ETNOMOTRICIDADE DOS POVOS INDÍGENAS DA ALDEIA UMUTINA: CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

COREZOMAÉ, Lennon Ferreira 1 - UFSCar

GONÇALVES JUNIOR, Luiz 2 - SPQMH / UFSCar

LEMOS, Fábio Ricardo Mizuno 3 - CEUCLAR / SEE-SP / SPQMH / UFSCar

Grupo de Trabalho - Diversidade e Inclusão Agência Financiadora: PIBIC / CNPq

Resumo

O presente trabalho foi motivado pela infeliz constatação de que as aulas de educação física escolar têm se restringido ao desenvolvimento do esporte, reduzindo assim, o universo da Motricidade Humana, circunscrevendo-o, não raro, ao contexto cultural estadunidense e/ou europeu, em detrimento das potencialidades que podem ser exploradas ao propor a vivência de outras manifestações, oriundas da diversidade cultural de diferentes povos. Diante dessa realidade e entendendo a educação física como um dos componentes curriculares que pode e deve contribuir para apresentação, diálogo e reflexão acerca da diversidade cultural, o objetivo da investigação foi compreender a etnomotricidade dos povos indígenas habitantes da Aldeia Umutina, atentando para a compreensão dos processos educativos relacionados com jogos, brincadeiras, lutas, danças, festas, histórias, cantos e rituais. A trajetória metodológica foi fundamentada na História Oral, mais especificamente, na Tradição Oral, a partir da qual, foram realizadas entrevistas, em janeiro de 2012, com dez pessoas indígenas da Aldeia Umutina, localizada no município de Barra do Bugres, . É importante salientar que um dos pesquisadores faz parte do povo Umutina e tem boa compreensão desse meio cultural, o que, diante da metodologia adotada, foi um facilitador. Como resultados,

1 Licenciando em Educação Física pela Universidade Federal de São Carlos (EF/UFSCar). Membro do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF/UFSCar). Membro do Centro Cultural Indígena da Universidade Federal de São Carlos (CCI/UFSCar). E-mail: [email protected]. 2 Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Lisboa. Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor Associado do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana da Universidade Federal de São Carlos (DEFMH/UFSCar). Presidente da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH). Coordenador do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF). Coordenador Adjunto da Cátedra Joel Martins. E-mail: [email protected]. 3 Doutor em Educação pela UFSCar. Professor do Centro Universitário Claretiano de Batatais (CEUCLAR) e da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP). Pesquisador da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH) e do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF/UFSCar). E-mail: [email protected].

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emergiram dos discursos quatro categorias temáticas: A) Exploração dos Indígenas e de seu Território pela Manipulação e/ou Imposição dos Wasse ; B) Congraçamento entre as Distintas Etnias da Aldeia Umutina; C) Afirmação da Cultura dos Povos Indígenas da Aldeia Umutina; D) Trabalhos Manuais dos Povos Indígenas da Aldeia Umutina. É possível considerar, a partir dos resultados, que a descrição da etnomotricidade dos povos indígenas da Aldeia Umutina, com todas as suas interligações com o viver destes povos, que, fundamentalmente, não fragmenta as diversas esferas da vida, nos indicou a importância da resistência cultural, o que pode se constituir como alternativa para ações escolares, incluindo a educação das relações étnico-raciais.

Palavras-chave: Etnomotricidade. Tradição oral. Diversidade. Educação das relações étnico- raciais.

Introdução

Nas aulas de educação física escolar 4 comumente observamos o esporte como conteúdo por vezes exclusivo, o que acaba por reduzir o universo da Motricidade Humana, circunscrevendo-o, não raro, ao contexto cultural estadunidense e/ou europeu do futebol, voleibol, basquetebol e handebol, em detrimento das potencialidades que podem ser desenvolvidas ao propor a vivência de outras manifestações da Motricidade Humana (jogos, brincadeiras, lutas, danças), oriundas da diversidade cultural de diferentes povos que construíram e constroem o Brasil, tais como os africanos, os indígenas e os orientais (GONÇALVES JUNIOR, 2007). Compreendemos, com Freire (2005, p. 156), que a atenção à diversidade não deve ser tratada como “[...] justaposição de culturas, muito menos [como] poder exacerbado de uma sobre as outras, mas [como] liberdade conquistada , no direito assegurado de mover-se cada cultura no respeito uma da outra, [...] sem medo de ser diferente”. Neste sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Física (BRASIL, 1997, p. 7) indicam a importância de se: “[...] conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação”. O mesmo documento indica ainda que:

4 Manuel Sérgio, idealizador da Ciência da Motricidade Humana, prefere o uso da expressão Educação Motora ao invés de Educação Física, conforme explicita em diversos de seus escritos, em particular no texto: “Educação motora: ramo pedagógico da cmh”. In: SÉRGIO, Manuel. Motricidade humana: contribuições para um paradigma emergente. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. p. 67-89. No entanto, nesta pesquisa utilizaremos preferencialmente Educação Física por ser a nomenclatura oficial do respectivo componente curricular.

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A Educação Física permite que se vivenciem diferentes práticas corporais advindas das mais diversas manifestações culturais e se enxergue como essa variada combinação de influências está presente na vida cotidiana. As danças, esportes, lutas, jogos e ginásticas compõem um vasto patrimônio cultural que deve ser valorizado, conhecido e desfrutado. Além disso, esse conhecimento contribui para a adoção de uma postura não-preconceituosa e discriminatória diante das manifestações e expressões dos diferentes grupos étnicos e sociais e às pessoas que dele fazem parte (BRASIL, 1997, p. 28-29).

Diante dessa situação e entendendo a Educação Física como um dos componentes curriculares que pode e deve contribuir para apresentação, diálogo, reflexão e valorização da diversidade cultural, desenvolvemos o presente estudo, que teve como foco a etnomotricidade, entendida como ações (jogos, brincadeiras, lutas, danças, festas, histórias, cantos e rituais) com características próprias de um povo/comunidade, desenvolvidas com intencionalidade 5 relacionada a processos educativos de tradição e resistência de tais manifestações (GONÇALVES JUNIOR, 2010). Explicitamos que a etnomotricidade ancora-se na ciência da motricidade humana de Manuel Sérgio (1994), e na pedagogia dialógica de Paulo Freire (2005; 2006), as quais, entre outras influências em suas respectivas constituições, têm suporte na fenomenologia existencial de Maurice Merleau-Ponty (1996). Assim, nesse estudo, objetivamos compreender a etnomotricidade dos povos indígenas habitantes da Aldeia Umutina, atentando para a compreensão dos processos educativos relacionados com jogos, brincadeiras, lutas, danças, festas, histórias, cantos e rituais.

Trajetória Metodológica

Sabendo da importância das histórias dos povos indígenas e buscando fortalecê-las por meio da pesquisa que realizamos, fundamentamos nossa metodologia na História Oral, pois a mesma possibilita que:

[...] minorias culturais e discriminadas – principalmente mulheres, índios, homossexuais, negros, desempregados, pessoas com necessidades especiais, além de migrantes, imigrantes e exilados – [encontrem] espaço para validar suas experiências, dando sentido social aos lances vividos sob diferentes circunstâncias (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 26).

Compreendemos História Oral conforme Meihy e Holanda (2007, p. 17), ou seja, como “[...] recurso moderno usado para a elaboração de registros, documentos, arquivamento

5 “Comportamento corpóreo-mundano e existencial, no qual se constitui e reconstitui o mundo significado” (FIORI, 1986, p. 4)

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e estudos referentes à experiência social de pessoas e de grupos. Ela é sempre uma história do tempo presente e também reconhecida como história viva”. A história oral, em acordo com Meihy e Holanda (2007, p. 26) também permite fazer “outra história”, ou seja, possui “[...] gênese diferenciada do conjunto estabelecido oficialmente”, inclusive atentando para “[...] setores desprezados por outros documentos, [...] ao filtrar as experiências do passado através de narradores no presente” (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 29). Optamos por um dos segmentos de História Oral denominado de Tradição Oral. Dessa forma realizamos levantamentos de informações anteriores à realização das entrevistas, visando melhor adequar a formulação das questões temáticas que seriam realizadas junto aos colaboradores entrevistados da Aldeia Indígena Umutina. Levamos em consideração que um dos pesquisadores faz parte do povo Umutina e tem boa compreensão desse meio cultural, sendo um facilitador, pois os autores Meihy e Holanda (2007, p. 41) compreendem que Tradição Oral não se limita apenas a entrevistas, mas a:

Viver junto ao grupo, estabelecer condições de apreensão dos fenômenos de maneira a favorecer a melhor tradução possível do universo mítico do segmento é um dos segredos da tradição oral [...] A complexidade da tradição oral reside no reconhecimento do outro nos detalhes auto-explicativos de sua cultura.

Como procedimento de recolha de dados, adotamos a entrevista, que, no contexto da história oral, pode ser compreendida como o suporte material derivado da oralidade expressa para esse fim (MEIHY; HOLANDA, 2007). Nesse estudo, as entrevistas foram registradas em áudio e imagem através de câmera fotográfica / filmadora digital e transcritas na íntegra, ou seja, sem mudar elementos do vocabulário e configurando fonte oral. Posteriormente, as transcrições passaram pelo procedimento da transcriação, no qual as descrições dos colaboradores foram reordenadas, realizando-se correções do ponto de vista da língua portuguesa (MEIHY; HOLANDA, 2007), haja vista que alguns entrevistados falam originariamente línguas indígenas e, com alguma dificuldade, a língua portuguesa. Visando maior flexibilidade na obtenção de informações junto aos colaboradores, as entrevistas foram realizadas na forma de diálogo, assim, havia, para entrevistador e entrevistado, a possibilidade de ampliar a reflexão diante das duas pautas inicialmente previstas: 1- Com quem e de que maneira você aprendeu jogos, brincadeiras, lutas, danças, festas, histórias, cantos e rituais dos povos indígenas habitantes da Aldeia Umutina? 2- Quais

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e como se desenvolvem jogos, brincadeiras, lutas, danças, festas, histórias, cantos e rituais dos povos indígenas habitantes da Aldeia Umutina? Também foram agrupados os trechos transcritos referentes a um mesmo assunto que, no momento da fala espontânea, ficaram isolados. O objetivo foi dar mais sentido à palavra dita na sua transposição para a escrita, com o cuidado de não alterar as ideias comunicadas. Explicitamos que foram entrevistadas, em janeiro de 2012, dez pessoas indígenas na Aldeia Umutina: Pedro Amajunepa (Umutina de 53 anos), Gonçalina Amajunepa (Pareci de 54 anos), Firmino Torika Kiri (Umutina e de 68 anos), Joaquim Kupodonepá (Umutina de 75 anos), Jovail Amajunepa (Umutina de 36 anos), Antonio Uapodonepa (Umutina de 96 anos), Dirce Parecis (Pareci de 56 anos), Itamar Maitawa Tan Huare (Bakairi e Pareci de 22 anos), Cleomar Miauhe Tan Huare (Bakairi e Pareci de 24 anos) e Edilene Corezomaé Monzilar (Pareci e de 21 anos). Observamos ainda que todos os colaboradores entrevistados optaram em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, devidamente assinado, pelo uso do nome próprio e que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Carlos, contando também com autorização da Cacique da Aldeia Indígena Umutina e do Chefe do Posto local da FUNAI. Salientamos que a investigação ocorreu junto aos residentes na Aldeia Indígena Umutina, localizada atualmente entre o Rio Paraguai e o Rio Bugre, no município de Barra do Bugres, estado do Mato Grosso, a 180 quilômetros da capital, Cuiabá (UMUTINA, 2013). Para se ter uma melhor compreensão do contingente populacional Umutina, em 1862, havia aproximadamente 400 pessoas. Já em 1911, passaram a contar com 300 indivíduos, porém, oito anos depois, um surto de sarampo reduziu a população para 200 indígenas, vivendo em difíceis condições. Em 1923, um relatório do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) registrou em torno de 120, e em 1943 menos de 73, a maior parte vivendo no posto Fraternidade Indígena, que hoje é identificada como Aldeia Indígena Umutina. “Nesta mesma época viviam 23 índios na última aldeia existente no alto do rio Paraguai, que ficaram conhecidos como ‘os independentes’, por recusarem qualquer tipo de contato com os não- índios” (UMUTINA, 2013, s/p). Tal local era designado de “maloca”, mas deixou de existir em meados da década de 1940, isto porque, além dos conflitos, uma epidemia de coqueluche e bronco-pneumonia reduziu seu número para 15 pessoas, e os poucos sobreviventes se encaminharam também ao posto, onde se deram diversos casamentos entre etnias. Em 2009 a

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população era estimada em 445 pessoas, de 8 povos distintos: Umutina, Bakairi, Bororo, , Kayabi, Manoki, Nambikwara, Pareci (UMUTINA, 2013). Para estabelecer uma compreensão dos dados coletados, os discursos obtidos foram organizados na forma de categorias temáticas, nas quais agrupamos expressões ou ideias em torno de um tema em comum, sendo que no processo de análise emergiram quatro categorias: A) Exploração dos Indígenas e de seu Território pela Manipulação e/ou Imposição dos Wasse ; B) Congraçamento entre as Distintas Etnias da Aldeia Umutina; C) Afirmação da Cultura dos Povos Indígenas da Aldeia Umutina; D) Trabalhos Manuais dos Povos Indígenas da Aldeia Umutina.

Apresentação dos Resultados

A) Exploração dos Indígenas e de seu Território pela Manipulação e/ou Imposição dos Wasse

Nesta categoria observamos que houve a tentativa dos wasse (não indígenas), de impor a sua cultura aos indígenas, proibindo os povos da Aldeia Umutina de praticar as suas tradições, por não as considerarem civilizadas. Ressaltamos, com base nos dados das entrevistas, que os não indígenas utilizaram da força e também a persuasão para conseguirem a mão de obra indígena para os diversos trabalhos na lavoura, sem qualquer remuneração, sendo os indígenas que não aderiam ao trabalho, julgados como vagabundos. Muitos também foram forçados a se mudar de sua aldeia original (maloca) e, pouco a pouco os não indígenas buscaram imprimir-lhes a “invizibilização” e esquecimento de suas raízes, conforme afirma Joaquim:

Faz tempo quatro Umutina começaram a fazer as festas aqui na aldeia, eles estavam fazendo as festas perto do galpão onde o povo não indígena e indígena fazem palestra, mas ficou faltando uma festa para eles fazerem porque o chefe de posto da época os proibiu de fazer a última festa, então, os Umutina falaram, “nós temos que fazer essa festa, pois esta que é a mais perigosa e se nós não fazermos os espíritos vão tirar nós todos daqui”, e foi fato, os Umutina não fizeram a última festa e morreram, foi quando morreu o pai da minha esposa, meus cunhados e mais dois rapazes, somente Jula Paré que escapou, porque ele era criança e não deixaram ele participar de nenhuma das festas.

Também observamos histórias dos povos da aldeia Umutina sobre os contatos com os não indígenas, sendo que a maioria deles envolveu conflitos sangrentos em que houve ataque dos não indígenas à maloca e às Aldeias do povo Umutina conforme expressa Gonçalina:

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Depois que passou toda a briga, os não indígenas já haviam colocado fogo em tudo e o povo Umutina havia corrido para o mato, assim, depois de um dia inteiro na mata os Umutina voltaram pouco a pouco para a aldeia para ver o que tinha acontecido. Encontraram muitas pessoas mortas e as casas deles queimadas.

Houve ainda casos de rapto de mulheres e crianças:

Os Umutina falavam que viam uma casa que flutuava na água, eles não sabiam que era um navio que estava no Rio Paraguai. Foi dessa vez que os não indígenas pegaram muitas mulheres indígenas novas, cerca de dez a doze anos de idade e levaram embora e nunca mais o povo Umutina as viu de novo (Gonçalina).

Curioso, embora triste, e elemento que nos fez perceber o absoluto não cuidado, não conhecimento mínimo e não respeito à diversidade quando dos primeiros contatos realizados pelos não indígenas junto ao povo Umutina é que, quando os Umutina tentavam se comunicar com os não indígenas, eram atacados, pois os mesmos não compreendiam a saudação de boas vindas Umutina, denominada “saudação agressiva”, conforme asserção de Gonçalina:

[...] quando os Umutina viam uma pessoa sacudiam o corpo todo, iam para trás, para frente e para os lados, era muito bonito o cumprimento deles, mas quando eles faziam para os wasse, os mesmos começavam a atirar neles. Finado Maxipá mostrou para mim como eles cumprimentavam, mas eu não lembro direito, como na época as pessoas não entendiam, matavam os Umutina. Na época em que conheci finada Zakaru, ela fez a saudação deles para mim, agora você pode reparar na ema, ela também faz desse jeito quando vê a gente sacode a cabeça, balança o corpo e abre as asas, depois que os Umutina faziam tudo isso eles ainda abriam os braços para cumprimentar as pessoas. Só não cumprimentavam as pessoas quando iam para guerra. Os Umutina tinham uma lança que carregavam, quero dizer espada, eles seguravam nessa madeira, sacudiam e batiam a espada duas vezes no chão e falavam “miticami”.

Também desvelamos situações de engodo dos wasse em relação aos Umutina, por exemplo, na descrição de Pedro:

[...] havia um pessoal lá para cima no Rio Bugre que convidaram os Umutina para irem lá dançar, assim, os Umutina foram dançar todos pintados e com adornos, mas enquanto um pouco dos Umutina dançavam, um pouco ficou escondido no mato. Então você vê que os Umutina não são bestas, mas enquanto os Umutina dançavam os não indígenas que convidaram eles começaram a atirar neles, e os Umutina que estavam no mato ficaram somente olhando os que estavam dançando cair no chão quando eram atingidos pelos tiros. Como eles não sabiam o que era arma, pois nunca tinham visto uma antes, correram assustados e foram embora e passando uns dias eles retornaram no local onde seus parentes haviam morrido e ficaram à espreita, e depois conseguiram matar muitas pessoas que tinham matado os parentes deles.

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B) Congraçamento entre as Distintas Etnias da Aldeia Umutina

Observamos nesta categoria que apesar de haver distintas etnias presentes na Aldeia Umutina houve congraçamento entre as mesmas. Dirce afirma que houve jogos praticados juntos pelas distintas etnias que moram na Aldeia, desde que era menina, na década de 1960:

[...] naquela época ainda vi os Umutina fazer algumas brincadeiras e jogos. Lembro- me de vários jogos que os Umutina jogavam junto com os Pareci, também vinham pessoas da Barra do Bugres e das redondezas para participarem dos torneios de futebol, então, aqui existiam muitos jogadores bons que eram o Edson, o Virgilho, o Pedro, o marido da Maria, o Leu, o cinquentão e até meu esposo Clarindo jogava, eu lembro que tinham vários jogadores, mas eu não estou me lembrando de todos os que jogavam.

Ressaltamos ainda que, conforme identificamos na apresentação de cada um dos colaboradores entrevistados, estes desenvolvem trabalhos diários conjuntos na aldeia, tais como: caça, pesca, plantio, colheita, entre outros.

C) Afirmação da Cultura dos Povos da Aldeia Umutina

A tradição dos povos indígenas da Aldeia Umutina gira em torno das histórias dos antepassados, das guerras, de como surgiu o mundo, o sol, a lua, os rios, as pessoas, as plantações entre outros, são histórias dos ancestrais e repassadas através da oralidade. São para os povos indígenas histórias e não contos, como muitas vezes designam os não indígenas, pois assim como os religiosos que seguem a tradição cristã acreditam piamente que Deus criou o homem e a mulher, o céu, a terra e tudo que nela há, e que Jesus ressuscitou e nasceu de uma mulher virgem; como o cientista acredita que o surgimento da terra se deu através de uma grande explosão, e o ser humano pela divisão celular e posteriormente pela evolução dos primatas; os povos indígenas também não identificam as suas histórias como mitos ou contos, pois, estes dois últimos são geralmente associados pejorativamente a folclore. Como já apresentado, os povos da Aldeia Umutina foi proibido pelos não indígenas de vivenciar plenamente sua cultura. Decorrente disso, observamos certa dificuldade do relato referente à etnomotricidade dos povos indígenas habitantes da Aldeia Umutina, ou seja, suas manifestações relacionadas a jogos, brincadeiras, lutas, danças, festas, histórias, cantos e rituais.

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Ressaltamos que a maior parte de tais manifestações foram ensinadas pelo indígena Umutina Jula Paré que faleceu em 2003, bem como de outros indígenas mais velhos que ainda se encontram vivos e nos concederam entrevista, como Pedro e Firmino.

Essas danças que as crianças fazem agora foram ensinadas por Jula Paré. [...] ele ficou fora daqui e só depois de velho voltou de novo, ocasião em que ensinou os alunos da escola a dançar entre outras coisas. Eu aprendi muito com o pai do Joaquim, o Kupo. Ele sempre contava histórias, eu era pequeno, mas de algumas das histórias eu ainda lembro (Pedro).

Para Firmino, “[...] as danças eram iguais as que os meninos dançam hoje em dia, é do jeito que Jula ensinou mesmo”. Joaquim relata o jogo de arco e flecha com todas as suas complexidades e como este se desenvolve dentro da cosmovisão Umutina. A descrição nos fez perceber que os jogos, as brincadeiras, as lutas, as danças, as festas, as histórias, os cantos e os rituais não são fragmentados ou descontextualizados do mundo-vida do povo indígena Umutina, estes são interligados na vida corrente:

Os Umutina têm a época certa para fazer as festas, quando se passam dois anos e completa o terceiro, vem aviso para eles fazerem as festas porque os espíritos estão pedindo, então, os Umutina fazem bastante xixa e comida para chamar os espíritos. Os Umutina começam a chamar os espíritos quando está escurecendo, então, um homem começa a cantar dentro da casa falando o nome dos espíritos. Os espíritos normalmente querem somente comer, e se eles quiserem as brincadeiras, eles autorizam os Umutina a fazerem, mas se não querem eles não autorizam. Os Umutina sabiam que os espíritos queriam festa através dos sonhos, os espíritos conversam com os Umutina e os mesmos também conversam com os espíritos pelos sonhos, quando os Umutina acordavam eles ficavam pensando se iam fazer a festa ou não, então, reuniam um grupo para conversar e decidir se realmente iam fazer a festa, quando decidiam fazer, eles mandavam as mulheres irem à roça pegar milho para fazer xixa, mandavam alguns homens irem pescar e mandavam dois homens irem caçar bicho como porco do mato e caititu para fazer a carne da caça com biju, mas os espíritos pedem os bichos que eles querem comer, porque quando estavam vivos não maltratavam os bichos, só que eles gostam de comer a carne de alguns bichos porque onde eles estão não existe nada, então, se lembram do que já comeram aqui e pedem para os Umutina prepararem para eles. Vamos supor que aqui tem seis panelas de xixa e biju, os Umutina chamavam os que não estão vivos, chamavam os que já foram, então, aqueles que já morreram vinham e ficavam em vocês, como aqui são quatro pessoas, vão ser quatro pessoas que morreram que vão vim e ficar no corpo de cada um. Os Umutina chamavam os espíritos pelos nomes deles e ofereciam xixa para eles beber, as mulheres não podiam ver esse ritual, somente os homens participavam e quando acabava o ritual, os homens levavam xixa, milho e carne de qualquer bicho para a família (Joaquim).

De acordo com a diversidade étnica existente na Aldeia Umutina, na qual habitam além do povo Umutina, também os povos Bakairi, Bororo, Chiquitano, Kayabi, Manoki, Nambikwara, Pareci, igualmente são realizadas festas tradicionais destas etnias. Dirce, por

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exemplo, relata uma dança dos Pareci denominada Zolane, que é realizada para fazer o batizado das crianças com o intuito de colocar os nomes na língua Pareci, mas somente o cacique sabe qual será o nome, pois os espíritos levam o nome para o cacique colocar na criança. Também há relatos de práticas de origem não indígena que foram realizadas e / ou ainda são praticadas na Aldeia Umutina. Muitas das brincadeiras não indígenas foram ensinadas pelos professores wasse que davam aulas para os povos da Aldeia Indígena Umutina no tempo do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e, assim, foram passadas de geração em geração juntamente com as práticas indígenas. Ressaltamos, no entanto, que tais práticas são ressignificadas, ocorrendo interface entre as manifestações de origem indígena e de origem não indígena:

Antigamente havia vários tipos de jogos e de brincadeiras, tinha o jogo da peteca, nós fazíamos a peteca de palha de milho e ficávamos jogando, e lembro que era tempo de brincadeira de roda, nós fazíamos uma roda grande e cheia de jovens e brincávamos, tinha a brincadeira do “meu bom barqueiro” [...]. Eu aprendi as brincadeiras de roda através da escola, foram os jovens que nos ensinaram, porque os jovens daquela época já haviam aprendido [...]. O jogo da peteca tinha regras e ganhador também, porque quando uma pessoa deixava a peteca cair, essa tinha que sair da roda, então, não podia deixar a peteca cair, ela tinha que permanecer no ar para passarmos de mão em mão. A brincadeira “meu bom barqueiro” era de roda e nós brincávamos e cantávamos assim: “Passa, passa meu bom barqueiro, dá licença para passar, eu tenho fila pequena não posso mais sustentar. Passa, passa três vezes pela última ficará”. Enquanto nós estávamos cantando nós íamos passando pelas outras pessoas e outras crianças vinham e entravam atrás da fila e então iam rodeando e o que ficava por último saía da brincadeira. Nós também brincávamos de passar anel, assim, nos reuníamos todos sentados e uma pessoa tinha que passar o anel para a mão de quem estava sentado e, quem ficava por último tinha que adivinhar com quem estava o anel e quando não adivinhava a pessoa pagava prenda, tinha que cantar, pular igual gato ou imitar um cachorro (Dirce).

É notório o interesse dos povos indígenas da Aldeia Umutina por instrumentos musicais não indígenas, como o violão. Joaquim diz que “Finado Torika sabia fazer violão e tocar, com Firmino Torika, e faziam as festas para o povo dessa aldeia. Lembro numa festa, finado Bakalana solando no violão enquanto Torika acompanhava e quando Bakalana cansava, era Torika que começava a solar [...]”. Observamos também a presença de festas dos não indígenas na Aldeia Umutina, tais como: Santo Antônio, São Sebastião e São João, conforme explicita Firmino, que tem participação ativa nas festas supracitadas, bem como em festas nas cidades vizinhas:

Tem um velho amigo meu da Barra do Bugres que é só me ver e ele fala: “Ê Firmino! Aquela aldeia já foi movimentada! Já teve muita festa boa!”, eu falo para

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ele: “Ainda bem que você sabe, Cardoso!” depois ele disse: “Pois é, conheci ali muitos anos, quando nós dançávamos todo ano na festa de 19 de abril! São João! São Pedro! Firmino é de lá, ele que tocava mais os primos dele para nós dançarmos”. [...]. Meu pai foi em Cuiabá levar minha mãe para tratar de uma doença e lá ele comprou um cavaquinho e trouxe para mim, aí eu aprendi a solar no cavaquinho, depois aprendi a afinar sozinho o violão. Aqui na aldeia todo mundo era bom para tocar, nós saíamos para tocar na Barra do Bugres, na festa de Santa Cruz e festa de Santa Terezinha e todo mundo gostava.

Ressaltamos que ao longo do tempo houve a substituição de professores não indígenas por professores indígenas e, atualmente, a Escola Estadual de Educação Indígena Jula Paré conta somente com professores e funcionários indígenas da própria Aldeia Umutina. Na construção dessa categoria percebemos que o processo educativo de afirmação da identidade dos povos indígenas da Aldeia Umutina acontece também por meio dos professores indígenas da Escola Jula Paré, na qual há o componente curricular denominado “língua materna”, com o intuito de valorizar a cultura, a ancestralidade, o melhor acesso à sabedoria dos anciões da Aldeia, bem como fortalecer o idioma Umutina, pois as palavras têm um sentido, um significado, uma intencionalidade específica no contexto do povo que a profere, que dialoga, que se comunica através dela, comunicando mais que informações, uma tradição, uma cultura. O idioma Umutina é também conservado por meio dos anciões e é falado diariamente para que não seja esquecido como descrito por Antonio:

Não lembro mais de muitas palavras no idioma Umutina, só algumas frases que eu sempre falo quando o pessoal passa na frente da minha casa, “urixa” é mulher, “urixa pitukwa?”, eu estou perguntado, se a mulher está bem. “Urixa arikixi imy” quer dizer olha para mim, “imy tawakiri imy?”, eu estou perguntando, vocês estão com vergonha de mim? “Urixa amuxixi pitukwa”, quer dizer mulher gorda e bonita. É assim que o nosso povo fala, agora homem no idioma é “abedo”, “abiodo kurika” significa criança pequena, quando tem gente aqui na minha casa e já vão embora eu falo, “amy pixé?” quer dizer vocês já vão embora? Aí o povo pergunta o que significa isso? Eu falo que estou perguntado se eles já vão embora e eles respondem que sim, mas eles têm que falar “imy pixé”, que significa já vou embora, depois eu falo “axipá imy”, e eles não sabem o que significa e perguntam o que é “axipá imy”? Eu respondo que significa que eles estão falando que vão para casa deles. Eles não sabem e eu ensino eles, eu também falo “amy aurixa imy arikixi imy”, eles perguntam o que significa? Eu respondo que estou falando: vocês vieram olhar os indígenas aqui, aí eles respondem que sim. Outra frase que os Umutina falam é “imy tabiá” que significa eu estou doente. Eu falo “imy iho bárbaro”, bárbaro é remédio para curar.

O jovem Itamar relata algumas danças e cantos dos povos indígenas da Aldeia Umutina que aprendeu através de pesquisas. Podemos observar o relato da dança apikurina, de cunho espiritual para os Umutina, na qual os dançarinos representam o bem e o mal e são

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diferenciados pela pintura corporal e o tipo do canto entre os dois grupos que dançam e há presença de contato. O mesmo ainda ressalta que havia dezessete cerimônias e estas continham os sub-cerimoniais. Itamar ainda canta a música de tirar mel, do Akakono, que é a dança dos guerreiros, a qual era cantada pelos veteranos de guerras para que as boas forças dos espíritos protetores pudessem os proteger em momentos de conflitos e para os jovens não terem medo. Depois canta a música do Katamã, a qual elogia o guerreiro Umutina. Cleomar também relata a dança kurioká (dança da flauta), realizada com flauta de bambu denominada zanimbokwa, tratando-se de uma dança fúnebre em homenagem aos mortos que tem lugar no ritual adoê, com participação somente dos homens. A colaboradora Edilene relata duas danças que têm a participação das mulheres, sendo estas yuri e lorunó, as quais são de culto aos mortos, conforme descreve:

[...] na dança lorunó os homens tocam a flauta de taquara, a dança é somente ao som da flauta, depois nós mulheres fazemos uma roda juntamente com os homens e colocamos as mãos no ombro do parceiro de dança e vamos dançando em círculo. Já a dança yuri é realizada com máscara, os homens usam as máscaras e as mulheres ficam saltitando na frente do parceiro com a mão no ombro dele, então, enquanto nós estamos saltitando os homens ficam imitando pássaros e outros animais. As mulheres não cantam nessa dança, nós nunca soubemos se as mulheres cantavam, mas quando alguém morria a mulher mais velha cantava na língua Umutina.

O entrevistado Cleomar relata sobre o ritual de passagem, quando meninos se tornam homens:

Quando os meninos Umutina iam fazer a passagem, os pais escolhiam os padrinhos, normalmente escolhiam as pessoas mais próximas da família, então, os padrinhos tinham que fazer o primeiro feixe peniano para o menino e o restante dos adornos que ele ia precisar. [...] então, você faz votos para que você não venha a desonrar sua comunidade [...]. Assim, quando houver uma guerra, você vai ajudar o seu próximo a combater em defesa da terra ou em defesa da sua cultura e tradição [...] e cada um que batiza tem que dar continuidade na cultura e não pode desonrar o seu nome e nem o da etnia. Para eu fazer o ritual de passagem tive que pensar muito porque ia mudar completamente a minha vida e também o meu jeito de viver e depois eu não ia ser mais criança. Eu não sabia que ia mudar tanto, mas mudou! Eu fiquei entre vários rapazes que iam furar o lábio, fizemos uma reunião primeiro e depois decidimos que íamos furar, então nós pegamos osso de onça para furar o lábio, mas pode usar também o espinho de ouriço que não dói tanto, com os materiais em mãos foi só furar o lábio devagar até o osso ou espinho passar todo o lábio. Enquanto isso você tem que suportar a dor, você tem que sentir esse momento espiritual e depois de termos furado o lábio nós ficamos com uma sensação tão marcante que você nunca esquece, nós passamos para o estado de espírito e ficamos diferentes. Na mesma noite que eu furei o lábio eu tive muitos sonhos diferentes, alguns sonhos eram bons e outros sonhos eram maus, eu não sabia que isso poderia acontecer, mas tudo isso acontece comigo ainda hoje, mas nós não podemos deixar o espírito do mal tomar conta de nós porque estamos fracos [...]. Os espíritos dos povos antigos se juntam com a gente e nos ajudam a seguir com a cultura e muitas vezes ficam bravos porque algumas pessoas não querem dançar, então, temos que dar continuidade na

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cultura. Nós nos lembramos do povo que vivia aqui antigamente, então, nós temos noção disso tudo o que falei porque a partir do momento que nós viramos guerreiros, tudo isso vem na nossa cabeça, a todo o momento vem lembranças, sempre temos sonhos com as pessoas do passado, [...] esse ritual nos traz muita responsabilidade.

D) Trabalhos Manuais dos Povos Indígenas da Aldeia Umutina

Observamos nessa categoria que os alimentos mais consumidos pelos povos indígenas da Aldeia Umutina, antes do contato com o não indígena, eram milho, mandioca, banana, cará, batata, feijão, fava, peixes e animais de caça (porco do mato, paca, anta, caititu, tatu, capivara, quati e mateiro), conforme relatam Gonçalina e Antonio: “[...] eles sempre plantavam, milho, mandioca, banana, cará, batata, feijão e fava. Antes de saírem deixaram um pouco dos homens para cuidar das mulheres e foram pelo Rio Paraguai, depois pelo Rio Bugre para caçar e pescar”; “Eu fiz uma roça na beira do Rio Paraguai e nela plantei banana, mandioca, cana, cará, batata e arroz”. Também preparavam, a partir dos alimentos tradicionais, pratos e bebidas derivados, tais como: farinha de mandioca, farinha de peixe, tamakare, xinrunru, xixa, rapadura, polvilho e o sal do acuri:

Eu ficava observando o finado Maxipá enquanto ele me ensinava a fazer as comidas do povo Umutina. Ele me ensinou a fazer o xinrunru. Essa comida é feita com o milho fofo, esta é uma espécie de milho que na terra boa as espigas ficam grandes [...]. O mais importante quando for fazer o xinrunru é ter o milho e o fogo no chão com a terra fofa [...]. Então, para fazer o xinrunru, tem que ralar o milho e lavá-lo, depois tem que fazer o fogo no chão e quando este estiver com muita brasa e cinza temos que espalhar um pouco, então, tem que apertar a cinza com uma cabaça pequena para depois colocar a massa do milho molhada sobre a cinza, aí tem que alisar a massa com a cabaça e a cada camada de massa que vai colocando sobre a outra tem que apertar bastante para não entrar terra e nem cinza, depois tem que jogar a cinza em cima da massa e deixar assar. [...]. Depois que o xinrunru está pronto, você tem que tirar uma fina camada de cima e outra de baixo dele e somente comer a parte do meio [...]. Tem o tamakare que é feito de arroz, para prepará-lo você tem que socar o arroz [...]. Depois de ter socado o arroz você coloca a água para ferver e enquanto isso amassa o arroz batido como se amassa a massa de bolo e mistura bastante para virar um grude, então, você faz umas bolas pequenas e as coloca na água fervendo para cozinhar e já está pronto [...]. Maxipá também me ensinou a fazer farinha de peixe, [...] ele pegava bastante sauviru, fazia um jirau para colocar o peixe para assar, o peixe tem que secar no fogo por mais ou menos três dias, o peixe chega a envergar. Depois você soca o peixe com escama, com espinho, com tudo no pilão e depois o coa e se quiser é só colocar pimenta, então, a farinha de peixe já esta pronta [...]. Outra coisa que Maxipá me ensinou a fazer também é o sal do acuri [...]. Maxipá cortava o acuri inteiro e o colocava na caieira de fogo para queimar, então a cinza do palmito virava o sal, [...] ele cortou o acuri e o carregou inteiro, depois ele jogou o acuri em cima da fogueira, eu não lembro se foi na lua cheia ou na minguante, aí foi só esperar até o outro dia para aparecer na brasa o branco do sal (Gonçalina).

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Como papai era carpinteiro ele fez o engenho para ele com os irmãos dele moerem a cana e fazerem a rapadura, enquanto isso mamãe e eu estávamos fazendo farinha, depois que tudo ficou pronto eu desci sozinho no remo o Rio Paraguai para ir à Barra do Bugres vender mandioca, farinha, rapadura, polvilho (Antonio).

Os trabalhos manuais feitos pelos povos da Aldeia Umutina demostram conhecimento obtido dos antepassados, passados de geração em geração, pela oralidade. A vivência em harmonia com a natureza e o respeito ao saber ancestral, os ensinou a escolher as melhores plantas e instrumentos para o artesanato, a fazer as tintas que são utilizadas, bem como distinguir as plantas medicinais das venenosas. Gonçalina descreve como se fia o algodão, como se confecciona a rede de dormir, o cocar, o buque (cesto para pegar peixes ou carregar produtos da roça), o apa (espécie de peneira com orifícios mais abertos) e o arco e flecha; como se prepara a tinta e o veneno para passar na flecha. Gonçalina afirma que foi com Maxipá, ancião da comunidade com quem ela conviveu, que aprendeu sobre artesanato:

[...] foi Maxipá que me ensinou a fazer o batido de rede [...]. Ele me ensinou a fazer buque, que é uma ferramenta para eles pescarem. O buque tem um arco grande e duro, em todo arco tem tranças de fio de tucum com pouco espaço, assim, ficava aquele saco pendurado tipo uma rede. Depois de pronto pegava até peixe grande. Maxipá me ensinou a fazer vários trançados como a trança de buque, trança de colar, trança de rede e de apá [...]. Os Umutina faziam o batido da saia de algodão das mulheres, você vê filha! Até fazer o fio de algodão Maxipá me ensinou! Ele me disse: “Gonçalina eu vou fazer um fozo para você”, eu perguntei, mas o que é fozo Maxipá? Então, ele fez uma pequena roda de telha e a furou no meio, colocou um pauzinho de siriva no furo e falou “toma esse daqui, eu vou ensinar você a fazer fio de algodão”. [...]. Então, para me ensinar a fiar o algodão, para fazer o novelo ele sentou e limpou todo o algodão, depois pegou um pequeno arco de madeira que ele tinha e começou a bater no algodão. Bateu, bateu, bateu, até o algodão misturar, ficou a coisa mais linda! Tudo fofinho! Ai ele pegava o algodão e ia fazendo os fios comprido tipo uma corda, só que, depois tinha que torcer um fio no outro. Ele falou para mim, “agora você vai torcer o algodão para fazer rede”. [...] e foi com Maxipá que eu aprendi a fazer rede, eu faço rede de dormir, faço rede de pesca [...]. Ele me ensinou a fazer o trançado do cocar e o pai dos meus filhos também aprendeu com ele. O cocar é trançado e depois pintado com jenipapo, mas é pintado numa embira e é trançado com palha de aguaçu, você pode fazer a tinta vermelha e pintar. O apá também é a mesma coisa, a tinta tem que ser cozida para pintar a palha. O apá é diferente de peneira porque a peneira tem os buraquinhos mais abertos e o apá é fechadinho [...].

Considerações

A descrição da etnomotricidade Umutina, com todas as suas interligações com o viver deste povo, que, fundamentalmente, não fragmenta as diversas esferas da vida (tanto que nos revelou compreensões relacionadas com a exploração ocasionada pelos wasse e o

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congraçamento entre as diversas etnias), nos indicou que, para além das descrições dos jogos, brincadeiras, lutas, danças, entre outras ações que resistiram às mazelas da sociedade contemporânea, o mais importante é a resistência de princípios, que, assim como outras etnias, valorizam “[...] a solidariedade, o respeito mútuo, a dignidade de ser e estar em equilíbrio com o próprio homem e com a terra” (TERENA, 2000, p. 161); utilizam o processo educativo manifestado de maneira comunitária (TERENA, 1984), no qual cada família ensina à criança seus costumes, a respeitar a tradição e a sabedoria dos mais velhos (, 1999; TERENA, 2000; PATAXÓ e col., 2005): “[...] aprende-se fazendo, exercitando, observando o outro. Vivendo um contínuo exercício de ser” (, 2002, p. 46), compartilhando cada momento, cada ganho e cada perda (TERENA, 2000). Tal perspectiva de vida, apresenta-se como alternativa para ações escolares que, no que diz respeito à Educação Física, ainda insiste em reproduzir o esporte de competição ou de rendimento e, assim sendo, fomenta vivências de sucesso para a minoria e o fracasso ou a vivência de insucesso para a maioria, perpetuando a lógica do competir para vencer, na qual não há outra forma de realizar um jogo, senão buscando a vitória, ou seja, ganhando do outro, derrotando-o, relegando-o o papel de derrotado. Finalmente, consideramos que os resultados trazem contribuições no sentido do fortalecimento da cultura dos povos indígenas residentes da Aldeia Umutina, o respeito, a valorização e o reconhecimento da mesma, bem como possibilita material de reflexão e apoio a estudantes de licenciaturas e professores da educação básica no que diz respeito a educação das relações étnico-raciais, conforme inclusive preconiza a lei nº 11.645/2008 (BRASIL, 2008), que torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.

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