água dafonte 11 - Novembro de 2012 R$ 20,00 11 o

Água da Fonte Maio de 2011 1 Revista da Academia Passo-Fundense de Letras - Ano 9 - n Academia Passo-Fundense de Letras - Revista da Osvandré Lech Editorial Presidente da APL

Av. Brasil Centro, 792 - Sede Própria CEP 99010-001 Passo Fundo, RS Pessoas fazem uma sociedade.

Presidente: Não o contrário! Osvandré Lech Imortais da ABL - A última edição de “Água da Fonte” foi enviada para Vice-presidente: todos os membros da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Re- Gilberto R. Cunha cebemos um significativo número de agradecimentos dos “imortais”, motivo de satisfação para o sodalício Passo-Fundense. Na lista constam os nomes de: Secretário geral: Ana Maria Machado (presidente), Geraldo Holanda Cavalcanti (secretário- Paulo Monteiro geral), Antônio Carlos Cechin, Lêdo Ivo, José Sarney, Afonso Arinos de Mello Franco, Alberto Venâncio Filho, Arnaldo Niskier, e Marco Antônio de Oliveira 1ª Secretária: Maciel. Todos pesos-pesados da cultura e do pensamento contemporâneo bra- Sueli Gehlen Frosi sileiro. Pela receptividade e fidalgia dos agradecimentos, os confrades da ABL 2ª Secretária: passarão a receber todos os volumes da “Água”, a nossa publicação oficial. Marilise Brockstedt Lech Getulio Zauza - Em carta escrita de próprio punho, o confrade Zauza solicitou seu afastamento e entrega da sua cadeira, mas não o desligamento 1º Tesoureiro: definitivo da APLetras. Justificou que contribuiu ao longo de décadas (a sua Odilon Garcez Ayres presença foi constante em reuniões oficiais e de trabalho!). Aos 82 anos, 2º Tesoureiro: ele gostaria de “se dar o direito” de frequentar APLetras, apenas ocasional- Carlos Antonio Madalosso mente. Em outras palavras, o gesto de generosidade, modéstia, renúncia, e o entendimento de que a APLetras necessita de “membros presentes”, foi uma Membros: lição digna da grandiosidade do Zauza, que deixa a sua cadeira, mas não a Agostinho Both pelerine que continuará a usar nas atividades oficiais. Com a atitude, Zauza Alberto Antonio Rebonatto desencadeia uma ampla reforma nos Estatutos, que determinará a criação de Alori Batista Castilhos uma nova categoria de membros. Obrigado, Getulio Zauza ! Antonio Augusto Meirelles Duarte Carlos Alceu Machado Agostinho Both, José Ernani de Almeida, Marisa Potiens Zílio, Júlio Carlos Roberto da S. Hecktheuer César Perez – Saudamos os novos membros do sodalício, que serão recebidos Craci Terezinha Ortiz Dinarte em Sessão Solene de Posse e Investidura no dia 23 de Novembro de 2012. Daniel Viuniski Agostinho tem extensa lista de publicações, é professor jubilado, e introduziu Dilse Piccin Corteze o conceito de “terceira idade ativa”, em nossa cidade. Foi acadêmico nos anos Diógenes Luiz Basegio 1980, solicitou afastamento pelo acúmulo de trabalho e agora retorna à antiga Elisabeth Souza Ferreira casa. José Ernani é conhecido historiador, professor, homem de comunicação Elmar Luiz Floss e o novo Secretário da Cultura de PF, para o quadriênio 2013-2017. Marisa Francisco Mello Garcia é atuante e destacada psicopedagoga e educadora. Júlio Perez, um poeta uni- Getulio Vargas Zauza Helena Rotta de Camargo versal. A Academia dá as boas-vindas a todos, desejando-lhes uma jornada Hugo Roberto Kurtz Lisboa promissora, em prol da cultura da nossa terra, como já vêm fazendo ao longo Irineu Gehlen das suas vidas! Jabs Paim Bandeira Pessoas fazem uma sociedade. Não o contrário! Jorge Alberto Salton

José Ernani de Almeida ISSN 1980-2986 Júlio César Perez Luiz Juarez Nogueira de Azevedo Luís Marcelo Algarve Água da Fonte, Passo Fundo, v. 9, n. 11, nov. 2012. Marco Antonio Damian Marisa Potiens Zilio Revista da Academia Passo-Fundense de Letras Ano 9 - nº 11 - Novembro de 2012 Mauro Gaglietti Gilberto R. Cunha e Paulo Domingos da Silva Monteiro Pedro Ari Veríssimo da Fonseca Editores: Getulio Vargas Zauza, Helena Rotta de Ricardo José Stolfo Conselho editorial: Camargo, Pedro Ari Veríssimo da Fonseca, Santina Rodrigues Dal Rogério Sikora Paz, Santo Claudino Verzeleti e Welci Nascimento. Romeu Carlos Alziro Gehlen Helena Rotta de Camargo Santina Rodrigues Dal Paz Revisão: Tamara Costamilan Liska Santo Claudino Verzeleti Capa: Everaldo Siqueira Selma Costamilan Arte-final e diagramação: Tiragem: 1.000 exemplares Welci Nascimento A Academia Passo-Fundense de Letras não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos em textos assinados.

Água da Fonte Novembro de 2012 1 Informe acadêmico

(fotos: arquivo apl) 74 anos da APL

No dia 17 de abril, a Academia Passo-Fun- dense de Letras reuniu-se, festivamente, para comemorar os seus 74 anos de criação, o Dia Municipal do Escritor, e o lançamento de mais um número da revista Água da Fonte. Além disso, também homenageou o Projeto Passo Fundo, com a entrega do “Mérito Cultural Sante Uberto Barbieri/2012”. Ocorreu ainda o reingresso do acadêmico Luiz Marcelo Algar- ve, e uma confraternização com a Academia Soledadense de Letras. Foi comemorado o Dia Internacional do Livro e dos Direitos Autorais, e homenageado o 60º aniversário do CTG Lalau Miranda. Gilberto Cunha, Paulo Monteiro, Ernesto Zanette e Osvandré Lech

Lançamento da Feira Semana da Pátria do Livro

A 26ª Feira do Livro de Passo Fundo foi oficialmente lançada, no salão da Academia Passo-Fundense de Letras, no dia 6 de outubro de 2012, com a presen- ça de livreiros, escritores, autoridades e público em geral. Ao final, todos foram recepcionados com um coquetel.

Suspiros Poéticos

A Liga de Defesa Nacional decidiu homenagear a Academia Passo-Fundense de Letras, durante a Semana da Pátria de 2012. A entidade lierária foi um dos temas do desfile, recebendo significativas homenagens da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Tochetto, da Escola Municipal Etelvina da Rocha Duro e da Escola A acadêmica Elisabeth Souza Estadual de Ensino Médio Mário Quintana. Ferreira, ex-presidente da Acade- Os acadêmicos foram para a Avenida 7 de Setembro, ostentando suas pelerines e mia Passo-Fundense de Letras, medalhas, desfilando sob aplausos e retribuindo a homenagem da multidão presente. lançou o livro de poemas “Suspiros Poéticos”, no dia 23 de outubro. O salão nobre do sodalício recebeu acadêmicos e amigos da autora, Conselho Municipal de Cultura que autografou sua nova obra para dezenas de leitores. Novo e concor- A Academia está representada no Conselho Municipal de Cultura, pelos rido lançamento aconteceu também acadêmicos Paulo Monteiro e Sueli Geheln Frosi. Mas não está somente no dia 4 de novembro, às 18h, na representada. Ela também abriu suas portas para que o Conselho ali realize 26ª Feira do Livro de Passo Fundo. suas reuniões e outras atividades do colegiado.

2 Água da Fonte Novembro de 2012 Patrimônio Histórico

Para comemorar a instalação da Câmara Municipal de Vereadores e a Semana do Município, a Academia Passo- Fundense de Letras, com o apoio da Universidade de Passo Fundo, promoveu, no dia 7 de agosto, o “Fórum de Proteção do Patrimônio Histórico de Passo Fundo”. O evento acon- teceu no auditório do sodalício, tendo como painelistas as arquitetas Ana Paula Wickert e Sibele Fiori, a publicitária Miriê Tedesco e o 1º Promotor de Justiça da Promotoria da Justiça Especializada de Passo Fundo, Paulo Cirne. O evento contou com a participação de acadêmicos, estudantes universitários e interessados na preservação dos patrimônios Arquiteta Ana Paula Wickert e promotor de justiça histórico, arquitetônico e cultural do município. Paulo Cirne (E)

Visita ao Túnel da Literatura Academia na Feira do Livro

Os membros da APL também estiveram, num sábado glacial, vi- A participação da Academia Passo-Fundense de sitando o Túnel da Literatura, onde são publicados textos literários Letras, na 26ª Feira do Livro de Passo Fundo, foi de autores passo-fundenses. marcante. Dia 6/11/2012 – No primeiro dia da Feira do Livro, dois acadêmicos lançaram suas obras. Elmar Luiz Floss autografou “Aveia: a história de uma paixão, trabalho e conquista”; e “Agronegócio e desenvolvimento - ‘Ponto de vista’. E Elisabeth Souza Ferreira, o livro de poemas “Suspiros poéticos”. Dia 7/11/2012 – Mauro Gaglietti autografou quatro obras organizadas por ele: “Diálogo e entendimento – Direito e multiculturalismo & Cidadania e novas for- mas de solução de conflitos”; “Direito contemporâneo em pauta”; “Direito, conflito e solução”; e “Direito e multiculturalismo no espaço público brasileiro”. Dia 8/11/2012 – O historiador Ney Eduardo Possap d’Ávila, que pertenceu à direção do sodalício, auto- grafou “Degola e degoladores no Rio Grande do Sul”, sucesso na Feira do Livro de Porto Alegre. Dia 9/11/2012 – A acadêmica Marisa Potiens Zilio autografou o livro “Pais competentes de filhos doen- tes”, por ela organizado e que contou com a coautoria da acadêmica Marilise Brockstedt Lech. Nessa mesma Capa data, os acadêmicos Welci nascimento e Santina Ro- drigues Dal Paz autografaram o livro “Dona Heloisa - A Capa desta edição de “Água da Fonte” é uma homena- memórias”, biografando a conhecida líder comunitária, gem à artista plástica Tamara Costamilan Liska, falecida há Heloisa Goelzer de Almeida. poucos meses. Dia 10/11/2012 – Com o apoio da Academia, o poeta Tamara era formada em Letras e Psicologia, pela Universi- passo-fundense Pedro Du Bois, autor de mais de oitenta dade de Passo Fundo. Prestou trabalhos relevantes nas citadas livros de poemas, lançou seu livro “Via Rápida”. áreas, tendo recebido Menção Honrosa da 7ª DE e do então Além disso, a Academia Passo-Fundense de Letras Juizado de Menores. Após sua aposentadoria, residiu em São organizou e apresentou dois saraus literários ou matinês Luiz do Maranhão, onde se dedicou à arte. literárias, como preferirem os puristas. O primeiro deles Filha de Iedo e Selma Costamilan, era casada com Rogério aconteceu no domingo, dia 4, e o segundo no sábado Liska, com o qual teve um filho, Dr. Renato Costamilan Liska. seguinte, dia 10, com a presença de poetas, acadêmicos Sua paixão pela arte fez com que ela pintasse quadros para ou não, além do acadêmico Xiko Garcia, interpretando familiares e amigos. suas composições musicais.

Água da Fonte Novembro de 2012 3 Sumário

Editorial ...... 1 Informe acadêmico...... 2 Quatro novos imortais ...... 5 Discurso de posse...... 6 Nunca pensei que faria parte da APL ...... 8 Semana das Letras...... 10 Elogio público a Paulo Monteiro ...... 12 Homenagem a Craci Dinarte ...... 15 Saudação ao Dr. Claudio Lamachia ...... 16 Crônica rebelde ...... 18 A cidade que elas não conheceram ...... 19 40 anos de kart em Passo Fundo...... 20 Memórias sobre meu pai...... 21 Portugueses em Passo Fundo ...... 26 Escola de Educação Infantil “Saber Fazer” ...... 27 Desaparece o velho Gaúcho...... 28 O judeu que se converteu ao catolicismo...... 29 O patrono Estanislau de Barros Miranda ...... 30 El flaco Flamini ...... 32 Lourdes Pythan...... 33 Tributo a Sílvio Luís Algarve ...... 34 Destino ...... 35 Óleo sobre tela - Tamara Costamilan Liska Mario Guimarães e o 2º Rodeio Nacional ...... 38 Vida nova, casa nova ...... 94 Protásio Antonio Alves ...... 40 Um Santo na Terra Santa ...... 96 Capadócia ...... 41 Uma pergunta inconveniente ...... 105 A pornografia nos costumes ...... 45 Onde estavam os felizes? ...... 106 A paixão de um clássico ...... 46 Meu pai ...... 108 A vida de João Roman Vieda ...... 48 Alcides Guareschi...... 110 Crescimento econômico de Passo Fundo...... 50 Burocracia na escola ...... 111 Ivo Paim: quem foi? ...... 52 Água potável ...... 112 Escola Fundamental...... 54 Vitaminas e suplementos ...... 114 Chimarrão ...... 56 A alimentação e o envelhecimento ...... 116 Sou um peixe ...... 58 Acasos ou coincidências ...... 119 Querência – MT – Tchê! ...... 59 Alcides Maya: um clássico esquecido ...... 120 Antonino Xavier, segundo Dante de Laytano ...... 60 Rodolfo, o torturador do Panamá ...... 122 Aveia na “bucólica” Aberystwith ...... 62 Aldo Battisti e a Confraria do Bar Oásis ...... 124 Um boi chamado Coração ...... 64 O dom é inerente a cada ser humano ...... 128 A menina e o Facebook ...... 65 Passo Fundo e Posadas ...... 130 A Revolução Farroupilha ...... 66 A morte do centauro ...... 133 Patriotismo ...... 69 Como foi que o filho de escravo, Felipão, se ...... 134 Alysson Paulinelli, um exemplo ...... 70 As vantagens de se ter uma mulher no poder ...... 140 Conta corrente da vida ...... 71 Dia Mundial do Livro ...... 142 Será que somos diferentes? ...... 72 O julgamento de Nietzsche ...... 143 Para que(m) modificar o Código Florestal? ...... 74 O evangelizador pampeano ...... 144 A Revolucionária Moron ...... 76 D. Urbano Algayer, um bispo especial ...... 145 Entrevista: Rudah Jorge ...... 77 Pesquisa sócio-antropológica...... 146 Ainda sobre a construção da liberdade ...... 82 Remembranças ...... 148 Escrever com estilo: cartas ...... 85 Comemoração do Dia Municipal do Escritor ...... 149 Agricultura brasileira, de Getúlio a Dilma ...... 86 Quando a Academia e o Metodismo...... 150 O valentão ...... 88 O cônego João Pedro Gay e o general Canabarro .. 154 Educar nossas emoções ...... 91 Um churrasco do imperador ...... 155 Um leitor a menos ...... 92 Sobre “bullshit” e assemelhados ...... 156

4 Água da Fonte Novembro de 2012 Quatro novos imortais

Marilise Lech, Agostinho Both, Júlio Perez, Marisa Zilio, José Ernani e Osvandré Lech

(fotos: rafael czamanski) Academia Passo-Fundense de Letras preencheu totalmente suas quarentas A cadeiras no dia 23 de novembro de 2012, com a posse de quatro novos acadêmicos. São eles: Agostinho Both, Júlio César Perez. José Ernani de Almeida e Marisa Potiens Zílio. A solenidade contou com a presença de trinta e dois acadêmicos e mais de duzentas pessoas, que lotaram o auditório e o hall dos ex-presidentes. Agostinho Both, falando em nome dos demais empossados, destacou a importância histórica das academias de letras e da reunião de escri- tores nessas sociedades. Num feliz exercício estilístico recolheu, em seu discurso, as palavras dos demais empossados, transformando um texto singular, numa peça oratória cerzida há oito mãos. O acadêmico Osvandré Lech, como presiden- te do sodalício, avocou para si a responsabili- dade de saudar os novos confrades. Historiando a prática acadêmica desde a Grécia Antiga, passando pela Idade Média, até chegar à idade Contemporânea com o desenvolvimento das academias de letras. Lembrou a contribuição da Academia Passo-Fundense de Letras para o desenvolvimento educacional e cultural de Passo Fundo e região, historiando instituições criadas a partir de iniciativas acadêmicas ou com a participação da Academia.

Água da Fonte Novembro de 2012 5 Discurso de Posse

(foto: rafael czamanski) AGOSTINHO BOTH

aúdo o presidente Sr. Osvandré Lech e o prefeito municipal, S senhor Airton Lângaro Dipp e as demais autoridades nominadas, saúdo meus confrades novos e demais confra- des. Amigos e amigas dessa noite. Em primeiro lugar devo dizer que sinto o peso ao representar meus colegas e colher deles, com todo carinho, sua colaboração. Três são as grandes virtudes reconhe- cidas pelos gregos como o caminho da felicidade e tão maltratadas no decurso da história, as quais são: Verdade justiça e beleza. A responsabilidade da academia de humilhações, tristezas, sonhos raivas mesmos, mas, como os olhos, fomos letras é com a beleza através da arte de e medos pessoais e comunitários se feitos para estender nosso olhar às rea- escrever. Somos acadêmicos. E como transformam em formas atraentes de lidades em nosso entorno. E, em nosso pertencentes a uma Academia de Letras, ser através do talento, estilo e exercício. caso particular, nossa tarefa consiste em comecemos pela origem da palavra O escritor é como um cozinheiro: não olhar e promover o desenvolvimento da academia. Academus, soldado, herói é tanto o alimento que vai dizer de sua literatura e visibilidade daqueles que da guerra de Tróia, criou uma escola de excelência, mas os temperos e a mão de a ela se dedicam. E de modo especial preparação física para jovens de Atenas. quem cozinha. daqueles que nos são próximos. Mais tarde a escola tornou-se um centro E por sermos uma agremiação de pes- Com alegria, nesse momento, cito as de ensino do bem pensar: a filosofia soas, temos o dever de não somente pen- palavras de meus confrades que, como cuja finalidade tratava de discutir as sar, sentir e dizer de maneira agradável e eu, estão sendo introduzidos nessa casa: realidades que preocupavam Atenas. A criativa, mas, conjuntamente, proclamar Uso a palavra de Marisa Potens Zilio filosofia grega também olhou de perto a arte das letras na reflexão da realidade. que diz o sentido da arte e da beleza, como é o Dizer o mundo com beleza, em nosso Somos uma Academia e como tal caso de Aristóteles. Tornar a escrita uma caso, por sermos agremiação, também devemos viver e primar pela confraria, arte exige, como na atividade física e é um exercício de solidariedade, pois pela reunião, pela união. na filosofia, muito exercício. A arte de Academia Passo-Fundense de Letras, Para dar fundamentação de nossa escrever é retirar da alma a expressão tem por finalidade primordial a prática agremiação, quero lembrar Tales de Mi- da realidade sobre a qual nós nos de- da Literatura em língua portuguesa, leto (624 a.C.), que busca compreender a bruçamos e, tal atividade de manifestar destinando-se a congregar escritores de humanidade contida no ser humano que nossa observação para se constituir em Passo Fundo, com o objetivo de auxiliá- se distancia, por vezes, da Verdade, da arte, exige o cuidado e o toque do en- los a desenvolver e expandir a arte lite- beleza e da justiça. Ao refletir sobre estas canto. Pois, então, academia significa, rária, em qualquer dos seus gêneros. Os virtudes encontramos dificuldades e a em nosso caso, um lugar de exercícios principais objetivos apontam para que perfeição anda trôpega, não poucas ve- para expressar tudo o que nossa alma as obras dos escritores de Passo Fundo zes. Tales de Mileto, então, torna-se um possa pronunciar e da melhor maneira sejam cada vez mais conhecidas e que a Educador que através de constatações possível. Tem mais: com o surgimento memória dos escritores passofundenses, alerta nossa condição humana. Tales da modernidade somos chamados não torne-se visível e cultuada. Por regime também é um observador da natureza somente a nos conformar com a natureza estatutário ainda somos obrigados a e particularmente da natureza humana: e com as realidades, sejam quais forem, promover a cultura em geral e ampliar as sem dúvida fonte de inspiração para mas transformá-las, tornando nossa li- possibilidades de publicação e expansão todas as formas de expressão nas Artes teratura um instrumento de criação que das obras dos autores locais. Entendo e nas Ciências. Milhares de anos de aponta para novas formas de expressão que nisso consiste a nossa principal caminhada e parece que ainda andamos e encantamento literário. Na verdade, o tarefa. De fato, somos como os olhos em rodeios. Então, com esperança, co- escritor é um instrumento pelo qual as os quais não são feitos para verem a si locamos nossos pensamentos em nossos 6 Água da Fonte Novembro de 2012 escritos para que alguém possa construir em uma de suas mais belas canções, tal ousadia tenhamos a ponto de romper novas ideias, novas dimensões; somos para “ cultivar a beleza de ser um eterno com a geografia que facilita a visibi- assim colaboradores desta humanidade aprendiz”. Esse apelo é que me torna lidade e a produção de escritores que que busca a perfeição; colaboradores historiador e escritor. habitam capitais e os maiores centros. desta academia, oferecendo o nosso de Me aproprio, nesse momento, das Que ao menos façamos o dever de nos escrever prazer (nem sempre divino, ideias do confrade Júlio César Perez: associar aos esforços de habitar de forma nem perfeito). O ingresso na Academia Passo- solidária e ampliada os nossos espaços e, Quero ainda lembrar Gabriel Bastos, fundense de Letras significa para mim assim, por força de uma física de poder meu patrono, retirando de seus escritos o coroamento de um esforço que veio e da vontade, superar os mares adversos alguns pensamentos e que servem para desde os meus 14 anos quando, residin- aos navegadores das letras. Ainda que, nossa academia. do ainda em Gaurama – RS, decidi que sem inventividade de Cervantes que, de “ Loucos e Santos” iria me tornar um escritor. Após 30 anos um parvo sobre um burro e de um louco Escolho meus amigos não pela pele e 3 livros publicados, posso considerar sobre um cavalo, fez talvez a mais bela ou outro arquétipo qualquer, mas pela que esse esforço rendeu frutos e o meu criação literária, tenhamos a coragem pupila. acolhimento neste Sodalício representa de sermos o que somos e o que ainda Fico com aqueles que fazem de mim o reconhecimento desse trabalho. O que pode ser. Que tenhamos um pouco da louco e santo muito me lisonjeia. coragem de Homero que fez de Ulisses Que me tragam dúvidas e angústias A carreira de um escritor não é uma um navegador do desconhecido, mas e aguentem o que há de pior em mim. tarefa fácil. Ao contrário, é uma ativida- descobrindo que o melhor lugar é sua Tomo, agora, a palavra de José Ernani de cheia de avanços e recuos e requer casa. Rigorosamente como Tolstoi: Se de Almeida: de quem decide singrá-la uma excep- queres ser universal, começa por pintar Quando recebi a notícia de que havia cional iniciativa e força de vontade. Na a tua aldeia. Ou como diz Oscar Wilde sido acolhido na Academia, lembrei-me verdade, decidir singrá-la não é bem ao um amigo que pretendia ser escritor: de um trecho precioso de Machado de o termo, pois antes de sermos nós que Por mais simples que seja o objeto de Assis, em Esaú e Jacó, no capítulo 65, escolhemos, somos nós os escolhidos. nossa paixão que seja bem olhado e onde se lê: “Conte com as circuns- Afinal, a Arte precisa de trabalhadores dito por nossas mãos. Pois bem, não tâncias que também são fadas. Conte e os recruta entre aqueles que revelam nos faltarão motivos os quais vão desde mais com o imprevisto. O imprevisto é alguma sensibilidade, um amor inco- os clamores de nossa aldeia até o mais uma espécie de deus avulso ao qual é mensurável ao Belo e a crença de que trivial objeto ou paisagem. Pedimos preciso dar algumas ações de graças; podem transforma o mundo através das competência divina fazendo brotar pode ter voto decisivo na assembleia letras, das notas musicais, das cores da palavras das quais se fazem livros para dos acontecimentos”. paleta ou das formas da escultura. Todos a ternura e o encanto nosso e de nossos Meu trabalho como historiador é dos os meios, enfim, pelos quais a Arte se leitores. Assim falamos respeitando a mais modestos. Assim, atribuo a minha manifesta. tradição grega que diz: fomos feitos escolha ao imprevisto, às circunstâncias Escolhido, pois, pelas Letras há mais de barro, mas o deus do sopro soprou ­– de que fala Machado – aos laços de de 30 anos, não recusei a distinção que sobre a argila, resultando alguém frágil amizade com integrantes desta acade- exige muitos sacrifícios e renúncias, mas e ao mesmo tempo divino, pois a partir mia, aos quais manifesto meu mais pro- que também nos proporciona grandes de então podemos falar como falam fundo agradecimento pelo acolhimento. realizações. A edição de um livro, mas os deuses. Mas por tal elevação a que Como historiador gostaria de lembrar antes disso, a criação de um poema, de fomos destinados, a tradição diz que que costuma-se dizer que o tempo passa um conto, a concepção de um romance, os deuses pediram que o deus Cuidado e morre, esquecendo-se de acrescentar o duro labor com as palavras, quando nos cuidasse até o momento que nosso que renasce a cada instante. Do mesmo este se resolve na forma acabada que, sopro se extinguisse, voltando ao barro modo é preciso recordar que a história intuímos, irá ficar para a posteridade, são o que é do barro e a Deus o que é de continua, com fases de inquietação e momentos que só rivalizam com as gran- deus. Assim, enquanto existir nossa di- sofrimento, intercaladas de fases de des conquistas da vida de um homem. vina inspiração e o pronunciamento da serenidade e alegria (na ausência das Quiçá, como o nascimento de um filho, palavra, vamos dizê-la ao nosso modo quais ninguém suportaria existir).A o começo de uma empresa de sucesso para alegria nossa, dos nossos leitores e estas alternâncias não devemos opor ou a conquista da mulher amada. de Deus. E que consigamos pronunciá- nem a saudade, nem a indiferença, nem Para finalizar outra ideia ainda nos la sob as formas de um papiro, e-book, o desencorajamento, mas a compreen- surge. Queridos confrades, noviços das tablets, face book e dando a nossa mais são, mesmo que seja fragmentária e letras, lembremos que entre as primeiras legítima versão sobre tudo que os olhos falível. Aí, pois, entra nossa tarefa de solicitações da direção de nossa Acade- e a inspiração nos concederem escrever, para que não se apague o sonho mia se referem à intenção de expandir Não percamos a compaixão, a ternura humano de ser. o movimento literário, tornando nossa e a ética que nos permite amar nossa Enfim, como historiador e escritor, academia parceira de outros parceiros habitação: Não somente a habitação de minha contribuição será esta: a de não na literatura. E, na segunda semana nossa intimidade, nossa casa querida, se apagar o sonho humano de ser. Esta- das letras, ficou anotado aqui, e muito, ausência de nossa solidão, mas nossa rei, assim, contribuindo também com a sobre a importância de encontrarmos comunidade, extensão primeira de nós Verdade e a Justiça. Finalmente quero caminhos para melhoria da visibilidade mesmos. dizer que chego a esta academia, como de nossos escritores. Esta ideia pode cantou o inesquecível Luiz Gonzaga Jr, levar a que tenhamos novas ousadias. E Passo Fundo, 23 de novembro de 2012

Água da Fonte Novembro de 2012 7 Nunca pensei que faria parte da APL

(fotos: rafael czamanski) MARISA POTIENS ZILIO

empre gostei de ler e escrever. Ao longo de minha vida fui sendo S desafiada a pôr o saber no papel. Porém, não levava essa tarefa como uma prioridade e, assim, publicava sempre que solicitada, para revistas, periódicos científicos, anais, capítulos de livros, etc., porém, sem rotinas per- manentes ou sistemáticas, em relação à escrita. Até que, respondendo a estes desafios, publiquei meu primeiro livro (“Ser hu- mano: o desafio na vida e no trânsito”) em coautoria com o Dr. Albino Julio Sciesleski. Depois, creio que o desejo de escrever já não era mais tão tímido em mim, e disso resultou meu segundo livro (antes dissertação de mestrado): “Psicopeda- gogo: perfil profissional em conflito”. O desafio continuou e, já sentindo- me mais à vontade, assentei-me no que minha própria vida estava a me exigir, pois desde pequena estive cercada de leituras e de livros. “Pais competentes Marisa Zilio e Selma Costamilan de filhos doentes” veio a ser, então, meu desafio mais recente, o qual, em parce- Então, aceitei esta “honra” que, na Lobato, das estórias de José de Alencar ria com Marilise, Jamile, Suraia, Carla verdade, é para mim mais um desafio. (já na minha adolescência), de “Poliana Sesti, Carla Tarasconi, Christiane, Eline Como nos diz Sara Paim: “Todo pen- Menina” e “Poliana Moça” (que eu ado- e Albino, revelou meu sucesso em mais samento, todo comportamento, remete- rava, e como adorava!), enfim, isso tudo essa empreitada. nos a sua estruturação inconsciente, fez parte desta história de vida. Confesso que vacilei, ao ser convida- como produção inteligente e, simulta- Escrevo bem? Não sei, mas gosto de da para concorrer a uma vaga na APL. neamente, como produção simbólica.” soltar meu pensamento (que tem conteú- Pensava em como seria participar da Como cheguei até aqui, intelectual- do, segundo meu editor) e de fazer parte, Academia Passo-Fundense de Letras, e mente falando? Há, naturalmente, uma de somar e de contribuir, literariamente, o que isto significaria para minha vida... história que surge de meu inconsciente, com a construção de um mundo sempre Até questionei-me se teria competência de minhas memórias: meu pai, que me melhor. para tanto. Mereceria eu tal galardão? presenteava com muitos livros de histó- Lembro aqui de “Alice no País das Como sempre faço, olhei para minhas rias e lia todas as noites até eu dormir. Maravilhas”, quando o coelho lhe disse: conquistas até aqui, e percebi que nunca Minha mãe, que incentivava a leitura, a “É tarde! É tarde! É tarde até que arde! me negara a responder a desafios. Tam- ouvir radionovelas, e mantinha longas Ai, ai, meu Deus! Alô, adeus!...” pouco me sinto velha, apesar da idade, a conversas em torno de minhas muitas, Canta o coelho de Alice. Cantam as ponto de não sonhar mais. Não é por aí, mas muitas mesmo, curiosidades. Tam- mentes insatisfeitas. Cantam os homens pensei. Há que responder positivamente bém lembro de quase todas as histórias que querem mais. Quero mais, queremos à vida, não ter receio de mudar (ideias, de Hans Christian Andersen, dos irmãos mais. Eis o nosso desafio. Este é o meu conceitos, modos de viver) e buscar Grimm, das coleções “Mundo da Crian- desafio. novas propostas, sempre. ça”, das revistas “Recreio”, de Monteiro Por fim, quero lembrar de algo que

8 Água da Fonte Novembro de 2012 Sessão de posse na APL, 23 de novembro de 2012 se chama “influência”. Ouvimos muitas publicamente, com a APL. Outro sonho é a promoção permanen- vezes que não devemos ser influenciá- É difícil responder a estas questões, te de escritores (e também de artistas, veis. Que tolice! Quero, sim, ser sempre pois os dinamismos hodiernos podem músicos, etc.) e de outros talentos filhos influenciável pelos bons pensamentos, nos levar a “desobedientes” juramentos. desta terra, levando-os a diferentes pelos comportamentos de pessoas Prefiro falar de meus sonhos, em relação eventos (discussões, rodas de leitura, desafiadoras, pelos meus amigos e à cultura local e aos compromissos com oficinas, etc.), nas escolas. Creio ser parentes, pelos filhos, pelas pessoas a APL. esta uma prioridade, pois, para que generosas, pelas pessoas sábias. Quero Um deles vem de quando eu era nossos jovens leiam mais, é necessário ser influenciada pelos bons livros e por Vice-Reitora de Extensão e Assuntos provocá-los. seus autores. Comunitários, da UPF. Junto a órgãos Desejo ainda que nossos livros es- Quero, ainda, ser influenciada por esta competentes (como a universidade e as tejam em nossos computadores. Isso casa (APL), onde o saber compartilhado faculdades locais), pensei em reestrutu- tornará todos mais hábeis para rompe- não mede esforços, e voa sem fronteiras rar os três prédios que mantêm a APL, rem barreiras territoriais e se fazerem e sem barreiras. o Teatro e o Museu, para que se trans- presentes em todo o planeta. Lembrando Lucas (12, 13-21), quando formassem num espaço cultural maior, Por fim, o que posso “prometer” nos fala da história que Jesus inventou fisicamente, que pudesse abrigar mais de fato é estar presente, e apoiar com (Ele gostava de contar e inventar his- e maiores eventos literários, culturais dedicação as ações da APL. E ainda, tórias!), dizendo que, diante de uma e festivos. se possível for, e a inspiração existir, grande colheita, o senhor da fazenda Já imaginaram todo o pátio reconstru- escrever... escrever... escrever. pensou em construir silos maiores, para ído, com um anfiteatro para apresenta- Seria pretensão demais desejar víncu- guardar todos os seus grãos, para poder ções de orquestras, corais, bandas, etc.? los permanentes, com prêmios literários viver sua vida sem preocupações, Jesus E um teatro e um museu, fervilhando de e com a Academia Brasileira de Letras? falou, então, da tolice de quem assim gente e com diversidade de espetáculos Confesso que, como uma criança pensa, pois não considera que a vida é e exposições? iniciando seu caminhar, tenho por ora efêmera e o amanhã poderá não existir. “Mas já fazemos isto”, poderão dizer dificuldades em prever todas as pers- Esta passagem nos faz pensar que alguns. Sei que o fazem, mas sei tam- pectivas que a APL oferece. estamos aqui para distribuir nossos bém das dificuldades. E são estas que Estar presente e ser sempre cooperati- pensamentos, nosso conhecimento, não quero amenizar, para que o resto flua. A va, por fim, é minha promessa. para guardá-los; e que nossa imortalida- estrutura física é importante e deve ser de seja o símbolo de que não vivemos empática, a ponto de atrair as pessoas. em vão. Sentem na praça, e observem como O que espero fazer em prol da cultura nossos espaços de lazer e reflexão estão (Marisa Potiens Zilio, psicopedadoga e membro da local. E qual o compromisso assumido, cada vez menores e menos convidativos! Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 9 Semana das Letras

(fotos: arquivo apl) Academia Passo-Fundense de ampla liberdade de expressão, servindo Letras promoveu, entre os dias para que todos expressassem suas opini- A 29 de outubro e 1º de novem- ões, o que certamente contribuirá para bro de 2012, a II Semana das Letras, uma produção maior da literatura local. contando com o apoio da Universidade A conclusão geral é que faltam con- de Passo Fundo (UPF) e da Prefeitura dições para uma circulação maior da Municipal, por meio da Secretaria Mu- literatura passo-fundense, incluindo-se, nicipal de Cultura e Desporto (SEDUC). aí, as obras de conteúdo científico. Essa Tendo em vista que a primeira edição falta de condições se deve, fundamen- do evento deu importância à literatura talmente, ao fato de o município estar local, esta II Semana destacou autores distante dos grandes centros culturais nacionais. brasileiros, mormente, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Escritores, editores e livreiros Apesar de todas essas dificuldades, alguns autores passo-fundenses alcan- Professor Eládio Weschenfelder No dia 29, realizou-se o encontro de çaram reconhecimento nacional e inter- escritores, editores e livreiros. Na opor- nacional, e algumas obras conseguiram chenfelder e Ivânia Campigotto Aquino, tunidade, esses três segmentos indis- tiragens com milhares de exemplares. discutiram-se as obras do poeta Carlos pensáveis para a existência da literatura Isso demonstra a qualidade da literatura Drumond de Andrade e do romancista debateram a criação literária, a edição aqui produzida. Jorge Amado. e comercialização de livros na cidade. Coube ao professor Eládio Wes- Muitas foram as sugestões apresenta- Drumond e Jorge Amado chenfelder falar sobre o poeta mineiro. das, pois Passo Fundo produz, em mé- Imitando a voz e o jeito de falar de Dru- dia, um título diariamente, desde livros Na terça-feira, dia 30, sob a coordena- mond, o professor encantou a plateia. de pequeno volume a alentados tomos de ção da acadêmica Dilse Peccin Corteze Ao longo da palestra, o bom humor e o conteúdo científico. O ambiente foi de e dos professores da UPF, Eládio Wes- profundo conhecimento da obra fizeram

10 Água da Fonte Novembro de 2012 Bando de Letras da UPF como pano de fundo o mundo de Nelson Rodrigues.

Semana de Arte Moderna

A Semana de Arte Moderna foi o tema abordado na última noite (1º/11) da II Semana das Letras da Academia Passo-Fundense de Letras. Tais ativida- des foram coordenadas pelo acadêmico Encontro de escritores, editores e livreiros Osvandré Lech, presidente da Academia Passo-Fundense de Letras. com que o clima reinante fosse de en- por sua habilidade e criatividade, que Sob a coordenação da Doutora em cantamento e empatia. O afastamento do tocou de forma nova, emocionando a Letras, Fabiane Verardi Burlamaque, a palestrante, em função do trabalho que o todos, e recebendo elogios por parte da também professora e Doutora em Letras, aguardava em Soledade, foi motivo de assistência. Nara Rubert, palestrou sobre a movi- pesar por parte do público. O psicanalista Dr. Francisco Santos mentação realizada por jovens intelectu- A homenagem feita a Jorge Amado, Filho apresentou uma análise psico- ais paulistas, em 1922, responsável pela pelos 100 anos do seu nascimento, lógica da obra de Nelson Rodrigues, introdução das chamadas ideias moder- partiu, inicialmente, de estudo apresen- frisando que o autor não inventou o nas da Literatura, no Brasil. Expôs os tado pela Doutora em Literatura, Ivânia incesto, a traição, a homossexualidade, antecedentes que levaram ao encontro Campigotto Aquino que, de forma sen- os crimes passionais, ingredientes das promovido pelos jovens intelectuais sível, mostrou as várias fases e facetas principais histórias contadas por ele. paulistanos, ligados a alguns intelectuais do autor. Após sua fala, houve uma boa Disse o palestrante que até hoje isso tudo de outras capitais brasileiras. interação com o público, ocasião em que acontece dentro das famílias brasileiras, A professora Nara Rubert salientou ela respondeu, com muita solicitude, como ele ouve constantemente em seu a importância da Semana de Arte Mo- às perguntas da plateia. A professora consultório. derna, para a renovação da literatura revelou aos presentes um Jorge Amado Já a Dra. Nara Rubert trouxe o emba- brasileira. A partir daquele momento, regional, mas profundamente brasileiro. samento teórico e literário da obra de quebraram-se os cânones consagrados O vídeo produzido pelos alunos e Nelson Rodrigues. Mostrou a riqueza do fazer literário, fixando-se a mais alunas do Curso Integrado da UPF, que de formas de manifestação do autor, pois ampla liberdade de criação. faz parte do Festival de Curtas deste ano, ele escreveu peças de teatro, romances, Alunos do Ensino Médio Integrado e daquela instituição, deu o clima para crônicas, textos jornalísticos, espe- da UPF exibiram vídeos, sobre aquele o início das atividades. cialmente na área policial. Enfatizou movimento de renovação literária, a ironia que permeia toda a produção destacando-se a participação das aca- Nelson Rodrigues literária de Nelson Rodrigues. dêmicas Sueli Gehlen Frosi e Marilise O Dr. Gerson Trombetta analisou, Lech, entrevistadas pelos alunos. A programação em homenagem a filosoficamente, a obra, ressaltando as O Bando de Letras da Universidade Nelson Rodrigues, com a mediação da categorias de “ironia e mentira”, de uma de Passo Fundo, sob a coordenação do acadêmica Sueli Gehlen Frosi, começou forma magistral, levando os presentes professor Eládio Weschenfelder, pro- com uma belíssima apresentação de a refletirem sobre a condição humana, moveu a dramatização dos poemas mais Jonathas Ferreira, violinista reconhecido de um jeito alegre e profundo, e tendo conhecidos dos primeiros modernistas.

Água da Fonte Novembro de 2012 11 Elogio público a Paulo Monteiro

(fotos: arquivo apl) MAURO GAGLIETTI funda sua versão mais seca, prosaica, que é a liberdade de pensar e de opinar. Se não tivermos esta última, sabemos stamos aqui para olhar, ainda que quase nada mais nos restará. Pensar mais atentamente, para uma por conta própria, expressar as ideias e E obra e um ser humano ímpar, manifestar os ideais de que somos le- seu autor. Ele já presidiu a Academia gítimos portadores, eis uma das chaves Passo-Fundense de Letras (APL) e, da democracia (nas palavras do sábio atualmente, é seu Secretário Geral, Renato Jeanine Ribeiro). Mas essa senha sendo um conhecedor da história do de acesso – digamos, “racional” – não se Rio Grande do Sul e um reconhecido constituirá se não lhe tiver sido aberto ativista cultural. Fazemos referência a lugar por um aprendizado bem menos uma obra, que foi esculpida nos tempos sujeito à razão e que, na verdade, é a dos poetas da geração do mimeográfo primeira grande aventura da fantasia. (nas palavras do autor: “mimeogenera- Aqui, a aventura consiste em imaginar, tion”) e do período em que livros eram gerar fantasmas, idear o que não é. O enterrados nos pátios das casas. Trata-se que Paulo Monteiro tenta nos dizer é tão de Paulo Monteiro, digno representante somente que jamais vicejará a planta do da cultura de Passo Fundo, que entrega pensamento se, antes, não for semeado na noite de hoje, aos nossos corações e o terreno pela fantasia – e isso porque mentes, o seu mais recente livro: cebida, igualmente, na capa de Silvana ambos têm, em comum, a capacidade de Eu Oliveira, retratando lírios colhidos em sair da mesmice, da repetição, daquilo resisti uma sala fechada (bela metáfora para que está aí, para construir, em seu lugar, também uma capa em tempos de Comissão de uma vida humana digna. cantando Verdade e de mortos sem sepultura), na Por isso mesmo, ele carrega em sua com versão impressa e em formato nota do autor, na dedicatória e, também, tinta a expressão de um Brasil que E-Book. Assinalamos, ao mesmo tempo, num prefácio assinado por Júlio Perez. teve como uma de suas passagens mais que esse livro teve sua edição garantida Notamos, nas orelhas do livro, duas impressionantes a censura a Peter Pan. pelo auxílio cultural do PROJETO PAS- fotos do poeta, a primeira, de 1974, e a Nesse caso, talvez a censura não tenha SO FUNDO, que já editou, nos últimos outra, recente: o que ambas têm em co- sido nada burra, ao proibir as aventuras anos, cerca de 63 publicações de reno- mum é o olhar penetrante de um atento desses meninos da Terra do Nunca. mados autores e autoras pertencentes observador. Além disso, encontramos Porque Peter Pan e seus amigos não à cultura local. Soma-se a esse apoio a inscrição de algumas percepções de são inofensivos e bem-comportados dos amigos Ernesto Zanette e Gilberto leitores das canções que residem em como querem muitos. São, mesmo, uma Cunha, com seu olhar atento, o envol- diversas cidades do Brasil e de Portugal. turma rebelde e de forte imaginação – e vimento da APL e da Gráfica Berthier. Paulo Monteiro carrega em si uma com isso terão preparado muita gente Ressalta-se, sobretudo, que estamos parte preciosa da história de Passo Fun- para pensar. A censura tinha razão em diante de um “livro póstumo de um po- do, em seus aspectos mais enigmáticos, proibi-los: quem quer impedir os outros eta vivo”. Encontramos o autor “inteiro sobretudo, aqueles mais associados às de refletir por conta própria tem que nesses poemas”, em que a vida do poeta estratégias estéticas libertárias utilizadas começar muito cedo, coibindo a imagi- é ressignificada conforme se avança por muitos militantes da contracultura, nação de nossas crianças e adolescentes. pelos caminhos que se abrem, mediante entre dois tempos: em 1974, com a resis- E, por esse motivo, Paulo Monteiro a interpretação de seus versos. A obra tência à ditadura militar, e nos primeiros resistiu à ditadura “também cantando”, conta com 72 poemas escritos a partir anos do século XXI, por intermédio da em seus versos, a liberdade de criação de 1974, agrupados em quatro seções: resistência à sociedade do consumo e e de expressão, como um direito da “introdução ao poema”, “suor e sangue”, à ampliação da corrupção na política. pessoa humana. “par e ímpar” e “caderno de canções”. Paulo, por sua vez, filia-se aos que Os já tradicionais leitores (e as leito- Na contracapa, a veia do poeta salta, defendem o direito à fantasia, em um ras) de suas prosas e versos, escritos à expondo, em 14 versos, o espírito do país que já proibiu – nos anos de chum- maneira regrada, pontuados, perceberam tempo na contemporaneidade. A delica- bo – a leitura de várias obras infantis. que há uma ótima e bem elaborada utili- deza com que a obra foi editada é per- Porque é nesse direito de fantasiar que zação da pontuação. Aprendiz dos textos 12 Água da Fonte Novembro de 2012 Paulo Monteiro clássicos da literatura universal, desde ouça aquilo que está no livro” (ZERO uma obra literária modernista, à medida piá, aprendeu que a finalidade de tais HORA, 1998). que surge um ardente desejo furioso de sinais é transmitir a ideia de oralidade É provável que Paulo Monteiro con- libertar as palavras, tirando-as da prisão. do autor, por intermédio da leitura. No sidere, também, que a pontuação, como Essa vanguarda de que Paulo Monteiro livro que está sendo lançado hoje – eu usada atualmente, tende a organizar faz parte tem se espalhado pelos qua- resisti também cantando –, ao abolir fria e logicamente o texto, não por tro cantos do mundo, imaginando ser a pontuação, Paulo Monteiro libertou seus elementos rítmicos e melódicos. possível destruir a sintaxe, dispondo os os leitores, lançando-os a um campo Com base nessa deformação rítmica substantivos ao acaso, como nascem; minado de incertezas de sentido. Sem produzida pelo uso lógico da pontua- empregar o verbo no infinitivo, para que vírgulas, pontos, maiúsculas, nos 72 ção, muitos poetas a aboliram em sua se adapte elasticamente ao substantivo poemas, faz um emprego não tradicional escrita. O nosso poeta de Passo Fundo, e não o submeta ao “eu” do escritor de pontuações, tal como o português no caso, inspira-se no que há de melhor que observa ou imagina. O verbo no José Saramago, que fazia o mesmo em na literatura universal, na medida em infinitivo pode, sozinho, dar o sentido seus textos em formato não poético, que, ao escrever sem pontuação, sem de continuidade da vida e a elasticidade chegando a escrever frases de mais de divisão em versos, sem maiúsculas, da intuição que a percebe; abolir o ad- uma página sem uma única vírgula, arremeça o leitor para o desconhecido, jetivo, para que o substantivo, desnudo, sem pontos. Sobre seu estilo, o próprio no território da criação, da fantasia, da conserve a sua cor essencial (o adjetivo, Saramago conta: “Sem saber como, sem imaginação, da própria versão do verso. tendo em si um caráter de esbatimento, ter pensado nisso, começo a escrever Assim, enquanto organiza os poemas, ao é incompatível com a nossa visão dinâ- como se tivesse contando aquela histó- eleger uma leitura singular, com matéria mica, uma vez que supõe uma parada, ria, e contando aquela história, conto-a humana plástica, o leitor recria novos uma meditação); deletar o advérbio, sem pontuação, da mesma maneira sentidos que configuram as palavras antiga cola que une as palavras umas às como falamos, com sons e pausas”. E lidas, mastigadas com dentes de moer outras (o advérbio conserva a frase numa complementa: “Abolir a pontuação não e marcar a vida. Desse modo, estamos fastidiosa unidade de tom); eliminar a foi decidido por alguém que quer escre- diante de uma criação que, ao morrer, se pontuação e suprimir os elementos de ver algo novo. Foi resultado lógico da desmancha, porque, desintegrando-se, comparação (há muita violência quando aceitação de um tipo de narração que se gera outras obras. se estabelecem paralelos entre palavras, confunde muito com a oralidade, tem a Ao que parece, Paulo Monteiro faz pessoas, livros e...). Por fim, essa van- ver com essa mágica do conto oral. (...). parte da ousada vanguarda que tenta nor- guarda de que o nosso poeta de Passo O que eu quero é que o leitor ouça... matizar os métodos de composição de Fundo faz parte quer utilizar símbolos

Água da Fonte Novembro de 2012 13 matemáticos e musicais, para poder o instável, o frágil, o corpo em estado fixo e que pode ser situada no ponto expressar toda mágoa, rancor, memória/ – contínuo, ininterrupto – de mudança. exato onde se encontram o trabalho e o esquecimento, todo amor concentrado Por isso, caros amigos e prezados prazer, a disciplina e a sensibilidade, a e compartilhado entre as pessoas nesse integrantes da APL, como diz um pro- certeza e a dúvida. E porque falham as mundo. vérbio do Malinké, “um homem pode palavras quando querem exprimir qual- Será que a poesia de Paulo Monteiro enganar-se em sua parte de alimento, quer pensamento, e porque falham os deseja ousar e advertir para o quanto mas não pode enganar-se na sua parte de pensamentos quando querem expressar não se pode restringir a problemática já palavra”, ou – poderíamos acrescentar qualquer realidade, concluo com uma levantada por Mallarmé, a um desejo de – “na sua parte de imagem”. pergunta e com a resposta que lhe deu acabar com o verso – colocando como O que desejo ao Paulo Monteiro e um poeta: única saída, por exemplo, uma poesia a todos os escritores de Passo Fundo, Que lições a vida pode oferecer? puramente visual ou sonora? Esta foi, nesta noite e sempre, é felicidade, a fe- Manoel de Barros aprendeu com Rô- aliás, a leitura que predominou entre licidade que é sinônimo de respeito pelo mulo Quiroga (um pintor boliviano) o nós a partir dos poetas concretos, que outro. A felicidade que não possui lugar seguinte: viram no emblemático poema a resposta do escritor francês à crise, por meio de uma poesia supostamente apenas visual. A expressão reta não sonha. Assim, é preciso buscar nas poesias do Não use o traço acostumado. poeta a ampliação das possibilidades A força de um artista vem das suas derrotas. de versificar, expandindo com isso as Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. possibilidades do poético. Arte não tem pensa? Classificar nossa tradição poética O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. contemporânea, por exemplo, em poesia É preciso transver o mundo. verbal X visual – aquela que se julgaria Isto seja? mais diretamente herdeira da poesia Deus deu a forma. Os artistas desformam. concreta – seria, nesse sentido, colocar É preciso desformar o mundo: mal o problema. “O verso está em toda Tirar da natureza as naturalidades. parte da língua onde haja ritmo”. O Fazer cavalo verde, por exemplo. problema na escrita é, antes de tudo, Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall. rítmico. E se verso é quase sinônimo de Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu ritmo, quem sabe mesmo na prosa haja saio por aí a desformar (...) verso ou, como queria o poeta francês, talvez nem mesmo exista a “prosa”. E (Mauro Gaglietti integra a Academia Passo-Fundense de Letras desde outubro de 2010, ocupando a cadeira 31. quem sabe, nisso tudo, o que importe É Cientista Político, Doutor em História, Professor da IMED (Passo Fundo, RS), Professor do Mestrado em Direito na URI (Santo Ângelo, RS) e Professor Colaborador da FEMA (Santa Rosa, RS) e da FAI (SC). É o Coordenador do de fato seja essa indecisão da forma, a Projeto Justiça Comunitária em Passo Fundo e do Curso de Pós-Graduação em Mediação de Conflitos e Justiça potência que a poesia tem de encarnar Restaurativa. É autor de vários artigos, ensaios e livros. E-mail: [email protected].)

Poesia Mara da Graça Carpes do Valle

Labirintos, arco-íris, pores-do sol. Ânsia de viver Tudo isso me encanta. Crianças, amigos, Buscas constantes. vejo-os celeremente passar. Questionamentos. Para onde vão?! Identificações. Indagações. Sei que devo continuar. Sonhos,projetos, realizações... A imensa sede de vivenciar todos os momentos me avassala. Esperanças aquecidas... Por que será? Afetos, amores, envolvimentos... Quem sou? Reflito e revejo, num lampejo, tantos quadros. Simplesmente alguém trilhando Constato serem esses a minha história um caminho... que a própria vida escreveu.

Mas quem disse que tem ponto final? (Mara da Graça Carpes. do Só agora entendo o porquê da minha pressa. Valle é professora, de Passo Fundo/RS.) Só agora tenho certeza de quem sou.

14 Água da Fonte Novembro de 2012 Homenagem a Craci Dinarte

(fotos: arquivo apl)

Osvandré Lech, Paulo Monteiro, Craci Dinarte e Marilise Lech Craci Dinarte e Helena Rotta de Camargo

LUÍS MARCELO ALGARVE o livro “Emoções”, disse, mas que não é novo para nós”. Craci Dinarte, ao res- Craci Dinarte é uma poetisa que diz ponder o que seriam coisas simples com profundidade, mas raci Terezinha Ortiz as emoções, afirmou: que poucos conseguem dizer em letras Dinarte, professora, “O que são emoções, tão belas. C nasceu em Guaporé/ senão sentimentos O mundo dos poetas é especial. Basta RS em 15 de outubro de 1.932. que nos dominam uma paisagem, um som, uma palavra, Filha do dentista Francisco de em certas ocasiões: um sentimento, para brotarem versos Marco e de Paulina Wairich sejam de saudades, de sutilezas que os olhos menos atentos de Marco. Desde jovem, apre- alegria, paz, dor e não conseguem ver. A função do poeta sentava talento especial para amor. As emoções é traduzir em palavras as emoções mais as artes. Adorava escrever, são superiores a nos- sutis da pessoa humana. A confreira além disso, pintava quadros sa vontade. Podemos tentar ou até reagir Craci Dinarte, em sua obra, consegue a óleo e cantava (era soprano). Casada aparentemente, mas sua presença é sen- revelar com talento e simplicidade a com Jairo Ortiz Dinarte, Craci teve três tida sempre no fundo do nosso coração. essência da vida humana, conforme se filhos: Carlos Antônio, Graciela Fátima Emoções é viver e reviver nas nossas percebe no poema “Para Melhorar”, a e João Carlos. recordações”. saber: “Para melhorar/a humanidade,/é Em razão do talento com as palavras, Craci Dinarte ingressou na Academia preciso que haja amor./Um amor que foi convidada pelo amigo Dyogenes Passo-Fundense de Letras em 1.989, desperte/o desejo de viver,/de sorrir, de Martins Pinto, diretor do jornal Diário contribuindo decisivamente para a crer./Um amor que possa vibrar,/ilumi- da Manhã, a publicar as suas poesias no afirmação da poesia no sodalício. Ques- nar as pessoas,/mas também/ser calmo e periódico. A primeira poesia divulgada tionada sobre o que seria a Academia discreto,/sem deixar de ser amor.” foi “Horas Perdidas”. Depois da pri- Passo-Fundense de Letras, respondeu: A Academia Passo-Fundense de Le- meira publicação brotaram belíssimos “É uma reunião de pessoas cultas, que tras sente-se lisonjeada e agradece a con- trabalhos poéticos que, por mais de 8 reconhecem na simplicidade a melhor freira Craci Dinarte, por brindar os seus anos, permearam as páginas do referido forma de viver”. membros com o recente lançamento do Jornal. Para o encantamento dos leitores, Alguns pensam que os poetas são livro “Emoções”. O nome da poetisa já as poesias se transformaram em livros: pessoas tristes, solitárias, melancólicas, está selado na história do sodalício, para “Permitam-me Sonhar” e “Poesia: Um eternamente infelizes. Ocorre que toda a sempre, na condição de talentosa artista passe de Mágica”, ambos de 1997; humanidade passa, em algum momento da poesia, bem como está gravado na “Nós, entre o Céu e a Terra”, de 2008; da vida, por esses sentimentos, mas tem memória de Passo Fundo, na condição e “Emoções”, de 2012, lançado pelo dificuldade de exteriorizá-los, como de quem fomenta a disseminação da Projeto Passo Fundo. fazem os poetas e escritores. Escrever literatura local. Obrigado, poetisa Craci! Sobre a mais recente obra literária, é uma arte. Escrever é dialogar sozi- apresentada à comunidade no dia nho. Já dizia José Ortega y Gasset: “O

24/07/2012, em evento realizado na sede que distingue um grande poeta é o fato (Luís Marcelo Algarve, Advogado, Professor Universitário da Academia Passo-Fundense de Letras, dele nos dizer algo que ninguém ainda e Membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 15 Discurso (28/08/2012): Saudação ao Dr. Claudio Lamachia

(fotos: arquivo apl) Dr. IRINEU GEHLEN Essa a origem da profissão A partir da Lei 4.215/63 do advogado”. que criou o Estatuto da É bom lembrar que, no OAB, o advogado passou xmo. Dr. Claudio Lamachia, mui passado, o advogado estava do simples postulatório, a digno Presidente da Ordem dos a serviço dos interesses par- envolver “munus publi- E Advogados do Brasil/Seccional ticulares e privados, eis que co”, seguido de respon- do Rio Grande do Sul! os litígios e as demandas sabilidade funcional. A Pela segunda vez coube-me a honra eram duelos entre as partes, ética, o zelo, a dedicação, e o privilégio de saudá-lo, ao ensejo enquanto o Estado era um a probidade, o civismo, o do mês do advogado. Falar das qua- simples observador, passivo desvelo, tudo isso consti- lidades, da inteligência, da honradez, e inerte. Porém, evoluindo a tui, juntamente com sua da eficiência, da competência e do sociedade, o Estado passou a atividade, muitas vezes empreendedorismo de Vossa Excelência intervir nas relações privadas mal compreendida, uma é despiciendo, pois os advogados e a e, a partir daí, a presença função social. Indiscutí- sociedade gaúcha já o sabem. do profissional do Direito no processo vel que o pressuposto fundamental da O advogado sempre foi, em todos tornou-se obrigatória, assumindo o advocacia é, sinae dubio, a LIBERDA- os tempos, o profissional defensor das advogado o papel intermediário entre DE. Sem democracia, não se concebe a pessoas e dos indivíduos, contra as a parte e o juiz. O Estado Ateniense figura do advogado e, sem a figura do injustiças e contra as agressões que foi, sem dúvidas, o berço da advocacia, advogado, não se concebe a paz social estes sofrem. Segundo o insigne RUY onde a oratória conquistou a sua glória nem a liberdade dos homens. Nada, BARBOSA, “O primeiro advogado foi com os oradores helênicos: Sócrates, nesta vida, pode ficar longe do Direito. o primeiro homem que, com a influên- Péricles, Demóstenes e tantos outros Tudo vincula-se ao magistério da lei e cia da razão e da palavra, defendeu os que preencheram exuberantes páginas ao império da JUSTIÇA. Impossível seus semelhantes contra a injustiça, da advocacia histórica. Já, em Roma, a convivência humana sem o ordena- a violência e a fraude”. Impossível a advocacia passou a se revestir de for- mento jurídico. Aí reside o fundamento tornar-se indicar e mencionar quando, mas técnico-jurídicas. JEAN CRUET, pelo qual não há hierarquia entre juiz, efetivamente, começou a profissão em sua obra “ A Vida do Direito e a advogado e promotor de justiça. Essa do advogado. Todavia, PÉRICLES, Inutilidade das Leis”, proclama: “Os presença de luta pela paz social é sentida segundo se sabe, foi o primeiro repre- inúmeros profissionais que vivem do e presenciada na legislação mosaica, sentante do direito que se conheceu Direito fazem também viver o Direito... na Lei das XII Tábuas, nos Códigos de em Atenas, na Grécia. Entretanto, o Nessa vivência do Direito é o advo- Hamurabi, no Alcorão, nos princípios primeiro advogado a exercer a advo- gado que, no entrechoque da vida coti- filosóficos e políticos de Mêncio, na cacia como profissão e a ensinar juris- diana, restaura e assegura os postulados antiga China, nas civilizações helênicas prudência, publicamente, foi o plebeu que governam a convivência social.” e romanas. Só a liberdade tem o condão TIBÉRIO CARUNEANEO, pontífice Em Roma o advogado era chamado de de dignificar o homem. que viveu em Roma, três séculos antes “miles legalis, ou seja, o soldado da lei. Assim, nesta noite, ao ensejo do de Cristo. RUY A. SODRÉ define: “O exercício da encerramento dos festejos alusivos à SEBASTIÃO DE SOUZA, por sua advocacia é eminentemente útil à ordem Semana do Advogado, em nome de vez, observa que Moisés fora advogado da sociedade, porque influi, poderosa- todos os profissionais do direito, de- dos hebreus, contra a tirania e o despo- mente, sobre a distribuição da justiça”. sejamos cumprimentar a Ordem dos tismo faraônico. DUPIM se manifesta O primeiro advogado no Brasil, se- Advogados do Brasil- Seccional do Rio dizendo que, segundo a história, a de- gundo o historiador Assis Cintra, embo- Grande do Sul, e a Subsessão de Passo fesa se fazia por meio de um parente ou ra a matéria não seja pacífica, foi Duarte Fundo, nas pessoas de seus ilustrados amigo, e CARVALHO DOS SANTOS Perez, enquanto que outros sustentam Presidentes Dr. CLAUDIO LAMA- esclarece: “As necessidades da Justiça que teria sido COSME FERNANDES CHIA e Drª PATRÍCIA ALOVISI, que exigiram que homens especializados, PESSOA. Urge frisar que essa dignidade tão bem vêm presidindo e dinamizando versados no conhecimento das leis, vies- sacerdotal, da profissão do advogado, foi a nossa honrada Instituição, resgatando sem ao lado dos litigantes para assisti- proclamada por PAULO VI: “UM HO- o espírito de união, os direitos perdi- los na reivindicação de seus direitos. MEM EM BUSCA DA VERDADE”. dos, a fraternidade, a desportividade,

16 Água da Fonte Novembro de 2012 o respeito e a independência. odilon garcez ayres Senhores presidentes, autoridades, Poesia senhores advogados e convidados especiais, que nos honram com sua presença nesta noite, peço vênia para dizer que nosso país vive uma crise Confrades da APL (Safra 2010) política e judiciária muito grave. Basta ver, apenas para exemplificar, que De- móstenes Torres durante muito tempo, Carlos Madalosso, rima com colosso, exercendo a senadoria da República, Médico famoso, empresário, não dá troco, aparentava ser um dos melhores polí- Em seu consultório, em formato de poço, ticos deste país. Ledo engano! Coberto Sua especialidade é tripa, intestino grosso, com pele de cordeiro, escondia-se, ali, Que ele corta, diminui, sutura, fim do enrosco, um traídor da Pátria. Registro, apenas, O sujeito come pouco, emagrece, esbelto, fica moço! que o “impeachment” do Presidente Elmar Floss é planejador, Lugo deve servir de exemplo aos polí- Estruturado, articulador, ticos brasileiros e sul-americanos. Sem Mestre em aveia e cultivares, adentrarmos no mérito, somos a favor da Engenheiro-agrônomo, pesquisador, imediata deposição de políticos corrup- É uma sumidade, tos que estejam no poder abocanhando Trabalha pela humanidade. o dinheiro público. O Paraguai, que é um país pobre e pequeno, deu uma lição Diógenes Basegio é pra frente, ao Brasil e à América. Em questão de Gordinho, baixinho, sorridente, horas o Congresso Paraguaio depôs o Médico e Deputado coxilhense, Presidente Lugo e em questão de horas, Pra Assembleia vai contente, a Suprema Corte daquele país manteve Esse medica e cura muita gente, a decisão congressual, sem nenhum Já na política é diferente, trauma social. O escândalo do MEN- Come pelas bordas, muito competente. SALÃO, milhões de vezes mais grave Sueli Gehlen Frosi, professora, do que o problema “LUGO”, até hoje Fã do ECA, culta escritora, é acolhedora, está sem solução. A sociedade brasileira Senta na mesa, faz pose de Diretora não suporta mais os assaltantes do erário Faz atas, imprime, é detentora público. Que pena que a maior parte da De letra linda, clara, redentora, nossa sociedade fique passiva diante de Passa a limpo, coloca na impressora, tantos desmandos e roubalheiras que se Nós ficamos sabendo até da Tesoura..ria! perpetuam no Brasil. Estamos vendo os assaltantes do erário público sendo Marilise Lech, a primeira dama, absolvidos; e os que, eventualmente, Eminência parda, contundente, sofrerem alguma condenação, certa- Sempre descontraída e contente, mente, terão suas punibilidades extintas Organiza, agenda, sala e café quente, pela prescrição. Esta é a triste realidade As reuniões andam, ficam pra frente, que vivenciamos. Entretanto, que isto Prepara o caminho, olha de frente, não sirva de desânimo à nossa classe, Psicóloga, Ph.D., futura presidente. mas que as palavras sábias do estadista Mauro Gaglietti, professor em Direito, WINSTON CHURCHIL ecoem nos Da Imed e na Uri leva no peito, ouvidos dos advogados deste País: Defende os fracos, oprimidos, com defeito, “Nós iremos até o fim, combateremos Cientista político, perfeito, na França, combateremos nos mares Ô sujeito forte, decidido, foi feito, e oceanos, defenderemos nossa Ilha Pra Mestre, Reitor e até Prefeito! a qualquer custo, combateremos nos pontos de desembarque, combateremos Odilon Ayres, batalhou, é aposentado, nos campos e nas ruas, combateremos Não vive apertado, tão pouco folgado, nos morros, e jamais nos renderemos”. Entrou ontem na Academia, despachado, Que o entusiasmo discóbolo per- Cuida da tesouraria, quem diria... maneça em cada um de nós, para que Escreve do presente e do passado, possamos viver o entusiasmo da nossa É um dos sete, está comprovado, profissão e comandar o presente estrépi- Não precisou nem de salmoura, to, com pulso firme, para editarmos com Pois é afilhado do Xico Garcia, grandeza o futuro da advocacia! Cadeira 38 do Tenebro dos Santos Moura.

(Irineu Gehlen é advogado e membro da Academia (Odilon Garcez Ayres é escritor e membro da Academia Passo-Fundense de Letras.) Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 17 Crônica rebelde

HELENA ROTTA DE CAMARGO Até hoje, nem o conhecimento nem os lados... Vivemos o blefe do triunfo do a tecnologia conseguiram desvendar o bem... E presenciamos, reiteradamente, mistério. E nós ainda não encontramos a a extrema desvalia de quem dissemina ascemos nus. À hora da che- chave do cofre. Nem sequer alcançamos a paz... gada, é a fragilidade que nos o entendimento de como se processa a Foi com tal finalidade que se criou veste, terna e sutilmente. Nada metamorfose da existência, do tempo, o Universo, e a existência dos seus ouvimos,N nada enxergamos, à mercê da do desenlace final... frequentadores? A fim de nascerem, mais completa desvalia, dependência, Escrituras, doutrinas, dogmas... – Por crescerem e produzirem, num vale de submissão. que é tudo tão insondável, obscuro, lágrimas? Que culpa tem a humanida- Foi assim, desde a aurora do Universo. incompreensível? Luz e treva? Acerto de do malfeito dos seus progenitores E assim será até o fim dos tempos, se é e erro? Coragem e covardia? ancestrais? que isso realmente ocorrerá... DEUS: o enigma supremo. A morte, o E o enigma da vida e da morte, qual O vão entre o nascimento e a morte, caos absoluto... Ou a mais surpreendente a sua razão de ser tão intrincado? Não indecifrável, desconhecido, surpre- das respostas... seria de melhor alvitre que tudo ocorres- endente, revela-se o mais profundo Um denso nevoeiro circunda todos se às claras, com prévio conhecimento dos dogmas. Um rolo compressor de os dogmas, todas as crenças, todas as e sem surpresa? mistérios, crenças, expectativas, que só esperanças e expectativas. Deveras, a prevalência do mistério o tempo desenrola, e a seu bel-prazer. Quisera eu que a criação do cosmos e induz ao ceticismo e à própria deses- Se fomos ou não criados à semelhan- de seus frequentadores, bem como sua perança... ça do supremo Artífice, talvez um dia evolução, fossem um livro aberto, onde venhamos a saber. É o que disseram, pudéssemos ler o passado, o presente dizem e dirão os que, como nós, creem e o futuro, sem surpresas e véus, sem na vida eterna, na outra vida, aquela que empecilhos e nós! (Helena Rotta de Camargo é membro da Academia ninguém sabe, ninguém viu... Somos cercados de mistério por todos Passo-Fundense de Letras.)

18 Água da Fonte Novembro de 2012 A cidade que elas não conheceram

(foto: deoclides czamanski)

Passo Fundo, anos 1960

WELCI NASCIMENTO onde morou Manoel José das Neves, na a cidade das carretas e dos carreteiros, esquina das ruas Paissandu e Teixeira dos índios caingangues, das Festas do Soares? Ou a da casa de pedra erguida Divino, dos Burlamaques, que intro- m dia destes, Magda Nasci- à beira dos trilhos da viação-férrea, onde duziram os primeiros automóveis nas mento Argenta, minha filha, hoje é a Avenida 7 de Setembro? Seria ruas da cidade. Da calçada alta na Av. professora do Instituto Educa- a cidade do tempo em que a Rua 15 de Brasil, onde nasceu a Universidade. Da cional,U o legendário I.E., do não menos Novembro era chamada de Santa Clara, Praça Marechal Floriano, que um dia foi legendário Boqueirão, foi portadora de e a Teixeira Soares era chamada de Rua cercada e ajardinada, onde as pessoas um convite da direção do educandário das Piores? Nomes poéticos, não é mes- podiam andar pelos passeios, calçados para conversarmos com as crianças do mo? Será que os meninos e as meninas com pedras estilo “portuguesas”. Foi 4º ano do ensino fundamental, sobre do I.E. ficaram sabendo que a Av. Brasil a cidade do Clube Caixeiral, com seus aspectos da história da cidade de Passo foi chamada de Rua das Tropas e, mais delumbrantes bailes ao som de grandes Fundo. tarde, Rua do Comércio, iluminada com orquestras brasileiras e de típicas argen- O que dizer, como dizer, para aguçar lampiões de gás ? tinas; dos carnavais do Clube Visconde a atenção de crianças nas idades de 10 A cidade que as crianças não co- do Rio Branco, nas cercanias da rua Mo- e 11 anos? Não é fácil, mormente para nheceram era banhada por um rio de rom, quase Iá no Boqueirão; dos grandes quem já está beirando os 80 anos. São águas claras, límpidas, piscoso, onde jogos de futebol, entre o Gaúcho e o 14 mais de 40 crianças, barulhentas, pensei. as pessoas podiam banhar-se nos fins de de Julho. Também das pugnas políticas, Crianças são crianças: barulhentas. É semana. A cidade possuía um belo cartão entre maragatos e chimangos,pela con- assim mesmo. As de antigamente não postal do prédio da Intendência, situado quista do poder político. A cidade que eram bem assim. Mas, como fazê-las na Av. Brasil. Era a cidade fotografada as crianças de hoje não conheceram era prestar atenção no que eu pretendia pela Foto Moderna do Czamanski; do a da conquista, pela simpatia das bandas dizer? Pensei ,pensei... e veio a ideia: Ginásio Nossa Senhora da Conceição, marciais do I.E. e do Conceição, apre- Revestir-me do espírito jovem. De crian- situado à Rua Teixeira Soares, em sentando-se pelas ruas da cidade,nos ça, se possível. Aplicarei a “pedagogia frente ao Hospital São Vicente de Paulo. festejos da Semana da Pátria. Naquele da curiosidade”. Usarei os mais variados Era a cidade da estrada de ferro, eixo tempo os pais levavam os filhos aos recursos didáticos. “Eu ficarei na mi- do desenvolvimento do município e bailes e voltavam cedo para casa. Iam, nha”, no dizer dos jovens. Conduzindo da região, hoje retratada pelos muros também, com os filhos à igreja. Pediam o processo. da Gare da Gare da Viação Férrea, na a bênção aos pais e padrinhos. Que cidade é essa,que as crianças não rua General Canabarro, onde, ao redor, A cidade que as crianças de hoje não conheceram? Seria a das festas da Santa foram construídos modernos hotéis para conheceram quase não existe mais. Pelo Padroeira, Nossa Senhora da Conceição receber as pessoas,que vinham para que me foi possível perceber, parece Aparecida, ocasião em que as famílias negociar e conhecer a maior cidade do que elas conseguiram entender a minha se reuniam na Praça Tamandaré? Seria norte gaúcho. linguagem, isto é, os recursos didáticos a do sobrado dos padres palotinos, A cidade que as crianças não conhe- apresentados em sala de aula. localizado no “ponto zero” da cidade, ceram teve outros nomes: Igaí, Pinhais, segundo o historiador Paulo Monteiro Passo Fundo das Missões, de Nossa (Welci Nascimento é professor e membro da Academia (companheiro da Academia), lugar Senhora da Conceição Aparecida... Foi Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 19 40 anos de kart em Passo Fundo: os pioneiros deste esporte

(fotos: arquivo MD)

MEIRELLES DUARTE

omam-se quatro décadas desde as primeiras corridas de kart em S nossa cidade. Um fato digno de ser comemorado, lembrando que tudo iniciou em l972. E que Passo Fundo se constituiu em terra de grandes pilotos desta modalidade esportiva, despertan- do, na região, a prática deste esporte, sendo, portanto, a pioneira no Estado. No Brasil, o kart surgiu em l959, ori- ginário dos americanos, que estavam usando motores de cortar grama e de motoserras. No auge das provas auto- Paulo Trevisan o grande entusiasta do kartismo e do automobilismo, quando recebeu mobilísticas, em que Passo Fundo sem- uma medalha pelo seu perene trabalho nesta área, oferecida por Meirelles Duarte. pre foi destaque especial, competindo dentro e fora da cidade, fazendo das estradas e das ruas as pistas para grandes e memoráveis competições, veio a proi- bição nestas condições, pois só seriam permitidas em autódromos, com todas as condições de segurança. A última prova disputada pelas ruas das cidades, do interior e da capital, foi, exatamente em Passo Fundo, que ocorreu tendo a Avenida Presidente Vargas como pista principal. Os pioneiros reuniram-se e demarcaram onde iriam disputar, pe- las ruas previamente demarcadas. Em l971, ocorreu a primeira compra de dois chassis Mini, adquiridos por Moacir Cabeda e Hercules Borges. Vieram logo os demais compradores, que figuram no rol dos pioneiros, como Mauro Macha- do, Paulo Afonso Tevisan, João Carlos Klaus, Roberto Tasca, Sérgio e Hélio A 1ª prova de Kart, disputada nas ruas da cidade em l972, prestigiada por grande Ughini, Paulo Tagliari e outros mais. Os público. treinos, inicialmente, foram na quadra asfaltada da CESA, gentilmente cedida ges. As demais posições ficaram, pela Alexandre Tagliari. Para comemorar os por Alberto Tagliari, então seu presi- ordem, para Paulo Tagliari, Ison Iaioni 40 anos, o Automóvel Clube de Passo dente. Foi organizado o primeiro cam- e Paulo Trevisan, tendo completado a Fundo reuniu os pioneiros, ainda hoje peonato, em 1972, correndo por duplas nominata dos demais competidores, aqui residentes, numa série de provas em várias baterias. Pegos numa tarde todos pioneiros também, João Carlos com várias homenagens, dia 18 de no- chuvosa, os competidores não possuíam Klaus, Roberto Tasca, Mauro Macha- vembro de 2012, no Kartódromo, com pneus para pistas molhadas, mas mesmo do, Ivânio Bernardon, Ernani Rigon, a cerimônia presida por Paulo Trevisan. assim conseguiram superar as curvas Sérgio e Hélio Ughini, José Schoereder, das ruas General Netto e Independência. Antonio Carlos Oltramari, Nilton Ber- Na soma das quatro baterias, apontou, tão, Nereu Grazziotin, Edson Bertão, (Antonio Augusto Meirelles Duarte, jornalista e como o primeiro vencedor desta nova Guilherme Wolff, sendo os grandes advogado, é membro da Academia Passo-Fundense modalidade esportiva, Hercules Bor- mecânicos Carlos Ortiz, João Finardi e de Letras.)

20 Água da Fonte Novembro de 2012 Memórias sobre meu pai: Astrogildo de Azevedo

(foto: tamagnone) LUIZ JUAREZ NOGUEIRA DE AZEVEDO

eu pai, cujo nome era Astro- gildo Palmeiro de Azevedo, M por ele simplificado para Astrogildo de Azevedo, era de origem portuguesa pelos quatro costados. Em suas raízes mais remotas aparecem ou- tras etnias, como castelhanos, galegos, italianos, ingleses, normandos, flamen- gos, germânicos, francos e visigodos, celtas, escoceses, franceses, árabes e judeus, havendo otomanos e romanos, e até indígenas do Brasil.1 Para falar nos ascendentes mais recentes, em linha reta, eles eram por- tugueses do Reino, forçados a emigrar para o Rio Grande, no último quartel do século XVIII, devido à ocupação da Co- lônia do Sacramento pelos castelhanos. Eles vieram a unir-se por casamentos, geração após geração, a descendentes de ilhéus da Madeira, e a netas de tropeiros e bandeirantes paulistas e vicentinos, de outros sacramentinos e de lagunistas. É possível dizer que nele se concentravam todos os sangues das etnias que funda- ram o Rio Grande. Com efeito, entre seus avoengos mais recentes aparecem os povoadores mais importantes, que até o fim do século XVIII vieram se estabelecer neste Continente de São Pedro, como Francisco Pinto Bandeira, Jerônimo de Ornellas, Antônio de Sousa Fernando, João Carneiro da Fontoura, José Leite de Oliveira, João José Pal- meiro e os dois José de Azevedo e Souza (pai e filho), entre outros. O pai era tímido e introvertido, mas em família muito alegre e de convívio ameno, muito divertido. Sua presença inspirava alegria e paz. Extremamente preocupado com os filhos, especialmen- tosas. Nem sei se as permitiria. Embora ouvir do que falar. Como era de poucas te com a saúde e o bem-estar de cada um, tivéssemos sempre estado juntos, pois palavras, raramente externava seus com eles geralmente usava de discreta em verdade jamais me afastei de seu sentimentos, ou pouco exprimia sobre e afetuosa autoridade, que era o modo convívio cotidiano, gostaria de tê-lo suas vivências e anseios. A relação filial, pelo qual se fazia, permanentemente, feito falar mais, contar-me sobre sua respeitosa e quase distante, dificultava respeitar. vida, suas experiências, seus gostos, expansões. Na época, não era usual os Lamento não ter mantido com ele suas leituras e seus sonhos. Era difícil pais fazerem confidências aos filhos. O conversações mais demoradas e provei- colher dele uma opinião. Preferia mais que pude saber dele foi por narrações de Água da Fonte Novembro de 2012 21 (fotos: arquivo L.J.N. Azevedo) minha mãe e por relatos de terceiros. Um pouco por minha própria observação, superficial à época, porque, quando jovens, fechados em nosso círculo de experiências e emoções próprias da idade e em nossos interesses imediatos, não costumamos prestar muita atenção a nossos pais e a outras pessoas mais velhas, que encaramos como seres de outra dimensão. A mim legou, além do biotipo, a mesma tendência à introversão, o temperamento retraído e um incurá- vel ceticismo com relação aos seres humanos. Muito mais do que eu, era pouco dado a intimidades de família. Dos poucos amigos que teve, havia seus colegas tabeliães, os cunhados Honorino Malheiros e Rui Vergueiro, e o ajudante Jerônimo Marques Sobrinho. Ia quase todos os dias aos dois cartó- rios, onde trabalhavam seus fraternais amigos. Ali se demorava em conversas descontraídas com eles, tratando de assuntos de trabalho, invariavelmente entremeados por brincadeiras, chistes e histórias jocosas de que Honorino era exímio contador. Não havia, porém, entre ele, e esses seus únicos amigos, o hábito de visitas ou convívio familiar. Nossa casa era fre- quentada — antes que a ela começassem a vir os amigos dos filhos — unicamente pelos irmãos e irmãs de minha mãe e por seus inumeráveis sobrinhos. Não ia a festas ou a bailes. Os eventos de Astrogildo e Dalva sociedade a que comparecia limitavam- se a algum banquete de homenagem a para conhecidos achacadores, o que aos de Getúlio Vargas, quando estes juízes ou desembargadores, e a visitas me deixava muito irritado. Conquanto começaram a acontecer, depois do fim aos parentes de minha mãe. Não faltava fosse o oficial de protestos, com o an- do Estado Novo. Essa indiferença com a velórios e enterros de pessoas impor- tipático encargo de protestar as dívidas relação à vida de sociedade — com tantes da cidade. Só depois de casados dos devedores recalcitrantes, com estes exceção da participação que cheguei os filhos é que começou a receber e a mostrava uma extraordinária benevolên- a ter na política partidária e do gosto comparecer a festas, desfrutando com cia. Sempre que sabia das dificuldades por encontros com amigos que aprecio, visível agrado do convívio da família, de alguém, relutava e demorava o mais regados a bons vinhos e manjares bem que chegou a ver incrementada pela que podia em lavrar o protesto, que, elaborados — devo ter herdado dele. chegada dos primeiros netos. muito mais do que hoje, na época era Era um verdadeiro cavalheiro, de Depois da sesta, ia todos os dias aos um labéu infamante contra quem por requintada polidez e refinada educação. bancos e antes ao Café Elite, para o ele fosse atingido. Desconfio que, por Filho e neto de professores, se criara cafezinho a que não podia faltar. Nas vezes, chegava a pagar de seu bolso em Porto Alegre, educado nas melhores quartas e sábados, ia ao barbeiro, pois dívidas de algum devedor mais chegado escolas, aprendendo com os educado- não tinha o hábito de fazer a barba em ou necessitado. res mais conceituados do seu tempo. casa. Vestia-se formalmente, sempre De poucas diversões, e, ao contrário Convivera com seus parentes Azevedo de terno e gravata, e o chapéu, que só da maioria de seus contemporâneos, não e Palmeiro, com intelectuais como os abandonou nos últimos anos. Jamais costumava, ir a bares e clubes, a não irmãos Aquiles e Apeles Porto Alegre, o vi, mesmo no verão, sair de casa em ser ao Café Elite, ou frequentar mesas e com muitas famílias tradicionais e mangas de camisa. de jogo ou reuniões políticas. Nunca vi de fino trato da pequena e aristocrática Era extremamente benévolo e gene- ou soube que fosse a alguma partida de sociedade da capital. Mas, depois de vir roso com todos os tipos de necessitados. futebol, embora gostasse de todo tipo de viver em Passo Fundo, seus interesses Distribuía, às escondidas de minha mãe, loterias, rifas e apostas. Tinha interesse exclusivos passaram a ser o trabalho e todo tipo de auxílio e esmola, empres- e acompanhava a política da época, os cuidados com a família. tando dinheiro, que não cobrava, até chegando a ir a comícios, especialmente Apenas em seus últimos anos de vida

22 Água da Fonte Novembro de 2012 Astrogildo e Dalva retomou as viagens, principalmente para Jactava-se de sua elegância natural e de Medeiros, o eterno presidente (go- a capital, onde vivia a maioria de seus ir- agradável aparência, e das vitórias vernador) do estado, amado por muitos mãos e sobrinhos. Durante muitos anos, alcançadas pelos filhos. Sempre dizia e execrado por outros tantos. Embora o contato com sua mãe — que vivia na que queria ter sido advogado como seu este não fosse, na ocasião, o presidente capital e lá se conservou até morrer — e irmão Olmiro — o que não conseguiu nominal, pois cedera temporariamente com os irmãos Victor, Crespo, Mon- por haver perdido o pai muito cedo, o posto a Carlos Barbosa Gonçalves, senhor Dagoberto e Olmiro, era feito ficando com poucos recursos e saúde é certo que terá interferido na nomea- somente por cartas, escritas na velha precária. Para ser o que ele não foi, ção do avô. Este era destacado prócer máquina Continental, até hoje em meu formei-me em Direito, fui procurador maçônico, membro proeminente do poder. Jamais o vi escrever a seu irmão do Estado e realizei-me plenamente na Partido Republicano Rio-Grandense, predileto — o tio Armando —, embora profissão de advogado. O pai chegou tenente-coronel da Guarda Nacional e deste falasse constantemente, sonhasse a assistir meus primeiros êxitos no fortemente vinculado ao chefe político com ele e até distraidamente se dirigisse tribunal do júri, e tomou conhecimento da região de Cruz Alta, Gen. Firmino de aos filhos, como se falasse com o irmão. das vitórias que comecei a conquistar Paula, de quem era amigo e compadre. É certo que tenha tido boas leituras. no cível, nos primórdios de minha ex- Contava o pai que, nessa fazenda, Mantinha uma excelente biblioteca periência profissional. Depois de anos sendo de tenra idade, certa feita ele e de clássicos portugueses e brasileiros, de advocacia, para repetir em parte sua seu irmão Armando foram deixados além dos principais autores franceses, trajetória, amarrando as duas pontas da sozinhos para pernoitar na casa da em volumes bem encadernados, que minha vida, retomei a profissão que foi sede. Deu-se que, no cair da noite, conservei em parte. Tinha redação fácil a sua e que ele amava: a de oficial de foram surpreendidos pela presença de e espontânea. Evitava falar em público, Cartório de Registro. uma cobra coral enrolada no pé de uma mas uma vez me surpreendi com uma Ele nascera em Cruz Alta, no ano de mesa. Não havia como pedir socorro ao excelente intervenção sua, numa reunião 1900, filho de um agrimensor, professor, capataz, pois a noite chegava e a casa do de juízes com os tabeliães e escrivães do juiz distrital e fazendeiro local. Lá deve empregado ficava distante algumas de- Fórum, quando se expressou de modo ter feito seus primeiros estudos, até que zenas de metros. Permaneceram os dois articulado e preciso, em voz alta e firme, a família se transferiu para Porto Alegre, meninos a noite inteira na companhia da de modo categórico, com opinião origi- onde o avô fora nomeado tabelião. Isso cobra, insones e aterrorizados, temendo nal e bem definida, proporcionando-me, lá pelo ano de 1912, quando tinha apenas o seu ataque — que, felizmente, não além da surpresa, a emoção e o orgulho 12 anos incompletos. aconteceu — até que só de manhãzinha de ser seu filho. Como permitiam os usos da época, viesse o capataz socorrê-los e matar ou Dizia-se muito modesto, mas tinha em com o produto da venda da fazenda Boa afugentar o nojento réptil. alto conceito suas origens familiares — Esperança, localizada no Cadeado, pro- Conquanto tivesse a vida rural apenas que descobri depois serem da nobreza ximidades de Cruz Alta, o avô adquiriu em suas reminiscências da infância, re- mais autêntica e castiça, com antepas- o 1º Cartório de Notas de Porto Alegre. lembrava-a nitidamente. Falava sempre sados que vão até os reis de Portugal e Contou para tanto com o beneplácito do no petiço que tivera quando criança: o Castela e, por estes, ao Imperador Carlos chamado chefe unipessoal do Partido inesquecível Cascarrilha. Não apresen- Magno e a Guilherme, o Conquistador. Republicano Rio-Grandense, Borges tava dificuldade alguma em cavalgar.

Água da Fonte Novembro de 2012 23 Para surpresa minha, quando não havia Acredito que a mais duradoura foi a do lhia. Citava sempre o primeiro-ajudante transporte coletivo em Passo Fundo, e os centro, na Rua da Ladeira (hoje Gen. (substituto), um certo Tito Lívio da carros de praça (como eram chamados Câmara), onde tinham como moradia os Cunha Matos, que o iniciou na arte de os táxis, antigamente) eram escassos e altos do prédio, em cujo piso térreo sem- ser tabelião, atividade que, ao contrário caros, cheguei a vê-lo, algumas vezes, pre funcionou o cartório. Esse prédio eu do que muitos pensam, apaixona todos utilizar montarias para pequenos deslo- cheguei a conhecer. Ficava no local onde os que nela se envolvem. camentos entre o Boqueirão e o centro, foi erguido, mais recentemente, o edi- Dos grandes advogados da época — na própria cidade de Passo Fundo. fício ocupado, em vários andares, pelo lembrava sempre o Dr. Plínio Casado, De Cruz Alta guardava poucas lem- Cartório de Protestos. Era um sobrado gaúcho que chegou a ser Ministro da branças: uma delas foi a surra de chicote imponente, pintado em tonalidades de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, que seu pai dera no barbeiro local, por cinza. Nele meu pai terá passado o fim e o Dr. Adroaldo Mesquita da Costa, haver maltratado seu filho Crespo. Pa- de sua infância e toda a sua juventude, que foi Deputado Federal, também rece que este esbofeteara meu tio, então dividido entre o cartório, no térreo, e a Ministro da Justiça e consultor-geral adolescente. Tomando conhecimento do moradia, no piso superior. da República – Ele compilava minutas, fato, o velho Azevedo foi à barbearia A família viveu também em outras petições e arrazoados, que transcrevia armado de um relho, e justiçou o agres- casas, na Rua Duque de Caxias e na Rua num precioso caderno. Este foi trazido sor, desfechando-lhe dois ou três laçaços Arlindo, no Menino Deus, entre outras. para Passo Fundo, e nele o pai chegou a pelo lombo. Em seguida, sentou-se à Contava-se na família que minha avó se iniciar nas lides da advocacia, como cadeira do barbeiro e determinou que tinha verdadeira obsessão por mudanças provisionado, mas desistiu depois, quan- este lhe fizesse a barba. A ordem foi e troca de casas, mobiliário e decorações do isso se mostrou incompatível com a imediatamente cumprida pelo arrene- Sua última residência, onde faleceu, função de titular de cartório. gado fígaro, que se remordia de medo era uma elegante mansão, em estilo art Queixava-se sempre de que um seu e de ódio. nouveau, alugada às freiras carmelitas companheiro de pensão — que depois Fazia parte do repertório do pai a por meu tio, Monsenhor Dagoberto, na veio a advogar na praça — o qual tomara história da jornada da família para Por- Rua Lima e Silva, 203, onde estive em emprestado o precioso caderno e jamais to Alegre, em trem da Viação Férrea. seus últimos dias de vida. Ali viveu ela o devolvera a seu dono. Para poderem viajar, confortavelmente, alguns anos, cercada por filhos, netos, Permaneceu ele em Porto Alegre até tiveram que alugar um vagão inteiro, criadas e agregados, além de vizinhos 1927. O avô havia falecido em 1924, onde se alojou a prole numerosa do e muitos parentes, como gostava, até assumindo o cartório de notas, em seu avô, o casal e mais 11 filhos, além da transferir-se para sua última morada, no lugar, o tio Olmiro, o único com diploma indispensável criadagem. O primogênito cemitério da Santa Casa. em nível superior, pois se tornara advo- Victor Hugo, já casado, foi o único que Em vida de meu avô, também foi gado em 1920, graduando-se pela antiga permaneceu em Cruz Alta. Terá sido adquirido um sítio de lazer na Tristeza, Faculdade Livre de Direito. Preferindo a uma viagem memorável para um me- à época um bairro distante e praiano. advocacia, na qual veio a ser muito bem nino de pouco mais de 10 anos, saindo Para lá a numerosa família se deslocava sucedido, resolveu afastar-se do cargo da pacata Cruz Alta para ir viver na inteira, nos fins de semana e nas férias de de tabelião. O cartório poderia ter sido capital. Porto Alegre já era quase uma verão, viajando pelo famoso trenzinho mantido na família, mas nenhum dos metrópole, cujas dimensões e atrações da Tristeza. Com efeito, havia uma linha outros irmãos foi considerado suficien- fascinavam as mentes ingênuas de todos férrea que transportava os veranistas do temente apto para sucedê-lo. Dagoberto, os interioranos. centro da capital para o balneário. Em- já padre, instado a tanto, recusou-se pe- A chegada à pequena, mas orgulhosa barcavam todos na pequena estação, lo- remptoriamente, afirmando que preferia metrópole — que progressivamente se calizada na antiga Praça 15, hoje Largo se matar a deixar de ser sacerdote. Para o transformara de um vilarejo açoriano em Glênio Peres, desembarcando uma hora pai não assumir, alegaram que sua saúde um altivo burgo germânico, com suas depois na antiga estação da Tristeza. era precária e que teria pouco tempo de casas em enxaimel e os pretensiosos O pai estudou com os melhores pro- vida, previsão que não se confirmou, prédios de Rudolf Ahrons e outros ar- fessores da época e cursou preparató- pois faleceu com quase 76 anos. Por quitetos de proa — com mudança radical rios2 no antigo Ginásio Nossa Senhora isso, o cartório foi vendido ao bacharel de vida, fascinou o pequeno Astrogildo. do Rosário. Deveria ter-se encaminhado Zeferino Ribeiro que, por muitos anos, o Contava ele que foi lá que ele e os outros para a Faculdade de Direito, como fizera manteve na esquina das ruas da Ladeira meninos da família começaram a usar seu irmão Olmiro. e Gen. Andrade Neves. pijamas, invenção muito moderna para A exemplo de todos os seus irmãos, Assim, o pai teve que fazer as malas a época. Até então os varões utilizavam tão logo completou a idade de 21 anos, e vir para o interior. Primeiro para a somente camisolões para dormir. Tam- alcançando a maioridade, foi admitido pequena cidade de Erechim, onde, por bém foi na capital que conheceram os na função de ajudante no cartório de no- algum tempo, permaneceu como aju- bondes, lentos e ruidosos, e começaram tas de seu pai. Ali aprendeu o ofício de dante do notário José Maria de Amorim, a utilizá-los para ir de um bairro para cartorário, no qual era exímio, e foi sua de quem continuou amigo ao longo de outro, naqueles tempos em que Porto atividade exclusiva durante toda a vida. toda a vida. Alegre, com sua prosápia de cidade Essa sua experiência inicial ele a re- Em Passo Fundo, havia-se operado grande, não conseguia ainda disfarçar lembrava com saudade, falando das figu- uma grande transformação na vida polí- bem a rusticidade e a modéstia de suas ras pitorescas dos clientes, dos colegas e tica e social. Depois de anos de predomí- origens açorianas. dos famosos advogados da época, cujas nio da família Annes, o médico Nicolau Lá a família habitou casas sucessivas. lições e exemplos cuidadosamente reco- de Araújo Vergueiro, primo dos Annes,

24 Água da Fonte Novembro de 2012 mas seu impenitente adversário, assu- mira a prefeitura do grande município e, ao mesmo tempo, passara a chefiar, na região, o poderoso Partido Republicano Rio-Grandense. O PRR era uma espécie de partido único, confundindo-se com o próprio Estado e aparelhando-o com seus correligionários. Sem ser filiado ao partido, ninguém poderia ter acesso a nenhum cargo político ou função pú- blica. Nenhuma semelhança com o que está a acontecer atualmente, com um partido político muito importante. Si- multaneamente, com a morte do tabelião Joaquim Pedro Daudt, ficaram vagos os cartórios que aquele acumulava em Passo Fundo (imóveis, registro especial e notariado). Vergueiro não teve dúvida: Obteve a imediata nomeação de seu filho Rui — que era formado em farmácia e farmacêutico — para o cargo de notário. Astrogildo de Azevedo Em seguida, tendo que contemplar, do mesmo modo, seu futuro genro, obteve uma soma importante para a época. mudando-se, antes que eu nascesse, o desdobramento do cartório em dois. Assim, foi nomeado por Getúlio Vargas, para a casa da Avenida Brasil, 483, onde Assim foi criado o segundo cartório de então presidente (governador) do Esta- viemos à luz eu e os outros irmãos, ex- notas, com o qual foi aquinhoado Ho- do, e passou a ser o titular desse cartório, ceto o último, Astrogildo, já nascido na norino Malheiros, que viera do Rio de de pouco movimento até a década de casa nº. 731 da mesma avenida. Janeiro para Passo Fundo, como atleta 1960, mas que assegurou, durante todo Assim se passaram os anos. Vieram os contratado do Gaúcho, à época o nosso esse tempo, a manutenção da família e a filhos, em número de seis: primeiro um mais importante clube de futebol. educação dos filhos que vieram. grupo de quatro (sendo eu o mais velho), Havia um problema, entretanto. Os Pouco sei de sua vida durante o de- nascidos num período de cinco anos. dois flamantes notários não entendiam cênio seguinte. Em 1930, quis alistar- Depois os dois temporões, Beatriz e patavina do serviço que tinham que se, para integrar as forças da Aliança Astrogildo. Eram anos difíceis: a guerra, desempenhar: um era farmacêutico Liberal que se deslocaram para São dificultando os negócios e impedindo o e o outro apenas jogador de futebol. Paulo, a fim de enfrentar o governo de desenvolvimento; a ditadura do Estado Isso foi resolvido com a opção de Washington Luís, no que foi impedido Novo, tolhendo todas as liberdades. aproveitar Astrogildo, que tinha grande pelo Dr. Vergueiro, que não aceitou Mas, graças ao denodo e cuidados do experiência na área, para ensinar-lhes a deixasse ele acéfalo o cartório. Pouco pai, a seu senso de organização e estrita profissão, assessorá-los e fazer as suas tempo depois, contraiu osteomielite na honestidade, a pequena arrecadação do vezes, quando fosse preciso. Assim, o perna esquerda, o que o obrigou a longo cartório permitiu-nos sobreviver mo- pai, vindo para Passo Fundo, depois de e doloroso tratamento que deixam se- destamente, mas com muita dignidade trabalhar algum tempo na intendência quelas, e o obrigaram a manquejar por e orgulho, até chegarmos onde estamos. (prefeitura), sob as ordens de Vergueiro, todo o resto de sua vida. tornou-se ajudante de Rui Vergueiro e, Em 1937, noivou com minha mãe, logo depois, de Honorino Malheiros. Dalva, e em 7 de maio de 1938, deu-se Nisso se desempenhava magistralmente, o casamento. Este foi na casa do irmão NOTAS pois essa era realmente a sua vocação de minha mãe, o tenente do Exército 1 - Consiste em equívoco muito frequente supor profissional. Durante dois anos ele, Alceu Nogueira de Andrade, um bonito que nós, brasileiros de cepas ibéricas, descendemos chalé de madeira, ao lado da velha casa exclusivamente de portugueses e espanhóis. Se formos conforme os humores e vaivens dos dois investigar cuidadosamente, verificaremos que, nas jovens tabeliães, trabalhava ora com um, dos Nogueiras, onde acabavam a cidade próprias linhagens ibéricas, aparecem, frequentemente, ora com outro, mas sempre em harmonia e o Boqueirão. A mãe conta detalhes açorianos e madeirenses, muitos deles de origem germânica, oriundos dos Países Baixos (hoje Holanda com os dois, que foram seus amigos de do casamento, que foi na residência, e Bélgica), alem de italianos; e, mais remotamente, toda a vida. como se usava na época. Quem presidiu provindos outras etnias, como acontece em minha família: germanos-visigodos, bretões, francos, celtas Sucedeu que, em 1929, Honorino a cerimônia civil foi o juiz municipal, da Escócia, italianos, árabes e judeus, e até mesmo achou justo que o pai tivesse o seu pró- Simplício Inácio Jacques, e serviram romanos, armênios e gregos bizantinos. de testemunhas, além do tio Alceu e 2 – Chamavam-se “preparatórios” os cursos que prio cartório. A solução foi vender-lhe antecediam o ingresso nas faculdades. Os preparatórios uma parte do 2º Tabelionato, que acumu- outros, o advogado Aquelino Translatti eram para a área jurídica, para a área da engenharia lava os serviços de protestos e registros e D. Clotilde Sandri, ainda solteira, que e para a área médica: pré-jurídico, pré-técnico e pré- médico. O pai desejava, mas não conseguiu, cursar especiais. Como isso era possível à épo- veio a ser mãe de um de meus grandes os preparatórios, a fim de ingressar na Faculdade de ca, o pai, que tinha algumas economias, amigos — Paulo Roberto Pires. Foram Direito. pagou a Malheiros, pelo Cartório, quatro viver numa pequena casa, de porta e (Luiz Juarez Nogueira de Azevedo é Mestre em Direito contos de réis (R$ 4:000$000), que era janela, na Avenida Brasil, no paredão, e membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 25 Portugueses em Passo Fundo

(fotos: arquivo o. g. ayres) ODILON GARCEZ AYRES

uem não lembra do Bar dos Portugueses, ao lado do Altar Q da Pátria, na Av. Brasil? Diz a lenda, e é verdade, que o bar dos falecidos Walter e Bernardino Bento, era o Consulado dos Portugueses e dos Açorianos, pois era o único que tinha telefone para falar com os patrícios do mundo inteiro, e o endereço e a certeza de que as cartas chegariam às mãos dos destinatários. Henrique herdou o negócio de seu irmão, e também continuou a cumprir o mesmo ritual de bem servir, e de ser uma nobre referência para o povo de além-mar. O tempo passou, e a última vez que vi o Henrique foi em Porto Alegre. E eu pensava que lá ele fora morar, mas Familiares de Walter, Henrique e Bernardino Bento não, o seu barbeiro Paulo Rezende, me contou que ela tivera um AVC e morava verduras, numa rua comercial, onde, por regatear no preço, alegando que a ave ao lado do Altar da Pátria, no prédio causa da concorrência, desentendeu-se era aleijada, pois só ele via uma perna, rosado. de nº 566 (ex 531) da Av. Gal. com um patrício, e foram às vias de fato, ao que o Português respondeu, com seu Neto. E eu, hoje, 13 de fevereiro de levando no ventre uma facada de seu sotaque: 2012, fui visitá-lo, com a intenção de oponente, vindo horas depois a falecer, Oh!Raios! tirar uma dúvida e adquirir uma certeza sem assistência, não sem acertar um tiro “Dotoire Daniel, o Sinhoire queire quanto a uma determinada pessoa que em seu adversário, pois que era exímio o ferreiro para cantaire ou para jogaire fora sua inquilina. atirador, matava andorinha no voo, com footebaal?” À porta, me recebeu a sua esposa, que sua pistola automática. E assim foram se formando a vida e as me levou à sua presença e de pronto me Com essa desgraça, sua mãe, Celes- amizades em Passo Fundo, pois quando reconheceu, deu-me luzes em minha tina Alves Bento, e seus filhos, Walter já estavam estabelecidos, em frente ao dúvida, e entabulamos uma hora de (já falecido) e Henrique, juntamente Hotel Avenida, do seu amigo Eduardo agradável reminiscência de sua vida. com o padrasto Bernardino Bento, Barreiro, tal era a camaradagem entre os Contou-me que seu pai, Henrique tomaram o rumo de Passo Fundo, pois munícipes, que Bernardino emprestou Almeida, chegou ao Rio de Janeiro, aqui já estava residindo sua avó Ange- 50 sacos de cimento para o seu Aparí- na depressão de 1929, e, como era lina Alves. E eles foram morar na Rua cio Lângaro, a fim de concluir o antigo imigrante, de profissão peixeiro, sem Independência, esquina com Capitão edifício da Casa Yankee, do finado Raul profissão definida e analfabeto, foi Eleutério, no prédio que ainda existe Lângaro. mandado pela aduana, para a Ilha de hoje, de propriedade de João Salton, Atingido por um acidente vascular Viana, um estaleiro de construção de sogro do Dr. Daniel Dipp, suscitando, cerebral, há mais de seis anos, João navios, onde o único trabalho disponí- a esse tempo, um fato que virou história Henrique, nascido a 15-04-1929, na vel era descarregar carvão dos barcos divertida, naqueles tempos: cidade do Rio de Janeiro, está com 83 que vinham da Inglaterra, trabalho Bernardino Bento, representante dos anos de idade e, embora numa cadeira, miserável, sujo e poeirento, que o in- sorvetes Kibon, em seu estabelecimento ainda se movimento, pela casa, está felicitava até para dormir. Quando isso comercial, como atrativo para os visi- lucido, fala com clareza e com orgu- contava, chamava aquilo de inferno tantes, tinha na gaiola, uma Araponga, lho da sua esposa, a passo-fundense e chorava de arrependimento, por ter popularmente conhecida por “Ferrei- Dulce Maria Bigolin Almeida, e de vindo embora da sua Vizeu, no querido ro”. E o Dr. Daniel Dipp fez proposta seus filhos: Carlos Henrique Almei- Portugal. de compra da dita ave. Para que todos da, bancário, atuando no Banrisul; Mais tarde, já quando o carioca João saibam, ela tem o hábito dos pernaltas, Eduardo Almeida, Bel. em Ciência da Henrique tinha quatro anos, colocou de dormir encimados numa perna só, Computação, e a filha Dra. Lilian de uma tenda, uma quitanda de frutas e e o turco, que era bom turco, resolveu Almeida, farmacêutica - bioquímica e

26 Água da Fonte Novembro de 2012 Escola de Educação Infantil “Saber Fazer”

SUELI GEHLEN FROSI tério, pois observar a germinação e o crescimento de vegetais é parte fundamental da prática escolar. ui convidada a conhecer a A recepção das professoras foi Escola de Educação Infantil algo calmo, com explicações firmes F “Saber Fazer”, junto com sobre a filosofia, o plano pedagógi- as confreiras da Academia Passo- co, os resultados animadores, e com Fundense de Letras, Elisabeth Fer- a condução da nossa equipe pelos reira e Santina Dal Paz, convite que diversos ambientes, denotando um aceitei feliz, por conhecer as ideias orgulho que não é encontrado com tecnóloga em alimentos, pela UFSM. que a criaram. facilidade. O berçário, naquele mo- Na segunda visita, rememorou sobre Chegamos ao final da tarde, mento, era palco de bebês dormindo os comícios no altar da Pátria, constru- quando normalmente as crianças placidamente, enquanto outros eram ído na gestão do Prefeito Victor Graeff, estão cansadas e irritadas e, com atendidos com fala mansa e alegria. por onde passaram figuras expressivas surpresa, encontramos, primeiro, Nossa despedida foi anunciada, da República, como Getúlio Vargas, um ambiente bucólico, verde, tran- o que motivou alguns abraços es- Adhemar de Barros, Jango Goulart e qüilo. Depois fomos recebidas por pontâneos, alguns beijos e o convite outros do nosso município, postulantes professoras disponíveis e dispostas sincero de que voltássemos sempre, a vereador e Prefeito. a falar, com entusiasmo, sobre seu o que nos comoveu sobremaneira. Henrique ainda curte música, poesia, trabalho. Por fim conhecermos as As escolinhas de Educação In- literatura, televisão e jogos de tênis, e crianças, que nos cumprimentaram fantil, no geral, carecem de uma contou-me que trinta anos após sua vin- afetuosamente. linha de ação, ficando ao sabor dos da para Passo Fundo, juntamente com O mais marcante, na visita, foi governos que se sucedem, e mudam seus familiares, fizeram a viagem de a constatação de que se trata de tudo a cada nova administração. Há volta a Portugal, onde visitaram Vizeu, uma escola com uma linha filosó- escolas que, de tão desprovidas de Porto e a capital, bem como a Espanha. fica clara, com um planejamento objetivos claros, contam com pro- Dos açoreanos de Passo Fundo, des- e objetivos afixados na parede e fessores que impõem suas próprias tacou a amizade e a camaradagem, com assimilados por quem trabalha nela, ideias, sem a supervisão necessária Manoel e João Henrique Bettencourt e pressuposto, creio, para a contrata- dos órgãos profissionais, para gerir seus familiares, bem como os ilustres ção das professoras. com propriedade uma instituição, causídicos, Drs. Alberi Falkemback O encantamento de que fomos que abriga o que temos de mais Ribeiro e Luiz Juarez Nogueira de tomadas, ao visitar a “Saber Fa- precioso, que são as nossas crianças. Azevedo. zer”, deve-se ao fato de que lá a Encontrar uma escola de Educa- A dúvida que me levou ao Henrique, afeição, o carinho, o abraço, são os ção Infantil tão diferente encantou- ocorreu porque, em certa ocasião, ali no ingredientes principais do cardápio nos de tal forma, que considera- Altar da Pátria, Raul de Lima Lângaro pedagógico. Outro fator inusitado mos importante registrar nossas apontou para duas senhoras, já idosas, de foi constatar que as florzinhas que impressões. cabelos brancos, afirmando que aquela rodeiam o prédio não são arranca- mais bonita e jovial fora namorada ou das, que o contato com a natureza (Sueli Gehlen Frosi é membro da Academia Passo- noiva do Presidente Vargas. é algo natural, planejado com cri- Fundense de Letras.) De fato, confirmou o entrevistado, (foto: arquivo apl) que na Av. Brasil, no segundo andar, moravam suas inquilinas, as professo- ras, Maria Cunha, Martha Helm, Lucille Fragoso Albuquerque e Mathilde Maze- ron. Esta última, muito bonita e distinta, verdadeiramente fora “noiva” do nosso ex-Presidente Getúlio Dornelles Vargas, e só desfez o noivado em razão da vida política do pretendente.

(Odilon Garcez Ayres é escritor e membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 27 Desaparece o velho Gaúcho para renascer a nova agremiação de mesmo nome

(fotos: arquivo MD) MEIRELLES DUARTE

mundo esportivo de Pas- so Fundo viveu momen- O tos de grandes emoções, quando, no dia 28 de novembro de 2012, às 14 horas, no edifício sede do Ministério Público, após longa exposição, confirmou-se a venda de tudo o que restou do O grande momento da efetivação da venda, com vendedores, compradores e imprensa riquíssimo patrimônio do Sport presente, bem como o nosso judiciário. Club Gaúcho para a Sociedade Hospitalar São Vicente de Paulo. O momento foi tenso, muito cho- ro, muitas lamentações, tendo por compensação o término de uma longa e complexa ação judicial de credores da agremiação esportiva e a luta desta para, não só cumprir com seus débitos, mas esperar que algo lhe restasse e assim poder pensar em novos rumos, melho- res dias e chegar ao centenário que está bem próximo de ser completado, em 2018. Apresen- tados pelo representante jurídico dos compradores, doutor Marco Antonio de Mattos, formaram a mesa principal o promotor, Mário Guadagnin, que fez um amplo relato do desenrolar do processo A atual equipe do Gaúcho, vencedora do classificatório para 2013. e sua conclusão, qualificando como um final feliz para todos. Cumprimentou os dirigentes da agremiação, bem como a direção do Hospital, que veio dar fim a longa e complexa pugna judicial. Falou após, o advogado Cássio Moreira, que se fazia acompanhar de seu colega e membro debanca, Um dos fundadores José Alexandre dos Santos, ambos do Gaúcho, advogados do autor da ação, Ale- Antonio Junqueria xandre Paz Dikeh, hoje com 24 da Rocha, anos de idade. Disse Dr. Cássio, entrevistado por que todos saíram da pugna satis- Meirelles Duarte, feitos, ainda que sabedores que em l954. os valores poderiam ser maiores,

28 Água da Fonte Novembro de 2012 O judeu que se converteu ao catolicismo e se tornou arcebispo na França

(foto: arquivo MD) MEIRELLES DUARTE

xistem países, onde determi- nadas funções só poderão ser E exercidas por filhos natos ou naturalizados. Temos o exemplo dos A denominação de “Wolmar Salton”, que Estados Unidos da América, e do perdurou por mais de 60 anos com o próprio Brasil, que determina que clube alviverde. ninguém, que não seja cidadão nato, pode se tornar presidente. Na França mas insistir nisso, provocaria um tér- é bem diferente. Tem-se um caso mino sem fim de recursos e que nunca raro que empolgou o mundo, pois saberíamos quando se chegaria a uma lá qualquer cidadão pode crescer, conclusão final. Muito emocionado, estudar e tornar-se presidente, ou até O Papa João Paulo II cumprimenta o falou o presidente do Gaúcho, Gilmar mesmo arcebispo de Paris. Um filho arcebispo de Paris, Jean-Marie Lustinger, Rosso, que teve a voz embargada em de judeus poloneses, que emigraram quando de sua nomeação como a várias oportunidades, afirmando que da para a França, arcebispo Jean Marie maior autoridade católica da França. parte do Gaúcho estava tudo resolvido Lustiger, falecido há 5 anos, deixou o da melhor forma possível, prometendo país órfão de uma figura pública, cuja identidade. Quando nomeado pelo o renascer da agremiação para um ausência pesa até hoje, numa nação Papa João Paulo II, como arcebispo futuro promissor, agradecendo a todos cada vez mais em dúvida acerca dos de Paris, Lustiger declarou: “Sempre que contribuíram para se chegar ao seus valores políticos e morais. A me considerei judeu, mesmo que os denominador comum, sem ter deixado biografia do arcebispo revela que ele rabinos não concordem comigo. Nasci lacunas para lamentações ou protestos. nasceu na Polônia, de pais judeus, com judeu e judeu vou continuar”. De fato, Finalmente, falou o Presidente do o nome originário de Aron Lustiger.No durante o seu funeral, na catedral de Hospital comprador da área, Sr. Décio final dos anos l940, durante o êxodo Notre-Dame, um dos seus parentes Ramos de Lima, que disse do empenho maciço dos franceses , mulheres e recitou a oração judia de funerais, daquela modelar entidade de saúde em crianças começaram a avançar para o o Kadish, enquanto os líderes da co- evitar que caísse o histórico patrimônio sul, fugindo dos tanques nazistas. Os munidade judaica da França, incluindo do clube em mãos que não fossem de pais de Aron enviaram o filho com o rabimop-chefe, oraram ao lado do gente nossa, para aqui continuar repre- 13 anos a Orleans, aos cuidados de caixão. Seguiram-se, após os atos de sentando suas origens. Décio Ramos uma família de não-judeus. Ao pisar encomendação, uma Missa de corpo de Lima afirmou que o Hospital São o interior de uma Catedral, Aron presente. Em seus escritos, Lustiger Vicente de Paulo, uma referência Na- passou por uma epifania, experiência afirmava que sua própria vida marcou cional, será ainda mais poderoso e terá que, apesar da resistência dos pais, o o retorno, ao caminho não tomado melhores condições para oferecerá a levou a se converter ao catolicismo. dois milênios atrás. Conta-se, assim, todos que procurarem assistência mé- Durante a ocupação nazista, Aron foi este momento vivido pelo mundo dia, como, aliás, já vem acontecendo batizado e trocou o nome Aron por católico e judeu que, mesmo tendo, com brasileiros de vários estados. No Jean-Marie.Por meio século, assu- em suas origens, séculos e séculos de dia 5 de dezembro de 2012, foi feita miu o peso trágico da história de um separação, demonstram que é possível a visitação ao local, com as presenças homem, que tinha sido caçado pela uma transformação, quando, com um da direção do clube e do Hospital e os SS alemã, por ser judeu. Sua luta, já exemplo tão marcante como este, as órgãos de imprensa da cidade. No dia convertido , começou no seminário, mãos se entrelaçam e ambos profes- anterior, na câmara de vereadores foi depois como sacerdote, até chegar a sam que Deus é único e pai de toda a demarcado e noticiado o local do novo Arcebispo de Paris. O rabino-chefe humanidade. e futuro estádio do clube alviverde. de Paris, René Samuel Sirat, chegou a declarar: “Não se pode ser cristão e (Antonio Augusto Meirelles Duarte é jornalista, judeu ao mesmo tempo”. O Arcebispo, advogado e membro da Academia Passo-Fundense (Antonio Augusto Meirelles Duarte, jornalista e porém, nunca renunciou a sua dupla de Letras.) advogado, é membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 29 O patrono Estanislau de Barros Miranda

(fotos: arquivo o. g. ayres)

A Igreja de São Sebastião

ODILON GARCEZ AYRES de junho de 1899, e na ocasião com 93 Sinhô e seus tios avós, acompanhados de idade, filha de Estanislau de Barros de mais de oitenta pessoas. Miranda e de Eufrasina Oliveira Car- A histórica Igreja de São Sebastião, stanislau de Barros Miranda, o doso, perfeitamente lúcida e prestativa, nos disse ela, foi gestada por seu pai, em Lalau, era casado com sua pri- em fluente conversa, dentre muitas sua casa, oportunidade em que foi feito E ma, Eufrasina Cardoso (Sinhá), outras coisas, nos contou que o seu avô um documento, assinado por todos os irmã do Cel. Amâncio de Oliveira Car- Francisco mandou o Estanislau (Lalau), presentes, solicitando ao Bispo de Santa doso, havendo, desse casamento, duas estudar em Rio Pardo, num colégio em Maria que designasse um padre, para filhas, sendo uma, Heponina Cardoso regime de internato; e que seu pai era dirigir os trabalhos da construção de Miranda, casada com Aristóteles Lima, um grande carreirista, cantor, dançador, uma igreja, ou autorizasse uma comissão tendo dedicado sua vida às lides cam- tocador de violão, e que sabia fazer de moradores para tal fim, que havia peiras e ao comércio herdado de seu pai, todos os aperos, além de ser um exímio necessidade premente de ter uma igre- continuando com a compra e venda de campeiro. ja, pois por ali já existia um cemitério, gado, o armazém de campanha, o pouso Dona Idolina nos relata que sua avó que se originou com o sepultamento de de tropas e tropeiros, um soque de erva materna, Balbina de Oliveira Cardoso, dez mortos no Combate do Guamirim, e um engenho de madeiras, situado no casou com doze anos, e que ela só co- em 1893. No mesmo local, iniciaram atual Desvio Meneghetti. meçou a ir à igreja aos treze. E, quando os sepultamentos da vizinhança, o que Na entrevista que realizamos, numa tinha procissão, dona Zica ia ao lado da apressou a ida de um próprio, levando tarde de temporal, dia 27 de março de bandeira, com uma prima e mais a filha em mãos o documento ao bispado de 1992, a veneranda senhora, Idolina do sinhô. Juntos estavam o Lalau Mi- Santa Maria. Oliveira Miranda (viúva do falecido randa, Maria, Prudência, Isabel, Antônio Autorizado, o padroeiro escolhido Alfredo Ceceli Capuani), nascida em 25 Lima, Francisco Salinet, João Lima, para a novel igreja, foi São Sebastião,

30 Água da Fonte Novembro de 2012 Sede própria do CTG Lalau Miranda Mato Castelhano. Era republicano atu- ante, e foi proprietário da Invernada da Arvinha, também no 3º Distrito. Praticante do tradicionalismo, como já disse, envolvido nas coisas do rincão de São Sebastião, deixou, inclusive, registros sobre o folclore, o compor- tamento e as atitudes do povo gaúcho, motivos pelos quais foi lembrado pela população passo-fundense e regio- nal, para a edificação do Centro de Tradições Gaúchas “Lalau Miranda”, fundado em 24 de março de 1952, verdadeiro templo da prática da cultura gaúcha, entidade pioneira no Planalto, que mantém acesa a chama do nosso tradicionalismo e a memória desse ilustre gaúcho serrano.

NOTAS 1 - Parte desta pesquisa foi publicada na Revista Somando, da Fundação Planalto, no mês de maio de 2012. Dilerman Zanchet (E) e sobrinhos netos de Estanislau de Barros Miranda 2-Fontes pesquisadas: Ecker, Adari Francisco – A Trilha dos Pioneiros – Passo Fundo – G. Berthier – 2007. porque a reunião inicial para a cons- do, que aparece numa foto histórica, Garcez Ayres, Odilon – Cerrito, do Ouro à Coxilha – Projeto Passo Fundo –2012. trução, fora realizada no dia do Santo, trajado a gaúcho, e montado no seu Sartori, Luzardo – Coxilha Conta a sua História – Gráfica 20 de janeiro. Construída no lado norte parelheiro, em frente à primitiva Casa Passo Fundo –1996. 3- O terreno onde se encontra hoje a atual Igreja de do riacho, era muito frequentada pelos Branca, no dia do seu 45° aniversário, São Sebastião,em alvenaria, pois a antiga, que era de devotos. Outrossim, tornaram-se lenda nasceu em 24 de novembro de 1853 e madeira e com campanário, foi demolida. Igualmente as suas festas e cavalhadas, até que um faleceu em 9 de janeiro de 1916. Seu o antigo salão de festas e bailes foi substituído por outro de madeira, e estáo aos cuidados dos filhos incêndio a consumiu em 1923, sendo mausoléu encontra-se no Cemitério Mu- e netos da família Albuquerque. O sino deve existir reerguida pelos devotos, no lado sul do nicipal da Vila Vera Cruz, de Passo Fun- desde a fundação, pois lá está a 75 anos, conforme relato do Odilon e do Dr. Ariovaldo Schleder Kurtz de dito riacho, que passou a se denominar do. Registramos ainda que foi vereador, Albuquerque. Seus pais, Antônio e Noely, nos anos de também de São Sebastião. Até hoje neste município, na legislatura de 1877 1950, ao tempo do Bispo Dom Claúdio Colling, (que exigiu que os lucros das festas fossem recolhidos), existem o cemitério e a igreja, graças a a 1881, e 3° Suplente de Juiz de Paz, resolveram fazer doação do terreno à Mitra Diocesana Estanislau de Barros Miranda. no 3º Distrito de Coxilha. No Exército, de Passo Fundo. O patrono do Centro de Tradições galgou as divisas de Alferes. Adquiriu (Odilon Garcez Ayres é escritor e membro da Academia Gaúchas Lalau Miranda, de Passo Fun- terras de Lúcio Martins de Miranda, no Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 31 El flaco Flamini

MARCO ANTONIO DAMIAN mente penteados para trás, firmados pela compressor do Internacional, já que o velha pomada para cabelos (glostora), Grêmio não conseguia. O Cruzeiro era e vestido com ternos bem cortados. forte e poderoso. nquanto a Europa vivia época Foi um craque habilidoso, inteligente, Hirschl trouxe consigo Flamini e de terror e aflição pela segunda de raciocínio rápido, passes perfeitos, Lombardini, este ponteiro-esquerdo. E guerra mundial, a América do chute forte com o pé esquerdo, jogador Alejandro José Lombardini também Sul era o paraíso do futebol. Brasil, clássico. Jogou em clubes hoje extintos era um bom jogador, mas nada compa- Argentina e Uruguai, especialmente, e quase desconhecidos na Argentina, rado à Flamini. O ataque Estrelado era reinavam como a meca futebolística. como o Tiro Federal e Remédio de arrasador. Contava com Louzada, um Porém, a grande competição Capitão do Exército vindo de (foto: arquivo m. a. damian) fora suspensa. Não houve Pelotas, Valdomiro Saladuro, Copa do Mundo na década de fabuloso meia-direita, Hor- 1940. A última, em 1938, na têncio Souza, centroavante França, e a seguinte, apenas de alta técnica, mas irascível, em 1950, no Brasil. temperamental, que jogou na O mundo se privou de assis- seleção brasileira, Flamini e tir, conhecer e se maravilhar Lombardini. O clube realizou com o futebol elegante de He- uma campanha magnífica, mas leno de Freitas, o malabarismo ficou com o vice-campeonato, de Tesourinha e seus dribles um mísero pontinho atrás do mágicos, a eficiência e lide- Internacional. rança de Jayme de Almeida, No ano seguinte, Flamini foi os gols rebuscados de Silvio jogar no Lazio de Roma. Lá Pirillo e outros brasileiros brilhou intensamente. Coinci- famosos. dentemente, atuou ao lado de Os uruguaios General Via- outro Lombardini (Umberto na, Attilio Garcia e Bibiano Lombardini), estrela da sele- Zapirain, por exemplo, foram ção italiana. Benito Mussolini craques incontestáveis, ves- “recomendou” a Flamini a se tiram a camisa celeste, mas naturalizar italiano para defen- não puderam disputar copa der a Azurra. O craque chegou do mundo, pois ela não foi a atuar em uma partida pela realizada. seleção, contra a Alemanha, Entretanto, quem mais so- mas a Itália não era seu país, e freu foi a Argentina. Teve se- Flamini teve a ousadia de dizer guramente sua melhor geração “não” ao Duce. Jogou ainda de craques, em todos os tem- pouco tempo nas pequenas pos, como o goleiro Cláudio Terracina e Reggiana e fugiu Vacca, o “gran capitain” Angel da Itália, pois seu passaporte Peruca, craque espetacular, os fora confiscado e a ameaça de atacantes “Tucho” Mendez, sua prisão era iminente. Angel “El Feo” Labruna, Félix Voltou à América para de- Lostou, um ponteiro-esquerda como Escalada, além do Rosário de Santa Fé fender o Penharol de Montevidéu e levar poucos, Adolfo Pedernera e Manuel e Racing Club. o clube, novamente dirigido por Eme- Moreno, que brilharam no Real Madri, Em 1945, o Cruzeiro de Porto Alegre rich Hirschl, a ser campeão uruguaio. e Antonio Sastre, consagrado no São contratou o técnico húngaro Emerich Flamini era espetacular e ficou marcado Paulo. Foram esses alguns dos nomes Hirschl, que trabalhava na Argentina para sempre na história do futebol. A que não puderam saborear a competição e no Uruguai, pois saíra de seu país história de Enrique Domingo Flamini que tem os olhos do mundo. quando canhões e aviões destruíam o está resgatada no livro “Enciclopédia Outro craque argentino consagrado que imaginavam ser inimigo, durante do Futebol Gaúcho”, volume 1, Ídolos mundialmente, nessa década de 1940, a guerra. Hirschl mostrou todo o seu e Craques. foi Enrique Domingo Flamini, chamado conhecimento no River Plate de Bue- El Flaco ou O Magro. Flamini jogava na nos Aires e no Penharol de Montevi- meia-esquerda. Era elegante em campo e déu. Naquele ano, 1945, o Cruzeiro (Marco Antonio Damian é membro da Academia fora dele. Alto, esguio, cabelos rigorosa- queria desbancar a hegemonia do rolo Passo-Fundense de Letras.)

32 Água da Fonte Novembro de 2012 Lourdes Pithan - a educadora da geração “baby-boomer”

OSVANDRÉ LECH de batizar a praça central da Avenida atenta e contagiada, pela alegria e pelo Brasi,l em frente à igreja São Vicente de entusiasmo de APRENDER. Foi um Paulo, de “Praça Lourdes Pithan”. Foi início de vida escolar que não se podia eração “baby-boomer” foi a no sábado, 21 de abril, entre familiares querer melhor. que nasceu, entre o final da e membros da família iense que a placa Anos mais tarde, já no seu leito de G Segunda Guerra Mundial e o foi descerrada. Um momento muito lin- morte, a professora mandou chamar-me, início dos anos 1960. A expressão quer do de lembrança, respeito e admiração porque queria me ver. Foi uma conversa dizer, literalmente, “explosão de be- pela educadora, e “mãe de cada um dos sentimental, de aluno para professora. bês”, já que havia um grande incentivo seus alunos”. Lembramos dos velhos tempos e de para a família numerosa, pois a guerra Em 2001, dediquei o livro “Citações como eu era inquieto na sala. Falamos havia feito milhões de vítimas. Esta – Frases inteligentes para serem lembra- dos meus colegas, do velho prédio de geração cresceu buscando educação das”, à minha alfabetizadora, no já dis- madeira, dos recreios nas tardes enso- e estabilidade profissional, lutou pela tante ano de 1962, exatos 50 anos atrás. laradas e, claro, do pão com molho do paz no mundo, e teve contato com a Ao ser lida, neste sábado, a dedicatória “seu” Erwino. Sentado à sua cabeceira tecnologia somente na fase adulta. Os in memoriam, emocionou a todos. e de mãos dadas, deixamos o tempo “baby-boomers” têm hoje entre 50 e “Dedico este livro à professora Lour- passar sem pressa. Aquela foi a última 65 anos, exercem papel de destaque des Pitthan, que segurava a minha mão, vez que a vi. Só fui entender o pedido em governos, na iniciativa privada, na enquanto eu aprendia a escrever as pri- da visita, bem mais tarde. A professora educação e nas artes. meiras trêmulas e ilegíveis palavras, no Lourdes Pitthan queria ver, pela última A professora Lourdes Pithan lecionou Instituto Educacional de Passo Fundo, vez, a imagem do seu maior objetivo em Passo Fundo, entre 1948 e 1984. em 1962 - quarenta anos atrás. A sua de vida - o pequeno aluno, que fora Foi uma das mais queridas e destacadas missão de alfabetizadora extrapolou, e educado por ela, agora já assumindo o professoras do Instituto Educacional, muito, as expectativas mais otimistas, seu próprio papel na sociedade. deixando lembranças positivas em sempre com simplicidade e doce ener- Um ciclo de vida completo. E com muitas gerações. Falecida em 1987, ela gia. A professora Lourdes mantinha satisfação mútua, para a mestra e o continua a ser lembrada. Antonio Au- toda a turma - e foram centenas delas - aprendiz. Agora é minha vez, professo- gusto Meireles Duarte teve a feliz ideia ra! “Obrigado!”

(Osvandré Lech, médico e escritor, é presidente da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 33 Memória Tributo a Sílvio Luís Algarve

(foto: arquivo e.f. neto) EUGÊNIO FACCHINI NETO cima de um muro! Mas essa foi a úni- ca coisa em que ele ficou em cima do muro. Em tudo o mais, jamais temeu edo. Demasiadamente cedo. tomar partido, posicionar-se, expor-se, Sílvio nos deixou cedo demais. defender suas ideias – ainda que isso C É o que temos ouvido de todos pudesse desgostar quem quer que fosse. os que o conheceram, nos últimos tris- Na Magistratura, sempre teve um jeito tes dias. E isso por uma simples razão: especial de auxiliar colegas mais jovens, Sílvio encantou e impressionou todos menos experientes – e foram incontáveis os que tiveram o privilégio de com os que o procuravam para tanto. Dava ele conviver. Encantou pelo seu jeito dicas, trocava ideias, passava modelos simples, amigo, parceiro, despojado de sentenças (e modelos efetivamente de vaidades, cortês, gentil, prestativo, eram elas, tendo incontáveis sentenças conciliador. Impressionou pela sua vasta louvadas), mas sempre de uma forma cultura geral, pelo seu verdadeiramente tão natural e pacienciosa que os colegas conhecido advogado daquela cidade; o notável saber jurídico, pela sua inigua- nem tinham a sensação de que estavam meu era um dos juízes da Comarca. Não lável dedicação ao trabalho, pela sua sendo orientados por um magistrado convivemos na infância e adolescência, invejável capacidade e produtividade, verdadeiramente especial e superior. porém. Fui conhecê-lo na Faculdade pela responsabilidade com que encarava Embora rigoroso julgador, a quem nada de Direito da UPF. Como comecei a todos os seus compromissos. E essas passava batido ou despercebido, Sílvio lecionar muito cedo, Sílvio foi aluno qualidades faziam do Sílvio um amigo e sempre foi gentil com pessoas – advo- de uma de minhas primeiras turmas. colega singular. Sílvio e eu nos criamos gados, testemunhas, serventuários. A Foi o melhor aluno que já tive ao longo em Passo Fundo. Seu pai era antigo e todos sempre recebia com um sorriso de mais de trinta anos de magistério. no rosto. Tinha autoridade, sem ser Embora tenha sempre tirado a nota má- autoritário. Rara qualidade, típica dos xima, Sílvio era discreto em sala de aula. grandes homens. Exemplar na vida Desde então ele não sentia a necessidade profissional, exemplar na vida privada, de mostrar aos outros o quanto sabia, exemplar também na vida familiar. Com característica que manteve ao longo de sua amada Maria Lúcia, companheira e toda sua vida. Mais tarde, já colegas de amiga de toda uma vida, criou seus dois Magistratura em Passo Fundo, Sílvio filhos em ambiente de grande harmonia sempre teimava em se esquivar de mi- e verdadeiro amor. Mais do que nós, nhas tentativas de levá-lo ao magistério. seus amigos e admiradores, são eles A razão era sempre a mesma: não queria que mais sentirão sua falta. Mas sabem desviar seu foco do trabalho que tanto eles o quão privilegiados foram por amava – o de julgar. Em determinado terem convivido intimamente com ser semestre, em que eu fora designado para tão luminoso. E essa luz, com certeza, atender em regime de exceção e estava foi tão forte, que de onde quer que ele com pesada carga de serviço, insisti esteja agora, continuará a iluminar seus para que ele me substituísse. Ele o fez, caminhos. Quanto a nós, fica a saudade, como especial favor e apenas por um a dor da perda, o exemplo permanente semestre. Resultado: encantou tanto a do significado de um verdadeiro juiz turma que foi escolhido seu paraninfo! vocacionado, a lembrança, mas também Mas nem isso fez com que ele abrisse a sensação de privilégio de o termos tido mão de se dedicar integralmente à sua como colega. Um colega que dignificou real vocação, a de juiz. Sílvio era sobremodo a Magistratura gaúcha. uma daquelas pessoas que tudo Exemplo para todos nós. Pena que nos o que fazia, fazia bem. Jogava deixou tão cedo! Demasiadamente cedo. futebol como poucos. Verda- deiro craque! Foi fazer ioga e

logo conseguia equilibrar-se (Eugênio Facchini Neto é Desembargador do Tribunal de cabeça para baixo, em de Justiça do Rio Grande do Sul.)

34 Água da Fonte Novembro de 2012 Destino

ELISABETH SOUZA FERREIRA Do mundo nada se leva. Nem mesmo plausível para certos encontros, eles o próprio coração. O único bem real fazem parte do destino que cada um tem que continua eternamente vivo, são os para cumprir. em todos nascem em berço sentimentos. Driblando os preconceitos, desviando de ouro nem são criados em O único mandamento verdadeiro é o os obstáculos intransponíveis, os que se N redoma de vidro. amor. O amor é a energia divina que está amam seguem vivendo com amor. Mas todos são abençoados com a em toda parte. O elo espiritual é mais forte que qual- graça da vida e uma longa estrada para “Ainda que eu fale a língua dos ho- quer compromisso material. trilhar. mens, se não tiver amor, nada serei”. Quando uma pessoa faz parte do Ninguém consegue viver sozinho. O amor é a lei máxima. destino de outra, de nada adianta fugir... Cada pessoa faz parte de um grupo por Quem ama perdoa, tolera, respeita e Ela continuará firme diante dos olhos um determinado período. não usa de maldade com ninguém. que não querem vê-la. A família é uma escola, onde se per- “Ainda que eu dê todos os meus bens Ela continuará agarrada aos pensa- manece apenas pelo tempo que se fizer aos pobres, se não tiver amor, de nada mentos de quem não deseja nela pensar. necessário à aprendizagem individual. me adiantará”. É fácil identificar quem faz parte, Quando um jovem se torna adulto, Quando se pensa já não ter mais nada quem se torna fundamental. aprende a ficar em pé e a andar com as para ver, eis que pode surgir ainda mais Quem surge distribuindo promessas próprias pernas, muito embora o vento uma rosa no jardim aparentemente sem felizes. nem sempre lhe seja favorável. vida. Quem transmite paz. Amizades se estabelecem e outras Se a natureza sem par coloca um Quem pensa junto. tantas se perdem, ao longo do caminho. simples botão no meio da estrada, isso Quem fala sem esforço para se fazer Saber colocar-se no lugar dos ou- deve ter alguma finalidade. entender. tros, às vezes, amplia a capacidade de Seu caule pode ferir com seus espi- Quem ama pelo simples prazer de compreender-se a si mesmo. nhos as mãos de quem os pega, mas as amar. Os laços de consanguinidade nem mãos corajosas que o seguram, ainda Quem sofre calado e chora escondido, sempre garantem uma afinidade perfeita. que machucadas, saberão conservar o para o outro não ver... Cada pessoa é uma alma em evolução. seu perfume. Quem espera indefinidamente um As regras sociais existem para limitar Não é por acaso que se encontram cer- novo amanhecer. as ações humanas. tas coisas ou pessoas, na longa trajetória Quem se enche de ternura na presença Nem todos se submetem às limitações da existência. de quem ama. impostas pela sociedade. Mas, pelo Há pessoas que passam sem deixar Enfim, o destino aponta o caminho. menos, alguns preferem não infringi- rastros. Há outras que marcam para las, conservando-se obedientes diante sempre... (Elisabeth Souza Ferreira é membro da Academia da Lei. Ainda que se busque uma explicação Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 35 Poesia

sou... Sou pedra, e dela ganho a dureza. Sou água, e dela tenho a fluidez. Sou ar, e do ar ganho a transparência. Sou fogo, e dele tenho o calor. Por ser água eu aguento a estupidez, por ser pedra sustento a firmeza, por ser ar tenho livre a consciência, por ser fogo queimo a dor. Com quatro elementos construí um templo, minha única casa digna de oração! É nela que habito e contemplo o firmamento, de onde parto para a viagem pelos planetas... E, no retorno, visito as estrelas, chego e recomeço uma nova vida.

Em direção ao fim

Não há mais fontes borbulhantes, não bebo água na concha da mão, como fazia num tempo distante, quando o homem ainda era são. Da água cristalina, quando ainda era fresca, brotando em meio à densa floresta. É quimera vagar pelo mundo à sua procura! O homem destrói tudo, e nada mais presta. Agora, no silêncio da noite, quando a humanidade dorme, medito, tentando sondar o futuro... O que percebo é algo de causar horror: Uma humanidade, cuja feição disforme causa asco ao coração mais brando e puro. E tudo isso porque o homem não viveu esse Amor...

Ela sempre Falei que nunca senti saudade, mas é saudade de alguém. retorna Há uma que me segue desde a eternidade, que apenas imagino de onde vem. Começou talvez ainda no soturno início da criação do nosso mundo. E volta sempre a cada meu retorno, sendo cada vez um sentimento mais profundo. Em cada vida, vou me libertando mais um pouco do emaranhado do meu destino, mas sempre resta ainda muito por fazer. Um dia terei a liberdade buscada desde menino! Não importa quanto ainda precisarei sofrer, hei de libertar-me deste mundo louco...

36 Água da Fonte Novembro de 2012 getulio vargas zauza

Até quando?

Até quando ficarás sonhando acordado, saltitando de uma a outra ilusão, acreditando: logo tudo será solucionado, e que a ciência encontrará a solução?

O mundo é aquilo que o homem faz! Não se pode acreditar que ciência ou religião nos darão a desejada paz, pois ela só será gerada na pureza da consciência.

A humanidade se comporta como um bando de dementes, e acredita viver em plena sanidade. Não percebe que vive a lançar sementes, e que mesmo quando diz viver de modo puro, são geradoras de egoísmo, loucura e maldade... E são elas que nos destruirão no futuro!

Compaixão

Compadeço-me das crianças que estão chegando agora, pelo mundo que vão receber. Compadeço-me dos jovens, pelas ilusões que irão viver. Compadeço-me dos velhos que ainda terão que esperar a hora para poder morrer... (Getulio Vargas Zauza, psicólogo clínico, escritor e Parabenizo aqueles que viveram uma realidade, membro da Academia Passo- Fundense de Letras. Email para que ilusão não precisaram ter contato:[email protected].) e que, no dia em que partirem, não levarão nem deixarão saudade. Eles são agraciados, pois fizeram por merecer.

Água da Fonte Novembro de 2012 37 Mario Guimarães e o 2° Rodeio Nacional

(fotos: arquivo o. g. ayres) ODILON GARCEZ AYRES servidores públicos, liderados pelo dire- tor de Cultura, bivacaram dois meses, e nada, até que tomamos as rédeas, com o primeiro Rodeio Nacional de Prof. Mauro Simão, o Serpinha e o Má- Integração Gaúcha tinha sido rio, agrimensor de profissão, corremos O um sucesso estrondoso, e tão trena e batemos estacas, até que, numa logo terminou, começamos a agilizar semana, ficou marcado e desenhado o para sair o segundo, pois a fama de primeiro Mapa do Acampamento. Passo Fundo, de que só se fazia aqui o 1° A bem da verdade, sem eles nem evento cultural, e foram tantos só com o sairiam as provas campeiras. O Plínio primeiro, que todo mundo tinha medo do Mena Barreto e o tio Oscar Vieira, que terrível segundo evento, não sem razão, viera trabalhar conosco na Secretaria porque já estávamos no crepúsculo de de Turismo, saíam de manhã e volta- agosto, e a decisão equivocada de largar vam à noite, batendo estradas de chão, nas mãos de uma agência de propagan- centenas de quilômetros, proseando, da, nos fez andar de quatro, mendigando argumentando e pedindo bois para laçar, patrocínios. graciosamente, ficando a nosso encargo Foi nessa ocasião que apareceu, na apenas o transporte de ida e volta. Passotur, com o aval do Prefeito Car- As coisas andavam a galope, tivemos rion, a figura de Mario Pereira Guima- apenas três meses para preparar tudo, mas rães, homem da época da Revolução de o atraso na confecção dos cartazes, pela 64, vaqueano, que viajara pelo Brasil de Integração Gaúcha. demora do aporte de patrocínio, quase afora, irmão do Promotor Público, e Mas nós precisávamos de um montão nos fez dar com os burros n’água, pois, na ocasião Diretor Presidente da Caixa de coisas mais. Os troféus conseguimos além disso, os funcionários da EBCT Econômica Estadual, Lauro Pereira com a própria RBS; brindes com o entraram em greve, e nós tínhamos Guimarães. Embora, como diz o gaúcho, comércio; mas, na Óptica Brasil, con- depositado na Agência sede, em Passo “queimasse campo uma barbaridade”, o seguimos do Marco Stefani, um bom Fundo, os convites, a programação e Plínio Mena Barreto é minha testemu- patrocínio para os cartazes, a troco de os cartazes para o Rio Grande do Sul, nha: retomamos da Agência publicitária um “Poço Artesiano”, que arrumamos Santa Catarina, Paraná, São Paulo e a missão, e fomos atrás de duas de suas para ele através da Cemapa,um verda- Mato Grosso. Por sorte, dias antes, indicações. deiro negócio da China, pois o material postáramos para a região norte do Rio Na Caixa, o seu irmão o recebeu, promocional estava orçado em 70.000 Grande do Sul, os quais foram os únicos mas não a mim, e indicou o finado “cruzados”, a moeda da época. a serem entregues, para um evento de tal Cândido Norberto, que demonstrou A água para o Rodeio era fundamen- envergadura. pouco interesse, alegando que a Corag tal, e enquanto o CTG Lalau Miranda Cientes do perigo de um fiasco, não podia dar o papel para impressão fazia a rede d’água, de janeiro a setem- que corríamos, mercê dos percalços dos cartazes, que o trabalho era va- bro, o Mário empenhou-se em conse- que passamos, pois no episódio da tal zado, que ainda precisava arte final, guir, através da RFFSA (ex-VFRGS), Agência de Propaganda, que conseguiu enfim, daquele mato não saiu um a caixa para 30.000 litros de água, que apenas um patrocínio e justamente de coelho sequer. fomos buscar na antiga Estação Barro. um dos promotores do evento, (a Pam- Dali fomos à RBS. E o amigo dele, sua Até hoje, falo porque é preciso, mas essa pa do Sr. Nilo Fernandes), o Secretário indicação, Walmor Bergesk, nos recebeu expressão “Caixa d’Água”, proferida Flávio Benvegnú chegou a demitir-se muito bem, e se comprometeu a agilizar mil vezes pelo Guimarães, me dá arre- do cargo, mas foi instado pelo Eluyr a doação do palco coberto, Maurício pios, pois foi um parto para consegui-la José Reschke, a agüentar tirão. E logo Sirotski Sobrinho, bem como a trazer a e trazê-la de Gaurama. após, tive a feliz ideia, e com justiça, direção da empresa televisiva, como de As perspectivas de um segundo de convidar o CTG Porteira do Rio fato vieram: Ernesto Corrêa e a viúva Rodeio, já para mais de vinte mil par- Grande para “Padrinho” do 2º Rodeio. de Maurício Sirotski Sobrinho, a Passo- ticipantes, exigia uma demarcação dos O Mário entregou o convite em mãos, Fundense, Sra. Ione Pacheco Sirotski, espaços para acampamento e comércio, e os vacarianos, liderados pelo Patrão que discursou e fez o descerramento da naquele aprazível mato nativo do CTG Percy Guerreiro, nos honraram com uma placa inaugural do 2º Rodeio Nacional Lalau Miranda. E uma equipe de cinco Delegação daquela região, com mais de 38 Água da Fonte Novembro de 2012 Abertura do 2° Rodeio Nacional de Integração Gaúcha cento e oitenta (180) integrantes, sendo (Passotur), pelo CTG Lalau Miranda tado Federal Lauro Pereira Guimarães, que, destes, mais de três dezenas acam- e pela Expositur, Empreendimentos palmilhou o centro-norte brasileiro. param no Itatiaia Palace Hotel, o qual Turísticos S/A., cuja direção estava De tradicional família de cidade motivou-se a ser nosso patrocinador no composta pelo Presidente de Honra: açoreana, era filho do ex-delegado e 3° Rodeio Internacional. Prefeito Fernando Machado Carrion; ex-prefeito, Ricardo Guimarães, e da Ah!.... Como se tudo isso não bastas- Presidente Executivo: Flávio Benvegnú; professora Felisbina. Fez os estudos se, o carcará de plantão, daquele tempo Vice-Presidente: Nelson Quadros; 2° fundamentais, no Instituto Estadual de até hoje, nos primórdios da “Iradylân- Vice-Presidente: Nilo Fernandes; Tesou- Educação Pereira Coruja. Depois fre- dia” (o termo e registro histórico é meu), reiro: Eluyr José Reschke, e Secretário quentou escolas secundárias e técnicas, tirava o pão da nossa boca (do Rodeio), Geral: Odilon Garcez Ayres. Esses eram na região e na capital. Ligado à terra, ao para angariar patrocinadores do Pórtico, secundados por muitos e muitos outros trabalho e ao lazer, exerceu por anos, até que está lá, graças a muita gente boa de da Invernada Artística (Busch, Odalgiro, o fim da vida, a profissão de topógrafo. Passo Fundo. Além disso, fomos à Ca- Paiva, Elmo, Flori) e da Campeira (Se- Tinha a tarefa de ajudar ruralistas a pital pleitear, junto ao DAER, o asfalto rena, Quadros, Rossal, Kampitz, Macha- regularizarem a situação de suas terras. para a Iradylândia. O poço artesiano do), de quem muito nos orgulhamos, e Nas últimas duas décadas, casado, foi perfurado pela Sudesul, enquanto que um dia serão decantados, mas hoje, fixou residência na Vila Vera Cruz, em o patrão Adão Nascimento instalava a cumpre-me o dever (por ter sido com- Passo Fundo, dedicando-se, além das bomba d’água, e cuidava da rede. A Ex- panheiro e amigo de trabalho, e agora lides profissionais, ao culto do tradi- positur S/A, autorizada pelo presidente, testemunha ocular desta história), de cionalismo autêntico, participando dos cuidava da nova rede elétrica, e cons- prestar esta homenagem “post mortem” eventos mais expressivos do calendário truía, com os pedreiros e carpinteiros da a Mario Pereira Guimarães, e recomen- pampeano – os Rodeios de Passo Fun- Secretaria de Obras, um galpão de 12 x dar que este peão do Rio Grande tenha do, Vacaria e Lagoa Vermelha (de onde 25, que serviu de restaurante de dia, e um lugar de destaque na nominação dos trouxe para Passo Fundo a iguaria da salão de baile à noite, e que batizei de entes do Rodeio Internacional de Passo linguiça campeira, para acompanhar o Galpão Bragado. Fundo, juntamente com Antoninho Se- churrasco). As cidades mencionadas Nosso Rodeio causou impacto nos rena, Adão Nascimento, Oscar Vieira e eram seu chão preferido. Assador ex- Vacarianos, pois eles não tinham quatro outros, pois foi um dos construtores do periente, bom anfitrião e inesgotável tablados e uma cobertura, e tampouco segundo, do terceiro e do quarto Rodeio. contador de “causos”, sentia-se feliz um salão de baile nas dependências do ao comandar churrascos para mais de Rodeio, o que os agilizou nesse sentido, Mario Pereira Guimarães cem pessoas. e acordamos , depois do 3° Rodeio, que Além da esposa, a professora aposen- eles seriam intercalados, de dois em dois Gaúcho, pilchado, sempre a caráter, tada, Iracema Vieira Guimarães, deixou anos, entre Vacaria e Passo Fundo. topógrafo de profissão, churrasqueiro, três filhos: o gerente bancário Cassiano, Hoje, são passados apenas vinte e assador, proseador, contador de causos, a empresária Clarissa e o autônomo seis anos, destas breves reminiscências, de “cosas y losas”, mas um altruísta Thomaz, mais netos, genro e nora. Teve de alguns fatos acontecidos naquela decidido, trabalhador, sem hora e sem seis irmãos: João (falecido), José, Lauro, escaramuça, que culminou com êxito, quartel, dinâmico, visionário e sonha- Maria, Lúcia e Ângela. na realização do 2º Rodeio Nacional de dor, tradicionalista que nos deixou dia Mario Pereira Guimarães * Taquari – Integração Gaúcha, (afastando de vez a 12 de janeiro de 2012, com 81 anos de RS. +12.01.2012 - Cuiabá – MT. pecha e a mácula), promovido pela Pre- idade, em consequência de problemas feitura Municipal de Passo Fundo, por cardíacos. Durante muitos anos, em (Odilon Garcez Ayres é escritor e membro da Academia sua Secretaria de Desporto e Turismo companhia do poeta e político, Depu- Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 39 Protásio Antonio Alves

SANTINA RODRIGUES DAL PAZ instrução pública fume. Nos últimos anos de sua vida, (Secretaria da Edu- continuava sendo a pessoa simples e cação). Proporcio- cordial, conversava com uma criança, rotásio Antonio Alves (seu nome nou especialização conseguindo prender sua atenção com completo) nasceu na cidade de para professores, e suas histórias. Sua casa era simples P Rio Pardo, em 21 de março de fundou várias es- como todo o seu modo de ser. Recebia 1859, filho único de Patrício Antonio colas. Nesta época parentes e amigos para conversar e ouvir Alves e de Carolina de Ávila Alves. Ten- era o Rio Grande do música.” do seu pai falecido antes de ele nascer, Sul que assinalava o Protásio Antonio Alves é patrono recebeu de seu padrasto e de sua mãe os menor índice de analfabetos, no país. da Escola Estadual de Passo Fundo. valores morais que tanto o enalteceram. Casou-se com Geralda Velho Garcia. Primeira escola estadual. A professora Estudou até os oito anos em Rio Par- Foi dedicadíssimo à família. Ana Luiza Ferrão Teixeira (1898-1911), do, transferindo-se após para Porto Ale- Marta Geralda Alves D’Asevedo, neta com sua sala de aula em sua casa, gre. Nos estudos foi sempre brilhante. de Protásio Alves,fala com carinho: “A deu origem ao colégio elementar de Cursou a Faculdade de Medicina no imagem que meu avô Protásio Aves Passo Fundo. Outras pessoas influen- Rio de Janeiro. Formou-se em 1881, deixou ficou nitidamente gravada na tes também trabalharam pela criação sendo o mais jovem da turma. Em sua minha memória. Não a do médico ou desta escola, como a professora Eulina tese de doutorado, fez uma dedicatória do político, que não conheci, mas a de Braga, diretora da escola, que tratou a seu padrasto, agradecendo os sacri- uma figura humana que, apesar de ter com o Dr. Antonio Augusto Borges de fícios que por ele fez. E os princípios desempenhado um papel importante na Medeiros (presidente do Estado do Rio que soube incutir, em sua formação, história política e educacional do Rio Grande do Sul), o prestigioso apoio do os quais jamais foram esquecidos ou Grande do Sul, conseguiu ser sempre Dr. Nicolau de Araújo Vergueiro (pre- abandonados. Agradeceu também sua simples e cordial, amado e respeitado feito municipal,1920), de Armando de mãe, dizendo: “O amor de mãe é divino, por todos que o conheceram. Araújo Annes (prefeito,1924), de Dr. o céu é, para mim, a essência do amor Meu avô, uma pessoa afável e sim- Protásio Alves (secretário de negócios de mãe”. pática, tratava todos com a mesma do interior e exterior) e do Sr. João de Fez seus estudos de aperfeiçoamento delicadeza com que tratava as rosas de Césaro (construtor italiano radicado em na Europa e, voltando, fixou-se em Porto seu jardim, não se deixando ferir por Passo Fundo). Alegre, onde muito fez pela Medicina. seus espinhos, mas cuidando de todas Foi o primeiro médico a praticar uma indistintamente, com mãos hábeis e À Escola Protásio Alves, cesariana, em Porto Alegre, na Santa seguras. Apesar da idade, suas mãos Meus parabéns pelo aniversário, ao Casa de Misericórdia. manobravam o podão, para tratar das completar 101 anos (2012) de belas e Em 1888, fundou em nossa capital, roseiras com a firmeza com que o mé- eficientes realizações, em benefício da Porto Alegre, a Faculdade Livre de dico, no início da carreira, segurava o educação. Medicina e Farmácia. Foi diretor du- bisturi, para fazer a primeira operação. Um grande abraço à direção, ao corpo rante 12 anos, prestando seus serviços E, quando o podão ia cortando as folhas docente, aos funcionários e alunos! gratuitamente. estragadas, ou os galhos ressequidos, Quando estudante foi líder, empolga- ia explicando que aquilo era necessário do pelas ideias republicanas. E quando a para que as rosas pudessem nascer e (Profa. Santina Rodrigues Dal Paz é membro da república foi implantada, foi convidado crescer mais bonitas e com mais per- Academia Passo-Fundense de Letras.) a exercer o cargo de delegado de polícia. (foto: O. G. Ayres) Em 1891, foi eleito deputado à primeira constituinte republicana rio- grandense. Atendendo ao apelo do pre- sidente Júlio de Castilhos, (seu amigo particular), deixou as funções eletivas, para desempenhar o cargo de diretor de higiene, no estado. No governo de Antonio augusto Borges de Medeiros, passou a exercer a pasta de secretário de negócios, do interior e exterior, permanecendo neste cargo 20 anos. Foi vice-presidente do estado do Rio Grande do Sul. Mas, como administra- dor, atingiu o máximo da eficiência na Escola Protásio Alves, neve de 1975

40 Água da Fonte Novembro de 2012 (fotos: arquivo a. a. rebonatto) Capadócia

Vista parcial da cidade de Ortahisar

ALBERTO ANTONIO REBONATTO e dos homens, aliada à fragilidade do mais se assemelham a um gigantesco solo, sua topografia é tão especial que formigueiro. Segundo a história, essas mais se assemelha a paisagens lunares. casas formavam um refúgio seguro dos Capadócia é uma pequena re- Trata-se de uma região única do nosso nativos, para fugirem do ataque dos gião da Turquia, encravada na planeta, com tal índice de fragilidade inimigos e conquistadores. Em alguns A Anatólia Central, com dimen- do solo, que permite aos ventos esculpir casos, tornaram-se verdadeiras cidades sões que nem sempre se assemelharam figuras de diversas aparências, e aos ho- subterrâneas, com sistema próprio de às atuais. A região da Capadócia tanto mens escavar o subsolo e nele construir ventilação, depósitos de água e ali- pode representar uma área de quinze residências, ruas, salas, depósitos, está- mentos, estábulos, locais para guardar mil quilômetros quadrados, como uma bulos, templos e, até, cidades. Escavadas o feno, e até depósitos para vinho. pequena gleba de terras ao sul de Ür- nas rochas, essas cidades são apontadas Dividiam-se em andares, cada um com güp, com 20 km de lado, porque seus como a “oitava maravilha do mundo”. finalidade própria, pré-determinada, de limites variaram ao longo dos tempos, O solo é vulcânico, com predominân- acordo com o planejamento de cada de acordo com os historiadores que a cia de calcário. Ao longo das planícies, cidade. Tinham, também, um singular tenham citado. É conhecida desde a erguem-se formações rochosas de diver- sistema de segurança: uma pedra re- antiguidade e referida pelos historiado- sos tamanhos, encimadas por coberturas donda, parecida com mó de moinho, da res gregos, Estrabão e Heródoto, mas, de rocha basáltica que se assemelham mesma rocha, facilmente movimentada, em alguns mapas, nem é mencionada, a cogumelos. Esses cones, coroados e perfeitamente encaixada na entrada da porque não corresponde a nenhuma por pedras planas, são mundialmente galeria, com um dispositivo interno que demarcação política. Foi habitada e conhecidos como “chaminés de fadas”. funcionava como tranca e não permitia explorada por assírios, hititas, persas, Tanto podem aparecer de forma isolada sua movimentação. Os primeiros cris- árabes, gregos, romanos e seljúcidas, como agrupadas, mostrando paisagens tãos fizeram largo uso dessas cidades, que são considerados os antepassados espetaculares e insólitas, como se tives- para fugir de seus perseguidores. Prova diretos dos turcos. Estes a ocupam até os sem sido mesmo esculpidas por mãos de disso são as inúmeras capelas e igrejas, dias atuais. No Museu das Civilizações fadas. Além dos passeios terrestres, são com pinturas e imagens ainda visíveis da Anatólia, em Ancara, está exposto oferecidos por agências de turismo, voos nos dias de hoje. um afresco encontrado em Çatalhüyük, de balão que propiciam maravilhosa Próximo a Ürgüp, encontra-se, entre um povoado do período neolítico, que vista panorâmica da região. outras, a cidade subterrânea de Kay- é, talvez, a pintura paisagística mais Nos morros e nas encostas, dentro makli, aberta à visitação pública desde antiga do mundo, presumivelmente de das rochas calcárias, foram construídas 1964 e escavada entre os séculos VI e 6200 anos a.C. casas, umas emendadas nas outras, X, durante as invasões persas e árabes. Graças aos vulcões e à ação dos ventos separadas por pequenas vielas, que Cobre uma superfície de 2,5 km2, e

Água da Fonte Novembro de 2012 41 Chaminés de fadas, em Ürgüp

Galeria interna da cidade subterrânea de Kaymakli

Vista parcial do museu a céu aberto, em de Göreme atinge uma profundidade de 45 metros. Capadócia significa “terra de belos Possui oito níveis distintos, dos quais cavalos”. Os cavalos, de tão afamados, apenas quatro são visitáveis. As cons- eram ofertados a reis, como mimos truções subterrâneas estão agrupadas especiais. Entre os reis que apreciavam próximas às chaminés, assegurando, e admiravam os belos animais, o mais assim, excelente ventilação. Nela tem-se conhecido é Dario, rei dos persas. a impressão de estar em um verdadeiro A Capadócia significou e significa labirinto. Próximo às residências, há os muito para a tradição cristã. Localizada estábulos; a ligação entre os diversos próxima às Sete Igrejas da Ásia, referi- compartimentos é feita por caminhos das no Apocalipse de São João, nela São estreitos; sepulturas foram localizadas Pedro fundou a primeira comunidade ao lado de uma pequena igreja que, cristã; São Paulo, entre os anos de 44 e contrariando um costume generalizado, 58, a visitou por três vezes; e as cidades não apresenta pinturas nas paredes. As subterrâneas foram muito ocupadas salas maiores e mais importantes estão nos séculos II, III e IV, em virtude das no terceiro pavimento. Pelo tamanho perseguições. Lá nasceram vários santos dos depósitos, das salas de reuniões, dos e teólogos, como São Mamede, São estábulos, e pela grande quantidade de Basílio Magno e São Gregório de Nissa, residências, deve ter sido uma cidade além de Cesário de Nanziano, Gregório que abrigou uma população numerosa. de Nanziano, o Novo, e Gregório de Outra vista das chaminés de fadas, em Ürgüp 42 Água da Fonte Novembro de 2012 Pintura em parede da Igreja de Göreme(S. Jorge e S.Teodoro, Mosteiro feminino de ¨Goreme matando um dragão)

Paisagem lunar, típica da Capadócia Outra vista das famosas chaminés de fadas

Nanziano, o Velho. Basílio, Gregório de imperador Deoclesiano teria se conver- parecendo que o povo do lugar, a partir Nissa e Gregório de Nanziano, o Novo, tido. Durante a Idade Média, a tradição do século IV, esteve totalmente consa- são conhecidos como os “Filósofos Ca- ao culto de São Jorge espalhou-se por grado à vida monástica. Há quem diga padócios”. Também João II da Capadó- toda a Europa e ele foi considerado que os mosteiros cristãos tiveram sua cia, patriarca de Constantinopla entre os padroeiro de vários estados e reinos, origem em Göreme. O que se sabe é que anos 518 e 520, nasceu na região. Ficou como os da Inglaterra, de Aragão e de os primeiros monges cristãos habitaram famoso por ter acabado com um cisma Portugal. A Cruz de São Jorge ainda as cercanias da região e que, a partir do de 34 anos, entre as igrejas orientais e está presente nas bandeiras da Geórgia, século XI, Göreme foi um centro monás- ocidentais, originado no Concílio de Inglaterra, Sardenha, Barcelona e Ara- tico muito importante. O primeiro mos- Calcedônia. gão, e nos brasões de Gênova e Pádua. teiro feminino de que se tem notícias, Conta uma lenda que um cavaleiro Hoje, Jorge não é mais considerado com seus quatro níveis e quatro igrejas, chamado Jorge, procedente da Capadó- santo pela Igreja Católica, mas seu culto e demais compartimentos, está situado cia, salvou com sua espada uma prin- é autorizado pela tradição. ao lado da porta de entrada do parque. cesa que estava sendo atacada por um Por falar em Cristianismo, merece Não podemos afirmar que o Museu ao dragão. O referido cavaleiro disse que especial atenção o Parque Nacional de ar livre de Göreme tenha sido o berço vinha em nome de Cristo, e que todos Göreme, com 9576 ha, que foi conside- dos mosteiros cristãos, mas se o foi, não deveriam se converter ao cristianismo. rado Patrimônio Mundial pela UNES- poderiam ter escolhido lugar melhor. Por ter renegado aos deuses do seu CO, em 1985. Ao lado das residências, império, foi condenado e martirizado. muitas transformadas em pousadas

Mostrou tamanha fé e tanta coragem para turistas, encontra-se um conjunto (Alberto Antonio Rebonatto é membro da Academia durante o martírio, que até a mulher do de igrejas e mosteiros de tal proporção, Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 43 Poesia getulio vargas zauza

Ao escrever, o faço em prosa ou poesia. Se dizem: o estilo é apocalíptico! Não nego. Apocalipse Pois tudo mostra, claramente, como a luz do sol de um belo dia, e só não percebe quem de inteligência é cego!

Quem quer isso? I

O dia amanheceu sorrindo, os pássaros em coro cantavam um hino, as horas transcorriam e tudo era lindo; ninguém podia imaginar o trágico destino.

O sol deslizava, suavemente, em seu aparente caminho. Uma suave brisa tornava o dia aprazível, gerando no rosto a sensação de amoroso carinho, nem se poderia sonhar acontecer algo horrível.

Estudei religião, filosofia, psicologia e ciência da natura, queria tanto ajudar a salvar a humanidade, fazer algo que se faz quando a gente ama...

Mas eis que, de repente, dou de cara com a verdade: um bando de dementes, no auge da loucura, aperta o botão! E, num clarão, a terra é uma bola em ardente chama.

Post scriptum: Este poema é uma descrição de uma “visão” que tive em sonho, na noite passada. As cenas, em que aparecem as pessoas, são indescritíveis de tão horripilantes.

Quem quer isso?II

Já fazia muito tempo que eu havia morrido, e do espaço assistia a hecatombe, horrorizado. Inocentes aos bilhões, que ainda nem tinham veia, eram, num átimo, totalmente desintegrados.

O tremendo desespero das pessoas era tanto, que me é totalmente impossivel descrever. Em toda a terra incendiada não havia um caso, onde uma só pessoa se pudesse proteger.

A terra parecia um pequeno sol, visto à distância. Em minutos, sobre a terra apenas fogo... Era o triunfo da insensatez e da loucura consumada.

Naquele infernal cenário, havia mais nada! A catástrofe acabou de vez com o sujo fogo... E uma voz desiludida: “Dei sabedoria, preferiram à ignorância...”

Post scriptum: Este poema é a continuação do sonho de ontem, de 10 para 11 DE ABRIL DE 2012, Quando, na manhã do dia 12, ouvi aquela voz: “Dei sabedoria, preferiria a ignorância!”, acordei. Já era de manhã. A dor no joelho esquerdo permitiu certificar-me que (Getulio Vargas Zauza, psicólogo clínico, escritor e estava vivo e as coisas estavam nos seus lugares. Ainda!!! membro da Academia Passo-Fundense de Letras. Email para contato:[email protected].)

44 Água da Fonte Novembro de 2012 A pornografia nos costumes

WELCI NASCIMENTO

alavras, comportamentos, modas,casas de espetáculos, P meios de comunicação social, vêm exercendo uma influência grande na conduta dos membros da família. Esses segmentos da sociedade, às vezes, contribuem para poluir a mente das pes- soas. Como nos nossos rios, precisamos despoluir o ambiente de imoralidade e desvios sexuais existentes, que podem gerar mentalidades doentias. Nos filmes, nas novelas, nos pro- gramas da televisão, o casamento, ou melhor dizendo, o matrimônio, é ridicu- larizado. E o divórcio, a separação são obtidos com muita facilidade. Parece ser uma rápida solução para os problemas da familia. Se considerarmos que a televisão e a internet são os meios de comunicação social que mais influen- ciam as crianças e os jovens, às vezes até os adultos, é fácil perceber seu poder a conduta. E é a família alienada, sem da escola na educação dos filhos. Sobre a sobre a conduta moral dos membros de ou com pouca base religiosa, a mais co-responsabilidade dos pais e da escola. uma família. facilmente atingida. A vida se constrói à base de pequenas Hoje, mais do que nunca, a exibição Assim sendo, cabe à família renovada, coisas, de pequenos acontecimentos. pública das partes íntimas da pessoa, as por meio de seus membros, impedir Muitas coisas que entram pelos nossos cenas de atos sexuais, o travestismo, o não só a implantação da imoralidade olhos, mexem com o coração. sadismo, o masoquismo, são fontes de dos costumes, como também, que a Vivemos, infelizmente, numa socie- atração ou elementos de prazer, que não alienação social chegue à alienação dade em que tudo, ou quase tudo, está estão relacionados com a consumação mental. São demasiadamente rápidas as programado para produzir e consumir. do ato sexual normal, mas na produção transformações por que passam a socie- Isso faz com que percamos a origi- de outras emoções demonstradas no dade e a família. Esta é o nucleo da so- nalidade, a criatividade ( conversar é vídeo, no cinema e nas revistas porno- ciedade, segundo os sociólogos. E tudo algo criativo!) , com isso, a felicidade gráficas. isso pode gerar uma série de situações pessoal dos membros da família está Todos esses vícios e taras sexuais são verdadeiramente calamitosas, que exi- continuamente ameaçada. No contexto altamente estimulados pela pornografia. gem a atenção de todos nós e uma ação atual, somos chamados a criar e a vi- As revistas colocadas nas bancas de positiva por parte dos pais, em primeiro ver, intensamente, profundos valores jornais podem iniciar o jovem no vício, lugar. Não podemos enfrentar o mundo de vida, tais como: respeito, acolhida, na corrupção. O mesmo acontece nas moderno, urbanizado e tecnológico, esperança, espírito de luta. Uma família vídeolocadoras. “É um material quen- com a mentalidade agro-pastoril herda- estável e equilibrada é fator essencial te”’, afirmam os proprietários .”Sai da de nossos avós. Mas temos o dever para o bom trabalho dos professores. com facilidade”. É quase impossível de indagar qual é a posição do homem Assim, a tarefa de educar não será tão impedir que se introduzam na mente e da mulher na sociedade familiar mo- penosa. Por outro lado, a família não das crianças e dos jovens as imagens derna. Precisamos pensar no matrimônio poderá exercer sua função essencial de com insinuações pornográficas. Elas e seu relacionamento conjugal, bem formadora de pessoas, enquanto houver estão por toda a parte? A força dos cos- como sobre a equiparação da mulher desnivelamento econômico, pois todos tumes é muito grande. É preciso muito ao homem. Temos que pensar sobre as os males que tornam as famílias desu- esforço e ideias muito esclarecidas para vantagens ou desvantagens da limitação manas, são ocasionados pelas estruturas contrapor à sua poderosa influência. Es- de filhos. Sobre o uso dos anticoncep- injustas da sociedade. pecialmente quando se trata de costumes cionais e suas consequências morais e que despontam os instintos sexuais que, de saúde. Sobre a educação dos filhos. por si, já são tremendamente poderosos Sobre o novo relacionamento entre pais (Welci Nascimento é professor e membro da Academia em estimular a imaginação e modificar e fiIhos, esposa e marido. Sobre o papel Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 45 A paixão de um clássico

(fotos: arquivo M. A. Damian) MARCO ANTONIO DAMIAN

e forma insolente, petulante, abusada, o jovem dirigente An- D tenor Lemos, do recém-criado Sport Club Internacional, encarou o poderoso Major Augusto Koch, presi- dente do Grêmio. Desafiadoramente, lhe proferiu: “Nosso clube, Sport Club In- ternacional, quer jogar contra o Grêmio Foot Ball Porto-Alegrense, no dia 18 de julho”. O empertigado dirigente gremis- ta prontamente lhe respondeu: “Nosso segundo quadro está à disposição”. Antenor Lemos teve ataques de fúria. A resposta fora uma ofensa mortal. Insistiu que “primeiro quadro se defronta com primeiro quadro”. E deixou o prédio da Alfaiataria Estilo Americano aos brados, 1926, invenção do repórter Ivo Martins. (Russinho), Luiz Carvalho, Foguinho e e a provocação no ar. Apenas no clássico número sete, no Nenê (Casaca). Alguns dias depois, após reunir sua di- dia 31 de outubro de 1915, o Interna- A resposta do Internacional veio retoria e repassar o que ocorrera, a dire- cional conseguiu vencer o Grêmio. E na década seguinte, com a criação do ção gremista mandou um ofício à novel também por goleada: 4 x 1. A estrela “Rolo Compressor”. Talvez tenha sido o agremiação, aceitando o convite para o da partida foi o jovem santanense Ben- melhor time da história do futebol gaú- jogo e colocando seu campo, o Fortim da dionda (que depois veio a ser tio do cho, em todos os tempos. Era um time Baixada, à disposição. Foi no dia 18 de folclorista João Carlos Paixão Côrtes), arrasador, que dificilmente perdia. À julho de 1909. O tricolor já tinha quase que marcou duas vezes. época, disputavam-se apenas duas com- seis anos de existência e alguns troféus Porém, ninguém marcou mais gols petições: os campeonatos regionais (no no armário. O Internacional, pouco mais numa só partida que Chico Vares ou caso de Porto Alegre, o metropolitano) de noventa dias, alguns treinos, nenhum Francisco Vares, ponteiro-esquerdo nas- e o estadual, com os campeões das regi- jogo, somente a vontade. cido em Pelotas, um dos fundadores do ões. No mais, eram amistosos. Apenas Waldemar Bromberg, comerciante, Esporte Clube Pelotas. Foi no clássico as páginas dos jornais registraram esses sócio da famosa Bromberg S/A, loja número oito, em 30 de julho de 1916. Na momentos sublimes do futebol. Muito especializada em vendas de máquinas, vitória colorada por 6 x 1, Vares marcou pouco para um esquadrão formado por motores e ferragens, foi o árbitro do simplesmente todos os gols. Ninguém craques, em todas as posições. Durou jogo. ainda bateu esse recorde, e creio, difi- de 1940 a 1949, ano em que, envelhe- O Grêmio, com seus jogadores ger- cilmente alguém irá bater. cido, se desmanchou. Durante a fase do mânicos, tendo como capitão-geral o O Grêmio dominou a década de Rolo Compressor foram disputados 49 centromédio Georg Black, que havia 1930. Em títulos metropolitanos e nos clássicos. O Internacional venceu, com jogado em clubes europeus, não tomou clássicos. Entre 1930 e 1939, foram muitas goleadas, 32 vezes, e o Grêmio conhecimento dos esforçados colorados. disputados 30 jogos, com 14 vitórias apenas sete, com dez empates. Ivo Wink, Venceu por 10 x 0, sem dó, nem piedade. gremistas, seis empates e dez vitórias Alfeu e Nena; Assis, Ávila e Abigail; O meia-esquerda Booth marcou cinco coloradas. Foram oito conquistas do me- Tesourinha, Russinho, Vilalba, Rui e vezes; Grunewald, outros quatro gols, tropolitano, entre dez disputadas e mais Carlitos: era o time base. Também foram com Moreira, completando a maior dois campeonatos estaduais, contra uma titulares em temporadas distintas: Julio goleada da história do clássico. conquista colorada em cada competição. Petersen, Risada, Félix Magno, Vadila Naquele dia, Antenor Lemos, talvez O Grêmio, nessa época, contava com Marques (passo-fundense), Osvaldo o mais apaixonado torcedor colorado, grandes craques, tais como: Eurico Lara, Brandão, Viana, Julio Perez (uruguaio, mais uma vez esbravejou, chorou e jurou Sardinha I, Poroto (que também atuou campeão mundial em 1950), Adãozinho que um dia ganharia do Grêmio. Que pelo Internacional e Vasco da Gama), (substituiu Vilalba a partir de 1944), seu clube seria igual ou maior que seu Luiz Luz (disputou a Copa do Mundo Elizeu, Joane, Ivo Aguiar, Ghizoni, adversário e, a partir daquele dia, inimi- de 1934), Noronha (craque de seleção Maravilha e Ruarinho. go. Assim, nascia a rivalidade gre-nal, brasileira) e, especialmente, seu fabu- O Rolo Compressor apenas não foi que somente foi se chamar gre-nal, em loso ataque, formado por Lacy, Artigas campeão estadual, em 1946 e 1949.

46 Água da Fonte Novembro de 2012 com a inauguração do Estádio “Gigante da Beira-Rio” ou Estádio José Pinheiro Borda, como queiram. O Internacional assim como seu estádio, se agigantou. Mudou seu perfil de jogadores. Trocou os essencialmente técnicos e habilido- sos, mas sem condições físicas, por ou- tros, também técnicos, mas fisicamente fortes o suficiente, para enfrentarem as agruras que encontravam nos pequenos estádios do interior do estado. Chegou ao octa-campeonato estadual, um recor- de e dois títulos brasileiros, entre 1969 e 1976. Revelou craques como Falcão, Carpegiani, Jair, Batista, Bráulio (este ainda remanescente do final dos anos de derrota), Claudiomiro, Bibiano Pontes, e abriu o cofre para contratações caríssi- Com as saídas de Tesourinha, Nena, avalanche. A introdução de uma prepa- mas, como Manga, Figueroa, Marinho, Ávila, Rui e Vilalba, para outros grandes ração física mais eficiente foi o fator Dario, Flávio (repatriado) e Lula. clubes, e as aposentadorias de Alfeu, preponderante das vitórias gremistas. Os anos de 1980 voltaram a brilhar Assis, Russinho e Carlitos, os dirigentes Entre 1956 e 1968, somente em 1961, no Estádio Olímpico, com as conquis- foram substituindo-os por meninos das o tricolor não colocou a faixa no peito. tas do primeiro campeonato brasileiro, categorias de base, e jogadores jovens Isto porque priorizou uma excursão de da Taça Libertadores da América e o buscados em outros centros e mesmo três meses pela Europa, ganhando muito Mundial Interclubes, inéditas por essas do interior do estado. Assim, de 1950 a dinheiro. Foram disputados 50 gre-nais, plagas. Foi a revelação de dois grandes 1955, exceção feita a 1954, ano em que com 21 vitórias gremistas, treze empates jogadores: Renato Gaúcho e Valdo e, o surpreendente Renner foi campeão e quinze vitórias coloradas. A dispari- na segunda metade da década, uma gaúcho, o Internacional continuou do- dade em vitórias nos clássicos não foi enxurrada de títulos do gauchão. Mais minando seu rival. Nesses seis anos, o tanta. Acontece que os gre-nais sempre uma vez foi campeão da Taça Liberta- Internacional derrotou o Grêmio treze eram marcados para as últimas rodadas, dores da América, em 1995, e o papão vezes, contra cinco derrotas e onze do turno e returno. Antes de chegar ao da recém-criada , além empates. Milton (Everton), Florindo e gre-nal final, normalmente o Grêmio já de mais um brasileirão. Nesses vinte Oreco, Paulinho, Salvador e Odorico, era campeão antecipado e não jogava anos, foram equilibrados os clássicos Luizinho, Bodinho (Solis), Larry (Ênio com toda sua ênfase no clássico. Na grenais. A maior goleada tricolor foi no Andrade), Jerônimo (Mujica) e Canho- década de 1950, o time base do Grêmio clássico nº 305, do dia 29 de julho de tinho (Chinesinho), foram os craques tinha: Germinaro (Henrique), Orlando 1990. No Estádio Olímpico, venceu por que mantiveram a hegemonia nos clás- (Valério), Airton e Ortunho; Calvet 4 x 1, gols de Paulo Egidio (2), e sicos. O cronista Cid Pinheiro Cabral, (Elton) e Ênio Rodrigues; Rudimar Assis, descontando Zaballa. A vingança super-identificado com o Internacional, (Giovani ou Alfredinho ou Cardoso ou ocorreu no grenal nº 335, disputado no chamava a equipe de “Rolo Opressor”. Toquinho ou Osvaldo Professor) era a Beira-Rio, no dia 24 de agosto de 1997: A chamada “gangorra” sempre existiu única posição que sempre estava mu- 5 a 2 foi o placar, marcando Fabiano (2) no futebol dos dois maiores clubes do dando, além de Gessy, Juarez, Milton Christian, Sandoval e Marcelo Rosa. Rio Grande do Sul. A partir de 1956, e Vieira (Volney). Nos anos 60 mudou Enquanto Sérgio Manoel e Gilmar com Osvaldo Azarini Rolla, no coman- quase tudo, mas se manteve a suprema- descontaram. do técnico gremista, e a contratação de cia: Alberto (Arlindo), Altemir (Sérgio Chegou o terceiro milênio e o clássico jogadores técnicos, fortes fisicamente Rio Branco), Airton, Áureo e Ortunho; grenal mais vivo e acirrado do que nun- e com muito “pulmão”, a “gangorra” Cleo (Jadir) e Sérgio Lopes; Marino ca. O Internacional conseguiu igualar o se inverteu. Nada mais, nada menos (Babá), João Severiano, Alcindo e Vieira Grêmio com o título mundial, e as duas que doze títulos em treze disputados, (Volmir). conquistas da América. As torcidas, por foram conquistados pelo tricolor. Uma A história da “gangorra” continuou sua vez, estão cada vez mais fanáticas e enfurecidas, lotam os estádios e tornam a rivalidade a mais estimulada e feroz, entre clubes brasileiros. Rigorosamente nada, nenhum clássico por este Brasil afora, se compara ao grenal, em termos de paixão, passividade, amor, ódio, tormento, alegria, felicidade e tristeza.

(Marco Antonio Damian é membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 47 A vida de João Roman Vieda

(foto: a. l. biazus) ta a escritora e membro da Academia de Letras de Passo Fundo, Santina Dal Paz. João tinha amizade com os dois jor- nalistas, Múcio de Castro, do jornal O Nacional, e Túlio Fontoura, do Jornal Diário da Manhã, ambos de Passo Fundo. Em 1974, o jornalista assumiu o cargo de redator chefe do Diário da Manhã, contratado pelo amigo, Túlio Fontoura. Vieda escrevia uma coluna diariamente no Diário da Manhã. Criada por ele, a coluna chamava-se FATOS & BOATOS. Vieda escrevia denúncias, elogios, e homenageava as pessoas que lhe presenteavam. FATOS & BOATOS era muito lida pe- los leitores do Jornal Diário da Manhã. Com isso, Vieda assumiu a importante missão de trazer os fatos corriqueiros à sociedade. Em 1981, com a saída do gerente do Jornal Diário da Manhã, de Chapecó, Darci Schultz, assumiu, João Roman Vieda o cargo de Editor Chefe, uma espécie de administrador dentro do jornal. Vieda visitava as empresas para angariar patrocínio para o jornal, contra- tava pessoas para trabalhar, cuidava do financeiro, recebia visitas, participava de eventos, dentre outros. Em Chapecó, o Diário da Manhã foi o primeiro jornal diário impresso a cir- ANNA LOIDE BIAZUS Fundo. Nas horas de folga, Vieda vendia cular na cidade, sendo distribuído para publicidade para os jornais e rádios da a comunidade. O jornalista sempre foi cidade, depois foi transferido para as- muito ativo na sociedade, participando oão Roman Vieda, como um jorna- sumir o cargo de gerente dos Correios, de clubes de serviço. Também, foi mem- lista autodidata, crítico e opinativo, em Tapejara, também no Rio Grande bro do Lions Clube. Em Chapecó, foi J transcrevia os acontecimentos do Sul, como falam em entrevista suas companheiro do Rotary Club. como eram, sem rasuras, amarras polí- filhas: Silvia e Maria Helena, “Como Vieda gostava de saborear bons pra- ticas e econômicas. aquela cidade não tinha nenhum meio de tos, um bom vinho e um bom whisky, Com todo seu conhecimento, baga- comunicação, Vieda reuniu as lideranças sempre ao final da tarde. Não dispensava gem cultural e inteligência, não escreveu políticas, e montou um estúdio em sua uma conversa com os amigos e gostava nenhum livro, mas, com sua capacidade própria casa, e, aos domingos, às 11 de ouvir uma boa música. Para ele não de interpretação e de escrever as no- horas da manhã, gravava os programas havia gêneros musicais. Gostava de tícias, foi condecorado na Academia que iam ao ar durante a semana”. Quanto ópera e, por ser rio-grandense, ouvia Passo-Fundense de Letras, quando encerrou a data prevista nos Correios música tradicionalista e popular brasi- trabalhava no Jornal O Nacional. Vieda, e Telegrafos, em Tapejara (RS), João leira. Vieda também gostava de cinema em 1935, com apenas oito anos de idade, voltou para Passo Fundo. Com 30 anos e literatura, assistia a muitos filmes, e trabalhava como jornaleiro e distribuía de serviço, Vieda se aposentou naquela declamar poesias, a exemplo de Jaime com sua bicicleta, de porta em porta, em entidade. Caetano Brum. Passo Fundo, o jornal da cidade. Vieda, o jornalista O jornalista permaneceu no jornal Com a morte de seu pai, Vidal Vieda, Como um bom publicitário, disse o Diário da Manhã até outubro de 1997, João, os irmãos e sua mãe Silvéria, vie- amigo Jesus Floriano Figueiredo, “João vindo a falecer no dia 03 de abril de ram de Uruguaiana para Passo Fundo, tinha uma vasta amizade com empresá- 1998, vítima de infarto. João Vieda está a fim de construir uma vida nova. Em rios de Passo Fundo”. Foi contratado sepultado no Cemitério Parque Jardim meados dos anos 50, ocupou o cargo de pelo Jornal, O Nacional, onde escrevia do Édem, em Chapecó/Santa Catarina. telegrafista na empresa Varig, e na Agên- uma coluna chamada, OPINIÃO LI- cia dos Correios e Telégrafos, em Passo VRE, que existe até hoje, conforme rela- (Anna Loide Biazus é jornalista, de Chapecó/SC.)

48 Água da Fonte Novembro de 2012 Emoção durante a apresentação, em Passo Fundo, do documentário “O Operário das Letras”

(foto: arquivo apl)

ANNA LOIDE BIAZUS deste ícone da comunicação regional. as horas. Nunca conheci ninguém com No sábado, em Passo Fundo (RS), du- a sagacidade e a força de vida que Vieda rante a exibição do vídeo, familiares de emanava”, disse Santina com lágrimas apresentação ocorreu no sába- Vieda, amigos e membros da Academia nos olhos. do, 18 de agosto, na Academia Passo-Fundense de Letras emociona- O presidente da Academia Passo- A Passo-Fundense de Letras. O ram-se ao ver na tela a trajetória pessoal Fundense de Letras, Osvandré Lech, documentário ‘O Operário das Letras’ e profissional de João Roman Vieda. enfatizou a importância do resgate histó- é um curta metragem que retrata a vida Filhos, netos e amigos embarcaram rico de alguém que marcou a sociedade, pessoal e profissional de João Roman numa viagem de volta ao passado, e em especial o legado que essa pessoa Vieda, um dos jornalistas mais atuantes, recordaram as belas lições de vida que deixou: “Para a comunidade acadêmica, que a imprensa escrita do oeste catari- ele deixou. “Sempre é bom relembrar a este documentário é um mérito. É im- nense já registrou. importância que o pai teve em nossas portante que este trabalho seja exibido Vieda, por mais de 40 anos, contribuiu vidas. Ele foi uma figura excepcional e nos meios acadêmicos, como forma de forma significativa com a construção marcou muito a sociedade” - destacou de instigar e mostrar a importância da do jornalismo crítico, independente a filha Silvia Scandolara. Maria Helena, pesquisa e da documentação dos fatos”. e isento. Nos rincões gaúchos, como, outra filha de João Vieda, lembrou o Osvandré destacou, à Anna Loide, seu por exemplo, a cidade de Tapejara amor que o pai tinha pela família: “A entusiasmo com o trabalho, e colocou-se (RS), e de forma contundente, Vieda família para ele era tudo, ele fazia o que à disposição para que o documentário se introduziu a comunicação, trazendo podia para ver todos os filhos bem, inde- propague na comunidade. vida e informação a um povoado que pendente da situação e do momento. A O documentário ‘O Operário das vivia praticamente sem notícias. Anos leitura foi um dos maiores ensinamentos Letras’ é um trabalho de Conclusão de mais tarde, no final da década de 80, que ele nos deixou”. O filho Paulo de Curso, na disciplina de Projeto Experi- Vieda foi a Chapecó assumir a direção Tarso, destacou que João Vieda foi “Um mental (PEX), do curso de Comunicação do primeiro jornal diário da cidade, o herói, exemplo de caráter, dignidade e Social/Habilitação em Jornalismo, da Diário da Manhã. Durante duas déca- de atitude”, finalizou. Unochapecó (SC). O vídeo é de autoria das, com sua inteligência e perspicácia, Vieda foi um membro atuante da da jornalista Anna Loide Biazus, sob a marcou época, fez história e conquistou Academia de Letras de Passo Fundo. A coordenação da professora de telejor- a sociedade chapecoense com seu modo acadêmica Santina Dal Paz expressou nalismo da Unochapecó, Ilka Margot peculiar e singular de ser. sua emoção ao lembrar do velho amigo, Goldschimidt. O documentário ‘O Operário das Le- “Sem formação acadêmica, João Vieda tras’ resume, em 34 minutos de vídeo, a foi um mestre e um doutor na arte de brilhante trajetória pessoal e profissional falar e de escrever. Um amigo de todas (Anna Loide Biazus é jornalista, de Chapecó/SC.)

Água da Fonte Novembro de 2012 49 Crescimento econômico de Passo Fundo: público ou privado?

ELMAR LUIZ FLOSS bons preços. O crescimento de Passo Experimental em Coxilha), que são as Fundo e da região depende, diretamente, mais representativas. do crescimento de toda essa cadeia. Em Os serviços de saúde também são cidade de Passo Fundo apre- Passo Fundo, as principais indústrias ge- grandes geradores de divisas, para o senta, nos últimos anos, um radoras de empregos, renda e impostos, crescimento econômico de Passo Fundo. A ritmo de crescimento econô- são ligadas ao agronegócio: Semeato, Milhares de pessoas, mensalmente, se mico superior à média do Estado do Kuhn-Metasa, BsBios, Italac, Doux- deslocam de mais de 400 cidades, do Rio Grande do Sul. As causas desse Frangosul, Bünge, Cotrijal, Mecânica Brasil e também do exterior, para aqui crescimento são as divisas obtidas com Bandeirante, dentre outras. Essa cadeia usufruir dos serviços hospitalares, dos o agronegócio, os serviços de saúde, de também movimenta grandes empresas laboratórios, clínicas e profissionais educação e com os serviços públicos. fornecedoras de insumos (fertilizantes, das mais diferentes especialidades. São São recursos financeiros que vêm de herbicidas, inseticidas, fungicidas, etc.), milhares de empregos gerados, além fora, para gerar emprego, impostos e cerealistas de abrangência regional, de renda e impostos para Passo Fun- renda, em nosso município. Esses re- revendas de máquinas e equipamentos do. Como a maior parte dos recursos, cursos financeiros também alimentam agrícolas de todas as marcas, grande públicos ou privados, para pagamento os setores “meio”, como o comércio frota de caminhões, comércio de com- desses serviços, vêm de fora, está aí e a indústria imobiliária. Somente há bustíveis e lubrificantes, agropecuárias, outra importante fonte do crescimento comércio forte e procura por imóveis, além de outros serviços. Também é um econômico de nosso município. quando a renda da sociedade aumenta. centro de geração e difusão de tecnolo- Merece também ser mencionado Esses setores são grandes geradores de gias, fundamentais para a produção ve- outro setor que gera divisas, para o empregos e renda, somente quando os getal e animal, com a Embrapa/Trigo, a crescimento de Passo Fundo, que são demais setores econômicos vão bem. Universidade de Passo Fundo, a Emater, os serviços de ensino. Anualmente, O agronegócio vive, nos últimos dois Brasmax, a Or Melhoramento de semen- milhares de jovens, das mais diferentes anos, um dos melhores momentos de tes, a Biotrigo, a Ambev, a Fundação regiões, vêm cursar o ensino superior toda a sua história. Foram dois anos de Pró-sementes, a Seeds-Laboratórios e ou o ensino médio particular, nas inú- safra recorde e, ao mesmo tempo, de Pesquisa Agrícola, a Pioneer (Campo meras instituições aqui existentes. Tais

50 Água da Fonte Novembro de 2012 estudantes, além do desembolso de quer o conhecimento dos gestores dessas O que vai bem em Passo Fundo é o recursos financeiros para o pagamento relações de causa e efeitos. Não se pode setor privado, enquanto o público está das semestralidades, também adqui- dizer que esse crescimento é sinônimo muito aquém do que a comunidade rem ou alugam imóveis, investem em de desenvolvimento, uma palavra mal merece. É preciso que os gestores pú- alimentação, vestuário e lazer, além de utilizada, com tanta frequência, pelos blicos se dêem conta de que aquilo que despesas no comércio, realizadas por gestores públicos. Não se pode falar em está sendo feito, nos serviços públicos alunos e seus familiares. desenvolvimento, numa cidade em que municipais, não é suficiente para atender Finalmente, por ser um pólo regional, milhares de crianças não têm creche; a demanda crescente da sociedade. há aqui a disponibilidade de serviços pú- onde falta uma política digna para os O crescimento econômico gerado blicos, federais e estaduais. Sua manu- idosos; onde o ensino fundamental do pelo setor privado tem proporcionado tenção é efetuada com recursos vindos Município têm desempenho abaixo da aumentos recordes, na arrecadação de fora. E atraem para cá, anualmente, média, nas avaliações; onde as ruas es- de tributos pelo município. Portanto, milhares de pessoas de toda a região, que tão esburacadas de ponta a ponta; onde o problema não é falta de dinheiro. É são obrigados a vir a Passo Fundo para os graves problemas de trânsito são ineficiência de gestão. buscar esses serviços nas delegacias ou apenas protelados, a saúde pública apre- coordenadorias regionais. senta índices abaixo da média regional, Portanto, o planejamento de um muni- e o aeroporto não recebe as melhorias (Elmar Luiz Floss é membro da Academia Passo- cípio, a curto, médio ou longo prazo, re- necessárias. Fundense de Letras.)

Poesia carlos javel do vale in memoriam

Anjos...

Que buscamos sempre que precisamos.. Que muitas vezes estão ao nosso lado e não são vistos... Que murmuram em nossos ouvidos, mas não são ouvidos...

Anjos..

Criaturas aladas... com o dom da paz... Seres mágicos em quem confiamos... Quem são vocês?

São pessoas amigas que estão ao nosso lado... São vozes serenas que nos acalmam a alma... São crianças que, com seus abraços, nos transmitem paz.

Quem nunca sentiu um Anjo? Quando fores abraçado por um filho, sente a paz que ele te transmite... Ao virar-te, olha as costinhas dele... Verás um pequenino par de asas... Ali está um Anjinho.

Anjos...

Quem são?

São nossos filhos, nossos amigos, vozes amigas...

Água da Fonte Novembro de 2012 51 Ivo Paim: quem foi?

JABS PAIM BANDEIRA Bertoglio, ou ainda, a um Célio Barbosa, até poderem divulgar a prata da casa, no piston! quando Ivo criou e comandou dois pro- Primeiramente, Ivo trabalhava na gramas na Rádio Passo Fundo. Um pela que Ivo Paim representou Estação Rodoviária, tendo um bar e um manhã: “Amanhecer no Rio Grande”; e para o nosso folclore? – Ele armazém, na rua Lava-Pés, esquina com outro à tarde, além de apresentações em O foi um precursor e semeador a rua Benjamin Constant, onde, ao anoi- clubes da cidade e no interior. do tradicionalismo. Por onde passou, tecer, reunia cantores, trovadores, violei- Com a fundação do CTG Lalau Mi- seus rastros fizeram brotar eloquentes ros e gaiteiros. Entre eles, Setembrino R. randa, ele passou a ser um dos integran- estrofes da tradição de nosso amado da Silva, Fábio Lima e seus irmãos, Iray tes ativos, como Posteiro, apresentando pago, dedilhando um violão, ou no Paim Varella, Vicente Ribeiro, depois no CTG, aos domingos, o programa ra- emblemático cancioneiro, retratado na chamado “Garoto de Ouro”, o maior diofônico das 13 horas. No palco, nossos retumbante voz e na melodia do Negri- repentista do Brasil, e tantos outros artistas e alguns de outras querências. nho do Pastoreio. valores, que transformavam em palco, As invernadas artísticas do Lalau eram Em cada lugar que palmilhava, deixa- a cancha de bocha, transformavam em comandadas por ele, que se tornou um va uma sementinha, quando não regava, palco, na esperança de brilharem em exímio professor de danças recolhidas com seu entusiasmo de menestrel, ou locais melhor estruturados, recebendo o de nosso folclore e de além-mar. sua verve de artista, o canteiro fértil aplauso e o calor do público. Era um so- Em 1954, levou o Lalau a se apresen- da terra. Nele brotavam as plantinhas, nho, que acabou, mais tarde, sendo real. tar no Rio de Janeiro, no programa Papel cultuando os feitos de nossos antepassa- Nesta época, eram muito raras as Carbono. Fez também grande sucesso, dos, já arraigados, taludos e difundidos músicas do nativismo gaúcho, a não ser no programa de Renato Murci, tornando nas mais diversas querências da pátria algumas recolhidas no folclore, desgar- o Lalau conhecido em todo o Brasil. gaúcha. Antecipou, como visionário, o radas e esparsas. As mais conhecidas e Ele e sua esposa Carmela faziam uma que seria nosso movimento cultural dis- executadas eram as sertanejas paulis- dupla afinada. Ela mandava costurar e seminado por outros estados em exterior. tas, que exerciam especial influência engomar os vestidos para as prendas da Ivo iniciou a semeadura de nossas em nosso público, como as letras de invernada. tradições aqui em Passo Fundo, fazendo- “Cavalo Preto”, e depois as de Pedro Neste meio tempo, Ivo passou a ser o em prosa e verso, através de músicas Raimundo, que era catarinense, com o funcionário da Caixa Federal e, mais gauchescas instrumentadas, e em parce- “Adeus, Mariana”, que ganhou intér- tarde, tesoureiro do grupo. Introduziu ria com artistas da terra. Descobriu e deu pretes e passou a ser executada como a dança da chula, sendo professor de vida aos “Manos Limas”, escondidos se gaúcha fosse. seu filho Alfredo, o Dinho, do sobrinho e esquecidos por falta de oportunida- Ivo então criou conjuntos musicais, Delger Xavier e do João Pereira, filho des, como também a Rômulo Goelzer, compostos, primeiramente, por ele e do Delegado Firmino Pereira. João foi Serraninho, Rancho Velho, Orlando e seus primos Irai Varella e Jacy Varella, campeão de chula do Rio Grande do Sul. Alfredinho, Paim Fingido da Sanfona, os quais faziam shows, incentivando ou- Ivo também formou dupla com sua fi- maestro Jacques, dona Mercedes, Dino tras parcerias. Algum tempo se passou, lha Marlene e com Nelci Paim, sobrinha

52 Água da Fonte Novembro de 2012 do grande e campeoníssimo trovador, Pedro mais gostava: as coisas do Rio Grande. Ribeiro da Luz, fazendo muito sucesso. Além dessa paixão pelo tradicionalismo, Nesse meio tempo, Teixerinha veio de So- Ivo foi também campeão de pingue-pon- ledade, com “um tiro ao alvo”, instalando-se gue, de xadrez e de bolão. Era um fanático na Avenida Brasil. Aqui procurou o Ivo, que pelo 14 de Julho, seu clube de futebol, que começou a auxiliá-lo, cedendo-lhe o pro- hoje é apenas saudade. Numa ocasião em grama da tardinha, na Rádio Passo Fundo. que o time perdeu, saiu uma “décima” Colaborou com Teixerinha, para que o anônima, uma espécie longa de poesia ri- mesmo vivesse mais condignamente com mada, com muitas estrofes, hoje em desuso sua família, nesta cidade, onde residia na rua e desconhecida, a qual dizia, entre outras Bororós, abaixo da gare. Teve a iniciativa coisas: “Como pode? O 14 perdeu o jogo, de custear a viagem dele, para gravar o seu e o Paim perdeu o bigode!”. primeiro disco, 78 rotações, em S.Paulo. Adorava animais. Quando via para a Promoveu apresentações, não só locais, mas Caixa Federal, levava comida para um também nos arredores, inclusive em circo, guaipeca que adotou, pois afora aban- cuja entrada era um disco de Teixerinha, donado na praça Mal. Floriano. Quando pois que vendendo certa quantidade, estaria o cachorro o via chegar, virava festa, só credenciado a gravar um long play pela gra- faltava bater palmas, que eram substituídas vadora Chantecler. Assim, ao encontrar esta por longos uivos e latidos, demonstrando maneira criativa, conseguiu seus objetivos. seu afeto e gratidão. Depois desta gravação, em que obteve Ivo fez parte da diretoria do Clube Cai- o mais amplo sucesso, como campeão de xeiral e do Juvenil. Foi autor de algumas vendagem, rodado em todas as emissoras, músicas e arranjos, entre elas, Saudade de ganhou o mundo e milhões de admiradores. Vacaria, que compôs com Irany Paim Va- Sobretudo a canção Coração de Luto, que rella, e dizia assim: “... Saudade, tenho sau- descreve a tragédia da perda de sua própria dade, da minha querência amada, saudade mãe, emocionou as pessoas, independente de Vacaria, do Passo da Encruzilhada....Ai, da classe social ou da idade. meu Deus, quando eu morrer, eu quero a Teixerinha levou o nome de Passo Fundo minha cruz, bem diante de Vacaria, divisa para todos os recantos, inclusive para o com Bom Jesus...” . exterior, elegendo-a como a cidade do seu O cantor faleceu em Porto Alegre, nascimento artístico. Em reconhecimento no ano de 1982. Da capela onde estava ao seu protetor, o cantor veio a ter um pro- sendo velado, até o túmulo, Teixerinha o grama, em P.Alegre, nos sábados a tarde, acompanhou, num lamentoso e emocio- na TV Piratini, passando o comando do nado discurso, entrecortado por lágrimas mesmo para Ivo Paim dirigir o espetáculo e soluços, pela perda do amigo. E assim televisivo. contagiava ainda mais todos que se des- Algum tempo depois, Ivo transferiu-se pediam daquele homem que confundiu a para Alegrete, onde foi eleito para o car- trajetória por onde tenha andado, com as go de Patrão do CTG, continuando o seu vertentes do pago e a tradição dos antepas- trabalho em prol das coisas do pago e da sados. Por certo, ele está dançando chula tradição gaúcha. no céu, pois, se São Pedro é gaúcho e o Mais tarde, recebeu uma promoção em papa João Paulo II também se dizia ser, P.Alegre, indo trabalhar na tesouraria geral devem estar entreverados, num fandango da Caixa Econômica. Na Capital, foi patrão de galpão, bem macanudo. do CTG 35, quando era no Prado Velho, Passo Fundo ainda não fez justiça a Ivo pelos lados do Moinhos de Ventos. Mas os Paim, em reconhecimento aos serviços proprietários vieram a pedir o prédio, tendo por ele prestados, a não ser a freqüente o 35 de se transferir para outro local. lembrança do notável jornalista, Antonio Foi então que Ivo construiu o antigo gal- Augusto Meirelles Duarte, em suas crôni- pão do 35, nos fundos da RBS, lá fazendo cas, utilizando o seu arquivo vivo. A ele parceria com Antonio Augusto Fagundes, o rendo minhas homenagens, pelo excelente velho Borghetti, e ainda com pai do Borghe- trabalho desenvolvido em prol dos nossos tinho, Paixão Cortes, Barbosa Lessa, com o vultos mais eminentes. Como ele, também poeta Jaime Caetano Braum e tantos outros. Ivo Paim é lembrado e citado, nas obras de Após deixar a patronagem, foi nomeado um contemporâneo e amigo seu, testemu- tesoureiro itinerante da CEF, substituindo nho do seu trabalho, o brilhante historiador tesoureiros em férias ou em licença prêmio, Welci Nascimento. nas agências pelo Rio Grande afora. Em cada cidade, se aquerenciava num Centro de Tradições, dava aulas de dança, apresen- (Jabs Paim Bandeira é advogado e membro da Academia tava programas, enfim, difundia aquilo que Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 53 ALCIDES SARTORI

Escola nossa “nova” Escola Fundamental está cumprindo seu papel? A Como a revista ÁGUA DA FONTE não é lida apenas por pessoas ligadas à educa- fundamental... ção e ao ensino, e para que este artigo seja bem compreendido, tomo a liberdade de, rápida e sucintamente, expor em que consiste o Ensino Fundamental, no Brasil. para quê? O Ensino Fundamental é um dos níveis da Educação Básica. É obrigatório, gratuito ( nas escolas públicas ) e atende crianças a partir dos 6 anos de idade. O objetivo do Ensino Fundamental Brasileiro é a formação básica do cidadão. Para isso, segundo o artigo 32 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação ) é necessário ( cito apenas três dos itens e os grifos são meus ): I – O desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II - A compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III- O desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores. Desde 2006, a duração do Ensino Funda- mental, que até então era de 8 anos, passou a ser de 9 anos. A LDB foi alterada em alguns artigos, através da Lei Ordinária 11.274/2006, que ampliou a duração do Ensino Fundamental para 9 anos, estabe- lecendo como prazo para implementação da Lei, pelos sistemas de ensino, o ano de 2010. Diante do exposto, nota-se que, idealmente, a criança brasileira deve terminar seus estudos fundamen- tais aos 14/15 anos. Já será, portanto, um jovem ado- lescente. E esse jovem, ao terminar o Ensino Fundamental, está preparado para en- frentar o Ensino Médio e, depois, a vida? Sim, a vida, e não o vestibular, o ENEM, a es-

54 Água da Fonte Novembro de 2012 cola profissionalizante e outras possibi- profissionais competentes, em todas as família, como primeiro responsável pela lidades que se lhe possam apresentar...O áreas, saindo de nossas universidades, educação. próprio nome diz: Escola Fundamental. se lhes falta o essencial, a base? Que- - Apoio financeiro expressivo dos go- Mas, ao terminá-la, será que nosso jo- remos construir a casa começando pelo vernos, federal, estaduais e municipais, vem tem hoje terá, pelo novo sistema, telhado? Como termos engenheiros, para o Ensino Fundamental, especial- os fundamentos para ser um cidadão cientistas, advogados, administradores, mente na formação cultural, filosófica crítico, consciente de seus deveres e di- etc., de primeira linha, se lhes falta, e científica dos professores. reitos, e preparado para enfrentar a vida? como universitários, o embasamento de Sem educação básica bem estruturada, Fundamento é alicerce, base, aquilo que um pensamento claro, lógico, indutivo, não teremos técnicos e cientistas de re- é essencial, necessário. dedutivo, crítico? nome. Basta olharmos para a Alemanha, E surge a pergunta: Não estariam E isso se consegue como? – Com o Japão, os Estados Unidos, a China, a nossos governantes, ultimamente e há uma escola fundamental forte, quali- Finlândia e, especialmente, para a Co- muitos anos, dando atenção especial, e ficada, que lhes possibilite adquirir os reia do Sul ( vejam os últimos resultados até demasiada, ao ensino universitário alicerces para uma educação científica do PISA ) que investiu maciçamente (PROUNI, FIES, bolsas de estudos e humanista, adequada aos tempos tão na educação e , em 40 anos, tornou-se no exterior, etc, etc.) e descuidando o exigentes de hoje. um país exportador de tecnologias e Ensino Fundamental? Para isso devem ser respeitados e produtos industrializados de alto nível. Minha longa experiência no ensino, colocados em prática alguns dos pres- Precisamos de pesquisadores, cien- em vários níveis, mas especialmente no supostos básicos para uma formação tistas, médicos, de grandes expoentes universitário, me fez, tristemente, veri- fundamental: em todos os ramos da ciência e das ficar e comprovar que, cada vez mais, - Professores bem preparados e bem humanidades? Sem dúvida. Mas não nossos jovens chegam despreparados remunerados. O professor do Ensino chegaremos a isso sem uma Escola para assumir seus estudos universitários, Fundamental deveria ser o mais exigido, Fundamental forte e de qualidade. como seria desejável. Na sua grande o mais preparado e o mais bem pago. Após cursar uma escola com essas maioria, não têm base cultural, não (Na Finlândia (ouvi numa entrevista características, os próprios jovens dominam basicamente nossa língua de sua Ministra da Educação), os alunos saberão escolher o caminho que mais falada e escrita, leem mal e usam seu que se destacam no Curso Médio por exitosamente os leve a desenvolver suas pensamento científico, reflexivo e crítico sua inteligência, preparo, cultura, visão potencialidades, como técnicos, tecnólo- com muita dificuldade... de futuro, comprometimento, etc., são gos, filósofos, educadores, agricultores, Sempre fui, e continuo sendo, um oti- motivados e induzidos pelo Governo a empreendedores, com ou sem títulos mista em relação aos nossos jovens e ao seguirem a profissão do magistério. E, universitários, mas com o máximo de nosso país. Mas considero que os resul- no Brasil, quem vai para o magistério, capacidade profissional e humana. O tados da formação escolar fundamental na sua maioria?! importante é que todos, com formação e média de nossos educandos deixa - Currículos adequados a cada região, fundamental ou universitária, colaborem muito a desejar! Não cabe aqui indicar em todos os sentidos; em que se vise a para que seus concidadãos, tanto do seu culpados, mas cabe, sim, uma reflexão preparação de alunos com pensamento país como do mundo, sejam melhores e séria: Os objetivos de uma boa educação indagativo e crítico. mais felizes, pois é isso que a verdadeira básica que, aliás, estão até bem expos- - Ambiente escolar adequado, física educação deve buscar. tos no artigo 32 da LDB, acima citada, e estruturalmente. estão sendo alcançados? Como termos - Papel fundamental e essencial da (Alcides Sartori é professor, de Passo Fundo/RS.)

Água da Fonte Novembro de 2012 55 Chimarrão

Aventino Alfredo Agostini suguei-lhe tantas vezes a alma quantas Quantas vezes os horizontes sobre vezes necessárias para ressuscitar a nós se debruçavam e copiavam nosso minha, se morresse por paixões traiço- amor para levá-lo como exemplo para o chegar ao rancho, o professor eiras. Vezes sem conta, suguei-lhe todo continentes além do mar (esse planeta o cumprimentou com um liso o conteúdo e saciado, abandonava-a e erótico e gerador de amantes)... Dor- A de conhaque, e para o desjejum, nas madrugadas, deixando-a vazia e míamos sob a custódia da fantasia que ofereceu-lhe queijo e azeite de oliva emborcada. Ela, mesmo assim, para sonhava inventar paraísos pela terra para não deixar que o álcool chegasse abrandar minha dor de amante solitário, inteira para crianças brincar de roda, com muita pressa ao interior dos centros matreira, mostrava-me os assentos que na roda de amigos que eternamente cerebrais: mestre e discípulo acredita- irradiavam calor de amor ardente que me amamos. Crescemos juntos e, adultos, vam que o álcool dissolvido no azeite devorava. Convencia-me sem qualquer descobrimos, um novo mundo infantil não seria prontamente absorvido pela palavra. Dela me rcaproximava e nova- onde crianças ou bonecas ou pequenas mucosa intestinal... mente com ela namorava. Alegre não cabritas aninhadas falavam e riam de nos Depois de um trago, o estudante se incomodava se lhe passasse a mão corno iniciados tresloucados. Crianças, perguntou: desavergonhada. Com perdão, sorria e bonecas ou cabritas fazendo cambalho- - E o chimarrão? se despia para me tas e recém-nascidas já pulavam a cerca O mestre apontou para a cuia abando- mostrar o botão umbilical que não para ensinar doutores. Mal acordados, nada na prateleira e desculpou-se­ como existia: era uma pequena mentira para ou de olhos apenas entreabertos ou enfu- gaúcho rebenqueado: manter viva a perrcepção dos meus sen- mados não sabíamos se no mundo exis- -A conselho médico, abandonei o chi- timentos. Essa rotina me desencadeava tiam entrelaçadas, bonecas, cabritas ou marrão. Claro! Da erva e.principalmente, prazer septicêmico contaminando o crianças amedrontadas... Pareciam fugir da cuia que me foi fiel. tenho saudade. corpo inteiro e, juntos, libavamos com da floresta humana como se os adultos Afinal, vivemos 40 anos. Não lembro de volúpia, de fazer inveja aos capetas. fossem filhos de bruxas malvadas. Jun- onde veio. Talvez do vale do Uruguai. Querubins afoitos, sugavam da nossa tos. Descobrimos crianças ou cabritas Mas, com certeza, nasceu de semente superfície corporal suor para adocicar ou bonecas que não fazem nem pedem plantada por mãos rudes, calejadas e o céu, assim nos diziam, e dos céus favores e também não perdoam pecados, curtidas pelo sol. que a depositaram no também desciam ate nós, deuses des- porque crianças, cabritas e bonecas não solo... Vingou de certeza quando o as- conhecidos pelos homens que velavam sabem pecar. Enfim, crianças ou cabritas tro “de raios fulgidos” iluminou minha nossos sonhos. Lágrimas dos nossos ou bonecas recém-nascidas, com cauda consciência de gaúcho e brasileiro e olhos também verterarn como a chuva equina, medula, bulbo, ponte cerebral e incendiou “meu peito juvenil”.,. e dela torrencial de nuvens passageiras que hipotálamo onde habitam os sublimes me apossei para moldá-la a meus capri- sobre a terra despejam as ilusões que e eternos instintos que não sabem ser chos, Conheci-a desde pequena, rústica perpetuam a esperança dos homens, e maus, nem conhecem o bem, mas su- e brava, pródiga e castiça como devem sob o olhar cristalimo dos olhos dessa portam com estoicismo a emergência da ser as fêmeas de raça. Delicada, apesar cuia, desfilaram imagens de virgens que afeição dos mamíferos, amizade e amor de ideal no metro dos peitos, de cintura se perderam santificadas peio prazer do neocorticais dos hominidas... Crianças e de bacia, refletia bem adornada a cor amor. Quantas vezes; ela e eu, entrela- que nos faziam temer o devir e talvez caramelada da mulher morena, macia çados, descobrimos a fantástica aventura esperassem de nós um horizonte para, como o olhar e a pele das felinas. Com de viver e de amar. Hoje, na prateleira quando fossem adultas, amar. ela fui, às vezes. grosseiro. irreverente, aposentada, a tomo e a deposito nos - Professor! Interrompeu o discípulo. egoísta e rude. Porém como a mulher meus abraços e se tenho o tremor dos Mais um trago de conhaque para louvar que me amou, perdoou eternamente velhos, ela sorri e me dis que já não o chimarrão, presente da Lua que faz minha incúria e indiferença, sentimento tenho o mesmo poder de arranque. No amigos! que mutila ou perverte mesmo o próprio entrevero das carícias, lembramos os O mestre, além de aceitar a oferta, esquecimento. Quantas vezes desta cuia dias e as noites eternas, quando nus. perguntou: recebi lições através do silencio, senhor como adolescentes, rolávaamos na - Vem cá, tchê! Teus amigos vem da sabedoria, que emerge das águas relva, na cama, no rio e na doce lama discutir o caso? O patologista que não profundas de um mate calado, como do pecado, como faz a juventude pelas tem tempo nem para dormir já está es- a boca que se fecha para calar ofensa paredes como os quadros eróticos de perando a turma... inútil ou para calar conselho supérfluo. um Picasso... vendo estrelas coloridas - Prometeram e estarão aqui na hora Nos beijos que saciavam minha sede, com a fúriaa multicor de Van Gogh... marcada.,,

56 Água da Fonte Novembro de 2012 - E aprenderemos, respondeu o mestre, com os estudantes como orientar filhos dos hominidas, sem deixar a conciência empalha, a inteligencia a serviço dos sociopatas, o pensamento trans- viado, a razão desvairada e a ética pandorgada. Não esquecer! Hoje é Quinta-feira Santa e de- vemos deixar as elites de banda. Com as asas da fantasia, chegaremos a Luanda para examinar, de perto, as origens do Universo e da Vida e o cromossoma matricial africano que gerou o homem, o pai dos deuses. Começar pelas ori- gens talvez seja o melhor para nos aproximar da verdade. O andar só para a frente e buscá-la, possivelmente dela nos afastaria. De certeza, concluiremos que promover a vida, e fazer profilaxia dos distúrbios do comportamento é melhor que remediar.

Nota: texto extraído do livro Para além dos répteis, 204.

(Aventino Alfredo Agostini é médico e educador, de Passo Fundo/RS.)

Água da Fonte Novembro de 2012 57 Sou um peixe

ELISABETH SOUZA FERREIRA lar. Mas não me apego a casa alguma. proteção. Se for para conviver com Posso ter milhares de outros peixinhos. alguém instável, prefiro nadar sozinha. Mas eles já nascem livres. Podem se Por mais que eu seja sensível, sou for- ou um peixe pequenino, a nadar deslocar livremente, tanto quanto eu. te. Detesto covardia. Tenho coragem sozinho no imenso mar da Vida. Por isso, não me apego aos filhos. para prosseguir, mesmo em direção ao S As águas profundas me atraem Posso conduzi-los pelo bom caminho. desconhecido. Se for preciso abandonar e seduzem. A cada instante, me deparo Porém, não posso obrigá-los a seguir o tudo o que sempre tive para ser feliz, com coisas novas que nem pensei que mesmo rumo escolhido por mim. A es- eu largo mesmo. Sem dúvidas. Sem existissem. Plantas aquáticas de rara colha é individual, apesar da orientação remorsos. Porque tudo o que faço é beleza. Algas marinhas. Pedras. Pérolas. ser coletiva. Posso colecionar um pouco feito com amor e por amor. Jogo-me Ostras. E uma infinidade de outros pei- de cada coisa que encontro por onde via- com total confiança em mim mesma, xes iguais a mim, ou totalmente diferen- jo. Amar cada molusco, cada pedaço de para encontrar os meus objetivos. Não tes. Minha natureza me dá uma energia conchinha encontrada no fundo do mar, vejo obstáculos no fundo do mar. Se que não me permite parar. Estou sempre cada grãozinho de areia, cada pedrinha houver algo no meu caminho, desvio o nadando em busca de algo melhor: Paz. estranha... Todavia, não me prendo aos problema. Contorno a situação. E sigo Nadar é algo mágico para mim. É bens materiais. Não posso carregá-los. em frente. Não sou caranguejo que dá como sonhar. Viver flutuando numa Eu vou para onde quiser. Mas eles ficam. um passo para a frente e dois para trás. realidade encantadora, cheia de espe- Porque, na verdade, nada daquilo que Nado alegremente. Adoro ter liberdade rança e luz. eu considero meu, é realmente meu. para fazer o que gosto, o que quero, Sem claridade interior, não se tem a Tudo o que existe dentro da água per- e do meu jeito totalmente particular. dimensão exata do que nos cerca. Não tence ao oceano. Inclusive eu. Todas as Se desejo passar pelo buraquinho de me deixo guiar pelos sinais apontados outras coisas existentes não são minhas. uma pedra, para alcançar as águas que pelo distante farol. Tenho uma lâmpa- Portanto, meu é tão somente aquilo estão atrás dela, insisto muito, mas não da dentro de mim. Minha consciência que eu posso carregar comigo. Minha costumo perder tempo com as dificul- me ilumina, aquece, e me permite ver consciência. Minha vida. Minha alma. dades. Minha paciência tem um limite além do que os meus olhos enxergam. Meu verdadeiro Eu, que não deixará de certo. Se me aborrecer ou cansar, dou Funciona como uma lanterna. Por mais existir, por mais que a minha pele venha meia volta e sigo em outra direção. E que esteja em dimensões escuras e a cair na rede de um mal-intencionado não volto nunca mais ali. Esqueço as sombrias, consigo identificar o perigo pescador. tentativas inúteis. Penso nas metas mais ameaçador e, também, o abrigo seguro Aparentemente, deixarei de existir. prováveis de atingir.Amo a minha vida. que me garante instantes de felicidade. Mas a minha paixão pela vida conti- E não me detenho. Nunca. Porque parar A existência não pára. Está sempre se nuará firme, nadando invisivelmente significa morrer. Viver é o meu símbolo. transformando. Mudando sem medo. por aquelas águas que tão bem me co- O meu lema. E sem piedade. Não me detenho em nheceram e mais além... Por isso, não parte alguma. Não me prendo a nada. me prendo a nada. Tudo é passageiro. Sou sinônimo de liberdade. Ir e vir. O Gosto de companhia. Mas de uma boa (Elisabeth Souza Ferreira é membro da Academia mar é o infinito. Posso construir um companhia. Que me dê segurança e Passo-Fundense de Letras.)

58 Água da Fonte Novembro de 2012 Querência-MT – Tchê!

ELMAR LUIZ FLOSS

stive fazendo uma palestra em Querência, no Mato Grosso, E localidade a 220 km adiante de Canarana. O município tem um milhão e 800 mil há de área, sendo a maior parte ocupada pela reserva indígena do Xingu, já nas proximidades do Pará. Na próxima safra de verão, serão cultiva- dos mais de 300 mil ha de soja, nesse município. Trata-se de uma região de colonização, que iniciou há aproximada- mente 40 anos. Muitos gaúchos diretos , e paranaenses, oriundos do RS, aqui se estabeleceram. Assim, não poderia faltar um grande e lindo Centro de Tradições, o CTG Pousada do Sul. pastagens se degradaram, com baixa praticamente o assunto foi esquecido. A região se constitui numa transição produção “animal”, não conseguindo As poucas obras em andamento estão entre o Ecossistema Cerrado e o Ecos- competir com a moderna e rentável muito longe das necessidades. sistema Amazônico, onde há muito calor produção de grãos. Todavia, isso não A grande obra ferroviária que está e chuva no verão. Uma estufa a “céu significa que haverá redução importante sendo gestada, no Governo Federal, é aberto”, como me definiu um produtor na da criação bovina. As fazendas que o trem-bala, unindo São Paulo e Rio de gaúcho, oriundo de Crissiumal. continuarão são aquelas que usam me- Janeiro. Segundo especialistas na área, O município fica, aproximadamente, lhor tecnologia no manejo de pastagens. esse custo pode chegar a 68 bilhões de a mil km da capital do estado, Cuiabá. Inclusive os grandes confinamentos, reais. Isso para levar, no máximo, 150 A estrada melhorou muito neste ano, altamente rentáveis, que existem em paulistas de SP ao Rio de janeiro, e 1500 comparado ao ano passado, quando pleno MT. cariocas a SP, por dia. Mas a passagem estive em Canarana. Por isso, há grande será subsidiada em 50% de seu custo. expectativa com o início de operação do O Brasil precisa de ferrovias Portanto, todos os brasileiros pagarão Aeroporto, em Água Boa, que vai apro- mais impostos, a fim de ajudar não mais ximar a região do Sul do Brasil. Para Quanto mais a gente conhece o Brasil de 3.000 viajantes por dia. E o pior: se ter uma ideia, os principais centros Central, e suas enormes potencialidades nossos filhos, netos, bisnetos e demais médicos e de saúde ficam em Ribeirão na produção de alimentos, tanto para o gerações pagarão impostos, para custear Preto e Barretos, no estado de São Paulo. mercado interno como externo, percebe- esse subsídio. se a fragilidade da logística. Praticamen- Seria muito mais viável ampliar os Novas fronteiras agrícolas te, todo o transporte de insumos, bem aeroportos de Guarulhos e do Galeão, e como o de grãos, é feito por caminhões o assunto estaria resolvido. Bastam mais Com os preços recordes da soja, que percorrem grandes distâncias. E seis vôos diários a mais por dia, para ga- no mercado, a área a ser cultivada no os elevados custos desse transporte re- rantir o deslocamento dessa população. próximo verão, será aproximadamente duzem, obviamente, a competitividade. E, sem subsídios. Com 25% desse valor 27% superior à área cultivada no último Em todos os países desenvolvidos, poderiam ser concluídas as grandes fer- ano. O Brasil ainda tem muito espaço emprega-se o trem para essa finalidade. rovias reclamadas a tantos anos, a fim que pode ser incorporado à agricultura. No Brasil, infelizmente, os investimen- de unir Sul/Norte, e Leste/Oeste. Tais Somente no MT, estima-se a incorpora- tos se concentram somente no transporte ferrovias aumentariam a competitivida- ção de mais 7 milhões de há, em curto rodoviário. de da agricultura brasileira, ampliando período de tempo. Isso tudo dentro das Nos anos de 2009 e 2010, houve um enormemente as exportações. Também rígidas leis ambientais, previstas no grande movimento, em favor de inves- sem subsídio. Ao contrário do trem- novo Código Florestal. timentos em ferrovias. No RS, a luta era bala, essa iniciativa trará vantagens aos As áreas a serem incorporadas são, pela extensão da Ferrovia Norte/Sul, que nossos descendentes, com o desenvol- principalmente, de pastagens degrada- uniria os portos de São Luiz, no Mara- vimento do país. das. Trata-se de áreas extensivas, ini- nhão ou de Belém, no Pará, aos portos cialmente desmatadas para implantação de Rio Grande, Santos e Paranaguá. de pastos e criação de bovinos de corte. Mas, passada a eleição, presidencial, de (Elmar Luiz Floss é membro da Academia Passo- Mas, devido ao manejo incorreto, essas governadores, senadores e deputados, Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 59 Antonino Xavier, segundo Dante de Laytano

MARÍLIA MATTOS Ciências Humanas, coube a revisão no nível de influência de sua pujança histórica. E a professora Lúcia Terezinha econômica e social. Saccomori Palma, então no Departa- O regresso de Francisco Antonino ra 1989. A Universidade de Pas- mento de Letras do Instituto de Filosofia Xavier e Oliveira, através do resgate so Fundo, por meio da Faculda- e Ciências Humanas, ficou encarregada da sua obra, renova toda a dedicação E de de Educação, então dirigida da revisão ortográfica. pela terra histórica e generosa de Passo pelo Padre Elly Benincá, nos solicitou Quando concluímos o trabalho, convi- Fundo, que junta progresso e tradição, a tarefa de resgatar a obra de Francisco damos o doutor Dante de Laytano para numa soma filosófica das mais respei- Antonino Xavier e Oliveira. O objetivo prefaciar a obra. Ele aceitou o convite táveis, pelo imenso acervo colhido e era oferecer subsídios para diferentes com alegria. Era admirador do trabalho trazido no bojo da obra. Revive um projetos de pesquisa. desenvolvido por Antonino, de quem grande historiador cuja modéstia de Aceitamos o desafio e nos debruçamos tinha sido amigo anos atrás. comportamento em nada prejudicou sobre a obra, por 10 anos. Resgatamos a Segue um trecho do prefácio: o reconhecimento de um sonho – que que já fora obra editada e a organizamos “A Universidade de Passo Fundo se transforma em realidade – que foi o em três volumes: Annaes do Município teve uma atuação que merece aplau- de escrever a história primorosa de sua de Passo Fundo – Aspectos Geográficos, sos, louvores e homenagem. Pois as cidade, sua Passo Fundo tão exuberante Aspectos Históricos e Aspectos Cultu- instituições culturais lutam com todo de fortuna e evocações”. rais. Éramos quatro pesquisadores. Eu, tipo de dificuldades, que vão das raízes Porto Alegre, 24 de maio de 1989. Marília Mattos, neta do autor e, na épo- financeiras dos problemas aos variados Dante de Laytano ca, professora do Instituto de Ciências conceitos psicológicos de apreciação, ou Presidente da Academia de Letras do Exatas e Geociências (Departamento méritos de cada intelectual. É um traba- Rio Grande do Sul. de Geociências). Além de coordenar a lho digno, que restaura a lembrança de equipe, na revisão geográfica da obra, um pesquisador que, embora insistisse (Dante de Laytano (1908-2000) foi jornalista, escritor trabalhei ao lado da professora Jandira na sua modéstia, era de fato um sábio de vasta obra histórica, docente e pesquisador da UFRG Maria Cecchet Spalding, então docente homem, voltado à antiguidade de sua e da PUC/RS, membro da Academia Rio-Grandense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio do mesmo departamento, ao professor terra, seu torrão, sua cidade, cujo amor Grande do Sul e da Academia Brasileira de História.) Ari Carlos Ribeiro de Moraes Fernan- devoto a Passo Fundo o levou a defen- (Marília Mattos, neta de Anatonino Xavier e Oliveira, é des, que pertencia ao Departamento der, escrever e cuidar, com exigência, professora aposentada do Instituto de Ciências Exatas e de História do Instituto de Filosofia e da história de seu burgo progressista, Geociências/Universidade de Passo Fundo.)

Poesia F. A. XAVIER E OLIVEIRA in memoriam Consciência

Pensar antes de agir, assim buscando Eis o melhor caminho que lobrigo a luz esplendorosa da razão, para a jornada rude da existência, e agir tranquilamente, observando no planeta que temos por abrigo, o seu conselho sempre nobre e são; onde, salvando errônea inteligência, Vender o sentimento, procurando entendo que não há mais vero amigo contê-lo em seu lugar, no coração, que o parecer brotado na consciência. para que deste apenas saia quando puder verter sem ódio ou prevenção:

Passo Fundo, 4 de outubro de 1929

(Francisco Antonino Xavier e Oliveira foi membro fundador do Grêmio Passo-Fundense de Letras, em 7 de abril de 1938.)

60 Água da Fonte Novembro de 2012 Poesia simone do valle müller

Docemente

Ó meigo semblante de poeta, num mundo que violenta nossos nobres sentimentos! Ó terno Quintana, da Rua da Praia, do Hotel Presidente! Sempre lembrado em todas as gerações, por todas as pessoas sensíveis. Ó arte de escrever, minuciosamente, um caminho para os sonhos! Doce é ver esse rosto vivido, esses olhos experientes, cheios de poesia. Ó Mário silente, de toda a Porto Alegre, de todo o Brasil, em todos os corações! Certeza de lembrança eterna! Ó figura cálida que estampa bondade! Docemente, devoto-lhe toda a admiração!

Mais que palavras

Acho que quando se quer dizer uma coisa simples, guardada, conservada e cultivada, não existem palavras. Existem formas de provar tudo o que é sentido, sem ser explicado. Não se conceitua um sentimento. Sob o azul do teu olhar Ele é sem medidas. Ele é um valor, transformando vidas. Quero Te envolver seguramente, Enquanto o tempo passa depressa! Quero Te guardar num lugar novo, Dentro de um poema, Coberto de amor! Quero Te lembrar de que não te esqueci, Apesar das estradas e dos mundos Que percorremos separados! Quero Te querer eternamente: agora e aqui, Ou amanhã e lá... no céu, Junto ao teu olhar!...

(Simone do Valle Müller é psicóloga e psicopedagoga.)

Água da Fonte Novembro de 2012 61 Aveia na “bucólica” Aberystwith

ELMAR LUIZ FLOSS de Aberystwith. A primeira se realizara Wisconsin/EUA, também “patrono in- em 1982, nos Estados Unidos. Seus ternacional da aveia”, fomos convidados objetivos consistem em congregar a a participar do evento e apresentar, de s principais meios de comu- comunidade científica internacional forma oral, o trabalho “Melhoramento nicação, no final de semana, envolvida com a pesquisa da aveia. genético da aveia, na Universidade de O noticiam as comemorações Participei também das Conferências Passo Fundo, 1976-1984”. do aniversário da Rainha Elizabeth II, Internacionais de Aveia, em Saskatoon/ Tive assim a felicidade de conhecer Chefe de Estado do Reino Unido. A mo- Canadá (1996), em Helsinke/Finlândia os principais pesquisadores de aveia narquia inglesa se mantém, apesar dos (2004), em St.Paul/Estados Unidos dos mais diferentes países, e aprender inúmeros escândalos. E, a partir da In- (2008). E em Pequim/China, entre os muito com eles. Vi lavouras de aveia- glaterra, estende seu poder sobre muitos dias 20 e 23 de junho de 2012. branca, trigo e cevada-cervejeira, com outros países, como a Escócia, a Irlanda Já estava em andamento, desde 1977, potenciais de rendimento acima de 8t/ha. do Norte o País de Gales. Todavia, os um Programa de Pesquisa de Aveia, na Na época, nossos rendimentos médios resquícios do grande Império Britânico Universidade de Passo Fundo, com a estavam próximos a 1800 kg/ha. ainda exercem forte influência, política criação de cultivares e o desenvolvi- A oportunidade de conhecer um e cultural, sobre o Canadá, a Índia, a mento de tecnologias de manejo e uso país absolutamente invulgar, foi pra Austrália e a Nova Zelândia. desse cereal. Em 1985, nas estatísticas mim inesquecível. A lembrança que Em 1985, tive a feliz e inesquecível da produção agrícola mundial, o Brasil eu tinha do País de Gales era o sofrido oportunidade de conhecer o País de já começava a aparecer. Por essa razão, e jogo pelas quartas-de-final na Copa do Gales, ao participar da II Conferência pela indicação do Dr. Hazel Lee Shands, Mundo de 1958, com apenas 8 anos de Internacional de Aveia, na cidade galesa professor emérito da Universidade de idade, naquela difícil vitória do Brasil

62 Água da Fonte Novembro de 2012 por 1 x 0. E, somente quando já estava pois a população tentava aproveitar os pesquisadores para participar de eventos na Alemanha, a fim de embarcar para poucos dias de sol disponíveis, durante internacionais. Apesar da proximidade Londres, procurei algo parecido com o o ano. Assim, com tal temperatura, (para com a Perestroika, ainda vivíamos no “País de Gales”, mas não achei. Aprendi nós baixa para ir à praia), lá estavam tempo da guerra fria. A falta de liberdade que o país, em inglês, chama-se Wales. as mulheres tomando banho de sol, e era marcante. Antes da apresentação de Todos os participantes chegaram a Lon- muitas de “top-less”. um trabalho por um pesquisador russo, dres pelo Aeroporto de Heathrow. Um Outra característica marcante, resul- ele, formalmente, pedia licença a um ônibus da University College of Wales tado de muitas batalhas pelo domínio dos chefes que o acompanhava. Na (hoje University of Aberystwith) nos daquela região, são os prédios em ru- hora dos questionamentos, nosso inter- levou até essa localidade, na região do ínas, especialmente nas proximidades locutor repetia a pergunta ao chefe, em Ceredigion, no longínquo País de Gales. do porto, alguns reconstruídos e outros russo, e somente respondia quando era Uma cidade de, aproximadamente, mantidos deliberadamente em ruínas, autorizado. Várias perguntas não foram 16 mil habitantes , mas com mais de 8 como motivo de atração turística. A ali- respondidas. mil alunos na Universidade. O evento mentação básica é a carne de cordeiro, Para conhecer um pouco mais sobre o ocorreu em julho, durantes a férias já que a região é grande produtora de interior do País de Gales e a Inglaterra, locais. Por isso, o movimento na ci- ovinos. Também, em todas as refeições, viajamos de Aberystwith a Londres, de dade era muito pequeno. Ainda se fala havia para salada: “brotos” de alfafa. carro alugado, juntamente com o Prof. oficialmente duas línguas: o inglês e o Todos os participantes, aproxima- Marshall Brinkman, da Universidade de galês. Uma cidade “bucólica”, tanto nas damente 100, foram hospedados em Wisconsin. Passei o sábado em Londres, construções como nos hábitos culturais. belíssimos apartamentos individuais, na e no domingo fui de trem ao porto de Todas as casas são de madeira na ho- própria Universidade. A Conferência foi Harwich, onde embarquei num navio rizontal e pintadas de cor cinza. Elas organizada em conjunto, pela Universi- para a Holanda, afim de visitar a famosa não têm número de identificação, e sim dade de Aberystwith e pela Welsh Plant Universidade de Wageningen. Foi outra o sobrenome da família que ali reside. Breeding Station (“Estação Galesa de visita inesquecível, pois que a Holanda A praia é coberta por um pedrisco, e Melhoramento de Plantas”). Iniciou no é verdadeiramente um jardim. sem areia. Não fazia calor durante o domingo à noite e encerrou-se com um evento, ficando a temperatura média almoço, na sexta-feira seguinte. Depois do dia entre 14 e 20oC. Mesmo assim, todos voltaram a Londres. Foi uma das (Elmar Luiz Floss é membro da Academia Passo- durante a tarde a praia ficava lotada, poucas vezes que a Rússia liberou seus Fundense de Letras.)

Poesia carlos javel do vale in memoriam

Gotas

Que sejam de esperança... Não podem faltar... Que sejam de amor... Para que sempre tenhamos esse sentimento Dentro do coração... Que sejam de paz... Para que possamos aliviar um pouco a humanidade... Que sejam de compreensão... Para entendermos melhor os incompreendidos... Que sejam de união... Para juntarmos nossos corações em um só objetivo.... Que sejam de perdão... Para que não hajam mágoas no coração... Que sejam de sabedoria... Para enchermos os espíritos de elevação... Que sejam de humildade... Para que possamos aprender muito mais... Que sejam de coragem... Para nunca desistirmos da vida...

Que tudo isso seja, ao menos, em gotas...

O que não pode é faltar.

Água da Fonte Novembro de 2012 63 Um boi chamado Coração

GETULIO VARGAS ZAUZA Jaguarizinho, em Santiago, à beira da pois dobrou os membros anteriores, mata ciliar. Sua frente estava voltada ajoelhou-se, para em seguida dobrar os para o poente. O terreno era inclinado posteriores. A seguir, tombou para o lado a verdade ele não era um boi. e ia subindo, inicialmente, num ângulo e ficou sem se mexer. Era um reprodutor. Mas, ao de aproximadamente trinta graus, até Estranhei essa conduta, fui até onde N mesmo tempo, um trabalha- mais ou menos setecentos metros, onde ele estava, toquei-o, mas ele não reagiu. dor. Era boi de canga e arado. Por esse terminava a área de grama, e passava Assustado e angustiado, quase choran- motivo passou a ser considerado boi. à inclinação de seus quarenta e cinco do, corri para a cozinha onde estavam os “Coração” era seu nome, porque na graus, onde começava o chapadão. adultos, a fim de avisá-los. Todos foram parte frontal da cabeça, entre as aspas, Nessa área de grama ficavam todos os para fora ver o que havia acontecido, havia uma mancha branca com a silhueta animais: porcos, galinhas, cabritos, ca- para eu estar tão agitado, uma vez que, de um coração real. Essa mancha era valos, bois, etc., separados de uma área normalmente, era calmo. realçada pela cor grafite claro de sua de plantação, por uma cerca (taipa) de O coração estava morto. pelagem total. Seu porte era robusto, pedras que percorria alguns quilômetros. Foi uma grande tristeza para mim e não muito alto, mas encorpado, e pos- Essa taipa formava um arco que come- para todos, pois ele era um ente querido suía uma força fenomenal. Sua força e çava na margem do rio, passava por por todos nós. disposição eram tais que, muitas vezes, dentro do mato e desembocava na beira Resolveram examinar e encontrar a era necessário atar um tomoero na pon- do barranco, de modo que os animais, causa de sua morte. Abriram-no e cons- ta da canga do seu lado e, na primeira particularmente os porcos, circulavam tataram que seu coração havia dilatado travessa da carreta, que é encaixada na em toda a extensão. e essa seria a causa da morte. longarina, para que seu companheiro Na época de clima quente ou tem- A constatação causou mais tristeza em não fosse empurrado para trás, contra o perado, eu gostava de sentar-me, ao todos nós e um certo sentimento de cul- coice da carreta. entardecer, na escada na frente da casa, pa, pois talvez fosse devido ao esforço Era extremamente manso e obediente, a fim de contemplar o espetáculo do despendido no trabalho. que eu, apenas com sete anos o conduzia lento por-do-sol. Resolvi contar essa história, nesta tranquilamente para qualquer lugar, em Certa vez (eu tinha nove anos), estava revista, porque, sempre que me vem geral ao rio, para beber água. sentado na escada, esperando que o sol esta lembrança, tenho vontade de chorar. Uma das coisas de que eu mais gosta- se escondesse atrás do cerro, para as- Nunca mais pude alcançar em sua va era quando, ao entardecer, ele vinha sistir ao crepúsculo, com suas infinitas boca as tão apreciadas espiguinhas de junto com os outros bois de trabalho, nuances de cores, no céu ainda azul. milho!... na porta do galpão, e eu alcançava, na Quando ainda havia uma meia hora boca de cada um, restolhos de espigas de sol, o coração veio, lentamente, se Adeus, coração! de milho. Ele era o que parecia deliciar- aproximando da área de grama. Tendo se com isso. avançado uns trinta metros, parou! E A casa de meus pais estava localiza- como se também quisesse contemplar (Getulio Vargas Zauza, psicólogo clínico, escritor e da a uma distância de mais ou menos o anoitecer, levantou a cabeça, ficou membro da Academia Passo-Fundense de Letras. Email oitocentos metros, da margem do Rio alguns segundos nessa posição, de- para contato:[email protected].)

(Ilustração: Vasco Machado)

64 Água da Fonte Novembro de 2012 A menina e o Facebook

SUELI GEHLEN FROSI e ter as tarefas escolares prontas, nem seus colegas e amigos, é filha única e pensar! 3) Em dia de sol, tem que brincar necessita de interagir, tagarelar e trocar; lá fora. 4) Comportar-se com educação a novidade proporcionou aos pais uma menina de oito anos estava e respeito, com todas as pessoas com preocupação a mais, mas viram a filha louca por uma página no Fa- quem entrar em contato, como se fosse levantar mais cedo, tomar café e sentir A cebook, e usou o domingo para ao vivo. necessidade de lanchar no meio da ma- pedi-la. Os pais, temerosos, argumenta- A sanção para o não-cumprimento das nhã; deu a chance a eles de conversar ram sobre a necessidade de se ter dezoito regras: fechamento imediato da página sobre comportamento ético, sobre os anos, sobre a possibilidade de invasão de relacionamento. Acostumada com perigos da internet, sobre delicadeza e de desconhecidos, sobre o tempo que regras e com o cumprimento delas, a respeito. Constatou-se mais prontidão seria dispensado à página todos os dias. menina aceitou tudo e, relutante, foi para os estudos; viu-se que a pouca Mas a menina, filha única, insistiu e dormir. A vontade dela seria continuar habilidade para teclar- com um só dedo – argumentou também. Disse ter amigos conversando com seu primo, mas o ho- deu lugar a uma agilidade muito maior, e com “face”, disse ter saudades das tias rário de dormir – regra anterior – havia com o uso de mais dedos, capacitando-a e tios, e que aceitaria as restrições que chegado. para outras tarefas. lhe seriam impostas. Na manhã seguinte, sua avó acordou Diante das ofertas que a tecnologia A elaboração da página pela mãe foi cedo e deparou-se com a neta toda ar- traz, cabe aos pais não rechaçá-las, mas acompanhada com ansiedade, e a posta- rumada, de uniforme do colégio, cabelo tomar as providências de segurança de gem de fotos, nem se fala! Mas a chega- escovado, toda linda e... teclando. Havia que os filhos necessitam. Deixar crian- da de convites de amizade causaram-lhe uma fila de pedidos de amizade não acei- ças soltas, diante do computador, é como um frenesi. Foram gastas duas horas ta, que passou pelo crivo da avó. Sim, já abandoná-las na rua à noite. A internet é para que tudo começasse a funcionar e havia tomado café – banana com granola lugar público, que exige cuidados e um para que a menina conseguisse entender e leite e os dentes estavam impecáveis. comportamento adequado, sem dar lugar o funcionamento da coisa. Aí começou E, sim, as tarefas haviam sido feitas, só à exposição exagerada, nem chance de tudo... faltava estudar para a prova de língua que a inocência seja violada. Atenção Face funcionando, menina excitada, portuguesa, coisa que foi cobrada a e cuidado são pressupostos para quem pais preocupados e, como não poderia seguir pela mãe, no telefone, e que ela trata com crianças, e amor e proteção deixar de ser, começou o estabeleci- estudou, sim, um monte. A avó ainda são direitos inalienáveis de todas elas. mento de regras: 1) Não pode aceitar está contando pra todo mundo... ninguém sem supervisão. 2) Entrar na Do resultado de algo tão simples e tão página sem tomar café, escovar os den- perigoso pode-se tirar algumas conclu- (Sueli Gehlen Frosi é membro da Academia Passo- tes, arrumar os cabelos, trocar de roupa sões: a menina, assim como muitos de Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 65 A Revolução Farroupilha

(Ilustrações: pinturas de Vasco Machado)

ROMEU GEHLEN expulsos do Rio Grande. A expansão uniram-se aos líderes revolucionários, militar espanhola objetivava abranger chefiados por Bento Gonçalves. o território gaúcho, o Uruguai, a Argen- O espírito de luta e a coragem dos império brasileiro enfrentou a tina, o Paraguai e a Bolívia, criando o farrapos despertaram a atenção até de mais longa e difícil revolta de vice-reinado do Rio da Prata. poetas. O imortal Olavo Bilac descreveu O todos os tempos, quando os Não se pode negar, todavia, que o o gaúcho engajado na luta farroupilha: “farrapos” se levantaram imponentes povo gaúcho sempre defendeu ideais contra o poder centralizador, autoritário, de liberdade, não se curvando a go- “Farrapo”: Esse nome, criado pelo escravagista, dos idos de 1835. vernos autoritários e de desmandos. desprezo, foi nobilitado pela glória; a O Brasil prosperava às custas do Mesmo quando eclodiu a revolução inevitável glória da justiça do tempo trabalho escravo, embora inúmeros de 1835-1845, os líderes da revolução transformou o epíteto injurioso em título movimentos e posturas de literatos, proclamavam outros estados brasileiros de suprema honra. Eram desgraçados, sociólogos e historiadores mantivessem para cerrarem fileiras na luta pelos seus sim, eram pobres, eram maltrapilhos, posição contrária ao regime. ideais. É bem verdade que, em 1836, os aqueles guerreiros que, para não morrer O Rio Grande do Sul assumia fre- farrapos proclamaram a República de de fome, contentavam-se com um boca- quentes batalhas em defesa do territó- Piratini, com Bento Gonçalves como do de carne crua;acampavam e dormiam rio nacional. Ainda assim, o Uruguai Presidente, e estenderam sua luta até o ao relento, com a face voltada para as conquistou sua independência (1828), Estado de Santa Catarina, onde houve estrelas; não tinham dinheiro, nem uni- mas o povo rio-grandense mantinha-se a participação de Giusepe e Anita Ga- forme, e não podiam renovar as botas fiel, na defesa da unidade territorial. ribaldi. e os ponchos que o pó das estradas, as Ao contrário do que muitos pensam, o Os impostos elevados que incidiam balas, as cutiladas, as chuvas, estraça- gaúcho sempre defendeu a sua pátria e sobre os produtos aqui produzidos, es- lhavam e apodreciam; - mas prezavam o o território brasileiro, não construindo pecialmente a taxação sobre o charque seu nome de “Farrapos” e tinham orgu- ideais separatistas. É bom lembrar que, e o couro, e as políticas mercadológicas lho da sua pobreza; - e eram mais ricos praticamente, todo o território do Rio impostas pelo governo central, deter- assim, possuindo apenas o seu cavalo, a Grande do Sul pertencia aos Sete Povos, minavam sérias perdas aos produtores sua garrucha, a sua lança e a sua bravura. terras nominalmente do domínio da gaúchos. Os índios e os negros escra- Cenobitas da religião cívica, anacoretas Espanha.E os gaúchos sempre lutaram vizados acabaram fazendo parte ativa da guerra, vivendo no imenso e fúlgido em defesa desse território, sendo que, desse movimento. Ciosos de liberdade e ascetério do “pampa”, esses primeiros somente em 1776, os espanhóis foram na defesa de seus direitos fundamentais, criadores da nossa liberdade política

66 Água da Fonte Novembro de 2012 não olhavam para si. Olhavam para a estepe infinita que os cercava, para o infinito céu que os cobria, - e nesses dois infinitos viam dilatar-se, irradiar e vencer, no ar livre, o seu grande ideal de justiça e de fraternidade. Alguns autores e escritos da época afirmam que David Canabarro, um dos líderes da Revolução Farroupilha, teria se mancomunado com as tropas impe- riais de Caxias – o Duque de Caxias –, para dizimar os temíveis “lanceiros ne- gros”, que faziam fileira à tropa farrapa. O objetivo dessa traição visava conquis- tar a lavratura da Paz de Ponche Verde, que acabou acontecendo nos campos de Dom Pedrito. Desarmados e separados da tropa, numa armadilha relatada como o famoso “massacre dos porongos”, os “lanceiros negros” sucumbiram brava- mente diante das tropas imperiais. Importa destacar, porém, que a Revo- lução Farroupilha foi um marco incon- testável de luta em favor da abolição da escravatura. A ideia de humanidade e de liberdade contrastava com o regime escravocrata vigente no Brasil. Daí se seguiram vários atos em direção à defini- tiva libertação dos escravos. A proibição do tráfico de escravos, a Lei do Ventre Livre e tantas outras leis, culminaram com o ato da Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888 (Lei Áurea), quando foi declarada a abolição da escravidão. Se é verdade que a Guerra dos Farra- pos teve a hegemonia dos fazendeiros, realizar por essa viril e destemida gente, com o mesmo desembaraço como se não menos verdade é que ela foi pro- que sustentou, por mais de nove anos fosse uma ponta de gado! tagonizada pelos índios, pelos negros, e contra um poderoso império, a mais No entanto, quantos ainda duvidam pelos mestiços e pelos brancos de pouco encarniçada e gloriosa luta. Não tenho dos verdadeiros ideais farroupilhas, pe- poder aquisitivo. Com bravura, altivez escrito semelhante prodígio, por falta los quais esses homens lutaram! Quan- e sem medo do perigo, os farroupilhas de habilitações, porém a meus compa- tos ainda se envergonham e zombam mostraram o seu valor e a sua têmpera nheiros de armas, por mais de uma vez, desses heróis, que lutaram por dez anos indeclinável e férrea. No dizer do ro- tenho comemorado tanta bravura nos contra o poderoso exército imperial, mancista José de Alencar, À têmpera combates, quanta generosidade na vi- por ideais de liberdade e fraternidade, d’alma sucede o mesmo que à têmpera tória; tanta hospitalidade, quanto afago em defesa desses campos então ainda do aço: em sendo boa, quanto mais se aos estrangeiros. E comemora também verdejantes, com florestas agrestes, de lhe calca, mais forte ela brande. a emoção que a minha alma, então ainda campinas, planícies e montes de belezas Os heróis farroupilhas serviram como jovem, sentiu na presença e na majesta- indescritíveis! paradigma para outras revoluções. Giu- de de vossas florestas, na formosura de Se é certo que existem muitas di- sepe Garibaldi, em igual luta libertária vossas campinas, nos viris e cavalhei- vergências sobre os verdadeiros ideais na Itália, lembrou os nossos valorosos rescos exercícios de vossa juventude farroupilhas, também é certo que o guerreiros: corajosa. E, repassando pela memória, gaúcho tem orgulho de sua terra. Por Eu vi corpos de tropas mais nume- as vicissitudes de minha vida entre vós, isso, canta as suas planícies e planaltos, rosas, batalhas mais disputadas; mas em seis anos de ativíssima guerra e da exalta a natureza, e não são poucos os nunca vi, em nenhuma parte, homens prática constante de ações magnânimas, poetas que se inspiram na beleza da mais valentes, nem cavaleiros mais como em delírio, brado: - Onde estão música gauchesca, dos contos e poesias brilhantes que os da bela cavalaria rio- agora esses buliçosos filhos do Conti- que lembram nossos pássaros e antepas- grandense, em cujas fileiras aprendi a nente, tão majestosamente terríveis nos sados, e que elevam a alma do gaúcho. desprezar o perigo e combater digna- combates? (...) Oh! quantas vezes tenho mente pela causa sagrada das nações. desejado, nestes campos italianos, um só Quantas vezes, eu fui tentado a patentear esquadrão de vossos centauros, avessa- (Romeu Gehlen é advogado, professor da UPF e ao mundo os feitos assombrosos que vi dos a carregar uma massa de infantaria, membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 67 Poesia jurema carpes do valle in memoriam

A caridade

Na alegria de ofertar Um pedaço de pão, Um sorriso, Na tristeza profunda de constatar A inversão de valores, Cada vez mais crescente, Na perseverança de crer, No incerto amanhã, No altruísmo, Repousa a Caridade. Caridade é amor! Para com o próximo, - a Obra; Para com Deus, – o Autor!

Trajetória

Buscas Inspiração Aventuras Laços Através da arte Abraços Procura o artista Traços Fixar A eternidade da significação Marcam passagens De um momento. Viagens Bagagens Passos Lassos

Indicam retorno Anelos Elos Ternura Ventura

Marcam regresso.

De qualquer modo

Grata: Pelo não: O desafio faz com que se cresça. Pelo sim: O apoio é incentivo. Por discordar: Não se é dono da verdade. Por concordar: Anima a que se prossiga. Pela crítica: É sinal que se existe. (Jurema Carpes do Valle pertenceu à Academia Passo-Fundense de Letras.)

68 Água da Fonte Novembro de 2012 Patriotismo

ALBERTO ANTONIO REBONATTO

atriotismo significa amor à Pátria. A maneira de demonstrá-lo varia P de acordo com os costumes e a educação de cada povo. No Brasil, essa demonstração de amor se sublima na Semana da Pátria que, normalmente, culmina com um desfile do qual partici- pam segmentos da sociedade, estudantes e instituições civis e militares. Sabemos que a Semana da Pátria não é a única maneira de mostrar pa- triotismo, mas é uma delas. Será que continua a mesma de algumas décadas atrás? Quem tem mais de 30 anos sabe que não. E o pior, está em acentuado declínio. Hoje, dá para afirmar que a haviam sido ofertados por entidades lo- vimento, que oferecia apoio financeiro Semana da Pátria se resume ao dia 7 cais. Foi uma cena comovente. Ao som e técnico, aos países que seguissem os de setembro, mais precisamente, ao do Hino Nacional os meninos, alguns princípios educacionais elaborados por desfile. Nada de bandas, de público ou de camiseta nova, outros, de camisa ela. Só entre os anos de 1964 a 1968, de entidades nos demais dias. Nada de comum, alguns de tênis ou chuteiras, foram assinados 12 acordos. participações populares, nas cerimô- outros, com simples chinelos de dedo, A redemocratização do país, com o nias de hasteamento e de arriamento mas todos perfilados em posição respei- pretexto de modificar a orientação cí- da bandeira, ou na guarda de honra ao tosa, cantavam com entusiasmo o nosso vico-educacional, simplesmente aboliu Fogo Simbólico. Abstraindo a Semana Hino maior. Ao redor do campo, adultos, dos currículos escolares as disciplinas da Pátria, que outras demonstrações de alguns pais ou parentes daqueles meni- de EMC e de OSPB, sem substituí-las patriotismo ocorrem nos demais dias do nos, sem valorizar o ato, assistiam à ceri- por outros com conceitos mais condi- ano? Será que nas escolas o ensino do mônia com posição corporal desleixada, zentes com a democracia conquistada. civismo faz parte do currículo regular? conversando e fumando, formando um Esta parece ter sido a principal causa Será que ainda se hasteia a Bandeira e contraste chocante. É verdade que não da aparente letargia cívica que tomou se cantam hinos pátrios nos colégios? eram todos, mas a maioria. Será que conta das gerações que se seguiram. E Professores relatam que horas cívicas desaprendemos amar o nosso Brasil? é essa letargia que precisamos sacudir. são esporádicas, e que alguns alunos Sabemos que, recentemente, o país Há urgente necessidade de pregar a volta nem sempre mantém postura condizente passou por mudanças. Saiu de um do sentimento de amor à Pátria, e da com a importância e o respeito que o ato regime de exceção para um estado de- demonstração pública desse amor, tanto cívico merece. Que imagem alguns joga- mocrático. Parece que essa transição, nas escolas como nas famílias. Não vejo dores de futebol, que defendem a nossa na área educacional, está merecendo melhor maneira do que reiniciar pelos seleção, transmitem ao povo brasileiro, alguns reparos. Por exemplo, foi aboli- pequenos. Pode ser através do retorno com sua atitude durante a execução do do dos currículos escolares o ensino de das aulas de EMC e OSPB, com as mu- Hino Nacional? Educação Moral e Cívica (EMC) e de danças necessárias, ou de outro modo Patriotismo é muito mais do que Organização Social e Política Brasileira mais apropriado. O que é imprescindível louvação à Bandeira, desfiles e cantos (OSPB). É verdade que, nos 20 anos e inadiável é ensinar patriotismo aos pe- pátrios. Patriotismo é trabalho, é hones- de ditadura, tais disciplinas visavam quenos para que o assimilem e cultivem tidade, é respeito às leis e às autoridades adaptar o sistema educacional aos obje- ao longo de toda a sua existência. Não constituídas e, acima de tudo, é solida- tivos políticos e ideológicos do regime: aquele patriotismo impositivo, que tinha riedade. Patriotismo, por exemplo, é o trabalhador é para trabalhar, estudante como lema “Brasil, ame-o ou deixe-o”, que fazia o Sargento Alberi Lima dos para estudar, professor para ensinar, e mas o verdadeiro sentimento patriótico, Santos, que preenchia as horas vagas assim por diante, sem atentar para o di- que poderia adotar como lema “Brasil, de muitos meninos da nossa cidade com reito que cada um tinha de pensar e agir ame-o e respeite-o!” a saudável prática do esporte. Lembro livremente. Esse modelo teve, também, que, em determinada ocasião, fui as- influência estrangeira, por basear-se nos sistir a um torneio promovido por ele, acordos MEC-USAID firmados com a (Alberto Antonio Rebonatto é membro da Academia para inaugurar ternos de camisetas que Agência Norte-Americana de Desenvol- Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 69 Alysson Paulinelli, um exemplo

ELMAR LUIZ FLOSS

stive, com muita honra, na úl- tima quarta-feira (24 de maio), E palestrando a técnicos e pro- dutores rurais, durante o ENTEC$, promovido pela Fundação Lucas do Rio Verde (Mato Grosso), abordando o tema “Limites fisiológicos para o rendimento das culturas”. Era a comemoração dos “10 anos” de realização do ENTEC$ (Encontro Nacional de Tecnologias de Safras), buscando a integração da produ- Ernesto Geisel, Alysson Paulinelli (C) e Irineu Cabral, inauguração da Embrapa Trigo, 1974 ção ao consumo. A Fundação Rio Verde é uma instituição de pesquisa e difusão Agricultura, no governo do Presidente continuidade a partir de 1996, presidi- de tecnologias agrícolas, mantida pelos Ernesto Geisel. Era um momento difícil do pelo engenheiro-agrônomo Roberto produtores rurais, e cujo trabalho é da economia do Brasil, pois, desde 1972, Rodrigues, já no governo do Presidente executado em parceria com instituições o país sofria com o aumento expressivo Fernando Henrique Cardoso. Também públicas e privadas. Como é uma forte do preço do petróleo. O valor passou de foi presidente da Confederação Nacio- “colônia gaúcha”, o chimarrão corria $3,00 o barril, para $11,00 o barril, em nal de Agricultura - CNA. Desde 2011, é solto no auditório. poucos dias. Nessa época, o Brasil im- o presidente da Associação Brasileira do Foi um feliz momento de reencontrar portava 80 % do petróleo consumido e Milho - ABRAMILHO, sucedendo ao o ex-Ministro da Agricultura, Alysson era um importador crescente de alimen- gaúcho de Getúlio Vargas, o ex-ministro Paulinelli, que palestrou antes de mim, tos. Foi o Ministro que implementou a e deputado Odacir Klein. sobre “A evolução da produção e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- Conheci o sempre Ministro Pauli- organização da cadeia do milho”. Um pecuária - Embrapa. Tratava-se de um nelli, em 1975 quando veio a Passo tema oportuno, no município de Lucas projeto apresentado alguns anos atrás Fundo para a inauguração do CNPT. A do Rio Verde, a Capital Nacional do pelo gaúcho Luiz Fernando Cirne Lima, convite do então diretor da Faculdade Milho, em função da área cultivada e da como Ministro da Agricultura, ao pre- de Agronomia, Rodoaldo Damin, parti- produção obtida. Não é por acaso que a sidente Garrastazu Médici. Entretanto, cipei do encontro dos professores com antiga Sadia, hoje BRFood, construiu poucas semanas depois, ele renunciou o mesmo, e fiz uma breve apresentação nesse município o maior abatedouro ao cargo. O primeiro centro de pesquisas da Faculdade. Ao longo dos anos, mundial de aves e suínos, gerando mais inaugurado, em 1975, com a presença nos encontramos inúmeras vezes, em de 6 mil empregos. do Presidente Ernesto Geisel e também eventos pelo Brasil, como palestrantes Alysson Paulinelli nasceu em Bam- do Ministro Paulinelli, foi o Centro ou participantes. Já fazia algum tempo bui-MG, em 10 de julho de 1936, filho Nacional de Pesquisa de Trigo - CNPT, que não o via, quando ele fez uma pa- do engenheiro agrônomo e produtor de em Passo Fundo, (hoje Embrapa Trigo). lestra extraordinária sobre a evolução café, Antônio Paulinelli de Carvalho, Também foi em seu governo que se criou da agricultura no Brasil, em especial, a e de Adalgisa Lucchesi Paulinelli. no Brasil o Próalcool, suscitando, de evolução da cultura do milho, no Brasil Diplomou-se engenheiro-agrônomo forma pioneira no mundo, um modelo Central. Por seu trabalho e exemplo, na escola Superior de Agricultura de tão bem sucedido de produção de etanol tem autoridade para cobrar o que ain- Lavras-MG, que era a Universidade Fe- combustível, a partir da cana-de-açúcar, da não está sendo feito pelo governo deral de Lavras-UFLA, em 1959. Seguiu que atualmente abastece milhões de e enaltecer o trabalho realizado pelos a carreira docente na mesma Faculdade, automóveis. produtores. Especialmente, a falta de lecionando a disciplina de Hidráulica, Voltando a Minas Gerais, assumiu investimentos em logística e o exagero Irrigação e Drenagem, até 1971. Foi a Presidência do Banco do Estado de da legislação ambiental aplicada aos diretor da referida faculdade, de 1966 Minas Gerais, de 1979 a 1986. Então, produtores rurais. a 1971, período no qual também presi- elegeu-se Deputado Federal Constituin- Alysson Paulinelli é um engenheiro- diu a Associação Brasileira de Ensino te, pelo PFL, atual DEM, exercendo o agrônomo, produtor rural e homem pú- Agrícola Superior - ABEAS, de 1968 a mandato de 1987 a 1991. Voltou ao blico, que orgulha a todos os envolvidos 1969. De 1971 a 1974, foi Secretário de cargo de Secretário da Agricultura e com o desenvolvimento do agronegócio, Estado da Agricultura de Minas Gerais. Abastecimento de Minas Gerais, entre por seu trabalho como homem público, e Uma das suas marcas deixadas foi a 1991 a 1994. De 1992 a 1993, presidiu igualmente na iniciativa privada. implementação da Empresa de Pesquisa o Fórum Nacional da Agricultura, cujo Agropecuária de Minas Gerais – EPA- objetivo era a elaboração de uma política (Elmar Luiz Floss é membro da Academia Passo- MIG. De 1974 a 1979, foi Ministro da agrícola para o Brasil. O projeto teve Fundense de Letras.)

70 Água da Fonte Novembro de 2012 Conta corrente da vida

JÚLIO FERREIRA DE ANDRADES morais ou éticos, pessoais ou íntimos, e ativos materiais, do conhecimento e das até espirituais, conforme a felicidade ou informações, do discernimento e do livre sofrimentos que possam causar a outrem arbítrio, venho contribuindo para as po- princípio básico da ciência e à própria natureza. líticas públicas e sociais? E nessa linha, contábil: quem recebe, deve, Tais registros podem se iniciar pelo se contribuinte do Imposto de Renda, do É portanto é debitado; e quem dá, nascimento, como a primeira oportuni- lucro real e do ajuste completo, numa tem em haver, e assim, por sua vez na dade recebida, espécie de débito origi- espécie de depositário, como venho me partida dobrada, o creditado, a formar nal, proporcional às situações encontra- comportando? Estou praticando as ações a equação da igualdade, do equilíbrio. das. Se tiver boas condições de saúde, previstas nos arts. 227/CF e 260/ECA? Trata-se, pelo lançamento das operações econômicas e afetivas, naturalmente que E a legislação do IR, que determina econômico-financeiras, do registro da esse débito será superior aos da favela doações de 1% a 6%, e complemento origem e aplicação dos recursos, e da ou de pouco ou nenhum afeto, cujo saldo de mais 3% deste tributo, ao Fundo causa e efeito dos resultados. E, no devedor vai-se acumulando, por tudo o Municipal dos Direitos da Criança e seguimento, haverá a acumulação do que for recebido ou der entrada, a fim de Adolescente, para assistência às crianças saldo devedor, pelos recebimentos ou formar património material, de cultura carentes e em situação de risco e vulne- entradas que ocorrerem, ou passando e saber, para outras situações de ganhos rabilidade? Ou repasso-as ao Tesouro a saldo credor, e até acumulação deste ou ingressos, inclusive por apropriações Nacional, acumulando tal passivo para saldo, se de maiores valores forem as ou excessos. E os creditados, nesta ló- as crianças e a própria sociedade, reféns operações de saídas ou de dar. Nesta ló- gica, podem ser benfeitores, entidades que são das circunstâncias? gica, num exercício de transposição para e a própria sociedade - via tributos-, Mais informações sobre o assunto po- os atos da vida, é possível a analogia: na viabilização das oportunidades. In- dem ser obtidas junto a um Contabilista quem na vida recebe algo, de alguma clusive entes lesados. E ainda, quanto ou Tributarista, e também e na Receita forma é debitado; e, na contrapartida, ao saldo devedor, poderá ser reduzido Federal. o creditado é quem dá ou viabiliza esse e até transformado em saldo credor, algo. Porém, diferente das operações pelos créditos, entre outros, das ações econômicas, nesta transposição, a valo- solidárias de dar ou retribuir, de ensinar (Júlio Ferreira de Andrades, membro da OAB de Passo ração de tais débitos e créditos da vida ou educar, de contribuir ou participar, de Fundo e da Academia de Ciências Contábeis/RS. E-mail: [email protected] br.) se dá por valores sentimentais, afetivos, agregar ou criar vagas, construir pontes, decidir bem, e até por reparações. Esse entendimento pode culminar, e aí a gran- de reflexão, em valores transcendentais, cujos saldos, devedor ou credor, poderão indicar, quem sabe, o passaporte para outra dimensão. Considerando, pois, nossa finitude terrena, de onde nada levamos de valores materiais, é uma questão de inteligência e previdência, a pausa para analisar a contabilidade da vida. Como me apresentarei ao Senhor? Qual a mi- nha liquidez, o meu saldo ou as minhas obras? Das oportunidades recebidas e seus ganhos, a par de reservas para investir e viver bem , - a que fazem jus meus esforços e talentos-, aserá que venho dando à sociedade, ou a seus viabilizadores, o de- vido retorno ou dividendos? Dos

Água da Fonte Novembro de 2012 71 Será que somos diferentes?

(Ilustrações: pinturas de Vasco Machado))

WELCI NASCIMENTO e historiador francês, Sant-Hileire, vi- É costume se dizer que incluindo os sitou o Rio Grande Sul no século XIX gaúchos e seus descendentes, que hoje (1820/21), e disse: “Ainda saíram do Rio vivem nos estados de Santa Catarina, o tempo em que o Rio Grande Grande 200 mil alqueires de trigo, ex- Paraná, Mato Grosso, Rondônia, Goiás e do Sul não tinha solução de portados em grandes sacos de couro...” outros estados da federação, o Rio Gran- N continuidade, no tempo em Não demorou muito, e a agricultura de seria o maior estado do Brasil, quanto que as estâncias estavam em comum, o cedeu lugar à criação de gado, motiva- à população. Há aproximadamente cem gaúcho, no cenário aberto das enormes do, talvez, pelas constantes requisições anos, os gaúchos vêm colonizando coxilhas, que se estendiam a perder de de produtos agrícolas, para alimentar e povoando vastas áreas dos estados vista, era mais aventureiro”. (Manoelito as tropas, em guerras contínuas. E o brasileiros. As primeiras colonizações de Ornellas) processo histórico se repete: - a pecuária migratórias dirigiram-se para o Oeste de Depois que os campos foram demar- vai recuando, ante a marcha vitoriosa Santa Catarina, provocadas pela revolu- cados, medidos e cercados; depois que da agricultura. As terras se retalham em ção federalista, que ensanguentou o Rio os trabalhos das indústrias da criação se lotes coloniais e aumenta o coeficiente Grande e foi uma das guerras civis mais desenvolveram em âmbitos menores, e demográfico. “O naturalista francês longas da República. Cessadas as lutas, o comércio se firmou de forma organi- lembrava que os campos do Rio Grande internas e externas, a valentia do homem zada; depois de tudo isso, o gaúcho se eram mais fortes, de pastos finos, ole- e da mulher gaúcha virou tradição, can- tornou sedentário. Pelo menos um pouco osos, que melhor nutrem os rebanhos, tada em prosa e verso, como lembrança mais. Ora, essa mudança profunda na muito mais numerosos...”. do espírito guerreiro dos ancestrais. maneira de vida, certamente, foi influen- E o Rio Grande mudou. O gaúcho teve que migrar com sua ciada no decurso dos acontecimentos. Sua população cresceu, suas terras família para outros estados da federação. Todos nós, pelo menos os mais velhos, foram ficando divididas e enfraqueci- Muitas vilas desapareceram e muitos sabemos que o Rio Grande Sul detinha o das, atribuídas, em grande parte pelas dos seus municípios estacionaram, em título de “celeiro do Brasil”. A produção queimadas e pela destruição das matas. favor de Santa Catarina, Paraná, Acre, de trigo era extraordinária. O cientista E a família gaúcha teve que se mudar. Mato Grosso, Goiás. O Acre, por exem-

72 Água da Fonte Novembro de 2012 plo, nasceu da bravura de um gaúcho, José Plácido de Castro, que tomou parte na revolução federalista de Rio Grande e que, no Acre trabalhava como agri- mensor, demarcando terras e seringais. O jornal Estado de São Paulo, de 4 de novembro de 1981, sob título: “Gaúchos transformam o sertão mineiro”,a certa altura, diz: - “Há uma guerra no sertão mineiro: - a disputa entre o “uai” e o “tchê”, ou o choque entre duas culturas bem diferentes, a do tradicional mineiro dos cerrados e a do gaúcho, descendente de europeus. Os primeiros, falsamente ingênuos, desconfiados, magros, sem dentes, roupas de linho branco remen- dadas, de fala baixa e acostumados a ver o tempo passar de mansinho; os segundos, homens de quase dois metros de altura, dentes perfeitos, trabalhando dia e noite contra o tempo, com suas mulheres gordas, fortes e loiras, dispos- tos a trabalhar por todo o dia, dirigindo caminhões e tratores...”. Perante certos tipos de irmãos brasileiros, o gaúcho era considerado um super-homem. Um gigante no trabalho. Um empreendedor e progressista. Realmente, parecia que éramos diferentes. Quem sabe não seria pelo nosso isolamento geográfico, no extremo sul, ou talvez pela natureza e conformação do solo, pelo clima de al- ternâncias bruscas, ou pelas influências étnicas que formaram a personalidade do gaúcho? Nosso linguajar, nossos costumes, influenciados pelos europeus espanhóis e portugueses, pelos índios, pelos negros, pelos imigrantes alemães e italianos, entrelaçados num mesmo meio? Foi Euclides da cunha, o nervoso esti- lista tropical dos “Sertões”, que descre- veu o gaúcho e o aspecto notável de seu caráter, diferenciando-o das populações do nordeste: - “O gaúcho, o peleador valente, é por certo inimitável...”. O poeta pajeador nativista, Jaime Caeta- no Braun, em entrevista ao jornal Zero Hora, em 1982, disse: “O Rio Grande do Sul é um ‘país’ diferente do restante lidade brasileira. Guardamos fronteiras campo se modernizou, vivemos uma era do Brasil. E isso não é bairrismo, não”, durante muitos anos. tecnológica, na agricultura e na pecuá- concluiu. Talvez seja por isso que ele O compositor de músicas nativistas, ria, mas a índole do gaúcho não mudou, foi tratado com desprezo, ao longo da José Fogaça, em entrevista ao jornal porque, no dizer do poeta Vargas Neto, nossa história. O Imperador Dom Pe- “Campeador”, da lendária cidade de “O gaúcho é como o cinamomo: de uma dro II tratou-o como “o sentinela dos Alegrete, em maio de 1984, disse: “O ponta de raiz brota de novo e em outro pampas”.Foi aqui que se desenrolaram Rio Grande não pode ficar se olhando cinamomo fica de pé. Nem o tempo os combates entre Portugal e Espanha, no espelho, sob pena de passar a sofrer haverá de vencê-lo”. as tentativas de invasão dos argentinos, a síndrome do narcisismo cultural.... E o paraguaios e uruguaios, e as guerras restante do Brasil, o que pensa de nós”? cisplatinas. Costuma-se dizer que o Rio Vivemos hoje, em termos culturais, Grande é brasileiro “de teimoso”. Que uma nova era, especialmente na mú- (Welci Nascimento é professor e membro da Academia foi por opção que escolhemos a naciona- sica originária dos pampas gaúchos. O Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 73 Para que(m) modificar o Código Florestal?

PAULO DA SILVA CIRNE dutores rurais, usando como escudo os das áreas de preservação permanente. pequenos agricultores. Para que(m) modificar, então, o Có- Em um primeiro momento, quando digo Florestal? dia 25 de abril de 2012 poderá as pessoas que não estão diretamente Um dos motivos foi a inclusão, em ficar conhecido, na história envolvidas com a matéria observam que outro texto legal, mais precisamente no O brasileira, como o dia em que o texto em vigor foi elaborado em 1965, Decreto nº 6.514/08, de uma sanção ad- a Câmara dos Deputados, em Brasília, imaginam que o referido documento ministrativa (leia-se multa), para o pro- aprovou uma das piores leis sobre meio legal esteja desatualizado, inclusive por prietário rural que não tivesse averbada ambiente já elaboradas no país, com ter sido elaborado em uma década que a área de reserva legal da propriedade. inúmeros artigos inconstitucionais, com antecede a intensa urbanização viven- Para que todos entendam, reserva legal graves contradições dentro do mesmo ciada no país, ocorrida em especial a é uma parte da propriedade que deve texto e ferindo inúmeros princípios de partir de 1970. ser preservada, ou seja, uma área que, Direito Ambiental. Poucas semanas Entretanto, as pessoas que conhecem por sua importância ambiental, não antes da Conferência da ONU – Or- o Código Florestal Nacional sabem que deve ser alvo de exploração econômica. ganização das Nações Unidas – sobre a lei é excelente, trazendo previsões que Essa previsão já existia desde 1965, mas Meio Ambiente, conhecida como Rio permitem, perfeitamente, harmonizar, somente em 2008 é que foi inserida, + 20, que reuniu autoridades da área nos dias de hoje, o desenvolvimento da em um decreto, uma multa para quem ambiental do mundo inteiro, no país, agricultura e da pecuária, aliando a tal não tivesse ainda efetuado a averbação os representantes do povo brasileiro exploração à preservação dos recursos dessa área, o que gerou, no Congresso legislaram para beneficiar grandes pro- naturais, especialmente das florestas e Nacional, o interesse de modificar a lei

74 Água da Fonte Novembro de 2012 florestal e flexibilizar a aplicação das país e as propriedades rurais brasilei- de preservação ambiental o texto do regras sobre a reserva legal. ras, lançadas na irregularidade por uma Código Florestal reduz ou literalmente Além disso, empresas que possuem legislação extremamente rigorosa. Ora, extingue. Assim, tais faixas serão passí- multas administrativas elevadas, não tais argumentos são absurdos. O Brasil veis de usos agropastoris, assim como se pagas, impostas pela prática de desma- é um dos maiores produtores de grãos tornarão áreas edificáveis. Ao menos até tamentos na região centro-norte do país, do planeta - a área de plantio brasileira a primeira enxurrada, que certamente irá especialmente na Amazônia, demonstra- é de 67.000.000 (sessenta e sete milhões destruir plantações, casas e ceifar vidas. ram grande interesse em obter o perdão de hectares), segundo informações do Portanto, é fundamental ter em mente desses débitos, recebendo o apoio de IBGE -, convivendo com uma legislação que mudar o Código Florestal, na forma diversos parlamentares, que lutaram que existe desde 1965 (sem contar os como pretende a maior parte do Con- bravamente para anistiar esses desma- textos anteriores). E não se tem notícias gresso Nacional, significa acabar com tadores. Por fim, grupos econômicos, de centenas de agricultores presos, terras uma lei importante e substituir por um grandes produtores e empresas adqui- sequestradas para fins ambientais ou texto que privilegia o interesse econô- riram áreas por preços irrisórios, por qualquer outra teoria conspiratória e mico, sem qualquer cautela com o meio serem terras que, pela legislação atual, terrorista orquestrada e difundida nos ambiente e com o futuro do nosso país. possuem baixo percentual de área passí- meios de comunicação, por defensores Anistiar criminosos ambientais e olhar vel de exploração econômica. Com a al- intransigentes do agronegócio. a área de preservação permanente com teração pretendida no Código Florestal, Dentro desse contexto, também é la- interesse meramente financeiro, com o valor dessas áreas será multiplicado e mentável lembrar que, nos últimos anos, toda a frieza e o rigor que se deve ter o lucro dos adquirentes, estratosférico. diversas tragédias foram causadas pelo nessa hora, é não enxergar as cruzes Essas situações permitem constatar para desrespeito à legislação florestal, com nos cemitérios, após novas intempéries quem a intitulada “bancada ruralista” destaque para fatos ocorridos em Santa climáticas, cada vez mais comuns em está legislando. Evidentemente, não é Catarina e no Rio de Janeiro, quando um planeta que teve seu equilíbrio des- para o “pequeno agricultor”. inúmeras pessoas perderam a vida e truído pelo próprio homem. Nesse sentido, os congressistas intitu- outras perderam suas residências e/ou lados de “ruralistas”, disfarçando seus objetos pessoais, ao não respeitarem objetivos, proclamam uma luta para as áreas de preservação permanente. (Paulo da Silva Cirne é Promotor de Justiça em Passo não inviabilizar a cadeia produtiva do Justamente essas faixas importantes Fundo/RS.)

Poesia glaura hilário brockstedt

Ao entardecer, quando as luzes já se ofuscam, O sol vai se escondendo, lentamente, Crepúsculo Engalanado de vestes multicores, Acenando para se despedir do longo dia.

Timidamente, se esconde atrás dos montes, Para dar lugar à noite, cujo manto negro Vem, sem piedade, lhe roubar a cena, Em momento de paz e serenidade,...

Sem temer o chegar do imprevisível, Oxalá, a noite seja um céu aberto, Coberto de estrelas cintilantes, Para não contrastar com o sol brilhante.

(Glaura Hilário Brockstedt é membro da Academia Soledadense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 75 A Revolucionária Moron deoclides czamanski

OSVANDRÉ LECH

rua nunca teve outro nome. Chama-se Morom, desde a A primeira Planta Geral da Vila, em 1865, logo depois da emancipação, em 1857. A origem espanhola do nome nada tem a ver com nossa cultura, ou com os primeiros habitantes. Segundo o historiador Welci Nascimento, o nome é homenagem a uma batalha ocorrida em 1852, nos Campos de Morom, arredores de Buenos Aires, onde tropas brasileiras derrotaram o exército de Rosas. Prova- velmente, alguns soldados brasileiros central, no entanto, que se localiza o passo-fundense está na Morom ou ao que participaram da batalha vieram charme e o modernismo da Morom. redor dela. residir em Passo Fundo, e sugeriram O trecho entre a Cel. Chicuta e a Fa- Se você relaciona Oscar Freire com o inusitado nome. A Morom iniciou gundes dos Reis é o próprio “coração São Paulo e Padre Chagas com Porto revolucionária! da cidade”, com calçadas alegres, lojas Alegre, a melhor rua para definir Passo Atualmente, esta importante e badala- requintadas, cafés lotados de formado- Fundo é a Morom. Sim, a revolucioná- da rua possui quase 7 km de comprimen- res de opinião e a rua congestionada, ria Morom! to. De um lado, se destaca a construção pois “passar pela Morom” é mais que civil, nos altos do Boqueirão; e do outro, dar uma volta de carro. Muito próximo na baixada, o intenso movimento inter- deste trecho – “in a walking distance” (Publicado na revista “+ Moron” edição 2 , Ago2012) bairros, e de chegada e saída de pessoas - estão os bancos, clubes, cinemas, (Osvandré Lech, médico e escritor, é presidente da na região da rodoviária. É na sua região livrarias, bares. O verdadeiro universo Academia Passo-Fundense de Letras.) Pensando e Escrevendo

HELOISA GOELZER DE ALMEIDA da época, conduzidos pelos madei- características, eram todos “gente reiros, conforme eram chamados. fina”. Pelo menos na aparência. Entre tantos, lembro de Edmundo Havia em Coxilha o Clube Far- emana passada fomos em Trein, pai do nosso ilustre conter- roupilha, que realizava bailes de rápida passagem à coxilha. râneo e amigo Augusto Trein, Ma- saudosas lembranças. Hoje, Coxilha S Parece mentira! Quem viu riano Petraco, pai de minha querida está resumida a uma vila muito sos- e quem vê! comadre Terezinha. Este sempre segada. Em minha rápida passagem Em anos passados, uma verda- com uma boina que o caracterizava por lá, fiz questão de parar e escutar deira cidade de madeira, com as muito bem. Hugo Alevisi, Ernesto o murmurar de Tadeu Nedeff. A inúmeras firmas, entre as quais, o Morsch, Mário Goelzer e tantos outra é da firma Franciosi, Fossatti. principal comércio era a madeira. outros. Aquela musiquinha me fez bem. É As fábricas de beneficiamento Vagões e mais vagões eram carre- nostálgica, já que morei quando do pinho bruto faziam a música do gados com madeiras e transportados casei, naquela terra. Onde o barulho amanhecer, com as máquinas das de trem, principalmente para a das máquinas era uma música linda. aplainadeiras, serra-fita e outras. Os fronteira. Ou seja, livremente. Ha- (09/01/1980) operários que faziam o grande pro- via inclusive um trem internacional gresso de Coxilha, eram como ins- que transportava turistas uruguaios trumentos sob a batuta de supostos e que fazia uma passagem por Co- (Assim escrevia Heloisa, em sua coluna Pensando e Escrevendo, para o jornal Diário da Manhã, maestros. Por lá transitavam, junto xilha, o que era motivo de atração em 1980. Tratava de assuntos diversos. E o mais com caminhões transportadores da e encantamento. Apreciavam os palpitante da época era o comércio de madeira. Santina Rodrigues Dal Paz.) madeira bruta, os flamantes carros passageiros deste trem por suas

76 Água da Fonte Novembro de 2012 Entrevista: Rudah Jorge Médico e Diplomata

(daltro mattos) “Quanto à Faculdade de Medicina Federal em Passo Fundo, está acontecendo o mesmo que ocorreu quando da criação da Faculdade de Medicina da UPF. Há os que pretendem fechar o corpo clínico da cidade, e os que desejam reserva de mercado. Estes não querem Faculdade Federal por aqui. Todavia, aqueles que, como eu, sofreram para pagar uma faculdade, e vêem os estudantes pobres não conseguindo sair do chão, querem sim, uma Faculdade Federal de Medicina em Passo Fundo. Hoje o ensino virou um negócio. Tem de acabar com isso. Ensino não é negócio. Há que se considerar ainda que não só a Faculdade de Medicina estaria vindo. A Medicina é apenas um curso dos campi da saúde. Será a base para Universidade Federal de Passo Fundo, pois, a seguir, virão outros cursos superiores na referida área”.

uma tarde fria e chuvosa de agosto, o médico Rudah Jorge Nrecebeu, em sua casa, os acadê- micos Paulo Monteiro e Gilberto Cunha, para uma entrevista de várias horas. Considerado um profundo conhecedor Inglês. Quem mandava no mundo era a quatro anos, no Englert (atual município da história da saúde e da educação Inglaterra. Poderia ter sido um árabe, o de Sertão). Meu pai foi transferido de superior em Passo Fundo, nos últimos reivindicador. Rudah não é uma palavra Quaraí-Mirim para Eng. Luiz Englert, cinquenta anos, Rudah discorreu sobre árabe, mas uma palavra tupi-guarani. onde cheguei com dois anos. Meus todos os assuntos que lhe foram pergun- Pode ser escrita com “à”, no fim, ou com irmãos Nei e Antônio já nasceram aqui. tados. Comprovou a fama de homem “ah”. Era o deus do amor indígena. E Os ferroviários sempre foram muito que não tem medo de falar sobre fatos Rudah não leva a pensar que seja árabe. trabalhadores e reivindicadores. A Via- e pessoas, doa em quem doer. E falou. O tamanho do nariz, sim. ção Férrea era a vida deles. Davam valor APL – Onde o senhor nasceu? ao emprego, Não tinha serviço mal feito. APL – Rudah Jorge! É nome de Rudah Jorge - Nasci em Quaraí- Tudo era organizado. Tinha hierarquia e origem árabe? Mirim, 1º distrito de Quaraí, filho do muito respeito. Santa Maria sempre foi Rudah Jorge - Na verdade, eu não sei o ferroviário Afonsino Jorge e da dona de núcleo muito desenvolvido. que sou. Meu pai falava muito ter ouvido casa Olga Dornelles Jorge, no dia 8 de dizer que um antepassado teria vindo setembro de 1936. Eu morava ao lado da APL – E os seus estudos? Começa- da Inglaterra. Era muito reivindicador, linha férrea. Meu pai era o agente local. ram no Englert? contestador. Era chamado de Jorge, o Éramos quatro irmãos. Um faleceu com Rudah Jorge - Comecei a fazer o

Água da Fonte Novembro de 2012 77

Curso Primário lá, no Englert. Só fun- doenças. Muitas vezes, mais importante maior centro de ensino, no Brasil. Lá cionava até a 4ª série. Tinha de fazer do que receitar é ser diplomata. começou a residência médica no país. até a 5ª série, para prestar o exame de Tinha tudo do bom e do melhor. Os mi- admissão ao ginásio. Fui fazer a 5ª série APL – Como foi sua vida de estu- litares passaram para o atual SUS, que em Carazinho, onde moravam parentes dante pobre em Porto Alegre? hoje é uma porcaria. Quando houve o meus. Depois fui morar em Sertão. Rudah Jorge - Em Porto Alegre, fiz Golpe, o diretor foi afastado e colocado Cursei o ginásio no Colégio Concei- tudo o que se possa imaginar. Quando um general em seu lugar. ção. Ali comecei o curso científico, que comuniquei a meu pai que não iria concluí em Porto Alegre, no Colégio disputar nenhum emprego, e sim cursar APL – Por que retornou para Passo Júlio de Castilhos. Lá eu vi que a Facul- Medicina, ele me disse: “Tô contigo, Fundo? dade de Medicina era na Rua Sarmento mas não posso mais te ajudar. Tenho de Rudah Jorge - Foi em 1966. Éramos Leite, e havia a Rua Eng. Luiz Englert. ajudar teus irmãos”. Não fiquei irritado. diversas pessoas de Passo Fundo em Fui investigar e descobri que ele era um Achei de uma grandiosidade fenomenal. Porto Alegre. Combinamos que cada engenheiro e político fantástico, consi- Fui de carona num caminhão, para Porto um iria fazer uma especialidade, para derado um sábio. O ensino marista era Alegre. Arrumei meu primeiro emprego depois trabalharmos juntos aqui. Apenas muito bom. Tanto isso é verdade que, num escritório que comprava lenha no dois não voltaram. Um, porque faleceu, quando fui cursar o 3º ano do científico, interior. Cursava o 3º científico e tam- e outro, porque optou por permanecer em Porto Alegre, precisei fazer uma pro- bém trabalhava. Arrumei emprego à em Porto Alegre. Aqui, montamos a va para ser aceito. O diretor, ao chegar noite, como revisor do Diário Oficial. O Policlínica e acabamos juntando mais ao meu nome, disse que eu não estudava chefe disse que, como eu gostava de po- gente que veio depois. Passo Fundo lá, mas deveria estudar num bom colégio lítica, podia revisar discursos políticos. era uma cidade boa para trabalhar, mas pela nota que tirei. Temperani Pereira era um grande orador. não imaginávamos que íamos encontrar Depois fiz concurso para escrivão de po- tantas dificuldades. Eu vinha do melhor APL – E suas primeiras leituras... lícia, e, mais tarde, para médico legista, hospital do Brasil, e o São Vicente tinha Rudah Jorge - O Correio do Povo função em que me aposentei. um aparelho de RX que só fazia exame chegava pelo trem das 5h30min. Meu de quem não respirasse. pai era obrigado a levantar cedo. Dei- APL – E a política estudantil da- A Policlínica Passo Fundo foi pionei- xava a água para o chimarrão fervendo quela época... ra, no sentido de médicos trabalharem e eu tinha de levantar para cuidar da Rudah Jorge - Na Faculdade de juntos. Mas eles se hostilizavam muito. água. Enquanto ela fervia, cada um lia Medicina, entrei em 1957. Ali fui duas O Hospital São Vicente dispunha de 80 um jornal. Não havia rádio. Eu lia o vezes presidente da turma. Tinha que de- leitos e uma sala de cirurgia; o Hospital jornal com meu pai, até que o dono fosse fender uma turma de cento e dez caras. da Cidade, um pouco menos, também buscá-lo. Esse fato de ler os jornais me Depois fui presidente do Centro Acadê- com uma sala de cirurgia. O Hospital levou a pensar em Diplomacia. Vi que mico da Medicina, que era o pavor dos Municipal, mais ou menos isso, mas era os representantes do Brasil no exterior milicos. Por isso, Golbery do Couto e mais novo. À época, havia dois tipos de eram ricos. Pensei em Medicina porque Silva mudou o nome para Diretório. clientes: um que pagava, e o indigente faltavam médicos. Quando chegou a Também fui presidente da entidade que que não pagava, tendo o médico que época de prestar vestibular, procurei reunia todos os centros acadêmicos arrumar remédio de amostra grátis. universidades que formassem diplo- da época, e que vem a ser o DCE de Então eu disse: “Pessoal, estamos matas e não achei. Assim, fui cursar hoje. Convivi com grandes lideranças numa fria!”. Quando eu estudava no Medicina em Porto Alegre. No 2º ano estudantis daqueles anos, como Fúlvio Conceição, ocorreu a primeira migração da Faculdade, criaram um teste voca- Petracco, Flávio Tavares, Bruno Costa de passo-fundenses, devido ao excesso cional. Fiz o teste e acabei descobrindo e Carlos Araújo (do Direito). de população. Iam para Xaxim, Xan- que tinha habilidades para Medicina e A divisão do movimento estudantil era xerê, Chapecó, nos chamados “ônibus Diplomacia. O que faço hoje? Medicina ideológica. De um lado, a UDN [União de malas brancas”, porque elas tinham e Diplomacia. Tenho facilidade para re- Democrática Nacional] e o PSD [Partido essa cor e iam em cima do ônibus, ao solver conflitos. Não me tiram do sério, Social Democrático] e do outro, a cha- passo que a mudança ia dentro de um assim no mais. Na Medicina, resolvo mada Esquerda. Não éramos inimigos saco. Mas eu sentia que famílias inteiras, horrores de conflitos médicos. uns dos outros, e sim adversários. quando adoecessem, voltariam para cá. E viriam com dinheiro. Se não melho- APL – E os seus “dons diplomáti- APL – Como o Senhor viu a Cam- rássemos, iriam para Porto Alegre e cos” como serviram na Medicina? panha da Legalidade e a Contrarre- perderiamos dinheiro. É o que acontece Rudah Jorge - Certa feita, uma volução de 64? até hoje. pessoa que trabalhava comigo vivia Rudah Jorge - Acompanhei a Legali- sempre doente. Um dia sentei ao lado dade, sim. Estava em Santa Maria, num APL – Como foi o surgimento da dela e disse que seria o seu médico. Pedi Congresso Médico. Em 64 fazia residên- Faculdade de Medicina da UPF? que contasse a vida dela. O pai, que é cia no Rio de Janeiro. Assisti ao famoso Rudah Jorge - Quando voltamos, pai dela hoje, exigiu que mudasse de comício dos sargentos. E trabalhava no havia um movimento para criar uma nome. Procurou a Justiça e mudaram de Hospital dos Servidores do Estado. Era Faculdade de Medicina. O Dr. Sabino nome. Disse-lhe: “Passa uma borracha o principal hospital do país. Era ali que Arias tinha ido embora e lidava com nisso e começa uma nova vida, com teu estava instalado o Ministro da Guerra os papéis da Faculdade de Educação, segundo pai!” Fez isso, e acabaram as na época do Golpe. Esse hospital era o pois o Ministro era seu amigo. Existia

78 Água da Fonte Novembro de 2012 uma comissão formada pelos médicos: Nesse meio tempo, Dom Cláudio casa, mandavam pai e mãe; e na escola, Paulo Azambuja, Ademar Petracco e pediu dinheiro para a Misereor ajudar a professora. A ética é mutável. Sabino Arias. O Ministro veio até aqui o São Vicente. Havia começado a am- Quanto à Faculdade de Medicina Fe- e oficializou a criação da Faculdade. pliação, com mais três salas de cirurgia. deral, está acontecendo a mesma coisa. Havia muita gente que trabalhava Começaram a vir novos médicos, prin- Há os que querem fechar o corpo clínico contra. Mas o Dr. Sabino tratava muito cipalmente de Santa Maria. Com isso, e os que querem reserva de mercado. bem o pessoal. Ficou sabendo que os Passo Fundo começou a crescer em Estes são contra uma Faculdade Federal. contrários iam num velório. Conseguiu qualidade médica. Abrimos o hospital. E os que, como eu, sofreram para pagar que o processo de criação da nossa Qualquer médico poderia clinicar, pois uma faculdade, vêm a pobreza não con- Faculdade de Medicina fosse colocado havia uma espécie de reserva de merca- seguindo sair do chão. Por isso querem em pauta, e ele acabou aprovado. Isso do. Os médicos começaram a reclamar, uma Faculdade Federal. Hoje o ensino foi em 1969. Começaram as discussões dizendo que o hospital estava inchando. virou um negócio. Tem de acabar com sobre onde instalar a Faculdade. Como Queriam reunir o corpo médico. Propus isso. Ensino não é negócio! a maioria dos pacientes eram indigentes, ao senhor Sander. Como os vicentinos é A universidade comunitária custa nenhum hospital queria tratá-los, afim que teriam de mandar, propus a alteração caro. Na ULBRA, os pretendentes têm de não perder o prestígio. O reitor da do Estatuto, declarando que o corpo clí- de apresentar Declaração de Renda. Sou Universidade era o Dr. Murilo Annes, nico era aberto; o hospital, permanente; a favor do ensino público. Controle da cuja família comandava o Hospital da e os médicos, passageiros. Com a mu- natalidade é besteira. Se a criança rece- Cidade. O Hospital Municipal também dança dos estatutos deu um forrobodó. ber o leite materno, não custa nada. Se não queria, porque o prefeito César O Hospital da Cidade também se abriu o Estado der colégio, não custa nada. A Santos era inimigo político dos Annes. para os médicos. Por isso há hoje esse Coréia era o país mais pobre do mundo. O Leste Europeu tinha uma dívida Os americanos começaram a investir com o Brasil. O Governo Federal queria no ensino desse país, e hoje ele é uma mais faculdades de Medicina, e surgiu “Muitos dizem que potência. Oferecendo comida, o ensino a proposta de pagar a dívida, com apa- o Rudah é um ditador. sai de graça. relhos médicos fabricados na Alemanha Ele manda no hospital. Oriental. A Faculdade fora criada sem APL – Como Dom Cláudio veria O diretor e sem hospital. Sabino Arias O mandato do diretor é Hospital São Vicente de hoje? tinha sido nomeado diretor, mas, na o mesmo da diretoria, Rudah Jorge - Se Dom Cláudio vi- verdade, não havia diretor. Diante das podendo ser reconduzido. vesse hoje, diria que a Faculdade Fede- negativas do Hospital da Cidade e do Agora, para ser diretor ral representaria um salto de qualidade. Hospital Municipal, o reitor Murillo de um hospital é preciso A Faculdade Federal trará crescimento Annes conversou com Dom Cláudio algumas condições. A para Passo Fundo. O Hospital de Clí- Colling e este disse que o São Vicente primeira delas: não ter nicas de Porto Alegre dispõe, mais ou teria de aceitar a Faculdade. Procurou os rabo preso.” menos, de quatro vezes mais que o responsáveis pelo hospital, nas pessoas orçamento de Passo Fundo. Não temos de Felice Sana e Plínio Grazziotin, e dinheiro para ampliar o São Vicente. convenceu-os a aceitarem. Marcaram E, com a vinda da Faculdade Federal, uma reunião entre a universidade e o monte de médicos. O diretor médico Passo Fundo certamente irá explodir. hospital. Nessa reunião, compareceu opina, mas a decisão é dos vicentinos. Dom Cláudio Colling não queria ser muita gente, menos o diretor médico do Passo Fundo tem conta com setecentos arcebispo em Porto Alegre. Daí cometeu Hospital que era contra. No outro dia, médicos. Quando cheguei aqui havia um erro: proibiu os padres de irem à ele renunciou. O Hospital São Vicente quarenta e poucos e a maioria era da missa de Ronda Alta e os padres deso- não tinha diretor médico, em meados de UFRGS. Depois veio uma leva de Santa bedeceram. Veio Dom Vicente Scherer, 1969. Aí é que fui conversar com Dom Maria, e atualmente a grande maioria no outro dia, e levou ele para Porto Cláudio, indicado por uma pessoa que é daqui. Hoje encaminhamos médicos Alegre, onde foi arcebispo e quando me conhecia desde pequeno, o senhor para outros hospitais e ficamos com os ficou mal voltou. Walter Vargas. Pedi umas horas e decidi melhores. aceitar. Tinha que fazer um contrato que APL – O Senhor foi candidato a pre- existe até hoje. APL – O ensino da Medicina em feito de Passo Fundo e desistiu de uma Passo Fundo, como está? candidatura a deputado federal... APL – Sua ligação com Dom Cláu- Rudah Jorge - Quando cheguei, não Rudah Jorge - Sou um ex-quase. dio Colling... havia mestres e doutores. Hoje dispo- Ex-quase prefeito. Ex-quase deputado Rudah Jorge - Aí é que fui conhecer mos de mais de cem mestres e mais de federal. Nossa política é partidária e Dom Cláudio Colling. Ele me fez uma cinquenta doutores. não ideológica. Entrei para o PDT, onde pergunta inteligente: “O que o senhor O médico tem de provar, para o pa- permaneço até hoje. Durante o regime acha que vai acontecer com o São ciente, que é bom. A Medicina mudou. militar, havia só a ARENA [Aliança Vicente, com a Faculdade lá dentro?”. Hoje só pedem exames. Nós sentávamos Renovadora Nacional] e o MDB [Movi- Disse-lhe: “Não consigo lhe explicar. do lado do paciente e conversávamos mento Democrático Brasileiro] e o PDT, Só sei que o crescimento, com essa com ele. Tudo é uma questão de for- que saiu do MDB. O PDT seria quase aparelhagem, vai ser tão grande, que mação. Ética se aprende com o pai e a uma continuidade do PTB [Partido ninguém vai nos alcançar”. mãe. Não se aprende na Faculdade. Em Trabalhista Brasileiro]. Acompanhei o

Água da Fonte Novembro de 2012 79

Brizola, que mais se aproximava do Tra- balhismo. Quando o PDT se uniu com o PDS [Partido Democrático Social], de Nelson Marchezan, retirei minha candidatura a deputado federal. Antes, para prefeito, fui o mais votado, mas perdi para a sublegenda. Depois fiquei sabendo que me tiraram muitos votos. Só de ti, roubamos mais de mil votos. Não sei se seria um bom prefeito ou um bom deputado. Não ter sido eleito foi bom, pois continuei professor da UPF, lecionei para trinta e três turmas e fui homenageado por trinta e duas. Ajudo o meu partido. Convenci o São Vicente a fazer o posto de atendimento do Hospital Municipal.

APL – E o nível da Medicina prati- cada em Passo Fundo? Rudah Jorge - O conceito, em Porto Alegre, é de que Passo Fundo é a cida- de que menos manda paciente para lá. Mandamos grandes queimados, porque o SUS paga pouco por grande queimado, o que dá um prejuízo desgraçado. Para esse tipo de paciente há três UTIs: duas em Porto Alegre e uma em Rio Grande, por causa dos navios. Incêndio em na- vio, ou morre queimado ou morre afo- A Pediatria é uma especialidade em sou. A quarta: não posso olhar com gado. Em Passo Fundo, temos em média extinção, pois quando eu vim para cá, os meus olhos; tenho de usar os olhos um caso de grande queimado por mês. a média era de dez consultas pagas por do hospital. Tenho de ver o que é bom Mandamos cirurgia cardíaca pediátrica, dia. Hoje, quando ocorre uma paga por para o hospital. Quinta condição: é bom que é muito cara, mas queremos parar de semana, os pediatras ficam contentes. nem falar quanto eu ganho. Quando mandar. Estamos terminando de montar Além disso, hoje, o médico é mal pago. entrei, o Estatuto dizia que o trabalho um centro de atendimento da mama. O Para nós, médicos, é ruim errar um era gratuito. Depois de vinte anos é que negócio é fazer o diagnóstico o quanto diagnóstico. Quando pagavam, lembra- passei a ser remunerado. antes. Estamos com o equipamento vam o nome do médico. comprado. Nosso primeiro aparelho de A medicina e a política são duas APL – O Senhor não tem medo de tomografia computadorizada, adquirido senhoras invejosas. Uma tem inveja da expressar sua opinião. Como definiria há vinte e cinco anos, era de um corte outra. Ou faz medicina ou faz política. alguns “grandes” políticos passo- por segundo. Temos um de 128 cortes Elas querem exclusividade. O que não se fundenses? por minuto. Só existe um no Brasil e está pode é parar de fazer Medicina. Tem de Rudah Jorge - Em honestidade: no São Vicente. Ressonância magnética, continuar fazendo, mas fazendo direito. Wolmar Salton. Em liderança: o que temos o mais moderno do mundo. Todo mais influenciou foi também o Salton. diagnóstico começa com o médico que APL – Como é ser Diretor Médico Outro cara que teve muita importância: para fazê-lo tem de ouvir o paciente. de um hospital como o São Vicente? César Santos. O Coronel Edu Azambuja Nosso setor de Neurologia é de alto Rudah Jorge - Muitos dizem que só sabia tocar gaita. O Airton Dipp é padrão, mas nossa maior referência é a o Rudah é um ditador. Ele manda no muito inteligente. Ele pega as coisas Cardiologia, embora a Cardiologia Clí- hospital. O mandato do diretor é o no ar. Nesse assunto da Faculdade de nica seja mal remunerada. A Trauma- mesmo da diretoria, podendo ser recon- Medicina Federal, colocou-se como tologia e a Ortopedia são muito boas, duzido. A cada mudança de diretoria um estadista. a maioria dos nossos profissionais têm ele entrega uma carta de demissão. cursos no exterior. A Oftalmologia e a Se eles desejam que continue, lavram APL – A Faculdade de Medicina Otorrinolaringologia ainda são fracas. uma ata. O cargo é cobiçado pelo poder Federal, o que significará para Passo Todas as coisas têm de começar bem que dá. Agora, para ser diretor de um Fundo? feitas. Os oftalmologistas antigos não hospital é preciso algumas condições. Rudah Jorge - Não é só a Faculdade estavam suficientemente preparados. A primeira delas: não ter rabo preso. A de Medicina. A Medicina é um curso- Fizemos uma residência médica no segunda: não abrir exceção. Acharam base da saúde, e o será também para a Hospital São Vicente, a fim de me- que eu abriria exceção para o meu filho, Universidade Federal de Passo Fundo, lhorar a qualidade do atendimento e não abri. A terceira: eu estou diretor pois virão, a seguir, outros cursos supe- oftalmológico. médico, mas enquanto eu estiver, eu riores nessa área.

80 Água da Fonte Novembro de 2012 Poesia pedro du bois

Entender

Não entendo as razões não me interesso pelo a contemplação ilusória das cercanias estarem pote deixado ao lado amiudada em horários além do composto do poço: profundezas e o trabalho repete alegam frios e opacidades salários e benefícios. digo o desentendimento de águas disparadas fujo arcabouços em fugas: o animal A mulher desinibe o corpo levo moedas habita a escuridão em desnudares e oferece troco passos e sabe ser a luz ao companheiro a incerteza o conseguinte da entrega: pegar ou largar desmedido em distâncias da fração permaneço breve arrisco-me em visões alargo o sorriso esboçado arauto do desencontro diuturnas e socorro-me no acompanhamento: o vinho de haveres diurnos entinta a boca pio em violácea forma grasno a palavra nega o significado de permanência lato senso da distância: ondas de rádio espero o silêncio afogam frequências a nudez não castigada tumultuar aquele que dorme em mulheres catatônicas. interrompe o calvário o sonho injusto em pesadelos O aposto explica a maledicência ávido em interesses planto batatas interposta: a cólera na ira amesquinho a conquista colho ervas danificadas da calmaria da floresta do inconfessável. no espanto da produção inacabada em concretizações inelástica do produto e árvores petrificadas

escada e porta muito depois se assim digo a mecanicidade do elevador venderia as árvores em fatias leva o corpo afinadas ao despropósito ao sacrifício dos altares: saber do passado inibe o gosto descubro antes do tempo pelo mistério: desvenda a recriação a sua inexistência do espaço em revolveres quedo-me ausências e ao inconsentido não entendo a saliência da palavra digo palavras desprovidas relacionada ao gesto

(Pedro Du Bois é posta e escritor passo-fundense, radicado em Balneário Camboriú/SC.)

Água da Fonte Novembro de 2012 81 Ainda sobre a construção da liberdade

GETULIO VARGAS ZAUZA aspira líquido amniótico, ao nascer por prio umbigo. E o dramático, neste caso, meio de cesariana. é que mesmo os cientistas, os teólogos e Citei, levemente, algumas das situa- os que se consideram filósofos pensam o número dez da revista “Água ções, que podem levar uma criança ou do mesmo modo, sempre baseados nessa da Fonte”, tratei de maneira um adulto a não ter condições de fruir o forma de pensar adquirida pelo hábito. N sintética o tema acima. Vimos, grau de liberdade ao qual já chegamos, Não existe uma escola onde se aprenda baseados no que se encontra na “Sagrada com imensos esforços e sacrifícios. a pensar! Escritura” (Bíblia), que o primeiro ato Por muito que já tenhamos conse- Nos próximos passos, a fim de não humano de desobediência à lei divina guido, tudo não passa, praticamente, permanecer no lugar comum de teori- foi induzido por Lúcifer. de uma liberdade mais direcionada aos zar sobre o que e como já foi escrito Ora, não se pode supor que esse ato aspectos da vida, e da relação com o e dito pelos autores, passarei a relatar, não estivesse já determinado, digamos, outro, seja este outro o mundo físico sumariamente, minha trajetória pessoal, no projeto da criação. Admitido isso, ou o ser humano. Essa liberdade, já , é no que diz respeito à construção da o ser humano estaria predestinado a ofertada quase gratuitamente àquelas liberdade. ser livre. Depois, ainda encontramos que vêm nascendo depois de nós. Inclu- Nasci e vivi minha infância e parte no Evangelho (Jo, 8-32) a frase: “E sive este, que está escrevendo o presente da adolescência, numa família de agri- conhecereis a verdade, e a verdade vos texto, desfruta neste momento do que cultores. Tive todo o espaço físico livre livrará”. É o próprio Jesus Cristo que foi construído pelos que lutaram antes. para crescer, entre muitas coisas que proclama a liberdade indicadora de que Na relação com o outro, a liberdade já ofereciam perigo como as serpentes ve- o Homem, realmente, poderia vir a ser está construída, embora não totalmente, nenosas. Circulava entre diversos tipos livre. A partir desse momento, ficou pois ainda há uma tendência, remanes- de animais que viviam soltos. Desde estatuída a ideia da liberdade. cente em muitos, de exercer domínio pequeno, andava pelos matos, capoeiras, Sob certos aspectos, nós hoje go- sobre seu semelhante. E é bom que e campos. Sofri quedas de árvores, de zamos um tanto de liberdade. E esse se reflita seriamente, porque vivemos cavalos e tantas coisas mais. Nunca fui fato cria a possibilidade do erro, como uma época crítica, de transição, em advertido, muito menos repreendido. também as consequências advindas que as formas e os meios, de exercer Eu era uma criança disposta a cola- dele, pois, evidentemente, não se trata domínio sobre as consciências, são as borar e mesmo a realizar tarefas, sem de um castigo imposto por um criador, mais demoniacamente sofisticadas e a que alguém precisasse dar-me ordem. uma vez que somente o homem pode tal ponto, que se tornou dificílimo dis- Nunca recebi ordens de ninguém. Nem castigar, já que castigo envolve senti- cernir e reconhecer as grandes ilusões. recebi recomendações sobre como mento de vingança. Embora elas estejam em toda parte. deveria comportar-me, e o que devia Ora, não se diga agora que, quando Praticamente, não existe uma atividade fazer ou não. alguém comete uma falta, merece casti- ou instituição, seja qual for o seu nome, Se isso era liberdade ou outra coisa se- go. Merece, sim, ser auxiliado a realizar onde o engano, a ilusão e a mentira não melhante, nunca me interessou. O fato é um processo de correção da sua conduta, estejam infiltrados. que sempre me senti livre e sem precisar uma vez que a educação propriamente O problema é de tal monta, que à dar explicações sobre o que havia feito. não foi realizada. E ainda, muito menos primeira vista, parece não ter solução. Ordenação e disciplina só vim a co- deve ser castigada uma criança. Ela deve Mas isso só aparentemente. A solução nhecer com doze anos de idade, quando ser orientada adequadamente. Para tan- existe, embora não seja fácil. Pois fui para a cidade estudar no curso primá- to, é necessário que sejam investigadas há uma exigência que poucos estão rio, que foi realizado em três anos. Foi as causas do comportamento conside- dispostos a atender. Ela se compõe o primeiro impacto. rado incorreto, as quais muitas vezes se basicamente de dois fatores, os quais Durante esse período, minha família encontram nos adultos e suas condutas. precisam ser tratados em ação simul- inventou que eu deveria ser crismado, Um comportamento realmente inade- tânea. São eles: autoconhecimento e não sei por que razão, uma vez que não quado, quer numa criança, quer num escolagem do pensar dois instrumentos havia recebido nenhuma orientação re- adulto, pode ser motivado por uma do- absolutamente indispensáveis, sem os ligiosa. Para tanto, seria necessário uma ença ou anomalia, de ordem genética ou quais não se consegue sair da teia do preparação, e foi assim que fui parar na congênita, ou ainda por anóxia perinatal, nosso condicionamento. igreja e tive que aprender o catecismo. devida ao mau atendimento no parto. E Com o hábito de pensar ainda vigente Só então fiquei sabendo que havia coisas até por uma fatalidade, quando o feto não se consegue enxergar além do pró- que eram consideradas pecados.

82 Água da Fonte Novembro de 2012 Foi nessas condições que entrei pela primeira vez numa igreja, e conheci o Pe. Assis, um cearense alegre, simpático e culto, de quem me tornei amigo. Quando chegou a hora do Crisma, eu deveria confessar os meus pecados. No confessionário, eu simplesmente disse: “Pe. Asiss, eu não tenho pecados para confessar!” Ele riu e respondeu: “ Está bem, podes ir!”. Durante os três anos em que frequen- tei regularmente as missas dominicais, não porque a religião me interessasse, mas pela beleza dos vitrais, das estátuas dos santos, pela sonoridade das palavras em latim, pela música sacra cantada e acompanhada pelo som do harmônio, e, particularmente, pelo ritual todo da missa! Na parte da tarde, havia uma reunião com a participação de outros jo- vens (meninos), quando o padre contava histórias bonitas da bíblia, e explicava o sentido do texto que ele lera durante a missa. Interessava-me por tudo que ali acon- tecia, sobretudo no aspecto estético e cultural, pois que, na cidade, a única pessoa culta e disponível era o Pe. Assis, embora naquela idade eu não soubesse conceituar isso. Um segundo momento significativo, e relacionado com liberdade, aconteceu quando ingressei na vida militar como recruta, na Força Aérea brasileira, com apenas dezesseis anos, tendo que perma- necer quatro meses confinado no recinto da Escola de Aeronáutica. Foi no campo dos Afonsos, bairro Marechal Hermes/ Rio de Janeiro. Fui para lá, quando meu irmão era Segundo Tenente do Exército, havendo retornado da Itália, onde participara como voluntário, Força Expedicionária Brasileira (FEB). Fui incorporado em junho de 1946, exatamente no dia três. No dia seguinte, recebemos todos os pertences regula- mentares, incluídos dois livros com as instruções que deveríamos conhecer a risca, e cujos conteúdos levavam os títulos: “Regulamento Interno de Ser- viços Gerais (RISG)” e “Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAER)”. Eu ingressei na Força Aérea Brasi- leira, primeiro, por que me aceitaram com dezesseis anos, e segundo, por ser o único caminho viável para atingir meu objetivo, que era estudar. Enquanto os colegas de turma reclamavam, por terem de permanecer quatro meses reclusos, sem comunicação com os familiares, e ainda sujeitando-se a uma disciplina rigorosa, como estava expressa nos

Água da Fonte Novembro de 2012 83 livros eu, não sei explicar como, resol- Durante os meses de janeiro e feve- Ao mesmo tempo, interessei-me vi estudar o conteúdo aqueles livros, reiro, dediquei-me apenas ao trabalho pela psicanálise, graças a indicações chegando ao entendimento de que não (das 12 às 18 horas) bem como ao lazer que me foram dadas pelo professor precisaria considerar aquelas exigências e à leitura. A partir de março, organizei Ney, Doutor em Filosofia e Psicolo- todas, que constituíam um absurdo, um minha vida, com horários destinados gia, pela Universidade de Sorbone, jugo externo exercido sobre mim. Além a determinadas atividades: trabalho, em Paris. Através de suas explicações, disso, as exigências atigiam todos nós, estudo, lazer, leituras e reflexão. fui tomando contato com esse ramo desde os recrutas até os mais graduados, Como minha instrução se restringisse do conhecimento. Como encontrei um uma vez que todos os seres humanos ao ensino do primário, realizei o curso livro sobre Psicanálise, escrito por um estão sujeitos a leis, que transcendem ginasial em um ano, pelo Artigo 91. dos primeiros psicanalistas do Brasil, o sua vontade e até mesmo o entendimento Uma vez concluída essa etapa, ingres- qual ensinava como aplicar as técnicas comum. sei no curso científico que, na época, num processo de auto análise, passei a Foi dessa maneira que consegui supe- ministrava a disciplina de Filosofia. realizar a auto aplicação das referidas rar a ideia de jugo e inferioridade, pois Eu já havia feito contato com esse técnicas, mais os exercícios, anterior- não existe ninguém soberano e absoluto, assunto durante o ano anterior. Meu mente mencionados. E fui descobrindo e só há uma maneira de se alcançar a primeiro autor foi Platão (A Apologia os segredos da minha psique. liberdade: conhecer os princípios e agir de Sócrates). Fiquei fascinado por sua A essa altura, eu estava apto para in- em harmonia com eles. personalidade. Já nesse tempo havia gressar no terceiro estágio da construção Minha relação com a questão da li- tomado conhecimento de outros autores, da liberdade. Agora se tratava não de berdade estava resolvida, no tocante ao e conheci, por meio de uma amiga, a uma liberdade com relação ao mundo jugo, de origem externa. obra de Krisnamurti. Passei a frequentar exterior, pois ia enfrentar o encontro Em 1948, ingressei na Escola Técnica reuniões de estudo desse autor. Dessas comigo mesmo. de Aviação em São Paulo. Lá permaneci reuniões participavam pessoas de toda Este estágio é compreensivelmente o até o fim de 1949 (em regime de inter- orientação de pensamento, possuidoras mais difícil, muito poucos se dispõem nato, com saídas nos fins de semana), de formação universitária, e vários com a realizá-lo. Trata-se de entrar numa quando conclui o curso de Sargento concepções esotéricas, como a Teosofia, relação com as pulsões internas, que Especialista em eletrônica. Como obtive por exemplo. Também fiz amizade com quase sempre se impõem a nós como um o primeiro lugar, recebi a oportunidade um arquiteto, que participava de outra jugo interno indomável. São as coisas de escolher, para trabalhar, uma das entidade, em que iniciava estudos e relativas à vida dos sentimentos e das cinco capitais onde havia sede de um exercícios para desenvolvimento psí- sensações, dos desejos e das cobiças, comando aéreo (na época se chamava quico, concentração e meditação. Esse etc. Foi então que descobri a forma de “zona aérea”). Escolhi o Rio de Janeiro, amigo me ensinou vários exercícios que relacionar-se com esses impulsos, sem onde cheguei em 1950. me foram muito úteis no futuro. luta, sem violentar-se, para evitar a consecução do impulso. A questão é que tudo o que acontece no mundo físico está sujeito à lei da temporalidade e, por conseguinte, tem um ciclo de existência. Tem um vir a ser, um estágio de ser e, finalmente, o que deve ser, ou fenecer, quando se conclui e desaparece. A partir daí, desenvolvi a técnica de construção da liberdade interior e, mais tarde, apliquei esse conhecimento como método de psicoterapia, o qual se encontra no meu livro “Energia Psíquica e Psicoterapia Objetiva”. Ainda escrevi um poema que descreve, em linhas gerais, como se processa a libertação dos impulsos retidos no inconsciente. É um trabalho de auto- conhecimento, cujo título é: Nosce te Ipson (conhece-te a ti mesmo). Esse poema também faz parte do livro “Divã, Lágrimas e Libertação”.

(Getulio Vargas Zauza, psicólogo clínico, escritor e membro da Academia Passo-Fundense de Letras. Email para contato:[email protected].)

84 Água da Fonte Novembro de 2012 Escrever com Estilo: CARTAS

TÂNIA DU BOIS Escrever cartas é atitude pessoal; de- cuidadíssimo com a pontuação. Além safio e consolo para muitos. Respondê- das iniciais maiúsculas dos primeiros las é buscar o próprio caminho como versos e dos problemas de pontuação, “Escrever é partilhar. Partilhar ideias necessidade de se realizar. Sentir prazer esta primeira versão é diferente daquela e impressões.” (Jorge Xerxes) ao optar pelo papel como intermediário. publicada no livro.” Como na carta de 05 de julho de 1914, Cada carta produz ensejos, segundo de Sá Carneiro, “Admirável o que hoje Pedro Du Bois, “Escrevo o que não carta é um meio de expor ideias me chegou do Álvaro de Campos. Não falo / escrevo o que não digo / escrevo em palavras, através da emo- me entusiasma tanto como a primeira o que não mostro / escrevo o que não A ção. É a comunicação escrita ode...A ode de hoje é admirável, por- aparece // escrevo sobre meus segredos / no tom da voz, com sentimento que se tanto, belíssima - ...” minhas lutas / minhas limitações / meus forma e se manifesta através do fato, Cartas são escritas em vários tons: ale- cantos...”. Não há o que não se possa o acontecimento que provocou. Vera gres, desesperados, pedintes, amorosos, escrever numa carta, desde que seja a Casanova questiona: “...O que move entre tantos, no sentido de que a carta é representação de nós mesmos, como em esse escrever? /O silêncio das coisas, instrumento para expor os sentimentos. Jorge Elias Neto, no poema Carta de um / Os objetos a nos dizerem seus risos e Ela é marcada pela espontaneidade refle- jovem ao poeta Nietzsche. dores / O sopro que anima as veias das tida como harmonia natural da alma que Reconheço que escrever cartas hoje palavras. / Que posso eu dizer das coisas (de)libera a mente através das palavras; é atividade pouco incentivada, mas não que faço?” assim, na carta recebida por Lya Luft, descartada, até porque ela oferece espa- O estilo no escrever cartas é produto de seu amado, em 1991, “Se eu te aju- ço para a expressão autêntica, movida da cultura, ou seja, do desenvolvimento dar a crescer / isso tornará minha vida pelo desejo de preencher os próprios da consciência em que, naturalmente, importante / e lhe dará sentido enfim.” buracos afetivos. Portanto, a resistência se forma em prosa. A palavra reflete na A troca de cartas com alguém é atitude em escrever cartas, nos padrões atuais, frase a emoção, o pensamento define e íntima e por vezes ousada. Através dela se dá pela falta de tempo e pelo mundo busca certo dizer, mesmo que de forma obtemos o prazer de estar a par dos virtual, que tenta substituí-la em redes sistematicamente desordenada. Cartas assuntos pessoais, como em Verônica sociais e através de mensagens eletrô- são pequenos parágrafos confidenciais, Aroucha, “...meu papel está em branco/ nicas. Horácio Costa disse: “...Escrevo como encontramos no trecho da carta esperando a tua carta de amor./Grande, e o rio em mim se banha”. de Otávio Paz a Gerardo Mello Mourão imensa, monstruosa. /...A folha ficará Não há dúvidas de que a carta si- -1999: “Sua poesia não só me revelou em branco / estarei aqui no porto – sen- naliza o modo de vida convencional, uma paisagem humana e verbal, como tada esperando – .../ Uma carta...” que contribui, fortalece uma relação e, também me levou ao desejo de conhecer As cartas têm passado, mas continuam ao mesmo tempo, propõe buscar essa sua prosa...”, e de Otávio Paz a Emir vigorando no presente. De fato, apesar transformação em nós mesmos, como Rodriguez Monegal (19/04/1967):“Caro da tecnologia, continuam com o mesmo em Carlos Nejar, “Aventura humana: a Emir: Respondo a sua última carta... valor. Em geral, atendem aos anseios e esperança //... A chegada de uma carta...” Não, não posso mandar-lhe nada para desejos de cada um. É questão inevitá- o número sobre erotismo. Desde vários vel, quando se conhece a importância de anos penso escrever um pequeno livro receber uma carta. Mário Faustino sobre (ou seja: um ensaio longo) sobre o amor o seu único livro publicado em vida, O (Tânia Du Bois, Professora, Bibliotecária, Editora da Poesia de Pedro Du Bois, escreve em Vidráguas, Recanto (o que não é, para mim, o mesmo que Homem e sua Hora, em carta para Be- das Letras, Jornais Catarinenses e em A Revista, de erotismo)...” nedito Nunes, adverte: “Se publicares, Balneário Camboriú/SC.)

Água da Fonte Novembro de 2012 85 Agricultura brasileira, de Getúlio a Dilma

ELMAR LUIZ FLOSS preocupado com a crescente importação Lima, decidiu por uma reformulação da de alimentos, criou inúmeras Estações pesquisa agropecuária brasileira, que era de Pesquisa Agropecuária pelo Brasil. inoperante. Propôs a criação da Embra- ltimamente, começam a apare- No RS, a principal missão era desen- pa. Mas, infelizmente, poucas semanas cer ensaios, com a finalidade volver o cultura do trigo. depois, desentendeu-se com a área eco- U de mostrar a evolução e a im- Depois veio o governo de Juscelino nômica e renunciou ao cargo. Em 1974, portância do agronegócio brasileiro, Kubistchek de Oliveira. O mineiro que o Ministro da Agricultura, Eng. Agr. nos últimos anos. Comemora-se os não se conformava com que apenas o Alysson Paulinelli, retomou o projeto 60 anos da morte de Getúlio Vargas, e café sustentasse a economia brasileira. e implantou a Embrapa, como institui- as principais realizações de seu longo Seu projeto de governo era “avançar ção pública de coordenação da política governo ditatorial, já que, em 1930, 50 anos em cinco”. Investiu na indus- nacional em pesquisa agropecuária. Era quando assumiu o poder, a população trialização mas viu que dependia do outro mineiro inconformado com o fato brasileira era predominantemente rural desenvolvimento tecnológico. Por isso de que, praticamente, o café financiasse (83%). Produzia alimentos para si e para incentivou a criação de Universidades, e as importações de alimentos básicos, outros 17% da população, que vivia nas criou o Conselho Nacional de Pesquisa em quantidade crescente, pelo aumento cidades. O Brasil tinha no café a grande Científica (CNPQ). Forneceu bolsas de da população urbana. Ao longo dos cultura econômica e geradora de divisas. pesquisa, para que brasileiros fossem anos, milhares de pesquisadores foram Mas importava alimentos básicos, até cursar pós-graduação no exterior. Pôs treinados no exterior, para trazer as mais mesmo seus pratos típicos. O arroz (da em prática o projeto de transferência modernas tecnologias agropecuárias ao Ásia) o feijão (do México, América Cen- da Capital Federal, do Rio Janeiro, para Brasil. Além da pesquisa na Embrapa, tral e até mesmo dos Estados Unidos), o Centro-Oeste, construindo Brasília. houve um desenvolvimento da pesquisa além do trigo (dos EUA e Canadá) e O Brasil não poderia continuar sendo em Universidades, em função dos cur- leite (da Europa), dentre outros. Teve somente litorâneo, dando as costas para sos de mestrado e doutorado. Grandes até que mandar queimar milhões de seu interior. Certamente, se Brasília não empresas privadas de pesquisa foram sacas de café, para melhorar os preços fosse construída, não teríamos tido o criadas no Brasil ou vieram do exterior, no mercado internacional. E, no final de desenvolvimento tão pujante do Agro- especialmente depois de aprovada (com seu governo, surgiu a ferrugem do café, negócio, no Centro-Oeste brasileiro, e atraso) a Lei de Proteção de Cultivares. que dizimou as cafezais da Bahia, do Rio até mesmo no Norte e Nordeste. Já se Hoje, as empresas privadas dominam o de Janeiro e parte de São Paulo. fala que essa é a segunda “Revolução mercado genético nas grandes culturas, Além das inúmeras iniciativas na área verde” da humanidade. contribuindo, significativamente, com social, Getúlio Vargas é lembrado pelo Até a década de 70, a situação da se- o aumento do rendimento das culturas, início da industrialização no Brasil. gurança alimentar não se resolveu. Com a difusão de tecnologias de manejo e Além do populismo, carregava também a industrialização, aumentava cada vez desenvolvimento de máquinas, equipa- o forte discurso nacionalista. Mas o Bra- mais a população urbana, e havia cada mentos e insumos. Aliada a outras po- sil não tinha tecnologia e equipamentos. vez menos produtores de alimentos. O líticas de crédito rural e infra-estrutura, Na verdade, transferiu indústrias têxteis Brasil se tornava um dos maiores impor- a produção brasileira de grãos começa e mecânicas de sua matriz para o Brasil. tadores nessa área. No final da década a aumentar. Um custo elevadíssimo e o início do his- de 60, o então Ministro da Agricultura, o Dos anos 1960 até 2012, o agronegó- tórico endividamento brasileiro. Então, gaúcho e Eng. Agr. Luiz Fernando Cirne cio passou por várias revoluções tecno-

86 Água da Fonte Novembro de 2012 lógicas. Destaque-se o melhoramento genético (criando novos cultivares de maior potencial de rendimento, e adap- tados às diferentes regiões fisiográficas); a calagem, que transformou solos áci- dos em solos altamente produtivos); a implantação do sistema plantio-direto (redução da erosão, do gasto de óleo diesel, de máquinas, equipamentos e mão-de-obra, de melhoria das proprie- dades físicas, químicas e biológicas do solo, uma prática verdadeiramente conservacionista); a maior eficiência no controle de pragas, moléstias e plantas daninhas; a utilização de cultivares transgênicos ( a biotecnologia na agri- cultura); e, atualmente, a agricultura de precisão (a nanotecnologia eletrônica e biológica, na agricultura). Essas “re- voluções tecnológicas” garantiram um aumento extraordinário na produção de alimentos, beneficiando os produtores e a população urbana de consumidores. Em 2012, apenas 17% produz alimen- tos para si e para mais 83% da população urbana, e com crescentes excedentes exportáveis. Em 1980, a produção bra- sileira de grãos era de 51 milhões; e na safra de 2011 chegou a 168 milhões de t, um crescimento de 329%. O mesmo aconteceu com a produção de carnes (bovina, suína e de frangos) e de leite. De importador, o Brasil passou a ser um dos maiores exportadores de alimentos, de origem vegetal e animal. Enquanto, em 2011, a balança comercial brasilei- ra de produtos industrializados foi 72 bilhões negativa, o agronegócio gerou um superávit de 77 bilhões. Essas divi- sas equilibraram a balança comercial e contribuiram para o controle da inflação, causando estabilidade econômica e po- lítica ao país. Até a década de 90, cerca de 40-50% da renda dos trabalhadores estava com- prometida com a aquisição de alimentos. Com o aumento do poder aquisitivo, em função do bem sucedido plano real, que controlou a inflação, alem da produção abundante e barata de alimentos, o trabalhador hoje não compromete mais que 20% da sua renda com alimenta- ção. Sobra dinheiro para a aquisição de eletrodomésticos, de celular, de carro, de moradia, para o lazer e outros bene- fícios, que impulsionaram a economia brasileira.

(Elmar Luiz Floss é membro da Academia Passo- Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 87 O valentão

SUELI GEHLEN FROSI pai. Ele vivia um paradoxo: não sabia Roberto já se considerava um homem ainda discernir se admirava o pai, ou se e uma das professoras insistia em con- o odiava, não sabia se amava a mãe ou versar com ele. Ela tinha uma voz doce, pai dele era poderoso! Detes- se a desprezava. Ao mesmo tempo em aveludada, mas o perfume era algo que tava-o, mas reconhecia nele que era paparicado por vizinhos, por o deixava completamente fora de si. O a força que lhe faltava. Desde frequentadores da casa, era detestado Numa dessas conversas ela pediu-lhe pequeno viu aquele homem enorme na escola. O fascínio que aquele homem que fizesse um trabalho de pesquisa atra- exalar sua importância, o que preenchia violento, seu pai, exercia sobre a família, sado. Daria uma chance a ele, desde que a casa toda. O temor era o que movia era fruto do seu tamanho, do tom grave o trabalho ficasse bem feito e entregue sua família. da voz e das surras que distribuía sem até o final da semana. Tinham todo o era necessário, inclu- dó nem piedade. Os irmãos mais velhos Havia um menino na sala, que ele sive dinheiro, mesmo que detido nos já estavam longe dali, um por que havia sabia muito inteligente. Chamava-se bolsos do pai, todos sabiam que havia morrido, resultado de uma briga, outro Humberto e era frágil e completamente recursos inesgotáveis neles. O resultado por que já tinha mulher e filho. Mas os manipulável. Humberto concordou em do vai e vem, em sua casa, era muito di- menores conviviam com a fartura mate- fazer o trabalho, desde que não falasse nheiro. Roberto sempre soube a origem rial e o inferno da convivência. mais seu apelido. Ser chamado de orelha de tanto dinheiro, o que lhe causava uma Foi na adolescência que Roberto era um vexame que Humberto não con- ponta de inquietação, afinal, o sistema descobriu que poderia ser poderoso seguia mais tolerar. No final de semana de segurança de que eram rodeados, também, graças à fama do pai. O futebol o trabalho estava pronto e foi entregue coisa cada vez mais sofisticada, deixava deixou de ser uma disputa, para ser uma com solenidade. Professora e aluno, implícito que corriam riscos. contenda, onde os outros meninos entre- frente a frente, um suave perfume no Roberto era um menino pequeno, gavam o jogo. A compreensão de que ele ar e o trabalho de pesquisa, trunfo raro, apesar de já ter dezesseis anos. Achava- era uma ameaça, foi algo automático. uma conquista para sair daquela maldita se bonito. O cabelo era cuidadosamente Todos sabiam de quem ele era filho e sexta série. O sossego de Roberto durou penteado para cima, o que conseguia como deveriam comportar-se. até segunda-feira, quando foi chamado com muita pomada e às vezes com gel. Daí em diante, dominar a sala de aula à direção. Haviam descoberto a fraude. Irritava-o o fato de ter que fazer a barba e ameaçar as professoras foi um passo. Humberto devia ter contado a alguém, todos os dias, pois achava chato ter que Havia já três anos que frequentava a o Orelha maldito. A suspensão não era desviar as espinhas que teimavam em mesma série, o que era muito incô- tão grave quanto a traição do Orelha e aparecer, justamente quando ele menos modo. Seus colegas, ano a ano, eram a imagem destruída, que ele havia con- precisava delas. O pai aprovava sua menores do que ele, mais chatos e mais quistado junto à professora. aparência bem cuidada, mas não sua al- amedrontados. Todos sabiam do poder Passou pela sala dos professores e a tura. Muitas vezes mencionara sua falta de seu canivete, mesmo que nunca viu. Entendeu o olhar dela. O que viu de estatura, talvez por que fosse filho houvesse machucado ninguém. Foi a foi uma pessoa resolvida a ignorá-lo. de outro. A mãe ouvia, protestava um partir daí que as professoras começaram Percebeu que os anos de uma atitude pouco, mas, como sempre, calava-se. a incomodar. Chamaram os pais, mas amistosa e tolerante haviam chegado ao Ao mesmo tempo em que reconhecia o chamado em forma de bilhete nunca fim. Daí em diante, sua vida virou um a força do pai, via a atitude passiva era entregue, afinal ele não era louco a inferno, muito parecida com a do seu da mãe como uma afronta a ele, pois ponto de entregar um incômodo desses irmão morto. Roberto pensava que alguém deveria aos pais. Aí começaram os telefonemas A estocada na barriga de Humberto, defendê-lo das ofensas e da fúria do e a insistência por parte da escola. a imediata vinda da ambulância, a con-

88 Água da Fonte Novembro de 2012 sequente chamada do Conselho Tutelar, Roberto fez menção de sair, não sem tampinha. Foi levado dali, acompanhado resultaram em sua detenção. O Juiz foi antes notar o vestidinho que cobria por pessoas que não conhecia e olhado implacável. Aplicou-lhe uma medida se- Laura, bem leve, clarinho, tão clarinho de longe por Laura, banhada em lágri- vera, foi chamado de burro pelo pai, por que, contra a luz, deixava ver todo o mas. Ele tinha certeza que ela chorava ter deixado que o apanhassem. Durante contorno do seu corpo. Sentiu como por que ele estava sendo levado dali, o cumprimento da medida disciplinar, que um choque, quando entendeu que nunca por causa do ferimento daquele tentou por diversas vezes falar com sua queria muito aquela mulher, como nunca miserável. Tomara que estivesse morto professora, mas ela o tratou friamente quisera nada na vida. Sabia que, dali em àquela altura! A volta de Humberto à escola foi come- diante, as meninas dos amassos estariam Passaram-se dois anos. Roberto saiu morada pelos professores e colegas. Não fora da sua vida e nunca mais teriam do inferno e era um rapagão. Bonito, demorou para que ele notasse as longas uma chance. Nunca mais... alto, forte e determinado. Agora, com conversas da sua professora com aquele O final de semana foi povoado de so- o pai fora do caminho, os negócios e o menino insuportável. Notou que Laura, nhos, devaneios, ondas de desejo incon- dinheiro seriam seus. sua professora cheirosa, falava com trolável de vê-la, a sua linda professora, A morte do pai não o abalou, nem o Humberto, o Orelha, frequentemente. a sua Laura. Aquela boba, casada com estado miserável da mãe, que ia visitá-lo Roberto cercou-se de outros colegas, um velho gagá, com certeza alguém todas as semanas. Saber que alguém ma- todos maiores do que o resto da turma, que não via o quanto ela era linda. No tara aquele brutamontes era um alívio. repetentes como ele, e passaram a domingo à noite, sentia-se doente, in- O rapaz montou um novo esquema torturar aquele moleque que não havia quieto, angustiado. Não sabia se queria para os negócios do pai e era tão temido aprendido a lição. Chamá-lo de “orelha que chegasse logo a segunda-feira, ou se quanto ele. Todos sabiam que ele era era pouco”. Houve um dia em que o sairia à noite mesmo para pular o muro, mais violento e mais preparado que o colocaram dentro da lixeira do corredor, arrombar a janela e entrar no quarto da pai. pegaram-no na saída e quase o mataram sua amada, pegá-la com força e dizer o Os irmãos eram figuras obscuras, por de pancada. quanto a amava. terem puxado à mãe. Roberto sabia que, Humberto não os denunciou, mas De manhã olhou-se no espelho e lá se o irmão mais velho estivesse vivo, todos na escola sabiam de onde vinham estava mais uma espinha. Ajeitou o teria que disputar o poder com ele, mas as agressões. A professora perfumada cabelo, passou uma colônia, e passou com os outros não havia chance. Domi- nunca mais chamou-o para conversar, pela cozinha onde a mãe tomava café. nou o entorno com maestria, tendo como mas ele sabia onde ela morava e pre- Olhou-a com pena, coitada, tão quieta, aliado o terror. tendia conversar com ela fora da escola. tão massacrada pela vida. Decidiu na- Certo dia, mandou investigar o para- Escalou o muro da casa dela, tarde da quele momento que ele sim seria feliz. deiro da professora Laura. Soube que se noite. Era sábado. Não casaria com uma mulher como sua mudara, mas não foi difícil conseguir o Subitamente sentiu uma presença a mãe, mas com alguém que fosse doce, novo endereço. seu lado e o que viu o deixou assustado, que conversasse com delicadeza, que Dirigiu-se à casa dela, de caminho- mas não a ponto de perder o controle. O cheirasse bem. Cheirar bem era essen- nete, gel no cabelo e muito perfumado. idoso que o abordou, perguntando o que cial. Voltou ao quarto, e passou mais Não teria medo de dizer-lhe tudo o que estaria fazendo ali, tinha um aspecto tão um pouco de colônia, conferiu o topete sentia, afinal, agora era um homem rico inofensivo, que Roberto imediatamente e finalmente saiu. e alto como seu pai. respondeu que só queria tomar água da Na escola foi recebido pela diretora, Entrou no prédio onde ela morava e torneira do jardim. O senhor mandou- que discorreu aquela ladainha de sem- tocou a campainha do apartamento. Ela o embora, não sem antes proibi-lo de pre, que ele mal ouviu, tal a ansiedade abriu a porta e estava linda, mais linda voltar, sem tocar a campainha. com que aguardava o momento de ver do que nunca. Ele a abraçou com força, Laura apareceu à porta e reconheceu- a professora, de sentir-lhe o cheiro, de sentiu pela primeira vez aquele corpo o. Seu olhar era de incredulidade, mas dizer-lhe tudo o que estava planejando. junto do seu, quando ela começou a não de raiva ou susto. Perguntou ao Já no corredor, topou com o Orelha, e gritar, enlouquecidamente, desespera- senhor: percebeu um leve sorrisinho de deboche, damente. - Querido, o que está acontecendo? E o que o irritou de forma assustadora. Sem entender muito bem o que estava você, Roberto, o que está fazendo aqui? Nunca havia sentido tanta raiva de al- acontecendo, fez menção de soltá-la, O rapaz ficou paralisado, pensando em guém. Perguntou o porquê do sorriso e o quando sentiu a bala atravessando como seria possível aquela linda mulher outro, covardemente, saiu correndo e foi seu corpo. Foi caindo devagar e ainda chamar aquele velho de querido. O que para a sala. Roberto seguiu-o, enquanto pode ver a roda da cadeira do velho. estaria acontecendo? pensava em uma forma de vingar-se. Ele estava sentado, com cara de bobo, - Eu vim falar com a senhora, profes- Esqueceu seus propósitos amorosos, tal mais velho do que nunca, com uma sora! disse Roberto a raiva de que era tomado. Combinou espingarda na mão, aprontando-se para - Segunda-feira conversamos na esco- com alguns colegas a surra que colocaria atirar de novo. A última coisa que viu la, está bem, Roberto? falou calmamente Humberto no hospital, de novo. foi o cobertor que cobria as pernas do Laura. Na hora da saída, a escola havia- velho, enquanto outra bala o silenciou. - Mas, professora... se transformado em um lugar muito - Fora daqui, rapaz! – falou energi- frequentado. Estavam estacionadas na camente o velho. – Já é muito tarde e frente dela, uma ambulância e uma seu assunto com minha esposa deve ser viatura da polícia. Roberto sentia a mão (Sueli Gehlen Frosi é membro da Academia Passo- tratado na escola. molhada do sangue do Orelha, aquele Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 89 Poesia Mara da Graça Carpes do Valle Passagem

Reviver e recriar, Juntar, arrumar e desarrumar. Foi ontem? Ser uma espectadora atenta E, por vezes, desatenta... O ontem e o hoje se encontram no agora, Rumar ao desconhecido, registrando parte da nossa história, Desvendar, através do potezinho do arco-íris buscando incessantemente o AMANHÃ, (e além do arco-íris). prosseguindo na bela, desafiadora Vestir fantasias e , com elas, e fantástica jornada da Vida. Viver outras... Ouvir os outros e a mim mesma. E na magia inexorável do tempo, Prestar atenção aos sinais... parece que o passado, o presente e o futuro se fundem. Eles nos dizem muito. Observar com atenção os ruídos Foi ontem??? Da natureza... Amar muito e ser amada. Assim será importante e proveitosa Esta passagem... Marcas!

Na caminhada da vida, muitos passam... Uns demoram, outros permanecem Como se sempre estivessem! Alguns desaparecem... Todos têm um significado. Outros surgem... E, assim, sucessivamente... Segue o curso: Uns vão, outros vêm, Poucos retornam. Nada pára, tudo prossegue, Ficando a lição e a contribuição Daqueles que, não só passaram, Mas, marcaram!

(Mara da Graça Carpes do Valle é professora, de Passo Fundo/RS.)

90 Água da Fonte Novembro de 2012 Educar nossas emoções

SIMONE MÜLLER CARDOSO

ensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máqui- P nas, precisamos de humanidade. Mais do que inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido”. Charles Chaplin (1889-1977) Neste início de século, surge a neces- sidade de uma educação mais voltada à compreensão global da natureza hu- mana, de maneira que se possa auxiliar as pessoas na aquisição de habilidades psicoafetivas, e no aprimoramento da sua personalidade individual, assim con- tribuindo para um maior aproveitamento do seu potencial de inteligência. na internet, na televisão, nos jornais, de virtudes, de valores humanos. O sistema educativo privilegia as nas revistas, em palestras e pelo estudo, A intolerância, o preconceito, a urgên- aptidões intelectuais e, muitas vezes, mas nossa habilidade, de nos relacionar cia, a pressa e o medo nos levam a agir ignora e/ou frustra os saberes e talentos com as pessoas, é algo que construímos sob impulso, sem análise e reflexão, o de seus alunos. somente a partir da vivência cotidiana. que nos distancia mais e mais das outras A escola deveria encorajar as crianças Se olharmos para nossas relações pessoas. Trabalhamos para consumir, a desenvolverem uma série de aptidões, passadas, do que vamos nos lembrar: para acumular e não para desfrutar. inclusive, pessoais. Deveria ensinar das palavras que nos disseram ou das ati- Vivemos “correndo atrás do dinheiro” e a pensar, a observar e a escutar mais, tudes que as pessoas tiveram conosco? de bens materiais. Não nos preocupamos estimulando a curiosidade, a criativi- As pessoas podem esquecer das nos- com o meio ambiente, a comunidade, o dade e a imaginação, aprimorando os sas palavras, mas jamais se esquecerão planeta e a sustentabilidade. Não pres- seis sentidos de seus alunos: visão, dos nossos gestos, de como as tratamos tamos atenção aos pequenos detalhes à audição, paladar, tato, olfato e intuição, e do que sentiram. Apesar de as palavras nossa volta. Deixamos de exercitar o nosso sexto sentido. Essas habilidades serem dotadas de energia e vibração, são diálogo com nossas emoções e com nos- parecem simples, mas envolvem um os gestos e as atitudes que ficam regis- sa família. As pessoas emocionalmente esforço enorme. trados mentalmente na nossa memória. competentes, levam em consideração os As crianças precisam de menos teoria A palavra é uma simples coadjuvante próprios sentimentos e os sentimentos e de mais vivência: de um menor nú- do gesto. dos outros. mero de aulas expositivas, que trazem As pessoas estão desconectadas de Vivemos num processo contínuo e somente informações prontas, muitas sentimentos e valores mais profundos. interminável de construção e descons- vezes não aplicáveis na prática, e de uma O que sustenta o ser humano é a fé, não trução, e também de refinamento. Como maior preocupação no desenvolvimento a fé atrelada a religiões e a igrejas, mas um poema ou uma obra de arte, o lado de habilidades que sirvam para sua vida. a fé em algo ou alguém superior, a fé na emocional necessita de “lapidação”, de As pessoas aprendem muito mais umas possibilidade que abre uma perspectiva aprimoramento. com as outras, na troca de saberes, por de vida, a fé em si mesmo e nos outros. A melhor maneira de melhorar as isso as disciplinas devem ser um meio Estatísticas apontam a um aumento relações entre as pessoas é por meio e não o objetivo do ensino. dos quadros de depressão e violência. de uma educação mais emocional, que A preocupação com conteúdos cog- Esta última está intimamente relacio- pressupõe o cultivo de valores, virtudes, nitivos e com habilidades como: ler, es- nada com a incapacidade de as pessoas emoções e sentimentos. Somente por crever, tocar um instrumento, desenhar, lidarem com as próprias emoções. Pouca meio dela poderemos construir uma usar o computador, ir à faculdade, etc., atenção tem sido dispensada às causas sociedade mais equilibrada. são muito importantes, mas a habilidade subjetivas da violência, que são as má- de se colocar no lugar do outro, res- goas, os ódios, os rancores e os desejos (Simone Müller Cardoso é psicóloga, especialista em peitando as diferenças, identificando e de vingança acumulados – emoções bá- Psicologia Clínica, Psicologia Escolar e Psicopedagogia. É natural de Passo Fundo reside atualmente em Caxias lidando positivamente com as próprias sicas do ser humano – que, se não traba- do Sul. Trabalha na Prefeitura Municipal de Montenegro. emoções, também é. lhadas, explodem. A crise da sociedade Tem dois livros editados: Uma Gota de Vida (poesias, 1982), prefaciado por Mario Quintana; e Um Olhar Informações nós adquirimos em lei- moderna está ligada à crise de sentido para Dentro: examinando nossas relações (ensaio de turas, consultas bibliográficas e cursos, para a vida, à ausência de sentimentos, Psicologia, 2011), de onde foi extraído o texto acima).

Água da Fonte Novembro de 2012 91 Um leitor a menos

GILBERTO R. CUNHA 2012, na Estação Rodoviária de Passo cias agrárias, cuja atuação profissional Fundo. No meio da tarde daquele dia, fui exige leituras nem sempre agradáveis, acompanhar meu filho, que embarcava escolho, deliberadamente, obras e au- oi nas páginas do Diário da Ma- às 15 h para Porto Alegre. Na plataforma tores para serem lidos ou não. nhã, edição de 21 e 22 de janeiro de embarque, encontrei o Sr. Vidal Corá O assunto escolhido, quando sentei F de 2012 (sábado e domingo), e esposa que, casualmente, também to- diante do computador para escrever, que, circunstancialmente, no início da mariam o mesmo ônibus para a capital. era para ser sobre “Voodoo Science”, noite da terça-feira seguinte (24), en- Nesse ínterim, conversamos um pouco na acepção do caminho pavimentado quanto aguardava a vez de cortar meus e eu lhe prometi uma coleção da revista para a estultice e a fraude na prática cabelos no salão do Elton, na Rua XV de “Água da Fonte”, editada pela Academia científica, conforme estabeleceu o físico Novembro, deparei-me com o insólito Passo-Fundense de Letras, que deixei, Robert Park, em obra homônima. Deixei convite para a missa de 7º dia do Sr. no outro dia, no endereço indicado por para outra ocasião. O inusitado fez com Vidal Corá. A singularidade desse nome ele. Não sei se ele teve tempo de receber que o texto tomasse outro rumo. Em- (bem provável que não existia outro o presente, pois desconheço as circuns- bora nunca tivesse convivido com o Sr. igual em Passo Fundo), fez, de pronto, tâncias da sua morte. Lembro de ele ter Vidal Corá, fato que não me credencia que eu me lembrasse de um senhor de comentado, ainda na rodoviária, antes da para dizer qualquer coisa, até por com- aparência tranquila, o qual, com a sere- despedida, que havia estado no Paraná pleto desconhecimento, em relação à nidade conferida pelos anos vividos, um recentemente e, algo enigmático, que sua pessoa, rendo, nesta coluna, meus dia, no corredor de um supermercado “ia fazer mais um passeio, enquanto a respeitos à esposa Maria de Lurdes, ao local, perguntou se eu era o Gilberto saúde permitia”. filho Marco e aos demais familiares, Cunha. Diante da resposta afirmativa, Essa coluna é o meu tributo de escritor reafirmando que os elogios dele, pela disse ser leitor assíduo e apreciador das ao leitor Vidal Corá. Sei e reconheço sinceridade que transpareciam, sempre colunas que eu escrevia no jornal O que o ato da escrita, por mais árduo que me fizeram muito bem. Nacional, além de tecer outros comen- aparente ser, nunca é igual ao ato da O tema nos conduz à reflexão sobre tários amáveis que, no dia a dia de quem leitura. Escrever pode ser mera obriga- duas datas aparentemente abstratas, escreve, sem outra pretensão que não ção profissional, ou simplesmente para nascimento e morte, sobre as quais não seja ser lido, são detalhes gratificantes. cumprir o prazo de fechamento da edi- exercemos ingerência maior. A primeira, Nas feiras do livro de 2009 e 2011, ção de O Nacional, por exemplo, como inquestionavelmente, não depende de lancei, respectivamente, os livros “Ga- fiz ao longo de muitos anos. A leitura, nós. A segunda, até certa medida, pode lileu é meu pesadelo” e “A ciência como nesse caso concreto de Vidal Corá, em contar com a nossa cumplicidade. Mas, ela é...”. Nas sessões de autógrafos, relação ao colunista Gilberto Cunha, como desconhecemos o que sobrevém à ele foi o primeiro da fila. Em ambas, é do tipo voluntária, resignada, sem morte, sempre fica a esperança borgeana quando eu cheguei, ele já estava lá com qualquer obrigatoriedade em si mesma, de que se pode viver uma experiência o seu exemplar na mão, gentil e discreto portanto, algo nobre e digno de respeito. nova. Inclusive, em não havendo nada, como sempre. Idolatra-se o escritor e se esquece o lei- isso também pode ser uma experiência Um escritor de poucos leitores con- tor, como sói acontecer. Sou consciente nova. segue identificar, praticamente pelo disso, pois escrevo, profissionalmente, Infelizmente, para concluir, sei que nome, e ser grato ao seu público fiel. Em como pesquisador da Embrapa, e, vo- esse texto tem um leitor a menos. outra meia dúzia de ocasiões, trocamos luntariamente, por satisfação e desafio cumprimentos em encontros fugazes, pessoal, para alguns jornais e revistas de por locais públicos da cidade. A última divulgação científica. Antes de qualquer (Gilberto R. Cunha é membro da Academia Passo- vez foi na sexta-feira, 6 de janeiro de coisa, sou um leitor que, além das ciên- Fundense de Letras.)

92 Água da Fonte Novembro de 2012 Poesia craci dinarte

Quando chegar a hora Uma flor especial Corcel de nuvens

Quando chegar a hora, Uma flor especial No meu corcel de nuvens saberei que devo partir nasceu nesse vasto mundo, cavalgo o espaço. para bem longe daqui, com perfume, Vejo planetas, onde a falta de amigos cor e amor. a luz das estrelas; e lugares Que nasçam ultrapasso os negros buracos, não me magoarão, infinidades dessas flores, encontro outras galáxias; indicando que meu tempo com todos os perfumes e cores, ouço vozes, está quase esgotado. mas com puros amores espanto-me. Sou mais passado que futuro. para enriquecer o mundo! São seres estranhos, Quando chegar a hora, nas suas espantosas naves, partirei. cantando o amor Serei uma ave que pousa Um dia de sol e a paz universal. e ninguém saberá por quanto tempo. Não quero viver só de lembranças, Vestida, quero apenas viver com os farrapos do tempo o resto que me resta... (o que me restou!), sou fustigada pelo vento, lacerada pelas rochas, molhada e atemorizada pelo temporal. Com sua voz sumida, mendigo da vida um dia de sol esplêndido, antes de partir para sempre.

Novamente a prece

Jesus, Libertação faço parte de Teu rebanho. Estou cansada, Angustiava-me perdida, e carente. para alçar voo. Clamo a Teus pés: Estava preparada, carrega-me em Teus ombros mas a impediam, até voltar-me a força, segurando-lhe as azas. e junto dos demais Um grito ecoou poder andar novamente. e ela voou aos céus, numa ampla liberdade. Angústia E nunca mais pousando na terra...

Esta angústia que me sufoca, oprime meu peito, Cicatrizes faz doer meu coração, faz-me compreender Retiraram do meu corpo que nunca mais vou viver o que se negava a viver. a vida que desejei. Marcaram meu ventre Tenho que esconder e meus seios, a grande vontade de amar! cicatrizes e cruzes de luta Há garras que me prendem da vida contra a morte. à lei da obrigação e do dever. Da vitória saí marcada, no corpo e na alma.

(Craci Terezinha Ortiz Dinarte é membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 93 Vida nova, casa nova

SUELI GEHLEN FROSI de uma psicóloga e tornou-se uma pal- tes com as meninas, que a escutavam piteira das boas. embevecidas, e passaram a ouvir, de Eu tinha meu trabalho doméstico, fa- dores de perdas a relatos cada vez mais eguei meu casaco e saí. Não zia a comida, arrumava tudo, fazia com interessantes, sobre viagens, conquistas, havia mais condições de per- que, todas as semanas, a faxineira desse glamour e charme. P manecer naquela casa que sem- uma geral na casa, coisa que funcionava A casa agora estava inundada de per- pre foi minha. Eu a havia idealizado, muito bem. fume, de ruídos de saltos altos, de co- construído, cuidado e havia dado vida À tarde eu digitava trabalhos acadê- midas cheirosas que ela preparava para àquelas paredes. micos, o que rendia um bom dinheiro agradar ora um, ora outro. Meu marido Não podia permitir que uma situação, para minhas necessidades femininas e era atendido em seus desejos de pastéis fora do meu controle, me deixasse na- eu estava feliz com isso. de Santa Clara, quindins e guloseimas quele estado desesperador. Minha amiga Um dia encontrei Ângela sentada ao difíceis e evitadas por mim, dado o tra- conseguiu seu intento e entrou para a computador, digitando a uma velocidade balhão que dão. Estavam todos no céu. minha vida em definitivo, e eu permiti, incrível e fazendo o meu trabalho com As tardes eram preenchidas por idas a ingenuamente, que ela viesse, tomasse uma eficiência espantosa. Eu andava shoppings, sacolas, risadas e minhas um lugar de destaque e ficasse instalada cansada e achei normal o alívio de filhas a tiracolo. Bem que eu tentava confortavelmente, tanto na casa, quanto delegar alguma coisa a ela, afinal, ela fazê-las estudar, adolescentes que eram, se imiscuiu na nossa intimidade. precisava se distrair. Só que ela não mas a sedução da minha amiga era sem- Sempre fomos amigas, grandes ami- parou mais. Não reivindicava dinheiro, pre mais forte do que eu. gas. A morte de seus dois filhos, que não cansava, entretanto, o espaço que O marido de Ângela morrera de uma seguiram-se à morte do marido, dei- era meu passou a ser dela, o trabalho doença hereditária e os filhos herdeiros xaram Ângela em frangalhos. Viu-se que era meu, ela havia usurpado. da moléstia morreram do mesmo jeito, sozinha em casa, tomada pela dor, e eu, Um dia ela vestiu, distraidamente, motivo pelo qual ela alardeava que ca- condoída e solidária, convidei-a a passar meu robe mais bonito, e ele ficou mais saria de novo, mas não teria mais filhos, alguns dias conosco. bonito nela, reconheço. Pedi que ela a não ser que o novo marido fizesse Ela veio, não falava nada, mas ocupou o devolvesse, o que fez sem nenhum exames específicos para detectar possí- um espaço excessivo, o que incomodou constrangimento. veis moléstias mortais. Sorte tinha eu, minhas filhas. Encontravam calcinhas, Foram dois meses de uma corrida segundo ela, com filhas tão saudáveis e absorventes, compartilhavam xampus, por meu lugar, por minhas coisas, por um marido forte e trabalhador. sabonetes e toleraram toalhas molhadas meus queridos que, encantados, estavam Um dia, aproveitando a ausência dela, jogadas no banheiro. rendidos aos encantos daquela mulher falei à minha família que estava na Aos poucos ela foi saindo do maras- completamente talentosa e encantadora. hora de Ângela arrumar um canto pra mo, passou a frequentar o consultório Ela mantinha conversas interessan- ela, para que voltássemos a ter a vida

94 Água da Fonte Novembro de 2012 de antes. Ouvi os protestos óbvios, de Esperei que todos voltassem para que estavam se divertindo, ganhando casa e relatei o acontecido, sabendo de Poesia maria thereza sfoggia presentes, comendo iguarias que eles que Ângela estava deitada e chorando nem conheciam. Falaram inclusive das copiosamente. conversas estimulantes que estavam Todos protestaram e pediram-me que tendo com a hóspede. tivesse paciência, afinal ela gastava um Eu passei a ser a governanta, juntadora bom dinheiro em cosméticos, presentes, das bagunças, espectadora das conver- agrados. Perguntei se eu deveria fazê-los sas, mas ser ignorada por todos, eu não escolher entre mim e ela. Responderam podia aguentar. Arranjei um emprego que eu fizera uma pergunta impossível rapidinho, levantava cedo, me arrumava de responder. e a casa saiu do meu controle. O fato de pegar meu casaco e sair Chegava à noite, casa arrumada, jantar no meio da noite não abalou ninguém. servido, e Ângela no comando, coisa co- Hospedei-me em um hotel e no outro dia mum. Ninguém falava comigo, ninguém atendi a um telefonema do meu marido. perguntava como fora meu dia. Ele relutou em dizer que seria pai de Um dia, ao chegar ao trabalho, soube novo e que eu sempre teria um lugarzi- que houvera intervenção da polícia nho naquela casa, era só querer voltar. federal, por questões que não entendi Hoje sou uma advogada bem suce- direito, meio ausente que sempre fui e, dida, recebo a visita das minhas filhas, logo depois, voltei para casa no meio a que não suportam mais aquela mulher tarde. Entrei e encontrei a casa impecá- autoritária, aquela criança malcriada, o vel e Ângela assistindo TV deitada na xodó do papai e esperam que eu as con- minha cama. Ela chorou muito quando vide a morar comigo. Meu novo marido a convidei a retirar-se da minha cama, não quer compartilhar nossa casa com Maria da minha casa, da minha vida. Disse que ninguém. Fazer o quê? conseguira, graças ao carinho de todos, Maria da terra, recuperar-se das perdas, conquistara (Sueli Gehlen Frosi é membro da Academia Passo- das mãos calejadas, duas filhas e morreria sem isso. Fundese de Letras.) do tempo contado na luz da manhã. Maria do sol, das mãos calejadas, do tempo contado na cor dos cabelos, na pele curtida de muitos verões. Maria... Maria... Um grito diria: Maria morreu! O grito ecoou na mata, no rio. E os homens do campo, aves e flores, choraram Maria, na estrela da noite, no brilho do dia. O rio se aquietou, um braço alongou, p’ra receber, num abraço, o barco trazendo Maria do Passo. À beira do rio, amigos choraram... Enquanto Maria, em outras moradas foi aportar... Não mais Maria do Passo e, sim, Maria do Céu, Maria dos Anjos, Maria de Deus!

Água da Fonte Novembro de 2012 95 Um Santo na Terra Santa

SANTO CLAUDINO VERZELETI que você sabe que sou gringo? para enfrentar, junto com os demais Às dezessete horas rumamos para peregrinos, diferenças de língua, costu- Lisboa. A informação aérea indicava mes, alimentação, clima e fuso horário. ovido pelo impulso religioso, que viajávamos a 11.300 pés de altitude, No aeroporto moderno, com ampla e por outras lições mais que a nua velocidade d Emil quilômetros por segurança, encontramos nossos futuros M escola da vida nos propiciou, hora, com uma temperatura externa de condutores: o motorista Almir e o guia através dos ensinamentos paternos, em- 61 graus negativos. Foram nove horas e Jorge, um judeu argentino casado com preendi, com um grupo de peregrinos, meia de viagem. O grupo já estava bem uma carioca e residindo em Israel. uma viagem de confirmação desses descontraído, uns dormiam, enquanto Aos poucos começamos a entender- princípios, a Israel e Portugal. outros se mantinham acesos. nos, e até a reforçar nosso linguajar de Tomados de intensa esperança e Chegamos antes de tudo à terra dos viagem, dentro do contexto judaico. curiosidade, nos assentamos silenciosos que ocuparam o Brasil há mais de 500 De pronto, seguimos para Haifa, em nossos lugares, guiados pelo Padre anos, a terra de Camões e de Pedro com agradecimentos e orações a São Valter Girelli, procedente de Erechim. Álvares Cabral, com uma diferença de Cristóvão e Nossa Senhora da Boa Foi no dia 14 de abril de 1996, que quatro horas no fuso horário. Viagem. Imploramos a bênção para a partimos do Brasil, em voo com destino Em Portugal, recebemos orientações nossa peregrinação, para o motorista e a São Paulo, via TAP, rumo a Portugal. do guia Pietro Fanton que diligenciou o para o guia. Subimos então pelo litoral Lá íamos, os romeiros, empurrando as encaminhamento de nossos passaportes. do Mediterrâneo, passamos perto de malas nos respectivos carrinhos. Menos E tomamos o rumo de Tel Aviv, em Cesareia Marítima, deslumbrados com o Padre Girelli. Alguém sugeriu-lhe Israel, onde desembarcamos, no dia 15 as planícies e suas plantações de trigo, então que ele também se servisse de um de abril, uma segunda-feira. tâmara, laranja, figo, abacate, manga, carrinho, pois era de graça. Ao que ele Foi assim que um Santo, oriundo de cacto e oliveira. A diferença do fuso prontamente respondeu: Ah é? Como é Passo Fundo/RS, chegou à Terra Santa, horário correspondia a seis horas.

96 Água da Fonte Novembro de 2012 Ao anoitecer, chegamos em Haifa, Os espaços mais importantes visi- Basílica. Ele pretendia reivindicar um que fica no Monte Carmelo. Fomos tados durante essa peregrinação, serão lembrança de Nazaré. O grupo se afas- hospedados no Hotel Stela Maris, das descritos no relato que segue. tou para visitar o jardim e a caverna irmãs e frades carmelitas. Como se GRUTA DE ELIAS – Profeta de Israel (casa) onde morou José. Eis que no tratasse de um local citado na bíblia, (século IX a. C.), ressuscitado por Deus momento em que o Santo conversava jantamos e nos reunimos para participar para combater o culto a Baal e a impie- com o pároco, tocou o telefone. Um da primeira Missa da viagem, na Igreja dade de Jesebel e Acab. Seu nome está jornalista da França desejava saber dos Nossa Senhora do Carmo. ligado a numerosos episódios bíblicos: últimos distúrbios ocorridos na cidade. E Haifa é uma cidade no norte da Pa- a seca de três anos, o extermínio dos sa- o padre alegava que nada tinha a declarar lestina, no golfo do acre, ao sopé do cerdotes de Baal, a ressurreição do filho e que o assunto não era da competência Monte Carmelo. É o principal porto e da viúva de Sarepta, a intervenção em dele. Assim, enquanto o tempo passava, um dos centros comerciais e industriais favor de Nabot e a assunção do profeta o Santo permanecia ali postado, espe- mais importantes do novo Estado de ao céu, num carro de fogo. Segundo Ma- rando o padre largar o telefone. Enfim, Israel, terminal de algumas vias-férreas laquias, deverá voltar à terra antes que ao revirar daqui e dali as gavetas da e de um oleoduto procedente do Iraque. venha o grande dia do Salvador. Alguns sacristia, o bom homem encontrou um Há refinarias de petróleo, indústria questionam o tal carro de fogo... – Seria estola e perguntou: “Isto serve?” – “É têxtil e eletrotécnica. O país também um disco voador? claro!” - respondeu o Santo, saindo em exporta milho, azeite, sésamo,legumes Concluída a visitação, com todos a disparada ao encontro do grupo. Toda- e outros cereais. Seu nome antigo era bordo, rumamos para Nazaré, passando via, ao encontrou mais ninguém. Tudo Sycaminum. pelo vale de Zebulon, que tem ao fun- estava silencioso... Ele não falava árabe, Já integrados no espírito religioso, do a baixa e a alta Galileia, com suas nem grego, mas falava vêneto, e o cape- a Irmã Erminda apresentou uma men- paisagens lindíssimas. Avistamos ali os lão era italiano, por isso se entenderam. sagem de Atílio Hartmann, em que ele primeiros beduínos, pastores que moram Mas agora, o que fazer? Onde estaria afirma que “as pessoas são presentes em tendas cobertas de lona, cuja aparên- o grupo? – O Santo estava perdido em do Pai”. cia é de muita pobreza e vida rústica. Nazaré! Subiu e desceu tantas vezes os Todos os peregrinos recebemos como Nesse dia, os judeus rememoravam 40 degraus da escada, que acabou can- lembrança um escapulário de Nossa os mortos da Segunda Guerra Mundial. sando. Optou então por observar o local Senhora do Carmo, que também foi Num gesto de solidariedade, paramos em volta. Presumiu que não iriam deixá- abençoado. um instante à margem da estrada, se- lo justo onde Nossa Senhora nasceu. Depois, enquanto uns foram descan- guindo o costume deles. Junto à calçada encontrou um senhor de sar, fiquei pesquisando com as Irmãs Vamos que vamos até chegar a Naza- meia idade, simpático, vendendo objetos Carmelitas o que poderiam doar, para ré. No tempo de Maria Viviam lá mais religiosos. Olharam-se mutuamente. um museu religioso que, na ocasião, eu ou menos 120 pessoas. Foi a cidade da Este cara está perdido! – foi o que o estava organizando em Passo Fundo. anunciação do anjo à Maria. Lemos homem pensou. E o Santo, por sua vez, Minha meta era empolgar padres, ca- e meditamos o texto de Lc 1, 26-38. dirigiu-se a ele com as palavras: Mi son pelães e zeladores de cada local, igreja Marcou-nos o canto: Maria do sim, perso! – O sujeito prontamente entendeu ou capela, a fim de colaborarem com ensina-me a viver meu sim! e respondeu: No perso, brasiliani gruta doações. Situada no norte do Estado de Israel, San José! – E indicou o local com o (Observação: Doravante, nesta narra- Nazaré é a capital do distrito de Norte e a dedo. Como um relâmpago, o Santo tiva, deixarei de usar a 1ª pessoa – eu – e mais importante cidade da Galileia. Bas- seguiu naquela direção e encontrou a passarei a relatar na 3ª pessoa: o Santo.) tante pitoresca, implantada sobre uma turma, que já procurava por ele. Enfim, No dia 16, uma terça-feira, todos colina, a sudeste do lago de Tiberíades, o encontro. Que alívio e que alegria! acordamos cedo. (O fato de não estar- divide-se em bairros gregos, muçulma- Final feliz, sobretudo por ter conseguido mos em nosso fuso horário fez alguns se nos, latinos e judeus. Outrora uma loca- a doação que pretendia. confundirem!). Depois do café, fomos a lidade sem maior importância, tornou-se Em seguida, fomos visitar a gruta campo pesquisar, ver, examinar e ouvir, célebre por evocar vários episódios da de José, uma caverna onde a família de nosso guia,a história da localidade: vida de Jesus. É o lugar onde, segundo de Jesus morou e trabalhou, em sua Monte Carmelo, histórico e rico em o Novo Testamento e a tradição oral, carpintaria. passagens bíblicas, montanha situada nasceu a Virgem Maria e onde ocorreu Continuando o roteiro, visitamos a no litoral da Palestina. O monte, coberto a anunciação. Cristo morou lá ao volta fonte onde Maria buscava água. No de extensa vegetação, é rico em caver- do Egito até seu batismo. Na parte norte local há hoje uma igreja ortodoxa-grega- nas que abrigaram inúmeros ascetas da cidade, vêem-se as ruínas da sinagoga oriental. hebraicos, tais como Elias e Eliseu, em que Jesus pregava, a oficina de José e Ao meio-dia, a fome apertando, e foi o retiro preferido dos primeiros o poço mariano. Segundo a lenda, a casa almoçamos no restaurante La Fontana anacoretas cristãos. da Sagrada Família foi transportada, di Maria. Satisfeitos e aliviados, nos O santuário que hoje se ergue nesse milagrosamente, transportada de Nazaré deslocamos para a primeira visita da monte é a sede da Arquiconfraria de para Loreto, na Itália. tarde: Canaã, antiga cidade da Galileia, Nossa Senhora do Carmo. Neste lugar ocorreu o primeiro pro- na qual, segundo a Bíblia, Jesus Cristo Apreciamos uma linda visão de Haifa blema da nossa viagem. Eis que todos operou seu primeiro milagre, transfor- e seu porto. Ela foi fundada há duzentos se dirigiram à gruta de José, ao lado da mando a água em vinho, por ocasião de anos e é o centro mundial da religião Basílica, enquanto o Santo se desviou uma festa de bodas (João 2, 1-11). Baal. do roteiro para procurar o pároco da Aproveitamos a oportunidade e fize-

Água da Fonte Novembro de 2012 97 mos uma surpresa ao Sr. e Sra. Ângelo Na parte externa, sobre um patamar, refeição foi ao ar livre e à beira do lago. Scotà, único casal entre os peregrinos. com uma fantástica vista ao fundo, Um momento deveras emocionante! Eles decidiram renovar o sacramento avistamos a cidade de Naim. Foi nela Após foi servido o tão esperado e tradi- do matrimônio e convidaram todos os que Jesus ressuscitou um jovem, filho de cional café da turca. A satisfação de to- demais como testemunhas. uma viúva (Lc, 11-17). O Monte Tabor, dos era enorme, por termos o privilégio Novamente, o Santo vasculhava em com 562 m. de altura, fica na Palestina, a de caminhar pelo mesmo solo sagrado busca de algo. Recolheu uma porção de leste de Nazaré, e nele se deu o episódio que Jesus e seus apóstolos percorreram. terra como lembrança, e adquiriu algu- da transfiguração de Cristo. À tarde, retomamos nossa pere- mas garrafas de vinho da Terra Santa. Na ocasião em que Jesus, com Pedro, grinação para Cafarnaum, cidade da De Canaã partimos para as margens Tiago e João subiu ao monte para orar, Galileia, à margem noroeste do Lago do lago de Genesaré ou da Galileia, o transformou-se o seu rosto, enquanto de Genesaré, também chamado Lago mesmo em torno do qual Jesus viveu orava, e as suas vestes tornaram-se Tiberíades. Fica a pouca distância da e desenvolveu a maior parte do seu resplandecentes de brancura. Que fala- desembocadura do Rio Jordão. Muito ministério. va Ele com os apóstolos? – Falava da próspera no tempo de Jesus, esta cidade, Nessa tarde, visitamos ainda a Igreja própria morte, que haveria de cumprir que ligava o Egito à Síria, decaiu a tal das Bem-Aventuranças, ocasião em que em Jerusalém. ponto que hoje não restam mais traços cada peregrino recebeu uma mensagem Quanto a nós, descemos do monte que determinem com certeza a primitiva contendo uma delas. O lugar é lindo! No ungidos pela ideia da transfiguração, condição. Segundo o Novo Testamen- interior da igreja, lemos o evangelho (Mt e retomamos a viagem, passando por to, Cristo passou por ela várias vezes, 5, 1-12), depois nos detivemos um mo- Quibut. pregando, operando números milagres mento contemplando as belas paisagens, Para atravessar o lago de Genesaré, e chamando-a de minha cidade. Foi na com o lago ao fundo. Encerrada a visita, tomamos um barco, enquanto íamos sinagoga de Cafarnaum que Ele instituiu rumamos para Tiberíades, que também rememorando os grandes acontecimen- o sacramento da Eucaristia. fica às margens do lago. Hospedamo-nos tos bíblicos relacionados com aquelas A beleza do lugar é extraordinária, no hotel, passeamos em volta das águas, águas sagradas e também históricas. com flores múltiplas e coloridas. Ou- e entramos para brincar e nos banhar. Entre eles: A tempestade no lago, A trora havia no local uma sinagoga, hoje Por sinal, eram muito frias. pesca milagrosa, Jesus caminha sobre em ruínas. Mesmo assim, demonstra Por fim, o Santo recolheu como lem- as águas, e outros. a pujança e a riqueza daqueles tempos brança algumas pedras, para o futuro Enquanto partilhávamos estas infor- imemoráveis. museu. Todos nos embriagamos com o mações, preparamos também a cele- Algumas passagens bíblicas narram que vimos e sentimos naqueles lugares bração da Missa. No meio do lago, os fatos da vida de Jesus que aconteceram santos. Dessa vez, ninguém se perdeu. motores do barco foram desligados e, nos seus arredores. Entre eles: a cura da No dia 17 de abril, uma quarta-feira, calmamente, celebramos a Eucaristia. sogra de Pedro, a pregação dentro da rumamos em direção ao novo destino. A beleza do panorama era inesquecível sinagoga, a cura do servo do Centurião, e todos cantaram com redobrado fervor: a repreensão pela ingratidão do povo. Monte Tabor Tu vieste à margem do lago, Senhor! Tu Em nosso entender, foi lá que Jesus me olhaste nos olhos, e sorrindo disseste arregimentou seus discípulos, homens Chegando ao Monte Tabor, deixamos meu nome! Lá na praia, eu deixei o meu destemidos e de estatura forte, que o ônibus ao sopé do mesmo e tomamos barco, junto a ti, buscarei outro mar... – usariam da força se fosse necessário. um táxi, isto é, uma limusine. Nunca E também: Se as águas do mar da vida Ele sabia que precisava, à sua volta, se- havíamos andado nesse tipo de veículo. quiserem te afogar, segura na mão de guidores respeitáveis. E eles correspon- Maravilhados com a paisagem em volta, Deus e vai!... deram, pois abandonaram suas próprias chegamos por fim ao monte. Visitamos Terminada a celebração, retornamos a famílias pela nova causa. a igreja, lemos e meditamos o texto Tiberíades para, no almoço, alimentar- As autoridades daquela época não bíblico da Transfiguração (Mt 17, 1-9). nos de peixe, como fez São Pedro. A admitiam ideias contrárias às do rei. A

98 Água da Fonte Novembro de 2012 política de Cristo, entretanto, era de- Ao nascer do novo dia, retomamos a Tudo destinado a seu futuro museu. fender os pobres, os doentes, as classes tarefa de transportar malas e bagagens. O autobus seguia vagaroso pelo vale, menos favorecidas, os pecadores – ensi- O autobus nos aguardava em frente ao rumo à próxima cidade: namentos totalmente contrários àqueles hotel, a fim de conduzir-nos até as nas- do poder central do Estado Romano. centes do Rio Jordão, na saída do Lago Jericó Prosseguimos a caminhada pela beira de Genesaré. Temperatura agradável, do lago até a igreja da Confirmação de muito verde pelo caminho, e tamareiras Uma cidade antiga e fortificada da Pedro. Dentro dela, a suposta rocha em sem fim... Palestina, Jericó está situada no vale do que Jesus teria dito: Tu és Pedro, e sobre No local destinado, celebrou-se uma Jordão, a 24 km ao nordeste de Jerusa- esta pedra edificarei a minha Igreja! missa sobre a mesa de refeições, oca- lém. Foi a primeira cidade conquistada Desse local, a fim de incrementar o sião em que lemos a passagem bíblica pelos israelitas (1400 a.C.), comandados museu religioso que pretendia organizar sobre o batismo de Jesus e renovamos por Josué. Foi reforçada no reinado em sua volta, o Santo recolheu um pote as promessas do nosso próprio batismo. de Acab, destruída pelos romanos e de terra e mais algumas pedras em que Cada um escolheu um padrinho e uma reconstituída pelo imperador Adriano. o Senhor pisou. madrinha, e o padre tomou o lugar de A Jericó dos tempos romanos, referida Próximo dali visitamos outro local João Batista, derramando água sobre a no Novo Testamento, estava situada um verídico, o sítio da Multiplicação dos cabeça de cada um dos peregrinos. Por pouco mais para o sul. A Jericó da Idade pães (Mc 6, 30-44), onde cantamos fim, recebemos a lembrança desse batis- Média localizava-se onde atualmente se solenemente: Pão em todas as mesas mo: um diploma que até hoje preservo, encontra El Riat, mais para leste. da Páscoa, nova certeza, a festa haverá, entre outras lembranças de viagens. Seguimos debaixo de um sol forte, em e o povo a cantar Aleluia! – A seguir, Por meio dessa cerimônia, os filhos local com aspecto de deserto. À nossa recitamos o Pai Nosso, implorando o e filhas de Deus foram purificados, em direita se apresentava o monte das ten- pão nosso de cada dia. instante memorável e histórico. Cada tações de Cristo. Para marcar sua passagem por ali, o um deles recolheu ainda uma porção A Bíblia relata que Jesus foi condu-

Santo adquiriu um cálice, decorado com de água do Rio Jordão. O Santo, por zido pelo Espírito ao deserto, para ser um peixe do período bizantino. sua vez, encheu uma garrafa destinada tentado pelo demônio. Jejuou quarenta O local é extremamente sóbrio. a fazer parte do Museu do Imigrante, dias e quarenta noites, e depois teve Oferece tranquilidade e paz interior. O que ele mesmo criou, em Passo Fundo. fome. Então o tentador aproximou-se Papa Paulo VI, o único a visitar a Terra No retorno, o ônibus realizou uma dele, dizendo: “Se és o Filho de Deus, Santa, também visitou esses lugares, parada, a fim de recolher algumas es- ordena que estas pedras se tornem pães!” onde ocorreram a Multiplicação dos pigas de trigo como lembrança. Ele é o Jesus respondeu: “Está escrito: Não Pães e a Confirmação de Pedro, como símbolo do pão! só de pão vive o homem, mas de toda chefe da Igreja. Continuando a viagem, chegamos às palavra que procede da boca de Deus.” Como já se anunciava a noite, retor- escavações de Esquitópolis, uma mara- Em silêncio, vagamos pela estrada namos, sob a proteção do Senhor, para vilha! Estão reconstruindo uma cidade e passamos pelo manancial de Eliseu, o descanso no hotel, em frente ao lago. do tempo dos romanos. No alto de uma profeta do Antigo Testamento, sucessor Rezamos o terço e partilhamos a sen- coxilha, vislumbramos o contorno do de Elias, o qual promoveu a revolução sação de estarmos num local de tantas horizonte, com muitos arbustos. Cha- de Jeú contra Acab. Em consequência e tão belas histórias. Foi uma bênção mou-nos atenção um deles, apinhado dela, foi extirpado o culto fenício de extraordinária! de pequenos frutos arredondados. E, Baal, no reino de Israel. Após esses momentos de oração e por um instante, recordamos ter visto Sob um sol escaldante, lemos a his- contemplação, mesmo estando baixa a em Cafarnaum um coelho trepado num tória de Zaqueu, lembrando também temperatura da água, alguns do grupo arbusto semelhante, comendo daqueles que foi na cidade de Jericó que Jesus não resistiram e, a exemplo do guia frutos estranhos. realizou a cura de um cego. Registramos espiritual, Padre Valter Girelli, jogaram- E o Santo, naturalmente, decidiu pro- nossa passagem pelo lugar – onde se lo- se no lago para um banho reparador. var e afirmou que tinha gosto de maçã. calizara o palácio de Herodes, o Grande Afinal, ir até lá e não se banhar nas Estava assim desvendado o segredo – subindo um dos morros. Naturalmente, águas onde Jesus andou e pescou, seria do coelho. quem representou o grupo foram o Santo imperdoável. Foram momentos de lavar, Após analisar e tatear, o Santo ainda e o Padre Valter, que recolheram dos sobretudo, a alma! recolheu um prego que havia por lá. muros algumas pedras, símbolo vivo de

Água da Fonte Novembro de 2012 99 um passado longínquo e notável. Qumran se mais a Galileia ao seu território. O Padre gostou tanto do lugar que Antes de entrarmos em Jerusalém, não resistiu à tentação de subir a uma Em 1947, um beduíno à procura passamos por Betânia, terra de Lázaro e árvore para ser fotografado, a fim de de sua cabra que se havia extraviado, suas irmãs, onde lemos e meditamos os provar que esteve na mesma Jericó dos descobriu um dos mais importantes e textos bíblicos: Jesus vai à casa de Marta tempos de Cristo. preciosos achados arqueológicos do e Maria (Jo 2, 1-11); e A ressurreição de Segundo a história, Jesus, ao voltar século XX, os famosos pergaminhos Lázaro (Jo, 12, 1º e seguintes). a Jerusalém, passou por Jericó. Entre a do Mar Morto. multidão que o aguardava, encontrava- Escritos pelos essênios, membros Jerusalém se um homem baixote, de nome Zaqueu de uma seita religiosa que deixou Je- que, para enxergar melhor, subiu num rusalém para instalar-se no deserto de Capital de Israel e cidade santa dos cinamomo (sicamoro). Qunrãm, mais ou menos no século I a.C. cristãos e judeus, Jerusalém é uma forta- De Jericó seguimos para Qumran. , os pergaminhos foram encontrados em leza natural, uma elevação rochosa for- No meio do caminho, ao pararmos para grutas da região. mada por duas colinas, cerca de 60 km um lanche, alguns aproveitaram para Os escritos de Filão, Flávio José, da costa e 27 km a leste do Mar Morto. dar uma volta de camelo e fotografar. Hipólito, Solino, Eusébio e Epifânio Entre os lugares de interesse turístico Seguiu-se um proveitoso descanso, relatam que os essênios abandonaram e religioso, pode-se citar: a Igreja do durante o qual o Santo, com alguns com- a sociedade judaica, o sacerdócio e o Santo Sepulcro, o Monte das Oliveiras, panheiros, foram visitar um parreiral templo, para se refugiarem em Qunran, a Igreja dos Cruzados de Santa Ana, o próximo. E observaram que as videiras orientados pelo mestre de justiça, cuja Horto de Getsêmani, o Muro das La- haviam sofrido um corte ao redor do identificação histórica se desconhece. mentações e, modernamente, a Univer- tronco, uma incisão de cerca de dois Essa gente levou uma vida dedicada sidade Hebraica, a Catedral Anglicana ou mais milímetros, interrompendo em à oração, ao estudo, à meditação e à e a Basílica Franciscana. parte a circulação da seiva. Questiona- caridade. Nossa visita seguinte foi à Igreja dos ram o caso, e alguém que estava por lá Todavia, no ano 31, eles abandonaram Pastores, onde lemos o texto de Lc 2, informou-lhe que o corte era tecnica- o local, que foi destruído por um terre- 8-20 e, juntando nossas vozes, entoamos mente realizado, pois a redução da seiva moto. Trinta anos mais tarde, retorna- Glória, glória, aleluia! melhorava o teor de açúcar e apressava ram, construindo um pequeno povoado, O pátio da Igreja do Campo do Pastor o amadurecimento da fruta. e permanecendo ali até o ano de 68, é o local onde o Anjo apareceu aos pas- Os turistas do camelo, ao revelarem as quando foram todos massacrados pelos tores e anunciou o nascimento de Jesus. fotos, notaram que algumas apresenta- soldados de Tito. Sabendo da passagem A consciência induziu o Santo a recolher vam a cabeça decepada, tanto do camelo dos romanos, os essênios esconderam algo daquele campo sagrado, e ele cor- como do condutor. Isso porque o animal rapidamente os seus mais preciosos tou um pequeno ramo de cacto que, no é alto e, ao levantar-se, saía parcialmente bens, ou seja, suas escrituras, naquelas retorno da viagem, seria plantado em do foco da máquina. obscuras cavernas. E o deserto guardou Passo Fundo, no Parque da Roselândia. Descendo pela margem do Jordão, seu segrego por dois mil anos, pois o Em seguida, nos dirigimos para a Igre- chegamos à Jordânia, uma planície de local onde viveram, nas vizinhanças do ja da Natividade, isto é, do nascimento rica agricultura. Mar Morto, tornou-se célebre a partir de de Jesus. Descemos à gruta e beijamos Mas, nesse tipo de viagem, o impossí- 1947, por seu mosteiro e pelos arquivos o local da manjedoura. Procuramos o vel acontece. E ocorreu que, enquanto o bibliográficos lá descobertos. texto bíblico de Lc 2, 1-12, que narra o guia espiritual celebrava uma missa no Vale a pena pesquisar sobre ritos e nascimento de Jesus e, como não pode- lago da Galileia, ouvia-se, de tempos costumes dos povos antigos. O deserto ria deixar de ser, mesmo não estando no em tempos, um tiro surdo, tipo morteiro. possui encantos e segredos inimaginá- período de Natal, cantamos Noite Feliz. Todos ficamos curiosos para saber o que veis. Junto desta igreja, visitamos a gruta de era aquilo. Dando prosseguimento à nossa via- São Jerônimo, o primeiro tradutor da Então, antes de chegarmos ao des- gem, fomos em direção a Jerusalém. No Bíblia para o latim. tino, fizemos uma parada técnica. Foi trajeto, atravessamos um deserto com Nossa emoção foi tão grande que, quando observamos, uma encruzilhada, montanhas de pedra. num momento de reflexão, recordamos alguns tanques de guerra de 50 ou mais da família, dos nossos pais e dos amigos. toneladas, e caminhões com foguetes, Judeia Lágrimas copiosas começaram a rolar na divisa da Jordânia. Perguntamos ao pelas faces do Santo. Procuramos ainda guia para que serviam tais máquinas. E Região meridional da antiga Palestina, o capelão da igreja, num lo9cal escuro, ele nos confirmou com toda a seguran- foi designada pelos persas como mo- tipo uma gruta, e nada... Assim mesmo, ça: “Os foguetes servem para espantar rada dos judeus, após o seu retorno do fomos abrindo portas e caminhos, até os patos que sujam as águas do mar da cativeiro da Babilônia, no ano 538 a.C. que alguém nos perguntou algo. Seria o Galileia!” Esteve sob o jugo de vários povos. capelão? Não entendemos nada, e tenta- Sob a proteção divina, chegamos a Além dos persas, também dos gregos e mos usar a linguagem dos sinais. Nem Qumran, que fica junto ao Mar Morto, romanos. Quando província romana, a assim foi possível a comunicação. Então em pleno deserto. A primeira providên- Judeia compreendia, em 641 d.C., ainda dissemos em coro: Desejamos uma lem- cia que tomamos foi almoçar, pois já a Idumeia, a Samaria e o litoral entre o brança daqui! O Santo decidiu usar o passava do meio-dia. Monte Carmelo, no norte, e a cidade de dialeto vêneto, e conseguiu fazer-se en- Jamnia, no sul. Em 67 d.C., acrescentou- tender. Fomos então conduzidos até uma 100 Água da Fonte Novembro de 2012 pequena sala, com diversos armários, turmalina rosa, que hoje se encontra no da antiga Jerusalém. Em seguida, os onde o padre mostrou-nos uma manta Museu do Imigrante, em Passo Fundo. muros da cidade, com a cúpula dourada de cor verde com vermelho. Serve?- da Mesquita de Homar. Visitamos ainda perguntou. Yes! Aleluia! –respondeu o Belém a igreja Dominus Flevit, construída em colecionador de objetos sagrados. memória do choro de Jesus, durante a Em seguida, nos encaminhamos para Seguimos para Belém, onde tivemos agonia. Oramos fervorosamente, re- a Igreja de Nossa Senhora do Leite – uma hora de lazer. Cada um foi comprar cordando tantas pessoas que sofrem e na verdade, uma linda gruta -, a fim suas lembranças. O Santo aproveitou choram por diferentes razões. de conhecer o mais emocionante dos para adquirir um crucifixo feito de oli- Descemos mais até chegar à Igreja da quadros: Maria amamentando Jesus. veira, e uma estátua de Nossa Senhora, Agonia, que é também a Igreja das Na- Uma imagem tão humana da Mãe e do da mesma madeira. Então, fatigados, ções, erguida sobre a suposta pedra onde Filho, que nos fez lembrar daquela que retornamos ao hotel Holiday in Crowne Jesus chorou na noite de Quinta Feira nos amamentou, e do melhor alimento Plaza. Cinco estrelas. Um luxo! Santa. Na chegada, impressionaram-nos par a criança, o leite materno. Também Belém é uma pequena cidade da Pa- as oliveiras de mais de dois mil anos, as mulheres que hoje morrem de câncer lestina, perto de Jerusalém, terra natal de local verdadeiro em que Jesus pisou. No no seio, - e são tantas! – vieram à nossa Jesus Cristo. A ela afluem, em constante interior, contemplamos o lindo quadro mente, naquela hora de tão sublime romaria, peregrinos de todas as partes do Senhor Jesus, e a pedra, sobre a qual contemplação. do mundo. A mais antiga igreja cristã orou ao Pai. Na saída da Basílica da Natividade se encontra ali. Também lá o Santo colheu alguns encontra-se a “porta da humildade”, uma Já era 19 de abril. Iniciamos o dia vi- ramos de oliveira e encheu um pote pequena entrada para a igreja. Essa porta sitando a Igreja Pater Noster, no Monte com terra, destinados a integrar o futuro foi reduzida, através da vedação parcial das Oliveiras. Presume-se que foi nesse museu. do arco cruzado, em algum momento lugar que Jesus ensinou a rezar esta ora- Prosseguindo, dirigimo-nos para a do século XVII, para assegurar que os ção. Nós também a rezamos e cantamos. igreja do túmulo de Maria, que hoje muçulmanos não entrassem no templo O Pai Nosso está escrito em diversos pertence à Igreja Ortodoxa Grega. Os montando seus cavalos. O visitante deve idiomas -inclusive em português -, numa ortodoxos estavam celebrando a Sema- curvar-se completamente para entrar no parede do templo. na Santa, de acordo com o rito deles, e templo. O Santo, com seu olhar de águia, Começamos então a descer o monte. E havia muita reza, cantos e incenso. A vislumbrou uma pequena pedra, uma presenciamos uma das vistas mais lindas gruta possui uma enorme escadaria que

Água da Fonte Novembro de 2012 101 se bifurca em forma de T, e está repleta misticismo dos judeus, que consiste em vamente o tal frei, para solicitar algum de turíbulos. bater a cabeça no muro, inclinar-se, objeto. Dito e feito. Havia junto do altar Novamente, a serviço da história, o cantar e orar, segundo seus costumes. diversos crucifixos, esculpidos com a Santo descobriu alguém para dialogar Também nós nos aproximamos do muro imagem de Cristo. Logramos êxito e e fazer-se entender. Quanto esforço e para um momento de oração. Segundo a conseguimos um deles. malabarismo no linguajar! Mas quem tradição judaica, os homens se postam Nessa missa foram abençoados tam- deseja intensamente, sempre alcança. de um lado, e as mulheres, do outro. bém os ramos de oliveira que colhemos Entre as centenas de capelas, apareceu Prosseguindo em nossa peregrinação, no jardim. No final, foram eles distri- um capelão que, finalmente, despachou percorremos várias ruelas, encurralados buídos entre nós. Imaginem quem mais o Santo: Tome e leve um suvenir! – Gra- pelos vendedores de suvenires e outros colheu! Alguns dos romeiros davam a cie, signore! – respondeu o agraciado. objetos. impressão que iriam promover um re- Saímos do Horto das Oliveiras para O Caminho da Via-Sacra (em que a florestamento em terras de Passo Fundo o Monte Sion, onde conhecemos outros cruz do Santo serviu para o ato litúr- e Farroupilha. locais históricos: o túmulo do Rei Davi, gico), é um local verídico e carregado Retornamos ao hotel mais cedo, já que muito cultuado e venerado pelos judeus; de simbolismo. De lá seguimos até a à noite teríamos um programa especial: e a sala superior, isto é, o Cenáculo, onde antiga Fortaleza Antonia, onde ocorreu uma hora de adoração e vigília na Igreja a emoção tomou conta de todos. Tem o julgamento e a condenação de Cristo, das Nações, exatamente no lugar onde aspecto rústico, mas muito natural. Na Cada parede, cada sala, e o próprio chão, Jesus suou sangue, às vésperas de sua ocasião, lemos Jo 13, 1-11, que descreve contam sua história. Permanecemos prisão. Junto com um grupo de padres a cena do Lava-Pés. Meditamos sobre o mais tempo no local da Condenação, espanhóis, encenamos o ato, entoando: gesto de Cristo. E o Padre Girelli, com onde Ele tomou a cruz às costas, para “Se as águas do mar da vida quiserem te um óleo perfumado, ungiu os pés dos seguir até o Calvário. Hoje existem duas afogar, segura na mão de Deus, e vai...” peregrinos. igrejas no local. E, para nos despedirmos de Cristo, a Continuamos lendo Jo 13,12-20, en- Em seguida, nos encaminhamos para canção: “Lenta e calma sobre a terra, quanto refletíamos sobre o mandamento a Igreja de Santa Ana, esposa de São desde a noite e foge a luz. Quero agora do amor. Ungimos então as palmas das Joaquim e mãe de Maria, portanto, avós despedir-me: Boa Noite, meu Jesus!” mãos, recordando que elas servem para de Cristo. Ao lado da igreja, localiza-se A noite estava muito fria. E esse foi, abençoar, unir, construir e praticar a a piscina de Betesda, onde, conforme Jo sem dúvida, o momento de mais baixa solidariedade. 5, 1-18, ocorreu a cura de um paralítico, temperatura que ocorreu durante a Em seguida, fizemos a leitura de Mt por milagre de Jesus. viagem. 26, 26-29, sobre a instituição da Euca- As escavações da piscina são extra- No final da semana, ou seja, no ristia e do sacerdócio. O guia espiritual ordinárias. No pátio do templo, conhe- sábado, dia 20 de abril, iniciou-se a lembrou seus 15 anos de consagração a cemos a pimenta branca, da qual alguns visitação às mesquitas dos muçulmanos, Deus, desde que fora ungido pelo Bispo, peregrinos colheram amostras. localizadas no pátio do antigo templo para o serviço do Senhor. O tempo corria veloz e, às 16 horas, de Jerusalém. São obras lindíssimas! A Por fim, a leitura dos Atos dos Após- descemos à Gruta de Getsêmani, para de Homar está construída sobre a pedra tolos (1, 12-14; e 2, 1 ss), que relatam a celebração de uma missa. A gruta é onde Abraão esteve prestes a sacrificar o Pentecostes, invocando o Espírito sui-generis, e situa-se junto à igreja do seu filho Isaac (Gen. 22, 1-19). Santo, para nós e para a Igreja. Can- túmulo de Maria. Seu formato lembra Para ingressar em tais mesquitas, tamos “Vem, vem, vem, vem, Espírito um turíbulo. deve-se tirar o calçado, em sinal de res- Santo de amor!” E relembrando nossa Num clima de recolhimento, silêncio peito e para a conservação das peças ali Crisma, ungimos nossas frontes com e meditação, celebramos a Eucaristia. existentes. Em seguida, encaminhamo- óleo perfumado. A emoção dominou a Mas antes tivemos de convencer o frei nos para a celebração da missa do dia, todos, novamente. responsável pelo local, de que o nosso na Igreja da Condenação de Jesus à No final da manhã, visitamos a Igreja guia espiritual era realmente um “pa- morte. Foi um ritual de celebração do da Dormição de Maria. Cantamos e dre”. Ele desconfiou que não fosse, e louvor. Cada um de nós expressou seus recomendamos a Deus os falecidos, por os romeiros tiveram de intervir. Por fim motivos de dar graças, por meio da meio da Virgem. E, cansados, retorna- tudo se resolveu. E o Santo, com aquela canção: “Entoai ação de graças, e cantai mos a Belém para o almoço. cara de piedoso, mostrava-se muito um canto novo, aclamai ao Deus Javé, Assim, com o corpo alimentado e a concentrado. aclamai com amor e fé!”. mente liberta, retornamos a Jerusalém. Por fim, celebramos e refletimos so- O intento do Santo foi outra vez en- Na viagem, ao lado da piscina de Siloé, bre a Paixão de Jesus Cristo. A leitura contrar alguém responsável pela igreja, (conforme Jo, 9, 1 ss. ), soubemos relatava a história do servo sofredor, tão histórica quando as demais. O ca- que foi lá que Jesus curou o cego de encontrada em Is 53, 2-4 e 6; e a homilia pelão, teimoso como só ele, não dava nascença. lembrava o sofrimento de Jesus no Horto oportunidade. Mas, quem insiste, leva! Nessa tarde, entramos na velha cidade das Oliveiras (Mt. 26, 36-46). – diz o ditado. Até que enfim cedeu uma de Jerusalém, transpondo os seus muros. No final do ato religioso, fizemos uma estola da cor do vinho. “Manco male!” Lá dentro, tudo impressionava: as enor- reflexão sobre os versículos 47 a 56, É um grande privilégio visitar os lu- mes escavações, os muros destruídos e do mesmo evangelista, descrevendo a gares em que Jesus Cristo viveu! E, nos reconstruídos, e também o Muro das história de Judas e o beijo da traição. momentos de meditação individual, a Lamentações. Detivemo-nos bastante Mas a visitação não poderia passar emoção toma conta da gente. Foi o que tempo nesse lugar, acompanhando o em brancas nuvens, e procuramos no- aconteceu, ao ouvirmos a Elba cantar:

102 Água da Fonte Novembro de 2012 “Amor, amor, amor... Ser cristão é ser teceu algo inusitado. Após a visitação, fosse destronado por Marco Antônio. amor. Ama teu próximo como a ti mes- rumamos para um local afastado, onde Quando os romanos, no ano 70 a.C., mo. Deus é amor!” restava um pequeno altar, construído subjugaram toda a terra de Israel e dei- Prosseguindo, fizemos a caminhada sobre as ruínas da casa de João Batista. xaram Jerusalém em cinzas, um grupo da via-crucis, turisticamente falando. E Era um dia frio e chuvoso. E assim que de judeus patriotas, em número de 967 chegamos ao Monte Calvário, ao túmulo iniciamos o cerimonial, com a atenção sobreviventes, liderados por Eleazar de Jesus, onde se deu o encontro mais redobrada, o Santo divisou um crucifixo Bem Yair, dirigiu-se à Massada, local dramático de Deus com a humanidade, de metal, que parecia abandonado no onde foram sitiados pelos romanos, na pessoa do Nazareno. interior daquele recinto. Recolheu então durante três anos. Todavia, ao reconhe- No domingo, dia 22, iniciamos mais o objeto que guardou como uma relíquia cerem que não seria mais possível ali uma jornada de pesquisas: o roteiro pela e também como lembrança dos lugares permanecer, pois estavam prestes a ser Igreja da Visitação de Maria a Isabel, em santos... Amém! derrotados pelos invasores e capturados Ain Karen. Um local sereno, com boas A seguir, rumamos em direção ao Mar como escravos, aconteceu o heroico e vertentes e muita vegetação. Subimos Morto, passando por Qumran e Judeia, dramático fim dos judeus sobreviventes, uma centena de degraus, até chegar à até alcançar a fortaleza de Massada que preferiram suicidar-se a se render Igreja de João Bastista. Chovia. E no ao inimigo. Optaram pela morte, para interior do tempo, meditamos e parti- Massada. fugir da escravidão. Desde então, Mas- cipamos da missa. Foi neste lugar que sada passou a ser um santuário para o nasceu João Batista, o filho de Isabel. Encrustada na rocha, e com sua povo judeu por ter sido o cenário de Recordamos o martírio dele, com a fantástica beleza natural, essa forta- um dos episódios mais sangrentos de oração do Benedictus, outrora proferida leza ergue-se no deserto da Judeia, a sua história. por seu pai, Zacarias. O texto estava aproximadamente 3 km da margem Atualmente, o povo está reconstruin- escrito em português, num dos muros ocidental do Mar Morto. Tem mais ou do os palácios de outrora, com a ajuda do templo. menos um quilômetro de comprimento, voluntária de seus patrícios do mundo No exterior da igreja há uma capela, por 200 metros de largura. Sua elevação todo. Mulheres e homens prestam ser- que é um local de oferendas. Foi nessa corresponde a 700 metros acima do viço à reconstrução, cada um de acordo oportunidade que o Santo vislumbrou nível do mar. com suas possibilidades. um quadro jogado no chão, represen- Foi Herodes, o Grande, que construiu Nos tempos de Herodes, a fortaleza tando a ascensão de Jesus aos céus. a enorme e magnífica fortaleza, no ano possuía todas as condições de sobrevi- É óbvio que ele recolheu de imediato 40 antes de Cristo, a fim de proteger-se vência: despensas, cisternas, casas de aquela peça histórica, a fim de trazê-la dos judeus, caso tentassem destituí-lo banho, palácios, sinagogas e rituais de com lembrança. do governo. O suntuoso palácio serviria ablução. Foi ainda nesses arredores que acon- como sua residência se, porventura, Nós percorremos o platô da montanha

Água da Fonte Novembro de 2012 103 e observamos parte da igreja bizantina, de arriscar um banho em suas águas fa- costas, mas debaixo do braço. E assim em mosaico herodiano, e o terraço in- mosas. Corajosamente, e devagar, fomos concluímos a Via Sacra, parando e ob- ferior do palácio suspenso, ou seja, as entrando, até atingir a profundidade de servando, em cada estação, o caminho poucas edificações que restaram após o 1,30 metros, para então começar a nadar. do sofrimento de Cristo. jugo romano. E tivemos uma enorme surpresa, diante Findo o passeio, retornamos ao hotel, Para alcançar o cume, os invasores da quantidade de sais e outros minerais aprontamos as malas e, às 10 h e 30 min, fizeram aquilo que o diabo não sabia que havia em suspensão, fazendo o seguimos para Tel Aviv, a fim de visitar fazer: ergueram uma taipa de terra e corpo flutuar. Era mais ou menos como a cidade velha de Jafa (ou Jope). pedras até alcançar o topo, o patamar de tentar afundar um porongo. A gente des- Nossa primeira parada foi na casa do Massada. Foi então que encontraram os liza e, por meio de certos movimentos, curtidor Simão, onde Pero se hospedou. 967 corpos com as cabeças decepadas. desloca-se sobre a água com tranquilida- Nessa cidade o apostole ressuscitou Uma cena de horror! de. É uma das riquezas de Israel. Tabita, e dali foi convidado a ir à Ce- Como amigo e ferrenho defensor da E assim, com o corpo arejado e sareia marítima, na casa do centurião natureza, o Santo colheu uma folha temperado pelo sal, enfrentamos a romano, Cornélio. Na Catedral de São de cáctus ou palma, que trouxe para segunda-feira, 22 de abril. Ao cantar Pedro, realizamos algumas incursões Passo Fundo e plantou no Parque da do galo, saltamos da cama para a missa pelas escavações da antiga edificação. Roselândia. da Ressurreição, numa das capela do E, ao final da tarde, rumamos para Lis- Findo o passeio, já com fome e sede, Calvário. E iniciamos a caminhada, boa, iniciando o caminho de retorno ao tomamos o rumo do Mar Morto, a fim como fez Cristo com a cruz às costas, nosso país. de encontrar um local de almoço. ao mesmo tempo em que cantávamos (Santo Claudino Verzeleti é membro da Academia Após breve intervalo, nos dirigimos hinos de louvor. O Santo carregava uma Passo-Fundense de Letras e da Academia de Ciências todos às margens do referido mar, a fim cruz de puro cerne de oliveira, não às Contábeis do RS.)

Poesia francisco mello garcia

Versejo do riso ao choro Cantando sei que morro Do que é certo não me esquivo, E verdades que eu digo Muitos vão pôr no arquivo, sem cantar morro também Pois meus temas já preenchem Revistas jornais e livros. Se cantar males espanta, Nisso encontro o incentivo, Tem quem anda bem quietinho Só pensando em ser nocivo, Outros enrolando ingênuo E se julgando muito “ativo”... Quero é viver para a vida, Não ser um defunto vivo...

Cantando eu levo alegria, Mais pra alguém que não tem. Cantar eu até sugiro, Cante mal ou cante bem. Cantar da forma que eu vejo É luz que vem do além... Esse prazer, esse dom, É pouca gente que tem, Pois não canto só pra mim E sempre pra mais alguém. Depois dessa caminhada, Aqui não fica ninguém... Cantando eu levo a vida É assim que me convém. Se cantando sei que morro Sem cantar morro também...

(Francisco Mello Garcia – Xiko Garcia é membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

104 Água da Fonte Novembro de 2012 Uma pergunta inconveniente

GILBERTO R. CUNHA essa primeira pessoa. Por que ela haveria de Darwin e não o “criacionismo” ou, de ter existido? O Adão bíblico, ou outro como querem alguns, em tempos mais ser imaginário qualquer, pela teoria da recentes, o “desígnio inteligente”, que ão sei quanto a você, mas eu evolução, não é necessário para explicar as escolas ensinam em biologia. enfrentaria sérias dificuldades, nem eu nem você, caro leitor, e tampou- As imagens fotográficas se parecem. N caso tivesse de responder, co nossos antepassados ou descendentes Não tenha dúvida de que você e seu pai assim de chofre, a seguinte pergunta: imediatos. Como entender isso, uma vez têm traços comuns, apenas quando pró- quem foi a primeira pessoa no mundo? que cada criatura citada, incluindo nós, ximos nessa pilha ou linha imaginária Não vale apelar para o misticismo e, tal os humanos, pertence à mesma espécie do tempo. Tome, ao acaso, duas dessas qual um aborígine da Tasmânia, dizer dos seus pais, esses dos seus avôs e que se sucedem, em qualquer posição que foi uma criatura enorme, surgida na assim sucessivamente? Simplesmente, dessa pilha imaginária de 185 milhões Terra por obra e graça do Deus Moinee, porque na linha evolutiva isso pode de fotografias, para que perceba isso cla- sem joelhos e com rabo de canguru. estender-se por muitas gerações, mas ramente. Depois, pegue duas fotografias Ou, tampouco, reagir como um funda- não é para sempre. Então, que tal par- não sucessivas, e bastante separadas na mentalista da tradição judaico-cristã, ticiparmos do experimento imaginário linha evolutiva, e ficará evidente que, questionando: por que a dúvida? Todos proposto por Richard Dawkins? em aparência, as duas criaturas não têm sabem que a primeira pessoa na face da Tome uma fotografia sua e sobre ela nada (ou têm pouco) em comum. Terra foi Adão. Lamento pela desilusão, coloque uma do seu pai. Siga adiante e, Quem sabe nem seja necessário retro- mas esse tipo de argumentação não nos sobre a fotografia do seu pai, coloque a cedermos tanto assim (até a ordem de serve. É necessário um pouco mais de fotografia do seu avô, e assim sucessi- 185 milhões de antepassados) para en- elaboração, para se chegar a uma respos- vamente, do bisavô, tataravô, etc., até tendermos que, essa busca pela primeira ta que seja minimamente convincente. chegar a uma pilha de 185 milhões de pessoa, o nosso ancestral genitor, não E, nesse caso, o único caminho plausível fotografias (cuja ordem de avô é impro- tem fundamento. O Homo sapiens de é tomar a via da ciência, onde, na busca nunciável). Sei que alguém vai dizer que hoje, caso conseguisse, pela via sexual, por nosso ancestral, muitas surpresas não vai dar, pois não faz tanto tempo reproduzir algum cruzamento com o nos aguardam. Foi o que fez Richard Da- assim que a fotografia foi inventada, e Homo erectus do passado, esse fruto, a wkins, no livro “The Magic of Reality então isso é impossível. Esqueça esse exemplo de uma mula (jumento x égua), – How We Know What’s Really True”, detalhe, pois estamos no reino do faz- possivelmente, seria um híbrido estéril. publicado em 2011 pela Free Press, uma de-conta. E aí, quão parecido com você No processo evolutivo, pela teoria divisão da Simon & Schuster Inc., cuja seria esse seu avô, de ordem 185 mi- mais aceita, as coisas acontecem gra- proposta de resposta ao questionamento lhões, nessa pilha de fotografias? Você dualmente, embora alguns defendam original desse parágrafo será resumida é capaz de imaginar algum traço em a teoria do equilíbrio interrompido. É nessa coluna. comum com ele? Os cabelos crespos? por isso que a pergunta “quem foi a A primeira surpresa, e a sua talvez Os olhos violetas da Elizabeth Taylor, primeira pessoa?” não tem uma resposta seja tão grande quão a minha, foi tomar ou a cor de ardósia do Chico Buarque? precisa. No meio dessa nossa caminhada consciência de que a busca pela primeira O queixo quadrado ou o nariz adunco? evolutiva, queiramos ou não, tivemos pessoa, no mundo, é algo inútil. Assim Sente-se antes, para não cair: esse uns primos chimpanzés, outros ratos e, como nunca existiu um primeiro cachor- seu avô, de ordem 185 milhões, seria inclusive, uma avó bactéria. ro, um primeiro coelho ou um primeiro exatamente, nada mais e nada menos canguru (nossa homenagem ao pessoal que “um peixe”. Surpreso? Espero que (Gilberto R. Cunha é membro da Academia Passo- da Tasmânia), também nunca existiu nem tanto, pois é a teoria da evolução Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 105 Onde estavam os felizes?

GETULIO VARGAS ZAUZA com a possibilidade de melhorar seu proceder em cada vida, me parece A quem vai ler este artigo, quero coerente. Ora, se nós, humanos, fazer uma pergunta: Tu, leitor, acre- que somos, portadores de tantas ditas em predestinação? Se crês, imperfeições, somos capazes de dar deves também admitir a existência novas oportunidades de reabilitação do destino. Isso leva a outra ques- mesmo àqueles que cometeram tão. Quem determinaria o destino crimes horríveis, como um Ser que da pessoa? Examinando a questão, é perfeito não dá oportunidades de do ponto de vista do materialismo, reparação? Afinal, a maior parte da seria a genética, os genes, ou o meio humanidade professa outras crenças onde e como foi criado e educado, e não tem a possibilidade do perdão, uma vez que a escola exerce grande pela absolvição dos pecados (ou influência. Do ponto de vista do es- crimes), por não ter alguém com piritualismo, religioso ou esotérico, o poder de o absolver. E os que poderíamos considerar duas hipó- morrem durante uma batalha, numa teses. Uma seria a de que, vivendo guerra que não queriam estar? E os uma só vida, Deus é que determina que morrem num acidente? nosso destino. Do ponto de vista Eu não pretendo convencer nin- esotérico (reencarnacionista), nós guém de que a concepção reenca- mesmos é que o determinamos, racionista seja verdadeira, nem de segundo nosso carma, que é a con- que a de uma única vida não seja sequência de como foram nossas verdadeira, até mesmo porque não vidas passadas. há possibilidade de prova para ne- Na primeira concepção, Deus é nhuma delas, nem para a concepção o determinador, e nos coloca numa materialista de que com a morte situação contraditória. Se vivemos tudo se desfaz no nada, nem para uma única vida, por que uns vivem qualquer concepção da existência essa vida cheia de privilégios, tudo de uma vida após a morte. lhes é favorecido, e outros vivem A reflexão acima se destina a sob o peso de infindáveis privações, servir como introdução, ao relato a tanto materiais como afetivas? Ain- seguir. Trata-se de uma experiência da outra questão é: por que uns con- pessoal de vida. seguem ser bons, praticar bons atos, Esta história começou cedo. Foi e outros praticam tantos atos maus? lá pelos sete anos de idade, que Os privilegiados com um destino comecei a prestar atenção aos sen- bom iriam para o paraíso quando timentos e à conduta das pessoas morrem, e os outros, os pecadores, adultas. Talvez tenha sido porque eu iriam para o inferno. Por que uns preferia conviver com elas. Eu não podem ser bons e outros tem que ser gostava de conviver com crianças, maus? Isso nos levaria a questionar: pois as considerava imaturas. se Deus é Amor, é justo, determinar Meu senso de observação foi se os destinos dessa forma? A esse incrementando, como é natural, à questionamento poderia ser dito medida que ia aumentando a idade. que, mesmo tendo praticado tanto Eu nasci e vivi na colônia até os mal durante a vida, Deus o perdoa- doze anos, quando decidi ir para a ria se se arrependesse, mesmo que cidade fazer o curso primário. Daí fosse na hora da morte. Assim, tanto até os quinze anos, passava somente faria ter sido bom, ter praticado as férias na casa dos pais. bons atos, ou mau e ter causado O que eu percebi é que os adultos tanto mal aos outros. Parece-me que viviam sempre atormentados, pre- isso seria uma incoerência. ocupados com tudo, especialmente Agora, a hipótese de muitas vidas, com relação à produção. Qualquer

106 Água da Fonte Novembro de 2012 possibilidade de haver alguma per- escutava. Eram lamentações por Natural, ingressei no curso de da, ou de não conseguir a produção saudade de casa, preocupações de Psicologia. desejada, era motivo de apreensão e onde iriam servir, e tantas outras Esse foi o tempo em que os sofrimento, isso para não considerar que nem me lembro. Em suma, colegas quase não apresentavam outros fatores. ali também ninguém falou de que conflitos e preocupações. Um comportamento diferente eu se sentia feliz ou de ter se sentido E, terminado o curso de Psico- percebia na minha família. Mesmo alguma vez. logia, deixei a Força Aérea, para em situações adversas, havia uma Em 1950, havendo concluído o ingressar no serviço público esta- conduta tranquila. Nunca os vi se curso, fui classificado para trabalhar dual, indo trabalhar como psicólogo lamentarem ou se tornarem apreen- no Rio de Janeiro, no Laboratório numa escola agrícola, que recebia sivos, mesmo quando houve perda de Pesquisa e Padronização de equi- alunos em regime de internato. Aí a significativa de gado, ou quando os pamentos eletrônicos, para Força gama de problemas era enorme. Na gafanhotos dizimaram a plantação. Aérea Brasileira. mesma época, fui trabalhar como Talvez venha daí a minha conduta Ali também fiz muitas amizades e voluntário no Instituto Santa Luzia, tranquila, em situações de perdas, aconteceu o mesmo que nos demais colégio para deficientes visuais, em ou com relação ao futuro. lugares. Nas conversas comigo, regime de internato. É inimaginável Aos dezesseis anos, meu pai me sempre predominavam os assuntos a gama de problemas existentes na emancipou, e fui para o Rio de relacionados a dificuldades, proble- instituição. Foram nove anos de Janeiro com meu irmão Tito, que mas de toda ordem, para os quais vida e trabalho naquela instituição. era tenente do Exército e havia eu nada podia fazer a não ser ouvir A partir de 1964, instalei meu retornado da Itália, onde participou como bom ouvinte, coisa que já na- consultório na especialidade de da Segunda Guerra Mundial. Morei quela época não era muito comum. psicoterapia. com ele durante quatro meses, até Em 1956, fui transferido para Não é necessário dizer as razões ingressar na Força Aérea Brasileira, Porto Alegre. No ano seguinte, pelas quais alguém procura um como soldado. ingressei no curso de História Na- psicoterapeuta, por sentir-se feliz é Naquela época (1946) era regra tural, na PUC/RS. Como em meu que não pode ser. permanecer quatro meses recluso no trabalho eu era o único que estudava Foram quarenta e quatro anos de quartel, sem nenhuma comunicação em curso superior, os colegas fre- exercício como psicólogo clínico: com o exterior. Assim sendo, era na- quentemente me procuravam para dez em Porto Alegre, e trinta e qua- tural que as relações entre os jovens falar de seus problemas. Na vida tro em Passo Fundo. No total tratei se tornassem íntimas, se formassem militar, se está sempre sujeito a mais de 1000 pacientes. muitas amizades e se conversasse uma rígida disciplina e a constantes Em Passo Fundo, dei assistência muito. Nessas conversas aconte- transferências. No caso da nossa psicológica, durante nove anos, a ciam muitas confidências. especialidade, não permanecíamos crianças e seus pais. Atendi cente- Eu sempre fui um bom ouvinte. na mesma região, por mais de cinco nas de crianças com dificuldade de Talvez por isso fosse procurado anos. Imagine o leitor uma pessoa aprendizagem, e orientei os pais. para ouvir as queixas e lamentações casada, com filhos, tendo que, a Como o leitor pode perceber, dos colegas. Eles o faziam para cada cinco anos, mudar-se de Porto no curso de minha vida, mantive desabafar seus sofrimentos e suas alegre, por exemplo, para Belém do contato, predominantemente, com preocupações. Durante esse período Pará. Por esses e outros motivos, pessoas que não tinham motivo para de convivência, nunca alguém rela- vive-se sempre sob certa tensão. dizerem que eram ou foram felizes tou vivências de ter se sentido feliz. Como se vê, não faltavam mo- alguma vez. Daí dá para entender No ano de 1948, aprovado na tivos de preocupação. Talvez por por que eu pergunto: “Onde esta- seleção para ingresso na Escola ser estudante de curso superior, eu vam os felizes?” Técnica de Aviação como aluno, era sempre procurado para ouvir Agora, se o leitor me indagar se onde permaneci durante dois anos lamentações. eu sou ou fui feliz, responderei que em regime de internato, vivi uma Na Universidade, também fui o desejo de ser feliz nunca foi es- situação semelhante. Nós éramos muito procurado pelos colegas. E crito em minha agenda de vida. Por oriundos, quase todos, de outros os problemas eram vários. Desde a outro lado, pergunto se é possível estados, e bem poucos de São Paulo. preocupação com notas e a possi- alguém ser feliz, vendo tanta dor e Na referida escola, as condi- bilidade de reprovação. Enfim, em tanto sofrimento... ções de internato propiciavam a vez de manifestarem satisfação, formação de muitas amizades. por estarem realizando o curso que E aí também muitos colegas se desejavam, viviam tensos, sofrendo, (Getulio Vargas Zauza, psicólogo clínico, escritor e aproximavam de mim para contar a meu ver sem necessidade. membro da Academia Passo-Fundense de Letras. suas penas. E eu, como sempre, os Ao concluir o curso de História Email para contato:[email protected].)

Água da Fonte Novembro de 2012 107 Meu pai

SUELI GEHLEN FROSI que ele enrolava exaustivamente, mas da manhã, quando a gente podia abusar sem apertar. No dia seguinte, milagre! da manteiga, dos nacos de salame, O dedo estava limpinho e quase bom. coisa que minha mãe cuidava de não le era homem das antigas, não Ele era homem das antigas, com haver abusos. Ele era assim, generoso. de atitudes antigas, mas de lides atitudes sempre de vanguarda. Viajava E alegre... E antigas. Era um alfaiate de mão para Porto Alegre e trazia novidades, a O Ford 29 dele era usado para passear, cheia, daqueles perfeitos, daqueles que exemplo de uma enorme quantidade de não só para o trabalho. Na estrada, ficá- desmanchavam cada pontinho fora do mamão, que imediatamente odiei, mais vamos sem luz, e imediatamente, aquele lugar. As fatiotas, no começo das lides, pelo aspecto do que pelo gosto e que pai começava a conversar animado e a eram passadas a ferro de brasa. E era um ele explicava, seria coisa muito chique assoviar, não me lembro que tipo de tal de: suspende casaco, coloca traves- consumir, já que o encontrara no café da música, mas era música de tranquilizar, seirinho de retalhos por baixo, assopra manhã do hotel. Foi de lá que ele trouxe disso eu tenho certeza. as brasas do ferro, coloca paninho úmido o primeiro exemplar de “O Cruzeiro”, Ele tinha grandes preocupações quan- por cima e lá se iam todas as ruguinhas uma revista mensal que era a coqueluche to à formação dos filhos, por isso, nunca do linho, do gabardine, da lã, e, muito da época, nas grandes capitais. Pois o abriu mão de um bom colégio de freiras tempo depois, do tergal. Aliás, não tenho Seu Elmo fez a assinatura da revista, para todos. Sempre fiscalizou as revistas certeza de tê-lo visto usar tergal. para acompanhar o que acontecia na “Grande Hotel” que líamos escondido, Ele ia a festas, mas sempre atrasado, Argentina, com Perón, e no Brasil, e tinha preocupação com respeito às por causa das fatiotas que devia entre- com Getúlio. A maior novidade e a novelas de rádio, que ouvíamos junto gar; frequentava o clube, mas só à tarde, mais apreciada por mim era o chocolate com a Dona Lina, minha mãe. quando o cansaço batia e aí era a hora da granulado, coisa muito linda e cheirosa Mas o meu pai nunca se esquivou cervejinha, do bate-papo, do pontinho. que figurava nos ninhos de Páscoa, junto de uma conversa, sempre respondeu A alfaiataria, grudada à casa, permitia com um enorme coração de açúcar todo a minhas perguntas, mesmo as cons- que meu pai sempre estivesse à mão, e enfeitado de florzinhas. trangedoras e, na véspera do meu como eu o procurava! Ele era mestre em O Seu Elmo, meu pai, era homem de casamento, chamou-me à parte e disse dedos cortados, nos quais colocava uma pegar bebê no colo, de ajudar a trocar, coisas que nunca contei a ninguém, para generosa camada de pomada penicilina, de atender de madrugada, sim, senhor! não estragar a magia. As palavras dele um bom pedaço de pano branco que vi- Era homem também de ficar apreensivo embalam o meu casamento e servem até nha de uma gaveta da cozinha - o que com os enjoos intermináveis das tantas hoje, quando quero ter uma conversa de garantia a limpeza necessária, para gestações da minha mãe. Não se furtava vanguarda com os meus filhos. depois amarrar tudo com linha, de ir pra cozinha preparar comida, café Meu pai era de épocas antigas, mas ele seria um grande pai de hoje, por que ele era movido pela alegria e pelo amor imenso que nutria pela família. Esse amor ele externou sem preguiça, com barulho, com risos e cuidados. Feliz Dia dos Pais, Seu Elmo! Gostaria que ainda estivesses aqui para me ensinar algumas coisas que não tivemos tempo de conversar...

(Sueli Gehlen Frosi é membro da Academia Passo- Fundense de Letras.)

108 Água da Fonte Novembro de 2012 Poesia francisco mello garcia Deixar que a vida prossiga

Todo verso que eu faço Mas é nessa hipocrisia Desisti dessa fulana Tem estrutura na rima, Que a sociedade se engana. E pelo mundo fui andando, E um tema como base Quanto maior o macaco, Logo comprei um carrão Que transmite certo clima. Pra este a maior banana. E o meu quadro foi mudando. Irrita quem não me gosta, Por isto, para quem sobe Um dia nos reencontramos, Alegra quem me estima, A vida sempre é bacana, A gente foi conversando, Tem quem hoje se afasta Buscam pra festa do início, Em pouco tempo, em tudo E amanhã se aproxima, Também pro fim de semana. Eu assumi o comando. Mas para que isto aconteça Para quem está descendo Descobri que a bicicleta Eu tenho que estar por cima, Cada dia é mais tirana, Que estava me atrapalhando, Descobri quando guri Se alguém vier buscar a gente, De bodoque ninguém caça Nas amizades com prima... Só se é pra meter em cana... Onça que anda atacando...

Isto parece brinquedo, Até mesmo namoradas Com a mesma persistência, Mas é fato tão frequente, Fico às vezes recordando, Mantenho verso e cantiga. Envolve todas as idades Pois mesmo de bicicleta Meus temas saem da mente, Vai do velho ao inocente: Uma eu estava amando. Tem quem tira de barriga. Quando se anda numa ruim Se eu pleiteava certas coisas, Mesmo assim fazem sucesso, Nem sequer se tem parente. Deixava-me pedalando... Isto é o que me intriga. Noite fria é noite fria, Com o farto argumento Continuo trabalhando Duro é surgir quem esquente. Que só depois de casando, Como pequena formiga, Mas se a vida anda folgada, Cansei de arrumar a mesa Pois tem cigarra que canta Pobre do saco da gente, E com a fome sair lutando. E no inverno não mastiga. Se morre um bajulador E sexo, conforme o uso, Acredito no que faço: Surge mais trinta na frente... Serve pra ir enrolando... Vai que um dia a sorte liga, E se o sucesso chegar, Não faltará gente amiga... Caso contrário é consolo Deixar que a vida prossiga.

(Francisco Mello Garcia – Xiko Garcia é membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 109 Alcides Guareschi, um amigo da Agronomia

(foto: daltro mattos) ELMAR LUIZ FLOSS

padre e professor Elydo Al- cides Guareschi, educador e O administrador, teve uma parti- cipação decisiva na criação de cursos su- periores em Passo Fundo, desde o antigo Consórcio Universitário Católico, em 1968, até a implantação e consolidação da Universidade de Passo Fundo. Além de emérito educador, Alcides Guareschi, exerceu os mais altos cargos da administração da UPF, como Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (hoje Faculdade de Educação), do meio rural, pois nasceu e se criou no especialmente, facilitando a coopera- Vice-reitor Acadêmico (1968 a 1982), interior de Esperança, hoje município ção da UPF com a Embrapa/Trigo, na Reitor por 16 anos (1982 a 1998) e Presi- de Colorado, e sempre teve um grande implantação do Programa de Pesquisa dente do Conselho Diretor da Fundação interesse pela agricultura. Isso ficou ma- em Aveia, em 1977, cujos resultados, ao Universidade de Passo Fundo. terializado em inúmeras ações em que longo dos anos, destacaram a Instituição Dentre as muitas condecorações re- teve participação importante, na implan- como fator de desenvolvimento regio- cebidas, conta-se também a da Câmara tação de projetos de ensino, pesquisa e nal, além do reconhecimento nacional e Municipal de Vereadores de Passo Fun- extensão, na Faculdade de Agronomia e internacional. Foi através do programa do, que lhe conferiu o título de “Profes- Medicina Veterinária da UPF. de Pesquisa de Aveia, que pela primeira sor Emérito”. Merecidamente, recebeu Muitas dessas ações poderiam ser vez, a UPF teve uma cooperação efetiva da Universidade de Passo Fundo, o lembradas, para exemplificar a im- com universidades americanas, de Wis- titulo máximo conferido pelo Conselho portância de seu trabalho em prol do consin e Texas A & M University. Universitário: “Doutor Honoris Causa”. crescimento e melhoria da qualidade A sua colaboração foi também de- Tendo como característica pessoal de ensino, na extensão rural, no curso cisiva na busca de aprovação dos uma enorme capacidade de trabalho e de Agronomia e, posteriormente, na primeiros projetos de pesquisa, pela de diálogo, aliada a um notável espí- Medicina Veterinária. Acompanhou Agronomia, de forma pioneira na UPF, rito empreendedor, deixou uma marca “pari passu” todas as dificuldades de junto a Fapergs (1979), CNPq ( 1980) indelével em todas as Unidades de criação do Curso de Agronomia, em e FINEP (1982), cujos recursos finan- Ensino e Setores da UPF. Seu trabalho Passo Fundo. ceiros permitiram a implantação de uma é reconhecido, não apenas internamen- Foi também decisiva a sua partici- infra-estrutura mínima para a execução te, mas entre as Instituições de Ensino pação na busca de convênios, para a de atividades de pesquisa, bem como Superior do Brasil, por sua destacada implantação dos primeiros laboratórios a obtenção de bolsas para estudantes. participação no Conselho de Reitores de ensino e prestação de serviços, como Foi iniciativa do Reitor Guareschi das Universidades Brasileiras (CRU- o Laboratório de Solos e Adubos e o a realização de uma primeira reunião, BE). Seu prestígio, junto ao Ministério Laboratório de Análise de Sementes. entre as Direções das Faculdades de da Educação, foi fundamental para a Apoiou a execução de um Programa Agronomia e de Educação (Curso de resolução de inúmeros problemas de de Capacitação Docente, na FAMV, Economia Rural), bem como do Instituto cursos e unidades da UPF. Lembro que permitiu a ampliação do quadro de de Ciências Biológicas (Curso de Quí- que, como Diretor da Faculdade de docentes com tempo integral, e o seu mica), com a participação de represen- Agronomia (1982 /1986) e vice-reitor treinamento em nível de mestrado, no tantes da Embrapa e com vistas à criação Administrativo “pró-tempore” (1987) início da década de 80, fator decisivo do Centro de Pesquisa em Alimentos, fui inúmeras vezes ao MEC. Quando me para o desenvolvimento da pesquisa hoje o principal centro interdisciplinar apresentava, os servidores perguntavam: e para a criação, posteriormente, dos de ensino, pesquisa e extensão da UPF. “da Universidade do Padre Guareschi?”. Cursos de Mestrado e Doutorado em Destaque-se também sua participação Seu nome era mais conhecido do que a Agronomia. decisiva na busca de recursos financei- própria Universidade de Passo Fundo. Estímulou o desenvolvimento de um ros, junto a SUBIN, em Brasília, e a Possivelmente, devido a sua origem Programa de Pesquisa na Agronomia, celebração do Convênio com a Univer-

110 Água da Fonte Novembro de 2012 sidade Federal de Viçosa, referência na época, na área de Ciência e Tecnologia de Alimentos, o que permitiu o apoio técnico na implantação de laboratórios e o treinamento de docentes, por meio de Curso de especialização. Afora isso, é justo lembrar também o permanente estímulo à implantação de Curso de Mestrado na área de Agro- nomia, desde 1986, com a vinda à UPF do professor Cláudio Moura Castro (CAPES), para uma Consultoria. O curso de Mestrado só foi implantado em 1996 (área de Fitopatologia), o primeiro institucional criado na UPF. Em 2000, criou-se a área de Produção Vegetal, e o Curso de Doutorado, em 2004. Atualmente, oferece Programa de Burocracia na Escola “Pós-doutorado” em Agronomia. Colaborou decisivamente na aquisi- VANESSA FRANÇA escola estiver inserida não possuir ção da primeira área de terras (134ha) , a mais de uma loja de tintas, deverá partir de 1984, para a instalação de pro- procurar na região. Além disso, é jetos nas mais diferentes áreas, visando pesar de as escolas, hoje, necessário exigir nota fiscal eletrô- a melhoria da qualidade de ensino e a serem tratadas quase como nica de tudo o que se compra, com difusão de tecnologias. Especialmente, A empresas, e terem uma boa exceção dos agricultores familiares, pela ação atua nos bastidores, para que autonomia, elas ainda sofrem com que disponibilizam uma nota oficial a aquisição fosse aprovada pela Assem- entraves burocráticos que atrasam do governo estadual. bleia da Fundação Universidade de Pas- muitos projetos/procedimentos, Outro tipo de burocracia vi- so Fundo, em 1985. Imediatamente, foi para a melhoria desses estabeleci- venciada nas escolas públicas é a criado o Centro de Extensão e Pesquisa mentos. questão da reprovação de um estu- Agronômica –CEPAGRO, que desen- Sabe-se que as escolas, atualmen- dante. Para ser se “conseguir” que volve, atualmente, inúmeros projetos de te, possuem estrutura baseada em um estudante de baixo rendimento pesquisa e extensão. Ainda na sua gestão modelos clássicos de organização seja reprovado, ele precisa ter esse como Reitor, foi adquirida outra área de e administração, tais como: hierar- baixo rendimento em, pelo menos, 136 ha, consolidando a implantação de quias, divisão de trabalho (cargos e três disciplinas e, entre elas, Mate- um amplo Campo Experimental e área funções), estabelecimento de metas/ mática e/ou Língua Portuguesa. Tal para expansão do Campus. objetivos, visão, missão, entre ou- medida, criada pelas secretarias de Por sua visão da necessidade do tros (TAYLOR e FAYOL, 2000). ensino, evitam um número alto de desenvolvimento regional, foi um dos Todavia, as instituições públicas reprovações e, consequentemente, gestores, na implantação do Conselho de ensino também encontram en- de evasão e desistência escolar. Para de Desenvolvimento (Condepro), na traves na burocracia existente, para conseguir números baixos de repro- Região da Produção. Exerceu o man- gerenciar os recursos recebidos dos vação e evasão escolar, os governos dato de Presidente desse Conselho por governos municipal e estadual (de dão maiores verbas às escolas que vários anos, além de outros cargos. Foi acordo com sua rede). Isso porque é obtiverem os menores índices. através do Condepro que se implantou necessário cumprir algumas exigên- Esses são exemplos de entraves o Pólo de Inovação Tecnológica junto a cias pré-estabelecidas, além de ser burocráticos no dia-a-dia dos esta- FAMV, por meio de diversos projetos imprescindível ouvir a opinião da belecimentos públicos de ensino. que contribuem para o desenvolvimento comunidade educativa, para investir Não bastasse a dura realidade de do setor rural na região. recursos maiores, através de pleitos. muitos deles (localizados em bair- Finalmente, a Agronomia teve no Um exemplo de exigência pré- ros/vilas de baixo poder econômico, Professor Guareschi um permanente estabelecida diz respeito ao destino como favelas), onde se faz necessá- colaborador, em diversos eventos de da verba para a merenda escolar, rio mudar a realidade dos educandos extensão, como seminários, simpósios nas escolas da rede estadual: a ins- para melhor, ainda precisam des- e reuniões técnicas, que projetaram a tituição é obrigada a gastar 30% do pender um tempo precioso tempo Faculdade de Agronomia e Medicina valor recebido em produtos oriun- com uma burocracia que, inúmeras Veterinária na região, no Estado e no dos da agricultura familiar. Outro vezes, retarda o progresso do ensino Brasil. entrave ocorre em reformas da es- público do nosso País. Sem dúvida, o Padre Alcides Guares- cola, como a pintura do prédio, por chi revelou-se um amigo da Agronomia. exemplo. São necessários ao menos (Vanessa França é aluna do curso de Pedagogia três orçamentos, para decisão do da Faculdade Ideau-Passo Fundo e professora menor valor. E, se a cidade onde a da rede pública e particular de Passo Fundo/RS.) (Elmar Luiz Floss é membro da Academia Passo- Fundense de Letras.) Água da Fonte Novembro de 2012 111 Água potável

“Água é um recurso natural e um quando sabemos que 50 % dos lagos e pelo mesmo motivo. Foi o mais usado bem público fundamental, para a vida rios do mundo estão contaminados pelo desde então, até as descobertas de e para a saúde. O direito do homem homem. Leuwoenhoek(1632-1723) e de Pas- à água é indispensável para se levar teur(1822-1895). O primeiro mostrou a uma vida saudável, com dignidade A água na história existência das bactérias, e o segundo, o humana. É um pré-requisito para dano inerente às mesmas, pela contami- a concretização de outros direitos A água sempre esteve ligada a fato- nação das águas e alimentos. humanos”. res históricos. Desde os primórdios, o Os ricos usavam o vinho como homem procurou estabelecer-se junto bebida, e os pobres, o vinagre, o qual, Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos e Sociais, 2002. a mananciais, rios, lagos ou oceanos, misturado na água, garantia uma esteri- para prover sua necessidade básica, mas lização da mesma. Quando Cristo estava “A água faz parte do patrimônio também para facilitar seu deslocamento. na cruz, um soldado romano deu-lhe do planeta. Cada continente, povo, Muitas guerras foram e são travadas em de beber água com vinagre, que era a nação, região, cidade e cidadão é busca da água. Exemplo foi a Guerra bebida usual. plenamente responsável, dos Seis Dias, entre Israel e Síria, que Muito mudou no mundo, quando o aos olhos de todos”. ainda hoje lutam pelas colinas de Golan, inglês John Snow (1813-1858) provou nascedouro do rio Jordão. Ex-repúblicas que a cólera vinha da contaminação da Declaração Universal dos Direitos da Água. soviéticas, na Ásia Central, lutam pelo água, em Londres. A partir de então, direito à água dos poucos rios existentes. muitos países iniciaram o controle da O rio Nilo também é motivo de desaven- água e, hoje, a maioria das cidades do CARLOS ANTONIO MADALOSSO ças internacionais, entre a Etiópia, seu mundo têm água tratada. nascedouro, e o Egito, principal usuário Apesar deste conhecimento, nos dias do mesmo. atuais há, assustadoramente, cerca de 4 om as duas afirmações acima, A água potável sempre foi preocupa- bilhões de casos de doenças causadas que mostram a importância da ção do homem, que se tornou sedentário pela água contaminada, no mundo, por água que consumimos, inicia- por volta de 12 mil anos atrás. Até então, ano,na maioria diarréia em crianças, C nunca se preocupou com águas poluídas, redundando em cerca de 2 milhões de mos uma reflexão sobre a água potável. Nosso planeta Terra deveria ser mais uma vez que, em sua função de caçador- mortes anuais, atingindo, principalmen- adequadamente chamado de planeta coletor, não se fixava em local nenhum, te, crianças menores de 5 anos. Água, pois esta cobre 3/4 do globo ter- não havendo possibilidade de contami- restre. Com tanta água, por que a preo- nar a água. Ao morar permanentemente Água potável, água tratada cupação dos organismos internacionais? em um local, iniciou a contaminação da Na verdade, de toda a água existente na água e muitas mortes foram e são causa- Por água potável entende-se a água terra, 97% é constituído de água salgada, das pela mesma. Agravou-se o proble- que pode ser ingerida pelos homens ou imprópria para o consumo humano. A ma, quando começaram a se constituir animais, sem risco de causar doenças. água doce – nome usado para diferenciar aldeias e cidades, com aglomeração Excetuando-se as águas provenientes da primeira, uma vez que ela é insípida humana e de animais. das geleiras e das florestas virgens, – constitui apenas 3% do total. .A cerveja, descoberta há cer- raras são as águas potáveis naturais no Destes 3%, 77% são geleiras e glacia- ca de 8000 anos, muito ruim de gosto, mundo. O aumento populacional e de res, e 22% águas subterrâneas, restando de começo era usada para substituir a animais levaram à contaminação dos apenas 0,03% das águas na superfície, água, pois ela era estéril e segura. O mananciais. Também as águas subterrâ- sob a forma de vapores, lagos, rios e vinho incorporou-se ao uso humano, neas podem estar contaminadas. águas no solo. A preocupação é maior, por volta de 5000 anos antes de Cristo, Por isto a necessidade da água ser

112 Água da Fonte Novembro de 2012 tratada. Na maioria dos países as águas mente gasosas, ou gaseificadas artificial- água de torneira é satisfatória. O uso oferecidas pelos municípios são de boa mente, devendo constar esta informação dessas águas engarrafadas custou ao qualidade e isentas de riscos. no rótulo do recipiente. mundo, em 2003, cerca de 46 bilhões Um longo processo de tratamento da de dólares. O que nos deixa estarreci- água, que inclui coagulação, floculação, Água engarrafada dos é que, se poupássemos uma quarta decantação, filtração, desinfecção pelo parte deste gasto, poderíamos fornecer, cloro, por ozônio ou por outros métodos, Água engarrafada é aquela vendida gratuitamente, água potável para todos fluoretação e correção do pH, conferem em garrafas de plástico ou de vidro. os habitantes da terra, cujo custo anual à água tratada qualidade e segurança. Pode ser mineral ou apenas água de é orçado em 12 bilhões de dólares. Nos Em nossa cidade, temos mais segurança mesa. dias atuais, cerca de 2 bilhões de pessoas devido ao fato de que a água usada para Seu uso tem crescido enormemente não dipõem deste bem precioso. tratamento é uma água natural, de boa no mundo. Os italianos bebem cerca Por fim, deve haver uma advertência qualidade, próxima ao nascedouro e de 180 litros per capita/ ano. No Brasil quanto a seu uso correto. Está provado distante de aglomeração humana. ,calcula-se que o consumo está em torno que deixar a garrafinha de água em lu- Em tempo de seca e de calor, pode de 40 litros/ano, mas tem aumentado gares quentes, sujeitos ao sol ou ao calor haver o desenvolvimento de algas e muito nas últimas décadas. A moda de estufas e fogão,no carro, em casa, na outros microorganismos, que conferem é apresentá-la por belas artistas ou academia, é prejudicial à saúde, pois ela a esta água gosto diferente e muitas musculosos atletas, que se mostram libera substâncias usadas na fabricação vezes cor escura, sem, contudo, tirar-lhe portando garrafinhas de água. No Brasil, do plástico, as quais são prejudiciais à a qualidade da potabilidade. não há uma fiscalização rígida sobre saúde. seu uso. Águas ditas minerais são, na Água mineral e água de mesa verdade, águas de mesa. Nos Estados Água virtual Unidos, estudo feito por ONGS che- Água mineral é aquela proveniente garam à conclusão que 40% das águas Água virtual é a quantidade de água de fontes naturais ou de fonte artificial- engarrafadas provêm das torneiras gasta para produzir um bem, produto ou mente captada, que possua composição, municipais e não das fontes naturais serviço. Ela está embutida no produto, propriedades físicas ou físico-químicas estampadas nos rótulos. No Brasil, tal não apenas no sentido físico, visível, distintas das águas comuns, com carac- fato deve ser comum. mas também no sentido "virtual" , con- terísticas que lhe conferemuma ação Por outro lado, há uma falsa ilusão siderando a água necessária aos proces- medicamentosa (Decreto-Lei Nº 7.841, de que a água engarrafada é mais pura sos produtivos. É uma medida indireta de 08/08/1945). e saudável do que a água da torneira. dos recursos consumidos por um bem. Sais, compostos de enxofre e gases se Estudo feito em Cleveland (EEUU), Para exemplificar, sabe-se que, para incluem entre as substâncias que podem e publicado no Archive of Family produzir 1 kg de soja são gastos 2300 estar dissolvidas na água mineral. Esta Medicine, mostrou que as águas engar- litros de água, e um kg de carne de gado não deve ser confundida com a água de rafadas continham níveis de bactéria cerca de 16000 litros de água. mesa, que é uma água de composição significativamente maiores do que a Países com fartura de água estão normal, proveniente de fontes naturais água da torneira. Estudos feitos na Uni- exportando para outros países, a custo ou de fontes artificialmente captadas, versidade de Genebra, assim como um irrisório, muita água virtual. A China, que preenchem tão somente as condi- relatório da Organização de Alimentos e maior importador mundial de água, ções de potabilidade para a região. Agriculturas(FAO) das Nações Unidas, importou 3,5 milhões de toneladas de As águas minerais têm qualidades mostrou que a água comum de torneira soja, e com ela 45 bilhões de litros de medicinais, enquanto a água de mesa é tão boa, do ponto de vista nutricional, água. Esta água custou-lhe 3000 vezes tem apenas a condição de potabilidade. como a maioria das águas engarrafadas. menos do que pagamos para a água de As melhores águas minerais pro- Outro fator importante é o custo das nosso uso pessoal e diário. vêm de regiões vulcânicas e com solo águas engarrafadas. Um litro de água Outro exemplo é a exportação brasi- calcáreo. As melhores se encontram, engarrafada custa de 1000 a 5000 vezes leira de 1,3 milhões de toneladas de car- principalmente, na França, na Itália e mais do que a água da torneira. ne bovina, originando uma exportação nas ilhas Fiji. As duas águas minerais Dias atrás, ao abastecer o carro em de 19,5 trilhões de litros de água. mais vendidas no mundo são, respecti- um posto, me surpreendi quando paguei Estes exemplos servem para que nós, vamente, a São Pellegrino, italiana, e a cerca de 3 reais por litro de gasoliina preocupados com o precioso líquido Perrier, francesa. aditivada e, no mesmo posto, um copo da natureza, evitemos o desperdício, Para receber registro de água mineral, de água de 1/4 de litro, custou-me 1,5 re- que pode nos custar pouco dinheiro, ela deve ser submetida a minucioso ais, ou seja, 6 reais por litro, isto é, duas mas leva junto muita água potável. exame pelo DPNM (Departamento Na- vezes mais do que a gasolina especial. O Lembramo-nos, de que ao jogar uma cional de Produção Mineral). mesmo ocorre, ao compararmos o custo batata fora, jogamos junto 25 litros de As águas minerais são consideradas do leite: surpreende-nos constatar que água, e o desperdício de 1 litro de leite boas para a saúde, devendo, no entanto, um litro do precioso líquido é bem mais leva consigo 1000 litros de água. ser usadas com orientação médica, pois barato do que um de água engarrafada. a presença de certos minerais, como cál- Usar água engarrafada em viagem cio, sódio, potássio, magnésio, podem é plenamente compreensível, quando (Carlos Antonio Madalosso é Médico Gastroenterologista, ser contraindicados em muitas doenças. estamos visitando países em desenvol- e membro das Academias Passo-Fundense de Letras As águas minerais podem ser natural- vimento. Em países desenvolvidos, a e de Medicina.)

Água da Fonte Novembro de 2012 113 Vitaminas e suplementos

CARLOS ANTONIO MADALOSSO A seguir, indicaremos outras situações Vamos tecer alguns comentários sobre em que a administração de vitaminas e os mais usados. sais minerais é importante: * DHEA. A dehidropiandrosterona nossa mídia apresenta-nos, * Em mulheres após a menopausa é um hormônio esteróide, que é con- constantemente, propostas para necessitam de vitamina D e Cálcio, para vertido em hormônios sexuais, como A o uso de vitaminas e suplemen- evitar a osteoporose. estrogênio e testosterona. Muito usado tos que, segundo os mesmos, são drogas * Pessoas que, por motivos diversos, para melhorar a memória, o humor, a milagrosas, que nos devolvem o corpo de alimentam mal, comendo poucas energia e a massa muscular, bem como prefeito, a alegria, a inteligência e ainda verduras e frutas. prevenir o envelhecimento. Não há um grande poder de conquistar parceiros * Fumantes: o fumante consome mais comprovação científica de sua ação e e galgar sucesso. Faremos a seguir uma vitaminas, necessitando suplementação, seu uso prolongado pode estimular o revisão sobre o assunto, baseada em principalmente de vitaminas C, E e A. desenvolvimento de câncer de próstata, dados científicos. * Alcoólicos. O consumo regular de de mama e de ovário. Vitaminas e suplementos. As vitami- álcool prejudica a digestão e a absorção * Óleo de peixe e ômega 3. O óleo de nas e os sais minerais são componentes de vitaminas. O alcoólico necessita su- peixe, que contém ômega 3, mostrou-se essenciais de nossa dieta. Eles ajudam plementação de vitaminas B, além de eficiente para baixar os triglicerídios e o metabolismo, reconstituem os tecidos, zinco e magnésio. prevenir doenças do coração, princi- favorecem nossas funções vitais e são * Dietas especiais. Aqueles que, por palmente nas pessoas que já realizaram indispensáveis à manutenção de nossa algum motivo se vê necessitado de cirurgias cardíacas. Aumentam a capaci- imunidade. No geral, uma alimentação restringir alimentos, deve sempre com- dade para exercícios físicos. Mantenha- saudável nos fornece todas as vitaminas plementar sua nutrição com vitaminas. se na dose recomendada, pois uma dose e sais minerais de que necessitamos. * Operados do estômago ou de intes- elevada pode determinar indisposição Há, no entanto, algumas situações em tino. Estas pessoas apresentam defici- gastrintestinais e hemorragias. que é necessário complementá-los. Na ência de absorção de muitas vitaminas, * Alho. O Alium sativum é usado infância, na gravidez, na recuperação sendo sua complementação obrigatória para combater infecções respiratórias, de doenças ou de cirurgias e após os 60 e permanente. e baixar o colesterol. Estudos mostram anos. Nas primeiras situações, devido ao * Cuidado com medicamentos que que o alho pode reduzir o colesterol e maior consumo das mesmas, e após os oferecem megadoses e associadas com a formação de coágulos. Faltam estu- 60 anos, em razão de nosso organismo ervas medicinais que, no geral, encare- dos a longo prazo. Deve ser evitado perder a capacidade de um aproveita- cem o produto sem oferecer vantagem em pessoas que tenham problemas mento adequado dos alimentos. alguma. gástricos, e que usam anticoagulantes, Estudos mostram que o uso de vita- Suplementos alimentares. O mercado como a aspirina. Como efeitos colate- minas e sais minerais, em pessoas de está inundado de ofertas de suplementos rais, ocorrem o aumento do risco de mais de 60 anos, melhora a disposição, alimentares. Muitos são úteis, enquanto hemorragia, náuseas , hálito ruim e a força física, a memória e a imunidade, outros ainda não têm ação benéfica com- mau odor corporal. reduzindo o risco de infecções. provada, e alguns são atéprejudiciais. * Gengibre. O gengibre (zingiber offi-

114 Água da Fonte Novembro de 2012 cinale) é usado para reduzir as náuseas, principalmente as causadas pelo movi- mento. As pesquisas comprovaram esta ação. Pode provocar formação de gases e gosto ruim na boca. Quando ingerido em forma natural, pode prejudicar a função intestinal e causar alergia em casos especiais. * Ginkgo biloba. Esse vegetal japonês conhecido como nogueira do Japão, é largamente usado para melhorar a circulação cerebral, principalmente em idosos. Os estudos mostram que o ginkgo melhora a circulação do cére- bro, das pernas e dos braços. Não deve ser usado em pessoas medicadas com anticoagulantes ou aspirina, pois juntos podem favorecer o risco de hemorragia e espasmo muscular. * Ginseng. Usado para aumentar a energia, o vigor sexual, reduzir o estres- se e o envelhecimento. Está comprovado que seu uso melhora o bem-estar, reduz a demência e a formação de coágulos. O uso do ginseng é desaconselhado em mulheres com câncer de mama, e nas pessoas que têm hipertensão, pois seu uso pode agravar essas condições. * Glicosamina. Esta substância, en- contrada nas cartilagens do organismo menopausa, prevenir certos cânceres e sono e podem causar aceleração do co- humano, é usualmente associada à outros sintomas. ração. São muito bons, quando ingeridos condroitina. Seu uso é recomendado Quanto ao benefício no tratamento até o início da tarde, pois estimulam as para recuperar cartilagens doentes, dos cânceres, os estudos têm sido funções vitais, deixando a pessoa mais principalmente as do joelho. Reduzem contraditórios. Alguns a favor e mui- animada e desperta para suas atividades. a dor e a inflamação. Tem sido prescrita tos, contra. Como possui substâncias Os chás pretos, os verdes, e os de erva pelos médicos, para tratamento de artri- semelhantes a hormônios femininos, as mate são ricos em cafeína. tes inflamatórias e da artrite reumatóide. isoflavonas, desaconselha-se o uso em Evite chás caseiros sem conhecê-los. A glicosamina vendida no mercado cânceres sensíveis aos mesmos, como o Muitos chás, como os de macela, horte- provém da casca de camarões ou da de mama e o de ovário. lã, boldo, camomila, erva-doce e outros, carapaça de caranguejos, e por isto O mercado apresenta muitos outros fi- são aprovados pelo uso, estão liberados pode desencadear alergia em pacientes toterápicos, como a espada de São João, e até aconselhados, desde que se respeite sensíveis a crustáceos, assim como o licopeno, a babosa, o confrei, e tantos suas indicações. Os chás novos e desco- causar crises de asma. Deve ser evitada outros que seria difícil e numerá-los. nhecidos devem ser usados com muita em pessoas asmáticas. Seu uso pode Não os use somente porque o vizinho cautela, pois, frequentemente, com causar indisposição gástrica, insônia e lhe recomendou. Aconselhe-se com o decorrer de seu uso, identificam-se espessamento das unhas. seu médico, pois muitos deles podem neles contra-indicações e até prejuízos * Hortelã-pimenta. É a mentha pipe- interferir em outros medicamentos. à saúde. rita, que foi usada largamente no Egito, * Chás. O uso de chás é um costume Quando decidir por um suplemento, na Grécia e em Roma. Hoje se usa para saudável, que deve ser estimulado após tome os seguintes cuidados: aliviar cólicas intestinais, má digestão e os 60 anos. Os líquidos são sempre 1.- Verifique a procedência. Há mui- congestão nasal. recomendáveis, principalmente quando tas fábricas clandestinas que não são Estudo tem demonstrado que é útil, tomados pela manhã. Deve-se beber confiáveis. principalmente, na síndrome do intes- muito líquido pela manhã, menos à tarde 2.- Siga as instruções. Não ultrapasse tino irritável, sendo seu uso em dor e o mínimo necessário, à noite. Os chás a dose recomendada. de cabeça, e como descongestionante são, em última análise, um bom hábito 3.- Informe seu médico sobre o uso. nasal, ainda inseguro. Pode desencadear de tomar líquidos. Muitos suplementos interferem ou po- alergia a pessoas sensíveis, bem como Há uma infinidade de chás no mer- tencializam os medicamentos, tornando agravar a doença do refluxo gastro- cado e outros em sua horta. Quando perigoso o uso concomitante. esofágico. compramos chás comerciais, devemos *Soja. A soja tem sido indicada para verificar se os mesmos contêm cafeína. (Carlos Antonio Madalosso é Médico Gastroenterologista reduzir o colesterol ruim, aumentar o Esses não devem ser ingeridos após as e membro das Academias Passo-Fundense de Letras bom colesterol, reduzir os fogachos da 5 horas da tarde, pois comprometerão o e de Medicina.)

Água da Fonte Novembro de 2012 115 A alimentação e o envelhecimento

CARLOS ANTONIO MADALOSSO

velho ditado diz que “o peixe morre pela boca”. A voraci- O dade do peixe torna-o presa fácil para o pescador. O ditado aplica- se para o ser humano, já que a gula leva as pessoas a doenças diversas, por comer muito ou comer mal. O sal, tão abundante em nossa dieta, é o principal responsável pelas doenças cardíacas, derrames cerebrais e hipertensão arte- rial. O açúcar, tão consumido em nossos dias, é responsável pelo surgimento do diabete e da obesidade. A gordura causa arteriosclerose, fígado gorduroso e outros males. Por sua vez, o álcool é o principal causador da cirrose hepática, doença incurável, cuja única esperança reside no transplante hepático. Não temos grande influência sobre nossos genes, pois os mesmos são herdados. Mas podemos agir sobre os imagem que mostra a importância do gorduras. Laranja e abacate contêm o fatores ambientais, pelo modo que os exercício físico sobre a saúde e o con- beta-sitosterol, que ajuda a reduzir o encaramos. Está provado, pela epigené- trole do peso. colesterol do sangue. tica, que fatores ambientais influenciam Nesta pirâmide, ocupam os andares Recomenda-se ingerir as frutas pela nossos genes, sendo que a alimentação mais altos, os alimentos que produzem manhã ou ainda à tarde. À noite, a in- é a que mais interfere sobre os mesmos. grande quantidade de calorias. Devem gestão de muitas frutas e alimentos de Portanto, se quisermos viver mais e ser usados com muita moderação. No difícil digestão deve ser feita com mo- melhor, temos de nos alimentar bem. andar de baixo, temos vegetais e frutas, deração, pois não é bom deitar-se com Alimentar-se bem não significa ali- que podem e devem ser ingeridos em o estômago cheio. Outra observação é mentar-se muito, mas sim, aliar exce- maior quantidade, pois apresentam de que sucos não substituem as frutas, lente paladar com excelente nutrição. menor valor calórico e maior valor uma vez que não possuem fibras, cuja Há muitas propostas alimentares de nutricional. ausência determina redução da função renomados e bons nutricionistas. Como Iniciamos pelas frutas. É de conhe- intestinal. Excesso de sucos provoca opção, vamos adotar o método da Pirâ- cimento geral que as frutas são muito um aumento do apetite, e o excesso de mide Alimentar, da Clínica Mayo, dos saudáveis, por possuírem muitas vita- frutose pode determinar deposição de Estados Unidos. minas. Algumas, como a uva, possuem gorduras no fígado. A pirâmide está calculada para uma flavonóides, que reduzem os riscos A seguir, temos os vegetais e os necessidade diária de 1200 calorias, con- cardíacos. Por sua vez, certas frutas, legumes. A ingestão de quantidades ge- siderada dieta especial para emagrecer. como o abacate, contêm antioxidantes, nerosas de vegetais determina um menor A necessidade diária, de uma pessoa principalmente a luteína e a azeaxanti- risco de desenvolver doenças cardíacas. de vida sedentária, varia de 1700 a na, que podem proteger contra a perda Os vegetais possuem substâncias fito- 2000 calorias, sendo que a necessidade progressiva da visão e o envelhecimento químicas, que parecem oferecer prote- aumenta à medida que se realiza maior da pele. As fibras das frutas contribuem ção contra o câncer. Estudos realizados esforço físico, e reduz com o avanço para o melhor funcionamento do in- nos Estados Unidos mostraram que as da idade. testino, evitando o câncer intestinal, verduras do gênero brassica (repolho, Ao lado da pirâmide acima, está uma bem como reduzem a absorção das brócolis, couve e mostarda) protegeram

116 Água da Fonte Novembro de 2012 os indivíduos contra o câncer de intes- construir células, que se renovam dia- tino grosso. riamente. As mais recomendáveis são Os vegetais possuem muitas vitami- as de origem vegetal, como o óleo de nas, além de considerável quantidade canola, de oliva, de abacate e de algumas de sais minerais, folatos, ferro e cálcio, sementes, principalmente soja, feijão e importantes para a fisiologia humana. amendoim. Temos necessidade diária Recomenda-se ingerir saladas com de um pouco de gordura, uma vez que muitas cores, pois, para cada cor, há uma algumas vitaminas como a D, E, A e K, vitamina predominante. essenciais em nossa vida, somente são Os legumes, (sementes produzidas absorvidas, na presença de gorduras. dentro de vagens, como feijão, lentilhas, Tenha cuidado, no entanto, pois embora ervilhas e outras) contêm baixo teor de necessários em nossa alimentação, são gordura e possuem grande quantidade altamente calóricos. Basta dizer que uma de fibras solúveis, que ajudam a baixar o colher de azeite de oliva contém nada colesterol e regular a glicose sanguínea. menos do que 140 calorias. Legumes, como feijão, soja, grão-de- bico, ervilhas, são saudáveis substitutos As gorduras são classificadas da carne, por apresentarem boa quantia em 4 categorias de proteína e não terem, em sua compo- sição, o colesterol animal. *Monoinsaturada, encontrada no Carboidratos. São os alimentos mais óleo de canola, de oliva e nas nozes. presentes na dieta do brasileiro. Neces- É recomendável, sempre em pequenas sários para gerar energia, principalmen- quantidades, pois baixa o colesterol te, nas pessoas que tem muita atividade ruim e eleva o colesterol bom. Falamos, física, devem ser ingeridos com mode- em especial, do azeite de oliva, que ração os que têm vida sedentária. Entre possui alto teor de oxidantes, derivados os carboidratos, os mais saudáveis são fenólicos, vitamina E, esteróis livres produzidos com cereais de grão integral. e o esqualeno, que aumentam o bom Podem ser de trigo, de aveia,de arroz... colesterol e exercem um efeito protetor Os carboidratos derivados de cereais sobre as artérias. polidos, os de batata e também as massas *Poliinsaturada, encontrada nos óleos têm menos qualidade que os integrais. vegetais de milho, de algodão, girassol, Mais prejudiciais são as bolachas, os arroz, e de soja. Reduz o colesterol biscoitos, os doces e refrigerantes, ruim, mas não aumenta o bom. produzidos com açúcar e que contêm, *Saturada. Encontrada em produtos muitas vezes, gorduras trans. animais, carnes, laticínios, manteiga Indispensáveis na mesa das crianças, principalmente, em carnes, laticínios e e ovos. Aumenta o colesterol ruim no dos jovens e dos esportistas, por serem ovos. Existem em menor quantidade em sangue, e eleva o risco de doenças car- de fácil digestão e liberarem rapida- legumes, como feijão, soja, lentilhas e diovasculares. Deve ser ingerida com mente energia, são aconselháveis à outros. Seu uso é indispensável, sobre- muita moderação. noite, pois favorecem o sono e são tudo em crianças e jovens, que estão *Gordura trans, encontrada nas mar- rapidamente digeridos. Liberam, no moldando sua estrutura corporal. garinas, gorduras vegetais sólidas, e nas entanto, muitas calorias, e seu uso deve As carnes, tão importantes, não ne- bolachas, massas, chocolates, feitas com ser constantemente vigiado. cessitam de ser ingeridas diariamente. esse tipo de gordura. É a pior, pois au- Lemos, frequentemente, que os car- Devemos procurar carnes magras, com menta o colesterol ruim e baixa o bom, boidratos estimulam a produção de insu- pouco teor de gordura. A carne suína, aumentando muito o risco de doenças. lina, responsável pela gordura corporal. tão condenada outrora, com a melhoria Deve ser evitada ao máximo. De fato, o carboidrato pode engordar a genética do porco “light”, tem menos Doces. Os doces, bolachas, bolos, ba- pessoa, quando ingerido em excesso. No gorduras que a de outros animais. As las e refrigerantes, por conterem açúcar, entanto, dietas que suprimem os carboi- carnes de peixes e frutos do mar são , são altamente calóricos, e praticamente dratos, usam carnes e laticínios, que são por possuírem ácido ômega 3, que ajuda não acrescentam nada em termos de ali- ricos em gorduras animais saturadas e, a baixar a pressão arterial, a aumentar o mentação. Devem ser evitados, a menos por isto, prejudiciais à saúde. Lembre- colesterol bom e a melhorar nossa imu- que seja necessário o ganho de peso ou se que os carboidratos provenientes de nidade. É recomendável incluir peixes, a recuperação de doenças e de cirurgias. grãos integrais são ricos em vitaminas, em nossa alimentação, 2 x por semana. Seguindo as informações acima, sais minerais e fibras, que constituem Lembramos que o ácido “ômega 3” é certamente estaremos nos alimentando uma fonte saudável de energia. encontrado também no óleo de canola adequadamente, aproveitando o prazer Proteínas. Subindo a pirâmide, en- e de oliva, na semente de linhaça, na dos alimentos e VIVENDO MELHOR. contramos as proteínas. Alimento soja e nas nozes. importante, pois são elas que ajudam a Gorduras. Embora tendo má fama, (Carlos Antonio Madalosso é Médico Gastroenterologista, formação das células e a estruturação as gorduras têm importância em nossa e membro das Academias Passo-Fundense de Letras de nosso organismo. São encontradas, alimentação, pois são necessárias para e de Medicina.)

Água da Fonte Novembro de 2012 117 Poesia

Acariciando pensamento Acasos e a ironia Pelas ruas da minha terra, Trafega meu sentimento, Ensinaram-me, certa vez, Num comício, um candidato Levado como se fosse Que a vida e o cada dia, Para o povo prometia: Folha seca pelo vento. É respeitar pai e mãe, Se por acaso eu ganhar, Quem entender a mensagem, Padrinho, vovó e titia. Tudo vai ser alegria! Receba como um alento, Irmão mais velho falava, Apenas por dizer isto, Pois poesia verdadeira O mais novo obedecia. Muita gente aplaudia. Atinge quem anda atento, E toda pessoa idosa Com isto se elegeu, Mesmo que esteja parado, Mais respeito merecia. Só vive na mordomia. Mas a mente em movimento... Vendo o que se vê hoje, Por acaso encontrei ele, Observando o presente, Querer isso é ironia. Entre cartolas, um dia, Querendo um futuro bento, Mas daí não foi acaso, Guardando um lindo passado Depois vieram outros casos Fez que não me conhecia. Pra não ver no esquecimento, Que a própria idade exigia, Todo poeta é um carente, E junto às decepções Quando cheguei neste mundo, Acariciando pensamento... Que nunca imaginaria. O acaso já existia, Na escola veio a história, E a pobreza por acaso E a professora dizia Escolheu-me pra companhia. Que Pedro nos descobriu Por isto eu vivo tentando Não me comprem Por causa das calmarias. Um acaso na loteria. por quadrado Uns dizem que foi acaso, Se por acaso der certo Outros que ele sabia... E for bastante a quantia, Cavalo e homem gavião, Vou contratar meu patrão No popular é ser arisco, Por causa desses acasos Pra fazer o que eu fazia. Pois não como qualquer prato, Foi que eu nasci um dia. Vou pagar um bom salário, Muitas vezes só belisco. Meu pai que teve a ideia Ser um patrão simpatia, Pois a pompa e a luxúria E minha mãe resistia, Se acaso não aceitar, Acobertam muito cisco. Mas ele argumentava, Será só por ironia. Pois é nos grandes prazeres Defendendo o que queria. Pra surgir patrão assim Que se corre o maior risco. Isto é só por um acaso, Só um acaso na quantia... Entre o mar e o rochedo, Deu o que mamãe temia, Quem se lasca é o marisco. Pois a droga do acaso Não me comprem por quadrado, Era bem naquele dia... Tenho fio e sou um disco!

118 Água da Fonte Novembro de 2012 francisco mello garcia Acasos ou coincidências

Tema publicado no Jornal A Serra, de, oportunidade em que teve como de Santa Rosa em 27.08.92, com o funcionária a irmã de Xuxa, Mara título Francisco Mello Garcia home- Rúbia Meneghel. Outra coincidência nageia Xuxa, ocasião em que foi inau- foi o fato de que morou 25 anos na gurada a sucursal da RBS em Santa cidade de Santa Rosa, e, por incrível Rosa e que XUXA retornou a sua terra que pareça, era uma oportunidade de natal para essa inauguração. Entre tan- conhecê-la pessoalmente e mostrar o tas coincidências já acontecidas, como seu trabalho literário e composições a poesia registra, este autor e o pai da musicais, mas teve que fazer-lo por grande apresentadora de TV, como intermédio de terceiros. Por isso eram militares do Exército, serviram tem dúvidas se o material foi de fato na mesma Unidade Militar daquela entregue à Rainha dos Baixinhos, já cidade, 1ºRCM. Subsequentemente, que justamente naquele dia estava ao se desligar do Exército, constituiu se transferindo para Passo Fundo, o empresa comercial na mesma cida- último acaso ou coincidência.

Eu sou um passo-fundense Você é linda mulher Conterrâneo do Teixeirinha, E fonte de inspiração, Que veio pra sua terra, E com honra lhe ofereço A qual hoje já é minha. O tema EU E O VIOLÃO, XUXA! Deus me deu poesia Mas você voou daqui Principalmente no verso Pra você muita beleza, Como se fosse andorinha, Que tem a comparação, Porém só isto não basta, Mas também sou ex-patrão Entenda como carinho Nem sempre “se põe mesa”. Da Mara, sua irmãzinha. E nunca como agressão, Outros tantos predicados Verso, música e cantiga Afinal você tem fãs Completam sua grandeza. Sempre está na alma minha. Da criança ao ancião. Que você leu os meus versos, Se escutares meu trabalho, Eu quero ter a certeza. Verá que tudo se alinha, Fiz centenas de poesias, Forneça-me alguma prova, A INFÂNCIA, diz o que fui Uma ou outra musicada, Faça esta gentileza, E também o que eu tinha, Se hoje sou bacharel, Já bati em muitas portas Pois você também recorda Eu vim de um cabo de enxada, Só obtive frieza... O tempo de menininha... Aos poucos venho vencendo Os degraus de minha escada. Eu termino por aqui, NO PEIXES DO RIO DA VIDA No interior, Santo de Casa Porém muito emocionado, Verá o Brasil inteiro, Vive de vela apagada. Se acaso fui atrevido, Eu também quero pescar Eu já me sinto culpado, Só não encontro pesqueiro. Por ter sido militar, Poeta no anonimato Você pode me ajudar, Pra seu pai fiz continência. É que nem ouro enterrado, Juro que fico faceiro, Ser patrão de sua irmã Só terá algum valor Pois no grande rio da vida É mais uma coincidência. Se um dia for encontrado. Sempre nadei sem dinheiro. Moro aqui em Santa Rosa, Deus que mantenha seu brilho Sua raiz e querência, Como sempre tem brilhado, A qual hoje é conhecida E bem à moda gaúcha, Por sua fama e audiência. O meu abraço apertado. Mostre ao Brasil meu trabalho, Que denominei “VIVÊNCIA”, Se mais isto coincidir (Francisco Mello Garcia – Xiko Garcia é membro É DIVINA PROVIDÊNCIA. da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 119 Alcides Maya: um clássico esquecido

PAULO MONTEIRO permanecerá a maior pultado no Cemitério São João Batista, parte do tempo, até no dia seguinte. Em 1949 seus despojos 1924. É eleito para a são exumados e transportados para o preciso reler Alcides Maya.” A Academia Brasileira Rio Grande do Sul, sendo, sob honras frase com que Augusto Meyer de Letras em 6 de militares, depositados no Cemitério da É abre o ensaio que dedicou ao setembro de 1913, Santa Casa de Misericórdia, de Porto escritor gabrielense enfeixado em Prosa tomando posse no Alegre, em 17 de setembro daquele ano. dos Pagos: 1941-1959 (Rio: Livraria dia 21 de junho do Com a morte de Alcides Maya, à São José, 1960, páginas 113 a 141), ano seguinte. Era o exceção de Tapera, os direitos autorais e dois anos depois aproveitado como primeiro gaúcho eleito para a Casa de de suas obras passaram à viúva, que prefácio à reedição de Tapera, tornou- Machado de Assis. somente reapareceu para a história, se uma espécie de mantra. Nos últimos Rompe com os antigos federalistas, possibilitando a reedição dos livros pela meses, tenho me dedicado a reler o aderindo ao Partido Republicano Rio- Editora Movimento, em parceria com o romance Ruínas Vivas, de 1910, e os Grandense, pelo qual exerce mandatos Curso Universitário e a Universidade livros de contos Tapera, de 1911, e Alma de deputado federal, entre 1918 e 1924, Federal de Santa Maria. Bárbara, de 1922. Além disso, recorro quando retorna ao Rio Grande, assumin- Osório Santana Figueiredo, histo- a alguns textos sobre a obra do criador do a direção do Arquivo Público do Es- riador gabrielense, lembrando que de Miguelito e outros mais recentes, tado e, posteriormente, do Museu Júlio ninguém pode editar obra literária sem produzidos por alguns estudiosos con- de Castilhos, onde passa a residir, até sua consentimento do autor ou herdeiros temporâneos. aposentadoria em 24 de março de 1939. (Santa Maria: Palloti. Alcides Maya: Alcides Maya nasceu no dia 15 de Participa ativamente da Revolução de “O Clássico dos Pampas. 1987, p. 133), outubro de 1878, em São Gabriel. Na 30, inclusive, comparecendo e falando lembra a frieza com que foi tratado por infância passou largas temporadas na na sessão de 13 de novembro daquele Dona Ofélia. Estância do Jaguari, mais tarde reno- ano, devidamente fardado à gaúcha. A receptividade da obra ficcional de meada como Estância São Manuel, no Solteirão e mulherengo, após, pelo Alcides Maya, no geral, foi boa. O ponto então 2º Distrito de Lavras do Sul, cuja menos, duas grandes desilusões amo- negativo, na opinião de vários críticos, paisagem é o cenário onde, mais tarde, rosas, casou-se com sua governanta, é o seu “parnasianismo”. Ainda em narrará suas histórias. Muito cedo, ainda Ofélia Balthesan, em 8 de abril de 1939. vida do Autor (1925), a obra alcidiana antes da Revolução Federalista, mudou- Muda-se para o Rio de Janeiro. Doente provocou uma polêmica em termos se para a capital do Estado, onde estu- e corroído pelo alcoolismo, longe da elevados, entre Moysés Vellinho, sob dou, exerceu o jornalismo e escreveu mulher, mas assistido por poucos e fiéis o pseudônimo de Paulo Arinos, e o in- muito, publicando seus primeiros livros. amigos, falece no Hospital Miguel Cou- ditoso Rubens de Barcellos, mais tarde Em 1885, matriculou-se na tradicional to, em 2 de setembro de 1944. É velado enfeixada pelo próprio Moysés Vellinho Faculdade de Direito de São Paulo. Ado- na Academia Brasileira de Letras e se- e Mansueto Bernardi, em Estudos Rio- eceu, retornando ao Estado, continuando grandeses, sob o patronímico de Rubens sua vida de homem de imprensa. Em de Barcellos. junho de 1897, publicou seu primeiro Num belo ensaio intitulado Alcides livro, intitulado Pelo Futuro. Seguiram- Maya: a expressão literária e o sen- se: O Rio Grande Independente (1898) tido sociológico de seu pensamento e Através da Imprensa (1900). Apenas (Porto Alegre: Letras da Província. mais tarde se lançou como ficcionista. Editora Globo, 2ª Edição, Revista e Em 1898, vai ao Rio de Janeiro, onde Acrescentada, 1960, páginas 4 a 27), conhece importantes figuras literárias da Moysés Vellinho retoma o debate com época. Demora-se pouco, retomando às Rubens de Barcellos, para censurar (p. lides jornalísticas. Em 1901 mandou 9) o verbalismo do estilista de “Ruínas edificar, no terreno da família, em Porto Vivas”. Para o autor de Capitania D’El Alegre, um pequeno prédio que se tor- Rei, Alcides Maya, com seu espírito nou ponto de velhos e novos intelectuais erudito e seus dons de “causeur”, não gaúchos. Após idas e vindas, em 1910, lhe cabia espaço para a ficção. Além está novamente no Rio de Janeiro, onde disso, Coelho Neto, com seu preciosis-

120 Água da Fonte Novembro de 2012 Poesia jabs paim bandeira

Minha Diva

Divina, minha Diva, Repouso de energia, Tu és a Virgem Maria, É amor, é um milagre, Minha paisagem preferida, Desenhaste minha vida, Onde não existe saudade!

Nunca me afasto de ti, Estás sempre no meu amanhecer, Escolheste ao nascer, A estrela da felicidade, Que brilha em minha mente, E me faz ser diferente, Tu és consolo e bondade!

À noite dorme comigo, mo vocabular, acabou sendo um modelo esquecimento. O que se agravou com a Dentro do meu coração, pernicioso (p. 13). adesão ao sistema castilhista-borgista. Devolvendo a emoção, Moysés Vellinho recorda o “sentido Miguelito, de Ruínas Vivas, a grande Não importa se perto ou longe, sombrio” da ficção alcidiana, desde personagem de Alcides Maya, é o pro- os títulos (Ruínas Vivas, Tapera, Alma tótipo do gaúcho. Filho bastardo de um Retém meu pensamento, Bárbara e um romance jamais publica- jovem estancieiro (Artur) que, aluno Enclausura meu momento, do: Ocaso). É uma espécie de “penum- da Faculdade de Direito de São Paulo, No mosteiro, brismo”, notado por alguns críticos que falece prematuramente e Elisa, filha como eu fosse um monge! andei lendo nas últimas semanas. O de Chico Santos, veterano das guerras tema exige um aprofundamento que os gaúchas. estudiosos da literatura rio-grandense Seu pai representa o aventureiro bran- Divide comigo o dia, não promoveram até hoje. co, detentor da cultura europeia; Elisa Em cada sonho uma passagem, Além das dificuldades legais, em é a “china”, meio branca, meio índia, Fotografa nesta miragem, reeditar os livros de Alcides Maya, deve- meio negra, talvez. Desprezado pelo se levar em consideração o conteúdo avô paterno, o branco pai e filho dos Um modo de não me esquecer. sociológico, que perpassa o romance conquistadores das terras americanas, Lembra que tu és a minha Diva, e os contos do criador de Miguelito. herdeiros do poder colonial, torna-se um Verdade definitiva, Em sua ficção, como destaca Floriano verdadeiro “guaxo”. Sem pai, sem mãe, Maya d’Avila, seu sobrinho e “filho sem avó, sem terras, torna-se o índio E ser teu - só me dá prazer! espiritual”, (Porto Alegre: Terra e gente vago, indomável. Se tivesse um pedaço de Alcides Maya. Editora Sulina. 1969), de terras seria o “taura”, o valente; como Posseira da minha existência, há toda uma crítica profunda às estru- proletário rural, sem direito a prole, Por ser forte e diferente, turas sociais da Campanha e do sistema torna-se o “maula”, o perseguido pela político determinado pela caudilhagem. Lei e a Justiça, a serviço dos poderosos. Está sempre presente, Floriano desenvolve teses esboçadas Miguelito é o nosso Martín Fierro. Em cada parte que estou. por José Salgado Martins, em Alcides Não importa o lugar, Maya: o ensaísta e o escritor de ficção Tu vens me procurar, (Rio de Janeiro – Porto Alegre – São Paulo. Editora Globo, s/d [1964]). A (Paulo Monteiro, membro da Academia Passo-Fundense Lembrando de quem eu sou! de Letras, é autor dos livros: Combates da Revolução crítica ao sistema de poder, que também Federalista em Passo Fundo, O Massacre de Porongos & não mereceu a devida atenção dos estu- Outras Histórias Gaúchas, A Campanha da Legalidade em Passo Fundo e Eu resisti também cantando, além diosos, é outro elemento que contribuiu de centenas de artigos e ensaios sobre temas históricos, (Jabs Paim Bandeira é advogado e membro da para que seus livros fossem lançados ao culturais e literários). Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 121 Rodolfo, o torturador do Panamá

LUIZ JUAREZ NOGUEIRA DE AZEVEDO inclusive antiquários, todos com suas e velhas lojas, com suas casas velhas vitrinas, encimadas por cartazes e lumi- e bem conservadas, a exibir suas luzes nosos faiscantes e de muito bom gosto. velhas e bruxuleantes, mal revelando os erta manhã, devido a algo que Muitas pessoas, vestindo pesados abri- contornos fugidios de antigos objetos e o assustava dentro da boca, gos, circulavam incessantemente, não quinquilharias imprestáveis. C Rodolfo pediu a sua mãe que se dirigindo, aparentemente, para lugar Eis que Rodolfo se depara com um a examinasse. Esta lhe disse que não nenhum. O ambiente seria dos anos mistério intrigante: ao entrar em uma havia nada, mandando-o cuidar da vida. 30 ou 40 — pode ser que dos 50 – do livraria e aproximar-se de seu balcão, Sem outra preocupação, obedeceu à século passado. Apesar da passagem da como que do nada, pois ali até não ha- ordem, saindo de casa. Dirigiu-se a um guerra, a aparência da paisagem urbana, via nenhuma pessoa visível, surge-lhe cinema por perto, para assistir ao filme nessas décadas, não chegou a alterar-se subitamente nas mãos um livro, que não que estava sendo apresentado. Ainda de modo significativo. Na arquitetura, procurava e que ninguém lhe entregara. não se dera conta de que já não estava prevaleceu e continuou a predominar No alto da página, que veio às suas no ambiente familiar de sua cidade e sim o estilo art nouveau, que começou a mãos já aberta, do lado esquerdo, seu noutro lugar, completamente estranho. desaparecer apenas depois dos anos 70. nome aparecia enquadrado e impresso Ao chegar ao cinema, comprou e pagou Havia até alguns automóveis, escuros em letras pequenas, como se fosse um o ingresso, penetrando no recinto através e pesados, cujas marcas Rodolfo não anúncio. Escrito por inteiro, encimava de um corredor mal-iluminado. Mas conseguiu identificar, estacionados junto um endereço e outros dados. Ali se imediatamente constatou que ali não às calçadas. O ambiente, uma mistura de anunciava ser Rodolfo um advogado estava sendo exibida nenhuma película. gótico com fantasmagórico, lembrando estabelecido no Panamá, chefe, ou coisa Não havia tela, nem assentos, nem ca- os velhos burgos alemães, se parecia parecida, de um grupo de torturadores. deiras. Nada dos objetos que se costuma com alguns cenários dos filmes de Harri De imediato, reagindo à perplexidade encontrar num cinema. Não obstante, Potter. Era inverno, fazia frio e quase já inicial, esboçou uma reação, pensando: atravessando o corredor, ingressou anoitecera. No lusco-fusco que antecede - Preciso arranjar um advogado para diretamente num grande cenário. Este a chegada da noite, as luzes piscantes conseguir uma ordem de apreensão des- era nada mais nada menos que uma emprestavam um aspecto onírico à pai- se livro e desse filme (não esqueçamos praça bem ampla, extremamente mo- sagem da praça. que ele se dirigira ao cinema e, em sua vimentada, repleta de passantes. Havia Por ali Rodolfo ficou circulando, sem confusão, sentia-se como um partici- gente indo e vindo sobre as calçadas se deter ou cansar. Procurava observar pante secundário de um filme de época: firmes e bem desenhadas, dispostas em todos os detalhes e ver de tudo um em sua estupefação, não conseguia se vários planos, com degraus e escadarias, pouco. Embora intrigado com o que via, certificar se aquilo era a própria realida- vãos e acessos ocultos, como se vê no sem se dar conta do local onde estava, de, ou se estava dentro do filme, ou se Marais, em Paris. Ao redor da praça e apesar do frio e da umidade, sentia-se tratava de um sonho); não posso correr dispunham-se, lado a lado, pequenos e bem, num ambiente que lhe parecia o risco de me prejudicar, se permitir elegantes sobrados, pintados de cores agradável e acolhedor. Encontrava-se que continue a circular esse livro, que fortes, todos se harmonizando entre si e num lugar como aqueles de que gos- contém dados falsos sobre mim, que com o ambiente geral. Ali se concen- tava: numa velha praça dentro de uma podem me prejudicar muito e desabonar travam cafés, restaurantes, livrarias, velha cidade, num anoitecer de inver- irremediavelmente. tabacarias e outros estabelecimentos, no, cercada por cafés e restaurantes Logo que pensou nisso, de súbito

122 Água da Fonte Novembro de 2012 incorporou-se a seu lado, diante da chamava atenção por apresentar-se mui- um velho filme que se desmancha no livraria, num dos cantos da praça, to puída. Quis contar-lhe sobre o livro ar, desapareceram as casas, os objetos, M., um advogado seu contemporâneo, e o anúncio e sobre o seu desconcerto o ambiente e as pessoas que nele apare- retirado e já idoso. Mostrava-se com com o que estava acontecendo. Mas M., ciam. Para Rodolfo, ficaram somente a a mesma aparência que tinha quando contrariando a segurança e loquacidade inquietação e o mistério — que nunca jovem: boa estampa, um vistoso bigode que sempre o caracterizaram, hesitou, mais conseguiu decifrar — do anúncio a atravessar-lhe a cara, e a calva que já parecendo amedrontado, sem nada res- insólito dentro de um livro velho, que começava a devorar-lhe a cabeleira ain- ponder. Falando de modo desconexo, o o dava como chefe de torturadores no da negra. Carregava uma grande pasta que fez foi fugir apressadamente, como Panamá. e vestia um longo capote escuro, que o coelho da fábula de Alice. lhe passava abaixo dos joelhos, — esse Assim terminou a alucinação de capote Rodolfo o reconheceu de tempos Rodolfo: com a fuga precipitada de melhores — e uma velha gravata, que, M., as luzes apagaram-se e desfez-se o (Luiz Juarez Nogueira de Azevedo é Mestre em Direito embora conservando o brilho da cor, cenário. Como um castelo de cartas ou e membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Poesia júlio perez Império do novo

Ergue-se o novo Como recuperar no lugar do antigo. a vida de uma casa revelada Apaga-se da memória nos tijolos um pouco - gastos muito na madeira da história – carunchada de Passo Fundo. recuperada Casarões falquejada que vêm abaixo pela vida? de mansinho para não despertar Impossível! o ódio escarninho de quem ali O espírito que a habitou também já navegou se vê um pouco para outras paragens. derrubar. Desalojaram-no. Roubam o passado Volta para o tempo comum que é o alimento de um povo que o mantém de quem por anos ninguém se sente devedor. em determinado Terá a propriedade lugar. tal autoridade Ainda haverá de passar para abolir muito as idades até que outro espírito de quem as viveu? habite “No creo o novo Pero que derrogou o antigo. que las viviendas E até lá no hay más, já não garanto ah, no hay!” poder chegar. E não há quem as resssuscite depois de mortas. (Júlio César Perez é membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 123 Aldo Battisti e a Confraria do Bar Oásis

(foto: karina oliveira) LUIZ JUAREZ NOGUEIRA DE AZEVEDO

ldo Battisti, 72 anos. Meu contemporâneo e amigo fide- A líssimo.De profissão lojista, que ele, com orgulho, se intitula. Em verdade, deu continuidade a tradicional comércio de calçados, hoje um grande magazine de confecções e moda, inicia- do por seu pai, João Battisti, em 1941. João Battisti era um sapateiro italiano que veio se radicar em Passo Fundo, onde constituiu família, casando-se com D. Giovana Bettinelli (Nina), da qual teve três filhas e mais o Aldo. Em sua empresa familiar, Aldo trabalhou desde os verdes anos. Já adulto, prosseguiu e incrementou o negócio da família, auxiliado por sua esposa e agora pelos filhos, nos quais incutiu uma rígida ética de honestidade, eficiência e disciplina. Fisicamente, hoje é de estatura média. Antes era mais alto que eu e deve ter tido sua altura reduzida por causa da idade. Branco, por sua ascendência italiana pelos quatro costados. Antigamente, era gordo e usava vastos bigodes, removidos há alguns anos, juntamente com uma parte considerável do seu peso. Gosta de chapéus — algumas vezes engraçados — e veste moda esportiva algo avan- ções, as memórias, os documentos e fo- do bar, e de seus eficientes funcionários, çada. (Diz que, por ser empresário da tografias e o mais que se imaginar. Tem após o almoço vão todos os dias de moda e ser jovem a clientela de sua loja, o que chama de “acervo”, uma espécie semana ao Oásis, onde trocam ideias tem que se vestir como jovem). Muito de museu, contendo recordações de sua e se comunicam sobre os mais diver- simpático e bom conversador, costuma vida e dos seus e toda sorte de objetos sos assuntos. Esses são, em primeiro contar detalhadamente todas as histó- que lhe vieram parar às mãos. Por isso, lugar, medicamentos, saúde, médicos rias, as dos outros e as suas, inclusive as sempre digo que sua principal vocação e laboratórios. Para isso temos uma que dizem respeito à sua saúde, de que deveria ser a de museólogo em vez da de competente orientação, pois contamos cuida escrupulosamente, submetendo-se comerciante. É dado a organizar festas, com nosso presidente, Dr. Donadussi. todos os anos aos mais diversos tipos encontros e jantares, sempre sabendo Em geral fala-se de tudo: de aeronáutica, de exames médicos. Bem-humorado, encontrar e recomendar locais e tendo pois temos dois ou três afamados pilotos boa companhia, extremamente leal e sempre à mão a lista de convidados, entre nós; do preço da soja e do gado, afetuoso, principalmente com sua fa- conforme os diferentes grupos que já que há produtores e plantadores; de mília e seus amigos. Não cultiva ódios frequenta. É verdade que participa de mortes, velórios e sepultamentos — ou rancores. Mas, como bom italiano, várias turmas de gastrônomos. pois, pudera, estamos sempre atentos às sabe reagir a qualquer desfeita. Muito Uma delas é a Confraria do Bar necrologias; lembramos grossos escân- meticuloso e detalhista, sua vida é um Oásis, na qual eu também me incluo. dalos, de adultérios célebres a famosas primor de organização. Tudo para ele é É um grupo de senhores, em maioria vigarices, passadas ou atuais, que tive- organizado: seu negócio, seus arquivos, passados dos 70 anos, que, sob a atenta ram como teatro a nossa querida cidade. seus pagamentos, as datas, as recorda- e silenciosa presença do Castanho, dono Afinal, somos páginas vivas da história

124 Água da Fonte Novembro de 2012 da cidade, principalmente dos tantos escândalos e fatos escabrosos que aqui se passaram. Explicavelmente, ao con- trário do que se pensa, pouco falamos de sexo e de mulheres, assuntos sobre os quais já estamos meio esquecidos ou nos mantemos discretos. Embora tenha- mos entre nós professores da Faculdade de Direito, célebres advogados e até promotores aposentados e um juiz do juizado especial, o querido colega Ivo Tasca (já tivemos até juízes de direito), pouco falamos em direito ou assuntos forenses. Mesmo que nosso grupo abranja um perspicaz analista político, o Aniello D’Arienzo, a política, que já foi um assunto preferido, é cuidadosamente evitada, pois é da sabedoria geral que se deve evitar discussões sobre política e religião. Tamanha é a curiosidade que nossas reuniões despertam na cidade, que às vezes aparece algum curioso, ávido para especular sobre os assuntos tratados. Até senhoras ou jovens da nossa sociedade, de quando em quando, e timidamente, assomam à larga porta. Sempre, — fora um caso lamentável acontecido há alguns anos, — são bem tratadas, con- A vida na maior idade vidadas às nossas mesas, para saborear o indefectível cafezinho e alegrar e inte- SELMA COSTAMILAN grar o ambiente, que é invariavelmente de cordialidade e respeito, salvo alguns ossa vida, pequena partícula do imenso universo, é um barco que maus humores ou mal-entendidos oca- segue, às vezes às cegas, encontrando aquela paisagem triste e vazia, sionais, logo desfeitos e esquecidos. que pode ser superada pela beleza, pelo carinho e pelo amor, onde Aldo é o responsável pela organização N o barco encontra a luz, o caminho, porque a vida também é a mensagem da dos jantares, que são mensais e, a cada FÉ. O sorriso e o rosto gentil são o estímulo que o Senhor recomenda, para vez, pagos por um confrade diferente. dar alegria a quem convive conosco. Vencer os obstáculos da velhice, como Os nomes, ou surgem espontaneamente, nos simples versos a seguir, nos trará otimismo e felicidade. ou são sugeridos por ele. E ai de quem recusar ou tentar protelar o compromis- so. Para ele, que é a alma e o líder do “Ao notar uma ruga no rosto, Também, a energia corporal, grupo, uma espécie de primeiro-ministro E que outra mui perto vem vindo, Pouco a pouco, vai diminuindo, do presidente Donadussi, é uma questão Não lamente, não tenha desgosto, Mas o espírito é imortal, de honra que não deixe de acontecer Envelheça, mas sempre sorrindo. E, por isso, envelheça sorrindo. nenhum encontro mensal. Mostra-se im- placável com os recalcitrantes, quando Se o cabelo começa a pratear, Envelheça, mas sempre sorrindo! se atrasam ou se omitem em organizar Semelhante ao luar; fica lindo! É uma arte que deve aprender, — e pagar — os jantares. O bom é que E, por fim, você vai gostar. E verá como um céu se abrindo, tudo costuma terminar em harmonia, Envelheça, mas sempre sorrindo. Pra fazer todo o mal esquecer.” geralmente num dos salões do Clube Comercial, com o grupo entusiasmado pelos incomparáveis manjares e vinhos, (Selma Gandini Costamilan ocupa a cadeira N° 26 na Academia Passo-Fundense de Letras, cujo Patrono é Aureliano de Figueiredo Pinto. É autora das obras: “Conhecimento de Valores” (II Volumes em 1968), e pela simpatia proporcionada pelo casal “Passo Fundo-Nome Próprio Feminino” (2001) e “A Trajetória de um Pioneiro, César Santos” (2005). Biasi. Titulação: Pedagogia especial (UPF), Magistério, Serviço Social (CPOE/SEC), Teologia da Pastoral (UPF), Canto Orfeônico. Assim vamos nós seguindo, por esta Atividades e cargos: Além de 1 ° e 2° graus; quadra da vida, com Aldo Battisti e o Coordenadora do Programa Estadual SEDEP (construção das escolas “Brizoletas”); Presidente do Conselho de Assistência aos Presidiários; grupo do bar Oásis. Coordenadora do projeto MOBRAL e Cursos Populares; Diretora do CEBEM (Centro Municipal do Menor); Coordenadora e Supervisora do Programa de Assistência ao Educando da 7° DE; e (Luiz Juarez Nogueira de Azevedo é Mestre em Direito, Diretora Regional da FEBEM. membro da Academia Passo-Fundense de Letras e Atualmente, colabora com artigos em revistas e jornais locais.) frequentador do Bar Oásis.)

Água da Fonte Novembro de 2012 125 Poesia

Cumplicidade

Um dia convidei a estrela-d’alva, pra ir comigo a visitar a Lua. E ambas saímos, no raiar da alba, sem encontrar um vivente pela rua.

Corri garbosa pelas alamedas, enchendo o peito de frescor e lumes. E foi então que descobri as veredas onde passeiam, sutis, os vagalumes.

Neste momento, de ventura extrema, guardei pra sempre aquela imagem crua: Deram-se as mãos minh’ alma e meu poema, pra engalanar o céu da minha rua...

Cantares

Canto as searas castas. Canto as gramíneas doces. E o verde que verdeja, sobre as floreiras belas, entre as palmeiras nobres, que encantam meu viver.

E assim me ponho em festa, vestida de princesa, pois quero ser parceira Parceria do verde que eu adoro, nos olhos de esmeralda, Estrelas fulgem na noite sorrindo aos corações. e eu as jogo no papel, q u a i s g o t í c u l a s b r i l h a n t e s , a verter favos de mel.

São as guardiãs da ventura, Anjo no céu debruado de luz que, nas janelas da Lua, Descendo a escadaria do céu, espiam os meus sonhos nus. um anjo azul veio me procurar. Ó parceiras encantadas, Queria aprender a compor versos, vêm pousar no coração! juntar palavras e brincar ao léu. Que meus motes serão raios, a inflamar-nos de paixão!... Eu lhe ensinei as manhas da poesia, chamei-o perto e lhe mostrei a via.

E foi assim que se gerou o sonho, num berço tão macio quanto risonho...

Depois saímos pela estrada afora. E nunca mais o anjo foi embora...

126 Água da Fonte Novembro de 2012 helena rotta de camargo

Fragmentos do cotidiano

A ternura pode ser tão fluida, a ponto de confundir- se com a opalescência da noite entretecida de luar.

Será que é civilizado o povo que entope de lixo a rua onde mora, a água que bebe e a praça que frequenta?

A formação do caráter começa na maternidade e encerra-se na tumba.

O medo funciona como a ferrugem na dobradiça: emperra e corrói.

Presumo que seja o conhecimento a espinha dorsal do progresso, e o trabalho, a sua alavanca.

Que misterioso mago é o coração, que anda sem- pre às voltas com truques e malabares!

Quando o eixo da esperança começa a emperrar, está na hora de lubrificá-lo!

O coração só se entregará às carícias da harmonia, quando estiver curado de suas enxaquecas.

Na taça dos relacionamentos, além de vinho e champanhe, pode-se beber também peçonha e vinagre.

Toda nova experiência, benéfica ou frustrante, pal- pável ou abstrata, individual ou coletiva, otimiza crescimento e renovação.

Se você for coser o tempo, a fim de torná-lo reti- líneo, não esqueça de tramar o nó na ponta do fio!

Haverá ave de melhor agouro do que a prosperi- dade dos filhos?

Nas águas do meu passado, eu me ponho a garim- par os risos que se perderam, entre as espumas do mar.

Só a mente radiante, só a carne saciada, põem lenha na trempe, dão caldo à paixão...

Quisera adotar como filha aquela nuvem serena e branquíssima, que desperta, em meu interior, a leveza e a candura da menina que zarpou de mim!

Extraídos dos livros: Monólogos de uma peregrina e Fulgores, (Helena Rotta de Camargo é membro da Academia Passo-Fundense de Letras.) Dores e Amores.

Água da Fonte Novembro de 2012 127 XIKO GARCIA: O dom é inerente a cada ser humano

GILBERTO PACHECO na História do Homem, contada musi- calmente. Confunde-se a uma realidade irreal, que se parece a minha, tua. Nossa sso fica evidente, ao se contatar e até Vossas Verdades. As notas musicais com o poeta Francisco Garcia – fazem essa maravilhosa confusão, que I Cadeira 25 da respeitada Academia Xiko Garcia canta canta e canta, como Passo-Fundense de Letras. Orgulho da uma ave sonora ou como aquela cigarra gente de Colônia Miranda, Coxilha e lendária. Passo Fundo. Um senhor menestrel Xiko Garcia é mais Gaúcho, por ter do planalto médio, que toca violão, nascido na Terra de São Pedro, mas Xiko declama, canta e facilmente encanta as Garcia seria mesmo, mais esse menes- pessoas sensíveis! trel, que corre a gerações, encantando o Xiko Garcia se torna rápido um ser Mundo. Dum modo melodioso. Bonito invulgar. e triste! Ou, triste, melodioso e bonito!, Modesto, ouvinte atento, apreciador brotarem e se espalharem face a fora, que mostra em momentos a alma e o de cultura e dono de uma palavra tipo pois em instantes, consegue penetrar no espírito do Homem. “gaudéria”, que é aquela que vem, que âmago das pessoas, sem pedir licença! Deus, acredito com aquela visão mais vem... – E solta, ferina, picante e gentil, Xiko Garcia, tem. Tem sim a Alma tenra e sincera de barbado criança, o cuja ordem não repara a sequência. Campeira, típica do Homem Gaúcho do abençoa ricamente, pois permite que Xiko Garcia parece ter herdado a Campo, onde em momentos, se torna o Xiko Garcia sobreviva, independente de sabedoria mística de seu mais famoso próprio Beiçudo que tem uma História sua música, que raramente oportuniza e fantástico protetor, o Santo de Assis, Épica no Rio Grande do Sul, onde dei- vida fácil e abonada a essas Criaturas que sabemos fez irmãos, o Sol, a Lua, xou registros e mais registros de Fôrça Sensíveis, que contam e mostram a Vida os pássaros, quanto, revolucionou a Fé e Bravura, quando montado por Heróis que a gente imaginaria poder levar e, Cristã, em seu tempo aqui na Terra e, até e Gaudérios ou, simplesmente, pelos nas palavras que Vinicius, Tom´s, Juca procedeu a segunda parte da Ave Maria. Guris de Colônia Miranda, Coxilha ou Chaves, Roberto Carlos, Xiko Garcia e Como esse Chico de Assis, nosso Xiko Passo Fundo, quanto pelos de outras outros tantos , sugerem e cantam por Garcia, canta canta e ... encanta!, se nos tantas Querências, quando já não eram nós!. dispusermos a ouvi-lo interpretando mais aqueles “alazões”. Exaltá-lo e mostrá-lo como me foi suas composições (interpretações várias Vendo e ouvindo Xiko Garcia, não oportunizado... sinceramente Xiko da Vida em seus múltiplos momentos). pude deixar de compará-lo, aquele Garcia, uma Benção Singular! Xiko Garcia é capaz de fazer as lágrimas menestrel, que Mundo a fora aconteceu

(Gilberto Pacheco é membro do Centro de Letras de Curitiba/PR.)

128 Água da Fonte Novembro de 2012 Poesia sante uberto barbieri in memoriam Chiquillo de mi camino

chiquillo de mi camino Chiquillo de mi camino, no he podido olvidar tus ojos negros ¿cuál era tu nombre? que, en Ia estación, ¿de dónde habías venido? a través de Ia ventanilla del tren, En balde cierro mis ojos para no ver tu imagen. me miraban fija y dolorosamente Te veo siempre, aquí, allí y más allá, y con aire aturdido, y venir a mi encuentro de todas partes como de quien hace mucho tiempo para multiplicarte delante de mí que no veía una mesa puesta. hasta que te conviertes en miles y millones... No, no puedo olvidar tus ojos negros En ti se encarnan todos los niños de Ia tierra que me decían, mientras yo comía: que, como tú, mi chiquillo, “ ¿Por qué tengo yo tan poquito tienen hambre y tíenen frío, mientras tú tienes todo Io que deseas?” andan errantes y no tienen amor.

Chiquillo de mi camino, Por tus ojos, todos ellos me miran; no he podido olvidar tu rostro triste, bafo tu ropa rota todos aquellos tiemblan; de quien está en un mundo ancho y grande por tu mano, todos aquellos suplican; huérfano de cariño, y en tu tristura, todos ellos gimen. vacío de esperanza Y tras tuyo, y falto de aliento. bendiciéndote con ademán de misericordia, Esa tu desconsolada, sucia carita se yergue un HOMBRE, me interroga sin cesar: con Ia frente surcada por el dolor, “ ¿Para los niños como yo, señor, con los ojos severos y penetrantes no hay otra cosa que Ia calle y el viento?” que abre su boca para decirmos amargamente: “ ¿Empero, no os Io había dicho yo, Chiquillo de mi camino, y ¡hace tanto tiempo! no he podido olvidar tu ropa harapienta: que no es Ia voluntad de vuestro padre, ese saco y esos pantalones míseros el que está en los cielos, que el viento quería llevarse a pedazos, que ninguno se pierda de estos pequeñuelos?” mientras tus pies pisaban, descalzos, Ias piedras húmedas y frías del andén en ese día de lluvia y niebla, (Sante Uberto Barbieri , 1902-1991, foi fundador do Grêmio mientras yo calentito y abrigado, Passo-Fundense de Letras, em 7 de abril de 1938.) comía en el coche muy tranquilo. Esa tu ropa rota de niño mendigo todavía, esta noche, me interroga: “ ¿Cuando, señor, para los niños como yo habrá bastante pan, abrigo, escuela y amor?”

Chiquillo de mi camino, ¡Si tú supieses, realmente, con qué ansiedad deseé que el tren se fuera presto para no ver más esa tu mirada triste, y ese tu rostro pálido y esa tu ropa en tiras, y poder, así, terminar en sosiego mi merienda! Pero en vano se fué el tren; esas tus gracias que agradecieron mi limosna quedaron clamando duramente en mi oído: “ ¿Para un hambre tan grande como Ia mía sólo tan poco me das tú, oh señor?”

Água da Fonte Novembro de 2012 129 Passo Fundo e Posadas

(fotos: arquivo o. g. ayres)

ODILON GARCEZ AYRES

scuto Tarragó, Montiel y ahora Los Chalchaleros. Pout-pourri E de chacareras, zamba de mi esperanza, sapo cancionero, illorare, cautiva...saio lá fora, ouvindo de longe, “Retorno” de Salvador Miqueri, mirar a noite, que está rosada com buracos azuis, sem estrelas, amanhã será de sol, lembranças mil...Viejo, curte tua sauda- de, tua idade, solito, tua mocidade se foi, ela S, de solteira, deslumbrada, alumbra, no Moulin Rouge do Passinho....não a vês, imagina, nos teus braços, dançando uma cumbia, um bolero, te quiero, mas não te tengo ni, tan poco te possuo... Estúdio TV Encarnación, Paraguai esquecida da vida, de mim, danças, sorves o néctar etílico, esquecerás de de que alguém o definiu assim: El Turco meida (1ª Prenda) e o fotógrafo oficial, tudo, rodopiando, amanhã lembrarás do és um grande, mais que um grande, lo Deoclides Czamanski, todos habilmente teu amigo, teu admirador, que por ti... mas grande! conduzidos pelo Sr. Eloy Pinheiro Ma- su amor...no morirá, jamais! Jamás!” Que frase, que legado! chado, proprietário da Empresa Vera Estava nessas divagações, quando me Não mui lejos, no ano de 1966, o Cruz, passando por Carazinho, Cruz lembrei que nos anos sessenta, eu, Centro de Tradições Gaúchas Getúlio Alta, Ijuí, Santo Ângelo, Guarani das profundo admirador das músicas e do Vargas, modesto, mas em constante Missões, Cerro Largo, Roque Gonzalez, folclore argentino, pegava o rádio ve- disputa com seu irmão maior, o Lalau Porto Xavier, Balsas, no rio Uruguai, lho que pesava mais que uma arroba, Miranda, recebe um convite muito es- San Javier, Itacuararé, Apóstoles e, e o punha na forquilha entroncada do pecial, retribuindo a visita do CCT Peña finalmente, Posadas. Foram 560 quilô- salso-chorão, que bebia água dum filete, Itapuã, que aqui viera para abrilhantar metros, de estradas de chão, distantes afluente da sanga Independência, local a nossa 1ª Efrica, e participar do 4º de Passo Fundo. que captava, com especial nitidez, a Festival Internacional de Folclore do Lá foram, com alegria contagiante, Rádio El Mundo, para ouvir direto Litoral, realizado na cidade de Posadas, recepcionados pelo Peña Itapuã, In- do Festival Nacional de Cosquín, Los capital da Província de Misiones, num tendente Municipal, e pelas rádios e Chalchaleros, Los Tuco-Tuco, Jorge anfiteatro, especialmente iluminado, nas televisões de Posadas e Encarnaciõn, no Cafruni, Coco Diaz, Eduardo Falu e barrancas do majestoso rio Paraná, para Paraguai, (que não possuíamos acá), e tantos outros. E, sintonizado, ficava até apresentações de músicas, cantores e hospedados em hotel central. Ali houve madrugada alta, ouvindo o que gostava grupos de folclore, até alta madrugada. churrascadas e apresentações com a e gosto. Uma luzidia delegação foi formada gauchada argentina e, de brinde, ainda Ali por 1965, contam que Los Chal- a mando do inolvidável Prefeito Mario foram levados a conhecer a Redução de chaleros foram num Festival de Folclore Menegaz; capitaneada pelo jornalista, San Ignácio, mundialmente reconhecida em Mar del Plata e, como tantos outros advogado e escritor, Jorge Edeth Cafru- como uma das jóias raras do Jesuitismo conjuntos, recém-começando a cami- ni, pelo Poder Executivo, pelo Vereador Sul Americano; Ajá no esplendido pal- nhada musical, viram e ouviram aquele e Bel. Victor Hugo Lacerda, pelo Legis- co, encontraram-se com: Os Nocheros, corpulento Turco barbudo cantando com lativo Municipal e a peonada do CTG Chango Leguizamon, Quinteto Formo- seu violão: “Zamba de mi esperanza”. Getúlio Vargas, pelo Patrão Velocindo sa, Maria Helena, Mirta Denis, Fermin Apaixonaram-se pela letra e a música, Pinto de Lima, bem escorado pelos Fierro, Rosa Garling, Conjuntos de gravaram-na, e a mesma se tornou su- companheiros Amador Almeida, Aldino Danças de Posadas e de outras Provín- cesso nacional, atravessou fronteiras, Schmidt, Ercy e Oscar Pinto Veira, An- cias; com a famosa Argentina Rojas, a e hoje é cantada e decantada, da Pata- tônio Carlos Vieira, João Vieira, Vilson Libertad Lamarque dos castelhanos, e gônia ao México, e no Brasil também. Freitas, Amilton Borges, Conrado Wolff, o famoso tradicionalista, “Jorge Cafru- Isso foi possível, graças a Jorge Ca- Clori Pinto de Lima, Marli Almeida (2ª. ne” (com “E” no final), e parente como frune, que também, musicalmente, se Prenda), Sirlei Locatelli Vieira, Oscar o próprio se declara, do nosso hoje tornou um ídolo nacional, a tal ponto Ribas, Argemiro Oliveira, Zulmira Al- também imortal escritor, Jorge Edeth

130 Água da Fonte Novembro de 2012 Palácio do Governo de Missiones, Argentina

Cafruni, autor do ícone histórico “Pas- Foi também o reconhecimento de tal não sejam olvidados, mas possam ser so Fundo das Missões” e do romance fato pelo Prefeito Mário Menegaz que retomados e revitalizados, alicerçados heróico indígena, “Irapuã”, que assim determinou, ao CTG Getúlio Vargas, no passado histórico que nos uniu, atra- escreveu nesse memorável encontro: a continuidade desse entrelaçamen- vés da salutar troca de visitas entre as “Dizemos que o Jorge Cafrune ar- to, resultando na paz entre os povos, duas cidades, e mais em especial, entre gentino é famoso, sem mentir e sem através da dança e da música, porque o CTG Getúlio Vargas e o Peña Itapuã, adulações à nossa família. Onde quer essa extinta agremiação, à época, fora da Capital de Missiones. que ele se encontre, as multidões o cer- laureada em várias apresentações. Além Por ocasião da 1ª Efrica, realizada cam, buscam autógrafos, querem tirar disso, detinha uma excelente Invernada de 19 de novembro a 4 de dezembro fotos, e isto com aclamações de todos de Danças, e andara por Pato Branco, de 1966, o Peña Itapuã visitou Passo os lados. Quando nos acercamos dele, Chapecó, Francisco Beltrão. E sua pri- Fundo, oportunidade em que aqui apor- para propiciar um mútuo conhecimento, meira prenda, Jussara Piccini, fora eleita tou com luzidia delegação, realizando fomos arrancados de sua frente, puxados a “Mais Prendada Prenda do 7º Rodeio apresentações memoráveis, no pátio como intrusos, e não houve remédio Internacional de Vacaria”. Foi lá, naque- da Feira, (hoje, fundos da Câmara, no senão adiar o cerimonial. Apresenta-se le memorável Festival de Folclore, que campo de futebol), nas dependências ele sempre com longas barbas. É gordo e se deu o encontro de dois parentes famo- do CTG G. Vargas, e num baile do possante. Anda sempre a caráter. Revive sos, o cantor Jorge Cafrune e o escritor CTG Lalau Miranda, onde o Locatelli em sua plenitude as tradições dos gaú- Jorge Cafruni, mesmo sangue, talentos patrocinou uma briga de arma branca, e chos argentinos. Suas canções revivem diversos, orgulho de Missiones e do Rio os Argentinos, entusiasmados, gritavam a alma de seu povo simples e bom. E o Grande do Sul. Fez também com que a “ Son los gautchos mismos”, pensando povo delira, à sua presença, e vibra com delegação Passo-Fundense, encarnada que a baderna era uma representação seus cantos, que traduzem sentimentos e no CTG Getúlio Vargas, trouxesse, encenada. paisagens de velhos e heróicos tempos.” do 4º Festival de Folclore de Posadas, Em retribuição, o Prefeito Mário Me- Além do seu parente, Jorge Edeth vários troféus de destaque, como o de negaz mandou o CTG Getúlio Vargas Cafruni, o único passo-fundense que Vice-Campeão de Conjuntos de Dan- participar do 4º Festival de Folclore do conseguiu a atenção do artista Jorge ças Folclóricas; semeasse durante uma Litoral de Posadas, comandado pelo Cafruni, foi o Dr. Vitor Hugo Lacerda, semana a amizade entre os povos e, o jornalista, advogado e escritor, Jorge que subiu ao palco e arriscou um due- mais importante, não fossemos registros Edeth Cafruni, secundado pelo vereador to perfeito, granjeando a amizade do jornalísticos, fotográficos e orais, não e advogado, Victor Hugo Lacerda e pelo argentino. ficaríamos sabendo hoje, que lá naquele Patrão Velocindo Pinto de Lima, como Aqui estão, para a posteridade, vários instante, se criava o embrião, o primeiro, carinhosamente o chamávamos, cujos fatos, ou seja, a história de uma música o pioneiro contato cultural entre Passo fatos estão registrados em outra crônica. que se tornou universal, “Zamba de mi Fundo e Posadas, que prosperou, e até Em 1967, após a realização do Con- esperanza”. Foi o pioneiro gesto do hoje povoa o nosso imaginário. gresso Tradicionalista de Gravataí, Centro Cultural Tradicionalista Peña Revendo os diários passo-fundenses, o CTG Getúlio Vargas, através deste Itapuã de Posadas, República Argentina, estou procurando determinar o início do cronista, convidou o Grupo de Folclore de vir abrilhantar a nossa 1ª EFRICA; intercâmbio cultural, entre as cidades “Los del Lazo”, da cidade de Mar Del (sugestão minha ao meu ex-patrão e de Passo Fundo (RS) e Posadas (RG), Plata, para participar dos festejos alusi- vice-prefeito Adolfo João Floriani). na década de 60, para que esses fatos vos à Semana Farroupilha daquele ano,

Água da Fonte Novembro de 2012 131 ao qual, oportunamente, retornaremos. Na segunda Efrica, realizada de 5 a 13 de outubro de 1968, o Peña Itapuã volta a Passo Fundo como convidado especial, juntamente com El Pericõn de Monte- vidéu, sendo realizado um fandango de despedida pelo CTG Getúlio Vargas, nas dependências do CTG Osório Porto, animado pela dupla campeira, Oscar Vieira e Adão dos Santos, fatos esses pouco comentados pela imprensa local. Mais ou menos estabelecida esta cronologia, outra vez, o espírito cultu- ral e empreendedor do Prefeito Mário Menegaz, mais do que justificadamen- te, atribuiu ao CTG Getúlio Vargas, Invernada de Danças do CTG Getúlio Vargas a incumbência de fazer, novamente, 560 quilômetros, para ir até a cidade Amador Almeida, Argemiro Oliveira, Secretário de Educação; e um quadro a de Posadas, a fim de representar a ci- o motorista da Empresa Vera Cruz, óleo feito em couro, presente especial do dade de Passo Fundo, na inauguração Orides, a sra. Dinorah , a mãe da Jus- CCT “El Ceibo” de Posadas. (A flor de do moderno galpão crioulo do Centro sara, a menina Valquíria, o Bassani, do corticeira é um dos símbolos nacionais Cultural Tradicionalista Peña Itapuã, Ipiranga Central, Antônio Carlos Vieira, da Argentina). determinando ao seu Secretário da Juvenal Nunes de Souza (Tio Naco), e Percorrendo essas histórias, é visí- Fazenda, Alcides Tarrasconi, a chefia o campeoníssimo dos rodeios da Vaca- vel o comprometimento do Prefeito da delegação da Capital do Planalto. ria, e o trovador Pedro Ribeiro da Luz, Mário Menegaz, com a nossa cul- Representou o Legislativo Municipal, completavam o aparato. tura regional e rio-grandense, sem o saudoso vereador e radialista, Dino À moda gaúcha, a delegação foi hos- contar a acadêmica, que ajudou a Rosa, capitaneado pelo patrão Brasileiro pedada em residências familiares de implantá-la e solidificá-la, lembrando Aquino. argentinos do Peña Itapuã, comungando nesse aspecto o patrocínio do Poder Como a amizade recíproca já estava a mesma cultura, saboreando empanadas Público às excursões culturais de todos estabelecida e solidificada, é talvez por e chipas, carreteiros e vacas atoladas, os Centros de Tradições Gaúchas de isso, há um hiato nas informações, as como relataram o Patrão Brasileiro Passo Fundo, riscando o Rio Grande, quais estamos resgatando, através das Aquino, o Eurli Grando e o Algacir o Brasil e além fronteira, na Argentina fotos cedidas pelo cantor e violonista, Costa, hospedados na residência do inol- e Paraguai, além de enaltecer nossa na época, Posteiro da Invernada Cultural vidável cantador e jornalista, Humberto cultura através dos músicos, cantores, de Danças Eurli Grando, que participou Rottoli Carvallo, o Tuti. declamadores, trovadores e dançadores, da delegação e formou um trio com o Foram cavalheirescamente recebidos desde o canto do “Piazito Carreteiro”, Almir e o Jesus Algacir Costa, fazendo na Intendência Municipal, na Secretaria até a mais sofisticada e perigosa “Dança apresentações musicais nas rádios e de Educação, no Palácio do Governo – dos Facões” , a infantil Dança do Pezi- televisões de Posadas e Encarnación, pelo Capitão Hugo Montiel – nas rádios, nho” dos gajos do Faial, ou cantando que no Paraguai. nos periódicos e nas redes televisivas, “o “Tatu” foi encontrado lá pras bandas Tal distinção dada ao Getúlio prende- nos colégios, no CCT “El Ceibo”. Cor- de São Sepé, muito triste, acabrunhado, se também ao fato de o mesmo ter-se taram também a fita inaugural do CCT de freio na mão, e a pé”, ou ainda, pre- destacado em comentada califórnia pelo Peña Itapuã, nessa festança que durou senteando gaúchos e autoridades, com o Paraná, com apresentações em Pato oito noites e oito dias. livro “Passo Fundo das Missões”, prova Branco, Francisco Beltrão e Clevelân- Regressaram laureados e repletos de cabal, documentada por Jorge Edeth Ca- dia, onde conquistou vários primeiros recuerdos, os quais foram entregues fruni, da nossa Redução Missioneira de lugares: no 1º Rodeio de Lages/SC, o em memorável churrasco, oferecido ao Santa Tereza de Los Piñales, do Curity título da mais Bela Prenda, em Passo prefeito Mário Menegaz, que se fazia ou do Igay, como queiram denominar, a Fundo, e ainda foi eleita a mais Prendada acompanhar do vice-prefeito, Adolfo velha Passo Fundo das Missões. Prenda do 7º Rodeio Internacional de João Floriani, do Major Grey Belles e Para encerrar e coroar mais esse feito Vacaria. da elite da sociedade planaltina, opor- dessa gente mui gaúcha do extinto, mas Jussara Piccini, esta joia rara do tra- tunidade em que recebeu das mãos do não olvidado, Centro de Tradições Gaú- dicionalismo passo-fundense, integrava patrão Brasileiro Aquino, uma miniatura chas Getúlio Vargas, o Prefeito Mário a delegação, cantando, declamando e em bronze dourado, de um cavaleiro, Menegaz fez a entrega de um Cartão dançando, juntamente com os dançado- com vestes típicas do folclore argen- de Prata, ao Patrão Brasileiro Aquino, res, José e Iolanda Emanuelli, Conrado tino, numa atitude aguerrida, e nítida agradecendo pelos serviços prestados à e Zulmira Wolff, Almir e Ruth, Romeu parecença com os gaúchos sul-riogran- nossa terra, nas plagas platinas. Machado e Ione Carlassara, Eurli denses, regalo oferecido pelo Cap. Hugo Grando e Jussara Piccini, Osvaldo e Montiel, Governador da Província de

Orfelina Mello, e Sirlei e Rui Meder. Misiones; uma bandeira argentina, (Odilon Garcez Ayres é escritor e membro da Academia Adão Pires era o gaiteiro da Invernada. oferta honorífica do Sr. Máximo Verves, Passo-Fundense de Letras.)

132 Água da Fonte Novembro de 2012 A morte do centauro

(foto: arquivo h. r. k. lisboa) HUGO R. K. LISBOA o grupo de Equoterapia da Universidade de Passo Fundo, onde, com sua equipe, usava a equitação para o tratamento de ão sei bem onde conheci o crianças com dificuldades. Jovens com professor Péricles Saremba autismo, síndrome de Down, paralisia N Vieira, mas foi, provavelmen- cerebral, se beneficiavam enormemente. te, na Universidade. Ele, conhecido e A atividade, que se resumia em interagir respeitado professor de Educação Física e comandar com carinho outro ser vivo, e doutor em Educação, era uma pessoa lhes estimulava o poder, melhorava a fácil de se relacionar. Ficamos amigos habilidade motora, a musculatura e o logo, e pude conviver com ele por um a passo, para o lado de Coxilha onde comportamento. Dezenas de pessoas longo tempo, embora tenhamos nos ele me disse que tinha um restaurante passaram e se beneficiar na escola. Ele encontrado menos vezes que eu gostaria. com um bom bife e que deveríamos ir as acalmava. Participei com ele de uma seleção de algum dia. Entre as instruções sobre os Um acidente estúpido veio roubá- alunos, para o Mestrado de Envelheci- arreios: “não aperta as rédeas, deixa lo do nosso convívio. Não precisava mento Humano. Ele se aproximava dos só a ponta do pé no estribo, desça para ter acontecido. Acidentes são eventos candidatos e os acalmava. Ressaltava ajeitar os arreios...” fomos proseando, e inesperados e indesejáveis, e com o Pro- que havia necessidade da seleção, pelo aproveitando o cheiro da relva. fessor Péricles foi o que ocorreu. Nossa número de vagas menores que interes- Sabia que ele tinha tido sérios eventos cidade ficou menor, com a falta dele. sados, mas que todos eram bons, já que de doenças na família, mas não se quei- Fiquei devendo a ele muitas coisas. quem procura a vida acadêmica tem um xava. Era uma pessoa leve. Contava-me Não pude aceitar vários convites que me perfil diferenciado. Se não conseguir das suas andanças “diá cavalo”, por todo fez e que, se tivesse ido, teria melhorado, agora, conseguirá na próxima vez, dizia. o Rio Grande do Sul. As cavalgadas, teria me acalmado. Falamos por telefone Convidou-me um dia para cavalgar, e para buscar a “chama crioula” da Sema- recentemente e, entre outros assuntos, saímos de sua casa, no Bairro São José, na Farroupilha, eram da sua preferência. ficou a combinação para irmos comer o na qual havia as baias e a estrutura para Rasgou este estado em todas as direções, bife em Coxilha. a manutenção de vários cavalos criou- no lombo do pingo. Eram semanas ca- Ao desconsolo da família: pais, ir- los, de excelente origem e porte. Falava valgando o dia inteiro, e dormindo em mãos, mulher, filhos e de sua enorme baixo com os cavalos, fazia ruídos com estâncias ou onde desse, pelo caminho. roda de amigos, da minha enorme tris- a boca e movia-se, sem alarde mas com Tinha um enorme carinho pela história teza, resta imaginarmos seu exemplo na determinação. Entendiam-se. Colocava e pelos costumes do nosso estado. Duas vida, nos acalmando e orientando. arreios com maestria e, mesmo aper- vezes lo acompanhei, atendendo seu Prefiro acreditar nele, com seu sorriso tando a cincha ou botando o freio, na convite, no desfile de 20 de setembro. alegre, no lombo de um cavalo, dizendo: boca de animais de 500 kg, nunca os Era querido por todos do seu grupo Vou para outra ronda, e já volto! vi relinchar ou se mostrar assustados. “Cavaleiros do Planalto Médio”, e pela Acalmava-os também. gauchada da cidade. (Hugo R. K. Lisboa é médico e membro da Academia Atravessamos o Rio Miranda e fomos, Na sua parte como mestre, coordenava Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 133 Como foi que o filho de escravo, Felipão, tornou-se um proprietário de terra?

MAURO GAGLIETTI Terezinha Menna Barreto Barbosa. Aos composta por 4 ou 5 mil mulas2, mas, CARLOS ALCEU MACHADO 20 anos, já administrava a fazenda em a partir da referida data, passaram a ser que trabalhava, cuidando de rebanhos, transportadas umas 300 mulas, a cada e, ao que parece, foi um tropeiro de des- viagem de trem. E em São Paulo, o paga- propósito do presente trabalho taque, pois é lembrado por muita gente. mento dos animais adquiridos era feito é apresentar alguns aspectos Nessa atividade, tinha como missão com moedas de ouro e prata que, como O relativos às estórias que são procurar e adquirir boas tropas de gado lembra Maria Helena, eram chamadas contadas, em Passo Fundo e região, pelo melhor preço, regateando. Em suas de “patacão”. a respeito da figura de Felipe João da viagens, ele levava mula e trazia gado; As mulas vendidas para os paulistas Silva. Ouvindo esses relatos, a pergunta voltava sempre com um grande número eram usadas por eles para puxar o arado que surge, de imediato, é: como foi pos- de animais, que, na chegada, eram con- e, também, na colheita do café. Entre sível um filho de escravo ter-se tornado tados. Nessa contagem, nunca faltava 1915 e 1920, como conta a filha de Feli- um proprietário de terras no Rio Grande um único animal, fato que contribuiu pão, as mulas nasciam do acasalamento do Sul?1 para que Felipão passasse a ser conhe- das éguas com burrichós espanhóis. Assim, busca-se, nesses termos, se- cido por atributos como a honestidade, Esses eram burros maiores, mais encor- guir alguns rastros da trajetória de Felipe o respeito, a responsabilidade, a bravura pados, de pêlo claro na barriga e mais João da Silva, um negro filho de escra- e a dedicação. escuro no lombo. O costume era nunca vos, nascido em 1882, em Cruz Alta Ele se deslocava, seguidamente, a largar o burrichó no meio da manada. O (RS), numa localidade correspondente cavalo, para Vacaria, Erechim, Erebango retalhado, um cavalo, verificava quais ao atual município de Júlio de Castilhos e outras localidades do Rio Grande do as éguas que estavam “reinando”. En- (RS), que seria registrado somente dez Sul. A viagem a outros estados, como tão, estas eram separadas e “postas no anos depois, em 1º de maio de 1892. à cidade de Ourinhos (SP), onde fre- burrichó, para pegar cria”. As mulas só No final do século XIX, os filhos eram, quentemente negociava mula e gado, eram levadas para São Paulo com mais todos, registrados num único período. no início era feita a cavalo, passando a de três anos, pois, antes dessa idade, não Assim, um indivíduo podia ficar entre ser realizada de trem somente a partir aguentavam bem a viagem. Também cinco e dez anos sem registro. Foi isso o de 1954. Antes desse ano, a tropa era era preciso tomar cuidado em relação que aconteceu com Felipe João da Silva. às tropas de gado vacum que, antes das Chamado de Felipão pelos amigos e viagens de trem, para não perderem conhecidos, ele era um dos mais novos muito peso durante a tropeada, viajavam entre os quinze filhos – treze homens bem cedo e, à tarde, descansavam e eram e duas mulheres - dos escravos João alimentadas. Porfírio da Silva e Paulina Maria da Os animais para montaria eram os ca- Silva. Foi criado lidando com o gado, valares e muares. Porém, quando os per- trabalhando em lavouras e charqueadas; cursos eram muito longos, os tropeiros viveu até os dez anos com seus pais e, preferiam as mulas, uma vez que estas depois, morou com um padrinho em Pal- eram mais resistentes. Muitas vezes, meira das Missões (RS). Casou-se duas arreavam a mula à maneira tradicional, vezes e teve duas filhas, Leopoldina da utilizando baixeiro, cangalha, bruaca, Silva Oliveira, do primeiro casamento, ligador (ligal) e reata. O ligador era fei- e Maria Helena da Silva, do segundo to de couro de terneiro, por ser macio, casamento. e colocado por cima das bruacas, para Em 1893 - ano do início da Revolu- proteger os animais das chuvas. A reata ção Federalista -, já em Passo Fundo, era uma corda de couro, chata, com dois Felipão começou a sua vida de tropeiro ou três centímetros de largura e vários nas terras de Leda Maria Menna Barreto metros de comprimento, que servia para dos Reis, que as recebera de sua mãe, amarrar e conduzir o animal de carga.

134 Água da Fonte Novembro de 2012 (ilustrações: pinturas de Vasco Machado)

A mula que transportava o municio ou de folga, principalmente nos dias de – indivíduos “meio índios, meio mis- farnel ia sem nada na cabeça; apenas a chuva, os tropeiros, parados, trançavam turados, que não usavam roupa, faziam égua madrinheira levava um cincerro couro; faziam freio para os cavalos; balaios, peneiras, cestos, e sobreviviam no pescoço, mas não transportava nada. aproveitavam para providenciar tudo da venda ou da troca de produtos” - já Veríssimo da Fonseca (2004, p.86-87) aquilo de que fossem precisar durante a esperavam por eles, a fim de obter certa busca em Simões Lopes Neto elementos marcha. Os tropeiros traziam as notícias, quantidade de carne em troca de chuchu. para esclarecer os depoimentos acerca que as comadres se encarregavam de Felipão, quando retornava das viagens, da atividade dos tropeiros. Segundo o passar adiante. Quanto mais São Paulo dizia para Maria Helena que “comia de pesquisador: o termo mais usado pelo crescia, mais notícias chegavam. tudo”; só não gostava de chuchu. Ela tropeirismo é ligal. Não confundir tam- Os integrantes da comitiva eram es- esclarece também que, no período das bém com o ligar: ‘você não sabe o que colhidos “a dedo”, entre os irmãos, os tropeadas, as mulheres, que ficavam na é um ligar? Não é só, não Sr., o couro sobrinhos e os amigos da família, e o fazenda, tinham funções bem determi- de terneiro para fazer carona; é também critério para essa seleção era o da res- nadas: cuidavam da casa e dos filhos uma tira de guasca, chata, assim de uma ponsabilidade. Durante todo o percurso, pequenos; iam para a lavoura, onde meia braça, com um furo dum lado e era o próprio Felipão quem cozinhava plantavam e colhiam; socavam arroz e uma meia ponta de outro. Conforme para a comitiva que havia formado, uti- canjica; vendiam produtos agrícolas e, boleava um animal e ele caía: hom! lizando panelas de ferro, penduradas por principalmente, leite. Além disso, nesses ... era mesmo como botar uma liga de ganchos. A tropeada, contando a viagem meses em que os homens estavam fora, mulher, com perdão da comparação!’ de ida de Passo Fundo a Ourinhos (SP) e as mulheres não deixavam de frequen- (...) Repare que Simões Lopes Neto a de retorno, durava, aproximadamente, tar festas e as residências dos parentes, (Correr Eguada) chama de ligal também 90 dias. Então, os integrantes da comi- cujas famílias eram muito numerosas. a carona - feita de couro de terneiro. Os tiva – que reunia de 30 a 50 pessoas -, Durante as tropeadas ou após a tropeiros paulistas, mineiros e goianen- para garantir a sua alimentação nesse chegada da comitiva, frequentemente, ses usavam o ligal para dormir no chão, período, levavam umas três ou quatro aconteciam fatos insólitos, inesperados, como forro para mesa e para colocar a bolsas de arroz e a carne de uma rês e Felipão gostava muito de relatar essas ração de milho da tropa. inteira, transportadas num cargueiro, histórias. Contava ele que, certa vez, Os homens que iam à frente dos ani- nas mulas, e, também, mais uma rês fora buscar, em São Paulo, uma tropa de mais chamavam-se ponteiros, e os que e uma ovelha vivas. A preparação do cavalos, que havia sido trazida de trem. iam atrás, tangendo, eram conhecidos carreteiro consistia em ferver o charque O negócio envolvia vultosa quantia em como condutores. Ninguém precisava – numa quantidade de água que depois dinheiro, e a notícia logo se espalhara, andar dos lados da tropa, pois esta, era jogada fora -, lavá-lo e colocá-lo para atraindo assaltantes que tentaram sa- depois que alinha, dispensa qualquer fritar, com cebola e alho, em uma panela quear o trem. No entanto, tais saque- precaução para se manter no caminho. de ferro. Em seguida, acrescentava-se adores não conseguiram apropriar-se Quando um boi se afastava, não se o arroz, que era produzido em casa e da soma obtida no negócio, pois jamais preocupavam com ele, pois sabiam que socado com o pilão. imaginaram que o responsável pelo di- encostaria novamente na tropa. Na hora No trajeto dos tropeiros, os bugres nheiro era “aquele negro velho e feio”,

Água da Fonte Novembro de 2012 135 vestido com roupas surradas, a quem nha na cara e parar de domar. O que eu Como recorda a sua filha e todos que até comida haviam dado, e que trazia não fiz na tropeada você fez em poucos o conheceram, esse filho de escravos os maços de mil-réis guardados dentro minutos”. estava sempre vestido “de gaúcho”, de dos bolsos que mandava fazer em seus Maria Helena lembra que, durante bombacha, lenço, chapéu e uns chine- cuecões, usados por baixo das velhas os noventa dias em que os tropeiros los de couro cru - como convinha a um bombachas. ficavam longe de suas casas, era comum tropeiro - que ele mesmo fazia. Ao falar Felipão contava, ainda, que, em outra estabelecerem relacionamentos com do lenço que Felipão levava ao pescoço, ocasião, fora depositar certa quantia em mulheres, dos quais, às vezes, nasciam Maria Helena explica que, embora ele dinheiro no Banco do Brasil de Passo alguns filhos. Quando Felipão faleceu, a fosse maragato, aparece numa fotografia Fundo. Precavido, colocara o dinheiro notícia se espalhou e apareceram várias com um lenço branco - que era a cor dos em um velho e encardido saco de sal, pessoas que diziam ser seus filhos e que, chimangos -, porque este lhe fora pre- que acabou sendo perdido no trajeto da de fato, já haviam sido assumidos por senteado “pelo pessoal da Loja Ughini”, Catedral à instituição bancária. Logo ele como tais. Era costume, à época, em frente à qual o retrato foi feito. Num depois, dando por falta do embrulho, ele registrar os filhos nascidos fora do casa- primeiro momento, Felipão mandava voltara pelo mesmo caminho e, ao en- mento. Maria Helena relata, ainda, que fazer a roupa que vestia – e cujo tecido contrar o tal saco encardido, constatara, Felipão e Noemi Dalmaso Carneiro, sua era comprado “na Ughini, na Renner surpreso, que o seu conteúdo estava in- mãe, “enfrentaram uma barra pesada. e no Zanatta” - pela sua irmã; depois

tacto. Outra história contada por Felipão Eles não eram casados nem no religio- pagou um curso de corte e costura, em refere-se à batalha do Pulador, ocorrida so, nem no civil. Ficaram juntos. Ele Passo Fundo, para Maria Helena, a fim durante a Revolução Federalista. Num me reconheceu como filha e assumiu, de que ela passasse a costurar para ele. A dos episódios desse conflito, ele jogara e a minha irmã também”. Além disso, a filha de Felipão tinha uns 18 ou 19 anos a soma que transportava numa toca de união de Noemi, uma italiana, com um quando fez esse curso, e logo depois, tatu. Esse dinheiro nunca mais teria negro, não fora bem aceita entre os anos ele a presenteou com uma máquina de sido localizado, pois a toca era muito 1950 e 1970, época em que “tinha muito costura. profunda. Por fim, merece menção o racismo”. Maria Helena frisa que foi Como Felipão era humilde e muito “causo” de uma mula que trouxe de São também em virtude do racismo – “por amigo de todos, várias pessoas pediam- Paulo numa de suas viagens. Essa mula que eu era preta” - que sua tia, irmã de lhe dinheiro emprestado, incluindo os era muito rebelde, e nenhum homem sua mãe, não a reconhecia como sobri- brancos e ricos. Alguns iam visitá-lo conseguira domá-la. Porém, após a nha. Além disso, assinala que, ainda com a intenção de obter alguma vanta- chegada da comitiva, uma das irmãs de hoje, sua família enfrenta preconceitos gem, mas, apesar de seu jeito simples, Felipão foi até a mangueira e domou o de toda ordem, e ela em particular, pelo ele era dono de uma inteligência aguda animal. Então, ele, que em todo o trajeto fato de ser uma mulher separada e negra. e nunca conseguiram “passar-lhe a entre Ourinhos (SP) e Passo Fundo não No que diz respeito ao modo de ser conversa”. Um fato ocorrido no início tinha sido capaz de realizar tal façanha, de Felipão, há vários outros dados da década de 1970 atesta esse atributo disse à irmã: “Vou ter que tomar vergo- e fatos interessantes e reveladores. do filho de escravos. O agrônomo Gil-

136 Água da Fonte Novembro de 2012 berto de Oliveira Borges, criador da era a geladeira da época. Até hoje minha Os sobrinhos de Maria Helena, por Feira de Plantio Direto – ExpoDireto comida ainda é feita com banha”, diz exemplo, formaram um grupo musical. do município de Não-me-Toque (RS) Maria Helena. Posteriormente, em 1964, No que refere à atuação de Felipão e conhecido por Gigi, fez uma visita quando ela contava 16 anos de idade, sua na vida pública, conta-se que, sendo à casa de Felipão3, a fim de oferecer- família adquiriu uma geladeira a gás, na um homem ativo, participou de várias lhe os serviços técnicos necessários à loja Grazziotin. E o aparelho, em virtude campanhas eleitorais. Era trabalhista implantação de um grande pomar, que do gás que o fazia funcionar, uma vez ferrenho e via na pessoa de Getúlio Var- poderia ser objeto de exploração comer- ligado, produzia um ruído que assustava gas - em quem acreditava firmemente cial. Nessa ocasião, Felipão apareceu na seu pai. Ele tinha muito medo de que a -, e no PTB, a solução para o Brasil. sala “uniformizado”, com alpargatas, geladeira explodisse e costumava, volta Tornou-se, também, amigo de Leonel bombachas, camisa, poncho (era inver- e meia, desligá-la, para eliminar o som. Brizola, e, nas terras de seus parentes, no) e chapéu sobre os ombros; ouviu a Assim, o aparelho permanecia desligado foi construída uma “Brizoleta”, como explanação do agrônomo; questionou-o uma boa parte do dia. Felipão, quando eram chamadas as escolas no período sobre diversas questões técnicas e, como indagado acerca da geladeira, respondia: em que o líder trabalhista governava o era de se esperar, disse que iria pensar “acho que foi o vento que desligou”. A Rio Grande do Sul. Um dos candidatos na proposta. Pensou e recusou-a, por filha explicou a ele que esse eletrodo- à prefeitura de Passo Fundo, que Felipão considerá-la, financeiramente, desinte- méstico oportunizaria à família, além apoiou, foi Wolmar Salton. Segundo ressante. A imagem de Felipão que ficou de água gelada, a conservação da carne Maria Helena, seu pai “fez a campanha para o visitante foi a de um negro alto, por mais tempo. Mesmo assim, Felipão do Salton, que não era do partido dele, esguio, de fala mansa, mas firme, cujos falou com o senhor Tranqüilo Grazziotin mas eram amigos, e ele patrocinou a conhecimentos certamente surpreende- para devolver a geladeira. Foi então que campanha. Fez votos entre parentes e riam quem tivesse o menor preconceito o proprietário da loja orientou a família amigos”. contra sua etnia. a deixar o aparelho numa peça da casa Acerca da mentalidade de Felipão, Outro episódio que diz muito a respei- por onde Felipão não costumava passar Maria Helena destaca que seu pai e seu to da personalidade de Felipão é contado com frequência. Além de ser um homem tio de Carazinho, que eram os chefes por Maria Helena. Ela lembra que, na decidido, Felipão era muito alegre e da tropa, costumavam dizer: “Nós não casa da fazenda em que morava com apreciava festas. Tocar gaita era o que precisamos de dinheiro; queremos, na seu pai, na época, não havia geladeira. mais gostava de fazer para passar o verdade, é terra”. Embora o gado e as Então, matava-se o porco, cuja carne era tempo, esperar o término das chuvas e mulas fossem mais valorizados do que a fritada somente com sal, sem qualquer divertir os tropeiros. Nas tropeadas, os terra, esta era o bem mais cobiçado por outro tempero, e colocada numa lata homens, quase todos músicos, tocavam eles. Assim, Felipão procurou sempre com banha, para ser conservada durante gaita e violão. Essa tradição foi seguida comprar terra para seus familiares na um período de dois a três meses. “Essa pelas gerações mais novas da família. entrada do Pulador. Na época, como

Água da Fonte Novembro de 2012 137 lembra Maria Helena, era mais fácil comprar terras, porque o preço era bai- xo, e a área que conseguiram adquirir não era tão valorizada quanto é hoje. A passagem mais interessante da vida de Felipão parece ser, justamente, aquela relacionada à aquisição das terras onde trabalharia durante toda a sua vida. Essas terras estavam indo a leilão, e ele conseguiu comprá-las, utilizando, para tanto, a quantia em dinheiro que, ao longo dos anos, havia reunido. Fe- lipão era empregado; tropeava para os outros, mas, também, para si próprio, e guardava o dinheiro obtido nos negócios num colchão de palha de milho. Porém, embora tivesse recursos suficientes para a compra, os donos não quiseram vender-lhe as terras, porque se tratava de um negro e de um simples peão. Ele, então, repassou a soma a um amigo, que comprou as terras em seu nome. Eram 2.300 hectares, na região do Pulador - entre Passo Fundo e Carazinho (RS). Sobre a aquisição das terras por parte de Felipão, convém destacar as palavras de Maria Helena: A primeira terra que meu pai comprou tinha o nome de Socorro. Ele trabalhava tropeando, era empregado. Tinha uma família que era proprietária da terra e que foi perdendo tudo o que tinham no jogo, bebida e muita festa. Os homens gastavam muito dinheiro sustentando mulheres, filhos fora do casamento. Felipão tinha um dinheiro por que tra- balhava nessas terras, ele foi comprar e não conseguiu viabilizar o negócio por ser negro. Tinha um amigo dele que era branco - que a gente não sabe o nome, porque o pai nunca revelou o nome desse amigo -, justamente, foi o que comprou a terra, com o dinheiro do meu pai, e depois repassou para ele. Meu pai não conseguiu porque era negro e Felipão também era devoto de São estava no hospital, quando chamou o empregado. Nesse caso, não era aceito Miguel e Nossa Senhora da Conceição doutor Sérgio Lângaro e disse: “olha, um negro empregado ter muita terra. e, muitas vezes, doou cabeças de gado doutor, eu tenho uma missão a cumprir, Acho que ele devia ter uns 50 anos de para as festas em homenagem a esses tenho que ir lá entregar meu gadinho, idade quando ele comprou as terras. santos, além de ter ajudado a construir preciso entregar para o frigorífico, em Não era comum um empregado negro se a primeira capela de alvenaria em honra Carazinho, tudo bem certinho, depois transformar num proprietário nos anos de São Miguel. eu volto para o hospital”. Então, ele fez de 1940/1950. Até hoje não recebi 12 O desejo de Felipão, revelado à sua isso, levou o gado e depois retornou ao anos de arrendamento, porque diziam família, era o de que, quando morresse, leito hospitalar. Logo após, teve uma que eu era negra e separada. fosse enterrado em frente à sua proprie- isquemia cerebral e faleceu. Assim, a A fazenda foi batizada pelo novo dade, para que dali pudesse olhar por honestidade, que fora reconhecida como proprietário com o nome do “Divino elas. “- Meu guia vai cuidar destas terras um traço de seu caráter, era confirmada Espírito Santo”, de quem era muito enquanto houver um descendente da no momento da sua morte. devoto e ao qual consagrou, ainda, família Silva”, afirmava ele. Ele faleceu Muito do que foi relatado por Maria uma capela dentro de sua casa, além de em 11 de setembro de 1977, e seu desejo Helena, filha do tropeiro Felipão, pode mandar confeccionar-lhe um estandarte, foi atendido. Sua última tropeada foi ser relacionado ao que vem sendo escrito que existe até hoje. Em 2005, Maria realizada oito meses antes de sua morte. por diversos historiadores. A verdade é Helena, reconstruiu a referida capela. De acordo com Maria Helena, Felipão que a figura do tropeiro não desapareceu

138 Água da Fonte Novembro de 2012 da imaginação coletiva, permanecendo, peiros tomou vulto no Rio Grande do Rio Grande, às charqueadas de Pelotas, inclusive, na mente daqueles que nunca Sul, em meados do século XVIII. No à Capital. Foi a ascensão econômica tiveram a oportunidade de contemplá- entanto, tal atividade era praticada desde das colônias, no final do século XIX, la, mas que dela tiveram conhecimento o século XVII, em virtude da formação que levou à construção de estradas de pelas descrições alheias. Com o chapéu dos rebanhos, principalmente os que ferro nessas regiões. Além dos aspec- desabado, as botas de couro, as esporas movimentaram as Vacarias do Mar, tos destacados, assinala-se que Felipão cantadeiras, a tez queimada, a energia nas pradarias do Sul, e as Vacarias dos conheceu o final de um ciclo, iniciado no olhar, onde quer que fosse visto, Pinhais, nos Campos de Cima da Serra5. com a formação das cidades tropeiras do o tropeiro não perdia o autodomínio. Brito Peixoto, rico paulista que exercia Rio Grande do Sul colonial. O trânsito Chamavam-lhe “baiano”, quando ori- a pesca em Laguna (SC), em 1688, teve de tropas até 1830, dirigindo-se do Leste ginário das capitanias do Norte; porém, destacado papel nesse processo. Ele era para o Oeste, dando origem a arrancha- se aparecia de bombachas, levando a filho solteiro de Domingos Brito Peixo- mentos e, consequentemente, à fixação adaga ou as boleadeiras à cinta, não era to, deixou nove filhos mestiços, que fo- territorial, contribuiu com a formação de preciso perguntar: tratava-se de gente de ram os primeiros povoadores e criadores povoados no Estado - tais como os de casa. Nessa figura viril, ocultava-se um de gado, entre Torres e Viamão, ambas Santo Antônio da Patrulha, São Francis- trabalhador humilde, que não se negava localidades do Rio Grande do Sul. Esses co de Paula, Vacaria, Cruz Alta, Passo a lutar - com o boi, a fera do mato, ou o mestiços tiveram muitos filhos e cons- Fundo, Soledade, entre outros - e ligou, próprio bicho-homem. Na necessidade, tituíram famílias bastante numerosas. definitivamente, o Rio Grande do Sul sabia ser frugal, corajoso, abarbarado, Com eles, iniciou-se a criação ordenada ao centro do Brasil. Por fim, indaga-se: e dominava conhecimentos específicos de gado vacum, para o abastecimento do quem sabe do caso, duvida; quem nunca que constituíam a sua maturada ciência: porto exportador de carnes salgadas de ouviu falar, quando ouve, não acredita. os roteiros, os hábitos do animal, a qua- Laguna (SC), e também o povoamento Afinal, alguém conhece um fazendeiro lidade dos campos e das águas, a força da Capitania d’El Rei6. ou granjeiro negro hoje em dia? dos ventos e a arte de negociar4. Felipão pertenceu a uma das últimas A atividade áspera da vida pastoril, gerações de tropeiros e vivenciou, por praticada pelos tropeiros - gente espe- exemplo, o problema relativo aos trans- *(Mauro Gaglietti é, desde outubro de 2010, o titular cializada em lidar com o gado rústico -, portes na parte meridional do Brasil, que da Cadeira 31 da APL; professor dos Cursos de Direito, Psicologia e Odontologia da IMED (Passo Fundo, desenvolveu-se ao longo dos caminhos, só seria resolvido com a construção de RS); professor do curso de graduação em Direito e em torno das invernadas, dos rodeios, ferrovias. A ferrovia Porto Alegre–Novo do Mestrado em Direito da URI (Santo Ângelo, RS); professor convidado da FAI e da FEMA, respectivamente dos currais. Daí é que eles emergiram, Hamburgo, a primeira a ser construída, Itapiranga/SC, e Santa Rosa/RS. Doutor em História/ à luz da economia capitalista, como os com apenas 43 Km, atendia à zona colo- PUCRS, Mestre em Ciência Política/UFRGS. Coordena principais agentes da “idade do ouro” nial, produtora de gêneros agrícolas para o Curso de Especialização em Mediação de Conflitos e Justiça Restaurativa, na Faculdade IMED, o Projeto em terras rio-grandenses, integrando, o mercado da capital. Porém, a maioria Justiça Comunitária ( em parceria com o Ministério da no mesmo processo econômico, áreas das ferrovias construídas no século XIX, Justiça e a Prefeitura Municipal de Passo Fundo), e a implantação do Núcleo de Mediação LAW, em Passo e populações tão distantes umas das como atesta Zarth (1997, 2002, 2006), Fundo e Santo Ângelo (Luis Alberto WARAT). É autor outras quanto dessemelhantes em seu atendia aos interesses dos pecuaristas, de vários ensaios, artigos e livros. estilo de vida. ligando a zona da Campanha, tradi- Carlos Alceu Machado é Advogado e integrante da A repercussão do trabalho dos tro- cional produtora de gado, ao porto de Academia Passo-Fundense de Letras.)

Notas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1- Este texto apresenta parte de uma pesquisa mais ampla, que vem sendo realizada CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1970. pelos mesmos autores, sobre a biografia de Felipe João da Silva (Felipão). O texto ___ . O contrabando no sul do Brasil. Caxias do Sul: UCS, 1978. centra-se, principalmente, no relato da neta de um escravo, sobre a trajetória de ___ . Origens da economia gaúcha (o boi e poder). Porto Alegre: IEL; Corag, 2005. seu pai. As informações foram obtidas por meio de uma entrevista com a agro- CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização pecuarista Maria Helena da Silva, filha de Felipão. Além disso, consultaram-se o Brasileira, 1978. Diário da Manhã, jornal editado em Passo Fundo (28 de julho de 2006, p. 7; 04 BARROSO, Véra Lucia Maciel. O tropeirismo na formação do sul. In: CAMARGO, de agosto de 2006, p. 4-5); o artigo intitulado “Felipe João da Silva”, de autoria Fernando; REICHEL, Ieda Gutfreind Heloisa (Orgs.). Colônia. v.1, Passo Fundo (RS): de Maria de Lourdes Isaías e Rodrigo Pimentel, publicado na Revista Somando. Méritos, 2006. (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul), p. 171-188. Por fim, realizaram-se duas entrevistas a respeito de Felipão, uma com o médico DOMINGUES, Moacyr. O tropeiro Cristóvão Pereira: Bom Jesus e o tropeirismo no Pedro Ari Veríssimo da Fonseca, e outra com o jornalista Paulo Monteiro, ambos Brasil meridional. Porto Alegre: EST, 1995. integrantes da Academia Passo-Fundense de Letras. ISAÍAS, Maria de Lourdes Isaías; PIMENTEL, Rodrigo. Felipe João da Silva. Revista 2- Veríssimo da Fonseca (2004, p.12) assinala, com relação ao número de mulas Somando. Passo Fundo: Fundação Cultural Planalto. ed. 104, ano XI, nov.2005. p.34-37. que eram transportadas à época, que é pouco provável que a tropa possuísse FONSECA, Pedro Arí Veríssimo da. Tropeiros de mula: a ocupação do espaço, a mais do que 3.500 animais, como é destacado em alguns livros. Segundo o dilatação das fronteiras. Passo Fundo: Berthier, 2004. pesquisador, para tanto, seriam necessários cerca de 500 homens campeiros, 500 RUSCHEL, Ruy Ruben. Os dois caminhos pioneiros do Rio Grande do Sul. In: ___. cavalos apropriados para a lida de campo e igual quantidade para revezamento, Raízes de Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula e Tramandaí. Porto Alegre: dois ou três cargueiros de ferraduras. Ele destaca também que nem mesmo uma EST, 1992. p.215-233. mula com casco duro resistiria às pedrarias, pois não se leva gado alçado através ___ . Ponderações sobre a proto-História do caminho Vacaria-Passo Fundo. In: ___. de serras e matos em estreitas picadas. Raízes de Lagoa Vermelha. Porto Alegre: EST, 1993. p. 66-70. 3- Nessa visita, Gigi estava acompanhado de Carlos Alceu Machado, que forneceu ___ . Por mares grossos e areias finas. Porto Alegre: EST, 2004. as informações relativas ao fato para o presente trabalho. ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho. (1850-1920). Ijuí (RS): 4 - Cf. CESAR, 1970; 1978; 2005. UNIJUÍ, 1997. 5 - Cf. BARROSO, 2006, p. 171-188. ___ . Do arcaico ao moderno: O Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí (RS): 6 - Cf. DOMINGUES, 1995, no decorrer do século XVIII, o gado vacum não UNIJUÍ, 2002. foi levado para Sorocaba (SP). É um grande engano dizer que o comércio das ___ . A estrutura agrária. PADOIM, Maria Medianeira; PICCOLO, Helga Iracema tropas decorreu da necessidade de alimentos para a região das minas (Minas Landgraf (Orgs.). Império. v.2, Passo Fundo (RS): Méritos, 2006. (Coleção História Gerais e Mato Grosso, atuais). Geral do Rio Grande do Sul), p. 187-214.

Água da Fonte Novembro de 2012 139 As vantagens de se ter uma mulher no poder

MARILISE BROCKSTEDT LECH

im, entramos na era da revo- lução da consciência humana. S Depois da revolução das artes, da ciência, da indústria e da tecnologia, finalmente uma parte dos sete bilhões de seres humanos está abrindo suas mentes, deixando tabus e preconceitos de lado e enxergando as pessoas para muito além do seu sexo, da sua raça, das suas deficiências e das suas crenças. Os olhos dos sujeitos conscientes desse novo milênio enxergam saberes e competências, mas, acima se tudo, enxergam amabilidade, disponibilidade e habilidades. Com essa nova visão, as mulheres deste tempo, mais do que em toda a história, estão sendo vistas, reco- nhecidas e consideradas como capazes de serem mais do que somente esposas dedicadas, boas donas de casa e mães zelosas, e de dedicar suas habilidades na construção de um mundo melhor. Se em gerações passadas ela se dedicava basicamente ao cuidado dos seus doze ou treze filhos, agora ela se esforça, como faz nossa presidenta Dil- ma Rousseff, ao “cuidado” de duzentos que a salvação do planeta está no não lhe permitia nem sequer esboçar milhões de compatriotas. E o que dizer feminino, e que esse gênero, que se emoções, Golda Meir, Indira Gandhi e da indiana Pratibha Patil, que teve co- revela na capacidade de cuidar, não algumas rainhas inglesas de outras eras ragem de assumir o “cuidado” de uma está presente somente na mulher, mas que levaram seus países à guerra. No nação de um bilhão e duzentos milhões também, no homem. Nesse mesmo entanto, elas fogem ao perfil feminino de habitantes? sentido, Leonardo Boff afirma que a que nos faz pensar em doçura, capaci- Pratibha está presidindo a Índia há ética do humano está em saber cuidar. dade de comunicação, empatia com o cinco anos e aquele país continua sendo Assim, longe de se querer estabelecer sofrimento alheio e flexibilidade quando um dos que têm maior desigualdade estereótipos entre homem e mulher, e de as coisas vão mal. social no mundo. No entanto, estão arriscar dizer quais as vantagens de se Sabendo que precisam dos outros conseguindo criar riquezas no país e, ter uma mulher, ao invés de um homem para alcançar suas metas, as mulheres a passos lentos, combater a corrupção, no poder, devemos compreender que mais femininas evitam o excesso de um dos maiores entraves para o desen- todo sujeito tem porções simbólicas arrogância conferido pelo poder e pelos volvimento. Levará muitos anos para e subjetivas, femininas e masculinas. bajuladores, e sabem também que, para que os novos sujeitos, nascidos na era Quem sabe se é o lado masculino da chegarem ao topo das organizações, não da revolução da consciência humana, mulher que tem aflorado e dado a ela é absolutamente necessário adotar um depois de serem acalentados nos braços mais coragem, foco, imediatismo e estilo tão masculino a ponto de abafar da “mulher”, possam revelar-se pessoas objetividade? Características essas que as características femininas. Afinal, o mais justas e cuidadosas. Educar demora são próprias do homem, ou melhor, do sucesso depende, justamente, da com- e requer paciência, qualidade essa que gênero masculino. binação das porções masculinas e femi- é uma das características do feminino. Grandes mulheres da história como ninas, adotando modos duros ou dóceis, A filósofa brasileira Rose Marie a “Dama de Ferro’’ Margaret Thatcher, conforme necessário. E isso serve tanto Muraro expõe, em uma de suas obras, com seu forte perfil masculino, que para o homem quanto para a mulher.

140 Água da Fonte Novembro de 2012 Nesse diverso século XXI, Dilma sueli gehlen frosi Rousseff, nossa atual presidenta que, Poesia ao demitir ministros acusados de cor- rupção, logo no seu primeiro ano de governo, conquistou a mais alta popu- laridade desfrutada por um presidente brasileiro. Juntamente com a chanceler Minha filha mãe alemã, Angela Merkel, e Christine La- garde, primeira mulher a dirigir o FMI, com segurança, elas dividem espaço com Obama, François Hollande e Putin. Sim, as mulheres estão mostrando suas habilidades extradomésticas. Ao falar na abertura da Assembleia geral da ONU, em 2011, Dilma afirmou que este será o século das mulheres. Sem querer contrariá-la, eu diria que este será o século do feminino e que, assim como surgiu uma nova mulher, na relação saudável de interdependência que deve se estabelecer entre as pessoas, já está surgindo um novo homem. Está certo que eles não virão a parir e amamentar seus filhos no seio, mas estarão, cada vez mais, aptos a “maternar” a mãe de seus filhos, enquanto elas fazem isso e, assim, entenderão, cada vez mais, o poder do cuidado. O sociólogo Pierre Bourdieu ultra- passou as visões puramente biológicas e psicanalíticas da diferença entre os sexos, e propôs uma cultura onde se deva inventar novas formas de organi- zação, capazes de renovar instituições que ainda contribuem para eternizar a Do meu colo pulaste pra vida subordinação, à qual as mulheres esta- Feliz, sem temer os percalços, vam fadadas até o último século. A colheita de hoje, para nós duas, A participação das mulheres, com suas É o sentimento em comum importantes características femininas, De amor pelo filho que tens, nos postos de comando, deve ser am- Fruto das escolhas tão lindas, pliada, pois a história já está mostrando Que de tão acertadas, explodem, que elas, tradicionalmente, dão mais Espalhando beleza, amor e ternura. importância à educação, à saúde e ao meio ambiente, e essas são as áreas onde Vejo em ti uma mulher, se requer mais investimentos, a fim de Não mais a filha que de mim precisa. salvar o nosso planeta da desordem e Sei, conquistaste asas, liberdade, da destruição. No entanto, embora a Por puro mérito, de tão valente. lei determine que 30% dos candidatos Viva, minha filha, a cargos públicos devam ser mulheres, Continue voando alto, sorrindo para o mundo, elas compõem apenas 5% dos cargos Ele sorrirá de volta, tenha certeza. eletivos. Sem querer ser machista, e reafir- Eu agradeço o agrado, mando que a maioria das mulheres tem Que me fazes todo dia, capacidade de absorver e acumular Oferecendo-me um menino tarefas, acredito, sim, que elas podem Tão feliz e carinhoso, ter a receita para assumir o poder e fazer Que herdou de ti tanta coisa bonito, e que, nem por isso, vão errar a E tantas outras do teu marido e amor, receita do bolo. Formando um trio que impressiona, Pela beleza e carinho que espalham.

(Marilise Brockstedt Lech é psicóloga educacional, Mestre em Educação e Membro da Academia Passo- (Sueli Gehlen Frosi é membro da Academia Passo-Fundense de Letras.) Fundense de Letras.) Água da Fonte Novembro de 2012 141 23/04 - Dia Mundial do Livro

MARILISE BROCKSTEDT LECH books do que títulos em papel... de seus 18 romances, garante que o Na minha infância e adolescência, livro impresso não deixará de exisitir. debrucei-me sobre a enciclopédia Delta Concordo com ele, e sei que ele não está mbora, desde 1926, o dia 23 de Laroousse, para fazer meus trabalhos só sendo romântico com essa afirmação. abril já fosse considerado o Dia escolares e satisfazer minhas curiosida- De qualquer forma, devemos prepa- E Mundial do Livro, pelos espa- des. Na geração de meus filhos, os 16 rar-nos para o futuro. O acadêmico da nhóis, essa data só foi mundialmente volumes da Barsa já vieram acompa- Academia Passo-Fundense de Letras, instituída, pela Unesco, setenta anos de- nhados de uma versão digital em CD. Pedro Ari Veríssimo da Fonseca, adap- pois, em 1996. Mas por que 23 de abril? Por fim, recentemente, foi anunciado tado aos novos tempos, tem dedicado Foi no longínquo ano de 1616 que que, a partir deste ano, a enciclopédia grande empenho à digitalização de essa data teve real significado. Ninguém Britânica só poderá ser acessada a partir livros antigos. Dentre os eleitos para tal menos do que os europeus, William de um arquivo digital, de apenas 52 Kb, feito, consta um dos livros de poemas Shakespeare e Miguel de Cervantes, que pois a versão impressa não será mais de nossa inesquecível acadêmica, a deixaram seus contemporâneos em luto publicada. imortal Jurema Carpes do Vale. Por certo e partiram para a vida eterna no mesmo Mesmo diante dessa realidade, prefiro que, dessa forma, grandes obras e seus dia, mês e ano. Embora existam dúvidas pensar que, ao menos por enquanto, uma respectivos autores ficarão ainda mais sobre a exatidão dessa coincidência, forma não substituirá completamente a imortalizados e muito mais acessíveis assim tem sido considerada. outra. Nenhum tablet, por mais que agi- a todos. E hoje, por que valorizar essa data? lize nossas pesquisas, e que tenha bem Para finalizar essa crônica, sobre o Teria um intento de cunho comercial? menos volume do que uma abarrotada Dia Mundial do Livro, relembro Castro Seria mera propaganda para se vender biblioteca, terá a nostalgia de um livro. Alves que, há 150 anos, em seu famoso livros, sejam eles impressos ou digitali- Nenhum notebook vai permitir que do- poema “O livro e a América”, assim zados? Independente da resposta a essa bremos suas páginas, que escrevamos declarou seu amor aos livros: “Oh! questão, a data pode servir para chamar em suas margens e que façamos traços, Bendito o que semeia livros... Livros à a atenção para a importância do livro às vezes tortos, assinalando nossos re- mão cheia...E manda o povo pensar! O como um bem cultural, essencial para cortes de texto. livro, caindo n’alma, / É germe — que o desenvolvimento humano e social. Sobre isso, Ziraldo, um dos autores faz a palma, / É chuva — que faz o mar”. Pode, ainda, servir para pensarmos e da obra O futuro do livro, se pergunta: Com todo o respeito eu o parafraseio: incrementarmos nossas acaloradas dis- “Onde é que vamos deixar riscada, com Bendito o livro que veio para ficar!!!!! cussões sobre o futuro do livro. Sobre nosso lápis, a frase que vai marcar nossa isso, pondera-se, devemos discutir sobre vida?” Nesse mesmo sentido, o atual o livro do futuro? O Amazon, um dos fenômeno da literautura, o romancista (Marilise Brockstedt Lech é psicóloga educacional, maiores sites de vendas por internet, americano Nicholas Sparcks, que já Mestre em Educação e Membro da Academia Passo- já anunciou que está vendendo mais e- vendeu oitenta milhões de exemplares Fundense de Letras.)

142 Água da Fonte Novembro de 2012 O julgamento de Nietzsche

GILBERTO R. CUNHA ele não existe, não é absurdo afirmar, hoje, mais que nunca, são entidades até em razão disso mesmo, que também separadas. Enquanto não entendermos é imortal. Pois, em sendo assim, não (ou aceitarmos isso) que “Deus está so- obre Friedrich Wilhelm Niet- é razoável supor que alguém, que não cialmente morto”, e que já não podemos zsche paira a acusação do as- existe, possa ser morto. basear nele o valor dos nossos valores, S sassinato de Deus. Desde que Não, Deus não morreu! Deus está vamos vivendo (e nada fazendo para escreveu, em 1882, no livro “A Gaia bem vivo, aqui e agora, em qualquer que não seja assim) em uma sociedade Ciência”, a famosa frase “Deus está lugar, para todos que acreditam nele, onde impera o reinado da mediocridade, morto!” (ou “Deus morreu”, depen- evidentemente. O professor Nietzsche da decadência e do ressentimento. Tam- dendo da tradução do alemão “Gott ist não matou ninguém. Nunca teve essa pouco os pretensos substitutos de Deus, tot”), virou o suspeito principal de um intenção. Ele fez menção a algo que, que arranjamos numa busca apressada crime que aparenta requinte para fazer jus ao “Deus morto, de crueldade. As evidências Deus posto”, cujos exemplos advindas dessa expressão, que notórios são a natureza, a não deixa qualquer dúvida ciência, a vida ou a história, sobre a morte de Deus, espe- resultaram em experiências cialmente quando deslocada melhores ou, quando não, do contexto original, somadas inclusive, até mais perigosas às críticas ácidas que ele teceu e destruidoras. Precisamos é à religião, à moral e à tradição de fundamentos mais robustos filosófica do Ocidente, forma- para os nossos valores, que ram indícios tidos como mais unam a ordem teórica ou epis- que suficientes para levá-lo ao têmica (a ordem das verdades banco dos réus. A defesa de ou dos conhecimentos) e a Nietzsche chegou a esboçar ordem prática ou normativa reação, alegando que “sem (a ordem dos valores ou dos cadáver, não há crime”, mas imperativos), mesmo que essa tese era simplista em de- para isso tenhamos de lançar masia, não tendo, em função mão de uma doxa heterodoxa do entendimento majoritário ou até admitir que, nessa cir- dos tribunais, qualquer chan- cunstância intangível, estamos ce de prosperar; pelo menos diante de uma ordem una e ab- de plano. soluta que, conceitualmente, Os acusadores, dizendo-se em nada difere de Deus. embasados em princípios, Em uma sociedade que mesmo sem uma fundamen- vibra com “BBBs” (“Salve, tação plausível, mais beirando salve! Vamos dar aquela es- o arbítrio que qualquer outra piadinha!”) e “Ah se eu te coisa, eram taxativos na dedu- pego”, cujo comportamento ção de culpa do Sr. Nietzsche, nonsense beira ao surrealis- pelo assassinato de Deus. Instaurado o embora não sendo novo, hoje é perce- mo, mais que as frequentes e fortes contraditório, coube à defesa contrapor bido com maior facilidade: “Deus está dores de cabeça, o que atormenta que, em base no texto “Uma moral socialmente morto”. Isso, na acepção Nietzcshe é a possibilidade de uma sem fundamento” (In: A sociedade de Comte-Sponville, significa dizer condenação. Afinal, conforme escreveu em busca de valores. Lisboa: Instituto que, individualmente, na esfera priva- Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), Piaget, 1996. p. 133-153), de André da, podemos acreditar em Deus, mas, com fina ironia, na letra do “Samba Comte-Sponville, filósofo materialista em sociedade, não há essa comunhão do crioulo doido”, em se tratando da francês, ex-mestre de conferências com ele. Já não é mais possível, como história do Brasil nos enredos de car- da Universidade de Paris I, não havia outrora foi, basear “em nome de Deus” naval, quando se mistura Xica da Silva dúvida que “a morte de Deus” era um a nossa coesão social. A sociedade, em com a atual conjuntura, para resolver tema nietzscheano bem típico. Todavia, cujo seio vivem os que crêem em Deus, a questão, alguém pode até propor que a expressão “Deus está morto!”, tal qual não pode deixar de ter em consideração seja proclamada a escravidão. tantas outras, não pode ser tomada em a pluralidade das crenças e, inclusive, sentido literal. O professor Nietzsche respeitar também as descrenças. A or- nunca ignorou que Deus, se existe, é, dem religiosa e a ordem social deixaram (Gilberto R. Cunha é membro da Academia Passo- por definição, imortal. Tampouco, se de ser uma só. O político e o espiritual, Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 143 O evangelizador pampeano

VERÍSSIMO DA FONSECA gentes. Participou de todas as lutas, encarnando assim os muitos heróis que derramaram seu sangue, em quase oão Simões Lopes Neto nasceu trezentos anos de lutas guerreiras. Dos à beira da cerca da mangueira, que fizeram a pátria e demarcaram J onde o gado ficava encerrado, fronteiras. aguardando o abate. Viu, assistiu e Olhando para o que não está visível, participou do movimento das tropas e na obra de JSLN, encontramos, tanto nos dos tropeiros, que vinham de todos os contos gauchescos, como nas lendas, lados do Continente de São Pedro do uma pregação evangélica. Rio Grande do Sul. A casa paterna bei- O Evangelista Blau percorreu seu mi- rava a charqueada, onde a rude faina do núsculo espaço geográfico, em relação trabalho bruto, de encerrar o gado xucro ao todo. Dos diferentes dialetos regio- trazido dos confins dos campos abertos, nais, ouvidos de populações esparsas chegava ao seu destino, o brete, para o Nunes é o gênio que molda o persona- e ilhadas pelo vazio dos espaços, que abate. Gaúchos de todos os rincões se gem do pampa brasileiro, e a alma de pouco falavam entre si, e quase nunca entreveravam na mangueira, apertando todos os rio-grandenses-do-sul. E como com estranhos, com um linguajar re- o gado xucro para a boca do tronco, um evangelista, suas palavras pregadaS sultante de cruza de outras raças, talvez onde eram apunhalados na nuca e caíam em uma nesga do imenso pampa de daí criou JSLN um dialeto literário, paraplégicos no solo e arrastados para o três pátrias, trasbordaram para outras fortemente sonoro e compassado que local da sangria. Uma sangria atrás da etnias, outras terras, outros continentes. só Blau Nunes possuía, mas sempre outra, em centenas de animas, deixava Palavras de fé e amor. Nenhum povo voltado para o gênero narrativo enalte- tudo recoberto de sangue. vive sem heróis, mitos e crenças que lhe cedor da honra, da coragem, dos bons As mantas de charque eram prepara- ditem o rumo. costumes, do amor à terra e tudo o que das nas primeiras horas da madrugada, Blau Nunes é a alma do gaúcho, que Deus criou. JSLN colocou seu perso- nas horas mais frescas. serviu ao Imperador e à pátria sobre a nagem dentro do peito de cada leitor. O menino JSLN (João Simões Lopes qual pouco sabia. Mas ele sabia suas Escutamos e nos encantamos com a voz Neto) passou sua primeira década de obrigações para com ela e seus diri- do narrador. Se necessário, leia e releia vida, assistindo a este bárbaro espetá- culo, à luz da lua e das estrelas. À luz do sol, campereava com seu pai, como todo menino. Conviveu com os homens que se dedicavam ao pasto- reio, calmos, conhecedores da flora e da fauna; dos passos nos rios e sangas; dos atalhos. Um dia seu pai mandou-o para o colé- gio, no Rio de Janeiro, onde permaneceu anos, recebeu primorosa educação e viveu intensa vida social. Voltou para a sua terra natal, onde se dedicou ao jornalismo, e durante toda a sua vida participou de todos os movi- mentos sociais de caráter humanitário. JSLN era extremamente participativo e voluntário. Ilustrado conferencista, foi membro da Academia de Letras do Rio Grande do Sul. É isso que dizem os biógrafos sobre a formação de JSLN, em outras palavras. Neste ano, em que se comemora o centenário da obra máxima das letras gaúchas, para nosso orgulho, eleva-se acima do tempo e do espaço a figura de Blau Nunes, símbolo do pregador dos preceitos do gaúcho brasileiro. Blau

144 Água da Fonte Novembro de 2012 as belas frases! Os escritores geniais guardam muitos segredos nas entreli- nhas que só as releituras revelam. Me- dite. Viaje com Blau, o tapejara. Veja D. Urbano Algayer, as imagens da flora e da fauna, sinta o aroma das flores silvestres machucadas pelos cascos do cavalo, beba da água cristalina das fontes que se encontram um bispo especial em seu caminho. Exemplifico: em TREZENTAS ON- ÇAS, o mais belo dos contos gauches- WELCI NASCIMENTO cos, após uma sesteada morruda, o tropeiro Blau levanta-se, banha-se no rio de águas límpidas, dá “umas bra- ive o prazer de conhecer, çadas, poucas. Encilha e segue ... Ao pessoalmente, D. Urbano entardecer, deu-se conta de que deixara T Algayer, nosso Bispo Eméri- a guaiaca com trezentas onças de ouro to, pelos anos de 1983/84. Se não me em cima das pedras, ao se banhar no falha a memória, era março ou abril. riacho. Volta apreciando a beleza da Os anos passam e a gente começa a tarde em “sol morrente” , as flores do perder a memória e as coisas já não campo, a brisa do vento, o lento voo são mais exatas, principalmente dos pássaros rumo a dormidouro. A paz quando se trata de datas. reina absoluta. Acontece que eu ia subindo, gal- ...Mas a guaiaca lá não estava mais. gando um pequeno morro, à direita Como iria explicar? De onde tirar 300 de quem vai de Porto Alegre a Via- onças de ouro para pagar o patrão? Pu- mão, no bairro Agronomia. Visitaria xou o revólver e decidiu se matar. o meu amigo Pe. Nelson Tonel que, “Tirei a pistola do cinto; amatilhei o naquela época, assistia um grupo de gatilho... benzi-me, e encostei no ouvido estudantes de Teologia do seminário o cano grosso e frio, carregado de bala”. de Viamão. Esses jovens resolveram “Ah! Patrício! Deus existe!... fazer uma experiência de vida es- No refilão daquele tormento ... olhei tudantil e de ação evangélica, fora dos muros do seminário. Eu levava para diante e vi ... as Três Marias luzindo as pessoas que conhece, ou não. As para eles uns pacotes de erva-mate. na água...O cusco encarapitado na pedra, pessoas gostam de conversar com o Moravam numa casa simples, de ao meu lado, estava lambendo a mão ... e seu pastor. Andar a pé, proporciona madeira, no alto do morro. logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, momentos de prazer, quando pode- Subindo comigo, um pouco à na barranca do riacho, ao mesmíssimo mos fazer essa prática. Ao contrário frente, ia um senhor. Íamos de ca- tempo que a cantoria alegre de um grilo do automóvel. beça baixa, passo a passo. Sem que retinia ali perto, num oco de pau!... Não se pode falar de Igreja sem um ou outro soubesse, o destino era Patrício! Não me avexo de uma Jesus Cristo,seus bispos, padres o mesmo. Chegamos na dita casa, heresia; mas era Deus que estava no e leigos batizados. Os bispos são quase juntos. Fiquei sabendo, nesse luzimento daquelas estrelas, era ele que a sucessão apostólica, que vem mesmo instante, que a pessoa que mandava aqueles bichos brutos arreda- ininterruptamente. D. Urbano é um vinha na minha frente era D. Urbano rem de mim a má tenção... desses bispos que o Espírito Santo Algayer, Bispo Diocesano de Passo O cachorrinho tão fiel lembrou-me a consagrou como mestre da fé, pon- Fundo, há pouco empossado, subs- amizade de minha gente; o meu cavalo tífice e pastor. tituindo D. Cláudio Colling. lembrou-me a liberdade, o trabalho, Com seus 88 anos de idade, D. Urbano se encontrava ali para e aquele grilo cantador trouxe a espe- é presbítero da Igreja Católica, verificar como estavam seus futuros rança... Apostólica, desde o ano de 1950. sacerdotes. Desejava, certamente, Eh-puxa, patrício! Eu sou mui rude... Certamente que já serve à Igreja dar-lhes apoio espiritual, com a sua a gente vê caras, não vê corações.... Pois desde a juventude. Foi precedido presença. o meu, dentro do peito, naquela hora, por D. Cláudio Colling e sucedido D. Urbano é assim mesmo. Sur- estava como um espinilho ao sol, num por D. Ercílio Simon. Comunicativo, preende a todos nós, com seu modo descampado, no pino do meio-dia : era simples, fraterno e estudioso, assim simples de agir, de se comunicar. a luz de Deus por todos os lados... é D. Urbano, para mim. Desde o ano Aqui em Passo Fundo, quando pode, E já todo no meu sossego de homem, de 1982, ele nos brinda com sua pre- caminha pelas ruas do quarteirão da meti a pistola no cinto. Fechei um baio, sença em Passo Fundo. São 30 anos. Igreja Catedral. Às vezes, atravessa a bati o isqueiro e comecei a pitar” . Uma lasca da sua vida está conosco. Avenida General Neto e vai pelos ca-

minhos da Praça Marechal Floriano. (Welci Nascimento é professor e membro Pára a toda hora, para conversar com da Academia Passo-Fundense de Letras.) (Pedro Ari Veríssimo da Fonseca é membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Água da Fonte Novembro de 2012 145 Pesquisa sócio-antropológica e sua aplicabilidade na escola

DILSE PICCIN CORTEZE não respeitam os colegas e professores; Como conseguir modificar esta situ- os pais se mostram insatisfeitos; os em- ação? pregadores queixam-se da falta de mão- Para se conseguir respostas, em educação, no Rio Grande do de-obra qualificada, numa sociedade questões como as citadas acima e ou- Sul, vive uma crise sem pre- com grande número de desempregados. tras mais, as escolas devem investir A cedentes. O estado passou, de Como resolver tais questões, num país na pesquisa escolar, procurando saber centro de referência educacional para que almeja ser uma potência mundial, e o que a comunidade pensa sobre o as- todo o país, a um dos índices mais baixos para isso precisa resolver o problema da sunto e, principalmente, como cada um na última avaliação do IDEB (Índice de educação? Sabemos que o crescimento pode ajudar, fazendo a sua parte, no Desenvolvimento da Educação Básica). econômico está intimamente ligado à sentido de que todas as crianças sejam A preocupação com o tema passou a escolarização. melhor atendidas, na escola e em casa. ocupar espaço nos meios de comunica- Talvez o primeiro passo a ser dado, Em suma, cada um deve cumprir suas ção, principalmente com o lançamento no sentido de uma educação satisfa- obrigações, neste processo de desenvol- da campanha, pela RBS: “A Educação tória, seja a união das forças vivas da vimento do ser humano. Precisa de Respostas”. comunidade escolar: famílias, pro- A preocupação com a educação é fessores, direção, Conselho Escolar, Pesquisa cientifica x escola geral. Professores reclamam do dia-a- comerciantes, etc., além de se fazer dia enfrentado nas escolas; os alunos perguntas. Como está a educação na A Pesquisa sócio-antropológica reúne se mostram desatentos, desmotivados, escola? O que precisamos melhorar? as características das demais pesquisas

146 Água da Fonte Novembro de 2012 participantes, tanto de ação como etno- ticas pedagógicas; continuar o processo gráfica, pois os pesquisadores precisam da gestão democrática do ensino, através estar em estreita associação com os da escuta qualificada. investigados, descobrir seus problemas Ao optar pela pesquisa, a escola na realidade cotidiana, e propor ações reconhece que não é formada só pelo que possam modificar essa realidade. aluno, mas por toda a comunidade que Por isso se diz tratar-se de uma proposta vive naquele espaço. Para pensarmos na pedagógica interdisciplinar, que estabe- escola como um todo, precisamos saber lece uma associação entre conhecimento que somos diferentes. Pensar em edu- escolar e cidadania, um diálogo entre cação e proposta diferente de trabalho saberes popular e científico, além de é saber que os educandos e educadores construir coletivamente, a apreensão são diferentes. Temos que olhar para a partilhada do conhecimento. escola e respeitar as diferenças. Elas, Este tipo de pesquisa pode trabalhar por sua vez, não podem nos distanciar. as seguintes áreas: educação, saúde, A pesquisa não deve se reduzir apenas transporte, religião, ecologia, trabalho, à ida a campo, e sim, a um processo cultura, relações sociais, visões de vida não linear, onde a função do educador e cidadania, crianças, adolescentes, jo- se problematizará, a partir de uma nova vens, idosos. É utilizada para estudar a compreensão da ciência, da razão, da realidade da vida social da comunidade, emoção, da insegurança, da esperança, bem como a acolhida da escola e seus do medo, da coragem, da luta, da investi- entornos sócio-culturais. nhecidos, para uma procura ativa e gação, da experiência, do compromisso Nos anos de 1960, Paulo Freire inicia- recíproca de conhecimentos a conhecer, com a democratização, e da inclusão de va seus estudos, sobre educação popular representando assim uma vivência de conhecimentos e de indivíduos. Assim, e alfabetização de adultos, apoiado na criação . mergulhar na verdade, na construção ideia de aprendizagem significativa, Exemplo: Realizar uma pesquisa política, na construção democrática, partindo da realidade do educando. Ele sócio-antropológica na comunidade X, significa defender espaços de cidada- dava início, desta maneira, a uma educa- para, a partir desta, organizar-se uma nia. Isso lembra o que nos fala Demo: ção apoiada nos resultados de pesquisa proposta de trabalho curricular para o “pesquisar é dialogar com a realidade, do ambiente escolar, a fim de estabelecer ano letivo da escola, de onde saem os de modo crítico e criativo”. um ponto de partida para seu trabalho. temas geradores da pesquisa. Para que a pesquisa alcance seu obje- Todavia, sendo ele exilado durante o De acordo com a professora Esther tivo, é necessário um trabalho coletivo período militar brasileiro, a educação Grossi, “Pesquisa Sócio-Antropológica entre educadores e comunidade, pois retrocedeu, e somente mais de trinta é um processo no qual a comunidade esse envolvimento, além de fundamen- anos depois o tema veio novamente à participa na análise de sua própria tal, questiona os participantes: “O que tona. Hoje, verifica-se que as escolas realidade, com vistas a promover uma queremos para a nossa escola? Manter precisam retomar a pesquisa, para tornar transformação social, em benefício dos o instituído ou transformar a realidade o ensino mais significativo e trabalhar participantes”. Portanto, é uma atividade social? a realidade cientificamente constatada. de pesquisa educacional orientada para De posse dos dados e das falas signi- Segundo Brandão (2003), a pes- a ação. ficativas, a escola deverá desenvolver quisa sócio-antropológica está ba- A pesquisa Sócio-Antropológica de- uma atitude investigativa da sua cotidia- seada em quatro princípios: verá servir como ponto de partida, para nidade, da sua realidade, da sua comuni- - Ético: a razão de ser do aprender não a organização do ensino por projetos dade. Assumirá essa tarefa, na tentativa é saber coisas úteis, mas compreender ou complexos temáticos. Assim sendo, de reverter uma situação vigente, onde gestos de valor humano; vivência da pesquisa deve ser encarada não mais apenas as salas de aula e o - Ecológico: aprender algo é integrar como uma “potência pedagógica”, na pátio escolar compreendem a formação sentimentos e saberes, orientados aos construção do caminho para a proble- dos seus indivíduos, mas também seus cuidados com os diferentes espaços, matização da prática docente, e para a sonhos e seus anseios. Nesse sentido, onde compartimos a vida e a espécie reinvenção do ensino, na perspectiva a pesquisa sócio-antropológica servirá humana; da educação libertadora. Dessa forma, como um instrumento muito importante, - Político: no sentido mais original do a possibilidade de que, com a pesquisa, pois que ela não só aproxima a escola termo, de participação cidadã, reconhe- as práticas pedagógicas se fortaleçam, da comunidade, insere o profissional cendo-se como sujeito de direitos na e ocorre a partir de compromissos com a da educação no contexto significativo através da comunidade de vida que se comunidade escolar. da comunidade, adquirindo uma com- comparte; Os principais objetivos deste tipo de preensão maior da realidade do aluno. - Pedagógico: a vivência pedagógica pesquisa são: Estreitar os vínculos com principal é o diálogo, a dialogicidade. a comunidade; aprofundar o conheci- Tem a ver com a ideia de que toda mento da realidade dos indivíduos e da (Dilse Piccin Corteze. Graduação em História. Pós- graduação em Metodologia do Ensino. Metodologia da atividade, por meio da qual professores comunidade da qual fazem parte; reto- Pesquisa e História. Mestra em História Regional, pela e alunos se lançam a fazer perguntas, mar as discussões do Projeto Político- UPF. Autora de vários livros de História, com destaque para Ulisses va in America: História, Historiografia e e buscam, juntos, as respostas, sai da Pedagógico, a partir das demandas da Mitos da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul- transferência de conhecimentos co- comunidade e redimensionando as prá- 1875-1914. Membro da APL e do IHPF.)

Água da Fonte Novembro de 2012 147 Remembranças

HELENA ROTTA DE CAMARGO sorvete e das sobremesas deliciosas, de Seu amor paternal! Afinal, nunca obediente às normas e conveniências, e deixei de prestar homenagens a meu ainda respeitadora, tanto dos superiores Deus e de portar-me como uma serva li, em minha janela, o Sol quanto dos subalternos. fiel, sincera, assídua, respeitosa. E, aci- se levantava com preguiça. Oh! que saudades que eu tenho, da ma de tudo, como Ele mesmo ordenou, A Se dependesse dele, dormiria aurora da minha vida, ensinei aos pequenos o caminho do bem, mais algumas horas, já que a noite fora da minha infância querida, da verdade, da justiça, da solicitude e tumultuada por relâmpagos e trovões, que os anos não trazem mais! da paz... Só o que eu pretendia dEle que ribombavam o sono. Você, hein, meu amigo Casemiro! era mais tempo para aprender, e maior Ora, ora, não é de praxe, desde o Antecipou-se a mim, na transmissão reconhecimento à minha lealdade... início dos tempos, que o astro do dia do recado! Oh! Que saudades que eu tenho!... seja cordial e sorridente? Por que, justo Decido, pois, retroceder aos velhos A vida que, além de um privilégio, agora, quando meus olhos murcharam tempos, aqueles de poucos rumores e revela-se também uma batalha, impõe- de exaustão, e o coração se cobriu de muitos ardores. E dou-me conta de que, nos enfrentamentos diversos: ora somos cicatrizes, vem ele, com o ranço mais desde os acalantos de outrora, que se surpreendidos por jacarés e serpentes, ácido que o do bebum de pileque? esvaíram, entre risos e lágrimas, já trans- ora por ostras e borboletas... Já dissera Quanto a mim, já fiz o dever de correram mais de sete décadas. Afora nosso grande poeta: “A vida é um com- casa: Decorei as normas do catecismo. isso, o encantamento provocado, tanto bate, que os fracos abate, e os fortes e Obedeci às ordens de meus superiores. pelo amor como pela beleza de certas bravos só faz exaltar...” Aprendi as quatro operações. Assimi- almas, continua o mesmo, fúlgido como Eis porque me planto aqui, diante lei, ipsis litteris, a gramática latina e um cometa, e tão real e sincero como de um livro qualquer, furungando suas suas declinações. Além de tudo isso, nos velhos tempos... No odor daquelas páginas, espremendo seu sumo, pois só respeitei meus mestres e também meus Primaveras, o que mudou foi apenas o ele me adoça e revigora; só ele disciplina discípulos. Organizei as gavetas. Semeei endereço, pois o sentimento permanece minha irreverência, rebelde contra as cravos e hortênsias. Dei vida aos filhos intacto, tão presente como o eco que mialgias, as apneias, as ofensas, que se e eduquei-os. Li os livros que me reco- ressoa dentro de mim... revelam tão torpes quanto o calabouço mendaram. E ainda provi a despensa Não direi que só vivo de saudades! e tão escuras qual uma noite de breu... de cereais, condimentos, legumes e Mas que elas são assíduas, enxeridas, Oi, minha doce aragem! Venha a algumas saborosas iguarias. truculentas, isso elas são! E que a mim com seu ar puro, sua fragrância Mas depois de tudo pronto, asseado degringola chega de supetão, sem ne- matutina, seu sorriso aberto em flor! – e envernizado, recomendaram-me uma nhuma cortesia e nenhum pudor, é de Preencha meus espaços vazios, e regue inocente, mas severa dieta, daquele tipo domínio público. Uma sentença – por minhas frágeis virtudes! Elas precisam que não permite a ingestão de nada que que não dizer? – deletéria e desleal. de água, para não secarem de vez! seja amanteigado, calórico, açucarado. Cadê a recompensa que me promete- Uma demão de tinta fresca talvez me Tudo rigorosamente de acordo com os ram, pela vida casta e generosa? Onde ensine a sorrir novamente, e me devolva, padrões dietéticos prescritos, a fim de esconderam os caramelos da minha in- com o róseo tom das bochechas, o que que o sobrepeso não se instale, nem no fância? As geleias e rapaduras, com que é ainda mais auspicioso: o alvo sonho ventre, nem nas nádegas, que isso, além as vovós adoçavam minha gula? – Serão de paz! de feio, é prejudicial ao corpo como esses os desígnios de Deus que, mesmo um todo. sem compreendê-los, ensinaram-me a Daí que, a fim de cumprir minha par- respeitar? te, propus-me ser assídua nos deveres, Falando sério, eu esperava mais da (Helena Rotta de Camargo é membro da Academia menos apreciadora do chocolate, do liberalidade divina, de Sua competência, Passo-Fundense de Letras.)

148 Água da Fonte Novembro de 2012 Comemoração do Dia Municipal do Escritor

DILSE PICCIN CORTEZE Sua história data de, aproxima- dos textos: a escrita manuscrita, a damente, seis mil anos. Os vários publicação impressa, o texto ele- povos utilizaram os mais diferentes trônico”. o dia 7 de abril, juntam- tipos de materiais, para registrar a No decorrer dos tempos o livro se duas comemorações sua passagem pelo mundo, aprimo- evoluiu e é importante revermos N importantes para este so- rar e difundir seus conhecimentos e seu conceito, para entendermos dalício. Além do aniversário da experiências. este processo evolutivo. O texto APL, comemoramos também o Dia Com o surgimento da imprensa, eletrônico não encerra a vida do Municipal do Escritor, criado, pela houve uma transformação da rea- livro impresso, nem a existência Lei 3764, em 16 de agosto de 2001, lidade das sociedades, antes total- da leitura, mas abrange uma trans- por iniciativa do então vereador mente orais, nos âmbitos sociais, formação nas formas de construir Edison Nunes. culturais, políticos e religiosos. significados. À medida que o ho- Esta data é de grande importância Após a criação da imprensa, os mem tiver necessidade de registrar para Passo Fundo, Capital Nacional eclesiásticos temiam que ela es- sua história e seu pensamento, ele da Literatura, além de pólo regional timulasse a população comum, a criará novos elementos que atendam universitário e centro difusor de estudar textos religiosos por conta às necessidades do seu tempo, per- cultura, no Planalto Médio gaú- própria, em vez de acatar o que era mitindo uma leitura adequada aos cho. E também berço de centenas dito pelas autoridades. O Índice Ca- objetivos de cada leitor. de escritores, com publicações em tólico dos Livros Proibidos, criado Citamos o depoimento de uma diversas áreas do conhecimento, depois do Concílio de Trento, foi aluna do ensino médio, de Passo que passam pelas ciências humanas, uma tentativa de lidar com esse Fundo, que afirma: “Prefiro ter o jurídicas, médicas, além de vários problema. contato físico com o livro, porque outros gêneros da literatura. Neste século XXI, percebemos ler não é só decifrar as palavras, as Sabemos que o livro envolve um que, apesar do surgimento do e- frases, mas também imaginar o que suporte de importância cultural úni- book, o fim do livro impresso está se encontrará na próxima página. O ca, e está associado ao poder, devido distante de ocorrer, pelo contrário, processo de leitura do livro é mais ao saber que a ele é atribuído, e ao está acontecendo uma volta às ori- prático. É só abrir e ler”. valor simbólico que representa na gens, à busca pelo belo que domi- sociedade do conhecimento. Além nava os exemplares antigos. disso, o livro ainda se constitui num Assim como afirma Chartier, “o (Dilse Piccin Corteze é Mestre em História elemento referencial no processo de mais provável para as próximas Regional pela UPF. Autora de vários livros e capítulos de livros, entre eles: “Ulisses va ensino e aprendizagem. décadas é a coexistência, que não in Americ; História, Historiografia e Mitos Indica também sabedoria, status será forçosamente pacífica, entre as da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Membro da Academia Passo-Fundense de Letras, social e autoridade, decorrentes do duas formas do livro, e os três mo- professora da Rede Municipal de Educação e das saber que ele culturalmente possui. dos de inscrição e de comunicação Faculdades IDEAU.)

Água da Fonte Novembro de 2012 149 Quando a Academia e o Metodismo se entrelaçam em Passo Fundo

(fotos: arquivo H. m. b. corrêa)

1920 - Igreja Metodista, no início do sec. 20 2012 - Igreja Metodista, no seu 100º aniversário

HENRIQUE DE MESQUITA B. CORRÊA Brasil, no ano de 1911, chegando, como é deste fato histórico que advêm a razão muitas famílias italianas, em busca de de os metodistas serem chamados de “O um recomeço de vida em solo brasileiro. povo do coração aquecido”. o ano em que a Igreja Metodis- Na sua juventude, Barbieri “era um Daquela data em diante, Wesley inicia ta, em Passo Fundo, festeja o jovem agnóstico, um livre pensador, um vigoroso processo de reforma e avi- N seu centenário, e a Academia imbuído de idéias revolucionárias, e vamento evangélico, na Inglaterra, que Passo-Fundense de Letras alcança seu simpatizante dos ideais anarquistas”, depois se disseminaria pelos Estados 74° aniversário, mais do que justo e fato reconhecido por ele próprio, e Unidos da América, alcançando em se- oportuno é relembrar o momento em relatado mais tarde por Gilberto Cunha. guida outras nações, entre elas, o Brasil. que ambas estiveram intimamente vin- Mas, façamos uma pequena parada É importante mencionar que Wesley culadas. Este fenômeno aconteceu no nos relatos históricos até aqui contados, não tinha intenção de criar uma nova ano de 1938, na pessoa do Reverendo e retrocedamos aos idos do séc. XVIII, Igreja, e ele mesmo se considerava Sante Uberto Barbieri, exatamente o na Inglaterra, a fim de conhecer alguns um ministro da Igreja da Inglaterra ano da fundação do Grêmio Passo- fatos da formação da Igreja Metodista, (Anglicana ou Episcopal). Não queria Fundense de Letras que, mais tarde, para um perfeito conhecimento de um separar-se dela, apenas reformá-la. Ele seria denominado Academia Passo- dos pilares da vocação desta Igreja. recebera sua formação teológica para Fundense de Letras. assumir um ministério na igreja Anglica- Busquemos agora relembrar os fatos John Wesley e o metodismo na, em Oxford e, já aos 17 anos, começa passados que permitirem mostrar o a estudar teologia naquela faculdade, compartilhamento histórico dessas duas A história do metodismo tem seu iní- vindo, futuramente, a tornar-se um de nobres instituições. cio emblemático no dia 24 de maio de seus professores. 1738, em Londres. Neste dia, Wesley, John Wesley e seu irmão Charles, Barbieri entra em cena pastor da Igreja Anglicana, é convidado o primeiro um jovem professor, e o a participar de uma reunião dos mora- segundo um aluno da Universidade de Corria o ano de 1938, e o pastor da vianos, numa capela situada na rua Al- Oxford, começam, durante suas vidas Igreja Metodista em Passo Fundo, no dersgate, na capital inglesa. Na reunião, acadêmicas, a reunir-se com um grupo triênio 1936/39, era o jovem Rev. Bar- durante a leitura da interpretação feita de estudantes no intervalo das aulas bieri, com apenas 36 anos de idade. Este por Lutero, sobre a Epístola de Paulo regulares, para meditação bíblica e ora- italiano, nascido na cidade de Duevile aos Romanos, Wesley conta ter sentido ção, sendo o grupo cognominado pelos (1902) imigrou com seus pais para o “o coração estranhamente aquecido”. E colegas universitários de “Clube Santo”.

150 Água da Fonte Novembro de 2012 Blog L. Wesley’s COMMUNITÀS de Luís Wesley de Souza http://www.metodista.org.br série, repetir a Ilíada de Homero, que fizessem versos em grego e lessem a bíblia hebraica. John Wesley estava convencido, como informa Richard Hatzemrratter, de que qualquer estu- dante, que completasse o currículo de Kingswood, seria um estudante melhor do que noventa por cento dos graduados em Oxford e Cambridge.

Barbieri, o bispo educador

Assim, esta vocação educacional é evidenciada, com a criação de um grande número de colégios, faculda- des e universidades, espalhadas pelo O jovem Sante Uberto Barbieri John Wesley (1703 – 1791) mundo todo. No Brasil, as escolas Metodistas se Ele mesmo não inventou este nome, sua missão religiosa, luta para melhorar multiplicaram, e consolidaram uma mas alguns outros alunos, notando que as condições de vida do ser humano, rede que hoje está presente em dez (10) os membros do grupo tinham horário e que precisa, entre tantas outras coisas, estados brasileiros, incluindo duas (2) método para tudo o que faziam, desde- de educação, de emprego decente, de universidades, três (3) centros univer- nhosamente, os chamavam de “meto- saúde e bem-estar”. sitários, três (3) faculdades integradas. distas”. O nome seria posteriormente Wesley mesmo cuidou de preparar São cinquenta e sete (57) escolas de aplicado a esta nova igreja, mantendo-se os pastores da nova Igreja. Em 1747, Educação Básica, de pequeno, médio e até os dias coevos. surgiu o primeiro seminário teológico grande porte. Além dessas instituições, Conta Mateu Lelièvre que: “em 19 metodista, em Newcastle, na Inglaterra. a Igreja Metodista mantém uma (1) de setembro de 1725, Wesley recebeu Não bastava transmitir conhecimentos Faculdade de Teologia e seis (6) Insti- das mãos do bispo Potter a ordenação ao povo que se achegava ao movimento. tutos, Centros e Seminários Teológicos. de diácono, a primeira das ordens sa- Era preciso, na visão de Wesley, preparar Essa rede de instituições educacionais gradas da Igreja Anglicana. Em março também os seus pregadores e líderes. reafirma a visão de John Wesley: Igreja de 1726, recebeu sua ‘toga de honra’ do A preocupação com o conhecimento ia e Educação como organizações indis- Lincoln College, da Universidade de a tal ponto, que ele dizia aos seus pre- sociáveis. Oxford e, em setembro do mesmo ano, gadores para fazerem a escolha, entre E, confirmando esta vocação também recebeu novas distinções acadêmicas adquirir o hábito da leitura e ler muito, aqui em Passo Fundo, lembramos a como literato de excelente gosto, muito ou voltar aos antigos ofícios. criação do “Instituto Gymnasial” – o versado nas literaturas antigas e de suma A recomendação era no sentido de IE – nos idos de 1920. Já com métodos habilidade nos debates filosóficos”. que, pelo menos cinco horas a cada dia, inovadores para a nossa região, “que- Continua Lelièvre em sua narrativa, fossem reservadas à leitura. “Sem ler in- brava, segundo Osvandré Lech, dois afirmando que “em novembro de 1726 tensamente” – dizia Wesley – “ninguém paradigmas: sistema misto e orientação seus superiores demonstram confiança pode ser um pregador profundo, nem metodista, em cidade de pronunciada nele, ao chamá-lo para ocupar a cátedra tampouco um completo cristão”. influência da Igreja Católica. No início de literatura grega e presidir os debates Em 1748, fundou a Escola de Kin- das atividades albergava 63 meninos e públicos dos estudantes. Nesta ocasião, gswood, próximo às minas de carvão, 58 meninas”. não tinha mais de vinte e três anos. Três a qual comemorou, em 1998, os 250 Márcia Maria de Medeiros corrobo- meses depois, recebeu o grau de mestre anos de sua existência. Era rigoroso ra o relatado de Lech, ao relembrar o em artes (ou humanidades), depois o currículo da escola, naquela época embate entre metodistas e católicos, na de apresentar três teses em latim, das destinada a crianças, especialmente aos esfera educacional em Passo Fundo, nos quais só chegaram até nós os títulos: De filhos dos pregadores metodistas. A lista idos da década de vinte. ”Estava, pois, Anima brutorum, De Julio Caesare e De de matérias incluía leitura, escrita, arit- formada uma das áreas onde católicos e Amore Dei”. mética, francês, latim, grego, hebraico, metodistas confrontar-se-iam, em Passo Afirma também João W. Dornellas retórica, geografia, cronologia, história, Fundo, a saber, a esfera educacional, que: “apesar desta denominação evan- lógica, ética, física, geometria, álgebra e em que o Instituto Ginasial e o Colégio gélica não ser um movimento especifi- música. Para facilitar o ensino dos idio- Conceição proclamavam a si próprios, camente destinado a oferecer conheci- mas, John Wesley preparou gramáticas como o melhor. Contudo, a questão mento, pode-se dizer, perfeitamente, que de inglês, de latim, de francês, de grego mais importante era o fato de que ambas uma das características dos metodistas e de hebraico. O texto dessas gramáticas disputavam o direito de educar a fina flor é o seu superlativo comprometimento foi preservado, e faz parte da Coleção da sociedade passo-fundense, a futura com a educação do ser humano”. “É Jackson, que reúne 14 livros com obras elite dirigente do município”. assim a Igreja Metodista, empenhada em de John Wesley. É neste cenário histórico da década de implantar o Reino de Deus na terra. Mas, Voltando à escola de Kingswood, de 20 que o Rev. Luis de Souza Cardoso ao mesmo tempo, como consequência de seus alunos se esperava que, na última relata o início da relação de Barbieri

Água da Fonte Novembro de 2012 151 http://iepassofundo.educacional.net/fotos.asp modesto Manual, na esperança de que seja instrumento valioso, na vida de cada jovem que o estiver manuseando, e procurando descobrir o verdadeiro sentido da existência humana”. No ano de 1940, deixou definitiva- mente o Brasil, passando a servir a Mis- são Metodista no Uruguai e na Argen- tina. E em Buenos Aires, foi designado reitor do Union Theological Seminary, tendo sido eleito Bispo pela Conferência Central Metodista da América Latina. No ano seguinte, a Igreja Metodista do Brasil concedeu a Barbieri também o título de Bispo Emérito. Em 1949, como Bispo da United IE - Instituto Gymnasial -1922 – Prédios Texas em construção Methodist Church, dirigiu as Igrejas da Argentina, Bolívia, Uruguai e Peru, até com o metodismo: “O missionário meto- até outubro daquele ano, quando se de- sua respectiva autonomia. Em 1949, foi dista Rev. Daniel Lander Betts conheceu mitiu por divergências com o Conselho presidente da Primeira CELA – Confe- Barbieri, então com 19 anos, proferindo Superior. rência Evangélica Latino-americana. conferências no auditório da Prefeitura Tinha Barbieri uma personalidade Posteriormente, em 1954, foi eleito municipal. Seus temas: a “Liberdade”, paternal e amorosa, em relação a seus presidente do CMI - Conselho Mundial em honra da Revolução Francesa; e a discípulos, na igreja e no ambiente de Igrejas. Na década de 1970, ajudou a “Caridade”, baseado em teses sobre a estudantil. E isto pode ser claramente fundar o CIEMAL – Conselho de Igrejas defesa da dignidade humana”. demonstrado pelas palavras escritas por Evangélicas Metodistas da América La- Logo Betts percebeu seu potencial, e ele, em 15 de novembro de 1938, no tina, e foi um dos principais articulado- o convidou para continuar seus estudos prefácio de seu livro Jesus de Nazaré: res da organização do CLAI - Conselho e trabalhar no Instituto Gymnasial. “Este manual, escrito para apresentar Latino-Americano de Igrejas. Barbieri, na ocasião, ainda não tinha a personalidade do Mestre da Galileia, condições de perceber quão próximo em sua vida e em seus ensinos, aos jo- O propugnador do Grêmio estava, por seus ideais de liberdade, vens ginasianos, devia ter saído a lume Passo-Fundense de Letras justiça e defesa da dignidade humana, quatro anos antes. As muitas ocupações, do cristianismo, da teologia wesleyana porém, e outros encargos literários, não Paulo Monteiro apresenta alguns e da tradição metodista. Aos poucos nos permitiram que ultimássemos o trechos da Ata da Sessão de Fundação foi se integrando com a leitura da Bí- trabalho antes de agora.” do “Grêmio Passo-Fundense de Letras” blia e conheceu as práticas e a piedade “Procuramos dar uma apresentação que revela qual era o clima daquele ato metodista. tão simples e prática, quanto nos foi solene. No primeiro domingo de abril, de dado. Nem sempre isto é fácil, porque “Em seguida o Rev. Sante Uberto 1923, Barbieri foi recebido como mem- o que parece claro ao mestre, pelo Barbieri pediu a palavra e expôs o seu bro da Igreja Metodista em Passo Fundo. tirocínio continuado, pode ser obscu- pensamento sobre a entidade literária Três meses depois, recebeu da Confe- ro aos alunos. Mas o professor, que que se estava fundando, dizendo o que rência Distrital de Cruz Alta a credencial estiver guiando os alunos no curso, o levava a congregar os intelectuais de de “pregador local”. Em 1926, mais saberá, com certeza, aclarar os pontos Passo Fundo para a presente reunião, tarde, foi o primeiro aluno a formar-se obscuros, ampliar os fatos resumidos, falando do pedido da ‘Academia Rio- pelo Porto Alegre College. Bacharel em preencher as faltas encontradas Não há Grandense de Letras’ para, como seu de- Artes e Teologia, obteve grau de Mestre trabalho humano que seja perfeito. E legado, pôr em execução, nesta cidade, o em Antigo e Novo Testamento, na Sou- este não tem a pretensão de ser perfeito, plano da ‘Federação de Letras’ do Brasil, thern Methodist University e na Emory especialmente quando tratamos de um bem como, traçou em linhas gerais as University, nos Estados Unidos, de onde estudo da Vida de Jesus e seus ensinos: finalidades essenciais do Grêmio. voltou ao Brasil em 1933, para dirigir Vida e Ensinos que vão alargando mais Serenados os aplausos que sucede- a Faculdade de Teologia do Concílio a nossa visão, quanto mais nos aprofun- ram às ultimas palavras do orador, o Regional do Sul. Assim, no período de damos neles”. Presidente passou a deliberar com a 1923/33 Barbieri viveu um profundo E finaliza: “Nosso intuito, e o da Jun- Assembleia os pontos que deveriam processo de imersão nas instituições ta Geral de Educação Cristã da Igreja ficar assentados, para o normal fun- educacionais metodistas, no Brasil e nos Metodista, é que os alunos possam cionamento do Grêmio, até que fosse Estados Unidos. compreender o valor da religião cristã organizado definitivamente, de acordo Barbieri foi ainda o primeiro reitor na vida, e ter uma apreciação entu- com as normas que serão estabeleci- da Faculdade de Teologia (FaTeo) da siasta de Jesus, o Mestre dos mestres. das pela “Academia Riograndense de Igreja Metodista, criada pelo 3º Concílio Se tivermos conseguido isso, daremos Letras”. Geral, em fevereiro de 1938, dirigindo por bem empregado o nosso tempo. O Sr. Heitor Pinto Silveira, pedindo os primeiros passos de sua implantação, As nossas orações acompanham este a palavra, propôs e justificou que fosse

152 Água da Fonte Novembro de 2012 consignado em ata um voto de louvor, ao Revdo. Sante Uberto Barbieri, homena- gem devida pela dedicação e entusiasmo que dispensara à fundação do “Grêmio Passofundense de Letras”. A proposta foi aprovada unanimemente com uma prolongada salva de palmas. É interessantíssimo também o relato da doação feita por Barbieri, ao Grêmio, do primeiro livro, denominado “A Ação Social da Igreja”, e assim transcrita nesta mesma ata inaugural: “Em tempo: Ao ser lida a presente ata e sua aprovação, pediu a palavra o Sr. Daniel Dipp, para solicitar que ficasse consignada a proposta do Sr. Túlio Fon- toura, que foi aprovada pela Assembleia, referente à doação do primeiro livro à biblioteca do Grêmio, pelo Revdo. Sante Uberto Barbieri - livro este de sua autoria.” Assim, a ação desenvolvida pelo reverendo Barbieri, em 07 de abril de 1938 , transforma-o no principal agen- te propulsor da criação da Academia Passo-Fundense de Letras, e não deve ser encarado apenas como um ato ca- sual ou fortuito da nossa história. Pois demonstra claramente a fusão do pen- samento de um Bispo metodista com a de um Reitor e professor universitário, assentado numa emergente sociedade cultural, na Passo Fundo do primeiro terço do século vinte.

Barbieri o Bispo educador e acadêmico

Nos dias atuais, a cadeira número 18 passou a ter como patrono Sante Bispo Sante Uberto Barbieri Uberto Barbieri. A Academia, por sua vez, instituiu de forma mui justa, a é o fato de ser, a atual presidência da Fundense de Letras. Comenda do Mérito Cultural “Sante Academia Passo-Fundense de Letras, Sua alegria estaria alicerçada na Uberto Barbieri”, o principal prêmio aos ocupada pelo renomado ortopedista convicção plena de ter sido o grande destaques por mérito cultural, na cidade Dr. Osvandré Lech, um ex-aluno do catalisador, daquela saudável reação que de Passo Fundo. IE (Instituto Educacional Metodista de fomentou a criação da atual Academia, Outra situação fortuita que, ao fes- Passo Fundo). e de uma fantástica geração de acadê- tejar o Centenário da Igreja, reforça o Sante Barbieri faleceu em Buenos micos passo-fundenses. Parafraseando entrelaçamento entre os metodistas e a Aires, em 13 de fevereiro de 1991, onde o apóstolo São Paulo, pode-se também Academia, e que merece ser realçada, está enterrado. Sua obra literária conta afirmar: com mais de oitenta livros publicados em português, inglês, espanhol e ita- “Eu plantei, Apolo regou; mas o Biblioteca do autor liano, compreendendo teologia, prosa, crescimento veio de Deus. novelas e contos. De modo que, nem o que planta é al- Finalizamos, com a certeza de que o guma coisa, nem o que rega, mas Deus pastor e professor Sante Uberto Bar- que dá o crescimento.” 1 Co 3:6-7 bieri, se vivo fosse, estaria presente na atual comemoração do Centenário da sua amada Igreja, em total regozijo decorrente daquela profícua reunião, (Henrique de Mesquita Barbosa Corrêa é médico no longínquo ano de 1938, quando se administrador hospitalar, superintendente do IOT / fundou, nesta cidade, oo Grêmio Passo- Passo Fundo, e membro da Igreja Metodista.) Parte da obra literária de Barbieri Água da Fonte Novembro de 2012 153 O cônego João Pedro Gay e o general David Canabarro

PAULO MONTEIRO

história do Rio Grande do Sul tem alguns assuntos que são A verdadeiros tabus. Três deles envolvem uma das mais estranhas perso- nalidades do século XIX: David Martins da Silva, que entrou para o panteão rio-grandense com o nome de David Canabarro, adotado ao aderir à Revolu- ção Farroupilha. O saque ou massacre de Imaruí, ocorrido em 9 de novembro de 1839; o massacre de Porongos, a 14 de novembro de 1944, e as acusações de que o então brigadeiro teria contribuído com sua omissão, para que os invasores paraguaios saqueassem os municípios de São Borja, Itaqui e Uruguaiana, durante a “guerra contra o governo do Paraguai” são os acontecimentos em epígrafe. Quando nos aprofundamos no estudo daqueles fatos, concluímos que se unem umbilicalmente. João Pedro Gay, cônego nascido em Altos Alpes, França, em 20 de novembro rio-grandenses, mormente ao brigadeiro do Sul, 1981, p. 93) a 16 de setembro de 1815, e falecido em Uruguaiana, a David Canabarro, que são defendidos de 1865, dois dias antes que os para- 19 de maio de 1891, é autor de uma pelo general Souza Doca. guaios se rendessem: “A idade, dando obra escrita sob o calor dos aconteci- Nas acusações de que Canabarro, por ao general Canabarro um excesso de mentos, intitulada História da Invasão omissão, contribuiu para que larga parte corpulência, já lhe diminuiu um tanto Paraguaia na Fronteira Brasileira, cuja do Rio Grande do Sul fosse saqueada e as faculdades. Ao contrário do Barão de primeira edição é de 1865, promovida talada pelos invasores guaranis, cabe Jacuí [Francisco Pedro de Abreu], foi o pelo Instituto Histórico e Geográfico grande responsabilidade à obra do general outrora republicano, “farrapo” Brasileiro. Entre 1921 e 1922, foi repu- cônego João Pedro Gay. Repercutiram em gíria rio-gradense. Foi isto há 20 blicada na Revista do Instituto Histórico na imprensa da Capital do Império e no anos; o Imperador e o governo já há mui- e Geográfico do Rio Grande do Sul. Em Parlamento Nacional, motivando que o to o esqueceram; porém, outras pessoas 1942, a Imprensa Nacional do Rio de velho general farroupilha respondesse não: o general tem muitos desafeiçoados Janeiro promoveu outras duas edições, um inquérito militar. O inquérito aca- no exército; e infelizmente a guerra atual largamente anotadas pelo conhecido bou arquivado por ordem do Marechal não os fez calar. Era ele que, antes da historiador e militar, Emílio Fernandes Manuel Luís Osório. É a este inquérito chegada do general Caldwel, achava-se de Souza Doca. A edição mais recente, que alguns, erroneamente, atribuem incumbido da defesa das fronteiras da que tenho sob meus olhos, é de 1980, os fatos ocorridos na noite de 14 de província, e é, portanto, sobre ele que, em coedição do Instituto Estadual do novembro de 1844, no Serro de Poron- com razão ou sem ela, há quem faça Livro, da Universidade de Caxias do gos. A anistia imperial apagou toda e pesar a responsabilidade da invasão Sul e da Escola Superior de Teologia qualquer responsabilidade penal sobre estrangeira”. São Lourenço de Brindes. Leva o títu- os “crimes” cometidos durante a Revo- Outro acusador de Canabarro foi lo de Invasão Paraguaia na Fronteira lução Farroupilha. A memória coletiva, Francisco Pedro de Abreu, conhecido Brasileira do Uruguai. Nesta edição, contudo, continuou implacável. como Chico Pedro, Moringue ou Fui- a História do Cônego João Pedro Gay Vejamos o que depôs o Conde D’Eu nha, que derrotou as forças farroupi- ocupa 144 páginas, enquanto os “adita- (Belo Horizonte/São Paulo: Editora lhas, no episódio que ficou conhecido mentos” de Souza Doca, 222 páginas. O Itatiaia/Editora da Universidade de São como Massacre de Porongos. Conta-se cônego não poupa críticas aos militares Paulo. Viagem Militar ao Rio Grande que, às portas de Uruguaina, só não se

154 Água da Fonte Novembro de 2012 bateram à espada graças à intervenção do Imperador. No dia 9 de novembro de 1939, cumprindo ordens de David Canabarro, maior autoridade militar da República Um churrasco Catarinense, José Maria Garibaldi comandou o saque e o massacre da sublevada povoação de Imaruí. No dia 15 desse mês, deixando atrás de si um do imperador rastro de sangue, os farroupilhas aban- donaram Laguna. Nem mesmo o vigário de Laguna que, de início, apoiara os farroupilhas, escapou à degola... PAULO MONTEIRO Os dados biográficos de João Pedro Gay, que acompanham a edição da In- vasão Paraguaia na Fronteira Brasileira um desses sábados, quando do Uruguai (Ed. Cit., 1980, p. 9) trazem nós, integrantes do Proje- a seguinte informação: “Em princípios N to Passo Fundo, como de de 1843, veio para o Rio de Janeiro, costume, nos encontramos no Café seguindo daqui para Santa Catarina e, Riviera, por lá apareceu o confrade nessa Província, exerceu as funções de Luiz Juarez Nogueira de Azevedo. pároco encomendado da freguesia de Conversa vai, conversa vem, acaba- Santa Ana, na Câmara de Laguna, de mos caindo nos Contos Gauchescos, 15 de junho de 1843 a 24 de julho de de Simões Lopes Neto, que está zinhos!... Por que não disse antes, 1844, com ‘estima de seus paroquianos, virando filme. senhor? Com trezentos diabos!... pelo grande zelo que tem empregado na O professor Juarez Azevedo aca- Ora esta!... direção das almas’, conforme atestado bou lembrando esta passagem do – Vamos já a um churrasco... que passado pelo Padre João Jacinto de São conto “Chasque do Imperador”: eu, também, não aguento estas por- Joaquim, vigário da vara da Comarca “Numa cidade onde pousamos, o queiras!... de Laguna”. imperador foi hospedado em casa Não me recordo que essa história Pouco mais de três anos após os dum fulano, sujeito pesado, porém conste das muitas narradas pelo violentos episódios promovidos pelos gauchão. Conde D’Eu, no seu livro “Viagem farroupilhas, em Imaruí e Laguna, o Quando foi hora do almoço, na Militar ao Rio Grande do Sul”. Ali cônego João Pedro Gay estava em mesa só havia doces e doces... e nada estão muitas e engraçadas passagens Santa Catarina. E logo a seguir passou mais. O imperador, por cerimônia, gastronômicas. Uma delas, passada a exercer seu ministério em Laguna. O provou alguns; a comitiva arriou às 14 horas do dia 25 de agosto de que ouviu dos contemporâneos, até sob aqueles cerros açucarados. Quando 1865, é a seguinte: “(...) O carro que o sigilo do confessionário, explodiria foi o jantar, a mesma cousa: doces trazia o jantar quebrou-se e todos os vinte e um anos depois, em Uruguaiana. e mais doces! Para não desgostar o alimentos se espalharam pelo charco. Era a “santa ira” do antigo sacerdote home, o imperador ainda serviu-se, Temos, pois, de aceitar com reconhe- de Laguna, contra David Canabarro, mas pouco; e de noite, outra vez, cimento a carne de vaca meio-assada, acusado de responsável maior por arbi- chá e doces! que a dona da casa nos traz espetada trariedades praticadas durante a efêmera O imperador, com toda a sua im- num pau (ao que parece, ela não tem República Catarinense. peradorice, grunhiu fome! pratos). O General Cabral apodera-se Os fantasmas de Imaruí, Laguna e No outro dia, de manhã, o fulano dele e, arvorando-se ‘maître d’hôtel’, Porongos, encarnados no cônego João foi saber como o hóspede havia vai distribuindo os bocados que vai Pedro Gay e no Barão do Jacuí, foram passado a noite e, ao mesmo tempo, cortando com uma faca. A opera- acertar suas contas com David Canabar- acompanhava uma rica bandeja com ção pode ser suja; mas, realmente, ro, durante a retomada de Uruguaiana. chá e... doces... o sabor é excelente. Esta carne de Dali, o alquebrado general retornou para Aí o imperador não pode mais... vaca assada chama-se, nesta região, Sant’Ana do Livramento, onde faleceu a estava enfarado!... “churrasco”. (...)”. 12 de abril de 1867. (Publicado parcial- – Meu amigo, os doces são magní- ... e esse foi um dos muitos chur- mente no Jornal Rotta, Ano 11, II Fase, ficos... mas eu lhe agradeceria muito rascos do imperador, na guerra contra nº 220, Passo Fundo, de 16 de maio a 5 se me arranjasse antes um feijãozi- o Paraguai. de junho de 2012, p. 6). nho... uma lasca de carne... O homem ficou sério... e depois (Paulo Monteiro, membro da Academia Passo- largou uma risada: Fundense de Letras, é autor dos livros: Combates da Revolução Federalista em Passo Fundo, O (Paulo Monteiro, membro da Academia Passo-Fundense – Que? Pois Vossa Majestade Massacre de Porongos & Outras Histórias Gaúchas, de Letras, é autor dos livros: Combates da Revolução come carne?! Disseram-me que A Campanha da Legalidade em Passo Fundo e Eu Federalista em Passo Fundo, O Massacre de Porongos & as pessoas reais só se tratavam a resisti também cantando, além de centenas de Outras Histórias Gaúchas, A Campanha da Legalidade artigos e ensaios sobre temas históricos, culturais em Passo Fundo e Eu resisti também cantando, além bicos de rouxinóis e doces e pastei- e literários). de centenas de artigos e ensaios sobre temas históricos, culturais e literários). Água da Fonte Novembro de 2012 155 Sobre “bullshit” e assemelhados

Não é de hoje que se fala muita que com um mentiroso. Este é conhe- “merda”. Mas parece que essa carac- cedor da verdade e, deliberadamente, terística da sociedade contemporânea, tenta nos persuadir para a sua versão. indiscutivelmente, se acentuou com O “falador de merda” não tem maiores a democratização do acesso aos cuidados com a verdade das coisas, até veículos de comunicação (com por ignorá-la, e simplesmente tenta nos destaque para a Internet). É impressionar, chamando a atenção para quase inevitável que “fale merda” a sua pessoa. Embora não se deva igno- alguém que é instado a falar ou rar que a “falação de merda”, dependen- opinar sobre coisas que não domina do do uso que o receptor da mensagem ou que extrapolam os limites do seu faça dela, possa ser tão danosa quanto conhecimento. Numa época em que se a mentira. convencionou, “mais que um direito, As expressões que se enquadram quase um dever”, de que qualquer facilmente na categoria de “bullshit/ cidadão tenha opinião sobre tudo, não merda” são figuras de retórica, muito poderia ser diferente. Foi assim que, usadas em discursos de políticos, em motivado pela falta de uma teoria sobre campanha eleitoral. Todavia, seria o assunto, e em busca de uma melhor injusto considerá-las como de exclu- compreensão do tema, o professor sividade da classe política. Abundam Harry Frankfurt, em 1986, escreveu “merdas”, com a conotação figurada de um pequeno ensaio intitulado “On “bullshit”, em textos de jornalistas, em bullshit”, que depois foi publicado opiniões de colunistas e também, sendo em livro, por insistência dos edito- algo mais comum do que se imagina, em res e com certa relutância do autor, artigos científicos e, principalmente, nas pela Princeton University Press. opiniões de cientistas, quando visam ao Aclamada pela crítica, a obra virou alcance de coisas que estão um pouco bestseller nos EUA e ganhou traduções mais além dos domínios da corpora- GILBERTO R.CUNHA para vários idiomas (16), entre os quais ção. Todos temos telhados de vidro, o português. para sairmos por aí jogando pedras nos Afinal, que se entende por “bullshit” outros. Apenas como exemplo, há o esmo que alguns leitores, de ou “falar merda”? No contexto explora- caso de alimentos ou hábitos pessoais, sensibilidade mais aguçada do por Harry Frankfurt, “falar merda” das dietas de celebridades, etc., que M e preferências literárias por é diferente de mentir, uma vez que não ora são tidos como a causa, ora como textos refinados, possam torcer o nariz envolve falsidade. É impossível alguém a cura do câncer. Nessas situações, a para o palavreado usado nesse artigo, mentir a menos que julgue conhecer falta de senso é tamanha que, não raro, não encontrei melhor tradução para o a verdade. “Falar merda” não requer sequer suscita a necessidade de esclare- verbete “bullshit”, no contexto em que essa convicção. Uma pessoa honesta, cimentos posteriores, de quem compete é comumente usado, que “falar merda”. quando fala, diz apenas o que ela acre- ou domina o assunto. Antes de tudo, Inclusive, a edição brasileira do livro dita ser a verdade. Para um mentiroso, na maioria desses casos, há falhas no “On bullshit”, de autoria de Harry Gor- é indispensável que ele considere suas manuseio de dados e de informações, don Frankfurt, que é filósofo moralista próprias afirmações como falsas. A além de deficiências acadêmicas que e professor emérito da Universidade mentira não tem outro objetivo a não ser são “gritantes” em alguns profissionais, Princeton/USA, publicada em 2005, a propagação da falsidade. O desonesto mesmo ostentando titulações de M.S. e pela Intrínseca, também não escapou usa suas versões, consciente disso, para de Dr., que se somam, muitas vezes, a do sugestivo título “Sobre falar merda”. servir, única e exclusivamente, a seus interpretações apressadas, quando não, E não escapou do quase literal, porque propósitos e, não raro, contando com a interessadas. eufemismos como “abobrinha”, “enro- cumplicidade de terceiros, para atingir lação”, “conversa fiada”, “papo furado”, seus intentos doentios, contra desafetos. “empulhação” e outros tantos, não têm a Em geral, há uma tendência de maior força de expressão do populesco “falar complacência da sociedade com um (Gilberto R. Cunha é membro da Academia Passo- merda”, que por si só diz tudo. “bullshitter”, ou “falador de merda”, do Fundense de Letras.) 156 Água da Fonte Novembro de 2012 Água da Fonte Maio de 2011 1 Av. Brasil Oeste, 792 - Sede própria - CEP 99010-001 - Passo Fundo/RS