EM AZUL, BRANCO E NEGRO: UMA EXPERIÊNCIA DE HISTÓRIA ORAL SOBRE O CARNAVAL DA (1988)

EDUARDO PIRES NUNES DA SILVA 1

À voz Lícia Caniné, a popular “Ruça

“Quem nós somos? Tem que responder isso... Nós brasileiros, somos o quê? Somos o quê? Somos produtos dessa mistura de raças! Então não importa qual aparência... O que importa é a tua essência, a consciência... O que importa é você saber que o racismo não cabe aqui, nem de lado nem de outro, nem de lado nenhum! [...] Os três sangues correm misturados mesmo nessa brasileirada toda.” (“RUÇA” apud DA SILVA, 2011:29)

Lícia Maria Maciel Caniné, que em codinome é “Ruça”, mulher branca, militante do movimento negro, madrinha da bateria da Vila Isabel desde a década de 1980 e freqüentadora de escolas de samba desde a juventude, fez sua estréia como presidente na Vila Isabel com um enredo essencialmente negro e repleto de memórias afro-descendentes: Kizomba – a Festa da Raça .

Em entrevista concedida ao autor para o trabalho As Vozes da Kizomba: O carnaval da Vila Isabel como manifesto negro (1988) 2 no primeiro semestre de 2011, Ruça desvelou os meandros de gestação daquele carnaval. Cabe dizer que, à época, ela era esposa do compositor , de renomada carreira artística. Martinho já havia desenvolvido o projeto “Canto Livre de Angola” desde os anos 1970 estabelecendo elos firmes entre sua carreira e vida pessoal com o país africano. Deste projeto desdobraram-se shows, discos e até mesmo o desfile da Unidos de Vila Isabel de 1988. Os elos entre Martinho e sua família com Angola eram tão fortes que Isabel Pedrosa chega a dizer que ele é de fato, nosso embaixador no solo africano.

“O Itamaraty jamais poderia realizar, com todos os meios ao seu alcance, o milagre de integração racial e multinacional que foi o Kizomba na Sapucaí, transformando o , por alguns

1 Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ) – Bolsista CAPES. Contato: [email protected] 2 Monografia apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, para conclusão e obtenção do título de Bacharel/Licenciatura em História. Orientação: Dra. Laurinda Rosa Maciel (FIOCRUZ) e Dra. Martha Campos Abreu (UFF). 2011/1.

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instantes mágicos, no epicentro do mundo” (PEDROSA apud DA VILA, 1998:9)

O desfile “Kizomba” da Vila Isabel inscreve-se em seu tempo e espaço por ter sido realizado em fins dos anos 1980, momento de reabertura política do Brasil, de consolidação do Movimento Negro e discussão da Constituinte promulgada no mesmo ano do desfile. O ano de 1988 marcava também o centenário da abolição no país e além da Vila Isabel, pelo menos outras três escolas de samba do grupo de elite do carnaval carioca (Grupo 1) fizeram enredos de temática estritamente afro-brasileira: Mangueira, Beija-Flor e Tradição. Segundo Amilcar Araújo Pereira o centenário da abolição foi considerado por diversos setores do movimento negro como o momento ideal para provocar a discussão sobre a situação do negro na sociedade brasileira (2010:227)

Ao conceder a entrevista, Ruça dizia que a principal inquietude para realizar aquele enredo era o seu descontentamento com a posição passiva do “povo brasileiro” diante do Apartheid que ainda era vigente na África do Sul. Em seu desejo de conscientização da população brasileira, ela contou que foi para o Movimento Negro com a intuição de despertar esse sentimento de manifestação nos brasileiros. Então eu a indaguei se o enredo de 1988, tinha a influência do Apartheid, e logo ela me respondeu: “Ah muito, claro! Claro... A luta pela liberdade de Nelson Mandela! É, a coisa, de mostrar a dignidade do povo da África, daqueles países na época, né? Tudo tem sua época... Hoje se fala muito em democracia, mas naquela época a gente precisava muito. A luta deles contra o colonialismo foi fantástica! Tanto que nós saímos com todos os líderes negros [fotografias em alegorias], de todos os países que lutaram pela sua independência, tiveram que passar por guerrilha e aí são homenagens. Naqueles homens que idealizaram, pensaram, comandaram as guerrilhas frentes de libertação... Em vários países você vê desde cientistas, médicos, intelectuais, poetas... [...] O pensamento vai muito além da cor da pele.”

Segundo a sinopse de enredo da escola, escrita por Martinho da Vila, Kizomba é uma palavra do Kimbundo, uma das línguas da República Popular de Angola, que significa encontro de pessoas que se identificam numa festa de confraternização. Certamente não haveria nomenclatura mais apropriada para o ideário daquele desfile do que “Kizomba”. Esta incomum sinopse mais se assemelhava a um texto manifesto, redigido com palavras de forte apelo e sendo a partir da sinopse de enredo que a ala dos compositores desenvolve o concurso

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de escolha dos sambas de enredo, as obras daquele ano tiveram contorno de palavras e melodias mais fortes.

SOB O MESMO “TETO”: A LUA E O BARRACÃO.

Após o carnaval de 1987 a Vila Isabel havia perdido sua quadra de ensaios, localizada no antigo campo do clube de futebol América, devido a saída da presidência do seu, então, patrono. Após esta perda, a escola contava apenas com uma sala na região administrativa do bairro e o barracão, localizado à época no Pavilhão de São Cristóvão junto às demais escolas de samba e como lembrava Ruça “separadas apenas por plásticos”.

Sem sede para realizar os ensaios daquele ano, Ruça contou em entrevista que falava aos compositores que a mesma lua que brilhava em Luanda era a lua que brilhava no céu do bairro. A lua era o “teto” que cobria a Vila Isabel para aquele carnaval, segundo a ótica da entrevistada e isso se refletiu no samba-enredo. Rodolfo, Jonas e Luis Carlos da Vila ganharam o samba que cantava em seu refrão principal: “Vem a lua de Luanda para iluminar a rua / Nossa sede é nossa sede, e que o Apartheid se destrua!”. Ruça contava, misturando tom de valentia e brincadeira: “o garçom atravessava a pista e ia com um chopp na bandeja para mim, enquanto eu fechava a rua e era xingada pelos motoristas”; já que o espaço de ensaios foi a rua principal do bairro e isso interferiu no trânsito. (apud DA SILVA, 2011:29)

Tais dificuldades eram constantes na elaboração daquele carnaval. A falta de recursos pela ausência de patronos, fez com que a escola tivesse uma estética visual de uma pobreza propositada. É típico dos responsáveis pela criação estética da escola de samba que os carros alegóricos sejam finalizados na concentração de desfile, num processo conhecido como arte final, mas a Vila Isabel em 1988, abusou desse recurso até mesmo como estratégia de mídia. Dizia Ruça: “Nós queríamos pegar de surpresa mesmo... ‘Tadinha da Vila...’”. Segundo ela o comentário nos bastidores do carnaval de 1988 era que a Vila Isabel iria “se arrasar” no desfile. Maria Laura Cavalcanti entende que a proximidade do carnaval confere ao barracão um ritmo febril, que o singulariza. (1994:134). O barracão da Vila, segundo leitura de Martinho (1998:223), ia “nascendo” e não era apressado e tenso. Ruça corrobora essa visão a medida que ia me contando que ela, como dirigente máxima, não “pressionava” os trabalhadores do barracão. Era devagar e lenta a produção de Kizomba, e por isso Martinho

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correlaciona isso com arte em oposição aos outros barracões, que estavam mais ligados à produção e reprodução . O grande salto estético daquele carnaval parecia ser a utilização da arte final. Porém, para uma boa realização deste processo de arte final é preciso contar com a meteorologia no dia do desfile, pois a chuva poderia desfazer o planejado. Ruça dizia que havia nuvens no céu durante todo o período em que a escola estava na concentração e ameaçava chover: “Eu falei ‘se chover vai acabar com a escola’. Eu me ajoelhei e saudei Tempo, é um orixá de Angola, da nação de Angola. E falei com ele se eu merecer ‘sou sua filha’. Se eu merecer, bem, deixar cair a água em cima da minha escola. Mas se eu não merecer pára como essa água agora. Deixa minha escola passar! E aí parou de chover! Não choveu mais até a Vila terminar... Quando a Mangueira entrou na Avenida desabou o aguaceiro! 3 Coincidência? Eu não acho! Coincidência pra mim não existe. Eu acho que foi o meu pedido. [...] Tanto sacrifício que todos nós tivemos e aí uma chuva vai acabar com todo o trabalho? É cruel demais! Mas ia acabar mesmo, porque era tudo muito frágil.” (apud DA SILVA, 2011:47)

A narrativa de Ruça contempla a noção de sacrifício , que segundo Arno Voguel, Marco Mello e José de Barros (2007) é a pedra angular da piedade afro-brasileira. Sacrifício esse feito por Ruça ao se ajoelhar no chão num gesto comum aos rituais religiosos.

A CONQUISTA DA AVENIDA

A tensão e a ansiedade que precedem o desfile são marcadas pela movimentação constante da harmonia em idas e vindas para armar a escola de samba (CAVALCANTI, 1994:211). Em específico sobre a concentração de 1988 Ruça contava: “Tinha corrido a escola toda, tentando armar a escola, com a harmonia. E a escola não se armava na concentração. Impressionante... Eu não sei como ela entrou armada. Ela entrou armada direitinho. Milagre! Milagre! E eu sei lá... é uma das coisas que eu não sei explicar... Porque eu dizia assim: ‘Caramba, não vamos conseguir’. [...] Caramba! ‘Olha, cinco minutos pra entrar... Vai entrar, vai entrar, vai entrar...’ E aí seja o que deus quiser... Tem alegoria, tem baiana, tem bateria, tem mestre sala e porta bandeira... A escola taí... O resto... E entraram direitinho, perfeito, impressionante.” (apud DA SILVA, 2011:39)

3 Cabe dizer que a Mangueira era a escola que disputou com a Vila Isabel o campeonato até as notas finais naquele ano.

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Visto que a Vila Isabel ao pisar na pista de desfile, já causava frisson no público, Ruça descreve com detalhes o momento em que durante o desfile começou a entender que a sua grande aposta, de ganhar ou perder daquele ano, tinha dado certo. “Quando a escola entrou mesmo, eu no meio dela andando e vendo, olhando o povo e vendo o povo chorar. E componente chorando. E aí até que vi a imprensa andado no meio chorando. Quando eu vi um jornalista homem chorando dentro da avenida. Eu já estava arrasada, falei assim: - ‘Acabei com a escola, fiz uma ‘M’ da minha escola. Tá todo mundo com pena, chorando de pena da Vila Isabel...’ E aí eu peguei o jornalista assim pela camisa, e falei: - ‘Tá chorando fala! Tá chorando porque?’ Aí ele não conseguia falar... - ‘Ruça, Ruça...’ Aí eu o sacudia: - ‘Fala porra! O que é isso? Tá tão ruim assim? Eu acabei com a minha escola?’ Aí ele disse assim: - ‘Não Ruça! Não ta vendo o povo ta chorando...’ Eu: - ‘Mas de que porra? Tá tão ruim?’ Aí ele: - ‘Não, de emoção. De Emoção Ruça! Tá lindo que isso!’ Eu: - ‘Ah, então fora! E sai de dentro da escola que você ta atrapalhando!’” (“RUÇA” apud DA SILVA, 2011:39)

O desfile de escola de samba produz um sentimento sinestésico no indivíduo que produz o espetáculo. Este partícipe não consegue dimensionar a sua real posição naquele momento no evento e por isso é muito cabível a dúvida da presidente sobre qual sentimento aquele desfile estava causando. Contava ela que os espectadores estavam imbuídos em ajudar a Vila Isabel naquela apresentação. Numa apresentação bem-sucedida, a dimensão entre espectadores e brincantes torna-se, senão totalmente abolida, muito diminuída (CAVALCANTI, 2002:50). Segundo o jornalista João Luiz de Albuquerque os desfilantes personificaram os personagens do enredo: “Só podia ser coisa dos orixás que chegaram por estas praias no dia em que o primeiro navio negreiro aportou. Até quem não acredita nestas coisas, como eu, podia jurar pelo que fosse. Mas a verdade é que, ali na pista, dava pra ver, dava pra sentir: em pleno Rio aquelas pessoas desfilando pela Vila Isabel tinham deixado de existir. Não eram mais elas mesmas, e sim os personagens do enredo nascido e criado pelo talento de Martinho da Vila.” (apud DA VILA, 1998:249)

Completa o jornalista: “Rainhas e reis tomaram o corpo e a mente de moradores do morro dos Macacos”. O “efeito simbólico” trazia a noção de luta para os partícipes. Maria

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Helena Dutra ( apud DA VILA, 1998:239) descreveu que enquanto a escola se concentrava, Martinho da Vila pedia que todos os seus componentes fossem guerreiros por uma noite. Misturados aos sambistas da escola celeste da Vila, estavam grupos de origem afro- brasileira de todo o país que foram convidados para o desfile. Contava Ruça orgulhosa: “Eu, eu convidei os blocos... Os grupos afros, por exemplo... Aqui no Rio, os Filhos de Dan, os filhos de Gandhi. Cada um com a sua roupa mesmo, no carnaval daquele ano! Da Bahia trouxe o Ileaê, o Olodum... Veio todo mundo!” (apud DA SILVA, 2011:43)

O carro alegórico que representava um banquete encerrava o desfile. Ao mesmo tempo em que era uma alegoria, aquele carro era também uma mesa repleta de comida que ia alimentando os desfilantes mais próximos. As comidas daquele carro alegórico foram preparadas por Dona Filomena, a quem Ruça identifica com muito apreço como “cozinheira oficial” da Vila Isabel. A lógica afro-brasileira de compartilhamento, inclusive e principalmente do alimento, se fazia extremamente presente na representação da alegoria do banquete, ou nas palavras do samba de enredo, do ajeum 4. Aproximava-se a Praça da Apoteose e com ela o fim da Avenida, a dispersão. É sobre esse momento que Ruça ouviu dizer que aconteceu ali um fato curioso: uma madame desceu do camarote para a dispersão para comer das comidas do carro alegórico do banquete. E como se isso não fosse inusitado o bastante, ela ainda conta que a madame disputou aos tapas as comidas com um mendigo. Michel Pollak salienta que elementos constitutivos da memória individual e coletiva podem ser acontecimentos vividos pessoalmente ou por tabela (1992:201). O jornalista Sérgio Cabral narra, à época, de onde partia a disposição de luta e partilha dos componentes para os leitores do Jornal O Dia: “E desejo ressaltar que contribuiu para essa disposição dos componentes a conduta exemplar do casal Ruça e Martinho da Vila. Até o momento em que a escola chegou à concentração, eles foram guerreiros. Dali em diante, foram nobres. Não os vi berrando aflitos durante o desfile, como fazem os dirigentes mais tensos. Pelo contrário; quando os pude ver (e esses momentos foram raros, porque ambos foram discretos o tempo todo), transmitiam segurança e tranqüilidade. Pareciam convencidos de que acabavam de liderar um trabalho para que a Vila fizesse um desfile histórico, o que de fato aconteceu.” (apud DA VILA, 1998:239)

APOTEOSE

4 Ajeum no léxico do Candomblé significa “banquete”.

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“Quando eu saí, o povo lá da dispersão tava olhando na rua, tinha as barracas com as televisõeszinhas. E eu dizia assim: ‘Ué, é campeã?’... E todo mundo me saudando, ‘É Campeã! A Vila é Campeã!’. E foi a campeã do povo! E saiu no dia seguinte no jornal ‘Povo aclama Vila Isabel como campeã!’ Campeã do povo! Vila Isabel como campeã do povo e tal! Aí eu falei: ‘Ah então o negócio tá bom!’. Ganhei o carnaval, né... Ganhei, pois se o povo gostou...” (“RUÇA” apud DA SILVA, 2011:50)

Ela demonstra surpresa com o resultado popular do desfile que havia acabado de liderar. Durante a entrevista, Ruça construía uma auto-imagem ligada às questões latentes ao popular, como preconceito racial que matiza nossa sociedade. Segundo a antropóloga Lília Moritz Schwarcz, o preconceito racial no Brasil é mais vivido que afirmado e pergunta: “Como refletir sobre o racismo se cada um individualmente não se considera racista, mas freqüentemente age como tal?” (1996:77). O desfile da Vila Isabel emergia dos anos 1980 em plena discussão das questões raciais e por esse motivo expressou um manifesto negro na Sapucaí. Ultrapassou os limites de uma narrativa da regra geral dos desfiles de escolas de samba, promoveu inquietude e comoção nos espectadores. Martinho da Vila vai além dessa perspectiva e diz que aquele desfile influenciou os desfiles de anos posteriores: “Empenhamos até a alma nos preparando para fazer um desfile de supercampeã, com banquete popular e tudo mais que mudou a cabeça e o discurso do Joãozinho Trinta, levando-o a trocar, no ano seguinte, o luxo reluzente pelo lixo deslumbrante.” (DA VILA, 1998:248)

Apesar da aclamação do público, a desconfiança de que o desfile não poderia ser campeão pairava. Porém 42 anos após sua fundação, a Vila Isabel se tornava a campeã do carnaval que comemorava o centenário da abolição. Relatava a revista Fatos & Fotos: “Um título que tocou fundo na alma da cidade e que fez Ruça, a presidente da agremiação, perder a voz e misturar riso e choro quando carregada pela multidão enlouquecida com a vitória” (apud DA VILA, 1998:245)

Era a primeira vez que uma presidente mulher conquistava o título máximo do carnaval carioca 5. Durante a narrativa do desfile da escola, Ruça me dizia que era preciso mostrar que uma mulher era capaz de vencer. Neste pensamento ela marca a cisão de gênero ainda existente entre os dirigentes do carnaval carioca à época: “Houve muito machismo, não da parte da imprensa, de alguns homens do samba, não de compositores e componentes, mas presidentes, figuras alheias ao samba”. Essas “figuras alheias” são por sua vez, os sambeiros ,

5 Na própria Vila Isabel, Pildes Pereira já havia sido presidente nos anos de 1970.

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que no estudo antropológico de José Sávio Leopoldi, podem fazer parte da organização formal do carnaval, mas não se identificam com as práticas dos sambistas (2010:147). Sobre a liderança e o campeonato Ruça narrava: “Eu acho que aquilo foi uma missão nossa. Eu acho que foi divino, uma missão... A gente tinha que atingir o maior número possível de pessoas com uma mensagem. Mensagem contra o racismo, contra as formas de opressão, uma mensagem de liberdade... Acho que isso a gente conseguiu. De coletividade, o quanto é importante o trabalho coletivo.” (apud DA SILVA, 2011:56)

Essas mensagens iam ao encontro da diretriz política de minha entrevistada. Narrava que, perguntada à época, como tinha conseguido realizar aquilo respondia: “Eu conduzi a escola com todos os ensinamentos que eu tive no partido [Partido Comunista Brasileiro].” Martinho da Vila salientava que a comemoração daquela vitória tinha extrapolado o espaço do bairro de Vila Isabel:

“Surrealismo puro. E as comemorações não foram só no bairro de Noel, porque tem gente de lá espalhada por toda parte, que nem cearense. Em todo lugar tinha festa e em outras cidades também. Duas Barras 6 fez carnaval. Luanda, a Aruanda das umbandas, capital de Angola, também festejou. O nosso canto extrapolou, ecoou além- fronteiras.” (DA VILA, 1998:250)

ENLACE TEÓRICO: MEMÓRIA, IDENTIDADE E ORALIDADE

Aquela vitória também guardou o desfecho ideal para aquele desfile como manifesto; além de tocar o público, o desfile conquistou o júri oficial. “Falar de África” como me dizia Ruça, construía um sentimento de pertencimento com aquele passado, sentimento entendido pelo público e júri por conta da consagração da escola. Michel Pollak lembra que certos grupos europeus com origem em antigas colônias na África têm uma memória de herança familiar tão forte que são transformadas em sentimento de pertencimento. “Locais muito longínquos, fora do espaço-tempo da vida de uma pessoa, podem constituir lugar importante para a memória do grupo, e por conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento a esse grupo” (POLLAK, 1992:202)

A memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais, intergrupais e que opõe grupos políticos diversos (:204-205). Segundo argumentação de Manoel Salgado Guimarães, vivemos um tempo nas sociedades ocidentais contemporâneas em que ganharam

6 Cidade natal de Martinho da Vila.

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força os investimentos sociais nas tarefas da memória ( apud ABREU; MATTOS; DANTAS, 2009:182). A memória como importante detentora do passado se sedimenta como espaço de disputa e conflito. Rearranjos sobre o passado negro e escravista foram apresentados naquele desfile e também foram reapresentados a mim, através da oralidade de Ruça. O caráter subjetivo das fontes salta aos olhos do historiador e faz com que este trabalho seja um ângulo de visão possível sobre o evento, jamais o único. Alessandro Portelli é contundente na análise do uso das fontes orais. Ele diz que tanto na escravidão como na antropologia, o poder de julgar e definir pertence institucionalmente a quem maneja o chicote, a lapiseira ou o gravador (1996:62). Cabe dizer que a utilização da História Oral só é possível quando o partícipe do evento se dispõe a falar e entregar as suas estórias ao historiador. Nesse campo tenho que mencionar Ruça, como personagem fundamental para a elaboração desta pesquisa, dando liberdade ao deixar com que eu tocasse nessas histórias da Unidos de Vila Isabel. “A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores e alunos a se tornarem companheiros de trabalho. Traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade. Ajuda os menos privilegiados, e especialmente idosos, a conquistar dignidade e autoconfiança. Propicia o contato – e, pois, a compreensão – entre classes sociais e entre gerações. E para cada um dos historiadores e outros que partilhem das mesmas intenções, ela pode dar um sentimento de pertencer a determinado lugar e a determinada época. Em suma, contribui para formar seres humanos mais completos. Paralelamente, a história oral propõe um desafio aos mitos consagrados da história, ao juízo autoritário inerente a sua tradição. E oferece os meios para uma transformação radical no sentido social da história.” (THOMPSON, 1992:44)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros Castro. Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: FUNARTE/UFRJ, 1994.

______. Os sentidos no espetáculo . In: Revista de Antropologia . v. 45, n.1, pp. 37-78, 2002.

DA VILA, Martinho. Kizombas, Andanças e Festanças . Rio de Janeiro: RECORD, 2ª ed, 1998.

______. Kizomba - A festa da raça. Sinopse de enredo da Unidos de Vila Isabel, datilografado, 1988.

DA SILVA, Eduardo Pires Nunes. As Vozes da Kizomba: O carnaval da Vila Isabel como manifesto negro (1988). Monografia de conclusão do curso de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.

LEOPOLDI, José Sávio. Escolas de Samba, ritual e sociedade . Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.

PEREIRA, Amilcar Araújo. O mundo negro: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). Tese de doutorado em História Social. PPGH, Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2010.

POLLAK, Michel. “Memória e identidade social” In: Estudos Históricos , Rio de Janeiro, FGV, vol. 5, n. 10, pp. 200-212, 1992.

PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos – narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. In: Tempo, Niterói, n. 2, pp. 59-72, dez. 1996.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Negras Imagens : Ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1996.

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VOGUEL, Arno; MELLO, Marco Antônio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de. Galinha D’Angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: PALLAS, 2007.