FILHO ORGANIZADOR

“Em seu conjunto, os textos demonstram que a relevância dos estudos em Direito e Literatura reside, justamente, no fato de que, quando o Direito falha ou os direitos são ameaçados, a Literatura desempenha, AICHA DE ANDRADE QUINTERO EROUD mais do nunca, sua função social de condição de possibilidade de resgate do humano” ANDRÉ PEIXOTO DE SOUZA

BERNARDO GOMES BARBOSA NOGUEIRA (HENRIETE KARAM)

CARLA TORTATO

EMANUEL JOSÉ LOPES PEPINO

“O Direito está permeado por fi cções. Isso não deveria GABRIEL MARAVIESKI ser nenhuma novidade. Entretanto, grande parcela dos PAULO SILAS FILHO JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES juristas insiste em associá-lo exclusivamente ao plano

Mestre em Direito; Professor de Processo Penal e Di- MYRNA ALVES DE BRITTO da realidade” reito Penal; Advogado; Especialista em Ciências Penais, em Direito Processual Penal e em Filosofi a; Membro PAULO EDUARDO POLOMANEI (ANDRÉ KARAM TRINDADE) da Rede Brasileira de Direito e Literatura; Membro da PAULO SILAS FILHO Comissão de Prerrogativas da OAB/PR; Diretor de re- lações sociais e acadêmicas da APACRIMI. ODIOMBAR RODRIGUES

THIAGO VENICIUS DE SOUSA COSTA

PAULO SILAS FILHO (ORGANIZADOR)

PAULO SILAS FILHO (ORG.)

DIREITO & LITERATURA: ABORDAGENS ‘NA’ LITERATURA E ENSAIOS TEÓRICOS © 2020 - Editora Canal Ciências Criminais

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Arte da capa André Baía de Jesus

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Diagramação Caroline Joanello

Impressão e acabamento Gráfica Evangraf

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S581d Silas Filho, Paulo Direito e Literatura: abordagens ‘na’ literatura e ensaios teóricos / Paulo Silas Filho (Organizador). – Porto Alegre : Canal Ciências Criminais, 2020. 168 p.

ISBN: 978-65-87298-02-3

1. Direito. 2. Literatura - aspectos jurídicos. 3. Literatura - análise e crítica. I. Silas Filho, Paulo. II. Título.

CDD 340

Bibliotecária Responsável: Eliane Mª. Pereira Kronhardt (CRB 10/1518) SUMÁRIO

Apresentação 7 Prefácio 9

Capítulo 1 A taxonomia do Direito e Literatura: Humanistic, Herme- neutic e Narrative law-and-lit 11 Emanuel José Lopes Pepino Capítulo 2 Julien Sorel como personificação do estigma do pobre: in- cursão sobre meta-regras e estigmas na obra “O Vermelho e o negro” 37 Gabriel Maravieski Capítulo 3 Deuses americanos - devaneio e realidade 51 Odiombar Rodrigues Capítulo 4 Lutem um contra o outro: uma incursão pelo Direito Penal do inimigo e sua construção em Deuses americanos 68 Myrna Alves de Britto Capítulo 5 Entre o real e o imaginário: a fabricação da culpabilidade nor- mativa em O Beijo no asfalto de Nelson Rodrigues 84 Thiago Venicius de Sousa Costa Capítulo 6 Quantos capitães é preciso para incendiar uma nação? O Di- reito Penal e o processo penal em chamas por uma ótica de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury 100 Paulo Eduardo Polomanei de Oliveira Capítulo 7 O (des)alienista 111 José Luiz Quadros de Magalhães e Bernardo Gomes Barbosa Nogueira Capítulo 8 Tragédia e “achismos”: O que “Júlio César” tem a nos ensinar 133 Aicha de Andrade Quintero Eroud e Paulo Silas Taporosky Filho Capítulo 9 É como dizem, e não como foi, que se julga! 145 Paulo Silas Taporosky Filho Capítulo 10 A esperança de um direito humanizado 156 André Peixoto de Souza e Carla Juliana Tortato

Posfácio 161

APRESENTAÇÃO

Conforme havia se adiantado no livro produzido pela Comissão de Estudos em Di- reito & Literatura de 2017 (“Direito & Literatura: breves diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee”), os trabalhos do nosso grupo avançaram, resultando numa nova obra com diferentes abordagens e autores – essa que o leitor tem agora em mãos.

A proposta da comissão, que nasceu em 2017 e segue ativa atualmente na sua terceira edição, consiste em difundir estudos e discussões no âmbito daquilo que pode ser chamado de “movimento Direito & Literatura”. Na dinâmica com a qual trabalhamos na comissão, com participantes espalhados por todo o Brasil que interagem entre si pelos meios que a tecno- logia atual permite, buscamos aperfeiçoar cada vez mais os trabalhos, objetivando que os resultados sejam salutares com as devidas observações às legítimas preocupações levantadas no plano teórico dos estudos em “Direito & Literatura”. Com isso se quer dizer que a base fornecida para os integrantes da comissão é robusta, resultando em proveitosos diálogos sobre as temáticas tratadas. Todos os membros tiveram contato com textos previamente selecionados – estes produzidos por renomados autores que trabalham seriamente com as abordagens em “Direito & Literatura”, encontrados em importantes revistas científicas, dentre as quais aquela que é a mais importante no meio ora tratado, a saber, a ANAMORPHOSIS -, possibilitando assim minimamente a ciência acerca do comprometimento necessário para as abordagens nesse meio.

Dividida em duas partes a estrutura de funcionamento da comissão, na primeira foram estudados e discutidos os mencionados artigos científicos que abordam variadas questões no âmbito “Direito & Literatura”, enquanto na segunda parte o que se teve foi justamente a produção dos artigos que compõem os capítulos da presente obra. A preparação, portanto, foi feita e repassada a todos os membros, que buscaram, cada qual a sua maneira, transpor essa base erigida para os trabalhos produzidos. Cabe ao leitor analisar cada uma dessas pro- duções, a fim de tomar conclusões acerca das nuances possíveis com as devidas observações críticas.

O livro, portanto, é um convite para o debate.

A presente obra, lançada agora em 2019, é resultado dos trabalhos da segunda edição da Comissão de Estudos em Direito & Literatura, cujo funcionamento se deu no ano de 2018. O capítulos falam por si, cuja síntese de cada um pode ser buscada pelo leitor logo abaixo – no prefácio.

Alguns pontos merecem ser destacados. O primeiro deles é o prestígio, honraria e gratidão que estão presentes em todos os autores pelo fato de se contar com o prefácio e 7 posfácio de dois dos maiores nomes do cenário “Direito & Literatura”: Henriete Karam e André Karam Trindade. Outro ponto é também algo satisfatório: a fim de manter uma tradição de contar com um autor externo convidado que participa da obra colaborando com um capítulo, no presente se tem um belo texto produzido pelos excelentes André Peixoto de Souza e Carla Juliana Tortato. Essas contribuições apenas enriquecem a obra.

No mais, salienta-se que diferentemente do livro anterior, onde os trabalhos se base- aram em três obras literárias (“O Processo”, de Franz Kafka, “1984”, de George Orwell e “O Sol é para Todos”, de Harper Lee), no presente há uma amplitude de obras base. Apre- sentou-se aos membros da comissão a possibilidade de se trabalhar a partir das seguintes: “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal, “Deuses Americanos”, de Neil Gaiman, “O Beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, “O Alienista”, de Ma- chado de Assis e “Júlio Cesar”, de Shakespeare. Ainda, foi solicitado que em pelo menos um dos trabalhos fosse abordado o aspecto teórico do movimento “Direito & Literatura”. É em razão desse formato proposto que se deu o título ao livro, uma vez que “abordagens ‘na’ literatura” e “ensaios teóricos” estão aqui presentes. As pretensões, nesse sentido, foram alcançadas, conforme o leitor pode observar nos capítulos que compõem a obra.

Que possa ser a presente obra uma leitura aprazível, constituindo um contributo para as discussões que permeiam o movimento “Direito & Literatura”. É a aposta que se faz!

Paulo Silas Filho

Julho de 2019

8 PREFÁCIO

Henriete Karam1

Vivemos, no Brasil de hoje, em tempos sombrios. Estamos submersos num contexto social, político e jurídico no qual despontam, diariamente, indícios de retrocessos que ameaçam algumas das mais importantes conquistas civilizatórias.

Tal constatação acompanhou-me na leitura dos textos que compõem este livro; com ela, uma inquietante pergunta se insinuou, paralelamente, em minha mente – no princípio, pouco clara, mas provocando já relativo mal-estar – e foi pouco a pouco ganhando corpo: por que continuamos escrevendo livros?; por que insistimos em produzir academicamente e em publicar, tornar públicas, nossas produções?; ou, de forma mais pontual ainda, por que publicar (mais) um livro sobre Direito e Literatura?

A resposta, aparentemente simplória, seria: mais do que nunca precisamos de livros sobre Direito e Literatura. No entanto, a simplicidade se esvai quando consideramos que os estudos em direito e literatura evidenciam que o direito é um fenômeno linguístico e narrativo, bem como propiciam reflexões sobre o necessário diálogo entre o direito e as narrativas plurais que, no mais das vezes acolhidas e incorporadas aos textos literários, cons- tituem o tecido discursivo social, refletem a diversidade e a complexidade das sociedades contemporâneas e expressam reivindicações de direitos e garantias fundamentais de mino- rias, suscetíveis a mecanismos de exclusão social que inviabilizam a participação política e, consequentemente, comprometem os ideais almejados pelo estado social e democrático de direito.

Assim, a publicação deste livro, em especial face ao contexto em que vivemos, adqui- re o estatuto de ato de resistência. Composto por dez capítulos, produzidos por autores de diferentes estados do país, o livro inicia com o texto de Emanuel José Lopes Pepino, que questiona as próprias bases teóricas em que se funda a interdisciplinaridade entre direito e literatura, bem como aborda os objetos e as metodologias nela implicados.

A seguir, Gabriel Maravieski, do Centro Universitário Autônomo do Brasil (PR), recorre ao romance O vermelho e o negro, de Stendhal, para investigar, a partir do conceito de meta-regras, os influxos da estigmatização social no sistema penal. 1 Mestre em Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da UniFG. Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Le- tras da UFRGS, Professora Convidada do Curso de Especialização em Psicanálise da UNISINOS. Membro Fundadora da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). Editora da Anamorphosis - Revista Internacional de Direito e Literatura. Psicanalista. 9 Na sequência, Odiombar Rodrigues debruça-se sobre a trajetória do protagonista de Deuses americanos, de Neil Gaiman, com o objetivo de evidenciar as deficiências do sistema prisional, os efeitos do encarceramento e os obstáculos à reinserção social de ex-detentos.

Myrna Alves de Britto também elege a obra Deuses americanos, mas seu foco é o papel da mídia na construção de uma narrativa que fomenta a guerra e a demonização de um inimigo no imaginário social.

Thiago Venicius de Sousa Costa, por sua vez, examina a participação da imprensa e a atuação da polícia no aparato persecutório do poder estatal, inspirado na peça teatral O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues.

Paulo Eduardo Polomanei de Oliveira reflete sobre a falácia da promessa de uma fe- licidade coletiva que se funda na supressão de direitos e na destruição do saber, a partir da leitura de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

José Luiz Quadros de Magalhães e Bernardo Gomes Barbosa Nogueira partem do conto O alienista, de Machado de Assis, para problematizar a natureza ideológica dos pro- cessos de alienação que operam na contemporaneidade.

Aicha de Andrade Quintero Eroud e Paulo Silas Taporosky Filho caracterizam o páthos que subjaz aos argumentos consequencialistas empregados para legitimar atrocidades cometidas em nome do “bem coletivo”, com base em elementos da peça teatral Júlio César, de Shakespeare.

No segundo texto de sua autoria, Paulo Silas Taporosky Filho analisa o caráter narra- tivo e ficcional da decisão judicial – contrapondo fato e relato, verdade e verossimilhança –, além de caracterizar a dinamicidade e a artificialidade do jogo processual, do qual o próprio julgador é partícipe.

O último texto que compõe este livro, o ensaio poético de André Peixoto de Souza e Carla Juliana Tortato, expressa a esperança em um direito humanizado, como o próprio título indica, uma esperança que surge do entrelaçamento do direito com a literatura e que se funda no apelo estético-sensível e, por consequência, no potencial humanizador da literatura.

Em seu conjunto, os textos demonstram que a relevância dos estudos em Direito e Literatura reside, justamente, no fato de que, quando o Direito falha ou os direitos são ameaçados, a Literatura desempenha, mais do nunca, sua função social de condição de possibilidade de resgate do humano.

10 CAPÍTULO 1 A TAXONOMIA DO DIREITO E LITERATURA: HUMANISTIC, HERMENEUTIC E NARRATIVE LAW-AND-LIT.

Emanuel José Lopes Pepino2

INTRODUÇÃO

Em um texto publicado em 2017, André Karam Trindade e Luísa Giulliani Bernsts apontam que os estudos de direito e literatura no Brasil ainda são uma novidade. A conclu- são é resultado de uma análise quantitativa de trabalhos publicados no CONPEDI na dé- cada de 2007/2 a 2016/1, onde verificaram que mais da metade dos trabalhos apresentados no período não utilizou, em suas referências bibliográficas, nenhuma obra específica sobre Direito e Literatura, seja com autores nacionais ou estrangeiros3. Os autores apontam como explicação para a quantidade significativa de trabalhos apresentada, mas para o pequeno questionamento teórico realizado, a paixão e fascínio pela literatura que se materializa no uso instrumental ou ornamental da literatura, no lugar de um estudo epistêmico meticulo- so das questões metodológicas que envolvem o Direito e a Literatura4.

Todavia, é valido lembrar que a crítica à utilização técnica de obras literárias é uma crítica comum que aparece em discussões sobre o movimento nos EUA, por exemplo5, onde há um apelo para que autores de direito e literatura ultrapassem as discussões voltadas ao ensino jurídico e à reforma da prática legal; para que não idolatrem a literatura (estabe- lecendo uma leitura crítica das próprias obras literárias); e que reconheçam a necessidade de criação de mecanismos para estudos jurídicos que se façam fora das faculdades de Direito, tratando o Direito como mais uma obra artística e cultural6.

Só essa breve ponderação crítica, permite identificar uma dificuldade do movimento Direito e Literatura, dificuldade essa que potencializa os problemas apresentados tanto por

2 Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória. Mestre em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq “Hermeneutica Jurídica e Jurisdição Constitucional”, da FDV-ES. E-mail: [email protected]. 3 TRINDADE, André Karan; e BERNSTS, Luísa Giulliani. O Estudo do Direito e Literatura no Brasil: Sur- gimento, evolução e expansão. In: ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura v. 3, n. 1, p. 225-257, janeiro-junho 2017, p. 245. 4 TRINDADE, André Karan; e BERNSTS, Luísa Giulliani. O Estudo do Direito e Literatura no Brasil: Sur- gimento, evolução e expansão. In: ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura v. 3, n. 1, p. 225-257, janeiro-junho 2017, p. 247. 5 SARAT, Austin. Traditions and Trajectories in Law and Humanities Scholarship. Yale Journal of Law & the Humanities: Vol. 10: Iss. 2, Article 7, p. 401-407, 1998, Disponivel em: http://digitalcommons.law.yale.edu/ yjlh/vol10/iss2/7 Acesso: 28 fev. 2019, p. 402. 6 SARAT, Austin. Traditions and Trajectories in Law and Humanities Scholarship. Yale Journal of Law & the Humanities: Vol. 10: Iss. 2, Article 7, p. 401-407, 1998, Disponivel em: http://digitalcommons.law.yale.edu/ yjlh/vol10/iss2/7 Acesso: 28 fev. 2019, p. 405 e 406. 11 Trindade e Bernsts quanto por Sarat: o campo de trabalho e possibilidade de atuação do direito e literatura é muito amplo. As relações que levam à possível ligação do Direito com a Literatura geralmente afirmam que

(...) se trata de dois fenômenos culturais paralelos; ambos tentam dar forma à realidade através da linguagem e se preocupam com questões como ambiguidade, interpretação, abstração, e de um julgamento humanizado. Além de serem atividades performáticas que requerem algum grau de descrição da realidade e de julgamento ético7. Esse manancial prolixo de possíveis interações complica ainda mais o estudo de di- reito e literatura, uma vez que os doutrinadores que trabalham na área por vezes possuem trabalhos tão divergentes entre si que é difícil reconhecer uma ligação comum, o que se torna ainda mais difícil no Brasil dada a inexistência de traduções de algumas das principais obras internacionais na área8.

Além disso, a própria taxonomia tradicional usada para discutir o direito e a literatura (direito da/como/na literatura) ajuda muito pouco a responder quais são as contribuições interdisciplinares que o estudo da literatura pode trazer ao direito. O presente trabalho pretende se debruçar sobre essa exata questão, utilizando as classificações de trabalhos de direito e literatura como um fio condutor através do potencial interdisciplinar existente na aproximação do Direito e Literatura.

Para tanto, o trabalho começa por apresentar o que os vários trabalhos de direito e literatura possuem em comum – se é que possuem algo em comum –, discute em seguida a classificação tradicional do Direito e Literatura, apresentando exemplos de cada uma das grandes áreas estudadas e termina a primeira parte com a discussão sobre se deveria existir um cânone de obras literárias para trabalhos de direito e literatura.

Na segunda parte do trabalho, apresenta uma classificação de trabalhos diferente, idealizada por Jane Baron que não acredita em um movimento do direito e literatura uni- forme e propõe uma forma de compreender esses estudos pelas várias características inter- disciplinares que cada um dos ramos salienta. Explica a classificação proposta por Baron e apresenta trabalhos para exemplificar cada uma das categorias apresentadas.

A intenção é tentar reorganizar as discussões sobre direito e literatura na tentativa de compreender o que e como os estudos literários podem melhorar a realidade jurídica e daí possibilitar uma maior discussão epistemológica sobre trabalhos de direito e literatura.

7 WEISBERG, Robert. The Law-Literature Enterprise, Yale Journal of Law & the Humanities: Vol. 1: Iss. 1, Article 4, p. 1-67, 1989, Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/yjlh/vol1/iss1/4 . Aces- so: 28 fev. 2019, p. 6, tradução livre. 8 TRINDADE, André Karan; e BERNSTS, Luísa Giulliani. O Estudo do Direito e Literatura no Brasil: Sur- gimento, evolução e expansão. In: ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura v. 3, n. 1, p. 225-257, janeiro-junho 2017, p. 247. 12 A CLASSIFICAÇÃO TRADICIONAL: DIREITO DA/COMO/NA LITERATURA

Um modo interessante de começar a discussão correlacionada com as possíveis intera- ções entre o direito e a literatura encontra-se na forma como tais trabalhos são classificados, já que essas classificações – e as discussões em torno delas – servem como um parâmetro para o movimento, apresentando alguns de seus pontos centrais.

Nesse contexto, é preciso destacar que não há consenso quanto às classificações exis- tentes para o movimento, especialmente porque não há clareza quanto à existência do Direito e Literatura como um movimento único – a falta de um objetivo comum aos trabalhos dificulta é um empecilho comum a classificação dos trabalhos e a união do mo- vimento. David Friedrichs, por exemplo, destaca a dificuldade de encarar o Direito e Literatura como um movimento único, apontando que suas diversas vertentes possuem objetivos distintos – o que o leva a não apresentar uma classificação específica, apenas a relatar algumas já existentes9. Por sua vez, ao se deparar com o mesmo problema, Adam Geary sugere que a classificação das diversas vertentes do movimento direito e literatura seja feita com base nas escolas que abrigam os diversos grupos de trabalho do Direito e Literatura, devido à diversidade de objetivos a serem alcançados nas possíveis interações entre os dois ramos do conhecimento10.

José Manuel Aroso Linhares estabelece como ponto comum que une os diversos gru- pos de trabalho do Direito e Literatura a oposição a um discurso de autonomia do direito, autonomia do direito não apenas como um ramo de estudos específico, mas também como autonomia da realidade social, com a correspondente criação de um cosmos normativo iso- lado e autossuficiente11. Os movimentos tratam o direito como um conjunto de textos para serem lidos ou para serem atuados, enquanto atribuem a esses materiais uma característica de indeterminabilidade que se torna um parâmetro decisivo da empreitada interpretativa12, o que os faz assumir um discurso comunitarista de área aberta que tenta reaproximar o di- reito de valores éticos, morais, políticos e culturais para a criação/perpetuação/recriação da

9 FRIEDRICHS, David O. Narrative Jurisprudence and Other Heresies: Legal Education at the Margin. Journal of Legal Education, Durham, v. 40, mar. 1990, Disponível em: https://search.proquest.com/ docview/1290644207/fulltextPDF/ED05914AD34B4EFDPQ/1?accountid=39703 . Acesso: 28 fev. 2019, p. 9 e s. 10 GEARY, Adam. Here come the warm jets: adventures in law, literature and feminism. In: Res Publica A Journal of Legal and Social Philosophy. Vol. 10, nº 3, 2004, p. 276; BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1062. 11 LINHARES, José Manuel Aroso. Law in/as Literature as an Alternative Humanistic Discourse: the Una- voidable Resistance to Legal Scientific Pragmatism or the Fertile Promise of a Communitas without Law?. Dossier Law and Literature. A Discussion on Purposes and Method. Italian Society for Law and Literature. Editora: Paola Mittica. 2010. Disponível em: . Acesso: 28 fev. 2019, p. 37. 12 LINHARES, José Manuel Aroso. Law in/as Literature as an Alternative Humanistic Discourse: the Una- voidable Resistance to Legal Scientific Pragmatism or the Fertile Promise of a Communitas without Law?. Dossier Law and Literature. A Discussion on Purposes and Method. Italian Society for Law and Literature. Editora: Paola Mittica. 2010. Disponível em: . Acesso: 28 fev. 2019, p. 34 e 35. 13 sociedade, em oposição ao formalismo jurídico centrado na norma e na instrumentalização legalista do direito através do cálculo racional13. Seguindo a linha do professor de Coimbra, o que vem a distinguir fortemente esses movimentos – e por consequência a dificultar a classificação – é a resposta apresentada ao problema: qual é o caminho a ser seguido para se afastar desse formalismo redutor da realidade?14 Essa ideia ecoa em posicionamentos como o de David Sánchez Rubio para quem o Direito e Literatura serve como uma conexão entre a realidade jurídica e a realidade social, facilitando a comunicação entre ambas15.

Apesar da dificuldade de encontrar linhas comuns em trabalhos de direito e literatura, há uma forma que já se tornou clássica de classificar – e consequentemente agrupar – esses trabalhos em trabalhos de direito da literatura, direito como literatura e direito na literatura.

DIREITO DA LITERATURA

O direito da literatura estuda a maneira como a lei – e a jurisprudência – trata de questões técnicas correlacionadas com a escrita literária, através de uma

(...) abordagem transversal que abrange questões de direito privado (direito de autor e copyright), de direito penal (toda a variedade de delitos que se podem cometer “por meio da imprensa”: injúria, calú- nias, difamações, ultraje aos costumes, declarações racistas, atentado ao chefe de Estado – em alguma legislações, ainda, a blasfêmia), de direito público (liberdade de expressão e censura), e até mesmo de direito administrativo (regulamentação dos programas escolares, das bibliotecas públicas) 16. Por muito que, das classificações estudadas neste trabalho, esta possa parecer a mais incomum – o patinho feio de uma discussão interdisciplinar, mais focado em questões tipi- camente jurídicas do que em obras literárias – é salutar destacar que a liberdade de expres- são assume um papel fundamental para o enriquecimento de uma sociedade democrática. Ao proteger tais previsões, o direito da literatura não trata de um mero reconhecimento do que foi legislado ou julgado com relação à literatura, mas sim que “(...) seu estudo e crítica

13 LINHARES, José Manuel Aroso. Law in/as Literature as an Alternative Humanistic Discourse: the Una- voidable Resistance to Legal Scientific Pragmatism or the Fertile Promise of a Communitas without Law?. Dossier Law and Literature. A Discussion on Purposes and Method. Italian Society for Law and Literature. Editora: Paola Mittica. 2010. Disponível em: . Acesso: 28 fev. 2019, p. 26 e 27. 14 LINHARES, José Manuel Aroso. Law in/as Literature as an Alternative Humanistic Discourse: the Una- voidable Resistance to Legal Scientific Pragmatism or the Fertile Promise of a Communitas without Law?. Dossier Law and Literature. A Discussion on Purposes and Method. Italian Society for Law and Literature. Editora: Paola Mittica. 2010. Disponível em: . Acesso: 28 fev. 2019, p. 27 e s.. 15 SÁNCHEZ RUBIO, David. Ciencia-ficción y derechos humanos. Una aproximación desde la complejidad, las tramas sociales y los condicionales contrafácticos. In: Revista PRAXIS, n. 64-65, p. 51-72, 2010, p. 57 e 58. 16 OST, François. Contar a Lei. As fontes do Imaginário Jurídico. Trad.: Paulo Neves. São Leopoldo: Unisi- nos, 2004, p. 50. 14 deve ser gizado exatamente pelo fato de contribuir para a melhora das instituições e neste sentido, a nós parece claro, contribuir para o próprio arranjo democrático”17.

Como exemplo dessa importância vale destacar o Caso Ellwanger, de 2003, quando coube ao Supremo Tribunal Federal julgar se as publicações de Siegfried Ellwanger, funda- dor da Editora Revisão, especializada em material antissemita e negador do holocausto 18, estavam protegidas pelo direito à liberdade de expressão ou se a publicação de tal material caracterizou crime de incitação ao racismo – momento no qual o Tribunal realizou uma ponderação de princípios seguindo as máximas da adequação, necessidade e proporciona- lidade em sentido estrito para concluir que a liberdade de expressão não alcança a intole- rância racial e o estímulo à violência19. Cláudia Honório e Heloísa Krol ao analisarem a decisão do STF, ponderam sobre a importância e limites da liberdade de expressão para o regime democrático e verificam que tal decisão está de acordo com a aplicação da propor- cionalidade defendida por Alexy20 - um trabalho que representa os elementos clássicos de Direito da Literatura.

DIREITO COMO LITERATURA

O direito como literatura (law-as-literature) inicia um projeto de interdisciplinaridade mais profundo entre o direito e a literatura, por considerar que textos jurídicos devem ser encarados como pedaços de literatura e, com isso, abre a possibilidade para a utilização de métodos de crítica literária na aplicação do direito, bem como discussões sobre o sucesso performativo que o direito tenta impor, ou ainda, discussões sobre o estilo jurídico21. Um exemplo de raciocínio pautado no direito como literatura é a presunção de um controle autoral sobre a semântica e estrutura de um texto jurídico, permitindo a utilização de téc- nicas de busca de sentido normalmente aplicadas a poemas, peças ou romances22 - a ideia do romance em cadeia de Dworkin entra exatamente nessa classificação23.

17 NOGUEIRA, Bernardo Gomer Barbosa. RIBEIRO, Fernando Jose Armando (Orientador). Direito e Literatura: hospitalidade e invenção. Tese (doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018, p. 132. 18 CALDEIRA NETO, Odilon. Memória e justiça: o negacionismo e a falsificação da história. Antíteses, v. 2, n. 4, p. 1097-1123, 2009, p. 1110. 19 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82.424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator (a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, Julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004, disponí- vel em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79052 Acesso: 28 fev. 2019, o voto do Ministro Gilmar Mendes é particularmente claro ao discutir não só como se aplica o princípio da proporcionalidade em abstrato (p. 659 a 661), bem como ao explicar a aplicação para esse caso concreto (p. 669 a 671). 20 HONÓRIO, Cláudia; KROL, Heloísa. Jurisdição constitucional, democracia e liberdade de expressão: análise do caso Ellwanger. A&C-Revista de Direito Administrativo & Constitucional, v. 8, n. 32, p. 77-92, 2008, p. 87 a 89. 21 OST, François. Contar a Lei. As fontes do Imaginário Jurídico. Trad.: Paulo Neves. São Leopoldo: Unisi- nos, 2004, p. 51. 22 WEISBERG, Robert. The Law-Literature Enterprise, Yale Journal of Law & the Humanities: Vol. 1: Iss. 1, Article 4, p. 1-67, 1989, Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/yjlh/vol1/iss1/4 . Aces- so: 28 fev. 2019, p. 2. 23 WEISBERG, Robert. The Law-Literature Enterprise, Yale Journal of Law & the Humanities: Vol. 1: Iss. 1, Article 4, p. 1-67, 1989, Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/yjlh/vol1/iss1/4 . Aces- 15 Jacque Derrida, no livro “A Farmácia de Platão”, parte de um diálogo filosófico grego entre e Fedro sobre a superioridade da fala sobre a escrita para apontar que as oposições binárias utilizadas na conversa servem para identificar os nichos culturais que dominam esses espaços (onde Sócrates, que não deixou nada escrito, convence seu inter- locutor da superioridade da fala). Trata-se de uma análise literária, que serve de inspiração para Arnaldo Godoy realizar uma desconstrução semelhante que serve para denunciar o nicho cultural jurídico ambíguo que pretende a oralidade à instrumentalidade das formas ao mesmo tempo que festeja a retórica rebuscada do fórum24.

Ainda pensando na interação da desconstrução de Derrida e do Direito, mas voltado a corrigir e não denunciar as contradições e insuficiências do Direito, Jack Balkin leva a proposta para a teoria da decisão judicial, onde o julgador ganha o poder/a responsabilida- de de utilizar a desconstrução como uma técnica de alcançar a justiça, através do ciclo de desconstrução/reconstrução dos conceitos e hierarquias relevantes para um caso na busca da reconstrução de uma melhor ordem dentro do ordenamento jurídico25. Ciclo que deve ser interrompido no momento em que a compreensão possível das propostas jurídicas é reconstruída de maneira mais justa26 que, para ser alcançada, pressupõe que a situação seja compreendida em toda a sua singularidade e que se faça um esforço para entender o ponto de vista do outro27.

Tanto o trabalho de Godoy quanto o de Balkin são formas distintas de utilizar algu- mas das matrizes da crítica literária proposta por Derrida para a compreensão do fenômeno jurídico, o que as caracteriza como trabalhos de direito como literatura28.

DIREITO NA LITERATURA

Por fim, o direito na literatura (law-in-literature) tem a pretensão de destacar a con- tribuição literária para a “(...) formulação e elucidação das principais questões relativas à justiça, à lei e ao poder (...)”29. Originalmente pensado em torno da representação de ope- radores do direito e processos em obras de ficção ou drama, seu escopo foi ampliado para a

so: 28 fev. 2019, p. 44. 24 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito, Literatura e Cinema: Inventário de Possibilidades. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 268. 25 BALKIN, Jack M. Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice. Faculty Scholarship Series. Paper 272. 1994a. Disponível em: . Acesso: 28 fev. 2019, p. 14. 26 BALKIN, Jack M. Deconstructive Practice and Legal Theory. Yale Law Journal, v. 96, p. 743-786, 1987, p. 765. 27 BALKIN, Jack M. Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice. Faculty Scholarship Series. Paper 272. 1994a. Disponível em: . Acesso: 28 fev. 2019, p. 35. 28 Apenas como um esclarecimento: ao se referir ao movimento law-as-literature Godoy utiliza a tradução direito enquanto literatura no lugar de direito como literatura. A opção pela expressão “como” deve-se ao fato de se acompanhar essa classificação conforme apresentada na obra de Ost que a utiliza. 29 OST, François. Contar a Lei. As fontes do Imaginário Jurídico. Trad.: Paulo Neves. São Leopoldo: Unisi- nos, 2004, p. 55.

16 observação de obras fundadoras de matrizes culturais capazes de construir os “(...) universos de narrações e de prescrições constitutivos de uma civilização jurídica”30, de forma que os trabalhos tendem a assumir um papel moralista, onde textos literários são utilizados como referências éticas a serem exploradas dentro do ordenamento jurídico31, a literatura ganha um papel educacional na formação jurídica, servindo para dar concretude e humanizar operadores do direito32.

No livro clássico “O Sol é para todos” de Haper Lee, o personagem Atticus Finch assume a imagem ideal de advogado: não preocupado com o prestigio profissional ou enri- quecimento pessoal, o advogado serve como um pilar da sociedade aceitando receber seus horários da forma como os clientes possam pagar, inclusive com a permuta de alimentos por seus serviços. A serenidade e compostura de Finch, bem como seu compromisso com os mais altos ideais da profissão são colocados à prova quando ele aceita defender – e o faz da melhor maneira possível – um negro acusado do crime de ter estuprado uma mulher branca em uma cidade sulista dos EUA durante a Grande Recessão. A atitude exemplar de Finch, que mantem os ideais da advocacia independentemente das repercussões sociais que ele e sua família sofrem, inspirou Paulo Silas Filho a escrever um artigo sobre a questão que termina com a seguinte passagem: “(...) Que possamos, nós profissionais, trilhar o nosso caminho em tal seara assim como Atticus, zelando pelo bom, efetivo, ético e combatente exercício profissional. A literatura tem muito a nos ensinar. Eis aqui uma grande lição”33. A passagem final do artigo só confirma seu conteúdo: trata-se de um trabalho que assume um discurso moralista presente na literatura como uma forma de guiar a conduta de advogados, portanto um exemplo clássico de direito na literatura.

Contudo, a dificuldade e critica aqui apresentada diz respeito à taxionomia: a classificação correlacionada com o direito da/como/na literatura se relaciona com os pe- daços da literatura que podem ser usados na análise conjunta com o direito. A grosso modo, pode-se destacar que o direito da literatura se refere ao conjunto de previsões legais correlacionadas com o texto escrito, envolvendo temas como direitos autorais e liberdade de expressão e não uma interligação entre a ciência jurídica e a literária; o direito como literatura usa a metalinguagem da crítica e técnica literária; e por fim, o direito na literatura efetivamente trata da interação do direito com a obra literária, com suas histórias, metáforas e temas.

Por muito que essa classificação seja clara e eficiente em organizar os trabalhos, não é objetiva ao transmitir quais pontos da interdisciplinaridade entre direito e literatura podem

30 OST, François. Contar a Lei. As fontes do Imaginário Jurídico. Trad.: Paulo Neves. São Leopoldo: Unisi- nos, 2004, p. 57. 31 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito, Literatura e Cinema: Inventário de Possibilidades. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 14 e 15. 32 WEISBERG, Robert. The Law-Literature Enterprise, Yale Journal of Law & the Humanities: Vol. 1: Iss. 1, Article 4, p. 1-67, 1989, Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/yjlh/vol1/iss1/4 . Aces- so: 28 fev. 2019, p. 17. 33 SILAS FILHO, Paulo. O Direito pela Literatura: Algumas Abordagens. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 40. 17 ajudar na atuação jurídica. Uma classificação diferente, amparada justamente nesse critério, seria bem mais interessante.

MAS PRECISA SER LITERATURA?

Antes de analisar um outro critério de taxonomia, parece adequado questionar a es- colha de obras a serem usadas nesse trabalho interdisciplinar, tanto correlacionado com o gênero quanto com a mídia em que as histórias são contadas. Afinal de contas, ao pretender aproximar o Direito e a Literatura, é preciso discutir que livros usar34.

Martha C. Nussbaum defende que juristas devem ler romances realistas que discutam questões morais relevantes por ser o tipo de literatura mais adequada para colocar o leitor em uma posição de ponderação e discussão moral em que não esteve antes, com a clara in- tenção de utilizar a literatura para humanizar o jurista35. Nesse sentido, a autora crítica uma visão normativa retirada da aplicação de pressupostos econômicos em decisões políticas, por entender que a mesma não é capaz de compreender “(...) a vida moral de cada ser hu- mano, seus desejos e surpresas, suas complicadas emoções (...)”36, com isso a vida humana é reduzida às necessidades de uma máquina e o governo de seres humanos se torna impossí- vel. Para contrapor esta posição, a autora sugere que a leitura de livros como Tempos Difíceis de Charles Dickens permite, por sua própria estrutura (que coloca o leitor diante de vários personagens com os quais pode criar vínculos) e forma como foi escrita (com atenção aos detalhes e criação de um mundo rico), permite destacar que seres humanos são “(...) criatu- ras para as quais a liberdade de escolha apresenta uma importância profunda e apaixonada, importância que não pode ser reduzida ao prazer, mas que estabelece as condições para as quais qualquer prazer pode ser verdadeiramente um prazer humano (...)”37. Dessa forma, ao levar o leitor a “(...) imaginar coisas que não existem de verdade, o romance não está sendo ‘inerte’: está ajudando o leitor a compreender seu próprio mundo e a fazer escolhas mais refletidas nele”38.

O problema que se levanta agora é justamente quais seriam os livros que serviriam para a realização de tais trabalhos – e quem decidiria essa lista. Uma questão antiga levan- tada dentro do movimento seria quais os “grandes livros” que valem a pena ser estudados nesse tipo de trabalho. O problema é que a escolha desses livros frequentemente é polémica

34 A pergunta logicamente anterior a essa – SE é necessário usar livros para um trabalho de direito e literatura – tem como resposta óbvia que não: como se viu, apenas o ramo Direito na Literatura pressupõe expressamente a utilização de livros em uma tentativa de conversa interdisciplinar; os trabalhos de direito como literatura, entretanto, materializam esta busca entre o direito e a crítica literária, sem pressupor leitura de livros. Ainda assim, o pressuposto da discussão neste tópico é que obras literárias serão usadas, visando questionar quais. 35 NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice: The Literary imagination and Public Life. Boston: Beacon Press, 1995, p. 4 a 12. 36 NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice: The Literary imagination and Public Life. Boston: Beacon Press, 1995, p. 24, tradução livre. 37 NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice: The Literary imagination and Public Life. Boston: Beacon Press, 1995, p. 29, tradução livre. 38 NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice: The Literary imagination and Public Life. Boston: Beacon Press, 1995, p. 31, tradução livre. 18 e inconsistente, voltada mais ao que aqueles que desejam formar esse tipo de lista leem do que para critérios de representatividade – de fato uma das críticas feitas pelos autores de direito, literatura e feminismo é justamente que o cânone escolhido pelo movimento di- reito e literatura por vezes exclui obras de autores mulheres ou representantes de minorias, não questionando de maneira autorreflexiva quem são os marginalizados na formação desse cânone39.

E todo esse questionamento do cânone ainda não levanta porque utilizar especifica- mente literatura. Se a intenção for criar e utilizar obras que permitam – resumidamente – a intenção de criar empatia entre o consumidor daquela obra e outros grupos dos quais ele não faz parte, por que não incluir no cânone obras não literárias, mas que geram o mesmo efeito? Afinal, é importante lembrar que

“(...) cultura popular frequentemente convida os espectadores a atu- arem como substitutos para policiais, juris, juízes e advogados, per- mitindo que profundamente experimentem a prática do direito por dentro. Além disso, espectadores são convidados a tirarem conclusões sobre se a lei que eles experimentaram no filme ou na televisão ajuda ou atrapalha na busca por justiça”40. Nussbaum, ainda que brevemente, reconhece o potencial humanizador de filmes em seu trabalho41, o que leva a uma discussão do próprio conceito de literatura ampliado para além de textos escritos. Exemplo interessante dessa compreensão ampla presente no termo literatura pode ser retirado do trabalho de Sánchez Rubio, que apesar de constantemente se referir a literatura, muitos dos exemplos que utiliza são de filmes (como Guerra nas Es- trelas) ou de séries de televisão (como Star Trek). Isso leva a crer que a compreensão que o autor tem de literatura se aproxima da de Antonio Candido, para quem a literatura deve ser compreendida da maneira mais ampla possível, envolvendo “(...) todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura (...)”42, o que é reforçado pela afirmação de Robert Weisberg, que contrapõe a for- ma dialética de estudos literários – ou artísticos, em seu sentido mais amplo – com a forma discursiva apresentada nas ciências exatas ou sociais43. Essa compreensão ampla do termo literatura permite compreender porque do movimento original de Direito e Literatura nasceram movimentos similares que abarcam outras mídias culturais, como o Direito e Ci- nema, o Direito e Televisão ou o Direito e Cultura Popular, que são agrupados nos estudos de Direto e Humanidades (Law and Humanities), onde as várias disciplinas de humanidades 39 RESNIK, Judith. Convergences: Law, Literature, and Feminism, Yale Law Journal, n. 99, p. 1913-1956, 1990, p. 1936. Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/ylj/vol99/iss8/3 Acesso: 06 mar. 2019 40 ASIMOW, Michael. MADER, Shannon. Law and Popular Culture A Course Book. 2ed. New York: Peter Lang Publishing, 2013, p. 7. 41 NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice: The Literary imagination and Public Life. Boston: Beacon Press, 1995, p. 6. 42 CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2017, p. 174. 43 WEISBERG, Robert. The Law-Literature Enterprise, Yale Journal of Law & the Humanities: Vol. 1: Iss. 1, Article 4, p. 1-67, 1989, Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/yjlh/vol1/iss1/4 . Aces- so: 28 fev. 2019, p. 51. 19 são agrupadas como uma forma de escapar de uma compreensão do ordenamento jurídico técnico e divorciado de qualquer valor humano que não seja a eficiência econômica44.

É interessante voltar ao já referido texto de Sánchez Rubio para discutir uma ou- tra questão importante: o autor defende que o gênero ficção científica é particularmente proveitoso para superar a ilusão criada pelo princípio da impossibilidade pois através da imaginação e ficção especulativa, apresenta novas identidades, subjetividades e intersubje- tividades, além de refletir sobre a condição humana em novas condições, alertando sobre determinados riscos e possibilidades da ciência moderna45. Pode parecer estranho pensar que gênero ficção científica tem como ponto principal a relação entre os seres humanos e os avanços tecnológicos, e não na mera existência de grandes tecnologias, mas é exata- mente essa a percepção que autores como Isaac Asimov possuem46. Com essa compreensão da ficção científica é fácil entender o posicionamento de Sánchez Rubio no sentido de utilizar as versões utópicas /distópicas desse gênero para apresentar problemas das socieda- des contemporâneas47, especialmente quando se considera que autores distópicos mantêm a percepção que a sociedade pode mudar para melhor, como sua contraparte utópica, mas utilizam um tom mais sombrio para denunciar as injustiças da sociedade onde vivem48, com a intenção de criar um “[...] aviso de incêndio, o qual, como todo recurso de emergência, busca chamar atenção para que o acontecimento perigoso seja controlado, e seus efeitos, embora já em curso, sejam inibidos [...]”49. Daí porque obras como Admirável Mundo Novo e 1984, dois exemplos de distopia bem diferentes entre si, têm em comum a existência de uma dominação estatal tão grande que impede o pensamento divergente. “[...] Huxley erradicava a heterodoxia pela manipulação genética e o condicionamento psicológico; Orwell chega ao mesmo efeito pela esterialização da linguagem: quando fazem falta ‘palavras para o dizer’, é o pensa- mento mesmo que se condena à asfixia [...]”50.

Se se radicalizar a postura apresentada por Sánchez Rúbio, pode perguntar-se: será que trabalhos de Direito e Literatura deveriam se limitar a trabalhos de ficção cientifica ou ao gênero distópico/utópico? Ou – ignorando a ficção cientifica, a distopia e a utopia – ha- veria uma limitação considerável para gêneros ou livros a serem utilizados em um trabalho de direito e literatura?

44 BALKIN, Jack M. e LEVINSON, Sanford “Law and the Humanities: An Uneasy Relationship,” Yale Jour- nal of Law & the Humanities: Vol. 18: Iss. 2, Article 1, p. 155-186, 2006, p. 186. 45 SÁNCHEZ RUBIO, David. Ciencia-ficción y derechos humanos. Una aproximación desde la complejidad, las tramas sociales y los condicionales contrafácticos. In: Revista PRAXIS, n. 64-65, p. 51-72, 2010, p. 56 e 57. 46 ASIMOV, Isaac. How easy to see the Future! Asimov on Science Fiction. Isaac Asimov (ed.) New York: Doubleday, p. 73-94, 1981, p. 82. 47 SÁNCHEZ RUBIO, David. Ciencia-ficción y derechos humanos. Una aproximación desde la complejidad, las tramas sociales y los condicionales contrafácticos. In: Revista PRAXIS, n. 64-65, p. 51-72, 2010, p. 58. 48 SCHÄFER, Martin. The Rise and Fall of Antiutopia: Utopia, Gothic Romance, Dystopia. Science Fiction Studies, n 19, 1979, disponível em: http://www.depauw.edu/sfs/backissues/19/sch%C3%A4fer19art.htm Acesso: 06 mar. 2019. 49 HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como ferramenta de análise radical da Modernidade. Anuário de Literatura, v. 18, n. 2, p. 201-215, 2013, p. 202. 50 OST, François. Contar a Lei. As fontes do Imaginário Jurídico. Trad.: Paulo Neves. São Leopoldo: Unisi- nos, 2004, p. 377 e 378, grifos no original. 20 Em um primeiro momento, separar o cânone do direito e literatura não em um conjunto pré-selecionado de grandes livros, mas sim em uma seleção de gêneros literários poderia resolver alguns dos problemas de não representatividade de minorias, uma vez que autores de quaisquer grupos podem escrever livros sobre ficção cientifica – e na verdade Star Treck em particular é uma série de televisão marcada pelo tratamento progressista em suas histórias, sendo inclusive responsável pelo primeiro beijo intraracial da televisão ame- ricana entre Kirk e Uhura transmitido em 1968. Contudo, parece que boa parte das críticas discutidas no começo deste tópico, correlacionadas com a dificuldade de selecionar livros específicos para trabalhar com Direito e Literatura, se aplicam aqui e mais importante do que a seleção de um gênero especifico é a intenção do trabalho. Um trabalho que tenha a intenção de discutir a compreensão humana vai encontrar um terreno fértil de discussão dentro de utopias/distopias em um cenário de ficção cientifica, como muito bem é defen- dido por Sánchez Rubio.

Para tentar compreender o que leva Sánchez Rubio a defender a atualidade que ficções científicas utópicas/distópicas possuem para trabalhos de direito e literatura, basta ver o trabalho de Ricardo Becker, Maria Ramos e Guilherme Marinho, que utilizam o livro 1984 de George Orwell como inspiração para discutir sobre a possibilidade de uma democracia totalitarista, reconhecendo que Orwell tem razão ao afirmar que mesmo go- vernos totalitários não conseguem se manter sem apoio popular, o que exalta a importância da propaganda governamental (o duplipensamento e o Ministério da Verdade na obra51), o que pode ser percebido em governo totalitários no século XX (como foi o caso da Era Vargas no Brasil52) e no século XXI o problema permanece atual (quando se analisa a dis- ponibilidade exagerada de informação, que dificulta a diferenciação do que é informação do que é propaganda, como acontece em redes sociais53). Para qualquer um que conheça a obra, a justificativa para a utilizar neste tipo de discussão é evidente e a defesa que obras diatópicas de ficção científica atendem com facilidade os requisitos para trabalhos de Direi- to e literatura fica evidenciada.

Contudo, trabalhos como o de Mancy Marder sobre o programa de televisão Judge Judy, popular nos EUA, servem para lembrar que análises jurídicas podem ser feitas sobre a representação dos operadores do Direito em programas de televisão: especificamente como a representação de uma juíza na televisão, que tem como ator principal uma ex-juíza, envolvendo casos reais em um cenário que lembra um tribunal, efetivamente nubla a dife- rença entre entretenimento e informação de alguns programas televisivos54, criando em sua

51 BECKER, Ricardo Dani; RAMOS, Maria Carolina de Jesus; e MARINHO, Guilherme Ribeiro. Demo- cracia Totalitária. Direito & Literatura: Breves Diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee. Paulo Silas Filho (org.). Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018, p. 99 a 102. 52 BECKER, Ricardo Dani; RAMOS, Maria Carolina de Jesus; e MARINHO, Guilherme Ribeiro. Demo- cracia Totalitária. Direito & Literatura: Breves Diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee. Paulo Silas Filho (org.). Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018, p. 103. 53 BECKER, Ricardo Dani; RAMOS, Maria Carolina de Jesus; e MARINHO, Guilherme Ribeiro. Demo- cracia Totalitária. Direito & Literatura: Breves Diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee. Paulo Silas Filho (org.). Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018, p. 105. 54 MARDER, Nancy S. Judging Judge Judy. Lawyers in your living room! Law on Television. Michael Asimow (ed.). p. 299-307. Chicago: ABA Publising, 2009, p. 302 a 304, onde inclusive indica alguns estudos 21 audiência a impressão que aquela é a forma como juízes deveriam se comportar: de maneira opinativa, sem a necessidade de explicar suas decisões e agindo de maneira grosseira com os queixosos à sua frente55. O artigo ressalta que por muito que o show possa transmitir uma mensagem positiva de empoderamento feminino56, a necessidade de manter audiência – e o impacto que o show causa – provocam mais má compreensão do que a transmissão de uma mensagem positiva57. O que é mais um interessante trabalho sobre direito e literatura que só é possibilitado pela grande popularidade do programa de televisão.

O que permite discutir que um dos ramos de atuação Direito e Literatura é vinculada à importante tarefa de aproximar a pesquisa às formas narrativas que são mais próximas das conhecidas pelos estudantes, para facilitar o ensino jurídico ou a discussão de temas complexos – começando uma discussão voltada ao que é de conhecimento comum, o que mais uma vez conecta o movimento com discussões sobre Direito e Cultura Popular e até mesmo com histórias protagonizadas pelo Hulk ou a Mulher Maravilha58. Nesse contexto, a popularidade de uma obra não seria justificativa para sua utilização?

O século XXI viu uma mudança de perspectiva sobre os super-heróis, que saíram de um objeto de culto nerd nas décadas anteriores para alguns filmes de sucesso (como X-men e Homem Aranha, ambos produzidos pela 20th Century Fox no começo da década de 2000) para um dos maiores universos cinematográficos da história materializado nos filmes da Marvel, com uma tendência que tenta ser replicada em outras franquias de filmes. Apro- veitando essa onda de sucesso, James Daily e Ryan Davidson criaram, em 2010, o blog Law and the Multiverse, que se dedica à análise da repercussão jurídica de alguns cenários que só podem acontecer em um mundo onde superpoderes existem59. Por exemplo, ao se de- bruçar sobre a possibilidade de uma discriminação legal relativo a mutantes no universo da Marvel 60, aproveita para discutir o sistema de Direitos Civis americanos, particularmente desenhando os tratamentos diferenciados que a Suprema Corte dá para cada preconceito que se materializa em ação estatal61, para concluir que dada a novidade da situação – os mu-

que apontam a eficácia com que a confusão entre realidade e ficção convencem aqueles que o assistem. 55 MARDER, Nancy S. Judging Judge Judy. Lawyers in your living room! Law on Television. Michael Asimow (ed.). p. 299-307. Chicago: ABA Publising, 2009, p. 300 a 302. 56 MARDER, Nancy S. Judging Judge Judy. Lawyers in your living room! Law on Television. Michael Asimow (ed.). p. 299-307. Chicago: ABA Publising, 2009, p. 304 a 306. 57 MARDER, Nancy S. Judging Judge Judy. Lawyers in your living room! Law on Television. Michael Asimow (ed.). p. 299-307. Chicago: ABA Publising, 2009, p. 306. 58 FRIEDRICHS, David O. Narrative Jurisprudence and Other Heresies: Legal Education at the Margin. Journal of Legal Education, Durham, v. 40, mar. 1990, Disponível em: https://search.proquest.com/ docview/1290644207/fulltextPDF/ED05914AD34B4EFDPQ/1?accountid=39703 . Acesso: 28 fev. 2019, p. 11. 59 Caso alguém deseje visitar, o site está disponível no endereço < http://lawandthemultiverse.com>, apesar de não receber atualizações regulares. O trabalho ali desenvolvido gerou o livro, The Law of Superheroes, vide a nota 60. 60 A demanda por igualdade de direitos mutantes pode ser vista nos filmes dos X-men, sendo um dos temas principais da franquia e tem especial relevo no primeiro filme da série (X-men, lançado em 2000), X-men: First Class (2011) e X-men: Days of Future Past (2014). 61 Especificamente, strict scrutiny, quando se trata da violação de uma proteção constitucional expressa, como raça ou religião, a identificação da inconstitucionalidade é fácil; quasi suspect, como no caso de descriminação de gênero ou nascimento fora da relação conjugal, que só autoriza a declaração de inconstitucionalidade de 22 tantes apareceram na década de 1960 no Universo Marvel – a Corte teria pouca base para concluir se as medidas legislativas adotadas são adequadas ou não para lidar com a situação mutante62. O paralelo da discussão, entre a Luta pelos Direitos Civis na década de 1960 e a situação dos X-men não é abstrato nem por acaso, uma vez que Stan Lee criou essa equipe de super-heróis declaradamente como uma metáfora da época em que foram criados63 e a equipe continuou a levantar controvérsias mesmo depois de sua criação, como quando um de seus personagens se assumiu como gay, em 1992, e depois com o primeiro casamento gay dos quadrinhos de super-heróis, em 201264. A projeção que os filmes da Marvel ga- nharam na cultura popular do Século XXI, ligado à origem de muitos de seus heróis como uma forma de crítica social, cria um terreno fértil para discussões de Direito e Literatura.

Mesmo quando não representam uma metáfora clara para um problema jurídico es- pecífico – como no caso dos X-men – as histórias em quadrinhos ainda podem ser inspi- radoras. Wálber Carneiro critica o ativismo judicial em um artigo onde utiliza os episódios iniciais da Liga da Justiça, a Série Animada65: na história, o Super-Homem assume o papel de guardião da Terra e, dessa maneira, torna obsoleta a necessidade de um sistema de proteção do planeta – o que leva a desativação dos sistemas presentes, com a destruição das armas de destruição em massa que os tornam possíveis – a história progride para uma invasão alienígena que o Super-Homem não é capaz de conter sozinho e conta com a ajuda de outros heróis, que formam a Liga da Justiça exatamente porque um homem, não importa quão poderoso seja, não é capaz de substituir todo o sistema de proteção66. Entretanto, o que chama atenção é que o próprio plano de tornar o Super-Homem o guardião da Terra, aumentar sua popularidade e destruir os sistemas de proteção existentes foi arquitetado pelos próprios alienígenas que invadiram o planeta e venceram o homem de aço67. Partindo dessa premissa, Carneiro começa a discutir como a atuação ativista do Judiciário pode ser interpretada como a necessidade de entregar ao judiciário a função de tomar decisões políticas68, com a esperança que o mesmo corrija as injustiças que marcam leis que não sirvam a uma razão concreta ou interesse legitimo do estado; e rational basis, que trata de outros tipos de descriminação e em geral é autorizado no sistema norte-americano (DAILY, James; DAVIDSON, Ryan. The Law of Superheroes. New York: Gotham Books, 2012, p. 24 a 28). 62 DAILY; e DAVIDSON, 2012, p. 28 e 29. 63 STRAUSS, Bob. Film GENERATOR X. Nearly 40 years after Stan Lee created them, the X-Men have become the heroes of the box office - and Stan’s become the world’s best hotdog vendor. The Guardian. Publ. 12 ago. 2000. Disponível em: https://www.theguardian.com/film/2000/aug/12/features . Acesso: 06 mar. 2019. 64 PERPETUA, Matthew. Marvel Comics Hosts First Gay Wedding in ‘Astonishing X-Men’. Rolling Stone. Publ. 22 mai. 2012. Disponível em: https://www.rollingstone.com/culture/culture-news/marvel-comics- -hosts-first-gay-wedding-in-astonishing-x-men-235209/ Acesso: 06 mar. 2019. 65 Transmitida originariamente nos EUA de novembro de 2001 a maio de 2004, a série chegou na televisão aberta no Brasil pelo SBT em dezembro de 2002, onde se manteve até maio de 2013. 66 CARNEIRO, Wálber Araujo. As Origens Secretas do Ativismo Judicial e a Liga da Justiça. Direto e Litera- tura e os Múltiplos Horizontes de Compreensão pela Arte. Nelson Camatta Moreira e Juliana Ferrari de Oliveira (org.). Ijuí: Uniijuí Editora, 2015, p. 191 a 195. 67 CARNEIRO, Wálber Araujo. As Origens Secretas do Ativismo Judicial e a Liga da Justiça. Direto e Litera- tura e os Múltiplos Horizontes de Compreensão pela Arte. Nelson Camatta Moreira e Juliana Ferrari de Oliveira (org.). Ijuí: Uniijuí Editora, 2015, p. 195 e 196. 68 CARNEIRO, Wálber Araujo. As Origens Secretas do Ativismo Judicial e a Liga da Justiça. Direto e Litera- tura e os Múltiplos Horizontes de Compreensão pela Arte. Nelson Camatta Moreira e Juliana Ferrari

23 o país, mas sem perceber que a capacidade de mudanças provocadas pelo Judiciário está limitada por sistemas poderosos demais para apenas um homem vencer69. Carneiro termina o trabalho ponderando que:

É fundamental que percamos a inocência quanto ao mito do super-herói. No fundo, quando acreditamos que o Judiciário e a consciência dos nossos juízes éticos poderão salvar o Brasil da crise de efetividade constitucional, resgatamos essa figura mítica, cuja crença foi fundamental para as noites do quarto escuro. O sono dos inocentes sempre foi embalado por esse ideário. Deixemos de acreditar em fadas e em gnomos. Por melhor que sejam os sujeitos da Liga da Justiça, sempre serão sujeitos. Por melhor que sejam os juízes do STF, STJ, CNJ, sempre serão sujeitos. Por mais honestos que sejam os corregedores, sempre serão sujeitos. A grade questão é saber como contribuir, teoricamente, para as modificações do sistema. Como fazer com que sujeitos possam, em alguma medida, contribuir com o jogo do sistema70. Portanto, perante trabalhos interessantes como esses, parece que mais importante do que a tentativa de selecionar um conjunto de obras que possam ser utilizadas para traba- lhos de Direito e Literatura – seja em torno de um conjunto de livros, seja em torno de um gênero literário, seja na limitação de um gênero midiático especifico – é entender a forma como aquela Literatura selecionada pode enriquecer o estudo do Direito naquele trabalho específico. Afinal “(...) será que qualquer trabalho de literatura – velho ou novo, convencional ou alternativo – não possui algo a ensinar sobre a natureza humana, o papel das emoções e intuições e sobre o processo moral de tomar decisões?”71.

Ou, colocando esse posicionamento de outro modo, a forma abstrata que permite o englobamento (e a limitação) de trabalhos de Direito e Literatura a trabalhos que, ainda que não tratem da específica representação de situações e atores jurídicos (como advogados ou um processo), englobem discussões sobre poder e sobre a condição humana, tenderia a excluir desse conjunto de possibilidades a análise de – por exemplo – animações infantis que terminam com seus personagens principais, animais antropomorfizados, deitados no chão, rindo de maneira descontraída – como a animação Peppa Pig, voltada ao público infantil em idade pré-escolar. Entretanto, a interação entre Papai Pig e Mamãe Pig na divi- são de trabalhos domésticos e atuação com as crianças (Peppa e seu irmão) foi exatamente

de Oliveira (org.). Ijuí: Uniijuí Editora, 2015, p. 197 e 198. 69 CARNEIRO, Wálber Araujo. As Origens Secretas do Ativismo Judicial e a Liga da Justiça. Direto e Litera- tura e os Múltiplos Horizontes de Compreensão pela Arte. Nelson Camatta Moreira e Juliana Ferrari de Oliveira (org.). Ijuí: Uniijuí Editora, 2015, p. 198 a 200. 70 CARNEIRO, Wálber Araujo. As Origens Secretas do Ativismo Judicial e a Liga da Justiça. Direto e Litera- tura e os Múltiplos Horizontes de Compreensão pela Arte. Nelson Camatta Moreira e Juliana Ferrari de Oliveira (org.). Ijuí: Uniijuí Editora, 2015, p. 200. 71 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1068.

24 a temática escolhida por Karina Sheuch Brunet e Lauren Raquel da Costa para discutir a evolução do modelo de família e os estereótipos de gênero, uma vez que a inversão dos papeis de gênero é comum em diversos episódios da animação e os porquinhos masculi- nos da animação trabalham com os femininos para a construção de um “(...) mundo de encantamento e paz entre os gêneros que tanto atrai a criançada”72. Utilizando a análise de discurso, as autoras encontram elementos na animação para refletir sobre as mudanças que a família vem sofrendo, indicando a real possibilidade de atuação harmônica entre os gêneros que permite um convívio não submisso entre o homem e a mulher73 para funcionar “(...) como a evidência pela ausência no contraponto com a prática social que, infelizmente, ainda se encontra em alguns lares Brasil a fora, nos quais se percebe a violência doméstica e a sobreposição do homem em relação a mulher”74.

O referido trabalho leva à seguinte questão: se é possível a confecção de um trabalho acadêmico que discute a ressignificação da relação homem e mulher dentro do ambiente familiar através de uma animação infantil voltada ao público escolar como a Peppa Pig, por que não o classificar como um trabalho de Direito e Literatura?

A CLASSIFICAÇÃO PROPOSTA POR JANE BARON, OU SOBRE AS POSSIBILIDADES INTERDISCIPLINARES DO DIREITO E LITERATURA

Jane Baron ao se debruçar sobre o movimento Direito e Literatura e na tentativa de responder à pergunta central de por que operadores do direito devem ler literatura – ou o que a literatura tem para oferecer ao estudo do direito – descobre um movimento frag- mentado no qual três respostas distintas se sobressaem75: humanistic law-and-lit; hermeneutic law-and-lit e narrative law-and-lit76.

HUMANISTIC LAW-AND-LIT

O ponto central trabalhado pela humanistic law-and-lit é que a literatura é necessária para humanizar os operadores do direito, na medida em que (1) permite que estes apren-

72 BRUNET, Karina Sheuchh; COSTA, Lauren Raquel da. Peppapig e a ressignificação do papel da mulher na família contemporânea. DiPOP: o Direito na Cultura POP. Tassia A. Gervasoni; Felipe da Veiga Dias (org.). São Paulo: Letras Jurídicas, 2016, p. 206. 73 BRUNET, Karina Sheuchh; COSTA, Lauren Raquel da. Peppapig e a ressignificação do papel da mulher na família contemporânea. DiPOP: o Direito na Cultura POP. Tassia A. Gervasoni; Felipe da Veiga Dias (org.). São Paulo: Letras Jurídicas, 2016, p. 204 e 205. 74 BRUNET, Karina Sheuchh; COSTA, Lauren Raquel da. Peppapig e a ressignificação do papel da mulher na família contemporânea. DiPOP: o Direito na Cultura POP. Tassia A. Gervasoni; Felipe da Veiga Dias (org.). São Paulo: Letras Jurídicas, 2016, p. 210. 75 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1063. 76 Apenas para explicar o motivo de utilizar as expressões em inglês: a narrative jurisprudence – como defendida por Friedrichs – acabaria por envolver vertentes que Baron classificaria como humanistic law-and-lit (como os trabalhos voltados à educação) e como narrative law-and-lit (como trabalhos voltados para a utilização estraté- gica da narração). Contudo, a tradução de narrative jurisprudence e de narrative law-and-lit tendem a ser muito próximas, assim, para evitar confusões usam-se as terminologias originais. 25 dam sobre a natureza humana – especialmente sobre pessoas deferentes de si mesmos; (2) possibilita a contraposição do pensamento abstrato que domina o raciocínio jurídico com formas de pensar amparadas na emoção, intuição e concretude; (3) treina os operadores do direito para a função de realizar escolhas morais77 78. A ideia base do humanistic law-and-lit assenta na compreensão de que a literatura pode contribuir com uma elevação moral no direito, justamente por

(...) treina as pessoas em reflexão, consciência, escolha e responsabi- lidade, elementos essenciais para desenvolver a habilidade de tomar decisões morais. E o faz apresentando um universo artificial, mas concreto, em que premissas podem ser trabalhadas de forma a condu- zir para a empatia, mas ambíguo o bastante para permitir a formação de um julgamento moral79. Sentido que se aproxima do posicionamento defendido por Lenio Streck ao afirmar que:

A cotidianidade do direito não nos toca. Ou seja, a realidade não nos “diz nada”. Mas, as ficções, sim. Com isso, confundimos as ficções da realidade com a realidade das ficções. Ficamos endurecidos. A litera- tura pode mais do que isso. Necessitamos do absurdo, do impossível, para constatarmos a crueldade do mundo que nos cerca, por isso precisamos da literatura, mostrando de novas formas, de um novo lugar de fala, nas palavras de Barthes (ou de situação hermeneutica, para falarmos de Gadamer), para demonstrar o que é digno de crítica. Ela pode ser o canal de aprendizado do direito na sala de aula [...]80. O movimento do humanistic law-and-lit se divide em vários ramos diferentes. Apenas para pontuar essa diferença, podemos contrapor a proposta de Nussbaum com o grupos que defende a utilização da Literatura para humanizar o ensino jurídico. Nussbaum que defende a possibilidade e importância da leitura para conquistar um avanço na capacidade poética do juiz. Nesse sentido, a característica mais importante de um juiz poeta é a capa- 77 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1064. 78 Aproveitam-se alguns dos trabalhos de Direito e Literatura apresentados no tópico anterior deste trabalho para exemplificar a ideia de interdiciplinariedade de Baron, os reclassificando conforme a taxionomia apresen- tada pela autora. Para começar essa discussão, os trabalhos de Silas Filho sobre a figura do advogado na obra “O sol é para todos”; o de Becker, Ramos e Marinho sobre “1984”; o de Marder sobre a Judge Judy; bem como o trabalho de Carneiro sobre a Liga da Justiça facilmente se classificam como trabalhos de humanistic law-and-lit. O trabalho de James Daily e Ryan Davidson discutindo histórias em quadrinhos também podem se qualificar como humanistic law-and-lit, mas dada a forma como são escritos, acabam por cair nas discussões que vinculam o humanistic law-and-lit especificamente com o ensino jurídico, o que não é a intenção dos demais trabalhos. 79 HIRSHMAN, Linda R. Bronte, Bloom, and Bork: An Essay on the Moral Education of Judges. Uniersity of Pennsylvania Law Review, v. 137, p. 177-231, 1988, p. 179, tradução livre. 80 STRECK, Lenio Luiz. Porque precisamos de grandes narrativas no e do Direito. Direito e Literatura: por que devemos escrever narrativas? NOGUEIRA, Bernando B. G. e SILVA, Ramon Mapa da (organiza- dores). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013, p. 62. 26 cidade de ver os interesses e direitos dos outros, sem compartilhar suas razões ou emoções, permitindo dessa forma ver o outro em sua diferença (e o que pode justificar o medo social desse individuo), mas também o enxergar em sua semelhança, nas preocupações comuns que ligam todos os homens, de maneira semelhante à atitude tomada por Justice Stevens, no caso Hudson v. Palmer81.

A subdivisão do humanistic law-and-lit voltada ao ensino jurídico visa contrapor uma forma bancária de ensino jurídico82 e “(...) desafiar a tendência dos estudantes que são no- vos no estudo do Direito de vê-lo como inerte, limitado e formal”83. Esse processo ocorre por meio da exposição dos estudantes a formas muito diferentes de discursos focados no direito, usando formas narrativas diferenciadas para sugerir que as inter-relações entre o Direito e a Sociedade são complexas demais para serem absorvidas como um todo, incum- bindo a cada estudante formar sua compreensão particular sobre essa relação84. A análise contextual que pode ser extraída das históricas presentes no Direito são o que torna esses casos interessantes e moralmente desafiadores, o contexto torna a questão mais complexa, mas também faz com que a decisão jurídica seja mais humana e realista85 e compete aos estudantes se debruçarem sobre essas questões, mais do que efetivamente absorverem uma matriz ética apresentada na obra.

Compreendido o posicionamento central do humanistic law-and-lit é fundamental re- lembrar que sua própria ideia central – a ideia que a literatura é capaz de ensinar lições morais – é amplamente questionável, não apenas pela vertente de por que a literatura ou qual literatura (questões abordadas no tópico anterior), mas pelo fato de que essas lições morais não só não são evidentes nos trabalhos literários, como é raro que mesmo críticos literários concordem entre si acerca da interpretação correta de um trabalho: a pretensão da elevação moral trazida pela literatura

81 NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice: The Literary imagination and Public Life. Boston: Beacon Press, 1995, p. 99 a 104, vide o ponto 1.4 deste trabalho para uma discussão de quais obras literárias Nussbaum defende e porquê. 82 Para uma discussão sobre o que é o ensino jurídico bancário e como ele dominou a academia nacional re- comendamos: PINHEIRO, Piscila Tinelli; e FRANCISCHETTO, Gilsilene Passon Picoretti. Para além da aula jurídica tradicional: análise da formação pedagógica dos professores de Direito como um caminho possí- vel. Revista Jurídica – Unicuritiba, vol. 02, n° 51, p. 341-366, Curitiba, 2018, p. 345 a 350. Para algumas sugestões de temas e obras artísticas que podem ser usados em conjunto no ensino jurídico, bem como uma breve discussão sobre a mentalidade de escravo e Dobby o elfo doméstico: ARAÚJO, Tayane de Castro; PEPINO, Emanuel José Lopes; e FRANCISCHETTO, Gilsilene Passon Picoretti. Direito e Literatura: uma ponte para o ensino humanizador. In: Os Desafios para uma formação humaniística nos cursos de Direito. Gilsilene Passon Picoretti Francischetto (org.). Florianópolis: Habitus, 2017, p. 130 a 144. 83 FRIEDRICHS, David O. Narrative Jurisprudence and Other Heresies: Legal Education at the Margin. Journal of Legal Education, Durham, v. 40, mar. 1990, Disponível em: https://search.proquest.com/ docview/1290644207/fulltextPDF/ED05914AD34B4EFDPQ/1?accountid=39703 . Acesso: 28 fev. 2019, p. 18, tradução livre. 84 FRIEDRICHS, David O. Narrative Jurisprudence and Other Heresies: Legal Education at the Margin. Journal of Legal Education, Durham, v. 40, mar. 1990, Disponível em: https://search.proquest.com/ docview/1290644207/fulltextPDF/ED05914AD34B4EFDPQ/1?accountid=39703 . Acesso: 28 fev. 2019, p. 16. 85 MENKEL-MEADOW, Carrie. Telling Stories in School: Using Case Studies and Stories to Teach Legal Ethics. Fordham Law Review, New York, vol. 69, 2000, p. 787 a 816. Disponível em: https://scholarship. law.georgetown.edu/facpub/174/ . Acesso: 06 mar. 2019, p. 794. 27 “(...) quase exige que a literatura seja lida como um conto de fadas, em busca de sua “mensagem’. (...) Não apenas essa conclusão impõe um ar de fechamento que é inadequado para a complexidade dos trabalhos em questão, mas a certeza com que as conclusões são pro- postas contrasta com o espirito inquisitivo que, alegadamente, levou a busca da literatura em primeiro lugar”86. Bruna Waquim e Héctor Santana utilizam a família que se materializa no filme A So- ciedade Literária e a Torta de Casca de Batata para discutir como a complexa teia de formação de afetos que permeiam a existência humana permite compreender que a entidade familiar como constructo social, o que possibilita a formação da família não pelo parentesco formal, mas sim pelo amor, cuidado e proteção que se tornam os elementos centrais de uma en- tidade familiar, exatamente como ocorre no filme87. A nova percepção da relação familiar centrada no respeito e cuidado mútuo, por sua vez, permite reconhecer juridicamente como família “(...) todo grupamento humano em que vislumbrados os requisitos mínimos da constituição de uma entidade familiar, como a publicidade, a ostensividade, a assistência moral e material mútua, o objetivo de comunhão de vida, o afeto e o respeito (...)”88 am- pliando o conceito de família tradicional para uma visão familiar não limitada pela questão de gênero ou pela noção de amor romântico, mas que, como a torta de casca de batata que é servida nos encontros da sociedade, pode não ser a mais agradável, “(...) mas é a que foi conquistada e tornada significativa na existência daquelas pessoas. Por isso mesmo, única, assim como cada tipo de família”89. A forma como utilizam as emoções evocadas na obra cinematográfica para sensibilizar os leitores para o reconhecimento de novas organizações familiares compartilha o elemento central por detrás do ramo humanistic law-and-lit.

HERMENEUTIC LAW-AND-LIT

Na transição para o hermeneutic law-and-lit se trabalha com a ideia central de que o grande elemento comum entre o direito e a literatura – o texto que precisa ser lido e inter- pretado – possibilita a utilização da teoria da literatura para a realização do direito. Aqui é possível compreender a dificuldade já mencionada para considerar que o direito e literatura pode ser considerado um movimento intelectual coeso: trabalhos de hermeneutic law-and-lit

86 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1070, tradução livre. 87 WAQUIM, Bruna Barbieri; SANTANA, Héctor Valverde. A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Ba- tata: uma história de afeto e altruísmo sob a ótica da família tentacular. Direito, Arte e Literatura. Adriana Silva Maillart; Edna Raquel Rodrigues Santos hegemann; Marcelo Campos Caluppo (coor.). Florianópolis: CONPEDI, 2018, p. 72 e 73. 88 WAQUIM, Bruna Barbieri; SANTANA, Héctor Valverde. A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Ba- tata: uma história de afeto e altruísmo sob a ótica da família tentacular. Direito, Arte e Literatura. Adriana Silva Maillart; Edna Raquel Rodrigues Santos hegemann; Marcelo Campos Caluppo (coor.). Florianópolis: CONPEDI, 2018, p. 74. 89 WAQUIM, Bruna Barbieri; SANTANA, Héctor Valverde. A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Ba- tata: uma história de afeto e altruísmo sob a ótica da família tentacular. Direito, Arte e Literatura. Adriana Silva Maillart; Edna Raquel Rodrigues Santos hegemann; Marcelo Campos Caluppo (coor.). Florianópolis: CONPEDI, 2018, p. 75.

28 não defendem a necessidade da leitura de literatura como uma forma de melhorar a atu- ação jurídica, possuindo pouca conexão com o projeto de elevação moral pela literatura que marca o ramo humanistic law-and-lit. Como Baron ressalta: “(...) ambos os ramos do movimento direito e literatura não estão nem lendo os mesmos trabalhos nem fazendo as mesmas perguntas”90.

Uma crítica justa a ser estabelecida perante o hermeneutic law-and-lit se relaciona com os universos inconciliáveis da interpretação jurídica, que deseja limitar as possibilidades interpretativas para garantir a segurança jurídica, e da interpretação literária, que tem a intenção de ampliar as possibilidades interpretativas tornando o texto mais interessante. Enquanto os defensores do movimento respondem a essa crítica afirmando que a ampli- tude de possibilidades interpretativas que se alcança com a forma literária de interpretar é útil para garantir elasticidade ao direito, servindo para encontrar soluções mais justas para situações mais específicas não idealizadas no momento da criação do dispositivo jurídico interpretado91. Quando se compara a taxonomia voltada à interdiciplinariedade proposta por Baron à clássica, se percebe que o hermeutic law-and-lit se aproxima do direito como literatura. A tal ponto que dois dos exemplos utilizados para exemplificar o último servem para exemplificar essa divisão no ramo, bem como explicar essa crítica e sua resposta de maneira mais clara.

Dworkin limita a atuação do juiz pela garantia dos litigantes “[...] de ter seus atos e assuntos julgados de acordo com a melhor concepção daquilo que as normas jurídicas da comunidade exigiam ou permitiam na época em que se deram os fatos [...]”92. Para que tal proposição se compreenda, o juiz deve atuar como o escritor de um romance em cadeia ao reconhecer que tem a obrigação de criar em conjunto um romance único da melhor qualidade possível93. Dessa forma, é utilizada a lógica da crítica literária ao analisar as obras jurídicas como se fizessem parte de um trabalho comum que tem como fio garantidor de estabilidade o pressuposto da integralidade encontrada na metáfora do romancista em ca- deia, privilegiando a tentativa de encontrar a segurança jurídica e não a justiça.

Por outro lado, a desconstrução transcendental proposta por Balkin deve ser en- tendida nos termos de sua particulariedade e seletividade, uma vez que todo argumento desconstrutivista tem uma escolha do que é desconstruído e do que não é examinado e de quando a desconstrução começa e termina, escolhas que são definidas por interesses ou ideologias pessoais94. Logo, se a intenção é garantir algum tipo de previsibilidade para

90 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1065, tradução livre. 91 SOARES, Ana Isabel. Deixar de fazer Sentido. Michael Kohlahaas, de Heinrich von Kleist. In: Direito e Literatura: mundos em diálogo. Coordenação: BUESCO, Helena; TRABUCO, Cláudia; e RIBEIRO, Sónia. Coimbra: Nova Almedina, 2010, p. 119 a 121. 92 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução: Jeferson Luiz Camargo. 3. ed. São Paulo: Mar- tins Fontes, 2014, p. 263. 93 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução: Jeferson Luiz Camargo. 3. ed. São Paulo: Mar- tins Fontes, 2014, p. 276. 94 BALKIN, Jack M. Being just with deconstruction. Social & Legal Studies, v. 3, n. 3, p. 393-404, 1994,

29 a decisão judicial, impedindo o arbítrio do juiz, o método desconstrutivista proposto por Balkin simplesmente não é eficaz: o processo de desconstrução é entregue ao juiz de tal maneira que sua opinião pessoal é mais importante do que as predições do ordenamento jurídico. Contudo, a busca pela justiça transcendental pautada na lógica da tradução passa a ser possível.

NARRATIVE LAW-AND-LIT

Outro ponto de intercessão entre o direito e literatura que efetivamente abre novas possibilidades para o movimento, mas o fragmenta ainda mais, tem interesse nas histórias contadas dentro do direito – pelos clientes, advogados, juízes e pela própria doutrina – focando sua análise no impacto persuasivo e nas implicações epistemológicas do contar histórias no direito, a essa intercessão Baron denomina de narrative law-and-lit95. Que, em geral, pode ser dividida em três grupos distintos: (1) foca na utilização estratégica da arte de narrar histórias enquanto técnica persuasiva; (2) foca no uso das narrativas para encontrar evidências de como o direito funciona no mundo real96; e (3) foca na discussão de que inconsistências em histórias contadas sobre o mesmo evento levantam questões sobre a viabilidade da noção jurídica de verdade real dos fatos97.

Ruth Robbins utiliza as obras de Harry Potter como um chamariz para explicar como a Jornada do Herói – e os elementos narrativos que a compõem – pode ser usada para auxiliar a defesa de um cliente em um processo judicial, por exemplo transformando seu cliente no herói central do processo judicial e utilizando as técnicas literárias para criar uma empatia – e identificação – entre o herói e o leitor, dessa forma transformando as fra- quezas do cliente – seus vícios, falhas de caráter ou medos – não como algo que o define e não pode ser aceito na sociedade, mas como um elemento que justifica uma jornada de transformação – nesse sentido “(...) Nós amamos e perdoamos Harry por suas emoções sombrias, sofremos com ele quando percebemos sua crescente dor. Isso é natural; um herói é imperfeito por definição e a audiência admira o herói ainda mais por sua luta para superar suas falhas e sua tristeza devastadora”98. Para tanto, o advogado precisa assumir o papel de escritor e cuidadosamente escolher qual dos tipos de heróis se adequa melhor para a história p. 399 e 400. 95 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1066. 96 O trabalho de Brunet e Costa utiliza a animação Peppa Pig para denunciar o posicionamento machista que ainda impregna a realidade brasileira, apesar dos avanços sociais e legislativos, acaba se classificando nessa linha do narrative law-and-lit. Nem todos os trabalhos já apresentados podem ser facilmente classificados, uma vez que a interdisciplinaridade do Direito e Literatura pode ter objetivos transversais entre vários de seus ramos, o trabalho de Godoy sobre a utilização do método desconstrutivista de Derrida para apresentar as contradições da atuação jurídica poderia ser classificado como um trabalho de hermeneutic law-and-lit pela utilização da téc- nica literária no direito. Contudo, se considerarmos que a desconstrução – enquanto forma narrativa – está sendo usada para denunciar contradições no direito, seria mais adequado classifica-lo nesta linha do narrative law-and-lit. 97 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1071. 98 ROBBINS, Ruth Anne. Harry Potter as Client in a Lawsuit: Utilizing the Archetypal Hero’s Journey as Part of Case Strategy. The Law & Harry Potter. Jeffrey Thomas; Franklin Snyder (org.). North Carolina: Carolina Academic Press, 2016, p. 315. 30 de seu cliente, pesquisando-a cuidadosamente para poder desenvolver o tema central da defesa99, para permitir a utilização de estratégias persuasivas poderosas que estão integradas na audiência que as escuta, criando mais um elemento estratégico para representar seus clientes na corte100. O que torna esse trabalho um ótimo exemplo do ramo da narrative law-and-lit que exalta o poder persuasivo das técnicas narrativas.

Robert Cover defende a ideia de que o nomos, o “(...) universo normativo é mantido unido pela força dos compromissos interpretativos – alguns pequenos e privados, outros imensos e públicos. Esses compromissos (...) determinam o que o direito significa e o que o direito deve ser”101. Inspirados por essa ideia, Alexandre Morais da Rosa e Paulo Silas Filho analisam se a jurisdição e a doutrina penal brasileira compartilham os mitos fundantes que permitem a construção desses compromissos interpretativos, para concluir que não se pode falar de um nomos, como defendido por Cover, no atual processo penal brasileiro, justamente porque essa narrativa fundante não é compartilhada por todos que dizem o (e no) processo102. Este trabalho serve como um exemplo de como utilizar narrativas para compreender como o direito funciona no mundo real – segunda possibilidade do narrative law-and-lit defendido por Baron.

Levando a discussão para uma intercessão com a psicologia, Karine Silveira faz um interessante trabalho de debate acerca das consequências das falsas memórias no processo penal, aponta que os estudos sobre a memória sinalizam sete fatores diferentes que permi- tem a criação de falsas memórias (transitoriedade, distração, bloqueio, atribuição errada, sugestionabilidade, distorção e persistência)103 para criticar o pressuposto basilar das pro- vas testemunhais de que as pessoas percebem e narram a verdade e propor técnicas que permitam melhorar a qualidade das provas orais obtidas (através da colheita de provas em tempo razoável104, da adoção de técnicas adequadas de entrevistas que evitam perguntas sugestivas105 e mesmo a figura do depoimento especial, já adotada pelo ordenamento jurí- dico brasileiro106) ou mesmo melhorar a qualidade de sentenças, limitando a utilização da

99 ROBBINS, Ruth Anne. Harry Potter as Client in a Lawsuit: Utilizing the Archetypal Hero’s Journey as Part of Case Strategy. The Law & Harry Potter. Jeffrey Thomas; Franklin Snyder (org.). North Carolina: Carolina Academic Press, 2016, p. 318. 100 ROBBINS, Ruth Anne. Harry Potter as Client in a Lawsuit: Utilizing the Archetypal Hero’s Journey as Part of Case Strategy. The Law & Harry Potter. Jeffrey Thomas; Franklin Snyder (org.). North Carolina: Carolina Academic Press, 2016, p. 331. 101 COVER, Robert. Nomos e Narração. Trad. Luis Rosenfield. In: ANAMORPHOSIS – Revista Interna- cional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 187-268, 2016, p. 190 e 191. DOI: http:// dx.doi.org/10.21119/anamps.22.187-268. 102 ROSA, Alexandre Morais da; SILAS FILHO, Paulo. Cabe falar em nomos e narração no atual cenário do processo penal? Jurisdição e processo na contemporaneidade. Larissa Ribeiro Tomazoni, Paulo Silas Taporosky Filho e Samuel Ebel Braga Ramos (org), Estefânia Maria de Queiroz Barboza (coord.). Curitiba: CRV, 2018, p. 223. 103 SILVEIRA, Karine Darós. Falsas Memórias e Processo Penal. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018, p. 80. 104 SILVEIRA, Karine Darós. Falsas Memórias e Processo Penal. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018, p. 88 e 89. 105 SILVEIRA, Karine Darós. Falsas Memórias e Processo Penal. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018, p. 89 a 92. 106 SILVEIRA, Karine Darós. Falsas Memórias e Processo Penal. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018, p. 92 e 93. 31 prova testemunhal a mera corroboração de outros meios de prova utilizados no processo107. Trata-se claramente de um trabalho que explica a origem das inconsistências narrativas, sem reduzir a complexidade do acontecimento à mera afirmação que alguém mentiu, que questiona a possibilidade da verdade real no processo penal e aproxima o trabalho da ter- ceira linha do narrative law-and-lit.

A visão de Baron sobre o movimento Direito e Literatura é deliberadamente nega- tiva, com a confessa intenção de explicar porque os esforços para utilizar a literatura no contexto jurídico causaram tão pouco impacto – ainda mais quando comparado a outros movimentos do tipo “Direito e....”108. Segundo ela, “(...) com uma visão cínica das diversas leituras possíveis do movimento – todas mantidas de maneira séria e confiante, todas indo em direções diferentes – não é de surpreender que muitos se mantenham céticos quanto ao potencial da literatura como forma de iluminar o direito”109. Ainda assim, a autora acredita que vale a pena pensar no direito e literatura como um movimento, ainda que em termos genéricos como se trata de um movimento que possui a pretensão de criar conexões entre dois campos normalmente pensados como separados110.

Mas é importante mencionar que mesmo essa afirmação aparentemente inócua – que direito e literatura fazem parte de dois campos distintos – é amplamente questionada. Ja- mes Boyd White defende que o direito é, em sua essência, uma função literária marcada pela arte da integração entre a linguagem abstrata e as particularidades do caso concreto – particularidades essas que precisam integrar inclusive as visões diferentes que permeiam o caso111. Richard Posner, por outro lado, entende que o Direito não passa de uma técnica de governo, vinculada à literatura apenas pelo fato de ambas comungarem técnicas de criação e interpretação de texto112. O que mais uma vez reafirma – e destaca – a dificuldade em reconhecer a linha condutora comum de trabalhos de direito e literatura.

Contudo, voltando à tese defendida por Baron, um dos fatores que impede o movi- mento Direito e Literatura de ter mais impacto é a pouca ponderação dedicada à interdis- ciplinaridade, pois, apesar de tentar ligar dois domínios diferentes do saber, não ocorreram questionamentos suficientes sobre as definições e fronteiras que os separam. Nesse sentido, a falta de ponderação e de investimento cultural na compreensão do Direito como uma disciplina autônoma dificulta o estabelecimento de relações interdisciplinares com outras ciências, uma crítica que pode ser feita a outros movimentos do “Direito e...”113. 107 SILVEIRA, Karine Darós. Falsas Memórias e Processo Penal. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018, p. 87. 108 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1071 a 1073. 109 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1073. 110 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1074. 111 WHITE, James Boyd. Justice as Translation: an Essay in Cultural and Legal Criticism. Chicago: University of Chicago Press, 1990, p. 42 a 45. 112 POSNER, Richard A. Law and Literature: a Relation Reargued. Virginia Law Review, n. 72, p. 1351- 1392, 1986, p. 1392. 113 BARON, Jane B. Law, literature, and the problems of interdisciplinarity. The Yale Law Journal, v. 108, 32 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tentar compreender porque o movimento Direito e Literatura tem dificuldade para ganhar grande repercussão e notoriedade, apesar de possuir um significativo número de trabalhos é uma atividade árdua que passa pela difícil discussão sobre o que a literatura pode, efetivamente, oferecer ao Direito e, por consequência, pela ponderação de sua au- tonomia.

Mesmo que se considere uma linha comum ao movimento, essa linha precisa ter um grau de abstração semelhante ao traçado por Aroso Linhares, reconhecendo uma oposição ao discurso de autonomia do direito, ou ao menos uma oposição ao formalismo jurídico centrado na norma e a instrumentalização legalista do direito através do cálculo racional.

Entretanto, quando a análise sai da oposição para a proposição – ou quando se busca compreender concretamente os contributos que a literatura pode trazer ao direito – o movimento se fragmenta em diversas linhas que não apenas seguem caminhos diferentes, mas até mesmo contraditórios. A resolução dessa fragmentação – se for possível – precisa passar por uma discussão profunda sobre teoria do Direito, inclusive e especialmente, para delimitar quais são as fronteiras que o direito possui com outras áreas do conhecimento (e, por consequência, quais contribuições mútuas podem ser feitas).

Jane Baron, nesse contexto, sugere uma forma de compreender – e classificar – o movimento direito e literatura para ressaltar essas possibilidades de interação: dessa forma, um trabalho que busque analisar questões éticas presentes na literatura, mas potencialmente ausentes no direito, ou simplesmente dar concretude para relembrar que uma situação ju- rídica, mais do que meramente focar na inter-relação de regras, normas ou princípios, toca a condição humana e assim precisa ser ponderada, irá beber nas fontes do humanistic law-an- d-lit; um trabalho que deseje discutir a interpretação jurídica e seus limites, utilizando para tanto métodos interpretativos típicos da literatura, buscará inspiração em outros trabalhos de hermeneutic law-and-lit; por outro lado, discussões que envolvam o impacto persuasivo de técnicas ou o cosmos normativo jurídico se tornam trabalhos de narrative law-and-lit.

A taxinomia apresentada por Baron não deve ser compreendida como uma bar- reira classificatória de trabalhos, mas como um fio condutor quanto às possibilidades de interação entre o Direito e Literatura. Entretanto, ao enaltecer essas possibilidades, essa classificação explicita as razões para o questionamento da coesão do Direito e Literatura enquanto movimento científico, além de facilitar a compreensão do não aprofundamento teórico encontrado no movimento, que pode ser resumida na percepção que “(...) As hu- manidades, no lugar de algo que o Direito celebra, como o juiz Hand imaginava, são algo que o Direito aproveita, contando que possa pagar” 114. Entretanto, seja na utilização de n. 5, p. 1059-1085, 1999, p. 1082. 114 A citação é de Balkin e Levinson (BALKIN, Jack M. e LEVINSON, Sanford “Law and the Humanities: An Uneasy Relationship,” Yale Journal of Law & the Humanities: Vol. 18: Iss. 2, Article 1, p. 155-186, 2006, p. 177), mas essa justificativa é compartilhada por diversos autores, como a própria Baron (BARON,

33 técnicas narrativas como estratégicas de convencimento em um processo, seja adentrando na discussão sobre os limites interpretativos de um texto legal, seja possibilitando discussões e a formação ética da próxima geração de operadores do direito, a taxonomia proposta por Baron deixa claro que há muito que pode ser oferecido para a prática jurídica pela intera- ção de direito e literatura.

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36 CAPÍTULO 2 JULIEN SOREL COMO PERSONIFICAÇÃO DO ESTIGMA DO POBRE: INCURSÃO SOBRE META-REGRAS E ESTIGMAS NA OBRA “O VERMELHO E O NEGRO”

Gabriel Maravieski115

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por escopo analisar a obra “O vermelho e o negro”, de Stendhal, sob a ótica das meta-regras e do estigma do pobre, de acordo com as noções que puderam ser absorvidas ao longo da leitura do texto base, atrelando-se sempre com questões de envergadura científica produzidas até então sobre o referido estigma e seus desdobramentos.

Como metodologia foi adotada a revisão bibliográfica sobre o tema, selecionando-se obras que carregam em si um maior peso em consistência ao tratar do estigma do pobre e suas nuances, tendo como cabedal a obra do professor Bacila (“Crimino- logia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos”), passando então a incursionar sobre outras obras já escritas e que discorrem em muitos aspectos no mesmo sentido.

Na primeira parte do escrito será trazido um breve relato sobre o livro de Stendhal, a fim de situar o leitor na obra, em uma tentativa de demonstrar o cenário em que se desenrola a trama e o tempo em que se passa a ação, como passo inicial para engrenar no discurso seguinte.

Na segunda parte o que se desenvolve é um breve escorço a respeito das meta-regras trabalhadas na ciência jurídica, colocando-as como regras a par das normas vigentes que conduzem os julgamentos e procedimentos criminais, policiais ou judiciais, e mostrando que há uma interferência significativa destas mesmas meta-regras na formulação dos con- vencimentos dos órgãos judicantes.

Na sequência, será incursionado sobre o estigma da pobreza, traçando um paralelo com o personagem Julien Sorel da obra de Stendhal, mostrando que há um latente estigma vigente na sociedade que remonta há séculos de tradição de etiquetamento dos criminosos, e que este etiquetamento está umbilicalmente ligado à noção de estigmas sociais.

115 Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia (UNIBRASIL). Especialista em Direito Ambiental (UNINTER) e em Direitos Humanos e Realidades Regionais (UNICESUMAR). Graduado em Direito (CESCAGE). 37 Sem pretender esgotar o tema, que exige para tanto uma produção de maior vultuo- sidade, apresenta-se no momento um pequeno trabalho que pretende incentivar a imersão nesta seara do conhecimento, a fim de aprimorar a cultura jurídica e literária, que podem, sem sombra de dúvidas, clarear o pensamento e caminhar juntas para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

“O VERMELHO E O NEGRO” DE STENDHAL: VIDA E DESTINO DE JULIEN SOREL

Na literatura, assim como na vida, o que encanta é a busca pelas delicadas (e mui- tas vezes incisivas) similaridades entre uma e outra. Da literatura faz-se a vida e da vida a literatura, em um eterno jogo de vai e vem, complementando-se muitas vezes, e outras vezes escancarando feridas ocultas do ser humano, essa eterna massa disforme que procura o aperfeiçoamento gradativo.

Nesta toada de interligação entre vida e literatura, o trabalho dos escritores se torna um armazém de fazer intersecções entre ficção e realidade. A vida se torna a lenha da qual sai o fogo da história, uma complementando a outra e ambas caminhando para desvendar nuances que podem ser sentidas por aqueles que buscam alento nas linhas redigidas. De uma matéria inerte salta a alegoria que permite a análise da própria razão de ser da huma- nidade e suas diversas imbricações sentimentais e sociais. Sobre o tema Giorgio Agamben traz seu relato, ao que se pede vênia ao leitor para transcrição de suas palavras:

A história que, dessa forma, página após página, exibe e revela os personagens, enquanto conta seus êxitos e fracassos, sua salvação ou danação, é também a trama que os encerra num destino, constitui a vida deles como um mysterion. Ela os faz “vir à tona” só para en- cerrá-los numa história. No fim, a imagem já não está “disponível”, perdeu o mistério, pode somente perecer. Também na vida dos homens acontece algo parecido. Sem dúvi- da, ao longo de seu inexorável decorrer, a existência, que no início parecia tão disponível, tão rica em possibilidades, vai perdendo aos poucos o mistério, apagando, uma a uma, suas fogueiras. Ela é, no fim, somente uma história, insignificante e desencantada como toda história. Até que um dia – talvez não o último, mas o penúltimo – reencontra por um instante seu encanto, abate de repente sua decep- ção. O que perdeu o mistério é agora, verdadeira e irreparavelmente, misterioso, verdadeira e absolutamente indisponível. O fogo, que só pode ser narrado, o mistério, integralmente libado numa história, agora nos retira a palavra, fechou-se para sempre numa imagem.116

116 AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2018. p. 36. 38 Estas palavras de Agamben nos mostram que há, invariavelmente, uma ligação extre- ma entre vida e literatura, entre a arte e o ser, algo misterioso que é vivido e que se torna um símbolo místico até de entrelaçamento.

E nesta procura de desvendar o mistério da própria vida nos são legadas incontáveis obras artísticas literárias que flertam com esta última, mostrando ao público em geral que a fina linha que une uma e outra está presente, ainda que inconscientemente. Uma dessas obras que nos faz pensar e repensar questões filosóficas, sociais e jurídicas do aspecto ‘viver em sociedade’ é “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal.

Escrito na França e publicado por volta de 1830, o livro de Stendhal faz alusão à vida do protagonista Julien Sorel, como pano de fundo principal, enquanto retrata as relações sociais e familiares, bem como as relações de classe do primeiro quarto do século XIX.

O autor retrata em Julien a angústia e a ânsia da população mais pobre e desqualificada da França em galgar alguns degraus na escala social vigente, a fim de sair da mesmice do destino reservado a boa parte das pessoas. Tratando-se do filho de um carpinteiro, Julien almeja adentrar nos estratos mais altos da sociedade francesa e, para tanto, se utiliza de al- guns artifícios variados.

Em um primeiro momento, insere-se como tutor dos filhos do prefeito de Verrières, condado fictício criado por Stendhal onde se passa boa parte da trama, e ali descobre a capacidade de se destacar socialmente. Por conta de seu conhecimento mais avançado em latim e em outras áreas do conhecimento, ganha a confiança do prefeito e de sua família, sendo que o núcleo familiar em que se vê inserido será sua alegria e também sua desgraça.

Ao se envolver com a esposa do prefeito, Julien opta por seguir caminho diverso quando as coisas começam a demonstrar um traçado errôneo. De preceptor das crianças Julien passa a ser seminarista, que dentre as opções da época, era uma das que promoviam certa ascensão social. No seminário também Julien ganha certo destaque por seu conheci- mento, mas, partindo-se de uma análise da obra, é ali desqualificado por uma certa inveja do dirigente da instituição. Tal situação se revela, em parte clara e em parte mesclada, no jogo do discurso que o autor nos mostra.

Prosseguindo, Julien passa a viver em Paris, em casa de um marquês, e ali se promove socialmente. Mesmo com toda essa promoção social, Julien sente que não se encaixa nos quadros da alta sociedade por conta de sua origem pobre e sente que a marca de sua origem é muito latente perante a sociedade francesa, ainda muito marcada por camadas sociais das mais variadas, sem muitas brechas para inserção de novos membros.

O ápice da história do jovem Julien se dá no momento em que opta por ceifar a vida da sra. de Rênal, sua amada ainda no condado de Verrières, quando então, dentro de uma igreja, o protagonista efetua um disparo contra a mulher, não vindo a mata-la por

39 circunstâncias outras, mas que o leva a julgamento. Neste julgamento Julien sente mais uma vez o peso de não ter nascido entre a nobreza, quando então é julgado por pessoas que não são, de fato, seus pares, mas sim nobres alheios à sua vida e aos percalços que a mesma apresentou.

A história é assim desfechada.

Sobre o título da obra, há que se ter em mente que a vida de Julien esteve oscilando entre o vermelho e o negro. Em um primeiro momento, o jovem ator pensa em galgar postos sociais mais altos através de lugares em batalhas, representados pela cor vermelha da batalha. Posteriormente, altera seus planos e passa a se interessar em buscar o clero para subir na vida, também uma opção válida na época, quando então passa a se ver entremeado pelo negro do hábito clerical.

Esta análise se resume com pontuação nas palavras de Paulo Silas Filho117

O sonho de crescer e ver o seu nome destacado por glórias tidas em batalhas, conquistadas pela espada (o vermelho), se esvai por enten- der que tal época (império napoleônico) já se foi. O jeito encontrado para tanto é galgar pelo seminário, pela religião, pelos dogmas da igreja, pela vestimenta do manto escuro (o negro). Assim, entre o vermelho e o negro o protagonista pauta sua vida na busca pela as- censão social, vindo a descobrir posteriormente que não haveria possibilidade de se erguer perante os demais membros da sociedade somente pelo contato com as altas escalas, mas que deveria ter advindo de uma família com honrarias de nobreza e de prestígio, que real- mente importavam na época.

Ao praticar o crime contra a vida da sra. de Rênal, Julien se vê obrigado a reconhecer que as marcas de nascença em uma sociedade desigual nunca desaparecem, tampouco as marcas de sua classe social inicial, que era a de uma família de um carpinteiro. Estas marcas e estigmas permaneceram com ele por todo seu percurso, às vezes passando despercebidas, outras mais escancaradamente, mas sempre latentes e prontas para serem utilizadas como justificação de determinadas atitudes.

É sobre esta percepção de Stendhal, portanto, de que o estigma cravado no ser hu- mano já pelo nascimento não desaparece, que se discorrerá a seguir, motivo que deu azo a presente escrita e que mostra a questão dos estigmas sociais como meta-regras de julga- mento, seja judicial, seja social.

117 TAPOROSKY FILHO, Paulos Silas. Os fatores da decisão pelo tribunal do júri através de O Vermelho e o Negro, de Stendhal. In: V Colóquio Internacional de Direito e Literatura – Justiça, Poder e Corrupção, RDL, 2017, Uberaba, MG. Anais, v. 1 (online). Uberaba: RDL, 2017. Disponível: http://rdl.org.br/seer/index. php/anacidil/article/view/265 Acesso em 18 fev 2019. 40 META-REGRAS E ESTIGMAS

A jornada de Julien Sorel na obra “O Vermelho e o Negro” nos faz refletir acerca da seletividade social latente tanto nas relações passadas, como na época do livro, quanto nas relações atuais, que revelam padrões impostos por uma parcela de classe dominante e que engendra artifícios para manutenção de uma determinada escala social, artifícios esses muitas vezes escancarados, mas em sua maioria sorrateiros e silenciosos.

Estes artifícios foram e são objetos de estudo de grandes nomes da criminologia e do direito penal, passando pelas obras de Georg Rusche e Otto Kirchheimer118, Dario Melossi e Massimo Pavarini119, até as mais atuais análises de Alessandro Baratta120, Juarez Cirino dos Santos121 e tantos outros que se debruçam sobre o tema.

Dentre os nomes que nos impulsionam a pesquisar com mais atenção a questão da etiqueta criminológica social está o professor Carlos Roberto Bacila, que através de sua obra “Criminologia e estigmas” nos apresenta o desenvolvimento de uma tese de que os estigmas sociais (e que ele toma como exemplo o pobre, a raça não predominante, as mulheres e a religião, mas que deixa claro não se tratar de um rol taxativo) são espécie do gênero de meta-regras adotadas pelo sistema atual como fator importante de julgamento122.

As diretrizes de julgamento atuais são pautadas em regras específicas de direito po- sitivo, seja na seara processual seja na seara material. Falando-se aqui em Direito Penal, o gargalo de aplicação da lei é o Código de Processo Penal e o Código Penal. Este modelo ideal de aplicação normativa, como se sabe, não pode ser tomado como universal e sempre presente na realidade jurídica brasileira, em específico. Não à toa por muitas vezes se de- para com decisões que se lastreiam em fundamentos ao arrepio da lei penal ou processual penal, abrindo margem para uma interpretação mais discricionária do juiz que está diante do processo.

Estas decisões fundamentadas em elementos legais, mas que dão outra tonalidade ao conteúdo da norma, podem ser tomadas como sendo decisões calcadas em meta-regras.

Para melhor elucidação do tema é de importância expor a ideia de Bacila quando trata de meta-regras em sua obra acima citada:

A interpretação de um texto legal pode depender de toda uma his- tória que o envolve, de valores que estão em jogo, de contingências 118 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2004. 119 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica – as origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). 2. ed. 2. reimp. – Rio de Janeiro: Revan, 2017. 120 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. 4. reimp. – Rio de Janeiro: Revan, 2017. 121 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3. ed. – Curitiba: Lumen Iuris, 2008. 122 BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. 41 que leis físicas não podem explicar. A ciência e a lógica encontram então os seus limites na experiência humana. O método não mais ex- plica de forma segura o que advirá de um dispositivo legal. O sentido do texto pode vir com o próprio intérprete. A mensagem pode estar com o mensageiro. Quer dizer que a mensagem das regras jurídicas deve estar em grande parte com o intérprete que opera com conceitos ou “pré-conceitos” que estão latentes em sua formação e na cultura da sociedade da qual provém. [...] Metarregras, pois, são mecanismos constituídos de regras, princípios e atitudes subjetivas que influenciam o operador do direito no mo- mento de aplicação da regra jurídica. São conhecidas também do alemão Metaregeln, do espanhol super-reglas e do inglês basic rules.123 Assim sendo, o esquema de meta-regras apresentado pelo professor Bacila nos mostra que há uma espécie de discricionariedade, sem querer forçar o uso da expressão, quando ocorre um julgamento penal que leva em consideração diversos fatores que não estão ex- postos na lei penal, mas que vêm carregados no íntimo do órgão judicante, personificado no juiz de direito, que carrega em si alguns princípios morais e éticos influenciadores de sua tomada de decisão.

Importa expor, ainda, que o sistema de meta-regras não está adstrito ao ensinamento de Bacila, mas que este resultou de uma acumulação e um aperfeiçoamento da ideia, que já era exposto por Fritz Sack em suas digressões filosóficas. Podemos encontrar o pensamento de Sack na obra de Alessandro Baratta124:

[...] Fritz Sack recorre a duas perspectivas teóricas que, aliás, não são estranhas à mais recente teoria do direito. Uma premissa teórica fundamental da sua reflexão é, antes de tudo, a distinção entre regra e meta-regra, ou seja, entre as regras gerais e as regras sobre interpretação e aplicação das regras gerais. Este pensamento desenvolvido por Sack passa pela análise a partir da distinção entre langue e parole. Langue seria a gramática conhecida objetivamente, através de dicionários e gramáticas escritas, enquanto parole seria a língua que permite a determinados sujeitos comunicarem-se em certas ocasiões125126.

123 BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 17-18. 124 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. 4. reimp. – Rio de Janeiro: Revan, 2017. p. 104. 125 BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 18. 126 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. 4. reimp. – Rio de Janeiro: Revan, 2017. p. 104. 42 Portanto, ao fazer uma incursão pelo sistema jurídico, em se tratando de meta-regras podemos fazer um liame dizendo que a langue está para as normas positivas, já inseridas no ordenamento jurídico, enquanto que a parole está para as formas de interpretação destas normas que vem carregada, invariavelmente, de subjetivismos do julgador e que se deixam transparecer sutilmente nas decisões cotidianamente proferidas.

Dentro deste grande segmento das meta-regras encontramos, por consequência, as subdivisões naturais do mesmo em estigmas, estes mais específicos a determinados grupos ou setores sociais, caracterizados por algumas semelhanças, sejam físicas ou psíquicas. To- memos como exemplo, citado pelo próprio Bacila, do estigma da mulher ou da religião. No primeiro, temos um estigma que leva em consideração questões de viés físico (mulhe- res são frágeis e fracas, na visão estigmatizada, e, portanto não merecem ocupar certas posi- ções sociais); no segundo, um estigma que considera questões de ordem íntima, psicológica (engloba os membros de determinada religião que são por conta disso estigmatizados de alguma forma como seres inferiores ou incapazes)127.

Os estigmas e as meta-regras seguem padrões de atuação que podem influenciar a criação de diversos reflexos na vida das pessoas. Por ser espécie das meta-regras, o estigma é criado por estas quando colocado em choque com realidades sociais diversas e casos jurídicos levados a juízo. Veja-se que a meta-regra, portanto, cria de um lado a punição, quando trabalhada dentro de um processo penal, por exemplo, e de outro lado o estigma, este resultado da aplicação da meta-regra que reflete na vida social do cidadão atingido128. Esta relação está demonstrada por Bacila quando nos diz que “as metarregras são seguidas de forma consciente ou não e têm o condão de atribuir, no plano jurídico, responsabilidade penal e, na esfera social, estigma [...]”129.

Estes estigmas enquanto elementos de sedimentação das meta-regras existentes por aí e utilizadas por membros do poder público imbuídos de fazer valer o senso de justiça, e também por indivíduos privados, como os advogados, são ratificados através do sistema de justiça criminal que nos é ofertado.

Ocorre que neste aspecto Bacila, ao analisar a obra de Hans-Georg Gadamer, de- monstra que o que se deve buscar neste meio de meta-regras e estigmas é a filtragem de preconceitos legítimos de ilegítimos, tendo em vista que é ínsito ao ser humano carregar dentro de si preconceitos, seja por qual motivo for. Neste sentido se pode observar em sua obra que

127 BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 124-131. 128 BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 20. 129 BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 20. 43 Outro ponto que deve ser ponderado é que o ser humano, ao portar uma profunda consciência histórica, não pode se dissociar de múlti- plas metarregras ou, para empregar expressão de Hans-Georg Gada- mer, não pode deixar de ter consigo “preconceitos” que fazem parte do seu ser. Mas o autor alerta que a questão central da hermenêutica (histórica e epistemológica) é discutir quais são os preconceitos legí- timos e quais são os ilegítimos.130 Exemplifica-se, portanto, os preconceitos ilegítimos como aqueles que criam estig- mas na sociedade (a questão da inferioridade da mulher, da raça não predominante, dos deficientes físicos, etc.), e os preconceitos legítimos como aqueles que criam ações positivas de desenvolvimento societário e que promovem maior bem-estar a quem, por natureza ou acaso, é diferente da maioria (toma-se, por exemplo, a reserva de vagas para deficientes físicos ou idosos em estacionamentos).

Cumprida a tarefa de apresentar um breve introito acerca das noções básicas de me- ta-regras e de estigmas, referentemente à criminologia, encerra-se o presente tópico para então adentrar na análise de um estigma específico e que dialoga incisivamente com a obra “O vermelho e o negro”, de Stendhal: o estigma do pobre.

JULIEN SOREL E O ESTIGMA DO POBRE

Marcada por uma grande simetria com os dias atuais, no que tange ao tratamento social e ao tratamento penal destinado às pessoas, conforme se verá, a obra “O vermelho e o negro” instiga reflexões acerca do estigma do pobre no transcurso da criminologia e da história da aplicação das penas.

Julien Sorel, conforme tratado no primeiro tópico deste trabalho é filho de carpintei- ro que buscou ascensão social, lançando mão de diversas artimanhas para tanto. Em certo ponto da história, se vê envolvido na prática de um crime e levado a julgamento perante o júri. O que chama a atenção do leitor neste ponto da obra é a sinceridade e a franqueza de Julien ao discursar perante o júri. Tal discurso merece transcrição, para melhor situar o leitor.

- Senhores jurados. O horror do desprezo, que eu julgava poder afrontar no momento da morte, leva-me a falar. Senhores, não tenho a honra de pertencer à vossa classe, vedes em mim um camponês que se revoltou contra a baixeza de sua fortuna. Não vos peço nenhuma graça – continuou Julien, firmando a voz. – Não me faço ilusão, a morte me espera: ela será justa. Pude atentar contra os dias da mulher mais digna de todo o respeito, de todas as homenagens. A sra. de

130 BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 234. 44 Rênal para mim foi como uma mãe. Meu crime é atroz e foi preme- ditado. Mereci então a morte, senhores jurados. Mas, ainda que fosse menos culpado, vejo homens que, sem parar o que a minha juventu- de pode merecer de piedade, quererão punir em mim e desencorajar para sempre esta espécie de jovens que, nascidos numa classe inferior e de algum modo oprimidos pela nobreza, tem a felicidade de conse- guir uma boa educação e a audácia de se misturar ao que o orgulho dos ricos chama a boa sociedade. Este o meu crime, senhores, e ele será punido com severidade tanto maior quando, de fato, não sou julgado pelos meus pares. Não vejo entre os jurados nenhum campo- nês enriquecido, mas unicamente burgueses indignados...131 Vê-se a carga simbólica do referido discurso de Julien apenas com uma leitura su- perficial do texto escrito por Stendhal. Indignado com o destino, mas reconhecendo seu fim, Julien passa a denunciar, com sua eloquência, a diferença de classes e a diferença de tratamento destinada a nobres e pobres.

Conforme relata, não se vê nos bancos dos jurados quando de seu julgamento sequer um desvalido que tenha enriquecido nos trilhos da vida, somente nobres já nascidos em la- res de extrema riqueza. Não há, portanto, julgamento por pares e resta claro que a situação que se narra é de cariz estigmatizador.

Em seu discurso o protagonista atenta contra a ordem das coisas que prevaleciam na época em que a história do livro se passa. Percebe-se neste momento que há uma forte carga negativa por parte do júri em relação à afronta, assim considerada, de Julien Sorel ter tentado (e conseguido, em parte) ascender socialmente, vindo de família tão pobre e sem qualquer prestígio social. Atua o júri, portanto, como um mecanismo para brecar a ascen- são social de novos jovens, para manter os privilégios da casta já consolidada da nobreza. Isto fica claro quando o acusado dispara que a intenção é desencorajar jovens como ele de tentarem seu lugar ao sol.

Todo este discurso de Julien nos remete à análise do estigma do pobre, dentro do universo das meta-regras.

Não é de pouco tempo que a divisão econômica influencia na segregação das pessoas e na solução de crimes. Desde muito cedo a humanidade passou a estigmatizar aqueles que não possuem tantos predicados materiais para levar a vida, colocando-os em um gueto moral de exclusão.

A origem deste estigma do pobre pode remeter a um tempo antigo. Já nas sociedades antigas, como a dos egípcios e dos chineses, a pobreza surgiu no momento em que a pro- priedade de terras passou a ser de determinadas famílias e grupos, enquanto grande parte da população ou nascia escrava ou era assim feita, fazendo um crescente de diferenças sociais;

131 STENDHAL. O vermelho e o negro. – São Paulo: Nova Cultural, 2003. p. 332-333. 45 neste ponto começa a despontar o estigma da pobreza132.

Por muito tempo assim foi sendo desenhada a sociedade mundial, com ricos de um lado e pobres de outro, relegados estes últimos aos piores destinos que poderiam existir. Com o passar dos séculos a revolução da tecnologia humana possibilitou o surgimento de fábricas e engenhos. Neste ponto, surge uma nova desculpa para a criminalização e estigmatização do pobre: mão de obra barata, ou sem custo. Neste momento da história, segundo Melossi e Pavarini133, o que acontece é o surgimento da prisão como espécie de local onde se pudesse encontrar mão de obra nestas condições, de praticamente gratuidade. Então foi assim que se objetivou o surgimento das prisões.

Ainda de acordo com Rusche e Kirchheimer, “a capacidade de trabalho dos internos era utilizada duas maneiras: as próprias autoridades administravam as instituições, ou os reclusos eram entregues a um empregador privado”134.

Esta clara concepção da prisão, e de um modo geral da criminalidade, como sendo coisa para os mais desprovidos economicamente terminou por reafirmar e propagar o es- tigma da pobreza. Com o passar do tempo e do desenvolvimento humano as classes mais rebaixadas da sociedade, seja por conta de falta de oportunidades, seja por um esforço dos que dominam o mercado em manter seu status, passaram a ser encaradas como menos capazes e menos produtivas. Esta situação nos mostra que o “socialmente pobre é inter- pretado como um sujeito que não tem a mesma capacidade que as pessoas de condições financeiras mais elevadas”135.

Este estudo da criminalidade enquanto algo atrelado à classe mais pobre é trabalho desenvolvido também pelo professor Juarez Cirino dos Santos, principalmente em sua obra “A Criminologia Radical”. Posto que conforme o autor

A ligação oculta entre controle do crime e relações de produção é o foco de pesquisa da Criminologia Radical: o controle do crime pela ação da polícia, da justiça e da prisão assegura a continuidade (repro- dução) do sistema social de produção capitalista.136 Portanto, em se analisando as obras que se voltam ao estudo do estigma do pobre enquanto peça importante na engrenagem do sistema penal, se pode concluir que, com algumas posições em contrário, o objetivo do sistema é a manutenção de um status de dominação de classe, onde os que possuem grandes condições econômicas são excluídos

132 BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 61-62. 133 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica – as origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). 2. ed. 2. reimp. – Rio de Janeiro: Revan, 2017. p. 110-113. 134 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 70. 135 BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 156. 136 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3. ed. – Curitiba: Lumen Iuris, 2008. p. 41. 46 das investigações, ao menos em um primeiro momento, nunca sendo colocados como principais suspeitos de algum crime praticado.

Embora haja em certo aspecto este pensamento, é cediço que os chamados crimes do colarinho , aqueles praticados por pessoas das mais altas classes sociais, deixam tanto quanto ou piores resultados que os pequenos furtos ou crimes praticados pelos mais pobres, isto porque atingem a sociedade como um todo, muitas vezes sonegando impostos, desviando dinheiro, praticando corrupção, etc.137 Portanto se percebe que, de fato, o que implica na tradição de se atribuir a maior parte da criminalidade aos mais pobres é algo que foi sendo paulatinamente construído através dos séculos de convivência humana, baseado sempre em uma questão de castas e ordens sociais tendo por pano de fundo o mercado e a condição financeira.

Mas ainda retornando ao caso do personagem Julien Sorel, da obra “O vermelho e o negro”, se pode constatar, portanto, que o protagonista da história sofreu na pele a situação de pobre estigmatizado.

Embora tivesse galgado paulatinamente certa posição social, envolvido com a mais alta das classes ricas da época em que se passa a história, Julien ainda assim pôde constatar, ao final, que não passou de um mero filho de carpinteiro que esteve servindo aos seus pa- trões, também em relação a suas funções no seminário, e que jamais deixou de transparecer aos olhos daqueles que o recebiam a figura de um pobre coitado tentando chegar onde não deveria, ao passo que não tinha vez para tanto entre aqueles que o circundavam.

Neste aspecto é de clareza também um outro excerto da obra de Stendhal, a respeito da consideração que os mais ricos têm em relação aos pobres que buscam subir alguns de- graus na escala econômica. A exortação que Stendhal faz é a de que aquele que tentar subir nos estamentos sociais sofrerá, invariavelmente, consequências das mais variadas. Lê-se na obra que

No meio de uma cidade de vinte mil habitantes, tais homens forjam a opinião pública e a opinião pública é terrível num país constitu- cional. Um homem dotado de alma nobre, generosa e que foi seu amigo, mas que mora a cem léguas, julga-o pela opinião pública de sua cidade, a qual é feita pelos tolos que o acaso transformou em nobres, ricos e moderados. Infeliz daquele que se distinguir!138 (sem grifos no original) Essa exortação “infeliz daquele que se distinguir” tem o condão de nos mostrar que aqueles que atentarem contra a “ordem natural das coisas”, ou seja, que tentarem quebrar a barreira econômica e ideológica e, por isso mesmo, buscarem posições de maior destaque, sendo de origem pobre, sofrerão invariavelmente diversas represálias, silenciosas ou não.

137 BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 160-161. 138 STENDHAL. O vermelho e o negro. – São Paulo: Nova Cultural, 2003. p. 108. 47 Julien, como tantos outros do passado e do presente, pôde perceber que o desen- volvimento humano não atingiu as glórias de um paraíso na terra, mas apenas trouxe um sistema acostumado a promover uma espécie de extermínio daqueles mais vulneráveis dentro da sociedade, os rotulados de indesejáveis, e que possibilitou um crescente discurso de ódio aos diferentes139.

Isto pode ser exposto sinteticamente nas palavras de Salah H. Khaled Junior:

O sistema acaba sempre tendo como alvos preferenciais os prota- gonistas das obras toscas da criminalidade, que causam menos pro- blemas por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico ou à comunidade massiva. Logicamente isso não significa que devemos universalizar a violência, embora ela certamente atinja de forma mais aguda os vulneráveis.140 Portanto, o que se coloca em jogo ao se tratar do estigma do pobre em relação ao sistema penal atual é que mais do que nunca a teoria do etiquetamento (labbeling approach theory)141 vem sendo aplicada cotidianamente. Esta aplicação pode ser constatada, se partir- mos de uma análise mais a fundo, desde o início da persecução penal, quando da instaura- ção de inquéritos policiais, passando então pela fase de convencimento do órgão acusador para oferecer a denúncia, pelo sistema de justiça criminal, que através de suas sentenças revela um viés altamente ideológico na aplicação da lei, até a posterior fase de execução da pena, quando se acumulam indesejáveis entulhados nas penitenciárias brasileiras que não escondem a situação caótica em que se encontram.

Julien Sorel, portanto, é exemplo vivificado pela literatura do que significa a exclu- são por motivos econômicos. Neste espaço, a obra “O vermelho e o negro” tem muito a nos revelar, principalmente o fato de que a atualidade se assemelha ao passado de modo incisivo e que há um signo de alerta para que atitudes sejam tomadas a fim de que se evite uma catástrofe ideológica e social ainda maior do que antes. Stendhal soube efetivamente aplicar a teoria dos estigmas em sua obra antes mesmo desta ser solidificada cientificamente, mostrando que sempre é possível “o futuro repetir o passado”142.

CONCLUSÃO

Ultimado o objetivo que se propôs nesta breve abordagem sobre o estigma da pobre- za, aliando a realidade científica da teoria das meta-regras e dos estigmas à literatura, a obra

139 KHALED JUNIOR, Salah H. Discurso de ódio e sistema penal. 2. ed. – Belo Horizonte: Letramento, 2018. p. 48. 140 KHALED JUNIOR, Salah H. Discurso de ódio e sistema penal. 2. ed. – Belo Horizonte: Letramento, 2018. p. 49. 141 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. 4. reimp. – Rio de Janeiro: Revan, 2017. 142 CAZUZA. O tempo não para. Disponível em https://www.letras.mus.br/cazuza/45005/ . Acesso em 24/02/2019. 48 “O vermelho e o negro” nos trouxe grandes questões para reflexão.

Uma delas foi a abordada no presente estudo. A noção de meta-regras e estigmas é ponto importante para o debate do desenvolvimento das ciências criminais, posto que dão azo a diversas interpretações por parte dos agentes do poder público, que têm a capacidade de alterar sensivelmente a realidade social dos que caem nas malhas do sistema de justiça criminal.

Estudar os estigmas é estudar o âmago daqueles que são pintados como diferentes, e que, portanto, segundo o senso comum destrutivo que reina na grande maioria da popu- lação, devem ser tratados diferentemente daqueles já tão exaltados pela onda conservadora como “cidadãos de bem”. Estes últimos merecem um olhar desatento aos pequenos delitos cotidianos e, porque não, aos grandes crimes que rondam a engrenagem social. Os primei- ros, pelo contrário, merecem vigilância intensa e respostas desproporcionais a suas atitudes e vertentes ideológicas.

Desta feita, o estudo dos estigmas continua tendo relevante importância na seara da criminologia, até mesmo porque o que se tem visto nos últimos tempos é a crescente onde de aprimoramento do discurso de ódio pelo outro, conforme é demonstrado na obra de Salah H. Khaled Junior, seja pelo viés político que vem ganhando espaço, seja pela própria noção distorcida da realidade em que vivemos, distorção esta promovida por grande par- cela da população.

No presente trabalho o recorte recaiu sobre o estigma do pobre, possibilitado pela obra lida de autoria de Stendhal e que permite uma análise justamente sobre este aspecto: o de quão difícil é pertencer a classes sociais mais baixas no mundo atual.

Ser pobre e viver em condições menos privilegiadas, hoje, é sinônimo de alta pro- pensão à criminalidade. Não há, portanto, uma análise mais apurada acerca da pessoa que pratica, eventualmente, crimes ou contravenções. A análise que primordialmente é feita, ainda que inconscientemente, posto que a noção de estigmas provenha das meta-regras e estas estão incutidas na consciência humana através de um secular trabalho de discrimina- ções, é em um primeiro momento sobre a realidade social em que está inserida a pessoa presa ou surpreendida.

Se se parte de uma classe economicamente mais abastada, o tratamento será diferente do que o dispensado àqueles provenientes de classes mais baixas e que vivem em comuni- dades carentes de atenção pelo próprio aparelho estatal.

Todas estas questões foram trazidas no presente artigo como uma instigação ao apro- fundamento do estudo crítico da ciência criminal, seja através das diversas vertentes crimi- nológicas críticas, seja pela visão ao menos diferenciada de se conceber a ciência criminal tal qual ela é posta hoje.

49 Paulatinamente há de ocorrer uma mudança de paradigmas na sociedade que permi- ta o tratamento igual para as diversas camadas sociais que, invariavelmente, uma vez ou outra, são tentadas a delinquir. Sem este tratamento igual não há como se conceber um desenvolvimento na seara penal, ainda atrelado ao fato de que, nesta área, dá-se um passo à frente e dois atrás.

Não há de se permitir a eterna visão de que uma pessoa tem peso distinto quando colocada na rede do sistema criminal, seja pela sua condição de gênero, de ideologia, ou de capacidade econômica. Há de se quebrar a repetida doutrina de classes sociais quando o quesito é aplicação da lei penal. Não se pode mais aceitar a propagação de ideias como as que Stendhal também revelou em um trecho de sua obra, quando diz que “[...] um homem vale o que vale o lugar que ocupa [...]”143. Uma pessoa não deve ser avaliada de acordo com o lugar que ocupa, mas de acordo com a igualdade de condições perante a lei, igualdade esta tolhida ainda em grandes parcelas da persecução criminal.

Conclui-se, portanto, o presente trabalho com a esperança de se ver uma mudança significativa na visão social sobre as pessoas menos favorecidas economicamente, com a (ainda que utópica) extinção do estigma do pobre perante as ciências criminais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. – 1. ed. – São Paulo: Boi- tempo, 2018. BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. 4. reimp. – Rio de Janeiro: Revan, 2017. CAZUZA. O tempo não para. Disponível em https://www.letras.mus.br/cazuza/45005/ . Acesso em 24/02/2019. KHALED JUNIOR, Salah H. Discurso de ódio e sistema penal. 2. ed. – Belo Horizonte: Letramento, 2018. MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica – as origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). 2. ed. 2. reimp. – Rio de Janeiro: Revan, 2017. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2004. SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3. ed. – Curitiba: Lumen Iuris, 2008. STENDHAL. O vermelho e o negro. – São Paulo: Nova Cultural, 2003. TAPOROSKY FILHO, Paulos Silas. Os fatores da decisão pelo tribunal do júri através de O Vermelho e o Negro, de Stendhal. In: V Colóquio Internacional de Direito e Literatura – Justiça, Poder e Corrupção, RDL, 2017, Uberaba, MG. Anais, v. 1 (online). Uberaba: RDL, 2017. Disponível: http://rdl.org.br/seer/index.php/anaci- dil/article/view/265 Acesso em 18 fev 2019.

143 STENDHAL. O vermelho e o negro. – São Paulo: Nova Cultural, 2003. p. 134. 50 CAPÍTULO 3 DEUSES AMERICANOS – DEVANEIO E REALIDADE

Odiombar Rodrigues144

Face à realidade, o que julgamos saber claramen- te, ofusca o que deveríamos saber.

Gaston Bachelard

INTRODUÇÃO

Neil Gaiman (1960- ), escritor inglês, nascido em Portchester, mudou-se para os Estados Unidos em 1992. Inicia-se na produção cultural na década de 80 em plena efer- vescência da “cultura pop”. Primeiro, dedica-se ao desenho, quadrinhos, música e tantas outras expressões da cultura pop, efervescente nos Estados Unidos na época.

Na década de 90, inicia a produção de prosa, sendo “Deuses Americanos” (2001) o seu terceiro texto145 que une passado e presente através de uma narrativa tensa entre deuses e tecnologia. Os deuses da mitologia já perderam suas batalhas, já foram “desconstruídos” pelo racionalismo e pelo pragmatismo na contemporaneidade.

Neste estudo, vamos buscar alguns instrumentos da teoria literária e do ordenamento jurídico para compreendermos a realidade social retratada em Deuses Americanos. A obra é extensa, complexa e fragmentada. Para dar conta de algumas áreas de significação é ne- cessário lançar mão de conhecimentos de Literatura e de Direito, mas sem deixar de lado aspectos da Semiótica, da Filosofia, da História e por fim, mas não por último, da Mito- logia. Cada campo de conhecimento pode contribuir, de acordo com suas peculiaridades, para a compreensão do texto.

O foco principal é a relação do texto com alguns temas caros ao campo jurídico, mas sem perder a coerência do discurso crítico. O Direito contempla o texto com um olhar peculiar e a crítica literária pode fornecer instrumentos de análise que tornam o trabalho coeso e coerente quanto à forma e ao conteúdo. Centrado na Análise Temática de Gaston Bachelard (1884-1962), o presente estudo está focado em três campos: a) a poética dos elementos da natureza (fogo, água, terra e ar); b) a magia, pela análise de um elemento sim- bólico que perpassa o texto que são as “moedas” e; c) a subjetividade de Shadow quanto à sua percepção de justiça.

144 Doutor em Literatura pela UFRGS. Professor aposentado da UFSM. Acadêmico de Direito na Universidade Lasalle/Canoas-RS. 145 Belas Maldições (1990); Lugar nenhum (1996); O Mistério da Estrela: Stardust (1999). 51 O que se traz para discussão é a visão de mundo que o personagem tem após o perí- odo de reclusão. O tempo de prisão não é uma página que pode ser virada na história do indivíduo, mas uma marca que permanece por toda a existência. A história de Shadow é referente à prisão nos Estados Unidos - outras condições, outra legislação - mas a percep- ção dos efeitos do encarceramento sobre um ex-presidiário pode ter paralelo ao sistema prisional brasileiro.

Enfrentar a jornada de Shadow é tarefa hercúlea, por isso são indispensáveis cortes para que se possa aprofundar algum aspecto considerado central no texto. Com certeza, muitos temas importantes serão deixados à margem, pois o nosso propósito é acompanhar a subjetividade da personagem e sua posição no mundo pós encarceramento.

Deuses Americanos é um “road trip” através dos Estados Unidos. A trajetória de Sha- dow é o fio condutor da narrativa e a mitologia funciona como referencial para a presença do “mágico” no texto. Na introdução, o autor expõe seu projeto:

Eu queria que o livro fosse uma série de coisas. Queria escrever uma história que fosse grandiosa, excêntrica e sinuosa, e escrevi, e ela era. Queria escrever uma história que incluísse todas as partes dos Estados Unidos pelas quais eu estava obcecado e encantado, que costumavam ser os pedaços que nunca apa- reciam nos filmes e nas séries de tevê. (Deuses Americanos - Uma introdução a esta edição, p.8).146 O “encanto” do autor não pode ser desconsiderado pelo leitor, pois correria o risco de não perceber os elos entre os episódios, bem como o papel de observador que o autor assume ao propor seu texto. Gaiman confessa o seu interesse em percorrer “partes” da história e da cultura norte-americanas que tanto o intrigavam pela invisibilidade nos filmes e Televisão. De suas palavras percebemos que o romance busca preencher lacunas que permanecem/permaneciam fora do alcance dos olhares da sociedade.

Em meio a tantas estórias fantásticas, o autor traz para discussão muitos temas de relevância, não só para o mundo norte-americano, como para todo cidadão do mundo. É importante deixar claro que Gaiman não busca convencer o leitor sobre qualquer ponto de vista. A obra é um grande caleidoscópio que gira diante dos olhos atônitos do leitor, cabendo a este estabelecer critérios e assumir posições.

Dentro da liberdade da análise temática, não se justifica uma perspectiva linear da abordagem, mas, com muito mais propriedade, a seleção de temas considerados relevan- tes para exame. Aqui o leitor assume o comando e percorre os caminhos que melhor lhe aprouver, atento a todos os elementos simbólicos que integram a capacidade de percepção. A natureza constituída pelos seus elementos (água, terra, fogo e ar) é o espaço no qual o leitor flutua, como um “flâneur” que, despreocupadamente, atravessa as páginas da obra,

146 Todas as citações indicadas apenas o número da página referem-se à obra Deuses Americanos, conforme edição constante na bibliografia final 52 deliciando-se com passagens que atraem sua “simpatia” e proporcionam-lhe um exercício de prazer.

Centrado nesta premissa de Gaston Bachelard é que este texto percorre alguns cami- nhos, faz atalhos, põe em evidência algumas passagens e toma a liberdade de guardar para outro momento temas que por ora não lhe são relevantes.

PERCURSO TEÓRICO

A relação entre áreas de conhecimento é, muitas vezes, uma tarefa árdua, pois es- pecialistas têm resistência à abertura para outros campos do saber. A literatura, como co- nhecimento, é um caso peculiar, pois seu objeto é um produto cultural, acessível a todos setores e, por isso, o texto literário torna-se objeto de estudo para profissionais de outras áreas, sem que se leve em conta os instrumentos teóricos que a crítica literária fornece. O texto, desvinculado de seu ambiente natural, torna-se um elemento apenas referencial para a produção de discursos inerentes a outros conhecimentos. A literatura, como ciência, tem seu objeto e métodos definidos e, assim, o texto de ficção ganha relevo na medida em que é abordado por instrumental apropriado.

Direito e Literatura são duas áreas que sempre estiveram em contato, mas dificil- mente receberam tratamento adequado quanto à forma de abordagem do texto e ao uso pertinente ao campo jurídico. Literatura é ficção, mas nunca deixa de ser representação147 de algo, portanto ela é um espelho capaz de refletir com nitidez a própria sociedade que, em linha geral, é objeto da ciência jurídica. Sob este prisma, Literatura e Direito não são complementares, mas ferramentas importantes para o ato de julgar – Direito – e criticar – Literatura. Em última instância, o ato de julgar e de criticar são correlatos e, assim, a relação entre uma e outra área torna-se evidente.

Ao longo do tempo, o Direito esteve centrado no juspositivismo, relegando a relação com os demais campos das ciências humanas ao mero caráter ilustrativo. A visão contem- porânea do direito, valorizando a pessoa humana, abre caminho para algumas reflexões que evidenciam o quanto o sistema jurídico pode ser enriquecido com novas abordagens do fato social. O direito, visto assim, possibilita conexão com um campo mais amplo das ciências humanas e conexão mais estreita com a literatura.

A partir da década de 60, do século passado, a preocupação com método tornou-se tema central nas discussões literárias, evidenciando dois posicionamentos básicos: um cen- trado na forma e outro no conteúdo, inspirados na dicotomia saussureana (significante/ significado). Os desdobramentos desta disputa são complexos e, muitas vezes, prejudiciais para a crítica literária, pois nem sempre a obra foi considerada como um objeto múltiplo e aberto à discussão. Como alerta Daniel Bergez:

147 A segunda força da literatura é sua força de representação. Desde os tempos antigos até as tentativas da van- guarda, a literatura se afaina na representação de alguma coisa. O quê? Direi brutalmente: o real. (BARTHES: 1978, p. 22 53 O perigo do discurso crítico é, com efeito, sempre empobrecer a obra a que ele se refere, em nome de uma coerência artificial ou de um dogmatismo metodológico (BERGEZ: 1997, p. IX). Antes do discurso crítico, há a leitura que é o ato inaugural da compreensão, é o mo- mento em que a obra e o leitor marcam um espaço de diálogo no qual ela se revela e revela o leitor. A leitura é práxis, de certa forma, sempre incompleta, pois depende do olhar do leitor e de uma relação espaço-temporal que exige esforço de aproximação e afastamento constantes, pois os contextos são distintos. Deuses Americanos está dentro de uma relação espaço-temporal definida.

O autor é inglês, o texto está ambientado nos Estados Unidos e, nós leitores, estamos no Brasil. Esta pluralidade espacial gera interferências na compreensão. Por outro lado, o tempo tem proximidade, pois a obra foi publicada em 2001, evidenciando uma contempo- raneidade entre texto e leitor. O respeito a estas relações é fundamental para a interpretação e análise de um texto. Por outro lado, a presença da mitologia leva o texto para uma era de deuses e heróis.

O leitor, como sujeito do texto, é sempre um crítico, pois o seu esforço de com- preensão é parte do desvelamento do texto para si e para os demais. Cada leitura é um novo texto que surge. A leitura é o elo de relação entre o crítico, o texto e o público. O apagamento da figura do crítico textual como leitor privilegiado é tarefa urgente para a valorização do texto, tanto quanto o abandono do juspositivismo o é para a percepção hu- manística do Direito. Todo leitor é um crítico na medida de seu horizonte interpretativo, e sua leitura é uma nova contribuição para a construção da significação, pois o texto não é um objeto inerte, pelo contrário, ele interage com o leitor e se revela novo a cada leitura. Neste sentido são exemplares as palavras de Sandra Vasconcelos:

“...assumindo o papel de mediador entre obra e leitor, cabe ao crítico a tarefa de informar e formar o público. Assim, ao conceber a obra como lugar de en- contro entre passado e o mundo contemporâneo, o crítico se projeto como ponte, o elo de ligação entre o momento em que a obra foi escrita e o universo do leitor, abrindo-lhe as portas daquele passado, frequentemente desconhecido e longínquo”. (VASCONCELOS: 2000, p. 13) No mundo jurídico, esta realidade é fundamental, pois a concepção de que os nossos conceitos e posições são formados a partir do “horizonte de perspectiva” e que o mundo dos fatos não corresponde ao nosso mundo da percepção, torna evidente que a matéria em julgamento tem muitas outras formas de percepção. A literatura como representação é um espelho cristalino das múltiplas visões subjacentes à realidade e a ação presente no texto literário é, também, matéria que está sujeita a nossa forma de percepção.

A necessidade de perceber o Direito como conhecimento que não se esgota em si mesmo, mas está intimamente relacionado com a sociedade e demais campos do conheci-

54 mento, despertou alguns estudiosos da área jurídica para as conexões possíveis entre Direito e Literatura148. Importante observar que este movimento no Direito é contemporâneo do “New Criticismo”, corrente de crítica literária norte-americana que privilegia os aspectos formais, principalmente através dos estudos de I. A. Richards (1893-1979).

“Law and Literature” e “New Criticism” tiveram evoluções distintas. A crítica lite- rária caminhou em direção ao estruturalismo na década de 70, enquanto o movimento di- reito e literatura voltou-se para a leitura de clássicos, sem desenvolver um método próprio. Sem um aparato teórico consistente, “Law and Literatura”, buscou apoio nos estudos de Terry Eagleton, filósofo marxista inglês que em sua obra Teoria da Literatura – uma introdu- ção, desfaz os limites entre o literário e não-literário ao afirmar:

Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a ou- tros tal condição é imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais importante do que o seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de literatura, então, ao que parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado. (EAGLETON, 1997, p.12) Este apagamento da linha divisória entre literário/não literário, permitiu a diversos outros campos do conhecimento (direito, filosofia, psicanálise, sociologia...) apoderarem- -se do texto literário como objeto isolado, desvinculando-o de sua fonte criadora e de seu destino de leitura. Assim o texto perde suas relações tanto na série literária, como no con- texto social da produção e da leitura, deixando de ser objeto de um método investigativo para tornar-se pretexto de discursos gerais.

Podemos observar na citação de Eagleton a redução do papel do escritor e, ao mesmo tempo, a majoração da função do leitor. Se não a considerarmos absoluta, esta afirmativa contém um ensinamento importante: a divisão entre o horizonte do autor e o do leitor. Mas, sendo dois mundos distintos, pode-se perceber que há, também, zonas de intersecção. É neste campo comum que podemos centrar a análise do texto e a relação dele com os demais campos do conhecimento. O ensinamento do crítico literário abre espaço para uma reflexão mais profunda que é o papel do leitor. Esta observação de Eagleton torna-se mui- to pertinente à obra Deuses americanos, pois o texto está muito mais próximo da “cultura pop”149 do que da literatura tradicional150.

Dos primeiros posicionamentos teóricos até uma visão contemporânea das relações da literatura com outras áreas há uma longa jornada. Três postulados teóricos dão sustentação

148 Esta relação está disponível em http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/326/pdf 149 Interessante registrar que a obra literária de Gaiman, na Livraria Cultura (SP/SP), é encontrada na secção Geek e não nas prateleiras de romances estrangeiros. 150 A obra Deuses Americanos, tornou-se série de TV (https://americangodsbrasil.com/ ) e seus personagens criaram vida através dos bonecos da Funko comercializados em http://blogdebrinquedo.com.br/?s=Ameri- can+gods

55 para a compreensão deste aspecto relacional entre os campos de conhecimento: interdiscipli- naridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade.

O que se evidencia como posicionamento adequado é a multidisciplinaridade que per- mite a concorrência do Direito, da Literatura, da Filosofia, da Sociologia e tantos outros campos do conhecimento humano com o objetivo de compreender melhor o fenômeno social. A multidisciplinaridade realiza-se pela instrumentalização que cada disciplina possui em prol de um objetivo comum, nela não há resultados internos para cada componente, pois o objetivo é externo ao campo de cada ciência.

No caso, não se objetiva um texto de crítica literária sobre a obra, muito menos a construção de um conhecimento jurídico sobre a questão das penas e suas consequências, mas o grande objetivo é unir esforços destes dois campos do conhecimento – Direito e Literatura - para compreender melhor as marcas que o encarceramento imprimiu na per- sonagem central. Deuses, heróis e vilões são background da trajetória de Shadow, cruzando caminhos, encontrando pessoas e recuperando histórias que formam a cultura norte-ame- ricana contemporânea.

A crítica temática tem seus primeiros passos em companhia do “new criticismo”, mas na década de cinquenta passa a andar por caminhos próprios em direção à filosofia, deixando o “new criticismo” ligado ao estruturalismo e aos aspectos linguísticos. O estudo da literatura, através de temas, é de longa data e tem origem na concepção impressionista da divisão fundo/forma. O sentido de tema, abordado pela crítica temática é bem diferen- ciado daquele presente na crítica literária do século XIX.151.

Há um desfile de temas importantes que são relevantes para o leitor, comprometi- do com a área jurídica. Não se busca aqui discutir aspectos formais, mas proceder a uma reflexão sobre conflitos presentes na sociedade e que, sob um olhar da ficção, tomam uma perspectiva mais clara. Cumprir com o objetivo principal dos estudos de Direito e Literatura é promover a discussão, trazer para o debate acadêmico situações conflitantes para a prática da crítica e da formação da cidadania. A ficção é um elo entre a doutrina e a realidade. Deuses Americanos engloba temas desde a formação da sociedade norte-americana até o “modus vivendi” contemporâneo.

A crítica costuma dividir a obra de Gaston Bachelard em duas ordens: diurnas e noturnas. Diurnas seriam os textos centrados na racionalidade, enquanto as noturnos são movidas pela imaginação e pelo devaneio. É esta área que nos interessa abordar em Deuses Americanos, percorrendo o romance através da imaginação do personagem central, escu- tando suas palavras e registrando sua compreensão de mundo, principalmente em relação à justiça. Uma dificuldade surge pelo fato do texto ser narrado em terceira pessoa, com narrador onisciente, mas em muitos momentos ele cede a palavra a Shadow quando, então, o leitor pode penetrar no subjetivo do personagem. 151 Exposição teórica sobre a Crítica Temática, consultar: https://odiombar.blogspot.com/2019/01/critica-te- matica.html 56 No final do capítulo cinco, Shadow vivencia uma experiência que reconstrói seu passado. O narrador permite que acompanhemos sua aventura no carrossel do Golden Park de São Francisco, quando recobra a memória da infância, junto à mãe e avalia o tempo de prisão, comparando-o com o momento de alegria infantil. Nos diz Shadow:

Era como se as últimas trinta e seis horas não tivessem existido, como se os últimos três anos não tivessem existido, como se sua vida tivesse evaporado e se transformado nos devaneios de uma criança pequena andando no carrossel do Golden Gate Park de São Francisco...(...) (p. 133) O devaneio152 bacheleriano, presente nesta passagem reconstrói o conceito de feli- cidade e alegria para a personagem. Ao mesmo tempo, ele percebe que o trágico de sua existência pode ser superado pelos momentos de devaneio. A imagem do adulto/criança feliz tem força suficiente para trazer ao ex-presidiário um alívio existencial, pois, no mundo real, o final do cumprimento de pena é um período de transição repleto de incertezas e decepções. Gaiman constrói uma imagem que nos leva à reflexão sobre o que é estar livre, pois a fantasia finda com a última frase do capítulo: “Então as luzes se apagaram, e Shadow viu os deuses”. (p.133). Isto é o prenúncio do que ocorrerá no capítulo seguinte, quando o de- vaneio se transforma em pesadelo, mas sempre a imaginação domina a vida do personagem.

Premissa importante para este estudo é afastar a tentação de praticar a “Crítica Nem- -Nem” como observa Roland Barthes: “... a crítica não deve ser “nem um jogo da sociedade, nem um serviço municipal”; querendo isto significar que a crítica não deve ser nem reacionária, nem comunista, nem gratuita, nem política. ” (BARTHES: 1980, p. 91). Para Barthes o compromisso do crítico é com o texto, mantendo fidelidade ao dito a fim de dar ao ensaio a confiabilidade necessária.

OS QUATROS ELEMENTOS FUNDAMENTAIS: FOGO, ÁGUA, TERRA E AR

A proposta de Bachelard é explorar o mundo do inconsciente através dos quatro ele- mentos naturais153, tendo a psicanálise como suporte, principalmente através de suas leituras de C. G. Jung (1875-1961). Não cabe neste pequeno ensaio uma revisão da teoria, mas, na medida em que se procede à análise, pode-se registrar algumas significações fundamentais.

O primeiro elemento a ser explorado é o “fogo” que carrega em si uma vasta gama de significações. No romance temos diversas passagens em que este elemento aparece, ora de forma literal – “fogo” – ora de forma figurada, através de imagens ou ações. Entre o capítulo um e o dois há um “intermezzo” em que o fogo tem toda a força expressiva, am-

152 Consultar: Universalis, Encyclopaedia. La Poétique de la rêverie de Gaston Bachelard: Les Fiches de lecture d’Universalis (French Edition).e.Book Edição do Kindle. 2016. 153 Excelente texto para introdução à poética de Bachelard é o ensaio “Gaston Bachelard: e a metapoética dos quatro elementos” de Marcelo Bolshaw Gomes, in: https://gastonbachelard.org/wp-content/uploads/2015/11/29- 108-1-PB.pdf (Acesso em jan/2019).

57 bientando uma cena erótica que toma ares de luxúria pela descrição do “quarto vermelho” (p.40) e o toque na pele dele “queima como fogo” (p. 41).

Ao revelar seu nome como “Bilquis”154, a mulher leva o leitor a estabelecer relação com a figura mítica da Rainha do Sabá que surge nos principais livros sagrados, inclusive na Bíblia, através do rei Salomão.155. Esta é uma face distinta da figura feminina, reverenciada como mãe, desprezada como prostituta, mas adorada como deusa. A cena deixa de ser descrição de uma orgia para transfigurar-se num ritual. Não por acaso, o excerto está bem no início do texto para marcar uma imagem de poder que o ator precisará, mais tarde, para construir as “deusas” fortes e guerreiras.

A cena encerra com o homem ouvindo, no celular, a “Ode à alegria”, coral da Nona Sinfonia de Beethoven: “Oh amigos, mudemos de tom! / Entoemos algo mais agradável / E Cheio de alegria! (...) Ébrios de fogo entramos / Em teu santuário. (Friedrich Schiller). Nada mais indicativo do caráter transcendental da cena.

Mais tarde, no primeiro “Interlúdio” o autor retoma o mito, apresentando-a como prostituta que lembra de um passado sagrado, mas agora sem gloria. É o fim de Belquis, morta pelo garoto da Limusine branca. Se alguém pular este texto, fugindo da pornografia, estará perdendo um grande ensinamento sobre as muitas faces da figura feminina. Convite irrecusável de Gaiman para entrarmos no mundo dos deuses e refletirmos um pouco sobre a mitologia e sobre o sagrado e a prostituição.

A primeira menção importante ao elemento água surge na saída de Shadow da pri- são. Forma-se um temporal que se transforma numa chuva fria. Livre, mas no rumo ao desconhecido, com a notícia da morte de Laura. A sensação era de que havia uma tempestade a caminho, mas ela nunca chegava. Estava tenso e ansioso, com um forte pressentimento de que havia algo muito errado. (p. 22). A imagem é excelente para retratar o estado de espírito de quem deixa o presídio e ganha a liberdade.

A água também é representação do trágico, principalmente em forma de tempestade. No primeiro interlúdio, anuncia-se a guerra, comparando-a com uma tempestade que se aproxima de forma silente. Aqui a guerra anunciada não é a tradicional, empregando exércitos, mas uma que se instala no cotidiano, como anuncia o texto: Guerras são travadas o tempo todo, e o mundo exterior ignora a existência delas: a guerra contra o crime, a guerra contra a pobreza, a guerra contra as drogas (p. 355).

Em outra passagem, Shadow encontra o índio Whiskey Jack156 e, depois de ouvir histórias sobre o avanço no homem branco sobre terras indígenas, toma conhecimento

154 Esta figura lendária, pode ter vivido no século X AC. É conhecida como Bilquis no mundo árabe e Rainha do Sabá na tradição judaico-cristã. 155 Na Bíblia - Reis 10: 1-13 e Crônicas 9: 1-12.. 156 Importante o trocadilho, pois além do índio chamar-se Whiskey tem, também, o nome de Jack que é parte do nome do tradicional Whiskey norte-americano produzido do milho, cultura indígena.

58 sobre a guerra que está por vir, mas “O sol estava tão alto no céu que se refletia no borrifo da água, e uma nuvem de arco-íris pairava no ar. Shadow achou que nunca tinha visto algo tão lindo. (p. 486). O contato com a cultura tradicional transforma seu olhar e dá-lhe oportunidade de ver um mundo até então desconhecido. Estas duas presenças do elemento água marcam duas formas de reação ao mundo; tristeza e alegria. Sentimentos conflitantes na existência de um ex-presidiário.

Neste mesmo encontro com o índio, Shadow ouve um ensinamento importante do índio quando confronta a cultura religiosa com a vivência indígena ligada à terra. O ho- mem religioso é mestre em construir templos, enquanto o índio percebe que a natureza é sua grande catedral:

“Meu povo não precisava disso. A terra era a igreja. A terra era a religião. A terra era mais antiga e mais sábia do que o povo que caminhava nela. A terra dava salmão, milho, búfalos e pombos-passageiros. Dava o arroz selvagem e o picão-verde. Dava melões e abóboras e perus. E meu povo é filho da terra, como o porco-espinho, o gambá e o gaio-azul.”(p. 485) Em outra passagem, o elemento terra aparece simbolizado pelo sal, através da história de Essie, uma imigrante vinda da Cornualha, região céltica. Os filhos dela cresceram ou- vindo histórias lendárias e mantiveram certas tradições:

Quando as crianças iam para a escola, cada uma levava um punhado de sal num dos bolsos, um pouco de pão no outro, os velhos símbolos da vida e da terra, para que pudessem voltar para casa em segurança, e elas sempre volta- vam. (p. 107) O mágico é sempre uma presença no romance. A tradição celta de levar consigo o pão, elemento sagrado, e o sal que purifica dão às crianças a confiança de irem e voltarem com segurança. Esta certeza está introjetada na consciência dos adultos e merece destaque do autor.

O ar surge como um elemento de refúgio, de momento de escapar das adversidades do cotidiano. Dois episódios são interessantes ao marcarem a presença do vento como imagem simbólica da incompreensão. Na prisão, quando Shadow conversa com outro pre- sidiário sobre seus destinos, ao discutirem as penas, chegam à conclusão de que o melhor é a pena de morte, pois isto seria o fim de toda a angústia:

“— É — concordou. — É verdade. É melhor ainda quando você é condena- do à morte. É aí que você se lembra das piadas com os caras que se debatem, sacudindo os pés quando o nó aperta no pescoço, sendo que os amigos sempre diziam que eles só iam bater as botas quando tirassem a corda do pescoço. — Isso é uma piada? — perguntou Shadow. — Com certeza. Humor negro.

59 O melhor que há... pá, aconteceu o pior. Você tem alguns dias para assimilar, depois pega o trem para ir bailar no ar.” (p. 18) Noutro episódio, surge a figura de skraeling, o assassino de Odin, (Pai de Todos) que é executado e tem o corpo pendurado ao vento:

“Lá, envolveram seu pescoço com uma corda e o penduraram bem alto, ao vento — um tributo ao Pai de Todos, o senhor da forca. O corpo balançou ao vento, e o rosto se enegreceu, a língua pendeu, os olhos saltaram, o pênis ficou tão rígido que poderia sustentar um elmo de couro, tudo enquanto os homens bradavam, gritavam e riam, cheios de orgulho por enviarem seu sacrifício aos céus.” (p. 81) O ar, como elemento simbólico, tem diversas formas de representação, desde sentido de volatilidade até perspectiva de continuidade. No caso deste fragmento, o corpo balança ao vento, tornando-se um pêndulo que marca o tempo que cessa com o último suspiro da vítima. A morte assume sentido de oferenda que é aceita pelos deuses pela confirmação dos dois corvos que sentam em seus ombros (p. 81)

DUAS FACES DA MOEDA, VIDA E MORTE

O grande romance está contido no prenúncio do primeiro parágrafo e na última mágica, no final. Nos dois momentos a moeda está presente.

Shadow havia passado três anos na cadeia. Era um homem grande e tinha cara de não-se-meta-comigo, então seu maior problema fora encontrar uma maneira de passar o tempo. Ele se manteve em forma, aprendeu sozinho a fazer truques com moedas e passou muito tempo pensando no quanto amava a esposa. (p. 17) (...) “Jogou a moeda para o alto com um toque do polegar. Ela girou num brilho dourado ao chegar ao topo do arco, sob a luz do sol, cintilou e refulgiu e parou lá no céu de verão como se não fosse cair nunca mais. Talvez nunca caísse. Shadow não esperou para ver. Saiu andando e não parou mais.” (p. 552) Não há como escapar deste grande elemento simbólico que é a moeda. Além de percorrer todo o texto, ela é marcadora de áreas interpretativas. Na introdução, o próprio autor nos aponta os elementos relevantes do texto: dois homens que se conhecem em um avião; o carro no gelo; a relevância dos truques com moedas e, sobretudo, os Estados Unidos... (p.7).

Na mitologia greco-romana, Caronte é o barqueiro encarregado de fazer a passagem das almas do mundo dos vivos para o dos mortos. A moeda era o objeto de troca por esta travessia. Shadow precisou aprender a manusear moedas e fazer truques a fim de que um dia pudesse pagar com a moeda a sua passagem para a liberdade. 60 Quando no último parágrafo, ele joga a moeda para o alto, ela não retorna, ou seja, feito o pagamento pela passagem, ele está livre para nunca mais parar! Entre o aprendizado e o pagamento, há muitas passagens em que a moeda é elemento revelador de seus projetos, pois treinar seus “truques” proporciona projetar seu futuro e repassar mentalmente a lista do que ia fazer quando fosse solto (p. 19).

Aprendeu truques sozinho com moedas falsas, mas ganhou de Lyesmith moedas de verdade, escondidas num livro de Heródoto (p. 20). Agora que tinha a prática da magia, podia exercer seu ofício de forma verdadeira. A moeda de um dólar também traz uma representação importante para a cultura norte-americana: - numa face apresenta a águia, símbolo nacional e, na outra, a estátua da Liberdade.

JUSTIÇA NO MUNDO DOS DEUSES E DOS HOMENS

O senso de justiça surge, na obra, como algo incompreensível, fruto de um sistema arbitrário e cruel que não traz consigo o conforto da lógica.

Entre penalistas, Foucault exerce um grande poder, torna-se uma voz incontestável e esquecem que o pensador francês é mestre num estilo de linguagem extremamente convincente e capaz de inibir a reflexão crítica. Quando Foucault escreve Vigiar e punir (1975), busca apontar para a sociedade as mazelas do sistema carcerário e criticar a política de encarceramento, mostrando os horrores e a degradação humana. Busca argumento para suas teses na tentativa de homicídio de Luís XV no século XVIII e estabelece paralelo com os métodos do final do século XIX e início do século XX. A discussão parece ter parado no tempo!

A militância ocidental utiliza o autor como argumento incontestável para a conde- nação de todas as mazelas carcerárias contemporâneas, sem fazer qualquer reflexão sobre estilo do autor e sua militância política. Terry Eagleton, também militante de esquerda, mas com senso crítico mais apurado, avalia Foucault na obra A ideologia da estética com as seguintes palavras:

“O sonho da liberdade deve ser acalentado, mas está historicamente passando por momentos difíceis, e se nega causticamente a sua possibilidade de realiza- ção. Nessa medida, Foucalult, junco com Jacques Derrida, é um exemplar de uma ideologia atualmente dominante num certo setor da intelligentisia radical do Ocidente”. (TERRY: 1993, p. 279) Na sua atitude barbaramente não-dialética em relação ao Iluminismo, ele apa- ga, de um só golpe, todos os ganhos vitais e civilizadores dessa época, nos quais não vê nada além de insidiosas técnicas de sujeição. (TERRY: 1993, p. 280) Gaiman, felizmente, supera esta tendência contemporânea, nihilista e militante, para colocar seu personagem, Shadow, numa perspectiva reflexiva e confiante num amanhã 61 promissor, desde seus planos para o dia em que deixasse a cadeia, início do capítulo um, até o final, quando procura construir um modo de recomeçar. Sempre que se pensa em nova vida, pensa-se num espaço. A casa é o retorno, mas, para ele, o que é espaço? Sua reflexão é reveladora:

“Sentou-se num gramado e olhou para a cidade que o cercava, pensando que, um dia, teria que voltar para casa. Que um dia teria que criar uma casa para onde voltar. Esse se perguntou se casa era uma circunstância que acontecia depois de algum tempo em um só lugar, ou se era algo a ser encontrado depois de uma quantidade suficiente de andanças e espera e vontade”. (p. 550) O devaneio e a “poética do espaço” são elementos suficientes para encontrar o sen- tido da vida após o encarceramento e toda a peregrinação. Gaiman foi mestre na busca de uma solução que foge do discurso militante e opressor para levar o leito a uma reflexão mais profunda e humana sobre os traumas do pós-encarceramento. A casa, como seu desejo de retorno no início do romance, agora é um espaço a ser construído e com nova significação.

Mas que justiça o levou a tantas peripécias? O autor não nega o caráter opressivo e injusto do sistema judiciário. No terceiro parágrafo da obra ele já tem consciência das falhas do sistema, pois as “autoridades sempre haviam cometido algum equívoco” (p.17), e, pela voz do companheiro de cela, descobre que o tempo de encarceramento é um tempo de alienação, pois, diz o parceiro: Você tem alguns dias para assimilar, depois pega o trem para ir bailar no ar.” (p.18).

O retorno do detento à vida livre é sempre um momento em que tudo precisa ser avaliado. O acolhimento da família, da sociedade e a própria reconstrução do apenado são fatores que determinam o sucesso de seu retorno. O guarda que realiza os procedimentos para a soltura de Shadow tem consciência destes fatores e comenta: Você tem sorte. Tem al- guém para quem voltar, tem um trabalho à sua espera, Vai poder superar tudo isso aqui. Ganhou uma nova chance. Não a desperdice. (p.22)

Porém no seu retorno, a esposa está morta e o emprego não existe mais. Enfrenta duas situações estranhas na viagem de regresso. A primeira, o “cabeça de búfalo” que lhe traz uma lição: “Para sobreviver, você precisa acreditar. ” (...). Acreditar em quê? (...). Tudo – reagiu o homem-búfalo157. (p. 31-32) A segunda, é o seu encontro com Wednesday que decide a dis- cussão usando o truque da moeda: “Cara ou coroa? (...). Cara. Escolhe Shadow. O estranho joga a moeda para o alto e anuncia: “Foi coroa. Eu manipulei a jogada. (p. 47).

Depois de todas as tragédias, a sorte dele está lançada com a lição do homem-búfalo e a trapaça de Wednesday, ao acreditar em tudo e descobrir que seus truques com moedas são correntes no mundo real. Agora, segue seu destino, acreditando nos deuses e empre-

157 O búfalo, na tradição dos índios Siuox, é o vigilante da “Nação Vermelha”, é símbolo da força e da determi- nação. 62 gando soluções mágicas para seus conflitos. Não sem antes receber a ameaça do garoto misterioso (tecnologia) na limusine que lhe diz:

“É bom você saber que, se nós o matarmos, vamos deletar a sua existência. Entendeu? Com um clique, você vai ser transformado em uns e zeros alea- tórios. Não tem como voltar atrás. (...) Em seguida, virou-se para Shadow e apontou com o cigarro. – Pele de sapo sintética. Sabia que já dá para sintetizar bufotenina? (p. 66) Assim inicia a trajetória de Shadow com a trapaça de Wednesday e a ameaça e coação do “garoto”, sem contar com a advertência do homem-búfalo. Percebe-se a vulnerabili- dade a que está exposto um ex-presidiário. No caso de Shadow, é alguém sem referências, perdeu a esposa, emprego e trocou de espaço. Mais do que comentar a positivação destes crimes, é importante refletir o quanto um apenado está vulnerável nos primeiros momen- tos após o encarceramento. As políticas de públicas de “ressocialização do preso” são gran- des utopias durante o período de encarceramento e muito mais ineficazes no momento de retorno à sociedade.

Este é um tema muito caro aos penalistas, pois, no caso do Brasil, a falência das práti- cas de encarceramento passam muito distantes dos controles previstos na Lei de Execuções Penais (LEP) (nº 7.210/84). Além do trabalho, o preso deve ter respeitada a sua dignidade como pessoa, o que não se vê na prática, como alertam Felippe Souza e Dalva Gercina:

“Além do trabalho, deve-se humanizar o sistema penitenciário, torna-lo um lugar ressocializador, em que os presos possam cumprir as sanções que lhe foram impostas de forma digna, e este ponto é o que vem sendo mais negli- genciado, mais deixado de lado, pois hoje no Brasil a prisão é massacrante que lhe marca profundamente.”158 O descalabro do sistema prisional, em vez de socializar, incentiva a violência dentro e fora das cadeias, levando a sociedade a clamar por penas maiores e novas tipificações criminais. Partindo do cumprimento da LEP, o Estado teria condições de cumprir com a obrigação de socializar o preso e, assim, a sociedade poderia empreender esforços em outra direção, apoiando projetos inovadores em termos de ressocialização.159

Comprometido com o desconhecido, indefeso e ancorado apenas em sua imagina- ção, Shadow inicia sua jornada entre deuses e homens. Uma guerra simbólica inicia entre passado e presente; entre história e imaginação; entre “self” e o mundo. A obra ultrapassa as fronteiras dos Estados Unidos e alcança uma reflexão sobre a humanidade e nosso modo de vida. A guerra é fruto das intransigências pessoais, muito mais do que causas externas. Este grande ensinamento surge pela fala de Wednesday: 158 SOUZA, Felippe e DALVA, Gercina. A estigmatização do réu diante da sociedade. In: https://jus.com.br/ artigos/27268/a-estigmatizacao-do-reu-diante-da-sociedade (acesso em Jan/19). 159 Alguns projetos merecem atenção: Método APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados); Terceirização; Projeto Regresso ((FIEMG) e outros. 63 Nunca houve uma só guerra que não tenha sido travada entre dois grupos inteiramente convictos de que estão fazendo o que é certo. As pessoas perigosas de verdade são aquelas que acreditam que estão fazendo o que estão fazendo única e exclusivamente porque aquela é, sem a menor sombra de dúvida, a única coisa certa a se fazer. E é por isso que são tão perigosas. (p. 227) Este absolutismo da verdade pessoal, sobrepondo-se à razão, é o maior perigo na sociedade contemporânea. Os mais cruéis algozes da humanidade, assim como qualquer criminoso, são capazes de apresentar razões para seus atos. Este é um ponto de reflexão importantíssimo que a obra nos proporciona. Os atos de julgar e condenar devem ser precedidos por um apurado exame de consciência para poder depurá-los das convicções pessoais. Uma reflexão como esta deve presidir a sentença a fim de que a decisão do juiz possa ser o mais imparcial possível. Em outro posicionamento temos a neutralidade do magistrado, que carrega consigo o risco de uma sentença tornar-se injusta pela negação da particularização dos fatos. Afastar-se da realidade é um perigo tão grande, como a parcia- lidade no ato de julgar.

Shadow tem percepção clara da arbitrariedade da justiça, sabe que o que menos im- porta é a veracidade dos fatos, pois, de forma aleatória, alguém pode parar atrás das grades. Tem consciência do fato, mas assume atitude de resignação, pois, de qualquer forma ele havia perdido:

“Shadow chegou à conclusão de que não importava se a pessoa tinha ou não cometido o crime pelo qual fora condenada. A experiência lá dentro mostrou que todo mundo ali na cadeia tinha algum ressentimento: as autoridades sem- pre haviam cometido algum equívoco, falado que a pessoa fizera algo que ela não fez — ou que não fez exatamente do jeito que falaram. O importante era que as autoridades haviam vencido.” (p. 17) A falta de conhecimento de sua situação leva-o a pensar de forma resignada o perí- odo de encarceramento. Não faz distinção entre a pena por uma lesão corporal ou a pena por homicídio, punida, nos Estados Unidos em alguns estados, com pena de morte. Nesta abissal diferença é plenamente clara, imaginando vantagem:

Ele chegou à conclusão de que, para aqueles que não tinham sido condenados à morte, a cadeia era, na melhor das hipóteses, apenas um retiro temporário da vida — e por dois motivos. Primeiro, porque a vida se esgueira para dentro da cadeia. Sempre há lugares que podem ser explorados, mesmo quando o indivíduo é retirado de seu contexto habitual; a vida segue, mesmo se for uma vida escrutinada, uma vida atrás das grades. E, segundo, porque se o detento aguentar firme, algum dia alguém vai ter que soltá-lo. (p. 18) No momento de ser solto, novamente ressurge o seu nervosismo, tem medo do que o agente pode lhe dizer. Sabe que tem uma condenação de seis anos por “lesão corporal

64 qualificada”160 (p.26), como já cumpriu três anos, poderá ser solto na sexta-feira seguinte. O medo é que a pena possa ser prorrogada, pois, no seu entendimento, é possível que o arbítrio do diretor possa prorrogá-la por mais um, dois ou três anos. Esta concepção de arbitrariedade e desinformação parece ser frequente entre apenados o que, com certeza, amplia a angústia e a capacidade de planejar um futuro fora da cadeia.

O diretor, porém, tem uma notícia boa, antecipa em alguns dias a sua saída, mas por outro lado, revela a razão de sua “bondade”.

— Shadow, vamos liberá-lo hoje no fim da tarde. Você vai sair uns dias mais cedo. — O diretor falou isso sem nenhuma alegria, como se estivesse proferin- do uma sentença de morte. Shadow assentiu e esperou a pancada. O diretor olhou para a folha de papel à sua frente. — Recebemos isto do Johnson Me- morial Hospital de Eagle Point. Sua esposa... Ela morreu nessa madrugada. Acidente de carro. Sinto muito. (p. 27) Todos os seus planos desmoronaram: sairá da prisão, mas não tomará o “banho de banheira”; não levará Laura para o quarto e já não tem certeza de que vai “evitar problemas para o resto da vida” (p. 19). Sem planos, tudo é incerto, está à deriva, mas ainda não tem conhecimento do detalhe na morte de Laura: a revelação da relação dela com seu amigo.

Por fim, a obra nos traz um ensinamento importantíssimo sobre a concepção de jus- tiça e pena de morte. Num diálogo entre Shadow e Sam, ela faz uma longa declaração de crenças e, entre tantas diz:

Acredito no direito de escolha das mulheres, no direito à vida dos bebês, e que, embora toda vida humana seja sagrada, a pena de morte é completamente justificável, se a gente puder confiar implicitamente no sistema judiciário, e que só idiotas confiariam no sistema judiciário. Acredito que a vida é um jogo, a vida é uma piada de mau gosto e a vida é o que acontece quando a gente está vivo e que o melhor é relaxar e aproveitar. (p. 376) O tema da pena de morte161 é candente nos meios acadêmicos, motivando discussões acaloradas. Por outro lado, a população clama pela pena capital, principalmente diante de algum acontecimento mais traumatizante. No fundo, além do sentido humanitário e da crença na recuperação do ser humano, o grande argumento continua sendo o medo da injustiça diante das falhas da justiça.

A Anistia Internacional aponta o ano de 2015162 como especialmente trágico em ter- 160 Para a legislação brasileira “Lesão corporal”, artigo 129 do Código Penal, sendo leve a pena é de detenção de três meses a um ano. Nos parágrafos 1º (grave) a pena é de um a cinco anos e 2º (gravíssima) com pena de dois a oito anos. Quando seguida de morte, pena de quatro a doze anos. 161 Este é um tema superado pela vedação expressa da Constituição de 1988, art. 5º, XLVII. Último caso civil de aplicação de pena de morte no Brasil foi em 1876. 162 Ler: https://anistia.org.br/noticias/pena-de-morte-em-2016-o-maior-numero-de-execucoes-registradas-dos -ultimos-25-anos/ - (acesso em jan.2019) 65 mos de execuções. Os países que lideraram as pesquisas são: Irã, Paquistão e Arábia Saudita, todos no mundo árabe, onde a suspeita de aplicação de pena capital por motivos religiosos é muito forte.

CONCLUSÃO

Ao chegar ao fim do trabalho resta um pouco de frustração diante da amplitude do texto analisado, pois, a certeza de que muitos tópicos importantes foram deixados de lado, traz a angústia da tarefa incompleta. Por outro lado, este foi um texto que, seguindo Bachelard, trouxe o prazer da leitura e a agradável experiência de flutuar entre páginas, sonhar e acordar.

Uma obra desta extensão e complexidade não tem chance de ser analisada em pro- fundidade num pequeno ensaio como este, mas fica a certeza de ter contribuído com uma parcela de luz para o entendimento do texto. Não se objetivou estudos de legislação, mas o foco foi sempre a reflexão sobre temas fundamentais para a área jurídica. O que se espera é que tanto a obra como este ensaio possam despertar um olhar mais amplo para temas muito caros para a formação profissional.

Deuses Americanos é uma obra que proporciona abordagens distintas. Aqui, optamos por uma crítica temática, centrada nos ensinamentos de Gaston Bachelard. Nem todo o seu universo crítico foi trazido para discussão, mas alguns temas caros ao crítico francês foram explorados, como devaneio, infância, imagens e, acima de tudo, a introspecção da personagem o que dá ao texto uma aparência de subjetividade. O que lhe dá objetividade é a recorrência à literalidade da obra. Cada palavra, cada frase ou imagem é uma âncora que mantém o crítico firme ao texto.

Assim como Gaiman busca expor ideias e fatos sem interpretá-los, não cabe ao crí- tico qualquer ingerência interpretativa. Ele deve restringe-se a apontar possibilidades de reflexão, deixando para o leitor a tarefa de estabelecer elos entre a obra, a crítica e seus posicionamentos político-ideológicos.

O som da moeda, presente no início da obra, soa no final como para acordar o leitor da desorientação a que foi submetido durante a leitura. Diante do leitor passaram cenas de mistério, injustiças e lutas, mas é hora de a sonoridade do mundo real tomar posse de sua mente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1978. BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel. 1980. BERGEZ, Daniel. Métodos críticos para análise literária. São Paulo: Martins Fontes. 1997. EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de janeio: Zahar editora. 1993. 66 GAIMAN, Neil. Deuses americanos. Trad. Leonardo Alves. 1º ed. Rio de Janeiro: Intrínseca. 2016. RICOUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol I. Campinas-SP: Papirus, 1994. TADIÉ, Jean-Yves. A crítica literária no século XX. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil. 1992. VASCONCELOS, Sandra Guardini T. Crítica de arte/arte da crítica. In: MARTINS, Maria Helena (org.). Rumos da crítica. São Paulo: Itaú Cultural. 2000.

67 CAPÍTULO 4 LUTEM UM CONTRA O OUTRO: UMA INCURSÃO PELO DIREITO PENAL DO INIMIGO E SUA CONSTRUÇÃO EM DEUSES AMERICANOS

Myrna Alves de Britto163

Ao estudar o livro Deuses Americanos como parte das atividades da Comissão Espe- cial de Direito e Literatura, do Canal Ciências Criminais, capitaneada pelo Mestre Paulo Silas Filho, não foi escolhida uma guerra específica das tantas travadas hodiernamente, pois “Guerras são travadas o tempo todo, e o mundo exterior ignora a existência delas: a guerra contra o crime, a guerra contra a pobreza, a guerra contra as drogas. Esta guerra era menor do que as outras, e mais vasta, e mais seletiva, mas era tão real quanto qualquer outra.”164 O foco de nosso trabalho será a narrativa, enquanto elemento fomentador da guerra e de agregação de seus apoiadores. E por quê utilizaremos Deuses Americanos? Pelo mesmo motivo que o estudo de Direito e Literatura vem crescendo, parafraseando Neil Gaiman,

A ficção permite que nos esgueiremos para dentro dessas outras ca- beças, desses outros lugares, e olhemos por outros olhos. E, então, na história, paramos antes de morrer, ou morremos ilesos na pele de terceiros, e no mundo além da história viramos a página ou fechamos o livro e continuamos com nossa vida.165 Deuses Americanos é a história de Shadow166, mas não só, é a narrativa dos bastidores de uma pequena grande guerra, muito assemelhada às nossas “guerras” contemporâneas, onde elegemos um inimigo e através de sua demonização constante, arregimentamos cola- boradores e simpatizantes a nossa causa, para seu extermínio. O diferencial deste livro está em descortinar os bastidores dessa guerra, mostrar como um personagem aparentemente comum e simplório pode fazer toda a diferença em seu desenrolar, principalmente por ser este o personagem que representa nossa própria descoberta nas tramas do livro.

Faremos portanto um paralelo entre a história narrada por Shadow, com a criação, manutenção e técnicas de ataque ao inimigo, mais precisamente no Direito Penal, com o auxílio da criminologia midiática.

163 Bacharelanda de Direito na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Email:[email protected] 164 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.pág.355 165 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág. 311 166 Shadow é filho de Wednesday, ou Odin, parafraseando o tradutor em suas notas, seria a contraposição ao filho de Odin, Balder (divindade luminosa e imaculada nas Eddas), nunca citado em Deuses Americanos. GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.pág. 563 68 A medida que Shadow compreende o que está em jogo, iremos também descortinan- do os instrumentos utilizados, da criminologia, ao estudar as técnicas de construção do ini- migo, de seu reforço no imaginário e, poderemos perceber que a Guerra está longe de ser a ultima ratio, pois representa um caminho para a obtenção de algo mais estimado, o poder.

O combate ao inimigo, principia com sua escolha; e esta é uma escolha política, que pode ser positiva ou negativa, ao decidir quais condutas serão criminalizadas e quais não serão, portanto uma escolha legislativa.

A política que irá nortear os instrumentos de ataque ao inimigo e como será feita sua neutralização, é uma opção estratégica de política pública, que deveria objetivar a menor perda de vidas em contrapartida a uma redução da violência, mas não é o que presenciamos cotidianamente e tampouco o que acompanhamos no livro.

Como toda guerra que principia, alguém tem que se beneficiar com ela, muito mais que se proteger, alguém tem que obter vantagens. Em geral, os envolvidos diretamente na guerra pouco ou nada lucram, ao contrário, perdem suas vidas e deixam seu sangue nos campos de batalha.

Num primeiro momento é necessário convencer os outros da necessidade de uma mudança de paradigmas, para só então, prospectar para a guerra de fato.

“A modernidade seria sinônimo de mudança enquanto progresso. Em uma empreitada universalizante , o elemento moderno precisa se expandir. É nessa expansão que a modernidade cria os monstros que necessita enfrentar: selvagens, pessoas que vivem em condições atrasadas e que precisam ser trazidas à luz do progresso.”167

VOLKISH, MEDO E ENGAJAMENTO NA GUERRA

A volkish, é uma técnica utilizada na construção do inimigo, que busca depreciar, desprezar, desvalorizar, menosprezar, subestimar os que se encontrem em campos diame- tralmente opostos àqueles que a utilizam, com o auxílio dos meios de comunicação, am- plificando seu alcance e seu potencial de eliminar, dizimar, exterminar, extinguir, matar, suprimir os inimigos.

É, portanto, um conjunto de

“discursos que subvertem valores sociais de maneira a destruir a imagem de determinado grupo de pessoas, que passam a ser tratadas como ‘não cidadãos’, como seres inferiores, contra os quais tudo é

167 TAXI, Ricardo Araujo Dib. Kafka e o elemento mítico da lei moderna: um estudo a partir da leitura de Peter Fitzpatrick. Anamorphosis. v.4 n.1 jan-jun/2018. pág.146.

69 válido, até mesmo porque não são destinatários de direitos.” (ZAF- FARONI apud PONTAROLLI E SILAS FILHO, 2017)168 Por vivermos um mundo, onde o medo é algo constante, e como diria Bauman169, é na verdade, a força motriz das políticas de proteção e instrumento da dominação social exercida pelo Estado, a construção do inimigo, externo ou interno, ocupa papel de desta- que nas políticas públicas de enfrentamento da violência.

Em um sentido estritamente biológico o apelo a uma cultura do medo desvia nossa atenção, despertando em nós um sentimento de desconfiança e agressão, sempre no sentido em que ‘nós somos sem- pre o grupo ameaçado’ e a minoria desviante o ‘grupo ameaçador’, fazendo nascer uma empatia de justificação da punição absoluta, pois acabar com a fonte do medo é o que justifica o sacrifício, embora isso nos prejudique gravemente.170 A liquidez baumaniana das circunstâncias é representativa destes sentimentos que possibilitam a intercessão entre o discurso do medo e a motivação ao enfrentamento mais severo, de forma a recrudescer as respostas dadas a ele. Bauman171 subdivide o estudo do medo em três instâncias, uma relacionada ao perigo real à integridade corporal, a segunda relacionada à manutenção da confiabilidade da ordem social, e a terceira, relacionada ao seu lugar no mundo, todas oriundas da incerteza (elemento caracterizador do mundo mo- derno) e diretamente relacionadas aos intentos de sobrevivência.

Antes mesmo que o inimigo seja criado e enfrentado é necessário que haja uma vontade de mudança de paradigmas, o que está não deve continuar, ou é ineficiente, ou obsoleto, incapaz de prover a segurança desejada.172

“Sejamos sinceros: temos pouquíssima influência na vida deles. Nós nos aproveitamos deles, e pegamos o que é deles, e sobrevivemos; nós nos despimos, nos prostituímos e nos embebedamos demais; rou- bamos gasolina, furtamos, damos golpes, existimos à margem alheios à sociedade. velhos deuses, aqui nesta nova terra sem deuses. E foi

168 PONTAROLLI, André Pontarolli e SILAS FILHO, Paulo. Black Mirror: Guerra, Psicanálise E Direito Penal Do Inimigo. Sala de Aula Criminal. Publicado em 04/03/2017. Disponível em Acesso em 28/01/2019. 169 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 170 MACEDO, Geferson Vitor Chimbinha de e RODRIGUES, Gustavo Queiroz. Oportunidade, Consenso E Justiça Criminal Negocial: Os Mecanismos Atuais e Crítica aos Projetos de Expansão da Bar- ganha no Ordenamento Jurídico Brasileiro a partir da Literatura. In: Direito & Literatura: breves diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee/ coord. Paulo Silas Filho. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018. pág. 129. 171 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 172 “ Esta é uma terra ruim para deuses. Vocês todos já devem saber disso, cada um a seu modo. Os velhos deuses são ignorados. Os novos são adotados tão rápido quanto são descartados e substituídos pela próxima novidade. ou vocês foram esquecidos, ou têm medo de ficar obsoletos, ou talvez só estejam cansados de existir ao sabor do capricho humano.” Shadow. GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.pág. 508. 70 isso que fizemos; sobrevivemos, à margem de tudo, onde ninguém prestava muita atenção em nós”. Wednesday173 Os Novos Deuses representam essa mudança, ou ao menos a vontade dessa mudança.

Quero um mundo limpo. Quero possuir o amanhã. Quero evolu- ção, devolução, revolução. Quero remover nosso povo das margens da história e levá-lo para o topo do mainstream. Vocês são under- ground. Isso está errado.Nós precisamos tomar os holofotes e brilhar. Bem no centro. Vocês são underground há tanto tempo que perderam a capacidade de enxergar. (...) A fé tem limites. Eles estão chegando ao limite do que podem nos dar. A lacuna de credibilidade. - Você é uma garota analógica vivendo num mundo digital.174 Os velhos Deuses tinham medo de que, se não acompanhassem as evoluções de um mundo em constante transformação, se não se recriassem e redesenhassem e reconstruíssem o mundo a sua própria imagem, seu tempo estaria acabado.175 Portanto o medo do esquecimento, da falta de poder, da substituição, foi a energia capaz de fazer com que Deuses se unissem e viessem à luz para uma batalha intitulada definitiva, como devem ser todas as guerras.

“Eles sabem que estamos aqui, e nos temem, e nos odeiam. Vocês se enganam see acreditam que não. Eles vão nos destruir, se puderem. É hora de nos unirmos. É hora de agirmos.” Wednesday176 Apesar de hesitantes, muitos Deuses resolvem aderir à batalha após o assassinato de Wednesday, por se encontrarem sem saída. Afinal, Wednesday deu a própria vida para defen- der a causa dos velhos Deuses, após seus irmãos recusarem aliarem-se a ele em suas defesas, em um encontro pacífico, com inimigos.

Assim que se desenham as mais diversas guerras, onde primeiro precisamos delimitar quem são nossos inimigos; depois, devemos desumaniza-los, torná-los monstros, e com um pouco de persistência, e talvez uma ajuda dos aliados, uma ação prospectada na trincheira adversária, será capaz de aglutinar os apoiadores necessários para que se deflagre a guerra. A guerra, contra um adversário pré-determinado, desumanizado, implacável, um INIMIGO.

Cada lado encarava o oponente com bravura. Para cada lado, a oposição era composta de demô- nios, monstros, malditos.177

173 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.pág. 140. 174 Diz o garoto técnico a Bilquis. GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág.360-361 175 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.pág. 507. 176 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág.140 177 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.pág. 507. 71 Na contemporaneidade, nenhum termo representa mais um inimigo que a palavra terrorista, nenhuma evoca mais medo que a palavra terrorismo. O Sr. Town nos exemplifica um senso comum que permeia a atual sociedade, a sensação de estar fazendo a coisa certa, ao atacar o inimigo; a sensação de estar fazendo a sua parte, sem questionar, sem pensar, sem ponderação:

- É fácil demais espalhar a palavra terrorismo por aí. Significa, pura e simplesmente, que os terroristas de verdade se escondem por trás de termos ambíguos, como revolucionário, quando na verdade o que es- tão fazendo é assassinar vagabundos. Não facilita nosso trabalho, mas pelo menos sabemos que estamos fazendo alguma diferença. Estamos arriscando a vida para fazer alguma diferença. Sr. Town178 Como bem explicita Günther Jakobs, o inimigo merece qualquer tratamento, menos compaixão! E, contra ele, toda a artilharia punitiva deve ser usada, pois neste momento estamos autorizados a fazer uso do Direito Penal de Exceção.

“o Direito penal conhece dois pólos ou tendências em suas regu- lações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade”179 Podemos aferir do pequeno recorte do Capítulo Seis180, que o discurso de Wesley aos pares, está abarrotado deste significado:

Mama-ji : “- Eu, e obviamente sou apenas uma criança, proponho que esperemos. Não façamos nada. Não sabemos se eles querem o nosso mal.” Wednesday: “- E o que vai fazer quando eles vierem no meio da noite e a matarem ou a capturarem? Ainda vai propor que tenhamos paciência?” Um jovem atarracado: “ -Pai de todos, meu povo está confortável dessa forma. Nós aproveitamos ao máximo o que temos. Se essa sua guerra der errado, podemos perder tudo.” Wednesday: - Vocês já perderam tudo. Estou lhes oferecendo a

178 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. Pág.387. 179 JAKOBS, Günther. Direito Penal do inimigo: noções críticas / Günther Jakobs, Manuel Cancio Meliá; org. e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. ed. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007.pág.37. 180 Reunião narrada ao longo do Capítulo Seis. GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág. 134 -154.. 72 chance de pegar algo de volta”.181182 Esse encontro entre o perigo iminente e um discurso inflamado, carregado de uma narrativa belicosa, é o mesmo que presenciamos na atualidade, através de nossos televiso- res, astutos e implacáveis, em seu reforço diário, na construção do nosso inimigo. Através dos meios de comunicação183, todos os dias e diversas vezes ao dia, chegam a imagem e a descrição do inimigo e de seus atos, a revolta que deveriam causar. Alardeados diariamente, o estereotipado, o etiquetado, o criminalizado, chegam às nossas casas, e talvez por isso, chego eu a pensar, também chegou para Shadow e para os velhos Deuses a morte de Wed- nesday, através da televisão.184

Ei, seu imbecil!- esbravejou Carla, a garçonete miúda.- A gente in- terrompeu esta transmissão para mostrar uma coisa que vai fazer você se mijar todo. Está pronto? A tela piscou e se apagou. As palavras “AO VIVO” pulsavam em branco no canto inferior esquerdo. Então, uma voz feminina suave disse: Certamente não é tarde demais para ir para para o lado que está ganhando. Mas, sabe, você também tem o direito de ficar exatamente onde está. Isso é que é ser americano. esse é o milagre da América. Afinal, liberdade de credo significa liberdade para acreditar no que

181 Até este momento, os novos Deuses, não perpetraram nenhum crime contra Mama-Ji. “ A função manifesta da pena no Direito penal do inimigo é a eliminação de um perigo”/ Podemos facilmente associar esta reunião à ficção relatada por Jakobs para explicar o direito processual penal do inimigo: “Aquele Estado em cujo ter- ritório se cometeram aqueles atos, tenta, com a ajuda de outros Estados, em cujos territórios até o momento - e só até o momento - não tem ocorrido nada comparável, destruir as fontes dos terroristas e dominá-los, ou, melhor, matá-los diretamente, assumindo, com isso, também o homicídio de seres humanos inocentes, chamado dano colateral. A ambígua posição dos prisioneiros - delinquentes? prisioneiros de guerra? - mostra que se trata de persecução de delitos mediante a guerra.”. JAKOBS, Günther. Direito Penal do inimigo: noções críticas / Günther Jakobs, Manuel Cancio Meliá; org. e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. ed. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007.pág.41./49. 182 “um Direito penal do inimigo é indicativo de uma pacificação insuficiente; entretanto esta, não necessaria- mente, deve ser atribuída aos pacificadores, mas pode referir-se também aos rebeldes.” JAKOBS, Günther. Direito Penal do inimigo: noções críticas / Günther Jakobs, Manuel Cancio Meliá; org. e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. ed. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007. pág.22. 183 “ É de entender que o funcionamento desses meios de comunicação de massa apenas contribui para o esta- belecimento da figura do ‘inimigo social’, corroborada pela atividade punitiva dos aparelhos repressivos do Estado. O resultado do encontro de ambos os fatores gera desenvolvimento e materialização de uma crimino- logia midiática, em cujo proveito concorrem iniciativas estatais e publicitárias.” GODOI, Antonio Henrique Santos et Al. Uma Análise Da Ética Profissional Expressada No Livro O Sol É Para Todos, De Harper Lee, A Partir Do Comportamento Do Personagem Atticus. In: Direito & Literatura: breves diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee/ coord. Paulo Silas Filho. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018. pág.143 184 “A característica central da versão atual desta criminologia provém do veículo empregado: a televisão. Por isso, quando dizemos discurso é melhor entender mensagem, pois ele se impõe mediante imagens, o que a dota de um poder singular.”/ “Os críticos mais radicais da televisão são Giovanni Sartori e Pierre Bourdieu. Para Bourdieu a televisão é o oposto da capacidade de pensar, enquanto Sartori desenvolve a tese de que o homo sapiens se está degradando em um homo videns, por efeito de uma cultura de puras imagens.” Zaffaro- ni, Eugenio Raúl. A questão criminal/ Eugenio Raúl Zaffaroni; tradução Sérgio Lamarão. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Revan, 2013. pág.140-146 73 é errado. Assim como liberdade de expressão de lhe dá o direito de ficar calado. A tela exibiu uma rua. A câmera avançou de repente, daquele jeito que fazem em documentários. (...) Em posição - disse alguém fora do enquadramento. Vamos ver se as câmeras dentro da loja funcionam - disse a voz da narradora. (...) As palavras AO VIVO continuavam piscando no canto inferior es- querdo da tela. Agora a imagem exibia o interior de um salão peque- no e mal iluminado. Dois homens estavam sentados a uma mesa no fundo do salão. Um deles estava de costas para a câmera. a imagem se aproximou deles em movimentos irregulares, bruscos. por um ins- tante, os dois ficaram desfocados, mas depois voltaram a ficar nítidos. O homem de frente para a câmera se levantou e começou a andar de um lado para o outro, como um urso acorrentado. Era Wednes- day. Parecia que, de alguma forma, estava gostando daquela situação. Quando a câmera focalizou neles, o som começou com um estalo. … estamos oferecendo a chance de acabar tudo isto, aqui e agora, acabar com o derramamento de sangue, acabar com a violência , com a dor, com as vidas perdidas. Não vale a pena ceder um pouco por isso? O homem fez um gesto na direção da câmera. - Algumas pessoas do seu lado estão assistindo. Outras vão ver gravações. Outras serão informadas por alguém em quem elas confiam. A câmera não mente. Todo mundo mente - disse Wednesday (...) Nós conversávamos sobre modos de lidar com a mudança iminente de paradigma. Não precisamos ser inimigos. Precisamos? Este país é grande - disse Wednesday, organizando os pensamentos. (...) - Tem espaço para... Ouviu-se um estouro, abafado pelas caixas de som da televisão, e a lateral da cabeça de Wednesday explodiu. Seu corpo caiu pra trás. (...) Vamos ver de novo, em câmera lenta - anunciou a voz tranquiliza- dora da narradora. As palavras AO VIVO foram substituídas por REPLAY. (...) e, mais uma vez a lateral do rosto dele se dissolveu numa nuvem de sangue. A imagem congelou. Sim, ainda é mesmo a Terra de Deus - disse a narradora, uma repór-

74 ter anunciando seu bordão final. - A única questão é: de que deuses? Agora voltamos à nossa programação normal.185 Cada vez que um programa se dedica a mostrar um homicídio mais e mais vezes, seu apresentador vocifera palavras de ordem e nos conclama a rebelião, é o sistema fazendo política, como bem nos aponta Zaffaroni (2013):

A criminologia midiática cria a realidade de um mundo de pesso- as decentes, diante de uma massa de criminoso, identificada atra- vés de estereótipos, que configuram um eles separado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. Os eles da criminologia midiática incomodam, impedem que se dur- ma com portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados e, por isso, devem ser separa- dos da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos nossos problemas. Para isso é necessário que a polícia nos proteja de seus assédios perversos, sem nenhum obstá- culo nem limite, porque nós somos limpos, puros, imaculados. Este eles é construído por semelhanças, para o qual a televisão é o meio ideal, pois joga com imagens, mostrando alguns dos poucos es- tereotipados que delinquem e, de imediato, os que não delinquiram ou que só incorrem em infrações menores, mas são parecidos. Não é preciso verbalizar para comunicar que, a qualquer momento, os parecidos farão o mesmo que o criminoso. É a velha afirmação do genocida turco Talât: Somos censurados por não distinguirmos entre armênios culpados e inocentes) mas isso é impossível) dado que os inocentes de hoje podem ser os culpados de amanhã.186

NOVOS DEUSES - VELHOS DEUSES

“O medo dos poderes invisíveis, inventados ou imaginados a partir de relatos, chama-se religião.” Thomas Hobbes Ao tratar da fundação do Estado Americano, o livro traça uma visão literária e pa- norâmica da evolução de uma sociedade essencialmente religiosa para uma sociedade mo- derna, demonstrando como um Estado fundado em decorrência da perseguição religiosa, baseado na pluralidade de crenças, fervilhante de Deuses que são trazidos por seus segui- dores e aportam no Novo Continente, ainda que não sejam propriamente os Deuses que eram, mas a representação destes, contudo ainda vigorosos, poderosos, “bem alimentados”,

185 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág.388 - 390. 186 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal/ Eugenio Raúl Zaffaroni; tradução Sérgio Lamarão. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Revan, 2013 75 se torna uma nação subjugada, onde homens são meras marionetes, anteriormente diri- gidos por aspectos metafísicos e posteriormente sendo governados pelos instrumentos da modernidade.

“Agora, como vocês todos devem ter tido uma fartura de motivos para descobrir por conta própria, deuses novos estão ganhando força nos Estados Unidos, agarrando-se a focos crescentes de fé: deuses do cartão de crédito e da rodovia, da internet e do telefone, do rádio, do hospital e da televisão, deuses do plástico e do bipe e do neon. Deuses orgulhosos, criaturas gordas e estúpidas, envaidecidas com a própria novidade e importância.” Ao contrário do que se poderia supor, um território pautado na liberdade religiosa, vê a proliferação de Deuses enfraquecê-los, por serem tantos quantos os que deveriam adorá-los.

“A terra é vasta. Pouco tempo depois, nosso povo nos abandonou, passou a nos tratar apenas como criaturas do Velho Mundo, como algo que não os havia acompanhado até sua nova vida. Nossos ver- dadeiros fiéis morreram ou pararam de acreditar, e nós, perdidos, assustados e desamparados, fomos obrigados a sobreviver com qual- quer resquício de adoração e fé que encontrássemos. E a sobreviver da melhor forma possível.”187 “Os deuses morrem quando são esquecidos. As pessoas também. Mas a terra continua aqui.” Whiskey Jack188 O esquecimento destes Deuses do velho continente aliado ao avanço temporal e sua sujeição à modernidade, faz com que percam força e adoradores, o que os tornam cada vez mais fracos.

“Vocês me conhecem. Vocês todos me conhecem. Alguns não têm por que me amar, e não os culpo por isso, mas, me amando ou não, vocês me conhecem. Estou aqui há mais tempo que a maioria de vocês. Como todos nes- te salão, também imaginei que poderíamos sobreviver com o que tínhamos. Não era o suficiente para sermos felizes, mas era o sufi- ciente para existirmos. Porém, esse talvez não seja mais o caso. Uma tempestade se aproxima, e não é uma tempestade criada por nós.” Wednesday189 187 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág.140 188 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág. 487 189 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág. 139 76 Não há como dividir espaço, eles precisam de cada vez mais sacrifícios e cada vez mais adoradores para dominar. Nada de novo, em se tratando de motivação para guerra.

Não é uma tempestade criada por nós, alerta Wednesday. O verdadeiro embate se inicia quando os Velhos Deuses percebem que podem ser destronados pelos mais jovens, e com isso perder visibilidade, adoradores e, poder.

A maior parte dessa batalha vai ser travada em um lugar aonde você não tem como ir. No coração e na mente das pessoas - explicou Czernobog. (...) Nos Bastidores. É lá que vai acontecer a batalha de verdade. O resto vai ser só relâmpago e trovão. Em um dia qualquer de março, na montanha Lookout, todos se reuniam para a tão esperada batalha. De um lado,

velhos deuses, deuses de pele marrom como cogumelos antigos, rosa como carne de frango, amarela como folhas de outono.Alguns eram loucos, outros eram sãos. De outro, um barão das estradas de ferro, com um terno antiquado e a corrente do re- lógio esticada por cima do colete; os grandes deuses cinzentos dos aviões, os deuses dos carros, também estavam lá. Outros pareciam rostos pixelados sem definição. Os novos tinham certa arrogância. Dava pra ver. Mas também uma espécie de medo.190

A MAQUINAÇÃO E A GUERRA

“ Se você for uma pessoa que busca realmente a verdade, é necessário que ao menos uma vez na vida duvide de todas as coisas, da maneira mais profunda possível.” René Descartes Todo mundo mente - disse Wednesday (...) Aquele era o momento da tempestade. Os paradigmas estavam se transformando. Ele, sentia isso. O velho mundo, um mundo de imensidão infinita e recursos e futuro sem limite, estava sendo confrontado por outra coisa - uma rede de ener- gia, de opiniões, de abismos.191

190 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág. 507. 191 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos: edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág. 506. 77 Como bem aprendemos através de estudos criminológicos, as batalhas travadas no campo do Direito Penal, são batalhas meticulosamente selecionadas, ainda que em seu caráter negativo (o objeto não selecionado), frente a inimigos bem específicos, contra os quais são desenvolvidos estratagemas de combate, que passam por articulados processos le- gislativos, representando em sua maioria, a vontade de uma elite dominante. Esse também é o entendimento do professor Iverson Kech Ferreira (2017):

o inimigo não se radica apenas ao direito penal, mas é construído por motivações políticas, anseio de resguardar o poder e por discursos regulares para afastar ameaças contra o poder.192 Em Deuses Americanos, esse entendimento não é dissonante, porém guardadas as devidas diferenças, uma vez que não há um processo legislativo, mas sim um “processo”, que se arrasta por todo o livro, de construção da guerra.

O mais importante nessa guerra, não é pelo que estão lutando e sim, qual discurso é mais convincente, qual narrativa se aproxima mais de suas convicções. Esse é o poder que realmente está em jogo193, o poder de narrar suas dores, convencer indecisos, arrebanhar correligionários, daí a importância do domínio do instrumento comunicacional, pois

quando a angústia é muito pesada, ela se converte, através da crimi- nologia midiática, em medo a uma única fonte humana. Por isso, a criminologia midiática sempre existiu e sempre apela a uma criação da realidade através de informação, subinformação e desinformação em convergência com preconceitos e crenças, baseada em uma etio- logia criminal simplista, assentada na causalidade mágica. Esclarecemos que o mágico não é a vingança, e sim a ideia da causa- lidade especial que se usa para canalizá-la contra determinados grupos humanos, o que, nos termos da tese de Girard, os converte em bodes expiatórios. Essa característica não muda; o que varia muito é a tecnologia co- municacional (desde o púlpito e a praça até a TV e a comunicação eletrônica) e os bodes expiatórios. O poder da criminologia midiática foi detectado pelos sociólogos desde fins do século XIX. Motivado pelo poder dos jornais no caso Dreyfus, Gabriel Tarde afirmava que no presente (no ano de 1900)) a arte de governar se converteu) em grande medida) na habilidade de servir-se dos jornais.

192 FERREIRA, Iverson Kech. Direito Penal E Poder: Quem É O Inimigo. MAI/2017. Disponí- vel em:. Acesso em: 03/02/2019 193 “Eu dedico esta batalha a Odin.” - Hein? - perguntou o garoto gordo. - Por quê? - Por poder - respondeu o Sr. World. Ele coçou o queixo. - E alimento. Uma combinação dos dois. Veja bem, o resultado da batalha é irrelevante. O que importa é o caos e a matança. GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág.479 78 Denunciou claramente a força extorsiva dos meios de comunicação de massa (no seu tempo, os jornais), a grande dificuldade para neu- tralizar os efeitos de uma difamação jornalística e a exploração da credulidade pública.194 O ápice da história narrada no livro se dá quando Shadow percebe toda a trama em que estava envolvido, o quanto foi manipulado desde o começo para se entrincheirar em uma guerra que não era sua, embora, na verdade fosse.

Vai ser um banho de sangue - declarou Whiskey Jack. Foi então que Shadow entendeu. Entendeu tudo, era de uma sim- plicidade gritante. (...) Isso não é guerra coisa nenhuma, né? - comentou Shadow. - É um golpe em dupla.195 (...) Você fez tudo o que devia fazer e mais. Roubou a atenção de todos, e ninguém olhou para a mão que segurava a moeda. É o que chamam de distração. E o sacrifício de um filho gera poder… poder suficiente para colocar a bola em jogo, talvez até mais do que o suficiente. Fa- lando a verdade: estou orgulhoso de você. Um jogo roubado - comentou Shadow. - Pura trapaça. Nada daqui- lo era verdade. Era só a preparação para um massacre. Exatamente - concordou a voz de Wednesday, das sombras. - O jogo era roubado. Mas era o único jogo rolando na cidade. 196 Já entendi tudo - continuou Shadow. - Mais ou menos. Não sei bem quando foi que entendi. É só um golpe para dois - explicou Shadow. (...) Dois homens que parecem estar em lados opostos, mas jogando o mesmo jogo. (...) Então você não foi morto. Fui, sim - retrucou Wednesday, da escuridão. - Nada disso teria dado certo se não tivessem me matado.197 - A voz era sutil… não chegava a ser baixa, mas tinha um tom que lembrava um rádio velho mal sintonizado em uma estação distante. - Se eu não tivesse morrido 194 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal/ Eugenio Raúl Zaffaroni; tradução Sérgio Lamarão. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Revan, 2013.Pág.146. 195 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.pág.486-487 196 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.pág. 502 197 “ A morte de Wednesday não vai terminar nada. Só fez cair a ficha de todo mundo que estava em cima do muro.” / “ A morte dele fez em um instante o que Wednesday tinha passado os últimos meses tentando. Uniu todos. Deu a eles algo em que acreditar.” Shadow .GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág: 424-425. 79 de verdade, não teríamos conseguido fazer todo mundo vir para cá. Kali e Morrigan e os Loa e os malditos albaneses e … Bem, você viu todo mundo. Foi a minha morte que os uniu. Eu fui o cordeiro do sacrifício. Não - respondeu Shadow. - Você foi o pastor que os levou para o abate. Confrontado com a realidade que se engendrava por trás da guerra, Shadow tenta demover os deuses da luta, uma vez que seu estímulo por alguns Deuses adviria do fato que se alimentariam do caos e do sangue derramado em batalha, e que somente eles lucrariam com ela:

É agora ou nunca, pensou. Essa batalha que vocês vieram lutar, nenhum de vocês pode ganhar ou perder. A vitória e a derrota são irrelevantes para ele, para eles dois. O que importa é que uma quantidade suficiente de vocês mor- ra. A cada um de vocês que cai em batalha, ele ganha mais poder. Cada um de vocês que morre só o alimenta. Entendem?198 Em sua epifania, percebe a ignorância que esta guerra representava e o quanto foram, ele e os outros, usados como combustível nesta “guerra santa”, e busca iluminar os demais:

- Havia um deus que veio para cá de uma terra distante, um deus cujos poder e influência foram enfraquecendo à medida que a crença nele diminuía. Era um deus que obtinha poder a partir de sacrifícios, de mortes, especialmente de mortes de guerra. as mortes daqueles que tombavam em guerra eram dedicadas a ele, campos de batalha inteiros que, no velho mundo, lhe davam poder e sustento. (...) tra- balhando com outro deus do mesmo panteão, um deus de caos e mentiras. (...) Em algum momento…conceberam um plano para criar uma reser- va de poder da qual poderiam desfrutar juntos. Um poder que os deixaria mais fortes do que nunca. Afinal, o que poderia trazer mais poder que um campo de batalha coberto de deuses mortos? O jogo se chamava ‘Lutem um contra o outro’.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Aprendi muito sobre os deuses e sobre organizações secretas e sobre guerras. Descobri muitos atalhos e momentos. Alguns adorei. Alguns

198 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.pág.509.. 80 me assustaram. Alguns me deixaram maravilhado.”199 Neil Gaiman Ao aportarem na América, os Deuses antigos que cruzaram os oceanos com os emi- grantes, eram venerados, adorados, recebendo sacrifícios que os mantinham vivos e fortes, esse era o paradigma.

Com o passar do tempo, o confronto entre Deuses que vieram com os emigrantes e os Deuses Nativos, suas miscigenações e representações já não tão fiéis, foram enfraque- cendo a fé das pessoas que deixavam de render seus sacrifícios, e já não se lembravam mais daqueles Deuses que cruzaram o oceano com eles. Havia aí uma mudança no paradigma.

Quando um Deus é esquecido, ele morre. E, a morte, é algo assustador até para os Deuses.

A mudança de paradigmas, assim como toda mudança, gera incertezas, medo e an- gústia. O medo do esquecimento, e sua consequente morte, fez com que os Velhos Deuses enfraquecidos desejassem a sobrevivência, e fossem forçados a lutar por ela.

Deuses Americanos é um livro que conta a história de uma guerra. Uma guerra tra- vada nos bastidores. Uma guerra por poder.

Em uma sociedade que vive amedrontada pela constante ruína de paradigmas, assim como os Velhos Deuses, nos quais a modernização aflorou o medo do esquecimento, a angústia frente ao desaparecimento, a busca por um bode expiatório que seja uno, palpável, culpável, que possa ser morto, para restabelecer o status quo, é onde reside a esperança de tranquilidade, de constância.

O bode expiatório, não poderia ser outro que não, os Novos Deuses. Deuses da mo- dernidade, deuses que roubaram seus fiéis, como a mídia, a internet, os cartões de crédito...

Estes Novos Deuses, ameaçavam o paradigma, construíam novas histórias, dividiam fiéis, eles eram o inimigo, não restavam dúvidas. E, como inimigos, deveriam ser massacra- dos em prol da sobrevivência dos Velhos Deuses.

Através de Deuses Americanos pudemos esmiuçar algumas técnicas que são utilizadas na construção do inimigo. Estas técnicas aliadas ao fomento constante do medo, foram capazes de gerar as incertezas e inseguranças necessárias para que se estabelecesse um “nós” e “eles”, primordial para que a Volkish, fomentada ao longo de meses por Odin, alcançasse sua excelência.

Apesar de não estarem convencidos de que a guerra fosse a melhor opção, boa parte dos Velhos Deuses se viram obrigados a considerá-la, quando o inimigo atacou Odin, bem

199 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág. 574 81 diante das câmeras da TV, para ostentar seu poder e impor um novo paradigma, que os jogava para as margens da história, fadados ao esquecimento.

Este inimigo, foi capaz de derrotar Odin/Wednesday, o Pai de Todos, o Deus mais poderoso entre os mais poderosos, diante das câmeras, em um encontro de paz.

Não havia mais escolha, era chegada a hora da Guerra.

Estamos lutando pela nossa sobrevivência - mugiu um minotauro, de um dos lados da arena. Estamos lutando pela nossa existência -gritou uma boca em uma co- luna de fumaça purpurinada, do outro lado.200 Acontece que, Shadow, o personagem principal, filho de Odin, ao realizar um tributo ao pai, em uma realidade paralela, mítica, nos bastidores, como era chamado o local oculto por um carrossel de uma atração turística de beira de estrada, descobre que Odin está vivo, que tudo não passava de uma manipulação, que buscava o derramamento de sangue e o caos, que alimentariam a uma só vez, Odin e Loki, tornando-os mais poderosos que nunca.

Ao perceber toda a maquinação por trás da guerra, Shadow volta à realidade para ten- tar impedir que os Velhos Deuses e os Novos Deuses guerreiem.

Assim, agem os criminólogos modernos, que buscam alertar de uma só vez, tanto os “criminosos” quanto as “vítimas”, que a política de combate a criminalidade, insuflada pelos meios de comunicação que mercantilizam a criminalidade, enfiando por nossos olhos o medo, diariamente, não passa de jogada política que amplifica o potencial lesivo da cri- minalidade, em busca de autorização para recrudescer o tratamento estatal no intento de defesa das potenciais vítimas. Essa política que sobrevive do medo, elemento constituinte da sociedade moderna, o fomenta em escala mercantil, para ter autorização de causar mais medo naqueles que supostamente são os detentores do poder de amedrontar a sociedade. É um sistema que se retroalimenta.Eles nos empurraram para a guerra, através de uma política de difusão do medo, através dos meios de comunicação, e da construção de um inimigo implacável

A existência de uma técnica, aprimorada ao longo das décadas, pautada no uso do medo, incertezas, mentiras, faz-nos pensar o quanto são importantes os instrumentos uti- lizados na narrativa que busca construir um inimigo. Através de Deuses Americanos pu- demos perceber como o discurso certo, aliado a sua repetição constante e um pouco de pirotecnia, é possível criar um inimigo temível e suficientemente asqueroso capaz de nos fazer sacrificar o pouco de segurança de que gozamos para vê-lo destruído.

200 GAIMAN, Neil. Deuses Americanos; edição preferida do autor/ Neil Gaiman; tradução Leonardo Alves. 1ed.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. pág.508. 82 Ao estudar Deuses Americanos somos capazes de perceber as semelhanças da história narrada com a vida contemporânea, onde o medo chega pela televisão, pela internet, de maneira contínua e sem filtro; fazendo com que sejamos convencidos que existe um ini- migo a ser combatido, que devemos escolher um lado nessa guerra, que irá matar a todos nós, para alimentar aqueles que sobrevivem do sangue e do caos.

Deuses Americanos é um exemplo ficcional maravilhoso do potencial influenciador de uma narrativa, que em geral, é construída com um propósito específico, e do quanto só mesmo o narrador é capaz de conhecer a sua real intenção.

O que fica de Deuses Americanos?

A esperança de que mesmo sob a influência do medo que nos é imposto, tenhamos discernimento para nos retirarmos como Shadow, para uma zona paralela, onde possamos enxergar os bastidores das guerras diárias, e que consigamos perceber que essa questão di- ferenciadora de “nós” e “outros” muitas vezes nos é imposta com ludibrio.201

REFERÊNCIAS BIBLIOGGRÁFICAS

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201 PONTAROLLI, André e SILAS FILHO, Paulo.Black Mirror: Guerra, Psicanálise E Direito Penal Do Inimigo. Sala de Aula Criminal. Disponível em: Acesso em 28/01/2019 83 CAPÍTULO 5 ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO: A FABRICAÇÃO DA CULPABILIDADE NORMATIVA EM O BEIJO NO ASFALTO DE NELSON RODRIGUES.

Thiago Venicius de Sousa Costa202

INTRODUÇÃO

Publicada em 1960, a peça teatral O beijo no asfalto foi escrita por Nelson Rodrigues (1912-1980) a pedido e insistência, no decorrer de oito meses, da atriz Fernanda Monte- negro. O enredo gravita em torno de um moralismo agressivo ao transformar um simples beijo em uma abjeção. A estória começa com um evento fatídico, o acidente de um tran- seunte, que fora atropelado por uma lotação na Praça da Bandeira.

No momento do ocorrido, um passante (Arandir) presta socorro à vítima e se vê dian- te do dilema de atender seu último pedido em vida: dar-lhe um beijo. A cena foi assistida por diversas pessoas que transitavam naquele espaço e vista também pelo sogro de Arandir (Aprígio). Outra testemunha do fato é um astuto jornalista (Amado Ribeiro), responsável por transformar um acontecimento trágico em um verdadeiro espetáculo midiático.

É nessa encenação que a referida obra repercute uma tragédia de costumes, pois es- boça diferentes maneiras de ver e compreender o cotidiano dos sujeitos ordinários e, de igual modo, memorar as individualidades do intelectual. Ademais, consegue imprimir as turbulências históricas de sua época, com visível ressonância no plano da cultura, política e sociedade, dado o crescimento urbano e a euforia do processo de modernização da cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século XX.

Ao transpor essas questões para o ficcional, Nelson Rodrigues capta e representa de maneira criativa a formação do caráter humano e os hábitos de uma sociedade entregue a atos corruptíveis. Aliás, é a partir desse olhar cirúrgico direcionado à sociedade que o dramaturgo representará de maneira diversa seus personagens, de modo a psicografar suas sensibilidades e relação com o mundo.

E o que chama atenção ao compor essas tramas são as sutilezas narrativas que esboçam reflexões acerca do fenômeno jurídico. Isso fica claro nas iniciativas, por parte da mídia

202 Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGH/ UFRN). Pós-graduando em Direito Civil e Processual Civil e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário UNINOVAFAPI. Especialista em História Social da Cultura e Bacharelado em História pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Bolsista Capes. E-mail: [email protected]

84 e da polícia judiciária, de forjar a existência de um crime a partir de um beijo. Um beijo dado entre dois homens, que será apontado como um assalto à moral e aos bons costumes.

Embora não exista uma tipificação legal que identifique ou associe essa conduta a um tipo penal, a mesma é parte de um processo de intervenção criativa que faz uso do imagi- nário para materializar suas carnes. Com isso, o que era para ser um simples interrogatório – de Arandir, testemunha do acidente – ganha ao menos duas características: um processo inquisitivo e um escândalo que repercutirá nos holofotes da imprensa.

O presente trabalho busca desnudar algumas dessas questões. Para tanto, uma série de possíveis é construída ao longo do texto. Caminhos que buscam mensurar o fazer literário à realidade posta, quando coloca-se em questão a existência de um debate que produz maneiras de ler, ver e dizer o direito. Essa discussão é feita com o auxílio de duas aborda- gens teórico-metodológicas: a primeira busca perceber a literatura enquanto documento de investigação histórica que consegue apreender o universo do jurídico, e as reflexões de Certeau (2008), Todorov (2009) e Ost (2004) são úteis nesse sentido; a segunda investiga a ideia de culpabilidade no direito a partir das pesquisas de Varjão (2014) e Tangerino (2009).

Dessa forma, organizou-se o presente trabalho em três momentos. O primeiro esboça as intenções nelsonianas de escrever uma obra que discuta os sacrifícios de um amor puro. Em seguida, é delineado o papel da mídia, com atenção às táticas e os modos de produzir a notícia, ações que darão consistência aos argumentos que criminalizam as cenas do beijo no asfalto. Por fim, apresenta-se os diálogos que buscam dar forma à ideia de culpabilidade normativa, que baseia-se tão somente no juízo de reprovação moral.

A HISTÓRIA DE UM AMOR DERROTADO

O que seria da arte literária sem a imaginação? Sem a constância de uma poética que conseguisse dar forma e dramatizar nossas vidas, que tingisse de cores nossas aspirações, os desejos e outras miudezas? Se a imaginação pode ser identificada como recurso e valor estético, ela também é fazedora de lugares, de espaços que se confundem com a realidade ou fazem pouca distinção ao borrarem essas diferenças.

Nas produções de caráter ficcional, o relato atinge essa especificidade, não só pelo fato de descrever um acontecimento, mas por inaugurar um ato de fixação203. Isso ocorre quan- do entende-se que esses documentos são produções culturais carregadas de historicidade ao representarem um tempo, um lugar e o sujeito que as produz.

Assim, por trás de uma escrita aparentemente despretensiosa e neutra, existem repre- sentações barulhentas do cotidiano. E a literatura, antes de ser um arranjo criativo de pa- lavras, é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social. Logo, as obras existem

203 CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. 15ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

85 sempre dentro e em diálogo com um contexto, e a realidade que aspiram compreender é sempre da experiência humana204.

Enquanto documento de investigação, o seu potencial não está apenas nas referências a episódios históricos ou de seus processos de construção formal, mas como instância que incorpora a história em todos os seus aspectos, sejam eles específicos, gerais, de formas, criativos e temáticos205. Além do mais, apresenta narrativas que captam a estrutura do jurí- dico quando discutem o direito e seu fenômeno, ao conceber a existência de um imaginá- rio que é também gestado por um “infra-direito”206.

Nelson Rodrigues imprime esses termos de modo visceral quando retrata as coisas do mundo, especialmente em sua dramaturgia. O teatro nelsoniano esboça, dentre outras vivências, a liberdade criativa que o autor tivera e que colocou em exercício quando atuou como repórter policial. Carreira, vale situar, que teve início aos 13 anos de idade, exercida no Jornal A Manhã, e que contou com o apoio e influência do pai, que fora diretor do periódico.

Por respirar as influências do fazer jornalístico, baseado em dados factuais e na cober- tura geral, a tragédia será um de seus temas diletos, marcando em sua produção escrita ma- neiras de ver os sujeitos ordinários e, de igual modo, reconhecer e construir a própria indi- vidualidade. Quando Nelson Rodrigues os representa em suas narrativas, busca mergulhar no que existe de mais íntimo da condição humana, como suas vulnerabilidades, frustrações, hipocrisias e outras flutuações morais e éticas que fazem com que os indivíduos ajam e, por que não dizer, inclinem-se de maneira quase irresistível a atos e ações corruptíveis.

A peça O beijo no asfalto condensa essas percepções e tantas outras leituras do social, fazendo com que o próprio autor lhe identifique como uma “história de um amor derro- tado”, pois como intui:

Todo amor é a história de uma derrota, porque o homem, há milê- nios, ama errado. Ainda falta muito tempo para que o homem possa amar certo. Tudo induz ao equívoco do amor. A educação, o ambiente social, familiar, a comodidade, nunca nos levam ao amor total. E o amor, até agora, só se tem realizado por acaso. E é muito perseguido por todos, porque ninguém admite que al- guém seja bem-sucedido no amor. É exatamente isto que procurei mostrar em minha peça. Um homem é sacrificado fisicamente por- que teve um ato de amor puro, na hora da morte207. 204 TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 2ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. 205 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1985. 206 OST, Fraçois. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo-RS: Unisinos, 2004. 207 RODRIGUES, Sônia Maria Santos. Nelson Rodrigues por ele mesmo. Edição digital. Rio de Janeiro: Autoria C, 2012. p. 45. 86 As tessituras dessa obra refletem um fato memorativo, um evento real que lhe fora recepcionado, certamente, de maneira chocante e inesperada. Trata-se de uma tragédia que envolveu Alfredo Pereira Rêgo, jornalista de O Globo, que Nelson conheceu no auge da mocidade, quando contara, então, com vinte anos de idade.

Em suas lembranças, existe a recordação de uma pessoa boa, que teve a vida inter- rompida de maneira brutal ao ser atropelado por um arrasta-sandália, espécie de ônibus antigo. O que se sabe, através dos depoimentos e entrevistas deixados pelo dramaturgo, outrora organizados por sua filha, Sônia Rodrigues208, é que, minutos antes de morrer, o jornalista das memórias de Nelson pediu para que qualquer pessoa que transitasse naquele espaço o beijasse, pouco importando quem o fosse, pois ele queria apenas sentir o carinho de um ser humano.

O desejo final lhe reservou a pureza dos sentimentos, realocando as sensibilidades para a menção mais honrosa, nobre e controversa dos homens: o amor. Todavia, seu ato foi dilacerado pelos jornais, que retrataram o ocorrido de maneira vexatória. Se naquele momento derradeiro, por alguns instantes, brotou uma poética das emoções, seu último ato em vida foi posto a nu pelo sensacionalismo da imprensa.

Nelson Rodrigues apropria-se dessa história para dramatizar um momento de amor, bem como a falta dele, nos indivíduos. Um sacrifício de amor que abriga uma narrativa complexa, conseguindo imprimir de modo particular estruturas do universo jurídico a partir de um suposto crime, parte integrante de um processo de invenção. Fruto de uma produção imagética – de circunstância e autoria – que concentra-se em um plano jurídi- co-midiático.

Dessa forma, as narrativas que seguem a obra sugerem iniciativas de identificar e construir um sujeito criminológico. Assim sendo, ocorre a personificação do sujeito que delinque, daquele que infringe a norma, que mede-se por atos que põem em desordem as estruturas estáveis do social e, por consequência, deve ficar sob a guarda e vigília do poder panóptico209, sob uma medida de coerção do Estado.

Interessa observar que esse processo de invenção, cuja finalidade é imputar um fato condenável, destaca dois aspectos: se por um lado, não segue procedimentos legais, por outro, não se desliga totalmente da realidade. O que torna sugestiva a formação de um processo de invenção controlada, depositando como limite da imaginação as tentativas de seguir ditames legais, ainda que pelo seu avesso, e signifique apenas um juízo de reprovação moral – que fundamentará, por conseguinte, a culpabilidade normativa210.

208 RODRIGUES, Sônia Maria Santos. Nelson Rodrigues por ele mesmo. Edição digital. Rio de Janeiro: Autoria C, 2012. 209 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. 210 Por culpa compreende-se o sentido técnico-jurídico de negligência, fiel à tradição romana que conhecia três modalidades de produção de resultado: a título de dolo, culpa e acaso. Assim, culpabilidade é a condi- ção de culpa, onde o indivíduo responde pela prática de uma ação e pelas consequências dela advindas. Ver: TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Apreciação crítica dos fundamentos da culpabilidade a partir da criminologia: contribuições para um direito penal mais ético. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, 87 NA MIRA DA MÍDIA

Na construção dessa tragédia de costumes, Nelson Rodrigues concebe ao jornalismo um papel de destaque na trama. O dramaturgo imprime aspectos gerais do comportamen- to desses veículos de comunicação, que ganham visibilidade a partir da figura de Amado Ribeiro, jornalista do Última Hora. Assim, esse personagem incorpora a farsa da grande mídia ao desnudar um tipo de jornalismo que não é comprometido, em sua integralidade, com o real.

É nesse sentido que a ideia de “verdade” se torna um problema, tanto pelo modo como a notícia é veiculada quanto pela sua capacidade de ser moldada – e moldar pessoas e instituições – pela mente inventiva de seus redatores. Portanto, se a verdade é hasteada no discurso da imprensa e coloca-se como uma carta de apresentação, que poderia preservar a neutralidade e autenticidade de seu trabalho, é também uma arma de poder211 que produz sensibilidades, pois, ao tempo em que informa, é também responsável por formar a opinião pública.

Amado Riberio transborda esses dilemas, assim como as maneiras de produzir e fa- bricar o fato noticioso. A ideia não é apenas anunciar o que passou através de um furo de reportagem, mas dramatizar o evento, utilizando-se de uma narrativa que extrapola o fato, que reflete imagens distorcidas através de um relato que alinha, sem distinção, realidade e fantasia.

Um exemplo é a agressão de Cunha a uma gestante; um tapa, no dizer daquele que, por infelicidade ou não, fez com que esta sofresse um aborto espontâneo. Esse episódio não despertou o interesse do delegado, menos ainda a culpa pelo feito. O seu incômodo reside no modo como o caso foi veiculado. Aproveitando-se da situação, Amado Ribeiro informa não um simples tapa, mas um chute na barriga da mulher.

Tal comportamento reflete os modos de fazer, moldar e fabricar a notícia. E não é difícil imaginar e trabalhar seus possíveis, como um ato de crueldade, um atentado contra a vida, a honra e a dignidade de duas pessoas, uma situação que desumaniza o seu agressor; atitude que, facilmente, colocaria em suspensão o papel social da polícia judiciária que, outrora, deveria zelar pelos interesses individuais e coletivos dos civis, pelo bom funciona- mento da justiça e da Ordem pública.

Não obstante, a fúria de Cunha é alimentada pela represália que já vinha sofrendo, pois, como lembra, “[...] o chefe me disse o que não se diz a um cachorro!”212. Sua autori- dade é reduzida ao mínimo possível por seu superior e pela opinião pública, e a estima que

Departamento de Direito penal, criminologia e medicina dorense, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009. 211 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. 212 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 12.

88 tivera – ou supunha ter pela ocupação de um cargo que lhe garantia, certamente, algum prestígio – foi pulverizada.

Todavia, essa situação exibe um desfecho inusitado, sugerido pelo próprio jornalis- ta que jogara seu nome aos lobos. O caso do beijo no asfalto é discutido pelo repórter, Amado Ribeiro, como uma oportunidade para que o delegado se reabilitasse socialmente. Assim, uma vez que este ganhasse espaço e os holofotes da mídia, faria com que a cena de violência contra a mulher fosse esquecida.

O momento seria ainda oportuno para a ascensão da figura de Amado Ribeiro. Seria a sua consagração e reconhecimento nas camadas populares – e, consequentemente, no jornal que atua. O repórter teria a oportunidade de gravar seu nome socialmente e cobrar as glorias que o jornalismo policial poderia lhe reservar.

A polêmica constitui uma de suas credenciais, o que reflete o tipo de pessoa que estava se tornando: agressivo, austero e petulante; sujeito moldado pelo cinismo, ironia e outras estratégias que encenavam a malandragem. Logo, o seu fazer jornalístico ilustra bem os tipos de indivíduos que estão presos às redações de jornais e que mantêm relação direta com o capital, utilizando-se de suas funções para a obtenção de benesses e cavações de cargos.

Ao certo, Nelson Rodrigues reproduz diferentes maneiras de conceber a imprensa e o jornalismo. Todavia, elege o modo da imprensa marrom e seu falseamento de informa- ções para construir sua narrativa em O beijo no asfalto. Assim, ao dar vida a Amado Ribeiro, Nelson Rodrigues busca representar o modo como esses malabaristas da notícia – ou da linguagem, já que fazem uso desse meio para produzir crônicas que retratam fatos cotidia- nos que estão para além do factível e palpável – utilizam-se de seu oficio para construir o grotesco. O que bem denota o exposto por Charaudeau213 ao advogar que:

Na verdade, o cidadão nunca tem acesso ao acontecimento bruto, ele sempre entra em contato com um acontecimento filtrado pela mídia. Assim, ora acontecimento bruto e acontecimento veiculado pela mídia se confundem, ora um prepondera sobre o outro, crian- do um círculo vicioso, como demonstra o tratamento midiático de alguns casos. Basta lembrar o quão emblemático tornou-se o acontecimento acerca do beijo, pois, como anunciava Amado Ribeiro, “[...] a pederástica faz vender jornal pra burro!” 214. E, se situações como essa conseguiriam alavancar as vendas dos impressos, elas não poderiam

213 CHARAUDEAU, 2012 apud QUISTER, Ezequiel Schukes. A influência da mídia na decisão penal. In: Revista eletrônica de direito penal e política criminal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 23-43, 2012. p.5. Disponível em: Acessado em: 17 jan 2019. 214 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 51. 89 ser ditas de qualquer forma, muito menos como mais uma tragédia que ocupa as colunas dos diários.

Percebe-se que, para que a matéria tributasse o jornalista, era preciso dramatizar a situação, apostando em enredos que dessem consistência à estória. Para tanto, deveria ser feito um trabalho de escavação, de perceber o que poderia existir para além do visível, do que haveria por trás de um evento fatídico envolvendo uma lotação. É nesse enlace que a vida pessoal dos indivíduos, ligada ou presa a uma rede de conveniência com a vítima ou com um potencial criminoso, também comece a ser investigada.

A ideia por trás desse ato investigativo não é esclarecer o fato, mas endossar um novo drama à situação, inaugurando mais páginas para o escandaloso caso do beijo no asfalto. Estratégia que suspende as certezas das coisas e, inclusive, desperta dúvidas do próprio acusado, Arandir, que passa a questionar se aquilo que é veiculado pela mídia, afinal, não seria a “verdade”. Essa cogitação aparece no diálogo que trava com a irmã de sua esposa, ao recordar que:

Diz lá [no jornal] que eu empurrei o rapaz. Como se eu. E não en- tendo a viúva. (falando para si mesmo) Será que esbarrei no rapaz? Sem querer, claro. Mas, nem isso. Tenho certeza, Dália. Não toquei no rapaz. (memorizando para si mesmo) Uma senhora vinha em sentido contrário. O rapaz estava em cima do meio-fio. Aqui. Eu me desviei da senhora. Mas não cheguei a tocar no rapaz215. Outros personagens também vivenciaram essa experiência da dúvida, como é o caso de D. Matilde, quando aparece na casa de Selminha alardeando o que vira estampado na manchete principal do jornal. Curiosamente, observara que “[...] pela fotografia do jornal, a fisionomia do rapaz não me parece estranha. [...] o morto não é um que veio aqui, uma vez?”.216 Essa interrogação chega à Selminha como uma ofensa, pois mesmo sendo enfática sobre a retidão do marido, a sua vizinha sugeria que ela estivesse mentindo.

Atenta para um suposto mal-entendido, D. Matilde reformula o pensamento, mas sem modificar o que considera ser a “verdade” mediada pela imprensa, já que a articula- ção dos fatos pelos meios de comunicação tem um poder de persuasão e convencimento inebriante, e declara: “Deus me livre! A senhora não entendeu. Eu não ponho em dúvida. Absolutamente. (repete) Em absoluto! Não ponho. Mas há uma parte no jornal. A senhora leu tudo?”217.

215 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 54. 216 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 28. 217 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 28. 90 Por fim, anota-se que esses diálogos corroboram com as intenções da mídia de for- mar a opinião pública, além de apresentar os excessos do fazer jornalístico. Excessos que fazem com que a liberdade de imprensa gravite sobre o universo do ilícito ao dar margem à violação das garantias individuais e dos direitos de personalidade. Além disso, um dos pontos que chama atenção, e costura-se ao enredo nelsoniano, é a mitigação da presunção da inocência,218 dado a espetacularização do ocorrido em torno do episódio do beijo do asfalto, cena distorcida pelo julgamento midiático.

SOBRE A INVENÇÃO DO INIMIGO E DA CULPA

As iniciativas de criação do inimigo219 ou do sujeito delituoso apresentam característi- cas peculiares em O beijo no asfalto, envolvendo elementos narrativos que mantêm proximi- dades com um processo inquisitório, pautado na insuficiência de provas para a condenação da pessoa. E bem mais do que isso, oferece indícios para criar um juízo de culpabilidade que apoia-se somente no realismo moral220 do senso comum.

Esse fato tem início no Distrito Policial com o interrogatório de Arandir, “uma figura jovem, de uma sofrida simpatia que faz pensar num coração atormentado e puro”221. Na oportunidade, ao invés de serem colhidas informações que poderiam esclarecer a dinâmica do acidente e as circunstâncias de um suposto crime, o que entra em jogo é a atitude de Arandir: beijar um desconhecido segundos antes de sua morte.

O interrogatório norteará os seguintes pontos: se Arandir era solteiro ou casado e, se casado, porque não estava usando a aliança; se conhecia o indivíduo que foi acometido pela lotação, se eram amigos ou conheciam-se de vista; e se realmente “gostava de mulher”. A postura do delegado é incisiva nesse último ponto e torna questões relacionadas ao gênero problemáticas222, particularmente a ideia de homem viril, forte e destemido. O que revela um contexto geral – que dialoga com as fragilidades do masculino – de uma sociedade que

218 Enquanto princípio, a presunção da inocência prevê que ninguém deve ser considerado culpado até o trân- sito em julgado de uma sentença penal condenatória, logo, não seria permitido um tratamento mais severo à pessoa do acusado, que é próprio do direito penal do inimigo. Ver: ANTUNES, Flavio Augusto. Presunção de inocência e direito penal do inimigo. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Estudos Pós- -graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2010. 219 Por inimigo compreende-se aquele indivíduo que é punido apenas pela razão de sua condição de ente peri- goso ou daninho para a sociedade. Leitura que é feita para compreender a ideia de seletividade penal a partir de sua relação com o gênero e sexualidade. Ver: ZAFFARONI, Eugeni Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 220 Refere-se a um tipo de julgamentos de ordem moral determinado pela concepção objetiva de certo e errado, que não reflete, necessariamente, uma posição jurídica ou desrespeito ao Direito. Ver: VARJÃO, Alan Jef- ferson Santos. Culpabilidade no direito penal: a ilusão do poder agir de outro modo a partir do problema do livre-arbítrio. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-graduação em Direito-PRODIR, Universidade Federal de Sergipe. Sergipe, 2014. 221 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 18. 222 Refere-se às relações entre os sexos que são histórica e socialmente construídas. Ver: BUTLE, Judith. Pro- blemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade. Porto Alegre, n. 20, v.2, jul.-dez., 1995. 91 vive e preserva os valores arraigados do patriarcado, estando no limite da atribuição do sexo do que é ser homem e mulher.

Historicamente, nota-se que, ao longo da vida, o homem passará por experiências que buscam instruir os significados do papel masculino. As experiências interiores, como o afeto, o carinho, a ternura e outras sensibilidades que colocariam em dúvida a sua prefe- rência sexual, são pontos que devem ser superados ainda na infância. O que faz com que o menino viva sob vigilância contínua de suas escolhas e desejos, pois “para um homem, ter os afetos fora das trilhas definidas socialmente para eles é sinal de que a heterossexualidade não vingou”223.

E a cenas que seguem ao beijo no asfalto são singulares nesse sentido, pois colocam em desordem as estruturas dos papéis sexuais, que tendem a ser mais flexíveis e móveis no enredo. E, talvez, seja por isso que a vida privada de Arandir ganhe destaque durante toda a fase de investigação, onde a ação da polícia, sobre a materialidade e autoria do crime, adquire novos contornos – e, facilmente, colocaria em suspeita a legitimidade de seu pro- cedimento –, como pode ser notado a seguir:

CUNHA: (falando macio) – Conta pra mim. Conta. Conta o que você fez na Praça da Bandeira. ARANDIR: (ainda contido) – O lotação foi o culpado (Cunha ergue- -se) CUNHA: – Um momento! ARANDIR: – Mas doutor! Já estava aberto o sinal amarelo quando o lotação. CUNHA: – Ó rapaz! O lotação não interessa. Compreendeu? Não interessa. O que interessa é você224. Ao certo, Cunha esperava arrancar uma confissão de Arandir e não mediu esforços para obter respostas, fazendo uso da coação moral, do terror psicológico, abuso de poder e da arbitrariedade do cargo de delegado. Atitudes que buscam a criminalização do ato de beijar outro homem. Além disso, o uso da violência não é descartado; pelo contrário, é sugestionado como uma opção eficaz na fase inquisitorial, especialmente quando o indi- víduo não articula suas respostas para corresponder à expectativa de seu interlocutor. Isso ocorre quando Arandir não oferece respostas que contemplem a série de inquirições feita pelo delegado. Ao contrário: as declarações do interrogado são confusas, vagas e temerosas, fazendo com que o chefe de polícia declare ser “(...) por essas e outras é que a polícia baixa o pau. E tem que baixar!”225.

223 NOLASCO, Sócrates (Org.). A desconstrução do masculino. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. p.15. 224 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 20. 225 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p.21. 92 O fato é que essa violência, antes de ser um processo velado ou simbólico,226 ganha cada vez mais contorno institucional, expondo os abusos do poder persecutório estatal. A cena que segue ao velório do atropelado, com o diálogo de Amado Ribeiro e a viúva do sujeito, é reveladora. O caso é que o jornalista buscou saber a “verdade” sobre o ocorri- do com a mulher, e certamente, garimpar possíveis tramas e segredos por trás do evento fatídico.

Mas o repórter não esperou conseguir esses dados e, de imediato, expôs a sua versão, obtida através de “uma fonte limpa” que lhe garantiu a fidelidade do que aconteceu. Fide- lidade esta que fortalecia a revelação de que a mulher mantinha uma relação extraconjugal. E declara: “(...) Você tem um amante e com toda razão. Com toda a razão. Conheço a sua vida, de fio a pavio. A senhora arranjou, cala a boca. Arranjou um cara quando percebeu, entende? Ao perceber que seu marido mantinha relações anormais com outro homem, a senho- ra. Não é fato?”227.

As passagens que sucedem ao diálogo ilustram o momento em que o corpo do jovem está sendo velado. É importante situar que, nesse episódio, o jornalista apresenta-se como uma autoridade policial, e não somente como um repórter investigativo. O que, talvez, faça com que incorpore um comportamento mais truculento com a viúva.

Logo, a sua atitude representaria um lugar de fala, que é institucional e mantém re- lações de poder contra o menos favorecido. Nesse sentido, quando tenta persuadir a viúva para que diga a “verdade”, aliás, comprove a sua tese – que a mulher conhecia o indivíduo que beijou seu marido, que já desconfiava dessas “relações anormais” e, por essa razão, mantinha inclinações amorosas com outra pessoa, etc. –, frustra-se com a resposta negativa da mulher e tem uma reação explosiva, a conferir:

AMADO: (furioso) – Que se dane. (para a viúva) Olha aqui. Ou a se- nhora diz a verdade. A polícia não tem esse negócio de mulher, não. Mulher apanha também (muda de tom) Sua burra! Põe na tua cabeça o seguinte. Você tem um amante. E por quê, por que tem um amante? Porque seu marido, escuta, escuta! Seu marido mantinha relações anormais. Relações anormais com um cara. Entendeu? (melífluo) Seu marido tinha um amigo chamado Arandir; amigo esse que a senhora está reconhecendo pela fotografia228. Outro ponto que revela a característica inquisitiva e, de igual modo, busca dar consis- tência à culpa de Arandir, pode ser observado no colhimento do testemunho de sua esposa,

226 Por violência simbólica entende-se uma forma de poder que se exerce sobre os corpos de maneira suave e in- visível para as suas próprias vítimas. Vide: BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. tradução Maria Helena Kuhner. – 2ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 227 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p.35. 228 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p.36. 93 Selminha, pelo delegado Cunha e por Amado Ribeiro. Fora da delegacia e longe da indis- crição dos jornalistas, o encontro dos personagens ocorreu em São João do Meriti, na casa de Amado Ribeiro. Aparentemente, essa reunião não ocorreu de maneira voluntária, antes pela arrogância sem limites do investigador Aruba, que não ofereceu maiores explicações sobre o lugar para onde estava conduzindo a depoente.

A resistência manifesta de Selminha surge pelo insólito procedimento adotado pelo delegado ao colher o seu testemunho em um ambiente longe do espaço burocrático da polícia, distante dos olhares indiscretos e do cheiro amorfo de uma repartição pública. A informalidade do espaço não lhe ofereceu nenhum tipo de conforto, e menos ainda se- gurança, pois estava em uma situação de vulnerabilidade. Para compreender esse arranjo, basta meditar sobre o seu lugar social – de mulher, esposa e mãe, pois ela trazia no ventre o fruto de sua relação com Arandir –, um apelo contra as atitudes invasivas da autoridade policial, que serviu-se de táticas para dissolver qualquer tipo de construção afetiva ente o casal, seja pelo tratamento informal ou por tentar clarificar a atual posição do marido, afir- mando que ele não era homem suficiente para ela.

Nesse intervalo, Amado Ribeiro faz uso do cinismo e tenta apresentar uma face mais sensível do delegado:

AMADO: (incisivo) – D. Selminha, aqui o Cunha. Ouviu, d. Selmi- nha? Está ouvindo? O Cunha não é como os outros! CUNHA: (andando de um lado para outro, numa agitação jocunda) – Fala, Amado, fala! AMADO: – Posso falar porque. Tenho metido o pau na polícia. Mas o Cunha é um dos raros. Um dos raros, entende? (cínico e enfático) – Humano!229 Esse processo de desconstrução da personalidade grosseira de Cunha visa criar uma maior proximidade da depoente com este, não só para que ela se sinta à vontade com sua presença, mas para que consiga satisfazer o seu jogo de perguntas com a “verdade”. Não é por menos que busca relacionar sua imagem a uma figura paterna, atento a todas as etapas da vida privada e sentimental da filha:

CUNHA: – Menina, escuta. Pra mim você. Mas escuta. SELMINHA: (querendo desculpar-se) – Em absoluto, eu! CUNHA: – E, de mais a mais, eu sou pai. Antes de tudo, sou pai. O amado sabe. Eu tenho uma filha. Única. AMADO: – Noiva. CUNHA: –Noiva. Vai se casar. E quando eu olho para você, penso

229 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 43. 94 na minha filha. Nunca se sabe o dia de amanhã. Vamos que o meu genro. Essas coisas, sabe como é. Casamento é loteria, mas eu, quero que você, entende? (para o repórter) Você não acha, Amado? (para Selminha novamente) Quero que você me veja como um pai. Agora responda: – ainda tem medo de mim? SELMINHA: – Não. AMADO: – Naturalmente. CUNHA: (com um riso surdo e ofegante) – Podemos conversar? SELMINHA: (com uma docilidade de menina) – Podemos230. Contudo, a encenação desse roteiro sentimental não é sustentada por muito tempo, e a figura de pai, aos poucos, é dissolvida por sua intransigência e a face autoritária que, cer- tamente, nunca deixou de lado. Quando o delegado questiona Selminha sobre o paradeiro de seu marido, e a mesma alega desconhecê-lo, a resposta desagrada e provoca a ira da au- toridade policial. Em sua suposição, o delegado acredita que, por trás dessa negativa, existe uma cumplicidade que poderia estar encobrindo uma possível fuga de Arandir da polícia. Desse modo, essa seria a comprovação cabal da existência de um pretenso criminoso.

Logo, caberia ao nobre delegado descortinar esse teatro, esse jogo de encenações e melancolia que estava lhe dificultando a obtenção da “verdade”. Seria necessário assumir uma postura mais ríspida, se colocar novamente na posição de poder e obter pela força uma resposta definitiva. Porém, naquele patamar da investigação, mesmo que o depoimento fosse procedente ou não, o fato lhe era pouco elucidativo, pois já estava com a convicção formada. O que tornaria problemático pensar em uma fase pré-processual de investigação e esclarecimento prévio dos fatos, pois o julgamento já estava sendo feito e a sentença já fora anunciada: culpado!

A todo momento, Selminha busca argumentar a favor da integridade do marido, explanando que a polêmica em que fora envolvido poderia representar mais uma des- ventura do que um ato ilícito. Pela ausência de tipificação, a ilicitude precisará ser forjada para ganhar contornos criminológicos. Dessa maneira, o ato se tornará punível, à primeira vista, por seu assalto à moral e aos bons costumes. A mídia terá um papel fundamental na consistência desses argumentos ao repercutir socialmente o acidente – utilizando-se do sensacionalismo para construir um enredo folhetinesco de um caso amoroso que terminou em tragédia –, e emitir notas que servirão de baliza para construir a opinião pública.

Todavia, as iniciativas da esposa de Arandir de justificar o ato do marido não são valoradas pelo delegado. A autoridade fará de tudo para argumentar a favor de sua culpa, ato que se concretiza ao trazer a viúva do rapaz atropelado para testemunhar. A mulher confirma que conhecia Arandir e revela que este costumava frequentar a sua casa. E foi em uma dessas visitas que ela flagrou o marido e o acuso tomando banho juntos.

230 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 43. 95 Montado o cenário de mais uma polêmica, a viúva é retirada do local às pressas pelo repórter Amado Ribeiro. Selminha, curiosa pelo que acabou de ouvir, tenta convocar novamente a presença da mulher para alguns esclarecimentos. Entretanto, tem a fala in- terrompida pelo delegado, que dispara “(...) Quem interroga somos nós! A senhora não se mete!”231.

Inquieta pela situação, que coloca novamente em suspensão a sexualidade do marido, Selminha esbraveja e consegue, por alguns minutos, a atenção de todos com o intuito de explicar o que estava por trás da ida do marido ao centro da cidade, local onde ocorreu o acidente com a lotação. Ocorre que o marido foi à Caixa Econômica “por uma jóia no prego”, ou seja, seu objetivo era penhorar o objeto para conseguir dinheiro para realizar um aborto clandestino. O aborto seria do filho que crescia em seu ventre. A motivação partiu do próprio Arandir, que preferia ter a criança em outro momento, por “(...) achar que a gravidez estraga a lua de mel! Prejudica”232.

É importante observar que o relato do aborto, que é um crime tipificado e penal- mente punível233, não causou nenhum estranhamento ou alarde no delegado Cunha. Seus porquês podem ser mensurados através de possíveis e revelam caminhos para discutir a se- letividade criminal: por já ter desnaturalizado esse ilícito, dado o episódio do tapa em uma gestante no qual estivera envolvido; por considerar um delito menor, um crime cotidiano que não merecia a movimentação da polícia judiciária, menos ainda atenção da mídia.

O que estava em jogo era tão somente a polêmica de um beijo, o beijo no asfalto dado entre dois homens e presenciado por diversas pessoas em via pública. Dessa forma, a invenção ou fabricação do inimigo é fundada por esse ato e por seu juízo de reprovação, que corresponde à ideia de certo/errado, justo/injusto. Assim, a sanção penal manifesta-se pela sua má escolha, que ganha formato na medida em que o autor não faz o uso adequado do livre-arbítrio, que tem por base pressupostos falsos, pois como esclarece Varjão234:

Num universo de causa de efeito, dizer que alguém poderia ter es- colhido de outro modo é o mesmo que dizer que esse alguém tem o poder de escolher o contexto do qual faz parte. Qualquer posição nesse sentido é insustentável. Ora, ninguém tem o poder de escolher o universo que vive, de escolher todos os eventos que acontecem na vida, os genes que formam as células, as influências que formam a personalidade, os pais, a sociedade da qual faz parte. Da mesma

231 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 45. 232 RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto: tragédia carioca em três atos. Roteiro de leitura e notas de Flávia Aguiar. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 46. 233 Levando em consideração o contexto histórico em que a obra foi produzida (1960), faz-se referência à legis- lação criminal brasileira de 1940, que já identificava a prática abortiva como um crime contra a vida. 234 VARJÃO, Alan Jefferson Santos. Culpabilidade no direito penal: a ilusão do poder agir de outro modo a partir do problema do livre-arbítrio. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-graduação em Direito-PRODIR, Universidade Federal de Sergipe. Sergipe, 2014. p. 20. 96 forma, ninguém é nem um pouco responsável pela estrutura cerebral que determina a realização de suas ações. Culpar um indivíduo afir- mando que poderia ter agido de outro modo é o mesmo que dizer que ele é culpado pelo conjunto de todas as circunstâncias em sua vida. Isso é um absurdo. O pior de tudo é quando mandamos esse sujeito para a cadeia fundamentando a pena nessa culpa. Considerar a culpa de Arandir reforça, de maneira singular, o que Nelson Rodrigues já sinalizou ser a história de um amor derrotado. Nesse caso, a derrota da justiça e suas instituições, dos pilares que deveriam dar força e resistência aos fundamentos democráticos de uma sociedade de direito. Derrota de uma comunidade que argumenta a favor de um Estado de moralidade, mas não abre mão das tiranias, das guerras de ego, por título e esti- ma, e outras estratégias que compreendem e dramatizam o imaginário de um sistema social afeito pelo poder, onde cada indivíduo constrói imagens de si através de uma miniautorida- de. Temas que, afinal, dizem muito sobre a importância da literatura para existencializar235 o direito, dar-lhe formas e cores vivas para tingir o formalismo do jurídico, que não está alheio à esfera da cultura e sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O beijo no asfalto é uma das obras mais célebres de Nelson Rodrigues, não só pela capacidade do autor de criar diferentes espaços de experiência, quando permite ao leitor desbravar sobre o que existe de mais íntimo e singular da condição humana, mas também por explorar as turbulências sociais de um país que vivenciou o crescimento urbano e a euforia de processo de modernização.

Aspectos estes que são impressos de maneira criativa através de seus personagens, que incorporam as aspirações, desejos e sonhos de uma época – especialmente de seu recorte espacial, que é a cidade do Rio de Janeiro da década de 1960 –, assim como se veem in- clinados de maneira quase irresistível a ações e atos corruptíveis. É com esses arranjos do social que Nelson Rodrigues representa em sua obra uma tragédia de costumes, que ganha forma ao explorar um moralismo agressivo em torno da polêmica de um beijo, um beijo no asfalto dado entre dois homens. Essa problemática coloca em questão e dramatiza os sacrifícios de um amor puro e sua ausência no âmago dos indivíduos, mas também revela outras miudezas.

Além de apresentar discussões que tornam problemática a relação entre gênero e se- xualidade, O beijo no asfalto costura em sua narrativa maneiras de ler, ver e dizer o direito. O que demonstra que a literatura não está alheia às formas e às normas instituídas; pelo contrário: significa a existência de um imaginário jurídico.

235 STRECK, Lenio. A literatura ajuda a existencializar o direito. Anamorphosis – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 4, n. 2, p. 615-626, junho-dezembro 2018. Entrevista concedida a Henriete Ka- ram. Disponível em: Acessado em 10 jan 2019. 97 Isso fica nítido quando o autor elege as cenas do beijo para compor sua trama, e repercute o caso através das iniciativas de dois agentes – a mídia e a polícia judiciária – de censurar o que seria, no dizer nelsoniano, um ato de amor. E o que chama a atenção é a forma como tal fato será edificado, fazendo uso de estratégias que buscam fabricar a exis- tência de um sujeito criminológico ou apresentar seus contornos.

O jornalista Amado Ribeiro é uma das figuras, ao lado do delegado Cunha, que atu- ará nesse processo de fabricação da culpabilidade normativa – que tem contorno midiático e é forjada por meio de um juízo de reprovação moral. Ao tratarem da matéria, os perso- nagens expõem detalhes cruciais para a observação nelsoniana. O profissional da imprensa evidencia a farsa e a hipocrisia que podem estar presentes na grande mídia, assim como os limites da liberdade de imprensa que gravita sobre o universo do ilícito; enquanto o dele- gado põe em dúvida o papel da polícia judiciária, os limites do poder persecutório estatal e levanta suspeitas sobre a eficácia da justiça e a preservação dos valores democráticos no país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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99 CAPÍTULO 6 QUANTOS CAPITÃES É PRECISO PARA INCENDIAR UMA NAÇÃO? O DIREITO PENAL E O PROCESSO PENAL EM CHAMAS POR UMA ÓTICA DE FAHRENHEIT 451, DE RAY BRADBURY.

Paulo Eduardo Polomanei de Oliveira236

Quando pensamos em um livro que desaparece de nossa instante, logo o desespero consome por inteiro nosso corpo. Fica a dúvida: será que perdemos o livro ou ele criou “asas” e dali voou sem destino algum para uma próxima estante?

Por mais que nunca tenhamos lido o livro desaparecido e ele esteja na eterna fila dos “próximos livros de cabeceira”, a inquietação sempre consome aqueles que se perdem no mar absoluto de páginas.

Se apenas o desaparecimento de um deles já basta para agoniar um leitor, imagine se deparar com um mundo onde o livro é proibido? Um mundo onde a prática da leitura é condenável. Um lugar onde os livros são combustíveis para um fogo incessante e impla- cável.

Ray Bradbury nos coloca no centro deste mundo que se diz perfeito.

Em Fahrenheit 451, Bradbury nos lança em uma distopia que, diferente de tantas outras que pintam nosso mundo devastado por guerras e afins, nos traz um terror literário página após página que bordam um mundo sem a literatura.

O autor traz para dentro de nossas casas um universo onde aquilo que o leitor faz (ler) é proibido e condenável. Um mundo onde esse leitor já não poderia se auto intitular assim, e se quiser que assim o chamem, que seja escondido nas penumbras antes de ser devorado pelas chamas azuladas.

A história conta a trajetória de Montag, um bombeiro, cuja missão é destruir os li- vros queimando-os. Queima-se os livros pois simplesmente são proibidos, e porque são descartáveis. Não há a necessidade deles para a formação da sociedade. Queimar livros é um trabalho digno de um bombeiro, que invés de despejar água para dar vida, lança fogo para trazer a morte.

A obra, índice de diversos debates acerca da sua real intenção, divide-se desde críticas

236 Advogado. Especialista em Ciências Penais. Especialista em Direito Civil e Empresarial. 100 ao Estado Controlador até às questões de críticas em relação à mídia237. Uma contextuali- zação literata da obra pode ser erigida em diversos campos, conforme observado por Paulo Silas Filho:

Numa leitura contextualizada da obra em questão, tem-se que a mo- tivação que enseja na queima de livros (mote da obra) se faz presente na sociedade atual. O superficial pelo profundo, a felicidade propor- cionada pela ignorância, o aparente pelo real, o cru pelas diversas possibilidades que a leitura oferece: é nesse aspecto que “Fahrenheit 451” faz sua denúncia.238 Entretanto, o que é certo, é que todas se debruçam sobre uma real necessidade: de que jamais se abandone a literatura.

Assim, na trama, ser lançado em um mundo onde a proibição da literatura impera, visualizando a degradação da mesma, é ser lançado diretamente sobre o fogo despejado nos livros, para que se queime junto deles.

O folego apenas retorna quando aquele que lê Fahrenheit 451 se depara com outro mundo à sua volta – o seu próprio mundo-. Percebe que não há bombeiros incendiado- res e tampouco sabujos robóticos cuja agulhada fatal conduz ao mesmo destino cruel das páginas amareladas.

Assim, com o pensamento reestabelecido, o leitor pode deixar o livro em paz na cabeceira, sabendo que o mundo de Fahrenheit 451 está um tanto distante do mundo atual.

Porém, dentro da (própria) escuridão, o leitor se questiona: será que aquele mundo realmente se encontra tão distante assim? Será que não é uma previsão (certeira) do que aguarda a todos? Será que já não estamos vivendo aquelas páginas queimadas?

São muitos “serás” para a pouca luz que o abajur da cabeceira pode iluminar. A in- quietação queima, como se tocado pelo beijo da salamandra dos bombeiros incendiadores.

Como a humanidade pode viver sem um livro? Como pode um livro condenar uma pessoa? Como se chegou a tal ponto?

O ribombar das regras dos bombeiros parece estalar dentro da própria cabeça inquieta do leitor:

237 ROSENFIELD, Luis. O Papel das Letras na Democracia: Apontamentos sobre Direito, Literatura e Cultura a partir de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. In Anais do I CIDIL, v.1, n.1, outubro, 2012. 238 SILAS FILHO, Paulo. FAHRENHEIT 451 E O MUSEU NACIONAL: O fogo que queima o saber his- tórico. III Colóquio de Direito e Arte da UFSC: discursos, imagens e transdisciplinaridade. Anais. Programa de Pós-Graduação em Direito. – v. 3. (2018) – Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2018. 101 Primeiro Bombeiro: Benjamim Franklin 1ª REGRA. Atenda prontamente ao alarme. 2ª REGRA. Comece o fogo rapidamente. 3ª REGRA. Queime tudo. 4ª REGRA. Reporte-se imediatamente ao posto dos bombeiros 5ª REGRA. Fique alerta a outros alarmes239. A mão trêmula do leitor insone apalpa dentro da penumbra o livro. De certo há uma explicação do porque condenar as pessoas a sobreviverem sem poder viver nas páginas infinitas dos livros.

Os bombeiros estão ali, explicando:

Você pergunta quando tudo começou, esse nosso trabalho, como surgiu, onde, quando? Bem, eu diria que ele realmente começou por volta de uma coisa chamada Guerra Civil, embora nosso livro de regras afirme que foi mais cedo. O fato é que não tivemos muito papel a desempenhar até a fotografia chegar à maioridade, Depois, veio o cinema, no inicio do século vinte. O rádio. A televisão. As coisas começaram a possuir massa. [...] [...] – Sim, mas onde entram os bombeiros nisso tudo?- pergunta Montag. -Ah- Beatty inclinou-se, varando a rala névoa de fumaça de seu ca- chimbo.- Nada mais fácil de explicar! Com a escola formando mais corredores, saltadores, fundistas, remendadores, agarradores, deteti- ves, aviadores e nadadores em lugar de examinadores, críticos, co- nhecedores e criadores imaginativos, a palavra “intelectual”, é claro, tornou-se um palavrão que merecia ser. Sempre se teme o que não é familiar. Por certo você se lembra do menino da sua sala na escola que era excepcionalmente “brilhante”, era quem sempre recitava e dava as respostas enquanto os outros ficavam sentados com cara de cretinos, odiando-o. E não era o sabichão que vocês pegavam para cristo depois da aula? Claro que era. Todos devemos ser iguais. Nem todos nasceram livres e iguais, como dia a Constituição, mas todos se fizeram iguais. Cada homem é a imagem de seu semelhante e, com isso, todos ficam contentes, pois não há nenhuma montanha que os diminua, contra a qual se avaliar. Um livro é uma arma carregada na casa vizinha. Queime-o. Descarregue a arma. Façamos uma bre- cha no espírito do homem. Quem sabe quem poderia ser alvo do homem lido? Eu? Eu não tenho estômago para eles, nem por um

239 BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução Cid Knipel. 2.ed. São Paulo: Globo, 2012. p.55.

102 minuto. E assim, quando as casas finalmente se tornaram à prova de fogo, no mundo inteiro- você estava certo em sua suposição na noite passada-, já não havia mais necessidade de bombeiros para os velhos fins. Eles receberam uma nova missão, a guarda de nossa paz de es- pírito, a eliminação do nosso compreensível e legítimo sentimento de inferioridade: censores, juízes e carrascos oficiais. Eis nosso papel, Montag, o seu e o meu. 240 Correndo pelas páginas, questiona-se se a culpa é dos que queimam ou será que a culpa pode ser compartilhada pelos que clamam para ver a fogueira? O fogo além de tudo, também é diversão?

Paulo Silas Filho, novamente abordando a obra, discorre

“[...] mas no universo literário de Bradbury, a imposição foi consequência de um consenso refletido de todos. Iniciou-se como ato e vontade dos indivíduos, resultando assim na imposição governamental da proibição de se ter livros”.241 Um pensamento escuro transpassa a cabeça na madrugada, não se preocupando so- mente com livros que transportam nossas almas par outros mundos diversos, mas também para os livros que nos mantém em nosso Universo, regendo e direcionando nossos atos. Se nossas leis estão em tantos livros quanto forem necessárias, quando olhamos essas leis, será que já não estão queimadas pelas salamandras espalhadas pelos quatro cantos (ou mais) do país?

O leitor desperta ofegante, com o medo abraçando seu peito novamente. O coração palpita de maneira frenética ante o pensamento de que, toda base sólida que ele convive, esteja queimando em frente aos seus olhos.

Quantos anos de teorias e séculos de pensamentos (erros e aperfeiçoamentos) formam as belas palavras articuladas nos diversos manuais que nutrem todo o sistema do Direito, nas leis que regem as relações e que guiam a sociedade. Será que estes pilares correm o risco de se extinguirem pelo fogo, cuja essência seremos nós mesmos que atearemos?

Não! Jamais!

Nossas leis, as que tratam especialmente da sensibilidade humana (e aqui pode-se destacar a seara penal) são os primeiros livros que serão (ou já são?) caçados e queimados no futuro imaginado por Bradbury. Alia-se a esta queima a mídia crescente que muitas vezes deturpa caminhos estabelecidos com o intuito de se fazer valer qualquer vontade bradada a mil vozes e tem-se o caos instalado. Vivemos o apocalipse dia após dia, imaginando ino-

240 BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução Cid Knipel. 2.ed. São Paulo: Globo, 2012. p. 77-82. 241 SILAS FILHO, Paulo. FAHRENHEIT 451 E O MUSEU NACIONAL: O fogo que queima o saber his- tórico. III Colóquio de Direito e Arte da UFSC: discursos, imagens e transdisciplinaridade. Anais. Programa de Pós-Graduação em Direito. – v. 3. (2018) – Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2018 103 centemente que nossa caminhada nos levará a um “paraíso social”, regido pelas notícias sensacionalistas, pela lei que se faz no grito e por prisões perpétuas.

“Menos direitos aqui” a voz da multidão em passeata retumba em alto e bom som. “Mais prisões ali”, a marcha incessante para limpar o país está apenas na fase inicial. Somos a própria salamandra que aplaude a chama vivaz!

O conflito social aparente nos transforma em mão de obra perfeita para realizar os incêndios. Como sociedade, preferimos nos abster de direitos subjetivos inerentes à cada individuo, garantias de que seremos tratados com justiça, abrindo mão destes direitos em prol à uma maior punitividade aos inimigos escolhidos pela sociedade. Somos encantados com discursos de seletividade e bem estar social com a promessa de uma vida tranquila e pacífica, onde extirpamos aqueles que não se amoldam às novas condutas.

Possuímos diversas leis capazes de enfrentar os mais diversos problemas, mas o Estado que não realiza seu papel transforma este discurso em um vazio social e legal, jogando no- vamente para o povo a ideia da necessidade de se endurecer –ainda mais- as condutas que já são positivadas e inobservadas pelos que aplicam. Assim, surgem ordens, leis e pacotes que objetivam “travar uma batalha” contra os delinquentes que “infestam” nossa sociedade.

Aqueles que se erguem para concretizar tais tarefas de “limpeza” social, convencendo as massas de que a sociedade se encontra perdida e, como um super-herói com sua capa preta, dizem-se lutadores contra o crime, assemelham-se ao famigerado Capitão Beatty. Conhecem os livros, sabem que ali repousam as respostas, mas preferem incinerar o já escrito em troca de uma nova ordem:“- Eu conheço muitos desses trechos e passagens- disse Beatty.- A maioria dos capitães bombeiros precisa conhecer. Eu mesmo as vezes me surpreendo. [...]242

Sim, nossos capitães conhecem mais do que aparentam. Trabalham para iludir um público, não para destilar o conhecimento e o desenvolvimento. Trabalha-se no sentido inverso, no entorpecimento social, que ao contraponto de um desenvolvimento efetivo, causa um prazer rápido e uma satisfação momentânea. Que deixe o problema explodir para o próximo capitão, que terá sempre a mesma conversa para acalentar seu público.

- Você precisa entender que nossa civilização é tão vasta que não podemos permitir que nossas minorias sejam transtornadas e agitadas. Pergunte a si mesmo: o que queremos neste país, acima de tudo? As pessoas querem ser felizes, não é certo? Não foi o que você ouviu durante toda a vida? Eu quero ser feliz, é o que diz todo mundo. Bem, elas não são? Não cuidamos para que sempre estejam em mo- vimento, sempre se divertindo? É para isso que vivemos, não acha? Para o prazer, a excitação? E você tem de admitir que nossa cultura fornece as duas coisas em profusão. [...]

242 BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução Cid Knipel. 2.ed. São Paulo: Globo, 2012. p. 62. 104 [...]Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se pre- ocuparem com isso. Paz, Montag. [...] Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com “fatos” que elas se sintam em- panzinadas, mas absolutamente “brilhantes” quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar experiências. Ai reside a melancolia [...]243 Qual o custo dessa felicidade prometida mas nunca cumprida? Todos devemos abrir mão de pensar em algo para que alguém faça isso por nós? Os que promovem a felicidade são os mesmos que nos tiram o conhecimento. O saber deles já basta para que todos se alinhem e se nivelem numa posição de fácil domínio. Basta nos dar festa e satisfações curtas para que esqueçamos onde vivemos. Basta uma nova lei, mais dura, mais ‘moralizada”, que afronta preceitos concretizados, para que achemos que tudo estará resolvido.

Quantos capitães Beatty bastam para satisfazer nossa felicidade?

Aqueles que de aplicadores de lei passam a legisladores, carregando consigo uma pseudo-prática, sabedora essa de que livros queimar e do que doutrinar, para satisfação do público tornam-se na espécie os chamados “empreendedores morais” conforme já denun- ciava Becker:

O protótipo do criador de regras, mas não a única variedade, como veremos, é o reformador cruzado. Ele está interessado no conteúdo das regras. As existentes não o satisfazem porque há algum mal que o perturba profundamente. Ele julga que nada pode estar certo no mundo até que se falam regras para corrigi-lo. Opera com uma ética absoluta; o que se vê é total e verdadeiramente mal sem nenhuma qualificação. Qualquer meio é válido para extirpá-lo. O cruzado é fervoroso e probo, muitas vezes hipócrita.244 Talvez um capitão não baste. Ai que se observa o séquito dos mesmos, andando com ares de salvadores da pátria, como que sonorizando “sejam felizes, deixe que nós digamos como”.

243 BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução Cid Knipel. 2.ed. São Paulo: Globo, 2012. p. 84 244 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos da sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 153. 105 Entretanto, enquanto suprime-se a liberdade cada vez mais visando uma suposta fe- licidade coletiva que nunca virá enquanto todos suprimirem seus próprios direitos, o que se observa é a guerra tribal cada vez mais feroz que se instala dia após dia. Assemelha-se à tortuosa ilha onde Ralph e Jack travam seus embates de poder245. De um lado, a festa, a comida, o prazer e a loucura dominante satisfazem àqueles que se esqueceram aos poucos como uma sociedade é. De outro lado, os apelos desesperados de quem se faz ouvir, e aos poucos a tentação de ceder para o outro lado faz esquecer onde se vive também. Assim o é no agora. A divisão social que se forma dia após dia, excluindo-se a divisão que sempre houvera, aguça ainda mais os instintos selvagens e intolerantes. Basta qualquer faísca para que um fogo incomensurável se alastre e diminua ainda mais os resquícios civilizatórios que possuímos.

Na esfera penal é onde sente-se ainda mais tais anormalidades. Povoa-se delegacias, presídios e instituições para delinquentes sem intuito algum, transformando aquela massa humana em pedaços de carne moída. Aqueles que saem do sistema, por vezes piores do que quando entraram, voltam a delinquir. Um ciclo sem fim que dá sustento aos discursos vazios de renovação e maior punibilidade. Mas se há tantos punidos, realmente a falta de punibilidade é o problema?

Tantas mazelas nos fazem esquecer que o que necessita ser justificado é o poder de punir do Estado e não a liberdade, esta sim, sempre garantida. É a lição que nos traz Aury Lopes Junior:

Parece essa, uma afirmação simples, despida de maior dimensão. Todo o oposto. A perigosa viragem discursiva que nos está sendo (im)posta atualmente pelos movimentos repressivistas e as ideologias decorrentes faz com que, cada vez mais, a “liberdade” seja “provisó- ria” (até o CPP consagra a liberdade provisória...) e a prisão cautelar (ou até mesmo definitiva) como uma regra. Ou, ainda, aprofundam- -se a discussão e os questionamentos sobre a legitimidade da própria liberdade individual, principalmente no âmbito processual penal, subvertendo a lógica do sistema jurídico-constitucional. Essa perigosa inversão de sinais exige um choque à luz da legitimação a priori da liberdade individual, e a discussão deve voltar a centrar- -se no ponto correto, muito bem circunscrito por Tavares: “o que necessita de legitimação é o poder de punir do Estado, e esta legiti- mação não pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o direito de intervenção”. 246 Essa justificação sempre se dá nos moldes da crescente taxa de criminalidade que “as- sola” o país. Entretanto, as medidas preventivas e repressivas sempre estiveram à disposição do soberano, entretanto a deficiência estatal nunca é reconhecida.

245 GOLDING, William. Senhor das Moscas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. 246 LOPES JR, Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015 p. 31. 106 O discurso que contamina a todos, se espalha como fogo em um campo seco. As brasas da insegurança pública terminam por queimar tudo o que ainda resta de pé. Só há uma solução: incrementar ainda mais as penas, construir presídios (quando se constrói) e trancafiar pessoas. Entretanto, as questões básicas de educação não são alteradas. Não há necessidade de um povo educado, apenas um povo que vive sob uma máscara frágil de segurança, que cai ao chão quando o Estado percebe que a infelicidade voltou aos lares. Ai, se redobra as penas, se fazem outras leis e por ai caminha a sociedade.

Quando a falha estatal e o descontentamento se tornam gritantes e as pessoas “pare- cem” (mas não são) mais politizadas e engajadas com um núcleo social, põe-se a trabalhar o soberano com afinco, mas somente para apaziguar os ânimos até a próxima explosão. Dá ao povo as migalhas, coisas já existentes, mas com modificações perversas no intuito de ver o circo alegre novamente.

Infelizmente para parte da população, o discurso vendável da criminalidade em alta cai perfeitamente para encobrir os problemas sociais vividos. Dentro desta parcela, encon- tram-se milhares de João (Maria também) de bem247 que alavancam os respectivos discursos e alardeiam sua necessidade. É para estes que o “legislador salvador” vem, não para todos, mas para alguns crentes que almejam uma salvação patriótica.

O estereótipo (bem) comum se demonstra perfeitamente na escrita de Silas Filho:

Em casa, João cumpriu com o seu compromisso (levou a esposa para o cruso de pintura no qual esta havia se inscrito) e pode finalmente ter o seu merecido descanso de final do dia. Poltrona, televisão e sua cervejinha. Um momento só seu. Justo, para quem tanto trabalha e não causa mal a ninguém. Na televisão, o noticiar da morte de um cidadão na favela de um bairro próximo. “Ali só dá bandido. No mí- nimo, estava mexendo com coisa errada. Não vai fazer falta. Bandido bom, é bandido morto!”, pensou consigo João. Estava em paz consigo mesmo. Trabalhava duro. Tinha família. Não fazia mal a ninguém. João era um cidadão de bem248 Quantos “cidadãos de bem” são necessários para incrementar a fogueira? Talvez os Capitães Beatty sejam dispensáveis quando se tem tantos bombeiros carregados com suas salamandras e sabujos à disposição fervorosa de se cumprir a queima.

Talvez algum desses bons queimadores desejem iniciar pela Constituição. Por que não? Provavelmente ela seja um dos livros mais perigosos que se tem atualmente. Entre- tanto, ainda há uma resistência mínima para queimá-la de um todo, por isso, incinera-se página por página, letra por letra.

247 SILAS FILHO, Paulo. O Direito pela Literatura: algumas abordagens. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 108. 248 Ibidem. 107 Iniciou quando transformaram ela apenas em uma utopia, algo inalcançável para a sociedade. Depois, seus postulados garantistas foram sendo vilipendiados por seus ditos “guardiões” onde “flexibilizaram” entendimento onde não havia o que se flexibilizar. Destruíram um conceito, um alicerce constitucional, onde se lia:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: VII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; E destruiu-se utilizando rasos argumentos. Meras palavras distorcidas em um texto cristalino. Travou-se um embate, mas adivinhem: pela ótica de diversos João (ou qualquer nome que quiser alocar) de “bem” a legitimação da decisão a ser tornar a própria regra. Popularizou-se (e de maneira festiva) em todas as instâncias do Judiciário, felizes decisões que desrespeitavam a Constituição e respeitavam os “guardiões”, todas arraigadas da neces- sidade de se prender antes do trânsito em julgado. De certo, aqueles que assim o fizeram, pensaram “onde estava o legislador originário quando escreveu uma coisa dessa?”. Que se queime a Constituição! Aqui se está a cumprir a 3ª REGRA dos Bombeiros: Queime tudo!

E queima-se mesmo. Os pacotes “anticrime” que visam legitimar algo ilegítimo são a agulha do sabujo. Quando se pretende legislar “Medidas para assegurar a execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda instância” queima-se não tão somente o Có- digo de Processo Penal como pretende o legislador, mas sim, termina por sepultar a Carta Magna vigente. É queimar não somente o que já legislado foi, mas a democracia como um todo. Esparrama-se o querosene sobre a presunção de inocência e ateia-se o fogo para o cidadão de bem contemplar a chama e a própria desgraça.

A importância da presunção de inocência nos é trazida por Aury Lopes Jr:

No Brasil, a presunção de inocência está expressamente consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição, sendo o princípio reitor do pro- cesso penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual através do seu nível de observância (eficácia). É fruto da evolução civilizatória do processo penal. Parafraseando GOLDSCHMIDT, se o processo penal é o termômetro dos elemen- tos autoritários ou democráticos de uma Constituição, a presunção da inocência é o ponto de maior tensão entre eles. 249 Pelo visto meus amigos leitores, o termômetro fora queimado pelas salamandras. Não há democracia que resista quando já não há base para suportar uma resistência. 249 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 803 108 Como já mencionado, vive-se um Estado que se assemelha à ilha de Golding em “ O Senhor das Moscas”. Aliás, Coutinho já denunciava:

Para infelicidade de todos, porém, está-se conseguindo o milagre da (des)razão, ou seja, muito gozo e muito medo. Vive-se em uma socie- dade com medo; e dai em diante passa-se a integrar o coro (como se fossem os garotos levados por Jack no livro de Golding): “Matem o bicho” Cortem a garganta” Tirem o sangue!”. Quanto mais sangue, melhor; dos outros, naturalmente; com se cada um estivesse blindado contra seus próprios desejos. 250 Estamos (assim como os livros) todos queimando, alguns sabem e se deixam queimar. Outros sentem apenas o odor fumacento e outros tantos ainda sequer fazem ideia do que há por vir. Ceifamos cada dia nossos espaços sociais, nossos direitos e nossas civilidade em troca de discursos baratos e ineficazes. Ainda não percebeu-se que o discurso que apenas “enrola” a sociedade é o mesmo de sempre, desde o império. O que se mudou, foi somen- te a língua portuguesa. No mais, o fogo é o mesmo de sempre. Queima e transforma em cinza, mas aqui não há nenhuma fênix que irá se levantar.

Resta alguma (ainda que mínima) esperança para aqueles que, perseguidos igual Montag, conseguem se refugiar junto de outros leitores andarilhos em busca de tempos melhores.

“Uns malucos com versos na cabeça não podem atingi-los, e eles sabem disso e nós sabemos disso. Enquanto a maioria da população não andar por ai citando a Magna Carta e a Constituição, tudo bem. Os bombeiros são suficientes para cuidar disso, de vez em quando”. Esses malucos serão nossa salvação. Os loucos que citam a Constituição, ainda um dia, poderão finalmente ter voz sem que se queime mais nada.

DIREITO E LITERATURA

A beleza de poder escrever sobre literatura e/com/no/pelo Direito é que há uma gama quase infinita de abordagens, sondagens e visões que se pode transmitir ao leitor. Não se precisa truncar textos, nem falar necessariamente sobre uma linha específica. A essa liberdade de escrita, agradeço ao Paulo Silas Filho e ao Bernardo Azevedo por comparti- lharem com estes que vos escrevem na obra. Fahrenheit fala sobre um amor à escrita e aos livros. Levanta um problema em relação à morte das bibliotecas e o crescimento midiático que soterra por vezes a literatura.

250 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise: interlocuções a partir da literatura. Flo- rianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 99. 109 Ao poder escrever sobre a obra de Ray Bradbury, pude ter a liberdade de ao final, me sentir levemente (sem poder comparar, é óbvio) como o grande autor quando diz na ultima parte do livro (Coda): “A partida é minha. Eu arremesso, eu rebato, eu apanho. Eu corro as bases...”. Este pequeno texto crítico que se passou teve essa liberdade de escrita suportada por este movimento que envolve o Direito e a Literatura. De modo “abrasileirado” eu pude bater o escanteio, cabecear a bola e fazer o gol.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução Cid Knipel. 2.ed. São Paulo: Globo, 2012 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos da sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise: interlocuções a partir da literatura. Florianó- polis: Empório do Direito, 2016 GOLDING, William. Senhor das Moscas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014 LOPES JR, Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015 ROSENFIELD, Luis. O Papel das Letras na Democracia: Apontamentos sobre Direito, Literatura e Cultura a partir de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. In Anais do I CIDIL, v.1, n.1, outubro, 2012 SILAS FILHO, Paulo. FAHRENHEIT 451 E O MUSEU NACIONAL: O fogo que queima o saber histó- rico. III Colóquio de Direito e Arte da UFSC: discursos, imagens e transdisciplinaridade. Anais. Programa de Pós-Graduação em Direito. – v. 3. (2018) – Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2018 SILAS FILHO, Paulo. O Direito pela Literatura: algumas abordagens. Florianópolis: Empório do Direito, 2017

110 CAPÍTULO 7 O (DES)ALIENISTA

José Luiz Quadros de Magalhães251 Bernardo Gomes Barbosa Nogueira252

“Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esque- cidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao lon- go dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.”(O alienista,Machado de Assis) Alienista se refere a alienação e ao tratamento das pessoas alienadas. No dicionário encontramos que no sentido filosófico alienação pode significar um “processo ligado es- sencialmente à ação, à consciência e à situação dos homens, e pelo qual se oculta ou se falsifica essa ligação253 de modo que apareça o processo (e seus produtos) como indiferente, independente ou superior aos homens, seus criadores.”254

Para o termo no sentido das ciências “psi” (psicanálise, psicologia e psiquiatria) o dicionário se limita a mencionar a expressão “alienação mental”. O dicionário nos lembra dois conceitos encontrados nos pensadores do século XIX, Hegel e Marx. Para Hegel a alienação é um processo que ocorre com o observador ingênuo do mundo, que entende tudo de forma independente, desconectada e indiferente à consciência. Para o conheci- mento filosófico esta independência entre as coisas, fatos e pessoas é negada assim como a indiferença. A partir de Hegel, Marx desenvolve sua concepção de alienação vinculada à produção e ao trabalho. Aquele que produz passa estar alienado ao produto do seu trabalho pois não domina mais o processo de produção deste produto.

A ideia de alienação é um dos conceitos fundamentais no pensamento de Marx e para os marxistas. No Dicionário do Pensamento Marxista, editado por Tom Bottomore255

251 Doutor em Direito pela UFMG. Professor da UFMG. Professor da PUC/MG. 252 Doutor em Direito pela PUC/MG. Professor da Faculdade de Direito Milton Campos. 253 Entre o que se faz e o que se pensa e quem faz e pensa. 254 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, 3 edição, Curi- tiba, Ed. Positivo, 2004. 255 Dicionário do pensamento marxista - Tom Bottomore, editor; Laurence Harris, V>G> Kierman, Ralph 111 encontramos as ideias essenciais do pensamento de Karl Marx sobre a palavra alienação:

No sentido que lhe é dado por Marx, ação pela qual (ou estado no qual) um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade se tornam (ou permanecem) alheios, estranhos, enfim, alienados [1] aos resultados ou produtos de sua própria atividade (e à atividade ela mesma) e/ou [2] à natureza na qual vivem, e/ou [3] a outros seres humanos, e - além de, e através de, [1], [2] e [3] - tam- bém [4] a si mesmos (às suas possibilidades humanas constituídas historicamente). Assim concebida, a alienação é sempre alienação de si próprio ou autoalienação, isto é, alienação do homem (ou de seu ser próprio) em relação a si mesmo (às suas possibilidades humanas), através dele próprio (pela sua própria atividade). E a alienação de si mesmo não é apenas uma entre outras formas de alienação, mas a sua própria essência e estrutura básica. Por outro lado, a ‘autoaliena- ção’ ou alienação de si mesmo não é apenas um conceito (descri- tivo), mas também um apelo em favor de uma modificação revolu- cionária do mundo (desalienação).256 A alienação implica na perda do controle dos processos de produção, em outras pala- vras, o “Outro” passa a controlar o trabalho, o que se produz, os processos de produção se apropriando do resultado do trabalho do alienado. A alienação de si mesmo implica no não reconhecimento da capacidade do alienado de ser dono de sua própria história. A alienação produz conformados convictos. A alienação de si mesmo não é uma simples descrença de que podemos; a alienação é a crença de que não podemos, de que não fomos feitos para tal coisa, a crença de que não podemos fazer diferente. No primeiro caso poderíamos ser levados a descrença por termos tentado e falhado, no caso da alienação não acreditamos que podemos tentar. Logo o risco é menor para quem promove e ganha com o processo de alienação. Logo, inserido no processo de alienação haveria apenas a dimensão de um vácuo espesso no qual a mobilidade resta impedida por uma paralisia inerte na qual há apenas a ausência de reflexão que impinge a uma espécie de impossibilidade de retorno a si, portanto, da reflexão.

Neste texto pretendemos discutir, a partir do conto “O alienista” de Machado de Assis, em que medida somos todos (quase todos) alienados e como podemos romper com o processo de alienação, cada vez mais sofisticado, criando um processo de desocultamento que possa criar uma sociedade desalienada de pessoas desalienadas.

A partir de “O alienista” podemos pensar, como Simão Bacamarte (personagem cria- do por Machado de Assis), “filho da nobreza e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal Miliband, co-editores; (tradução, Waltensir Dutra; organização da edição brasileira, revisão técnica e pesquisa bibliografica suplementar, Antonio Moreira Guimarães); Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 2001. 256 Dicionário do pensamento marxista - Tom Bottomore, editor; Laurence Harris, V>G> Kierman, Ralph Miliband, co-editores; (tradução, Waltensir Dutra; organização da edição brasileira, revisão técnica e pesquisa bibliográfica suplementar, Antonio Moreira Guimarães); Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 2001. 112 e das Espanhas”, ao aprofundar seus estudos da mente humana, estudando a alienação mental e propor sua cura na Vila de Itaguaí, no Rio de Janeiro, poderia contribuir para a desalienação de tudo e não o fez. Ora, se todos são alienados então ninguém o é, logo, se existe alienação, existe quem aliena, e existe uma razão da alienação. Seria um bom come- ço perceber que, em uma cidade (no caso Itaguaí no estado do Rio de Janeiro), quase todos são alienados, talvez, supostamente, menos aquele responsável por dizer quem é normal e quem é anormal (vamos perceber ao final que o nosso médico também é alienado). Ao final o alienista conclui que, alienado mental, é ele (aquele que estudava e classificava os alienados mentais), pois, não poderia ser verdade que todos na cidade, menos ele, nosso médico Simão Bacamarte, fossem alienados mentais. Logo, a conclusão lógica do grande médico é que, ele mesmo, é o único alienado. E assim todos continuam alienados, inclu- sive Simão Bacamarte.

E tinham razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mun- do, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua! Corremos este risco.

Mas, lembremos: na medicina (na psiquiatria) o termo “alienação” é utilizado como insanidade ou ainda como afastamento, ou desvio de normalidade. Ora, então, neste senti- do, o que precisamos são os alienados. A alienação seria então uma libertação dos proces- sos de normalização, enquadramento, homogeneização, uniformização. O oposto do que Marx esclareceu. Calma, por enquanto é apenas uma provocação. Vamos buscar então, em “O alienista” uma possível conexão entre alienação no sentido filosófico (hegeliano, mar- xista e outros) com o sentido médico psiquiátrico do termo. Misturemos bem e vejamos como fica.

QUEM DIZ O QUE NORMAL¿

Ora, quem diz o que é normal ou anormal não é Simão Bacamarte mas a “Ciência”257

257 O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. Ainda que com alguns prenúncios no século XVIII, é no século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências sociais emergentes. A partir de então pode falar-se de um modelo global de racionalidade científica 113 (com poderosa maiúscula inicial). Algo muito maior do que ele, também alienado pela própria crença na Ciência.

Machado de Assis escreveu sobre Simão Bacamarte: “A ciência, disse ele a Sua Ma- jestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.”258

E quem é a ciência? Quem diz o que é ciência, que é cientifico? Quem diz o que é normal e anormal, legal e ilegal? quem diz o que é crime e quem diz o que é direito? Se este conceitos não são e não podem ser considerados conceitos naturais, são, com muita frequência, naturalizados. A naturalização das ciências sociais, a naturalização de processos históricos, do direito e da economia são mecanismos ideológicos (ideologia no sentido negativo do termo) que cumprem uma função de poder, alienando as pessoas do real, que passa a ser encoberto ou propositalmente distorcido.

No século XIX, durante o processo conhecido como “revolução industrial” (ou pelo menos o seu auge), ocorreram fenômenos novos que desafiaram o poder daqueles que se encontravam no poder do estado.

A Europa, então centro do poder global moderno, vivia os resultados da experimen- tação de novos processos econômicos, novas tecnologias, novas formas de produção que mudaram as relações sociais e políticas. As revoluções liberais trouxeram uma nova forma de organização social, uma nova perspectiva para o direito com a construção de direito constitucional. A partir das chamadas “revoluções liberais” (Inglaterra no século XVII; EUA em 1776 e França em 1789) a burguesia, não a pequena burguesia, mas os grande proprietários assumem o poder do recém criado estado moderno.

que admite variedade interna mas que se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivamente policia- das, de duas formas e conhecimento não científico (e, portanto, irracional) potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos (em que se incluíram, entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos) (SANTOS, 2010, p. 10) 258 Neste ponto, interessa imenso um outro escrito do mesmo autor Ideias do Canário:

- Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:

- Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...

- Como - interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

- Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.

- Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.

- Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo. 114 Um equívoco é necessário, neste momento, ser superado. O Estado moderno (que começa em Portugal no século XIII) surge de uma aliança entre o rei, a nobreza e a bur- guesia, aliança esta que permanece com extrema clareza na Europa contemporânea e sua modernidade em crise final. A burguesia, assim como a nobreza, necessitavam do Estado e todo o seu aparato (exército, povo nacional, moeda nacional, banco nacional, polícia e burocracia estatal) para proteger seus interesses e suas propriedades e viabilizar a expansão de seus negócios. Não há capitalismo sem estado. Não haveria capitalismo sem estado. Isto acaba de ser reconfirmado pela crise de 2008. Portanto é falsa, na maior parte das vezes, a dicotomia estado versus empresa privada. O capital privado precisa do estado: do exército para invadir espaços e retirar riquezas naturais; a polícia para punir os que não se enqua- dram, os excluídos do sistema econômico e ou social, político e ideológico moderno. O estado tem sido, na maior parte da era moderna, o representante e garantidor do capital. Quem é o estado? Aqueles interesses que se instalam no poder do estado. Quem está no poder do estado? Quem fala em nome do aparato estatal e quem coloca este aparato a serviço de quem?

Assim voltamos ao século XIX (poderia ser o século XXI) e nos perguntamos nova- mente: quem diz o que é normal? quem diz o que é direito?

Com a palavra o grande médico Simão Bacamarte:

— Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros ter- mos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da lou- cura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia. O vigário Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisa- mente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução. — Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?” (Machado de Assis, “O Alienista). O século XIX vive uma crise social que se repetiria diversas outras vezes no século XX e XXI. Lembremos que as crises econômicas são crises para muitos, mas nunca para todos. Sempre alguém ganha com a crise e cada vez menos ganham mais com as crises. Para estes, é claro, não há crise mas ganho de poder259.

259 A velocidade do enriquecimento dos endinheirados aumenta, a espiral do rebaixamento de classe se acelera. A riqueza dos poderosos desafia a imaginação, e a angústia do que antes se chamavam os “fins de mês” – mas hoje são os dez, os vinte próximos anos que estão penhorados – não é representável nas classes altas que só se sobressaltam com as variações de seus lucros imensos. Falar de “injustiça” tornou-se obsoleto. Estamos na era

115 Isto vale portanto para o nosso século XIX, o século de nosso querido médico Simão Bacamarte. Uma crescente onda de insatisfação social, com o processo de acumulação de riqueza e aumento brutal de desigualdade social e exploração do trabalho, precisa ser contido pelo estado. Quem é o estado no século XIX? Quem está no poder do estado? Podemos responder esta pergunta de diversas maneiras mas vamos respondê-la com o di- reito positivo, desta vez. A legislação eleitoral de todos os estados constitucionais liberais do século XIX permitiam o voto apenas para aqueles que tinham uma renda anual mínima. Em alguns estados, quanto maior a riqueza maior o peso do voto. Só os que preenchiam os requisitos econômicos mínimos podiam votar (além do requisito de idade, escolaridade, nacionalidade e gênero). Logo, só os homens proprietários votavam e só os homens pro- prietários e ricos podiam se candidatar e ser eleitos. Logo, voltemos a nossa pergunta: quem está no poder do estado? quem governa e legisla?

A crise social decorre do modelo jurídico-econômico adotado, o liberalismo: a au- sência de regulamentação estatal na economia; a proibição constitucional do estado regu- lamentar e exercer a atividade econômica; a brutal desigualdade nas condições de com- petição; os mecanismos de concentração econômica e preservação do espaço econômico conquistado criados pelas nascentes corporações, trouxe a sistemática e radical exploração do trabalho humano em um sistema constitucional liberal que não previa direitos sociais (direitos trabalhistas, previdenciários, econômicos). Uma outra pergunta básica: como se resolve um problema decorrente de um modelo econômico-social previsto e garantido na legislação? Ora, um problema socioeconômico se resolve com políticas sociais e econô- micas. Um sistema jurídico inadequado se resolve superando este sistema. Portanto para resolver um problema decorrente de um modelo jurídico-social econômico só alterando este modelo ou, na sua impossibilidade, superando este modelo (sistema).

Temos, entretanto, um problema que resumimos em uma pergunta: interessa aos que se encontram no poder do estado, os governantes e legisladores e os seus juízes, resolver o problema? Claro que não. Porque? Porque para estes o problema é a solução. O aumento da desigualdade e o progressivo processo de concentração de riqueza lhes beneficia. Quem está no poder do estado são os mesmos que estão ganhando com o processo de concen- tração de riquezas, ou representam estes. Logo, estas pessoas no poder não irão resolver o problema, mas sim controlá-lo. Entretanto, para fazer isto eles precisam convencer as pessoas que as políticas de controle são a solução, que o sistema não pode ser mudado pois ele é natural e o único possível e os problemas decorrem de decisões individuais e desvios individuais das pessoas más, corruptas ou loucas260. Enfim, para não resolver o problema, os que se encontram no poder precisam dizer que estão resolvendo o problema com políticas da indecência. As remunerações dos executivos de grandes empresas, os salários dos esportistas ultramidiáticos, os cachês do artistas tornaram-se obscenos. As desigualdades chegaram ao ponto em que só a hipótese de duas humanidades poderia justifica-las. (GROS, 2018, p. 13-14) 260 Parece mais fácil imaginar o “fim do mundo” que uma mudança muito mais modesta no modo de produção, como se o capitalismo liberal fosse o “real” que de algum modo sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe global...Assim, pode-se afirmar categoricamente a existência da ideologia qua matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como as mudanças nessa relação. (ZIZEK, 2010, p. 7) 116 de controle, e, para isto, irão criar mecanismos ideológicos de alienação cada vez mais so- fisticados, ou, em outras palavras, os problemas econômicos estão desconectados da crimi- nalidade que existe particularizada, ou seja, as pessoas se rebelam não por causa da situação de desigualdade, exploração do trabalho, opressão, violência do estado, violência privada nos locais de trabalho e violência econômica, mas por que são boas ou más, sãs ou loucas. Vamos ler de novo o conceito de alienação do dicionário:”processo ligado essencialmente à ação, à consciência e à situação dos homens, e pelo qual se oculta ou se falsifica essa liga- ção261 de modo que apareça o processo (e seus produtos) como indiferente, independente ou superior aos homens, seus criadores.”

A economia liberal é naturalizada, é a única possível, está acima dos “homens”, assim como os processos são desconectados, são independentes, o problemas são os indivíduos e não o sistema econômico e os aparatos existentes para sustentá-lo, a cultura, o direito, os tribunais, os parlamentos e governos, a propaganda, etc.

Voltemos a pergunta inicial: quem diz o que é crime? quem diz o que é loucura? Quem tem poder para dizer, aqueles mesmos que se encontram no poder do estado, no poder econômico com a proteção de seus cães de guarda nos aparelhos ideológicos (igreja, família, escola, mídia) e repressivos do estado (polícia, forças armadas, direito penal).

No século dezenove ocorreu um aumento significativo do direito penal e das condu- tas consideradas anormais (da loucura!). Varias condutas que não eram consideradas crime passaram a ser consideradas, assim como várias condutas que não eram consideradas anor- mais passaram a ser assim consideradas. Com o aumento do direito penal e da loucura (da ação da psiquiatria repressiva punitiva) proliferaram os presídios e manicômios.

— A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico em clínica. Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere pri- vado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí, — a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, — duas ou três de consideração, — foram recolhidas à Casa Verde. (Machado de Assis - “O alienista”) Qualquer semelhança com o século XXI não é mera coincidência, os que se encon- tram no poder são os mesmos. Ainda hoje algumas pessoas querem oferecer tratamento de “saúde mental” para aqueles que não se enquadram, por exemplo, para aqueles que não escolhem o sexo do seu amor segundo os padrões estabelecidos pelos mesmos no poder. Ainda existem países que prendem e matam, inclusive, por causa da opção sexual, e entre nós (extra oficialmente ainda se mata), se tortura e se exclui por causa da opção sexual.

Mudou alguma coisa. O controle se tornou maior e mais sofisticado. Os aparatos repressivos e ideológicos também. Os manicômios, ainda existentes, foram em boa parte

261 entre o que se faz e o que se pensa e quem faz e pensa. 117 substituídos por prisões químicas. Estamos todos drogados: por drogas químicas e pelas cir- cunstâncias. A circunstância, o contexto, os quartéis, os cultos e a festas também “drogam”, desde a histeria coletiva fundamentalista onde a química do corpo se altera e logo altera o comportamento e pensamento das pessoas, até o gozo descontrolado das festas interminá- veis. A sociedade de consumo se tornou a sociedade do desespero.

A partir destas ideias podemos refletir sobre o “sucesso” (depende para quem) da democracia liberal representativa e as operações constantes que este sistema tem feito de conversão de direitos (frutos de lutas) em permissões que esvaziam e desmobilizam a luta por poder em uma acomodação decorrente de uma aparente vitória pelo recebimento de permissões para atuar, fazer e até mesmo ser “feliz” desde que não se perturbe aqueles que exercem o poder naquilo que lhes é essencial: a manutenção do poder em suas vertentes econômica, cultural, militar e especialmente ideológica (que se conecta e sustenta as outras vertentes).

O capitalismo tem sido capaz de, até o momento, resignificar os símbolos e discursos de rebeldia e luta em consumo. Assim o movimento Hippie e Punk foi limitado aos sím- bolos de rebeldia controlados, onde as calças rasgadas já vem rasgadas de fábrica e os cabelos são pintados com tintas facilmente removíveis; Che Guevara é vendido na Champs Elisée e os pichadores e grafiteiros expõem no Museu de Arte de São Paulo. Tudo é incorporado, domado e pasteurizado. A “diversidade” está em uma praça de alimentação de Shopping Center ou no Epcot Center, onde é possível comer comidas de diversos lugares do mundo com um sabor e tempero adaptados ao nosso paladar. Da mesma forma funciona a demo- cracia parlamentar (democracia liberal ou liberal social representativa e majoritária). As opções são limitadas, e os partidos políticos, da esquerda “radical” à direita “democrática”, se parecem com a diversidade de comidas com tempero parecido dos Shopping Center’s. Escolher entre esquerda e direita, especialmente nas “democracias” “ocidentais” da Europa e EUA (ou Canadá e Austrália) dá no mesmo. Muda o marketing, as caras e as roupas, muda a embalagem, mas o conteúdo tem sido muito semelhante.

Este aparato “democrático” representativo, parlamentar e partidário, processa perma- nentemente as insatisfações, lutas, reivindicações, como uma grande maquina de empaco- tar alimentos ou enlatar peixes e feijoadas. Esta absorção das revindicações de poder demo- crático transformando-as em permissões bondosas do poder “democrático” representativo desmobiliza e perpetua as desigualdades e violências inerentes à modernidade e, logo, ao capitalismo, sua principal criação.

As democracias liberais (sociais) representativas majoritárias se transformaram em processadores de revindicações, esvaziando o poder popular. Os direitos, a conquista do poder pelo povo se transformou em permissões de “jouissance”262. Aquele bife à milanesa especial (assim como o pão de queijo), diferente, delicioso feito em casa, com o sabor único da vovó, agora é industrializado: nós não mais fazemos, mas podemos comer a hora

262 No sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma continua. 118 que quisermos. Somos constantemente alienados de tudo. Igual o suco de laranja caseiro, industrializado, que vem com gominhos e com carinho, de “verdade”.

O problema da “jouissance” é que ela se tornou obrigatória na cultura consumista contemporânea (que é também moderna). Se posso aproveitar de alguma coisa, experi- mento isto como uma obrigação de não perder a oportunidade. Daí tanta depressão em uma sociedade fundada no gozo, no prazer e no consumo: uma sociedade do desespero.

O QUE É IDEOLOGIA¿

Um pressuposto para a compreensão da expressão ideologia como mecanismo de alienação é o entendimento do significado de “autopoiesis” como inerente à condição humana.

O real existe. O mundo ocidental vem se reencontrando com o seu passado, quando oriente e ocidente, materialismo e espiritualismo não eram cuidadosamente separados. Em um destes reencontros, a ideia de autopoiesis como essência da condição humana e não só humana, mas de toda a vida, é retomada. Um destes reencontros está na obra de dois biólo- gos chilenos, Humberto Maturana263 e Francisco Varela, que após experiências com a visão de animais reconstroem o conceito de autopoiesis como condição de qualquer ser vivo.

Um pressuposto fático e não apenas teórico, é a condição de que, enquanto vivos, estarmos condenados a nós mesmos (a autopoiesis). Somos necessariamente, enquanto se- res vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos, e esta condição se manifesta também nos sistemas sociais.264

Estudando a aparelho ótico de seres vivos265, os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua quando era lançada para pegar uma pre- sa, ia também na direção oposta. O resultado demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.

263 MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol Del Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima edición, Santiago do Chile, 1994. 264 No livro, acima mencionado, os pesquisidores chilenos escrevem: “Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener otra alternativa. Es nuestra situación co- tidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos.” Prosseguindo, os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialogo: “Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer em la tentación de la certitumbre.” MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.5 265 Nas páginas 8 e 9 do livro “El arbol del conoscimiento”os autores propõem aos leitores experiências visuais de nos demonstram facilmente como a nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não re- velando o que esta lá. Nas várias experiências com a visão das cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinzas impressos com a mesma cor, mas com fundo diferente mostra como o circulo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final nos faz uma afirmativa contundente mas importante para tudo que dizemos aqui: “el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo”. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.8. 119 A partir desta simples experiência temos uma conclusão que pode ser absolutamente obvia mas que entretanto foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que busca- vam uma verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.

O fato é que, entre nós e o mundo, existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem como que lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicio- nada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes.

Assim, para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber cores, profundidade, dimensões, textura e uma série de outras percepções, mas que não é capaz de perceber outras. Este aparelho funciona como um programa de computador: a imagem que percebemos não é uma simples janela para o mundo em nossa volta mas uma construção do nosso cérebro. Logo, perceberemos o que estamos programados para perceber. As frequên- cias de ondas que chegam ao nosso cérebro por meio do aparelho ótico serão decodificadas a partir da nossa capacidade e limites: não só os limites do aparelho ótico como também nosso limite para traduzir e interpretar a informação que nos chega por meio dele. Logo, tudo, sempre, é interpretação.266 Entre nós e o mundo que nos cerca, entre nós e o real existe sempre nós mesmos. Acessaremos o mundo real a partir de nossas pré-compreensões e logo, do real, se revelará para nós, aquilo que estamos programados para perceber267, seja por meio dos instrumentos que dispomos para percepção, nos limites destes instrumentos (audição, visão, olfato) seja na tradução e interpretação das informações que estes instru- mentos são capazes de perceber.

Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas, e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim quando estamos deprimidos percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes, ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre e muitas vezes, alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por esta condição química. A cada vez que recordamos um fato, esta condição influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo fato ocorre sempre, uma vez que cada

266 Ou quase sempre, uma vez que ao nos encontrarmos com a brutalidade do real, poderá não haver espaços para interpretação. Ao ultrapassarmos, por exemplo, o limite da dor em um campo de concentração, como os promovidos pela CIA hoje em dia, pode não haver mais qualquer interpretação possível para quem sofre tamanha tortura (como na base estadunidense de Guantánamo, por exemplo). 267 Importante diferenciarmos o reconhecimento do conhecimento. É claro que é possível conhecer o novo, ampliarmos nossas pré-compreensões, desde que acreditemos que é possível e queiramos fazer. Quando re- conhecemos, enquadramos as informações que recebemos nas nossas pré-compreensões. Nas categorias pré- -existentes, o que é mais fácil e comum. Quando conhecemos construímos novas percepções e novas catego- rias. Colombo morreu sem conhecer a “América”. Até a sua morte, Colombo insistiu que estava na Ásia, em uma outra região da Ásia. O que ele fez foi se limitar a reconhecer, enquadrar o que via ao que já conhecia. Colombo morreu sem conhecer o novo em que se encontrava. 120 observador é um mundo, um sistema auto-referencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos. Observadores diferentes percebem diferente, assim como, o mesmo observa- dor, em momentos diferentes, irá perceber de forma diferente.

Assim podemos dizer que uma outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo, é constituída por nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitó- rias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicio- nado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.

Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autono- mia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se livre hoje é dife- rente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em um determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos, que dificilmente são universalizáveis.

Somos seres autopoiéticos (autorreferenciais e autorreprodutivos) e não há como fugir deste fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nos mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que cha- mamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.

A linguagem e a série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será reve- lado e mais ainda a ser descoberto e compreendido se apresentará.

Assim não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades cientificas abso- lutas, pois é impossível separar o observador do observado268. Este universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A compreensão da au- topoiesis significa a revelação da impossibilidade de diversas verdades que se pretendem absolutas.

Importante lembrar que o reconhecimento da relatividade do conhecimento e da verdade, não exclui a existência do real e logo, de uma verdade, que entretanto se revela por partes, uma vez que sua apreensão total nos é impossível, pelo menos na forma em que nos encontramos. A percepção da existência do real, mesmo que o acesso a este seja sempre

268 Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana, organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001. 121 incompleto, é fundamental para se afastar a ideia de um mundo absolutamente relativo. Sim, há uma verdade em meio aos fragmentos e interpretações. Esta verdade entretanto, este real, só nos é acessível por meio de nós mesmos. Nossa realidade é, até onde pode- mos experimentar nesta nossa condição de seres vivos bioquímicos, sempre parcial. Como percebemos o mundo de forma limitada por nossa condição humana, nossas verdades são relativas, contextualizadas, permanentemente interpretadas, o que não afasta a existência da verdade que chamamos real, que se revela parcialmente e constantemente para nós.

Assim chamamos de realidade este real interpretado ao qual temos acesso na inter- pretação do mundo. Mas o real nos é presente, por exemplo, no real de nosso corpo, no gozo e na dor.

Isto posto, como nós humanos autopoieticos, utilizamos a ideologia para revelar, alienar e ocultar, para transformar e manipular?

A palavra ideologia pode ser compreendida de diversas formas269 que podem ser sim- plificadas em dois grandes sentidos: um sentido positivo e um sentido negativo.

No sentido positivo, ideologia pode ser compreendida como um sistema de ideias, conhecimentos, pré-compreensões por meio das quais acessamos o mundo. É basicamente o que acabamos de discutir quando falamos da autopoiesis. Assim, somos todos seres ideo- lógicos e percebemos que não há neutralidade possível, pois sempre vemos o mundo por meio de nossas experiências, valores, conhecimentos, pré-compreensões.

No sentido negativo, ideologia pode significar manipulação, distorção, alienação, encobrimento proposital para se obter vantagens, poder, para levar as pessoas a agirem de determinada maneira que elas não agiriam se estivessem construindo suas interpretações de mundo (sua realidade) sobre o real e não sobre representações distorcidas deste real. Neste sentido, ideologia significa encobrimento e distorção proposital do real.

Um dos primeiros a tratar o termo ideologia com um significado negativo de distorção e encobrimento foi Karl Marx. Marx utilizou inicialmente a palavra “inversão” conceito que o filósofo constrói em contraponto à ideia de “inversão” em Hegel. Para Hegel, “inversão” seria a passagem (ou conversão) do subjetivo para a objetivo e vice- -versa: “o estado prussiano surge como autorrealização da Ideia270, como o ‘universal absoluto’ que determina a sociedade civil, em lu- gar de ser por ela determinado.” Para Marx, a fonte da inversão ideológica é uma inversão da própria realidade. Marx aceita inicialmente o principio básico de Feuerbach de que o ser humano cria a ideia de

269 ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia, Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2010. 270 BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista, Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001, pag. 184. 122 religião e de deus, e que a ideia de que deus criou o ser humano é uma “inversão”. Marx, entretanto, vai muito além. Para Marx isto não é apenas uma ilusão ou uma alienação filosófica, isto é produto de uma “inversão” que está presente na realidade das relações de poder. A única maneira de eliminar este ocultamento, estas inversões, é, para Marx, a mu- dança da realidade social. Assim Marx afirma no seu texto “Critica da filosofia do direito de Hegel: introdução” que o estado e a sociedade criam, inventam, a religião, “que é uma consciência invertida do mundo porque o próprio estado e sociedade estão invertidos”271. O mundo está de cabeça para baixo (sensação que se amplia a cada dia) e não basta a filoso- fia para desvirá-lo, é necessário a transformação da realidade social e econômica.

Nos seus escritos Marx nos sugere uma ideologia negativa (a partir do conceito mar- xista de inversão) enquanto distorção e encobrimento e no texto, “A ideologia alemã”, po- demos pensar em uma ideologia no sentido positivo, enquanto um sistema de ideias. Neste texto Marx chama a atenção sobre a impossibilidade de uma “ideologia positiva” (Marx não usa esta expressão isto sou eu) acabar com uma “ideologia negativa” (também não usa esta expressão - mas a ideia geral pode ser encontrada nos textos). A única forma de acabar com a ideologia no sentido negativo (inversão) é transformando a realidade invertida, ou melhor, revolucionando a realidade social e econômica. Esta é uma inspiração fundamental em Marx: uma filosofia engajada na transformação social.

Convido o leitor a ler Marx, assim como ler um livro de Slavoj Zizek “Um mapa da ideologia”, publicado no Brasil pela editora Contraponto, em 2010, no Rio de Janeiro. Leiam também os textos e vídeos sobre ideologia publicados no blog (www.joseluizqua- drosdemagalhaes.blogspot.com).

O conceito de ideologia foi ampliado a partir de vários autores marxistas e de outros que combateram o pensamento de Marx e dos marxistas. Vamos construir a seguir uma síntese deste conceito, em um diálogo com Zizek, Badiou, Agambem, Louis Althusser e claro o próprio Marx, autores que recomendamos a leitura.

A partir do que foi dito até agora, ideologia pode ser compreendida no seu sentido positivo enquanto um conjunto mais ou menos coerente de ideias, pré-compreensões, vivências, valores, por meio dos quais acessamos o mundo e o interpretamos, tarefa que fazemos permanentemente. O nosso contato com o real é por meio de nós mesmos, mes- mo quando acessamos o real na sua forma crua, acessamos por meio de nosso corpo. Mas convém lembrar que o nosso corpo nos oferece o contato com o real de nosso próprio corpo: a dor e o gozo.

No sentido negativo ideologia significa encobrimento, distorção, alienação, manipu- lação, ocultamento. Neste sentido os mecanismo ideológicos podem atuar em dois grandes momentos sobre as pessoas: na formação deste sistema inicial de compreensões por meio

271 BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista, Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001, pag. 184.

123 de aparelhos ideológicos como a escola, a família, a igreja e a mídia e em outro momen- to, se interpondo entre nós e o real, encobrindo este real sobre o qual construímos nossa realidade (nossa interpretação do real). Assim, desta forma, no lugar de construirmos nossa interpretação do real, construímos nossa realidade sobre uma falsa representação deste real, que é propositalmente encoberto ou distorcido. Atuam neste momento a mídia, a industria cultural, a sociedade de consumo, a universidade contemporânea transformada em curso técnico, e novamente a igreja, a família e a escola. A ideologia moderna atua a partir de dis- positivos, mecanismos oferecidos para compreender de uma determinada forma o mundo, ocultando o real. São vários estes mecanismo e já tivemos oportunidade de estuda-los em outros textos: a naturalização e/ou matematização das ciências sociais e humanas; a redução do mundo a uma lógica nós versus eles; a linearidade histórica; a generalização; a negação da história ou o discurso do fim da história entre outros.

Na primeira intervenção da ideologia no sentido negativo sobre a pessoa, o poder atua no processo de formação dos primeiros significados do mundo, significados fortes que podemos revisitar no futuro com imensa dificuldade pois é sobre estes significados que nos colocamos para compreender todo o resto. Estes significados são especialmente fortes pois, mais do que em qualquer outro momento de nossas vidas, são construídos sobre experiên- cias emocionais extremamente fortes. Estes significados são construídos desde nossas pri- meiras experiências com o que começamos a perceber enquanto realidade (enquanto algo diferente da fantasia - daí a construção do teste de realidade de que fala Freud) até o proces- so de construção dos primeiros conceitos para compreensão do mundo em nossa infância.

No segundo momento de intervenção da ideologia no sentido negativo, já de posse dos conceitos básicos (significados fortes) a ideologia atua ocultando o real ou distorcendo o mesmo. Neste sentido, como dissemos acima, no lugar de construirmos nossa realidade sobre o real, construímos nosso mundo (interpretação do mundo) sobre representações dis- torcidas que acreditamos serem reais, mas não são, pois são construções falsas que preten- dem nos levar ao erro, e que nos levará a agirmos, muitas vezes, contra os nossos valores, contra o que acreditamos, uma vez que nos é negado o acesso ao real e aos reais jogos de poder encobertos.

Para facilitar a compreensão da atuação da ideologia no sentido negativo nestes dois momentos, vale assistir o filme “A culpa é do Fidel”. O filme conta a estória de uma me- nina, em torno dos 12 anos, em pleno processo de formação dos sentidos do mundo, dos significados das palavras, das coisas para a compreensão do mundo que se revela aos poucos ao seu redor. Este é um momento chave. Neste processo são construídos os significados fortes que nos acompanharão pelo resto da vida, se não tivermos a coragem de enfrentar as pré-compreensões e valores, sobre os quais nos posicionamos para enfrentar e compre- ender o mundo.

No filme a nossa pequena personagem vive em Paris. Os pais se ausentam duran- te um período não muito longo, quando viajam para o Chile, para a posse de Salvador

124 Allende, presidente socialista eleito em1970. A pequena permanece em Paris com um moça encarregada de seus cuidados na ausência dos pais. Esta moça é cubana e conta para a pequena porque deixou Cuba. É o primeiro contato dela com a palavra socialismo. A Cubana explica que os socialistas são barbudos e são maus, assim como Fidel Castro. O que presenciamos é o primeiro contato da jovem com um significado precário, mas forte (porque inicial e emocional) para barbudo e socialista. Os barbudos são socialistas e os socialistas são do mal. Este conceito é construído a partir de uma experiência que envolve sentimentos de confiança e amizade em relação a quem fornece as primeiras informações para sua construção.

Quando os pais retornam do Chile, o pai chega barbudo, cheio de amigos barbudos, todos socialistas. O impacto é grande para a jovem que acabara de construir um significa- do negativo para socialistas barbudos. Após a rejeição inicial a jovem percebe que seu pai continua o mesmo, e embora barbudo e socialista, continua o mesmo pai que ela ama. Per- cebe ainda que os amigos do pai são confiáveis e simpáticos, diferente do que sua “amiga” cubana havia dito. Neste momento ocorre uma reconstrução do significado para barbudos socialistas. Quando falamos em “significados fortes” mencionamos estas experiências que permitem as primeiras construções de significados do mundo que nos cerca. Pela forte carga emocional do primeiro contato com os significados do mundo, estes “significados fortes” tendem a nos acompanhar por toda a vida (muitas vezes), influenciando de formas distintas nossa relação com o mundo daí em diante.

Ora, onde o poder deve atuar se quiser mais poder? Obviamente na construção destes significados fortes, nos significados iniciais dos principais significantes. E aí que a ideologia enquanto encobrimento e alienação irá atuar por meio, na modernidade, da escola, da família e da igreja entre outros aparelhos ideológicos.

Qual o outro momento de atuação da ideologia? Toda a vida, a partir de então. Como?

O atuar permanente da ideologia enquanto distorção e encobrimento (seu sentido negativo) será o de encobrir, ocultar ou distorcer o real. Assim, por meio de estratégias diversas, criando dispositivos (mecanismos diversos) aqueles que detém o poder nos im- pedem de construir nossa compreensão do mundo sobre o real, pois este é ocultado e/ou distorcido. Assim, somos levados a agir de uma determinada maneira que não agiríamos se estivéssemos construindo nossa compreensão sobre o real que está oculto. Este é o mo- mento em que atua a mídia, assim como os diversos outros aparelhos ideológicos já men- cionados como a escola, a universidade, o poder judiciário, a democracia representativa liberal e todo o aparato posto a disposição destes aparelhos.

125 A SOCIEDADE DO DESESPERO EM GIORGIO AGAMBEM: A ALIENAÇÃO ENQUANTO SACRALIZAÇÃO

O pensador Giorgio Agamben272 faz uma importante reflexão a respeito da constru- ção das representações e da apropriação dos significados, o que o autor chama de sacraliza- ção como mecanismo de subtração, do livre uso das pessoas, das palavras e seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica.

O autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na antiguidade. As coisas consagradas aos deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas. Há uma subtração do livre uso e do comércio das pessoas. A subtração do livre uso é uma forma de poder e de dominação. Assim consagrar significa retirar do domínio do direito humano sendo sacrilégio violar a indisponibilidade da coisa consagrada.

Ao contrário profanar significa restituir ao livre uso das pessoas. A coisa restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados, e logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não estão condicionados a um uso especifico separado das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega significados aprisionados, sacralizados.

Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e comum, a função da reli- gião é de separação. A religião para o autor não vem de “religare”, religar, mas de “relege- re” que significa uma atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas relações com os deuses. A hesitação inquietante (ato de relire) que deve ser observada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une os homens aos deuses mas sim aquilo que quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem do profano ao sagrado é o sacrifício.

O processo de sacralização ocorre com a junção do rito com o mito. É pelo rito, que simboliza um mito, que o profano transforma-se em sagrado. Os sacrifícios são rituais mi- nuciosos onde ocorre a passagem para outra esfera, a esfera separada. Um ritual sacraliza e um ritual pode devolver ou restituir a coisa (ideia, palavra, objeto, pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a coisa separada ao livre uso é o toque humano no sagrado. Este contágio pode restituir o sagrado ao profano.

A função de separação, de consagração, ocorre nas sociedades contemporâneas em diversas esferas onde o recurso ao mito juntamente com rito cumpre uma função de sepa- ração, de retirada de coisas, ideias, palavras e pessoas do livre uso, da livre reflexão, da livre interlocução, criando reconhecimentos sem possibilidade de diálogo. A religião como se- paração, como sacralização, há muito invadiu a política, a economia e as relações de poder na sociedade moderna Isto pode ser chamado de secularização, que nada mais é que manter

272 AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et Rivages. As reflexões e interpretações livres desenvolvidas neste tópico são todas a partir do texto do filósofio Giorgio Agambem. Leitura recomendada é o livro Profanações publicado pela editora Boitempo, 1 edição, Maio de 2007, São Paulo. 126 os mecanismos de separação em um discurso religioso adaptado para a vida civil ou em outras palavras, transformar práticas e instituições religiosas em leigas. Assim, o capitalismo de mercado é uma grande “religião”, que se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada. As discussões que ocorrem na esfera econômica são encerradas com o recurso ao mito para impor uma ideia sacralizada a toda população. No espaço religioso do capitalismo não há espaço para a racionalidade discursiva uma vez que qualquer tentativa de questionar o sagrado é sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das discussões de política econômica. Por isto os proprietários reagem com raiva à tentativa de diálogo, pois, para eles, este diálogo é um sacrilégio, questiona coisas e conceitos sacrali- zados há muito tempo.

Este recurso está presente no poder do Estado e em rituais diários do poder: a posse de um juiz, de um presidente, a formatura, a ordenação de padres e outros rituais mágicos transformam as pessoas em poucos minutos, separando a pessoa de antes do ritual para uma nova pessoa após o ritual. Isto ganha tanta força no mundo contemporâneo que varias pessoas que frequentam um curso superior hoje não pretendem adquirir conhecimentos, o processo de passagem por um curso não é para adquirir conhecimentos mas para cumprir créditos (até a linguagem é econômica) para no final passar pelo rito que o transformará de maneira mágica em uma nova pessoa. O objetivo é o rito, a certificação da passagem por meio do diploma e não a aquisição do conhecimento. O espaço universitário está sendo transformado pela religião capitalista em algo mágico, onde o conhecimento a ser adqui- rido no decorrer de um processo, que deveria ser transformador, perde importância em relação ao rito (a formatura) e o mito (o diploma).

Neste momento Machado de Assis pediu a palavra:

“Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um su- jeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só pa- lavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.” Como resistir a perda da liberdade. Como resistir a sacralização das relações sociais, econômicas e logo a perda da possibilidade de fazer diferente, de fazer livremente o uso das coisas, das palavras273, das ideias? Como se opor à subtração das coisas ao livre uso? Como se opor a sacralização de parte importante de nosso mundo, de nossa vida? A palavra que Agambem usa para significar esta possibilidade de libertação é “negligência” que pode permitir a profanação da coisa sacralizada.

Não é uma atitude de incredulidade e indiferença que ameaça o sagrado, isto pode até fortalecê-lo. Tampouco o confronto direto. O que ameaça o sagrado é uma atitude

273 Até as palavras têm sido alienadas de seu sentido. 127 de negligência. Negligência entendida como uma atitude, uma conduta simultaneamente livre e distraída face às coisas e seus usos. Não é ignorar a coisa274 sacralizada mas prestar atenção na coisa sem considerar o mito que sustenta sua sacralização. Negligência neste caso significa desligar-se das normas275 para o uso. Adotar um novo uso descompromissado de sua finalidade sagrada, ou seja, de sua função de separar, de alienar. Logo profanar signi- fica liberar a possibilidade de uma forma particular de negligencia que ignora a separação, ou antes, que faz uso particular da coisa.

A passagem do sagrado para o profano pode corresponder a uma reutilização. Muitos jogos infantis (jogo de roda; balão; brincadeiras de roda) derivam de ritos, de cerimônias para a sacralização como uma cerimônia de casamento. Os jogos de sorte, de dados, deri- vam das práticas dos oráculos. Estes ritos separados de seus mitos ganharam um livre uso para as crianças. O poder do ato sagrado é a consagração do mito (a estória) e o rito que o reproduz. O jogo (negligência) desfaz esta ligação, desfaz a alienação. O rito sem o mito vira jogo, é devolvido ao livre uso das pessoas. O mito sem o rito perde o caráter sagrado, vira uma estória. Importante lembrar que negligência não significa falta de atenção. Uma criança quando joga tem toda a atenção no jogo. Ela apenas negligencia o uso sagrado ou o mito que fundamenta o rito. A criança negligencia a proibição.

Devemos dessacralizar a economia, o direito, a política devolvendo estas esferas ao livre uso das pessoas, de todas as pessoas. Construir novos usos livres.276

Numa época onde a dessacralização é fundamental diante da dimensão que a sacra- lização tem, as pessoas, em meio ao desespero, buscam um retorno ao sagrado em tudo. O jogo como profanação, como uso livre está hoje, infelizmente, decadente. As pessoas parecem incapazes de jogar e isto se demonstra com a proliferação de jogos prontos, sacra- lizados, com regras herméticas, onde os novos usos são quase impossíveis ou invisíveis. Os jogos televisados como grandes espetáculos de massa acompanham a profissionalização e a mitificação dos jogadores (os ídolos).

A secularização dos processos de sacralização que dominam as sociedades contempo- râneas permite com que as forças de separação permaneçam intactas sendo apenas mudadas de lugar. A profanação de maneira diferente neutraliza a força que subtrai o livre uso, neutraliza a força do que é profanado. Tratam-se de duas operações políticas: a primeira mantém e garante o poder por meio da junção do mito e rito agora em outro espaço; a segunda desativa os dispositivos do poder; separa o rito do mito permitindo o livre uso.

274 Coisa aqui significa ideias, objetos, pessoas, palavras, animais, ritos, danças, etc. 275 Negar a normalização imposta pelo poder. Neste sentido a alienação imposta pelo poder ao sacralizar pode ser revertida em benefício da libertação dos sentidos: alienar-se em relação ao sentido imposto e sacralizado. 276 O que resta fazer? Em primeiro lugar, abandonar as soluções que foram apresentadas na modernidade; aban- donar, por exemplo, a visão otimista da história humana; abandonar a aposta de que tudo pode ser resolvido através do cumprimento da norma, e por isso abandonar também a aposta no “estado de direito”. ASSMAN, in, AGAMBEN, 2007, p. 13) 128 O capitalismo é mostrado por vários autores como um espaço de secularização dos processos de sacralização. Max Weber mostra o capitalismo como secularização da fé pro- testante; Benjamin demonstra que o capitalismo se constitui em um fenômeno religioso que se desenvolve de forma parasitária a partir do cristianismo.

Para Giorgio Agambem o capitalismo tem três fortes características religiosas espe- cíficas. Em primeiro lugar, o capitalismo é uma religião do culto mais do que qualquer outra. No capitalismo tudo tem sentido relacionado ao culto e não em relação a um dogma ou ideia. O culto ao consumo; o culto a beleza; a velocidade; ao corpo; ao sexo; etc. Em segundo lugar o capitalismo é um culto permanente, sem trégua e sem perdão. Os dias de festas e de férias não interrompem o culto, mas, ao contrário o reforça. Finalmente, o culto do capitalismo não é consagrado à redenção ou a expiação da falta uma vez que é o culto da falta. O capitalismo se sustenta na falta, necessita da falta e cria, constantemente, a falta, que o alimenta. O capitalismo precisa da falta pra sobreviver. O capitalismo cria a falta para então supri-la com um novo objeto de consumo. Assim que este objeto é consumido outra falta aparece para ser suprida. O capitalismo talvez seja o único caso de um culto que ao expiar a falta mais torna a falta universal.

O capitalismo, por ser o culto, não da redenção e sim da falta, não da esperança, mas do desespero, faz com que este capitalismo religioso não tenha como finalidade a transfor- mação do mundo mas sim sua destruição.

Existe no capitalismo um processo incessante de separação única e multiforme. Cada coisa é separada dela mesma não importando a dimensão sagrado/profano ou divino/ humano. Ocorre uma profanação absoluta sem nenhum resíduo que coincide com uma consagração vazia e integral. Ou seja, o capitalismo profana as ideias, objetos, nomes não para permitir o livre uso mas para ressacralizar imediatamente. Um automóvel não é mais um objeto que é usado para o transporte mas é um objeto de desejo que oferece para quem compra status, poder, velocidade, emoção, reconhecimento. O consumidor não compra o bem que pode transporta-lo. O que o consumidor compra não pode ser apropriado pois o que é consumível e logo inapropriável. O consumidor compra o status, o reconhecimento, a ilusão de poder, a velocidade, e isto não pode ser apropriado, isto desaparece na medida em que é consumido. Trata-se de um fetiche incessante. Ao conferir um novo uso a ser consumido, qualquer uso durável se torna impossível: está é a esfera do consumismo.

Na lógica da sociedade de consumo a profanação torna-se quase impossível pois o que se usa não é o uso inicial do objeto mas o novo uso dado pelo capitalista. Logo o que se consome se extingue e desaparece e, portanto, não pode ser dado novo uso. Não há possi- bilidade de liberdade dentro deste sistema. O novo uso, o da liberdade, exige enxergarmos este processo de aprisionamento da lógica capitalista consumista.

O consumo pode ser visto como uso puro que leva a destruição da coisa consumida. O consumo é, portanto, a negação do uso uma vez que o uso pressupõe que a substancia da coisa fique intacta. No consumo a coisa desaparece no momento do uso. 129 A propriedade é uma esfera de separação. A propriedade é um dispositivo que desloca o livre uso das coisas para uma esfera separada que se converte, no estado moderno, em direito. Entretanto, o que é consumido não pode ser apropriado. Os consumidores são in- felizes, nas sociedades de massa, não apenas porque eles consomem objetos que incorporam uma não aptidão para o uso, mas também, sobretudo, porque eles acreditam exercer sobre estas coisas consumidas o seu direito de propriedade. Isto é insuportável e torna o consumo interminável. Como não me aproprio do que consumi tenho que consumir de novo e de novo para alimentar a ilusão de apropriação. Esta escravidão ocorre pela incapacidade de profanar o bem consumido e pela incapacidade de enxergar o processo no qual o consu- midor está mergulhado até a cabeça.

CONCLUSÃO

Compreendendo o processo ideológico de alienação e encobrimento uma questão se apresenta neste inicio de século. O problema contemporâneo está em uma radicalização do processo de alienação. Os discursos não mais guardam contato com qualquer traço do real. Como cantaria Cazuza, “suas ideias não correspondem aos fatos”, e lembrando Zizek, as palavras não mais correspondem aos seus conceitos historicamente construídos e trans- formados, ou seja, se afastam do caminho histórico conceitual de seus significados. Citando Zizek: “a luta pela hegemonia ideológico-política é por consequência, sempre a luta pela apropriação dos termos ‘espontaneamente’ experimentados como ‘apolíticos’, como que transcendendo as clivagens políticas.”277

Não há mais uma preocupação mínima com qualquer coerência ou construção lógica do discurso ideológico. A ideologia (a distorção, alienação e encobrimento) se apresenta de forma pura, desavergonhada e brutal. As ações não se sustentam em argumentos. Estes resistem pouco e rapidamente se transformam em raiva, no rebaixamento do outro e na desqualificação do seu argumento.

Um exemplo interessante se apresenta na Argentina, final de 2012: o jornal “O Cla- rin” detém mais de 250 licenças de rádio e televisão. Uma nova lei aprovada pela Câmara e Senado argentinos e sancionada pela presidenta da República, limita a propriedade dos meios de comunicação seguindo orientação da Unesco, o que permitirá que a pessoas pos- sam ter acesso a mais meios, que representem interesses diversos, compreensões distintas, e assim possam formar livremente seu pensamento. Entretanto, os proprietários privados do “Clarin” defendem seu monopólio fundamentando seus argumentos na liberdade de expressão e na liberdade de consciência. Como¿ Como é possível alguém defender a li- berdade de expressão, de imprensa e de consciência defendendo um monopólio, seja ele governamental ou privado? Como confundir o direito das pessoas, dos jornalistas, dos diversos grupos de interesses presentes em uma sociedade expressarem suas ideias com o fato (posto como direito) do exercício individual do proprietário ou proprietários de uma mídia, expressar suas convicções individuais em um meio monopolizado ou oligopolizado. 277 ZIZEK, Slavoj. Padoyaer en faveur de l’intolerance, Ed. Climats, Castelnau-le-Lez, 2004, pag.19. 130 Como é possível sustentar, que é liberdade de imprensa, o fato de um pequeno grupo de proprietários ocuparem 60% do espaço da mídia para dizer suas convicções, sua visão de mundo e defender seus interesses. Esta impossibilidade lógica se choca com a possibilidade de exercício de poder real, concreto, capaz de desestabilizar um governo democraticamen- te eleito.

Este uso radical e brutal da ideologia (enquanto distorção) ultrapassa uma argumen- tação jurídica, política ou econômica: entramos no espaço das ciências “psi” (psicanálise, psicologia e psiquiatria). As pessoas no poder e mais um grupo de seguidores crentes estão DELIRANDO.

É o comportamento de torcida de futebol aplicado à política.

Será que Simão Bacamarte estava certo? Estão todos delirando?

Não, o delírio é de apenas alguns. Enquanto alguns deliram e se alienam no sentido médico do termo, a maioria se encontra alienada no sentido filosófico. As pessoas que se encontram no poder, acumularam tanto poder que estão delirando. Os seus argumentos são delirantes tal o absurdo do poder que acumularam. E a torcida alienada deste grupo no poder, deliram coletivamente, com o agravante que ainda defendem interesses que não são os seus, e mais, são contra os seus.

No dicionário Aurélio encontramos no verbete para “delírio”: “Distúrbio de jul- gamento devido a alteração global da consciência da realidade e que, em face de um ra- ciocínio correto, não se modifica, ou pouco se modifica.” O delírio ainda causa (e é fácil identificar os delirantes) “imoderada excitação do espírito; agitação, desvairamento”.

Na medicina o termo alienação é usado para designar aquele que se afasta da norma- lidade. Ora, não seria disto que necessitamos, o alienado médico na realidade social. Esta não seria a “profanação” que menciona Agambem: uma atitude de negligencia para as coisas sacralizadas.

Ora, Simão Bacamarte percebe o processo de alienação (no sentido filosófico do termo) de todos, e isto faz com que ele classifique a alienação filosófica como alienação mental (psiquiátrica).

Em tempos de direito penal máximo, onde tudo passa a ser rigorosamente punido e o pior, quando a punição é desejada pelos súditos alienados, Machado de Assis nos fala:

Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das Cam- braias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício, e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doi-

131 do. As mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. (Machado de Assis, “O alienista”) Mas ao mesmo tempo em que tudo é proibido, em que quase tudo gera um processo penal ou uma receita médica, uma “blitz” em cada esquina e câmeras em todas as partes, parece que tudo é permitido. O que é permitido¿ A “jouissance”, o prazer pré aprovado, o consumo desenfreado de objetos e pessoas. Assim todos, tolos, caminham, “livres” e deses- perados, acreditando que o prazer permitido que os leva ao desespero é a expressão de uma liberdade inexistente, aprisionada pelo cárcere dentro da cabeça. Delírios permitidos, onde desesperados consumidores de tudo, da fé ao corpo, se agitam em meio a tudo isto, nos espaços de delírios permitidos, nas boates, igrejas, quartéis e shopping center’s, nas cidades e nos maravilhosos mercados, onde tudo tem uma preço, e pode ser parcelado. Desconec- tados delirantes, incapazes de perceber a escravidão em que se encontram.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005 BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista, Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, 3 edição, Curitiba, Ed. Positivo, 2004 GROS, 2018 MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol Del Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima edición, Santiago do Chile, 1994. ZIZEK, Slavoj. Padoyaer en faveur de l’intolerance, Ed. Climats, Castelnau-le-Lez, 2004 ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia, Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2010

132 CAPÍTULO 8 TRAGÉDIA E “ACHISMOS”: O QUE “JÚLIO CÉSAR” TEM A NOS ENSINAR

Aicha de Andrade Quintero Eroud278 Paulo Silas Taporosky Filho279

INTRODUÇÃO

O enredo da peça Júlio César, escrita em 1599, encontra-se dividido em cinco Atos. No Ato III está a passagem mais famosa da peça, “Et tu, Brute? Então que morra César”, sendo essas as últimas palavras proferidas pelo personagem Júlio César antes de sucumbir. A frase carrega consigo o peso da traição quando advinda da pessoa menos esperada. To- davia, a intenção de Brutus, um dos conspiradores e amigo de César, divergia dos demais conspiradores movidos pela inveja, pois ele intencionava sacrificar a vida de seu amigo, por ele considerado tirano, em prol da liberdade do povo romano. Havia nele um sentimento de idealismo e proteção à República romana como um bem maior.

No decorrer da peça, diversas narrativas demonstram algumas condutas de Júlio César arraigadas pela soberba, bem como pelo desprezo, ao desdenhar os conselhos do vidente, o qual o alertou sobre os Idos de Março, bem como ao ridicularizar o pedido de sua esposa, Calpúrnia, a qual lhe rogou para que ficasse em casa, pois havia sonhado com a morte dele e temia que alguma desgraça o alcançasse. Porém, perante o povo romano, o general Júlio César era considerado um homem nobre.

Sabe-se que “para que se possa contar uma história convincente, ela deve estar arraigada nos valores que fundamentam o tempo em que se vive”280. Assim, tendo-se que a história na qual se pauta a presente abordagem preenche mais do que satisfatoriamente esse enunciado, pretende-se que essa também minimamente assim seja, de modo que o presente escrito aborda o que se pode entender como valor da vida e quais as consequências que podem advir das conspirações e das mortes ocasionadas sob a alegação da defesa e proteção de um

278 Graduanda em Direito do Centro de Ensino Superior de Foz do Iguaçu – CESUFOZ; Membro Fun- dadora do Instituto de Estudo do Direito – IED. Membro Associado do International Center for Cri- minal Studies – ICCS; Membro da Comissão Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais; Membro da Comissão Especial de Estudos de Direito Penal Econômico do Canal Ciências Criminais; Membro do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras – IDESF; Colunista do site Sala de Aula Criminal; Autora de diversos artigos jurídicos e capítulos de livros jurídicos. 279 Professor de Processo Penal na Universidade do Contestado (UnC); Mestre em Direito pelo Centro Univer- sitário Internacional (UNINTER). Especialista em ciências penais, em direito processual penal e em filosofia; Advogado; Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura; Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR; E-mail: [email protected] 280 FERREIRA, Iverson Kech. Crime, Arte e Literatura. 1ª Ed. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2019. P. 192 133 bem maior. Nesse contexto, não há de se olvidar que após a morte de Júlio César, Roma passou a se situar num ânimo diferente daquele que ansiavam os conspiradores - em nome da proteção da República é que se acabou com ela.

No intuito de melhor compreender o cenário, discorre-se, de forma breve, acerca do enredo. Após, analisa-se alguns dos principais trechos da narrativa sob a ótica de cada personagem e das consequências de seus atos. Ao final, sabendo-se que “direito e literatura se relacionam de modo intenso e perene”281, verifica-se a morte do poeta Cina sob a luz do orde- namento jurídico brasileiro, delineando a narrativa com alguns casos recentes.

BREVE SÍNTESE DA OBRA JÚLIO CESAR

Em Roma, durante a comemoração do triunfo do general Júlio César sobre os filhos do General Pompeu, um adivinho se acerca de César e lhe adverte sobre os Idos de Março, pedindo-lhe cautela. No entanto, o aviso foi visto com certa desfeita por parte de César, o qual fez pouco caso, ao pronunciar “É um sonhador. Deixemo-lo. Sigamos!” (SHAKES- PEARE, p.24). Mas, o adivinho não se enganara, pois já estava ocorrendo uma conspiração contra a vida do general. No momento em que Marco Antônio intencionava passar a coroa a Júlio César, o qual a recusou por três vezes consecutivas, Cássio convencia Marco Bruto a se aliar à conspiração. A recusa à coroa fez com que Júlio César se enaltecesse perante o povo, gerando em Bruto o receio da advinda de um governo tirano liderado por César. Essa passagem é demonstrada pela fala de Bruto ao proferir as seguintes palavras após as aclamações dirigidas a César, “Essas aclamações que significam? Receio que haja o povo dado a César o título de rei” (SHAKESPEARE, p.26). Todavia, mesmo com a recusa à coroa, o Senado mantinha a intenção de coroar Júlio César. Assim, a conspiração seguia ganhando aliados, contando com Cina, Décio Bruto, Metelo Címber, Casca e Trebônio.

Bruto reflete sobre a proposta de Caio Cássio e, em nome da República como bem maior que deve ser zelado acima de tudo, inclusive dos sentimentos fraternos e da amizade, decide se unir aos conspiradores. Nesse trecho Bruto diz: “Preciso é que ele morra. Eu, por meu lado, razão pessoal não tenho para odiá-lo, afora a do bem público. Deseja ser coroado. Até onde influirá isso em sua natureza, eis a questão” (SHAKESPEARE, p.45). Então, estes se reúnem e decidem executar o plano durante a cerimônia do Capitólio, que aconteceria no dia seguinte. Durante a reunião Décio indaga se alguém, além de César, cairá. Cássio sugere que Marco Antônio também não deveria sobreviver. No entanto, Bruto se opõe a Cássio (SHAKESPEARE, págs. 53 e 54), dizendo-lhe:

Sanguinária parecera essa empresa, Caio Cássio, se a cabeça cortás- semos e os membros fizéssemos em postas, como a cólera assassina

281 BACH, Marion. Direito e Literatura: a arte de produzir ciência (ou a ciência de produzir arte?). In: AVE- LAR, Daniel Ribeiro Surdi de (Coord.). PRAZERES, Angela dos; LEÃO, Liana de Camargo (Orgs.). O Julgamento de Otelo, o Mouro de Veneza: Direito e Literatura: edição comemorativa Shakespeare 400 anos. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 132

134 a que a inveja, depois, segue. Membro de César é Antônio, ape- nas. Caio, sejamos sacrificadores, não carniceiros. Todos nós estamos agora contra o espírito de César, e no espírito do homem não há sangue. Se o espírito de César atingíssemos, sem desmembrarmos César! Impossível, infelizmente. Assim, por causa dele, César tem de sangrar. [...] Assim, parecerá, quanto fizermos, necessário, sem laivo algum de inveja, o que aos olhos do povo há de ensejar-nos sermos chamados purificadores, não assassinos. Quanto a Marco Antônio, não penseis nele; só será possível que ele chegue aonde for a mão de César, quando a cabeça a César deceparmos. Na mesma noite, a esposa de Júlio César têm pesadelos com o marido, vendo durante os seus sonhos uma estátua dele jorrando sangue por cem bocas e lavando as mãos dos romanos. Ela acorda pela manhã e revela a seu marido o seu temor, clamando para que ele ficasse em casa, quase o convencendo. Porém, Décio chega e convence Júlio César a ir com ele à cerimônia, sob o argumento de que o sonho de Calpúrnia foi mal interpretado e, ao invés de ser negativo, era detentor de bons presságios.

Pórcia, esposa de Bruto, também sente que o seu marido lhe escondia algum assunto. Após dialogar com ele, na tentativa de conseguir escutar algo sobre a angústia sentida por Bruto, ela tem pressentimentos funestos. Momentos antes do início da cerimônia do Ca- pitólio, Artemidorus sente que algo ruim ocorrerá contra Júlio César, advertindo-o sobre Bruto, Cássio, Casca, Cina, Trebônio, Metelo Címber, Décio Bruto e Caio Ligário.

Na mesma noite, a esposa de Júlio César têm pesadelos com o marido, vendo durante os seus sonhos uma estátua dele jorrando sangue por cem bocas e lavando as mãos dos romanos. Ela acorda pela manhã e revela a seu marido o seu temor, clamando para que ele ficasse em casa, quase o convencendo. Porém, Décio chega e convence Júlio César a ir com ele à cerimônia, sob o argumento de que o sonho de Calpúrnia foi mal interpretado e, ao invés de ser negativo, era detentor de bons presságios.

No Senado, articulando um motivo qualquer para que se aproximassem de César, os conspiradores colocam em prática o plano assassino, atingindo inicialmente César na nunca, dando-se início a uma série de apunhaladas – a última dessas desferida Brutus. É aqui o ponto alto da obra, tanto pelo ocorrido em si, como pela célebre frase eternizada “et tu, Brute?”.

Justificando que o ato foi praticado em prol de Roma, os conspiradores não fogem do local do assassinato. Brutus inclusive profere um discurso justificando suas ações, tendo apoio da multidão presente – pelo menos até dado momento... Ao tomar a palavra, Marco Antonio convence a multidão num sentido oposto ao que pretendia Brutus. A retórica preenche o discurso de Marco Antoino, que evidencia o caráter solidário de Júlio Cesar, acalentando o coração dos presentes e fazendo com que todos se voltassem contra os cons- piradores. O corpo ensanguentado de César é visto por todos, cuja imagem é insuflada pelo 135 discurso de Marco Antonio, fazendo com que a multidão desse início ao afastamento dos conspiradores de Roma, iniciando-se consequentemente uma grande violência na qual o poeta Cina vem a ser vítima, mesmo sendo inocente, pois confundido com o conspirador Cinna. O equívoco resulta na morte do Cina inocente.

Brutos e Cássio, fugidos, após uma marcante discussão, reconciliam-se. Enquanto se preparam para uma guerra civil contra César Augusto e Marco Antonio, o fantasma de Júlio César aparece para Brutus, avisando que seriam derrotados.

Durante a iminente batalha, Cássio cai primeiro pelas mãos de um servo. Já Brutus segue invicto por um período, porém, ao se ver derrotado, comete suicídio.

PRELÚDIO DA TRAGÉDIA DE JÚLIO CÉSAR

Júlio César - salvador para alguns, ditador intragável para outros. A obra parte dessa ambivalência tida aos olhos dos outros, já que não há uma imersão em fatos anteriores que levaram Júlio César a ocupar sua maior posição já tida. Inicia-se em seu auge, apresen- tando-se ao leitor a percepção do povo para com o então soberano e a daqueles amigos e colegas próximos. Júlio César confia naqueles que lhes são próximos, sequer podendo ima- ginar o mal que o ronda. Essa confiança acaba por facilitar o plano conspiratório de Cassius e Brutus, os quais se reúnem com outros conspiradores a fim de dar cabo à empreitada assassina: matar Júlio Cesar. “Et tu, Brute?” - as últimas palavras que eternizam o momento fatal da descoberta da conspiração.

César foi de fato um tirano tamanho a ponto de justificar os atos de Brutus, Cassius e dos demais que auxiliaram na efetivação da conspiração, ou teria sido uma mera vítima da mesquinharia e de sentimentos nefastos daqueles que o mataram? Seja como for, Brutus e Cassius acabam tendo de fugir, pois as consequências de seus atos passam a os perseguir. O fim da trama se encerra com o fim da vida desses dois.

Como se percebe pela obra, “Shakespeare exibe sua fina compreensão da vida e da condição humana, na sua grandeza e miséria”282, o que pode ser captado pelo desenvolvimento das personagens – que se elucida através das falas.

A MORTE DE UM PARA JUSTIFICAR O BEM DE TODOS?

Ao ler as obras clássicas, percebe-se que algumas estão imbuídas de fatos e ações se- melhantes às ocorridas no cenário real, representando, iteradas vezes, a atualidade, muito embora o episódio narrado tenha sido escrito numa época passada. É a demonstração de que “a história se repete novamente”, como se num passe de mágica os personagens e o

282 BARROSO, Luís Roberto. A tragédia de Júlio César: poder, ideal e traição. ANAMORPHOSIS - Re- vista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 387-409, dez. 2017. ISSN 2446- 8088. Disponível em: . Acesso em: 18 março 2019. p. 404 136 fatos contados ganhassem vida; ou como se o autor, naquela época, pudesse estar revesti- do de cognição em respeito ao futuro e repassando-o em forma de escrita. Afinal, o que aprendemos com as estórias e histórias? Por que as catástrofes tendem a se repetir sob as mesmas circunstâncias? Talvez, a resposta esteja no próprio comportamento do Homem perante a Sociedade. O desejo humano mais secreto segue guardado no mais íntimo de cada ser, independentemente da geração e do tempo. É algo herdado, porém não trabalha- do de forma a melhorar ou avançar a sensibilidade humana. Maquiavel (1996, p. 80), em seu clássico “O Príncipe”, já advertia que:

[...] geralmente se pode afirmar o seguinte acerca dos homens: que são ingratos, volúveis, simulados e dissimulados, fogem dos perigos, são ávidos de ganhar e, enquanto lhes fizeres o bem, pertencem intei- ramente a ti, te oferecem o sangue, o patrimônio, a vida e os filhos, como disse acima, desde que o perigo esteja distante; mas, quando precisas deles, revoltam-se. Nesse sentido, surgem as leis com o intuito de equilibrar e conduzir as relações so- ciais. Os Homens, por natureza, estão constantemente em busca da felicidade, procuran- do-a de forma individual, pensando somente em si mesmo como forma de angariar o que lhe convém, fazendo-se acreditar que estão emantados sob a justificativa do bom senso283 e da ética284. Cometem-se atrocidades em nome do “bem coletivo”. Assim, permeia-se ao longo do tempo, a necessidade de prever normas limitadoras das condutas que por natureza deveríamos compreender como inaceitáveis. Logo, os Homens avançam como seres tecnológicos, mas retrocedem como seres sensíveis. Ademais, é importante ressaltar a lição de Montesquieu (1996, p. 55), o qual afirma que “Logo, é uma máxima bem verdadeira aquela que diz que, para que se ame a igualdade e a frugalidade numa república, é preciso que as leis as tenham estabelecido”.

No clássico em estudo, os conspiradores se unem com o objetivo de ceifar a vida de Júlio César, escusando-se na justificativa de que a morte do Imperador representa o bem de todos. Era a barbárie anunciada! Os traidores, com exceção de Bruto, queriam eliminar Júlio César por vaidade, ambição e inveja. Havia muito mais que o interesse no bem co- mum, havia o interesse próprio, este escondido atrás daquele.

283 “O bom senso e a felicidade dos particulares consiste em larga medida na mediocridade de seus talentos e de suas riquezas. Uma república onde as leis tiverem formado muitas pessoas medíocres, composta por pessoas sábias, será governada sabiamente; composta de pessoas felizes, será muito feliz”. (MONTESQUIEU, 1996, p. 55). 284 “E, esclareça-se, enquanto se está aqui a dissertar sobre a ética, se está a falar sobre o comportamento humano tomado em sua acepção mais ampla, a saber, como realização exterior (exterioridade), como intenção espiri- tual (intencionalidade), como conjunto de resultados úteis e práticos (finalidade; utilidade). Esta é uma faceta da ética, ou seja, a sua faceta investigativa”. (BITTAR, 2018, p. 32). Ainda, sobre a ética destaca-se que “O terreno da ética é pantanoso, sobretudo se considerado sob o ponto de vista da ciência. De fato, os conceitos discutidos pela ética são normalmente sujeitos à ambiguidade, à polissemia, à vaguidão, enfim, à valoração. Os conceitos fluidos e indetermináveis de modo úncio e absoluto são o núcleo dos estudos éticos. Então, como é possível um saber preciso sobre ética, se sujeito a tanto relativismo conceitual? Somente se pode admitir sua existência se se admite que é parte das ciências humanas e vive de perto a variedade dos aspectos humanos contidos nos valores subjetivos e sociais”. (BITTAR, 2018, p. 36). 137 Tende-se a florescer a justifica dos atos, preliminarmente, como sendo de interesse relativo ao bem maior, ocultando, assim, os desejos mais íntimos de cada um e a conveni- ência na causa. Tem-se, nessas situações, uma coletividade afetada pelas ações daqueles que agem de forma egocêntrica, visando sua própria cobiça. Matou-se César para proteger o povo. Mas proteger do que, afinal? Os conspiradores apenas almejavam a queda de César a seu bel prazer, investindo-se de falsas falácias e promessas. Nesse sentido, cabe a análise sobre a questão pela diferenciação estabelecida entre amor e ideal:

O amor move a vida privada. Em suas múltiplas manifestações: fra- ternal, paternal, filial, conjugal, erótico. [...] O amor está associado a virtudes como solidariedade, compaixão e bondade. É fora de dúvida que Brutus amava César. Por sua vez, o idealismo está para a vida pública como o amor está para a vida privada. Ter ideal significa viver para objetivos que es- tão além do interesse imediato, do proveito próprio. Justo ao con- trário, idealismo pode significar sacrifício e renúncia, em troca de realizações que não são puramente pessoais e frequentemente são intangíveis. [...]O idealismo está ligado a valores éticos, à virtude, às conquistas do espírito. É fora de dúvida, igualmente, que Brutus era um homem idealista. A vida boa envolve o equilíbrio entre amor, idealismo e interesses próprios. Júlio César retrata um conflito excruciante: quando o amor e o idealismo estão em lados diferentes, opostos, inconciliáveis.285 O discurso de Marco Antônio, após a morte cruel de seu amigo, revestiu-se de uma magnífica retórica, convencendo o povo sobre a injustiça que ocorrera com César. De forma convincente, Marco Antônio trouxe consigo a recordação dos atos realizados por César em prol da República, revertendo as opiniões destes em relação à ambição de César, desconstruindo o fundamento de que a morte era um “mal necessário”, pois a República corria riscos com um Imperador ambicioso. As palavras de Marco Antônio foram:

[...] César foi meu amigo, fiel e justo; mas Bruto disse que ele era ambicioso, e Bruto é muito honrado. César trouxe numerosos cati- vos para Roma, cujos resgates o tesouro encheram. Nisso de mostrou César ambicioso? Para os gritos dos pobres tinha lágrimas. A ambição deve ser algo mais duro. Mas Bruto disse que ele era ambicioso, e Bruto é muito honrado. Vós os vistes nas Lupercais: três vezes re- cusou-se a aceitar a coroa que eu lhe dava. Ambição será isso? No entretanto, Bruto disse que ele era ambicioso, sendo certo que Bruto é muito honrado. (SHAKSPEARE, p. 96). 285 BARROSO, Luís Roberto. A tragédia de Júlio César: poder, ideal e traição. ANAMORPHOSIS - Re- vista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 387-409, dez. 2017. ISSN 2446- 8088. Disponível em: . Acesso em: 18 março 2019. p. 407 138 Importante destacar o aspecto das consequências possíveis tidas quando da relação comunicacional entre emissor e receptor, uma vez que é pela forma com a qual as pessoas se comunicam que inúmeros conflitos podem surgir. Nesse sentido, por mais que num contexto de problematizar a comunicação viciada num sentido próprio – a partir da figura do mediador (não sendo o caso da presente abordagem) - e tratando de obra outra de Shakes- peare, vale ressaltar a fala de Ângela Franco e Maria Cristina Campos sobre a questão, pois também diz respeito aos efeitos do discurso retórico sobre uma multidão:

O cerne de inúmeros conflitos consiste na maneira como as partes se comunicam. O momento da ação, a linguagem, a expressão corporal, dentre outras formas de manifestação, agravam, atenuam ou solucio- nam os relacionamentos interpessoais. Sob essa ótica, a comunicação conduzida por um mediador às avessas é o elementos propulsor da tragédia.286 Em “Júlio Cesar”, desmascara-se assim, com o discurso proferido por Marco An- tonio, a real intenção dos traidores, não perdurando a maldade senão por pouco tempo. Mas a tragédia, já anunciada, não tinha mais volta. A morte, uma vez despertada, não mais retorna ao seu leito; uma vida ceifada, jamais retornará, nem poderá ser substituída ou recompensada, pois é única.

O POETA CINA: UMA VÍTIMA DO CLAMOR SOCIAL

Qual o peso da voz do povo e as suas consequências quando relevadas no calor da emoção? Pondera-se a vontade de fazer justiça a todo custo, sem a devida averiguação dos fatos ou sem escutar o acusado e as testemunhas que presenciaram a cena. Acusa-se e pu- ne-se por mera presunção, pouco importando a veracidade dos fatos e as circunstâncias que lhes são atinentes. Essa situação, lamentavelmente, ocorre desde os tempos mais remotos e segue na atualidade.

Hodiernamente, tem-se a tecnologia, a saber, as redes sociais e de comunicação287, como agravante dos episódios que envolvem o clamor social, ou até mesmo como “le- gitimador” das ações que se manifestam revestida pelo fator “justiça a todo custo”. Basta um click e eis uma informação disseminada de forma instantânea. Tem-se a facilidade de

286 FRANCO, Ângela Barbosa; CAMPOS, Maria Cristina Pimentel. Iago, o mediador às avessas em Othello. In: FRANCO, Ângela Barbosa; GURGEL, Maria Antonieta Rigueira Leal (Orgs.). Direito e Literatura: interseções discursivas nas veredas da linguagem. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014. p. 33 287 “A realidade que conhecemos resulta da edição do mundo. Essa parte construída, reelaborada pelos “produ- tores” dos meios (empresários, profissionais de mídia, donos do aparato tecnológico, entre outros), pode ser, muitas vezes, tão pequena e tão plena de interpretações implícitas ou explícitas que se distanciam extensamen- te do fato “narrado”, procurando atender aos objetivos tanto dos que detêm os meios de comunicação como, no afã de agradar ao público, atende-lo no que lhe é mais caro: o espetáculo e a satisfação dos estereótipos morais ultrapassados. Esse processo metonímico – a parte pelo todo – acaba tendo a força da “verdade”, da “objetividade”, da totalidade. E desse modo esse “mundo todo” será reproduzido e se incorporará à história vivida. Essa fabricação da realidade em que se vive implica uma aparentemente eterna reprodução do que está, com as consequências que o cotidiano registra”. (BARROS FILHO, 2008, p. 07). 139 repassar um pedido de “façamos justiça” em face de um determinado indivíduo feitor de certo delito propenso a gerar revolta na sociedade. Muitas vezes o caso sequer foi apurado pelo órgão competente para tal ou trata-se de simples fato inexistente, configurando-se em fakenews.

Em Júlio César, o Poeta Cina foi assassinado por pessoas que queriam vingar a morte de César. Perdeu a vida sem ter a chance de ser questionado. O seu nome foi o fator de- terminante para a ocorrência de sua morte, pois um dos conspiradores também carregava o nome Cina. Destaca-se o trecho da obra que demonstra o fato narrado (SHAKESPEARE, págs. 107 e 108):

CINA – Eu sou o poeta Cina! Eu sou o poeta Cina! QUARTO CIDADÃO – Despedaçai por causa de seus maus versos! CINA – Não sou o conspirador Cina! SEGUNDO CIDADÃO – Pouco importa; tem o nome de Cina. Tiremos-lhe do coração apenas o nome e deixemo-lo ir. Imagine-se a mesma cena supracitada, porém, hoje. Notícias sobre a morte de Júlio César circulando pelos principais veículos de comunicação em escala global, com a foto de Cina, o qual se encontra em lugar desconhecido. Nesse cenário, um sujeito publica em rede social ou de comunicação um relato sobre o paradeiro de Cina, afirmando que este se encontra em determinado local, incluindo na publicação uma foto do suposto Cina para corroborar a sua alegação. A partir disso, une-se um grupo formado por simpatizantes de Júlio César para vingar a morte deste, os quais buscam o paradeiro de Cina, encontra-o, e o mata sem dar-lhe a mínima chance de se explicar. Ao final, como desfecho, descobre- -se que o sujeito morto, apesar de ter o mesmo nome e características semelhantes ao do assassino, não o é.

Tal narrativa sai dos livros e ganham vida no contexto real. Parte-se da premissa que se existe um crime, existe um criminoso. Alguém precisa pagar pelo delito para afastar o sentimento de impunidade. O mínimo esperado é que se puna o verdadeiro feitor do crime, mas pelo órgão competente, respeitando os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. E o cla- mor social não está revestido dessas garantias. É necessário respeitar o processo penal e a aplicação das penas, que segundo Beccaria (1997, p. 62) “é, pois, necessário escolher penas de modo de infligi-las, que, guardadas as proporções, causem a impressão mais eficaz e duradoura nos espíritos dos homens, e a menos penosa no corpo do réu”.

140 A VOZ NÃO ESCUTADA DE CINA E O DIREITO À AMPLA DEFESA

A ocorrência de atos criminosos não é algo hodierno, pois se encontram registrados desde os tempos primórdios. Para definir quais seriam consideradas essas práticas nocivas, os Homens estipularam, preliminarmente, pautados na moral288 e nos bons costumes, quais condutas eram relevadas como lesivas ao Ser e a Sociedade. Muitos foram as metodologias utilizadas como castigos, havendo desde a pena de morte até a tortura, bem como foram vários os mecanismos aplicados para alcançar a “justiça”. A punição sempre foi utilizada como o principal instrumento para coibir e prevenir as ações lesivas. Assim, segundo des- taca Foucault (1987, p. 13):

A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo pe- nal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável tea- tro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício. É pertinente trazer à baila que, segundo John Rawls (2002, p.3), “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento”. Deve estar atrelada à determinação de soluções dos litígios e conflitos, resguardando métodos eficazes para tanto, e esculpida por normas jurídicas que devem atingir a todos que se enquadram numa determinada situação, indistintamente. Para os descumpridores das normas previstas, como forma de garantir a pacificação social, a norma jurídica definidora de ato ilícito, tende a prever, caso advenha o seu descumprimento, uma determinada san- ção como instrumento preventivo e repressivo. Nessa seara, Bobbio (1999, p. 27), leciona que: “[...] determinamos a norma jurídica através da sanção, e a sanção jurídica através dos aspectos de exterioridade e de institucionalização, donde a definição de norma jurídica como aquela norma que “cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada””. (BOBBIO, 1999, P. 27) Como acima verificado, o conceito de justiça, apesar de difícil definição, é o caminho percorrido para alcançar o máximo possível da efetivação ou correção de um direito, com

288 “Segundo Kant, a ação é moral quando responde a um dever de consciência, que não se orienta por nenhuma outra consideração, tal como conveniência, oportunidade etc. esses imperativos de consciência, que prescin- dem de outras considerações, são denominados por Kant “imperativos categóricos”. Portanto, a ação é moral quando responde ao imperativo categórico”. (ZAFFARONI, 2007, p. 230).

141 o intuito de evitar, reparar ou amenizar lesões às partes envolvidas. O objetivo é alcançar, ao máximo, uma decisão correspondente à realidade dos fatos demonstrados por meio de alegações, provas, testemunhas, entre outros arcabouços processuais permitidos por lei, com o intuito de ponderar a situação de forma plausível com base comprovadora dos fa- tos. Nessa seara, adverte Batista (2001, p. 100) que “contudo, a pena que se detém na simples retributividade e, portanto, converte seu modo em seu fim, em nada se distingue da vingança”. Já, no tocante ao processo, Dworkin (2010, p. 243) explica que:

[...] o processo não se resume a encontrar princípios que acomo- dem nossos juízos mais ou menos assentados. Esses princípios devem fundamentar nossos juízos, e não simplesmente explicá-los, e isso significa que os princípios devem ter um apelo independentemente ao nosso senso moral. Nesse contexto, entre trazer os meios de provas para demonstrar os fatos e corroborar as alegações é que emana a ampla defesa e o contraditório. Assim, para alcançar, plausi- velmente, a demonstração da realidade dos fatos, é imperioso permitir que ambas as partes litigantes, tragam consigo “peças” para a reconstrução dos fatos perante o Magistrado. Desse modo, sobre o papel da defesa técnica, Aury Lopes Jr. (2005, p. 228) explica que:

A justificação da defesa técnica decorre de uma esigenza di equilíbrio funzionale entre defesa e acusação e também de uma acertada presun- ção de hipossuficiência do sujeito passivo, de que ele não tem conhe- cimentos necessários e suficientes para resistir à pretensão estatal, em igualdade de condições técnicas com o acusador. A ausência da ampla defesa pode acarretar a pior das injustiças, a de ser julgado sem ser ouvido. Todavia, o agravante desse “pior”, é ser julgado pelo anseio do povo, o qual dispensa qualquer espécie de processo ou atuação judicial. Na obra em análise, Shakespeare demonstra esse cenário por meio do personagem poeta Cina, o qual foi confundido com um dos traidores, motivo suficiente para ser brutalmente assassinado.

CONCLUSÃO

A tragédia de Júlio César aos olhos trágicos de Shakespeare. A peça, cuja história adianta o êxito da obra tanto por ela mesma, como ao considerar o seu autor, apresenta o assassinato de Júlio César e algumas de suas implicações prévias e posteriores ao crime. As motivações que ensejam no episódio da trama são desnudadas de um modo próprio, expondo-se emoções, ambições, frustrações e intenções nas falas das personagens, transmi- tindo-se assim ao leitor todo um ambiente específico no qual se insere o livro.

A peça é rica justamente por expor os conflitos internos de cada qual das persona- gens, dito no sentido de se construir toda uma série de valores de cunho ético e moral que

142 perpassa no plano psicológico desses. É daí que se vê Brutus, Cassius, Júlio César, Marco Antônio, Otávio e outros em diálogos coesos que evidenciam toda essa robustez de sen- timentos ínsitos de cada personagem. Conforme aponta Barbara Heliodora na introdução de uma das edições do livro:

o que torna a obra fascinante é o quanto Shakespeare faz os represen- tantes das duas posições coerentes com as mesmas, o quanto eles são sinceros em suas convicções diversas e, como ele faz toda a ação da peça depender de uma sequência de ações que são, inexoravelmente, resultado direto uma das outras.289 Uma peça brilhante, portanto, pelo que o presente trabalho teve como objetivo ana- lisá-la, com o intuito de explanar concisamente sobre a paixão pelo idealismo republicano vivenciado pelo personagem Marco Bruto, sentimento que o uniu com os demais traidores para conspirar contra a vida de Júlio César na antevéspera que marcava o final da República Romana. Observando-se o enredo, destacou-se a arte da retórica, demonstrada por Marco Antônio ao discursar sobre os motivos da morte de seu amigo Júlio César. Ao final, abor- dou-se a morte do inocente Poeta Cina, confundido com Cina, um dos conspiradores da peça, o qual mesmo se identificando, foi assassinado. A intenção desse texto foi a de trazer reflexões sobre a paixão movida pelos ideais, inveja e traição, bem como suas eventuais consequências.

Assim sendo, considerando que “tanto quanto o direito, um texto não é imediatamente aces- sível”290, almeja-se que o presente possa vir a ser a contento, contribuindo-se para a reflexão proposta via “Direito e Literatura”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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144 CAPÍTULO 9 É COMO DIZEM, E NÃO COMO FOI, QUE SE JULGA!

Paulo Silas Taporosky Filho291

INTRODUÇÃO

A verdade sobre os fatos. A correlação entre o ocorrido e o que é decidido. A repro- dução fiel, através do processo, do ocorrido que está sendo ali julgado. O dizer e estabe- lecer como realmente foi. Essas e outras preocupações correlatas estão presentes em cada caso que se julga. Ao Poder Judiciário é conferido o papel de apontar como foi e porque foi que a coisa toda aconteceu, a fim de, com base nisso, estipular eventual reprimenda cabível contra o indivíduo que ali é acusado. Diz-se mais especificamente do caso penal, do processo crime. Como é que se decide sobre os fatos? Melhor: como é que os fatos são relatados no processo para que o caso possa ser decidido? Essa é a inquietação que dá o impulso para esse texto.

O presente escrito segue o gênero ensaístico, uma vez que se adota o método direto de interpretação, sendo aquele em que há “explanação direta dos pontos de vista do autor, diri- gindo-se em seu próprio nome ao leitor ou ouvinte”292. Busca-se estabelecer uma reflexão a partir das impressões tidas com as comparações das narrativas nos processos judiciais e nas obras literárias de qualquer espécie, ou mais precisamente sobre a forma com a qual se forma a narrativa presente nos casos penais. Intentando-se, portanto, por uma espécie de aborda- gem não metódica, onde mais se faz uma abertura (a partir de vários trabalhos já produzidos nesse sentido, em que pese não estejam muitos aqui mencionados) sobre um dado tema do que se trata do início ao fim de um problema analisado, é esse escrito uma forma de ensaio.293

Salienta-se então que aqui se parte de um ponto – ponto esse que já foi trabalhado, sob diferentes enfoques, por outros autores, tanto dentro como fora do movimento “Di- reito e Literatura”. É a partir dessa base que as reflexões são lançadas, prosseguindo de di- álogos outros com o fito de que novos sejam iniciados também a partir desse. As premissas básicas da relação entre Direito e Literatura (suas formas de abordagens possíveis, seus métodos já categorizados...), bem como os fundamentos do processo judicial (mais especificamente o

291 Professor de Processo Penal na Universidade do Contestado (UnC); Mestre em Direito pelo Centro Univer- sitário Internacional (UNINTER). Especialista em ciências penais, em direito processual penal e em filosofia; Advogado; Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura; Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR; E-mail: [email protected] 292 COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria Literária. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 42 293 “o ensaio é um gênero literário específico [...] com o sentido de uma “tentativa”, dissertação ou digressão breve, concisa, livre, em linguagem familiar, de caráter pessoal, não concludente, despretensiosa, comentário álacre e espirituoso acerca de homens, fatos e coisas. É o mais flexível e elástico dos gêneros, permitindo grande liberdade de estilo e método”. (COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria Literária. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 102) 145 processo penal), por exemplo, são tratados como se já de conhecimento fossem do leitor – noções básicas dos temas aqui tratados são condições para o estabelecimento de um diálogo mais aperfeiçoado e uma compreensão mais precisa do que está a se falar. Especifica-se essa questão tanto para o fim de se evitar incompreensões, como também para destacar que a finalidade é justamente a de promover um diálogo que permita um ir além, por mais que minimamente, das discussões já existentes sobre a temática.

Narrativa, decisão judicial, interpretação, fundamentos do processo (penal) e a busca e o estabelecimento do conhecimento que será obtido e dado como certo para com rela- ção ao caso penal (e o seu acertamento) são algumas das questões que permeiam a presente abordagem. Resumindo a proposta de diálogo na forma de uma pergunta: de que modo as narrativas influenciam o julgador na valoração sobre os fatos, sobre as provas e, consequen- temente, na decisão judicial no processo penal? Centelhas sobre essa indagação é o que se busca lançar com o presente texto.

COMO SE DÃO AS NARRATIVAS NO PROCESSO

No âmbito do Direito, costuma se falar em ‘subsunção do fato à norma’ quando do processo de interpretação de um determinado fato sob a égide de uma norma jurídica, a fim de se fazer valer o direito posto, aplicando-se a regra vigente quando da incidência de um dado fato. A ideia é a de que a coisa funcione como uma espécie de silogismo: tem-se uma premissa menor que seria incluída numa premissa maior, interligando-as a fim de que ocorra o fenômeno jurídico de aplicação da norma. Se determinado fato ocorreu, em ha- vendo uma norma proibindo a prática desse fato, aplica-se a penalidade prevista na norma contra aquele que praticou a conduta proibida.

Por mais que se tenham vozes propagando que o fenômeno de aplicação da norma jurídica pode ser assim explicado, entende-se que esse tipo de assertiva, além de ultrapas- sada – como já se disse alhures294 -, não mais tem cabimento ao se levar em conta toda a dinâmica que reside no âmbito do Direito. Nesse sentido, Paulo Ferrareze Filho, em tom crítico com relação a hipótese de subsunção do fato à norma, evidencia que o que se tem no processo trabalha com o pressuposto narrativo na decisão judicial:

deixa de ser cabível a hipótese de subsunção de um fato à norma jurídica correspondente, pois os fatos, em si, por narrados, são natu- ralmente controvertidos, multivertidos. A associação será necessaria- mente entre a conclusão narrativa e de um suposto fato e a prescrição normativa mais adequada. Ou seja, não há consenso nem sobre o fato, nem sobre a norma que deve ser aplicada. Essa complexa rela- ção, muitas vezes reduzida a uma tonta simplicidade como a subsun-

294 SILAS FILHO, Paulo. O Direito pela Literatura: algumas abordagens. Florianópolis: Empório do Di- reito, 2017. p. 21-23

146 ção, é que vai justificar omissões, ênfases, sintetizações interessadas, depurações bem ou mal feitas, esquecimentos nas decisões judiciais.295 A apontada complexa relação acaba sendo ignorada mesmo quando um outro tipo de complexidade é observada. Diz-se aqui no processo em curso, mais especificamente aquele que lida com o caso penal. A dificuldade em se estabelecer um ponto de encontro entre as possíveis diferentes versões sobre um mesmo fato é uma das grandes questões enfrentadas pelo julgador. Diferentes pessoas que ocupam diferentes posições no cenário processual (acusado, vítima, testemunhas, informantes...) relatando os fatos em discussão por suas próprias perspectivas. O resultado é que se têm variadas narrativas sobre um mesmo fato, cujas versões muitas vezes são colidentes. Tome-se o exemplo de um caso em que o acusado nega a autoria do crime, alegando que estava em local diverso do ocorrido, enquanto uma testemunha aduz que viu, com os próprios olhos, esse mesmo acusado atirar na vítima que agonizou até desfalecer no chão.

Definir “descobrindo” o que aconteceu é o grande mote do julgador do caso penal, que deve estabelecer a narrativa-definitiva na decisão judicial. Com base em tudo aquilo que é trazido ao processo - as narrativas conflitantes -, a interpretação mais escorreita sobre os fatos é aquela que deverá constar na sentença. O processo assim busca algo, pois visa estabelecer uma coisa que seja um fim – coisa essa sendo o conhecimento adquirido por aquilo tudo que se produz no processo. As regras jurídicas determinam a operacionalidade formal com a qual essa busca se desenvolve, a fim de que a norma jurídica possa ser aplicada ao caso – sendo condição de possibilidade, portanto, para que a lei material produza seus efeitos. Isso porque “o direito opera com a norma e busca a verdade, seja lá o que essa “verdade” queira significar. Mas assim como a literatura lida com a ambiguidade da linguagem, o direito não escapa disso”296.

Por mais que se possa (como se faz) problematizar essa ideia de um mesmo texto acar- retando várias normas, a discussão que ora se estabelece se dá num momento anterior ao estabelecimento do texto – não o texto legal, da norma jurídica, mas o texto que constitui o relato, a narrativa, que conta o fato dentro do processo – o que é analisando enquanto prova (ou indício) no âmbito processual.

Nesse sentido, conforme defende José Calvo González, o Direito pode ser apontado como sendo “o relato cuja narração conta a respeito de um mundo possível, de uma existência “pa- ralela””297. Com isso, o autor aduz não haver nada extraficcional no Direito, uma vez que a ficção em que se situa o Direito dá conta de um mundo possível, pois, ao contrário disso, seria uma mera ilusão. A ficção, no sentido utilizado, se dá pela etimologia da palavra, ou

295 FERRAREZE FILHO, Paulo. Decisão Judicial no Brasil: narratividade, normatividade e subjetivi- dade. Florianópolis: EMais, 2018. p. 28-29 296 STRECK, Lenio Luiz. Porque precisamos de grandes narrativas no e do direito. In: NOGUEIRA, Bernardo G. B.; SILVA, Ramon Mapa da (Orgs.). Direito e Literatura: por que devemos escrever narrativas? Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013. p. 62 297 GONZÁLEZ, José Calvo. Nada no direito é extraficional (escritura, ficcionalidade e relato como ars iurium). In: TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete (Editores). Por Dentro do Lei: direito, narrativa e ficção. 1ª Ed. Florianópolis: Tirant Lo Blach, 2018. p. 29 147 seja, ficção enquanto a ideia que leva ao “fictor, ao escultor, ao que esculpe, ao que constrói, artefato, artifício, dispositivo, e isso [...] que é o Direito”298.

O Direito constrói, portanto, sua própria realidade. É ficcional no sentido de que es- tabelece “verdades” a respeito dos fatos, mesmo quando não condizentes (incertos) ou ainda quando não se tem certeza da existência desses – como é o caso, por exemplo, da morte pre- sumida que o Código Civil prevê. Assim, o que faz uma sentença penal é estabelecer uma espécie de “verdade” sobre os fatos que ali são trazidos através das narrativas que os relatam.

Os fatos estão no passado. O conhecimento buscado pelo processo penal visa esta- belecer uma maior aproximação daquilo que se foi, que se perdeu, que passou. A apro- ximação do passado se dá pela narrativa que se enuncia no processo – eis onde reside o conhecimento a ser obtido via processo. É esse dito que estabelecerá em definitivo o que se deu de maneira mais escorreita possível. Sobre esse interessante fenômeno, José Calvo González tece a seguinte análise:

Essa decisão sobre o passado, que influi no presente, quando ele a está formulando, e também no futuro, porque, uma vez que se produz [...] a coisa julgada, apaga-se a luz. O juiz é o último a falar e apaga a luz; e a coisa julgada, uma vez que precluem os prazos, pertinen- tes a cada sistema jurídico correspondente, existente para interpor recursos se torna não só em coisa julgada, torna-se algo [...] em algo “maravilhoso”, se torna “verdade””.299 A questão, portanto, diz respeito ao modo com o qual o julgador estabelece sua in- terpretação sobre o caso penal, a fim de que se dê por convencido de que a compreensão obtida é a que mais se adequa ao ocorrido – se o caminho trilhado, através dos elementos probatórios produzidos no processo, resulta na melhor comparação entre o que se passou (os fatos) o que será aplicado a partir da decisão (eventual reprimenda prevista na norma jurídica).

É aqui que entra a importância da narrativa para o processo. Quem conta os fatos são as partes, que também constroem os seus relatos a partir e com base naquilo que os envolvidos nos fatos, direta ou indiretamente, trazem ao conhecimento do processo. A ví- tima presta seu depoimento na delegacia, que por vezes é “traduzido” pelo escrivão para o boletim de ocorrência que formará o inquérito policial. Demais testemunhas também assim fazem, o que inclui as informações prestadas pelos policiais que “atenderam a ocorrência”. O acusado, então suspeito, investigado ou indiciado, também procede de igual modo. Todos relatos esses a partir de envolvidos de alguma forma nos fatos que serão discutidos

298 GONZÁLEZ, José Calvo. Nada no direito é extraficional (escritura, ficcionalidade e relato como ars iurium). In: TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete (Editores). Por Dentro do Lei: direito, narrativa e ficção. 1ª Ed. Florianópolis: Tirant Lo Blach, 2018. p. 61 299 GONZÁLEZ, José Calvo. Nada no direito é extraficional (escritura, ficcionalidade e relato como ars iurium). In: TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete (Editores). Por Dentro do Lei: direito, narrativa e ficção. 1ª Ed. Florianópolis: Tirant Lo Blach, 2018. p. 59-60

148 via processo. Seria razoável sustentar que todas as narrativas ali presentes representam a realidade sobre o ocorrido?

Não obstante as eventuais interferências, interpretações próprias, digressões, manifes- tações providas de interesses (confessados ou não), perspectivas diversas e demais fatores que repercutem na reconstrução dos fatos pela memória que é externalizada pela narrativa das partes envolvidas no ocorrido que se busca dirimir pelo processo, uma nova interpretação é realizada por aqueles que conduzem o procedimento: delegados, promotores e advogados, em suas próprias disputas que constituem uma espécie de jogo de interesses, estabelecem as suas versões (relatórios, denúncias e defesas) a partir daquilo que até então se tem levantado no caderno processual – o que pode ensejar muitas vezes em ressignificações sobre os fatos. Tem-se aí uma nova camada interpretativa – sobreposta à diversas outras. Narrativas so- b(re) narrativas. Qual é a mais condizente com a realidade fática? Em qual se pode confiar?

Nessa ótica, é possível dizer que “a realidade importa para a narrativa jurídica tanto quanto importa para as narrativas literárias ancoradas na realidade: não existe exigência de verdade”300, ou seja, por mais que digam que o processo buscaria a tal da “verdade”, o fato é que as narrati- vas que o constituem são ficcionais, de modo que não é necessário que sejam “verdadeiros” (dada a impossibilidade de assim serem), devendo ser ao menos verossimilhantes.

A verossimilhança é buscada então nos relatos que constituem o elementos pro- batórios presentes no processo. Não há, porém, objetividade presente na análise desses elementos. O julgador, ao se deparar com as provas (que são descritas a partir das narrativas das partes – quando não constituem a própria prova), tece sua análise a partir de sua própria es- trutura psíquica. A interpretação não é única, podendo variar tanto a partir da forma com a qual os elementos são apresentados (testemunha direta ou indireta), quanto ao considerar os mecanismos operantes presentes na figura daquele que realiza a análise desses (qual possui maior relevância – a versão do agente da lei ou a do acusado que possui extensa ficha criminal?). É em razão disso que se diz que “o mito da leitura objetiva da prova, dos significantes probatórios, cede em face do reconhecimento da singularidade e de que cada leitura será única, envolvida por um processo de manipulação significante típico dos processos judiciais entre partes”301, de modo que é diante disso que se pode afirmar que “estando o julgador convencido da culpa/inocência, tende a operar selecionando o que convém, muitas vezes sem sequer dar-se conta”302.

O que se observa é que, no processo, há uma série de filtros sobrepostos que cons- tituem as várias camadas interpretativas sobre os fatos até que se chegue ao momento do

300 FERREIRA JR., Ednaldo Silva. Semelhanças entre a ficção jurídica e a ficção literária: os processos judiciais enquanto narrativas ancoradas na realidade. ANAMORPHOSIS - Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 349-370, jan. 2017. ISSN 2446-8088. Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2018. p. 362 301 ROSA, Alexandre Morais da. O Estrangeiro, a Exceção e o Direito. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Direito e Psicanálise: interseções a partir de “O Estrageiro” de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 64 302 ROSA, Alexandre Morais da. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. 2ª Ed. Floria- nópolis: Empório Modara, 2017. p. 17 149 estabelecimento da narrativa final: os fatos são interpretados e relatados vítimas, acusados, testemunhas e policiais, cujas narrativas desses é sintetizada em novas narrativas, essas que são realizadas pelas partes que compõem o jogo processual, a saber, delegados, promotores e advogados – os quais fornecem as narrativas conflitivas que serão “enfrentadas” pelo julgador no processo de decisão. Isso porque “o processo tem por finalidade, entre outras – mas principalmente – o acertamento de um caso penal após a reconstituição de um fato pretérito, o crime, mormente através da instrução probatória”303. Vale pontuar que o julgador, quando da estru- turação da narrativa-final (decisão judicial), deverá estabelecer o relato definitivo a partir de todas as diversas e variadas narrativas presentes no processo: aquelas que se situam nos diversos níveis das camadas interpretativas que constituem o processo.

O processo penal, ao considerar sua natureza jurídica, está muito mais para a noção goldschmidtiana de situação jurídica do que a leitura büllowniana de processo como relação jurídica304, uma vez que a epistemologia da incerteza é a que rege o processo tomando como base os princípios constitucionais do devido processo legal e da presunção de inocência305, de modo que categorias de chances, perspectivas e expectativas devem ser assumidas en- quanto riscos inerentes do processo, caminhando assim “no sentido de fortalecimento das regras do jogo”306. O processo, portanto, é dinâmico, e não estático – a narrativa de uma mesma parte pode sofrer mudanças no decorrer do jogo processual.

Numa outra perspectiva, mas dentro dessa mesma ideia geral de se analisar o processo pelo modo como ele realmente funciona (o processo como ele é, parafraseando Nelson Ro- drigues), tem-se a ótica da Teoria dos Jogos tal como trabalhada por Alexandre Morais da Rosa, o qual aduz que “um jogo processual é um sistema artificial, estabelecido pelo Estado, via regras processuais penais, que envolve a comprovação (ou não) de uma conduta imputada a partir de re- gras de Direito Penal, capaz de apontar um vitorioso por parte do Estado Juiz”307. O funcionamen- to prático do processo, portanto, é o que deve ser levado em conta por todos os jogadores – inclusive pelo próprio julgador. Uma testemunha pode surpreender ao relatar algo que não havia comunicado num primeiro momento, assim como uma nova prova pode surgir no meio do jogo processual – a narrativa muda! Assim, também se adotando essa perspec- tiva para com relação ao processo, tem-se que “no jogo processual a incerteza preside”308.

303 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os Sistemas Processuais Penais. Curi- tiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018. p. 262-263 304 Pois “não se pode supor o direito como como existente (enfoque material), mas sim comprovar se o direito existe ou não no fim do processo. Justamente por isso é que se afirma que o processo é incerto, inseguro” (LOPES JR., Aury. Funda- mentos do Processo Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 108). 305 “somente o processo que se caracteriza ab initio pela incerteza e que reclama a produção da certeza como meta [...] estará de acordo com o ideal preconizado pela categoria jurídica <>” (PRADO, Gerado. Prova Pe- nal e Sistema de Controles Epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1ª Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 17). 306 LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 133 307 ROSA, Alexandre Morais da. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. 2ª Ed. Floria- nópolis: Empório Modara, 2017. p. 162 308 ROSA, Alexandre Morais da. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. 2ª Ed. Floria- nópolis: Empório Modara, 2017. p. 54 150 Em razão das questões que aqui se levanta, destaca-se o papel fundamental que a narrativa sobre os fatos, e não os fatos em si (pois são levados ao conhecimento através da... nar- rativa!), constituem para o processo penal. Assim:

a narrativa retrospectiva, explorada pela argumentação jurídica, pode gerar efeitos de linearidade e antecipação evidente de resultados que, se invertida a ordem, não eram tão claros assim. [...] O modo como o argumento será construído fará a diferença no mapa cognitivo do processo, especialmente quando se acolhe o mecanismo da dissonân- cia cognitiva.309 Dito de outro modo: saber contar histórias é fundamental!

Na perspectiva da problemática aqui enfrentada, “verifica-se como estórias são problemá- ticas em julgamentos. Fatos e versões fundem-se na narrativa de quem afirma e se diluem na fala de quem contesta”310. Entram então em campo a boa oratória, a didática, a retórica, a boa escrita e tudo mais aquilo que constituir elemento que influenciará no processo de convencimen- to do julgador. Claro que a narrativa não deve estar desconectada da realidade que visa explanar. Negar que uma morte tenha ocorrido quando se tem o corpo, a arma do crime, testemunhas diretas em sintonia e os laudos técnicos atestando o que aconteceu, constitui um tipo de narrativa que será descartada de plano pelo descrédito recebido. Porém, vale ressaltar que há casos em que narrativas são aceitas e valoradas positivamente mediante o acolhimento dessas mesmo quando desamparadas de qualquer fundamento de encontro com a realidade, como quando se “adivinha” que um acusado praticará novos crimes no futuro, razão pela qual deve permanecer preso.

Necessário também destacar a importância e relevo que deve receber a forma com a qual a narrativa é recebida no processo ao considerar a pessoa do enunciador – talvez justamente aqui resida o ponto de maior destaque que merece reflexão. Existe “um fator que mostra o quanto a interação é determinante”311 no jogo processual. O fato é que a posição ocupada por quem fornece uma das várias narrativas para o processo pode influenciar para mais ou para menos a tomada de decisão daquele que estabelecerá a narrativa final312. A testemunha tem mais crédito que o informante. Mas e quando se tem duas testemunhas, devidamente compromissadas, narrando coisas dissonantes umas das outras – qual o crité-

309 ROSA, Alexandre Morais da. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. 2ª Ed. Floria- nópolis: Empório Modara, 2017. p. 17 310 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito & Literatura: ensaio de síntese teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p. 83 311 WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi; ROSA, Alexandre Morais da. Vieses da Justiça: como as heurís- ticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: EModara, 2018. p. 78 312 “quem nunca detestou um enunciado verdadeiro porque o enunciador é um desgosto em pessoa? Ou quem nunca aceitou uma boa mentira porque o enunciador é uma pessoa cortês. Ou seja: mais importa é o que fazemos dos enunciados, dos significantes que condicionam nosso agir no mundo” (WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi; ROSA, Alexandre Morais da. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: EModara, 2018. p. 77-78)

151 rio de valoração a ser adotado? Um funcionário público merece mais crédito do que uma testemunha presencial que não possui meios de comprovar “emprego lícito”? O conflito direto de narrativas, mediante o uso da acareação, é instrumento suficiente para se solapar as incongruências dos relatos?

As questões são tantas e para muito além de se tratar da mera e já problemática inter- pretação dos fatos. Inobstante a forma com a qual alguém analisa e compreende uma dada situação, inicia-se um outro processo quando da enunciação sobre a percepção daquilo que se teve contato de alguma forma. É aí que a narrativa ganha a cena, recebendo diversos contornos a partir da primeira fala que surge no início do processo. Afinal, no processo, mais valem os fatos ou o que se diz sobre eles? Como se observa, os fatos não estão ali, no processo, pois já foram, chegando o ocorrido ao processo somente por meio de justamente aquilo que é dito a respeito pelas partes. Eis a importância da narrativa!

CONCLUSÃO

A conclusão aqui, na realidade, pouco (ou nada) conclui.

A preocupação nesse tipo de abordagem que ora se faz, que permeia os campos do Direito e da Literatura, busca (pois deve) sempre levar em conta o compromisso exigido com relação a seriedade da intersecção realizada, prezando-se por uma aporte teórico e metodológico suficiente para que de fato se tenha a produção de conhecimento intentada, uma vez que a contribuição da aproximação do Direito com a Literatura “requer que sejam seriamente aprofundadas questões teóricas e metodológicas que norteiem um campo de estudos que se postula interdisciplinar”313. Desta forma, “não se pode perder de vista que o viés crítico e subversivo que marca, de um modo geral, as pesquisas em Direito e Literatura – em contraposição à dogmática jurídica – não exclui a carga de cientificidade que caracteriza a produção acadêmica”314.

A cautela com relação a essa forma de aproximação entre campos distintos é inerente de uma postura de desconfiança de muitos estudiosos, tanto no Direito como na Literatura - isso ao considerar que em vários pontos essas duas áreas não encontram qualquer ligação uniforme. Germano Schwartz, ao indagar sobre o que existiria no texto literário e no texto legal que os diferenciariam, responde que “existe a expectativa que o leitor nutre quanto a eles ou, em outras palavras, das Leis espera-se o comando e da Literatura, a expressão do belo”315.

313 KARAM, Henriete. O direito na contramão da literatura: a criação no paradigma contemporâneo. Revis- ta Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, v. 12, n. 3, p. 1022-1043, dez. 2017. ISSN 1981-3694. Disponível em: . Aceso em 24/11/2018. p. 1023 314 TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do “direito e literatura” no Brasil: sur- gimento, evolução e expansão. ANAMORPHOSIS - Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 225-257, jun. 2017. ISSN 2446-8088. Disponível em: . p. 247-248 315 SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006. p. 63 152 Na literatura, por exemplo, tem-se “a linguagem ao mesmo tempo como ponto de partida e como ponto de chegada; ela lhe fornece tanto sua configuração abstrata quanto sua matéria perceptível, é ao mesmo tempo mediadora e mediatizada”316. Assim, a literatura se sustenta a partir da e com base na própria linguagem que a fundaciona. Já no Direito, há um liame necessário com algo além de sua própria estrutura (ou ainda esse ‘além de’ seria condição de possibilidade da própria estrutura ‘Direito’), uma vez que “interage” com a realidade317 que busca abar- car. Não deixa de ser o Direito, de todo modo, conforme já mencionado no início desse ensaio, uma forma de ficção. Recorrendo novamente ao que ensina José Calvo González, quer aqui se dizer que:

Todo el Derecho se instituye a partir de la inteligência creacional subya- cente a esse fundamental postulado: lo que debe ser, será. Esta con- vicción, esta creencia, o es una secreta e inconfesable fantasía de la ideología racional, o no puede ser sino, propiamente, una ficción. Y si el Derecho, organizado a partir de ese dispositivo de invención ficcional, no es una utopía o una quimera, habrá que admitir que esa inteligencia creacional alimenta en él uma esperanza; la de su triunfo: el Triunfo del Derecho – cuya fe proclamó Jhering – y, mejor, de la fe que nunca hoy es necesario anunciar: el Triunfo de los Derechos.318 Seja como for, a aposta aqui feita é pela possibilidade dessa forma de abordagem, ansiando que tenha sido alcançada minimamente a contento. Há vários encontros possí- veis – e a narrativa é uma dessas intersecções assim tidas como dentro da possibilidade. Daí a instigante constatação que faz Germano Schwartz: “O mundo das Leis compõe-se antes de palavras que de Leis, às leis precedem os verbos, as construções sintáticas, a morfologia e a semântica que permitirá entender o que se pretende comunicar. Às leis precede o texto”319.

Diante do que foi exposto no presente ensaio, estabelecem-se então algumas premis- sas conclusivas, com o fito de que sejam em outro(s) momento(s) melhor problematizadas (aprofundadas, debatidas, criticadas....).

Num primeiro momento, deve se levar em conta que a narrativa influencia no jogo processual. Mas isso não basta: há de se considerar que a questão se aprofunda em pelo menos três níveis:

316 TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 54 317 Diz-se aqui “realidade” enquanto “realidade social” – tal como explica Carlos Cárcova: “Señalamos que la “realidad” está socialmente construída, sobre todo la que llamamos “realidad social”, que es siempre una realidade interpre- tada. La realidad social es el resultado de la interacción humana precariamente estabilizada, cuyos sentidos se establecen en el intercambio comunicativo entre los individuos” (CÁRCOVA, Carlos María. Derecho y Narración. In: TRIN- DADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; COPETTI NETO, Alfredo (Orgs.). Direito & Literatura: ensaios críticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p. 12). 318 CONGÁLEZ, José Calvo. Prólogo – La cultura literária del derecho: um dispositivo smartlaw. In: SILAS FILHO, Paulo (Org.). Direito & Literatura: breves diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018. p. 16 319 SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006. p. 63

153 (1) no da percepção de que não há subsunção do fato à norma no processo, pois a inter- pretação do fato em análise dependerá sempre da forma com a qual se constrói a narrativa sobre esse;

(2) no da constatação de que mesmo quando considerado que a narrativa delimita interpretações possíveis sobre o fato, há sempre presente um choque de relatos, pois diver- gem mesmo quando apontam num mesmo sentido;

(3) no da compreensão de que o narrador-final, a saber, aquele que estabelecerá a narrativa prevalecente (o julgador), pode ser (e é) influenciado positivamente ou negativa- mente por essa ou aquela narrativa que aparece no jogo processual a depender da posição ou condição que ocupe o enunciador do relato.

Num momento posterior, estando ciente dessa dinâmica que ocorre no campo pro- cessual, deve se levar em conta a forma com a qual os fatos são trazidos para e traduzidos no processo, de modo que “é necessário indagar-se sobre a maneira como o um-juiz re- constrói a experiência probatória, como alinha os significantes em cadeia, como se verdade fosse verdade”320. É que ao se perceber o aspecto fundamental que a narrativa constitui para e no processo, somado a todos os fatores outros que rompem com a ideia de um processo cujo procedimento de desenvolve de modo uniforme e quase estático, uma maior com- preensão acerca da dinâmica do jogo processual se estabelece, permitindo-se um melhor aproveitamento para todos os envolvidos no jogo processual.

Diante disso, tem-se que “se o Direito é linguagem [...], então contra fatos só há argumen- tos”321. É por isso que aqui se diz e se defende que é como dizem, e não foi, que se julga!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CÁRCOVA, Carlos María. Derecho y Narración. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Maga- lhães; COPETTI NETO, Alfredo (Orgs.). Direito & Literatura: ensaios críticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria Literária. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2015. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os Sistemas Processuais Penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018. FERRAREZE FILHO, Paulo. Decisão Judicial no Brasil: narratividade, normatividade e subjetividade. Florianópolis: EMais, 2018. FERREIRA JR., Ednaldo Silva. Semelhanças entre a ficção jurídica e a ficção literária: os processos judiciais enquanto narrativas ancoradas na realidade. ANAMORPHOSIS - Revista Internacional de Direito e Li- teratura, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 349-370, jan. 2017. ISSN 2446-8088. Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2018.

320 ROSA, Alexandre Morais da. O Estrangeiro, a Exceção e o Direito. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Direito e Psicanálise: interseções a partir de “O Estrageiro” de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 66 321 TRINDADE, André Karam. Se direito é linguagem, então contra fatos só há argumentos. Disponí- vel em: < https://www.conjur.com.br/2017-jul-15/diario-classe-direito-linguagem-entao-fatos-argumentos >. ISSN: 1809-2829. Acesso em: 25/09/2018 154 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito & Literatura: ensaio de síntese teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. GONGÁLEZ, José Calvo. Prólogo – La cultura literária del derecho: um dispositivo smartlaw. In: SILAS FI- LHO, Paulo (Org.). Direito & Literatura: breves diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018. GONZÁLEZ, José Calvo. Nada no direito é extraficional (escritura, ficcionalidade e relato como ars iurium). In: TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete (Editores). Por Dentro do Lei: direito, narrativa e ficção. 1ª Ed. Florianópolis: Tirant Lo Blach, 2018. KARAM, Henriete. O direito na contramão da literatura: a criação no paradigma contemporâneo. Revista Ele- trônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, v. 12, n. 3, p. 1022-1043, dez. 2017. ISSN 1981- 3694. Disponível em: . Aceso em: 24 nov. 2018. LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015. SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006. SILAS FILHO, Paulo. O Direito pela Literatura: algumas abordagens. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. STRECK, Lenio Luiz. Porque precisamos de grandes narrativas no e do direito. In: NOGUEIRA, Bernardo G. B.; SILVA, Ramon Mapa da (Orgs.). Direito e Literatura: por que devemos escrever narrativas? Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013. PRADO, Gerado. Prova Penal e Sistema de Controles Epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1ª Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014. ROSA, Alexandre Morais da. O Estrangeiro, a Exceção e o Direito. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Mi- randa (Coord.). Direito e Psicanálise: interseções a partir de “O Estrageiro” de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. ROSA, Alexandre Morais da. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. 2ª Ed. Florianó- polis: Empório Modara, 2017. TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2013. TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do “direito e literatura” no Brasil: surgi- mento, evolução e expansão. ANAMORPHOSIS - Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 225-257, jun. 2017. ISSN 2446-8088. Disponível em: . Acesso em: 09 abr. 2018. TRINDADE, André Karam. Se direito é linguagem, então contra fatos só há argumentos. Disponí- vel em: < https://www.conjur.com.br/2017-jul-15/diario-classe-direito-linguagem-entao-fatos-argumentos >. ISSN: 1809-2829. Acesso em: 25/09/2018 WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi; ROSA, Alexandre Morais da. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: EModara, 2018.

155 CAPÍTULO 10 A ESPERANÇA DE UM DIREITO HUMANIZADO

André Peixoto de Souza322 Carla Juliana Tortato323

O que somos? Seremos humanos conforme a ciência explica? Deuses? Ou, uns são Deuses e outros simples mortais no nosso fantástico planeta Terra? De onde vem o nosso Processo Penal? E ainda, para onde ele está caminhando?

Muitos ficarão confusos com esses questionamentos e nada mais. O chão firme e se- guro da lei pode estremecer em razão da “verdade” a ser encarada, francamente.

O que importa, além de não estagnar na inércia, é aprender a esperar.

Neste sentido, a partir da leitura da presente obra a qual está equidistante da inércia, pode se perceber o despertar de sentimentos como o de esperança, amor e luta por um Processo Penal humanizado que se dá com o entrelaçamento entre Literatura e o Direito.

Uma leitura espinhosa – pelas suas verdades nuas e cruas - e ao mesmo tempo ins- tigadora conexão é capaz de provocar as mais diversas reflexões e indagações profundas: talvez aquelas em que o mundo e o Direito, coincidentemente ou não, andam de certa forma carentes.

A Literatura, mesmo nas suas diferenças com o Direito, criou um especial e necessário rapport com o universo do jurídico com o fim de humanizar através de cada história ou estória, o mesmo. Trata-se de um potencial humanizador em crescimento, em expansão, em que o leitor pode compreender o seu próprio mundo interior e o do próximo, bem como o seu próprio sistema jurídico, no qual ele sobrevive em distopia com mensagens diárias pelos meios televisivos dizendo: estamos fazendo justiça porque estamos prendendo e condenando! Ufa, a justiça tarda, mas não falha! Bandido bom, é bandido morto...

O saudoso poeta Miguel Torga ajuda-nos a expressar uma certa inquietação referente a como se tem julgado por aí que pode calhar tanto nas esferas jurídicas, como fora delas:

322 Doutor e Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Doutor em Filosofia, História e Educação pela UNI- CAMP. Professor pesquisador do Mestrado em Direito da UNINTER. Professor de Economia Política e Psicologia Jurídica nas Faculdades de Direito da UFPR, UNINTER e UTP. Professor de Filosofia e História do Direito na Escola da Magistratura do Paraná. Advogado. 323 Mestranda em Direito, na qualidade de bolsista 100%. Linha de pesquisa: Teoria e História da Jurisdição, no Centro Universitário Internacional (UNINTER). Orientador: Dr. André Peixoto de Souza. Especialista em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira Constitucional -ABDCONST. Advogada.

156 É o Diabo, quando os anos começam a dobra-nos a crista, e a expe- riência acumulada que eles implicam não consentem ilusões. Além doutros desencantos sensacionais e tristes, a idade mete-nos pelos olhos dentro esta verdade trágica: que nos cansamos de tudo, ou de correr atrás das coisas, ou da inercia a que a posse delas nos condena. As primeiras vezes que li poemas meus a um amigo, vinham-lhe lágrimas aos olhos. Agora, apareço-lhe com outros que não julgo inferiores, dá-me uma lacônica aprovação, e passa adiante. Fatigou-se da minha arte, como está fatigado da paisagem que outrora via com alvoroço da janela, e hoje tolera por hábito. A constante força renovadora que bafeja a natureza, não abrange, infelizmente, o reino a que pertencemos. Ou abrange apenas alguns que, quanto mais caminham, mais curiosidade e gosto encontram na caminhada. O manto alvinitente de que se cobre um cerdeira carco- mida na primavera é igualzinho ao da sua primeira comunhão. Mas no homem a própria brancura da camisa se lhe vai transformando dia-a-dia em mortalha. A consistência do fim – e só ele a tem – ane- mia progressiva as pétalas da esperança. Cume dum monte que era preciso atingir numa frescura de espírito capaz de abranger olimpicamente o redondo panorama da vida total, e onde quase sempre se chega já sem forças, de tanto lutar com a ín- greme subida, a velhice é uma espécie de miradouro do desencanto. Quem dali olho tem cataratas nos olhos e na alma. E, em vez da clari- dade solar da luz coletiva, vê somente a precária negrura de uma exis- tência pessoal e mesquinha, com todos os seus valores degradados. (Miguel Torga em Coimbra, 20 de março de 1958324) Tantos são os sentimentos de uma miscigenação da mais pura esperança, uma vez que se pode perceber o quanto estão a lutar e acreditar num mundo melhor, ou melhor dizen- do: num Processo Penal “mais perfeito”. O descaso e a incredulidade existentes na ceara penal, a qual para muitos já se tornou hábito, para nós é objeto de construção. Felizmente!

O ato de esperar não resigna325, pois ele é apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso, e é nesse sentido que se pode estabelecer a conexão entre o Direito e a Literatura, uma vez que na Literatura não se permite se conformar com o precário que aí está: um mundo carente de sonhos diurnos326.

Os sonhos diurnos327 são aqueles que uma vez almejados, equidistante de meros en- tusiasmos, são batalhados por aquele que o sonhou, assim tornando-o uma realidade bem querida, e é nisso que a esperança preenche nossos corações, pois a falta dela é absoluta- 324 TORGA, Miguel. Diário de Miguel Torga VIII. Coimbra, 1958. Pg.100-101. 325 BLOCH, Ernest. O Princípio da Esperança. Volume I. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. pg.14. 326 Idem. 327 Idem. 157 mente insuportável para as necessidades humanas, ou seja, ela nos move conscientemente, nos indica o caminho, nos desconforta e nos direciona na construção de um mundo me- lhor, e aqui nesta obra, para um Direito e Processo Penal humanizador.

O papel das emoções no Direito e Processo Penal se faz urgentemente ser rememora- do, negritado e sublinhado por todos os meios de comunicação possíveis. Afinal de contas não se lida com “papeis” e sim com gente.

Gente que quer ser gente Gente que sempre é gente Gente que sente gente como a gente. São seres humanos dotados de competências e falibilidades, como todos nós.

A Literatura com sua adocicada forma de transmitir e transcender nas histórias nos aproxima desta humanização com cheiros, sons, e sabores além da letra fria da lei.

Neste sentido, e num misto de sensibilidades:

Um sonho diurno Além do processo penal, moral Capta o novo, mediato e em movimento alburno O fim de um sistema jurídico tumoral Diz-que-me-diz Que um super-herói deve superar suas falhas E como um facão a ceifar a vida de uma raiz Sem mortalha, que seja uma madura batalha Na conexão entre Direito e Literatura Estigmas e o humano preconceito Superam a tortura cultural enraizada, in natura Oferecendo novos tons Novos rumos Novos sonhos diurnos (Carla Tortato. Céu azul, inverno em Curitiba, 2019) Esse pode ser um começo, meio e sem fim de uma nova visão processual: captar o novo como algo mediado pelo existente em movimento, ainda que, para ser trazido a luz, exija ao extremo a vontade que é dirigida a ela.328 E, só depois disso é que poderemos

328 Idem. 158 fechar aos olhos destes tons abaixo da mãe terra. Após mais um sonho diurno, felizmente concretizado, porque precisamos falar, precisamos sentir, precisamos nos doar, além das telas de auto resoluções existentes por aí.

Eu posso lá morrer, terra florida! Desde esse grito de luz, ninguém mais acreditou nesta hora de ne- grura. E, afinal, ei-la diante de nós, apesar do poema e da primavera que rodeia de esperança temporã a tua ilha entristecida. Pagaste, e nós devemos ainda. É com esta amarga consciência de mortais que teremos de amparar a desilusão e continuar a caminhada. Até qualquer dia, Poeta! (Miguel Torga em Coimbra, 20 de março de 1958329) Que sigamos nessa absoluta exploração dos nossos sentidos, pois, certamente, vere- mos o mundo, especialmente, o jurídico, repleto de cores, cheiros, sons, vozes e sensações encobertas pela letra fria da lei. Que desta forma – humanizada - possamos ser capazes de julgar o outro como humanos e não como Deuses, ou pior, com a audácia tirânica de querer fazer a justiça divina, e não a justiça jurídica dos homens.

Que os sensíveis não sejam uma espécie em extinção

Até qualquer dia, Poeta!

329 TORGA, Miguel. Diário de Miguel Torga VIII. Coimbra, 1958. Pg.100. 159 160 POSFÁCIO

O Direito está permeado por ficções. Isso não deveria ser nenhuma novidade. En- tretanto, grande parcela dos juristas insiste em associá-lo exclusivamente ao plano da rea- lidade. Pois bem, para ilustrar minha premissa, faço um pequeno decálogo de conceitos e proposições que se consolidaram no imaginário jurídico: (1) a busca da verdade real; (2) a vontade do legislador; (3) o livre convencimento do juiz; (4) os fatos não contestados são confessados; (5) in dubio pro societate; (6) quem não assopra o bafômetro é considerado bêbado; (7) aquele que não faz exame de DNA presume-se pai; (8) álibi não provado, réu culpado; (9) o tribunal do júri é onde se faz justiça; (10) os tribunais são capazes de julgar milhares de processos num intervalo de poucos minutos.

Isso para não falar da (naufragante) República de Curitiba, com seu código de pro- cesso penal próprio e todos os super-heróis nacionais que a habitam, com poderes especiais e imunidades. Tudo ficção produzida no e pelo Direito pós-lavajato.

No campo da teoria narrativista do Direito, Calvo González afirma que nossos siste- mas jurídicos são instalações ficcionais e, por vezes, hiperficcionais: o direito é uma forma linguística ficcional de um mundo puramente textual. Ele habita nos discursos narrativos e, portanto, não está imune aos efeitos da ficcionalidade.

Todavia, o caráter ficcional do Direito não o equipara, de maneira nenhuma, à Li- teratura. O Direito produz violência. E as personagens que sofrem tal violência são de carne-e-osso. Além disso, apesar da dimensão narrativa que estrutura todo discurso e prá- tica jurídica, existe sempre uma referência ao mundo empírico. Essa é a razão pela qual a verossimilhança adquire especial relevância para a reconstrução dos fatos e a interpretação das normas.

François Ost, em entrevista, publicada em Anamorphosis – Revista Internacional de Di- reito e Literatura, falou um pouco sobre sua experiência como dramaturgo, atividade que termina por ser uma extensão natural de suas atividades acadêmicas: “com esse tipo de escrita em primeira pessoa, passo para o outro lado do espelho”. Da ciência para a ficção, literalmente falando.

O renomado jurista chama atenção para a liberdade que a dramaturgia lhe oferece em relação à prática jurídica propriamente. Essa liberdade se manifesta tanto no plano da expressão quanto do conteúdo, pois, de um lado, tem-se a potencialidade da linguagem literária, “carregada de verdadeira humanidade”, que contrasta com a linguagem cientí- fica; de outro, a possibilidade de, através de situações imaginárias, explorar paixões reais,

161 bem como de construir um discurso polifônico, que não encontra ancoragem nos textos acadêmicos.

A questão diz respeito ao locus da enunciação. Nas narrativas literárias construídas por Ost, as personagens podem expressar, livremente, as mais variadas opiniões – é aqui onde reside a potência do discurso literário –, ao contrário do que caracteriza a atuação dos juristas, sejam eles professores, advogados, promotores ou juízes, que é marcada por sua responsabilidade política.

Eis o ponto onde queria chegar: no Brasil, os “operadores do Direito”, na pior acep- ção da palavra, acreditaram que podem atuar livremente – o que, por óbvio, é bem di- ferente de independentemente –, tal qual as personagens literárias. Eles podem agir de qualquer modo, dizer qualquer coisa e decidir de qualquer forma. Não há mais limites. Se houver uma pitada de moral, melhor. O Direito sucumbiu diante da Política, como sempre advertiu Lenio Streck.

Esse alerta também se aplica ao ambiente acadêmico e se estende aos pesquisadores que atuam no campo do Direito e Literatura.

Entre os anos de 2014 e 2016, coordenei uma extensa pesquisa intitulada O estudo do Direito e Literatura no Brasil, cujos resultados foram publicados, em 2017, na Anamorphosis – Revista Internacional de Direito e Literatura, e desde então vêm repercutindo bastante na comunidade acadêmica.

Neste trabalho, que também pretendia resgatar aspectos históricos relevantes para a compreensão do desenvolvimento do Direito e Literatura entre nós, identifiquei três fases: (1) o surgimento, ainda nos anos 30 do século passado, com o reconhecimento de seus precursores; (2) a evolução impulsionada pelas tentativas de sistematização e institucionali- zação; (3) a expansão e suas fragilidades.

Uma das conclusões foi, resumidamente, a seguinte: se, por um lado, os estudos em o Direito e Literatura se ampliaram com grande velocidade, apresentando uma diversidade que se mostra compatível com as dimensões continentais do país; de outro, existe uma flagrante deficiência teórica, inclusive em pesquisas que se inscrevem no nível da pós-gra- duação.

Ou seja, em comparação às tradições estadunidense e europeia, a experiência brasi- leira revela-se inovadora e promissora, considerando sua vasta contribuição em um curto período de tempo, apesar de ainda claudicante sob uma perspectiva metodológica.

Observa-se, nesse contexto, que grande parcela da produção bibliográfica não re- sulta, propriamente, de uma atividade de investigação científica. Na verdade, poucos são os pesquisadores que, de fato, dominam, minimamente, o aparato conceitual próprio dos estudos em Direito e Literatura. Tudo indica que muitos textos ainda são desenvolvidos 162 apenas em face da paixão e do fascínio pela literatura. Por isso, não é raro encontrarmos trabalhos que utilizam obras literárias de modo meramente instrumental ou, o que é ainda pior, ornamental. Eis, o império da doxa, a prevalência do senso comum e das opiniões, em detrimento da episteme.

Por isso, reitero: “em terrae brasilis, parece que nos encontramos ainda deslumbrados com o descobrimento do Direito e Literatura. Todavia, passadas as promessas da primavera e o entusiasmo do verão, é chegada a hora de encarar os problemas teóricos e metodoló- gicos, a fim de que possamos avançar, consolidar a experiência brasileira e contribuir de maneira autêntica para o debate travado na comunidade internacional”.

Porto Alegre, junho de 2019. Prof. Dr. André Karam Trindade

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Tipografia: Gotham Bembo

Papel: Pólen soft 80 g/m² (miolo) Cartão supremo 250 g/m² (capa)

Impressão: Evangraf [agosto de 2020]