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CRIME COMICS COMO LETRAMENTO MULTIMODAL. EUA (1950 - 1955)

RESUMO

Este artigo pretende discutir o fenômeno das crime comics, nos EUA, entre 1950 e 1955, a partir de publicações da Entertainment Comics (EC). O termo crime comics1 foi usado tanto por comic book2s quanto por outros veículos que se referiram a publicações do período. Em Crime Suspenstories e (em especial) Shock Suspenstories , elementos comuns a muitas publicações do período permitiram trabalhar temas como abuso policial, racismo, paranóia anti-comunista. As publicações do gênero como um todo estiveram entre os maiores alvos do Comics Code. O código definiu os parâmetros (de forma e de conteúdo) da mídia nos EUA, sem grandes alterações, até 1989. Tais parâmetros foram, em grande medida, baseados em revistas disponíveis no começo dos anos 50 nos EUA, entre elas, os títulos da EC. O fim de revistas deste tipo é sinal de grande engajamento, discussão e mobilização de diferentes setores da sociedade em diferentes contextos. As propostas estéticas e conteudísticas nas revistas da EC são material de grande relevância na compreensão de comic books como fenômeno de letramento multimodal - exigindo e esperando capacitação do leitor simultaneamente em diferentes linguagens. Avaliar que elementos figuraram nesta multimodalidade permite compreender como os comic books dialogam de diferentes formas com o mundo que cerca o leitor, permitindo uma compreensão possível da singularidade do período estudado.

PALAVRAS-CHAVE: crime comics; comics code; comic books dos anos 1950; seal of approval.

CRIME COMICS NOS EUA PÓS GUERRA

Os títulos disponíveis no mercado de comic books nos EUA pós Segunda Guerra Mundial impressionam por sua diversidade. Publicações sobre super-heróis3, funny animals4, sobre cotidiano adolescente5, disputavam atenção nos pontos de venda com temáticas de romance,

1 WRIGHT, B. W. Comic Book Nation – The transformation of youth culture in America. Baltimore: Johns Hopkins Universtity Press, 2003. 2 Este artigo tomará como base as conceituações de comics e comic book de acordo com McCLOUD, S. Understanding Comics – The invisible art. : HarperCollins, 1993. e McCLOUD, S. Making Comics – Storytelling secrets of comics, manga and graphic novels. New York: HarperCollins, 2006. 3 Como , Captain Marvel, . 4 Como Donald Duck, Mickey Mouse, Tiny Tots. 5 Em especial Archie Comics.

terror, ficção científica, crime. A queda de vendas em certos gêneros6 (em especial os mais engajados na participação dos EUA na guerra) não significou retração dos mercados como um todo. Os comic books ainda eram (e seriam) muito influentes. Um dos grandes fenômenos editoriais no período pós-guerra até meados dos anos 50 foram as chamadas crime comics. Um dos títulos pioneiros do gênero foi Crime Does Not Pay7, revista que circulou entre 1942 e 1955.

Figura 1 – Crime Does Not Pay no. 31 Fonte: TROMBETTA, Jim. The Horror! The Horror! Comics books the government didn't want you to read. New York: Abrams Comic Arts, 2010 . Revista principal da Lev Gleason Publications, Crime Does Not Pay foi editada e escrita (principalmente) por Charles Biro8. As narrativas eram curtas, intensas, macabras. Ancoravam-se com especial destaque a histórias sobre o crime organizado e outros feitos relacionados a personagens fora da lei9. Sob a perspectiva de um criminoso - ou acompanhando tal perspectiva - a narrativa dialoga com outras mídias nos EUA que também buscaram inspiração no universo criminoso. As diferenças para outras mídias, contudo, já começam pela capa. Praticamente 1/3 da imagem era ocupado por um título que facilitaria a identificação da revista frente a outros

6 A queda de vendas em publicações de super heróis levou o mercado do gênero a uma redução em 1/3 do que alcançara no pico. JONES, G. Men of tomorrow – Geeks, gangsters and the birth of the comic book. New York: Basic Books, 2004. 7 Crime Does Not Pay. Lev Gleason Publications. (1942-1955) 8 Charles Biro (1911 - 1972). GOIDANICH, H.C; KLEINERT, A. Enciclopédia dos Quadrinhos.Porto Alegre: L&PM, 2011 9 Criminosos apresentados como patologicamente corruptos ou atraídos por criminosos corruptos. HAJDU, D. The ten-cent plague – the great comic-book scare and how it changed America. New York: Picador, 2009.

títulos análogos e, também, direcionava o olhar do leitor para um pedaço melhor delimitado da impressão. As ilustrações, portanto, tendiam a uma composição quadrangular que direcionava o olhar do leitor para o centro de uma ação (normalmente) caótica. Não são capas de fácil apreensão. Pelo contrário: o que, por vezes, parece uma cena cinematográfica revela-se composição em diferentes temporalidades. A imagem na figura 1 é composta por uma série de narrativas paralelas (que poderiam render diferentes cenas em um filme). À esquerda, pessoas, grosseiramente disfarçadas de mãe e bebê, atiram contra um policial. Ele encontra-se quase ao centro da imagem, nas escadarias do banco, banhado pela fonte de amarelo mais vivo na capa. Um segundo policial, protegido por uma coluna, responde aos tiros dos bandidos. Perto dele, à direita e abaixo, um outro policial, ferido e sangrando esboça alguma reação ao evento. Mais abaixo, à direita, vemos um homem de terno prestes a entrar em um possível carro de fuga, com a ajuda de um motorista. São relevantes outros elementos que participam da capa. O selo All True Crime Stories! (com True destacado em vermelho), a face de Mr. Crime, a esfera com os títulos das histórias presentes na revista (, Million Dollar Bank Robbery, aparentemente é uma chave explicativa das cenas na capa). Como um todo, a revista buscava na capa uma apresentação que 1)a situava num gênero bem delimitado de narrativas; 2) desse ao leitor um gosto - mesmo que enganoso - do conteúdo narrativo da revista e 3) fosse dinâmica o bastante para atrair a preferência do leitor em relação a outras revistas. Em maior ou menor medida (com resultados mais ou menos satisfatórios), muitas publicações (figuras 2. 3. 4 e 5) compartilharam semelhanças com Crime Does Not Pay. Semelhanças que permitiram um debate (entre diferentes setores) acerca de que - afinal - seriam Crime Comics e quais seus efeitos - se é que seria possível saber - sobre seus leitores e os EUA como um todo.

Figura 2, 3, 4 e 5 – Crime comis de diferentes editoras nos anos 50. Destaque paraCrime Suspenstories#22 (figura 5), discutida no senado norte americano. Fonte: TROMBETTA, Jim. The Horror! The Horror! Comics books the government didn't want you to read. New York: Abrams Comic Arts, 2010

CRIME COMICS E REGULAMENTAÇÃO DA MÍDIA

Longe de serem as únicas revistas polêmicas do período, as Crime Comics, contudo, estiveram muitas vezes em evidência ao longo de seus anos áureos10. A relação entre tal exposição e sua legalidade foi tênue. Se as imagens grotescas poderiam atrair e manter leitores, elas poderiam atrair atenção de detratores interessados em diferentes tipos de regulação ou restrição de conteúdos. O mercado era frutífero mas arriscado. Revistas poderiam vender muito por atenderem a expectativas de leitores ávidos por suas histórias ou ser banidas de bairros ou cidades por seu caráter questionável11 (figura 7). O constante debate resultou nos Senate Hearings of Juvenile Delinquency de 195412 e o subsequente relatório em 195513. As mais de 400 páginas de transcrição da segunda

10 A partir de 1947, cada edição de Crime Does Not Pay teve tiragem de aproximadamente 1 milhão de cópias. HAJDU, D. The ten-cent plague – the great comic-book scare and how it changed America. New York: Picador, 2009. 11 THRASHER, F. M. The Comics and Delinquency: Cause or Scapegoat. Journal of Educational Sociology, Vol. 23, No. 4, 1949. 12 U.S. Congress.Senate. - Juvenile Delinquency (Comic Books) hearings before the United States Senate Committee on the Judiciary, Subcommittee To Investigate Juvenile Delinquency in the U.S., Eighty-Third Congress, second session, on Apr. 21, 22, June 4, 1954. 13 U.S. Congress.Senate – Subcommittee to investigate Juvenile Delinquency. Interim Report: Comic Books and Juvenile Delinquency, 84th Congress., 1st session., 1955.

audiência trazem nos depoimentos de Fredric Wertham14 e William Gaines15 os pontos mais discutidos e trabalhados acerca do assunto. O subcomitê acerca da influência nociva de Comic Books ganhou inesperadamente relevância interna - no comitê - e nacional (não apenas pela repercussão em mídia impressa, mas também por ter sido transmitido ao vivo na TV). Tal relevância foi, em grande medida, devido ao antagonismo criado pelas figuras de Wertham e Gaines. Wertham, psiquiatra comprometido com a denúncia da influência funesta de Comic Books; Gaines, editor da EC16, determinado a argumentar por legitimidade da mídia frente às acusações de corrupção da juventude. O resultado foi extremamente ambíguo. Afinal, se, por um lado, Gaines tenha sido castigado pelos questionamentos dos membros do comitê ao longo da sessão17 (enquanto Wertham tenha tido um lugar de fala para divulgar seu recém lançado livro18), o senado não chega à conclusão definitiva alguma acerca dos possíveis riscos à juventude causados pelos gibis. A recomendação final foi, portanto, no sentido que a própria indústria deveria se regulamentar19. Como resposta aos constantes temores acerca de uma interferência governamental mais incisiva Editoras formam a Association of Comics Magazine20 em 1954. A missão da associação era: separar os Comic Books aceitáveis dos reprováveis21, afim de dar uma resposta a uma opinião pública desconfiada em relação à mídia. Tal separação veio no

14 Fredric Wertham (1895 - 1981) foi psiquiatra e autor comprometido com a denúncia do caráter pernicioso dos Comic Books ao longo dos anos 40 e 50 nos EUA. GOIDANICH, H.C; KLEINERT, A. Enciclopédia dos Quadrinhos.Porto Alegre: L&PM, 2011 15 (1922 - 1992) foi dono e editor da EC. GOIDANICH, H.C; KLEINERT, A. Enciclopédia dos Quadrinhos.Porto Alegre: L&PM, 2011 16 Entertaiment Comics. 17 Beaser, por exemplo, mantém com ele uma interlocução quase socrática. U.S. Congress.Senate. - Juvenile Delinquency (Comic Books) hearings before the United States Senate Committee on the Judiciary, Subcommittee To Investigate Juvenile Delinquency in the U.S., Eighty-Third Congress, second session, on Apr. 21, 22, June 4, 1954 18 WERTHAM. F. Seduction of the Innocent. New York. Rinehart, 1953. 19 U.S. Congress.Senate – Subcommittee to investigate Juvenile Delinquency. Interim Report: Comic Books and Juvenile Delinquency, 84th Congress., 1st session., 1955. 20 Legalmente reconhecida em 7 de setembro de 1954. NYBERG, Amy Kiste. Seal of approval – The history of the comics code. Mississippi: University Press of Mississippi, 1998. 21 No intuito de resolver a questão sem envolvimento estatal. NYBERG, Amy Kiste. Seal of approval – The history of the comics code. Mississippi: University Press of Mississippi, 1998.

formato de um código22- o Comics Code - e de um selo23- o Comic Book Seal of Approval (figura 6). As diretrizes do código24 foram imediatamente sentidas por aquelas editoras que se atravessem a publicar algo que não fosse compatível à filosofia da Associação. Consequentemente não receberiam o selo, fazendo sua distribuição difícil (ou impossível)25. O impacto mudou rapidamente as características de títulos disponíveis26, levou à falência editoras27 e levou ilustradores a abandonarem a mídia28.

Figura 6 –O Comic Book Seal of Approval. Fonte: TROMBETTA, Jim. The Horror! The Horror! Comics books the government didn't want you to read. New York: Abrams Comic Arts, 2010 Figura 7 – A guerra ao comic book. Brain Washing American Style. Fonte: http://efanzines.com/EK/eI37

EC E A PUBLICAÇÃO DE CRIME COMICS

22 CODE OF THE COMICS MAGAZINE ASSOCIATION OF AMERICA, INC: NEW YORK, 1954 23 Recebido apenas caso a publicação se conformasse a todos os elementos do código. 24 Toda a primeira parte do código versa sobre estética de crime e . A segunda diz respeito a restrições em diálogos, sexualidade, anúncios, etc. CODE OF THE COMICS MAGAZINE ASSOCIATION OF AMERICA, INC: NEW YORK, 1954 25 A ausência de selo em uma revista encontraria maior resistência para venda. Logo, distribuidores focaram em produtos devidamente aprovados. 26 O mercado, em 1956, estava reduzido à metade do tamanho que alcançara em 51. JONES, G. Men of tomorrow – Geeks, gangsters and the birth of the comic book. New York: Basic Books, 2004. 27 Comics Media, Fiction House, Company, United Features, Stanley Morse, Sterling Comics foram algumas das afetadas além da EC. NYBERG, Amy Kiste. Seal of approval – The history of the comics code. Mississippi: University Press of Mississippi, 1998. 28 realizou levantamento de mais de 800 nomes que deixaram a indústria após a adoção do código. HAJDU, D. The ten-cent plague – the great comic-book scare and how it changed America. New York: Picador, 2009.

A trajetória de William Gaines à frente da Entertainment Comics começa após a morte de seu pai, Max Gaines, em um acidente de barco29. A companhia, nascida como Educational Comics, fundada em 1944, foi herdada por Bill em 1947. Frente a uma situação financeira nada animadora, Bill Gaines decidiu reformular - inicialmente aos poucos - os títulos da editora. Revistas como Picture Stories From The Bible, Picture Stories From American History e Picture Stories From Science foram descontinuadas por completo. Tiny Tots, Animal Fables e Dandy Comics, representantes do gênero funny animals, tiveram destino igual. A transformação de Moon Girl and the Prince em Moon Girl Fights Crime30 e Crime Patrol31 são algumas das primeiras publicações da EC que marcaram a passagem de Bill pela editora. Ciente do crescente interesse que Crime Comics (como Crime Does Not Pay) despertavam em certa fatia do público, Gaines decidiu explorar a oportunidade para reerguer a empresa. Os resultados foram positivos32, a nova proposta editorial seria intensificada. O ano de 1950 marca o lançamento das publicações New Trend (figura 8) pela EC. Títulos anteriores foram descontinuados em detrimento de novas revistas voltadas a um público (mais velho) ávido por novidades. O New Trend foi composto por revistas de: ficção científica (, Weird Science); horror e terror (Crypt of Terror, Tales From The Crypt, Vault of Horror e Haunt of Fear); histórias de guerra (Two-Fisted Tales e ); e, claro, Crime Comics (Crime Suspenstories e Shock Suspenstories). Posteriormente, também fariam parte desta reformulação revistas como Mad33 e Panic34, títulos satíricos de muito sucesso da EC. Piracv e Weird Science-Fantasy são títulos que marcam o fim desta linha editorial.

29 Maxwell Charles Gaines (1894 - 1947) foi um nome importante da primeira geração de editoras de comic books nos EUA, além de fundador da EC. 30 Moon Girl and The Prince (1947). Moon Girl Fights Crime (1949). Moon Girl era uma cópia de Wonder Woman. 31 Crime Patrol (1948 - 1950). Publicação parecida com Crime Does Not Pay. 32 JONES, G. Men of tomorrow – Geeks, gangsters and the birth of the comic book. New York: Basic Books, 2004. 33 Mad (1952) tornou-se a mais influente revista de humor dos EUA por ter tido contrato de distribuição diferenciado de outros títulos da EC. 34 era uma paródia da EC às cópias de Mad no formato de Mad.

A participação de Gaines na audiência do senado é fruto de seu engajamento nessa proposta editorial direcionada a público mais adulto35. Essa visibilidade resultou em um código que usou as revistas da EC como base do quê não deveria ser um material aceitável. Os efeitos foram imediatos. Após a adoção do Seal of Approval, a EC descontinuou, por falta de distribuidores, rapidamente todos os seus títulos, à exceção de Mad, entre 54 e 56. A tentativa de se adequar ao código com os títulos da New Direction36(figura 9), por exemplo, fracassou exemplarmente.

Figura 8 – O New Trend. fonte: Shock Suspenstories #6. New York: Entertaiment Comics, 1952. Figura 9 – O New Direction. fonte: #1. New York: Entertaiment Comics, 1955.

CRIME SUSPENSTORY COMO TIPO DE CRIME COMIC

As concepções bastante particulares da EC acerca de crime comics ao longo das publicações do New Trend podem ser exemplificadas, mas não resumidas, à Crime Suspenstories e à Shock Suspenstories. No entanto, as revistas da EC muitas vezes misturaram diferentes gêneros (em histórias e/ou revistas) neste período. Uma história mais ligada à uma lógica de crime comics poderia aparecer, por exemplo, na Haunt of Fear, ou uma história de horror sobrenatural pudesse figurar nas páginas de Crime Suspenstories. O foco nas duas publicações visa compreender como, nas páginas de Shock Suspenstories em

35 Zorbaugh fala em 41% do público adulto masculino como consumidor de comic books em 1944. 36 Títulos como Psychoanalysis(1955), M.D.(1955) (1955) fizeram parte desta tentativa de adequação de títulos adultos ao código.

especial, figuraram histórias que trabalharam pioneiramente posições políticas bastante explícitas de autores e ilustradores. O primeiro volume de Crime Suspenstories é publicado no fim de 1950. Seu formato, comum a outros títulos da New Trend, era de quatro histórias independentes por volume em regime bimensal. Em geral, cada história seria desenhada por um ilustrador diferente. Tal divisão era dada, entre outros motivos, pela afinidade ou não do artista com a temática. As histórias se passavam num espaço bastante reduzido de seis a oito páginas, com especial destaque à primeira página, onde, em geral, haveria o título da história e uma splash page referentes a apresentação de elementos-chave na narrativa. Assim como Crime Does Not Pay, Crime Suspenstories dava um destaque notável aos elementos prometidos em suas capas. A lógica paratextual de colagem lembra bastante as capas da revista de Biro. O terço superior com o título, a rápida identificação do gênero de publicação a partir de selos, o preço e, principalmente, uma imagem que pedia mais explicações e causaria curiosidade ao leitor. Ao contrário de Crime Does Not Pay, contudo, a revista da EC não prometia histórias verídicas e contos do crime organizado. O foco era outro tipo de crime: pessoas comuns - movidas por ganância, ciúmes, insegurança, ansiedade - que praticavam atos sórdidos de violência e manipulação. De uma maneira geral, tais narrativas acompanhavam de perto os passos destes criminosos. O leitor acompanhava suas motivações ao longo das páginas até a conclusão que (na maioria das vezes) puniria o criminoso de maneira irônica. A lógica do final surpresa37, justamente pela organização da revista, portanto, antecipava que os atos reprováveis seriam punidos até o fim da história. A punição poderia ser na forma da prisão, da morte, de um acidente. Um criminoso que se disfarça de operador de barco para escapar da prisão e morre afogado38(figura 11); um homem aproveita-se de um assassino serial na cidade para matar sua esposa com a assinatura do criminoso - apenas para ser morto pelo serial killer depois39(figuras 13 e 14); uma mulher trama a morte do esposo alegando insanidade

37 Mais especificamente um O. Henry ending, baseado na obra literária de O. Henry, escritor dos EUA, como referido por Gaines na audiência. Hearings. 38 High Tide! in. Crime Suspenstories #1, arte de . Outubro/Novembro de 1950. 39 The Giggling Killer in Crime Suspenstories #3, arte de Harvey Kurtzman. Fevereiro/ Março 1951.

temporária - apenas para ficar de fato louca no hospital psiquiátrico de seu cunhado (que havia compreendido suas motivações desde o início)40(figura 10): este é o tipo de justiça irônica que aparece nessas histórias.

Figura 9 – fonte: Crime Suspenstories #6. New York: Entertaiment Comics, 1951. Figura 10 –fonte: Crime Suspenstories #1. New York: Entertaiment Comics, 1950.

Figuras 11 e 12 – Crime Suspenstories #3. New York: Entertaiment Comics, 1951.

SHOCK SUSPENSTORY: CRIME COMICS COMO DENÚNCIA

Tal lógica foi comum também às histórias de Shock Suspenstories. Ainda que tenha começado como uma coletânea de todos os gêneros da EC41, logo no segundo volume foi decidido que uma das quatro histórias seria do gênero Shock Suspenstory. Tal gênero seria marcado por histórias de denúncia a situações de racismo42, paranóia anticomunista43, violência policial44, preconceito religioso45, grupos extremistas46, corrupção47, problemas

40 Out of My Mind! in Crime Suspenstories #6, arte de . Agosto/ Setembro de 1951. 41 Shock Suspenstories #1 tem uma crime suspenstory, um two-fisted tale, uma science fiction story e uma horror story. 42 Shock Suspenstories #3, #6,#11, #15, #16. 43 Shock Suspenstories #2, #14, #16. Também ver HOFSTADTER, R. "The Paranoid Style in American Politics". Harper's Magazine, 1964. 44 Shock Suspenstories #3, #4, #16. 45 Shock Suspenstories #5.

familiares48, entre outros. Mesmo as histórias de horror e ficção científica tinham denúncias nas páginas de Shock Suspenstories49, já que nem sempre haveria uma distinção expressa de qual tipo de história se trataria. Um editorial na Shock Suspenstories #450 manifesta o interesse em saber o que os leitores acharam de uma história publicada em Shock Suspenstories #351. Nela, um xerife branco executa um homem negro crendo que ele fosse responsável pela morte de uma jovem branca. A história, ilustrada por Wally Wood52, poderia ter sido ambientada, segundo o narrador em sua primeira intervenção, em qualquer lugar dos Estados Unidos. No topo da primeira página, letras vermelhas em sangue escorrem formando o título sobre os requadros. Lê-se: The Guilty. "O culpado". Três requadros compõe a página. Um alongado na vertical, à esquerda, e dois menores à direita. Nas outras páginas, segue-se a convenção de três grades horizontais (dando à leitura três linhas de requadro em cada páginas). Este modelo de primeira página e a convenção de três grades de leitura nas seguintes eram muito frequentes nas histórias publicadas pela EC. Os contornos eram pretos, não sobrepostos, e algumas vezes inexistentes. O texto de narração aparece na maioria das vezes fora do quadro, os personagens usam balão e há uma quantidade considerável de onomatopéias. A narração acompanha o xerife racista e sua relação com, ao mesmo tempo, uma turba enfurecida com o assassinato da garota e, por outro lado, com instituições legais que deveriam ser respeitadas na investigação de algum crime. Tomado por um senso de justiça ele decide matar o acusado (fazendo a situação parecer uma tentativa de fuga). Ao chegar à cidade, ele descobre que outro homem assumiu o crime. Fazendo dele o assassino de um inocente. A última inserção de narração espalha-se amarela nos limites do derradeiro requadro como uma mancha, assinada pelos editores: nela, uma mensagem inequívoca contra o racismo.

46 Shock Suspenstories #6,#16. 47 Shock Suspenstories #7. 48 Shock Suspenstories #10, #12 49 O título foi publicado de 1952 a 1955 em 18 revistas. 50 Shock Suspenstories #4 51 Shock Suspenstories #3 52 Wallace Wood (1927 - 1981), ilustrador norte-americano. Trabalhou em diversos títulos da EC. GOIDANICH, H.C; KLEINERT, A. Enciclopédia dos Quadrinhos.Porto Alegre: L&PM, 2011.

Figuras 13, 14, 15 –fonte: Shock Suspenstories #3. New York: Entertaiment Comics, 1952.

Figura 16 –Shock Suspenstories #4. New York: Entertaiment Comics, 1952. CONCLUSÃO Shock Suspenstories, Haunt of Fear e Crime Suspenstories foram revistas citadas durante as audiências do Senado norte americano. A edição de Shock Suspenstories debatida por Gaines e Wertham continha uma história de preconceito contra latinos. Wertham acusou a EC de promover o racismo, inclusive com vocabulário chulo53. Tal escrita foi usada em The Guilty!, história também ilustrada por Wood. Gaines argumentou que tal uso tinha um objetivo de denúncia de conduta reprovável de uma parcela dos EUA54.

53 U.S. Congress.Senate. - Juvenile Delinquency (Comic Books) hearings before the United States Senate Committee on the Judiciary, Subcommittee To Investigate Juvenile Delinquency in the U.S., Eighty-Third Congress, second session, on Apr. 21, 22, June 4, 1954 54 U.S. Congress.Senate. - Juvenile Delinquency (Comic Books) hearings before the United States Senate Committee on the Judiciary, Subcommittee To Investigate Juvenile Delinquency in the U.S., Eighty-Third Congress, second session, on Apr. 21, 22, June 4, 1954

Tal oposição tão radical na interpretação de uma mesma história intriga, mas pode ser compreendida como parte de um debate no campo de letramentos multimodais55. Longe de terem sido matéria de uma conceituação rígida e fechada, as Crime Comics foram alvo de intenso debate em diferentes plataformas. Conceituações foram usadas e reinvindicadas em jornais, revistas, rádio, televisão, trabalhos acadêmicos, diferentes Comic Books, entre outros. O Comic Book, ainda que jovem, já tinha à sua disposição um inventário em distintas linguagens no começo dos 50. Sua leitura exigia um leitor ciente das possibilidades desse inventário. Se, aparentemente, qualquer pessoa letrada em inglês com uma visão razoável poderia ser este leitor, uma análise mais cuidadosa revela que o procedimento intelectual pode ter uma maior complexidade. As publicações da EC, como outras revista do período, demonstravam alto grau de refinamento em suas capas e primeiras páginas. Sabia-se que uma revista só seria lida (e comprada) se convencesse o leitor, neste nível, a ao menos dar uma chance à história. No caso da EC, a própria notoriedade da editora seria garantia de conhecimento prévio da natureza do material. Uma relação de cumplicidade entre as expectativas de uma comunidade de leitores e a experiência criativa dos artistas da revistas56. Estes leitores, idealmente, já conheciam certos recursos estéticos da mídia (o requadro, a onomatopéia, as linhas de movimento, os balões, etc.) o suficiente para reconhecer em publicações da EC material de qualidade. Em outras palavras, o Comic Book não é apenas um intermediário para uma leitura mais tradicional e adulta, nem substituto barato do cinema: ele é letramento multimodal que exige capacitações específicas. Estas podem até estar presentes em outros veículos, mas combinam-se de maneira única e específica na revista. A capa, o preço, o título, os balões, os requadros, editoriais, cartas de leitores, anúncios: tudo faz parte da publicação. Espera-se do leitor discernimento para identificar (e se identificar com) tais elementos. Logo, foi interesse (comercial, inclusive) da EC que seus leitores estivessem cada vez mais preparados para lidar com tal pluraridade visual e que suas histórias continuassem relevantes ao longo dos anos para estes mesmos leitores.

55 JACOBS, D. Marvelling at "The Man Called Nova": Comics as Sponsors of Multimodal Literacy. College Composition and Communication, Vol. 59, No. 2, 2007.

O estilo EC de Crime Comics expunha uma visão acerca da perversidade presente em cidadãos aparentemente respeitáveis dos EUA contemporâneos. Os crimes envolviam com frequência tensões matrimoniais/ sexuais (especialmente em Crime Suspenstories). Mas, em certas histórias, com especial destaque às presentes em Shock Suspenstories, ganhavam tom mais claro de denúncia de injustiças. Portanto,as histórias exigiam do leitor consciência do mundo que o cercava (em especial mídias que não fossem Comic Books). O Comic Book, para a EC, seria uma plataforma privilegiada de discussão sobre a sociedade que o cercava. Espera-se, neste artigo, ter-se demonstrado que a análise de como Comic Books se relacionaram aos letramentos disponíveis nos anos derradeiros antes da adoção do Comics Code pode ser frutífera na compreensão de debates relevantes do período. O foco em publicações da EC não pretende generalizar suas posições a todas companhias do período ou fechar o debate em relação a Crime Comics. Tampouco buscou-se uma visão da EC como vanguarda estética ou política do período. A singularidade do fracasso da EC, contudo, é material privilegiado para se pensar a historicidade das complexas relações de Comic Books e outros discursos.

REFERÊNCIAS

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