimento às vítimas.

1 VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR – ALGUMAS REFLEXÕES

Antes de discorrermos sobre a violência sexual intrafamiliar, é preciso entender o que é violência intrafamiliar, para assim refletirmos sobre o tema proposto neste artigo. A violência intrafamiliar, também conhecida como violência doméstica, ocorre no âmbito do lar e apresenta na maior parte dos casos, três tipos preferenciais de vítimas: criança/adolescente, mulheres e idosos. Acompanha a trajetória da humanidade, os mitos da sociedade, dentre outros. Integra uma rede que envolve a violência estrutural, oriunda do sistema social no qual estamos inseridos. Está presente em todas as classes sociais, mas é nas camadas mais desfavorecidas da população que ela ganha visibilidade, pois são estes que fazem uso do serviço público para atendimentos dos casos, sendo assim, inseridos nas estatísticas, o que não quer dizer que não exista nas classes mais altas; nestas os fatos são escondidos da visão pública, envolvidos em uma atmosfera de silêncio e sigilo, devido ao alto poder aquisitivo que possuem. A violência intrafamiliar é praticada por pessoas ligadas a vítima, por parentesco consanguíneo ou afinidade. Infelizmente, é um fato frequente em nosso país, podendo ser observado na dinâmica de muitos grupos familiares e que na maioria das

308 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro vezes fica longe da visão pública, ocorrendo no silêncio do lar, nas mais diversas formas em que se apresenta. Envolve uma inter-relação de fatores: político, social, econômico, cultural, dentre outros, permeando todas as classes sociais, independentemente de gênero, raça, etnia, religião. É uma relação desigual de poder, onde o “mais forte” subjuga, abusa do “mais fraco”, vendo-o como um objeto que lhe pertence e que executa suas ordens e vontades. Pode ocorrer em família nuclear, monoparental, estendida ou ampliada, reconstituída, homoafetiva, adotiva, dentre outras, na forma comissiva, através de ações ou passiva, por meio de omissão. A violência intrafamiliar também pode ser considerada uma das expressões da questão social, compreendida por Iamamoto (2012) como as desigualdades geradas através da contradição capital – trabalho. As transformações no mundo do trabalho e na sociedade têm como consequência uma série de fatores, como: desemprego/subemprego, exploração exacerbada da força de trabalho, aviltamento dos salários, fome, miséria, precárias condições de vida da população trabalhadora, dentre outras. Estes fatores podem contribuir para este tipo de violência, pois as transformações ocorridas acarretam em consequências profundas na sociedade, mas esta não é uma explicação para justificar esta violência, nem para que ela ocorra. A violência contra mulheres acompanha a história da humanidade; alguns exemplos são encontrados nos fenícios, em Tiro e Sidon, Egito, Antiguidade Greco-Romana (mulheres era comparadas com escravos, julgadas sem capacidade intelectual), China (em especial meninas, que eram dadas aos lobos como comida), Palestina, dentre outros. Para tentar compreender e estudar a violência intrafamiliar contra mulheres é necessário antes de tudo “[...] desvendar suas estruturas e seus mecanismos a partir da perspectiva de gênero (BRASIL, 2011, p. 11)”, ou seja, compreender as relações entre homens e mulheres, categorias sociais que foram historicamente produzidas e reduzidas a categoria biológica; o patriarcado, segundo o qual o homem é quem detém o poder; as relações desiguais, sobressaindo o masculino; a discriminação, violência, preconceito e privação de liberdade que muitas mulheres ainda sofrem. Ou seja, estudar gênero para começar a estudar violência contra mulheres. No que diz respeito à violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, Guerra (2005, p. 32), destaca que esta pode ser compreendida como: [...] todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que – sendo

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 309 capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. É considerada uma violação de direitos, no âmbito familiar, onde o lar passa a ser um local prejudicial ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. Alguns mitos (como por exemplo: o amor materno/paterno como algo natural; o não questionamento da família; correção de crianças através de castigos, dentre outros) podem contribuir para que esta forma de violência permaneça presente, sendo necessário sua desconstrução. Como destacado anteriormente, nos atentaremos aqui à violência intrafamiliar na modalidade sexual. Destacamos novamente sobre a importância de se estudar gênero ao falar sobre este tipo de violência: [...] A dimensão de gênero torna-se ainda mais importante para entender que a violência sexual não se restringe unicamente às mulheres e aos adolescentes. É, antes, um impulso agressivo fundamentado num modelo que estrutura as relações de gênero enquanto relações de poder, implicando uma usurpação do corpo do outro, e que se configura, em geral, entre homens e mulheres, mas não exclusivamente (BRASIL, 2011, p. 11). A violência sexual intrafamiliar contra mulheres ocorre no âmbito do lar, praticada pelo cônjuge (homem ou mulher), pais, padrastos, tios, dentre outros, pessoas ligadas a ela por laços consanguíneos ou não. Conforme o Caderno de Violência Doméstica e Sexual Contra a Mulher, a violência sexual pode se manifestar como: estupro, atentado violento ao pudor, abuso incestuoso, assédio sexual no local de trabalho, sexo forçado no casamento, e outras maneiras, e se caracteriza como [...] toda a ação na qual uma pessoa em relação de poder e por meio de força física, coerção ou intimidação psicológica, obriga uma outra ao ato sexual contra a sua vontade. O abuso sexual é muitas vezes difícil de ser detectado. Atos libidinosos, atentado ao pudor, sedução, entre outros, podem não deixar marcas físicas (SÃO PAULO, 2007, p. 13). Praticada contra crianças e adolescentes, pode afetar e comprometer todo o desenvolvimento físico e emocional, sendo uma das formas mais cruéis de violação de direitos. Representa todo ato ou jogo sexual, em relação hetero ou homossexual praticado por um adulto contra

310 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro uma criança ou adolescente, tendo como finalidade a satisfação sexual do adulto. Também se considera o fato de o agressor obrigar a vítima a realizar alguns desses atos com terceiros, e pode ser acompanhada por outros tipos de violência, como a física, psicológica e negligência. Na violência sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes, a família pode se tornar um cárcere privado, onde a criança e o adolescente, segundo Souza (2001), comparada aos prisioneiros dos campos de concentração, não sabe o quanto isso vai durar, se sairá viva ou não, sendo ainda obrigada a amar seu carrasco. O abusador é ligado à vítima por laços consanguíneos, afinidade ou responsabilidade, como por exemplo: pai, mãe, avós, tios, irmãos, padrasto, madrasta, cunhados, etc. Não é somente um crime contra a liberdade sexual da criança e adolescente, mas passa a ser uma violação dos direitos ao respeito, à dignidade, à liberdade, à convivência familiar saudável e facilidades para o desenvolvimento físico, mental, moral, social e sexual. Algumas crianças começam a ser vitimizadas muito pequenas no âmbito do lar. Estando tudo o que acontece dentro deste envolvido num pacto de silêncio familiar, o abuso é mantido em segredo e algumas vezes encoberto por outros membros da família, onde o abusador, por deter de poder moral e econômico, faz com que o fato seja mantido em segredo. A prática do abuso pode durar e se repetir por meses ou até anos, ficando muitas vezes na impunidade. O número de casos de violência sexual intrafamiliar é pouco denunciado em relação aos outros tipos de violência, devido o agressor ser alguém da família, ameaças feitas à vítima e o próprio silêncio por parte dos familiares. O abuso ocorre independentemente da situação financeiro-cultural da família, mas é nas classes mais inferiores que ele é denunciado, devido às classes média e alta conseguirem esconder com mais facilidade esse fenômeno, o que não quer dizer que ele não ocorra. Para Saffioti (1995, p. 23), [...]. Na conspiração do silêncio que se forma na família há todo um jogo entre a criança e o adulto. Eu encontro algumas diferenças porque isso ocorre em todas as famílias – nas famílias ricas, nas famílias de classe média, nas famílias pobres, nas miseráveis, nas mais miseráveis ainda, ocorre em todas elas. Não pense que violência sexual intrafamiliar é característica de pobre não. [...] Uma diferença que eu encontro, que é uma diferença de classe, no abuso incestuoso é a seguinte: nas classes mais

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 311 pobres, o pai joga a filha numa cama, põe uma faca, um canivete, um revólver, a arma que tiver, ao lado da cama e estupra a filha e diz: “Se você abrir a boca, eu mato você, mato sua mãe, todos os seus irmãos.” A menina vive sob ameaça concreta. Agora, é muito pior nas camadas privilegiadas. Não se ameaça com revólver nem com faca. Não há ameaça. O que há é um processo de sedução que, a meu ver, é muito mais deletério para a saúde emocional da criança do que a ameaça grave. Porque o pai vai seduzindo, ele vai avançando nas carícias – eu digo o pai porque é a figura mais frequente, mas isso não impede que seja o avô, o tio, o primo, o irmão, etc. – e é muito difícil para uma criança pequena distinguir entre a ternura e o afago com fins genitais. Crianças e adolescentes vítimas desse tipo de violência não esquecem esse fato, mesmo que não se lembrem, trazem consigo o que aconteceu, podendo afetar as emoções e relacionamentos que vão ter durante a vida. As consequências desse ato na vida destas crianças e adolescentes afetam seu presente e o futuro e podem depender da fase evolutiva em que se encontram e de alguns fatores, como: relação entre o agressor e a vítima, personalidade da vítima, frequência e duração do abuso, tipo e gravidade e reação das pessoas ao saberem do ocorrido. Nos casos de violência sexual intrafamiliar o pai é apontado como maior abusador, seguido pelo padrasto e as meninas são as maiores vítimas, assumindo em alguns casos o papel da mãe, papel de esposa. Vale destacar que meninos também sofrem este tipo de violência, mas em um percentual menor, comparado às meninas. Destacamos aqui o fato do pai, ou mesmo o padrasto abusar das filhas como se estas fossem sua propriedade, como um objeto que possuem. A violência sexual intrafamiliar, apesar de se apresentar na dinâmica de muitos grupos familiares é pouco denunciada, principalmente os casos de incesto entre pai e filha. Um dos fatores que contribui para isso é o silêncio da vítima, motivado pelo medo em fazer a denúncia, através de ameaças e violência psicológica. Praticada contra mulheres, a violência sexual intrafamiliar pode ser observada através de toques e carícias não desejadas; demonstrações corporais e verbais indesejadas; relações sexuais forçadas, onde o parceiro obriga a vítima a manter relações mesmo sem seu consentimento, como se esta tivesse que cumprir com seu “dever de esposa”; o poder do agressor sobre a vítima, e outros. Ressaltamos aqui a importância de compreender,

312 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro entender a perspectiva de gênero antes de estudar a violência sexual intrafamiliar contra a mulher, pois é a partir desta perspectiva que se pode partir para uma maior compreensão deste fenômeno. Segundo dados publicados na Norma Técnica do Ministério da Saúde, sobre Prevenção e Tratamento a Mulheres e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual (2011): – 70% das três bilhões de pessoas que vivem em extrema pobreza são mulheres; – a cada quinze segundos uma mulher é espancada no Brasil; – uma a cada três mulheres no mundo foram espancadas ou violentadas sexualmente; – uma a cada quatro mulheres no mundo é vítima de violência de gênero; – 23% das mulheres brasileiras estão sujeitas a violência doméstica. Observamos através destes dados que a violência contra a mulher está presente na sociedade apresentando altos índices, no Brasil e no Mundo.

2 AVANÇOS? – LEGISLAÇÃO E ÓRGÃOS DE ATENDIMENTO

Podemos considerar que tivemos alguns avanços na legislação, no que diz respeito à proteção e atendimento de mulheres, crianças e adolescente. No Brasil, no que diz respeito às crianças e adolescentes, em 13 de julho de 1990 foi promulgado o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA, Lei nº 8.069/1990 (BRASIL, 2015), que visa à proteção contra toda e qualquer forma de violência contra a criança e o adolescente, sendo dever de todos – família, sociedade e Estado – garantir seus direitos. A partir do Estatuto consolida-se na história do país a concepção de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, que precisam de cuidados especiais devido à sua condição peculiar de desenvolvimento, devendo receber proteção integral, garantida pela Prioridade Absoluta à Infância e Adolescência. O Brasil através de seu presidente Fernando Collor assinou em 21 de novembro de 1990 a Convenção Sobre os Direitos da Criança (Decreto nº 99.710/1990). Hoje, 29 anos depois da promulgação do Estatuto, a realidade de muitas crianças e adolescentes encontra-se distante do que se prevê em lei, visto que muitas crianças e adolescentes ainda são vítimas de violência. Segundo o Relatório Digital – Balanço Anual 2017 (BRASIL, 2018, p.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 313 10), no ano de 2017 foram registradas 84.049 denúncias de violações de direitos contra crianças e adolescentes por meio do Disque 100. Os dados do Relatório Digital – Balanço Anual 2017 (BRASIL, 2018, p. 17-19) apontam o perfil das crianças e adolescentes, em que as maiores vítimas são meninas (48%), seguida dos meninos (40%). A faixa etária mais atingida é a de 04 a 11 anos (41%), seguida de 12 a 17 anos (31%), de 0 a 03 anos (17%), não informado (17%), e recém-nascido (1%). Crianças e adolescentes negros(as) e pardos(as) representam 42%, e os brancos 30%. Os dados divulgados revelam a quantidade de denúncias das violações mais recorrentes, que foram: negligência (61.416); violência psicológica (39.561); violência física (33.105); violência sexual (20.330) e outras violações (11.944). (BRASIL, 2018, p. 17). Por meio do gráfico abaixo (BEZERRA, 2017), podemos observar as denúncias recebidas pelo Disque 100 e pelo Sistema de Informação para Infância e Adolescência (SIPIA) de violações cometidas contra crianças e adolescentes entre os anos de 2011 a 2016.

O Disque 100, também conhecido como Disque Direitos Humanos, vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, do

314 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Governo Federal, é um canal de denúncia de violações contra os direitos humanos, divididos em módulos, como: igualdade racial, população idosa, criança e adolescentes, pessoa com deficiência, população em situação de rua, pessoa em restrição de liberdade, dentre outros. O canal funciona 24 horas, por meio de ligação gratuita e anônima, colhendo as denúncias e encaminhando aos órgãos de proteção para averiguação e atendimento. O SIPIA, vinculado ao Observatório Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, reúne os dados de violações de direitos recebidas e atendidas pelos Conselhos Tutelares de diversos estados, mas ressalta-se que não reúne dados de todos os conselhos. Em relação à legislação de proteção a mulher, o Brasil tem um avanço na legislação por meio da Lei nº 11.340/2006 (BRASIL, 2006), Lei Maria da Penha, considerada uma conquista no que diz respeito à violência contra mulher, como por exemplo: definição e tipificação da violência sexual contra a mulher; proibição de penas pecuniárias; medida protetiva, e outras. A lei recebe o este nome em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de violência doméstica, sofrendo duas tentativas de assassinato. Mesmo com a lei em vigor, muitas mulheres ainda são vítimas de violência doméstica. Em março de 2013 foi lançado o Programa Mulher: Viver sem Violência, reafirmado pelo Decreto nº 8.086/2013. Este programa tem como objetivo ampliar e integrar os serviços existentes (direcionados a mulheres em situação de violência) na esfera pública, articulando os atendimentos especializados. No estado de São Paulo, em 1985 foi criada a 1ª Delegacia de Defesa da Mulher – DDM, delegacia especializada para atender mulheres vítimas de violência. Segundo dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres, o Brasil conta com 368 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, um número muito pequeno em relação ao tamanho do território brasileiro e os dados de violência contra a mulher. A Secretaria de Políticas para as Mulheres disponibiliza em seu site alguns dos serviços que o país possui. Dentre eles podemos destacar: Centros Especializados de Atendimento à Mulher em Situação de Violência; Serviços de Abrigamento; Casa da Mulher Brasileira; Central de atendimento a Mulher – 180, e outros. Os Centros especializados de Atendimento à Mulher são locais em que as mulheres recebem acompanhamento social, psicológico, orientação jurídica e acolhida. O que se espanta é a quantidade desses centros no país,

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 315 cerca de 228. Um número menor ainda é sobre os Serviços de Abrigamento, totalizando 77 serviços distribuídos pelos estados brasileiros. A Casa da Mulher Brasileira é um dos eixos do programa Mulher: Viver sem Violência, nela estão disponíveis serviços especializados para o atendimento a mulher vítima de violência, contando ainda com central de transportes e alojamento de passagem. Em 2015 foram inauguradas duas casas, uma em Campo Grande (MS) e outra em Brasília (DF). A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, orienta as mulheres, tira dúvidas, recebe denúncias de violência e realiza encaminhamentos para outros serviços. Funciona 24 horas e pode ser acionada fora do Brasil, em mais de 16 países. Podemos perceber que obtivemos alguns avanços no que diz respeito à violência sexual intrafamiliar contra mulheres, crianças e adolescentes. Mas ainda possuímos um alto índice de violência, principalmente contra a mulher. Mesmo com as legislações a violência ainda faz parte do cotidiano, onde muitas vezes, nem a Medida Protetiva é capaz de garantir a segurança. Avançamos alguns passos, mas retrocedemos outros. As legislações vigentes visam coibir este tipo de violência, prevendo inclusive a prisão preventiva do agressor, prisão em flagrante, criação de juizados especiais, conforme previsto na Lei Maria da Penha e destacado anteriormente. Outras legislações e decretos também fazem parte dos aparatos que visam atender as vítimas, bem como as medidas cabíveis aos agressores. Possuímos serviços, legislações, e outros equipamentos, mas a discussão sobre a real efetivação destes dão espaço a outro estudo, visto que mesmo diante de tantas conquistas, o Brasil continua regredindo quando se fala em proteção e garantia de direitos, conforme pode ser observados nas estatísticas e notícias diárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, podemos perceber que a violência sexual intrafamiliar se encontra presente em nossa sociedade, permeando muitos lares e ocorrendo no silêncio destes, independente de raça, religião, gênero e etnia, envolvendo uma gama de fatores, mas é nas camadas mais pobres da população que ela ganha os “holofotes”, pois nas classes mais altas ela é escondida, ficando longe da visão pública.

316 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro Não desconsideramos neste trabalho que os homens também sofram esta violência, mas decidimos destacar a mulher, visto ser esta a maior vítima desta e da violência de gênero. As mulheres ainda sofrem muitos tipos de abusos e violência. No âmbito do lar, muitas mulheres são consideradas propriedades, onde após o casamento, os maridos acabam pensando que estas o pertencem, como se fossem um objeto, são agredidas, presas, estupradas, sendo obrigadas a manter relações sexuais forçadas, como um papel de esposa, tendo que cumprir as ordens do companheiro. É preciso repensar o papel atribuído e construído ao longo do tempo à mulher, repensar este, através da perspectiva de gênero, compreendendo as relações de poder criadas ao longo da história, perpassando até os dias de hoje.

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318 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro PAUPERIZAÇÃO SOB A ÓTICA DO GÊNERO: A MULHER E SEU ESPAÇO NO MUNDO DO CAPITAL

12Ana Clara Cabral Afonso* Milena Donato Camilo**

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a questão da mulher e sua relação de trabalho enquanto centralidade na vida humana nos tempos atuais. Para tanto, serão observadas as determinantes das famílias monoparentais, com as mulheres sendo as chefes de família, ou seja, as dificuldades de ser uma mãe solteira e como se dará esse processo e suas múltiplas faces de opressão feminina e suas particularidades no mundo da desigualdade em que está inserida, assim como os desafios de manter uma família sendo ela a única detentora da renda familiar. A feminização da pobreza é um fato, portanto refletiremos acerca dos desafios a serem percorridos e as expressões da questão social de acordo com a sociabilidade atual, buscando embasamento para questionamentos como: qual o papel que a mulher irá exercer na sociedade? Que funções a elas serão atribuídas? Palavras-chave: feminização da pobreza. gênero. trabalho. ABSTRACT: This article has the objective of analyze the woman’s issue with work meanwhile the human life as centrality nowadays. Therefore, it will be observed the single parents’s determinants, as women being the family chief, in other words, the difficulties of being a single mother and how this process will take place and its multiple faces of female oppression and its particularities in the world of inequality in which it is inserted, as well as the challenges of maintaining a family being the sole holder of family income. The poverty feminization is a fact, so we will reflect on the challenges to be faced and the social issues expressions according to the current sociability, seeking the basis for questions such as: what role will women play in society? Which function are assign to them? Keywords: poverty feminization. gender. work.

INTRODUÇÃO

O presente estudo pretende analisar e estudar a feminização da pobreza como um fato sócio histórico que precisa se tornar agenda dos governos para que, assim, políticas públicas sejam efetivadas, investigar autores e documentos que tragam dados referentes ao tema, procurar programas que estudem a temática e que tenham propostas possíveis a serem executadas, bem como apresentar uma análise crítica, tendo em vista a necessidade da compreensão da totalidade e absorção do tema, saindo da esfera pragmática. Para Marconi e Lakatos (2005, p. 83) “O método é conjunto das atividades sistemáticas e racionais que com maior segurança e economia, permite alcançar o objetivo – conhecimentos válidos e verdadeiros * Graduanda em Serviço Social na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Franca. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5097027786020917. ** Graduanda em Serviço Social na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Franca. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5097027786020917.

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 319 – traçando o caminho a ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista”. Neste caso, o presente artigo irá privilegiar, primeiramente, uma análise crítica exploratória da literatura científica tanto do Serviço Social, quanto de outras áreas a partir de uma abordagem crítica dialética segundo Marx. Ainda de acordo com as autoras Lakatos e Marconi (2005, p. 106) justifica-se a escolha da metodologia quando: “Toda realidade é movimento, e que o movimento, sendo universal, assume as formas quantitativas e qualitativas, necessariamente ligadas entre si e que se transforma uma na outra”. A realidade em constante dinâmica está em um processo de incessantes transformações. É necessário então, que, a partir de um contexto sócio histórico, a pesquisa observe as diversas determinantes daquela época/lugar.

1 FEMINIZAÇÃO DA POBREZA

Analisa-se que a sociabilidade brasileira tem atualmente trazido em seu contexto a desigualdade social e todas suas mazelas provenientes de um sistema de políticas públicas pouco efetivas e que ignoram as reais demandas a serem supridas. É nítido que a inserção das mulheres nos espaços coletivos apenas surge proveniente de lutas, reivindicações e movimentação da sociedade civil cobrando respostas e atitudes do Estado, seja em leis, políticas públicas ou da sociedade em desconstrução de preconceitos e opressões. A reafirmação e reconhecimento de direitos é necessária nesse momento de retrocessos como forma de embasamento e resistência. Nota-se que compreender o princípio da igualdade de mulheres e homens sem distinção de qualquer natureza como expresso na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal de Direitos Humanos, por exemplo, mostra a legitimação e concretude das lutas femininas por seu espaço na sociedade. Iremos tratar nesse artigo a questão referente à vulnerabilidade das mulheres e todas suas formas de opressão estruturadas em um sistema capitalista e de ações governamentais que devem ser repensadas. Para Sen (1994), uma forma de demonstrar como a questão da desigualdade entre gêneros é diretamente afetada é na esfera do trabalho e educação. No caso das mulheres por exemplo, quanto maior a taxa

320 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro de inserção da mulher no mercado de trabalho (claro que em condições salutares e substanciais) e sua formação escolar, mais isso pode influenciar diretamente na sua taxa de fecundidade e na mortalidade de crianças com idade inferior a cinco anos. Isto quer dizer que o acesso à informação, novos conhecimentos e abertura de novos espaços para as mulheres trazem novas oportunidades e vivências tanto para a mulher, quanto para todos à sua volta, sendo um fator impactante. Mais impactante ainda é quando notamos que grande parte dos lares brasileiros possuem em seu seio mulheres chefes de família, muitas das vezes detentoras e responsáveis pela renda da casa. Essas mulheres chefes de família vêm como uma resposta na mudança de um comportamento social, de acordo com a abertura e possibilidade de separações e divórcios. Em grande parte, essas famílias são decorrentes de uma gravidez precoce ou indesejada, instabilidade familiar e abandono. Se essa mulher está inserida no mercado de trabalho e possui determinada escolaridade, terá oportunidades diferentes de uma mesma mulher de sua idade sem acesso à essas determinantes. A necessidade de cuidar dos filhos acaba sendo um empecilho para se obter trabalhos mais bem remunerados e registrados em carteira, obrigando as mulheres a optarem por serviços com horários mais flexíveis. Observaremos ainda segundo Azeredo (2010) que a relação da mulher com seus espaços conquistados será contraditória, visto o aumento de suas responsabilidades tanto na esfera privada, quanto na pública: É no contexto dessa vida em comum e desses «modos de ser», que nos interessa pensar como as mulheres das famílias pobres vivem e constroem suas identidades, assentadas na perspectiva de gênero. Os espaços nos quais habitam e transitam revelam visíveis formas de discriminações. Portanto, apreender as práticas dessas mulheres e o modo como se representam e são representadas se torna fundamental para compreender a natureza dos processos discriminatórios e a elaboração de outros marcadores identitários. No espaço da casa e entre paredes, as mulheres ainda ocupam espaços desiguais. Se nas últimas décadas conquistaram o espaço público, este fez aumentar sua responsabilidade, ao ter que conciliá-lo com o espaço privado. Diante disso, as mulheres são uma reserva de mão de obra para os momentos de prosperidade econômica. Assim, elas são o gênero preferido

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 321 para, em momentos de expansão econômica, entrarem no mercado de trabalho em empregos que são temporários ou frágeis. Além da vulnerabilidade social é notado um alto grau de vulnerabilidade emocional proveniente da sensação de abandono, ocasionada pelos vários tipos de violência e exploração a que foram expostas, gerando dificuldade para garantir a sobrevivência do seu núcleo familiar. Quando falamos sobre essas desigualdades notamos um fenômeno que tem se concretizado chamado de “feminização da pobreza”. Costa et al. (2005) exemplificarão em uma definição como funcionará. Eles dirão que a partir do aumento das mulheres pobres, das mulheres chefes de família e de suas disparidades com uma família que é composta pelo homem chefe de família, a desigualdade estará estritamente ligada com a questão de gênero. Sen (1994) dirá que o desenvolvimento de uma nação está fortemente ligado aos processos sociais de desenvolvimento de oportunidades, trazendo um acesso democrático e politizado, saindo da esfera econômica e perpassando outras questões de suma importância para o andamento dos países, assim como o IDH (índice de desenvolvimento humano) propõe inclusive na questão de gênero.

2 LEGISLAÇÃO

O governo federal tem seu compromisso com a igualdade no mundo do trabalho na perspectiva de gênero explicitado nos princípios e diretrizes da Política Nacional para as Mulheres, considerando a diversidade de raça/etnia e geração, em conformidade com as recomendações da I e II Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, realizadas em 2004 e 2007. Seus objetivos são: promover a autonomia econômica e financeira de todas as mulheres; possibilitar a igualdade de gênero, considerando a dimensão étnico- racial nas relações de trabalho; proporcionar políticas de ações afirmativas no mundo do trabalho que reafirmam a condição das mulheres como sujeitos sociais e políticos, considerando as dimensões étnico-raciais; garantir às trabalhadoras domésticas o exercício de todos os direitos trabalhistas previstos no artigo 7º da Constituição Federal concedidos às trabalhadoras em geral, providenciar a organização produtiva de mulheres que vivem em contexto de vulnerabilidade social, notadamente nas periferias urbanas, entre outros. A Constituição de 1988 denominada “Constituição Cidadã”, no Título II, Capítulo I – Dos Direitos Individuais e Coletivos, art. 5º,

322 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro inciso I, assegura a igualdade entre homens e mulheres e segundo Araújo (2004, p. 115): O capítulo dos direitos individuais da Constituição de 1988 inicia-se com a expressão: “todos são iguais perante a lei”. Não é sem razão que, embora sendo uma igualdade formal – igualdade na desigualdade – encontra reforço na outorga dos direitos sociais destacando-se dentre eles o direito à seguridade social com uma proposta universalizante, inclusiva. Nessa Carta, o direito à previdência é assegurado mediante contribuição da União, do empregador e do empregado, contra as consequências da doença, da velhice, da invalidez e da morte. No Título II, “Dos direitos e garantias fundamentais”, Capítulo II, “Dos direitos sociais”, o art. 7º, XVIII, assegura “licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com duração de cento e vinte dias” (BRASIL, 1988, p. 13). Neste mesmo capítulo, inciso XX, verifica-se a proibição de diferença de salários, no exercício de funções semelhantes e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil, reiterando o disposto nas Constituições de 1934 e 1946. A Lei nº 9.876/1999 estabeleceu o pagamento da licença à gestante diretamente pela Previdência Social às empresárias, trabalhadoras autônomas e às contribuintes facultativas. Com a promulgação da Lei nº 10.710/2003, o pagamento do salário-maternidade passou a ser feito diretamente pelas empresas, que serão ressarcidas pela Previdência Social. No caso das empregadas domésticas, contribuintes individuais, avulsas e facultativas o benefício é requerido nas agências da Previdência Social, não sendo exigida a carência para esse benefício. O salário-maternidade também é concedido às seguradas que adotarem uma criança, ou obtiverem a guarda judicial. Esta lei traz uma inovação que é a garantia de licença-paternidade. Quanto ao trabalho, é assegurada a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei e aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei.

3 RELAÇÃO MULHER/TRABALHO

Notaremos em um contexto histórico que a inserção da mulher na força de trabalho no Brasil é resultado de diversos fatores econômicos e culturais a partir de uma demanda do capital. Juntamente com essa

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 323 entrada, o contexto e todas as relações sociais provenientes desse fato irão promover a desigualdade visto a necessidade da mão de obra feminina quando necessária e não inclusiva, trazendo a feminização da pobreza em destaque. Essa vulnerabilidade será identificada a partir de riscos sociais que tornam grupos em específicos vulneráveis a determinadas situações parecidas. Para Hildete (2005) em sua análise para a CEPAL:

a discussão da pobreza sob o prisma de gênero suscita questões específicas da vida das mulheres, que os dados estatísticos nem sempre revelam ou mesmo ocultam, tais como o trabalho não remunerado e os afazeres domésticos. Desvendar a invisibilidade do trabalho feminino é importante para elaboração de políticas de combate à discriminação. No caso do trabalho sem remuneração isto agrava a pobreza, pois no contingente destes trabalhadores a maioria é composta de mulheres. Esta é uma forma precária de inserção no mercado de trabalho e é uma realidade das camadas mais pobres da população. Como outros estudos já mostraram as mulheres investem a maior parte dos seus rendimentos pessoais na manutenção da família, dessa forma urge praticar uma política de renda que combata a discriminação salarial e o trabalho sem remuneração.

Segundo a OIT (2016) nota-se uma tendência no emprego informal:

As mulheres continuam sobrerepresentadas como trabalhadoras familiares não remuneradas. No entanto, registaram-se neste domínio alguns progressos na redução do diferencial entre homens e mulheres. Globalmente, a parte de trabalhadores familiares não remunerados diminuiu significativamente entre as mulheres (17 pontos percentuais nos últimos 20 anos) e em menor grau entre os homens (cerca de 8,1 pontos percentuais durante o mesmo período), resultando numa diminuição da diferença, de 19,5 pontos percentuais em 1995 para 10,6 pontos percentuais em 2015. Esta tendência deve-se, em parte, a uma mudança da reestruturação económica com o abandono do trabalho agrícola, que consistia em grande parte em atividades de subsistência e de pequena escala. No entanto, pode afirmar-se que muitas mulheres trabalhadoras permanecem numa situação face ao emprego e em profissões Nota: A disparidade de gênero é medida como a diferença entre as taxas de atividade das mulheres e dos homens. Os

324 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro dados referem-se a 178 países [...] além disso, 52,1 por cento das mulheres e 51,2 por cento dos homens no mercado de trabalho são trabalhadores por conta de outrem e que recebem um salário. Isso por si só não constitui nenhuma garantia de maior qualidade do trabalho. Na verdade, globalmente, quase 40 por cento das mulheres no trabalho remunerado não contribuem para nenhum sistema de proteção social. O trabalho sazonal feminino traz na maioria das vezes uma exigência de baixa qualificação profissional e com um âmbito voltado a práticas domésticas. Em Franca-SP, mulheres são submetidas a trabalhos voltados na área da costura/colação de sapatos e cintos onde recebem valores mínimos e ainda por cima conciliam o trabalho e tarefas domésticas, exemplificando de forma concreta como a realidade se projeta em nossas vidas. É necessário compreender a realidade dinâmica a partir da vida concreta de mulheres e como se caracterizam e se refletem as expressões da questão social. A desigualdade vem como uma das respostas as condições de trabalho cada vez mais precárias e mal remuneradas. No caso de Franca como já citado, esse trabalho informal trará “flexibilidade” na divisão de tarefas laborais e domésticas. Analisa-se que essa forma de exploração terceirizada surge como uma solução de obtenção de renda, visto a falta de oportunidades tanto no mercado de trabalho, quanto na falta de vagas em creches, qualificações profissionais e oportunidades com educação, transporte e outros. Para Novelino (2003, p. 2), a tendência para o aumento da pobreza entre as mulheres, será justamente ligada pela crescente predominância das taxas de domicílios por elas chefiados. Nota-se então que, assumindo sozinho a responsabilidade de uma família, além da sobrecarga emocional, deixa-se de compartilhar responsabilidades e ônus, o que se acarretará na vulnerabilidade visto o desamparo ali condicionado. Além disso, é importante entender as determinantes e recortes de raça/etnia, sexualidade e outras questões que irão influenciar diretamente no grau de vulnerabilidade e em como as políticas públicas devem agir em combate a feminização da pobreza.

4 SERVIÇO SOCIAL, GÊNERO E TRABALHO

O assistente social enfrenta em seu cotidiano diversas expressões da questão social. O gênero vem como forte necessidade de estudo se

Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro 325 analisado a constante pauperização dentro dos lares com as mulheres chefes de família e a intensa feminização da pobreza, sendo um fator de análise a ser estudado e debatido. Lisboa (2010) exprime em seu estudo que: O cotidiano profissional das(os) assistentes sociais tem se confrontado com um leque de situações que caracterizam exclusão, discriminação, exploração, opressão, desigualdade social, relações de poder, de violência, entre outras. De forma pulverizada, quando não isolada, algumas(uns) profissionais de Serviço Social têm se aproximado dos estudos de gênero e insistido na importância da transversalidade dessa categoria na mediação teórica sobre as demandas que surgem no cotidiano das práticas. Entrando inclusive na esfera do trabalho profissional do assistente social nota-se no Brasil a predominância feminina. De acordo com a Iamamoto (2009), o perfil de um assistente social é de uma categoria fundamentalmente feminina (97%) com a presença de apenas 3% de homens, ou seja, é de suma importância, inclusive no nosso contexto atual de regressão e repressão de direitos entender essas questões que nos afetam diretamente tanto na nossa relação com a centralidade do trabalho, quanto no gênero e nos impactos a serem rebatidos. Nós mulheres somos maioria enquanto categoria profissional e temos a necessidade de compreensão e análise da feminização da pobreza para que possamos entender e atuar de forma crítica nos espaços ocupacionais do assistente social e fora deles, como forma de resistência e emancipação humana, assim como nosso Projeto Ético Político e nosso Código de Ética exprimem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lisboa (2010) explicita em sua análise que:

É preciso destacar que a incorporação do debate sobre a equidade de gênero nas políticas públicas, no Brasil, é resultado de um longo processo social e político de participação, sustentado em grande medida pela visibilidade e legitimidade que os movimentos feministas têm alcançado nos últimos 20 anos. Também, pela produção de conhecimento sobre a temática das relações de gênero, e pela resistência das mulheres no cenário político e social como sujeitos

326 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro sociais, cujas demandas questionam a estrutura de poder e a organização da vida cotidiana baseada na dominação masculina. Assim, colocam no centro dos debates o tipo de democracia em exercício, lutando para afirmar a democracia de gênero como estratégia de empoderamento não só político, mas também socioeconômico e cultural das mulheres. Diante disso, é de suma importância o reconhecimento dessas políticas como necessárias para integração das mulheres de forma efetiva na sociedade. Consideramos que é necessário analisar a realidade atual e a feminização da pobreza para que possamos entender as demandas e toda a diversidade por trás dela. Lisboa ainda em seu levantamento, ressalta a necessidade da criação da “perspectiva de gênero” a partir de uma concepção crítica, para que possamos reconhecer o espaço das mulheres dentro da sociedade, resultando assim em uma sociabilidade mais democrática e diversa, trazendo visibilidade ao assunto. As representações de gênero são importantes porque geralmente se referem a uma dimensão de poder social. Da mesma forma que representa diferença, a imagem dos gêneros representa hierarquia, já que a relação entre gêneros é, historicamente, de poder e traz consequências para as definições do “eu”. O trabalho assume também uma condição de autoafirmação como mulheres provedoras e, assim, elas constroem sua autonomia diante do poder masculino. A capacidade de criar os filhos e de ter controle sobre o dinheiro, relacionadas com a atribuição de dona de casa e chefe de família, reforça a força feminina. O espaço doméstico apresenta-se como um território predominantemente feminino. As mulheres assumem posição ativa na esfera da família ao tomarem para si o comando de suas famílias enquanto “chefes” e tendem a quebrar a divisão de “papéis” onde o homem é o provedor, e a mulher, dependente e submissa.

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328 Anais do VIII Fórum Sociojurídico: os desmontes da Seguridade Social no atual contexto brasileiro