MEMÓRIA As múltiplas facetas do acadêmico Antonio Houaiss Homem de cultura, com vários interesses, ele foi um diplomata que se empenhou a desenvolver uma política externa independente e diversificada

Vilma Homero

eu nome, tal como o de Aurélio Bu- arque de Holanda, virou sinônimo de Sdicionário. Mas o fi lólogo, diplomata de carreira, ministro da Cultura, tradutor e acadêmico Antonio Houaiss (1915-1999) foi, sobretudo, um homem de cultura. Mas embora haja um vasto material escrito por ele e sobre ele, pesquisar o tema não é fácil. Isso porque esse material está disperso em fontes diversas, difi cultando o acesso aos interessados. Tarefa da qual o pesquisador Gustavo Saboia de An- drade Reis, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela), vem procurando se desincumbir, reunindo tudo em um só site. No caso o blog Memorial Digital Antonio Houaiss, onde todos os documentos que ilus- tram sua longa trajetória estejam disponíveis ao público interessado. Para levar o projeto adiante, ele contou com recursos do programa de Treinamento e Capacitação Técnica (TCT) . Por enquanto, Saboia já conseguiu concentrar no blog 241 artigos do fi lólogo publicados em jornal, 53 cartas de sua correspondência pes- Foto: Reprodução Foto: soal, 64 prefácios, posfácios, orelhas e capas

6 | Rio Pesquisa - nº 8738 - Ano IX MEMÓRIA de livros, 36 artigos científi cos, dois 2015, sob orientação da professora do Estado do (Uerj)”, verbetes em dicionário, e até mes- Susana de Castro Amaral Vieira, destaca o pesquisador, que afi rma mo 30 arquivos do Departamento da Universidade Federal do Rio ainda contar com o importante de Ordem Política e Social (Dops) de Janeiro (UFRJ). Em seguida, apoio e incentivo dos professores e um processo no Supremo Tribunal foi orientando do professor da Vivaldo Barbosa e Epitácio Brunet, Federal (STF) sobre Houaiss. Afi - Pontifícia Universidade Católica ex-presidente da FAPERJ, além de nal, homem de ideias progressistas, (PUC-Rio) e diretor de Inovação Anália Pinho. fi liado ao Partido Socialista Brasi- da Financiadora de Estudos e Pro- Sério e rigoroso, fruto da primeira leiro, seu pensamento certamente jetos (Finep) Pedricto Rocha Filho, geração nascida no Brasil de imi- desagradava ao regime militar que quando se deu início ao processo de grantes libaneses, Houaiss foi um governou o País de 1964 até 1985, consolidação do material recolhido. intelectual que pensava a realidade motivo que pode explicar o fato de “Para dar continuidade ao projeto, brasileira, preocupando-se sobretu- nunca ter chegado a embaixador. estarei sob orientação do professor do com a Educação. Como desta- Além disso, sua carreira no Ministé- André Rangel Rios, do Instituto de ca o pesquisador, entre suas várias rio de Relações Exteriores, iniciada Medicina Social, da Universidade facetas, havia a da preocupação em 1946, foi voltada para uma polí- tica externa brasileira independente e diversifi cada. “Ele foi defensor da abertura das relações comerciais brasileiras para novos mercados, sem fi car tão submetido às grandes nações”, diz o pesquisador. “Incentivador do projeto e grande amigo de Houaiss, Roberto Amaral me propôs o tema para o doutora- do e exigiu: ‘Quero que pesquise tudo sobre o Houaiss.’ Esse foi o ponto de partida para um trabalho que vem me apaixonando”, conta Saboia. Desenvolvendo o projeto desde 2012, ele acredita que o site será um resgate, o reconhecimento a um brasileiro que teve uma par- ticipação relevante na história da diplomacia e da língua brasileira. O pesquisador já conseguiu reunir o equivalente a sete gigabytes de material, desde matérias de jor- nal, fotos, vídeos, depoimentos e vários documentos de sua car- reira no Itamaraty. “Acho que até mudei meu estilo de escrever de tanto ler material dele e sobre ele”, confessa Saboia, que durante a realização da pesquisa esteve, até

O Memorial Digital Antonio Houaiss reúne um amplo acervo da produção acadêmica do intelectual, incluindo artigos e até documentos do Dops

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social, provavelmente acentuada Era também um homem de mui- pela formação com Anísio Teixeira Antonio Houaiss tos amigos, com quem dividia – um dos personagens centrais na teve papel relevante afi nidades políticas e intelectuais. história da Educação no País. “So- Entre eles, contavam-se o jurista cialista desde o fi nal dos anos 1940, na história da Evandro Lins e Silva, o médico Re- sua atuação na diplomacia também nato Kovach, os diplomatas Marcos foi pautada por essas ideias”, diz. língua brasileira Azambuja e Vasco Mariz, que também era historiador, e vários Como ele explica, “embora Houaiss e da diplomacia, nomes conhecidos, como Sergio nunca tenha chegado a embaixa- abrindo as relações Rouanet, que deu nome à Lei de In- dor, certamente por conta de suas centivo à Cultura, os compositores ideias, sua carreira no Ministério comerciais do País Vinicius de Moraes e Tom Jobim, de Relações Exteriores, iniciada em os escritores João Cabral de Mello 1946, foi voltada para uma política a novos mercados Netto, Antonio Callado e Antonio externa brasileira independente e Cândido, além de Roberto Amaral. diversifi cada. Ele foi defensor da Houaiss se colocava favorável à Mantinha correspondência com abertura das relações comerciais descolonização no continente afri- Carlos Drummond de Andrade e brasileiras para novos mercados, cano, que, segundo dizia, ocupava Pedro Nava, circulando com igual sem fi car tão submetido às grandes o papel de servir como uma grande desenvoltura entre a alta sociedade nações.” fazenda produtora de bens de ex- portação para a Europa. Ao mesmo e a intelectualidade. Em carta do início dos anos 1960, tempo, mostrava sua desesperança Na carreira diplomática, entre 1947 ao amigo Thiers Moreira, adido com os destinos que tomava a polí- e 1949, Houaiss foi vice-cônsul cultural na embaixada do Brasil em tica brasileira. “Possivelmente, ele do Brasil em Genebra, na Suíça, Portugal, embora a posição brasilei- estivesse antevendo os rumos do servindo também na ocasião como ra fosse a de não entrar em choque País, que culminariam no golpe de secretário da delegação permanente com os interesses portugueses, março de 1964 e lhe valeriam a cas- do Brasil junto à Organização das sação e a aposentadoria compulsó- Nações Unidas (ONU) na capital ria. Ele já havia sido punido como suíça e integrando as representações subversivo em 1953, durante o brasileiras às assembleias gerais governo Vargas, com o afastamento da Organização Internacional do de suas funções diplomáticas. Mas Trabalho (OIT), da Organização fora reintegrado à carreira em 1954, Mundial da Saúde (OMS) e da Or- o que equivaleu praticamente a um ganização Mundial de Refugiados. ano sabático. Em 1964, no entanto, De 1949 a 1951, serviu na embaixa- foi aposentado e teve a suspensão da no Brasil em São Domingos, na de seus direitos políticos pelos dez República Dominicana, e, de 1951 anos seguintes. E pelo menos até a 1953, em Atenas. De 1960 a 1964, 1984, permaneceu sob observação foi secretário e depois ministro da do Dops, o temido Departamento delegação permanente do Brasil de Ordem Política e Social. Afi nal, junto à ONU, em Nova York. Como sempre fi el ao socialismo, ele era membro da Comissão de Anistia de uma das cabeças pensantes do Presos Políticos de Ruanda-Urundi, PSB”, conta Saboia. examinou os processos de 1.220 presos políticos, todos anistiados em 1962 pela Assembleia Geral das Nações Unidas por proposta

Apaixonado pelo estudo da língua da comissão. portuguesa desde jovem, Antonio Houaiss deixou como legado o Como homem de letras, Houaiss dicionário que leva seu nome colaborou na imprensa do Rio de

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Foto: Lécio Augusto Ramos Janeiro e de São Paulo, tendo sido redator do Correio da Manhã entre 1964 e 1965. Como delegado do go- verno federal para países de língua ofi cial portuguesa (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe), participou da delegação brasileira no Encontro para a Unificação Ortográfi ca da Língua Portuguesa, realizado no Rio de Janeiro, em maio de 1986. Em 1988, organi- zou o Congresso Internacional de Tradutores, realizado no Institu- to Internacional de Cultura, em Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense. Foi nomeado para o Conselho Federal de Cultura, do Gustavo Saboia, do Cebela: pesquisador está à frente do projeto que tem como missão qual participou até a sua extinção. desenvolver uma biblioteca digital para ajudar a preservar a memória de Antonio Houaiss Em 1990, recebeu o Prêmio Moinho Santista, na categoria “Língua”. dar aulas de português aos 16 anos obra que lhe consumiu 15 anos de Como lembra o pesquisador, “Hou- e continuou trabalhando como pro- trabalho: o Dicionário Houaiss da aiss era enviado a colaborar em fessor a vida inteira. Foi membro da Língua Portuguesa. O dicionário foi vários eventos culturais, nos mais Comissão , criada concluído por sua equipe, hoje reu- diversos países”. Foi membro do por iniciativa de portaria do presi- nida no Instituto Antônio Houaiss Conselho Nacional de Política dente Juscelino Kubitschek, para de Lexicografi a, no Rio de Janeiro. Cultural, do Ministério da Cultura, consolidar os textos de Machado de Como fez questão de destacar o presidente da Academia Brasileira Assis e ampliada durante o regime amigo em discurso de Letras (ABL) e chegou a Minis- militar para incluir escritores da na ABL em comemoração ao seu tro da Cultura, em 1993, durante o língua portuguesa que merecessem centenário de nascimento, em 2015: governo Itamar Franco. Sobre a pre- ter seu cânon textual estabelecido “É muito difícil defi nir o homem sença de Antônio Houaiss na ABL, criticamente. Sua primorosa tradu- Antônio Houaiss, a partir de tudo o o colega imortal Arnaldo Niskier ção para o português de Ulysses, de que fez e representou para a cultura comentou: “Ele representou um James Joyce, foi bastante elogiada. brasileira (...). Multifacetado, ele grande benefício à nossa cultura. De Durante dez anos, Houaiss orga- sempre esteve pronto para assumir forma singela, ele chegou a comen- nizou as duas mais importantes as atividades que a vida colocou à tar, em certa oportunidade, sobre enciclopédias já produzidas no sua frente, com a devida compe- sua atuação na Casa de Machado de Brasil: a Delta-Larousse e a Mira- tência”. Para a colega acadêmica Assis: ‘Um acadêmico é um mortal dor Internacional. “Ele foi autor de Nélida Piñon, Houaiss “foi um um pouco à margem das punições dois dicionários bilíngues inglês- homem múltiplo, uma mentalidade, sociais. Então, pensei: se me fi zer -português, e organizou o Voca- uma cultura, uma visão de mundo acadêmico, poderei continuar a ser bulário Ortográfico da Língua polissêmica”. o Macunaíma que sou, mas talvez Portuguesa, da ABL, tornando-se um pouco protegido’.” o porta-voz brasileiro do projeto Pesquisador: Gustavo Saboia de Considerado um dos maiores co- do Acordo Ortográfi co da Língua Andrade Reis nhecedores da língua portuguesa Portuguesa, aprovado pelo Con- Instituição: Centro Brasileiro de nos tempos modernos, Antônio gresso Nacional em 1995”, destaca Estudos Latino-Americanos (Cebela) Houaiss mostrou seu apreço pelo o pesquisador. Terminou morrendo Apoio: Programa de Treinamento e assunto desde cedo. Começou a em 1999, sem ter visto completa a Capacitação Técnica (TCT)

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