AS PEÇAS TEATRAIS DE “GÊNERO LIGEIRO” NA PRIMEIRA REPÚBLICA Sérgio Augusto Vicente1
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TEATRO, CRÍTICA SOCIAL E MODERNIDADE NA PRODUÇÃO DO ESCRITOR BELMIRO BRAGA (1870-1937): AS PEÇAS TEATRAIS DE “GÊNERO LIGEIRO” NA PRIMEIRA REPÚBLICA Sérgio Augusto Vicente1 Em minha pesquisa de doutorado, que se debruça sobre a trajetória literária do escritor juiz-forano Belmiro Braga (1870-1937), debruço-me sobre as variadas produções desse literato (como crônicas, trovas humorísticas, poemas e roteiros de peças teatrais). Nesse artigo, restrinjo-me a refletir sobre a sua produção teatral referente às décadas de 1910 e 1920. Bastante conhecido no circuito Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, Belmiro deixa entrever, no conjunto de sua produção, questões concernentes à relação do intelectual com a “modernidade”. Predominantemente de verve satírica e pertencentes ao gênero ligeiro, suas peças circularam significativamente e atingiram público bastante amplo. Propomos aqui uma breve reflexão sobre seu caráter cronístico, suas críticas sociais, sua relação com a censura prévia na Primeira República e seu papel na aproximação do público em relação ao cinema. Um escritor do cotidiano Nascido em 1870, em Vargem Grande, distrito de Juiz de Fora (MG), Belmiro Braga ingressou na vida literária na virada do século XIX para o XX. Passando apenas um ano pela escola, sua inserção no mundo letrado se deu de maneira autodidata, contribuindo para isso as redes de sociabilidade intelectual que “alinhavou” ao longo da vida, em diferentes experiências sociais e profissionais. A exemplo de vários outros intelectuais de seu tempo, foi um escritor que não conseguiu sobreviver exclusivamente através das letras, vivenciando múltiplas experiências profissionais instáveis: ajudante de balcão, comerciante, tabelião, vendedor de seguros, inspetor escolar, etc. Foi em seu estabelecimento comercial, situado na estação ferroviária de Cotegipe (outro distrito de Juiz de Fora) que o aspirante a poeta conheceu o escritor cearense Antonio Sales (1868-1940), de passagem pela região, sendo este considerado uma espécie de “divisor de águas” em sua vida. Já bastante conhecido nos círculos de sociabilidade literária do Rio de 1 Doutorando em História, Cultura e Poder, pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFJF. Orientadora: Dra. Cláudia Maria Ribeiro Viscardi. Bolsista Capes. Pesquisa vinculada ao Laboratório de História Política e Social do PPGHIS-UFJF. E-mail: [email protected]. Janeiro, então capital da República, Sales impulsionou a divulgação de seu trabalho na imprensa – sobretudo na imprensa carioca. Foi também o poeta cearense o responsável por apresentá-lo ao famoso grupo intelectual da Garnier, que constituía importante espaço de sociabilidade literária da Belle Époque. Apesar de se fazer mais conhecido no verso do que na prosa, também se destacou como autor de peças teatrais de gênero ligeiro, que tinham como objeto o humor voltado para o cotidiano e os costumes. Segundo ele mesmo declara em carta endereçada ao amigo Sales, com quem veio a se corresponder assiduamente, durante 30 anos de sua vida, esse interesse em se tornar comediógrafo teria se concretizado em 1910. (Carta de Belmiro Braga para Antonio Sales, Juiz de Fora, 18/04/1910 - Fundo Antonio Sales, FCRB - RJ) A esta altura, Belmiro também já havia encontrado influências de outros conhecidos intelectuais no campo teatral, como Arthur Azevedo, por exemplo, que já passara por sua terra natal. Vale destacar que, nesse início de século, Juiz de Fora era conhecida como “Atenas Mineira”. Tal epíteto era justificado pelos contemporâneos por várias razões: a proximidade do município com o Rio de Janeiro, considerado o polo irradiador de culturas provenientes das mais diversas regiões do Brasil e do mundo, facilitava o protagonismo econômico, político e cultural de Juiz de Fora para toda a região da zona da mata mineira. Não por acaso, Juiz de Fora disputou, no final da década de 1890, o posto de capital de Minas Gerais. A essa altura, o município já contava com a existência de importantes veículos de comunicação – como o jornal O Pharol, por exemplo. O Teatro Juiz de Fora fazia parte do dinamismo cultural do município, contando com uma boa infraestrutura e atraindo diversas companhias de teatro, atores, escritores e personalidades das artes e da política (ESTEVES, 1910). Além disso, os juizforanos já contavam com uma agremiação literária, a Academia Mineira de Letras, inaugurada em 1909, constituindo importante referência para todo o estado, inclusive para a sua capital, que não a abrigou nos primeiros anos de seu funcionamento, contrariando a lógica de outros estados da federação (BROCA, 2004:101-102). Belmiro Braga era um dos sócios responsáveis pela idealização dessa agremiação e comemorava sua fundação como uma importante conquista para a vida cultural do município, não obstante o fato de torná-la alvo constante de deboches e ironias, tornando-a uma espécie de paródia da ABL. Essa tensão existente entre a seriedade de um projeto de institucionalização das letras e o deboche com que se referia às academias literárias refletia a ambígua relação dos intelectuais da Primeira República com o academicismo. Ao mesmo tempo criticada pelos formalismos e encastelamentos característicos daquilo que se rotulava como o “lado doutor” e “bacharelesco” de nossa cultura, a ABL – inspiração para várias outras que se fundavam pelos estados - era o “reduto de estabilidade dos intelectuais brasileiros” (SEVCENKO, 2003:128), num contexto em que sobreviver exclusivamente através da literatura era algo utópico. Esse é, certamente, um dos dilemas do escritor moderno, que vive e ao mesmo tempo questiona a própria modernidade, com todas as suas contradições e ambivalências. Através do caráter cronístico de sua obra, aspecto que perpassa as múltiplas produções de um escritor familiarizado com os costumes interioranos mineiros e os tipos sociais existentes nessas regiões, Belmiro transitou entre o rural e o urbano, o erudito e o popular, explorando costumes e fenômenos sociais que corroboravam e ao mesmo tempo se chocavam com o ideal de modernidade estampado nas páginas das revistas ilustradas. Vestido como um elegante homem da belle époque, autorrepresentava-se nos jornais e revistas desse contexto como um escritor de roça e de formação rudimentar. Desse contraste nascia o sucesso de seu humor junto a um público amplo, para o qual os periódicos da época miravam seus holofotes, buscando expandir o mercado editorial no país. Teatro, cinema e crítica aos costumes na Primeira República: o “gênero ligeiro” Em 1910, Belmiro Braga estreava no teatro com as peças Os candidatos e O casamento na roça. Daí em diante, escreveu outras peças, como Na Roça; Na Cidade, O divórcio; Porto, Madeira e Collares; Que Trindade!; Medo de Mulher; Um juiz de fora em Juiz de Fora; O voto secreto; Zás-Traz; Todo Marido; Sete Nomes; Casamento do Pindoba; Mamãe, olha o Periquito. Essa experiência no teatro o levou a percorrer várias cidades brasileiras, juntamente com suas palestras e conferências. Sua popularização no teatro lhe rendeu algumas homenagens já em 1917, como nos mostra a criação da Associação Dramática Belmiro Braga, em Juiz de Fora (O PHAROL, Juiz de Fora, 15/05/1915:2). De caráter humorístico e de curta duração, suas peças eram classificadas como pertencentes ao “gênero ligeiro”, que, desde o século XIX, adaptava a linguagem e a estética à necessidade de ampliar a comunicação e o diálogo com plateias heterogêneas. Consideradas um tipo de crônica sobre o cotidiano, tais peças – segundo Andrea Marzano – dividiam a crítica entre dois grupos: os “modernos”, que procuravam se adequar às demandas da modernidade; e os “tradicionais”, que lhes atribuíam a culpa pelo que chamavam de “decadência do teatro nacional”. Para alguns especialistas, esse embate já sinalizava para um incipiente e “conflituoso processo de massificação da cultura carioca” (MARZANO, 2005:353). Considerado “menor” no campo das artes dramáticas, o “gênero ligeiro” – que abarcava o teatro de revista, a opereta e a burleta – “tinha um compromisso intrínseco, e quase único, com a diversão, tornando-se, neste sentido, mais suscetível às demandas de uma população secularmente afeita à presença de música, dança, picardia e comentário satírico nos espetáculos públicos” (SALIBA, 2002:89). Também merece ser levada em consideração a relação desse gênero teatral com o cinema. Sabe-se que a popularização do cinema no Brasil foi um processo gradual e não compreendeu, obviamente, mera substituição do teatro pela linguagem cinematográfica. Pelo contrário, o teatro caminhou junto com o cinema nesse processo, servindo como importante agente “rotinizador” desse novo produto cultural que ganhava espaço na vida urbana. Segundo Elias Thomé Saliba, “já a partir de 1915, mas com maior impacto depois da guerra, os proprietários de cineteatros viram-se obrigados a manter pequenas companhias de teatro ligeiro e burletas para rápidos espetáculos [...] destinados a atrair público para os filmes” (SALIBA, 2002:89). Essa relação entre teatro e cinema não foi unívoca, havendo interdependência e troca mútua de influências entre ambos, de modo que a concisão e a rapidez – próprias do advento tecnológico da modernidade – se tornaram pré-requisitos fundamentais na elaboração dessas peças (SALIBA, 2002: 89). A escrita teatral belmiriana estava imersa nesse movimento modernizador das artes. Em pouco tempo, segundo os jornais e revistas da época, seu texto conseguia arrancar gargalhadas do público, servindo de “isca” para aproximá-lo das produções cinematográficas em circulação na Belle Époque,