DOI: 10.4025/actascilangcult.v32i1.5811

A poesia ‘ ééé-é---sousousousou ’ negra

José Pires Laranjeira

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Largo da Porta Férrea, 3004-530, Coimbra, Portugal. E-mail: [email protected]

RESUMO. Os diversos cânones da poesia brasileira não contemplam a poesia negro- brasileira como deveria ser. Sendo o poeta Luiz Gama ainda hoje menosprezado, em comparação com Castro Alves, é necessário, pois, colocá-lo no seu verdadeiro lugar de significação. Porém, esse esforço deve servir também para compreender que Gama, na sua poesia, ainda mostra alguma conformidade com certos preconceitos rácicos próprios do século XIX e que se encontram, por exemplo, em poetas angolanos. Já o poeta Solano Trindade, devido à sua formação ideologicamente comprometida com os pobres e miseráveis da sociedade, trata o negro como um ser social, econômico e cultural de corpo inteiro, concepção aprofundada por Cuti, que, finalmente, deixa de apelidar o mestiço de mulato , segundo a conformidade com o Movimento Negro. Por outro lado, é um poeta da modernidade mais avançada, quer formalmente, quer atingindo o âmago do subconsciente negro, ao versar o seu sofrimento íntimo, de modo inédito. Palavras-chave : poesia negro-brasileira, Luiz Gama, Solano Trindade, Cuti, alma negra, sofrimento.

ABSTRACT. Negro poetry. Brazilian poetry’s several literary canons fail to fully investigate Brazilian Black Poetry as it should be. In spite of the fact that the poet Luiz Gama is currently not in the limelight when compared to Castro Alves, the replacing of his real place of significance is actually worthwhile. This effort should also be needed to understand that Gama in his poetry shows a type of conformity with certain racial bias common in the 19 th century as, for example, in the poetry of Angola. On the other hand, due to his ideologically committed ideology with the poor and destitute in society, the poet Solano Trindade deals with the Negro as a social, economical and cultural person. This concept is partook by Cuti who, at long last, do not call the half-breed as ‘mulato’, following orientations of the Negro Movement. On the other hand, he is formally poet featuring the most advanced modernity as he reaches the heart of the Negro subconscious in his singing of deep personal suffering in the most unusual manner. Key words : brazilian black poetry, Luiz Gama, Solano Trindade, Cuti, black soul, suffering. a minha poesia é som é sã é-sou é soul (CUTI, 2007, p. 20) A literatura negra e o cânone Nos discursos de canonização, que a instituição Qualquer literatura possui um cânone dando relevo literária vai produzindo (isto é, as universidades, a às que são consideradas as principais obras e autores, mídia, as editoras, os prêmios, as academias etc.), todavia variável, segundo os contextos de recepção e não só os escritores negros são minimizados e avaliação. Assim, hoje, o cânone passa por Gregório de depreciados, quando não apagados, como as Matos, Antônio Vieira, Tomás António Gonzaga, temáticas relativas aos negros são apresentadas de Cláudio Manuel da Costa, José de Alencar, Gonçalves modo sumário, esquematicamente, quando não de Dias, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Mário de um jeito preconceituoso. Mas o mais habitual é não Andrade, Carlos Drummond de Andrade, João chegar a existir um número razoável de negros que Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e . Poderíamos associar muitos outros escritores, como se tornam intelectuais, com uma carreira literária Aluísio Azevedo, Oswald de Andrade, José Lins do constante e sustentada, pela menos substancial Rego, Érico Veríssimo, João Cabral de Melo Neto e escolarização desse grupo social e rácico, afastando- , todos inquestionáveis. os do que se pode designar como o mundo das Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 32, n. 1, p. 35-41, 2010 36 Pires Laranjeira letras, ao qual uma larguíssima percentagem não personagens são negros e negras com recorte chega sequer a ter acesso: aos livros, à leitura e à psicológico, densidade cultural e extração escrita criativa. profissional bem delineados, com verosimilhança O leitor e o estudante de literatura brasileira, por realista e uma condição sócio-histórica sem seu turno, se pesquisarem nas histórias e nos ambiguidades: os narradores e sujeitos são entidades manuais mais importantes, qualificados e competentes quanto aos ambientes, perfis das referenciados, raramente encontrarão informações personagens, suas atuações em cena e detalhes orientadoras sobre a condição de negros e mestiços comportamentais. Percebe-se que não se trata de de alguns escritores – como Cruz e Sousa, Machado brancos escrevendo sobre negros, mas de de Assis, Castro Alves –, que, associadas aos seus verdadeiros testemunhos do vivido transformado em discursos literários, ajudem a compreender certas estético ou, então, de autênticos voos de imaginação frases, imagens, subentendidos, tipos de discurso, a partir de memórias e estados de espírito confrontados com as realidades duras da vida. retóricas, procedimentos, comportamentos de Em geral, as vivências dos negros, seus personagens, posicionamentos pessoais, problemas, sofrimento, alegrias, lutas, emoções, problemáticas históricas e decorrências sociais. Não conquistas, durante os séculos XIX e XX, não estão encontrarão, nos livros de , Antonio expressos na literatura brasileira de modo confiável e Candido, José Aderaldo Castelo, Massaud Moisés e honesto senão pelos seus protagonistas. A voz dos outros senão parcas ou nulas referências a certos negros emergiu com o samba, o candomblé, o escritores negros, que nem sequer aparecem lundum, o carnaval, os causos e outras tradições condignamente nos circuitos literários de orais e populares, mas é com os escritores que ganha distribuição e legitimação de fortunas críticas e foros de combate ao estereótipo e ao preconceito fiduciárias: cadê Carolina de Jesus, Luiz Gama, veiculados pelos escritores brancos, os quais podiam Solano Trindade, Oliveira Silveira, Cuti, Éle Semog estar a ser sinceros na vontade de denunciar, mas ou Conceição Evaristo? Um ou outro livro saído não podiam ter a autenticidade do sofrimento, do numa editora secundária, um livro analisado num estigma, da pobreza extrema e da repressão curso universitário ou num vestibular regional, uma transformada numa espécie de genocídio silencioso e edição nacional a cada 20 anos, alguma fama em sem rosto, teorizado por Abdias do Nascimento, no letras de canções (como acontece com ) país mítico da democracia racial. ou simplesmente a obscuridade, eis o destino, até à data, dos escritores negros brasileiros. Luiz Gama: mais do que um poeta abolicionista Pode-se sempre afiançar que o jovem paulistano Ferréz tem colaboração regular em revistas como As Primeiras trovas burlescas , de Luiz Gama (1830, Caros Amigos , livros publicados em editoras com boa Salvador-1882, São Paulo), editadas em 1859, em distribuição e alguma projeção mediática, também São Paulo, constituem, no século XIX, um fato de por conta de ser co-autor de uns quadrinhos. Mas primeira grandeza para a literatura negro-brasileira e, essa é uma exceção atual para um intelectual jovem, com a redefinição dos valores literários, também surgido da periferia paulistana e que conquistou para a literatura brasileira, na sua generalidade. algum espaço público graças também a uma Nunca é demais relembrar que a literatura negro- conjuntura favorável e ao fato de os negros brasileira é um subsistema literário próprio dos começarem a emergir em todos os contextos negros brasileiros (ou no qual certas faixas da brasileiros, como a novela, o cinema, o Supremo comunidade negra se reconhecem), que é parte Tribunal de Justiça ou a universidade e já não integrante, por seu turno, do sistema da literatura somente na gafieira, na fábrica, na favela, no futebol, brasileira, mas a que não corresponde uma recepção na cozinha ou no candomblé. adequada pela sociedade, que o recalca e o Os escritores negros brasileiros criam discursos subestima. literários que expressam mundos possíveis A vida de Luiz Gama foi uma autêntica novela relacionados com a história do tráfico negreiro, da dramática. Ex-escravo analfabeto, vendido pelo escravatura, do trabalho escravo, das fugas, das próprio pai, e, depois, jornalista liberal, iniciado na revoltas, dos escambos, dos quilombos, das maçonaria, não foi cultuado, durante o século XX, periferias, da favela, do racismo, da prisão, da como o vate anti-escravocrata de Oitocentos, o poeta ascensão social, do trabalho assalariado, do tráfico de dos escravos. Esse papel foi reservado a Castro Alves. droga, da prostituição, da escola, da universidade, das E, no entanto, a poesia de Luiz Gama é muito mais profissões liberais, da fazenda, da quitanda, do crítica da sociedade e da política do que a de Castro samba, do futebol, das artes, das letras. As Alves. Herdeiro de Gregório de Matos, não poupa Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 32, n. 1, p. p. 35-41, 2010 Poesia negra 37 ninguém, de todos caçoando com mordacidade. O Esquecem os negrinhos seus patrícios; poema Quem sou eu? (mais conhecido como A Se mulatos de cor esbranquiçada, Já se julgam de origem refinada, bodarrada ) ganhou fama justamente pela crítica E, curvos à mania que os domina, fundibulária, em que lança farpas a plebeus e nobres, Desprezam a vovó que é preta-mina: ricas damas e marquesas, deputados e senadores, frades, Não te espantes, ó Leitor, da novidade, bispos e cardeais, brigadeiros, coronéis e generais, ricos Pois que tudo no Brasil é raridade! e pobres, brancos e negros, todos comendo pela O riso de Luiz Gama é catártico e corretivo, medida grande, porque, segundo ele, tudo é bodarrada! , virando-se, autocriticamente, para a própria atividade neologismo curioso que se tornou bastante celebrado, de poetar, como o seguinte título indica claramente: Lá por se referir às misérias da índole humana, vai verso!. Como se o poeta lançasse uns versos à devolvendo à sociedade o estigma de os negros serem esquerda e à direita, por tudo e por nada. Neste poema, vistos como bodes – a sociedade estaria em permanente ele assume-se como o Orfeu de carapinha, epíteto que falha, manchada, borrada , cometendo burradas , burrices . deu título, recentemente, a uma tese sobre ele, que O poeta desanca a sociedade, no seu conjunto, nas suas pode começar a ser considerado o Orfeu dos negros: pantominices, falsidades e hipocrisias, para poder assim resgatar os negros bons do atoleiro moral em que se Ó Musa de Guiné, cor de azeviche, caiu. O humor acerado, a crítica corrosiva, mordaz e Estátua de granito denegrido, Ante quem o Leão se põe rendido, implacável, a verve assassina servem para tirar desforço Despido do furor de atroz braveza; da sociedade, que não lhe aplaca a sede de justiça e que Empresta-me o cabaço d’urucungo , não passa sequer pela autocomplacência, uma vez que o Ensina-me a brandir tua marimba, próprio poeta se autoflagela: Inspira-me a ciência da candimba , Às vias me conduz d’alta grandeza. Nem eu próprio à festança escaparei; [...] Com foros de Africano fidalgote, Quero que o mundo me encarando veja, Montado num Barão com ar de zote – Um retumbante Orfeu de carapinha, Ao rufo do tambor, e dos zabumbas, Que a Lira desprezando, por mesquinha, Ao som de mil aplausos retumbantes, Ao som decanta de Marimba augusta; Entre os netos da Ginga, meus parentes, E, qual outro Arion entre os Delfins, Pulando de prazer e de contentes – Os ávidos piratas embaindo – Nas danças entrarei d’altas caiumbas As ferrenhas palhetas vai brandindo, Enquanto jornalista e homem público, Luiz Com estilo que preza a Líbia adusta. Com sabença profusa irei cantando Gama fez campanha pela libertação de escravos e Altos feitos da gente luminosa, conseguiu livrar muitos deles do anel de ferro, Que a trapaça movendo portentosa pagando inclusive algumas alforrias. Esse À mente assombra, e pasma à natureza! engajamento na luta com resultados práticos não o Espertos eleitores de encomenda, impede de verrinar comportamentos duvidosos ou Deputados, Ministros, Senadores, antissociais dos próprios negros, nesse particular Galfarros(,) Diplomatas – chuchadores, comparando-se a Gregório de Matos, se bem que De quem reza a cartilha de esperteza. este tenha xingado africanos e afro-descendentes Caducas Tartarugas – desfrutáveis, com verdadeiro preconceito de branco. Luiz Gama Velharrões tabaquentos – sem juízo, não deixa de alfinetar negros e mestiços, é verdade, Irrisórios fidalgos – de improviso, mas a sua crítica nunca ultrapassa a correcção ética e Finórios traficantes – patriotas; social, visto que pretende sensibilizá-los, sendo, por Espertos maganões, de mão ligeira, isso, condescendente com eles. Veja-se, por Emproados juízes de trapaça, E outros que de honrados têm fumaça, exemplo, o poema Sortimento de gorras para a gente do Mas que são refinados agiotas. grande Tom . Satirizando as práticas de adulteração no Nem eu próprio à festança escaparei; comércio, as sacanagens dos deputados estaduais, Com foros de Africano fidalgote, federais, senadores, ministros, bacharéis, meirinhos Montado num Barão com ar de zote – e magistrados, o poeta sente-se autorizado, então, a Ao rufo do tambor, e dos zabumbas, criticar também, e sobretudo, aqueles que refere Ao som de mil aplausos retumbantes, como mulatos, porque procuravam ocultar as suas Entre os netos da Ginga, meus parentes, raízes, a sua ascendência negra: Pulando de prazer e de contentes – Nas danças entrarei d’altas caiumbas . Se os nobres d’esta terra, empanturrados, Em Guiné têm parentes enterrados; Por outro lado, Luiz Gama não escapa às E, cedendo à prosápia, ou duros vícios, limitações estéticas e ideológicas do seu tempo, nisto Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 32, n. 1, p. p. 35-41, 2010 38 Pires Laranjeira se podendo comparar aos poetas angolanos do século originalidade. Pelo contrário, as bodarradas de Luiz XIX, que, embora construindo uma angolanidade Gama constituem a mais acerba crítica à sociedade oitocentista, anunciadora da angolanidade do seu tempo e uma tomada de consciência do que revolucionária e independentista de meados do significa ser negro na sociedade escravocrata século XX, não se furtam ao complexo de sedução brasileira do século XIX. Porém, a sua poesia, ao pela mulher branca. Escreve Luiz Gama (2000, subsumir uma retórica grandiloquente, mesmo p. 124), em A cativa: “Como era linda, meu usada de modo irônico, não escapa à pressão da Deus!/Não tinha da neve a cor,/Mas no moreno linguagem e da visão ainda salpicada de estereótipos semblante/Brilhavam raios de amor”. Outra coisa e de algum preconceito. Daí, a sua visão impiedosa e não é senão a comparação que o angolano Cordeiro não compreensiva da mestiçagem, daqueles que, da Matta, nos anos 80 do século XIX, faz do corpo apanhados na teia da ascensão social e integrando o da negra com o corpo sobreavaliado da branca: status da supremacia branca, adotam hábitos e atitudes que renegam a herança africana. Não existe, Negra! Negra! Como a noite d’uma horrível tempestade, na sua poesia, a compaixão pelos mestiços na mas, linda, mimosa e bella, engrenagem do mito da superioridade branca e como a mais gentil beldade! ocidental. Embora Luiz Gama fosse filho de uma [...] líder negra que esteve na guerra dos Malês – Luiza se te roubou este clima Mahin – e se dedicasse a libertar negros, por via do homem a côr primeva; jurídica, em São Paulo, das garras dos seus branca que ao mundo viesses, possuidores brancos, não podia ainda assumir uma serias das filhas d’Eva estratégia negritudinista de emancipação poética. em belleza, ó negra, a prima! [...] Luiz Gama foi o primeiro poeta a cantar a beleza Lembrando Solano Trindade, o poeta da Negritude proletária, no centenário do seu nascimento da mulher negra e as paixões que desencadeia, com naturalidade, inovando com esse gesto em relação ao De Solano Trindade (1908, -1973, Rio de que, então, se escrevia sobre o negro em teatro e Janeiro) acaba de ser publicado O Poeta do Povo . romance. A sua atividade não pode ser vista, todavia, Agitador cultural, ligado ao teatro e ao folclore, como precursora da Negritude, no que estamos de pintor, filiado no Partido Comunista, assume, na sua acordo com Lígia F. Ferreira, na introdução à sua poesia, o ser negro, como nos poemas Sou Negro e obra publicada em 2000, já que essa estética somente Eu sou poeta Negro , em que o sujeito é consciente se afirmaria em França, na década de 1930, quanto à origem dos avós de Luanda, escravos curiosamente na diáspora, por poetas negros do plantando cana-de-açúcar no engenho do senhor. A Senegal, Martinica e Guiana Francesa – Senghor, alma do sujeito negro recebeu o batismo do ritmo Césaire e Damas. frenético da percussão proveniente da África, pelos A poesia de Luiz Gama punha o foco crítico na atabaques, agogôs, gonguês e batuques. Na sociedade em geral, predominando os alvos brancos, caracterização do avô negro são determinantes os tanto local como nacionalmente, usando imagens, traços de rebeldia e rebelião (ele foi valente na símbolos, mitos e uma linguagem erudita, de capoeira e no uso da faca), o contrário do estereótipo tradição ocidental, antiga, em que Homero e do Pai João humilde e submisso. A própria avó do Camões são convocados, irônica ou seriamente, em sujeito integrou a Guerra dos Malês, ou seja, dos diálogo transtextual. Já a poesia de Solano Trindade, rebeldes negros e muçulmanos da , em 1835, em pleno período da emergência do Pan- contra a escravatura. Outros poemas contribuem africanismo, da Negritude e do anticolonialismo para o traçado do percurso histórico do negro e da africano, funda os seus apelos no mundo negro, na negra brasileiros nos canaviais do Nordeste ou nos sua história, nos seus sonhos e realidades, algodoais do Sul, cantando ou dando de mamar aos escorando-se em sinais e num discurso que os filhos das sinhás, sendo agredidos ou estuprados destinatários podem descodificar e assimilar como pelos possidentes da terra e do capital. O sujeito repertório próprio, como contributo ou reforço da poético pode, pois, afirmar: Eu sou o poeta negro , identidade social, étnica, rácica. De fato, a poética aquele de moral limpa e íntegra, que não fuma satírica de Luiz Gama é nitidamente subsidiária, cigarros/Nem diamba , possuindo uma nobreza e além do brasileiro Gregório de Matos, dos honradez que serve de exemplo aos leitores, aos portugueses Bocage, Nicolau Tolentino e Faustino negros do Brasil. Xavier de Novais, sobretudo deste último, a quem A poesia de Solano Trindade tem um travo pede emprestadas inúmeras epígrafes, sem que isso, dramático de compaixão pelo sofrimento social dos porém, signifique perda de autonomia e de negros e de exaltação da raça e dos costumes que eles Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 32, n. 1, p. p. 35-41, 2010 Poesia negra 39 herdaram dos antepassados africanos, preservaram e de um longo centão adulador de uma América sem adaptaram às vivências quotidianas do trabalho, do contradições e tensões, transnacional, transclassista e amor e da luta política, enquanto cidadãos e transracial, mas antes de um poema combativo, de construtores do país moderno. solidariedade com os negros, proletários e miseráveis A primeira parte do livro (Primeiro Caderno) de todas as Américas. Não foi por acaso que o poeta intitula-se Poemas sobre o negro e nela são cultuados, socialista Solano Trindade referiu, no poema 5ª sinfonia entre tantos outros índices e ícones de Negritude, de Beethoven , o escritor comunista francês Henri Zumbi e Palmares, Yemanjá, Olorum, Oxun, a Barbusse, herói da Primeira Guerra Mundial, que se macumba, a mandinga, Salomão, Harlem, Havana, tornou pacifista, ao mesmo tempo que exorcizava as Alabama, o Nilo, a Bahia, o Congo, o cafuné, o barreiras levantadas ao usufruto da vida: atabaque, o frevo, o maracatu, o lundum, a mulher Detesto limitações negra, mas também a mulata mundo ou mulata eu gosto da barbaria dos tímbalos universal , símbolo de unidade racial (numa imprevista [...] cedência à ideologia dominante do país mestiçado e Barbusse está cheio de amor pela vida dito cordial ). Esses poemas, no seu conjunto, como se e Beethoven escuta a própria Sinfonia verifica, possuem as características genéricas do Pan- A poesia de Solano Trindade está sintonizada africanismo e da Negritude. com as linhas estéticas do seu tempo: coabitam nela a A poesia de Solano Trindade assume melancolia do tempo e a evocação de infância (do exclusivamente o culto da mulher negra e mestiça Recife) à maneira de Manuel Bandeira, com um certo (ainda designada de mulata ), seja ela a amada ou a verde-amarelismo modernista, paulistano e nordestino, prostituta, que, por ser negra, integra de pleno direito o o gosto pelo folclore e por alguns costumes arcaizantes, panteão das musas. Solano Trindade conjuga a por vezes até parecendo que surpreendemos alguns Negritude da raça com o Marxismo das classes sociais tiques à moda de Ribeiro Couto, com pequenos proletárias. E, por isso, nega que o 13 de maio possa ser quadros retirados ao quotidiano dos negros, como se cultuado como ritual místico, defendendo um 13 de fosse o Raul Bopp do Urucungo, ou a construção da maio da juventude negra (título de um poema) ou Treze de oralidade, com populismos e jactâncias que Jorge de maio dos poetas conscientes . Nos Poemas de cunho político- Lima não desdenharia, além de Oswald de Andrade e social (título do Segundo Caderno do livro), o negro é Portinari, como que assistindo a esse mundo possível caracterizado na sua implantação num concreto de negros pobres e escanzelados e trabalhadores de pés período da história e num preciso sistema econômico, robustos e descalços. Também se descortina, em meio em que as relações sociais aparecem como relações de à pobreza e opressão, uma euforia, uma joie de vivre dominação, de detenção do poder político e da posse que deverá alguma coisa à Baiana de O cortiço, de dos meios e instrumentos de produção material (terras, Aluísio de Azevedo. Comprova-se que uma poética matérias-primas, máquinas, administração e particular, neste caso do chamado Poeta do Povo, equipamentos) pela classe aristocrática, burguesa e socialista e negro, é mais complexa e devedora de uma capitalista, que arregimenta, domina e oprime as classes como que poética geral (não no sentido de Todorov, despossuídas de bens materiais e que alugam a força de mas da atual poética pós-colonial e pós-moderna) do trabalho do seu corpo para poderem sobreviver no dia- que se poderia suspeitar face a leituras ingênuas ou tão- a-dia. Ora os negros são, na sua poesia, a única fonte do só exaltantes. trabalho que enriquece os brancos, seja o trabalho escravo, seja o trabalho forçado, compelido ou Cuti: a poesia debaixo da pele negra, inscrita na pele assalariado: “É o canto do trabalhador,/Que sai cansado branca do papel do campo,/Que sai cansado da fábrica” (em O canto do Cuti (1951, Ourinhos), no livro Negroesia trabalhador ”); “Nas zonas miseráveis/Eu fico a (antologia poética) (CUTI, 2007), apresenta um título perguntar/Quais as esperanças/Do trabalhador?” (em que, por si só, faz adivinhar do que se trata, que tudo Amanhã será melhor ). explica, que é a poesia do negro e que o estilo é o O poema Canto da América parece contradizer o homem negro, que não descarta a invenção do ufanismo pan-americano de um poema similar de Jorge de Lima, porque nele são explícitas as neologismo produzido por aglutinação de dois referências aos “preconceitos raciais”, à “massa vocábulos (negro + poesia) e adota o sintetismo de nazista”, aos “algozes fascistas”, à “ilusão ariana” e às usar poucas palavras para amplas significações. (Em “napoleônicas conquistas”, a todas o poeta tudo, faz lembrar o poeta angolano João-Maria contrapondo “o canto da liberdade/dos povos,/E do Vilanova, que, no entanto, também permanece bastante direito do trabalhador...” (TRINDADE, 2008, desconhecido). O verso, em Cuti, ganha densidade p. 35). Não se trata, pois, como em Jorge de Lima, própria e não necessita tanto do apoio de outros versos, Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 32, n. 1, p. p. 35-41, 2010 40 Pires Laranjeira abrindo-se a significações autônomas e diversas do como metáforas de um outro corpo poético negro, conjunto do poema, de um modo que não era possível de uma nova semântica, em que a questão negra ainda é o centro das atenções, o busílis do poema, em Luiz Gama ou Solano Trindade. Funciona, de fato, mas a linguagem dá passagem para outro lado da a autonomia do artefato verbal, mas que Cuti controla poesia – o ludismo, o gozo da pirotecnia verbal. Ele para poder ressignificar o mundo dos negros, como serve-se, criativa e subversivamente, dos semas e acontecia com os seus antecessores. símbolos da Negritude, reescrevendo-os em novas Assim, o livro divide-se em quatro partes, texturas, criando novas nervuras de um real outro, significativamente tituladas com uma única palavra ainda internamente colonizado, mas já pós-colonial e talvez mesmo pós-moderno (uma outra leitura teria remetendo para a temática: Cochicho, Aluvião, de ser feita), em que o ser negro sofre como que uma Chamego e Axé. Lidas assim, essas palavras parecem divisão esquizofrênica de ser dois , um ser socialmente abrir para uma poética intimista e afetiva – e é estigmatizado convivendo com a explosão do orgulho verdade, mas esse modus , tão carinhosamente irrepresado . controlado, cruza-se com a tripla tradição de honrar No poema Roda de poemas , conotando a roda de a lira dos negros, de afiar a língua da ironia e de samba, lê-se logo nos primeiros versos a dupla afinar o discurso no prumo pós-concretista. No inscrição da poética sobre o poema e do poeta poema Tradição , justamente, Cuti homenageia cutucando convenções sociais, transgredindo: Machado de Assis, Cruz e Sousa, Lima Barreto e “macumbamente poetas/quebramos a cerca”. E no Solano Trindade, mas, em simultâneo, abre o verso poema Ela : às novas tendências musicais e poéticas da a minha poesia contemporaneidade urbana da juventude negra, é soul aderindo ao rap ou, pelo menos, dele usando a tem ódio imagem e o significante que atualiza o recurso e amor e vem dizer revendo negro. Existe, de fato, esse diálogo entre os poetas e, que o ressentimento no geral, entre os escritores negros, que é uma é sinal de cura verdadeira declaração de amor intertextual, como contra todo o tempo que, ao retomarem ditos de uns e outros, cerrando da cara falsa fileiras em torno do objetivo maior de construir uma da raça pura a minha poesia rede literária própria, com suas cifras como que é som clandestinas (só aparentemente o são), mas, afinal, é sã abrindo-se à leitura atenta e atenciosa do leitor que é-sou se esforce por compreender e, portanto, receba e é soul aprecie melhor o significado do que lê. Ora o poeta é sam ba Cuti, da geração de Quilombhoje e dos Cadernos tendo no couro branco do papel. Negros , os quais ajudou a fundar e manter, aquele grupo desde os idos de 1970, entretanto Escreve o poeta que “a minha poesia [...] é-sou”: ele é a própria poesia, ele “é” quando escreve, na desaparecido, e estes publicados até a atualidade, inteira liberdade da palavra, nela emergindo a retoma essa dica do Orfeu de Carapinha e vai densidade desse sujeito negro em (re)construção. O integrá-la na sua poética (cf. trecho do poema papel é como um couro branco , sobre o qual surge a Inserido , que só é legível na sua especificidade palavra do sujeito negro, o que significa que este se tabular, perdendo qualidades se apenas lido arquiteta dialeticamente no confronto com o sujeito mentalmente): branco dado socialmente no quotidiano e por meio na minha frente da escrita. quem sou eu? Cuti é o único dos três a escrever sobre o tema o ‘orfeu da carapinha’? dos danos psíquicos causados pelo obsidiante eu ou tu? autocontrole a que os negros se submetem, numa Cuti, ao contrário dos seus homenageados, não pressão sem nome para poderem estar integrados na escracha o geral e o particular submetendo-os à sociedade e cumprirem escrupulosamente todas as prosódia de uma enunciação sistemática, não refere regras, mais do que quaisquer outros cidadãos. Veja- enumerativamente os tópicos e os emblemas se o poema Ploft! : isolados, um por um, da africanidade e da afro- brasileiridade, não os cita e ostenta como valores- ele se dizia um negro sem rancor. quase-em-si. Adapta-os como signos novos, refeitos, um dia estourou Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 32, n. 1, p. p. 35-41, 2010 Poesia negra 41

de tanta punhalada no escuro Cuti é também um poeta do amor carnal, do que até então recebera desejo sexual, erótico, sensual, não no sentido da pacientemente calado. teve desejo de sangue volúpia que a mulher negra ou mestiça provoca num e foi parar no hospício sujeito (a mulata lúbrica de outros tempos e de tanto ser censurado contextos), como visão do voyeur branco, vista como e tanto se censurar. objeto exterior às sensações do indivíduo, mas de A sua poesia, comparada com a de Luiz Gama e participação dupla, neste caso com predomínio do Solano Trindade, é a única que, mergulhando na sentir fálico do sujeito. Esse amor carnal constitui tradição da Negritude, a transcende com a capacidade outra vertente que a sua poesia inaugura, cruzando- da ironia elegante e da lucidez serena, que é um modo se com o saber experimental que se manifesta de um de crítica e de autocrítica do negro, aproximando-se modo diferenciado. Solano Trindade propiciava algo perigosamente do desencanto melancólico (tantas criações vérbico-visuais que sublinhavam a vezes criticado aos nefelibatas burgueses brancos), não despretensão do discurso popular e da oralidade. fosse o conjunto mostrar uma crença inabalável na Cuti persegue o trabalho da máxima tensão verbal e melhoria do destino coletivo face à tragédia histórica semântica, das palavras acopladas (aglutinadas), dos que se abateu sobre os povos negros. Leiam-se, a este trocadilhos, das sonoridades aproximando-se de uma propósito de crítica construtiva, mas impiedosa, e de poética barroca (confira-se o poema Pa(z)xorô ): crença no poder da tradição cultural negra, chuva-sêmen e afã de fecundar novas manhãs respectivamente, os poemas Medo medular e Cultura ao fluxo ijexá de oxalufã negra. Vale a pena transcrever o primeiro, na sua fé obstinada que nos guia totalidade, tal o sintetismo, por certo inspirado na sol de oxaguiã brevidade dos hai-kus de origem japonesa, pela nas lutas do dia-a-dia incandescente ironia que atinge os que renegam, pilão consciente ou inconscientemente, a sua condição de inhame de juventude alegria negros para poderem ser aceitos na sociedade do preconceito rácico: Essa tensão barroca nota-se no paroxismo de todo mundo tem medo uma escrita que já não insiste no caráter audível, mas da vingança do preto sublinha o seu aspecto de legibilidade, afastando-se até o preto. em definitivo da simulação de oralidade erudita ou E, quanto ao segundo poema, Cultura negra , popular de seus predecessores. É uma poesia que sublinhe-se, mais do que a cultura , sobretudo o uso deflui do próprio corpo-mente do sujeito, inscrição dela pelos que aproveitam sua onda e dela psicanalítica não-negligenciável, não mais como promovem inclusive os objetos pardos com discursos narração de um corpo social fora do corpo, mas folclóricos , isto é, culturalistas, piedosos, social e como topografia psíquica do mundo negro, que não politicamente corretos, talvez sim, mas separa o ser-se fluxo de energia sensitiva do ser inconsequentes, funcionando somente no interior social condicionante. da engrenagem acadêmica, retirada que foi a carga subversiva, questionadora, potencialmente Referências revolucionária das ações sociais: CUTI. Negroesia . : Mazza, 2007. explodem GAMA, L. Primeiras trovas burlescas . São Paulo: coices Martins Fontes, 2000. o boi e o bode TRINDADE, S. O poeta do povo . São Paulo: Ediouro, entre folclóricas nuvens e teses 2008. de negrófobas carícias alvos a-tingidos desesperam em busca de tambores Received on November 18, 2008. ritos Accepted on March 16, 2009. puros mitos águas paradas License information: This is an open-access article distributed under the terms of the de poemas pardos Creative Commons Attribution License, which permits unrestricted use, distribution, que lhes salvem da chuva de negrizo and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.

Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 32, n. 1, p. p. 35-41, 2010