VERA HELENA SAAD ROSSI

“DIÁLOGOS POSSÍVEIS COM ”: AS ENTREVISTAS DE UMA ESCRITORA JORNALISTA

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA PUC-SP

SÃO PAULO 2006 VERA HELENA SAAD ROSSI

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profª. Drª. Olga de Sá

São Paulo 2006

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Banca Examinadora:

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AGRADECIMENTOS

À Profª Drª Olga de Sá, pelas sábias orientações e pelo carinho e dedicação.

À Profª Drª Aparecida Nunes, pelos significativos conselhos, pela ajuda e pelo desvelo com que sempre me atendeu.

À Banca Examinadora, pelos apontamentos tão proveitosos.

Aos Professores do Programa, pelos ensinamentos tão profícuos.

Ao Prof. Dr. Osvando de Moraes, pela grande ajuda no início do projeto

Aos meus pais, carinhosamente, pelo apoio e amor incondicionais.

Às minhas irmãs, Marina e Lygia, pela amizade sincera e inexaurível.

Ao Paulo André, companheiro de todas as horas, pelo amor e compreensão, mesmo nos momentos mais difíceis.

Aos amigos e familiares, pela torcida.

E, por fim, a todos que me auxiliaram, direta ou indiretamente, na pesquisa, e, de uma certa forma, contribuíram na realização deste trabalho

4 RESUMO

Este trabalho pretende analisar a linguagem erigida nas entrevistas realizadas por Clarice Lispector para as revistas Manchete e Fatos e Fotos/Gente, de modo a investigar possíveis oportunidades de ficção dentro dos textos jornalísticos, e, assim, avaliar a singularidade dessas entrevistas. Para tanto, estudamos conceitos teóricos do gênero entrevista e da linguagem jornalística. Também apontamos as principais diferenças entre o discurso jornalístico e literário antes de analisarmos efetivamente as entrevistas de Clarice Lispector. Pelo fato de o ofício como jornalista corresponder a uma faceta de Clarice Lispector pouco conhecida, traçamos a trajetória da escritora na imprensa, com base no trabalho realizado pela pesquisadora Aparecida Maria Nunes, e o percurso que a conduziu à Bloch Editores. Foram selecionadas 15 entrevistas da Revista Manchete e 16 da Fatos e Fotos/Gente . Por se tratar de trabalhos realizados para periódicos jornalísticos, há uma preocupação em contextualizar a entrevistadora e os entrevistados no tempo e no espaço de suas vozes. Pela leitura analítica dos textos, ressaltamos a linguagem especificamente clariciana, que, comumente, dialoga com a obra literária de Clarice Lispector.

Palavras-chave: LITERATURA, TEORIA LITERÁRIA, CRÍTICA LITERÁRIA,. CLARICE LISPECTOR, JORNALISMO, ENTREVISTA

5 ABSTRACT

This research purposes to analyze the language built in the Clarice Lispector interviews accomplished to Manchete e Fatos e Fotos/Gente magazines, in order to investigate possible opportunities of fiction inside the journalistic texts, and, thereby, to evaluate the singularity of this interviews. Therefor, we studied theoretical concepts about the interview genre and the journalistic language. We also pointed out the main differences between journalistic speech and literary speech before analyzing the Clarice Lispector interviews. Due to the fact that the Clarice Lispector profession as a journalist is not too much known, we trace the press trajectory of the writer, based on the Aparecida Maria Nunes research, and the course which leads Clarice to Bloch Editores. Fifteen interviews from Manchete and sixteen from Fatos e Fotos/Gente were selected. Since these texts are from magazines, there is a concerning in studying the interviewer and interviewed voices in a contextual time and space. By the analytic lecture of the interviews, we emphasized the peculiar “clarician” language, that, usually, dialogues with the Clarice Lispector literature work.

Keywords: LITERATURE, LITERATURE AND THEORY, LITERATURE CRITICISM, CLARICE LISPECTOR, JOURNALISM, INTERVIEW

6 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 9

CAPÍTULO I — CLARICE ENTREVISTADORA

1-1 A ENTREVISTA ...... 11

1-2 “SOU UMA PERGUNTA” ...... 20

1-3 CLARICE LISPECTOR DO OUTRO LADO DO GRAVADOR ...... 26

CAPÍTULO II — NA MANCHETE, DIÁLOGOS COM CLARICE LISPECTOR

2-1 ACONTECEU, VIROU MANCHETE ...... 37

2-2 CLARICE NA MANCHETE ...... 39

2-3 TEXTOS INTRODUTÓRIOS ...... 41

2-4 DIÁLOGOS POSSÍVEIS ...... 51

2-5 ARMADILHAS DO DISCURSO ...... 59

CAPÍTULO III — FATOS E FOTOS/GENTE

7 3-1 CLARICE LISPECTOR NOVAMENTE NA BLOCH EDITORES ...... 68

3-2 ANTIGOS E NOVOS ENTREVISTADOS ...... 69

3-3 REVISTA MANCHETE: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ...... 74

3-4 MOMENTOS EPIFÂNICOS ...... 83

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 89

ANEXOS ...... 91

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 97

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INTRODUÇÃO

Clarice Lispector ainda é uma pergunta? A considerar pela inesgotável fonte de signos suscitada em sua obra e vida, a resposta a tal questão se perpetua afirmativa. Apesar de representar uma das escritoras brasileiras mais estudadas, ainda há muito que se descobrir do universo clariciano. Sua carreira como jornalista, pouco conhecida, mas que, entretanto, se inicia antes do lançamento de seu primeiro livro, compactua com o mistério erigido no que concerne Clarice Lispector. Com cerca de 20 anos, enquanto cursava a Faculdade de Direito do , Clarice Lispector iniciou sua carreira jornalística como repórter da Agência Nacional. No jornal A Noite , em 1943, obteve seu primeiro registro. Inclusive, os originais de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem , foram publicados no mesmo periódico em que trabalhava, em 1944. A partir de então, sua produção jornalística é vasta. A autora elaborou colunas femininas com pseudônimos para Comício em 1952 e Correio da Manhã em 1958 e 1959; foi ghost writer da atriz manequim Ilka Soares em uma coluna feminina para o Diário da Noite em 1960 e 1961, produziu crônicas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, além de outras tantas atividades jornalísticas 1 (cf. NUNES. 1991. p 6 e7). Entre suas inúmeras publicações em jornais e revistas, é possível encontrarmos, nas 83 entrevistas realizadas para as revistas Manchete, na seção Diálogos Possíveis com Clarice Lispector (59 entrevistas compreendidas no período de maio 1968 a outubro1969) e Fatos e Fotos/Gente (24 entrevistas realizadas entre dezembro de 1976 e outubro de 1977), um material repleto de questões ontológicas peculiares a uma autora essencialmente voltada para a introspecção interior.

1 As colunas femininas produzidas por Clarice Lispector são analisadas com maior profundidade por Nunes em sua tese de Doutorado intitulada Páginas Femininas de Clarice Lispector e em seu livro recentemente publicado, Clarice Lispector Jornalista: páginas femininas & outras páginas .

9 Seus entrevistados variam desde músicos, como e Tom Jobim, poetas, como e Vinícius de Morais, escritores, como , até personalidades inusitadas como Padre Quevedo e o “primeiro figurino do país”, Teresa Souza Campos. Instigada por essa quase nova e desconhecida Clarice Lispector, cujas entrevistas obtiveram pouca atenção da crítica literária, pretendo, no presente trabalho, resgatar e investigar sua produção jornalística elaborada para as revistas Manchete e Fatos e Fotos/Gente , sobretudo a tessitura da linguagem engendrada ao longo das entrevistas, uma vez que parece antecipar questões literárias relevantes além de revelar uma escritura especificamente clariciana, malgrado seja realizada em um veículo jornalístico e direcionada para um público específico. Para tanto, no primeiro capítulo serão analisadas definições acerca da linguagem jornalística e do gênero entrevista, além da trajetória da escritora Clarice Lispector no jornalismo e na literatura que a conduzem às entrevistas para as revistas Manchete e Fatos e Fotos/Gente. No segundo capítulo, iniciado com uma breve introdução sobre a revista Manchete e sobre a Bloch Editores além da contextualização da época em que foram realizadas as entrevista, serão estudadas 15 entrevistas previamente selecionadas do Diálogos Possíveis com Clarice Lispector 2 que reúnem elementos cruciais para a ponderação da linguagem clariciana nestas entrevistas. No terceiro e último capítulo, em que também é contextualizada a época em que foram realizadas as entrevistas, os diálogos 3 serão confrontados com os realizados para a Manchete , a serem pontuadas as semelhanças e diferenças entre ambos, como também aspectos novos igualmente importantes na análise da linguagem peculiar erigida a partir das entrevistas.

2 As entrevistas a serem analisadas são: com (11/05/68); com Djanira (25/05/68); com Chico Buarque (14/09/68); com José Carlos de Oliveira (05/ 10/68); com Vinícius de Morais (12/10/68); com Roberto Burle-Marx (26/10/68); com Millôr Fernandes (02/11/68); com Marque Rebêlo (02/11/68); com Tereza Souza Campos (14/12/68); com Maria Martins (21/12/68); com Fernando Sabino (25/01/69); com Austregésilo de Ataíde (15/02/69); com Clóvis Bornay (22/02/69); com Glória Magadan (03/05/69) e com Carybé (28/06/69) 3 Foram selecionadas 16 entrevistas: Elke Maravilha (26/12/76); Mário Soares (02/01/77); Antônio Callado (30/01/77), Hélio Pelegrino (14/02/77); Carlos Sciliar (21/03/77); Abraham Akerman (28/03/77); Iberê Camargo (18/04/77); Jece Valadão (25/04/77); Padre Quevedo (02/05/77); Ferreira Gullar (16/05/77); Maria Bonomi (20/06/77);

10 CAPÍTULO I — CLARICE ENTREVISTADORA

1- 1 A ENTREVISTA

“A entrevista transforma o cidadão comum em líder, dono da palavra, professor, uma pessoa incomum..” (Fábio Altman)

Em resposta à jornalista Isa Cambará, da revista Veja , sobre a necessidade de se publicar De Corpo Inteiro 4, uma coletânea com algumas de suas entrevistas realizadas para a revista Manchete , Clarice Lispector revela:

Eu me expus nessas entrevistas e consegui assim captar a confiança de meus entrevistados a ponto de eles próprios se exporem. As entrevistas são interessantes porque revelam o inesperado das personalidades entrevistadas. Há muita conversa e não as clássicas perguntas. 5 (NUNES. 1991. p.46)

Está claro que Clarice evidencia a distinção entre as entrevistas jornalísticas e as suas, ao constatar que há muita conversa nestas e não o que ela denomina de “clássicas perguntas”. A autora chega a afirmar ainda em outra ocasião: “Gosto de pedir entrevista — sou curiosa. E detesto dar entrevistas, elas me deformam”. Sob este prisma, as “clássicas perguntas” deformam, não estabelecem a confiança entre os entrevistados e a entrevistadora, impossibilitando a revelação do inesperado das personalidades entrevistadas.

(27/06/77); Lygia Fagundes Telles (29/08/77); Vinícius de Morais (12/ 09/77); Fayga Ortrower (26/09/77) e Flora Morgan Snell (17/10/77) 4 1ª edição de 1975, editora Artenova 5 Este trecho foi extraído originalmente do artigo Uma escritora no escuro – Clarice Lispector publicado na revista Manchete, 3 mai. 1975 por Celso Arnaldo Araújo, e trata-se, na verdade, de uma resposta de Clarice.

11 Com efeito, a entrevista jornalística pré-pautada por um questionário, cujo intento se restringe à obtenção de respostas anteriormente decididas pela redação de determinado veículo, não atingirá o estágio de intimidade e confiança almejado por Clarice Lispector. Contudo, faz-se necessário avaliar outras possibilidades de entrevista, em que há a inter- relação humana, e, por conseguinte, prima-se pelo diálogo entre entrevistador e entrevistado e não pelas respostas, exclusivamente. A entrevista, segundo observa Annette Garrett (GARRETT, 1964, p. 16), “se processa entre seres humanos, os quais, sendo marcadamente individualizados, não podem ser reduzidos a uma fórmula ou padrão comum”, de tal forma, que, de acordo com ele, a entrevista envolve uma relação mais íntima e sutil entre os seres humanos do que pode parecer à primeira vista. Uma análise cerceada por conceitos previamente instituídos, sem um questionamento mais aprofundado, portanto, pode desencadear uma série de equívocos quanto à estereotipização da entrevista jornalística, fundamentada tão somente na objetividade do repórter em lograr de seu entrevistado as respostas desejadas por intermédio das “clássicas perguntas”. O grau de complexidade inerente a uma entrevista jornalística, constatado por Garrett, engloba mais do que “clássicas perguntas” e, limitá-la a tais interrogativas significa, a priori, não levar em conta a subjetividade intrínseca ao entrevistador e ao entrevistado. Para que seja efetivamente realizado um estudo sobre a entrevista, como concretização da comunicação humana, é necessária uma reavaliação sobre a dicotomia objetividade/subjetividade. Malgrado, no compromisso com a verdade, a objetividade seja ambicionada pelo jornalista, esta é questionada desde a Antigüidade, com Tucídides (469 – 369 A.C.), que discorre acerca da dificuldade de priorizar a objetividade na reprodução dos acontecimentos ao concluir sobre a elaboração de seu livro História da Guerra do Peloponeso : “a investigação foi difícil porque os depoimentos sobre os diversos fatos não foram todos descritos do mesmo modo, mas esmiuçados segundo seus pontos de vista ou da maneira como os lembraram.”

12 De fato, a captação dos acontecimentos se realiza por intermédio de um filtro, a partir das idiossincrasias do jornalista. Cremilda Medina vislumbra esta problemática em seu segundo livro, Notícia: um produto à venda (cf. MEDINA, 1978, p. 104), quando afirma que a relação entre repórter e realidade a captar nunca é objetiva como se pretende, pois está sujeita às contingências da percepção e às insuficiências técnicas do método de trabalho. Porém, é impossível simplesmente ignorarmos a objetividade no trabalho jornalístico, até porque este depende da objetividade no relato dos fatos, sobretudo, como ferramenta no trabalho com a subjetividade, ou, do contrário, nos deparamos com a notícia já direcionada e comprometida, desencadeando, por conseguinte, a crise da democracia, conforme pontua Felipe Pena (cf. PENA, 2005, p. 51). Para Pena, o problema do conceito da objetividade reside na interpretação, haja vista que a subjetividade surge não para negar a objetividade, mas sim, “por reconhecer a sua inevitabilidade”. Isto porque os fatos são subjetivos, ou seja, construídos a partir da mediação de um indivíduo que tem “preconceitos, ideologias, carências, interesses pessoais ou organizacionais”. Pena propõe, então, a criação de uma metodologia de trabalho que assegure algum rigor científico ao reportar esses fatos, assim, o método é objetivo e não o jornalista o é. Na comunicação engendrada pela entrevista, o caso é ainda mais delicado, pois trata- se de duas pessoas em função de um objetivo em comum, a informação, e, concomitantemente, trata-se de alguém que, na tentativa de tentar se comunicar, o faz a partir da ficção que cria de si mesmo atingindo a ficção do outro. (cf. BRUNO, 2002, p. 30). Segundo Edgar Morin (In: MOLES et al., 1973, p.134), o diálogo fecundo é o diálogo no qual “o estranho se torna minha própria imagem, minha própria imagem estranha volta a ser eu mesmo e eu me torno a mim mesmo, processo múltiplo e contraditório que tece a própria dialética da comunicação com outrem, apenas por intermédio da comunicação do indivíduo consigo mesmo”. Igualmente, a entrevista fecunda é concebida pelo diálogo.

13 Não por acaso, ao qualificar a entrevista como “entrevista-rito”, “entrevista anedótica”, “entrevista-diálogo” e “neoconfissões”, Morin, enquanto despreza as entrevistas rito e anedótica, tidas por ele como meras tentativas de obter uma palavra ou conversações frívolas e ineptas, valoriza os dois últimos tipos de classificação por justamente se definirem pelo diálogo. Ele chega a chamá-las de “casos felizes”, em que há mais do que uma conversação mundana, há uma busca em comum. Nas neoconfissões, Morin salienta ainda que se é alcançada a entrevista em profundidade da psicologia social, em que o entrevistador se apaga diante do entrevistado, que não continua na superfície de si mesmo, mas efetua, deliberadamente ou não, o mergulho interior. Para ele, tal entrevista traz em si sua ambivalência, pois “toda confissão pode ser considerada como um strip-tease da alma, feita para atrair a libido psicológica de espectador, quer dizer, pode ser objeto de uma manipulação sensacionalista, mas também toda a confissão vai muito mais longe, muito mais profundamente que todas as relações humanas superficiais e pobres da vida cotidiana.”(1973, p.128). Cremilda Medina também defende o comportamento dialógico na entrevista jornalística como imperativo da convivência democrática em detrimento do monólogo autoritário. A autora aprofunda ainda mais o grau de complexidade da entrevista ao agrupá-la as em duas tendências: a de espetacularização e a de compreensão , além de subdividi-las em subgêneros. Entende-se como os subgêneros da compreensão, cinco tipos de entrevista: a entrevista conceitual, a entrevista/enquete, a entrevista investigativa, a confrontação- polemização e o perfil humanizado. Não vem ao caso explicar cada uma das entrevistas, o importante é observamos que todas se caracterizam pelo aprofundamento do tema, em busca da compreensão.

14 Quanto aos subgêneros da espetacularização, estes se dividem em quatro: o perfil do pitoresco, do inusitado, da condenação e da ironia intelectualizada. Em todos os casos, as possibilidades humanas do entrevistado são caricaturadas pela superficialidade que se mantém a entrevista, remetendo-a ao nível do espetáculo. Para Medina, à medida que o jornalismo e a comunicação coletiva desenvolvem estilos de abordagem e aproveitamentos dinâmicos da entrevista, teríamos invariavelmente o desdobramento dessas duas chaves. A partir das classificações instituídas por Medina, a entrevista jornalística não pode ser simplificada a “clássicas perguntas”, uma vez que permite a existência de um diálogo democrático, de um “ plurálogo” , nas palavras de Medina, na tendência da compreensão. Diante desta possibilidade do plurálogo e do grau de complexidade a que a entrevista atinge, fica-nos a pergunta: ora, se a entrevista jornalística não se diferencia das “conversações” realizadas por Clarice Lispector nas revistas Manchete e Fatos e Fotos Gente pelas clássicas perguntas, uma vez que, como vimos, ocorre o diálogo na entrevista fecunda, o que torna as entrevistas da escritora singulares? Para responder a esta pergunta, é necessário antes estipular o que é estilo jornalístico na entrevista. Medina, ao diferenciar a entrevista realizada no jornalismo e nas Ciências Sociais, demarca o estilo praticado no jornal. De acordo com ela, a entrevista jornalística é, em primeira instância uma técnica de obtenção de informações que recorre ao particular. Pontuados seus usos, com suas grandezas e limitações, a autora reconhece a dificuldade em estabelecer nítidas fronteiras em relação às técnicas das Ciências Sociais, porém consegue numerar o que chama de “tentativa de diferenciações”. Dentre os itens apontados, atenho-me ao segundo, em particular, por, justamente, balizar as característica que configuram o jornalismo:

15 O encaminhamento técnico do questionário nos processos extensivos e as rigorosas atitudes do entrevistador nos processos intensivos (psicanalísticos, por exemplo) exigem uma competência distinta do jornalista. Este se orienta, numa técnica não-diretiva, num diálogo aberto e fluido, pela arte de construir a entrevista dentro de balizas, ou leis (para o alemão Otto Groth), que configuram o jornalismo: atualidade, universalidade, periodicidade e difusão. Por mais ambição de historiador que tenha o entrevistador, ele estará implicado em tocar o presente (atualidade); por mais psicólogo que queira ser diante de um interlocutor confessional, ele terá de se ater a traços significativos para muitas outras pessoas que, na comunicação anônima, se identifiquem com o entrevistado (universalidade); por mais profundo que queira ser no tempo e no espaço, tal qual um artista ao pintar seu modelo, não poderá se desvincular do timing “24 horas ou menos” (periodicidade);e por mais vanguardista que seja, seus ímpetos de ruptura artística não poderão colidir com a legibilidade da comunicação coletiva (difusão). No âmbito destas determinações há, no entanto, espaço para a criação artística de um diálogo. (1995, p.19)

À luz da análise de Medina, pode-se concluir que o comprometimento do jornalista habita não apenas no que tange à criação artística, apesar de esta ser ratificada no diálogo, mas também nas leis que definem o jornalismo. Tal comprometimento serve igualmente de parâmetro para a distinção entre a linguagem literária e a jornalística na entrevista, uma vez que, diferentemente do jornalismo, o literário possibilita a total liberdade de criação, principalmente, no que diz respeito à ruptura artística. A linguagem, na entrevista jornalística, está inexoravelmente atrelada à legibilidade da comunicação coletiva, e portanto, deve manter igual distância “entre o preciosismo e o vulgarismo”; também deve ser clara, “fugindo do simbólico e do metafórico”; enérgica, “fixando expressões ou detalhes essenciais”; e, por fim, harmônica, adotando um ritmo próprio, de maneira a evitar “dissonâncias e choques”. (BELTRÃO apud AMARAL, 1969, p. 56)

16 A própria Clarice Lispector em suas crônicas para o Jornal do Brasil 6 também analisa a linguagem jornalística e esta legibilidade necessária, como se pode observar na crônica intitulada Escrever para jornal e escrever livro, publicada posteriormente no livro A Descoberta do Mundo 7.

Hemingway e Camus foram bons jornalistas, sem prejuízo de sua literatura. Guardadíssimas as devidas e significativas proporções, era isto o que eu ambicionaria para mim também, se tivesse fôlego. Mas tenho medo: escrever muito e sempre pode corromper a palavra. Seria para ela mais protetor vender ou fabricar sapatos: a palavra ficaria intacta. Pena que não sei fazer sapatos. Outro problema: num jornal nunca se pode esquecer o leitor, ao passo que no livro fala-se com maior liberdade, sem compromisso imediato com ninguém. Ou mesmo sem compromisso nenhum. Um jornalista de Belo Horizonte disse-me que fizera uma constatação curiosa: certas pessoas achavam meus livros difíceis e no entanto achavam perfeitamente fácil entender-me no jornal, mesmo quando publico textos mais complicados. Há um texto meu sobre o estado de graça que, pelo próprio assunto não seria tão comunicável e no entanto soube para meu espanto que foi parar até dentro de missal. Que coisa! Respondi ao jornalista que a compreensão do leitor depende muito de sua atitude na abordagem do texto, de sua predisposição, de sua isenção de idéias preconcebidas. E o leitor de jornal, habituado a ler sem dificuldade o jornal, está predisposto a entender tudo. E isto simplesmente porque “jornal é para ser entendido”. Não há dúvida, porém, de que eu valorizo muito mais o que escrevo em livros do que o que escrevo para jornais — isso sem no entanto, deixar de escrever com gosto para o leitor de jornal e sem deixar de amá-lo. (A DESCOBERTA DO MUNDO, 1998, p. 421)

Nota-se, no texto, que Clarice Lispector controverte seu ofício como jornalista em dois momentos. Primeiramente, quando pondera que seria mais seguro vender sapatos a ser “jornalista e escritora”, uma vez que “escrever muito e sempre pode corromper a palavra”.

6 órgão de imprensa para o qual a autora trabalhou como cronista de 1967 a 1973 7 A Descoberta do Mundo é uma publicação póstuma editada pela primeira vez pela Nova Fronteira em 1984 que reúne, em ordem cronológica, as contribuições de Clarice Lispector que apareciam aos sábados do Jornal do Brasil, de agosto de 1967 a dezembro de 1973. O livro utilizado neste trabalho é da Editora Rocco de 1998.

17 O verbo vender utilizado logo após o termo “escrever muito e sempre” sugere ao leitor uma escritura intrinsecamente ligada ao dinheiro. Em outras palavras, muito provavelmente, para a escritora, “escrever muito e sempre” mantinha, sim, a palavra intacta, esta somente era corrompida quando vendida. De fato, conforme informações de Nádia Batella Gotlib, durante a época em que trabalha para o Jornal do Brasil que coincide com o período em que faz entrevistas para a Revista Manchete , a autora é pressionada ao trabalho jornalístico por questões de ordem financeira. 8 (GOTLIB, 1995, p. 373) Clarice Lispector também admite escrever para o jornal por dinheiro, na crônica Anonimato , de 19 de fevereiro de 1968: “(...) escrevo agora porque estou precisando de dinheiro.” E, ainda, na entrevista realizada para a Revista Manchete, no dia 5 de outubro de 1968, com o José Carlos de Oliveira, tal fato é enfatizado pelo entrevistado com a insinuação: “(..) uma escritora como Clarice Lispector, em vez de comer e beber comigo, tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver.” Outro obstáculo: o jornal é para ser entendido e, por conseguinte, o leitor do jornal está predisposto a entender tudo, ou seja, Clarice reclama justamente deste compromisso imediato com o leitor e da legibilidade necessária do texto jornalístico, em oposição à linguagem literária, que se define por seu caráter transgressor. Parafraseando , a literatura cria a mensagem em vez de apenas transmiti-la. A propósito, a diferença entre a comunicação e a literatura desenvolvida por Portella vem a ratificar a “desobediência” literária ao que é regido por regras e normas já instituídas: — A comunicação — diz Portella — é processo rigorosamente controlado para conduzir de um nível a outro da mensagem já estruturada, um dado pronto, constituído, imediato. Ela, então, não cria a mensagem; apenas transmite. Já a literatura não pode fazer-se tão obediente ao sistema de signos vigente. Ela é tanto mais original quanto menos repetidora. Nós poderíamos dizer que a literatura é metacomunicação; no sentido de que parte de um quadro específico de signos para transgredi-lo e criar-se. (apud AMARAL, 1969, p.56)

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As palavras se singularizam no universo literário, tornam-se úteis, enquanto células modificadoras, e não mais utilitárias. Como enunciou Roland Barthes, na Aula Inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França Roland Barthes, a língua é fascista, pois obriga a dizer, ao passo que, na literatura, a língua é desviada e, conseqüentemente, se é permitido ouvir a língua fora do poder, no “esplendor de uma revolução permanente da linguagem” (BARTHES, 1992, p.16). Pelo “desvio” da linguagem há o transporte de seu sentido comum para o figurado. Já na Antigüidade tal recurso é recorrente. As figuras concebidas pela retórica com a finalidade de ornar o discurso, em sua parte elocutória, causavam o aspecto de estranheza que o diferenciava das locuções comuns. Interessante observar que Barthes defende em seu livro “Crítica e Verdade” que a tarefa do escritor é “inexprimir o exprimível” (BARTHES, 2003, p.22), sendo um dos recursos para tal tarefa o uso das figuras, que, para ele, corresponde a uma “técnica de ilusão”, pois estas redistribuem as coisas, fazem “com que pareçam outras diferentes do que são, ou como são, mas de um modo impressivo”. (2003, p.87) No que concerne à polissemia decorrente do uso de figuras, Paul de Man em “Alegorias da Leitura” vai mais longe. O autor reitera a ilegibilidade final dos textos ao ponderar obras de grandes autores como Proust e Yeats em meio à exorbitante quantidade de signos. E, aqui, ele lança mão de outra ferramenta literária: a retórica. Ao distinguir a retórica da gramática, De Man se vale da pergunta retórica a fim de explanar as inúmeras possibilidades de interpretação da escritura literária. O poema de Yeats “ Among School Children” [Entre Escolas de Crianças] constitui um exemplo significativo para tal elucidação.

8 Segundo consta no livro, Clarice era pressionada ao jornalismo antes do Jornal do Brasil. Mais especificamente, após o seu retorno ao Brasil, em 1959, com o divórcio do marido, a escritora já exercia tal ofício como fonte de subsistência, uma vez que era “impossível viver apenas com os direitos autorais do livro”.

19 O verso final do famoso poema de Yeats: “How can we know the dancer from the dance?” (como distinguir da dança o dançarino?) engendra duas diferentes leituras: a primeira, como uma pergunta retórica, em que não há como distinguir a dança do dançarino; já na segunda, o verso é mantido de modo literal, e, portanto, se afirma que há diferença entre dança e dançarino, e se quer saber qual. As duas interpretações norteiam o poema a sentidos opostos. Tal como na literatura, parece que nas entrevistas realizadas por Clarice Lispector manifesta-se o caráter transgressor e polissêmico da língua em perguntas como “o que é o amor?”, “qual é a coisa mais importante do mundo para uma pessoa como indivíduo?”, etc.. Inclusive, tais interrogativas muito se aproximam das indagações evidentes na obra literária de Clarice Lispector, que restituem questões metafísicas e ontológicas conforme veremos a seguir.

1 - 2 “SOU UMA PERGUNTA”

“Escrever” existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo sem saber como e por quê — é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação.” (Clarice Lispector - Um sopro de vida )

“Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. “ (Clarice Lispector - A hora da estrela )

À interrogação é reservado um capítulo especial na elaboração do discurso. Aristóteles institui o uso da interrogação na Arte Retórica perante a possibilidade de se mostrar que o adversário se contradiz ou que suas assertivas são paradoxais, ou ainda para obrigar o adversário a responder de maneira sofística, a fim de destruir a asserção proposta (ARISTÓTELES, XVIII).

20 No caso da literatura, as perguntas, apesar de muitas vezes não se constituírem como retóricas, igualmente podem ser propositais, no intento de engendrar um efeito estético na leitura, dado seu caráter provocativo. Outrossim, a obra clariciana pode incitar tal efeito, uma vez que ler Clarice Lispector também é deixar-se envolver por questões acerca do homem e do mundo. As interrogações, as dúvidas e a curiosidade delineiam a tessitura do texto abrindo-o a inesgotáveis reflexões ontológicas. Não seria exagerado afirmar que a obra clariciana nos remete ao tí estin , ou seja, ao perguntar originalmente grego, ao qual se refere Heidegger quando tenta responder à pergunta “o que é isto — filosofia?”. O filósofo discorre sobre o próprio questionamento, uma vez que, para ele, não somente a filosofia é grega em sua origem, mas também o modo como se pergunta, mesmo que à sua maneira de questionar, ainda é grego. Se perguntamos: “que é isto ...?” em grego é: “ tí estin ”, o que mantém a questão, ao que algo seja, multívoca. Heidegger cita como exemplo a interrogativa: “que é aquilo lá longe?” e a resposta imediata, “uma árvore”, que, para ele, consiste na nomeação de uma coisa que não se conhece direito, logo, pode-se questionar mais: “o que é aquilo que designamos ‘árvore’?” Com a questão posta se avança para a proximidade do tí estin grego, forma de questionar desenvolvida Sócrates, Platão e Aristóteles. O filósofo se adianta um pouco mais nas interrogações — “Que é isto - o belo? Que é isto - o conhecimento? Que é isto - a natureza? Que é isto - o movimento?” — em que não se procura apenas uma delimitação mais exata do que é natureza, movimento, beleza; mas se toma cuidado para que ao mesmo tempo se dê uma explicação sobre o que significa o “que”, em que sentido se deve compreender o tí. Aquilo que o “que” significa se designa o quid est , tò quid : a quidditas, a quididade, que se determina diversamente nas diferentes épocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Platão é uma interpretação característica daquilo que quer dizer o ti , que significa precisamente a idéia . Aristóteles dá outra explicação ao tí , outra ainda dá Kant e também Hegel explica o tí de modo diferente.

21 Visto isto, Heidegger ressalta que sempre se deve determinar novamente aquilo que é questionado, através de um fio condutor que representa o tí , o quid, o “quê”; porém, em todo caso, referindo-se à filosofia, a pergunta “que é isto?” levanta uma questão originariamente grega. No tocante ao tí estin, Clarice Lispector também indaga “que é isto?”, a levantar a questão originariamente grega. Tomemos como exemplo a crônica escrita para o Jornal do Brasil, cujo próprio título O que é que é? vem a concretizar a pergunta, enquanto questão da essência, que se mantém sempre viva por intermédio da essência que se interroga.

Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de que não gosto — como se chama o que sinto? Uma pessoa de quem não se gosta mais e que não gosta mais da gente como se chama essa mágoa e esse rancor? Estar ocupado, e de repente parar por ter sido tomado por uma desocupação beata, milagrosa, sorridente e idiota — como se chama o que se sentiu? O único modo de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? E este é o nome. (A DESCOBERTA DO MUNDO, 1999, p.199)

Primeiramente, Clarice formula a pergunta “como se chama o que sinto?”, para depois concluir que o único modo de chamar é perguntar como se chama, uma vez que até aquele momento, conseguiu nomear com a própria pergunta. Nota-se que a autora não perguntou primeiramente “o que é aquilo lá longe” e sim, aproximou-se de pronto da pergunta “o que é aquilo que designamos...?”, e, por conseguinte, do tí estin . No que concerne à nomeação de uma coisa que não se conhece direito, há o interesse pela coisa que não se conhece direito, pelo “que”, e não pela nomeação. Em outra crônica publicada no mesmo jornal, Clarice inicia o texto com o sugestivo título: Sou uma pergunta , e o constrói apenas com perguntas, tais como “Quem fez a primeira pergunta?”; “Quem disse a primeira palavra?”, “Por que se morre?”, “Por que há o som?”, “Por que há o espaço?”, “Por que há o infinito?”, “Por que eu existo”, “Por que você existe?”, etc....

22 Os “por quês?” suscitam dúvidas até sobre o próprio ato de escrever, o que se evidencia nas perguntas “Por que se lê?”, “Por que quem me lê está perplexo?”, “Por que quem me lê está vivo?”, “Por que escrevo?” Este texto também pode ser observado enquanto texto que olha para o texto, conforme análise feita por Carlos Mendes de Sousa em Clarice Lispector: figuras da escrita , uma vez que “a especificidade da disposição das frases (como se fosse um poema) torna mais incisivas as perguntas sobre as questões colocadas no metatexto clariciano que repõem a primeira interrogação, a infinita pergunta: “Por que poderia perguntar indefinidamente por quê?” (2000, p.120) No entanto, convém aqui ressaltar outro aspecto da crônica. Em um dado momento, já ao final, a questão “Por quê?” é respondida com “É porque.” Tal qual em O que é o que é?, em que à pergunta “Qual é o nome?” se responde “E este é o nome.”, Clarice igualmente responde à interrogativa com a própria pergunta, como se tentasse também explicar o “quê” por intermédio da indagação. Há, por certo, uma exaltação da pergunta na escritura clariciana. Inclusive, existem algumas obras da fortuna crítica que apontam tal tendência, como o próprio Clarice Lispector: figuras da escrita de Mendes de Sousa, que assinala esta pose interrogante como incisiva no modo como Clarice Lispector se aproxima da literatura. De acordo o autor, a atitude da escritora perante a vida, a permanente colocação da dúvida, irá marcar seu modo de estar diante da escrita. Clarice enxerga um “universo pronto para ser devorado na sua incompreensibilidade, mas que, de tão vasto, suscita necessariamente o problema, a interrogação que irá permanecer e marcar o tom ‘metafísico’ da escrita a ser praticada.”(SOUSA, 2000, p.121). É interessante como Sousa assinala o que ele chama de escrita /matéria interrogante clariciana:

23 Sobre as origens cai a interrogação, de que dá conta a própria matéria que delas trata. Assim, uma escrita/matéria interrogante. Colocar a interrogação é introduzir a dúvida, é descentrar ... Era inevitável que as dúvidas, as interrogações recaíssem sobre a sua própria literatura e a literatura em geral. Como nasceu a escrita? Como nasce esta escrita? A questão que, no trânsito interpretativo, o hermeneuta devolve como se projectasse na pergunta fundadora: de onde vem o mundo? Deparamos com uma indissociabilidade, uma convergência entre as indagações sobre a origem (em termos metafísicos e ontológicos) e sobre sua origem como escritora: como e por que sou escritora? As figuras fundadoras tentam dar corpo a essa pergunta. (SOUSA, 2000, p.120)

O autor também observa que esse insaciável desejo de conhecer, esse participar na interrogação do futuro é corroborado sobretudo na fase final, através da consulta de cartomantes ou através da prática corrente de consulta das cartas, como é o caso do I- Ching, que deixa vestígios em muitos dos manuscritos dessa última fase. Além disso, no interior dos textos, segundo ele, “os contornos da interrogação configuram um dos modos do desconcerto, do estranhamento que impõem a singular afirmação da escrita lispectoriana. Proliferam estranhas interrogações contaminando, apoderando-se de todo o tecido discursivo.” (SOUSA, 2000, p.121) O autor cita como exemplo o final do quinto capítulo da primeira parte de A Maçã no Escuro , em que a cena “é ferida por perguntas que caem cheias de ironia e do distanciamento com que, na autora, é costume recortar-se esse tipo de quadros.” (SOUSA, 2000, p.121) Como a interrogação impõe a singular afirmação da escrita lispectoriana, é de se questionar se houve uma tentativa por parte da escritora em responder às indagações, ou melhor, em interpretar o “que”, como assim o fez Platão e os outros filósofos. Sousa propõe a obra A Maça no Escuro como o “primeiro texto mais acabado e mais ambicioso que, de um modo mais pesadamente orientado, procura dar uma resposta” às interrogações claricianas.

24 Malgrado Sousa caracterize A Maçã no Escuro como uma tentativa de resposta, há outros estudos que evidenciam na obra clariciana o reconhecimento da impossibilidade de resposta, como é o caso da obra A reta artística de Clarice Lispector de Zizi Trevizan. Segundo esta, “o conflito existencial configurado nos textos de Clarice Lispector acentua-se no reconhecimento da impossibilidade de encontrar ‘a grande resposta’ a todas as indagações filosóficas.” (TREVIZAN, 1987, p.21) Em outras palavras, o próprio texto clariciano surge como solução romanesca para o conflito decorrente da ausência da “grande resposta”, como desabafo íntimo até, pois “o que salva é escrever distraidamente.”(LISPECTOR apud TREVIZAN, 1987. p. 21) Apesar de parecerem opostas, tanto a assertiva de Sousa quanto de Trevizan conduzem-nos a caminhos muito próximos, cujo destino se encontra nas palavras da própria escritora: “Por quê? É porquê.” ; “Qual é o nome? E este é o nome.” Se abstrairmos o “que” teremos a pergunta. A própria interrogação explica o ti , pois o “único modo de chamar é perguntar”. Ora, se a resposta ao por quê é porquê intransitivamente, o próprio “por quê?” se responde pela pergunta. Outrossim, ao se indagar qual é o nome se responde que este, este se referindo ao questionamento “qual é o nome?”, é o nome. O nome é o questionamento. Voltando às duas análises, que, em um primeiro momento transparecessem-se incompatíveis, pelos questionamentos se aproximam, pois a impossibilidade da grande resposta reside na pergunta, que por sua vez corresponde à tentativa de resposta, por intermédio da interrogação, e assim, infinitamente. É possível, ainda, estabelecer uma relação entre o tí e o próprio ato de escrever. Em Um Sopro de Vida, o narrador enuncia que escrever é apenas o reflexo de uma coisa que se pergunta, e ainda que “escrever é uma indagação” (1999, p.16). A aproximação do “que”, uma interrogação em sua essência, se dá escrevendo, conforme reitera o narrador de A Hora da Estrela: “ Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever .” (1999, p.11)

25 A literatura clariciana, enquanto uma tentativa de interpretar o ti pela própria pergunta, não pretende estabelecer respostas assertivas às indagações filosóficas, e sim perguntar. Ante o mistério do mundo, a tessitura dos textos se forma e se delineia pelas próprias interrogações, enquanto tentativa de chegar o mais perto possível da essência, da matéria ainda bruta, da “primeira pergunta”. Como é possível constatar, portanto, a escritura clariciana se assinala por interrogativas metafísicas, semelhantes ao perguntar grego, ao ti estin, cujo tí corresponde à própria interrogação. O tí estin, igualmente, pode se relacionar com o próprio ato de escrever, erigindo, dessa forma, questões metalingüísticas enquanto respostas à pergunta “Por que escrevo?”. A escrita de Clarice Lispector não somente apresenta interrogações como também é mobilizada por elas, escrita esta que ecoa no roteiro das entrevistas realizadas pela Clarice entrevistadora para as revistas Manchete e Fatos e Fotos/Gente; um vez que suas entrevistas, elaboradas no formato de perguntas e respostas, se valem da pergunta como desencadeadora do diálogo. Ao conhecer a produção literária da escritora é inevitável a indagação: o que baliza a escolha das perguntas elaboradas por uma escritora cuja obra literária se conduz por questões metafísicas e metalingüísticas? Ao mesmo tempo, ao conhecer suas entrevistas jornalísticas, é inevitável o estranhamento diante de perguntas não usuais, tais como “você é feliz?”, entre outras, a provocarem o efeito estético no ato da leitura, que, conforme Iser, representa o elemento crucial para a existência da literatura.(1996, p.52) No intento de esclarecer como ocorre o efeito estético suscitado pela leitura destas entrevistas e os elementos que as caracterizam como tipicamente claricianas, faremos antes um estudo sobre o percurso de Clarice Lispector entrevistadora, desde sua primeira entrevista feita com Tasso de Oliveira em 1940 até seus últimos trabalhos para revista Fatos e Fotos/ Gente em 1977, ano de sua morte, a fim de encontrarmos elementos comuns que caracterizem suas entrevistas.

1 - 3 CLARICE LISPECTOR DO OUTRO LADO DO GRAVADOR

26

“Avisei a Nélson Rodrigues que desejava uma entrevista diferente. É um homem tão cheio de facetas que lhe pedi apenas uma: a da verdade. Ele aceitou e cumpriu”

(Clarice Lispector – Diálogos possíveis com Clarice Lispector )

Quando Clarice Lispector entrou para a Agência Nacional, por volta de 1940, seu escopo era diferente da carreira que iria efetivamente seguir. A escritora ofereceu seus trabalhos como tradutora para empresa, mas, como o quadro estava completo, passou para a reportagem 9. Segundo consta na pesquisa elaborada por Aparecida Maria Nunes, o caráter imprevisto das reportagens agrada Clarice, que passa a ter contato com diferentes personalidades, o que “lhe permite ampliar horizontes, enquanto cursa a Faculdade de Direito e escreve seus contos”. (NUNES, 1991, p. 17). No mesmo ano, Clarice também manteve vínculo de trabalho com a empresa A Noite, que lhe daria no dia 02 de março de 1942 seu primeiro registro na Carteira Profissional como repórter do jornal A Noite. Nesta empresa, Clarice fazia de tudo, “menos reportagens de polícia ou de sociedade” (NUNES, 1991, p. 20). Em Vamos Ler! , revista semanal da empresa A Noite , Clarice foi contista em “Eu e Jimmy” e “Trecho”, tradutora do conto “O missionário”, de Claude Ferrère, e também repórter , com os trabalhos “Uma hora com Tasso de Silveira” e “Uma visita à Casa dos Expostos”. Importante observar que, na época, Clarice Lispector ainda não era consagrada como escritora, pois o período antecede à publicação de seu primeiro romance Perto do coração selvagem, que viria a ser editado pela primeira vez no jornal A Noite , na base de aventura, em 1944. Sem pagar nada pelo lançamento e sequer receber pelos lucros obtidos, a autora presenciaria a primeira edição de seu livro esgotar-se rapidamente.

9 Todas informações sobre a trajetória de Clarice Lispector como jornalista estão embasadas na dissertação de mestrado da Profª Drª Maria Aparecida Nunes, Clarice Lispector Jornalista .

27 “Um hora com Tasso de Silveira” foi a primeira entrevista de Clarice Lispector, publicada no dia no dia 19 de dezembro de 1940 na revista Vamos Ler!. Esta antecipa o que viria a caracterizar suas entrevistas futuramente. Analisemos, assim, alguns trechos extraídos da entrevista, entre eles a introdução, algumas perguntas de Clarice, seus comentários ao longo do texto e o final:

Para mim, entrevistar Tasso de Silveira era continuar uma daquelas palestras tão profundas, nas quais eu assistia atenta o(sic) poeta revolver os grandes problemas do pensamento. [...] Depois quando eu descia a comprida rua Camerino , ia imaginando uma frase, uma idéia que contivesse aquela alma tão complexa, tão jovem, mas tão serena. [...] E ele é um homem que luta realmente, sua atitude diária não é de contemplação estática, não é daqueles poetas “fim de século”. [...] E é sua grande unidade interior, invulnerável até diante da verdade contemporânea que provoca sem dúvida os ritmos eternos de sua poesia. — Vim lhe fazer algumas perguntas indiscretas: alguns “comos” e “porques”, digo-lhe. [...] — E, perguntei eu, sentindo que chegava um momento importante da entrevista [...] Fazemos uma pequena pausa, durante a qual a esposa do poeta, com sua presença simpática e serena, vem nos chamar para o chá. — E novas produções? Pergunto eu ainda. [...] Sorrio, porque me lembro de que eu também, quando lhe escrevi minha opinião sobre “Canto Absoluto”, empreguei termos poéticos, falei em “manhãs ingênuas”, num “fortíssimo instinto de conservação da alma”, e sei lá mais o que...A razão disto é que a força poética do livro contagia... Evidentemente ele é um homem raro, porque justamente, não é triste. Um dia, num momento de desânimo, perguntei-lhe: “Afinal, “isso” vale a pena?”. “Vale a peníssima”, riu ele. Nada melhor explica a poesia e sua obra 10 .

10 É possível encontrar a entrevista na íntegra em Clarice Lispector Jornalista, p 59 – 61.

28 No que se refere ao formato do texto, este é muito semelhante ao das entrevistas posteriores publicadas na Manchete e Fatos e Fotos/Gente. Na forma de perguntas e respostas, no estilo “pingue-pongue”, a entrevista, tal qual as demais, é precedida por uma introdução que apresenta o entrevistado. Conforme enfatiza Aparecida Nunes, o estilo “pingue-pongue” é uma maneira mais simples de se construir o texto de uma entrevista, mas, por outro lado, propicia que as idéias do entrevistado sejam reproduzidas com mais fidelidade, apesar de, conforme veremos posteriormente, o processo de retextualização da fala para a escrita dificultar a obtenção desta fidelidade ambicionada pelo repórter. A disposição do texto somente irá se diferenciar das entrevistas ulteriores quanto aos intertítulos, tais como “’Um homem triste’, auto análise que demonstrará um homem alegre”, “A França se salvará”, “Livros a publicar — ‘o poeta cristão do Brasil’ — ‘não se pode fazer auto crítica em literatura’”, que dividem a entrevista conforme o assunto a ser discutido. Com relação ao conteúdo, já na introdução da entrevista, notamos uma Clarice Lispector que se revela na primeira pessoa do singular, “para mim entrevistar Tasso de Silveira [...]”, acentua uma certa intimidade com o entrevistado, quando relata que a entrevista nada mais seria do que uma continuação daquelas “palestras profundas” debatidas entre os dois na redação de Pan, antecipa as questões metafísicas a serem discutidas, e revela suas próprias impressões sobre o Tasso de Silveira, alguém com “alma tão complexa, tão jovem, mas tão serena”, “um homem que luta realmente”. A primeira pergunta da entrevista é peculiar: “Vim lhe fazer algumas perguntas indiscretas: alguns “comos” e “porquês”, digo-lhe.”. Isto porque não se trata de uma interrogação propriamente dita, mas de uma análise sobre o seu próprio ato de entrevistar, que ela chama de “perguntas indiscretas”, de “alguns ‘comos’ e ‘porquês’”. A partir da introdução e desta primeira “pergunta”, o comprometimento do texto com as leis que regem o jornalismo citadas por Medina é questionável, mais especificamente a legibilidade da comunicação coletiva, uma vez que já o início da entrevista desencadeia muitas possíveis interpretações, sobretudo, no que tange às impressões sobre o entrevistado e à maneira como é iniciada a conversa.

29 Em contrapartida, nota-se que, no desenrolar da entrevista, é estabelecido o diálogo efetivo almejado por Morin e Medina em uma entrevista jornalística. Os mais diversos temas, que englobam desde literatura até religião e guerra, são abordados em uma comunicação bilateral em que o entrevistador presta atenção ao que o entrevistado afirma, para a partir daí formular a próxima pergunta. O diálogo, contudo, já se diferencia do caracteristicamente jornalístico, pelas intervenções de Clarice Lispector ao longo da entrevista. Por exemplo, quando, entre uma pergunta e outra, a entrevistadora revela: “fazemos uma pequena pausa, durante a qual a esposa do poeta, com sua presença simpática e serena, vem nos chamar para o chá.”, ou ainda, mais adiante, quando Clarice enuncia: “Sorrio, porque me lembro de que eu também, quando lhe escrevi minha opinião sobre “Canto Absoluto”, empreguei termos poéticos, falei em “manhãs ingênuas”, num “fortíssimo instinto de conservação da alma”, e sei lá mais o que...A razão disto é que a força poética do livro contagia...”. Aliás, nesta última passagem citada, é possível constatar que, mesmo não sendo ainda escritora consagrada, Clarice Lispector discorre sobre sua própria escritura, e os “termos poéticos” que utilizou para elaborar a opinião sobre uma obra do escritor. A partir de tais marcas, o diálogo com Tasso de Oliveira erige o estilo único da futura entrevistadora das décadas de 60 e 70. Nos anos seguintes a esta entrevista, Clarice Lispector casa-se com Maury Gurgel Valente, em 1943, torna-se conhecida com seu livro Perto do Coração Selvagem publicado no ano seguinte, continua seu trabalho na imprensa, e parte com seu marido, então diplomata, para Nápoles ainda em 1944. Clarice viveu no exterior em um período de 15 anos. Longe do Brasil, ainda assim, não interrompe seu ofício como jornalista, e, mantém uma intensa produção literária com o lançamento dos romances O lustre , em 1946, A cidade sitiada em 1949 e a elaboração de A maçã no escuro. Em 1959, Clarice Lispector separa-se do marido e retorna ao Brasil definitivamente. De abril de 1960 a março de 1961, escreve como ghost writer de Ilka Soares à convite de Alberto Dines para o periódico Diário da Noite. Durante este intervalo de tempo, são publicados Laços de família (1960) e A maçã no escuro (1961). Em 1964 outros dois livros seus foram editados, A paixão segundo GH e A legião estrangeira .

30 A partir de 1967, a escritora passa a produzir intensamente para a imprensa. Escreve crônicas para o Jornal do Brasil (1967 a 1973) do Rio de Janeiro e Correio do povo (1968 a 1973) de Porto Alegre. E em 1968, retoma às entrevistas com personalidades, na seção Diálogos Possíveis com Clarice Lispector, da revista Manchete. O título da coluna foi criado em referência a outra seção, Diálogos Impossíveis que, publicada pela mesma revista, unia pessoas de diferentes ofícios. (cf. NUNES, 1991. p. 40) Segundo observa Aparecida Maria Nunes, antes da publicação dessa seção houve uma troca de correspondências entre a escritora e Fernando Sabino, em 1953, quando a escritora morava nos Estados Unidos, sobre a possibilidade de Clarice colaborar para a revista Manchete, com a coluna que seria denominada como algo semelhante a Bilhete americano ou Carta da América , e que “deveria ser escrita sem muitas preocupações literárias” (1991, p.236). Clarice aceitou o convite com a condição de que assinasse a coluna com um pseudônimo. Após algumas correspondências, ficou determinado que a seção seria assinada com as iniciais C.L, no lugar do nome ou do pseudônimo, porém a coluna acabou não sendo publicada. A seção “Diálogos possíveis com Clarice Lispector”, por sua vez, foi inaugurada no dia 11 de maio de 1968, com a entrevista com o escritor Nélson Rodrigues. Notamos uma entrevista semelhante à sua primeira realizada em 1940 com Tasso de Oliveira, tanto no formato, quanto no conteúdo. No estilo “pingue-pongue”, Clarice se aproxima de seu entrevistado com indagações como “O que é o amor?”, “Qual a coisa mais importante do mundo?”, “Qual a coisa mais importante do mundo para você como indivíduo?”, as quais o induz a “olhar para dentro”, a aprofundar-se no próprio ser, exigindo um maior contato consigo mesmos, como que a fim de “partejar o espírito” 11 (SÁ, 2004, p. 234), nas palavras de Olga de Sá. Tal aprofundamento é corroborado pelo próprio entrevistado, que, ao ser indagado se gostou da “entrevista sincera”, responde afirmativamente, pois, de acordo com ele, “o que conta na vida são os momentos confessionais”. (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete , Rio de Janeiro, ano 16, n. 838, p.148 -149, 11 maio 1968).

31 Em termos comparativos, a entrevista se assemelha em parte à neoconfissão proposta de Morin, visto que o entrevistado não continua na superfície de si mesmo, mas efetua o mergulho interior. Digo em parte, pois não é possível enquadrá-la totalmente nesta classificação, uma vez que a entrevistadora não se apaga diante do entrevistado, pelo contrário, se mostra, como na fala a seguir produzida após a assertiva de Nélson Rodrigues “o amigo não existe”:

— Nélson, como conseqüência de meu incêndio, passei três meses no hospital. E recebia visitas até de estranhos. Eu não sou simpática. Mas o que é que eu dei aos outros para que viessem me fazer companhia? Não acredito que se tenha amigos. É que são raros.

Nas entrevistas conseguintes, Clarice mantém suas indagações sobre o amor, o indivíduo, a felicidade, etc, e, ainda, se revela na primeira pessoa do singular tal qual o fez com Tasso de Silveira. Se na maiêutica socrática, a meta é atingir a verdade inata ao ser, as perguntas formuladas por Clarice, por sua vez, conduzem o entrevistado à sua própria subjetividade, exigindo dele uma reflexão mais profunda sobre si próprio, enquanto indivíduo que ama, que tem prioridades, que está feliz, que não está, que chora, que ri. Por meio do diálogo, alcança- se a “a terceira perna”. Conforme Olga de Sá, para Clarice, escrever é uma forma de compreender a própria vida (2004, p.235). A partir desta observação, constata-se, igualmente, que, para Clarice jornalista, as entrevistas correspondem a uma forma de compreensão da Vida, uma vez que é clara sua preocupação com o entrevistado não enquanto celebridade, porém, enquanto ser humano, misterioso para consigo mesmo.

11 . Nesta passagem a autora caracteriza a maiêutica clariciana como uma maiêutica do fazer linguagem.

32 Desta forma, por meio da fantasia de carnaval, por exemplo, Clarice Lispector extrai de seu entrevistado, Clóvis Bornay, considerações a respeito da personalidade humana, subentendidas na explanação sobre a necessidade daquele que interpreta modelos carnavalescos em ser “bom ator”, capaz de possuir “a inteligência de um gênio, a força de Hércules, a bondade de Cristo, as alegrias de uma criança, a ternura de uma mulher e as artimanhas de um demônio”. (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete , Rio de Janeiro, ano16, n. 879, p.48-49, 22 fev. 1969). Ou ainda, ao entrevistar “o primeiro figurino do país”, Tereza Souza Campos, pelo simples fato de “não simpatizar com ela”, Clarice revela em sua entrevistada uma mulher, que, muito além de ser a mais elegante, também é “inteligente”, que, com os “olhos virados para dentro”, reflete sobre o que é, capaz de despertar a simpatia de alguém que, mesmo sem lhe ter empatia, em um primeiro momento, chama-a de “une femme d’esprit”. Outrossim, como na sua primeira entrevista de 1940, há intervenções literárias nos textos, a fim de narrar situações capazes de desvelar características peculiares dos entrevistados. Por exemplo, quando Tom Jobim interrompe a conversa para relatar que não quer mais beber uísque, e sim cerveja, porque esta “locupleta os grandes vazios da alma”, ou então, quando Ivo Pitanguy pára momentaneamente a entrevista para “atender ao telefone de Roma e outro daqui, que lhe provocou gargalhadas: estas são de um homem sadio e eu quase ri sem saber de quê.” Além disso, as entrevistas de Clarice Lispector também apresentam-se carregadas de signos em que se transporta o verossímil ao universo imaginativo, como quando Clarice Lispector divagou a respeito do nome , na entrevista realizada dia 8 de fevereiro de 1969 para a revista Manchete , na coluna Diálogos Possíveis com Clarice Lispector.

33 Mas é claro, pensei, como é que não tinha me ocorrido antes? Bibi é substantivo, é adjetivo, é tudo menos nome próprio. Com minha descoberta fiquei tão contente, que esqueci de perguntar-lhe o nome próprio. Bibi se escreve com letra minúscula. Por exemplo: “Fulana estava hoje um amor de bibi, mas bibi mesmo é mulher de delegado.” “Sicrana estava tão antipática que perdeu sua única oportunidade de ser bibi.” “Aquelas rosas fazem o bibi encantatório de meu dia de hoje.” E é interminável a aplicação dêsse 12 nome cuja dona o tornou uma palavra perfeita para mim” (LISPECTOR, C. Discursos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete , Rio de Janeiro, ano 16, n. 877, p.40-41, 08 fev. 1969)

Bibi transforma-se então em “um amor de bibi”, ou em “bibi encantatório”, ou até mesmo “em tudo menos nome próprio”, tornando o impossível plausível, o que, para Aristóteles, na poética, é “preferível a um possível que não convença”.( Poética , XXIV) Clarice realiza um total de 59 entrevistas para a Manchete. Segundo consta, os entrevistados, que variam desde músicos e escritores até arquitetos, artistas plásticos e políticos, são, em sua maioria amigos da escritora, o que reafirma o grau de intimidade com o entrevistado presenciado na entrevista com Tasso de Oliveira. Um dado curioso, bem observado por Aparecida Nunes, revela que os entrevistados eram atendidos na casa de Clarice Lispector, ou, caso não fosse possível o encontro na residência da entrevistadora, era marcado um encontro em algum restaurante ou em outro local de comum acordo. A jornalista preparava algumas perguntas de antemão. Mas, conforme o grau de intimidade entre a escritora e os entrevistados, eles se ofereciam para responder as questões em casa ou, mesmo, estas eram respondidas por correspondência. Sua última entrevista para a Manchete ocorre no dia 25 de outubro de 1969 com o campeão de caça submarina Bruno Hermani. Em 1973, Clarice tem sua atividade jornalística interrompida ao ser demitida do Jornal do Brasil . No ano seguinte publica A via crucis do corpo, um livro com 13 histórias feitas sob encomenda, Onde estivestes de noite, uma coletânea de contos inéditos acrescidos de outros publicados para o Jornal do Brasil e trechos de seu romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres , além da publicação infantil Vida íntima de Laura.

12 Optei por manter a escrita original, de acordo com as normas gramaticais da época, sem modificá-la conforme a nova

34 Após a demissão do Jornal do Brasil, Clarice passa a traduzir com mais freqüência, chegando a traduzir até três livros por ano. Em 1975, são publicados dois livros que reúnem trabalhos seus realizados para a imprensa. Visão do Esplendor, coletânea de crônicas publicadas na revista Senhor e no Jornal do Brasil , e De Corpo Inteiro , uma seleção das entrevistas feitas para a Manchete .13 Em 1976, enquanto escreve o romance A hora da estrela , volta a trabalhar nas Empresas Bloch, desta vez, para a revista Fatos e Fotos/Gente. Nesta, ela realiza entrevistas nos moldes das feitas para Diálogos possíveis com Clarice Lispector. Além disso, passa a escrever crônicas semanais para o Jornal Última Hora, em fevereiro de 1977. É para Fatos e Fotos/Gente que Clarice entrevista com exclusividade, segundo informa Nunes, o primeiro-ministro de Portugal, Mário Soares, quando vem ao Brasil, em janeiro de 1977. Conforme pontua, a escritora preparou suas perguntas, como de costume. Ao se comparar as anotações de Clarice com o que foi publicado, nota-se praticamente não houve alterações. Importante ressaltar que a escritora já estava na fase final de sua vida, o que é evidenciado em sua primeira entrevista com Elke Maravilha, em dezembro de 1976, nas perguntas: “Você já pensou na morte?” e “Você tem medo de envelhecer?” Fora isso, as perguntas se assemelham e muito das formuladas para a Manchete . Há algumas, inclusive, que foram reaproveitadas com algumas modificações, como as feitas com Hélio Pellegrini e Iberê Camargo, publicadas respectivamente nos dias 14 de fevereiro e 18 de abril de 1977. As semelhanças e diferenças entre as entrevistas realizadas para as duas revistas serão aprofundadas nos capítulos a seguir. Vale ressaltar aqui a importância destes textos enquanto registro de uma faceta diferente da entrevistadora e do entrevistado, em uma linguagem particularmente clariciana. Diante desta intensa produção para as revistas das Empresas Bloch, Nunes exalta:

gramática. 13 Informações obtidas do livro Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector, de Teresa Cristina Monteiro Ferreira, p. 284-285

35 [...] tais textos registram particularidades dessas personagens entrevistadas, que, um outro repórter, talvez, não conseguisse fazer com que viessem à tona. Essas informações só poderiam ser captadas pela sensibilidade de escritora, preocupada com reflexões mais profundas. Não sendo jamais, linear. (NUNES, 1991, p. 245)

Apesar de, como vimos, a entrevista jornalística envolver mais elementos, como a subjetividade e o comportamento dialógico, do que as perguntas clássicas, as entrevistas claricianas, de fato, registram particularidades das entrevistadas que, um outro repórter, talvez não conseguisse fazer com que viessem à tona, dada a sensibilidade da escritora. Nos próximos capítulos iremos estudar mais a fundo o que torna tais textos peculiares de uma escritora que escreve para “leitores de alma já formada”.

36

CAPÍTULO II — NA MANCHETE, DIÁLOGOS COM CLARICE LISPECTOR

2 - 1 ACONTECEU, VIROU MANCHETE

“O importante não é ser, ter ou parecer. O importante é construir desenvolver.” (Adolpho Bloch)

É muito difícil debruçar-se sobre a história da revista Manchete sem antes conhecer a história de Adolpho Bloch, dono da empresa. Sua família chegou ao Brasil em 1922, ano em que o país, presidido por Epitácio Pessoa, comemorava o Primeiro Centenário da Independência. Formada por gráficos e editores russos, a família Bloch instalou sua primeira gráfica na rua Vieira Fazenda, 24, no Rio de Janeiro, com “duas máquinas impressoras movidas a manivela” 14 . Os negócios melhoraram, o que os levou a construir um prédio na Rua Frei Caneca, 511, a comprar uma rotativa off-set, e a montar uma editora, conforme lembra Bloch:.

Cansado da lupa, cansado de ser apenas impressor para os outros, eu tinha a vontade de ser editor. Julgava que conhecia todos os segredos de uma empresa jornalística. Conhecia bem o meu trabalho, desde a fabricação do papel até seu uso e impressão. 15

A Manchete começou a circular no dia 26 de abril de 1952, um ano depois de Adolpho Bloch ter apresentado o projeto de criação de uma revista a Henrique Pongetti e Raimundo Magalhães Júnior, amigos intelectuais, e a Pedro Bloch, seu primo. Não obstante o temor de seus amigos, Bloch acreditava na revista, enquanto concorrente da O Cruzeiro .

14 BLOCH, Adolph, Duas Mil Semanas de Manchete . Manchete – edição histórica, agosto de 1990, p. XII 15 Idem, ibdem.

37 O Cruzeiro estava no auge. A sua tiragem chegava aos 750 mil exemplares e se esgotava nas bancas [...] Conhecia a tenacidade de seu chefe Assis Chateaubriand. O esquema estava todo no meu computador. E assim comecei a minha nova vida. Imprimíamos revistas infantis para a Editora Brasil-América e para a Rio Gráfica. Com os recursos ganhos e aproveitando os dois dias por semana que me sobravam (sábado e domingo), realizei meu sonho em concreto. 16

Interessante o conteúdo do editorial da Manchete nº 1, que inicia-se com uma espécie de justificativa sobre a escolha do título da revista, uma palavra estrangeira, mais especificamente uma palavra francesa, com a terminação ette . Conforme o texto, a revista não somente decidiu incorporar a palavra manchette à língua portuguesa como também resolveu “dispensá-la de carregar um t redundante que a fonética eliminou” 17 , a fim de que tal palavra, agora com um só t, passe a ser sinônimo de primeiro plano, de grito gráfico , de valorização visual dos assuntos pela escolha do tamanho e da família dos tipos, o que já denuncia o apelo visual de que a revista iria lançar mão em seus anos de vida. O investimento inicial foi pequeno e o custo de produção, baixo, uma vez que as máquinas da tipografia da família, ociosas três dias na semana, podiam imprimir edições semanais da Manchete de 200 mil exemplares. Entretanto, a revista custava o mesmo preço da principal concorrente o que ocasionou grande lucratividade para a empresa, que em poucos anos, adquiriu máquinas para imprimir 800 mil exemplares semanais e um terreno no subúrbio de Parada de Lucas, onde se construiu o parque gráfico. Além disso, em 1956, a política editorial da revista foi reformulada. A paginação foi modificada e o texto atualizado de modo a transmitir ao leitor elementos acessíveis à compreensão dos acontecimentos 18 .

16 Idem, ibdem 17 Um momento leitor. Manchete - edição histórica, agosto de 1990, p. 10. 18 ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de and CARDOSO, José Leandro Rocha. Aconteceu, virou manchete . Rev. bras. Hist . [online], vol.21, no.41 [cited 29 August 2005], p.243-264, 200.

38 A equipe de redação também foi reforçada, e passou a ser composta por importantes intelectuais da época como Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Joel Silveira, Orígenes Lessa, Raimundo Magalhães Júnior, Guilherme Figueiredo, Otto Maria Carpeaux, Manuel Bandeira, Fernando Sabino, Antônio Maria, Nelson Rodrigues, Marques Rebello, Paulo Mendes Campos, Lygia Fagundes Telles, Antônio Callado, Sérgio Porto, Ciro dos Anjos, Olegário Mariano, Jânio de Freitas e muitos outros. Jean Manzon, que trabalhou para a Paris Match e O Cruzeiro, foi o principal fotógrafo. Ao seu lado, estiveram Darwin Brandão, Gil Pinheiro, Gervásio Baptista, Fúlvio Roiter, Jader Neves etc. O apogeu da Manchete foi concomitante com o declínio de O Cruzeiro e com a transferência de dezessete jornalistas deste periódico para a Manchete , em 1958, por divergirem da postura ética do proprietário. Politicamente, a revista se identificava com a corrente desenvolvimentista antiliberal e industrializante do pensamento econômico. Adolpho Bloch simpatizava com as idéias políticas do governo Juscelino Kubitschek, desde a campanha eleitoral.

2 - 2 CLARICE LISPECTOR NA MANCHETE

“As entrevistas são interessantes. Todas as pessoas têm sempre alguma coisa de bom para contar, das mais catedráticas às mais fúteis [...]” (Clarice Lispector)

Clarice Lispector trabalhou para a revista Manchete de maio de 1968 a outubro de 1969, em colunas semanais, intituladas Diálogos Possíveis com Clarice Lispector , que apresentava semanalmente entrevistas com grandes nomes do meio artístico e político, em sua maioria, amigos da escritora.

39 Os anos de 1968 e 1969 foram marcados importantes, alguns tristes, acontecimentos no Brasil e no mundo. No dia 6 de julho de 1968, o senador Robert Kennedy, irmão de John Kennedy — assassinado anos antes —, foi morto a tiros no hall do Hotel Ambassador, em Los Angeles, quando se preparava para comemorar a vitória nas eleições primárias da Califórnia. Nesse ano, também, Nixon toma posse de seu primeiro mandato presidencial dos Estados Unidos. A Europa contribuiu com a Primavera de Praga, quando tropas do Pacto de Varsóvia invadiram a Tchecoslováquia Em Paris, outra primavera violenta, com a rebelião estudantil. Houve violência também no México, onde, dias antes de começar as Olimpíadas, centenas de estudantes foram literalmente bombardeados com bazucas do exército, durante rebelião no campus da Universidade Federal. No Brasil, dia 13 de dezembro, foi decretado o Ato Institucional nº 5, que instituiu a censura, e resultou em cassações, perseguições, prisões e torturas. O país também perdeu com a morte de duas grandes personalidades: os jornalistas Sérgio Porto (Stanislau Ponte Preta) e Assis Chateaubriand. Ainda em 1968, Brasil recebeu a visita da Rainha Elizabeth II. O ano foi igualmente relevante para a revista Manchete. Em novembro de 1968, as redações da revista foram transferidas da rua Frei Caneca para a Rua de Russel, em um edifício idealizado por Bloch, projetado por Niemeyer e construído pelo departamento de engenharia da empresa. O ano de 1969 significou novas mudanças para o mundo. O homem chegou à Lua. Devido à doença do marechal Costa e Silva, Brasil passou a ser comandado pela junta militar integrada pelo Almirante Augusto Rademaker, General Lira Taveres e Brigadeiro Márcio de Souza e Melo, no período entre 30 de agosto e 30 de outubro. Já para Clarice Lispector, este período correspondeu à intensa produção jornalística, compreendida por trabalhos para a revista Manchete e para o Jornal do Brasil.Segundo Nadia Gotlib, a Clarice do final de década de 1960 está “recolhendo as várias Clarices de todos os tempos e, em certos momentos, revendo-a. Ou melhor, relendo-a, o espaço jornalístico propicia essa revisão de si.” (1995, p.377).

40 No que concerne a sua produção literária, em 1968 é publicado seu segundo livro infantil: A mulher que matou os peixes, e, em 1969, é publicada a obra Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres , livro que, segundo a própria autora, foi trabalhado por durante nove dias. Vale lembrar que, nessa época, Clarice já havia se divorciado e sofrido um acidente 19 que a deixara gravemente ferida, principalmente na mão direita, a que usava para escrever. Voltando às entrevistas, iremos, primeiramente, estudar o texto de apresentação dos entrevistados, recorrente em quase todas as entrevistas, para, posteriormente, analisarmos o diálogo propriamente dito, a fim de reconhecermos a autenticidade da Clarice Lispector ficcionista nestas produções jornalísticas, ou, melhor, das várias Clarices de todos os tempos, nas palavras de Gotlib.

2 - 3 TEXTOS INTRODUTÓRIOS

“Não vou apresentar Millôr: quem o conhece sabe que eu teria que escrever várias páginas para apresentar uma figura tão variada em atividades e talento” . (Clarice Lispector - Diálogos Possíveis com Clarice Lispector )

Quase todas as entrevistas realizadas por Clarice Lispector são iniciadas com uma pequena introdução sobre o entrevistado e sobre a própria entrevista a ser realizada. Tais textos introdutórios merecem um olhar mais apurado pois, malgrado sejam, na maioria das vezes, breves e sucintos, além de anteciparem o entrevistado e, em alguns casos, a maneira como a entrevista foi realizada, também contêm alguns elementos essenciais para análise dos discursos claricianos nessa produção jornalística específica, uma vez que denotam, em vários momentos, uma linguagem experimental, como se Clarice fizesse de seu trabalho na imprensa uma espécie de laboratório para suas futuras produções literárias. Vamos a eles.

19 Na madrugada do dia 14 de setembro de 1967, Clarice adormecera fumando, e, acordou sob um incêndio em seu apartamento. Por tentar apagar o fogo com as mãos, sofreu sérias queimaduras, que deixariam profundas cicatrizes em sua mão direita e na perna.

41 O primeiro texto introdutório relevante para nosso estudo discorre a respeito de Djanira 20 em entrevista realizada dia 25 de maio de 1968:

Como não amar Djanira, mesmo sem conhecê-la pessoalmente? Eu já amava seu trabalho, e quanto — e quanto. Mas quando se abriu a porta e eu a vi — parei e disse: — Espere um pouco, quero ver você. E vi — eu vi mesmo — que ela ia ser minha amiga. Ela tem qualquer coisa nos olhos que dá a idéia de que o mistério é simples. Não estranhou o fato de eu ficar olhando para ela, até eu dizer: — Pronto, agora já conheço você e posso entrar. Djanira tem a bondade no sorriso e no rosto, mas não uma bondade morna. Nem é uma bondade agressiva. Djanira tem em si o que ela dá no seu trabalho. É pouco isso. Nunca, isso é tudo. Isso é a veracidade do ser humano dignificado pela simplicidade profunda que existe em trabalhar. Sentamo-nos, eu sem tirar os olhos do rosto dela, ela me examinando com bondade, sem me estranhar nem um pouco. Não se deve escrever Djanira e sim DJANIRA.

Nota-se no trecho em destaque, que Clarice já lança mão de elementos do diálogo para a descrição da entrevistada. Os discursos diretos são anunciados pelos verbos dicendi e assinalados pelos indicadores grafêmicos dois pontos e travessão. No entanto, distanciam- se da forma convencional, pois mesclam-se com o monólogo interior da entrevistadora, como se as falas fossem artifícios para corroborar o pensamento da entrevistadora.

20 Djanira da Motta e Silva, mais conhecida no meio artísticos simplesmente como Djanira, nasceu na cidade de Avaré, interior do Estado de São Paulo, em 1914. Sua carreira como pintora teve início em 1942 na cidade do Rio de Janeiro. A década de quarenta serviu para a formação e amadurecimento da vida artística da pintora. A partir da década de 50 inicia-se o segundo período de sua carreira, assinalado pelo amadurecimento artístico e grande reconhecimento. Desta época até 1979, ano de sua morte, Djanira teve grande produção artística, participando de exposições nacionais e internacionais, e recebendo vários prêmios.

42 Por intermédio da alocução, “espera um pouco, quero ver você”, Clarice Lispector frisa seu grande desejo em conhecer a entrevistada, quem não conhece pessoalmente, porém, já por ela é admirada. Conseguinte à fala, ela se utiliza de outro travessão, e, dessa forma, dá um duplo sentido ao verbo ver, que passa a significar tanto observar como compreender. Portanto, pelo verbo ver, a entrevistadora tanto olhou, analisou, conheceu pessoalmente a entrevistada, quanto percebeu que iria ser uma grande amiga sua. Ainda, sob o mesmo eixo sintagmático, Clarice utiliza-se do signo “olhos” para descrever sua entrevistada: “ela tem qualquer coisa nos olhos que dá a idéia de que o mistério é simples”. A forma como Clarice se utilizou do verbo ver nos remete ao estudo realizado por Regina Pontieri, intitulado Clarice Lispector: uma poética do olhar , que aborda justamente o olhar nas obras literárias de Clarice Lispector. Dentre as obras analisadas, merece destaque Cidade Sitiada (CS). Segundo a Autora, em CS o “espírito ficcional” se distancia e exterioriza pois se dá como espaço de visibilidade. Em Efigênia, uma das personagens de CS, seu corpo “servia-lhe apenas como sinal para poder ser vista.” A narradora e personagens do romance têm como desejo, este, sempre renovado, ver. Para ela, Lucrecia, a protagonista da obra, é vidente e visível: “[...] através dela é possível desconstruir a oposição observador/observado e reconstruir um vidente/visível.” Traçando um paralelo com o trecho introdutório previamente analisado por nós e a análise de Regina Pontieri, também na apresentação da entrevistada há um espaço de visibilidade, em que, tanto entrevistadora e entrevistada têm como desejo este sempre renovado ver. Clarice, enquanto vidente e observadora, Djanira enquanto observada e visível. Importante ressaltar que além de a entrevistadora “não tirar os olhos” de sua entrevistada, esta, ao final do texto, examina Clarice “com bondade”, sem a “estranhar nem um pouco”, invertendo os papéis de visível/vidente, observadora/observada.

43 Há um jogo com o próprio nome da entrevistada, que, ao ser grafado todo em letra maiúscula, ganha importância em todas as suas letras. Além disso, nota-se o deslocamento entre significante e significado na linguagem utilizada, principalmente no que tange à palavra bondade qualificada aqui como “morna” ou “agressiva”, o que, invariavelmente nos leva à riqueza de figuras característica da obra literária clariciana, uma vez que a Clarice Lispector ficcionista parece lançar mão do obscurecimento sêmico em que a linguagem se constrói. Apesar de a escritora não criar palavras novas, neologismos, ela trabalha com figuras, imagens, engendrando a “técnica da ilusão”. Sua obra A cidade sitiada , é, segundo , “uma alegoria das mudanças no tempo dos indivíduos e das coisas que os rodeiam” (NUNES, 1995, pág. 32). O desvio semântico permeia o romance por expressões como “a praça estava nua”, transmitindo a impressão de que não havia ninguém na praça, ou ainda de que a praça estava à mostra tal qual ela é, sem se ocultar sob roupas ou ornamentos ; “o tempo correu com a brisa sobre o campo”, proporcionando ao tempo a força de uma brisa; “seu modo de ver era tosco, rouco, recortado”; entre muitos outros. A recursividade da metáfora precede A Cidade Sitiada , e, já em sua primeira obra, Perto do coração selvagem a autora apresenta uma força poética, que, conforme Benedito Nunes impôs-se à atenção da crítica. Sérgio Milliet, em sua primeira crítica, observa que a escritora tem a capacidade de dar vida própria às palavras, emprestando-lhes um conteúdo inesperado. Segundo o crítico, isto é poesia.

44 Podemos observar o uso de figuras em outros trechos introdutórios das entrevistas realizadas por Clarice Lispector, como na entrevista realizada com Roberto Burle-Marx 21 , realizada dia 26 de outubro de 1968:

Deus e Roberto Burle-Marx fazem paisagens, sem que uma fira a outra: a paisagem do grande artista não machuca a natureza, sua vegetação lembra a de uma paisagem submersa ondulante, que às vezes atrai como tentáculos de animais submarinos. Às vezes ela parece simplesmente erguida da terra como fruto da própria terra. Sim. São delicadíssimas as paisagens que ele cria. Mas delicadíssimas reais, isto é, abrangendo também a violência e a singularidade que a vegetação natural tem.

Primeiramente, de acordo com a entrevistadora, Deus e Roberto Burle-Marx fazem paisagens, o que permite várias interpretações, entre elas, a de que a paisagem de Burle- Marx é divina, ou, de que Deus e Burle-Marx são equiparados no tocante às paisagens, etc. Imediatamente, notamos o uso do verbo machucar, enquanto ação da “paisagem do grande artista” sobre a natureza, ou seja, a paisagem não machuca a natureza. Entre as acepções do verbo em questão encontramos: esmagar (um corpo) com o peso e/ou de outro; triturar; debulhar; pisar; amarrotar; fazer feridas em; magoar. Quando utilizado no texto, o verbo amplia-se entre os diferentes significados, como se a paisagem se personificasse a ponto de ter a capacidade de magoar, ferir, até mesmo pisar a natureza, mas que nas mãos de Burle-Marx, não o faz.

21 nasceu em São Paulo no dia 4 de agosto de 1909. Em 1913, mudou-se para o Rio de Janeiro. Estudou pintura na Alemanha nos anos de 1928 e 1929. De volta ao Brasil, ingressou, em 1930, no curso de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde recebeu a Medalha de Ouro em Pintura, no ano de 1940. Paralelamente à pintura e ao desenho passou a desenvolver projetos paisagísticos. Pelo seu trabalho, Burle-Marx tornou-se renomado paisagista no país e no estrangeiro, com a elaboração de projetos de jardins, praças, aeroportos, palácios e residências em diversas cidades brasileiras, como os do Museu de Arte Moderna e do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, o do Parque Ibirapuera, em São Paulo, e do Eixo Monumental em Brasília, entre muitos outros. Em 1994, uma tentativa de seqüestro o deixou profundamente deprimido e pode ter contribuído para abreviar a vida de Burle Marx. Três meses depois, médicos diagnosticaram um câncer no abdômen do paisagista. Morreu dia 4 de julho de 1994, aos 84 anos.

45 A paisagem de Burle-Marx é ainda metaforizada quando comparada a uma “paisagem submersa ondulante”, pois, dessa forma, atrai “como tentáculos de animais submarinos”. Suas paisagens ainda são “delicadíssimas reais”, um paradoxo, que relaciona duas idéias opostas, delicado e real, uma vez que o real, no texto, refere-se à violência da vegetação natural. A propósito, tanto o paradoxo, quanto a antítese e o oximoro também estão presentes na ficção de Clarice Lispector, como, por exemplo, em Água Viva, em que, conforme César Mota Teixeira, já no primeiro parágrafo “entra em cena através de um grito/ canto de aleluia, celebrando, com seu júbilo diabólico (paradoxo que funde dor e prazer, sagrado e profano), a libertação de um suposto amante”. (TEIXEIRA, 2004, p. 165) Ou ainda, em Perto do Coração Selvagem, quando Otávio sonhava com a “música pura desenvolvendo-se sem homens”, sendo esta a “música sem apoio em coisas, em espaço ou tempo, da mesma cor que a vida e a morte. Vida e morte em idéia, isoladas do prazer e da dor.” (PCS, p. 83). Nota-se neste trecho que os paradigmas vida e a morte e prazer e dor, contrários entre si, constroem elementos paradoxais, ao serem confrontados em uma mesma frase. No que tange ao sistema de oposições, Mendes de Sousa assinala seu aspecto fundamental à linguagem lispectoriana: “Talvez não possam dispensar-se os sistemas de oposição, as polaridades de que necessitamos para compreender o mundo; no interior do discurso clariciano, ainda que se pretende a abolição das categorias dicotômicas, faz-se delas uso continuado.” (2000, p.110) O texto introdutório da entrevista com Tereza Souza Campos contém, outrossim, elementos paradoxais significativos na apresentação da entrevistada:

Tive a idéia de entrevistar Tereza Souza e Campos porque eu não simpatizava com ela. A “mulher mais elegante” não me interessa. [...] Acontece que por ocasião do telefonema tive que ficar em guarda: a voz de Tereza era expressiva e me agradava. Iria ela me conquistar para o seu lado? Não, não sou fraca.

46 E assim nos encontramos. Tereza é diferente do que aparece nas fotografias e, lamento dizer, é bem mais simpática. Eu tinha que ficar realmente em guarda, porque minha tendência é gostar das pessoas. E até dos meus inimigos, que não considero inimigos.

Já no início do texto, constatamos que a explicação sobre o porquê da entrevista, que a princípio deveria ser elucidativa, é adversativa. Clarice escolhera manter um diálogo possível com Tereza Souza e Campos não porque a admirasse ou algo do gênero, mas, ao contrário, porque não simpatizava com ela. Ao longo do texto, a dicotomia muito/nada é utilizada para a reiteração da visão negativa da entrevistadora sobre “o primeiro figurino do país” em contraposição ao que é ser uma “pessoa” na visão de Clarice Lispector. A palavra pessoa entre aspas é sucedida pelo assertiva: “e o Brasil precisa de muito”, associando a “pessoa” ao advérbio de intensidade muito. Em contrapartida a expressão “primeiro figurino” é repetida após a afirmação “e não precisa de nada”, aproximando a expressão ao advérbio nada. Já ao final do texto, Clarice, ao confessar o temor em ser conquistada pela entrevistada por sua voz “expressiva” e por sua simpatia maior do que se supunha, afirma que não é fraca, mas, concomitamente, revela sua tendência a gostar até dos inimigos (que não considera inimigos) como um sinal de fraqueza. Outro aspecto interessante do texto, que retoma, mais uma vez, as obras literárias de Clarice Lispector, consiste na expressão “mulheres que se dedicam de corpo e moda”, utilizada pela entrevistadora em um certo momento do texto para classificar pessoas como a sua entrevistada. Há aqui um trocadilho com o jargão “de corpo e alma”, em que a alma é sugestivamente substituída pela moda. Comumente, encontramos este tipo de paródia na ficção clariciana. Não raro, o leitor se depara com freqüentes alusões a provérbios e clichês, que podem ser perfeitamente entendidos aqui como paródia, uma vez que, conforme Afonso Romano de Sant’Anna, o texto parodístico corresponde a “uma maneira nova e diferente de ler o convencional”, “um processo de liberação do discurso”, enfim, uma “tomada de consciência crítica”.

47 Um bom exemplo sobre a ocorrência da paródia na ficção clariciana encontra-se no livro A Maça no Escuro , mais precisamente na passagem em que Martim dialoga com seu pai.

—Você tem descortinado ultimamente, filho? —Tenho, pai, disse contrafeito com a intrusão de intimidade, toda vez que o pai quisera “compreendê-lo”, deixara-o constrangido. —Como vão suas relações sexuais, meu filho? —Muito bem, respondeu com vontade de mandar o pai para o inferno de onde o tirara. —Você sabe que o amor é cego, que quem ama o feio bonito lhe parece, e que seria do amarelo se não fosse o mau gosto? E que em casa de ferreiro espeto de pau, e quem não tem cão caça com gato, e boca-não-erra? Disse o pai descarrilhando um pouco mais, não faltava muito para começar a contar o que fazia com mulheres antes de ser casado com sua mãe. Você sabe que esperança é dura combate que aos fracos abate, e, aos fortes, etc. (ME, p.256)

Também é possível observar na obra de Clarice uma paródia séria e não burlesca como bem o define Olga de Sá em Travessia dos Opostos , ao enunciar o pólo paródico como um dos focos “imantados que polarizam metáforas, imagens, recursos sintáticos, sinestesisas, paranomásias, oxímoros, repetições, etc”.

O pólo paródico, constituído pela paródia séria, não burlesca que denuncia o ser, pelo desgaste do signo, descrevendo o que foi escrito, num perpétuo diálogo com seus próprios textos e com outros textos do universo literário. Neste caso, a intertextualidade e a intratextualidade se constituem em procedimentos paródicos. (2004, p.15)

Desta maneira, se explica as recorrentes referências a trechos bíblicos pesquisados por Carlos Mendes de Sousa em estudo feito sobre as figuras da escrita de Clarice Lispector.

48 Ao falar-se do intertexto bíblico e da idéia do percurso, lembre-se aqui, bem a propósito, um texto jornalístico de Clarice Lispector, muito pouco conhecido, que foi enviado para o Diário Carioca sob o pretexto de noticiar a representação de uma peça de A. MacLeisch: “Deu-se em Washington a pré estréia da peça de Archibald Mac Leish, ‘J.B.’, agora no teatro ANTA, de Nova Iorque. As reações foram variadas. Houve os que se reemocionaram com Job, houve os que se comoveram com J.B., o homem de negócios, e os que choraram os próprios males, pois teatro é lugar quente neste frio daqui. Alguns consideraram a peça um acontecimento literário que, uma vez no palco, se transformou numa simples reafirmação do Antigo Testamento — com menos dramaticidade que este, e as melhores frases tiradas do próprio livro de Job”. (2000: 130)

Mendes de Sousa enfatiza que o artigo foi publicado em 21 de dezembro de 1958, ou seja, dois anos depois da data apontada como data de conclusão de A Maçã no Escuro. O autor relaciona ainda, alguns trechos desta obra com passagens bíblicas, como, a reflexão sobre o domingo no segundo capítulo da primeira parte, e sua incessante reiteração, comparada à exegese bíblica, a que vai se buscar “um sentido para o domingo que é simbolicamente projectado nas tradições culturais de inspiração cristã: o ‘dia do Senhor’, dia que romanos e judeus consideravam o primeiro dia da semana”. Retornando ao trecho introdutório da entrevista com Tereza Souza Campos, além de artifícios que nos levam ao texto ficcional de Clarice Lispector, a introdução à entrevista apresenta ainda um elemento crucial para entendermos a linguagem de Clarice Lispector nas entrevistas: o simulacro de um suposta conversa entre a entrevistadora e entrevistada, via telefone, apontada pelo discurso direto e indireto, no início do texto:

[...] Quando eu telefonei para marcarmos o diálogo e o ponto de encontro — Country Club, escolheu ela — expliquei-lhe que, apesar de ela ser o primeiro figurino do país, não era sobre isso que eu a entrevistaria. Ela riu brincando: “Mas ser o primeiro figurino do país já é alguma coisa!” Nada respondi. No entanto, responderia: queiram os céus que Tereza não seja apenas o primeiro figurino do país, senão terei que lhe explicar o que é uma “pessoa” . E que o Brasil precisa de muito, e não precisa de nada de primeiro figurino. [...]

49

A primeira fala, acerca do local onde seria a entrevista, surge entre travessões, em discurso indireto. Ainda no discurso indireto, é transmitida a “fala” da entrevistadora a respeito do conteúdo da entrevista. Em seguida, já no discurso direto, assinalado pelas aspas e pelo verbo riu é reproduzida a fala da entrevistadora. Como na entrevista com Djanira, aqui também há a mescla entre o diálogo e o monólogo interior, o que corrobora o uso da linguagem de uma maneira não convencional, até mesmo, porque não dizer, experimental. O texto introdutório da entrevista realizada no dia 3 de maio de 1969 com Glória Magadan 22 reitera o aspecto experimental da linguagem utilizada por Clarice Lispector:

Eu, pobre de mim, esperava uma entrevista espetacular: mas acontece que Glória Magadan, o que tem de prolixo nas novelas, tem de laconismo na vida real. Ela não é lacônica no sentido de se furtar a falar, mas responde sucintamente às perguntas. Trata-se de uma criatura bem jovem ainda, vaidosa, mas sem excessos: no seu apartamento de alto luxo recebeu-me de calças compridas e uma blusa bonita, não me lembro da cor. Enquanto ela se vestia, fiquei conversando com sua secretária. Esta estava de minivestido vermelho com muitos dizeres psicodélicos impressos. O que mais vem a provar que a juventude de hoje, por assumir trajes ou cabeleiras estranhos para os mais velhos, é séria e capaz de um trabalho altamente eficiente. Perguntei-lhe quando Glória Magadan trabalhava. — Levanta-se pelas cinco da manhã e trabalha, mais ou menos, até dez e meia. Eu é que trabalho depois de dez da noite, quando tudo está calmo. — Que espécie de trabalho? — Traduzir os capítulos do espanhol para o português. Glória Magadan fala português, mas escreve espanhol.

22 Maria Magdalena Iturrioz y Placencia, Glória Magadan, chegou ao Brasil em 1964, exilada de seu país, Cuba, para ser supervisora da seção internacional de novelas da Colgate-Palmolive de São Paulo. Logo em seguida, foi contratada pela TV Globo e chegou a ser diretora do núcleo de dramaturgia da emissora na década de 1960. Em 1969, foi demitida da emissora e contratada pela Tupi com a novela E nós aonde vamos (última novela da atriz ). A novela foi um fracasso, e Magadan passou a escrever novelas em Miami.

50 A secretária trabalha bem: não se sente o mínimo travo de outra língua. E de dia ela cuida dos interesses de Glória. Invejei de nôvo Glória Magadan: eu precisaria de uma secretária que se ocupasse de minha vida inteira (Por favor, que não se apresente ninguém, vou me arranjando como posso). Finalmente, Glória Magadan — a que diverte milhões de pessoas — estava ali. Simples e até com um tom modesto.

Ao longo da apresentação de Glória Magadan, Clarice trava um diálogo com sua secretária, na forma de perguntas e respostas, tal qual em suas entrevistas, como se quisesse entrevistar também alguém próximo da entrevistada, pelo fato de esta ser “lacônica”, segundo a própria entrevistadora. Realizado no discurso direto, o diálogo é assinalado pelos travessões e verbos dicendi, porém, tal qual nas outras entrevistas, mistura-se com o monólogo interior da entrevistadora. O que diferencia, particularmente, este diálogo dos demais é justamente a forma como se apresenta, por perguntas e respostas. Há, ainda, um certo tom de ironia durante todo o texto, acerca do “laconismo” de Glória Magadan em oposição às suas novelas, prolixas, que divertem milhões de pessoas. Conforme foi possível observar, por intermédio de seus textos introdutórios, Clarice não apenas apresenta ao leitor o entrevistado e a entrevista que será realizada, como também já circunscreve uma linguagem característica, não convencional, que, em certos aspectos nos remete às obras ficcionais, além de inovar na forma, ao singularizar o uso dos discursos direto e indireto em uma entrevista. Já os diálogos são mantidos, na sua maioria, na forma de pergunta e resposta, seguindo o estilo “pingue-pongue”. Por conseguinte, há que se questionar se tal linguagem é mantida. É o que analisaremos a seguir.

2 - 4 DIÁLOGOS POSSÍVEIS

“Djanira, você é uma criatura fechada. E eu também. Como vamos fazer? O jeito é falar a verdade. A verdade é mais simples que a mentira.”

51 (Clarice Lispector - Diálogos Possíveis com Clarice Lispector )

No que concerne ao formato de perguntas e respostas que delineia as entrevistas, os diálogos não subvertem a forma, mantendo o padrão seguido pelas demais entrevistas da revista Manchete . Mas, antes que se delimite o discurso clariciano nas entrevistas pelas regras balizadoras do veículo de comunicação em que são publicadas, faz-se necessário considerar aspectos incisivos na tessitura do texto, alguns pontuados pela própria escritora. Conforme Clarice Lispector afirmou para a jornalista da Veja .23 , suas entrevistas aproximam-se mais de uma conversa do que de uma entrevista jornalística clássica, pelo fato de a entrevistadora também expor-se ao seu entrevistado. Malgrado já havermos desmistificado a problemática das perguntas clássicas no jornalismo, há uma certa lógica em Clarice, ao querer equiparar seus diálogos a uma conversa. Em grego, diálogo significa conversa, dia, com, logos, palavra, discurso (Massaud Moisés ,1974, p. 143). Massaud Moisés o define como um intercâmbio verbal entre duas ou mais pessoas. Outrossim, Kierkegaard, a partir da arte de perguntar do método socrático, valida a arte de conversar, em contraposição à expressão falar, que é o aspecto egoístico do “bem falar”. Conforme suas ponderações, enquanto a eloqüência oratória vê como objeto a própria expressão, desligada da idéia, na conversação, ao contrário, o falante é obrigado a não largar a idéia ( KIERKEGAARD, 1991, p. 40). Com efeito, Clarice se expõe nas entrevistas, realizando, assim, o intercâmbio verbal com seus entrevistados. Já na primeira entrevista, como foi demonstrado no primeiro capítulo, Clarice fala do acidente que sofrera para Nelson Rodrigues 24 . Clarice Lispector evoca novamente seu acidente em entrevista realizada com Vinícius de Morais 25 , ao reclamar de sua mão queimada: [...] “Vinícius, fale mais devagar, porque esta minha horrível mão queimada escreve devagar”. (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete , Rio de Janeiro, ano 16, n.860, p.36, 12 out. 1968)

23 ver página 7 24 ver página 30 25 Marcus Vinícius Cruz de Morais (Rio de Janeiro — RJ 1913 – id. 1980), conhecido como Vinícius de Morais, em 1938, recebeu a primeira bolsa do Conselho Britânico para a Universidade de Oxford, onde foi estudar língua e literatura inglesa.

52 Já, com Millôr Fernandes 26 , Clarice revela que, como ele, também busca a bondade: “Também eu a procuro com a humildade e ao mesmo tempo com veemência. Millôr, você ainda faz hai-kai”. (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete , Rio de Janeiro, ano 16, n. 863, p.37, 02 nov. 1968) A concentração na primeira pessoa chega a tal ponto que os próprios entrevistados chegam a formular perguntas a Clarice Lispector, como ocorre com Chico Buarque 27 na entrevista intitulada Chico Buarque ou Xico Buark, publicada na Revista Manchete dia 14 de setembro de 1968:

—Tenho a impressão de que você nasceu com a estrela na testa: tudo lhe correu fácil e natural como um riacho de roça. Estou certa se pensei que para você não é laborioso criar? —E não é. Porque às vezes estou procurando criar alguma coisa e durmo pensando nisso, acordo pensando nisso — e nada. Em geral eu canso e desisto. No outro dia a coisa estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita, nascida naquele momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior inconsciente e aparentemente negativo. E como é seu trabalho? [..] —Se você tem uma idéia para um romance, você sempre pode reduzi-lo a um conto? —Não é bem assim, mas se eu falar mais, a entrevistada fica sendo eu. (..) 28

Já tinha então publicado quatro livros de poesia O caminho para a distância (1933), Forma e exegese (1935), Ariana, a mulher (1936) e Novos poemas (1938). A retornar ao Brasil, ingressou na carreira diplomática: serviu em Los Angeles (1946 – 1951) , em Paris (1953 – 1956) e Montevidéu (1958 – 1960). Sua peça teatral Orfeu da Conceição , com música de Antônio Carlos Jobim, foi encenada no Rio de Janeiro em 1956. Em 1963 compôs com Antônio Carlos Jobim o samba Garota de Ipanema . A maior parte de sua produção literária encontra-se em sua Antologia poética (1955). També foi autor de famosas composições com música de Antônio Carlos Jobim, Carlos Lira, Baden Powell, , Francis Hime, Toquinho (Antônio Pecci Filho). 26 Millôr Fernandes nasceu no Rio de Janeiro em 1924. Humorista, jornalista e dramaturgo, iniciou sua carreira em O Cruzeiro , em que manteve a página Pif-Paf de 1945 a 1963. Em 1963, fundou a revista Pif-Paf , que teve apenas oito números, sendo o último apreendido pela censura. Com Flávio Rangel criou o espetáculo Liberdade, liberdade . (1966). Escreveu roteiros cinematográficos, obras teatrais e manteve paralelamente sua atividade de humorista em diversos periódicos ( O Pasquim,Veja , Istoé ) 27 Nascido em 1944, no Rio de Janeiro, Francisco Buarque de Holanda, em 1966, trocou o curso de arquitetura pela música popular. Sua obra estende-se à ficção, Fazenda modelo (1974), Estorvo (1991) ,etc; à dramaturgia com Roda Viva (1967), Gota D’água (1975) ,Ópera do Malandro (1979), etc; ao cinema, Quando o carnaval chegar (1972), de C. Diegues, Vai trabalhar vagabundo (1974), de Hugo Carvana; e à música. Em 1992, recebeu o Prêmio Jabuti de melhor ficção pelo romance Estorvo . 28 As falas da Clarice Lispector estão sublinhadas, conforme a publicação na revista Manchete

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Em entrevista com escritores, Clarice também se vale de sua própria criação literária ao indagar a seu entrevistado sobre o ato de escrever, como acontece com Marques Rebelo 29 , que, assim como Chico Buarque, também chega a formular perguntas a sua entrevistadora:

[...] — Que me diz você de seu último livro? — É o terceiro volume do Espelho, produto de paciência, quase obstinação. — É, a gente escreve às vêzes por obstinação. Mas é uma obstinação vital. Você trabalha só quando está inspirado ou tem uma disciplina? — Trabalho por uma disciplina: escrevo sempre, mesmo que seja para jogar fora ou refazer trinta vêzes. Reescrever é mais importante que escrever, não é, Clarice? — Minha situação é outra: eu acrescento ou corto, mas não reescrevo. — Você escreveu Uma Galinha assim? Porque me parece fruto de um trabalho enorme. — Escrevi Uma Galinha entre meia hora ou quarenta minutos, o tempo de bater na máquina. Daí o meu espanto quando vejo êsse conto republicado tantas vezes. Você trabalha de manhã, de tarde ou de noite? [...] (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete , Rio de Janeiro, ano 16, n. 864, p.116, 09 nov. 1968)

29 Sob pseudônimo de Marques Rebelo, Edi Dias da Cruz foi jornalista, contista, cronista, novelista e romancista. Nasceu (6/01/1907) e faleceu (26/08/1973) no Rio de Janeiro. Foi eleito em 10 de dezembro de 1964 para a Cadeira n. 9 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Carlos Magalhães de Azeredo. Entre as suas obras estão: Oscarina, contos (1931); Três caminhos, contos (1933); Marafa, romance (1935); A estrela sobe , romance (1939); Stela me abriu a porta , contos (1942); Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida , biografia (1943); Cenas da vida familiar , crônica de viagem (1943); Cortina de ferro , crônica de viagem (1956); Correio europeu , crônica de viagem (1959); O trapicheiro , romance (1959); A mudança , romance (1962); A guerra está entre nós , romance (1968).

54 Com Fernando Sabino 30 , Clarice igualmente discorre sobre seu próprio ato de criação:

— Fernando, porque é que você escreve? Eu não sei porque escrevo, de modo que o que você disser talvez sirva para mim. — Há muito tempo que não escrevo. A última vez foi ali por volta de 1956, 1957. Escrevia por necessidade de me exprimir. Desde então tenho me utilizado da palavra escrita como atividade profissional, por necessidade de ganhar a vida. Mas não chamo a isso de escrever, como ato de criação artística. — Como é que começa em você a criação, por uma palavra, uma idéia? É sempre deliberado o seu ato criador? Ou você de repente se vê escrevendo? Comigo é uma mistura. É claro que tenho o ato deliberador, mas precedido por uma coisa qualquer que não é de modo algum deliberada. [...] (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete , Rio de Janeiro, ano 16, n.875, p.40, 25 jan. 1969)

Pelos trechos acima assinalados, notamos que antes de pedir, Clarice se oferece, não apenas pelo que sabe, mas, principalmente, pelo que não sabe, como que a desvelar no outro a complexidade e a dúvida de ser outro. O diálogo, aqui, se delineia pelas margens da conversa, transformando-a em um discurso polissêmico e plurissignificativo. Outro fator singularizador da linguagem clariciana em suas entrevistas: a mescla do discurso dialógico com os monólogos interiores, tal qual ocorre nos textos introdutórios. Vejamos o trecho a seguir extraído da entrevista com Vinícius de Morais, exatamente quando Clarice Lispector fala sobre sua mão queimada:

[...]

30 Fernando Tavares Sabino nasceu em Belo Horizonte — MG em 1923 e faleceu em 2004. Começou a escrever aos 13 anos, publicando contos e crônicas em jornais. Iniciou-se como jornalista na revista Argus , de Minas Gerais. Atuou ao lado de Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos. Trabalhou em Nova Iorque (1946-1948) e na Europa (1950). Foi adido cultural da Embaixada do Brasil em Londres (1964-1966). Fundou a Editora do Autor e a Sabiá, com Rubem Braga, e também uma produtora de cinema, a Bem-Te-Vi Filmes. Sua obra inclui contos, crônicas e romances. Fernando Sabino foi grande amigo de Clarice Lispector. A obra Cartas perto do coração , que reúne a correspondência entre ambos, revela o grau de amizade que se estabeleceu entre os dois escritores. Um dado curioso, ambos faleceram um dia antes de suas respectivas datas de aniversário. Ela, 9 de dezembro de 1977; ele, 11 de outubro de 2004.

55 — Vinícius, fale mais devagar, porque essa minha mão queimada pelo incêndio escreve devagar. — Meu pai também tocava violão, cresci ouvindo música. Depois a poesia fez o resto. — Fizemos uma pausa. Êle continuou: — Tenho tanta ternura pela sua mão queimada... (Emocionei-me e entendi que êste homem envolve uma mulher de carinho.) Vinícius disse, tomando um gole de uísque: [...]

O monólogo da entrevistadora, assinalado entre parênteses, é precedido pela declaração de Vinícius de Morais sobre a mão queimada de Clarice Lispector, como tentativa de transcrever também as emoções, além das falas. A entrevistadora inova ainda ao posicionar a frase “Fizemos uma pausa. Ele continuou” precedida por um travessão, como se a pausa que fizeram após a fala de Vinícius também correspondesse a uma outra fala, interior, tal qual o monólogo entre parênteses, e porque não dizer, a própria assertiva de Vinícius sobre a mão queimada de Clarice Lispector. Nota-se que o discurso clariciano é distanciado do convencional durante toda entrevista, inclusive, ao final, quando Clarice realiza outros diálogos, com mulheres, como a então esposa de Vinicius, Nelita, na tentativa de se reafirmar o que Clarice constata no início da entrevista, sobre uma conversa que tivera pelo telefone com uma ex-mulher de Vinícius, que o poeta “ama o amor, e nele inclui as mulheres”. Abaixo, a reprodução da parte final da entrevista:

[...] Meditamos um pouco, conversamos mais ainda, Vinícius saiu. Então telefonei para a atual espôsa de Vinícius, Nelita . — Nelita como é que você se sente casada com Vinícius? Ela respondeu com aquela voz que é um murmúrio de pássaro: — Muito bem. Êle me dá muito. É mais importante do que isso, êle me ajuda a viver, a conhecer a vida, a gostar das pessoas. Depois conversei com uma mocinha inteligente:

56 — A música de Vinícius, disse ela, fala muito de amor e a gente se identifica sempre com ela. — Você teria um “caso” com êle? — Não, porque apesar de achar Vinícius amorável, eu amo um outro homem. E Vinícius me revela ainda mais que eu amo aquêle homem. A música dêle faz a gente gostar ainda mais do amor. E “de repente, não mais que de repente” êle se transforma em outro: e é o nosso poetinha, como o chamamos. Eis pois alguns segredos de uma figura humana grande e que vive a todo o risco. Porque há grandeza em Vinícius de Morais.

Curioso o fato de as perguntas neste diálogo não estarem sublinhadas, como ocorria usualmente 31 , não somente nas entrevistas de Clarice Lispector, como também nas demais entrevistas publicadas na revista Manchete na época. As perguntas eram sublinhadas para que se diferenciassem as alocuções do entrevistador e entrevistado, e o fato de não terem sido sublinhadas suscitam no leitor a dúvida acerca de quem pertence a fala. Esta dúvida é avultada quando o interlocutor passa a ser outro, não mais a esposa, cuja voz é um “murmúrio de pássaro”, e sim outra mulher, identificada apenas como “mocinha inteligente”, sem nome próprio. Os monólogos interiores não são realizados apenas na entrevista com Vinícius de Morais, eles permeiam outras entrevistas, como com Fernando Sabino, que surge na fala do entrevistado:

[...] — Não sei se nossa geração falhou. Nunca me senti como escritor , como parte de uma geração. (Nem eu, pensei) . Sempre me senti sòzinho e êste talvez tenha sido meu erro. Quis aprender sòzinho e perdi a inocência. O artista é inocente. [...] (grifo nosso)

Ou então, na entrevista com Austregésilo de Ataíde 32 :

31 Ocasionalmente, as perguntas eram transcritas em negrito, como na entrevista com Maria Martins, ou na em itálico, como ocorre no diálogo com Hélio Pelegrino. Muito raramente, as perguntas não se diferenciavam das respostas por nenhum recurso gráfico, como na entrevista com Burle-Marx. 32 Natural de Caruaru, Belarmino Maria Austregésilo Augusto de Athayde nasceu no dia 25 de setembro de 1898 e morreu no dia 13 de setembro de 1993. Escritor e jornalista, Austregésilo de Athayde foi eleito membro da Academia Brasileira de

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[...] — O que faz a Academia? — Distribui prêmios com verbas oriundas da herança do livreiro Francisco Alves. Publica, além de seus anais, a Revista Brasileira e os Discursos Acadêmicos (aliás , encontrei o meu entrevistado fazendo a revisão das provas de um número dos anais acadêmicos, que já foram dezesseis volumes, com cêrca de duzentos e cinqüenta discursos pronunciados por ocasião da posse dos novos acadêmicos) . A Academia ainda publica um dicionário mandado fazer sob os auspícios e de que é autor o filólogo Antenor Nascentes. [...] (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete , Rio de Janeiro, ano 16, n.878, p.132, 15 fev. 1969, grifo nosso)

Ou ainda na entrevista com Clóvis Bornay 33 :

[...] — Desde quando começou a se interessar pelo carnaval? — Acho que logo após o nascimento: nascido no auge de um carnaval, lembro-me depois de que, ainda no colo, os mascarados me apavoravam. (Essa lembrança deve ser posterior pois Bornay não poderia, como disse, guardar memórias de logo após o nascimento). [...] (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete , Rio de Janeiro, ano 16, n. 879, p.48, 22 fev. 1969, grifo nosso)

Letras em 1951, para a cadeira nº 8, sucedendo Oliveira Viana. Tornou-se presidente da instituição em 1959, e foi reeleito para dirigi-la por 34 anos, até o fim de sua vida. 33 museólogo e carnavalesco brasileiro, Clóvis Bornay nasceu em Nova Friburgo, no dia 10 de janeiro de 1916 e morreu recentemente no Rio de Janeiro, no dia 9 de outubro de 2005. Foi carnavalesco das escolas de samba (1969-1970) e Mocidade Independente de Padre Miguel (1972-1973) e também trabalhou como museólogo trabalhou no Museu Histórico Nacional. Curiosidades: em 1967, Clóvis Bornay foi chamado para atuar no filme Terra em Transe , do . Ele também ficou conhecido como jurado para os apresentadores de televisão e Sílvio Santos.

58 Pelos monólogos interiores, Clarice não se afasta de seus entrevistados, tampouco de seus leitores. Mantém-se viva nos diálogos, por conseguinte, forçada a não largar o objeto, objeto este que se constrói não somente na idéia, como também no sussurro desta. Importante observar que, na realidade, o monólogo interior não deixa de ser um diálogo, uma vez que, de acordo com Massoud Moisés(MOISÉS,1974, p. 145), “subentende a presença dum interlocutor, virtual ou real, incluindo a personagem, assim desdobrada em duas entidades mentais (o “eu e o “outro”), que trocam idéias ou impressões como pessoas diferentes”. Assim, o monólogo interior identificar-se-á pela desarticulação lógica dos períodos e sentenças. No caso das entrevistas, os monólogos surgem entre parênteses, na fala do outro, quebrando a seqüência lógica do enunciado. É possível que os monólogos interiores corroborem o desdobramento do interlocutor real nas duas entidades mentais, “eu” e o “outro”, o que nos leva a indagar até que ponto a divisão entre o eu e o outro no diálogo é real e, até que ponto é virtual, ou até mesmo, ficcional.

2 – 5 As “armadilhas” do discurso

Quando nos referimos aos diálogos realizados entre Clarice Lispector e seus entrevistados, não devemos perder de vista a complexidade que envolve a interação entre o eu e o outro em um diálogo 34 . Complexidade esta agravada quando considerado o processo de retextualização da fala para a escrita, efetuado na maioria das entrevistas de Clarice. Fiorin, ao citar Benveniste, ressalta que “o eu existe por oposição ao tu e é a condição do diálogo que é constitutiva da pessoa porque ela se constrói na reversibilidade dos papéis.” (FIORIN, 2002, p. 41).

34 o diálogo já fora previamente discutido no tópico sobre a entrevista

59 A l inguagem só é possível porque cada locutor se coloca como sujeito, remetendo a si mesmo como eu em seu discurso. Dessa forma, eu estabelece uma outra pessoa, aquela que, completamente exterior a mim, torna-se meu eco ao qual eu digo tu e que me diz tu. (Benveniste, apud Fiorin, 2002, p. 41)

Merleau-Ponty pontua que “todo outro é um outro eu mesmo” e que “ há um eu que é outro, que se encontra alhures e me destitui de minha posição central.” (2002, p.168-169) Como foi possível demonstrar, este eu apresenta-se evidente no discurso clariciano, seja nas perguntas ou nos monólogos interiores, a entrevistadora se expõe nas entrevistas. Mas, como se inscreve este eu, a partir da relação com o outro? Na entrevista realizada com Maria Martins 35 , dia 21 de dezembro de 1968, é possível fazer um estudo sobre o eu que se forma a partir do diálogo entre entrevistadora e entrevistada. Primeiramente, Clarice pergunta a Maria Martins sobre o que acha da vida diplomática:

[...] — Maria, diga-me se puder, o que você acha da vida diplomática.Já jantei várias vêzes em sua casa e você sabe receber como poucas vêzes vi na minha própria “carreira” de ex-mulher de diplomata. Qual é o seu segredo? — Você me fez duas perguntas. [...] E você Clarice, qual é a sua experiência de vida diplomática, você que é uma mulher inteligente?

35 Natural de Campanha — MG, Maria Martins (1900-1973) foi considerada a melhor escultora brasileira na Bienal de São Paulo de 1955 e teve suas obras reconhecidas internacionalmente.

60 A partir da indagação de sua entrevistada, Clarice ressalta que não é inteligente, porém, sensível, e que se refugiou na escrita. A certa altura da entrevista, Clarice enfatiza que Maria Martins conseguiu esculpir e ela escrever, e, após tal constatação, a entrevistadora pergunta qual o segredo de ambas, ao que ela mesma responde que conseguiram tal feito devido a uma “vocação bastante forte e uma falta de medo de ser considerada ‘diferente’ no ambiente social diplomático” e pede a opinião da entrevistada, que concorda e pergunta “por que não aceitam a nossa timidez?”. Ao longo da conversa a entrevistada chama Clarice Lispector de monstro sagrado, que responde:

— Uma das coisas que me deixam infeliz é essa história de monstro sagrado: os outros me temem à toa, e a gente termina se temendo a si própria. A verdade é que algumas pessoas criaram um mito em tôrno de mim, o que me atrapalha muito: afasta as pessoas e eu fico sozinha. Mas você sabe que sou de trato muito simples, mesmo que a alma seja complexa . Como é que você descobriu que tinha talento para a escultura?

61 Nota-se na entrevista que, após elaborar a pergunta sobre a vida diplomática para sua entrevistada, Clarice Lispector revela-se como ex-mulher de diplomata, posição esta pontuada como “carreira” entre aspas. Assim, o outro, não se encontra mais alhures, torna- se o eco do eu que interroga. Ao mesmo tempo, a partir da relação com outro , o eu passa a se definir, como é possível constatar nas perguntas conseguintes, que não se limitam apenas à entrevistadora, mas também à entrevistada. À medida em que é engendrado o diálogo, a entrevistadora se pinta, como ex-mulher de diplomata, como alguém que não é inteligente, porém sensível, que se refugia na escrita, que fica infeliz com a idéia de monstro sagrado, enfim, alguém, que no decorrer do texto ganha linhas cada vez mais definidas. Entretanto, vale ressaltar que, embora mais definidos, os formatos do eu não são definitivos, e podem ser redefinidos de outra maneira ao longo da conversa, como em um auto-retrato, em que as linhas mudam a cada nova pincelada do pintor. Destarte, encontramos um eu inacabado, sujeito a modificações a cada novo olhar. Tais alterações são denunciadas pelas armadilhas do próprio discurso. Na entrevista, a palavra carreira, inscrita em um primeiro momento entre aspas e posteriormente sem aspas, corresponde a um bom exemplo. Carreira entre aspas é atribuída à entrevistadora, que já foi mulher de diplomata, e, sem aspas é atribuída pela entrevistadora à entrevistada, enquanto esposa de diplomata. Quando grafada entre aspas, a palavra carreira transmite um sentido ambíguo e irônico. Ao atribuí-la assim inscrita à posição de ex-mulher de diplomata, tal qualidade é aviltada pela entrevistadora. Já, quando se refere novamente ao termo, a entrevistadora altera sua grafia, e, conseqüentemente, sua visão sobre ser esposa de diplomata. Entende-se que tais considerações somente podem ser erigidas a partir do registro da escrita, até porque este eu a ser analisado se constrói na escritura da entrevistadora. Assim sendo, antes de prosseguirmos, é de fundamental importância ponderarmos alguns fatores pontuais da passagem da fala para a escrita.

62 Uma entrevista jornalística envolve não apenas o processo de transcrição, em que é passado um texto de sua realização sonora para a forma gráfica, como também de retextualização, o que o jornalista faz quando “revê” ou “corrige” passagens de uma entrevista oral que será publicada. Conforme ressalva Luiz Antônio Marcuschi, em Da fala para a escrita: processos de retextualização, “é importante considerar que, no caso de uma retextualização, interferimos tanto na forma e substância da expressão como na forma e substância do conteúdo, sendo que neste segundo conjunto a questão se torna muito mais delicada e complexa.” (2001, p.52) 36 Por isso, malgrado se queira, em uma entrevista realizada no estilo perguntas e respostas, transmitir com maior fidelidade as falas do entrevistado, estas inevitavelmente sofrerão transformações no decorrer dos vários processos envolvidos na retextualização 37 , o que corrobora a imprescindibilidade em se ponderar a tessitura do sujeito a partir do registro da escrita, em que o eu não se refere nem a um indivíduo ou a um conceito, mas a algo exclusivamente lingüístico, como propõe Fiorin (cf:2002, p.41). A propósito, há entrevistas realizadas por Clarice Lispector já, a priori, sob o texto escrito, como com Pablo Neruda, em que a entrevistadora enviou-lhe as perguntas e, posteriormente, o poeta lhas devolveu respondidas. Uma entrevista, em especial, merece uma maior atenção não somente pelo texto final como também pela maneira como foi elaborado. Trata-se do diálogo com o cronista do Jornal do Brasil, José Carlos de Oliveira 38 , do dia 5 de outubro de 1968. No texto, mesmo, a entrevistadora explica como ocorreu a entrevista:

36 Conforme Marcuschi, a passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é a passagem de uma ordem para outra ordem. 37 o processo de retextualização envolve três processos lingüísticos-textuais-discursivos, da idealização, da reformulação e da adaptação, e um processo cognitivo, da compreensão. Ver p. 69-72 da obra Da fala para a escrita: processos de retextualização . 38 José Carlos de Oliveira, conhecido como Carlinhos de Oliveira nasceu em 1934 em Vitória — ES, capital capixaba onde veio a falecer em 1986. Iniciou sua carreira de jornalista em Vitória. Foi repórter da Manchete , redator do Diário Carioca , Tribuna da Imprensa , A Cigarra , e cronista do Jornal do Brasil ; publicou Os olhos dourados do ódio (crônicas, 1963) ; O pavão desiludido (romance, 1972); Terror e êxtase (1978) entre outros.

63 [...] Nosso modo de entrevista estava original: eu escrevia na fôlha de papel a pergunta e passava-a para Carlinhos; ele lia, respondia também por escrito e me devolvia a página. Fizemos pois a entrevista sem sequer uma palavra pronunciada. Estávamos no restaurante Antonio’s, onde Carlinhos ia almoçar. [...]

Dois escritores lançam mão dos artifícios da língua escrita para travarem um “debate silencioso”, em que não somente o diálogo como também o sujeito se constrói pela dialética entre o eu e o outro, como revela o início da entrevista, quando o diálogo é considerado por Clarice como “um desafio de viola”:

Quando marquei entrevista com Carlinhos Oliveira jamais pensei que ela se tornaria como que um desafio de viola, o que nos divertiu e nos aguçou. Esta entrevista está “eivada” (jamais pensei que um dia usaria esta palavra) está eivada de várias palavras oficialmente impublicáveis. No entanto, os leitores podem suprir as lacunas com os palavrões que acharem mais convenientes. — José Carlos Oliveira, vamos fazer uma entrevista ótima no sentido de sincera? Hoje não é meu melhor dia porque estou muito gripada e triste. Mas mesmo assim, no meio de uma náusea sartriana que não passa de uma gripe nesta sexta- feira de noite, vamos fazer o possível. Quem é você, Carlinhos? (E, por Deus, quem sou eu?) Fora de brincadeira, o mundo está se acabando e nós não estamos fazendo nada e eu estou gripadíssima e de mãos sem fôrça para ajudar os que imploram. Fale, Carlinhos. Fale. —Eu acho que você é Clarice Lispector. Mas não sei quem eu sou. E o mundo está completamente ...... e sem saída. Mas nem você nem eu temos nada com isso. —Isso diz você que não tem filhos. Mas todo o mundo, Carlinhos, é meu filho e um filho a salvar. Como é que faço com tanto amor e tanta impotência? Não me refiro apenas a meus dois filhos e sim aos filhos dos homens. 39

Oportuno, do ponto de vista estético, como Clarice publica os palavrões que não somente ela como o próprio entrevista consideram impublicáveis:

39 Nesta entrevista, as perguntas não foram sublinhadas, tampouco foi utilizado qualquer recurso gráfico para diferenciá-las das respostas

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— Isso é absurdo. Por exemplo eu digo ...... e ninguém publica. E então estamos condenados a guardar uma língua que é apenas uma coleção de palavras. Nós somos uns idiotas — você e eu. O resto é literatura. E eu agora pergunta: 1) Clarice, porque é que você escreve? 2) Clarice, porque você não escreve?

Os palavrões são assim grafados como forma de corroborar a afirmação de José Carlos de Oliveira em que “estamos condenados a guardar uma língua que é apenas uma coleção de palavras”, mas, concomitantemente, afrontá-la, ao convidar o leitor a preencher as lacunas com os palavrões que acharem mais convenientes, outorgando à imaginação o que a escrita, enquanto coleção de palavras, não é capaz de conceber. Voltando à primeira pergunta direcionada ao seu entrevistado, nesta Clarice já questiona se será a entrevista sincera. Posteriormente pergunta-lhe quem é ele, e, em monólogo interior, quem é ela. A resposta obtida apenas obscurece ainda mais o sujeito, que se formará no desenrolar do debate em oposição ao outro. Porém, ao final da entrevista, a pergunta inicial mantém-se interrogativa, ainda que Clarice conceda outra entrevista a seu entrevistado por acreditar que “tenha mostrado apenas parte dêle e não um retrato inteiro”. Outrossim, Carlinhos não erige uma definição peremptória acerca de quem são, ele e Clarice Lispector, mesmo quando chama sua entrevistadora e a si próprio de “nossa maior prosadora e o nosso maior maluco”:

— Adeus, respeitável público. Acabaram de ouvir dois escritores brasileiro. Duas personalidades diferentes, dois amigos. Comprem os nossos livros, prestem atenção nas nossas vírgulas. Acabaram de ouvir dois escritores brasileiros — a nossa maior prosadora e o nosso maior maluco. Meu Deus, como é difícil terminar uma entrevista! Terminemos assim, à maneira dos inquisidores policiais: “E nada mais declarou nem lhe foi perguntado.”

Ao final, fica-nos a pergunta irrespondível: ainda que o entrevistado respondesse quem era ele, teríamos seu retrato inteiro? Escrever-se é mostrar-se ou esconder-se? As palavras são expressões íntimas ou simulacros, que, ao final, revelam apenas uma mentira?

65 No que tange às possíveis respostas a estas questões, Foucault defende um ponto de vista, no mínimo interessante, na conferência “O que é um autor?” na Societé Française de Philosophie, 22 de fevereiro de 1969; em debate com M. de Gandillac, L. Goldmann, J. Lacan, J. d’Ormesson, J. Ullmo, J. Wahl. Ele propõe a morte do autor, seu apagamento voluntário, e pontua, ainda, que “a relação da escrita com a morte também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve; através de todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que ele escreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência” (2001, p. 267). Para Foucault é preciso que o autor faça o papel de morto no “jogo da escrita”, uma vez que a escrita basta a si mesma, e, por conseguinte, não está obrigada à forma de interioridade, mas ela se identifica com sua própria exterioridade, ou seja, ela é um jogo de signos comandada menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante. Tais aporias retomam as ponderações de Adorno acerca da literatura, em que “cortando os laços com o sujeito, a linguagem fala em lugar do sujeito que, por si só, não é capaz de falar” (ADORNO, 1973, p.107). Adorno observa, igualmente, que o conteúdo de uma obra de arte começa, sobretudo, onde a intenção do autor termina, e, por conseguinte a obra se extingue no conteúdo, e o autor desaparece no texto. A proposta da morte do autor, apesar de um pouco radical, é plausível; contudo, é mais coerente a constatação da presença do autor no texto, não enquanto indivíduo biográfico, porém, como produtor de signos. O ser da literatura está na significação e não no significado, o qual é, por princípio, desiludido, conforme define Barthes (2003, p.71). Não obstante tratar-se de entrevistas jornalísticas, observamos a produtora de signos, erigidos a partir dos diálogos com Clarice Lispector. Vejamos outro exemplo consentâneo na entrevista com Carybé 40 , realizada dia 28 de junho de 1969:

40 Pintor figurativo de origem argentina Hector Julio Paride Bernabó (1911-1977) nasceu na cidade de Lanús. Recebeu o apelido de Carybé (nome de um peixe de água doce) quando era escoteiro, pois este era o nome de sua barraca de

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[...] — Agora Carybé, você vai por favor me explicar o fascínio da Bahia a que também sucumbi, tanto que só penso em voltar e passar pelo menos um mês trabalhando por lá. — Minha linha era sempre uma aventura sul-americana. Fui para o Peru, para a Bolívia, para o Chaco argentino, onde morei com os índios. Mas a Bahia ganhou o campeonato porque é uma cidade viva. Em geral as cidades que têm história, arquitetura — enfim, que viveram desde o comêço da América — são cidades- museus. Mas a Bahia tem arte e arquitetura modernas, um povo alegre, simpático, sobretudo bom [...] — Poucas vêzes vi o mar mais bonito e mais audacioso que o da Bahia. — Salvador é uma cidade que parece encomendada para artistas plásticos, para escritores, cineastas. Enfim tudo lá é uma espécie de incubadeira para essa gente. — É o que senti, Carybé: como se uma sereia me chamasse com seu feitiço. — Agora, Clarice, você disse a palavra certa: feitiço. O feitiço é vivo, começa pela cozinha. Você se alimenta de comidas sagradas. [...]

No início, Clarice Lispector revela que igualmente sucumbiu ao fascínio da Bahia, aonde quer voltar, mas, quer saber de seu entrevistado por que se sucumbe a tal fascínio. Ao decorrer do diálogo, há uma autora, sim, mas enquanto produtora de signos, cujo discurso propicia um mar também audacioso, uma cidade-sereia que encanta com seu feitiço. A própria Clarice Lispector se erige na significação e não no significado, não encontramos no diálogo a escritora biográfica mas sim um eu exclusivamente lingüístico.

acampamento. Após ter morado na Itália dos seis meses aos oito anos, morou no Rio de Janeiro, onde estudou na Escola Nacional de Belas Artes. Voltou ao Brasil em 1938, foi para Salvador, fixando-se por definitivo na Bahia a partir de 1950. Sete anos mais tarde, naturalizou-se brasileiro. Suas obras compreendem desenhos esculturas e talhas. Em 1955, foi escolhido como o melhor desenhista nacional na Bienal de São Paulo.

67 CAPÍTULO III — FATOS E FOTOS/GENTE

3– 1 CLARICE LISPECTOR NOVAMENTE NA BLOCH EDITORES

“Estou trabalhando muito em entrevistas para a Fatos e Fotos/Gente ” (Clarice Lispector)

Após quase sete anos, em 1976, Clarice Lispector voltou para a Bloch Editores, também no ofício de entrevistadora, mas para a revista Fatos e Fotos/Gente . A escritora permaneceu na revista de 26 de dezembro de 1976 a 17 de outubro de 1977, quase dois meses antes de sua morte. Ela entrevistou um total de 24 pessoas. Os anos de 1976 e 1977 foram significativos para o país e o mundo. No dia 22 de agosto de 1976 morreu Juscelino Kubitschek em um acidente automobilístico na Via Dutra. A China também perdeu os seus líderes, Mao Tse-tung e Chu En-lai, no mesmo ano, 1976, ocasionando profundas mudanças na liderança do país. Outros acontecimentos marcaram o ano, como o resgate por comandos israelenses de passageiros de um avião da Air France aprisionados em Uganda; a coroação de Sylvia Sommerlath como rainha da Suécia; a eleição de Jimmy Carter como presidente dos Estados Unidos e o assassinato em Cabo Frio da socialite Ângela Diniz pelo seu amante Raul Doca Sreet. No dia 15 de junho de 1977, após 26 anos de luta ininterrupta, o senador Nélson Carneiro viu por fim o seu sonho político realizado: o Congresso aprovou a emenda constitucional que permitia a instituição do divórcio no Brasil. O projeto entrou em fase de discussão e foi oficializado em dezembro. Ainda nesse ano, Israel e Egito reataram e dois Jumbos chocaram-se nas ilhas Canárias, matando 577. No Brasil, entrou para a Academia Brasileira de Letras.

68 Já para Clarice Lispector, muita coisa aconteceu em 1976 e 1977. Em 1976 participou da 2ª Esposición Feria Internacional Del Autor al Lector , em Buenos Aires, Argentina; recebeu o prêmio de literatura de Brasília, oferecido pela Fundação Cultural do Distrito Federal; foi removida da Rádio Roquette Pinto para a Divisão de Apoio Administrativo, ambas vinculadas à Secretaria da Educação e Cultura do Estado do Rio de Janeiro. Nos primeiros meses de 1977, Clarice vivia um momento de plena atividade, conforme observa Nádia Gotlib: “No início de 1977 encontra-se em franca atividade. Afirma em carta a um amigo: ‘Estou trabalhando muito em entrevistas para a Fatos e Fotos/Gente. E também escrevo para uma revista feminina chamada Mais, e para um jornal de segunda ordem. O livro que terminei se chama A hora da estrela .’” (1995, p.441). Nesse ano, ainda, a escritora também escreveu doze histórias, uma para cada mês, para integrar um calendário patrocinado pela fábrica de brinquedos Estrela. Sob o título Como nascem as estrelas, e subtítulo, Doze lendas brasileiras , o volume foi publicado postumamente em 1987. O final do ano de 1977 correspondeu ao final da vida da escritora, que morreu no dia 9 de dezembro, um dia antes de seu aniversário. 41

3-2 ANTIGOS E NOVOS ENTREVISTADOS

‘Para mim, a idéia de entrevistar um padre pareceu-me coisa difícil. Mas logo concluí que, atualmente, os padres, em sua maioria, se encontram a par dos problemas do nosso tempo.” (Clarice Lispector – Fatos e Fotos/Gente )

Realizadas a cerca de um ano da morte de sua autora, as entrevistas de Clarice Lispector certamente apresentam algumas mudanças. No que tange à escolha dos entrevistados, observamos algumas semelhanças e diferenças em comparação aos Diálogos Possíveis com Clarice Lispector.

41 As informações sobre Clarice Lispector foram obtidas no livro Clarice: uma vida que se conta de Nádia Battella Gotlib

69 Em alguns casos, Clarice não apenas entrevista novamente pessoas entrevistadas para a revista Manchete como também chega a aproveitar trechos das entrevistas já publicadas. É o que ocorre com os diálogos realizados com Hélio Pelegrino, Carlos Sciliar 42 , Iberê Camargo 43 e Vinícius de Morais. A entrevista com Hélio Pellegrino publicada no dia 14 de fevereiro de 1977 é extremamente parecida com a publicada no dia 19 de julho de 1969, salvo algumas diferenças a serem pontuadas a seguir. O texto introdutório, apesar de quase idêntico, sofreu algumas pequenas alterações, como, por exemplo na primeira frase, “Escolhi Hélio Pelegrino para um diálogo perfeitamente possível [...]”, no lugar de “possível”, o adjetivo foi trocado para “legal”. Logo, o texto é reescrito da seguinte forma “Escolhi Hélio Pelegrino para um diálogo perfeitamente legal [..]” (grifo nosso). Ademais, foi eliminado na segunda publicação todo o trecho final da apresentação do entrevistado a ser reproduzido aqui:

[...] Perguntei ao Dr. Ivã Ribeiro, psicanalista como Hélio, e trabalhando em salas contíguas, o que achava de meu entrevistado. Disse : “ Custou-me e ainda custa desaprender e resistir ao fácil ofício de fazer frases. Com o tempo me convenci de que a frase pode transformar coisas vivíssimas em bichos empalhados. Além disso, a pessoa de Pelegrino, não são suas opiniões mas quem êle é e procura incessantemente a cada hora vira a ser. Quase não convivemos, quase não nos freqüentamos, mas nunca ele é o ausente para mim e espero que eu nunca seja para ele.” Recomendo aos leitores que leiam essa entrevista pois só aparentemente é difícil.

42 Pintor, desenhista e gravador brasileiro, Carlos Sciliar nasceu em Santa Maria — SC em 1920. Estudou com Gustav Epstein, em Porto Alegre. Transferindo-se para São Paulo em 1940, ligou-se à Família Artística Paulista. No Rio de Janeiro, a partir de 1943, conviveu intensamente com Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, que exerceram grande influência sobre seu trabalho. Convocado pela FEB, foi combatente na Itália até 1945. Residiu em Paris entre 1947 e 1950. Retornando ao Brasil, foi um dos fundadores do Clube de Gravura de Porto Alegre (1950) e fixou residência no Rio de Janeiro (1956). Sua obra centra-se nas paisagens e naturezas-mortas inspiradas no cubismo de Cézanne. 43 Pintor, gravador e desenhista brasileiro, Iberê Camargo nasceu na cidade de Restinga Seca —RS em 1914, lugar onde veio a felecer em 1994. Estudou no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro em 1942, onde iniciou-se na gravura, orientado por Guinard. Em 1947, recebeu o prêmio de viagem no Salão de Arte Moderna; aperfeiçoou-se na Europa com De Chirico e

70 [...]

Já as perguntas e as respostas permanecem as mesmas, inclusive, são mantidas as três interrogativas recorrentes na maioria de suas entrevistas: “O que é o amor?”, “Qual a coisa mais importante do mundo?”, “Qual a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo?”. Porém, é acrescentada uma pergunta final na Fatos e Fotos/Gente , em que Clarice Lispector pede um poema a seu entrevistado :

— Hélio, me dá um poema! 44 (Hélio riu muito porque se lembrou de um fato que passarei agora a narrar: um grupo de jovens escritores mineiros foi visitar o poeta Augusto Frederico Schmidt, na Orquima, uma das empresas desse poeta. Todos estavam emocionados, mas um entre eles não conseguiu abrir a boca para uma só palavra. Então, o Schmidt virou-se para esse que se chama Jacques do Prado Brandão e disse-lhe sem nenhum preâmbulo, à queima-roupa: Vamos, rapaz me dá o seu poema! Houve um rebuliço geral diante de uma tão inesperada intimação. Mas o Schmidt não recuou: Deixe de conversa e me dê o seu poema! Aí o Jacques do Prado Brandão muito sem jeito, meteu a mão no bolso e lhe deu um poema: Schmidt havia adivinhado certo.) — Você me pediu um poema, Clarice? Pois aí está.

Arraial do Cabo Para Sarah O mar o mar escachoa — incessante ruído — o sol rasante arpoa o dorso d’ouro deste touro o vento varre o rosto do tempo: Eia! corrimões de areia casamento

André Lothe.Inicialmente figurativista, filiou-se ao abstracionismo na década de 60, destacando-se, nessa fase, a série Carretéis, gênese de sua produção mais recente. 44 Na maioria das entrevistas da revista Fatos e Fotos/Gente , as perguntas eram grafadas em negrito para serem diferenciadas das respostas.

71 entre gaivota e vento Arraial 2/1/77

Nota-se que a data do poema de Hélio Pelegrino valida a data da realização da entrevista, aproximando-a da data de sua publicação. Já a entrevista com Carlos Scliar, publicada no dia 21 de março de 1977, sofreu significativas alterações em comparação com a do dia 8 de junho de 1968. O texto introdutório da segunda publicação é iniciado com a linha-fina da primeira entrevista: “Gostaria que meus quadros incutissem esperança e força a todos.”, que é extraída da fala de Sciliar: “[...] O que eu desejaria era conseguir que meus quadros fossem uma espécie de esperanto e incutissem esperança e fôrça a todos.” Porém, é diferente do primeiro, não somente na estrutura quanto na linguagem, uma vez que introduz falas da entrevistadora e do entrevistado durante a descrição de Carlos Sciliar. As primeiras seis perguntas são diferentes, com novas respostas. Já as sétimas pergunta e resposta são exatamente iguais às da Manchete, e, a partir destas inicia-se uma espécie de reelaboração do primeiro diálogo, em que se repetem as mesmas respostas, porém, em certos momentos, inscritas no discurso indireto ou com as falas do entrevistado entre aspas. A entrevista é finalizada com as três perguntas “Qual é a coisa mais importante do mundo?”; “Qual é a coisa mais importante para uma pessoa, como indivíduo?” e “O que é o amor?”; e as respostas permanecem as mesmas das publicadas em 1968. Como é possível observar nesta entrevista com Sciliar, por intermédio do reaproveitamento da entrevista publicada anteriormente, Clarice inova ainda mais na linguagem, retextualizando um mesmo diálogo de várias maneiras, ora no discurso direto, ora no discurso indireto, ora precedido por travessão, ora entre aspas. É o que ocorre também na entrevista com Iberê Camargo do dia 18/04/77, cujo reaproveitamento da entrevista do dia 01/02/69 reduz-se a apenas duas perguntas e respostas e ao texto introdutório, que é iniciado já com uma fala do entrevistado publicada na linha-fina da primeira entrevista. A descrição de Iberê Camargo é bem parecida em ambos os textos:

72 Um homem alto, um pouco curvo, olhar manso, pele morena, o ar ascético de um monge: eis diante de mim Iberê Camargo, um dos nossos grandes pintores. (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete , Rio de Janeiro, ano 16, n. 876, p.44, 01 fev. 1969)

— Criar um quadro é criar um mundo novo — disse-me o pintor Iberê Camargo. É um homem alto, um pouco curvo, olhar de grande mansidão, pele morena, ar ascético de monge: Iberê Camargo, um dos nossos grandes pintores. [...] (LISPECTOR, C. Revista Fatos e Fotos/Gente , Brasília, ano 16, n. 817, p.42, 18 abril 1977, grifo nosso)

Exceto a eliminação do dêitico “eis” seguido por “diante de mim”, que transmite espacialidade à entrevistadora e ao entrevistado, a descrição é quase a mesma, as alterações são sutis e não influenciam na fluência do texto. No tocante às novas perguntas, vale ressaltar o acréscimo da questão acerca da religiosidade de seu entrevistado:

[...] — Você é religioso? — Acho que sou um pouco místico e sensual. [...]

A preocupação com a religião surgirá novamente na entrevista com Vinícius de Morais publicada no dia 12 de setembro de 1977, mas desta vez, Clarice pergunta se a religião de seu entrevistado é a “beleza da mulher”. Nesta entrevista, apenas duas perguntas são bem parecidas com as publicadas no dia 12 de outubro de 1968, porém todas as respostas são diferentes, o que permite ao leitor a investigação sobre as mudanças de opiniões do entrevistado durante o intervalo de tempo entre uma entrevista e outra.

73 O tema religião não se limita apenas às perguntas. Passa a pautar também a escolha dos entrevistados. Não por acaso, Clarice entrevista o parapsicólogo Padre Quevedo 45 para Fatos e Fotos/ Gente do dia 02 de maio de 1977. Todas as interrogativas, sem exceção, perscrutam sobre a parapsicologia e fenômenos parapsicológicos. Ao final da entrevista, é reiterado o interesse sobre o assunto pela pergunta: “Eu, uma simples mulher, poderia provocar estados parapsicológicos?” ao que o entrevistador responde: “Como qualquer pessoa eventualmente”. No mais, o perfil de seus entrevistados não se modificou muito, estendendo-se desde personalidades do meio artístico e cultural até políticos como o primeiro-ministro de Portugal, Mário Soares. A maioria dos entrevistados era conhecida da escritora, inclusive quando integrante do meio literário, como Ferreira Gullar, Lygia Fagundes Telles e Rubem Braga.

3 – 3 REVISTA MANCHETE: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

“Vou responder mas a outras perguntas, as que eu sei de você. É uma pena você fazer perguntas e ser a gente a responder. Só topo se você escrever. É a alegria maior você escrever sobre a gente. É uma festa, é como subir uma escada inteira... sem pisar nos degraus.” (Maria Bonomi)

As entrevistas realizadas para a Fatos e Fotos/ Gente seguem o mesmo padrão da Manchete , principalmente no que tange à urdidura do texto, marcada pelos monólogos interiores, pelas figuras de linguagem, pelas interrupções das falas e pelas inovações lingüísticas, sobretudo nos textos introdutórios. Vejamos a apresentação de sua primeira entrevistada Elke Maravilha 46 :

45 Jesuíta naturalizado brasileiro, Oscar González Quevedo, o padre Quevedo, nasceu em Madri em 1930. Licenciado em Humanidades pelo Curso Superior de Estudos Clássicos de Salamanca (Espanha), em Psicologia e Filosofia pela Universidade de Comillas (Espanha) e doutor em Teologia pela Pontifícia Faculdade Teológica de São Paulo. Especializou- se em parapsicologia, dedicando-se ao estudo das relações entre religião, ciência e fé. Publicou entre outras: A face oculta da mente (1964); O que é parapsicologia !980) e Antes que os demônios voltem (1989). 46 Elke Georgievna Grunupp, Elke Maravilha, como é conhecida, nasceu em Leningrado, 22 de fevereiro de 1945. Com seis anos, mudou-se com a família para o Brasil, em Itabaira do Mato Dentro — MG. Elke Maravilha é atriz, intérprete musical, apresentadora, modelo, professora, tradutora e intérprete de línguas estrangeiras, incluindo o latim. Já trabalhou como

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Quando telefonei marcando um encontro em minha casa, às nove e meia da manhã, perguntei: “Você é pontual?” Respondeu-me logo com voz macia: “Sou mineira, nunca perco um trem.” Apareceu-me ela com um vestido longo de cetim branco, com pala de brocados, sobrancelhas raspadas e pintadas de quase vermelho até as têmporas. Ela é linda e se finge de tola, quando na verdade é muito inteligente e criativa. Cria suas próprias roupas que, se parecerem malucas, não importa: têm uma grande beleza exótica. Tudo a enfeita. (Revista Fatos e Fotos/Gente, p.40, 26 dezembro 1976)

Quando Clarice atribui à voz de sua entrevistada a qualidade de macia, ocorre o deslocamento semântico tão utilizado pela Clarice ficcionista conforme foi constatado no segundo capítulo. O macio, que está relacionado ao tato, aqui é transposto para adjetivar a voz, que, metaforizada, é tocada fisicamente pela entrevistadora. A polissemia é suscitada também com a expressão “quase vermelho”, uma cor que não existe, e, que, portanto, engendra diversas interpretações. Notamos ainda, que já no texto introdutório ocorre o diálogo entre a entrevistadora e a entrevistada. O diálogo na apresentação do entrevistado caracteriza a maioria das entrevistas para a Fatos e Fotos/Gente, como se Clarice lançasse mão de falas do entrevistado para descrevê-lo . Em alguns casos, as falas no texto introdutório chegam a se confundir com as falas do diálogo propriamente dito, como ocorre na entrevista com Mário Soares 47 publicada no dia 02 de janeiro 1977, cujo texto introdutório chega a ocupar quase metade da entrevista, e é finalizado com as alocuções do entrevistado:

bancária, secretária trilíngue e biliotecária, além de ter sido a mais jovem professora de francês da Aliança Francesa e de inglês da União Cultural Brasil-Estados Unidos. Começou a carreira de modelo aos 24 anos com Guilherme Guimarães. Aventurou-se em 1972 na televisão como jurada no “Cassino do Chacrinha”. 47 Mário Alberto Nobre Lopes Soares, nascido em Lisboa no dia 7 de dezembro de 1924, licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1951 e em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador do Partido Socialista de Portugal em 19 de abril de 1973, Mário Soares foi Ministro dos Negócios Estrangeiros de maio de 1974 a março de 1975. Em março de 1977 iniciou o processo de adesão de Portugal à CEE (Comunidade Econômica Européia), e subscreveu, como Primeiro Ministro, o Tratado de Adesão em 12 de julho de

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[...] Chamei-o de Vossa Excelência , título que por direito lhe cabia. Cortou-me a fala dizendo que não o chamasse assim. “Como o chamo?” — perguntei. Resposta: “Mário.” Deu-me esse privilégio e eu o aceitei. “Nunca vivemos propriamente um caos. Tivemos alguns problemas, próprio aliás de uma revolução, mas temos que reconhecer que, apesar de todas as transformações econômicas e sociais realizadas, tudo se processou sem derramamento de sangue e com um mínimo de violência. Nunca, portanto, vivemos uma situação de caos, felizmente. Hoje, temos uma democracia institucionalizada. E com separação de poderes, com os órgãos de soberania todos eleitos, livremente.” Quanto às colônias, Mário respondeu: “Houve um movimento de descolonização e Portugal reconheceu o direito à independência de todas as suas antigas colônias. Estas são hoje estados soberanos e livres. Portugal deseja estabelecer com eles relações mais estreitas e cordiais, na base do respeito mútuo e do princípio de não-interferência nos mútuos negócios internos.”

A primeira fala do entrevistado, em que ele pede que o chame pelo primeiro nome, revela uma pessoa, a despeito de sua posição política, acessível. A fala conseguinte está deslocada, pois, por não ter sido precedida por uma pergunta, ficou fora do contexto. Já a próxima é contextualizada na entrevista de fato, que se inicia abruptamente, sem uma primeira pergunta. Aliás, nota-se que nas entrevistas para a Fatos e Fotos /Gente , há uma maior ousadia no tocante à quebra de normas gramaticais, principalmente na retextualização das falas dos entrevistados, que, ao longo da entrevista, ora são assinaladas entre aspas, ora precedidas por travessão Outra entrevista, com Maria Bonomi 48 , publicada no dia 20 de junho de 1977, apresenta igualmente um texto introdutório curioso, principalmente, quanto à sua tessitura:

1985. Foi Primeiro-Ministro de Portugal nos períodos: entre 1976 e 1977, em 1978 e entre 1983 e 1985. Foi Presidente da República de 1986 a 1991, no primeiro mandato, e cumpriu o segundo mandato de 1991 a 1996. 48 Pintora, gravadora e cenógrafa brasileira, Maria Bonomi nasceu na cidade de Meina, Itália em 1935. Iniciou seus estudos em desenho e pintura com Yolanda Mohalyi. Em 1955, como aluno do Lívio Abramo, aprendeu técnicas de gravura em madeira, e participou da III Bienal de São Paulo, como a mais jovem expositora com duas pinturas: Retrato I e Catedral . Bonomi conheceu Clarice Lispector nos Estados Unidos, em Washington, em meados da década de 50, quando foi convidada pela União Pan-Americana para expor suas gravuras. A gravadora morava em Nova Iorque, na época, como

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“ESTOU derrubando limites. É uma fuga para dentro, se você quiser. Dá medo Clarice. É quase brincar com a morte — diz Maria Bonomi. Ela é jovem, forte, vital, franca como um cavalo de fina raça de corrida. Na gravura, porém, ela é implícita, isto é, não extravasa o intimismo de sua arte. Gosto de Maria,o que não é novidade, já que sou madrinha de seu filho, Cássio. Maria, apesar de ser bem adulta e consciente de si própria e dos outros, tem um sorriso inimitável de criança. Ela sabe se divertir. Ela acha graça. “Chego a achar a dor maravilhosa, às vezes a dor de não estar em sobressalto permanente, e mil bondades e loucuras estourando dentro da gente, mas, sobretudo uma grande busca de essência, ao fim do ornato, do bordado, do supérfluo, um encaminhamento definitivo para a verdade comigo mesma, com as coisas e o mundo.

Imprescindível considerarmos a maneira pela qual a entrevista foi elaborada, a partir de uma carta de Maria Bonomi enviada à Clarice Lispector, cujo início segue a seguir. 49 Apesar de longo, o trecho a ser transcrito a seguir é de suma importância para que haja um confronto efetivo entre a entrevista e a carta:

bolsista da Columbia University. Em 1960 fundou, com Lívio Abramo, o Estúdio da Gravura. Seus trabalhos mais expressivos são xilogravuras, dentro de uma linha abstrata e lírica. 49 A carta foi publicada em Correspondências , obra que inclui 129 cartas, que cobrem quatro décadas da vida de Clarice, dos anos de 1940 até pouco antes da morte da autora. A saber: Correspondências . org. Teresa Monteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 312-316.

77 Clarice: que bom ouvir de você. Olga ligou e passou-me as perguntas. Vou responder mas às outras perguntas, as que eu sei de você. [...] E olhe, poderia telefonar mas não o faço por covardia. Sei como anda a tua lucidez nesses dias e justamente nesses dias não posso (perdoe) me machucar mais ainda. É uma fuga para dentro se você quiser , é o encontro de grande amor, sabe, [...] ... Estou derrubando limites que acho impossível terem existido, estou entrando em outra dimensão desta vez. E sem rede de proteção. Dá medo Clarice, é quase brincar com a morte pois se alguma coisa falha a morte é tão certa (e há tantos tipos de morte que aquela comum nem será necessária) que poderei continuar vivendo mas terei que saber e dizer que estou morta. [...] Estou nessa Clarice, com 41 anos e em plena descoberta, pode? Chego a achar a dor maravilhosa, às vezes a dor de não estar, um sobressalto permanente, e mil bondades e loucuras estourando dentro da gente mas sobretudo uma grande busca da essência. Isto tem sido este tão primeiro e último amor. Uma tremenda busca da essência, o fim do ornato, do bordado, do supérfluo, um encaminhamento definitivo para a verdade comigo mesma, com as coisas e o mundão . (grifo nosso)

Se compararmos a carta com a apresentação da entrevistada constatamos que as falas de Maria Bonomi sofreram alterações, foram rearticuladas a partir de um outro fio condutor. Bonomi não diz exatamente “Estou derrubando limites. É uma fuga para dentro, se você quiser. Dá medo Clarice. É quase brincar com a morte”, a fala reúne fragmentos da carta. Sob uma nova ordem, ganham novos significados, conduzidos pela lógica da narradora. O estudo da entrevista em cotejo com a carta enviada por Maria Bonomi nos permite supor que, assim como a entrevistadora, também a entrevistada não é um interlocutor real e biográfico, mas, aqui, inscreve-se enquanto linguagem, construída a partir da intenção da autora, produtora de signos. Circunscrita textualmente sob os signos jovem, forte, vital, franca como um cavalo de fina raça de corrida, Maria Bonomi diz, no presente, não mais escreve em tempo pretérito. Para esta Maria Bonomi derrubar limites é como uma fuga para dentro, quase brincar com a morte.

78 Faz-se necessário pontuarmos, aqui, a comparação com o cavalo, que, mais uma vez, evoca a linguagem clariciana literária, principalmente em A cidade sitiada , em que, segundo Olga de Sá, “ os cavalos e a moça provinciana e bairrista são ainda os últimos vestígios de São Geraldo, que, em breve mudará de nome.” (2000 : 245)

[...] E em breve a perturbação causada por Lucrecia foi esquecida. Assim como a população já deixara de acusar os cavalos. Estes, agora despercebidos pelo hábito, eram no entanto a força sorrateira sobre S. Geraldo. E também Lucrecia, ignorada pela Associação. A moça e um cavalo representavam as duas raças de construtores que iniciaram a tradição da futura metrópole, ambos poderiam servir de armas para um seu escudo. [...] (CIDADE SITIADA, 1998, p.22)

Importante salientar que Aparecida Nunes reitera a imagem do cavalo como figura recorrente nos textos fictícios de Clarice Lispector ao analisar uma das colunas femininas de Clarice Lispector, em que a colunista, sob o pseudônimo de Tereza Quadros, aconselha sua leitora a tratar suas costas como se tratam os pêlos dos cavalo:

Trata-se, pois, de uma dica de beleza até simples, cujo ritual para sua execução não exige produtos caros ou outras complicações: apenas água, sabão e força. Mas a aproximação das duas partes do corpo — costas de mulher e crina de cavalo — unidas num só método — o da escovação — pela maneira como o discurso foi criado, pode chocar. [...] Quanto a voz da escritora, vale ressaltar que os cavalos — sobretudo os selvagens — são imagem recorrente nos texto de Clarice Lispector. (2006, p.167)

Quanto aos diálogos das entrevistas, tal qual na Manchete, são permeados pelos monólogos interiores, assinalados, na sua maioria, por parênteses, como é possível observar na entrevista com Jece Valadão 50 , publicada no dia 25 de abril de 1977:

50 Jece Carvalho Valadão nasceu em Cachoeiro de Itapemirim — ES em 1930. Ator, produtor e diretor cinematográfico, criou um tipo que lhe deu grande popularidade: o de machão e cafajeste. Trabalhou em vários filmes, Rio Zona Norte, Boca de ouro, ambos de Nelson Pereira dos Santos; Os Cafajestes de Rui Guerra; e também em televisão, na telenovela O dono

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E hoje? O que significa o cinema para você? “Hoje para mim, cinema é oxigênio, sem o qual não consigo viver.” (Qual é meu oxigênio? pergunto-me eu e a resposta é um silêncio desolador.) Você é uma pessoa interessada em problemas sociais, enfocando sempre o lado marginal de nossa vida? [...] A chanchada é um meio de vida ou um estado de espírito? (Por mim, é um meio de ganhar dinheiro explorando os sentimentos chamados baixos do povo.) Respondeu, evasivamente: “A chanchada representou uma fase do cinema brasileiro, por sinal muito importante.” [...] Você é dado a fossas? E como sai delas? “Nunca entro em fossas, sempre dou a volta por cima. Por isso não conheço nenhuma fórmula de sair delas.” (Pensei: mas “dar a volta por cima” não é exatamente um meio de sair delas?)

As duas intervenções posteriores às respostas do entrevistado sugerem que a entrevistada confidencie ao leitor, exclusivamente, o “subterrâneo de sua mente”, sem qualquer obediência à normalidade gramatical (MOISÉS, 1974, p.145). Já quando posicionado na pergunta, o monólogo mescla-se ao diálogo, tornando ambíguo o interlocutor da frase, se o leitor ou o próprio entrevistado. Outro exemplo, na entrevista com a artista plástica Fayga Ostrower 51 :

[...]

do mundo (1991), na minissérie Memorial de Maria Moura (1994), entre outras. Estreou no teatro com Mulher sem pecado , de Nelson Rodrigues (1957). Dirigiu e interpretou O matador profissional (1969). 51 Fayga Otrower nasceu em Lódz — Polônia em 1920. Desenhista naturalizada brasileira, viveu na Alemanha de 1921 a 1933, quando veio para o Brasil. Fixando-se no Rio de Janeiro, estudou em A. Leskoscheck, C. Oswald e A. Levy. Pratica xilogravura, gravura em metal, litografia, serigrafia, aquarelas, além de elaborar capas e ilustrações de livros e disco, padronagem de tecidos e esmaltação de metal. Inicialmente tratou de temas sociais, passando depois para o abstracionismo informal. Ganhou vários prêmios entre eles: Grande Prêmio Nacional de Gravura na Bienal de São Paulo (1957), Grande Prêmio Internacional de Veneza (1958), etc.

80 — É como na arte literária, exatamente. E que conselho você daria a um artista principiante? — Acho muito difícil dar conselhos. Só poderia perguntar ao jovem por que ele quer ser artista. Se é por questões de carreira ou de dinheiro ou de status , não vale a pena. Existem outros caminhos mais rápidos e também mais satisfatórios, para esses casos, mesmo no sentido de uma afirmação interior por um trabalho realizado. Se, porém, for por uma necessidade interior de sensibilidade e de potencialidades específicas, então acho que ele deverá prosseguir. Aliás, neste caso ele o fará de qualquer modo, independentemente de conselhos. E também ele encontrará a coragem de enfrentar os problemas materiais e espirituais, os problemas consideráveis de marginalização em nossa sociedade e que existem no caminho artístico. (É também o que de um modo geral digo quando me pedem conselhos sobre como ser escritor.)

Novamente, a entrevistadora, pelo monólogo interior, se expõe, tal qual nas entrevistas para a revista Manchete. Em entrevistas com pessoas do meio literário, a exposição da entrevistadora é mais explícita, como com Lygia Fagundes Telles 52 , quando pergunta: “Para mim a arte é uma busca, você concorda?”, ou com Rubem Braga 53 , na fala “Também eu evito ao máximo ter que me reler, e fico espantada quando encontro pessoas que leram um livro meu várias vezes. Como vai se chamar o livro?”, ou com Ferreira Gullar 54 , quando expressa suas impressões sobre o Poema Sujo :

52 Nascida em São Paulo — SP em 1923, Lygia Fagundes Telles teve sua primeira publicação na coletânea Porões e sobrados de 1938. O segundo livro, também de contos, Praia Viva, foi publicado em 1944. Em 1949, iniciou uma colaboração semanal, sob o título de Crônicas do planalto , para o suplemento Letras e Artes de A Manhã . Ainda nesse ano, lançou sua terceira coletânea de contos, O cáctus vermelho. A partir de então, sua produção literária é intensa, compreendida pelas obras: Ciranda de pedra (romance, 1955), Histórias de desencontro (contos, 1958), História Escolhidas (contos, 1961), Verão no aquário (romance, 1963), O seminário dos ratos (ficção, 1977), A disciplina no amor ( fragmento, 1980), Mistério (2º ed., 1981), As horas nuas (romance, 1989), A estrutura da bolha de sabão (contos, 1991), Papoulas em feltro negro (contos, 1993) e A noite escura e mais eu (contos, 1995). 53 Escritor e jornalista, Rubem Braga nasceu em Cachoeiro do Itapemirim — ES em 1913 e morreu no Rio de Janeiro — RJ em 1990). Considerado o mestre da crônica, Braga fez a cobertura da Revolução Consitucionalista (1932) para os Diário Associados . No Rio de Janeiro, fundou o jornal Folha do Povo, em que defendeu a Aliança Nacional Libertadora, e o semanário Diretrizes , com Samuel Weiner. Foi correspondente de guerra na Europa em 1945 e embaixador em Marrocos de 1961 a 1963. Publicou O conde e o passarinho (1936), A borboleta amarela (1956), Ai de ti Copacabana (1960), A traição das elegantes (1967), Recado de Primavera (1984) e As coisas boas da vida (1988) 54 José Ribamar Ferreira Gullar nasceu em São Luís do Maranhão — MA em 1930. Publicou Um pouco acima do chão , seu primeiro volume de versos, em 1949, mas somente entrou em evidência em 1954, com o livro mais discutido de sua geração, A luta corporal . Participou de grupo ligado à poesia concreta, mas rompeu com o movimento, passando a

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— Olhe, Gullar, no Poema Sujo você me fez sentir uma criança diante de uma selva ou de um altíssimo monumento. E quando você falou em “noites envenenadas de jasmim” — pois bem, senti-me de volta a Recife, que é minha terra.

Já, no que tange ao roteiro de perguntas, notamos algumas modificações, malgrado sejam mantidas as três perguntas recorrentes também nas entrevistas para a Manchete , O que é o amor?, Qual é a coisa mais importante do mundo? E Qual a coisa mais importante do mundo para uma pessoa como indivíduo?. Na entrevista com Elke Maravilha, há a preocupação com a morte nas perguntas: “Você já pensou na morte?” e “Você tem pais vivos?”. A preocupação é retomada com na entrevista com Rubem Braga, com a interrogação: “Qual a sua atitude diante da morte?”. Já com o médico neurologista Dr. Abraham Akerman 55 , não é inscrita a pergunta, mas é sugerida ao final da entrevista:

Sobre amor e morte, e medo de morrer: “Meu querido pai era desde jovem spinozista. Como você deve saber, Spinoza era um jovem filósofo que vivia em Amsterdã e foi excomungado publicamente pela sinagoga. Minha filosofia é a dele. Quero, além disso, declarar que só existem na realidade três minorias oprimidas: o negro, o judeu e a mulher.”

constituir o grupo dos chamados neoconcretos , quando publicou o artigo Da teoria do não objeto (1950) e o ensaio Do cubismo à arte neoconcreta. Outras obras: Poemas (1958); João Boa-Morte, cabra marcado para morrer (1962); Por você por mim (1968); Dentro de uma noite veloz (1975); Poema sujo (1976); Na vertigem do dia ( 1980); Indagações de hoje (1989). É também autor de peças de teatro: Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come , com Oduvaldo Viana Filho (1966) e A saída? Onde fica a saída? , com Armando Costa (1967), e novela de TV: Araponga (1990). Foi presidente da Funarte (1992-1994). 55 Nascido em São Petesburgo (atual Leningrado) — URSS em 1908, Abraham Akerman foi renomado neurologista no Brasil. Graduado pelas faculdades de Ciências e de Medicina da Universidade de Paris e assistente do Hospice de la Salpêtrière et de Bicêtre em Paris. Foi chefe do Serviço de Neurologia da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e professor do Departamento de Neuroftalmologia do Monte Sinai, da Universidade de Nova Iorque. Publicou trabalhos sobre esclerose em placas, discinesias, hematomas cerebrais espontâneos, tumores cerebrais, arterites temporais, epilepsias, entre outros.

82 Também nota-se uma maior recorrência de questões referentes à religião, como na entrevista com Antônio Callado 56 , em que Clarice pergunta ao seu entrevistado: “Quais suas relações com Deus?”. Inclusive, já na entrevista com Elke Maravilha, Clarice pergunta se sua entrevistada é religiosa, se costuma rezar e se é supersticiosa. Sua entrevista com o Padre Quevedo não somente ratifica a preocupação com assuntos de cunho religioso como retoma a epifania, a certa altura da entrevista. Mas, antes de estudarmos de fato momentos epifânicos nas entrevistas, é preciso retomar o significado do termo epifania, e seu uso na literatura, mais especificamente na obra literária de Clarice Lispector.

3 – 4 MOMENTOS EPIFÂNICOS

“Por epifania, ele entendia uma súbita manifestação espiritual, que surgia tanto em meio às palavras ou gestos mais corriqueiros quanto na mais memorável das situações espirituais. Acreditava fosse tarefa do homem de letras registrar tais epifanias com cuidado, pois elas representam os mais delicados e fugidios momentos da vida.” (James Joyce – Stephen Hero )

O termo epifania origina-se do grego e significa epi = sobre e phaino = aparecer, brilhar; epipháneia = aparecer, brilhar (Sá, 2000, p. 168) 57 . Na definição religosa, epifania é uma manifestação divina. O Cristianismo nomeia a “Festa da Epifania”, quando o menino Jesus dá-se a conhecer aos Reis Magos. Conforme consta no Dicionário de Teologia Bíblica de Johannes Bauer citado por Olga de Sá, a epifania é um conceito central do mundo hebreu:

56 Antônio Carlos Callado nasceu em Niterói — RJ, em 1917 e morreu no Rio de Janeiro — RJ em 1997. Romancista destacado pelo engajamento político e social de suas obras. Autor de: Assunção de Salviano (1954), A madona de cedro (1957), Quarup (1967), Bar Don Juan (1971) e Reflexos de baile (1976). Após Memórias de Aldenhouse (1988), publicou O homem cordial e outras histórias (1993), coletânea de contos escritos por durante cinco décadas. Para o teatro escreveu Pedro Mico (1956) e Cidade assassinada (1957). Algumas de suas reportagens políticas foram publicadas em livros, destacando-se No tempo de Arrais (1964). Entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1994. 57 É interessante observar nesta passagem do livro a definição religiosa do termo e comparação desta com as epifanias utilizadas por Joyce e Clarice.

83 Por epifania se entende a irrupção de Deus no mundo, que se verifica diante dos olhos dos homens, em formas humanas ou não humanas, com características naturais ou misteriosas que se manifestam repentinamente, e desaparecem rapidamente. (BAUER apud SÁ, 2000, p. 168)

Importante o conhecimento dos significados religioso e místico da epifania, pois, conforme pondera Olga de Sá, uma das primeiras estudiosas de Clarice a relacionar, com efeito, a epifania na obra clariciana com a epifania de James Joyce e a epifania religiosa, tais acepções têm reflexo no sentido literário. Há na entrevista com Padre Quevedo um trecho que podemos interpretar como um momento epifânico da entrevistadora:

Agora vou lhe fazer uma pergunta delicada (ou atrevida): alguns dos fenômenos ocorridos entre os santos da igreja católica podem ser pura parapsicologia? Claro. Por exemplo, as vozes que Joana D’Arc ouvia. Mas uma coisa é por exemplo, a cura de uma paralisia funcional e a ressurreição de um morto. É natural a levitação a dois ou cinco metro, mas seria milagre uma ascensão por cima das nuvens etc. Interrompo por um instante a entrevista para dizer que, do interior do branco e vasto edifício do Retiro dos Padres, ouvi de repente belíssimas vozes humanas em canto gregoriano. (...)

Clarice interrompe a entrevista porque ouve, de repente, belíssimas vozes humanas em canto gregoriano. A epifania constitui “uma realidade complexa, perceptível aos sentidos, sobretudo aos olhos (visões), ouvidos (vozes) e até ao tato.” (SÁ, 2000, p.168). O momento em que a entrevistadora ouve as “belíssimas vozes humanas” é repentino e a interrupção é realizada “por um instante”. Segundo o Dicionário, com vimos, a irrupção divina se manifesta repentinamente e desaparece rapidamente.

84 Convém notar que a entrevistadora afirma ouvir as belíssimas vozes paralelamente às observações de Padre Quevedo acerca dos fenômenos ocorridos entre os santos da igreja católica, em especial, as vozes ouvidas por Joana D’Arc. Os elementos epifânicos estão presentes na ficção de Clarice Lispector e perpassam toda sua produção literária, conforme observa Olga de Sá, por intermédio da “visão transfigurada, pelo deslumbramento da beleza mortal e pela contemplação” Apesar de, diferentemente de Joyce, Clarice nunca ter se utilizado da palavra epifania, esta é apontada como um dos elemento-chaves na leitura das obras claricianas.

Seria um nunca mais acabar, se apenas alinhássemos todas as epifanias de beleza dos livros de Clarice: os cavalos brancos, a pantera, o vento, os amantes, enfim, todos os intervalos da vida que a preenchem e dela transbordam. (SÁ, 2000, p.199)

Benedito Nunes corrobora a recorrência do termo epifania na obra clariciana ao pontuar o descortínio silencioso como a experiência interna dos personagens de Clarice, em momentos de pausa contemplativa, que proporcionam “um saber imediato arraigado à percepção do estado bruto”. Outrossim, o autor correlaciona a palavra glória à epifania no romance A maça no escuro .

A narradora, que acompanha a trajetória de Martim, pode representar a realidade assim descortinada, por um encadeamento metafórico de termos — graça, harmonia, perfeição e beleza. Tais são os principais significantes dispersos que convergem, remontando ao significado fugidio de uma epifania, na palavra glória.(...) (1995, p.125)

Aliás, conforme pontua Luciana Stegagno Picchio, “toda tentativa crítica de apreender no seu todo, na sua amplitude e profundidade, o significado da obra de Clarice Lispector, tem desembocado, nestes anos, no termo-conceito de epifania” (1989, p.17). Segundo Picchio, a epifania se revela de diversas formas:

85 Epifania imaginativamente, como revelação através da escritura de algo essencial que inesperadamente se fixa e se torna visível. Epifania criticamente, terminologicamente, como aparição instantânea e transfiguradora, com explícita alusão à estética joyceana. Mas epifania, também, metaforicamente, como advento nas letras brasileiras, tão viçosas de ambientes e de folclores, tão marcadas pelo sol e pelo trópico, de uma escritura mais esquiva e discreta.

Assim como na obra literária, nas entrevistas, a epifania perpassa os diálogos, transformando-os definitivamente. É possível encontrá-la tanto na Fatos e Fotos/Gente , na revista Manchete . Para ilustrarmos, citaremos um trecho da entrevista da Manchete, com Djanira, em que é indubitável o momento epifânico:

[...] Ficamos em grande silêncio. Provavelmente mergulhadas ambas nas nossas vidas mútuas. Como não posso transmitir aos leitores a profundidade de nosso silêncio, preencho-o reproduzindo um poema de Djanira. Chama-se Viagem. E é assim:

Eu vi nas côres de marfim um elefante selvagem que viera das Índias oferecendo-me caminhos onde poderia perigosamente fechar meus olhos e partir, partir. . .

Mas era pecado e viajei no pecado. Ao infinito viajei e perdi-me no tempo que era pecado.

86 O grande silêncio em que permaneceram pode também equivaler ao descortínio descrito por Benedito Nunes, o qual de tão profundo se desnuda em poesia. Aqui, tal qual na entrevista com Padre Quevedo, a epifania surge como aparição instantânea e transfiguradora. Na entrevista com a pintora Flora Morgan Snell, última realizada para a revista Fatos e Fotos/Gente , publicada no dia 17 de outubro de 1977, pode-se destacar no texto introdutório alguns momentos epifânicos da entrevistadora:

[...]

O fotógrafo Marcos Vinício (que é também bom poeta) e eu fomos recebidos no ultra-suntuoso apartamento (Vieira Souto) por um mordomo devidamente fardado. Não reparei se usava luvas ou não. Ele, muito moço, parece imbuído de suas altas funções mas tem um olhar inocente. Lembrei-me de que nos livros policiais, especialmente de Agatha Christie, o assassino é quase sempre o mordomo. O mordomo da Sr.ª Snell é o oposto de um assassino: é um leve robot. Depois ouvimos o “boa-tarde” da Sr.ª Snell. Pelo que eu havia visto de suas pinturas vigorosas e de traços musculares eu imaginara uma voz de mezzo-soprano . Para a minha surpresa, a voz é de soprano lírica e o modo de vestir é ultrafeminino. Durante praticamente toda a entrevista não parou de sorrir. Estava vestida de gaze desmaiadamente lilás, os lábios lilases, as faces lilases, e a sua cabeleira louríssima é muito, muito alta. [...]

O “boa-tarde” da entrevistada, cuja voz é de soprano lírico e o modo de se vestir é ultra feminino, provoca o descortínio da realidade, “por um encadeamento metafórico de termos — graça, harmonia, perfeição e beleza”, nas palavras de Benedito Nunes, em que o lilás transforma-se em “desmaiadamente” lilás, e transborda das vestes para os lábios e as faces de Flora Morgan Snell. Malgrado encontremos graça, perfeição e beleza nos momentos epifânicos, a epifania não se constitui apenas pelo belo, conforme frisa Olga de Sá:

87 Seus momentos epifânicos não são necessariamente transfigurações do banal em beleza. Muitas vezes como marca sensível da epifania crítica, surge o enjôo, a náusea. A transfiguração não é radiosa mas se faz no sentido do mole, do engordurado e do sentido. (2000, p.199)

Sob este prisma, a transfiguração, igualmente, traduz-se na pergunta da entrevistadora Clarice Lispector para Fayga Ostrower:

— Fayga, eu às vezes tenho náusea da palavra escrita. Isto só sucede com a palavra escrita ou acontece também o mesmo ao artista plástico?

Da própria palavra escrita surge o nojo, como se o próprio momento de criação representasse a transfiguração pela epifania, como se a criação literária para a entrevistadora correspondesse, em certos momentos, a um cego mascando chiclete, semelhante ao do conto Amor , que, desencadeia na escritora uma náusea semelhante à da personagem, ao fixar seu “olho espiritual” neste cego mascando palavras, ajustado por “preciso foco de luz”, de maneira que olha-o e vê tal como ele é: uma epifania. 58

58 Os termos “olho espiritual” e “preciso foco de luz” foram extraídos da obra Stephen Hero , de James Joyce: “Imagine meus olhares sobre esse relógio como experiências de um olho espiritual, tentando fixar a própria mirada através de um preciso foco de luz. No momento em que o foco é ajustado, o objeto é epifanizado. Ora, é nesta epifania que reside para mim a terceira qualidade, a qualidade suprema do belo.” (apud Olga, 2000, p.172). Não obstante se falar em beleza na obra de James Joyce, no caso do cego mascando chiclete, a epifania ocorre pela náusea, porém, não deixa de ser vista pelo “olho espiritual”, a que James Joyce se refere.

88 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da produção jornalística de Clarice Lispector para as revistas Manchete e Fatos e Fotos/Gente reafirma a escrita de uma entrevistadora ímpar, com características específicas da autora de Paixão segundo GH, dotada de uma linguagem conotativa, cujo sentido se amplia, torna-se plural, multívoco, em oposição à linguagem conotativa jornalística, que atém-se ao sentido literal das palavras. Apesar de pertencerem a épocas diversas, e evocarem momentos particulares na vida de Clarice Lispector, as entrevistas realizadas apresentam muitos pontos em comum o que vem a ratificar a linguagem peculiar clariciana erigida ao longo dos diálogos, pautada menos por acontecimentos externos, mas, sobretudo, pela escritura de Clarice Lispector, que prioriza questões intrínsecas ao ser humano e ao mistério da vida. A linguagem jornalística funciona apenas como ponto de partida. Em um primeiro momento, o discurso de Clarice Lispector apresenta-se como jornalístico, sob formato em discurso direto, com uma introdução sobre o entrevistado seguida por perguntas e respostas, que segue os mesmos moldes das outras entrevistas jornalísticas publicadas nas revistas Manchete e Fatos e Fotos/Gente . Contudo, a urdidura dos textos está alicerçada no estilo literário de Clarice Lispector. À medida em que são engendradas as entrevistas, tal estilo é suscitado por uma série de elementos pontuados no segundo e terceiro capítulo do presente trabalho. Notamos, sobretudo, que as entrevistas caracterizam-se pela transgressão da norma culta. Já nos textos introdutórios, os diálogos fundem-se nas apresentações dos entrevistados, como se a entrevistada lançasse mão das falas como nova ferramenta para a descrição. Clarice inova, outrossim, nos monólogos interiores que permeiam os diálogos não somente na revista Manchete como também na Fatos e Fotos/Gente . Ademais, a entrevistadora apresenta-se na primeira pessoa do singular. O eu se constrói em contraposição ao tu no decorrer do diálogo, a dissociar a entrevistadora Clarice Lispector da autora, enquanto produtora de signos e ainda da Clarice Lispector biográfica.

89 Vale lembrar que quando o discurso literário orienta-se dialogicamente em relação ao discurso de outrem, nas palavras de Bakhtin, cria novas e substanciais possibilidades literárias para o discurso, uma vez que “todo o discurso é orientado para a resposta e ele não pode esquivar-se à influência profunda do discurso da resposta.”(Bakhtin, 1993, p.89) O roteiro de perguntas da Clarice Lispector entrevistadora podem vir a reafirmar essa assertiva, se considerarmos que, ao indagar sobre intricadas questões pessoais, as perguntas da entrevistadora orientariam para as possíveis respostas do entrevistado, e, muito provavelmente para as possíveis respostas do leitor, provocando, dessa forma, um efeito estético no ato da leitura. A polissemia dos textos igualmente provoca um efeito estético. As figuras de linguagem, como as metáforas, antíteses, muito utilizadas nas descrições de seus entrevistados; bem como os momentos epifânicos causam o chamado estranhamento na leitura, e chegam a nos remeter à literatura de Clarice Lispector. Em meio a tantas evidências, é inquestionável a riqueza das entrevistas realizadas por Clarice Lispector, que mesmo no ofício como jornalista, não se distancia do universo literário lispectoriano, pelo contrário, faz de seus diálogos um espaço dialógico com sua própria ficção.

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ANEXOS

91 Listagem da produção jornalística de Clarice Lispector para a Revista Manchete (Bloch Editores S. A.) / Rio de Janeiro

1968 Ano 16 Maio: dia 11 – nº 838 – p. 148 e 149 – Nélson Rodrigues dia 18 – nº 839 – p. 136 e 137 – Isaac Karabchwsky dia 25 - nº 840 – p. 90 e 91– Djanira Junho: dia 01 – nº 841 – p. 124 e 125 – Mário Schemberg dia 08 – nº 842 – p. 138 e 139 – Sciliar dia 22 - nº 844 – p. 88 e 89 – Dolores Prado dia 29 - nº 845 – p. 138 e 139 – Leopoldo Nachbin Julho*: dia 06 – nº 846 – p. – Oscar Niemayer dia 13 – nº 847 – p. – Zagalo Setembro*: dia 14 – nº 856 – p. – Chico Buarque dia 21 – nº 857 – p. – Tom Jobim dia 28 - nº 858 – p. – Pongetti Outubro: dia 05 – nº 859 – p. 44 e 45 – José Carlos de Oliveira dia 12 – nº 860 – p. 36 e 37 – Vinícius de Morais dia 19 - nº 861 – p. 46 e 47 – Dona Sara dia 26 - nº 862 – p. 160 e 161 – Burle Marx Novembro: dia 02 – nº 863 – p. 36 e 37 – Millôr Fernandes dia 09 – nº 864 – p. 116 e 117 – Marques Rebêlo dia 23 - nº 866 – p. 188 e 189 – Bruno Giorgi

92 Dezembro: dia 07 – nº 868 – p. 212 e 213 – Augusto Rodrigues dia 14 – nº 869 – p. 40 e 41 – Tereza Souza Campos dia 21 - nº 870 – p. 174 e 175 – Maria Martins dia 28- nº 871 – p. 54 e 55 – Luiz Alberto Bahia

1969

Janeiro: dia 04 – nº 872 – p. 52 e 53 – Érico Veríssimo dia 11 – nº 873 – p. 64 e 65 – Edith Pinheiros dia 18 - nº 874 – p. 72 e 73 – Tônia Carreiro dia 25 - nº 875 – p. 40 e 41 – Fernando Sabino Fevereiro: dia 01 – nº 876 – p. 44 e 45 – Iberê Camargo dia 08 – nº 877 – p. 40 e 41 – Bibi Ferreira dia 15 - nº 878 – p. 132 e 133 – Austregésilo de Ataíde dia 22 - nº 879 – p. 48 e 49 – Clóvis Bornay Março: dia 08 – nº 881 – p.112 e 113 – Luiz Viana Filho dia 22 – nº 883 – p.96 e 97 – Negrão de Lima Abril: dia 05 – nº 885 – p.104 e 105 – Yolanda Costa e Silva dia 19 – nº 887 – p. 100 e 101 – Maria Alice Barros dia 26 - nº 888 – p.124 e 125 – Ivo Pitanguy Maio: dia 03 – nº 889 – p. 60 e 61 – Glória Magadan Ano 17 dia 10 – nº 890 – p. 124,125 e 126 – Mário Andreazza dia 17 - nº 891 – p. 120 e 121– Maria do Carmo de Abreu Sodré

93 dia 24 – nº 892 – p.126 e 127 – Pedro Bloch dia 31 – nº 893 – p. 62 e 63 – Jaques Klein Junho: dia 07 – nº 894 – p. 64 e 65 – João Saldanha dia 14 – nº 895 – p. 74 e 75 – dia 21 - nº 896 – p. 52 e 53 – Mário Cravo dia 28 - nº 897 – p. 44 e 45 – Carybé Julho: dia 05 – nº 898 – p.40 e 41 – Genaro de Carvalho dia 19 – nº 900 – p.126 e 127– Hélio Pellegrino dia 26 – nº 901 – p. 112 e 113 – Agosto: dia 02 – nº 902 – p. 121 e 122 – Cassiano Ricardo dia 09 – nº 903 – p. 62 e 63 – Vianna Moog dia 16 - nº 904 – p. 116 e 117 – Dinah Silveira de Queiroz dia 23 – nº 905 – p. 48 e 49 – Mário Henrique Simonsen dia 30 – nº 906 – p. 60 e 61 – Elis Regina Setembro: dia 06 – nº 907 – p.122 e 123 – Nestor Jost dia 20 – nº 909 – p. 66 e 67 – dia 27 - nº 910 – p.144 e 145 – Maísa Outubro: dia 04 – nº 911 – p. 144 e 145 – Jardel Filho dia 11 – nº 912 – p. 132 e 133 – Tarcísio Meira dia 25 - nº 914 – p. 152 e 153 – Bruno Hermani

Listagem da produção jornalística de Clarice Lispector para a Revista Fatos e Fotos/ Gente (Bloch Editores S. A.) / Brasília

1976

94 Ano XV Dezembro: dia 26 – nº 801 – p. 40 e 41 – Elke Maravilha

1977 Ano XVI Janeiro: dia 02 – nº 802 – p. 64 e 65 – Oscar Ornstein / Mário Soares dia 16 – nº 804 – p. 20, 21 e 22 – Alzira Vargas de Amaral Peixoto dia 23 - nº 805 – p. 36 e 37 – Dr. J D. Azulay dia 30 - nº 806 – p. 28 e 29 – Antônio Callado Fevereiro: dia 14 – nº 808 – p. 12 e 13 – Hélio Pellegrino Março: dia 14 – nº 812 – p.14 e 15 – dia 21 – nº 813 – p.46 e 47 – Carlos Sciliar dia 28 – n º 814 – p. 48 e 49 – Abraham Akerman Abril: dia 18 – nº 817 – p.42 e 43 – Iberê Camargo dia 25 – nº 818 – p. 42 e 43 – Jece Valadão Maio: dia 02 – nº 819 – p. 42 e 43 – Padre Quevedo dia 16 – nº 821 – p. 16 e 17 – Ferreira Gullar dia 23 – nº 822 – p. 38 e 39 – Léo Gilson Ribeiro Junho: dia 13 – nº 825 – p. 46 e 47 – Helena de Brito e Cunho dia 20 – nº 826 – p. 32 e 33 – Maria Bonomi dia 27 - nº 827 – p. 58 e 59 – Rubem Braga Julho: dia 11 – nº 829 – p.46 e 47 – Haroldo Mattos de Lemos

95 dia 25 – nº 831 – p.28 e 29 – Maurício e Antônio Houaiss Agosto: dia 08 – nº 833 – p. 22 e 23 – Guilherme Figueiredo dia 29 – nº 836 – p. 36 e 37 – Lígia Fagundes Telles Setembro: dia 12 – nº 838 – p.54 e 55 – Vinícius de Morais dia 26 – nº 840 – p. 46 e 47 – Fayga Ortrower Outubro: dia 17 – nº 843 – p. 46 e 47 – Flora Morgan Snell

96 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

I - Bibliografia da autora

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem (romance). Rio de Janeiro: Rocco,1999. ______A cidade sitiada ( romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ______A maçã no escuro (romance). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1961. ______Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (romance) . Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ______A hora da estrela (romance) . Rio de Janeiro: Rocco, 1999. ______Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999. ______De corpo inteiro (entrevista). Prof.ª Dr.ª Marlene Gomes Mendes (org.). Rio de Janeiro: Rocco, 1999. ______Correspondências / Clarice Lispector . Teresa Montero (org). Rio de Janeiro: Rocco, 2002. ____ A descoberta do mundo (crônicas). Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

II – Bibliografia sobre a autora

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