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Revista do Instituto Humanitas IHUNº 499 | Ano XVI 19/12/2016

ISSN 1981-8769 (impresso) ISSN 1981-8793 (online) Hospitalidade Desafio e paradoxo Por uma cidadania ativa e universal

Alain Montandon: A difícil e necessária dádiva da reciprocidade Marco Dal Corso: A emergência de uma humanidade atravessada pela hospitalidade Placido Sgroi: Um símbolo radical da condição humana

Morte e vida severina - João Cabral de Melo Neto A atualidade do auto de Natal em tempos de retirantes globais Thaís Toshimitsu: Braulio Tavares: Eli Brandão: Cabral tornou-se Reflexão sobre a linguagem é O nascimento de um Jesus- influência insuperável o principal da poesia cabralina severino e a vitória da esperança Editorial Hospitalidade – Desafio e paradoxo. Por uma cidadania ativa e universal

ma dádiva de si, que abre ca­ Para Faustino Teixeira, da Universi­ minhos para o diálogo com o dade Federal de Juiz de Fora, “o diá­ UOutro, aquele desconhecido logo é uma ‘cartografia inacabada’, que que bate à nossa porta em busca de vai se tecendo com as linhas da humil­ acolhida. Embora magnífico, o gesto dade e genero­sidade”. de acolhimento não resguarda em si A sutil linha que costura em igualdade apenas a maravilha do encontro, mas refu­giados e retirantes, ambos migran­ também tensões que surgem no limiar tes, ambos fugitivos do desajuste climá­ desses dois mundos que se encontram tico, ambos es­trangeiros, uns globais, A IHU On-Line é a revista do Instituto e até mesmo se chocam. Para debater outros dentro do próprio­ território, Humanitas Unisinos - IHU. Esta publicação o paradoxo e os desafios da hospitalida­ conduz do debate sobre a hospitalidade pode ser acessada às segundas-feiras no sítio de, num tempo caracterizado pela glo­ às discussões sobre os 60 anos da publi­ www.ihu.unisinos.br e no endereço www. balização da indiferença, segundo, in­ cação de Morte e vida severina – auto ihuonline.unisinos.br. clusive, a descrição do papa Francisco, de Natal pernambucano, de João Cabral A versão impressa circula às terças-feiras, a de Melo Neto. Neste sentido a IHU On- testemunhamos milhares de refugiados partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo da Line retoma esta importante obra da e migrantes que enfrentam mares, de­ IHU On-Line é copyleft. sertos e muros, na busca de um lar, e literatura brasileira,­ fazendo aproxima­ que são vistos não como ‘hospes’, mas ções com a realidade contemporânea. Diretor de Redação como ‘hostis’. Antonio Carlos Secchin, poeta, Inácio Neutzling ([email protected]) A revista IHU On-Line, no contexto ensa­ísta, crítico literário e professor, chama aten­ção para a obstinação de Coordenador de Comunicação - IHU das festas natalinas, em que os textos Ricardo Machado - MTB 15.598/RS Cabral “em rejeitar as vias fáceis e flui­ evangélicos relatam que “não havia lu­ ([email protected]) gar para eles” (Lucas, 2, 7), debate o das do lirismo, e pela ou­sadia de per­ tema com pesquisadores de várias áre­ correr severamente os caminhos mais Jornalistas as. A hospitalidade, afirma o advogado íngremes da linguagem”. João Flores da Cunha - MTB 18.241/RS e professor da PUCRS Gustavo Lima Pe- Thaís Toshimitsu, doutora em Le­ ([email protected]) 2 reira, é “o reconhecimento da loucura tras, descreve a existência de Cabral João Vitor Santos - MTB 13.051/RS pela justiça perante o mistério do rosto como parte de sua própria obra. “A es­ ([email protected]) Márcia Junges - MTB 9.447/RS de outrem”. colha do Nordeste o implica diretamen­ te na situa­ção que se lê nos poemas e, ([email protected]) Alain Montandon, professor da Uni­ Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS versidade Blaise Pascal – Clermont II, na embora ele de­seje conceber-se somen­ te como espectador daquela vida mise­ ([email protected]) França, organizador da imponente obra Vitor Necchi - MTB 7.466/RS rável, é parte intrínseca dela.” de mais de 1.400 páginas intitulada O ([email protected]) livro da hospitalidade. Acolhida do es- Para Braulio Tavares, escritor, poe­ trangeiro na história e nas culturas ta, com­positor, letrista e pesquisador Revisão (São Paulo: SENAC, 2011), ressalta que de ficção cien­tífica e literatura fantás­ Carla Bigliardi a hospitalidade funciona “entre a lógi­ tica, João Cabral agia como se tudo no mundo fosse um conjunto de sinais que Projeto Gráfico ca da dádiva e da contradádiva”, existe Ricardo Machado “uma relação de complementaridade pudesse ser interpretado e compa­rado paradoxal”. com outros conjuntos de sinais. Editoração “Há excluídos ‘na’ e os excluídos ‘da’ Eli Brandão da Silva, doutor em Rafael Tarcísio Forneck sociedade. Ser excluído é estar ‘fora do’ Ciências da Religião, analisa o poema no seu âmbito de auto de Natal, fazendo Atualização diária do sítio espaço­ (real ou simbólico) dos incluí­ a analogia de que “o anúncio alcança Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia Fachin, dos”, des­creve Magali Bessone, profes­ imediatamente Se­verino e Carpina, re­ Cristina Guerini, Evlyn Zilch, Fernanda Forner sora de Filosofia Política. e Luísa Boésio. tirantes, marginalizados, mas também O teólogo e professor Marco Dal símbolos dos que têm esperança de en­ Corso pensa os desafios globais de aco­ Colaboração contrar vida”. lhimento a partir da necessidade da Jonas Jorge da Silva, do Centro de Pesquisa e Maria Augusta Torres, mestra em Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba- inau­guração de um outro tipo de huma­ Ciên­cias da Religião, trata da experiên­ PR. nidade fun­dada na hospitalidade. cia de fé e religiosidade nordestina que Símbolo radical da condição humana, são traba­lhadas no texto. a hospitalidade é marcada, ainda, pela Completam esta edição os artigos A preca­riedade e provisoriedade. Essas possível­ internalização dos interesses característi­cas representam uma tensão dos EUA no Brasil, do professor Bruno em relação ao Outro. Pensando a partir Lima Rocha, e a entrevista com o pen­ da realidade europeia,­ o teólogo Placi- Instituto Humanitas Unisinos - IHU sador português Boaventura de Sousa do Sgroi menciona que o grande desafio Av. Unisinos, 950 Santos sob o título A difícil reinvenção é colocar em prática esses preceitos. São Leopoldo / RS da democracia frente ao fascismo social. CEP: 93022-750 “Nós existimos e a humanidade exis­ A todas e a todos uma boa leitura e te porque­ originalmente cada um de nós os me­lhores votos de um Feliz Natal e Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 foi, pri­meiramente, hospedado, acolhi­ um ano de 2017 repleto de esperança, e-mail: [email protected] do. ‘Mãe’ é o nome da hospitalidade saúde e paz! Diretor: Inácio Neutzling ativa, da hospitalidade primordial”, Gerente Administrativo: Jacinto afirma o frade dominicano Claudio Imagem da capa: Nina Freitas/ Schneider ([email protected]) Monge, italiano radicado na Turquia. Flickr Creative Commons

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2016 | EDIÇÃO 499 Sumário

Destaques da Semana

6 Retrospectiva #Dossiê Morte e vida severina 12 Vitor Necchi: Poema de João Cabral de Melo Neto é emblema da miséria nordestina 14 Antonio Carlos Secchin: Morte e vida severina, ano 60 16 Thaís Toshimitsu: Cabral tornou-se influência insuperável 20 Braulio Tavares: Reflexão sobre a linguagem é o principal da poesia cabralina 23 Eli Brandão: O nascimento de um Jesus-severino e a vitória da esperança 28 Maria Augusta Torres: Severino e a experiência de fé e religiosidade nordestina

Tema de Capa

34 Alain Montandon: Hospitalidade, a difícil e necessária dádiva da reciprocidade 40 Magali Bessone: A necessidade da participação como critério prévio à cidadania 44 Marco Dal Corso: A emergência de uma humanidade atravessada pela hospitalidade 50 Placido Sgroi: Um símbolo radical da condição humana 3 53 Claudio Monge: Hóspede, aquele que acolhe e é acolhido 57 Faustino Teixeira: O sagrado dever da hospitalidade 60 Gustavo de Lima Pereira: O inimigo e o ladrão na figura do estrangeiro

IHU em Revista

70 João Vitor Santos: Biomas brasileiros, debate político nacional e os pensamentos de Agamben e Suárez na programação do IHU em 2017 73 Boaventura de Sousa Santos: A difícil reinvenção da democracia frente ao fascismo social 80 Bruno Lima Rocha: A possível internalização dos interesses dos EUA no Brasil 82 Publicações: Iraneidson Santos Costa - Jesuítas em campo: a Companhia de Jesus e a questão agrária no tempo do CLACIAS (1966-1980) Moisés Sbardelotto - A Igreja em um contexto de “Reforma digital”: rumo a um sensus fidelium digitalis? 83 Retrovisor

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IHU ON-LINE

Destaques da Semana DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Retrospectiva: 2016 e os temas que pautaram a IHU On-Line

Por João Vitor Santos | Edição: Ricardo Machado

conturbado e nebuloso ano de 2016 foi uma longa reverberação das inú- meras crises e sombras das nuvens que pairavam sobre nossas cabeças Odesde o segundo semestre de 2015. Por um lado, o cenário nacional teve a abertura de um processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff, prenunciando a tramitação de muitos reveses políticos pautados por uma ideia de combate à corrupção com repercussões muito além do Palácio do Planalto. Por outro, em âmbito global, as crises – das ambientais às econômicas e sociais – não davam sequer sinal de arrefecimento. Nem a mais completa – e complexa – análise seria capaz minimamente de prever ou mesmo entender os movimentos de 2016. Ao longo de todo este ano, a IHU On-Line se dedicou a esse exercício de observação e reflexão sobre os movimentos contemporâneos, tarefa difícil e sempre incompleta, sobretudo diante da movediça conjuntura nacional e internacional.

6 A quebra do pacto constitucional de 1988

No último dia 6/12, o presiden- tratados nos balcões de negócio do te Michel Temer encaminhou ao Estado com o sistema financeiro. Congresso Nacional a proposta de Sob o título ‘Reforma da Previdên- reforma da Previdência. Mas o as- cia Social e o declínio da Ordem sunto já vinha sendo debatido há Social Constitucional’, esse núme- muito mais tempo, desde o gover- ro traz pesquisadores que desmis- no petista. Tanto nas discussões no tificam o debate em torno da ideia início de 2016 como na proposta de déficit previdenciário e a neces- consolidada agora em dezembro, o sidade de uma reforma que ponha que está em xeque são os direitos em risco direitos constitucionais. constitucionais que asseguram qua- lidade de vida O tema da Previdência tem ao trabalhador. relação direta com outro assun- É diante desse to tratado pela IHU On-Line em cenário, e tam- 2016: a precarização do trabalho. bém em meio à Por ocasião do Dia do Trabalhador crise política e e Trabalhadora, o número 484, institucional do de 2-5-2016, traz o tema de capa país, que a IHU com o título A volta da barbárie? On-Line discu- Desemprego, terceirização, pre- te, na edição cariedade e flexibilidade dos con- número 480, tratos e da jornada de trabalho. de 7-3-2016, os O tema do trabalho é retomado rumos da se- anualmente. No entanto, o atual guridade social panorama do mundo do trabalho e o futuro de é difícil, complexo e sombrio. milhões de bra- Pesquisadores e pesquisadoras sileiros e brasi- que participam desta edição, leiras que são descrevem um cenário caracteri-

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zado pela imposição do princípio visto” é o acesso universal à saúde do negociado sobre o legislado, pública. O Sistema Único de Saúde aprofundamento da flexibilização – SUS passa a ser questionado, e o do trabalho, das jornadas, dos ministro da Saúde, Ricardo Barros, contratos, desmonte da política por sua vez, passa a pautar o deba- de valorização do salário míni- te sobre o tamanho do SUS. O IHU mo e ataque à Previdência So- entrou nessa discussão através de cial, com o aumento do tempo de notícias e entrevistas publicadas na contribuição e a diminuição dos seção Notícias do Dia de seu site, e benefícios. em 22-8-2016 condensou as análises no número 491 da revista IHU On- Nessa mesma linha, tão logo o go- -Line, sob o título SUS por um fio. verno de Michel Temer toma o Pla- De sistema público e universal de nalto, o próximo direito a ser “re- saúde a simples negócio.

financeirização orientando o debate

Tanto o desmonte do SUS, a pre- cas Públicas, Financeirização e Cri- carização do trabalho como os ata- se Sistêmica. O tema já vinha sendo ques à Previdência Social têm um tratado pelo Instituto, e como for- fundo comum. Na realidade, toda ma de preparação para o debate, o a discussão se dá numa perspec- número 492, de 5-9-2016, Financei- tiva da lógica da financeirização, rização, Crise Sistêmica e Políticas que não acomete só o Brasil, mas o Públicas reúne entrevistas com pro- mundo todo, que passa a ser atra- vessado por essa perspectiva. Para fessores e pesquisadores do Brasil e 7 compreender mais essa lógica finan- do mundo, que analisam as políticas ceirista e analisar seus impactos, públicas atravessadas pela financei- em setembro o IHU promoveu o IV rização, bem como linhas de fuga Colóquio Internacional IHU. Políti- para romper com essa lógica.

Judicialização da política, repressão e intolerância

O ano de 2016 foi também aquele mero 494, de 3-10-2016, Judicia- em que o Poder Judiciário ganhou lização da política e da vida dos notoriedade, em que a Operação cidadãos. A democracia e o Esta- Lava Jato foi destaque. Entretan- do de Direito em tensão, retoma to, a discussão que se coloca é de o tema com juristas que rompem que o Judiciário acaba extrapo- com a ideia messiânica e salvacio- lando suas nista que transforma o Judiciário instâncias em um superpoder. e invadindo Na política nacional, em meio a outras es- todo esse contexto de Lava Jato e feras, como processo de impeachment de Dil- a política. ma Rousseff, os discursos de golpe É para pro- e não golpe, coxinhas e petralhas, blematizar vermelhos e verde-amarelos reve- e refletir lam um clima de intolerância po- sobre essa lítica tão recrudescida que chega perspectiva a flertar com o fascismo. No mun- que a IHU do, a recusa do outro se atualiza On-Line nú- pelo flagelo do não acolhimento à

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vítima de imigração e que coloca pelo governo de Michel Temer são esse outro como ameaça a si pró- alvo de críticas e, com o subter- prio. Todos esses e outros pontos fúgio de manter a ordem, a força foram o contexto para o debate e a repressão policial entram em na IHU On-Line intitulada A volta cena. Foram muitos os episódios do fascismo e a intolerância como de confronto entre manifestan- fundamento político, número 490, tes e polícia, do Rio Grande do de 8-8-2016. Sul e do Paraná, ao Rio de Janei- ro, São Paulo e Brasília. Em meio A repressão é filha dileta da a esse turbilhão de acontecimen- intolerância. Quando os tempos tos, a IHU On-Line retoma um são obscuros, as manifestações velho – mas sempre atual – deba- são o sopro de esperança utópica te: a desmilitarização da polícia. que surge. Além das passeatas, Esse é o tema da revista número as ocupações de escolas por es- 497, de 14-11-2016, Desmilitari- tudantes secundaristas inaugura- zação. O Brasil precisa debater a ram um outro momento de pro- herança da ditadura no sistema testos no Brasil. Cortes de gastos policial. e reforma no ensino propostos

Olhar na história para iluminar o presente

Em um ano de tantas crises no Raízes do Brasil, de Sérgio Buar- Brasil, a volta ao passado pode que de Holanda, neste ano em oferecer chaves de leitura para que se celebram os 80 anos da tentar compreender o momento primeira publicação. Nesse núme- que vivemos. É com esse espírito ro, pesquisadores retomam a obra 8 que a IHU On-Line número 498, e pensam o Brasil de hoje a partir de 28-11-2016, retoma o clássico de Raízes.

Autores inspiradores

A atualidade do pensamento de sadores e pesquisadoras, especialis- Lima Vaz foi recuperada a partir tas no estudo da obra do filósofo das celebrações dos 25 anos da pu- alemão, para debaterem o tema. blicação Antropologia Filosófica. Assim, o número 488, de 4-7-2016, traz como tema principal A me- mória do Ser em plena civilização científico-tecnológica. ‘Antropolo- gia Filosófica’ de H.C. de Lima Vaz, 25 anos depois. Outro autor que a revista recu- perou este ano foi Georg Friedrich Hegel. O número 482, de 4-4-2016, Hegel. Lógica e Metafísica, parte do VIII Congresso Internacional da So- ciedade Hegel Brasileira, intitulado Lógica e Metafísica em Hegel, reali- zado na Unisinos, e mobiliza pesqui-

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Ouse saber

Descobrir assuntos que ainda ficiências motoras ou cognitivas, são novidade ou mesmo trazer mas que também servem à busca abordagens diferentes para temas pela superação da própria condi- cotidianos é também um dos de- ção humana. safios da IHU On-Line. Dentre os Moda é assunto tratado em di- temas curiosos em que nos deti- versas publicações. Entretanto, no vemos, está a edição sobre Smart número 486, de 30-5-2016, Moda. Drugs e o des- A segunda pele do self em movi- bravamento mento tenta observar o fenômeno das fronteiras desde outra perspectiva. A roupa, do humano, os adornos e demais aparatos que número 487, utilizamos para compor a aparência de 13-6-2016. são a comunicação mais imediata O número reú- que oferecemos a respeito do nosso ne pesquisado- modo de ser no mundo. Se pensar- res nacionais e mos sobre os diversos processos que internacionais envolvem as etapas de concepção, para refletir produção, circulação e descarte dos sobre medica- produtos, a moda torna-se um es- mentos capa- pelho ainda mais profundo de nosso zes de corrigir tempo, refletindo elementos que determinados dão indícios de quem somos e em níveis de de- que tipo de sociedade vivemos. Vigilância

O V Colóquio Internacional IHU qualquer movimento sob inúmeros e VII Colóquio da Cátedra Unesco olhos atentos inspiraram a edição 9 – Unisinos de Direitos Humanos e 495, de 17-10-2016, intitulada Violência, Governo e Governança Cidadania vigiada. A hipertro- teve como tema este ano a vigi- fia do medo e os dispositivos de lância. Os debates e reflexões controle. acerca desse mundo que apreende

Saneamento básico e agroecologia

A longa tradição do Instituto Hu- até o surgimento de outras como manitas Unisinos – IHU em propor zika e chikungunya. Na edição 481, reflexões acerca da relação do ser de 21-3-2016, O fracasso do sane- humano com o planeta é frutífera amento básico e a emergência de em conteúdos que debatem ques- doenças vetoriais, a IHU On-Line tões relacionadas ao (des)equilí- entrou no debate, buscando com- brio ambiental. Neste ano, o Brasil preender as questões de fundo do testemunhou o drama da volta de tema. doenças vetoriais como a dengue e

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E muito desse desequilíbrio entre do pelo uso contínuo de agrotóxi- ser humano e ambiente se dá pelo cos e fertilizantes químicos. Com vértice da produção agrícola, ba- o intuito de pensar noutro tipo de seada na grande propriedade e de agricultura, a IHU On-Line publica uma ideia da necessidade de pro- Agroecossistemas e a ecologia da duzir alimentos em larga escala. O vida do solo. Por uma outra for- resultado, além de desmatamentos ma de agricultura, número 485, de de áreas nativas, é uma degrada- 16-5-2016. ção do solo, pois vai se esterilizan-

Teologia pública

A IHU On-Line observa, tam- gica, a revista publicou o número bém, os movimentos das diferen- 483, de 18-4-2016, intitulado Amo- tes confissões religiosas desde ris Laetitia e a ‘ética do possível’. uma perspectiva sociológica. Além Limites e possibilidades de um do- disso, busca nas reflexões, princi- cumento sobre ‘a família’, hoje. palmente a partir do cristianismo, A partir do documento apostólico 10 uma vivência mais pulsante da re- assinado pelo Papa Francisco, o ligião como chave de leitura para número quer inspirar a pensar so- compreender a si e ao mundo. Em bre as configurações das famílias 2016, dentro da perspectiva teoló- no nosso tempo.

Pensar a figura feminina nos dias de hoje é a questão de fundo que embasa outro número no mesmo viés da IHU On-Line, o 489, de 18- 7-2016, Maria de Magdala. Após- tola dos Apóstolos. Através dessa figura feminina na vida de Cristo, pesquisadores do mundo todo re- fletem sobre o espaço da mulher na religião e na própria História do Cristianismo.

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Outros olhares sobre a morte

Neste ano, a IHU On-Line reto- de seu caráter mais contempo- mou o que fazia há alguns anos: râneo que é o de ser asséptica, dedicar a primeira edição de no- abordando-a como uma expe- vembro a reflexões sobre a mor- riência de vida. O tema reuniu te, em função das celebrações de entrevistas no número 496, de 2 de novembro, Dia de Finados. 30-10-2016, com o título Morte. O debate gira em torno dos desa- Uma experiência cada vez mais fios de pensar a morte para além hermética e pasteurizada.

Gauchismo

Tradicionalmente, em setem- mento, com o objetivo de tentar bro, o Instituto Humanitas Unisi- compreender o que está por trás nos – IHU promove palestras que da construção mítica dessa figura procuram pensar mais sobre a fi- que vive ao sul do Brasil. A edição gura do gaúcho, por alusão ao 20 número 493, de 19-9-2016, tem de setembro, conhecido como o como título Gauchismo – A tradi- Dia do Gaúcho. Neste ano, a IHU ção inventada e as disputas pela On-Line também fez esse movi- memória. 11

Versões completas de 2016 A integra das edições da IHU On-Line de 2016 e de outros anos pode ser acessada em ihuonline.unisinos.br

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#Dossiê Morte e vida severina Poema de João Cabral de Melo Neto é emblema da miséria nordestina

Por Vitor Necchi

ntre as efemérides deste 2016 onde o personagem Severino empreen- que se encerra, os 60 anos da de sua epopeia trágica enunciada con- Eprimeira publicação do poema forme a tradição medieval pelo autor, Morte e vida severina, do pernambu- que concebeu versos preferencialmen- cano João Cabral de Melo Neto (1920- te heptassílabos (redondilha maior), 1999), é uma das mais significativas variando vocábulos regionais com ou- para a literatura e – sem exagero – para tros de registro erudito. a cultura brasileira. Não há como lê-lo João Cabral nasceu em Recife (Per- sem ter em mente o contexto social e nambuco) e passou sua infância nos econômico da época em que foi escri- engenhos de açúcar de propriedade to, entre os anos de 1954 e 1955. de sua família. Neste ambiente arrai- No Nordeste da década de 1950, a gado na tradição fundiária e econômi- morte era uma força precoce e devas- ca do Nordeste, costumava ler cordéis tadora. Calor, seca, desnutrição, po- para os empregados, impregnando-se breza, concentração fundiária, corone- de referências próprias do ambiente lismo – este é o mundo árido e brutal regional.

Uma encomenda de Natal pernambucano. Maria Cla- e vida seria musicado por outro 12 ra, porém, leu o texto e o devol- estreante, o compositor e cantor Morte e vida severina é sua obra veu, alegando que não teria como de Holanda. No li- mais conhecida, fruto de uma en- montá-lo. vro A literatura como turismo [Cia. das Letras], a cineasta Inez Cabral, comenda de , O editor José Olympio queria lan- filha do poeta, escreveu: “Ele ficou que em 1951 fundou a escola de çar a primeira coletânea do poeta. preocupadíssimo ao saber que sua teatro Tablado, no . Como Morte e vida severina era poesia ganharia música. Porém, João Cabral era diplomata e estava grande, o autor retirou as marca- nunca se sentiu no direito de cer- trabalhando desde 1950 em Lon- ções próprias da montagem teatral, cear qualquer criação nascida de dres, durante o governo de Getúlio e o poema integrou o livro Duas seu trabalho”. Vargas, até que – nas palavras do águas, lançado em 1956. Logo caiu próprio poeta – um idiota denun- nas graças de escritores, intelec- Capibaribe ciou que ele e outros quatro diplo- tuais e pessoas alinhadas ao pen- matas estariam implantando uma samento de esquerda. O também Em 2007, na apresentação que célula comunista no Itamaraty, poeta e diplomata Vinicius de Mo- fez da edição de Morte e vida lan- época em que o Partido Comunista rais foi um que se maravilhou com çada pela editora Alfaguara, Brau- do Brasil estava na ilegalidade. a história de Severino. A princípio, lio Tavares conta que, para Gilber- João Cabral ficou contrariado, pois Um despacho presidencial de to Freyre, havia pelo menos dois sua pretensão era alcançar com março de 1953 afastou os cinco nordestes: o agrário e o pastoril; sua poesia os “sujeitos analfabetos do serviço diplomático, e João Ca- o litorâneo da cana-de-açúcar e o que ouvem cordel na feira de Santo bral retornou para o Recife, a fim sertanejo das fazendas de gado. Amaro, no Recife” – o que não dei- de trabalhar no escritório do pai Estabelecendo uma lógica para- xava de ser um tanto ingênuo, posto e garantir o sustento da família. lela, Braulio propõe que, a partir a elaboração formal do poema. Retomou a carreira diplomática da poesia de João Cabral, também em 1954, depois de recorrer ao Dez anos depois da estreia edito- se pode identificar dois nordestes: Supremo Tribunal Federal. Nesse rial, o texto ganhou mais projeção “o seco e o úmido; o da pedra e o intervalo, encontrou Maria Clara, com a montagem teatral dirigida da lama; o que é mumificado vivo que era filha de Aníbal Machado, por Silnei Siqueira. Era 1966, quan- pelo sol e o que é apodrecido pelo seu amigo. Ela pediu que o poeta do, durante um jantar, João Cabral mar”. A geografia, os traços regio- escrevesse um auto de Natal para recebeu a carta do jovem diretor nais e as condições sociais dos anos encenar com o seu grupo. Assim solicitando autorização para mon- 1950 são decisivas para a constitui- surgiu Morte e vida Severina – Auto tar um espetáculo em que Morte ção da poesia cabralina.

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João Cabral dizia que sempre es- Morte e vida severina, que descre- O conjunto dessas partes compõem creveu poemas sobre Recife longe ve a caminhada do retirante Seve- o auto de Natal que culmina com o da cidade: no início dos anos 1940, rino que percorre a linha do rio até nascimento de uma criança. Antes da mudou-se para o Rio de Janeiro; Recife, o mangue e o mar, a fim de natividade, a morte é uma presença depois disso, em decorrência da escapar da seca. Na primeira obra, constante, pontuando as cenas. Seve- carreira diplomática iniciada em a voz que emana do texto é do poe- rino busca a salvação, mas toda a sua 1945, que o levou a trabalhar em ta; na segunda, do próprio rio, que jornada é confrontada com vidas que diversos países: Equador, Espanha, trata de si mesmo em primeira pes- se encerram. As últimas seis cenas Estados Unidos, França, Inglaterra, soa; em Morte e vida severina, são apresentam o nascimento do filho de Paraguai, Portugal, Senegal e Suíça. diversos personagens espalhados José, mestre carpina – franca alusão É de Recife que vem a recorrência ao longo do leito que se enunciam. à tradição cristã. do rio Capibaribe como elemento estruturante de importantes obras Morte precede a vida João Cabral foi eleito para a de João Cabral. Braulio sugere que Academia Brasileira de Letras em se pode pensar em uma trilogia a O título do poema já lança uma 1968. No fim dos anos 1980, retor- partir do rio, embora esta não seja senha para se entender o universo nou ao Brasil. Sua mulher, Stella uma elaboração original do poe- descrito, ao inverter o sintagma vida Maria Barbosa de Oliveira, morreu ta: O cão sem plumas (escrito em e morte – a morte precede a vida – em 1986. Depois disso, ele se casa 1949-1950), O rio (1953) e Morte e com a poeta Marly de Oliveira. Du- vida severina (1954-1955). e ao adjetivar o substantivo próprio Severino. O texto é estruturado em rante toda a sua vida sofreu com Braulio descreve que, em O cão 18 passos que contam a travessia de intermitentes dores de cabeça, sem plumas, “o poeta reconstrói o Severino, um retirante que foge da tanto que a aspirina era um traço rio e o ambiente que o cerca, até seca e da morte, em busca de uma distintivo em sua vida e mote para a chegada ao mar, pelos filtros de vida melhor próximo ao litoral. alguns textos. sucessivas metáforas e símiles que se entrecruzam: cão, espada, ban- Outra divisão é possível, se for Ao final da vida, estava cego e deira, maçã...”. Em O rio, o tra- considerada a temática. Da parte deprimido. Avesso à religiosidade tamento feito pelo autor é mais um a nove, tem-se a marcha de Se- – mesmo que este universo seja la- documental, geográfico. Conforme verino até Recife, costeando o Capi- tente em sua obra mais conhecida, Braulio, o poema teria sido escri- baribe – mesmo quando o rio quase que já ganhou mais de cem edi- to com o auxílio da mapoteca do definha em meio à aridez da pai- ções -, conta-se que, quando mor- 13 Itamaraty e é “repleto dos sonoros sagem. Da parte dez em diante, a reu, em 1999, estava de mãos com topônimos pernambucanos”. E em história se desenrola na metrópole. Marly, orando. ■

Principais obras – poesia

• Pedra do sono (1942) • Dois parlamentos (1961) • Os três mal-amados (1943) • Serial (1961) • O engenheiro (1945) • A educação pela pedra (1966) • Psicologia da composição (1947) • Museu de tudo (1975) • O cão sem plumas (1950) • A escola das facas (1980) • O rio (1954) • Paisagens com figuras (1956) • Auto do frade (1984) • Duas águas (1956) • Agrestes (1985) • Uma faca só lâmina (1956) • Crime na Calle Relator (1987) • Quaderna (1960) • Sevilha Andando (1990)

LEIA MAIS —— A secura do sertão nos versos de João Cabral de Melo Neto. Revista IHU On-Line número 310, de 5-10-2009, disponível em http://bit.ly/2dtlepB. —— “Meu Deus e meu conflito”. Teologia e literatura. Entrevista com Waldecy Tenório, publica- da na revista IHU On-Line, número 251, de 17-3-2008, disponível em http://bit.ly/2h1Eo6d. —— O filme e a poesia como dádiva e ressurreição. Entrevista com Waldecy Tenório, publicada na revista IHU On-Line, número 321, de 15-3-2010, disponível http://bit.ly/2hYV7J7. —— João Cabral e jornalismo literário: “A literatura não é o terreno das facilidades e das liqui- dações”. Entrevista especial com José Castello, publicada nas Notícias do Dia de 20-1-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2hhWizk.

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#Dossiê Morte e vida severina Morte e vida severina, ano 60

Por Antonio Carlos Secchin

m entrevista, o poeta João de nascer no corpo do poema”. A IHU Cabral de Melo Neto destacou On-Line publica na íntegra o texto de EAntonio Carlos Secchin entre Secchin que está na edição comemora- todos os professores, pesquisadores tiva de Morte e vida severina. e críticos que se debruçaram sobre a Antonio Carlos Secchin é poeta, obra dele: “Foi quem melhor analisou ensaísta, crítico literário e professor. os desdobramentos daquilo que pude Graduado em Português – Literaturas realizar como poeta”, disse. A intimi- de língua portuguesa pela Universida- dade com a obra cabralina não é re- de Federal do Rio de Janeiro – UFRJ cente, pois a tese e a dissertação de (1973), mestre (1979) e doutor (1982) Secchin trataram da obra do poeta. Na em Letras (Letras Vernáculas) pela edição comemorativa dos 60 anos de UFRJ. Membro efetivo da Academia publicação de Morte e vida severina, Brasileira de Letras e professor eméri- lançada pela editora Alfaguara neste to da UFRJ. Sua tese e sua dissertação, ano, ele escreveu a apresentação do ambas orientadas por Afrânio Coutinho, poema mais conhecido do poeta per- tratam da poesia de João Cabral de nambucano, destacando que se trata 14 Melo Neto. Autor do livro João Cabral: de um “autor admirável pela obstina- A poesia do menos, (São Paulo: Duas ção em rejeitar as vias fáceis e fluidas Cidades, 1987. 2.a ed. rev. ampliada. do lirismo, e pela ousadia de percorrer Rio de Janeiro: Topbooks, 1999) que severamente os caminhos mais íngre- ganhou os prêmios Instituto Nacional mes da linguagem, para neles vislum- do Livro – MEC e Sílvio Romero – ABL. brar e colher os sinais e as palavras que aguardam, sem pressa, o momento Eis o texto.

Sessenta anos após sua publi- A literatura de João Cabral for- existência, o artista vá configu- cação, Morte e vida severina é a mou-se no intervalo entre a escri- rando e reconfigurando sucessivas mais famosa obra de João Cabral ta culta da casa-grande, de onde versões de si mesmo, sem que em de Melo Neto. Seu sucesso foi tanto ele veio, e a voz da senzala, onde nenhuma delas resida sua verdade. que, às vezes, parecia desagradar descobriu a fabulação do cordel, a Durante o percurso, não é raro que seu autor, como se a luz excessiva métrica popular, o gosto pela nar- se fale em “fases do poeta” e mui- sobre esse livro relegasse todos os rativa e pela representação de um tas vezes o autor se desconhece demais a uma injusta penumbra. mundo de coisas concretas, ao al- desse outro que ele já foi. Assim, Não é exagero afirmar que Morte cance das mãos e dos olhos. muitos escritores renegam ou re- e vida... se transformou no maior Vários poetas podem habitar o formulam drasticamente os escri- êxito editorial da poesia brasilei- mesmo poeta. Às vezes, em pacífi- tos de juventude, embora pouco se ra, já contabilizando cerca de cem ca e tácita convivência, outras em saiba dos que tenham renegado os edições, sem falarmos nas trans- aberto conflito. A poesia é regida da velhice... Ficou célebre a frase posições e leituras que legou para pelos signos da mudança, rejei- com que Murilo Mendes encerrou outros veículos como a televisão, tando o conformismo que se torna a apresentação de suas Poesias, o cinema, o teatro e a história em sinônimo de sua morte; por isso, de 1959, justificando as numero- quadrinhos. não surpreende que, ao longo da sas alterações efetuadas nos tex-

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tos das edições originais: “Não ré; há também os vizinhos e seus bem-nascidos (ou bem-morridos, sou meu sobrevivente, e sim meu presentes, que correspondem aos eu diria) – o tom beira o sarcasmo. contemporâneo”. dos reis magos. Nessa releitura Os coveiros equiparam as alas dos laica da chegada do menino-Deus, ricos a bairros de belas avenidas, Em João Cabral a questão é um a esperança, embora precária, pois sequer a morte elimina a ocu- pouco mais complexa. No caso de encontra-se no território humano: pação seletiva do (sub)solo; ao con- Murilo, a diacronia pareceu desar- será pelo universo do trabalho que trário, ela duplica, mesmo sob sete mar o conflito mediante a supres- o recém-nascido poderá algum dia palmos, as barreiras sociais ergui- são de textos considerados obsole- redimir-se. das acima da terra. Adiante, quan- tos ou excessivamente tributários do do nascimento da criança, ape- das tribos de 1922. Já no autor Severino empreende um périplo sar do clima festivo, ressoa a fala pernambucano temos a presença em direção à vida, representada, talvez involuntariamente cruel de simultânea de dois padrões poé- no Recife-ponto-final do percurso, um vizinho: “Minha pobreza tal é/ ticos que geram práticas textuais pela cena do nascimento. A mor- que não tenho presente melhor./ bastante diferenciadas. Refiro-me te, porém, é sua renitente com- Trago papel de jornal/ para lhe às famosas Duas águas, título de panheira de viagem, insinuando ao servir de cobertor./ Cobrindo-se volume publicado em 1956 e em retirante a frágil condição de seu assim de letras/ vai um dia virar cujas orelhas, não assinadas, o “aluguel” com a vida, na medida doutor”. próprio João Cabral esclarece: “de em que ele, desde o berço, já se um lado poemas para serem lidos encontra predestinado à morte se- Em sua obra convivem, numa em silêncio /.../ cujo aprofunda- verina: “Que é a morte de que se tensão jamais apaziguada, a pri- mento temático /.../ exige mais morre/ de velhice antes dos trin- meira água de um Cabral cerebral do que leitura releitura; de outro ta,/ de emboscada antes dos vin- e a segunda água de um João do lado, poemas para auditório, numa te,/ de fome um pouco por dia”. chão. Num e noutro, o imperati- comunicação múltipla, poemas vo da construção se faz presente: Tanto na origem da travessia, que, menos que lidos, podem ser nele, a poesia dita comunicativa é nos limites da Paraíba, quanto em ouvidos”. O texto que inaugurava a elaborada na tensão entre o erudi- todos os cenários subsequentes, “segunda água” era, exatamente, to e o popular, nunca é um ingênuo Severino se defronta com a onipre- 15 Morte e vida severina. veículo de formas pré-existentes. sença da morte, ora consumada, Por isso a “segunda água”, sendo A obra trava um complexo di- como no funeral de um lavrador popular, não é populista: populista álogo com as fontes cultas e po- (“Esta cova em que estás,/ com é o discurso que se apropria indé- pulares da literatura espanhola, palmos medida,/ é a conta menor/ bita e acriticamente da vertente abastecendo-se também no rico que tiraste em vida./ É de bom ta- popular. manancial do folclore nordestino. manho,/ nem largo nem fundo./ E é justamente essa reciclagem É a parte que te cabe/ neste lati- Num ensaio sobre o sertão de do antigo que acaba tornando-se, fúndio”), ora potencial, conforme João Cabral, me referi à inexistên- paradoxalmente, um dos fatores declara uma rezadeira, para quem cia de conselhos ou encorajamen- tos aos deserdados do Nordeste. Em de renovação da poesia de João cantar a morte representa o ofício sua poesia, quase não se encontra Cabral, que injeta doses maciças mais rentável da região (“As estia- um sertanejo “personalizado”, que de veio crítico nesse seu aproveita- gens e as pragas/ fazem-nos mais possua um boi, uma esperança, um mento das formas da tradição. prosperar./ E dão lucro imediato./ chinelo. Só encontramos o serta- Nem é preciso esperar/ pela co- Morte e vida... foi classificada nejo, figura exemplar, conjugação lheita. Recebe-se/ na hora mesma pelo autor como um “auto de na- potencial de traços localizáveis em de semear”). tal pernambucano”, mas a trans- séries de severinos. Como também posição do mito de nascimento de João Cabral utiliza a ironia como é figura exemplar na literatura bra- Cristo ocorre, no poema, pela ate- arma certeira para opor-se ao sileira o poeta João Cabral de Melo nuação ou perda dos componentes transbordamento sentimental. O Neto, autor admirável pela obsti- laudatórios-religiosos do discurso leitor é atingido pela crueza dos nação em rejeitar as vias fáceis e cristão. Ainda assim, preservam-se quadros descritos sem que sejam fluidas do lirismo, e pela ousadia ostensivos traços de convergên- necessários os excessos verbais de percorrer severamente os cami- cia entre a “matriz” da narrativa comumente advindos de um pa- nhos mais íngremes da linguagem, cristã e a apropriação que dela fez ternalismo piedoso. Em uma cena para neles vislumbrar e colher os João Cabral. Em ambas, o pai da passada no Recife – o diálogo en- sinais e as palavras que aguardam, criança se chama José, é carpin- tre os dois coveiros que comparam sem pressa, o momento de nascer teiro e morou na cidade de Naza- a transatlânticos os caixões dos no corpo do poema. ■

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#Dossiê Morte e vida severina Cabral tornou-se influência insuperável Para Thaís Toshimitsu, a se notar pelo panorama poético contemporâneo, a obra cabralina é um ponto de convergência e de chegada da produção do século 20

Por Vitor Necchi

haís Toshimitsu percebe dois tipos o intelectual/artista e os homens pobres de recepção ao poema Morte e e analfabetos”. vida severina, de João Cabral de T Seis décadas depois, Thaís acha que, de Melo Neto. Os contemporâneos ao lança- certo modo, Morte e vida severina ain- mento (1956), assim como os envolvidos e da é atual e serve como instrumento de espectadores da peça encenada em 1968 denúncia. Mas com alguma ressalva, pois com música de Chico Buarque, receberam considera “já ser pouco o apontamento bem. Por outro lado, a crítica, principal- mente ligada ao movimento concretista, da miséria e de suas causas econômicas, desprezou o texto, “tido como menor, dadas pela violenta exploração do traba- humilde, simplista etc”. Para além desses lho e do trabalhador, ante as ‘novas ve- panoramas, Thaís, provocada a pensar se lhas’ condições que estamos enfrentando o autor é um dos gigantes da poesia bra- neste momento no país”. sileira, afirma: “Sem dúvida, a se notar Para Thaís, os poemas de João Cabral pela produção poética contemporânea, – que defendia o trabalho de arte em con- Cabral tornou-se uma espécie de influên- traposição ao enaltecimento da inspira- 16 cia insuperável. Um ponto de convergên- ção – “têm como ponto de partida o uni- cia e de chegada da produção do século verso que o formara subjetivamente, de 20, tanto inédita quanto desafiadora”. modo que a escolha do Nordeste o implica Morte e vida severina não chegou ao diretamente na situação que se lê nos po- povo analfabeto que consumia os roman- emas e, embora ele deseje conceber-se ces de cordel, observa Thaís em entrevis- somente como espectador daquela vida ta concedida por e-mail à IHU On-Line. miserável, é parte intrínseca dela”. Por conta disso, Cabral se frustrava, pois Thaís Toshimitsu é doutora, mestra e pretendia realizar uma obra popular, de graduada em Letras pela Universidade tomada de consciência. “Manteve-se, de São Paulo – USP, onde atualmente faz assim, não só limitado a uma experiên- estágio pós-doutoral no Departamento de cia e a um sentimento de classe, o que Teoria Literária e Literatura Comparada restringe sua funcionalidade, mas a uma da FFLCH-USP. Em sua tese e dissertação, classe a quem o poema intencionalmen- pesquisou a obra de João Cabral de Melo te não fora dirigido.” Conforme a pes- Neto. É professora da Bolandeira – Casa quisadora, o fracasso do autor “reside de Letras e Ideias. na impossibilidade de o texto constituir uma relação, por meio da palavra, entre Confira a entrevista.

IHU On-Line – A escolha por es- ria que dialogasse com o imaginá- cena. Cabral, então, transformou crever um auto de Natal decorre rio popular? o texto dramático em um poema dramático, retirando-lhe apenas do apreço de João Cabral pelos Thaís Toshimitsu – É conhecida a as marcas de entrada das falas. formatos clássicos ou ela guarda estória sobre a criação de Morte e Sua publicação em livro data, pela alguma referência mais subjeti- Vida... Maria Clara Machado enco- primeira vez, de 1956, em Duas va? A alusão ao universo religioso, mendara a Cabral, àquela altura, águas. incluindo o nascimento de Jesus, uma peça de teatro que pudesse diz respeito a traços pessoais do ser representada pelo grupo Ta- A forma do auto de Natal é autor ou se trata de estratégia blado, do Rio de Janeiro, mas que, interessante porque resulta do narrativa para contar uma histó- ao fim, acabou sem realização em projeto consciente do autor para

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sua produção poética naquele O construtivismo de Cabral colo- escolha estética, a aproximação momento. Se o compreendermos cava-se como escolha formal e es- entre o fazer poético e um ato como parte de uma trilogia acer- tética contra a violência, com vis- cotidiano, caseiro, de trabalho. ca do rio Capibaribe, que conta- lumbre ao desenho utópico de uma Podemos pensar em Cabral como ria ainda com O cão sem plumas sociedade mais justa. um herdeiro da prosa de Graci- (1951) e O rio (1953), fica evi- liano Ramos1 mais que da tradi- dente o desejo de Cabral de con- IHU On-Line – Para João Cabral, ção poética constituída entre nós figurar e incluir o Outro em sua a inspiração era um incômodo. O (embora ela não esteja descarta- poesia. Morte e vida realiza isso que isso revela do seu entendi- da). E à semelhança do escritor ao dar voz a Severino, sertanejo mento acerca do ato criativo e do alagoano, que se comparava às retirante, por meio da escolha de seu processo de escrita? lavadeiras de roupa a torcerem o uma forma popular – o auto de excesso, a concepção estética da Natal, contudo, pernambucano. Thaís Toshimitsu – A escolha da escrita está fundada em atitude Ponto de encontro entre a religio- racionalidade já se mostra como ática diante da miséria e do atra- sidade cristã filtrada, no entanto, contraposição à inspiração. Cabral so nordestinos e brasileiros. pela experiência popular local e a defende em seus poucos textos te- óricos e em sua poesia o trabalho tradição ibérica herdada pela co- IHU On-Line – Por que ele es- de arte em contraposição ao enal- lonização. De certo modo, o auto tranhava a relação calorosa que perfaz um encontro entre os mun- tecimento da inspiração. Sua cria- Morte e vida severina teve entre dos culto e popular, apontando ção se fazia da atenção e não da intelectuais? para uma linha de continuidade emanação inconsciente. O risco de entre ambas no tempo, inverten- automatização do trabalho o man- Thaís Toshimitsu – Para respon- do o ponto de vista da História. tinha vigilante a esse respeito. der a isso, cito o próprio escritor, em entrevista dada no início dos O poema Catar feijão (de Edu­ anos 1990: “Pensam que não gos- IHU On-Line – João Cabral é um cação pela pedra) talvez seja seu to do livro (...). Agora uma coisa dos gigantes da poesia brasileira? texto mais famoso na descrição do que me decepcionou é que quan- Por quê? seu procedimento de trabalho: do escrevi Morte e vida severina Thaís Toshimitsu – A pergunta estava pensando nessa gente, Catar feijão é difícil e vou tentar respondê-la como aquela do engenho, que 17 criticamente sem pensarmos ape- não sabe ler e ficaria escutan- 1. nas em exaltações ao poeta, o que do (...). Foi ingenuidade minha. pouco nos auxilia a vê-lo. Sem dú- Catar feijão se limita com escrever: Morte e vida severina não chega vida, a se notar pela produção po- joga-se os grãos na água do alguidar ao povo analfabeto que consome ética contemporânea, Cabral tor- e as palavras na folha de papel; os romances de cordel”. nou-se uma espécie de influência e depois, joga-se fora o que boiar. Não estranhava, portanto, a insuperável. Um ponto de conver- Certo, toda palavra boiará no papel, recepção entre os intelectuais, gência e de chegada da produção água congelada, por chumbo seu verbo: mas frustrava-se ante o desejo do século 20, tanto inédita quanto pois para catar esse feijão, soprar nele, de realizar uma obra popular, desafiadora. e jogar fora o leve e oco, palha e eco. de tomada de consciência, que, Inédita porque não havia entre contudo, foi lida e apreciada nós uma tradição lírica que esca- 2. pelos seus pares. Manteve-se, passe à construção melódica ou à assim, não só limitado a uma ex- Ora, nesse catar feijão entra um risco: inclinação discursiva. Cabral cons- periência e a um sentimento de trói seu campo poético sobre novos o de que entre os grãos pesados entre paradigmas afinados ao recente um grão qualquer, pedra ou indigesto, 1 Graciliano Ramos (1892-1953): escritor processo de modernização do país um grão imastigável, de quebrar dente. alagoano, nascido em Quebrângulo. Autor e à promessa do que a racionali- Certo não, quando ao catar palavras: de numerosas obras, várias delas adaptadas a pedra dá à frase seu grão mais vivo: para o cinema, como Vidas secas e Memórias dade em país atrasado propunha do cárcere, em 1963 e 1983, respectivamen- realizar. Uma poesia conduzida obstrui a leitura fluviante, flutual, te, filmes dirigidos por Nelson Pereira dos pelo pensamento e pelo rigor cons- açula a atenção, isca-a como o risco. Santos. O romance Vidas secas foi o objeto de estudo do Ciclo de Estudos sobre o Brasil, trutivo postos em primeiro plano. de 17-6-2004. Quem conduziu o debate foi a Sua matéria poética desvia-se, Há muitos pontos interessan- professora Célia Dóris Becker. Confira uma portanto, do sentimentalismo fá- tes nele: o peso desejado para entrevista que a professora concedeu sobre o tema na 105ª edição da IHU On-Line, cil, do tom nostálgico – tão típico o pensamento, uma espécie de de 14-6-2005, disponível para download em de nossas elites –, da inspiração “plumpes denken” a garantir o https://goo.gl/bHDxB0. Confira, também, a como motor da criação. Em termos lastro do raciocínio; a precisão edição 274, de 22-9-2008, intitulada Josué formais, afasta-se do apelo sonoro, e objetividade na escolha das de Castro e Graciliano Ramos. A desnatu- ralização da fome, disponível para download indutor de sensações e das formas palavras, para que nada sobre, em https://goo.gl/f7Zift. (Nota da IHU prontas. mas também, como a amarrar a On-Line)

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classe, o que restringe sua fun- causas econômicas, dadas pela IHU On-Line – O imaginário cionalidade, mas a uma classe a violenta exploração do trabalho em torno do Nordeste remetia quem o poema intencionalmente e do trabalhador, ante as “novas fortemente, até o final do sécu- não fora dirigido. Seu fracasso, velhas” condições que estamos lo passado, à seca e à figura do assim, reside na impossibilidade enfrentando neste momento no retirante. Nas últimas décadas, de o texto constituir uma rela- país. tem-se a impressão de que esta ção, por meio da palavra, entre situação foi atenuada, embora, o intelectual/artista e os homens Se compararmos o poema de mais recentemente, a seca vol- 4 pobres e analfabetos. Cabral ao romance Vidas secas , tou a assombrar a região. Qual fica mais claro como o poema No entanto, os intelectuais a importância de Morte e vida e e artistas que receberam bem perdeu, ao longo do tempo, em severina na representação desta a obra foram, sobretudo, seus relação ao texto de Graciliano. realidade? Em que reside o vigor contemporâneos e, mais tarde, O desejo de ampliação de públi- e a permanência do poema? co, que está na base de Morte e os envolvidos e espectadores da Thaís Toshimitsu – Embora o 2 vida, se faz na crença da possibi- peça encenada em 1968 , com desejo hoje seja o de uma obra 3 lidade de supressão da distância música de Chico Buarque . É cor- mais combativa, Morte e vida se- entre as classes no Brasil. Esse rente na crítica, principalmente gue sendo um modelo ético e, por ligada ao movimento concretis- procedimento ocorre em Morte e conta disso, estético. Sem dúvida ta, um desprezo pelo texto, tido vida por meio da consciência do alguma, a realidade de que o po- como menor, humilde, simplista subdesenvolvimento dada como ema trata se mantém viva e o tex- etc. forma literária e que resulta em to, atual, o que revela o caráter alguma ingenuidade, ao mesmo de modernização conservadora de IHU On-Line – O texto de Morte tempo, em certo conformismo. nosso processo histórico sustenta- e vida severina é marcado pela do pelo interesse de nossas elites. crítica social, fruto de uma épo- Na medida em que o aspecto cíclico da obra de Cabral apon- A atualidade, portanto, não reside ca de tensionamento, de articu- no problema da seca. As grandes lação dos camponeses e de abis- ta para a vida sempre capaz de nascer, aproximando o destino obras nordestinas desde os anos mos entre classes sociais. Seis 1930, dentre elas destacada Vidas décadas depois, ele ainda é atual, do homem pobre ao de Cristo, a secas, trouxeram à tona a violên- 18 ainda serve como instrumento de negatividade da obra cai, e o ten- cia da exploração do trabalhador e denúncia? sionamento da trajetória de Se- das periferias no país. O resultado verino se dilui. Mesmo que a nova Thaís Toshimitsu – Acho que é a revelação da modernização da sim, de certo modo. Todavia, vida seja uma repetição de todas produção do campo e da cidade me parece já ser pouco o apon- as outras e os homens se vejam como ainda condenação das classes tamento da miséria e de suas prisioneiros do ciclo infinito de trabalhadoras, e esse caráter não miséria, há redenção no final. O apenas se conserva, como se aden- 2 A primeira encenação de Morte e vida seve- oposto ocorre em Vidas secas, sou nos últimos meses, quando es- rina ocorreu no final da década de 1950, pelo grupo Norte Teatro Escola do Pará. Em 1965, onde o caráter cíclico da obra tamos assistindo a um dos maiores Silnei Siqueira foi responsável pela monta- aponta para o aprisionamento retrocessos, do ponto de vista das gem no Teatro da Pontifícia Universidade dos homens pobres ausentes de poucas conquistas trabalhistas, da Católica de São Paulo – Tuca, com o poema musicado por Chico Buarque. O espetáculo consciência do sistema no qual história desse país. recebeu o prêmio de melhor direção no Fes- sobrevivem. tival de Teatro em Nancy, na França. Desde então, a peça é presença constante no teatro O momento atual exige consci- IHU On-line – Qual era a pers- brasileiro. (Nota da IHU On-Line) ência crispada, atenção vigilante pectiva política do autor? Como o 3 Chico Buarque [Francisco Buarque de contexto histórico-social influen- Hollanda] (1944): músico, compositor, te- e força para realizar enfrenta- atrólogo e escritor carioca. Um dos mais fa- mentos e embates – forma per- ciou na escrita do poema? mosos nomes da música popular brasileira manentemente recusada ao lon- (MPB), cuja discografia tem aproximada- Thaís Toshimitsu – Cabral, em- mente 80 discos. Ganhou fama por sua mú- go de nosso processo histórico. bora tivesse respondido a proces- sica, que comenta o estado social, econômico so de acusação de comunismo no e cultural do Brasil. Começa a ter destaque a 4 Vidas secas: quarto romance do escritor partir de 1966, quando lançou seu primeiro brasileiro Graciliano Ramos, escrito entre início dos anos 1950, não pode álbum, Chico Buarque de Hollanda, e venceu 1937 e 1938, publicado originalmente em ser definido como um escritor en- o Festival de Música Popular Brasileira com 1938 pela editora José Olympio. As ilustra- gajado, no sentido da construção a música A banda. Autoexilou-se na Itália ções na primeira edição foram feitas pelo de uma poesia participante. Con- em 1969, devido ao aumento da repressão artista plástico Aldemir Martins. A obra é da ditadura instalada em 1964. Venceu três inspirada em muitas histórias que Graciliano tudo, Morte e vida talvez tenha Prêmios Jabuti de literatura: o de melhor acompanhou na infância sobre a vida de reti- representado seu maior esforço romance em 1992, com Estorvo, e o de Livro rantes. O pai de família Fabiano e a cachorra na direção da concepção de uma do Ano com Budapeste, lançado em 2004, e Baleia estão entre os personagens mais famo- Leite Derramado, em 2010. (Nota da IHU sos da literatura brasileira. (Nota da IHU forma literária que apontasse On-Line) On-Line) para um horizonte socialista.

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IHU On-Line – Na coletânea que televisão de Morte e vida severi- 1980. Morte e vida severina ex- reúne poemas de João Cabral que na? No que elas projetam ou re- perimentou praticamente todos aludem ao Capibaribe [O rio, edi- duzem a obra original? os veículos de arte e comunica- tora Alfaguara], a filha do poeta, ção modernos: nasceu livro, pas- Thaís Toshimitsu – A peça, es- Inez Cabral, afirmou que o rio foi sou a ter existência viva no tea- crita na metade dos anos 1950, para o autor “um filme em -ses tro, foi disco, filme e programa ganhou braços que a manteve são contínua, uma leitura sem de televisão. presente no imaginário do públi- fim, em outras palavras: um canal co brasileiro durante mais de 30 A crítica, diante da situação, de aprendizado e contato com o anos: a primeira montagem foi fez do fato de Morte e vida só ter mundo ao seu redor”. O que o rio feita no teatro Cacilda Becker, alcançado a popularização com mostrou para o autor? Na geogra- com Walmor Chagas5 no papel de as músicas de Chico a medida fia particular dele, qual a dimen- Severino, na sequência Siqueira6 do fracasso poético e comunica- são do Capibaribe? realizou a conhecida montagem tivo e estético do poema. Desde Thaís Toshimitsu – O rio é o da com música de Chico, Zelito Via- então, o texto passou a ser des- infância, do passado, da formação na7 fez seu filme nos anos 1970 valorizado pela crítica especiali- mais essencial e anterior do poeta. e Avancini8, o especial de TV, nos zada, ao mesmo tempo em que Por isso não pode referi-lo como proporcionalmente sua função um rio ou o rio, mas sempre, em 5 (1930-2013): ator, nas- didática crescia. Foi adotado pe- O cão sem plumas, como aquele ceu no Rio Grande do Sul. Mudou-se para São Paulo no começo dos anos 1950, querendo se las instituições de ensino como rio. As imagens e símiles vão à tornar ator de cinema. Cursou Filosofia na referência de estudo da obra de busca de um “reespessamento” Universidade de São Paulo. Teve destacada João Cabral e do que as escolas do real, rarefeito pela memória. atuação no teatro, na televisão e no cinema. e os livros didáticos nomeiam Em 1952, fundou o Teatro das Segundas- Eis o esforço da consciência em -Feiras, junto com Ítalo Rossi, encenando como terceira geração moder- tensão com a subjetividade. Não Luta até o amanhecer, de Ugo Betti. Estreou nista. Acabou na lista de leituras de qualquer consciência também, no Teatro Brasileiro de Comédia em 1954, exigidas pelo concurso vestibular atuando na peça Assassinato a domicílio, mas daquela despertada por um de Frederick Knott, com direção de Adolfo de universidades públicas; foi compromisso social, entretanto, Celi. Estreou no cinema em 1965, no papel resumido, analisado e estudado em conflito com a afetividade do empresário Carlos, em São Paulo S/A, de longa, mas também, superficial- construída no passado. Luís Sérgio Person. Walmor Chagas foi ca- mente, em livros, apostilas, sites sado 13 anos com a atriz Cacilda Becker, até da internet. 19 Chegamos a um ponto impor- a morte dela, em 1969. Ambos tinham uma filha, a cantora Maria Clara Becker Chagas, tante, pois em João Cabral, ao to- conhecida como Clara Becker. (Nota da IHU Tanto a afirmação do poeta marmos O cão sem plumas como On-Line) quanto a força que a música po- ponto de partida, notamos que 6 Silnei Siqueira (1934-2013): encenador, pular adquire no país, em subs- aquilo que singulariza sua obra diretor e ator paulistano. Grande nome do te- tituição à poesia ou misturada a atro, ficou famoso pela montagem no Teatro – ao mesmo tempo em que lhe da Pontifícia Universidade Católica de São ela, parecem sintomas do mesmo empresta legitimidade – também Paulo – Tuca, em 1965, de Morte e Vida Se- subdesenvolvimento, agora evi- problematiza seu engajamento. verina, poema de João Cabral de Melo Neto dente no campo da cultura, de musicado por Chico Buarque. Pela monta- Seus poemas têm como ponto de gem, recebeu o prêmio de melhor direção que João Cabral, os de sua gera- partida o universo que o formara no Festival de Teatro em Nancy, na França. ção e os de antes tinham tomado subjetivamente, de modo que a Também era professor e advogado. Dirigiu as consciência. Com isso, não afir- escolha do Nordeste o implica di- óperas O Guarani, Mestre Capela, La Bohè- mo que a música popular tenha me, O Barbeiro de Sevilha e Gianni Schicchi. retamente na situação que se lê Fundou o Grupo de Teatro do Clube Pinhei- qualidade inferior à literatura, nos poemas e, embora ele deseje ros e o Teatro Paulista do Estudante. Ingres- não se trata disso, mas de notar conceber-se somente como es- sou na Escola de Arte Dramática de São Paulo que apesar de o analfabetismo (1958). (Nota da IHU On-Line) pectador daquela vida miserável, 7 Zelito Viana [José Viana de Oliveira Pau- vir decrescendo, não houve au- é parte intrínseca dela. Afinal, ao la] (1938): cineasta brasileiro, irmão do co- mento proporcional no número retornar por meio da poesia ao mediante e da atriz e comedian- de leitores no Brasil. De tal modo mundo nordestino, que abando- te Lupe Gigliotti. Dirigiu e produziu filmes como Minha Namorada (1970), O doce es- que a música (popular brasileira) nara na juventude, volta-se para porte do sexo (1971), Os condenados (1975), veio disputar lugar com a lite- os pobres do rio pernambucano, Morte e vida severina (1976), Terra dos ín- ratura, em lugar de unir força a fazendo-os centro temático e dios (1978) e Avaeté – semente da vingança ela, mantendo o perfil da cultura (1984), Villa-Lobos – Uma vida de paixão formal de sua poesia, gesto que (2000). Produziu vários filmes e programas brasileira algo débil. ■ o obriga a situar-se subjetiva e de televisão. (Nota da IHU On-Line) socialmente, de modo bastante 8 Walter Avancini (1935-2001): escritor, de minisséries e especiais históricos aclama- autor e diretor de telenovelas e minisséries. dos no Brasil e no exterior, como Morte e vida concreto, em relação ao que es- Um dos mais inovadores e criativos direto- severina (baseado no poema de João Cabral tava produzindo. res da história da televisão brasileira, dirigiu de Melo Neto), Avenida Paulista, Moinhos de clássicos da teledramaturgia como A deusa vento, Anarquistas, graças a Deus, Rabo de vencida, As minas de prata, Selva de pedra, saia, Grande sertão: veredas, Memórias de HU On-Line – Qual a sua opinião O semideus, O rebu, Gabriela, Saramandaia, um gigolô e Chapadão do Bugre, entre ou- sobre as versões para cinema e Nina, da Silva, O cravo e a rosa, além tros. (Nota da IHU On-Line)

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#Dossiê Morte e vida severina Reflexão sobre a linguagem é o principal da poesia cabralina Para Braulio Tavares, João Cabral agia como se tudo no mundo fosse um conjunto de sinais que pudesse ser interpretado e comparado com outros conjuntos de sinais

Por Vitor Necchi

escritor Braulio Tavares iden- Tavares, “não é exagero dizer que sem- tifica no universo poético de pre que refletirmos sobre a seca usare- OJoão Cabral de Melo Neto um mos, num ou noutro momento, pontos núcleo que opera uma vasta reflexão de vista fixados pelo poema de Cabral”. sobre a natureza, a paisagem social e Braulio Tavares (Campina Grande, a linguagem. “A reflexão sobre a lin- 1950) é escritor, poeta, compositor, guagem é a parte mais importante, mais original, da poesia dele. Cabral letrista e pesquisador de ficção cientí- via linguagem em tudo”, descreve em fica e literatura fantástica. Organizou entrevista concedida por e-mail à IHU várias antologias desse gênero para a On-Line. editora Casa da Palavra (Rio de Janei- ro). Mora no Rio de Janeiro desde 1982. No seu entendimento, o poema Mor­ Tem forte influência da literatura de te e vida severina mantém-se atual, cordel. Autor da peça Folias Guanaba­ 20 em primeiro lugar, porque a situação ras e de Contando estórias em versos social descrita na obra “não se alterou (Editora 34 Letras), sobre a literatura muito em mais de meio século”. Além de cordel, e de livros independentes de disso, porque “o poema produziu ima- vários gêneros, como ensaio, poesia, gens e contextos simbólicos que desde contos, ficção científica, romance, cor- então ficaram fortemente associados à del e infantil. Ele escreveu a apresen- realidade descrita, e que de certa for- tação de Morte e vida severina, coletâ- ma acabam contaminando, no caso de nea de poemas de João Cabral de Melo observadores que conheçam o poema, Neto lançada pela editora Alfaguara. a própria maneira de enxergá-la”. A força dos versos é tamanha que, para Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor afirma do tinha 35 anos. Ele viveu até os ções”, como ele gostava de dizer. que a obra de João Cabral tem 79. Nestes quase 45 anos, que ca- Como se tudo no mundo fosse um um perfil intensamente pessoal minhos seguiu sua poesia? Quais conjunto de sinais que pudesse ser em razão da sintaxe, da temáti- temas, estilos e propósitos? interpretado e comparado com ou- ca e do olhar que o autor lança Braulio Tavares – A reflexão -so tros conjuntos de sinais. sobre a natureza e o mundo dos bre a linguagem é a parte mais homens. Para além desta síntese, Com exceção do seu primeiro li- importante, mais original, da poe- como podemos apresentar o uni- vro, que tem um viés totalmente verso do autor? sia dele. Cabral via linguagem em diverso, a carreira de Cabral seguiu tudo. Nesse sentido, toda sua obra basicamente essas linhas. Braulio Tavares – Eu diria que é a evolução dessa pesquisa, que o universo poético de João Cabral nunca cessou. Ele pode usar como tem como núcleo uma vasta refle- tema a natureza (o rio, o canavial, IHU On-Line – Em Morte e vida xão sobre a natureza, a paisagem as frutas etc.), a paisagem social severina, o autor criou habilmen- social e a linguagem. (os cemitérios, os retirantes, os ar- te a partir de diferentes forma- tífices, os profissionais de diversos tos tradicionais. Com esta obra, IHU On-Line – João Cabral publi- tipos), mas ele está sempre com- pode-se dizer que ele atingiu a cou Morte e vida severina quan- parando linguagens, signos – “dic- maturidade literária?

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IHU On-Line – O senhor descreve João Cabral como um poeta que tem um projeto literário racional, ao mesmo tempo que é movido por intuições profundas e sensa- O universo poético de João Ca- ções lancinantes. Como é possível bral tem como núcleo uma vas- esta aparente ambivalência? E como se processa a carga emotiva ta reflexão sobre a natureza, a de Morte e vida severina? paisagem social e a linguagem. Braulio Tavares – Cabral era um homem polarizado, um homem onde conviviam extremos opostos Braulio Tavares – Não sei se ma- obra dele, juntamente com O cão – ou pelo menos é esse o retrato turidade é o termo, mas o fato é sem plumas. Quanto à importân- dele feito por pessoas que o conhe- que Morte e vida severina é o seu cia, isso vai do enfoque e do gosto ceram. Dizem seus amigos que ele trabalho mais conhecido, o mais pessoal de cada leitor. Toda a obra chegava a dizer, referindo-se a sua acessível, o que foi transposto com é igualmente importante, para mania obsessiva por ordem, organi- maior sucesso para outras formas mim. zação: “Eu tenho que botar ordem de expressão (teatro, televisão, em alguma coisa, porque minha ca- cinema). Cabral viria a fazer dife- beça é um caos”. rentes experimentos com a lingua- IHU On-Line – Ao dizer que João gem ao longo da obra. Na minha Cabral é o mais visual dos poetas O projeto literário de Cabral opinião, seu livro mais denso neste brasileiros, que aspectos da obra está muito claro nos seus textos aspecto é A educação pela pedra dele o senhor está destacando? em prosa (já reunidos em livro, (1962-65), com seus versos longos, Como esta “arte de ver” chega ao pela Nova Aguilar e também, se suas estrofes largas e compactas. leitor? não me engano, pela Nova Fron- teira). Poesia e composição (1952, Braulio Tavares – Cabral é mes- IHU On-Line – João Cabral pro- com o subtítulo “A inspiração e o tre naquele requisito que Ezra duziu versos intencionalmente trabalho de arte”) é uma boa sín- 1 fáceis, para que alcançasse um Pound chamava de “fanopeia”, a tese da sua visão construtivista, 21 público maior. Que intenção sus- capacidade de evocar imagens vi- que leva em conta a tradição e tentava esta opção? suais através da palavra. Sua poe- o arcabouço coletivo da língua e sia é em grande parte uma poesia da literatura, que ele contrapõe Braulio Tavares – O verso de do olho, aspecto que, aliás, é re- à mera inspiração subjetivista da Cabral nunca é fácil, se visto no forçado pela sua longa história de maioria da produção poética que contexto da nossa poesia, prin- via em torno. cipalmente quando pensamos no amizade e convivência com artis- contexto em que cada livro dele tas plásticos e artistas gráficos. “O As intuições profundas que ali- surgia nas décadas de 1950, 1960 mais visual” é uma hipérbole, cla- mentam sua poesia requerem jus- etc. Podemos perceber que havia a ro, pois são muitos os poetas que tamente um rigor maior de ela- cada livro um impacto muito for- têm esse traço, mas acho que qual- boração, para que não acabem te, pela sintaxe muito pessoal, a quer seleção de nomes com essa explodindo a expressão poética. aspereza, a precisão da linguagem, qualidade teria que forçosamente a recusa à emoção exteriorizada. incluir o nome dele. IHU On-Line – A montagem tea- Somente no interior de uma obra tral, com a música de Chico Buar- assim é que podemos considerar Seus símiles visuais são sempre que, amplia a potência dos versos fácil a linguagem de Morte e vida inesperados e instantaneamente originais? Como? severina, que contou, para sua po- verossímeis, reafirmando aquela pularização, com a imensa ajuda descrição da poesia como a arte de Braulio Tavares – Se o poema já foi escrito com a intenção de ser da dimensão musical e da dimen- mostrar aquilo que já vimos e não musicado, é provável que o autor são cênica. sabíamos que tínhamos visto. tenha tido em mente essa dicção “para fora”, esse impulso decla- IHU On-Line – Morte e vida se- 1 Ezra Pound (1885-1972): Ezra Weston Loomis Pound é um poeta, músico e crítico matório ou do canto propriamente verina é a obra mais famosa de americano que, junto com T. S. Eliot, foi uma dito. Morte e vida severina seria, João Cabral. Além de conhecida, das maiores figuras do movimento modernis- assim, uma extensa letra de mú- ela é a mais significativa e impor- ta da poesia do início do século XX. Ele foi o sica ou poema oral. Isso não pode tante? Por quê? motor de diversos movimentos modernistas, notadamente do Imagismo e do Vorticismo. ser dissociado na natureza do poe- Braulio Tavares – Eu diria que é Sua obra, carregada de citações e alusões his- ma – se, repito, ele foi escrito com tóricas, é aclamada como uma das mais im- a mais conhecida, e que é também portantes da poesia do século XX. (Nota da a consciência de que seria cantado a melhor porta de entrada para a IHU On-Line) ou dito em voz alta.

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Essa consciência da oralidade mática da seca nordestina e de o poema produziu imagens e con- acabou contaminando outros livros seus personagens, os retirantes? textos simbólicos que desde então do poeta. Em Dois Parlamentos ficaram fortemente associados à Braulio Tavares – Há muitos po- (1958-1960), há poemas com rubri- realidade descrita, e que de certa emas que têm a seca como tema, cas como “ritmo senador; sotaque forma acabam contaminando, no mas Morte e vida talvez seja a sulista”, “ritmo deputado; sotaque caso de observadores que conhe- primeira referência que nos vem nordestino” etc. çam o poema, a própria maneira à mente. É preciso lembrar, entre- de enxergá-la. Não é exagero dizer tanto, que o poema não é apenas que sempre que refletirmos sobre a IHU On-Line – Qual a sua opinião sobre a seca. A partir da metade seca usaremos, num ou noutro mo- sobre as versões para cinema e ele se desenrola na úmida e fér- mento, pontos de vista fixados pelo televisão? No que elas projetam til Zona da Mata, litorânea, e nos poema de Cabral. ou reduzem a obra original? mangues do Recife. Braulio Tavares – Faz muito tem- IHU On-Line – Deseja acrescen- po que vi as adaptações de cinema IHU On-Line – O poema é fruto tar algo? e TV. Na época gostei, mas não me de uma época, de um contexto, de uma economia. O que a obra Braulio Tavares – Nada substitui arrisco a fazer um julgamento sem a leitura dos poemas em si, e, no mantém de atual? rever os trabalhos. presente caso, a audição de algu- Braulio Tavares – Em primeiro lu- ma de suas versões encenadas, vis- IHU On-Line – Este auto de Natal gar, o fato de que a situação social to que se trata do que chamamos pernambucano pode ser conside- descrita não se alterou muito em informalmente de “poesia em voz rado a obra poética mais emble- mais de meio século. Em segundo, alta”, mais do que poesia lida.

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#Dossiê Morte e vida severina O nascimento de um Jesus-severino e a vitória da esperança Eli Brandão analisa como o Auto de Natal Pernambucano, de João Cabral de Melo Neto, torna o nascimento do Cristo algo muito próximo, humano e dessacralizado. Com isso, inspira a seguir na jornada da vida

Por João Vitor Santos

imagem do presépio natalino, alcança imediatamente Severino e Car- com o menino Jesus recém- pina, retirantes, marginalizados, mas A nascido deitado na manjedou- também símbolos dos que têm espe- ra de poucas palhas, bem como toda a rança de encontrar vida”. Ainda na en- jornada daquela família, emociona. Há trevista, Eli provoca a leitura da obra quem fique horas diante das imagens na perspectiva que se pode chamar de imóveis do presépio, fitando e sentindo teologia popular. “Pode ser entendida a magia daquele momento. Entretanto, como teológica, pois os textos da tra- reconhecer aquela cena viva, menos dição cristã não são privativos da igreja sacralizada e em movimento, atuali- cristã ou dos teólogos”, pontua. za e ressignifica a chegada do Cristo, tornando-o humano e próximo, pulsan- Eli Brandão da Silva é doutor em Ci- do noutra magia. É esse movimento ências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo – Umesp, com que faz João Cabral de Melo Neto ao 23 reconstituir os desafios de vida e a es- tese intitulada Nascimento de Jesus- perança que se renova num nascimento Severino no auto de Natal pernambu­ a partir da narrativa do nordestino Se- cano como revelação poético-teológica verino. “O encaixe do auto de Natal no da esperança: hermenêutica transtex­ momento mais agudo do desespero de to-discursiva na ponte entre Teologia Severino dá ao anúncio do nascimento e Literatura. É também mestre em do menino um sentido especial. Pois, Teologia pelo Seminário Teológico Ba- para combater o desespero em sua po- tista do Norte do Brasil – STBNB, Reci- tência máxima, só uma esperança em fe – PE, com dissertação sobre as rela- potência ainda maior”, destaca o pro- ções entre Teologia e Filosofia na obra fessor e doutor em Ciências da Religião de Sören A. Kierkegaard, a partir dos Eli Brandão da Silva. conceitos de Angústia, Desespero e Fé. Licenciado em Letras Vernáculo/Inglês Na entrevista a seguir, concedida por pela Universidade Católica de Pernam- e-mail à IHU On-Line, o professor ob- buco/Universidade Estadual da Paraí- serva como esse conto torna a história ba, ainda é bacharel em Teologia pelo do Cristo mais intelegível, traduzida STBNB. Atualmente é professor da Uni- pela cultura popular. “A mulher que versidade Estadual da Paraíba – UEPB e sai do mocambo e, festivamente, faz o professor permanente do Programa de anúncio do nascimento do menino, en- Pós-Graduação em Literatura e Inter- cobre o anjo da anunciação de Mateus culturalidade – PPGLI, na mesma uni- e de Lucas”, exemplifica. Eli reconhe- versidade. Entre suas publicações de ce que a anunciação do nascimento no destaque estão Jesus-Severino e a tei­ auto pernambucano é brevíssimo, “mas mosa Esperança (Estudos de Religião, comporta tanto a ampliação dos agen- São Bernardo, v. 1, n.1, p. 18-37, 2007) tes, quanto a inclusão dos marginaliza- e E o Divino se faz verbo: conjunções dos”. Ele explica que isso se dá porque, entre símbolo e metáfora (Estudos de “por um lado, o agente da anunciação Religião, São Paulo, v. 01, n.01, p. 161- não é um ser assexuado nem um astro 177, 2005). celeste, mas uma pessoa humana, uma mulher, um pobre. Por outro, o anúncio Confira a entrevista.

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Quem é este, que tem o poder de impedir que o desespero se consu- ma em suicídio? Quem é este nascente, que traz Trata-se de uma esperança pe- a esperança para os que lutam pela quenina, que compra a vida a vida? Quem é este, que converte o retalho, que compra a vida de drama trágico do humano em cada dia e, teimosamente, im- celebração? pulsiona a vida a se fabricar O fato de o anúncio do nascimen- to do menino a José, mestre carpi- na, produzir o efeito de interrom- IHU On-Line – Em que medida da obra dependa do trabalho de per a tragédia, já mostra a riqueza podemos considerar Morte e vida análise e interpretação do leitor, do simbolismo deste nascimento. severina um texto teológico? em face às diversas possibilidades hermenêuticas. Ícone do drama Eli Brandão da Silva – Para res- ponder a essa pergunta, preciso humano apontar qual é o conceito de Teo- IHU On-Line – De que forma Severino, mais do que um re- logia implícito no meu trabalho. De esse texto de João Cabral de Melo presentante regional, pode repre- forma sintética, teologia é discurso Neto proporciona uma revelação sentar também o drama humano, sobre os deuses. Neste sentido, a poético-teológica da esperança? enquanto busca de vida, de espe- obra Morte e vida severina: Auto de Eli Brandão da Silva – A obra rança, neste caso, a resposta ao Natal pernambucano pode ser en- possui uma divisão interna que seu grito de morte e desespero não tendida como teológica, indepen- apresenta 18 cortes. Destacando o se reduz ao nascimento de mais um dente da intenção do seu autor, por auto de Natal do restante da obra, Severino. O menino nascido só se se apresentar configurada em diálo- restam 12 cortes, simetricamente, torna símbolo da esperança porque go com textos fundantes da tradi- atualizados por seis monólogos e estamos num auto de Natal. A ri- ção cristã, como um palimpsesto1, seis cenas, dispostos alternada- 24 queza do simbolismo deste nasci- por constituir sua pluridiscursivi- mente. A narrativa segue linear- mento não advém da interpretação dade por meio da incorporação de mente, numa alternância entre os de figuras isoladas, mas pelo en- contributos discursivos da tradição monólogos e as cenas, constituindo cadeamento das figuras de Maria, teológica. Esta obra de João Cabral a tensão dramática, que, progres- Zacarias, José e as outras que, alu- pode ser entendida como teológi- sivamente, vai se condensando até sivamente, nos remetem aos Evan- ca, pois os textos da tradição cristã a primeira parte da última cena gelhos, nos apontam para Jesus. não são privativos da igreja cristã dialógica, quando ocorre o clí- ou dos teólogos, mas pertencem ao max. Neste momento, há uma in- É revelação porque o sentido patrimônio cultural da humanidade. terrupção da narrativa, o auto de somente se desvenda por meio da Neste sentido, já não é mais possí- Natal é encaixado, pondo um fim análise e interpretação do palimp- vel controlar o fazer teológico, as- no caráter trágico da ação com o sesto. É poética porque se instaura sim como ninguém pode controlar o anúncio do nascimento do menino, uma conjunção simbólico-metafó- fazer filosófico, político, histórico, pois este é a ponte que liga o auto rica que potencializa a esperança e todos os saberes. trágico ao auto de celebração da por meio da alusão ao nascimento esperança, à peça-mito. de Jesus, o que lhe confere a di- Além disso, a relação hiper- mensão teológica. textual, o palimpsesto, pode se Não fosse o salto para dentro da apresentar pouco compacta e evi- vida em oposição ao salto para fora dente, de tal modo que o desve- da vida, os autos estariam comple- IHU On-Line – A morte é algo lamento da condição teológica tamente desconectados e o auto presente em toda a narrativa de trágico, sem desfecho. Por isso, Severino. Como compreender 1 Palimpsesto: designa um pergaminho ou podemos dizer que o auto trágico essa ideia de morte? E como ela papiro cujo texto foi eliminado para permi- precisa do auto de Natal para com- se perfaz no relato do nascimen- tir a reutilização. Tal prática foi adotada na to do bebê no mocambo2 da beira Idade Média, sobretudo entre os séculos VII pletar o seu sentido. Já o auto de e XII, devido ao elevado custo do pergami- Natal, diferentemente, tem auto- do rio? nho. A eliminação do texto era feita através nomia, podendo ser deslocado para de lavagem ou, mais tarde, de raspagem com 2 Mucambo: também conhecida como mo- pedra-pomes. A reutilização do suporte de outros contextos. cambo, palhoça, palhota, tejupar, cubata ou escrita conduziu à perda de inúmeros textos Para perceber a referência no choupana. São denominações dadas a mo- antigos – desde normas jurídicas em desuso radias construídas artesanalmente, muitas até obras de pensadores gregos pré-cristãos. palimpsesto, basta responder às vezes de frágil constituição. Apresenta di- (Nota da IHU On-Line) perguntas: ferenças no Brasil mais de natureza regio-

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Eli Brandão da Silva – A morte se só uma esperança em potência ain- do nascimento de Jesus. Todos os apresenta ao longo do auto trági- da maior. A criança nascente, nes- que se encontram com o menino co, alternando-se entre monólogos te caso, não pode ser um menino passam a viver num clima de ale- e cenas, até a última cena dialógi- qualquer nascido no mangue. Seu gria e a expressar atitudes de so- ca, quando ocorre o clímax. No seu salto para dentro da vida impediu lidariedade, fraternidade e espe- diálogo com Severino, seu José, que Severino desse o salto para rança, semelhante ao que ocorreu mestre carpina, luta para preser- dentro da morte. com os pastores e os magos. O can- var a vida do retirante, enquanto to final, o hino à vida, mostram que a morte lhe resiste pela fala e pelo o auto de Natal se harmoniza com gesto de Severino. A notícia do nas- o sentido teológico dos prototextos cimento da criança, ocorrida no teológicos, com as narrativas dissi- exato momento do desespero mor- muladas dos Evangelhos de Mateus tal de Severino, impediu a tragé- O nascimento de e Lucas. dia, instaurando a vitória da vida Jesus-severino e da esperança que teimosamente IHU On-Line – O último “cená- resistiu pela fala do Carpina. transforma o rio” de Morte e vida severina é a conversa “do carpina” com o Isto porque a fala trágica de Se- sentido teológi- retirante a partir da reflexão de verino, que antecipava um salto que “se não vale mais saltar da para dentro da morte, consumando co da esperança vida e da ponte”. Que reflexões a tragédia, foi interrompida pelo esse trecho pode inspirar e o que grito de uma mulher que, da porta diz sobre a realidade do Nordeste do mocambo de José, anuncia-lhe Releitura da anunciação brasileiro? que seu filho saltou para dentro da bíblica vida. Eli Brandão da Silva – Não é a A mulher que sai do mocambo mesma coisa dizer que um retiran- O tempo cronológico foi, mitica- e, festivamente, faz o anúncio do te desesperado estava prestes a mente, suspenso e instaurou-se um nascimento do menino, encobre praticar um suicídio quando o avi- tempo festivo. o anjo da anunciação de Mateus4 saram do nascimento de uma crian- Foi encaixado o auto de Natal; e de Lucas5. Em Mateus, além do ça qualquer da favela. Isto não im- 25 um auto dentro do auto. anjo, o anúncio faz-se por meio da pede um suicídio, nem nos remete estrela do oriente, ampliando os a nenhum símbolo, nem abate o O drama trágico do Severino foi agentes da anunciação, pois ele- desespero, impedindo a tragédia. interrompido por uma epifania3. mentos da natureza física são ins- Mas, se entramos no mundo do tex- O encaixe do auto de Natal no trumentos dessa revelação divina. to e de lá percebemos uma busca momento mais agudo do desespe- Em Lucas, a anunciação é duplica- cheia de esperança de encontrar ro de Severino dá ao anúncio do da, pois não só a Maria as “boas no- a vida que não chega; se, na hora nascimento do menino um sentido vas” são anunciadas, mas também do desespero, do salto da morte, a especial. Pois, para combater o de- aos pastores, o que nos sugere uma criança que nasce é a do auto de sespero em sua potência máxima, esperança que alcança também Natal, então, ninguém tem dúvida, os marginalizados. No auto de Na- é Jesus. O rito de iniciação, o sím- nal, conforme o material empregado na sua tal pernambucano, a anunciação bolo do nascimento nos lança ao construção – folha de buriti, palha de coquei- profundo mistério da vida, ao sa- ro, palha de cana, capim, sapé, lata velha, é breve, mas comporta tanto a pedaços de flandres ou de madeira, cipó ou ampliação dos agentes, quanto a grado, à esperança. prego – do que de tipo, numas regiões mais inclusão dos marginalizados. Isto africano, noutras mais indígena. (Nota da IHU On-Line) porque, por um lado, o agente da IHU On-Line – Em que contex- 3 Epifania: é uma súbita sensação de en- anunciação não é um ser assexua- to político-social João Cabral de tendimento ou compreensão da essência de do nem um astro celeste, mas uma Melo Neto concebe Morte e vida algo. Também pode ser um termo usado para severina? E qual era a inserção da a realização de um sonho com difícil realiza- pessoa humana, uma mulher, um ção. O termo é usado nos sentidos filosófico pobre. Por outro, o anúncio alcan- religião nesse contexto? e literal para indicar que alguém “encontrou ça imediatamente Severino e Car- finalmente a última peça do quebra-cabeças Eli Brandão da Silva – A obra e agora consegue ver a imagem completa”. pina, retirantes, marginalizados, Morte e vida severina – auto de Na­ O termo é aplicado quando um pensamento mas também símbolos dos que têm tal pernambucano foi escrita entre inspirado e iluminante acontece. Teologi- esperança de encontrar vida. 1954-1955 por solicitação de Maria camente, é a revelação ao aparecimento de 6 qualquer divindade. No sentido cristão, é Os efeitos produzidos pelo nasci- Clara Machado . Mas como houve também a denominação da festa que come- mento do menino são análogos aos mora o batismo de Cristo e também as bodas 6 Maria Clara Machado (1921-2001): foi de Caná. Também é entendida, na Igreja oci- que foram produzidos por ocasião uma escritora e dramaturga brasileira, autora dental, como a visita dos Reis Magos, como de peças infantis. Em 1951, fundou uma das ocasião da primeira manifestação de Cristo 4 Mateus 1; 18-25. (Nota da IHU On-Line) maiores escolas de teatro do Brasil, o Tabla- aos gentios. (Nota da IHU On-Line) 5 Lucas 1; 26-38. (Nota da IHU On-Line) do. Considerada a maior autora de teatro in-

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recusa para a montagem da peça, cial(...) que ela [a obra] transcen- logia da Existência, à medida que somente em 1956 ela foi publicada. da suas próprias condições psicos- temas existenciais expressivos da A obra foi encomendada por Maria sociológicas de produção e que finitude e potência da condição Clara para ser encenada como um se abra, assim, a uma sequência humana são tecidos por meio dos Auto de Natal. Esse aspecto da en- ilimitada de leituras, elas mesmas percursos temáticos e/ou figurati- comenda, por si só, demonstra que situadas em contextos sociocultu- vos referentes a conceituações e deveria ser uma reescritura das rais diferentes. Em suma, o texto metaforizações de temas como a tradições cristãs, portanto das nar- deve poder, do ponto de vista tan- morte, o desespero, a angústia, a rativas do nascimento de Jesus. to sociológico quanto psicológico, solidão, o tempo, a dor, a saudade, descontextualizar-se de maneira a liberdade, a esperança, a liberta- O próprio João Cabral comenta a deixar-se recontextualizar numa ção, o amor, a alegria, entre outras que esta sua obra é uma homena- nova situação: é o que justamente expressões da existência humana e gem às literaturas ibéricas, sendo faz o ato de ler”. configurados na pluridiscursividade os monólogos do retirante pro- metafórica dos seus textos, sendo vindos do romance castelhano, a os mesmos plausíveis de serem in- cena do enterro, do folclore cata- terpretados. Os temas existenciais lão e os cantores de excelências, mimetizados nas poéticas dialógica do Nordeste brasileiro. No Auto de e dialeticamente promovem ruptu- Natal, vemos também a presença ras e/ou continuidades em relação da tradição do pastoril do folclo- [a obra] Pode ao discursivo das filosofias e das te- re pernambucano, além de outros ologias da existência, evidenciando elementos da tradição ibérica, li- ser entendida a potência da literatura como por- gados aos autos de devoção e de como teológi- tadora de reflexões e importante conversão. ca, pois os tex- interlocutora no diálogo com as filosofias e teologias da existência. Contexto social tos da tradição O contexto social está marcado cristã não são IHU On-Line – Quais as particu- pela condição de miséria decor- laridades da religiosidade popular rente dos efeitos da seca, por um privativos da nordestina, que mistura diversas 26 lado, e, por outro, decorrente da igreja cristã ou formas de manifestação da fé, e submissão dos pobres ao sistema como é retratada na literatura de poder político e econômico do dos teólogos regional? coronelismo, que prevalecia, por Eli Brandão da Silva – No atual meio do qual oligarquias, repre- IHU On-Line – Como as perspec- mundo globalizado, interconecta- sentadas pela figura dos latifundi- do, as fronteiras entre religiosida- ários senhores de engenhos, que tivas da filosofia existencial e das teologias aparecem e se articu- des do campo e cidade são cada concentravam o poder e a riqueza vez mais tênues. Além disso, por e dominavam o gado e as pessoas. lam na literatura produzida por autores nordestinos? toda parte, se multiplicam ma- Prevalecia, do ponto de vista re- nifestações religiosas, cada vez ligioso, um catolicismo popular, a Eli Brandão da Silva – A Litera- mais plurais, ao tempo em que a serviço dos poderosos. tura dialoga com a Filosofia e Teo- literatura regional, em consequên- Contudo é preciso levar em con- cia, expressa em seus textos essa disponível para download em http://bit.ly/ diversidade e fecundidade. ta que alguns textos literários, por ihuon49 e uma entrevista na edição 50 que sua dimensão universal e atempo- pode ser acessada em http://bit.ly/ihuon50. ral, sempre extrapolam os limites A edição 142, de 23-05-2005, publicou a IHU On-Line – A dureza da misé- editoria Memória sobre Ricoeur, em função dos contextos de origem e ao se- de seu falecimento. Confira o material em ria e da seca nordestina é muito rem apropriados por diferentes http://bit.ly/ihuon142. A formação de Ri- presente no imaginário da cultura leitores e em diferentes espaços e coeur se dá em contato com as ideias do exis- popular do Brasil das décadas de diferentes temporalidades, como tencialismo, do personalismo e da fenomeno- logia. Suas obras importantes são: A filosofia 80 e 90. Entretanto, nas últimas 7 bem observa Ricoeur : “é essen- da vontade (primeira parte: O voluntário e o décadas, esse Nordeste não apa- involuntário, 1950; segunda parte: Finitude e rece mais associado a essas ima- fantil do país, Maria Clara Machado escreveu culpa, 1960, em dois volumes: O homem fa- gens da cultura popular. Há de quase 30 peças infantis, livros para crianças lível e A simbólica do mal). De 1969 é O con- e 3 peças para adultos (As interferências, Os flito das interpretações. Em 1975 apareceu A fato esse deslocamento da ima- Embrulhos e Miss Brasil). É filha de Aníbal metáfora viva. O sentido do trabalho filosó- gem do Nordeste? Por quê? Machado, escritor, futebolista, professor e fico de Ricoeur deve ser visto em uma teoria homem de teatro brasileiro. (Nota da IHU da pessoa humana; conceito – o de pessoa Eli Brandão da Silva – O incha- On-Line) – reconquistado no termo de longa peregri- mento das grandes cidades do eixo 7 Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo fran- nação dentro das produções simbólicas do Sul-Sudeste, o desenvolvimento cês. Sobre ele, conferir o artigo intitulado homem e depois das destruições provocadas Imaginar a paz ou sonhá-la?, publicado na pelos mestres da “escola da suspeita”. (Nota industrial e comercial do Nordes- edição 49 da IHU On-Line, de 24-02-2003, da IHU On-Line) te (o que promove um movimen-

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to diferente do êxodo rural que Além da seca ferrenha Por isso não pise, viaje e fez muitos retirantes buscarem pesquise. Do chão batido e da brenha a saída Sul\Sudeste), e a reflexão Conheça de perto esse chão empreendida em torno da história O meu nordeste tem brio recente do Brasil certamente con- Só pra ver que o nordeste tribuíram para a contestação da Quer conhecer então venha Agora é quem veste ideia do Sul\Sudeste maravilha\pa- Que eu vou te mostrar a senha raíso e para a emergência de novos imaginários, por meio dos quais o Do coração do brasil É quem veste de orgulho a nação. Nordeste passa a ser ressignificado São nove estados na raia e refigurado, vindo a ser expresso, IHU On-Line – Que inspirações de forma crítica e criativa, na lite- Todos com banho de praia continuam candentes em Morte ratura e no cancioneiro da música Num céu de anil e calor e vida severina ainda nos dias de popular, principalmente, nos últi- hoje? mos doze anos. São nove estados unidos Eli Brandão da Silva – O nasci- Crescentes fortalecidos IHU On-Line – Como a imagem mento de Jesus-severino trans- do retirante é atualizada no Brasil Onde o brasil começou forma o sentido teológico da esperança. Mas não se trata de de 2016? E hoje no calcanhar da ciência uma esperança como a simboli- Eli Brandão da Silva – Posso Formam uma grande potência zada pelo nascimento de Isaque, exemplificar com uma canção “Or­ a qual se referia a uma esperan- Irrigando o chão que secou gulho de Ser Nordestino”, de auto- ça de prosperidade para todas as ria de Flávio Leandro8, interpreta- É verdade que a seca inda deixa subsequentes gerações, tampouco da por Flávio José9, representativa sequela se trata de uma esperança que dessa geração de forrozeiros altru- aponta apenas para além desta ístas do Nordeste10. Mas foi aprendendo com ela vida, como tem predominado nos 8 Francisco Flávio Leandro Furtado: Que o nosso nordeste ganhou discursos da escatologia do fun- cantor e compositor brasileiro. Começou a damentalismo protestante. Mas se compor aos 13 anos, com fortes influências Deixou de viver de uma vez de trata de uma esperança pequeni- 27 dos amigos. Participou do primeiro festival esmola em 1985, o “Sementes da Terra”, em que se na, que compra a vida a retalho, apresentou cantando canções de sua autoria. E foi descobrir na escola que compra a vida de cada dia e, Integrou como vocalista a Banda Raio Laser, teimosamente, impulsiona a vida em 1992. Mas seu primeiro CD, Travessuras, A grandeza do nosso valor foi lançado em 1997. Lançou em 2000 o CD a se fabricar. Brasilidade, que mescla forrós pé-de-serra. No ano seguinte, lançou mais um disco, dessa Essa esperança de vista curta é vez de forma acústica e posteriormente o CD Eu quero é cantar o nordeste uma esperança-semente da nova Forró Iluminado. (Nota da IHU On-Line) vida explodida, é uma abertura do Que é grande e que cresce 9 Flávio José Marcelino Remígio: cantor ser. Mais do que isso é a potência e compositor brasileiro, intérprete de músicas tradicionais do forró nordestino. Iniciou-se E você não conhece doutor que testemunha que a vida não como cantor desde os 7 anos de idade. Tem está condenada a ser um drama De um povo guerreiro, festivo e como principais influências e trágico, mas que pode se tornar . (Nota da IHU On-Line) ordeiro. 10 A canção está disponível em http://bit. um espetáculo festivo, solidário, ly/2hoPOPR. (Nota do entrevistado) De um povo tão trabalhador fraterno.

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#Dossiê Morte e vida severina Severino e a experiência de fé e religiosidade nordestina Maria Augusta Torres observa como João Cabral retrata, na literatura popular, um exemplo de como a religiosidade tem outros sentidos quando vivida a partir da realidade de um povo

Por João Vitor Santos

texto deve permitir a destaca. Ela lembra, por exemplo, descoberta de novos a importância e o papel das tradicio- “Ocaminhos para enten- nais histórias de cordéis. “Os cordéis, der sua mensagem”. A frase da profes- literatura trazida de Portugal, são as sora Maria Augusta Torres, mestra em mais genuínas formas de apresentar a Ciências da Religião, é importante para religião com toda suas variantes como compreender a ponte que a literatura força integradora da vida, porque eles popular nordestina faz para acessar falam de uma realidade vivida. Esta a religião. Na obra de João Cabral de arte popular é a expressão daquilo Melo Neto, destaca a forma como o que é mais profundo na experiência da autor traduz o cânone religioso para a existência humana”. 28 cultura local. Para ela, esse texto reve- Maria Augusta de Sousa Torres é la outros caminhos para se compreen- mestra em Ciências da Religião pela der a mensagem bíblica com o referen- Universidade Católica de Pernambuco cial da vida que se leva no semiárido. – Unicap. Sua dissertação é Ensino Reli­ “A obra de arte tem o poder de ser in- gioso e Literatura: um diálogo a partir terlocutora criativa para a reflexão da de Morte e vida severina. Possui gradu- religião”, aponta. E detalha: “João Ca- ação em Letras pela Universidade Fe- bral faz o seu texto, partindo do real, deral do Rio Grande do Norte – UFRN. apresentando formas de religiosidade Atualmente é presidente da Comissão vivida pelo povo do Nordeste, através do Ensino Religioso da Secretaria de do diálogo com seus personagens. Por Educação do Estado do Rio Grande do isso a arte pode ser a afirmação da- Norte e professora da Universidade do quilo que é mais profundo na vivência Estado do Rio Grande do Norte – UERN. humana”. Entre suas publicações, destaca O En­ Na entrevista a seguir, concedida por sino Religioso nos Caminhos do Rio e-mail à IHU On-Line, Maria Augus- Grande do Norte (Formação de Docen- ta traz um pouco de sua experiência tes e Ensino Religioso no Brasil: Tem- no Nordeste brasileiro para destacar pos, Espaços, Lugares. 1ed.blumenau: EDFURB, 2008, v. 1, p. 117-124) e A a importância do referencial naque- transcendência: a arte de ultrapassar la cultura popular para, a partir dela, materialidade (In: Sociedade de Teolo- compreender-se enquanto ser vivente gia e Ciência da Religião – SOTER, 2010, no mundo. “A literatura popular insti- /MG). ga o leitor a ter uma visão de mundo e daquilo que ele pretende anunciar”, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que reflexões Maria Augusta de Sousa Torres tões fundamentais da vida humana Morte e vida severina suscita? E – Em Morte e vida severina, João do homem nordestino. A obra susci- qual sua conexão com os tempos Cabral constrói uma poética com ta ao leitor uma visão de mundo e em que vivemos? conteúdo onde se desvelam ques- todas as implicações da vida do ser-

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tão provocadas pelas grandes estia- senvolvimento regional e cultural, E João Cabral vai buscar elemen- gens, mostrando também o seco da são meros fabricantes de massas tos para sua formação no folclore vida que aparece na paisagem física sociais que vivem de benesses do pernambucano, descrito no livro e social. O texto, além de apresen- governo sem preocupação com po- de Pereira da Costa2, e ainda em tar o contato com a morte, que nos líticas cidadãs, sem direitos e sem suas reminiscências de infância. dá uma ideia de transcendência, identidade cultural, portanto a po- O poema apresenta a tragédia da aproxima-nos, também, da ideia esia pode ser o meio de provocar miséria nordestina, através de for- de finitude e nos proporciona uma ao ser humano, na vivência de suas tes imagens visual e auditiva com assimilação da ideia de escatologia. relações sociais, a oportunidade uma linguagem simples que prende A inversão morte/vida recorda nos- de expressar suas ideologias e uto- a atenção do leitor, para situá-lo sa origem e o nosso destino “como pias, permitindo uma visão mais dentro de uma realidade social que uma teologia cósmica e universal” integradora da vida humana. ultrapassa as fronteiras do Nor- (WALDECY TENÓRIO, 1996), evi- deste e vai além das fronteiras do denciando o ser finito e, ao mesmo país, com o objetivo de fazer ecoar tempo, a ideia de infinito no texto. um grito profético contra a miséria do mundo que é fabricada para ali- João Cabral, com Morte e vida mentar a riqueza de poucos. A cul- severina, denuncia para o mundo, a minância do auto se dá com o nas- partir do seu personagem principal, Severino é o re- cimento do menino, nos mangues uma história vergonhosa que se pas- sumo do coleti- do Recife, única esperança de vida sa no sertão nordestino, evidencian- numa semelhança com o nascimen- do a geografia da fome e a falta de vo de imagens to de Cristo que veio para resgatar tudo. Seu fazer poético materializa a humanidade. imagens do descaso daqueles que dramáticas do lucram com a seca e a pobreza do cotidiano de Nordeste. Severino é o resumo do IHU On-Line – Que relações é coletivo de imagens dramáticas do desventuras e possível se fazer entre a narrati- cotidiano de desventuras e adapta- va de João Cabral de Melo Neto e ções humanas que sofre o sertanejo. adaptações hu- a história bíblica do Cristo? E em manas que so- que medida essas relações ser- Auto de Natal vem de fermento para a religiosi- 29 fre o sertanejo dade popular? O poema tem como subtítulo Maria Augusta de Sousa Torres – Auto de Natal Pernambucano, pois IHU On-Line – No que consiste Toda história bíblica é a narração é uma peça de teatro encenada na um Auto de Natal e o que faz de das experiências concretas de um época do Natal e se configura na Morte e vida severina um deles? povo à procura de Deus e da ação representação simbólica do nasci- desse Deus se revelando ao povo, e mento do menino Jesus, que veio Maria Augusta de Sousa Torres a Bíblia deve ser lida no contexto trazer “vida nova para todos” (Jo, – Os autos são peças teatrais que da vida. Jesus nasceu e viveu no 10, 10). Com o nascimento do me- têm características religiosas ou seio de uma família pobre do povo nino, a comunidade do mangue re- burlescas, cuja finalidade é criticar de Israel, compartilhando com to- nasce e, em profunda sinergia com ou ironizar. São peças populares do dos a vida, as esperanças e as an- período medieval europeu e foram a natureza e a vida que “salta” no gústias, na perspectiva de “vida utilizadas pela igreja para narrar meio da pobreza, se instala a reli- para todos e vida em abundância” assuntos religiosos. Morte e vida gião do amor e da partilha com o (Jo 10,10). O nascimento de Cristo severina é considerado auto de Na- objetivo de acolher a solidariedade irrompe a história e nos liberta de tal pernambucano, por embasar as na diversidade da cultura. Neces- forma definitiva, ao mesmo tempo sidades tão prementes em nossos tradições religiosas do “pastoril”, dias, não como um imperativo re- típico de Pernambuco, que é en- e 3 peças para adultos (As interferências, Os ligioso, mas como exigência de cui- cenado por ocasião das festas de Embrulhos e Miss Brasil). É filha de Aníbal Natal formando um presépio vivo. Machado, escritor, futebolista, professor e dado com a vivência da ética. homem de teatro brasileiro. (Nota da IHU On-Line) O grande valor de uma nação O texto Morte e vida severina é uma obra de teatro encomen- 2 Francisco Augusto Pereira da Costa consiste na valorização do seu (1851-1923): foi um advogado, jornalista, his- 1 povo e de suas tradições culturais, dada por Maria Clara Machado . toriador e político brasileiro. Entre suas obras de destaque está Anais Pernambucanos, uma e João Cabral, com sua identifica- 1 Maria Clara Machado (1921-2001): foi obra historiográfica publicada em 10 volu- ção com o povo Severino, valoriza uma escritora e dramaturga brasileira, autora mes, num total de 5.566 páginas, ordenados a cultura do povo simples do Nor- de peças infantis. Em 1951, fundou uma das cronologicamente, que abrange a história e deste e faz uma revelação através maiores escolas de teatro do Brasil, o Tabla- a vida de Pernambuco de 1493 a 1850. Estão do. Considerada a maior autora de teatro in- publicados desde incidentes históricos im- de sua arte. Os países que não se fantil do país, Maria Clara Machado escreveu portantes a fatos curiosos e jocosos da vida preocupam com políticas de de- quase 30 peças infantis, livros para crianças pernambucana. (Nota da IHU On-Line)

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congrega todos numa fraternida- tais como o rosário, as novenas de IHU On-Line – Em que medida de capaz de abrir novos caminhos santo, mês de Maria, a caminhada, Morte e vida severina dialoga na história, quando nos entrega o tudo faz parte das expressões de fé com a perspectiva do Papa Fran- texto das bem-aventuranças (Mt 5, vivida pelo povo. cisco de “inculturação da fé”? 1-12) como caminho de verdade, Maria Augusta de Sousa Torres amor e compreensão. IHU On-Line – Como compre- – A literatura apresenta uma inter- O protagonista da história em ender o contexto político-social pretação própria da história e da Morte e vida severina sai lá da Ser- e religioso do Brasil da época em vida do ser humano no mundo. Ela ra das Costelas, limites da Paraíba, que João Cabral de Melo Neto es- faz o registro das ações do homem e vai em busca de “vida” até a ci- creve Morte e vida severina? e seu meio social, religioso e po- dade de Recife. E ele vai seguindo o lítico. Ao caminhar nos versos de Maria Augusta de Sousa Tor- curso do rio Capibaribe3, que nasce Morte e vida severina, o leitor se res – Nossa identidade cultural foi no município de Brejo da Madre de põe em contato com várias paisa- formada sobretudo pela matriz re- Deus na divisa de Pernambuco com gens, a seca, o rio, o sertanejo, a ligiosa cristã, de cunho católico. a Paraíba, possui 74 afluentes e ba- religiosidade, a morte, e os mais Nossos primeiros catequizadores nha 32 municípios pernambucanos, variados caminhos que fazem parte foram jesuítas, logo nossa cultu- estabelecendo uma metáfora com da estratégia de sobrevivência da ra é impregnada por uma religio- o rosário e a ladainha, orações reli- vida do sertão. Tudo se interliga sidade católica relevante, com o giosas do universo da religiosidade para dar clarividência a uma men- cultivo da devoção aos santos, as popular do Nordeste. Assim, o rio sagem: mostrar ao mundo a misé- inspirou João Cabral a tecer sua romarias, as procissões e muitos ria do Nordeste e recriar um novo crônica social, política e religiosa outros. E esse projeto que nos anos ethos cultural, avesso a qualquer com semelhanças muito fortes com 1950 era dirimido entre as classes forma de exploração. Conforme a caminhada do povo de Deus em populares, que viviam à margem Antonio Carlos Secchin4 (1985), “o busca de vida e libertação. Seve- das políticas sociais do Brasil, foi real se apresenta mais enquanto rino é o personagem de uma his- o contexto religioso da produção evento do que enquanto sistema”, tória vergonhosa que se passa no de Morte e vida severina, embo- como se pela força da palavra fos- Nordeste, e o rio é o fio condutor ra nessa época já despontasse um se possível conquistar a vida em si dessa história, tem a missão de re- cristianismo com certa veia profé- mesmo como recuperação da pró- 30 ligar Severino à vida. tica libertadora e comprometida pria existência. com mudanças políticas e sociais. Tudo isso só se percebe no poema O poema de João Cabral é reche- O dado religioso era tão forte que porque ele está inserido na cultura ado de uma religiosidade marcan- servia como identificação. Vejamos do povo simples. Seu teor poético te, própria da cultura popular, que no poema: “O meu nome é Severi- faz parte inerente da vida e das aparentemente faz parte da matriz no, não tenho outro de pia / Como judaico-cristã, mas na verdade manifestações de religiosidade que há muitos Severinos, que é santo servem de alento para suportar as serve de alento para dar sentido à de romaria, / deram então de me vida do povo que sofre com a falta agruras do cotidiano. “Ladainha e chamar, Severino de Maria” (João de tudo. Esta religiosidade possibi- Rosário” são rezas longas de grande Cabral, 2007). lita uma visão espiritual de senti- significado na religiosidade popu- do. A literatura, portanto, pode ser O ser humano se expressa em lar. Estas metáforas acompanham a interlocutora dessa mensagem suas práticas e a experiência da Severino em sua caminhada até a religiosa. Podemos perceber em religiosidade ocasiona uma prá- chegada no Recife, onde ele pensa vários fragmentos textuais de Mor­ xis que não pode ser reduzida ao encontrar vida, mas na verdade só te e vida severina, sobretudo nas ritual, mas incide como conduta encontrou a morte. “excelências”, a importância dessa individual e social. Estas práticas religiosidade ajudando o morto na podem ser a grande gestora de es- A inculturação travessia para vida eterna, além perança e de realização de grandes de outros elementos que compõem sonhos, na luta para que políticas O Papa Francisco afirma que as esse imaginário da religiosidade, sociais estejam a serviço do povo e culturas são muito diferentes entre não se prestem somente a um jogo si. Assim sendo, cada princípio ge- 3 Rio Capibaribe: banha o estado brasileiro de Pernambuco. Seu curso é dividido em alto de cena com fins eleitorais. Nesse 4 Antonio Carlos Secchin (1952): poeta, e médio cursos, situados no Polígono das Se- sentido, a poesia de João Cabral ensaísta e crítico literário brasileiro. É mem- cas, onde o rio apresenta regime temporário, nos aponta uma relação de com- bro da Academia Brasileira de Letras, eleito e o baixo curso, onde se torna perene, a partir prometimento com as mudanças em 3 de junho de 2004. Doutor em Letras, do município de Limoeiro, no agreste do es- é professor titular de Literatura Brasileira tado. Antes de desaguar no Oceano Atlântico sociais, pois o texto poético pode da Universidade Federal do Rio de Janeiro passa pelo centro da cidade do Recife. O topô- ser visto como amostra de uma re- desde 1993. Ganhador de diversos prêmios nimo, que é originário da língua tupi e signifi- alidade profundamente enraizada literários, organizador de antologias como as ca “rio das capivaras”, provém da junção dos de João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles termos kapibara (capivara), y (água, rio) e pe e provocadora da ação consciente (edição do centenário), Mário Pederneiras, (em). (Nota da IHU On-Line) do homem no mundo. dentre outros. (Nota da IHU On-Line)

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ral, se quiser ser aplicado, precisa emocional do que do racional e fui ver a novena da noite. A Igreja ser inculturado para alcançar a efi- doutrinário. Hoje a Igreja aprovei- estava lotada novamente. Concluí, cácia da mensagem. É exatamente ta estes momentos para fazer sua ao observar aquela participação e o que se constitui o princípio de evangelização. a piedade do povo, que as festas anúncio da mensagem religiosa, de padroeiros são uma necessida- Na Arquidiocese de Natal, a pa- ela só atingirá sua eficácia se for de humana e radical e servem para droeira é Nossa Senhora da Apre- dirigida a partir da cultura. Ainda alimentar a experiência religiosa sentação, celebrada em 21 de segundo o Papa Francisco, a incul- do povo. novembro. É uma festa belíssima, turação não debilita os valores, com um grande significado dentro mas demonstra sua força renova- das tradições religiosas do povo. IHU On-Line – Como se dá o di- dora e sua eficácia redentora. Nos rituais das novenas, a igreja se álogo inter-religioso, a partir das crenças populares e articulações Severino encontra a resposta que enche de fiéis e todos demonstram entre diferentes manifestações tanto desejava dentro da cultura muita fé. A procissão é um momen- de fé, no contexto nordestino? do povo simples dos mangues do to de muita reflexão e muita pie- Recife. A instalação do presépio é dade, o povo caminha quilômetros Maria Augusta de Sousa Torres o encontro com a vida que se re- sem se cansar, com pedras na cabe- – O diálogo acontece quando se nova através de nossas memórias ça, vestidos com as cores de Maria, compreende a verdade do outro. religiosas, estabelecendo senti- descalços, e muitas outras expres- Ou seja, o diálogo inter-religioso do, e dando respostas às questões sões de fé, respeito e veneração. acontece quando se respeita a existenciais do personagem, com a Esta religiosidade é muito acentu- crença do outro. A convivência da metáfora do nascimento de Cristo ada no Nordeste, pois é o momen- realidade do tecido religioso nor- se dar o “Auto de Natal”, que se to em que o homem expressa sua destino nem sempre foi pacífica. incultura para abrir espaços e aco- relação com o mistério, fazendo Havia um desrespeito às manifes- lher Severino e o menino que aca- uma leitura da realidade a partir tações de fé de outras matrizes, baram de nascer. do ponto de vista da sua significa- sobretudo a ameríndia e a afri- ção, assim faz uma experiência de cana, mas essa realidade mudou sagrado que incide em sua conduta muito no Brasil com uma igreja IHU On-Line – Como a senhora individual e social. proporcionando novas formas de compreende a religiosidade po- evangelização. pular a partir de sua experiência 31 no Nordeste brasileiro? O cenário religioso do Brasil e sobretudo do Nordeste, onde as Maria Augusta de Sousa Torres expressões de fé popular são muito Nós fomos colonizados pelos por- – fortes, cria uma certa tensão entre tugueses, junto com eles também O poema de catolicismo oficial e o catolicismo vieram a religião, com os ritos e os vivido pelo povo como expressão mitos que compõem a matriz reli- de fé. Entretanto, a pluralidade 5 João Cabral giosa. É o que João Batista Libanio de estilos de experiência da fé denomina de catolicismo popular. É é recheado de chamou atenção da igreja para re- uma religiosidade resistente às no- uma religiosi- pensar sua evangelização. Isso pelo vas formas de evangelização, mas fato de a religiosidade popular es- com manifestação de fé muito for- dade marcante tar intrinsecamente ligada às cul- te. Esta religiosidade foi marcada turas e tradições. O apelo do Papa pela intensa presença de imagens Francisco e sobretudo o seu exem- de santos, ritos, festas, romarias Experiência na plo ajudou muito a Igreja a abrir-se e procissões, tudo se constitui es- religiosidade popular para o diálogo do pluralismo reli- paços privilegiados de vivência gioso. Claude Geffré6 (2004) nos de fé. As festas de padroeiros são Pessoalmente tive uma experi- momentos fortes dessa experiên- 6 Claude Geffré: teólogo, frade dominica- ência muita rica, quando fui fazer cia religiosa, que se regem mais no, francês, professor honorário do Instituto uma fala em Mossoró, cidade a 280 Católico de Paris. É autor, juntamente com pela lógica do inconsciente e do quilômetros de Natal, por ocasião Régis Debray, do livro Avec ou sans Dieu ? – Le philosophe et le théologien (Paris: Bayard, 5 João Batista Libanio (1932-2014): padre da festa da padroeira, Santa Luzia, 2006). No ano passado, publicou o livro De jesuíta, escritor e teólogo brasileiro. Ensinou celebrada em 13 de dezembro. Lá, Babel à Pentecôte – Essais de théologie inter- na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia há duas novenas, à tarde e à noi- religieuse (Paris: Cerf, 2006). Em português, (ISI – FAJE) em Belo Horizonte, e foi vigário a Editora Vozes traduziu o livro Crer e Inter- da paróquia Nossa Senhora de Lourdes, em te. Fui convidada para a da tarde, pretar, em 2004. Confira uma entrevista ex- Vespasiano, na Grande Belo Horizonte, até pensava eu que estariam presentes clusiva que ele concedeu à IHU On-Line na sua morte. A edição 394, de 28-05-2012, da poucas pessoas. Entretanto, me edição 207, de 4-12-2006, intitulada Retorno IHU On-Line trouxe como tema de capa deparei com a catedral lotada. Em religioso. De Geffré, confira, no sítio do Ins- a trajetória de JB Libanio. Confira a versão tituto Humanitas Unisinos – IHU, as entre- digital em http://bit.ly/1EKv6N7. (Nota da função disso, pensei que, certa- vistas A obsessão pela ditadura do relativis- IHU On-Line) mente, à noite não teria ninguém e mo, em 09-07-2007, Os cristãos e o desafio

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adverte que “a multiplicidade de Maria Augusta de Sousa Torres Patativa do Assaré8, Adélia Prado9, formas religiosas não contradiz a – A religião é uma força poderosa João Cabral de Melo Neto e muitos unicidade do desígnio de Deus, que que torna plausíveis e duradouras outros. Isto acontece porque a lite- é de fazer aliança com o ser huma- as construções sociais da realidade ratura atualiza as perspectivas de no e salvá-lo”. Logo, o pluralismo do mundo. A religião vê o mundo interpretação na cultura. religioso deve assumir posturas de de forma abrangente, e legitima, respeito às várias manifestações de justifica e explica as dificuldades ■ e vocábulos, estilizando-os e reinventando-os religiões oriundas de qualquer cre- construídas. Ela tem o poder de num discurso musical e eficaz de grande be- do religioso. “nominizar” a vida do indivíduo leza plástica. Sua obra parte do regionalismo porque apresenta significado capaz mineiro para o universalismo, oscilando en- de permitir, a esse indivíduo, con- tre o realismo épico e o mágico, integrando IHU On-Line – Qual o papel da o natural, o místico, o fantástico e o infantil. literatura popular na busca pelo tinuar existindo e encontrar função Entre suas obras, citamos: Sagarana, Corpo entendimento das perspectivas renovadora para que propicie uma de baile, Grande sertão: veredas, conside- rada uma das principais obras da literatura do campo religioso? espiritualidade que religue o reli- gioso ao mundo. brasileira, Primeiras estórias (1962), Tuta- Maria Augusta de Sousa Torres – méia (1967). A edição 178 da IHU On-Line, A modernidade atual questiona de 02-05-2006, dedicou ao autor a matéria O texto literário faz o registro de de capa, sob o título “Sertão é do tamanho uma realidade com todos seus de- a religião da forma como ela é do mundo”. 50 anos da obra de João Gui- safios, sua mensagem vai além das apresentada. A modernidade cul- marães Rosa, disponível para download em tua a imanência, mas será que http://migre.me/qQX8. De 25 de abril a 25- palavras. O texto deve permitir a 05-2006 o IHU promoveu o Seminário Gui- descoberta de novos caminhos para esta manifestação exagerada de marães Rosa: 50 anos de Grande Sertão: Ve- entender sua mensagem. A litera- imanência não significa o desejo redas. Confira, ainda, a edição 275 da revista tura popular instiga o leitor a ter de transcendência? Será que hoje IHU On-Line, de 29-09-2008, intitulada não há uma necessidade urgente Machado de Assis e Guimarães Rosa: intér- uma visão de mundo e daquilo que pretes do Brasil, disponível em http://bit.ly/ ele pretende anunciar, também de se cultivar o religioso como res- mBZOCe. (Nota da IHU On-Line) tem o poder de propor estruturas postas às nossas questões existen- 8 Antônio Gonçalves da Silva (1909- 2002): mais conhecido como Patativa do de experiências religiosas confi- ciais? Acredito que há uma busca de retorno ao religioso no mundo Assaré, foi um poeta popular, compositor, gurada pelo texto. Os cordéis, li- cantor e improvisador brasileiro. É conside- teratura trazida de Portugal, são em que vivemos, mas creio que se rado uma das principais figuras da música as mais genuínas formas de apre- faz necessário renovar. Como diz o nordestina do século XX. Segundo filho de Papa Francisco, “inculturar” para uma família pobre que vivia da agricultura de 32 sentar a religião com todas suas subsistência, cedo ficou cego do olho direito variantes como força integradora poder, apesar da secularização e por causa de uma doença. Com a morte de da vida, porque eles falam de uma da aridez do mundo moderno, atu- seu pai, quando tinha oito anos de idade, pas- realidade vivida. Esta arte popular alizar novas formas de compreen- sou a ajudar sua família no cultivo das terras. são da religião no entendimento Aos doze anos, frequentava a escola local, na é a expressão daquilo que é mais qual foi alfabetizado, por apenas alguns me- profundo na experiência da exis- do mundo. ses. A partir dessa época, começou a fazer re- tência humana. pentes e a se apresentar em festas e ocasiões importantes. Por volta dos vinte anos recebeu IHU On-Line – Deseja acrescen- A obra de arte tem o poder de o pseudônimo de Patativa, por ser sua poesia tar algo? comparável à beleza do canto dessa ave. Indo ser interlocutora criativa para a constantemente à Feira do Crato onde parti- reflexão da religião, é o que se Maria Augusta de Sousa Torres – cipava do programa da Rádio Araripe, decla- constata em Morte e vida severi­ As narrativas literárias podem res- mando seus poemas. Numa destas ocasiões é na. João Cabral faz o seu texto, significar o mundo e são capazes de ouvido por José Arraes de Alencar que, con- vencido de seu potencial, lhe dá o apoio e o partindo do real, apresentando gerar uma nova visão da vida e da incentivo para a publicação de seu primeiro formas de religiosidade vivida sociedade. A literatura faz parte da livro, Inspiração Nordestina, de 1956. (Nota pelo povo do Nordeste, através do fronteira dos saberes que incorpo- da IHU On-Line) diálogo com seus personagens. Por rou crítica e estética, juízo e sim- 9 Adélia Prado [Adélia Luzia Prado Frei- tas]: nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no isso a arte pode ser a afirmação bolismo, história e mitos, ciência e dia 13 de dezembro de 1935, filha do ferroviá- daquilo que é mais profundo na poesia, tudo isso concorre para que rio João do Prado Filho e de Ana Clotilde Cor- vivência humana. a obra de arte se abra à descoberta rêa. Iniciou seus estudos no Grupo Escolar Padre Matias Lobato. Em 1994, após anos de de valores extraestéticos, que po- silêncio poético, sem nenhuma palavra, ne- IHU On-Line – Qual o papel do dem oferecer, entre outras refle- nhum verso, ressurgiu com o livro O homem xões, uma abordagem do imaginá- da mão seca. Conta a autora que o livro foi aspecto religioso no entendimen- iniciado em 1987, mas, depois de concluir o to do mundo? Quais os desafios rio da religião vivido nas culturas. 7 primeiro capítulo, foi acometida de uma crise hoje para se conectar a perspec- É o que faz João Guimarães Rosa , de depressão, que a bloquearia literariamente tiva religiosa com as realidade e por longo tempo. Em 2000, estreou o monó- 7 João Guimarães Rosa (1908-1967): es- logo Dona da casa, em São Paulo, adaptação aridez do mundo contemporâneo? critor, médico e diplomata brasileiro. Como de José Rubens Siqueira para Manuscritos de escritor, criou uma técnica de linguagem Felipa. Em 2001, apresentou, no Sesi Rio de de Babel, em 15-02-2007, e Religião com ou narrativa e descritiva pessoal. Sempre con- Janeiro e em outras cidades, o sarau onde de- sem Deus? Um diálogo de Régis Debray com siderou as fontes vivas do falar erudito ou clamou poesias de seu livro Oráculos de Maio um teólogo, em 28-01-2007. (Nota da IHU sertanejo, mas, sem reproduzi-las num rea- acompanhada por um quarteto de cordas. On-Line) lismo documental, reutilizou suas estruturas (Nota da IHU On-Line)

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Tema de Capa DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

A difícil e necessária dádiva da reciprocidade Paro o professor e pesquisador Alain Montandon, os desafios da hospitalidade estão diretamente relacionados aos grandes desafios da convivialidade

Por Márcia Junges | Edição: Ricardo Machado | Tradução: Vanise Dresch

alar em hospitalidade suscita, til do hóspede”, explica Montandon. “Se em muitas ocasiões, a fantasia Lévinas vê no rosto a alteridade inapre- Fda “hospitalidade absoluta”, ensível do outro, a acolhida desse outro mas encarar os desafios à convivência reside no reconhecimento do estrangeiro com as alteridades desde este espectro que está em mim mesmo”, ressalta. pouco ajuda para enfrentarmos as gran- des questões contemporâneas da con- Alain Montandon é professor emérito vivialidade. “Ser hospedeiro/hóspede de literatura geral e comparada na Uni- é entregar-se a uma dependência que versidade Blaise Pascal - Clermont II, na pode significar uma dissolução do eu, França. É também membro honorário do como Derrida assinala a respeito da hos- Institut Universitaire de France, na ca- pitalidade absoluta ou incondicional. En- deira de literatura comparada e socio- tre a lógica da dádiva e da contradádiva poética. É autor de diversas obras, das e aquela do sacrifício, existe uma rela- quais destacamos a versão em português 34 ção de complementaridade paradoxal”, de O Livro da hospitalidade: acolhida pontua o professor e pesquisador Alain do estrangeiro na história e nas cultu­ Montandon, em entrevista por e-mail à ras (São Paulo: Editora Senac, 2011). IHU On-Line. “Ser acolhido é dispor-se a Destacamos ainda suas últimas obras em todos os riscos e colocar seu destino nas francês, Voyage sentimental de Lauren­ mãos do hospedeiro”, complementa. ce Sterne (Édition critique, Classiques Etimologicamente, os termos “hospes” Garnier, 2015); Théophile Gautier, Mé­ e “hostis” têm uma mesma origem. Ter nagerie intime. La Nature chez elle (OC em conta esta dimensão permite am- VIII,1) (Champion, 2014); e La plume et pliarmos os sentidos que estão em jogo le ballon (Paris: Éditions Orizons, 2014). na ideia de hospitalidade. “O hospedei- A entrevista foi publicada nas Notícias ro/hóspede e o inimigo têm, portanto, do Dia de 10-12-2016, no sítio do Institu- em sua origem, uma importante noção to Humanitas Unisinos – IHU, disponível em comum, a noção de compensação, de em http://bit.ly/2gAcv1s. tratamento de igual para igual, ato esse que visa a aplainar o status a priori hos- Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que é a hospi- uma costa estrangeira, sempre se tensão e essa expectativa vão além talidade para além das acepções pergunta: “Ai de mim! que mortais do simples desejo de presença, ali- comuns? Quais são seus pressu- aqui se albergam?/ Bárbaros são, mento, repouso, do único desejo postos centrais em uma perspec- injustos e ferozes,/ Ou tementes de contato humano. Ser acolhido tiva filosófica? aos deuses e hospedeiros?”1. É sua reativa, sem dúvida, as nostalgias Alain Montandon - A hospitali- súplica constante à espera de uma primordiais e arcaicas que serviram dade pressupõe o reconhecimento acolhida benevolente. Mas essa de modelo: a segurança, o calor do outro e uma relação interativa do refúgio, o alimento contínuo, entre os homens. De um lado, há 1 Homero. Odisseia. Tradução de Manoel o rosto da mãe. A mão, o olhar, a Odorico Mendes (1799-1864). Prefácio de o desejo de ser acolhido. É o dese- Prof. Silveira Bueno Fonte digital. Digitaliza- boca participam da criação dos vín- jo de Ulisses, que, ao aportar em ção da 3ª edição. (Nota do entrevistado) culos, do reconhecimento do outro

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como um intruso. O gesto da hospi- talidade consiste, primeiramente, em afastar a hostilidade latente em qualquer ato de hospitalidade, Ser hospedeiro/hóspede é en- pois o hóspede, o estrangeiro, é se- guidamente visto como reservató- tregar-se a uma dependência rio de hostilidade: seja ele pobre, marginal, errante, sem teto, seja que pode significar uma disso- o louco ou o vadio, ele representa lução do eu, como Derrida assi- uma ameaça. nala a respeito da hospitalida- Mas as ambiguidades e as am- bivalências desse momento do de absoluta ou incondicional encontro e da acolhida envolvem hostilidades latentes ou explícitas. Não se sabe a quem se recebe e, e de si mesmo, da oralidade, orali- IHU On-Line - Em que sentido em retorno, o temor gera a hos- dade essa que faz a transição entre a hospitalidade é “intrusiva” e tilidade manifesta do hospedeiro o dentro e o fora, o comer e o ser comporta uma face da violência, e sua inospitalidade fundamental. comido, o canibalismo e o ogro. Daí transgressão e hostilidade? A chegada de um hóspede ines- a pergunta: quem, o hospedeiro ou Alain Montandon - Atravessar perado, de caráter supostamente o hóspede, comerá o outro? um limiar é uma transgressão ri- hostil, pode comprometer o per- tencimento, daquele que acolhe, No entanto, a hospitalidade não tualizada. O limiar é a linha de ao seu próprio território. Quem se reside apenas no desejo de ser demarcação de uma intrusão, pois a hospitalidade é intrusiva, com- convida, como na novela de Mau- acolhido, sendo também desejo de 5 porta, queiramos ou não, um lado passant , “O amigo Joseph”, já acolher, desejo de receber e dese- aparece, antes do conto O Horla, de violência, de ruptura, de trans- jo de dar. como uma ameaça para a zona pró- gressão ou até mesmo de hostili- xima, para o espaço da identidade dade, ao que Derrida3 chama de «Le maître de céans n’ayant de e da intimidade do proprietário, hostipitalidade. A invasão do domí- souci plus urgent que celui de usurpadas pelo parasita. 35 nio do Outro é um problema tan- faire rayonner sa joie sur n’im- to de proxêmica4 quanto de pro- A preocupação do emigrado, si- porte qui, au soir, viendra man- priedade. “Território é terra mais nônimo de sua desassistência ante ger à sa table et se reposer sous terror”. Eis a questão do próprio, a possível acolhida, manifesta-se son toit des fatigues de la route, daquilo que constitui minha identi- por um sentimento de perseguição. attend avec anxiété sur le seuil dade no pertencimento a um terri- Antes mesmo de desembarcar, Karl de sa maison l’étranger qui verra tório, a um espaço em que o outro afirma: “Ademais, tem-se aqui um poindre l’horizon comme un li- é visto, de uma maneira ou outra, preconceito contra os estrangei- bérateur. Et du plus loin qu’il le ros”. A angústia paranoide respon- verra venir, la maître se hâtera 3 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo de a essa hostilidade latente, que francês, criador do método chamado des- ele antecipa, do novo grupo social. de lui crier: «Entre vite, car j’ai construção. Seu trabalho é associado, com peur de mon bonheur.»2 frequência, ao pós-estruturalismo e ao pós- A língua estrangeira também é fa- -modernismo. Entre as principais influências tor de exclusão. de Derrida encontram-se Sigmund Freud Esse desejo tem muitas razões, e Martin Heidegger. Entre sua extensa pro- “Aqui, as pessoas não gostam dos dentre as quais, a de querer ter um dução, figuram os livros Gramatologia (São estrangeiros”, este é um leitmotiv Paulo: Perspectiva, 1973), A farmácia de antigo, encontrado até mesmo na hóspede que distraia da solidão, Platão (São Paulo: Iluminuras, 1994), O ani- que traga notícias de outros luga- mal que logo sou (São Paulo: UNESP, 2002), utópica Esquéria (ou Feácia) da res e que ofereça o prazer de uma Papel-máquina (São Paulo: Estação Liber- Odisseia. Essa rejeição tem sua ra- dade, 2004) e Força de lei (São Paulo: WMF zão, é claro, no temor do não fami- companhia, de uma presença. Martins Fontes, 2007). Dedicamos a Derrida a editoria Memória da IHU On-Line nº 119, liar, do desconhecido, daquele que 2 Pierre Klossowski, Roberte ce soir, in Les de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ poderia ser um bandido, um pirata, lois de l’hospitalité, L’Imaginaire Gallimard, ihuon119. (Nota da IHU On-Line) como aqueles que vagam “pelo mar 1965, p. 110. “O anfitrião, preocupado apenas 4 O termo proxêmica (proxemics, em inglês) sem rumo” e “que se aventuram, em transmitir sua alegria a quem viesse, à foi cunhado pelo antropólogo Edward T. Hall noite, comer à sua mesa e repousar sob seu em 1963 para descrever o espaço pessoal de apostando sua vida e devastando teto do cansaço da estrada, espera ansiosa- indivíduos num meio social. É exemplo de mente, à soleira da porta de sua casa, o es- proxêmica o fato de que um indivíduo que 5 Henry René Albert Guy de Maupas- trangeiro que ele vê despontar no horizonte encontra um banco de praça já ocupado por sant (1850-1893): escritor e poeta francês como um libertador. E assim que o avista a outra pessoa numa das extremidades tende a com predileção para situações psicológicas distância, o anfitrião trata de exclamar: ‘En- sentar-se na extremidade oposta, preservan- e de crítica social com técnica naturalista. tre depressa, pois tenho medo da minha feli- do um espaço entre os dois indivíduos. (Nota Além de romances e peças de teatro, deixou cidade.” (Nota do entrevistado) da IHU On-Line) 300 contos escritos. (Nota da IHU On-Line)

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as costas estrangeiras”. Existem, para acolher, um tempo para a es- vê nela uma “pervertibilidade ir- no entanto, razões mais profundas tada e um tempo para partir. redutível”. As ficções, construções para esse temor: o estrangeiro é Receber o estrangeiro é não só do imaginário (conto, romance, um intruso na esfera doméstica, aceitar sua diferença, mas também teatro), tentam representar e en- na vida privada e íntima, no estrei- querer que ele respeite os próprios cenar essa constelação paradoxal to círculo da existência cotidiana, códigos culturais do hospedeiro. da hospitalidade entre o interesse familiar e pessoal. A angústia pela Em outras palavras, o convidado próprio e o sacrifício de si mesmo, intrusão, que pode chegar à recusa também deve respeitar as regras entre o pragmatismo e a utopia. Ser de acolher, presta-se a uma análise que estabelecem limites para a sua acolhido é dispor-se a todos os ris- tanto psicológica quanto sociológi- intrusão. O Kanun, que rege a hos- cos e colocar seu destino nas mãos ca da intimidade. pitalidade na Albânia há vários sé- do hospedeiro. Mais do que qual- O grupo social pode sentir como culos, menciona, por exemplo, que quer outra, é a figura de uma orali- se fosse um perigo o ingresso de um não se deve levantar a tampa da dade devoradora que se evidencia. elemento externo e diferente em panela, uma regra particularmen- Primeiro, porque buscar refúgio é seu meio. Cada grupo se distingue te significativa e simbólica para os buscar uma compensação para o por um modo de funcionamento limites da acolhida: a despeito de estado de desamparo primordial, que se apoia na coerência de seus uma hospitalidade muito generosa, que é a fome. O comer/ser comi- membros e na exclusão daqueles aberta e aparentemente ilimitada, do confrontam-se constantemen- que dele não fazem parte. A distin- mantém-se reservado um domínio te. Engolir, sorver, devorar são ção estabelece tanto a identidade (que, no caso, é a administração fantasias que reativam um temor do lar e da alimentação). Interdi- quanto a diferença, a identidade originário na relação com o outro: de pertencimento a uma sociedade to significativo e interessante, que a perda da identidade, a perda de e a exclusão dela. Sabe-se o quan- demonstra bem que o hóspede não si mesmo e o despedaçamento do to o jogo social é hostil à mistura, tem todos os direitos e permanece corpo. Outra fantasia mais moder- ao heterogêneo, ao composto, ao à margem, mesmo no centro da fa- na relacionada com esse atentado díspar. Quem se assemelha se une mília que o acolhe. Isso não exclui, e, inversamente, quem é diferen- obviamente, o diálogo entre as à integridade é a contaminação, te se ignora, não deve nem pode culturas, que começa pela curio- a epidemia, o contágio. O estran- unir-se. sidade pelo outro, pelo desejo de geiro, o forasteiro, é o doente, o 36 compreender, pela tolerância e a portador de micróbio ou vírus. O que vem de fora, do outro lado da IHU On-Line - Por outro lado, aceitação, ou seja, pela acolhida fronteira, é o fora-do-lugar, o para- quais são os nexos que unem da alteridade. a hospitalidade e o diálogo en- sita, o alien. tre culturas e suas diferentes IHU On-Line - Em que medi- religiosidades? da pode se falar na hospitalida- IHU On-Line - O que a ideia de de como um respeito radical à hospitalidade tem a nos dizer em Alain Montandon - Na hospitali- alteridade? um tempo marcado pelo cresci- dade clássica, encontramos regras que parecem bastante universais Alain Montandon - O respeito mento vertiginoso dos refugiados em muitas culturas. Assim, por radical à alteridade faz parte da e dos imigrantes? fantasia de uma hospitalidade ab- exemplo, a regra dos três dias pa- hospitalidade, é tida como uma lei paradoxal, rece disseminada entre os árabes soluta. Ser hospedeiro/hóspede pervertível ou pervertedora. Ela parece ditar bem como entre os alemães, os é entregar-se a uma dependência que a hospitalidade absoluta rompa com a lei quais explicam que, passados três que pode significar uma dissolu- da hospitalidade como direito ou dever, com o “pacto” de hospitalidade. Em outras pala- dias, “o hóspede, como o peixe, ção do eu, como Derrida assinala a vras, a hospitalidade absoluta exige que eu começa a cheirar mal”. Esse pro- respeito da hospitalidade absoluta abra minha casa e dê lugar não somente ao vérbio indica justamente que um ou incondicional. Entre a lógica da estrangeiro (provido de um sobrenome, um dádiva e da contradádiva e aquela status social de estrangeiro etc.), mas tam- limite temporal deve ser respeita- bém ao outro absoluto, desconhecido, anô- do (tanto por razões econômicas, do sacrifício, existe uma relação nimo, que eu o deixe vir, chegar e ter lugar quanto por razões psicológicas, de complementaridade paradoxal. no lugar que lhe ofereço, sem solicitar reci- pois mais de três dias poderiam sig- Derrida6 pensa que a hospitalidade procidade (firmar um pacto) nem mesmo seu nome. A lei da hospitalidade absoluta deter- nificar que o hóspede se enxerta, absoluta ou incondicional “supõe mina o rompimento com a hospitalidade de acomoda-se e põe em perigo a eco- uma ruptura com a hospitalidade direito, com a lei ou a justiça como direito. A nomia doméstica). É psicológico em sentido corrente, com a hospi- hospitalidade justa rompe com a hospitalida- talidade condicional, com o direito de de direito, não por condená-la ou opor-se também, pois um hóspede acaba a ela, podendo, ao contrário, colocá-la e 7 pesando, perturbando o equilíbrio ou o pacto de hospitalidade” . Ele mantê-la num movimento incessante de habitual que fora aceito, mas por progresso; mas ela lhe é tão estranhamente um tempo restrito. São três dias 6 Jacques Derrida, De l’hospitalité. Calmann- heterogênea quanto a justiça é heterogênea -Lévy, 1997. (Nota do entrevistado) ao direito, do qual ela é, no entanto, tão pró- simbólicos que definem o enqua- 7 Segundo Derrida: “A lei da hospitalidade, xima, e, na verdade, indissociável”. (op cit. P. dramento e os limites: um tempo a lei formal que governa o conceito geral de 29). (Nota do entrevistado)

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Alain Montandon - Convém dis- mum, a noção de compensação, de Poderia recuperar a ideia de hos- tinguir o que diz respeito à hos- tratamento de igual para igual, ato pitalidade a partir da perspectiva pitalidade como interação entre esse que visa a aplainar o status de Marcel Mauss, como dádiva? indivíduos da hospitalidade como a priori hostil do hóspede. O hos- Alain Montandon - “[...] que manifestação coletiva (hospitali- pedeiro/hóspede é, por essência, mortais aqui se albergam?/ dade institucionalizada, clerical, estranho e outro, e essa alterida- Bárbaros são, injustos e fero- estatal etc.). É curioso observar de fundamental é perigosa. Nessas zes,/ Ou tementes aos deuses e como toda e qualquer ideia de duas forças em confronto, o hospes hospedeiros?”13 A hospitalidade é hospitalidade parte de e se refe- e o hostis, cada uma delas pode se inconcebível sem os deuses. O aco- re a uma hospitalidade individual tornar refém [otage, em francês]. lhimento do estrangeiro é legiti- como modelo ideal de humanismo, O refém clássico é o hóspede man- mado, quase de maneira universal, a ponto de criar confusões singu- tido em ostage pelo hospedeiro, por um imperativo religioso. No fe- lares, como, por exemplo, aquela por aquele que representa o poder nômeno da hospitalidade, há algo que designa o acolhimento de po- do lugar, o déspota. da ordem do mana, que remete a pulações migrantes com o termo No entanto, pelo jogo perver- algo mágico, embora indetermina- hospitalidade – o que é obviamente so da ambiguidade fundamental do. (Mana é um termo polinésio, diferente da hospitalidade indivi- da palavra, todo hospedeiro pode mas encontramos esse conceito em dual, pois a hospitalidade estatal é tornar-se refém do hóspede. Temos muitos outros povos. Ele designa de outra natureza, embora a noção aqui uma dialética amigo-inimigo, a emanação da força espiritual do implique, nos dois casos, a preva- ou até mesmo senhor-escravo. De- grupo e, segundo Marcel Mauss, é lência de uma mesma preocupa- vemos retomar “a questão do es- criador de laço social.) ção de acolhimento e dignidade trangeiro” formulada por Jacques Em As formas elementares da humana. 9 Derrida e René Schérer . Ambos vida religiosa, Durkheim14 afirma definem os termos dessa relação IHU On-Line - Por que a hos- que as coisas sagradas são defini- dialética. Para assinalar “a lei pa- das como “aquelas que os interdi- pitalidade pode ser, também, radoxal e pervertedora”, Jacques agonística? tos protegem e isolam”. Dizer que Derrida escreve: “Esse outro se a hospitalidade é sagrada implica, Alain Montandon - Em francês, torna um sujeito hostil do qual cor- portanto, não somente o tabu, mas 10 a palavra hôte designa tanto aque- ro o risco de me tornar refém” . também um pertencimento à di- 37 le que recebe quanto aquele que E René Schérer afirma: “O hóspe- vindade. O sagrado seria uma força 11 é recebido, o hospedeiro e o hós- de é um inimigo potencial” . Não transcendente, uma potência que pede. Por que essa ambiguidade? esqueçamos que ele o é por na- os sociólogos interpretam como A resposta é dada por Benveniste8 tureza, pois, no centro mesmo do sendo aquela de uma sociedade na análise etimológica que ele faz conceito de hóspede, encontra-se percebida por seus membros como dessa palavra. A palavra hôte vem o conceito de estrangeiro. Falando exterior a eles e atribuída a uma de hospes. Mas hospes tem um es- de uma “hospitalidade absoluta, divindade. A hospitalidade, tam- tranho parentesco etimológico com incondicional, hiperbólica”, Derri- bém, é sagrada por ser fundadora e hostis, o estrangeiro, o inimigo. O da diz: “É como se a hospitalidade sobrenatural: o hóspede é o símbo- hospedeiro/hóspede seria, então, fosse impossível: como se a lei da lo da mediação entre duas esferas um inimigo? Esses traços de natu- hospitalidade definisse essa impos- totalmente diferentes. É o desco- reza etimológica explicam-se pelo sibilidade, como se não pudésse- nhecido que vem de longe, que é 12 contexto político e jurídico do mos deixar de transgredi-la [...]” . temido, um ser inapreensível que mundo antigo grego e romano, que penetra em um lugar delimitado, forjou o conceito de hospedeiro/ IHU On-Line - Por que as leis da num espaço circunscrito, aquele da hóspede. hospitalidade (embora não escri- morada. Todo estrangeiro, por sua Na origem das duas palavras, tas) não abrangem apenas o an- alteridade inquietante, possui essa hospes e hostis, encontra-se o ver- fitrião, mas também aquele que dimensão numinosa na qual Rudolf 15 bo hostire, tratar de igual para é acolhido? O que isso significa? Otto via a essência do sagrado. O igual, compensar, pagar em tro- 9 René Schérer (1922) : filósofo francês, 13 Odyssée, 13, 200-202. (Nota do ca. Em francês, hostis deu hostile autor de, entre outros, Une érotique pué- entrevistado) [hostil]. O hospedeiro/hóspede e o rile, Émile perverti ou Des rapports entre 14 David Émile Durkheim (1858-1917): inimigo têm, portanto, em sua ori- l’éducation et la sexualité e L’Emprise. Des conhecido como um dos fundadores da So- enfants entre nous. (Nota da IHU On-Line) ciologia moderna. Foi também, em 1895, o gem uma importante noção em co- 10 Derrida, Jacques, De l’hospitalité, Pa- fundador do primeiro departamento de so- ris, Calman - Lévy, 1997, p. 53. (Nota do ciologia de uma universidade europeia e, em 8 Émile Benveniste (1902-1976): foi um entrevistado) 1896, o fundador de um dos primeiros jornais linguista francês, conhecido por seus estudos 11 Schérer, René, Zeus hospitalier. Eloge de dedicados à ciência social, intitulado L’Année sobre as línguas indo-europeias e pela expan- l’hospitalité, Paris, Colin, 1993, p. 103. (Nota Sociologique. (Nota da IHU On-Line) são do paradigma linguístico estabelecido do entrevistado) 15 Rudolf Otto (1869-1937): eminente teó- por Ferdinand de Saussure. (Nota da IHU 12 Derrida, op. cit., p. 71. (Nota do logo protestante alemão, erudito em religiões On-Line) entrevistado) comparadas. Autor de The Idea of the Holy,

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desconhecido gera temor e tremor, IHU On-Line - Qual é a impor- da hospitalidade, Jacques Derrida mesmo que traga também abertura tância de Kant18 para a reflexão lamenta tal limitação e procura para o mundo exterior, mesmo que acerca da hospitalidade? conceber a hospitalidade como acolhimento, mais além do direito traga novas palavras. É ao mesmo Alain Montandon - Para formular 16 tempo ameaça e dádiva . os princípios de seu projeto de paz à visita. O hóspede é uma figura sagrada, perpétua, Kant se apoia na noção e essa sacralização, que é certa- de hospitalidade estatal, que deve IHU On-Line - Que outros filóso- mente uma maneira de circuns- ser pensada do ponto de vista ju- fos são fundamentais para o deba- crever o caráter de exterioridade, rídico e não filantrópico. Ele afir- te dessa temática? ma que esse direito fundamenta a de desconhecido, do estrangeiro Alain Montandon - A própria no- obrigação de conceder um direito naquilo que ele pode conter de ção de acolhida, como abertura e de visita, mas não de residência, e ameaçador. sujeição a outrem, encontra-se no explica esse direito por um outro centro da reflexão filosófica de Lé- No Ensaio sobre a dádiva, Marcel direito, o da posse da Terra por to- vinas19 dedicada à subjetividade, Mauss17 considera a hospitalidade dos os homens: “Esse direito, devi- uma vez que a acolhida permite uma das atividades típicas da tro- do a todos os homens, estende-se pensar a relação não apenas com ca não mercantil. As atividades à sociedade, em razão do direito que entram no campo de análise da posse comum da superfície da o outro, mas também consigo mes- da dádiva são, primeiramente, co- Terra, na qual, por ser esférica, os mo. Integrando-a na hospitalidade, Lévinas atribui à acolhida o papel letivas: “não são indivíduos, são homens não podem dispersar-se de novo conceito operatório. Para comunidades que se obrigam mu- infinitamente, devendo então se compreender como a noção de hos- tuamente”, clãs, tribos, famílias; suportarem uns aos outros, e ne- pitalidade pode passar do receber além disso, não se limitam a bens nhum deles tem originariamen- alguém ao receber de alguém e, e riquezas, a móveis e imóveis, te mais direito do que o outro de em maior medida, para entender tampouco a coisas economicamen- ocupar tal lugar.” Esse direito à a verdadeira natureza incondicio- te úteis, mas incluem “gentilezas, hospitalidade insere-se necessa- nal da acolhida, é necessária uma festejos, ritos, serviços militares, riamente, segundo Kant, em seu leitura transversal dessa noção nas mulheres, crianças, danças, festas, projeto de paz perpétua, pois per- dimensões metafísica, ética e re- feiras...”. A hospitalidade é essen- mite estabelecer relações pacíficas ligiosa que encontramos em Tota­ 38 cialmente concebida pelo vértice entre diferentes partes do mundo, lidade e infinito, “imenso tratado da reciprocidade. Recusar-se a dar, o que vai de encontro à conduta inospitaleira de certos Estados que da hospitalidade”. Jacques Derrida deixar de convidar “equivale a de- conquistam, oprimem e saqueiam escreve: “Na medida em que diz clarar guerra; significa recusar a outros. Apoiando-se em A paz per­ respeito ao ethos, isto é, à mora- aliança e a comunhão”. Ao contrá- pétua para formular sua concepção da, à casa, ao lugar da estada fami- rio, a dádiva e o convite significam liar, tanto quanto ao modo de viver o estabelecimento do laço social. 18 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo ali, de se relacionar consigo mes- prussiano, considerado como o último gran- publicado pela primeira vez em 1917 como de filósofo dos princípios da era moderna, mo e com os outros, outros como Das Heilige (considerado um dos mais im- representante do Iluminismo. Kant teve um os seus ou como estrangeiros, a portantes tratados teológicos em língua ale- grande impacto no romantismo alemão e nas ética é hospitalidade, totalmente mã do século XX), e criador do termo numi- filosofias idealistas do século XIX, as quais se nous, o qual exprime um importante conceito tornaram um ponto de partida para Hegel. coextensiva à experiência da hos- religioso e filosófico da atualidade. (Nota da Kant estabeleceu uma distinção entre os fe- pitalidade, seja ela ampliada ou IHU On-Line) nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou- limitada.” Se Lévinas vê no rosto 16 INDEX Voir Émile Benveniste, Le voca- menon), isto é, entre o que nos aparece e o a alteridade inapreensível do ou- bulaire des institutions indo-européennes. 1. que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não Économie, parenté, société, Éditions de Mi- poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci- tro, a acolhida desse outro reside nuit, 1969, p. 87-101. (Nota do entrevistado) mento científico, como até então pretendera 17 Marcel Mauss (1872-1950): sociólogo a metafísica clássica. A ciência se restringi- 19 Emmanuel Lévinas (1906-1995): fi- e antropólogo francês, refletiu sobre a arbi- ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria lósofo e comentador talmúdico lituano, de trariedade cultural de nossos comportamen- constituída pelas formas a priori da sensibili- ascendência judaica e naturalizado francês. tos mais casuais, definindo o corpo como o dade (espaço e tempo) e pelas categorias do Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger, primeiro e mais natural objeto técnico e, ao entendimento. A IHU On-Line nº 93, de cuja obra Ser e tempo o influenciou muito. mesmo tempo, meio técnico do homem. So- 22-3-2004, dedicou sua matéria de capa à “A ética precede a ontologia” é uma frase que bre Marcel Mauss, leia a entrevista de Alain vida e à obra do pensador com o título Kant: caracteriza seu pensamento. Escreveu, entre Caillé publicada na IHU On-Line, n.º 96, razão, liberdade e ética, disponível para do- outros, Totalidade e Infinito (Lisboa: Edições de 12-04-2004, a propósito da publicação wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também 70, 2000). Sobre o filósofo, confira a entrevis- do livro História Argumentada da Filosofia sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU ta com Rafael Haddock-Lobo, publicada em Moral e Política, disponível para download em formação nº 2, intitulado Emmanuel 30-08-2007 no sítio do Instituto Humanitas em http://migre.me/s99D. O pensamento Kant - Razão, liberdade, lógica e ética, que Unisinos – IHU, intitulada Lévinas: justiça de Mauss foi o tema da palestra A economia pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem02. à sua filosofia e a relação com Heidegger, do dom e a visão de Marcel Mauss, realiza- Confira, ainda, a edição 417 da revista IHU Husserl e Derrida, disponível em http://bit. da pelo Prof. Dr. Paulo Henrique Martins On-Line, de 6-5-2013, intitulada A autono- ly/1bZ77kk, e a edição 277 da IHU On-Line, (UFPE), na programação do evento Alterna- mia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios, de 14-10-2008, intitulada Lévinas e a ma- tivas para outra economia, em 10-10-2006. disponível em http://bit.ly/ihuon417. (Nota jestade do Outro, disponível em http://bit. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) ly/1gsnUOI. (Nota da IHU On-Line)

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no reconhecimento do estrangeiro Goethe23, Flaubert24, Rousseau25, Pirandello28, Camus29 e, obviamen- que está em mim mesmo. Maupassant, Landolfi26, Vercors27, te, Franz Kafka30).

O principal filósofo da hospitali- 23 Johann Wolfgang von Goethe (1749- dade foi Derrida, na França, mas 1832): escritor alemão, cientista e filósofo. IHU On-Line - Gostaria de poderíamos citar também, na Ale- Como escritor, Goethe foi uma das mais acrescentar algum aspecto não 20 importantes figuras da literatura alemã e do questionado? manha, Jabès e Hans-Dieter Bahr . Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX. Juntamente Alain Montandon - Concluindo, IHU On-Line - A partir dos es- com Schiller foi um dos líderes do movimento há tantas coisas a dizer sobre a literário romântico alemão Sutrm und Drang. tudos realizados pelo Centro de De suas obras, merecem destaque Fausto e hospitalidade, que consegui ape- Pesquisas de Literatura Moderna Os sofrimentos do jovem Werther. (Nota da nas esboçar algumas respostas. e Contemporânea (CRLMC, na si- IHU On-Line) Aconselho a leitura de Le Livre de 24 Gustave Flaubert (1821-1880): escritor gla em francês), quais são as prin- francês, autor de Madame Bovary, escrito l’hospitalité. Accueil de l’étranger cipais interações hospitaleiras na em 1844, romance realista no qual critica os dans l’histoire et les cultures (sob literatura? valores românticos e burgueses da época. So- a direção de Alain Montandon), fria de epilepsia. (Nota da IHU On-Line) Bayard, 2004, 2036 p. Este livro foi Alain Montandon - As pesquisas 25 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): traduzido no Brasil: O Livro da Hos­ realizadas pelo CRLMC (agora CE- filósofo franco-suíço, escritor, teórico polí- tico e compositor musical autodidata. Uma pitalidade. Acolhida do estrangei­ LIS) sobre as representações sociais das figuras marcantes do Iluminismo francês, ro na história e nas culturas. Sob (ver a revista http://sociopoeti- Rousseau é também um precursor do roman- a direção de Alain Montandon. Tra- ques.univ-bpclermont.fr/) trata- tismo. As ideias iluministas de Rousseau, dução de Marcos Bagno e Lea Zyl- ram de muitas interações hospita- Montesquieu e Diderot, que defendiam a igualdade de todos perante a lei, a tolerância berlicht; Editora Senac, São Paulo, leiras, principalmente no teatro, religiosa e a livre expressão do pensamento, 2011, 1438 p. Além de muitas obras nos romances e contos, e culmi- influenciaram a Revolução Francesa.- Con coletivas que publicamos. naram em muitas publicações. Eu tra a sociedade de ordens e de privilégios do Antigo Regime, os iluministas sugeriam um mesmo publiquei um livro intitula- governo monárquico ou republicano, consti- 28 Luigi Pirandello (1867-1936):■ foi um do Désirs d’hospitalité. De Homère tucional e parlamentar. Sobre esse pensador, dramaturgo, poeta e romancista siciliano. Foi à Kafka (PUF, 2002) (traduzido para confira a edição 415 da IHU On-Line, de um grande renovador do teatro, com profun- o italiano: Elogio dell’Ospitalità. 22-04-2013, intitulada Somos condenados do sentido de humor e grande originalidade. a viver em sociedade? As contribuições de Suas obras mais famosas são: Seis persona- Storia di un rito. Salerno Editri- Rousseau à modernidade política, disponí- gens à procura de um autor, Assim é, se lhe ce, Roma, 2004; e para o romeno: vel em http://bit.ly/ihuon415. (Nota da IHU parece, Cada um a seu modo e os romances O 39 Despre ospitalitate. De la Homer On-Line) falecido Matias Pascal, Um, Nenhum e Cem 26 Tommaso Landolfi (1908-1979): foi Mil e Esta Noite Improvisa-se. Sua primeira la Kafka. Iasi, Institutul European, um escritor, poeta, tradutor italiano. Embora peça de teatro foi O Torniquete escrita entre 2015), que analisa as interações pouco conhecido do público, graças à lingua- 1899 e 1900 e encenada pela primeira vez hospitaleiras de muitos autores gem extremamente sofisticada e poética em em 1910. Recebeu o Nobel de Literatura de (Klossowski, a literatura liberti- alguns aspectos semelhantes ao Surrealismo, 1934. Luigi Pirandello participou da campa- mas também a sua distância das tendências nha “coleta do ouro”, organizada pelo ditador 21 22 na, de Crébillon a Mandiargues , literárias italianas, tanto antes como depois italiano Benito Mussolini, que visava levan- da Segunda Guerra Mundial, é considerado tar fundos para o país. A campanha era uma 20 Hans-Dieter Bahr (1939): filósofo ale- um dos os escritores italianos mais impor- resposta à Liga Nações que impôs sanções mão e professor universitário. (Nota da IHU tantes do século XX. Suas histórias, de acor- econômicas à Itália após esta ter invadido e On-Line) do com Arnaldo Bocelli, “são, propriamente, declarado guerra a Etiópia (1935-36). Piran- 21 Claude-Prosper Jolyot de Crébillon padrões, composições, caprichos do caminho dello doou sua medalha do Prêmio Nobel à (1707–1777): escritor, cantor, filho de Prosper entre a música e a pintura, em que a criati- campanha. (Nota da IHU On-Line) Jolyot de Crébillon. Claude Prosper Jolyot de vidade, o humor é acompanhado por uma 29 Albert Camus (1913-1960): escritor, no- Crébillon se anunciava como “filho Crebillon” série extenuante, e os motivos líricos surgem velista, ensaísta e filósofo argelino. Confira a para distingui-lo do pai Prosper Jolyot de a partir de uma reflexão crítica da realidade , entrevista Camus entre a emoção e a graça, Crébillon, famoso dramaturgo, membro da por um gosto treinado na intersecção de dife- concedida por Waldecy Tenório à IHU On- Academia Francesa. Os dois eram muito di- rentes literaturas” . (Nota da IHU On-Line) -Line em 03-02-2010, disponível em http:// ferentes: enquanto o pai escreveu tragédias, o 27 Jean Marcel Bruller (1910-1991): foi bit.ly/ihu030210. (Nota da IHU On-Line) filho era especializado em contos e romances um escritor e ilustrador francês que cofundou 30 Franz Kafka (1883-1924): escritor tche- licenciosos. (Nota da IHU On-Line) Les Éditions de Minuit com Pierre de Lescure co, de língua alemã. De suas obras, destaca- 22 André Pieyre de Mandiargues (1909- e Yvonne Paraf. Durante a II Guerra Mundial, mos A metamorfose (1916), que narra o caso 1991): foi um escritor francês, ligado ao Sur- na ocupação do norte da França, juntou-se à de um homem que acorda transformado num realismo e nomeado um maldito moderno. Resistência e seus textos foram publicados gigantesco inseto, e O processo (1925), cujo Sua obra inclui poemas, contos e romances, sob o pseudônimo de Vercors. Vários dos enredo conta a história de um certo Josef K., ensaios, peças de teatro e traduções. (Nota da seus romances têm fantasia ou ficção científi- julgado e condenado por um crime que ele IHU On-Line) ca como temas. (Nota da IHU On-Line) mesmo ignora. (Nota da IHU On-Line)

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A necessidade da participação como critério prévio à cidadania Há uma fantasia de “fusão indiscernível” que tenta inserir todos os excluídos numa determinada sociedade, observa Magali Bessone. Uma proposta reversa seria pensar a inclusão através da participação, e não da cidadania

Por Ricardo Machado | Edição: Márcia Junges | Tradução: Paula Volkart e Samanta Siqueira | Orientação e revisão da tradução: Vanise Dresch

á excluídos ‘na’ e os dos princípios de justiça que governam excluídos ‘da’ socie- a sociedade. Podemos fazer um esforço “Hdade. Ser excluído, é e pensar ao contrário: a participação estar “fora do” espaço (real ou simbó- como critério prévio à cidadania.” E lico) dos incluídos”, descreve Magali acrescenta: “Pensar a presença do es- Bessone, professora de Filosofia Po- trangeiro através de um modelo de um lítica na Universidade de Rennes 1 na acolhimento absoluto, incondicionado, entrevista concedida por e-mail à IHU do outro ‘em sua casa’, tende a reti- On-Line. Segundo ela, “o paradoxo da rar da crítica toda a capacidade de isso noção de exclusão é precisamente que se realizar na ação ou no engajamento não há espaço homogêneo pré-dado, político efetivo. 40 mas que a produção da exclusão consis- te em construir o espaço tal que certas Magali Bessone é professora titular pessoas são descartadas, pela invisibi- de Filosofia Política na Universidade de lização, pelo estatuto jurídico diferen- Rennes 1, na França, e prepara uma ciado ou pela reclusão”. tese de filosofia sobre o conceito de transparência na democracia ameri- Segundo Bessone, “para não ser ex- cana, na Universidade de Nice Sophia- cluído, é necessário que o indivíduo -Antipolis, onde ela ensina na qualida- renuncie a suas características iden- de de instrutora. Publicou La Justice titárias idiossincráticas e se funda no (Paris: Garnier-Flammarion, coleção corpo social: é preciso renunciar a sua “Corpus”, 2000), À l’origine de la Ré­ língua, sua religião, sua cultura, seu publique américaine: un double pro­ sotaque, seus hábitos etc. Nada de- jet, Thomas Jefferson vs. Alexander verá o diferenciar de um “nativo” na Hamilton (Paris: Michel Houdiard Éd., fantasia dessa fusão indiferenciável de 2007. Ouvrage publié avec une bourse cada um dentro do todo”. Contudo, é du Centre National du Livre) e Sans dis­ preciso que o projeto para repensar tinction de race ? Une analyse critique o binômino excluídos e incluídos seja du concept de race et de ses effets pensado desde uma perspectiva po- pratiques (Paris: Vrin, 2013. Ouvrage lítica, e não ética. “A hospitalidade publié avec l’aide du Centre National repousa sobre a convicção de que per- du Livre). tencimento é a condição da cidadania – da participação legítima nas escolhas Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os sen- dos contidos na noção de exclusão, noção, intimamente imbricados, tidos do termo “exclusão”? Como o que aparece já em seus primeiros um aspecto ativamente negativo caracterizá-la? usos: “excluir” é um empréstimo (expulsar) e um aspecto privativo, Magali Bessone – Se observarmos do latim “excludere”, que significa aparentemente mais passivo (não a etimologia do termo, percebemos ao mesmo tempo “expulsar” e “não deixar entrar). Soma-se a esses, a que há ao menos dois grandes senti- deixar entrar”. Há, desse modo, na partir do século XVI, principalmen-

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dos incluídos: os porta-vozes das instituições e das assistências so- ciais, a mídia, os pesquisadores que mencionam e analisam os fe- A exclusão, porém, é um con- nômenos de exclusão; são pessoas que se consideram e são conside- ceito relativo, ou seja, que defi- radas pelos outros como incluídos. Além disso, ela produz efeitos sim- ne uma relação e a inscreve em plificadores, ou melhor, efeitos de uma complexa rede de relações concorrência, falando de maneira absoluta de grupos que parecem perfeitamente constituídos – os ex- te no campo jurídico, um terceiro IHU On-Line – Em que medida a cluídos, de um lado, e os incluídos, sentido: privar alguém de algo a noção de exclusão tornou-se im- de outro. que ela teria direito, daquilo que portante frente às questões polí- lhe devem. Em 1690, o dicionário ticas e sociais de nossa época? A exclusão, porém, é um con- de Furetière apresenta três exem- ceito relativo, ou seja, que define Magali Bessone – A noção de plos, que ilustram perfeitamente uma relação e a inscreve em uma exclusão tem um status duplo: esses três sentidos, “expulsar”, complexa rede de relações. Se os trata-se de um termo técnico da “recusar a entrada” e “privar de parisienses são incluídos, os ex- literatura sociológica e política, um direito”: “Os anjos maus foram cluídos são os habitantes do inte- mas se trata também de um termo excluídos do Paraíso. Os pecado- rior (os “habitants des régions”3) do vocabulário da vida cotidiana res serão excluídos para sempre. ou os habitantes da periferia (os e um leitmotiv da mídia, que, ao Diz-se que um homem foi excluído “franciliens”4)? Se a exclusão con- generalizá-lo, tornam confusa essa de uma sucessão para dizer que ele cerne a todos é porque somos sem- noção complexa. A precarização de foi deserdado”. pre excluídos de alguma coisa e massa e os processos de imigração sempre excluídos em relação a al- O que nos ensina a história se- produziram efeitos sociais e polí- guém: a noção é inesgotável e, face mântica e conceitual da exclusão é ticos que podem ser condensados a sua polissemia, o único modo de que, em primeiro lugar, ser excluí- pela noção de “exclusão”. Contu- se certificar de que fazemos parte do é não fazer parte de uma esfera, do, a própria categorização de in- dos “incluídos” é recriar perma- 41 real (um lugar) ou simbólica (uma cluídos e excluídos produz efeitos nentemente as categorias. A noção comunidade a que se pertence): sociais que, embora não criem si- de exclusão parece incontornável, ser excluído é estar de fora. Em se- tuações física e moralmente into- contudo é muito ambígua por tra- gundo lugar, há ao menos duas mo- leráveis a algumas pessoas, con- tar de fenômenos de construção de dalidades de caracterização de ser tribuem para fixar o “dentro” e o grupos a que se pertence. excluído. Na primeira, ele estava “fora”, para reificar as condições em algum lugar (ou possuía alguma de entrada e saída e para homoge- coisa) do qual o expulsaram (ou da neizar os grupos que se opõem en- IHU On-Line – Quais são qual o privaram) – nesse sentido, a tre si. Saúl Karsz1, em L’exclusion, os excluídos das sociedades exclusão é um processo de perda définir pour en finir (2000), aborda contemporâneas? o caráter “especular” da noção de de status, uma trajetória de margi- Magali Bessone – Há excluídos exclusão: ela opera em discurso- nalização e de desapossamento. Na “na” e excluídos “da” sociedade. espelho. A noção designa os ex- segunda, por natureza, o excluído Ser excluído é estar fora do espaço cluídos – que, por definição, são não pode nem nunca pôde reivindi- (real ou simbólico) dos incluídos. O car a inclusão, pois ele não possui frequentemente aqueles excluídos da esfera de fala, da possibilida- paradoxo da noção é precisamen- as características que lhe permi- te que não há espaço homogêneo tem o acesso ao direito, à função de de falar sobre a sua situação, pré-dado, mas que a produção da ou ao bem – características de que de modo que o seu testemunho é exclusão consiste em construir o os incluídos partilham. Em último pouco transmitido, ouvido, valori- espaço de modo que certas pessoas lugar, porém, duas questões conti- zado ou legitimado (eles estão em sejam de lá afastadas pela invisi- nuam abertas: saber quem define situação de injustiça epistêmica, para retomar a expressão de Mi- o status de inclusão/exclusão e City University of New York Graduate Center. 2 os critérios (fluidos e evolutivos) randa Fricker ). A noção emana É autora de Epistemic Injustice: Power and de admissão na esfera; saber se a the Ethics of Knowing (Oxford University 1 Saúl Karsz: sociólogo e filósofo francês Press, 2007). (Nota da IHU On-Line) exclusão é uma estrutura, moda- de origem polonesa-argentina, professor na 3 “Habitant des régions” é o nome dado aos lidade inevitável da relação social Universidade da Sorbonne, na França. É au- franceses que não são habitantes da Île-de- e política, ou se ela se trata de tor de L’exclusion, définir pour en finir (Pa- -France e, sim, das demais regiões da França. uma conjuntura, ligada a um certo ris: Éditions Dunod, 2001). (Nota da IHU (Nota da tradução) On-Line) 4 “Francilien” é o nome dado ao habitante modo de organização das relações 2 Miranda Fricker (1966): filósofa inglesa, da região francesa Île-de-France. (Nota da sociais. professora na Universidade de Sheffield e na tradução)

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bilização, pelo status jurídico dife- quando a situação do país de aco- mas apenas em outros lugares. renciado ou pela reclusão. Dessas lhimento se degrada. Desse modo, a sua “exterioridade” três modalidades de construção é totalmente relativa e correspon- dos excluídos por afastamentos di- Isolamento de muito mais a uma situação de ferenciados, pode-se depreender dominação na estruturação social três figuras principais (que funcio- A terceira figura de excluídos e política. Os “excluídos” ocupam um lugar na comunidade, onde são nam apenas como figuras de análi- corresponde àquela que é produzi- se e que, na realidade social, não os incluídos que lhes atribuem uma da pelo conjunto de práticas que somente compreendem ramifica- função econômica, política ou ide- consistem em construir ou em dei- ções, mas também se fundem): o ológica. Mas esse lugar é entendido mendigo, o estrangeiro, o louco. A xar construir os espaços fechados a partir da garantia de que esses primeira figura remete a um tipo – tecnicamente situados no espa- outros são incluídos no sentido de de excluído definido pela ausência ço da comunidade, mas separados “dominantes”: os incluídos têm um de domicílio. Entretanto, sabemos dela: os asilos, os campos, as pri- acesso privilegiado aos recursos que no cotidiano daqueles que no- sões, os guetos etc. Essa exclusão materiais e simbólicos e por isso meamos na França de “SDF” (sem age sobre o princípio do isolamen- são reconhecidos. Os processos de domicílio fixo) existem práticas de to. A exclusão é, então, reclusão: o exclusão são o duplo malefício dos processos de inclusão, que tendem inserção e estratégias de adapta- excluído não é expulso ou exilado a assimilar todos em uma “comu- ção, de integração a certas redes do lugar comum; ele é sobretudo nidade imaginária”, corroborando e circuitos, de solidariedade e de proibido de sair da porção par- ajuda mútua – enfim, há um rea- para que aqueles que não esti- ticular de território que lhe foi parecimento de uma forma da pro- veram presentes no momento da designada. priedade privada do território. A distribuição de normas e valores rua define a exclusão apenas se es- comuns estarão sempre “no entre- colhemos ignorar suas leis de inte- meio” ou à margem. Os processos gração ou de inclusão diferenciada. de inclusão concebem imaginaria- mente o povo enquanto totalida- O estrangeiro como Os excluídos de social e política: baseiam-se excluído em um conceito de povo isolado 42 não estão fora de suas condições sociológicas re- ais, que negligencia as classes de Segunda figura de excluídos: o da sociedade, vulnerabilidade diferentes que o estrangeiro, que está “aqui”, mas mas exatamen- atravessam; eles mobilizam um que não é “daqui”, para fazer re- conceito de povo a-histórico, sem ferência à fórmula de Georg Sim- considerar a construção histórica 5 te nela: se eles mel . Seja legal ou ilegal, a figura arbitrária da comunidade política do estrangeiro (nacional, étnico ou não estivessem em si. racial) corresponde às populações dotadas de um status especial que no interior do Assim, no ideal de inclusão, não as permite coexistir na comunida- espaço social, ser excluído do povo não se refe- de política, mas as priva de certos re a ser integrado no povo, mas a direitos civis ou de certas ativida- eles não esta- ser assimilado: assimilar significa des sociais. A exclusão ocorre pela “adotar”, e nessa incorporação, construção de um status de exce- riam excluídos, nessa relação de se apossar de ção que não é transitório. Mesmo mas apenas em algo, reside uma verdadeira vio- que os estrangeiros sejam “inte- lência. Nós perguntamos ao outro grados”, eles são o primeiro alvo outros lugares se ele quer de fato “entrar”, re- de discriminação e perseguição nunciar à diferença que o faz ser “outro”. Para não ser excluído, é IHU On-Line – Como a exclusão 5 George Simmel (1858-1918): ocupou um necessário que o indivíduo renun- lugar importante no debate alemão de 1890 confirma o ideal de inclusão? O cie a suas características identitá- até a sua morte em 1918, final da I Guerra que realmente está em jogo nes- rias idiossincráticas e se funda no Mundial. Soube sintetizar a tradição histori- cista de Dilthey e o kantismo de Rickert. Seu se processo? É possível pensar o corpo social: é preciso renunciar a pensamento influenciou Weber, Heidegger, processo de “inclusão” como uma sua língua, sua religião, sua cultu- Jaspers, Lukacs, a Escola de Frankfurt, entre “ilusão”? Por quê? ra, seu sotaque, seus hábitos etc. outros. Suas obras principais são: Diferen- Nada deverá o diferenciar de um ciação social (1890), Filosofia do Dinheiro Magali Bessone – Os excluídos (1900) e Questões fundamentais de socio- “nativo” na fantasia dessa fusão logia (1917). Também publicou “Filosofia não estão fora da sociedade, mas indiferenciável de cada um dentro da moda”. O texto pode ser encontrado em exatamente nela: se eles não es- do todo. Ora, a representação do “Filosofia da Moda”, In Simmel,G., Cultura Feminina, Lisboa: Galeria Panorama, 1969, tivessem no interior do espaço so- corpo no qual ele quer entrar, des- pp107/151. (Nota da IHU On-Line) cial, eles não estariam excluídos, se “todo”, é, na verdade, definida

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pelos dominantes, ou seja, aqueles sempre microrrelações de inclusão da cidadania – da participação le- que já possuem a capacidade de e exclusão. gítima nas escolhas dos princípios definir e que estão em situação de de justiça que governam a socie- Tal abordagem tem como interes- interferir de maneira arbitrária na dade. Podemos fazer um esforço e se colocar em questão a desigual- capacidade do outro de agir e de se pensar ao contrário: a participação dade ou a assimetria das situações autodefinir. individuais, de revirar as certezas como critério prévio à cidadania. da inclusão como continuidade e O tratamento da imigração pela IHU On-Line – De qual ordem é estabilidade das condições de vida hospitalidade traduz a tentativa o projeto ético a ser realizado a de alguns. Entretanto, essa posição de desassociar para os estrangei- fim de superar a dialética que co- ética não nos dá nenhuma chave ros aquilo que é associado para os loca os excluídos de um lado e os ou indicação para agir em circuns- cidadãos: o político e a ética – o incluídos de outro? tâncias sociopolíticas que definem que resulta na exclusão dos es- sempre os excluídos de maneira trangeiros da esfera legítima do Magali Bessone – O projeto a ser materialmente muito mais dramá- político. A mobilização do discurso realizado não me parece ético, mas tica. O projeto político difere se- de hospitalidade tem como função político. Na sua dimensão ética, gundo o tipo de exclusão colocado incentivar um excesso de ética na ele poderia servir para sustentar a em prática. Ele serviria para colo- prática das políticas de imigração. aceitação/ideia de que nós somos car em prática as condições sociais Contudo, se, na sua radicalidade, todos “outros”, não somente para para que a voz dos excluídos invisi- a exigência ética de hospitalidade os outros (mesmo para os outros bilizados seja ouvida, ou seja, para tende a ir em direção à abertura mais íntimos, namorados, crianças lhes assegurar um status epistêmi- incondicionada ao outro, a prática etc.), mas também para nós mes- co igual ao de qualquer membro jurídico-política do tratamento de mos. Se eu aceito que eu mesma da comunidade política. Da mes- imigrações impõe a consideração não me conheço; que minha sub- ma maneira, ele serviria para dar de mediações. jetividade é atravessada por linhas aos estrangeiros direitos iguais de de força; que eu não sou somente Pensar a presença do estrangeiro participação nas decisões tomadas para um outro, mas também para através de um modelo de um aco- nas suas comunidades políticas em lhimento absoluto, incondiciona- mim, parcialmente excluído de um que residem. Finalmente, serviria do, do outro “em sua casa”, tende lugar, de uma relação, de uma as- também para abrir os espaços de a retirar da crítica toda a capaci- piração; que mesmo o meu “eu” reclusão de tal maneira que não 43 dade de isso se realizar na ação ou não constitui uma totalidade incor- fossem entendidos como lugares no engajamento político efetivo. É porada, eu posso então aceitar me de não direito, de menos direito, abrir ao outro como a um outro eu de relegação ou de abandono pelas preciso muito mais “deseticizar” mesmo, atravessado por contradi- políticas públicas. e repolitizar o status de cidadania ções e interdições. Nessa acepção, independentemente da questão o mais íntimo (a relação consigo) de pertencimento territorial origi- IHU On-Line – Diante desse qua- é também o mais universal (a re- nal, desse espaço fantasiado como dro, quais são os desafios a consi- lação com qualquer outra pessoa): “nossa casa”, propondo então uma derar em relação à hospitalidade? em um encontro particular com o abordagem da cidadania como en- outro, qualquer outro, não impor- Magali Bessone – A hospitalida- gajamento político ativo, sem im- tando os dados empíricos de nossas de repousa sobre a convicção de portar se somos “daqui” ou “de situações respectivas, realizam-se que pertencimento é a condição fora”.

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A emergência de uma humanidade atravessada pela hospitalidade Para Marco Dal Corso, tomada como princípio, a ideia de acolhimento ao hóspede ajuda a pensar outra comunidade global, que supera conflitos das relações econômicas, políticas e religiosas

Por João Vitor Santos | Tradução: Sandra Dall’Onder

estado de crises em que o mun- abrem”. Ele ainda vai à cultura de povos do parece mergulhado, de pro- originais para observar outros princípios Oblemas humanitários a políticos hospitaleiros que podem inspirar a mu- e econômicos-sociais, pode ser resumido dança do paradigma contemporâneo. É o como “crise global de hospitalidade”. É caso de algumas tribos africanas, em que nesse sentido que vai a perspectiva do pro- a hospitalidade “acontece em um lugar fessor e teólogo italiano Marco Dal Corso. vital para todo o vilarejo quase como se “Trata-se de uma crise cultural e, talvez, quisesse lembrar, viver e dar um conteúdo espiritual, antes de uma crise social e po- experiencial ao pensamento hospitaleiro lítica. Se isso é verdade, precisamos re- que sustenta a prática da hospitalidade: pensar nossas categorias fundantes, pelo eu sou porque nós somos”. O professor menos aquelas sobre as quais construímos ainda reflete sobre a mudança de épo- a chamada cultura ocidental”, explica. ca em que vivemos. É verdade que essa 44 Desde a perspectiva teológica, acredita mudança gera um tempo de crises, mas que “a hospitalidade como princípio pode que podem incitar a pensar noutra lógica ajudar a repensar também a própria co- de humanidade. “A crise da nossa época, munidade: quando as relações econômi- como dito, é uma crise espiritual antes de cas não são medidas pela posse, aquelas ser social. As igrejas e as comunidades re- políticas determinadas pelas fronteiras e ligiosas em geral são chamadas a dar uma pela pátria e as religiosas com a preten- resposta”, reflete. são de deter a verdade”. Para ele, nesta Marco Dal Corso é teólogo, professor de lógica, a hospitalidade também “ajuda religião em uma escola secundária em Ve- a recriar o ecumenismo cristão e, como rona, Itália, e professor visitante do Insti- aprendemos com a América Latina, o ma- tuto de Estudos Ecumênicos “San Bernar- croecumenismo com as outras religiões”. dino” em Veneza. Também é membro da Na entrevista a seguir, concedida por equipe editorial de Estudos Ecumênicos e-mail à IHU On-Line, o professor usa o e EMC Mondialità; Pazzini Editore, onde texto bíblico da tenda de Abraão para, a dirige a série “Frontiere” (Fronteiras, em partir dele, refletir sobre a hospitalida- tradução livre). Ele é o autor de vários li- vros, entre eles, L’ospitalità come princi­ de hoje. Assim, para Corso, a partir dessa pio ecumenico (Verucchio, Itália: Pazzini, narrativa de Gênesis, “podemos observar 2008) e Per un cristianesimo altro. Le es­ algumas características principais sobre a perienze religiose amerindie (Verucchio, pessoa hospitaleira. Antes de tudo, man- Itália: Pazzini, 2007). ter a porta aberta. A tenda de Abraão não tem chaves para fechá-la, mas portas que Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o conceito ta, antes ainda de agir, que pen- repensar nossas categorias fun- de hospitalidade? E como enten- semos de forma diferente, mais dantes, pelo menos aquelas sobre der este conceito em relação à além e ainda mais. Trata-se de uma as quais construímos a chamada realidade de hoje? crise cultural e, talvez, espiritual, cultura ocidental. Na busca de um Marco Dal Corso – Há uma crise antes de uma crise social e políti- novo pensamento uma importante global de hospitalidade que solici- ca. Se isso é verdade, precisamos contribuição pode ser dada pelo

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pensamento bíblico, se liberado ocidental: o humano, para a bíblia, práticas sociais e culturais. Na his- da “gaiola” helenística, assim en- não termina na lógica do ser, mas tória as religiões já modificaram, tendida por muito tempo. Assim, na sua superação. Aparece como por exemplo, as suas posições so- podemos nos confrontar, como nos uma real contestação em relação bre a escravidão, discriminação ra- advertem os intelectuais mais sen- ao pensamento moderno. Vem a cial, a situação da mulher, a rela- síveis (Levinas1, Derrida2...) com o ser o ser para o outro4. ção com a ciência, a centralização paradigma sobre a identidade e seu do rito e as suas formas históricas… mito, que seria a base da crise de Hospitalidade A urgência histórica e humani- hospitalidade que hoje vemos os tária não pode nos deixar esque- efeitos e consequências. Enfim, a hospitalidade não é, se- cer que estamos diante de uma gundo a lógica bíblica, uma exorta- O pensamento bíblico deseleni- mudança de paradigma. Por isto ção moral, mas uma característica zado3 vai além da identidade ra- a hospitalidade não se propõe fundante da crença. A hospitalida- cional do pensamento grego, está simplesmente como uma postura, de é, em qualquer caso, um impe- concentrado no ser e nos chama a mas antes de tudo como um pen- rativo ético, não jurídico, é o que “tornar-se o que és”. Mas vai ainda samento, um paradigma diferente. distingue a dinâmica religiosa que além da identidade moderna que Os que foram utilizados até aqui ou tende a transformar em lei o amor centraliza o eu, promovendo a au- insistem sobre a dimensão identi- ao próximo daquele da fé, que co- tocriação do sujeito, agora autôno- tária ou sobre a alteridade e a dife- loca o amor ao próximo como crité- mo e projetual, senhor da história rença, como emerge do estudo da rio para julgar a lei. É por isso que e do seu destino. O apelo bíblico teologia das religiões elaboradas o mandamento bíblico para a hos- identitário não para diante da sub- até aqui. Trata-se de unir de outra pitalidade é um convite e não uma jetividade lúdica do pós-moderno, forma identidade e alteridade. obrigação. Nenhuma lei, nenhuma cujo “pensamento frágil” quer con- cultura, nenhuma teologia a satis- Temos certeza de que o para- testar a crise das grandes narrati- faz completamente; continua a ser digma da hospitalidade pode res- vas. O bíblico é de fato um apelo à um convite para ouvir e satisfazer ponder a esta chamada do plura- responsabilidade onde a identida- e com o qual se, ao menos, con- lismo: como uma identidade fruto de se constrói no ser para o outro. frontar. A obrigação da hospitali- da hospitalidade (“fui imaginado Neste sentido, a narrativa bíblica dade não é baseada no estatuto do então existo”) é possível pensar aparece como real contestação em crente, mas no direito do pobre. em uma relação com o outro de relação ao pensamento moderno tipo hospitaleira (segundo a qual 45 Por isto, acreditar é diferente de o hipotético hostis-inimigo se tor- pertencer, e a justiça, conforme a 1 Emmanuel Levinas (1906-1995): filó- na hospes-hóspede). A teologia da sofo e comentador talmúdico lituano, de sensibilidade judaica, tem a pri- hospitalidade (a ser quase toda ascendência judaica e naturalizado francês. mazia sobre a liturgia como a ética Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger, escrita), não é outro capítulo da sobre a religião. cuja obra Ser e tempo o influenciou muito. teologia das religiões onde o plu- “A ética precede a ontologia” é uma frase que caracteriza seu pensamento. Escreveu, entre ralismo é “de facto”, mas não “de outros, Totalidade e Infinito (Lisboa: Edições IHU On-Line – De que forma iure”; se propõe então como uma 70, 2000). Sobre o filósofo, confira a entrevis- a perspectiva da hospitalidade reflexão que interroga o plura- ta com Rafael Haddock-Lobo, publicada em pode contribuir para o debate so- lismo, interpretando-o dentro da 30-08-2007 no sítio do Instituto Humanitas bre o diálogo inter-religioso? Unisinos – IHU, intitulada Lévinas: justi- economia da salvação divina. O di- ça à sua filosofia e a relação com Heidegger, Marco Dal Corso – Enquanto a álogo inter-religioso que virá deve Husserl e Derrida, disponível em http://bit. ser “informado” a partir da teo- ly/1bZ77kk, e a edição número 277 da IHU urgência do diálogo aparece de On-Line, de 14-10-2008, intitulada Lévinas e forma evidente (não somente logia do pluralismo religioso cuja a majestade do Outro, disponível em http:// sócio-político, em tempos de fun- marca da hospitalidade se propõe bit.ly/1gsnUOI. (Nota da IHU On-Line). como categoria fundante. 2 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo damentalismo globalizado, mas francês, criador do método chamado des- também e até mais na questão cul- construção. Seu trabalho é associado, com tural e religiosa), ao mesmo tempo IHU On-Line – A hospitalida- frequência, ao pós-estruturalismo e ao pós- cada tradição espiritual defronte de pode ser entendida como um -modernismo. Entre as principais influências de Derrida encontram-se Sigmund Freud ao pluralismo cultural e religioso princípio ecumênico? Por quê? e Martin Heidegger. Entre sua extensa pro- é chamada a reconsiderar de for- Marco Dal Corso – Pensar e não dução, figuram os livros Gramatologia (São ma crítica os seus escritos, as suas Paulo: Perspectiva, 1973), A farmácia de Pla- somente praticar a hospitalidade tão (São Paulo: Iluminuras, 1994), O animal tradições doutrinais e morais, e go- comporta a adoção de uma série de que logo sou (São Paulo: UNESP, 2002), zar da biodiversidade religiosa, da “primazias”. A primeira é a etero- Papel-máquina (São Paulo: Estação Liber- presença difusa do Espírito… Se as nomia sobre a autonomia. Não sig- dade, 2004) e Força de lei (São Paulo: WMF antigas verdades das religiões não Martins Fontes, 2007). Dedicamos a Derrida nifica renunciar a conquista moder- a editoria Memória da IHU On-Line nº 119, mudam, o que deve mudar são as na da autonomia, mas repensá-la de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ de forma crítica. A “primazia” que ihuon119. (Nota da IHU On-Line) 4Para estas categorias ver, entre outros, Car- 3 No sentido de retirar a perspectiva helenís- mine Di Sante, L’io ospitale, Edizioni Lavoro, auxilia na passagem do paradigma tica. (Nota da IHU On-Line) Roma 2001. (Nota do entrevistado) identitário (sobre o qual se constro-

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em as políticas sociais) ao paradig- texto sobre a tenda de Abraão Lot5, após a de Abraão, que rece- ma da hospitalidade, do paradigma (Gênesis 18)? be em sua tenda dois personagens da exclusão (como tema ideológico desconhecidos, é uma dessas oca- Marco Dal Corso – A passagem e cultural) ao da co-hospitalidade. siões. A narrativa tem sido muitas de Gen, 18 foi interpretada como vezes interpretada com o registro Segunda primazia é a do princí- uma narrativa paradigmática da ético-sexual: quando a culpa dos pio da hospitalidade como respon- hospitalidade e não poderia ser habitantes de Sodoma seria a sua sabilidade (em relação ao outro) diferente. Uma narrativa muito co- tentativa de abuso sexual em re- sobre a liberdade (do eu). Significa mentada, onde, todavia, podemos lação aos estrangeiros. Tal inter- que a resposta às necessidades do observar algumas características pretação, no entanto, aprisiona o outro é o caminho para encontrar principais sobre a pessoa hospita- texto em relação a sua mensagem a busca de sentido. A bíblia aqui leira. Antes de tudo, manter a por- real, como observado pelos estu- diria: escolhe o bem e serás livre. ta aberta. A tenda de Abraão não diosos bíblicos há tempos. A culpa Isto libera as relações de interes- tem chaves para fechá-la, mas por- dos sodomitas está na violação se e faz com que sejam possíveis tas que abrem. da hospitalidade e na destruição como doação. Depois, a pessoa hospitaleira, da cidade e dos seus habitantes, A hospitalidade entendida como conforme o exemplo de Abraão, é mais que um sinal da vontade pu- princípio, indica uma terceira pri- a que dá as boas-vindas: conscien- nitiva e vingativa dos hóspedes mazia: o da justiça sobre o amor. te, isto é, que a pessoa que chega, ofendidos, propõe-se uma metá- Mais uma vez, não porque o amor como diz a palavra, traz o “bem” fora da morte da pessoa que não deixa de ser uma medida da vida para a casa. Além disso, a pessoa é acolhedora. da fé, ou somente a coerência com hospitaleira se dá conta daquilo Hospedar, mais uma vez, não aquilo em que se acredita, mas que o outro necessita. Ou seja, é um simples ato generoso, mas porque o princípio da hospitalidade tem uma capacidade empática, uma experiência geradora, tan- ajuda a passar de uma justiça radi- que vai além da tolerância ou da to para quem hospeda como para cal interpretada como “do ut des” indiferença: o outro “é importante a uma justiça como gratuidade, as- quem é recebido. Negar-se a aco- para ele”. simetria, relações, como resposta lher, conduz à própria morte, ao radical aos problemas da injustiça Enfim, a pessoa hospitaleira fechamento, a não realização de estrutural e pessoal. Se levado a aprende com Abraão e com a sua si, conforme a Bíblia. Que, ao 46 sério, o princípio da hospitalidade esposa a dar espaço para o outro contrário de outras literaturas, ajuda a repensar o divino: antes de e doar aquilo que tem, ensinan- quando narra, como neste episó- ser invocado, Ele é advogado. Ao do a despojar-se dos bens. Como dio, que no centro do pedido de hospitalidade está o estrangeiro invés de distante, o divino é desco- Abraão, a pessoa hospitaleira sabe (estes são os dois personagens de berto próximo a nós e antes de ser que estar mais próximo de Deus é que falamos) indica o estrangeiro onipotente, Ele é descoberto como salvar os homens, por isto, acolher não simplesmente como um lugar condescendente. e servir o hóspede é mais impor- social, mas como um lugar teoló- tante que acolher e servir a Deus. gico: Deus se revela no estrangei- Repensando o humano Em outras palavras: a justiça goza ro. Porque hospedar é sair de si de uma primazia sobre a liturgia. mesmo, é escolher amar de forma Mas o princípio da hospitalidade Por isto, como diz o Papa Fran- assimétrica como se ama a Deus. serve para repensar o humano: não cisco, afirmar que a “Igreja é um mônade, nem absorvido pela to- hospital de campo” (para todos Se esta hermenêutica bíblica se talidade, mas relação. E enfim, a os feridos, também os estrangei- sustenta, a sua mensagem chega hospitalidade como princípio pode ros) não é uma metáfora edifican- até aos nossos dias. A não hospi- ajudar a repensar também a pró- te, mas uma afirmação teológica talidade destes “dias ruins” antes pria comunidade: quando as rela- coerente. de ser um problema dos outros, é ções econômicas não são medidas um problema para mim: todas as pela posse, aquelas políticas de- comunidades que se fecham estão IHU On-Line – Podemos associar terminadas pelas fronteiras e pela destinadas à “morte”. E a crise da a destruição de Sodoma e Go- pátria e as religiosas com a pre- nossa época, como dito, é uma cri- morra (Gênesis 18-20) à ideia de tensão de deter a verdade. Nesta se espiritual antes de ser social. As hostilidade ou não hospitalidade perspectiva a hospitalidade ajuda igrejas e as comunidades religiosas plena? E quais associações pode- a recriar o ecumenismo cristão e, em geral são chamadas a dar uma mos fazer com o tempo atual de como aprendemos com a América resposta. Latina, o macroecumenismo com conflitos e não acolhimento aos as outras religiões. estrangeiros? IHU On-Line – Na cultura dos po- Marco Dal Corso – A Bíblia, como vos indígenas, como é o conceito IHU On-Line – Quais as refle- outros códigos culturais antigos, de hospitalidade? Quais relações xões sobre a hospitalidade que narra em várias ocasiões a práti- nos podem ser indicadas pelo ca da hospitalidade. A história de 5 Gn, 19. (Nota da IHU On-Line).

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são estabelecidas a partir desse referimos ao caso do Mulebi7. A democracia ocidental, em suma, contato com o outro? Uma das máximas dos Bapunu, é: parece fazer pouco caso do am- “Quando estás prestes a te sentar biente onde vivem os homens. Os Marco Dal Corso – Porque, como à mesa, deves olhar para a entra- habitantes dos Andes, por outro disse Eliade6, a experiência do sa- da do vilarejo. Talvez esteja che- lado, sabem que Pacha Mama é a grado está diretamente ligada ao gando um forasteiro.” (U ji wi ji noiva mística do Céu e que o Céu esforço do ser humano em cons- dissu o kodu dimbu). “Enquanto é fecundado pelo sol e pela chuva. truir um mundo que faça sentido, comes, pense no estrangeiro, que É a manifestação da energia cós- podemos nos dirigir aos mundos pode aparecer de um momento mica “feminina”, a manifestação tradicionais e aos povos originários para o outro”. da função “materna” da divinda- não como uma comparação exótica de. Todos os seres vivos – plantas, (quase como uma viagem no tem- Repensando a animais, homens – são gerados po e em um mundo que não existe metafísica do humano pela Mãe Terra e por ela alimen- mais), mas como uma comparação tados. Por isso, a terra pode ser com uma outra lógica, capaz de Enfim, a hospitalidade na África utilizada somente como usufruto. ficar à frente dos problemas de tem uma estrutura, acontece em O eu hospedado deve saber que é hoje e indicar perspectivas para um lugar vital para todo o vilare- o guardião, e não o proprietário da o futuro. Podemos aprender com jo quase como se quisesse lembrar, criação, diria a Bíblia. eles e descobrir, por exemplo, que viver e dar um conteúdo experien- A segunda contribuição, olhando a hospitalidade africana não é so- cial ao pensamento hospitaleiro para o mundo tradicional na terra mente um comportamento, mas é, que sustenta a prática da hospita- de Abya-Yala, é ajudar a repensar o sobretudo, um tema: que a prá- lidade: eu sou porque nós somos. E destino comum dos bens. A socieda- tica da hospitalidade seja como talvez, retomando e transpondo o de globalizada atual corre o risco de um dote, isto é, um pensamento famoso axioma de memória carte- “perder o mundo”, porque, entre hospitaleiro. siana: não o “penso, logo existo”, outras coisas, perdeu o sentido do mas “fui pensado, então existo”. bem comum. Nas festas indígenas, Uma tradução exemplar disto A contribuição do pensamento poderia ser a experiência dos po- “outro” africano aparece desde a instituição do mordomo, ou seja, vos Bapunu entre Gabon e Congo o início: repensar a metafísica ou do festeiro, refere-se ao princípio Brazzaville. Estes, assim como a base do ser humano. Se isto se da redistribuição dos bens. Na ver- 47 outros povos africanos, dispõem aplica às religiões tradicionais afri- dade, ele tem à sua disposição um de uma verdadeira estrutura para canas, mesmo os povos nativos e os ano inteiro, onde toda a sua ener- a hospitalidade no vilarejo. Nos mundos tradicionais da América La- gia e a força de trabalho da família tina podem contribuir para repen- servem para acumular o necessário 6 Mircea Eliade (1907- 1986): escritor e fi- sar a relação com o outro. Em pelo para preparar grandes quantidades lósofo romeno, uma das maiores autoridades de comida e bebida para ser con- no estudo das religiões. Estudou a linguagem menos dois aspectos. dos símbolos, usada em todas as religiões, sumida durante o dia, ou nos dias para chegar às origens, que se situariam O primeiro é, por exemplo, re- da festa. Durante o ano qualquer sempre no sagrado. Em 1928, obteve seu pensar a pessoa dentro de tramas necessidade pessoal, mesmo que mestrado em Filosofia na Universidade de relacionais também com o meio Bucareste. Estudou sânscrito e filosofia hin- legítima, está subordinada à tare- du na Universidade de Calcutá (1928-1931) e ambiente. A visão política filosó- fa que a comunidade destinou ao morou em um ashram em Rishikesh, ao pé do fica ocidental não tem incidido mordomo. Este, no final do ano, Himalaia, na Índia. Em 1933, voltou à Uni- sobre a relação do ser humano terá acumulado (às vezes contrain- versidade de Bucareste e obteve o doutorado com a natureza, exceto pela re- com o tema Yoga: Essai sur les Origines de do dívidas) tal quantidade de gê- 8 lqa Mystique Indiène. Em 1945, lecionou na cente “preocupação ecológica” . neros alimentícios (milho, farinha, École de Hautes Études, na Sorbonne, e, em carne, cocaína, álcool), tornando- 1956, foi professor de História das Religiões 7 As informações aqui constante foram dadas na Universidade de Chicago, Estados Uni- pelo aluno Berri Hilare que defendeu a sua -se a pessoa mais “rica” do vilare- dos. Foi também honoris causa em numero- tese em Teologia Ecumênica junto ao Istituto jo, mas esta riqueza é passageira. sas universidades de todo o mundo, além de di Studi Ecumenici “San Bernardino” em Ve- Durante a festa, o mordomo gasta premiado em 1977 pela Academia Francesa neza intitulada: “La morfologia dell’ospitalità com a Legião de Honra. Sua interpretação del Mulebi” como contribuição africana aos todas as suas provisões, e assim, o essencial para as culturas religiosas e a análi- diálogos ecumênico e inter- religioso. (Nota mais rico se torna o mais pobre da se de experiência mítica caracterizavam suas do entrevistado) comunidade. Terminada a festa, obras. Em Eliade, o conceito de hierofania 8 A recente encíclica do Papa Francisco pro- corresponde às manifestações do sagrado, põe uma nova abordagem sobre o tema quan- outro candidato tomará seu lugar desde aquelas mais elementares, como, por do chama a atenção sobre a ecologia como o e começará a trabalhar, economi- exemplo, sua manifestação num objeto qual- “cuidado da casa comum”. Temos ainda uma zar, acumular para que a festa do quer, em uma pedra ou uma árvore, até a sua confirmação da tese acima citada se for ver- próximo ano seja boa para todos. O forma suprema, que, para um cristão, seria a dade que a “Laudato Sì” faz referência fre- manifestação de Deus no homem Jesus Cris- quente ao “magistério” das igrejas do sul do santo patrono, por sua vez, aceita to, residindo aí um ato misterioso: a mani- mundo. Para posterior estudo inter- religioso festação de algo divino em objetos que fazem da encíclica e uma avaliação da sua lingua- di), Le religioni e la cura della casa comune, parte de nosso mundo material, “profano”. gem ver o recente Quaderni di Studi Ecume- Pazzini, Villa Verucchio (RN), 2016. (Nota do (Nota do IHU On-Line). nici n. 33: Dal Corso M.- Salvarani B. (a cura entrevistado)

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este ano de tantos sacrifícios desti- signon10, definido como um “mul- no entanto, podemos aprender e nados ao bem da comunidade como çumano católico” por Paulo VI11 – tentar traduzir no nosso ambiente uma prova de amor em relação a que para compreender o outro não quotidiano e na nossa vida comum ele e recompensa aqueles que se é necessário integrá-lo, é neces- que só uma verdadeira paixão pela submetem, abençoando os seus sário ser seu hóspede. A verdade vida, pela matéria e pelo mundo, campos e os seus animais. é encontrada somente através da pode ajudar a compreender a pre- hospitalidade. sença de Deus em tudo. Desespe- Antes de ser um costume cultural Da experiência do diálogo hos- rar-se no presente, então, é uma interessante para os turistas, a tra- traição da mística da hospitalida- dição do “festeiro” lembra a socie- pitaleiro somos chamados à nossa liminaridade, a habitar a terra do de, lição admirável dada pelo gran- dade ocidental sobre o significado 14 meio, como lembra a fascinante de monge que foi Thomas Merton . de mundo, que está no comparti- e dramática parábola de Henri le lhamento e não no amealhar bens. Saux, monge beneditino que habi- Mística da A Bíblia diria que o eu hospitaleiro tou o coração da espiritualidade hospitalidade pode ser recebido e também aco- hindu. Aprendemos também que lher. Pode, conforme o misticismo participar do diálogo é o mesmo E, finalmente, neste esboço de bíblico, “ter tudo sem ter nada”. que frequentar um lugar inquie- interpelações que resultam da Os bens são para todos. Enfim, para tante, porque somos chamados a “mística da hospitalidade”, onde um pensamento ocidental centrado mudar a nossa própria autocom- estamos conscientes de que a vida no hoje e desprovido de respon- preensão, se quisermos entender contemplativa politiza a fé. Uma sabilidade em relação ao futuro, seriamente a posição do outro, mística de olhos abertos como no quase incapaz de pensar na “dívida como diz Panikkar. diálogo e no encontro com o outro, intergeracional”, existe outro pen- que não pode ser neutro conforme Outra máxima hospitaleira é o samento, falado anteriormente, testemunho de Simone Weil12, ca- ligado ao seu “papel” hospitalei- e a fé cristã segundo Teilhard de Chardin, paz de atingir o mundo todo: nada em http://bit.ly/ihuon304. Confira, ainda, ro, que tem responsabilidades em está descartado, nenhuma dúvida as entrevistas Chardin revela a cumplicidade relação ao futuro. Somente desta e, sobretudo, nenhuma pessoa. Na entre o espírito e a matéria, na edição 135, de 05-05-2005, em http://bit.ly/ihuon135 13 forma creio que exista um sentido escola de Teilhard de Chardin , e Teilhard de Chardin, Saint-Exupéry, pu- 48 em pensar nos povos originários, blicada na edição 142, de 23-05-2005, em suas culturas e cosmovisões. 10 Louis Massignon (1883-1962): escri- http://bit.ly/ihuon142, ambas com Waldecy tor e católico francês perito no islã. (Nota do Tenório. Na edição 143, de 30-05-2005, Ge- IHU On-Line) orge Coyne concedeu a entrevista Teilhard e IHU On-Line – Quais são os desa- 11 Paulo VI (1897-1978): Giovanni Battis- a teoria da evolução, disponível para down- ta Montini foi papa da Igreja Católica entre load em http://bit.ly/ihuon143. Leia também fios para praticar a hospitalidade 1963 e 1978. Chefiou a Igreja Católica durante a edição 45 edição do Caderno IHU Ideias no ambiente cotidiano? a maior parte do Concílio Vaticano II e foi de- A realidade quântica como base da visão de cisivo na colocação em prática das suas deci- Teilhard de Chardin e uma nova concepção Marco Dal Corso – Mais do que sões. (Nota da IHU On-Line) da evolução biológica, disponível em http:// desafios, eu falaria, seguindo a 12 Simone Weil (1909-1943): filósofa cristã bit.ly/1l6IWAC; a edição 78 do Cadernos de francesa, centrou seus pensamentos sobre um Teologia Pública, As implicações da evolução escola de Panikkar, em interpe- aspecto que preocupa a sociedade até os dias científica para a semântica da fé cristã, dispo- lações. A referência aos místicos de hoje: o tormento da injustiça. Vítima da nível em http://bit.ly/1pvlEG2; e a edição 22 e intelectuais como Raimon Pani- tuberculose, Weil recusou-se a se alimentar, do Cadernos de Teologia Pública, Terra Ha- 9 para compartilhar o sofrimento de seus bitável: um desafio para a teologia e a espi- kkar pode nos ser útil na identi- irmãos franceses que haviam permanecido ritualidade cristãs, disponível em http://bit. ficação. A experiência da hospita- na França e viviam os dissabores da Segunda ly/1pvlJJL. (Nota da IHU On-Line) lidade que viveram, por exemplo, Guerra Mundial. Sobre Weil, confira as 14 Thomas Merton (1915-1968): monge edições 84 da Revista IHU On-Line, de 17- católico cisterciense trapista, pioneiro no nos faz entender – como disse Mas- 11- 2003, e 168, de 12-12-2005, sob o título ecumenismo no diálogo com o budismo Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. e tradições do Oriente. O livro Merton na 9 Raimon Pannikar (1918-2010): padre e Três mulheres que marcaram o século XX. intimidade – Sua Vida em Seus Diários teólogo espanhol. Durante sua carreira aca- Confira, também, a edição 17 dos Cadernos (Rio de Janeiro: Fisus, 2001), é uma seleção dêmica, teve a oportunidade de abordar dife- IHU Em Formação, intitulada Hannah extraída dos vários volumes do diário de rentes tradições culturais. Publicou mais de Arendt e Simone Weil. Duas mulheres que Thomas Merton, autor de livros famosos 40 livros e 300 artigos de filosofia, ciência, marcaram a Filosofia e a Política do século como A Montanha dos Sete Patamares (São metafísica, religião e hinduísmo. Foi membro XX. (Nota da IHU On-Line) Paulo: Itatiaia, 1998) e Novas sementes de do Instituto Internacional de Filologia (Paris, 13 Pierre Teilhard de Chardin (1881- contemplação (Rio de Janeiro: Fisus, 1999). França) e presidente do Vivarium – Centro de 1955): paleontólogo, teólogo, filósofo e jesuíta O livro foi editado por Patrick Hart, também Estudos Interculturais da Catalunha. Há um que rompeu fronteiras entre a ciência e a fé monge e colaborador de Merton. Na matéria amplo material no sítio do Instituto Huma- com sua teoria evolucionista. O cinquentená- de capa da edição 133 da IHU On-Line, de 21- nitas Unisinos – IHU dos quais destacamos: rio de sua morte foi lembrado no Simpósio 03-2005, publicamos um artigo de Ernesto Superar a cristologia tribal, o desafio pro- Internacional Terra Habitável: um desafio Cardenal, discípulo de Merton, que fala sobre posto por Raimon Panikkar, disponível em para a humanidade, promovido pelo IHU em sua relação com o monge. A edição 460 da http://bit.ly/1lMqMEm; Raimon Panikkar: 2005. Sobre ele, leia a edição 140 da IHU On- revista IHU On-Line, sob o título A mística diálogo e interculturalidade, disponível em Line, de 09-05-2005, Teilhard de Chardin: nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, http://bit.ly/1lMqTjp; Raimon Panikkar, teó- cientista e místico, disponível em http://bit. dois centenários analisa a legado de Merton. logo da dissidência, disponível em http://bit. ly/ihuon140. Veja também a edição 304, de Confira em http://bit.ly/1hbCXyo (Nota da ly/1rQV2DS. (Nota da IHU On-Line) 17-08-2009, O futuro que advém. A evolução IHU On-Line)

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as poesias de outro místico con- ensão das religiões para ajudar e Estes porquês querem responder temporâneo, Ernesto Cardenal15. favorecer a conivência entre as à crise não somente dos migrantes, Seu compromisso político é o resul- pessoas (a atual autocompreensão mas a crise da sociedade em geral. tado de uma introspecção espiritu- das religiões ainda é um obstáculo al profunda. Nós seremos capazes à convivência). Uma crença hospi- IHU On-Line – Gostaria de acres- de praticar a hospitalidade em nos- taleira ajuda na convivência entre centar algo? sas vidas diárias, se entendermos e as nações. vivermos a mística. Marco Dal Corso – Para concluir, Porque vivemos uma época de me permito indicar alguns tex- mudanças IHU On-Line – Como a perspec- tos, cuja edição está em língua tiva teológica da hospitalidade É necessário superar as formas italiana, que passam pelos temas pode contribuir para reflexões históricas do passado se quisermos tratados aqui e que, sobretudo, sobre a crise dos migrantes? acompanhar os novos tempos de testemunham a pesquisa sobre a pluralismo religioso. Na história categoria da hospitalidade, que há Marco Dal Corso – Para respon- as religiões já modificaram, muda- algum tempo envolve os meus in- der a esta pergunta, gostaria de ram, repensaram diversos temas/ teresses e pesquisas. O primeiro é indicar o projeto de pesquisa so- problemas (por exemplo, escravi- assinado juntamente pelo amigo e bre a “teologia da hospitalidade” dão, igualdade de gênero, relação teólogo Placido Sgroi16, L’ospitalità que um grupo de pesquisadores, com a ciência...). Nesta “mudança come principio ecumenico (Pazzini, teólogos, pastores e laicos estão de época” (muito mais que épo- 2008), onde o “pensamento hospi- fazendo a algum tempo, coorde- ca de mudanças), deve-se ter um taleiro” é interpretado como pen- nados por alguns professores do novo pensamento, além do que foi Instituto de Estudos Ecumênicos – samento recriador também para o herdado (também teologicamen- ISE “San Bernardino” em Veneza. ecumenismo. te). Uma crença hospitaleira é o Aproveito para dizer que o projeto futuro do diálogo inter-religioso. Em relação à hospitalidade e, so- está aberto para todas as colabora- bretudo sobre a sua negação, te- ções, também em solo brasileiro. O Porque se não mudarmos o pen- mos dois textos: Per un cristiane­ porquê de analisar a hospitalidade samento teremos prejuízos simo altro: le esperienze religiose tem a ver com a pergunta anterior. Mesmo tendo ultrapassado o pen- amerindie (Pazzini, 2007), onde, Nós nos perguntamos: por que pre- samento exclusivista (“em nome partindo do sul do mundo, tenta-se cisamos de um novo paradigma? E 49 de Deus” e “pela sua glória”), não contar uma outra forma de vida e as nossas respostas iniciais foram: superamos ainda a mania de su- interpretar o cristianismo; apresen- Porque vivemos em um mundo perioridade, da pouca valorização to, ainda, uma outra lógica cultural novo das outras religiões, do fechamen- e religiosa dos povos originários em to no seu próprio modo de pensar, Religioni Tradizionali (EMI, 2013). Este mundo de hoje é globaliza- da incapacidade de dialogar inter- Sobre a pedagogia inter-religiosa do, interligado não somente de for- -religiosamente (modalidade opera- temos ainda o caderno monográfi- ma cultural, mas também religio- cional derivada de um pensamento sa, onde os conflitos não são mais co de estudos ecumênicos intitula- determinados (somente) pelas ide- inclusivo). Uma crença hospitaleira, do Per una pedagogia del dialogo ologias econômicas e políticas, mas ao contrário, não quer ser priva- interreligioso (ISE San Bernardino, também pelas identidades reativas da da força espiritual das diversas 2014); e a reflexão teológica em onde as religiões tiveram e (têm) tradições religiosas e culturais: as relação às religiões, onde podemos uma colaboração significativa. É riquezas espirituais são para todos. pensar em uma verdadeira teologia necessária uma nova autocompre- Porque existe uma urgência ci- da hospitalidade está no volume de vil, política e humanitária Brunetto Salvarani Molte volte e in 15 Ernesto Cardenal: monge trapista diversi modi: manuale di dialogo nicaragüense, escritor e discípulo de Thomas Um novo princípio para o dialogo inter-religioso (Cittadella, 2016). Merton. Ernesto Cardenal foi ministro da inter-religioso não pode ser somen- Cultura da Nicarágua no governo da Frente Por fim, gostaria de citar que a Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). te uma preocupação intraeclesiás- próxima edição do texto do amigo Hoje, está rompido com a entidade. Citamos, tica ou um tema interno, das reli- Faustino Teixeira17 intitulado Per entre as publicações de Cardenal, Evangelio giões. A busca por um novo modo de Solentiname (Salamanca: Sígueme, 1975); una mistica dell’ospitalità, está La Revolución Perdida (Madrid: Editorial de pensar (e de viver) o diálogo prevista para o início de 2017, na Trotta, 2003); Im Herzen der Revolution inter-religioso é um tema de tipo coletânea “Frontiere” dirigida por (Wuppertal: Peter Hammer Verlag, 2004); civil, político e humanitário. A con- Antología poética (Rosario: HomoSapiens mim. Ediciones, 2004); Catulo y Marcial (Santiago tribuição da teologia pública para de Chile: Ediciones Tácitas Ltda, 2004). a cidade a serviço do crescimento 16 O autor■ também é um dos entrevistados Cardenal nos enviou um texto sobre sua espiritual (e cultural) da humani- dessa edição da IHU On-Line. (Nota da IHU direção espiritual com Thomas Merton, dade. A crença hospitaleira é uma On-Line) publicada na edição 133ª de IHU On-Line, de 17 O autor assina um artigo sobre o tema, 21/03/2005. Acesse pelo link http://bit.ly/ modalidade pública e política das também presente nessa edição da IHU On- ihuon133 (Nota do IHU On-Line) tradições religiosas e culturais. Line. (Nota da IHU On-Line)

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Um símbolo radical da condição humana Precariedade e provisoriedade são características da hospitalidade que tensionam a relação com o Outro. Para a Europa, o maior desafio é colocar em prática esses preceitos, sobretudo com povos do Sul, com quem o continente possui um débito, destaca Placido Sgroi

Por João Vitor Santos | Edição: Márcia Junges | Tradução: Luisa Rabolini

hospitalidade pressupõe um dade mostra o lado frágil da nossa civi- tensionamento entre a possi- lização e corre o risco de ser um sinal A bilidade de um Outro, pois de perigosa esterilidade antropológica como a própria etimologia da pala- e cultural, antes mesmo que ética.” vra ensina, o termo em latim hospes Placido Sgroi faz parte de um grupo (hóspede) provém de hostis (inimigo), na Itália que trabalha especificamen- pressupondo, em termos genéricos, o estrangeiro, o forasteiro e um poten- te o tema da hospitalidade, junto de cial perigo. Para os europeus, hoje, a Marco dal Corso e Brunetto Salvarani. temática da hospitalidade os coloca Leciona Filosofia e História na Univer- 50 diante de sua incapacidade cultural e sidade de Verona e Teologia Ecumêni- política de serem hospitaleiros, reco- ca em Veneza. Cursou bacharelado em nhece Placido Sgroi na entrevista con- Teologia e licenciatura em Teologia cedida por e-mail à IHU On-Line. Ecumênica no Studio Teologico “San Bernardino”, em Verona. É mestre em O desafio para a Europa é justamente Antropologia e Bíblia pela Universi- praticar a hospitalidade: “isso significa tà Degli Studi di Verona e doutor pela reconhecer o débito que temos em re- Pontifícia Universidade Antonianum em lação aos povos do Sul do mundo que Teologia Ecumênica. É autor de Ospi­ batem à nossa porta e para os quais, talità. Padova: Edizioni Messaggero acolhendo-os, nada mais fazemos do Padova, 2015. Com Marco Dal Corso que restituir aquilo que a nossa civi- escreveu L’ospitalità come principio lização euro-norte-ocidental lhes to- ecumenico. Pazzini, 2008. mou, em tempos e formas diversas. Lastimavelmente, a crise de hospitali- Confira a entrevista.

IHU On-Line – A prática da hos- o hóspede deve ser reconhecido pectos mitológicos, é justamente pitalidade é essencialmente um como outro, externo, forasteiro, a sua transcendência que o trans- exercício de reconhecimento do potencialmente perigoso, de algu- forma num sinal do divino. Toda Outro?Por quê? ma forma transcendente ao que já alteridade anuncia a possibilidade é meu. Placido Sgroi – Porque sem o de um Outro, totalmente Outro. Outro simplesmente não existe A hospitalidade faz isso de forma hospitalidade. Como nos ensina a IHU On-Line – Em que sentido a específica, pois, no mundo cristão, etimologia, o termo latim hospes hospitalidade remete ao divino? isso remete à encarnação do Verbo (hóspede), deriva de hostis, ini- Placido Sgroi – Nas tradições que se faz hospedar na carne e no migo, portanto genericamente, mais antigas o hóspede é divino, mundo. estrangeiro. Apenas aquele que pois pode estar escondendo em si não pertence ao meu círculo pode mesmo um deus disfarçado. Con- IHU On-Line – Que ideia de hos- ser hospedado. Logo, para ser tal, tudo, deixando de lado esses as- pitalidade podemos apreender a

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IHU On-Line – Ainda sobre o di- álogo inter-religioso, quais os li- mites na relação ente hóspede e hospedeiro? Porque a própria hospitalida- Placido Sgroi – Justamente por- de é precária, destinada a du- que a própria hospitalidade é pre- cária, destinada a durar apenas um rar apenas um tempo, tenho di- tempo, tenho dificuldade de ver ficuldade de ver seu limite na seu limite na sua dimensão inter- religiosa. Aqui a hospitalidade pa- sua dimensão inter-religiosa rece como um provisório ter casa em uma tradição outra, que me contamina, mas não me absorve. partir dos relatos bíblicos? Como Placido Sgroi – No diálogo ecu- As grandes testemunhas do diálo- esse conceito vai se transforman- mênico a hospitalidade tem um go religioso, como Henry Le Saux1, do até a atualidade? papel ambíguo: “hospitalidade ou Charles de Foucauld2, fizeram ecumênica” é um slogan eficaz Placido Sgroi – A narrativa bíbli- essa experiência de precarieda- para significar o desejo de acolher ca estende a categoria de hospita- de, transformando a sua identida- o outro cristão na sua identidade lidade, transformando-a num sinal de numa identidade aberta, um confessional e eclesial, sem assi- da condição humana. O próprio Is- apresentar-se frente ao outro, mas milá-lo, mas ao mesmo tempo ela rael é peregrino e hóspede sobre a também, por intermédio do outro. terra, mesmo na sua terra. A hos- é ainda uma prática que encontra pitalidade, portanto, não anuncia limites e obstáculos, basta pensar apenas o divino, que se esconde no a hospitalidade eucarística; por ou- IHU On-Line – Quais reflexões humano, mas a própria humanidade tro lado, se a hospitalidade é para emergem acerca da hospitalida- do ser humano, como precarieda- o estrangeiro, então na comuni- de a partir da narrativa bíblica de, de um lado, mas também como dade, na Igreja de Cristo, na qual da Natividade, partindo da busca possibilidade de sermos acolhidos, fomos incorporados pelo batismo, de José e Maria por abrigo para pelo outro. Para nós europeus, isso não há espaço para a hospitalida- 51 nos coloca frente à nossa atual in- 1 Swami Abhishiktananda (1910-1973): de, pois cada cristão já está na sua nome indiano de Dom Henri Le Saux, monge capacidade cultural, além de polí- própria casa. Claro que ainda resta beneditino. Em 1950, foi cofundador, junto tica, de sermos hospitaleiros. a hospitalidade radical, aquela que com Father Jules Monchanin, do Satchida- nanda Ashram, uma instituição monástica Deus oferece na igreja, na qual to- dedicada à integração dos valores da tradição IHU On-Line – O que a hospita- dos somos hóspedes. beneditina com os valores da tradição monás- lidade (ou a hostilidade) revela tica hindu. (Nota da IHU On-Line) 2 Charles Eugéne de Foucauld (1858- acerca da história humana? IHU On-Line – No que a expe- 1916): ordenado sacerdote em 1901, tinha a riência da hospitalidade pode intenção de criar uma nova ordem religiosa, Placido Sgroi – A hospitalidade é o que sucedeu apenas depois da sua morte: um símbolo da condição humana, transformar a narrativa de fé e a os Irmãozinhos de Jesus. Foi assassinado símbolo radical, pois todos e todas religiosidade daquele que acolhe por assaltantes, em 1916. Foi beatificado pelo somos porque fomos hospedados e daquele que é acolhido pelo ou- Papa Bento XVI em novembro de 2005. Con- tribuições da espiritualidade de Charles de num ventre materno. Condição de tro, aquele que professa religião Foucauld em contexto de pluralismo cultural precariedade radical que se torna distinta da minha? e religioso, entrevista com Edson Damian condição de existência enquanto publicada na Edição 269 da Revista IHU On- Placido Sgroi – É importante fa- -Line, de 18-08-2008, disponível em http:// seres humanos. Dessa hospitalidade bit.ly/IPfX7U; Na plena luz de Charles de originária geram-se todas as outras zer a ligação entre hospitalidade e Foucauld, artigo de Bruno Forte publicado que constituem a condição humana narrativa, lembrando que inclusi- nas Notícias do Dia, de 08-06-2011, no sí- (por exemplo, somos hospedados ve na literatura antiga o hóspede tio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1hdG5oT. Em pela linguagem que aprendemos). é sempre um narrador, aquele que 2016, completou-se 100 anos de sua morte. A história humana representa, por- leva como presente a própria his- Em alusão a data, o sitio do Instituto Huma- tanto, a possibilidade de realizar tória. Dessa forma, por intermédio nitas Unisinos – IHU, publicou uma série de textos. Entre eles Charles de Foucauld, um essa condição originária no curso da hospitalidade dada e recebida, ser humano em busca de Deus. 1º centená- de toda uma existência, individual as narrativas entrecruzam-se, mis- rio de sua morte, publicado nas Notícias do ou coletiva, ou, ao contrário, o seu turam-se, e geram-se novas histó- Dia de 30-11-2016, disponível em http:// fracasso. bit.ly/2hQMUU4; Charles de Foucauld, ir- rias que acabam incluindo partes mão universal, publicado nas Notícias do de outras narrativas. A hospitali- Dia de 01-12-2016, disponível em http:// IHU On-Line – Como surge e dade nos ensina a perder, inclusi- bit.ly/2hLJMvu; e O marabuto Charles de Foucauld, publicado nas Notícias do Dia qual o papel da hospitalidade no ve sob o ponto de vista religioso, a de 01-12-2016, disponível em http://bit. diálogo ecumênico? autorreferencialidade. ly/2hibA6V. (Nota da IHU On-Line)

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o nascimento do Cristo até, mais sob certo ponto de vista, é a for- -norte-ocidental lhes tomou, em tarde, a fuga para o Egito? ma mais exitosa de hospitalidade, tempos e formas diversas. Lastima- pois exige que ambos sejam, ao velmente, a crise de hospitalidade Placido Sgroi – O próprio Deus mesmo tempo, hospedados e hos- mostra o lado frágil da nossa civili- se faz hospedar pela humanidade pedeiros. Certamente esse é ainda zação e corre o risco de ser um si- e experimenta esta hospitalidade e sempre um ideal, não a condição da forma mais radical e precária nal de perigosa esterilidade antro- originária da humanidade, muito possível. Na realidade é um hós- pológica e cultural, antes mesmo mais o sonho de Deus para os seres pede recusado, na Natividade, e que ética. humanos. um emigrado que encontra salva- ção longe de seu país, com a fuga Aliás, Gênesis 3 nos ensina como IHU On-Line – Deseja acrescen- para o Egito. Um símbolo fácil até a determinação de gênero, a di- tar algo? demais de relacionar com nossos visão dos papéis, a submissão da Placido Sgroi – Gostaria de apos- tempos tão inquietos. mulher ao homem, pertencem con- tar, esperando não incorrer em al- cretamente à história da humani- gum tipo de mitificação, em uma dade, mas não constituem nem um IHU On-Line – Em que medida a esperança na sociedade brasileira, destino marcado, nem o projeto de ideia de hospitalidade pode ins- que conheço apenas superficial- Deus para o ser humano. Num certo pirar reflexões teológicas sobre mente. Evidentemente o Brasil é sentido o paraíso terrestre é aquilo gênero? uma realidade repleta de contradi- pelo qual vale a pena lutar, muito ções, mas também é um grande ex- Placido Sgroi – Com muito esfor- mais que uma condição a ser vista perimento de hospitalidade; algu- ço estamos elaborando uma antro- com saudosismo. pologia do gênero, ainda mais uma mas vezes, como para os africanos teologia aberta ao “gênero”, que transladados à força para o outro IHU On-Line – Quais os desafios aqui na Europa, ao menos em al- lado do oceano, tratou-se de uma para se praticar a hospitalidade guns círculos, é vista como a causa hospitalidade forçada, que coinci- hoje no mundo? de uma dissolução ainda maior dos diu com uma pesada exploração. horizontes morais da nossa socie- Placido Sgroi – Para nós europeus, Mas o mundo brasileiro, como o dade. Do ponto de vista teológi- simplesmente, praticá-la; isso sig- vejo do Ocidente, continua a ma- co, porém, continua emblemática nifica reconhecer o débito que te- nifestar a capacidade de incluir e 52 a dupla narrativa do Gênesis que mos em relação aos povos do Sul de se deixar contaminar por toda nos fala da reciprocidade da rela- do mundo que batem à nossa por- inclusão. Uma lição para nós euro- ção homem-mulher, sem a qual o ta e para os quais, acolhendo-os, peus que temos tanta dificuldade próprio ser humano não poder ser nada mais fazemos do que restituir apenas para nos incluir reciproca- representado. A reciprocidade, aquilo que a nossa civilização euro- mente.

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Hóspede, aquele que acolhe e é acolhido Acolher é humanizar as relações entre as comunidades, pontua Claudio Monge. “Lógica do terror” se converteu em estratégia política que não percebe a singularidade irrepetível das pessoas, reduzidas a um estereótipo

Por João Vitor dos Santos | Edição: Márcia Junges | Tradução: Ramiro Mincato

em reconhecer a alteridade não comunidade e responsável pelo Centro há diálogo, nem a própria sin- Dominicano para o Diálogo Inter-religioso Sgularidade. Esse é um motivo a e Cultural – DOST-I no diálogo-encontro mais para que se pratique a acolhida, “lá com a tradição muçulmana. onde o mercado ainda não se apropriou O encontro com um turco hospitaleiro da hospitalidade, arrancando-a da gra- o levou a aprofundar a experiência exis- tuidade e forçando-a a entrar na lógica tencial e teológica da hospitalidade, des- comercial”, menciona o frade domini- de contextos culturais e religiosos mais cano Claudio Monge na entrevista con- diversos. O foco central é a experiência cedida por e-mail à IHU On-Line. “Nós abraâmica, que na acolhida dos seus hós- existimos e a humanidade existe porque pedes misteriosos extrapola a “memória originalmente cada um de nós foi, pri- cultural” da theoxenia e adentra o espa- 53 meiramente, hospedado, acolhido. ‘Mãe’ ço de uma autêntica teofania no serviço é o nome da hospitalidade ativa, da hos- ao outro. Entre seus livros publicados, pitalidade primordial”, afirma o italiano destacamos Taizé. L’espérance indivise radicado na Turquia. Vivendo no Oriente, (Paris: Les Éditions du Cerf, 2015). Outras “descobri uma hospitalidade que é ARTE: obras importantes são Stranierità, noma­ uma atitude de atenção que não faz ex- dismo dell’anima (Milano: Sacra Doctri- ceção com ninguém, mas que é também na, 2015), Stranieri con Dio. L’ospitalità capacidade de tomar e dar o tempo”, fri- nelle tradizioni dei tre monoteismi abra­ sa o teólogo. mitici (Milano: Terra Santa, 2013) e Dieu Claudio Monge é teólogo italiano. Fra- hôte. Recherche historique et théologi­ de da Ordem dos Pregadores, desde 1997 que sur les rituels de l’hospitalité (Bu- vive sua experiência teológica e pastoral charest: Zetabooks, 2008). em Istambul, Turquia, como Superior da Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma a trada na visão da Igreja como uma congregação 2012, intitulada Concílio Vaticano II. 50 anos perspectiva teológica da hospi- de fé, substituindo a concepção hierárquica do depois, disponível em http://bit.ly/REokjn, e talidade pode contribuir para a Concílio anterior, que declarara a infalibilidade a edição 425, de 01-07-2013, intitulada O Con- papal. As transformações que introduziu foram cílio Vaticano II como evento dialógico. Um compreensão das dimensões hu- no sentido da democratização dos ritos, como olhar a partir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo, manas nas relações entre países? a missa rezada em vernáculo, aproximando a disponível em http://bit.ly/1cUUZfC. Em 2015, Igreja dos fiéis dos diferentes países. Este Con- o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promo- Claudio Monge – A Constituição cílio encontrou resistência dos setores conser- veu o colóquio O Concílio Vaticano II: 50 vadores da Igreja, defensores da hierarquia e do anos depois. A Igreja no contexto das 1 Dogmática do Concílio Vaticano II dogma estrito, e seus frutos foram, aos poucos, transformações tecnocientíficas e - so esvaziados, retornando a Igreja à estrutura rí- cioculturais da contemporaneidade. As 1 Concílio Vaticano II: convocado no dia gida preconizada pelo Concílio Vaticano I. O repercussões do evento podem ser conferidas 11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorreram Instituto Humanitas Unisinos – IHU produziu na IHU On-Line, edição 466, de 01-06-2015, quatro sessões, uma em cada ano. Seu encerra- a edição 297, Karl Rahner e a ruptura do Va- disponível em http://bit.ly/1IfYpJ2 e também mento deu-se a 8-12-1965, pelo Papa Paulo VI. ticano II, de 15-6-2009, disponível em http:// em Notícias do Dia no sítio IHU. (Nota da A revisão proposta por este Concílio estava cen- bit.ly/o2e8cX, bem como a edição 401, de 3-9- IHU On-Line)

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Gaudium et Spes2, talvez mais do humano, evitando reduzi-lo a “re- consciência de quem somos re- que qualquer outro documento do fém”... O dever de hospitalidade almente. Saber quem somos e de Concílio, foi capaz de expressar é um dever não só individual, mas onde viemos (numa palavra: cul- programaticamente uma intuição também político. Numa época em tivar nossa identidade originária) simples e revolucionária ao mes- que o multiculturalismo e o pro- são condições essenciais da hospi- mo tempo, que pode ser resumida cesso de hibridação das civilizações talidade. Mas não são suficientes: assim: a Igreja está a serviço do são vistos como um dos fenômenos é preciso aprender a “conhecer” Reino, quando aprende a “estar sociais mais rápidos e mais exten- o outro, para dialogar (eliminando no mundo”. Ela define-se no servi- sos, a mensagem de certas políticas os preconceitos oriundos de boatos ço ao ser humano, afirma que não nacionalistas emergentes significa e compreensões estereotipadas) há nada verdadeiramente humano uma recusa da contaminação, vi- e, num segundo momento, a “re­ que não encontre eco em seu cora- vida não apenas como enfraqueci- -conhecê-lo”. Mas isso só é possível ção. Isto representa o nascimento mento cultural, mas também como quando se começa a levar a sério de um novo humanismo, em que o atentado aos interesses legítimos. a existência do outro na sua “dife- homem, em primeiro lugar, define- Neste âmbito, as religiões são mui- rença irredutível” (no sentido ob- -se por sua responsabilidade peran- tas vezes usadas – a serviço da ide- jetivo de uma diferença que deve te seus irmãos e perante a história ologia – para semear contrastes e ser aceita como tal, na sua con- sistência própria, e não simples- (GS, 55). Lá onde o mercado ainda espalhar terror. E isto corresponde mente em referência ao que tem não se apropriou da hospitalida- à derrota da política mesma que, ou não relação a nós): a existência de, arrancando-a da gratuidade ou é inclusiva e, portanto, “progra- dos seus sonhos e aspirações para e forçando-a a entrar na lógica maticamente hospitaleira”, ou trai uma vida digna, a realidade da sua comercial (transformando, conse- sua própria essência, bem expressa vida religiosa, a sinceridade de sua quentemente, o necessitado em na semântica grega filosoficamente declinada por Aristóteles3: expres- sensibilidade espiritual, a legitimi- cliente dos serviços humanitários e dade da sua pretensão à verdade. são da polis (πόλιϚ) como comuni- ajudas, onde ele será acolhido sim- É um longo caminho, e Edmond Ja- dade que se constitui em vista de plesmente de acordo com sua dis- bès4 lembrava que a distância que um bem. ponibilidade econômica), acolher nos separa do estrangeiro é a mes- significa humanizar a humanidade ma que nos separa de nós mesmos. mesma e, portanto, também as re- IHU On-Line – Em que sentido o lações entre as comunidades. fato de assumir a própria identi- 54 IHU On-Line – Em que medi- dade é importante para o proces- Na verdade, o modo de conceber da a experiência do encontro so de reconhecimento da identi- e viver a hospitalidade revela o grau com o outro pode ser transfor- dade do outro? de civilização de um povo, no que madora? E de que ordem é esta diz respeito à dignidade de cada ser Claudio Monge – Não há diálo- transformação? go sem reconhecimento da alte- Claudio Monge – Tendo em vista 2 Gaudium et Spes: Igreja no mundo atual. ridade, mas também da própria as diferenças acima, um encontro Constituição pastoral, a 4ª das Constituições singularidade. Esta é uma razão a do Concílio do Vaticano II. Trata fundamen- que respeite as diferenças significa talmente das relações entre a igreja e o mun- mais para apreciar a importância um encontro onde se aprende a ca- do onde ela está e atua. Trata-se de um docu- da prática da acolhida, que reor- minhar com eles, pois só assim se mento importante, pois significou e marcou ganiza de maneira nova a própria uma virada da Igreja Católica “de dentro” acede ao átrio hospitalidade divina (debruçada sobre si mesma), “para fora” compreensão da identidade indivi- que, ao contrário de hospitalidade (voltando-se para as realidades econômicas, dual. Tudo pode realmente come- humana, não se satisfaz em aceitar políticas e sociais das pessoas no seu con- çar quando somos acolhidos, bem o outro no seu próprio espaço, mas texto). Inicialmente, ela constituía o famoso como quando somos capazes de “esquema 13”, assim chamado por ser esse o se convida a entrar no espaço do lugar que ocupava na lista dos documentos acolher. As declarações, por vezes outro, para ser acolhido por ele (Ap estabelecida em 1964. Sofreu várias redações xenófobas, de políticos, como das 3,20)! Uma primeira constatação, a e muitas emendas, acabando por ser votada pessoas comuns, são sinal da fra- partir destas premissas: a experiên- apenas na quarta e última sessão do Concí- queza identitária. É o medo que lio. O Papa Paulo VI, no dia 7 de dezembro de cia do encontro não implica a ne- 1965, promulgou esta Constituição. Formada faz falar dessa maneira, e não a cessidade imperativa de um acordo. por duas partes, constitui um todo unitário. Sua função é, ao invés, de conduzir A primeira parte é mais doutrinária, e a se- 3 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 a uma maior clareza e abertura no gunda é fundamentalmente pastoral. Sobre a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira. a Gaudium et spes, confira o nº 124 da IHU Suas reflexões filosóficas – por um lado, ori- debate, permitindo igualmente a to- On-Line, de 22-11-2004, sobre os 40 anos ginais; por outro, reformuladoras da tradição da Lumen Gentium, disponível em http:// grega – acabaram por configurar um modo de 4 Edmond Jabès (1912-1991): escritor e bit.ly/9lFZTk, intitulada A igreja: 40 anos de pensar que se estenderia por séculos. Prestou poeta judeu, e uma das figuras literárias mais Lumen Gentium. Leia também: A Gaudium significativas contribuições para o pensa- conhecidas a escrever em francês depois da et Spes 50 anos depois e o Papa Francisco mento humano, destacando-se nos campos Segunda Guerra Mundial. Destacou-se sobre- como o parteiro de uma igreja global. Con- da ética, política, física, metafísica, lógica, tudo pelos seus livros de poesia, normalmen- ferência de Massimo Faggioli publicada nas psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia te publicados em ciclos de vários volumes. A Notícias do Dia, de 21-05-2015, disponí- e história natural. É considerado, por muitos, sua poesia apresenta, variadas vezes, referên- vel em http://bit.ly/1JerEBX. (Nota da IHU o filósofo que mais influenciou o pensamento cias ao misticismo judaico e à cabala. (Nota On-Line) ocidental. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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dos os interlocutores de superar-se, meiro lugar, porque a vida agitada e na eleição – e na defesa das te- de não se fossilizar nas próprias impede ver o rosto das pessoas... ses – de Donald Trump6 nos Esta- certezas, mesmo sem com isso re- dos Unidos. O que este momento nunciar à própria identidade. Aqui IHU On-Line – No que a ideia de nacionalismo extremo revela repousa o caráter transformador de hospitalidade pode inspirar a acerca dos conceitos de hostilida- da hospitalidade, porque só ex- pensar na relação com o mundo de e hospitalidade? perimentando-a se realiza aquela islâmico e na chamada “guerra Claudio Monge – Parece-me que humanidade que exatamente na contra o terrorismo”? o dado mais alarmante dos dois “relação” possui um elemento ca- Claudio Monge – A “lógica do ter- exemplos trazidos, que exibem racterístico. E esta relação se expli- ror”, que tornou-se uma verdadeira semelhanças, mas não podem ser cita não só no acolher, mas também e própria estratégia política, está sobrepostos, é precisamente a no saber-se acolhido, porque o hós- baseada num olhar estereotipado, dimensão do “contra” que conse- pede é ao mesmo tempo aquele que onde o outro não é percebido em acolhe e aquele que é acolhido. Nós guem interceptar. Isso não signifi- sua singularidade irrepetível, mas existimos, e a humanidade existe, ca que sejam simples fenômenos sempre e comumente reduzido ao porque na origem, cada um de nós de “estômago”, inspirados por um mundo do qual nós pensamos que foi, em primeiro lugar, hospedado, instintivo sentimento destrutivo! ele deva provir. Por exemplo, não acolhido. “Mãe” é o nome da hos- Penso que são expressão de uma há nenhuma menção de terroristas grande solidão, são o epifenômeno pitalidade ativa, da hospitalidade concretos, de bandidos identificá- primordial. da explosão total do vínculo social. veis e identificados, mas apenas O povo não é seduzido pelos popu- e sempre de terrorismo islâmico, listas somente quando tem perto IHU On-Line – Quais as diferen- transformando a diversidade de de si alguém que está do seu lado, ças e semelhanças na prática da crentes do Islã num único bloco, e a política não está, atualmente, hospitalidade nas culturas oci- numa real ou potencial ameaça. em condições de demonstrar essa dentais e orientais? Em outras palavras, de acordo com proximidade. Não é por acaso que essa lógica, se você é muçulmano, Claudio Monge – Sem dúvida, homens fortes emergem, um pouco desde minha chegada ao Oriente você será sempre um potencial ter- Médio, tenho experimentado uma rorista, mais do que um crente. As resse e partidos políticos, desde 1973, quan- constante prática de hospitalidade, tentações particularistas que vemos do o Reino Unido ingressou na Comunidade Econômica Europeia, a precursora da UE. que perturba os cânones clássicos um pouco por todos os lados, mais 55 cedo ou mais tarde, geram tendên- A saída da União é um direito dos estados- do gesto, muitas vezes, reduzido, -membros segundo o Tratado da União Euro- por nós, num ato bom de caridade. cias xenófobas e racistas, tendem à peia. Em 2106, a saída foi aprovada por refe- Descobri ali uma hospitalidade que exclusão dos outros, transformam- rendo realizado em junho 2016, no qual 52% dos votos foram a favor de deixar a UE. O Ins- é ARTE: uma atitude de benevolên- -se num autismo sociocultural, onde se vive um ideal regressivo de autoi- tituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção cia que não faz exceção para nin- Notícias do Dia de seu site, vem publican- solamento e onde se assumem lin- guém, mas que também é capaci- do uma série de análises sobre o tema. Entre guagens e formas expressivas rudes elas, A alma da Europa depois do Brexit, ar- dade de tomar e de dar tempo. Na para não dizer vulgares. A proximi- tigo de Roberto Esposito, publicado no jornal verdade, é exatamente a relação dade de Deus é, no entanto, o ver- La Repubblica e reproduzido nas Notícias radicalmente diferente, com rela- do Dia de 1-7-2016, disponível em http:// dadeiro modelo de hospitalidade, ção ao tempo e ao espaço, que dis- bit.ly/2gazMuF; e O Brexit e a globalização, não atestada e realizada na forma artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo, publicado tingue a prática da hospitalidade de uma imposição identitária, nem por CartaCapital e reproduzido nas Notícias nas culturas orientais, em relação do Dia de 12-07-2016, disponível em http:// de um juízo genericamente coleti- aos encontros formais e frequen- bit.ly/2eY4F68. Confira mais textos em ihu. vo, mas no estilo de um relaciona- temente funcionais com necessi- unisinos.br. (Nota da IHU On-Line) mento interpessoal, que implica o 6 Donald John Trump (1946): ex-em- dades específicas que se vivem no encontro de rostos e histórias con- presário, ex-apresentador de reality show Ocidente. A hospitalidade oriental e presidente eleito dos Estados Unidos. Na cretas, num cruzamento de olhares, inclui uma rede muito complexa de eleição de 2016, Trump foi eleito o 45º pre- numa escuta que é a maiêutica da sidente norte-americano pelo Partido Repu- pequenos gestos, às vezes quase ri- verdade. blicano, ao derrotar a candidata democrata tuais (como a pequena taça de chá Hillary Clinton no número de delegados do oferecida cinco, dez vezes por dia, colégio eleitoral; no entanto, perdeu no voto mesmo em contextos que nada têm IHU On-Line – Vivemos num popular. Trump tomará posse em 20 de ja- tempo de retomada radical do neiro de 2017 e, aos 70 anos de idade, será a ver com um bar, ou o fato de ser- nacionalismo, como se vê nos a pessoa mais velha a assumir a presidência. vir refeições pródigas ao hóspede, Entre suas bandeiras estão o protecionismo exemplos do Brexit5 na Inglaterra mas não comer com ele), o legado norte-americano, por onde passam questões econômicas e sociais, como a relação com de uma generosidade quase instin- 5 Brexit: a saída do Reino Unido da União imigrantes nos Estados Unidos. Trump é pre- tiva, mas também uma confiança Europeia é apelidada de Brexit, palavra-vali- sidente do conglomerado The Trump Organi- inata que se repõe no “desconhe- se originada na língua inglesa resultante da zation e fundador da Trump Entertainment cido de passagem”: atitudes das fusão das palavras Britain (Grã-Bretanha) e Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, exit (saída). A saída do Reino Unido da União vida pessoal, riqueza e modo de se pronun- quais, muitas vezes, perderam-se Europeia tem sido um objetivo político perse- ciar contribuíram para torná-lo famoso. os vestígios no Ocidente, em pri- guido por vários indivíduos, grupos de inte- (Nota da IHU On-Line)

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por todos os lados, expressando a a partir da condição do “estrangei- Regra dos Frades Pregadores7 (do- antipolítica. Esta nutre-se de ódio ro”. Esta última não é simplesmen- minicanos), ordem a que eu per- e de hostilidade, enquanto a hospi- te referência à dimensão escatoló- tenço. Meus irmãos chegaram à talidade é a capacidade de pôr-se gica da vida, mas um convite claro Turquia, na então Constantinopla, ativamente na posição de acolher para viver de modo diferente neste desde o início do século XIII. Muitas e servir as necessidades do outro, mundo. Como crentes, sabemos e variadas são as nuances de uma antes de qualquer juízo dele/dela. que devemos nos desapegar pro- abordagem missionária, que desafia gressivamente deste mundo, ex- Enquanto pensar numa ética como os séculos e que se encarna em rea- pressão da tensão em direção a um hospitalidade significa entrar pro- lidades totalmente diferentes como Reino que não é daqui. Há, porém, fundamente na identidade do outro o Império Bizantino, em vez do Oto- uma opção, não menos profunda, a fim de compreender e explorar to- mano. Hoje, completamente liber- representada pela escolha de viver das as suas características mais pro- to dos “protetorados” políticos e neste mundo, seguindo uma lógica, fundas, a lógica populista usa o ódio econômicos que há séculos nos per- não de apropriação, mas de “desa- como um motor, incitando, se ne- mitiam agir e penetrar, em vastos propriação”, isto é, de gratuidade. cessário, até mesmo os sentimentos territórios, com relativa facilidade, mais sinistros do povo, para servir-se Em outras palavras, a pessoa pre- podemos finalmente dizer que co- disso como eficaz cobertura de in- cisa ser capaz de compreender-se meçamos a via kenótica, que não teresses particulares, apresentados como estrangeira e peregrina, para foi somente a lei da encarnação, como projeto universal. E pensar poder encontrar o diferente de nós, mas deve continuar a ser também que um novo presidente dos Estados na inteireza e complexidade da ou- aquela da “inculturação” (como Unidos possa cercar-se de um time tra pessoa, sem reduzi-la aos pro- deveriam ser as políticas sociais de sócios de negócios para fazer blemas que sua presença traz. Mas num mundo em movimento). Isto sua equipe de governo é sujo, assim também, estrangeiros e peregrinos significa, entre outras coisas, que como a desavergonhada tentativa da para deixar-se acolher, entrando, na a missão real não é a restauração Inglaterra, de derrogar suas obriga- ponta dos pés, no espaço que o outro de uma ordem perdida! Ser missio- ções comunitárias com o Brexit, pro- gostaria de nos abrir e oferecer. Mas nários da radicalidade do anúncio curando, contudo, manter mais ou o que significa, para nós hoje, recu- cristão não significa ser os paladinos menos inalterados seus direitos de sar o conceito de “estrangeiridade” de uma ordem moral intangível, ou antigo membro da União. no coração da aventura humana? A nostálgicos restauradores de uma 56 possibilidade de uma sociedade sem hegemonia política e econômica, IHU On-Line – O senhor vive a estrangeiros, sem “estranhos” foi coberta com uma pátina cultural, experiência de ser estrangeiro sonhada no horizonte da religião e mas significa testemunhar um abso- num país imerso em conflitos, a da moral, e se apresenta novamen- luto que não é de ordem humana, Turquia. O que esta experiência te hoje num contexto de integração mas divina. Absoluto que ainda hoje lhe revela acerca da hospitalida- econômica e política planetária. De- pode expressar-se na abundância, de e do encontro com o outro? vemos nos perguntar se hoje pode- de fato incompreensível, do gesto mos sonhar de viver com os outros hospitaleiro que atravessa as cultu- Claudio Monge – Creio que a si- sem ostracismos, mas também sem ras e os séculos. tuação, frequentemente descon- anular todas as diferenças! Trata-se fortável, de viver como estran- de entender se a identidade cultural 7 Ordem dos Pregadores■ (latim: Ordo geiro num país que parece, aliás, pode aceitar a parte da alteridade Prædicatorum, O. P.), também conhecida esquecer sua história multicultural que faz da diversidade uma riqueza, por Ordem dos Dominicanos ou Ordem e religiosa, orientando-se para um Dominicana: ordem religiosa católica que e não uma ameaça. tem como objetivo a pregação da palavra e nacionalismo fortemente identi- mensagem de Jesus Cristo e a conversão ao tário e, às vezes, xenófobo, seja, cristianismo. Foi criada em Toulouse, Fran- IHU On-Line – Gostaria de acres- em alguns aspectos, a nova edição ça, em 22-12-1216 por São Domingos de Gus- centar algo? do desafio permanente, compar- mão, sacerdote castelhano (atual Espanha), o qual era originário de Caleruega, e confir- tilhado por milhões de homens e Claudio Monge – Vamos celebrar mada pelo Papa Honório III. (Nota da IHU mulheres, de criar um pensamento o 800º aniversário da aprovação da On-Line)

LEIA MAIS —— Um Ocidente anestesiado na sua capacidade de hospitalidade. Entrevista especial com Claudio Monge publicada nas Notícias do Dia de 7-2-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2hZ0RCA. —— Papa Francisco na Turquia, o abraço com Bartolomeu e a sombra da Erdogan. Entrevista com Claudio Monge publicada nas Notícias do Dia de 28-11-2014, no sítio do Instituto Hu- manitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2hQxq29.

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O sagrado dever da hospitalidade

Por Faustino Teixeira

hospitalidade não traduz apenas a maravilha do encontro com o outro, mas também a agonia de estar diante de um ‘estranho’ que “A bate à nossa porta”, escreve Faustino Teixeira em artigo exclusivo à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, “abraçar a hospitalidade ganha um signifi- cado muito especial nos tempos atuais, envolvendo também o desafio de habitar a Terra com sentido, acolhendo a “textura do mundo da vida”. Faustino Teixeira é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – PPCIR-UFJF, pesquisador do CNPq e consultor do ISER-Assessoria. É pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Entre suas publicações, encontram-se Teologia e plu- ralismo religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012); Catolicismo plural: dinâmicas contemporâneas (Petrópolis: Vozes, 2009); Ecumenismo e diálo- go inter-religioso (Aparecida do Norte: Santuário, 2008); Nas teias da delicadeza: Itinerários místicos (São Paulo: Paulinas, 2006); No limiar do mistério. Mística e religião (São Paulo: Paulinas, 2004); e Os caminhos da mística (São Paulo: Pauli- nas, 2012). Publicou, em coautoria com Renata Menezes, Religiões em Movimen- to. O Censo de 2010 (Petrópolis: Vozes, 2013). Confira o artigo. 57

A hospitalidade envolve uma “dádiva de si”, tendo certa distância. O caminho é tortuoso, e exige escuta uma grande familiaridade com a abertura ao outro e e paciência. Há que buscar por todos os meios quebrar ao diálogo. No campo das religiões, a hospitalidade as amarras da violência que estão implícitas em toda ganha um significado essencial. A acolhida ocorre no dinâmica da hospitalidade. É um mundo novo que se “solo sagrado” do outro, implicando um gesto magní- anuncia, exigindo delicadeza e cuidado. Daí ser o di- fico, que coloca o sujeito diante de um risco preciso, álogo uma frágil “zona de passagem”, de “aventura, que revolve toda a sua autocompreensão. A hospitali- espanto e inquietação”2. dade não traduz apenas a maravilha do encontro com O diálogo é uma “cartografia inacabada”, que vai se o outro, mas também a agonia de estar diante de um tecendo com as linhas da humildade e generosidade. “estranho” que bate à nossa porta. Há uma dimen- Os interlocutores são convidados a alçarem o olhar, são de tensão ou mesmo altercação na relação que se vislumbrarem novos patamares de significado, refleti- estabelece. O desafio já começa na soleira da porta, rem sob nova luz. Aí pode então ocorrer o milagre de “naquela porta à qual se bate e que vai abrir um ros- um encontro, que preserva simultaneamente o autor- to desconhecido, estranho. Limite entre dois mundos, respeito genuíno e a autoexposição ao outro. No cerne entre o exterior e o interior, o dentro e o fora, a so- do diálogo está uma acolhida, está a presença de um leira é a etapa decisiva semelhante a uma iniciação”1. rosto que convida, de um olhar que indaga e provoca O caminho que se abre pode ser o diálogo, que co- o mover dos lábios. meça a ocorrer quando a recepção se dá de forma São inúmeros e exemplares os casos de exercício sutil, delicada, cuidadosa e amorosa. Há que bater dialogal, de realização de uma hospitalidade sagrada, “devagar” na porta do outro, sem muito ruído, de for- como a de buscadores que se inserem nas inúmeras ma a favorecer um intercâmbio vital. Entrar no novo tradições espirituais. Nos diversos itinerários, circuito envolve “renunciar a se impor”, mantendo o diálogo encarna a virtude maior entre delicadamente o direito à diferença, a preservação de as culturas: a hospitalidade. Pois é pre-

1 Alain Montandon. Espelhos da hospitalidade (prefácio). In: ____. 2 Marco Lucchesi. Guerras de religião? O Globo. 03/12/2014. (Nota Ed. O livro da hospitalidade. São Paulo: Senac, 2011, p. 32. do autor)

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ciso abrir as portas da casa, oferecer ao Experiência comunitária hóspede o quarto mais arejado e lumi- noso. O diálogo nasce entre dois rostos, Há também o exemplo precioso de Christian de Cher- entre duas casas, entre duas tradições. E gé9 (1937-1996), o monge-mártir de Tibhirine (Argélia). No contribui para uma cultura da paz (...)3. compromisso assumido pela comunidade trapista com os irmãos muçulmanos da região algo de maravilhoso aconte- O diálogo comporta algo mais que uma interlocu- ceu, como passo de gratuidade e hospitalidade. Os laços ção humana, vai além, e traduz um “ato religioso”, comunitários que se estabeleceram naquela difícil região na medida em que evoca um Mistério maior. Indica o foram tratados de forma singela no filme de Xavier Beau- traço contingente que habita em qualquer experiên- vois10, Homens e deuses11 (2010), num envolvimento amo- cia religiosa particular. Suscita indagação, abertura roso, de compromisso e entrega excepcionais. Para Chergé, permanente, ou como mostra Gadamer4, expansão da a dinâmica de hospitalidade era o horizonte da experiência individualidade. O que se busca, intensivamente, é a comunitária, algo central para ele. Dizia não haver fron- teiras de tempo ou espaço para o exercício do amor e da verdade que habita na dinâmica mesma da sinfonia do misericórdia. Uma acolhida marcada pela pura gratuidade, 5 encontro. Disse a respeito Montaigne : “Eu festejo e como um dom que não implica reciprocidade. Ele dizia que acaricio a verdade em qualquer lugar que a encontrar, essa acolhida brota límpida do coração do evangelho, daí o e para lá me dirijo alegremente, e lhe estendo minhas desafio de “aprender a exercê-la sem exigir reciprocidade, armas vencidas, de longe, assim que a vejo se aproxi- em nome Daquele que veio a nós gratuitamente”12. mar (...)”6. Os exemplos de dedicação à hospitalidade falam muito mais forte que as teorias a respeito, não há dúvida sobre São ricos os exemplos de buscadores que viveram isso. Nesse percurso de dedicação à alteridade pode ain- 7 intensamente a prática da hospitalidade . No âmbito da ser lembrado o nome de Serge de Beaurecueil13 (1917- do cristianismo, e em particular no diálogo com o islã, 2005). Foi um frade dominicano que dedicou sua vida a aparecem figuras notáveis como Louis Massignon8 (1883- essa aventura de amor aos amigos muçulmanos. Na trilha 1962), que abraçou com vigor esse tema, fazendo dele de outros buscadores, pôde perceber que há sempre a a ária de sua vida. Para ele, a hospitalidade envolvia 9 Charles-Marie Christian de Chergé (1937-1996): monge cister- uma saída de si mesmo, uma “expatriação interior” ciense francês. Prior da Abadia de Nossa Senhora do Atlas, em Tibhi- para poder assumir o outro com alegria e gratuidade. rine, na Argélia, foi raptado, juntamente com mais seis monges, na 58 noite de 26 para 27 de Março de 1996, por um grupo de 20 homens do Entendia que o verdadeiro encontro com o outro não Grupo Islâmico Armado Levaram sete monges prisioneiros, incluindo acontece mediante o caminho de sua anexação, mas o Irmão Bruno, um visitante de Fès, em Marrocos. Dois monges não foram localizados pelos captores. Uma mensagem do GIA anunciou no deixar-se hospedar por ele. O caminho indicado é o que os sete monges tinham sido decapitados em 21 de Maio de 1996. do coração, que é o lugar privilegiado de acesso ao “se- No sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção Notícias do Dia, há diversos textos sobre o monge. Entre entre ‘Cartas a um gredo divino”. Hospitalidade, Misericórdia e Compaixão amigo fraterno’’, de Christian de Chergé, publicado nas Notícias do são palavras que se irmanam. Assumir a hospitalidade é Dia de 21-1-2015, disponível em http://bit.ly/2gSazS7; As meditações sobre o Cântico dos Cânticos de Christian de Chergé, publicado nas deixar-se tomar pelo apelo solene dos Abdâl, ou seja, Notícias do Dia de 22-4-2016, disponível em http://bit.ly/2hzN4RK ; daqueles que foram escolhidos por Deus para sanar as e ‘’Christian de Chergé habitava o mistério do Islã a partir de dentro’’, publicado nas Notícias do Dia de 17-1-2015, disponível em http://bit. feridas do mundo mediante o dom de si. Foi desta pa- ly/2i6pxVS (Nota da IHU On-Line) lavra, Abdâl – plural de badal –, que Massignon tirou a 10 Xavier Beauvois (1967): ator, diretor e escritor francês. Uma de suas produções é Homens e deuses, exibida como parte da programa- inspiração para a sua experiência espiritual mais forte, ção do evento Fé no cinema, na Páscoa de 2012 no Instituto Huma- a Badaliya, um mosteiro espiritual, uma comunidade de nitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU On-Line) 11 Homens e deuses: Des hommes et des dieux, filme francês de pessoas dedicadas ao caminho da oferta ao islã. 2010, de gênero dramático, dirigido pelo cineasta Xavier Beauvois, exibido como parte da programação do evento Fé no cinema, na 3 Ibidem. (Nota do autor) Páscoa de 2012. Sobre esse filme, confira a entrevista concedida pelo 4 Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, autor deVerdade e méto- monge trapista Xavier Beauvois à edição 387 da IHU On-Line, de 26- do (Petrópolis: Vozes, 1997), faleceu no dia 13-03-2002, aos 102 anos. 03-2012, intitulada A Igreja feita de homens e de deuses, disponível Por essa razão, dedicamos a ele a matéria de capa da IHU On-Line em http://bit.ly/1A30RlK. O sítio do Instituto Humanitas Unisinos – número 9, de 18-3-2002, Nosso adeus a Hans-Georg Gadamer, dis- IHU, também vem publicando uma série de textos e análises sobre o ponível em http://migre.me/DtiK. (Nota da IHU On-Line) filme. Entre eles Homens e Deuses. Um testemunho cristão. Artigo 5 Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592): escritor e ensaísta de Gabriel Vecchi, monge trapista, publicado nas Notícias do Dia de francês, considerado por muitos o inventor do ensaio pessoal. Nas suas 24-10-2012, disponível em http://bit.ly/2gS7GAR; e “Homens e Deu- obras e, mais especificamente nos seus “Ensaios”, analisou as institui- ses” narra massacre de monges na Argélia, publicado nas Notícias ções, as opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os dogmas da do Dia de 22-5-2011, disponível em http://bit.ly/2h1MFac. (Nota da sua época e tomando a generalidade da humanidade como objeto de IHU On-Line) estudo. (Nota da IHU On-Line) 12 Christian de Chergé. L´invencible esperance. Paris: Bayard, 2010, 6 Apud Magali Bessone. Do eu ao nós. In. Alain Montandon (Ed.). O p. 206. (Nota do autor) livro da hospitalidade, p. 1270. (Nota do autor) 13 Serge de Beaurecueil (1917-2005): um dos membros fundadores 7 Ver: Faustino Teixeira. Buscadores cristãos no diálogo com o islã. do Instituto Dominicano de Estudos Orientais (IDEO), no Cairo. Co- São Paulo: Paulus, 2014. (Nota do autor) meçou suas pesquisas em mística muçulmana. Em 1963 assumiu uma 8 Louis Massignon (1883-1962): escritor e católico francês perito no cátedra de história da mística muçulmana na Universidade de Cabul. Islã. (Nota do IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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presença de um outro a desvelar facetas inéditas do Mis- mundo da vida”. Não há mais dois mundos antagônicos, tério sempre maior. Foi assim que, partindo de uma gran- em que sociedade e natureza estão divididos, mas uma de devoção à mística sufi, encontrou o caminho do servi- única malha tecida por trilhas diferenciadas, mas sempre ço junto aos meninos de Cabul, no Afeganistão. Dizia que relacionadas. Supera-se a dicotomia entre o organismo no momento derradeiro, a pergunta essencial vai incidir (aqui) e o ambiente (lá), e o ser humano se dá conta, fi- não sobre a religião abraçada, mas sobre o movimento de nalmente, que é parte do vivente e não mais o umbigo do “partilha do pão e do sal”. Um passo essencial para a sua mundo. O habitar a Terra ganha assim um significado novo conversão espiritual ocorreu numa situação cotidiana, de e alvissareiro, e o ser humano vem inserido “no interior da convivência com um dos meninos da região, Ghaffâr, que continuidade do mundo da vida”15. favoreceu sua ampliação olhar. Num certo dia, o garoto dis- se: “Você aceitaria que eu fizesse uma refeição em sua casa Espiritualidade ecológica e depois viesse lanchar na minha? Poderíamos assim parti- lhar o pão e o sal, o que sela entre nós a amizade, a união O Papa Francisco se deu conta desse desafio inaugural dos destinos”. Esse menino morreria pouco tempo depois, em sua carta encíclica Laudato si’, sobre o cuidado da num acidente automobilístico. O gesto acenado pelo garoto casa comum16. Parte da ideia essencial de que todos os ganhou um significado sacramental para o dominicano, com seres humanos são terra, e que os elementos de seu corpo notáveis irradiações. Num de seus livros, dirá: são constituídos pelos “elementos do planeta” (LS 2). Na Ghaffâr, sem dúvida alguma, favoreceu- pauta de sua reflexão, o desafio de uma “nova solidarie- -me a chave de compreensão. Estava dade universal”, que parte da consciência de que tudo na aqui para partilhar a vida dos afegãos Terra está interligado, e que todos os seres criados pre- na banalidade de seus acontecimentos cotidianos, e simplesmente partilhar o cisam uns dos outros. Novos laços são tecidos, unindo a alimento... Uma tal partilha ligou meu humanidade com a animalidade, com a vegetalidade e a destino ao deles, selando o direito de mineralidade, numa consciência comum da dignidade de intercessão – tão caro a Louis Massignon cada criatura. Indica a urgência de uma “espiritualidade – consagrando um traço de união entre Cristo e eles, instrumento silencioso da ecológica”, uma “conversão ecológica” (LS 216 e 217) graça14. voltadas para o exercício comum de recuperação de uma harmonia serena com a criação. O Universo inteiro está A hospitalidade firma-se, assim, como algo precioso, animado pela dinâmica espiritual: “Há um mistério a con- com valor sagrado, que estabelece laços entre aqueles templar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no que buscam crescer na experiência do Mistério e da busca rosto do pobre” (LS 233). do sentido. Hoje, porém, surge um desafio novo, que é en- 59 tender as teias largas da hospitalidade, que não se reduz A hospitalidade ganha assim uma tessitura nova e exi- à acolhida dos outros humanos, mas que rasga o conceito gente, que sem desconsiderar os passos da acolhida ao tradicional de “nós”, de forma a abrigar todos os seres da outro humano, distinto, vem agora enriquecida com uma criação, no respeito essencial aos seus direitos caracterís- dimensão novidadeira, que delineia os passos essenciais ticos. Abraçar a hospitalidade ganha um significado muito do significado mais profundo do habitar espiritualmente especial nos tempos atuais, envolvendo também o desafio a Terra. de habitar a Terra com sentido, acolhendo a “textura do 15 Tim Ingold.■ Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 26. (Nota do autor) 14 Serge de Beaurecueil. Me enfants de Kaboul. Paris: Cerf, 2004, p. 16 Papa Francisco. Laudato si’. Sobre o cuidado da casa comum. São 65. (Nota do autor) Paulo: Paulinas, 2015. (Nota do autor)

LEIA MAIS —— Encontro de Assis: uma “viagem fraterna” rumo a um horizonte maior. Entrevista especial com Faustino Teixeira, publicada nas Notícias do Dia de 27-11-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2gVNfE4. —— Deus não tem religião. Artigo de Faustino Teixeira. Publicado nas Notícias do Dia de 4-4- 2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/29OJxLN. —— Fora da Misericórdia não há salvação. Entrevista especial com Faustino Teixeira. Publicado nas Notícias do Dia de 26-6-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2gVD6ax. —— Assis, um acontecimento do Espírito. Entrevista especial com Faustino Teixeira. Publicada nas Notícias do Dia de 19-9-2016, no sírio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2hoFAl4.

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O inimigo e o ladrão na figura do estrangeiro Gustavo de Lima Pereira acredita que hoje se está vivendo “um momento mundial de emparedamento à extrema direita”. A consequência é que o outro passa a ser visto como ameaça e agente desestabilizador

Por Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos

ospedar o outro consiste, de cer- “Outro fator de visível vinculação para a ta forma, em acolher o diferente demonização do estrangeiro em sede in- Ha mim. Entretanto, como desta- ternacional concentra-se na ‘caça ao ter- ca o professor da PUCRS Gustavo de Lima rorismo’”, aponta. Pereira explica que “o Pereira, o tempo que se vive faz com que discurso estadunidense posterior ao 11 de tomemos esse outro, o estrangeiro a mim, setembro fora sempre um discurso de que como um agente desestabilizador. E isso se esse tipo de acontecimento ‘não deveria dá, muito especialmente, com aquele que acontecer aqui’, quando a postura, quem migra de lugares em condições mais precá- sabe mais justa, talvez fosse a de que tal rias. Assim, constituo sobre ele a figura de episódio ‘não deveria acontecer em lugar um inimigo e ladrão que visa tomar posse nenhum’”, analisa. do meu espaço, esgueirando-se de forma Gustavo de Lima Pereira é doutor em que eu não consiga vê-lo. “Não há nada Filosofia pela Pontifícia Universidade Cató- 60 mais potente na luta contra o inimigo do lica do Rio Grande do Sul – PUCRS, gradu- que torná-lo invisível. Uma invisibilidade ado em Direito e especialista em Ciências sem limites. Para se atingir esse patamar Penais também pela PUCRS. É, ainda, mes- de invisibilidade, é preciso elastecer a ca- tre em Direito Público pela Universidade do tegoria de inimigo”, completa. Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Atualmen- Na entrevista a seguir, concedida por te, é professor de Direito Internacional e e-mail à IHU On-Line, Pereira identifica Filosofia do Direito na PUCRS e advogado do dois fatores como problemas de acolhimen- Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refu- to aos migrantes, essencialmente a partir giados – Gaire, vinculado ao Serviço de As- da experiência da Europa e dos Estados sessoria Jurídica Universitária da Universi- Unidos. “O primeiro deles é a crise eco- dade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. nômica. Em momento de crise econômica, Entre suas publicações, destacamos Direi­ o estrangeiro é tido como um ‘ladrão de tos humanos & hospitalidade: a proteção internacional para apátridas e refugiados empregos’. Em um cenário de crise, legiti- (São Paulo: Atlas, 2014) e A pátria dos sem mam-se maiores apropriações de discursos pátria: direitos humanos & alteridade (Por- de ódio”, explica. O professor ainda lem- to Alegre: Editora UniRitter, 2011). bra que isso já pode ser mensurado tam- bém no Brasil, com haitianos e senegaleses. Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consiste Gustavo de Lima Pereira – A hos- estaria relegada ao campo do Di- a hospitalidade incondicional de pitalidade regrada, ou condicional, reito. Foi a hospitalidade pensada Derrida1? por Kant2, em sua clássica obra A Paulo: Perspectiva, 1973), A farmácia de 1 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo Platão (São Paulo: Iluminuras, 1994), O ani- 2 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo francês, criador do método chamado des- mal que logo sou (São Paulo: UNESP, 2002), prussiano, considerado como o último grande construção. Seu trabalho é associado, com Papel-máquina (São Paulo: Estação Liber- filósofo dos princípios da era moderna, repre- frequência, ao pós-estruturalismo e ao pós- dade, 2004) e Força de lei (São Paulo: WMF sentante do Iluminismo. Kant teve um grande -modernismo. Entre as principais influências Martins Fontes, 2007). Dedicamos a Derrida impacto no romantismo alemão e nas filoso- de Derrida encontram-se Sigmund Freud a editoria Memória da IHU On-Line nº 119, fias idealistas do século XIX, as quais se tor- e Martin Heidegger. Entre sua extensa pro- de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ naram um ponto de partida para Hegel. Kant dução, figuram os livros Gramatologia (São ihuon119. (Nota da IHU On-Line) estabeleceu uma distinção entre os fenômenos

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é visto quando se espera por ele, porque a hora da sua vinda está prevista e pode até aguardá-lo à janela para vê-lo vir. A hospitalidade incondicio- Já a relação sem relação com o visitante é do tipo vertical: o vi- nal, ou justa, chega de surpre- sitante “cai sobre o hospedeiro”, sa para romper com a hospita- meteoricamente, interrompendo e estilhaçando o curso do esperado lidade condicional do Direito no cotidiano e do conjunto prévio de possibilidades pré-imaginárias. Na impossibilidade de antecipação paz perpétua3. Em Derrida, a hos- a hospitalidade “de convite” e a de sua vinda, o outro fende o ho- pitalidade transcende para além hospitalidade “de visitação” para rizonte enxertando-lhe com uma do Direito. Ela nos remete à figura estabelecermos mais detidamente verticalidade dissimétrica e irredu- do “estrangeiro”. A hospitalidade a diferença entre a hospitalidade tível a qualquer configuração espa- incondicional, ou justa, chega de incondicional (ou justa) e a hos- cial concebida pela racionalidade surpresa para romper com a hos- pitalidade condicional (ou condi- de quem acolhe. pitalidade condicional do Direito, cionada ao direito), proposta pelo por, como aqui pretendo sustentar, pensamento de Derrida. saber lidar com a aporia de não O tempo do convidado e Com respeito a esse acolhimen- poder ser destinada somente ao o tempo do visitante to ou hospitalidade incondicional, estrangeiro, no sentido da sobera- Derrida estabelece justamente a nia jurídica entre territórios, mas O tempo como convidado é o distinção entre o convite (invita­ sim ao totalmente outro, que não tempo cronológico pensado a par- tion) e a visitação (visitation). En- detém documentos ou até mesmo tir do presente: ele aparece à quanto convite é o dirigido a quem, é impedido de comunicar-se devi- hora marcada (mesmo que chegue de algum modo, já preenche o do à dificuldade idiomática. Enfim, adiantado ou atrasado, mantém rumo da cadeia prévia de expecta- destinada a um novo sentido que ordenado o conjunto prévio de tivas, segundo normas sócio-políti- podemos atribuir à ideia de estran- expectativas). Em contrapartida, co-morais, a visitação rompe com geiro – ao totalmente estrangeiro o tempo do visitante é o tempo 61 conjunto natural da organicidade e não somente o estrangeiro do di- espectral do fantasma: a vinda temporal e surpreende o tempo, reito ou da soberania. do visitante deu-se sempre já em sem notificá-lo antecipadamente. um tempo imemorial e irredutí- vel a qualquer presente-passado IHU On-Line – Quais as seme- A distinção entre ambos não e um porvir absolutamente aber- lhanças e diferenças entre a hos- é do tipo quantitativo, pois não to e eternamente diferido porque pitalidade justa e a hospitalidade se inscrevem gradualmente em igualmente irredutível a qualquer de direito? uma mesma dimensão processual – como se fossem dois momentos presente-futuro. Gustavo de Lima Pereira – Po- distintos da hospitalidade inseridos Por isso, o visitante está sempre deríamos fazer uma analogia entre no campo do possível. Convite e vi- já ao mesmo tempo radicalmente sitação são duas dimensões que se adiantado e radicalmente atrasa- e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto compatibilizam por sua incompa- é, entre o que nos aparece e o que existiria em do. Adiantado porque a sua che- si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo tibilidade. Exatamente demarcam gada é inantecipável e atrasado Kant, ser objeto de conhecimento científico, a estrutura aporética da própria porque, ainda que sua vinda seja como até então pretendera a metafísica clássi- compreensão da hospitalidade. breve e inoportuna, ela nunca che- ca. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas for- Para compreendermos essa pro- ga propriamente. Quando sua che- mas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) blematização aporética, devemos gada inesperada se concilia com a e pelas categorias do entendimento. A IHU acomodação ao tempo do hóspe- On-Line nº 93, de 22-3-2004, dedicou sua ter em mente que a relação de hos- matéria de capa à vida e à obra do pensador pitalidade com o convidado é do de, ele já partiu. Esse é o traço com o título Kant: razão, liberdade e ética, tipo horizontal, ou seja, é, por um aterrorizante da hospitalidade. A disponível para download em http://bit.ly/ lado, uma relação que implica um hospitalidade, portanto, é sempre ihuon93. Também sobre Kant foi publicado catastrófica. Não há festividade o Cadernos IHU em formação número código comum e uma demarcada 2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liber- reciprocidade (ele entra no espaço no pensamento da hospitalidade dade, lógica e ética, que pode ser acessado do próprio vindo de um outro espa- (como alguns a assim entendem). A em http://bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a ço próprio), e que, por outro, im- hospitalidade é sempre o trabalho edição 417 da revista IHU On-Line, de 6-5- do luto de ter que lidar com a fan- 2013, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. plica uma pré-visão – exatamente 4 Imperativos e desafios, disponível em http:// o olhar prévio, inserido num hori- tasmagoria do outro . bit.ly/ihuon417. (Nota da IHU On-Line) zonte antecipativo, que amortece 3 São Paulo: L&PM, 2008. (Nota da IHU 4 O trabalho de luto, podemos observar, mes- On-Line) o impacto da surpresa: o convidado mo que tratando-se de um luto político, como

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O convidado é recebido, como A hospitalidade incondicional Nesse sentido, a soberania do eu se diz popularmente, “na medida como exposição absoluta ao que e a soberania dos Estados obser- do possível”, isto é, o hospedeiro vem é também a exposição impe- vam a chegada do outro como uma despenderá de todos os artifícios riosa ao risco absoluto, já que este ameaça. A crise das migrações for- para saber recebê-lo bem. Já o vi­ recém-chegado pode ser qualquer çadas ao redor do mundo nos reme- sitante exige o impossível porque outro, anunciado única e singular- moram a cada instante dessa difi- exige acolher um excesso absoluta- mente. Se fosse possível antecipa- culdade de acolhimento. Segundo o mente fora do programa – irredu- damente determos segurança de Alto Comissariado das Nações Uni- tível às múltiplas possibilidades do que a chegada deste que se apro- das para Refugiados – Acnur, uma acolher. Acolher o visitante seria, xima não nos causa ameaça, então a cada 113 pessoas é refugiada. portanto, acolher para além da ca- não se trataria de hospitalidade, Mais de metade dos refugiados do pacidade do acolhimento, logo, é uma vez que a incalculabilidade e mundo (com número que ultrapas- acolher o impossível. O acolhimen- a imprevisibilidade, de anunciam e sa 65 milhões, tornando-se agora a to possível preenche os requisitos constituem o acontecimento, es- maior crise migratória da história, do acolhimento do convite. taria esvanecida. Essa exposição em números absolutos) são mulhe- ao inaudito – a vulnerável ameaça res e crianças. É evidente que a de que o pior aconteça como um Europa, principalmente seus países IHU On-Line – A postura dos pa- risco que é preciso estar pronto a mais prósperos, não sabe lidar com íses do bloco europeu em relação correr – evita qualquer conotação o fenômeno atual dos refugiados. aos migrantes é de hospes (hospi- moralista, uma vez que na cena da Vale lembrar também que os países talidade) ou hostes (hostilidade)? hospitalidade o bem chega já des- que mais acolhem refugiados não Gustavo de Lima Pereira – Esse de sempre contaminado pelo mal. são países ricos, nem é a Europa o binômio hospitalidade/hostilidade A possibilidade do parasitismo é local onde mais se concentram re- é também muito bem debatido por essencial à cena da hospitalidade. fugiados no mundo. Derrida. Para ele, não seria um a Toda a hospitalidade é um convite moeda reversa do outro. O caráter ou uma expectativa à experiência IHU On-Line – Como podemos etimológico da hospitalidade con- do parasitismo. compreender a atual experiên- tém a hostilidade. Por isso Derrida cia europeia com os milhares de se vale do neologismo “hostipitali- migrantes a partir das lógicas da 62 dade”. A essa incalculável e forma- hospitalidade? lizável; perfeita e insuficiente; ple- Gustavo de Lima Pereira – Vi- na e pueril; desejante e que deixa Convite e visi- vemos atualmente um momento a desejar relação entre a hospitali­ mundial de emparedamento à ex- dade incondicional e a hospitalida- tação são duas trema direita. Esse emparedamen- de condicionada ao direito, Derrida to reflete de forma decisiva no ” chamou de “hostipitalidade . Esse dimensões que acolhimento ao estrangeiro. Iden- sintagma derridiano diz justamen- se compatibili- tifico dois fatores fundamentais te que toda a hospitalidade implica para identificarmos o problema do de antemão a hostilidade, isto é, zam por sua in- acolhimento aos migrantes em ge- o hiato entre a capacidade finita ral, principalmente os em situação de acolher no mundo e a injunção compatibilidade de maior vulnerabilidade, na Euro- infinita ao acolhimento incondicio- pa e nos Estados Unidos. nal do absolutamente outro e que A chegada do outro exige o acolhimento efetivo e, por O primeiro deles é a crise eco- como ameaça nômica. Em momento de crise eco- conseguinte, o espaço público da nômica, o estrangeiro é tido como inscrição do significado pela lin- A reação natural do encontro um “ladrão de empregos”. Em um guagem. O acolhimento sempre é com o recém-chegado é a do dis- cenário de crise, legitimam-se feito com reservas porque o hóspe- tanciamento da subjetividade e do maiores apropriações de discursos de pode ser também um inimigo. recrudescimento das fronteiras, de ódio. No Brasil isso já é bem Lembremos que o radical hostis ambas situações articuladas pela visível com haitianos e senegale- marca tanto o poder de acolher dinâmica da soberania da razão ses. Na Europa, em países onde o quanto a indistinção entre hóspede e da soberania dos Estados. Esse desemprego entre jovens chega a e inimigo. duplo movimento é resultado da 25% em muitas cidades, o rancor ao gênese de todo colonialismo, que Derrida faz em Spectres de Marx, trata-se de estrangeiro torna-se “legitimado”. um trabalho que termina mas nunca se com- apaga a diferença ao relacioná-la A União Europeia conta ainda com pleta. Sua prisão ao tempo determina sua re- violentamente com o mesmo, sen- uma legislação, chamada de “Dire- lação de possibilidade/impossibilidade. Eis o do também toda a gênese do ego tiva de retorno”, que estabelece a prudente paralelo com a questão da hospitali- dade aqui tratada e a chegada do outro. (Nota constituinte e de toda a instância retirada compulsória de estrangei- do entrevistado) soberana. ros inclusive em situação regular,

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de acordo com a discricionariedade pronunciamento oficial, não rela- dos “Estados produtores de armas dos Estados membros5. cionou o ocorrido, que deixou três de destruição em massa”, catego- mortos e 176 feridos, a algo ligado ria que engloba a maioria dos pa- Outro fator de visível vinculação à figura do terrorismo. Após, - vol íses que apoiam os Estados Unidos para a demonização do estrangeiro tou atrás e reativou a retórica de nesta meta de “democratização” em sede internacional concentra-se caça ao terror, prometendo que os do Oriente Médio e da Ásia menor. na “caça ao terrorismo”. O discurso culpados enfrentariam a justiça es- estadunidense posterior ao 11 de tadunidense. Não cumpriu: um dos Um acontecimento sem 6 setembro fora sempre um discurso suspeitos, poucos dias após o acon- nome de que esse tipo de acontecimen- tecimento, foi morto sem qualquer to “não deveria acontecer aqui”, julgamento, sob o questionável Essa talvez seja a grande mensa- quando a postura, quem sabe mais argumento de uma suposta “re- gem do 11 de setembro. Um acon- justa, talvez fosse a de que tal epi- sistência à prisão”, alegado pelas tecimento que não tem nome. Ten- sódio “não deveria acontecer em autoridades para legitimar a morte tamos dar nome ao seu significado lugar nenhum”, como asseverou do suspeito. por uma data, como atribuiu Derri- 7 Slavoj Zizek na obra Ben-vindo da em seu diálogo com Habermas10 ao deserto do real8. A postura in- na obra Filosofia em tempo de ter­ ternacional comum, impulsionada ror11. A mensagem subliminar que pela própria ONU, deveria ser no esculpe a ideia é a de que experi- sentido de que um atentado deste mentaremos por um longo tempo a quilate não deveria acontecer em O convidado é legitimação da violência em nome qualquer lugar. Barack Obama9, nos recebido, como da reprodução da soberania e da primeiros instantes após o episódio segurança nacional, cujo álibi é o das bombas instaladas na maratona se diz popular- inimigo invisível, que jamais cessa- de Boston, em abril de 2013, em mente, “na medi- rá sua chegada, sempre iminente. 5 Discuto esse tema, dentre outros, em minha O discurso estratégico da segu- obra Direitos humanos e hospitalidade: a da do possível” rança nacional tenta difundir a proteção internacional para apátridas e re- ideia de que a luta contra o “ter- fugiados, que ganhará segunda edição atuali- Como temos visto desde então, rorismo internacional” representa zada em 2017. (Nota do entrevistado) a resposta estadunidense ao 11 de 6 11 de setembro de 2001: membros do a luta em favor da democracia e da 63 grupo islâmico Al-Qaeda sequestraram qua- setembro focou na produção de liberdade. Mas esse discurso não tro aeronaves, fazendo duas colidirem con- novos inimigos, sugerindo que es- expressa o conteúdo do conceito de tra as duas torres do World Trade Center, tes detêm o poderio destrutivo tão “terrorismo internacional”. Quan- em Manhattan, Nova Iorque, e uma terceira contra o quartel general do departamento de latentemente robusto que é capaz to mais abstrato e confuso o con- defesa dos Estados Unidos, o Pentágono, na de produzir, a qualquer instante, ceito, mais ele está sujeito a uma Virgínia, próximo à capital dos Estados Uni- atentados que desafiariam nova- apropriação oportunista. Por este dos, Washington. O quarto avião sequestrado mente a democracia. A possibilida- foi intencionalmente derrubado em um cam- motivo que a ONU, sem desenvol- po próximo a Shanksville, Pensilvânia, após de de chegada do inimigo a qual­ ver um debate filosófico de maior os passageiros enfrentarem os terroristas. quer momento legitima a violência profundidade sobre o tema, auto- Esse foi o primeiro ataque letal de uma força ao terrorista em todo o momento. rizou os Estados Unidos a adotarem estrangeira em território americano desde a Guerra de 1812. O saldo de mortos aproxima- qualquer estratégia necessária, se- -se de 3 mil pessoas. (Nota da IHU On-Line) Inimigo invisível gundo seus próprios critérios, para 7 Slavoj Zizek (Slavoj Žižek, 1949): filóso- eliminar a possibilidade de aconte- fo e teórico crítico esloveno. É professor da Não há nada mais potente na luta European Graduate School e pesquisador cimentos similares futuros. senior no Instituto de Sociologia da Univer- contra o inimigo do que torná-lo in- sidade de Liubliana. É também professor vi- visível. Uma invisibilidade sem li- IHU On-Line – Se pensarmos no sitante em várias universidades estaduniden- mites. Para se atingir esse patamar ses, entre as quais estão a Universidade de contexto nacional, como a desi- Columbia, Princeton, a New School for Social de invisibilidade é preciso elaste- Research, de Nova York, e a Universidade cer a categoria de inimigo, tendo 10 Jürgen Habermas (1929): filósofo ale- de Michigan. Publicou recentemente Menos sido ela já modificada inúmeras mão, principal estudioso da segunda geração que nada. Hegel e a sombra do materialismo vezes: o primeiro discurso desen- da Escola de Frankfurt. Herdando as dis- dialético (São Paulo: Boitempo, 2013) (Nota cussões da Escola de Frankfurt, Habermas da IHU On-Line) volvido pela retórica de produção aponta a ação comunicativa como superação 8 São Paulo: Boitempo, 2003. (Nota do de responsabilização identificou os da razão iluminista transformada num novo entrevistado) inimigos da democracia pela em- mito, o qual encobre a dominação burguesa 9 Barack Obama [Barack Hussein Oba- (razão instrumental). Para ele, o logos deve ma II] (1961): advogado e político estaduni- blemática ideia de “redes terroris- construir-se pela troca de ideias, opiniões e dense. É o 44º presidente dos Estados Uni- tas”. Em um segundo momento, a informações entre os sujeitos históricos, es- dos, desde 2009. Sua candidatura foi forma- terminologia empregada passou a tabelecendo-se o diálogo. Seus estudos vol- lizada pela Convenção do Partido Democrata, ser o “eixo do mal”, protagonizado tam-se para o conhecimento e a ética. (Nota em 2008. Em 20016, ele deixa a Casa Branca da IHU On-Line) para ser sucedido pelo republicano Donald por Iraque, Irã e Coreia do Norte e, 11 Rio de Janeiro: Zahar, 2004. (Nota da Trump. (Nota da IHU On-Line) posteriormente, evoluiu para ideia IHU On-Line)

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gualdade manifesta uma não hos- suficientes de sua incapacidade sentido a partir da aplicação dos pitalidade endógena? em impor limites aos interesses do já velhos e empoeirados mecanis- tecnocapitalismo, sobretudo so- mos democráticos. Evoca sempre Gustavo de Lima Pereira – O bre o sistema financeiro-especula- o recorrente procedimentalismo- cenário político atual das rela- tivo, um dos principais responsá- -constitucionalista, apostando to- ções internacionais aponta-nos um das as fichas na formalização da tempo de crise. A crise, por certo, veis pela produção das periódicas vida. Não perceber o rol de vio- perpassa pelo horizonte do tecno- crises econômicas no mundo. À lências e injustiças oriundas do capitalismo e de toda a discussão primeira vista, uma solução pode- sobre a democracia e sobre sua ria ser pensada na esteira da de- paradigma liberal seria como cair capacidade de aperfeiçoamento, mocratização da economia, mas no ridículo, segundo Jacques Der- 12 em uma época onde mais vemos é ilusório acreditarmos que seja rida . Pois “quem pensa que as a evocação da democracia como realmente possível o controle po- democracias atuais são verdadei- uma nova religião mundial ou pular dos bancos e das instituições ras democracias, mente aos outros 13 como um slogan em um discurso financeiras. e a si” . adocicado de paz e conciliação que ao fundo neutraliza as tenta- IHU On-Line – Como o humanis- tivas radicais de transformação. mo de Derrida encontra eco em Frente a isso, vivemos um momen- Levinas14? to onde poucos se irrompem con- O visitante exi- Gustavo de Lima Pereira – Em tra esse sistema, e quando perce- primeiro lugar, é preciso deixar bem-se manifestações sociais que ge o impossível claro que Derrida foi um grande detêm a incumbência de trazer à crítico do “humanismo” e isso é, pauta comum uma discussão em porque exige inclusive, um ponto de distinção torno do funcionamento do poder, acolher um ex- entre ele e Levinas, que foi um estas sofrem na carne a violência autor declaradamente humanis- da retórica do poder e do poder cesso absolu- ta. Derrida abre a discussão para inclusive policial. tamente fora uma ontologia sem “vontade de Por assombrarem esse modelo de do programa origem”, como as ontologias clás- 64 política que a nós é imposto pelo sicas, e uma latente abertura para efeito acomodador da democracia- a “animalidade” como em obras liberal-parlamentar, as pautas ge- A conclusão mais realista que como O animal que logo sou. rais dos movimentos são rapida- podemos antever é no sentido de Em Levinas, a preocupação é mente desmerecidas e enquadra- que a democratização desta demo- das à figura do bando, do vândalo cracia, se ainda pensada nos mes- com a ética do humano, como fi- e do vadio. A violência hegemônica mos moldes, não ocorrerá. Esta losofia primeira, tema que ocupou no Brasil (bem representada prin- afirmação não significa apenas o também claramente Derrida, mas cipalmente pelo abuso do poder de cinismo descrente em relação aos sem ocupar o centro vital do palco, polícia) é censurada pelos meios de parâmetros da política de hoje. como em Levinas. Mas a aproxima- Significa algo maior. Acreditar na comunicação mais influentes. 12 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O democratização da economia sig- A discussão se sobrepõe, ou se Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova nifica acreditar que é possível uma Internacional. Rio de Janeiro: Relume, 1994, sobrepôs, às averiguações de hoje vez mais remendar o velho e des- p. 91. (Nota do entrevistado) em torno da democracia, desmisti- 13 DERRIDA, Jacques. Entrevista concedida gastado casaco, utilizando o seu ficando seustatus de esfera neutra a Juremir Machado da Silva. SILVA, Jure- próprio tecido corroído pelo tem­ da mão invisível do Estado a ser- mir Machado da. Visões de uma certa Euro- po, sem perceber que ele já não pa. Porto Alegre: Edipucrs, 1998. (Nota do viço do bem comum. Não devemos aquece mais. entrevistado) acreditar, como as experiências 14 Emmanuel Levinas (1906-1995): fi- recentes nos mostram claramente, Com efeito, é possível perceber- lósofo e comentador talmúdico lituano, de ascendência judaica e naturalizado francês. que o mercado é um mecanismo mos que a pergunta desconstru- Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger, benigno que funciona melhor quan- cionista deve apontar sua mira não cuja obra Ser e tempo o influenciou muito. do é deixado por conta própria, apenas em direção ao capitalismo, “A ética precede a ontologia” é uma frase que pois há uma violência intrínseca, caracteriza seu pensamento. Escreveu, entre mas também à democracia – “a outros, Totalidade e Infinito (Lisboa: Edições externa a ele, que mantém as con- ilusão da democracia” –, cuja prin- 70, 2000). Sobre o filósofo, confira a entrevis- dições de seu funcionamento. cipal perversidade está no fato de ta com Rafael Haddock-Lobo, publicada em 30-08-2007 no sítio do Instituto Humanitas somente admitir soluções às suas Unisinos – IHU, intitulada Lévinas: justiça Incapacidade de regular crises a partir de sua própria di- à sua filosofia e a relação com Heidegger, o tecnocapitalismo nâmica estruturante, sem permitir Husserl e Derrida, disponível em http://bit. uma transformação radical na sua ly/1bZ77kk, e a edição número 277 da IHU On-Line, de 14-10-2008, intitulada Lévinas e A democracia-liberal-parlamen- carcaça interna. Esta democracia a majestade do Outro, disponível em http:// tar-tolerante já nos deu provas só admite respostas à sua crise de bit.ly/1gsnUOI. (Nota da IHU On-Line)

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ção entre Derrida e Levinas, além escritos por Levinas, deixou claro tema da justiça, Derrida posicio- de filosófica e evidente, remete inúmeras vezes, em cartas e es- na-se ao lado Levinas no que tan- também ao campo da amizade. critos, a tamanha singularidade ge ao tema do acolhimento e da Merecem por aqui serem discorri- deste filósofo em meio aos demais exterioridade, fazendo-se clara a das algumas linhas. intelectuais franceses de sua épo- influência do autor. Após a morte ca, além de apontar jamais tê-lo de Levinas, Derrida pronuncia-se Derrida, com pouco mais de 30 abandonado como referência fi- com dois textos de primoroso ri- anos de idade, tomou conhecimen- losófica19. Em 1964, Derrida assis- gor, afetuosidade e tristeza pela 15 to da obra Totalidade e infinito , tiu o curso lecionado por Levinas, perda de um daqueles que mais uma das mais significativas cons- aproximando-se cada vez mais de próximos lhe esteve, apesar da truções deixadas pelo pensamen- seu pensamento e de sua figura distância. Um deles lido na forma to levinasiano, através de Paul pessoal, iniciando um laço afetivo de discurso ao passo do enterro do Ricoeur16. Derrida, que até então que iria perdurar até o final de suas mestre: conhecia apenas os trabalhos rela- vidas20. Há muito tempo, há tanto tem- cionados a Husserl17 e Heidegger18 po, eu temia dizer Adeus a Em- 15 Lisboa: Edições 70, 2000. (Nota da IHU manuel Levinas. Sabia que minha On-Line) voz tremeria no momento de fa- 16 Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo fran- zê-lo, e sobretudo de fazê-lo em cês. Sobre ele, conferir o artigo intitulado Imaginar a paz ou sonhá-la?, publicado na O acolhimento voz alta, aqui, diante dele, tão edição 49 da IHU On-Line, de 24-02-2003, perto dele, pronunciando esta disponível para download em http://bit.ly/ sempre é feito palavra de adeus, esta palavra “a ihuon49 e uma entrevista na edição 50 que pode ser acessada em http://bit.ly/ihuon50. com reservas Deus” que de certa maneira, rece- A edição 142, de 23-05-2005, publicou a bi dele, esta palavra que ele me editoria Memória sobre Ricoeur, em função porque o hóspe- ensinou a pensar ou pronunciar de de seu falecimento. Confira o material em outra forma21. http://bit.ly/ihuon142. A formação de Ri- de pode ser tam- coeur se dá em contato com as ideias do exis- Levinas, por sua vez, também tencialismo, do personalismo e da fenomeno- logia. Suas obras importantes são: A filosofia bém um inimigo deixou estridente o apreço pela da vontade (primeira parte: O voluntário e o figura pessoal e intelectual de involuntário, 1950; segunda parte: Finitude e Derrida, dedicando-lhe, em 1973, 65 culpa, 1960, em dois volumes: O homem fa- Alinhamento entre lível e A simbólica do mal). De 1969 é O con- Levinas e Derrida o artigo Jacques Derrida. Tout flito das interpretações. Em 1975 apareceu A Autrement, texto que integraria metáfora viva. O sentido do trabalho filosó- posteriormente a obra Nomes Pró­ fico de Ricoeur deve ser visto em uma teoria Essa presença/distante, repleta prios. Nesse texto, o filósofo con- da pessoa humana; conceito – o de pessoa de amizade e admiração recípro- – reconquistado no termo de longa peregri- fessou o seu “encontro filosófico” ca, marcou a relação entre ambos, nação dentro das produções simbólicas do com Jacques Derrida como sendo onde cartas e telefonemas corri- homem e depois das destruições provocadas e tendo sido o registro do “prazer pelos mestres da “escola da suspeita”. (Nota queiros alimentaram essa relação de um contacto no coração de um da IHU On-Line) singular. Em inúmeros textos que PEETERS, Benoît. Derrida. Rio de Janeiro: quiasma”22, enunciado que talvez tocam de forma mais acurada o Civilização brasileira, 2013, p. 178. (Nota do expresse por si só a relação entre entrevistado) 17 Edmund Husserl (Edmund Gustav Al- disponível em http://bit.ly/ihuon187. Confi- os pensadores. brecht Husserl, 1859-1938): matemático e ra, ainda, Cadernos IHU em formação nº filósofo alemão, conhecido como o fundador 12, Martin Heidegger. A desconstrução da Como muito bem claro mostrou da fenomenologia, nascido em uma família metafísica, que pode ser acessado em http:// Fernanda Bernardo23, o pronuncia- judaica numa pequena localidade da Morávia bit.ly/ihuem12, e a entrevista concedida por mento afetuoso de Levinas deixou (região da atual República Tcheca). Husserl Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU apresenta como ideia fundamental de seu On-Line, de 10-5-2010, disponível em ht- marcas no coração de Derrida e antipsicologismo a “intencionalidade da tps://goo.gl/dn3AX1, intitulada O biologis- pegadas visíveis por seus escritos, consciência”, desenvolvendo conceitos como mo radical de Nietzsche não pode ser mini- respondendo-lhe que este quias- os da intuição eidética e epoché. Influenciou, mizado, na qual discute ideias de sua confe- ma era mesmo “muito estreito”. entre outros, os alemães Edith Stein, Eugen rência A crítica de Heidegger ao biologismo Fink e Martin Heidegger e os franceses Jean- de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte Esta talvez seja a efetiva marca Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Michel integrante do ciclo de estudos Filosofias da Henry e Jacques Derrida. (Nota da IHU diferença, pré-evento do XI Simpósio Inter- 21 DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel On-Line) nacional IHU: O (des)governo biopolítico da Levinas. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 15. 18 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo vida humana. (Nota da IHU On-Line) (Nota do entrevistado) alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo 19 Em carta endereçada a Levinas, Derrida 22 LEVINAS, Emmanuel. Jacques Derrida. (1927). A problemática heideggeriana é am- faz questão de demarcar a decisiva influência Tout Autrement. In: Noms Propres. Fata pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas daquele em relação ao seu trabalho: “De mi- Morgana: Montpellier, 1976, p. 72. (Nota do sobre o humanismo (1947) e Introdução à nha parte, em tudo que faço seu pensamento entrevistado) metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira está de certa forma presente.” (PEETERS, op. 23 BERNARDO, Fernanda. Levinas e Der- as edições 185, de 19-6-2006, intitulada O sé- cit, p. 221). (Nota do entrevistado) rida: “Um contacto no coração de um culo de Heidegger, disponível em http://bit. 20 PEETERS, Benoît. Derrida. Rio de Janei- quiasma”. Revista Filosófica de Coimbra, ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, intitulada ro: Civilização Brasileira, 2013, p. 180-181. n.33, 2008, (p. 39-78), p. 57-58. (Nota do Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, (Nota do entrevistado) entrevistado)

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da lealdade infiel que demarcou entrevista. Em minha tese de dou- dade, que se dirigem a direitos e a relação filosófica entre ambos, torado, que trata da hospitalidade deveres sempre condicionados e que nada mais é do que a própria em Derrida e que será publicada no condicionais, como os tratados e marca do acolhimento de duas sin- ano de 2017, estão presentes maio- convenções que tratam as relações gularidades absolutas – ou secretas res detalhes pelos quais remeto o entre as nações. – ou absolutamente secretas; como leitor. a marca de um idioma: ao mesmo Acolher tempo intocável, inapropriável e IHU On-Line – Qual o grande de- incondicionalmente o intraduzível. safio na contemporaneidade para outro construir caminhos de conviviali- Acolhimento e o outro dade com o Outro, a Alteridade? A hospitalidade, vista de modo Gustavo de Lima Pereira – O condicional, remonta a toda a tra- Um debate incessante sobre o dição da cultura ocidental, desde tema, nos diria Derrida, passa pela tema da alteridade está visivel- seus primórdios greco-romanos, resposta à questão – ou as que dela mente próximo da hospitalidade de todo judaísmo e cristianismo, decorrem: Quem é o “outro”, o incondicional pensada por Derrida. de todo o direito e de toda a filo- “absolutamente outro” (“tout au­ A “lei da hospitalidade” se resguar- sofia do direito até Hegel25, como tre”) na “ética” de Levinas? Uma da no acolhimento da alteridade do apontou seguidamente Derrida questão a que, sabemos, Levi- totalmente qualquer outro “sem ao ao longo de suas obras. Em con- nas responderá na enseada de “o menos olhar a cor de seus olhos”, trapartida, a lei da hospitalidade outro homem”. Derrida, por sua como diria Levinas. Para além das incondicional, herdada de um pas- vez, responderá – contra-assinará “leis da hospitalidade”, demarca- sado imemorial e ao mesmo tem- – desconstrutivamente à própria das e condicionadas pelo direito po sempre por vir, obriga a acolher resposta de Levinas, afirmando de cada Estado e pelos limites do incondicionalmente o absoluta- que o “Tout autre est tout autre”. direito internacional. mente outro. “O absolutamente outro é absolu- tamente (qualquer) outro”. Essa Tal obrigação, sem obrigar, cons- marca do “qualquer outro” sobres- titui-se no âmbito pré-volitivo e salta sobre a discussão a respeito até mesmo pré-moral, como es- 66 do humanismo. Em Derrida, deve- trutura prévia que antecede toda mos anotar, como referi no início Vivemos atual- e qualquer ideia de intencionali- da resposta a essa pergunta, que o mente um mo- dade, como vimos anteriormente. tema da animalidade deva ser visto Concentra em pensar o político mais outramente do que o próprio mento mundial para além do político, a partir de outro. de empareda- uma nova internacionalidade; a Ao olhar o olhar do outro, diz partir de um cosmopolitismo rein- Levinas, deve-se esquecer a cor mento à extre- ventado. Um cosmopolitismo para dos seus olhos, dito de outra ma- além do cosmopolitismo político neira, olhar o olhar, o rosto que ma direita pensado pelo ideário kantiano- vê antes dos olhos visíveis do ou- -iluminista, pois esse cosmopo- tro. Mas quando ele lembra que A lei da hospitalidade reivindica litismo está ainda condicionando “a melhor maneira de encontrar e representa a renúncia ao hori- pelos limites jurídico-políticos que o outro é nem mesmo notar a cor zonte calculável e preestabelecido sustentam a estrutura artificial da dos seus olhos...”, ele fala então pelas regras jurídicas internacio- soberania tradicional dos Estados. do homem, do próximo enquan- nais, que delimitam a relação com E esse cosmopolitismo jurídico, to homem, do semelhante e do a alteridade que a mim se dirige. irmão, ele pensa no outro ho- Para Derrida, a lei da hospitalidade 25 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo atua como uma lei incondicional e alemão idealista. Como Aristóteles e Santo mem, e isso constituirá para nós, Tomás de Aquino, desenvolveu um sistema mais tarde, o lugar de uma grave ilimitada, como o oferecimento do filosófico no qual estivessem integradas todas inquietação24. lar a quem chega de fora, ao es- as contribuições de seus principais predeces- trangeiro da subjetividade, nessa sores. Sobre Hegel, confira no link http://bit. Poderia aqui tecer páginas e ly/ihuon217 a edição 217 da IHU On-Line, nova percepção de como podemos de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia páginas tentando desmembrar as pensar a estrangeiridade. Mais que do espírito, de (1807-2007), em comemora- inúmeras implicações em relação a isso: a lei da hospitalidade oferece ção aos 200 anos de lançamento dessa obra. esta aproximação que se distancia a si própria o seu próprio si, “sem Veja ainda a edição 261, de 09-06-2008, entre Derrida e Levinas, porém tal Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo pedir a ele nem seu nome, nem modo de ler Hegel, disponível em http://bit. tarefa não guardaria espaço nesta contrapartida, nem preencher a ly/ihuon261; Hegel. A tradução da história mínima condição”, como diria Der- pela razão, edição 430, disponível em http:// 24 DERRIDA, Jacques. O animal que logo bit.ly/ihuon430 e Hegel. Lógica e Metafí- sou. São Paulo: UNESP, 2002, p. 30. (Nota rida. A lei da hospitalidade está em sica, edição 482, disponível em http://bit. do entrevistado) contraponto às leis da hospitali- ly/2959irT. (Nota da IHU On-Line)

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guiado pelas leis da hospitalidade IHU On-Line – Afinal, o que é a de lei”. Como diria Derrida, estar condicional, revelou-se e revela-se hospitalidade? aberto à experiência da loucura seria como estar aberto à experi- incapaz de responder aos inúmeros Gustavo de Lima Pereira – Eu ência do impossível. conflitos internacionais envolvendo definiria, por fim, que a hospitali- dade é, na esteira de pensamento seres humanos incluídos no sistema É preciso dar chance a essa de Jacques Derrida e Kierkegaard27 experiência impossível – de uma pela sua exclusão, valendo-me eu e que ganham guarida em Ricar- nova compreensão do horizonte 28 aqui de uma terminologia empre- do Timm de Souza, “o reconhe- possível-impossível – para termos gada por Giorgio Agamben26. cimento da loucura pela justiça a dimensão do que a justiça como perante o mistério do rosto de ou- desconstrução pode nos auxiliar 26 Giorgio Agamben (1942): filósofo ita- trem”. A loucura pela justiça é um a pensar o direito. Como aponta liano. É professor da Facolta di Design e arti tema que ocupou Derrida princi- della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e Derrida29: “é preciso falar aqui do palmente na clássica obra “Força do College International de Philosophie de acontecimento im-possível. Um Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di Macerata, Universitá di Vero- 27 Soren Kierkegaard (1813-1855): filó- im-possível que não é somente na e da New York University, cargo ao qual sofo existencialista dinamarquês. Alguns de impossível, que não é somente o renunciou em protesto à política do governo seus livros foram publicados sob pseudôni- contrário do possível, que é tam- estadunidense. Sua produção centra-se nas mos: Víctor Eremita, Johannes de Silentio, relações entre filosofia, literatura, poesia Constantín Constantius, Johannes Climacus, bém a condição ou a chance do e, fundamentalmente, política. Entre suas Vigilius Haufniensis, Nicolás Notabene, Hi- possível. Um im-possível que é principais obras, estão Homo Sacer: o poder larius Bogbinder, Frater Taciturnus e An- a própria experiência do possí- soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. ticlimacus. Filosoficamente, faz uma ponte UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo entre a filosofia de Hegel e o que viria a ser vel”. Pensar o instante de deci- Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e his- posteriormente o existencialismo. Boa parte são como uma loucura indecidível tória: destruição da experiência e origem da de sua obra dedica-se à discussão de questões história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); religiosas como a naturaza da fé, a institui- pela justiça é uma experiência Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Edi- ção da igreja cristã, a ética cristã e a teologia. do impossível (aliás, enlouque­ torial, 2007), Estâncias – A palavra e o fan- Autor de O Conceito de Ironia (1841), Temor cer não seria nada senão salvar a tasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: e Tremor (1843) e O Desespero Humano 30 Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: (1849). A respeito de Kierkegaard, confira a honra da razão , muito embora Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, entrevista Paulo e Kierkegaard, realizada seja a desconstrução um raciona­ o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – com Álvaro Valls, da Unisinos, na edição 175, lismo incondicional, porém aber­ IHU publicou a entrevista Estado de exceção de 10-04-2006, da IHU On-Line, disponí- e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com vel em http://bit.ly/ihuon175. A edição 314 to ao por vir?), e essa experiência o filósofo Jasson da Silva Martins, disponível da IHU On-Line, de 09-11-2009, tem como do impossível transfigura-se, di- 67 em http://bit.ly/jasson040907. A edição 236 tema de capa A atualidade de Soren Kierke- gamos uma vez mais, como uma da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a ggard, disponível em http://bit.ly/ihuon314. entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito Leia, também, uma entrevista da edição 339 experiência radical do talvez, originário de uma nova experiência, ética, da IHU On-Line, de 16-08-2010, intitulada pois só há decisão, se há, se ela política e direito, com o filósofo Fabrício Kierkegaard e Dogville: a desumanização do atravessar o absoluto deserto. Carlos Zanin, disponível em http://bit.ly/ humano, concedida pelo filósofo Fransmar ihuon236. A edição 81 da publicação, de 27- Barreira Costa Lima, disponível em http:// 10-2003, teve como tema de capa O Estado bit.ly/ihuon339. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line – Deseja acrescen- de exceção e a vida nua: a lei política mo- 28 Ricardo Timm de Souza: graduado em derna, disponível para acesso em http://bit. Instrumentos, pela Universidade Federal do tar algo? ly/ihuon81. Em 30-06-16 o Prof. Dr. Castor Rio Grande do Sul – UFRGS, e em Estudos Bartolomé Ruiz proferiu a conferência Fou- Sociais e Filosofia, pela Pontifícia Universida- Gustavo de Lima Pereira – A hos- cault e Agamben. Implicações Ético Políticas de Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. pitalidade pode ser interpretada do Cristianismo, que pode ser assistida em Também cursou o mestrado em Filosofia, como o outro nome da “descons- http://bit.ly/29j12pl. De 16-03-2016 a 22- pela mesma universidade, e doutorado em 06-2016 Ruiz ministrou a disciplina de Pós- Filosofia, pela Universität Freiburg (Albert- trução”, conceito mais identificá- -Graduação em Filosofia e também validada -Ludwigs) com a tese Wenn das Unendliche vel com o pensamento de Derrida como curso de extensão através do IHU inti- in die Welt des Subjekts und der Geschichte e que deu a ele notoriedade in- tulada Implicações ético-políticas do cristia- einfällt – Ein metaphänomenologischer Ver- nismo na filosofia de M. Foucault e G. Agam- such über das ethische Unendliche bei Em- ternacional. Derrida afirmou não ben. Governamentalidade, economia polí- manuel Lévinas. Escreveu inúmeros livros, conhecer nada mais justo do que tica, messianismo e democracia de massas, entre eles, Sujeito, Ética e História – Lévinas, a sua desconstrução. Logo, eviden- que resultou na publicação da edição 241ª o traumatismo infinito e a crítica da filosofia dos Cadernos IHU ideias, intitulado O po- ocidental (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999), A temente o tema da justiça, da hos- der pastoral, as artes de governo e o estado condição humana no pensamento filosófico pitalidade e da desconstrução são moderno, que pode ser acessada em http:// contemporâneo (Porto Alegre: EDIPUCRS, temas indissociáveis no pensamen- bit.ly/1Yy07S7. Para 23 e 24-05-2017 o IHU 2004) e Em torno à diferença – Aventuras realizará o VI Colóquio Internacional IHU da alteridade na complexidade da cultura to do autor. – Política, Economia, Teologia. Contribui- contemporânea (Rio de Janeiro: Lumen Ju- ções da obra de Giorgio Agamben, com base ris, 2007). É também um dos organizadores 29 DERRIDA, ■Jacques. Força de lei. O fun- sobretudo na obra O reino e a glória. Uma de Alteridade e Ética – Obra comemorativa damento místico da autoridade. São Pau- genealogia teológica da economia e do go- dos 100 anos do nascimento de Emmanuel lo: Martins Fontes, 2007, p.243. (Notado verno (São Paulo: Boitempo, 2011. Tradução Lévinas (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008). entrevistado) de: Il regno e la gloria. Per una genealogia Confira a entrevista mais recente que con- 30 DERRIDA, Jacques. Vadios. Coimbra: Pa- teológica dell’ecconomia e del governo. Pu- cedeu à IHU On-Line: Rosenzweig e uma limage, 2003, p. 220. “Aí onde a razão corre o blicado originalmente por Neri Pozza, 2007). nova compreensão da ideia de sujeito, dispo- risco de perder ou de se perder, que se perca Saiba mais em http://bit.ly/2hCAore (Nota nível em http://bit.ly/GCaglu. (Nota da IHU a razão, por exemplo, na loucura”. (Nota do da IHU On-Line) On-Line) entrevistado)

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Biomas brasileiros, debate político nacional e os pensamentos de Agamben e Suárez na programação do IHU em 2017 No calendário de eventos, além das conferências, serão oferecidos ciclos de estudos na modalidade de Ensino a Distância

Por João Vitor Santos

ivemos um estado de transição, uma mudança de ciclo. Pensar sobre esse estado tem sido a grande provocação do Instituto Humanitas Unisinos – VIHU. Esse desafio – e convite – para pensar o hoje, tendo em perspectiva o passado e tentando prospectar o futuro é mais uma vez tônica da programação de eventos do IHU em 2017. O primeiro deles, com atividades já a partir de 9 de março, é a 14ª Páscoa IHU, que terá como pano de fundo os biomas do Brasil. Em maio, o VI Colóquio Internacional IHU tratará de política, economia e teologia a partir do estudo 70 transdisciplinar do livro O reino e a glória. Uma genealogia teológica da economia e do governo, de Giorgio Agamben (São Paulo: Boitempo, 2011). Em setembro, o VII Colóquio Internacional IHU retomará o pensamento de Francisco Suárez em perspectiva com a metafísica e a filosofia prática. E em outubro, em mais um -Co lóquio Internacional, o tema será O Teorema Biopolítico da Bioética.

Páscoa IHU A temática dos biomas brasileiros não se esgota aí. Além de uma série de publicações que estão sen- As primeiras atividades do evento da 14ª Pascoa do preparadas para o site do IHU e para a revista IHU – Biomas Brasileiros: A Teia da Vida abordarão o IHU On-Line, também será realizado o Ciclo de Es- pampa. As palestras relacionadas à Páscoa IHU, que tudos: os Biomas Brasileiros e a Teia da Vida, na se estenderá ao longo do semestre, encerram em 14 modalidade de Ensino a Distância – EAD. “Através de junho, com a conferência Bioma Araucária: rique­ de um debate transdisciplinar e sistêmico, busca- zas e fragilidades de um bioma ameaçado, com Prof. mos fomentar o conhecimento e o compromisso com Dr. Flávio Zanette – Universidade Federal do Paraná o cuidado e a proteção dos biomas do Brasil (Ama- – UFPR. Saiba detalhes da programação em http:// zônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e bit.ly/2fThkm9. Pantanal)”, explica o professor Gilberto Faggion, dos programas do IHU (Re)Pensando a Economia e Sociedade Sustentável. “Nesse sentido, o Ciclo também faz relações com a encíclica Laudato Si’, que trata justamente do cuidado da ‘casa comum’”, completa. A programação ocorre de 28 de abril a 9 de junho de 2017. O período da Páscoa é dado à reflexão sobre a Pai- xão de Cristo. Dentro desse âmbito e com o intuito de relacionar Teologia com as questões cotidianas, o IHU promove mais uma vez o curso, na modalidade

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EAD, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cris- Periferias brasileiras é pauta do to. Uma análise da narrativa de Marcos. As ativi- Metrópoles dades começam em 6 de março. “Uma experiência muito significativa é a diversidade de pessoas que participam”, destaca Ana Casarotti, coordenadora do curso. Para ela, não só através do conteúdo pro- gramado, mas também da interação entre os par- ticipantes, é possível “aprofundar o conhecimento deste grande mistério da nossa fé desde a narrativa oferecida por Marcos a todos e todas aqueles que o desejam”. O Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo entra na sua quinta edi- ção. As conferências serão realizadas entre os meses de março e maio. Nesse primeiro semestre de 2017, o tema será A centralidade das periferias brasileiras. “Buscamos olhares específicos sobre a periferia de diferentes partes do país, ou seja, o olhar específico para a periferia de SP, RJ, MG, RS, PE, seus sistemas sociais, políticos, econômicos, culturais, de maneira a compreender melhor cada uma delas e seus prota- A política no Brasil contemporâneo gonismos, numa perspectiva mais de micronarrativas, em debate bem como abordar temas que perpassam as periferias de maneira geral”, argumenta Lucas.

Política, Economia e Teologia na perspectiva de Agamben 71

Na edição passada da revista IHU On-Line, Pedro Meira Monteiro, professor na Princeton University, Estados Unidos, e um dos organizadores da última edição de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), retoma a reflexão de que se vive hoje um “vazio da política representativa”1. A perspectiva esteve presente em todo ano de 2016 no debate sobre o momento político nacional. Assim, pensando em aprofundar o debate sobre esse momento do Brasil, Uma visão global sobre as crises políticas, econômicas, o IHU promove a série de conferências intitulada A de representatividade, entre outras, é o tema do VI Co- reinvenção da política no Brasil contemporâneo. lóquio Internacional IHU, a ser realizado no Brasil entre Limites e perspectivas. os dias 23 e 24 de maio. O evento se propõe a trazer re- flexões sobre os temas acima citados desde a abordagem O professor Lucas Henrique da Luz, que coordena dada pelo filósofo italianoGiorgio Agamben. Os debates diversos eventos do programa IHU Fronteiras, enten- são propostos a partir do livro O reino e a glória. Uma de que é importante perceber “o momento de esgota- genealogia teológica da economia e do governo. mento que vivenciamos atualmente no país, no qual projetos políticos e de desenvolvimento” parecem não A Estrutura da Desigualdade dar mais conta da realidade. “Nesse contexto, torna- -se relevante compreender as possibilidades e os limi- Nos últimos anos, o IHU tem tentado olhar com mais tes da reinvenção política do Brasil contemporâneo, vagar para as questões da desigualdade. As reflexões enfocando principalmente o ser e fazer da esquerda sobre o assunto perpassam diversos eventos e publica- no país”, pontua ao destacar a atualidade do ciclo. As ções do Instituto. Entretanto, para fomentar o debate conferências ocorrerão entre março e maio de 2017. e tocar as questões de fundo acerca do tema, o Insti- tuto promove a segunda edição do EAD Ciclo de Estu- 1 1936 reeditado em 2016: a volta do vazio da política representativa. dos do Livro “O Capital no Século XXI” – A Estrutura Entrevista com Pedro Meira Monteiro, publicada na revista IHU On- Line nº 498, de 28-11-2016, disponível em http://bit.ly/2gOyLZJ. da Desigualdade. “Vive-se em um momento em que (Nota da IHU On-Line) os níveis globais de desigualdade só têm aumentado.

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O que coloca em xeque a tese de que o liberalismo realizado o IX Colóquio Internacional IHU. O Teore- econômico poderia resultar em uma sociedade mais ma Biopolítico da Bioética. A programação ainda está igualitária. Ao estudar o livro de Piketty, questiona- sendo fechada, mas, como preparação para esse IX -se isso, uma vez que o argumento central é o de que Colóquio, o IHU promoverá quatro conferências como numa economia em que a taxa de rendimento sobre o pré-evento. A primeira ocorre em 18 de maio com a capital supera a taxa de crescimento, a riqueza herda- Profa. Dra. Aline Albuquerque, da Universidade de Bra- da sempre crescerá mais rapidamente do que a rique- sília – UNB. O tema da palestra é Interfaces do con- za conquistada”, ressalta Faggion. texto biopolítico e os Direitos Humanos. Oficinas são destaques no primeiro 2017/2 semestre da programação do ObservaSinos A ousadia do pensamento desobediente de Thoreau “O ObservaSinos aponta para o próximo ano um con- junto de oficinas que instrumentalizam o acesso e aná- Para agosto, está sendo preparado o VII Colóquio In- lise das realidades e das políticas públicas”, pontua a ternacional IHU. O evento ocorrerá entre os dias 29 e professora Marilene Maia, que coordena o Observatório 30 de agosto de 2017. O tema será o pensamento de da Realidade e das Políticas Públicas do Vale do Rio dos Henry David Thoreau (1817-1862). O autor estaduni- Sinos – Observasinos. “Estas oficinas são oferecidas às dense, também poeta e naturalista, é um ativista anti- lideranças das comunidades, gestores e trabalhadores -impostos, crítico da ideia de desenvolvimento. Ainda das políticas públicas, pesquisadores e estudantes e foi renomado pesquisador, historiador, filósofo e trans- pretendem subsidiar o planejamento, monitoramento, cendentalista. Ele é mais conhecido por seu ensaio avaliação e, especialmente, o controle social das políti- Desobediência Civil (São Paulo: Penguin Companhia, cas públicas dos municípios e região do Vale do Sinos”, 2012), uma defesa da desobediência civil individual completa. como forma de oposição legítima frente a um estado injusto. Outra obra célebre é o livro Walden (Porto A primeira atividade começa em 21 de março, com Alegre: L&PM Editores, 2010), uma reflexão sobre a a abertura da 3ª Edição do Ciclo de Estudos: Saúde e vida simples cercada pela natureza. segurança no trabalho na região do Vale do Rio dos Si- nos. Além de conferências, o Ciclo é composto por ofi- 72 Pensamento de Francisco Suárez e cinas que ocorrem ao longo do ano. Todas as atividades são realizadas em parceria com sindicato, Federação reflexões sobre bioética e Confederação dos Metalúrgicos. “No primeiro semes- tre a temática de aprofundamento será Saúde e Segu- Entre os dias 25 e 28 de setembro, o IHU sediará o VIII rança no trabalho. No segundo semestre a temática Colóquio Internacional IHU. Metafísica e Filosofia Prá- versará sobre os desafios e possibilidades do Trabalho tica. A atualidade do pensamento de Francisco Suárez na contemporaneidade”, detalha Marilene. 400 anos depois. A proposta do evento é recuperar o de- bate feito em junho de 2016, desta vez com mais pro- A partir de março o ObservaSinos retoma as oficinas fundidade sobre a herança do pensamento de Francisco em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Suárez, retomando suas reflexões acerca da ‘Escola Ibéri- Estatística – IBGE. O objetivo é dar dicas sobre as en- ca da Paz’, ou Escolástica Latino-Americana, ainda conhe- tradas possíveis nos dados disponibilizados pelo IBGE. cida como Segunda Escolástica. Neste ano, a revista IHU E a programação segue em abril com mais oficinas. On-Line publicou uma série de entrevistas sobre o tema, A professora Marilene ainda lembra que para os pri- dentre elas com os professores doutores Alfredo Culleton, meiros meses de 2017 já está sendo fechada a progra- vice-presidente da Société Internationale Pour L’Étude de mação da Ecofeira Unisinos. Além da comercialização La Philosophie Médiévale – SIEPM; João Vila-Chã, profes- de produtos orgânicos dentro do Campus São Leopol- sor na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma; Pedro do, haverá diversas atividades culturais e oficinas edu- Calafate, doutor em Filosofia pela Faculdade de Letras da cativas sobre o tema. Universidade de Lisboa. O dossiê foi publicado na revista 2 IHU On-Line número 487, de 13-06-2016 . IHU Ideias Biopolítica e bioética Em 2017, o IHU segue com seu espaço para conferên- cias, debates e reflexões sempre às quintas-feiras, às Já em outubro, o destaque na programação são os 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, debates em torno da bioética. Nos dias 17 e 18, será no IHU do Campus São Leopoldo da Unisinos. Confi- 2 O material está disponível em http://bit.ly/2gsPVsh. (Nota da IHU ra a programação das primeiras palestras do ano em On-Line) ihu.unisinos.br/eventos.

■ Quer saber mais sobre os eventos do IHU em 2017? Acesse ihu.unisinos.br/eventos

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A difícil reinvenção da democracia frente ao fascismo social Boaventura de Sousa Santos debate as encruzilhadas da democracia e a necessidade de se construir novamente as esquerdas

Por Ricardo Machado

democracia tornou-se uma que o substitua politicamente, poder daquelas palavras vazias de agir contra o neoliberalismo, terá de A sentido. Como é usada para passar por uma profunda transforma- descrever tudo aquilo que não é um re- ção democrática”. E pondera, “a es- gime político autoritário, tendemos a querda não deve aceitar ser poder na não ver os tons de cinza entre o bran- condição de esquecer ou renunciar ao co e negro. “Para uns, a democracia que é.” realmente existente está de tal modo descaracterizada que só por inércia Boaventura de Sousa Santos é doutor ou distração se pode considerar como em Sociologia do Direito pela Universi- tal. Vivemos em regimes autoritários dade de Yale (1973), além de professor que se disfarçam com um verniz demo- catedrático jubilado da Faculdade de crático”, aponta Boaventura de Sousa Economia da Universidade de Coimbra Santos, em entrevista por e-mail à IHU e distinguished legal scholar da Uni- On-Line. “Vivemos em democracias de versidade de Wisconsin-Madison. Foi 73 baixa ou muito baixa intensidade que também global legal scholar da Univer- convivem com regimes sociais fascis- sidade de Warwick e professor visitante tas. Daí o meu diagnóstico de que vi- do Birkbeck College da Universidade de vemos em sociedades que são politica- Londres. É diretor do Centro de Estu- mente democráticas mas socialmente dos Sociais da Universidade de Coimbra fascistas”, pontua. e coordenador científico do Observató- O debate de Boaventura se insere na rio Permanente da Justiça Portuguesa. recente publicação de seu livro A difí­ De sua vasta obra, destacamos Se Deus cil democracia. Reinventar as esquer­ fosse um ativista dos direitos humanos das (São Paulo: Boitempo, 2016). Para (São Paulo: Cortez Editora, 2013), A cor o sociólogo, as esquerdas precisam fa- do tempo quando foge: uma história zer uma profunda autocrítica e superar do presente – crônicas 1986-2013 (São um modelo político baseado em conci- Paulo: Cortez Editora, 2014), O direito liações com o grande capital. “Enquan- dos oprimidos (2014) e A justiça popu­ to a esquerda não voltar a ter no hori- lar em Cabo Verde (São Paulo: Cortez zonte uma alternativa pós-capitalista, Editora, 2015). chamemos-lhe socialismo ou outra coi- A entrevista foi originalmente publi- sa, o seu declínio continuará, dado que cada na Notícias do Dia de 8-12-2016, a direita é quem sabe gerir este capi- no sítio do Instituto Humanitas Unisi- talismo”, critica. Contudo, Boaventura nos – IHU, disponível em http://bit. aposta na radicalização da democracia ly/2h1Q6xq. como alternativa para as crises con- temporâneas. “Para o Estado, ou algo Confira a entrevista.

IHU On-Line – Parafraseando a Boaventura de Sousa Santos – O na prática a democracia está cada pergunta que abre o prefácio do ideal democrático continua a cap- vez mais longe deste ideal. En- seu livro A difícil democracia. tar a imaginação dos que aspiram tre as opiniões que abordam este Reinventar as esquerdas (2016), a uma sociedade que combine a li- problema a partir da esquerda, há para onde vai a democracia? berdade com a justiça social, mas duas posições principais. Para uns,

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a democracia realmente existente odo posterior à Revolução dos Cra- mocráticos reais, como, por exem- está de tal modo descaracterizada vos em 1974. Os brasileiros e as plo, o golpe parlamentar-mediáti- que só por inércia ou distração se brasileiras de mais idade viveram co-judicial no Brasil que fez descer pode considerar como tal. Vivemos uma situação semelhante marcada a qualidade da democracia brasi- em regimes autoritários que se dis- pelo regresso da democracia em leira de maneira dramática. Se era farçam com um verniz democráti- 1985. antes de baixa intensidade, é agora co. É, por exemplo, a posição de de baixíssima intensidade. Para mim, há diferenças signifi- Alain Badiou.1 Para outros, entre os Quando se chegar à conclusão quais me incluo, vivemos em de- cativas entre uma ditadura e uma de que por via pacífica e demo- mocracias de baixa ou muito baixa democracia de baixa intensidade. crática não é possível corrigir tais intensidade que convivem com re- Mesmo assim penso que a demo- distorções, teremos chegado ao gimes sociais fascistas. Daí o meu cracia liberal, para sobreviver à grau zero da democracia. Espero diagnóstico de que vivemos em agressividade do capital global vivamente que tal nunca aconteça, sociedades que são politicamen- dos dias de hoje e ao modo como mas isto tem mais a ver com o meu te democráticas mas socialmente ele arrasta consigo novas formas otimismo da vontade do que com o fascistas. de colonialismo e de patriarca- do, terá de ser refundada a curto meu pessimismo da razão. Ambas as posições partem da prazo, para o que se necessita de mesma ideia de que a democra- uma Assembleia Constituinte ori- IHU On-Line – Como a União cia liberal, que sempre conviveu ginária. Esta necessidade é hoje Europeia entende o conceito de com alguma tensão produtiva com cada vez mais evidente quando democracia? o capitalismo, sobretudo desde a vemos o que está a suceder no Boaventura de Sousa Santos – A segunda guerra mundial, está a país que sempre se autodesignou deixar desaparecer essa tensão e União Europeia – UE enquanto sis- como a democracia mais antiga e tema político e institucional é uma a acomodar-se cada vez mais às mais consolidada da nossa época, exigências do capitalismo. Estas, democracia de baixíssima intensi- os EUA. É cada vez mais evidente dade. Primeiro, há um déficit de- como se sabe, pressupõem que que a fraude eleitoral é constituti- a acumulação de capital e a sua mocrático constitutivo na medida va desse país, tal como o é a influ- rentabilidade devem prevalecer em que os órgãos com mais poder ência do dinheiro no processo po- sobre qualquer outro objetivo. A (Comissão, Eurogrupo, Banco Cen- lítico, algo que está para além da 74 diferença entre as duas posições tral Europeu) não foram eleitos pe- corrupção porque está totalmente não resulta apenas de diagnósti- los cidadãos europeus, nem estão legalizado. O fenômeno Donald cos diferentes. Reside também no sob qualquer controle democráti- Trump3 é apenas um sintoma de impacto das biografias dos autores co. O Parlamento Europeu, com os algo muito mais profundo e mais que as propõem. Eu, por exemplo, seus limitados poderes, é a outra perigoso. vivi parte da minha idade adulta face desta moeda. Só muito restri- em Portugal numa ditadura, o Es- Sem uma profunda refundação tivamente se pode falar de cidada- tado Novo de Oliveira Salazar,2 e da democracia, poderemos chegar nia europeia. Segundo, a UE é hoje um antro de neoliberalismo (que o tenho vivido intensamente o perí- à conclusão a curto prazo de que digam os países latino-americanos não é possível corrigir por via de- que têm estado em negociações 1 Alain Badiou (1937): filósofo, dramaturgo mocrática as distorções cada vez e romancista, leciona filosofia na Universida- para tratados de livre comércio mais grotescas dos processos de- de de Paris-VII Vincennes e no Collège Inter- com a Europa) frontalmente hostil national de Philosophie. É autor, entre mui- tos outros, do livro Saint Paul. La fondation complementares: a da propaganda e a da re- ao que foi a democracia de mais de l’universalisme (Paris: PUF, 1997), várias pressão. (Nota da IHU On-Line) alta intensidade (mais equilíbrio vezes reeditado na França e traduzido em 3 Donald John Trump (1946): é um em- entre liberdade e igualdade social) diferentes línguas como o inglês e o italiano. presário, ex-apresentador de reality show (Nota da IHU On-Line) e presidente eleito dos Estados Unidos. da Europa no pós-guerra e até o 2 António de Oliveira Salazar, Oliveira Sala- Na eleição de 2016, Trump foi eleito o 45º ano 2000. Se tivéssemos algumas zar ou simplesmente Salazar (1889–1970): presidente norte-americano pelo Partido dúvidas, elas seriam dissipadas foi um ditador nacionalista português que, Repu¬blicano, ao derrotar a candidata demo- ao vermos como o presidente da além de chefiar diversos ministérios, foi pre- crata Hillary Clinton no número de delegados sidente do Conselho de Ministros e professor do colégio eleitoral; no entanto, perdeu no Comissão que conduziu a viragem catedrático de Economia Politica, Ciência voto popular. Trump tomará posse em 20 de neoliberal da Europa, o portu- das Finanças e Economia Social da Univer- janeiro de 2017 e, aos 70 anos de idade, será guês Durão Barroso,4 foi nomeado sidade de Coimbra. Doutor Honoris causa, a pessoa mais velha a assumir a presidência. para presidente da Goldman Sachs em 1940, pela Universidade de Oxford. Figu- Entre suas bandeiras estão o protecionismo ra de destaque e promotor do Estado Novo norte-americano, por onde passam questões quando terminou o seu mandato. (1933–1974) e da sua organização política, a econômicas e sociais, como a relação com União Nacional, Salazar dirigiu os destinos imigrantes nos Estados Unidos. Trump é pre- 4 José Manuel Durão Barroso (1956): de Portugal como presidente do Ministério sidente do conglomerado The Trump Organi- é um político, professor e gestor português, de forma ditatorial entre 1932 e 1933 e, como zation e fundador da Trump Entertainment atual Presidente do Banco Goldman Sachs Presidente do Conselho de Ministros entre Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, International. Foi Primeiro-Ministro de Por- 1933 e 1968. Os autoritarismos e nacionalis- vida pessoal, riqueza e modo de se pronun- tugal de 2002 a 2004 e 11º Presidente da Co- mos que surgiam na Europa foram uma fonte ciar contribuíram para torná-lo famoso. missão Europeia de 2004 a 2014. (Nota da de inspiração para Salazar em duas frentes (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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Como sabemos, a Goldman Sachs a União Europeia entende como que orientaram as democracias na é o patrão mundial do neolibera- democracia? Europa no pós-guerra. lismo a que ingenuamente chama- Boaventura de Sousa Santos – Portugal é hoje a experiência mos “mercados”. Terceiro, a crise É fácil de ver pelo que disse aci- política democrática mais brilhan- financeira de 2008, ao repercutir te da Europa dos últimos vinte na Europa, fez com que se geras- ma. O entendimento autoritário anos. Um governo moderado de se uma pulsão antidemocrática da democracia vigente na UE é de esquerda está a tentar mostrar nas relações entre os países mais que não há qualquer solidariedade que a vertigem neoliberal é des- ricos da UE e os mais pobres. As entre os países que a compõem e trutiva para o projeto europeu e exigências do capitalismo neolibe- que só os países ricos da Europa se para a democracia em geral e que ral vieram dar azo ao colonialismo podem dar ao luxo de se benefi- há ainda na UE alguma virtualida- interno na Europa, o que, não sen- ciar da proteção possibilitada pela do novo, assumiu agora uma forma social-democracia. A crise finan- de para travar o movimento sui- mais chocante por ter lugar no seio ceira da Grécia ter-se-ia resolvido cida em que a Europa se deixou de uma comunidade política que se muito facilmente se a coesão da enredar. Este governo foi possível diz assentar na igualdade política UE fosse um valor mais importan- devido a uma união das forças de dos parceiros. te que os créditos dos bancos ale- esquerda sem precedentes na his- mães e franceses. Bastava mutua- tória recente do país. Perante o Não devemos confundir a demo- lizar a dívida soberana da Grécia, descalabro reacionário que o país cracia da instituição UE com as que era coisa pouca comparada viveu entre 2011 e 2015, com um democracias existentes a nível na- com o que veio depois. Portugal governo revanchista apostado em cional nos países que a compõem. e Espanha sofreram o impacto por destruir tudo o que o país tinha Aqui as diferenças são enormes e a arrasto da Grécia (especulação conquistado depois de 1974, o vigência do neoliberalismo é mais financeira abutre do tipo da que Partido Comunista e o Bloco de Es- matizada. A nível nacional vigora se abateu no início do milênio na querda, que sempre consideraram ainda em muitos países o modelo da Argentina). o Partido Socialista um partido de social-democracia, ainda que mui- direita, resolveram dar-lhe apoio to descaracterizado. Entendo por Como os fatos estão a mostrar, parlamentar para tornar possível social-democracia o modelo que vi- esses países, longe de serem uma uma inversão, mesmo que limita- gorou na Europa, sobretudo depois ameaça para a democracia euro- da, nas políticas de austeridade. de 1945, assente numa combinação peia, são sua garantia. Se tivesse Esta experiência política inédita 75 entre altos níveis de produtividade tido êxito o que a Grécia preten- de unidade das forças políticas de e altos níveis de proteção social, deu fazer e a UE proibiu, não terí- esquerda pode ser um exemplo a com base numa regulação forte do amos o Brexit5 e o crescimento da ponderar no Brasil neste período capitalismo, uma tributação pro- extrema direita por toda Europa, difícil que atravessa. O governo gressiva, nacionalização de setores uma vertigem política, oxigenada português tem estado sempre sob estratégicos, direitos econômicos pela eleição de Trump, que põe em ataque da UE, mas, em face do e sociais universais que permitiram causa todos os princípios políticos Brexit, começa a ser reconhecido às famílias trabalhadoras, pela pri- como uma via possível para salvar meira vez na história do capitalis- 5 Brexit: a saída do Reino Unido da União o projeto europeu. mo, planejarem a sua vida (mandar Europeia é apelidada de Brexit, palavra-vali- os filhos à universidade, comprar se originada na língua inglesa resultante da fusão das palavras Britain (Grã-Bretanha) e casa, pensar numa aposentadoria IHU On-Line – Como a lógica co- exit (saída). A saída do Reino Unido da União lonialista se mantém na perspec- digna). Este modelo continua a vi- Europeia tem sido um objetivo político perse- gorar com alguma intensidade nos guido por vários indivíduos, grupos de inte- tiva política da União Europeia? países nórdicos; assume a forma resse e partidos políticos, desde 1973, quan- do o Reino Unido ingressou na Comunidade Boaventura de Sousa Santos – O de economia social de mercado Econômica Europeia, a precursora da UE. colonialismo interno na Europa tem na Alemanha; tem pouca vigência A saída da União é um direito dos estados- uma longa duração histórica, como nos países do Leste Europeu; é uma -membros segundo o Tratado da União Euro- peia. Em 2106, a saída foi aprovada por refe- analisei no meu livro Portugal: En­ total ruína na Inglaterra e na Gré- rendo realizado em junho 2016, no qual 52% saio contra a Autoflagelação (São cia; está em sérias dificuldades na dos votos foram a favor de deixar a UE. O Ins- Paulo: Cortez, 2011). Em tempos França e na Itália; nunca teve um tituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção mais recentes, a Grécia, Portugal pleno desenvolvimento na Espanha Notícias do Dia de seu site, vem publicando uma série de análises sobre o tema. Entre e a Espanha foram autênticos pro- e em Portugal; e tem estado sob elas, A alma da Europa depois do Brexit, ar- tetorados alemães na medida em ataque por parte das instituições tigo de Roberto Esposito, publicado no jornal que o governo alemão interveio da UE. La Repubblica e reproduzido nas Notícias do Dia de 01-07-2016, disponível em http://bit. diretamente na política destes pa- ly/2gazMuF; e O Brexit e a globalização, arti- íses com o objetivo de influenciar IHU On-Line- De que forma go de Luiz Gonzaga Belluzzo, publicado por os eleitores. Quando a intervenção os países europeus periféricos, CartaCapital e reproduzido nas Notícias do não foi direta, exerceu-se através Dia de 12-07-2016, disponível em http://bit. como Portugal, Espanha e Grécia, ly/2eY4F68. Confira mais textos em ihu.uni- da Comissão ou do Banco Central se tornaram ameaças àquilo que sinos.br. (Nota da IHU On-Line) Europeu, liderado por um ex-CEO

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da Goldman Sachs. Mais do que im- uma comunidade política coesa. IHU On-Line – De que maneira posição antidemocrática de disci- Os tratados que consolidaram esse sociedades politicamente demo- plina financeira, trata-se de ver es- mercado, sobretudo o que estabe- cráticas se transformam, ao mes- tes países com lentes colonialistas, leceu o euro, têm um recorte ne- mo tempo, em sociedades social- como sejam os estereótipos – infe- oliberal muito claro, ainda que tal mente fascistas? riores, descuidados, preguiçosos, fato tivesse passado despercebido Boaventura de Sousa Santos – pouco produtivos – os mesmos que à maioria dos partidos políticos. As situações de fascismo social os portugueses e espanhóis usaram A criação da moeda única foi ocorrem sempre que pessoas ou para estigmatizar as populações paralela à liberalização dos mer- grupos sociais estão à mercê das sob o seu domínio colonial. Esta di- cados, o que abria uma porta para decisões unilaterais daqueles que visão entre um centro europeu e as suas periferias vem desde o século os produtos da China, os quais têm poder sobre eles sem se po- XIV e dura até hoje. A única perife- não concorriam com os produtos derem defender em termos práti- ria que conseguiu juntar-se ao cen- alemães, mas certamente concor- cos invocando direitos que efeti- tro foi a periferia nórdica. Todas as riam com os têxteis portugueses. vamente os defendem. Exemplos outras (leste, sul, sudoeste) conti- A partir daí (cerca de 2000) esta- de fascismo social: quando uma nuam tão periféricas quanto antes. vam criadas as condições para a família tem comida para dar aos estagnação econômica dos países filhos hoje mas não sabe se a terá periféricos, o que veio a suceder. amanhã; quando um trabalhador IHU On-Line – Do que se trata o Quando a crise da Grécia eclodiu, desempregado se vê na contingên- “projeto europeu como ruína”? passou a ser evidente que a coesão cia de ter de aceitar as condições Boaventura de Sousa Santos – política era um verniz que estalava ilegais que o patrão lhe impõe Desde o seu início, o projeto eu- facilmente ante a lógica do mer- para poder matar a fome da famí- ropeu teve dois impulsos e duas cado e do neoliberalismo. O modo lia; quando uma mulher é violada concepções: a do economista von como foi “resolvida” a crise grega a caminho de casa ou é assassi- Hayek,6 para quem a UE era ape- (uma diminuição do PIB da ordem nada em casa pelo companheiro; nas um mercado comum, e a de dos 25%) mostrou que a partir daí quando os povos indígenas são ex- De Gaulle,7 para quem a UE era o projeto europeu era uma inércia pulsos das suas terras ou assassi- um projeto político destinado a mantida viva apenas pelo temor do nados impunemente por capangas criar uma paz duradoura e manter caos do fim do euro. ao serviço dos agronegociantes e 76 a Alemanha sob controle. Duran- latifundiários; quando os jovens Bruxelas, sede da UE, passou a te muito tempo parecia tratar- negros são vítimas de racismo e ser o centro de uma disciplina fi- -se de duas dimensões do mesmo de brutalidade policial nas peri- nanceira cega e autoritária, guiada projeto. Com o tempo a primeira ferias das cidades. Em todos estes pela Alemanha e pelos milhares de concepção foi-se impondo ainda casos estou a referir situações em lobistas neoliberais que pululam que a retórica fosse a do projeto que as vítimas são formalmente como uma praga em redor das ins- político. Isto tornou-se evidente cidadãos, mas não têm realisti- tituições (só a Google tem ao seu quando, com os novos países can- camente qualquer possibilidade serviço 600 lobistas). Nenhum eu- didatos a entrar na UE, pôs-se a de invocar eficazmente direitos ropeu comum se identifica com questão se se devia dar prioridade de cidadania a seu favor. A situa- esta ditadura financeira que vai ao aprofundamento ou à extensão ção agrava-se quando se trata de destruindo o que resta das classes da UE. A opção foi sempre pela imigrantes, refugiados etc. Por médias europeias para alimentar expansão, o que foi um sinal de exemplo, a situação de trabalho os lucros dos bancos. O Brexit veio que a prioridade era afinal o mer- escravo de milhares de imigrantes mostrar a fragilidade dessa inércia. cado interno e não a criação de bolivianos nas fábricas de São Pau- E já se fala do Frexit, se a extrema lo. As vítimas de fascismo social direita ganhar as eleições na Fran- 6 Friedrich August von Hayek (1899- não são consideradas plenamente 1992): foi um economista da escola austrí- ça, do Austrexit pelas mesmas ra- humanas por quem impunemente aca. Hayek fez contribuições importantes zões na Áustria. Podem não ocorrer para a psicologia, a teoria do direito, a eco- as pode agredir ou explorar. nomia e a política. Recebeu o prêmio Nobel agora, mas se nada for feito para de Economia em 1974. Em psicologia, Hayek criar uma flexibilidade financeira Mas o fascismo não tem apenas a propôs uma teoria da mente humana segun- interna que tome em conta o fato face violenta. Tem também a face do a qual a mente é um sistema adaptativo. Em economia, Hayek defendeu os méritos de estarmos perante economias benevolente da filantropia. Na fi- da ordem espontânea. Segundo Hayek, uma nacionais muito diferentes com a lantropia quem dá não tem dever economia é um sistema demasiado complexo mesma moeda, o euro colapsará de dar e quem recebe não tem para ser planejado e deve evoluir esponta- neamente. Hayek estudou na Universidade e com ele a UE. Isto não quer di- direito de receber. Em tempos re- de Viena, onde recebeu o grau de doutor em zer que outro projeto europeu não centes, a classe alta e média alta Direito e em Ciências Políticas. (Nota da IHU possa surgir, mas eu tenho certas do Brasil se ressentiu muito porque On-Line) dúvidas pelo menos enquanto os as empregadas domésticas ou os 7 Charles de Gaulle (1890-1970): general e presidente da França de 1958 a 1969. (Nota ventos continuarem a soprar a fa- motoristas já não precisavam dos da IHU On-Line) vor das bandeiras nacionalistas. favores dos patrões para comprar

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um computador para os filhos ou política), nem reforma tributária, ceito classista é sempre misturado fazer um curso. Ressentiam-se com bancária ou dos media. com o preconceito racista e sexis- o fato de os seus subordinados se ta. O governo Temer9 mostrou isso terem libertado do fascismo social. IHU On-Line – Como o senhor vê à sociedade e as políticas que têm Quanto mais vasto é o número dos o caso brasileiro, em que as es- vindo a ser propostas confirmam as que vivem em fascismo social, me- querdas sofreram um profundo mais pessimistas previsões. Mas o nor é a intensidade da democracia. revés nas eleições para as princi- racismo e o sexismo não são infe- pais prefeituras do país? lizmente um monopólio da direita. IHU On-Line – O que pode ex- O modo como no governo Dilma Boaventura de Sousa Santos – plicar o declínio das esquerdas na foram tratados os povos indíge- Revés nas eleições municipais foi Europa e na América do Sul? nas sempre que se atravessaram uma consequência direta do pro- no caminho do agronegócio foi Boaventura de Sousa Santos – O cesso político iniciado com o im- chocante. fato de terem aceitado que o capi- pedimento da presidente Dilma talismo era eterno, que o neolibe- Rousseff.8 Foi um processo bem Perante esta demonização, o PT ralismo era uma fatalidade e que orquestrado de demonização do PT pouco podia fazer a curto prazo a não havia qualquer alternativa pós- que aproveitou ao máximo os erros menos que tivesse decidido fazer capitalista. A queda do Muro de de governo do partido, apoiado por uma profunda refundação política. Berlim significou tanto a queda do uma impressionante manipulação Isso implicava rupturas e não era socialismo de Estado como da so- das grandes mídias e a atuação possível dada a decisão de o ex- cial-democracia, que se julgou, na cúmplice do sistema judicial que -presidente Lula10 se manter como altura, triunfante. Pelo contrário, incluiu violações flagrantes da lega- garante da política de esquerda. a partir daí o capitalismo deixou lidade. As forças do grande capital Uma decisão totalmente compre- de ter medo da concorrência, e o não tiveram paciência para esperar ensível, sobretudo por todos acre- ataque aos direitos sociais e eco- mais quatro anos e contaram com ditarmos demasiado nas armadilhas nômicos acentuou-se e tem vindo a um apoio muito mais importante das sondagens que fazem dele o acentuar-se, na Europa e em todo do que se pensa do imperialismo político mais popular do Brasil pre- o mundo. norte-americano. Um dia se sabe- cisamente para o manter no ativo e assim impedir uma renovação pro- Enquanto a esquerda não voltar rá até que ponto essa intervenção funda das forças de esquerda. Tal a ter no horizonte uma alternati- foi decisiva. O Brasil era uma peça 77 va pós-capitalista, chamemos-lhe importante nos BRICS e esta alian- ça era importante para projetar a 9 Michel Miguel Elias Temer Lulia socialismo ou outra coisa, o seu [Michel Temer] (1940): político e advogado declínio continuará, dado que a di- posição da China, o grande inimigo brasileiro, ex-presidente do Partido do Mo- reita é quem sabe gerir este capita- e grande credor dos EUA. Era pre- vimento Democrático Brasileiro (PMDB). É o ciso neutralizar o Brasil como se atual presidente do Brasil, após a deposição lismo. Na América Latina, o avanço por impeachment da presidenta Dilma Rous- da esquerda na primeira década tem feito com a Rússia. Só assim se seff naquilo que inúmeros setores nacionais e do milênio pareceu desmentir esta poderá isolar a China que em 2030 internacionais denunciam como golpe parla- pode ser já a primeira potência mentar. Foi deputado federal por seis legisla- tendência histórica. Foi possível turas e presidente da Câmara dos Deputados devido a uma conjuntura excep- econômica mundial. por duas vezes. (Nota da IHU On-Line) cional que não se repetirá nos anos Numa sociedade racista e oligár- 10 Luiz Inácio Lula da Silva [Lula] (1945): Trigésimo quinto presidente da República mais próximos: a subida dos preços quica como é a brasileira o precon- Federativa do Brasil, cargo que exerceu de dos produtos primários, agrícolas e 2003 a 1º de janeiro de 2011. É co-fundador e minérios, devido à explosão da Chi- 8 Dilma Rousseff (1947): economista e presidente de honra do Partido dos Trabalha- na. Este fato, ao mesmo tempo que política brasileira, filiada ao Partido dos Tra- dores (PT). Em 1990, foi um dos fundadores balhadores-PT, presidente do Brasil de 2011 e organizadores do Foro de São Paulo, que remetia estes países para a conti- (primeiro mandato) até 31 de agosto de 2016 congrega parte dos movimentos políticos de nuidade com o colonialismo (forne- (segundo ano de seu segundo mandato). Em esquerda da América Latina e do Caribe. Foi cedores de matérias-primas, e que 12 de maio de 2016, foi afastada de seu cargo candidato a presidente cinco vezes: em 1989 durante o processo de impeachment movi- (perdeu para Fernando Collor de Mello), em agora chegou a provocar a desin- do contra ela. No dia 31 de agosto, o Senado 1994 (perdeu para Fernando Henrique Car- dustrialização do Brasil), permitiu Federal, por votação de 61 votos favoráveis doso) e em 1998 (novamente perdeu para aos governos de esquerda efetuar ao impeachment contra 20, afastou Dilma Fernando Henrique Cardoso), e ganhou as uma impressionante redistribuição definitivamente do cargo. O episódio do im- eleições de 2002 (derrotando José Serra) e peachment foi amplamente debatido nas de 2006 (derrotando Geraldo Alckmin). Lula de riqueza sem alterar o modelo Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por bateu um recorde histórico de popularidade de desenvolvimento ou o sistema exemplo, a Entrevista do Dia com Rudá Rici durante seu mandato, conforme medido pelo político. No momento em que tal intitulada Os pacotes do Temer alimentarão Datafolha. Programas sociais como o Bolsa a esquerda brasileira e ela voltará ao poder, Família e Fome Zero são marcas de seu go- deixou de ser possível, o capitalis- disponível em http://bit.ly/2bLPiHK. Du- verno, programa este que teve seu reconheci- mo quis manter a sua rentabilidade rante o governo do ex-presidente Luiz Inácio mento por parte da Organização das Nações a todo o custo e conseguiu o seu Lula da Silva, assumiu a chefia do Ministério Unidas como um país que saiu do mapa da objetivo facilmente precisamente de Minas e Energia e posteriormente da Casa fome. Lula teve um papel de destaque na evo- Civil. Em 2010, foi escolhida pelo PT para lução recente das relações internacionais, in- porque não tinha havido mudança concorrer à eleição presidencial. (Nota da cluindo o programa nuclear do Irã e do aque- no sistema político (e na prática IHU On-Line) cimento global. (Nota da IHU On-Line)

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como estão as coisas parece que as financeiro global de tributar os ri- décadas, e dada a escandalosa forças de direita poderão liquidar cos, tem de se endividar nos mer- concentração de riqueza e a alar- politicamente Lula como quiserem cados financeiros onde não tem mante destruição da natureza, a e quando quiserem. É este o esta- nenhum privilégio soberano (o ci- política só em parte se vai exercer do a que chegou grande parte da nismo da designação “dívida sobe- nas instituições democráticas; a esquerda brasileira. rana”). Para o Estado, ou algo que outra parte será extrainstitucional o substitua politicamente, poder pacífica (ações diretas, greves, IHU On-Line – Não é um para- agir contra o neoliberalismo terá marchas, protestos, ocupações). doxo, pelo menos na experiência de passar por uma profunda trans- A esquerda vai ter de saber estar brasileira, a esquerda conquistar formação democrática. nos dois lados sem contradição e o poder e adotar práticas típicas maximizar os contributos de cada de forças políticas mais conserva- IHU On-Line – Falta autocrítica tipo de prática política para a de- doras e alinhadas ao pensamento à esquerda? mocratização da sociedade. Sex- de direita? to, nada disso será possível sem Boaventura de Sousa Santos – A uma profunda transformação do Boaventura de Sousa Santos – É, autocrítica evoca processos me- sistema judicial, político, de co- mas explica-se pelas razões acima. nos democráticos, mas tem de ser municação social e tributário. É Enquanto não houver uma refor- feita de modo democrático e ir ao preciso isolar o mercado das ideias ma do sistema político e o poder mais fundo possível. Tenho escrito políticas do mercado dos valores do dinheiro e dos grandes media muito sobre este tema. Eis algumas econômicos. A esquerda não deve for retirado do processo eleitoral, ideias para o debate. Primeiro, nas aceitar ser poder na condição de a esquerda só pode governar em atuais circunstâncias, a esquerda esquecer ou renunciar ao que é. aliança com a direita e enquanto será sempre uma contracorrente Deve construir uma alternativa isso lhe convier. que não pode governar como a di- pós-capitalista apostando em que reita governa nem fazer alianças o capitalismo, como qualquer ou- contranatura com a direita. Se ti- IHU On-Line – O que sobrou tro fato histórico, teve um princí- ver de o fazer deve renunciar a ser dos ideais de esquerda do século pio e há de ter um fim. XX? A igualdade continua sendo o governo. Por exemplo, pode voltar grande ideal de esquerda? a centrar-se no governo municipal 78 onde é possível uma política de IHU On-Line – Estaria nas ocupa- Boaventura de Sousa Santos – proximidade e onde o impacto no ções secundaristas o embrião de Os ideais da esquerda do século quotidiano das pessoas é decisivo. uma nova esquerda? XX continuam vivos porque afinal Segundo, a democracia represen- vêm do final do século XVIII e não Boaventura de Sousa Santos – tativa perdeu a luta contra o ca- são mais que os grandes objetivos Estive reunido com alguns deles pitalismo e não tem futuro se não da Revolução Francesa: liberdade, recentemente em Brasília. São for complementada com genuína igualdade e fraternidade. O pro- jovens maravilhosos precisamente democracia participativa a todos blema está na vigência dos pressu- porque não se deixam convencer os níveis de governação. Esta com- postos e na eficácia dos processos pela ideia de que não há alterna- plementaridade entre democra- que presidiram as lutas para que tiva às políticas em curso. Sempre cia representativa e democracia esses valores tivessem alguma re- mantive que os jovens nunca es- participativa deve estar presente alização, o que para uns só era tão despolitizados. Apenas não se nos partidos políticos. Só assim se possível numa sociedade socialista interessam pelo tipo de política poderá decidir participativamente e para outros numa profunda re- que tem vindo a dominar. A prova quais são as políticas e quem são gulação do capitalismo. Tais pres- está aí mesmo. Em vários países os candidatos. supostos e processos assentaram do mundo estamos a assistir a um na centralidade do Estado e na Terceiro, os partidos deixam novo tipo de movimento estudan- organização nacional do capita- de ter o monopólio da represen- til no Chile, México, Índia, África lismo. Foi assim possível fazer do tação política de interesses e os do Sul, Inglaterra e agora também Estado um agente de intervenções cidadãos organizados devem po- no Brasil. É difícil de prever como não mercantis (nacionalizações, der participar. Quarto, sempre evoluirá. Uma coisa é certa, ele e políticas sociais no domínio da que tiver oportunidade a esquerda mostra que a política não morrerá saúde, educação e previdência). deve criar ou apoiar a criação de e as alternativas não deixarão de Ora, hoje o capitalismo é global e zonas livres do capitalismo neo- estar nos horizontes e sonhos dos está a pôr o Estado na sua estrita liberal por mais circunscrito que mais jovens enquanto vivermos em dependência. O Estado é agora um seja o seu âmbito. Funcionarão sociedades tão repugnantemente agente de intervenções mercantis como pedagogia de um futuro pós- injustas, tão destrutivas da natu- (privatizações, parcerias público- -capitalista, a tal alternativa sem reza e tão mediocremente demo- privadas, terceirização). Tendo a qual a esquerda perde o sentido cráticas como aquelas em que vi- sido “proibido” pelo capitalismo de existir. Quinto, nas próximas vemos.

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#Crítica Internacional - Curso de RI da Unisinos A possível internalização dos interesses dos EUA no Brasil

Por Bruno Lima Rocha

lgo que ou não foi realizado, ou se o foi, não esteve a conten- to, seria o acompanhamento do Decreto Presidencial de Número “A3810/2001, ou segundo a denominação completa, Acordo de Assis- tência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América, celebrado em Brasília, em 14 de outubro de 1997, corrigido em sua versão em português, por troca de Notas, em 15 de fevereiro de 2001”, escreve Bruno Lima Rocha. Bruno Lima Rocha é doutor e mestre Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Rio Grande do Sul – UFRGS, graduado em Jornalismo pela Univer- sidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e é professor de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio do Sinos – UNISINOS. Eis o artigo.

80 Para começarmos este debate, é necessário estabe- possibilidade bastante presente em países de sistema lecer uma pergunta-chave, algo que nos faça compre- liberal-democrático e separação entre poderes, é a ender o nível de vulnerabilidade que o Brasil sofre – ou Guerra Legal (Lawfare) ou a guerra dentro do apare- vem sofrendo – dentro do Sistema Internacional, e es- lho Judiciário e do Ministério Público dos países-alvo pecificamente quanto à soberania decisória. destas ações. “Quais são as vulnerabilidades externas que podem Ao tomar posse em 1º de janeiro de 2003, estou ser internalizadas no Estado brasileiro, de modo a vio- afirmando que o então presidente Luiz Inácio Lula da lar nossa soberania e diminuir as posições do país no Silva e sua equipe de governo, apesar de contar com Sistema Internacional?” a participação de dezenas de ex-guerrilheiros, jamais pensara nesta possibilidade. Se o fez, a efetividade Estamos na América Latina, nosso hegemon são os foi nula (e o proceder dos ministros à frente da pasta Estados Unidos da América – EUA, país com o qual hoje da Justiça comprovam essa afirmação), pois não dei- temos mais laços de dependência financeira, ciberné- xou para a sucessora uma mentalidade operacional de tica, cultural e em parte militar, do que necessaria- vigilância permanente sobre as possíveis dissidências mente dependência econômica. dentro do aparelho de Estado a servirem de aliados As violações de soberania e hostilidades, quando não internos das projeções de poder dos EUA sobre nós. se trata de operações especiais permanentes – como Quando digo atenção e alerta permanente, não estou os EUA coordenam através do Estado Maior Conjunto me referindo a ter uma agenda do Executivo. Trata-se de Forças Especiais – USSOCOM (ver socom.mil), parti- de uma atitude prévia à tomada de posse, partindo cularmente pelo exército privado da Casa Branca (ver do princípio evidente que na América Latina, por mais socom.mil/pages/jointspecialoperationscommand. abrandada que seja a postura de um governo marca- aspx), podem se dar através de modalidades de ata- do ao centro, sempre pode ter uma virada de mesa. que eletrônico, como os perpetrados pela NSA (Agên- Outra postura, que pode ser generalizada para outros cia Nacional de Segurança, ver nsa.gov), agências afins países da Semi Periferia, em especial a Estados com ou forças-tarefa conjuntas. Outras modalidades de capacidade de se tornarem Potências Médias, é a visão agressão vêm sendo debatidas nesta publicação, como do hegemon sobre nós. Obviamente, esta preocupação as chamadas revoluções coloridas, a guerra de 4ª ge- deveria se materializar em alguma comissão de acom- ração, ou a variável mais recente de guerra híbrida. A panhamento, ou grupo de trabalho, de extrema con-

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Há uma profunda idealização de sistemas de vida em sociedade dos países anglo-saxões em fra- ções de classe e estamentos do Estado brasileiro

fiança política, poder de influência sobre as decisões O acordo Brasil-EUA, iniciado em 14 de outubro de do núcleo duro do governo e imune a “vazamentos” ou 1997 (durante o primeiro mandato do governo de Fer- infiltrações. nando Henrique Cardoso – FHC), foi reiterado através Não há necessidade de explicar agora, após o golpe de Decreto Presidencial No. 3810/2001 (ver http://mi- de 2016, as razões desta necessidade não realizada. gre.me/vHGW3), após um Decreto Legislativo de No. Para além dos conflitos internos da sociedade brasi- 262, de 18 de dezembro de 2000. Neste decreto presi- leira, nas regras duras do Sistema Internacional, sabe- dencial, afirma-se que os termos do acordo só podem -se que qualquer possibilidade de projeção de poder ser alterados com a aprovação do Congresso Nacional. nacional que ultrapasse certos limites, ou que impeça Tais termos indicam no Artigo II, item 2, para opera- a presença transnacional em setores estratégicos do rem implicam uma autoridade central de cada país, capitalismo brasileiro, poderá ser vista como potencial sendo que no texto original, a centralidade brasileira hostilidade. Considerando o peso do Brasil no Conti- estava com o Ministério da Justiça (MJ) e nos EUA, o nente e no eixo do Atlântico Sul, além das relações Procurador-Geral ou pessoa por ele designada. No Ar- com a África, simplesmente Washington jamais pode- tigo III, itens a), b) e c), constam todas as restrições ria aceitar de modo passivo o crescimento do Estado para o acesso de informações do Estado Requerido brasileiro na mundialização capitalista. Esse aceite pelo Estado Requerente. No item b), especificamente, torna-se ainda mais improvável quando há inclinação os temas de que possam vir a prejudicar o Estado Re- para o estabelecimento de alguns acordos no âmbito querido podem ser negados. dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Como o Decreto 3810/2001 continua válido, logo Agrava a situação de partida quando se sabe que há se entende que não houve uma aprovação formal do 81 uma profunda internalização de valores liberais e ide- Congresso Nacional para a transferência da autoridade alizações de sistemas de vida em sociedade dos países central brasileira do MJ para a Procuradoria Geral da anglo-saxões (com os EUA no centro do imaginário da República – PGR. Se houve, não temos a publicidade elite brasileira) em frações de classe e estamentos do necessária como pressuposto de serviço público. Se a Estado brasileiro. autoridade central brasileira passou do MJ para a PGR, através de sua Secretaria de Cooperação Internacional A evidência do primeiro descontrole – SCI, tal fato não é formalizado nem na própria página nas relações de cooperação judicial da SCI (ver: http://migre.me/vHH9I). Como, quando, entre Brasil-EUA por que, com o aval de quem, a Autoridade Central mudou, são perguntas que necessitam de respostas Uma observação necessária, algo que ou não foi re- urgentes. alizado, ou se o foi, não esteve a contento, seria o acompanhamento do Decreto Presidencial de Núme- Concluímos este debate, demonstrando tanto o ro 3810/2001, ou segundo a denominação completa, argumento central como resposta inconclusa da per- Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal en- gunta-chave, assim como apontando as evidências de tre o Governo da República Federativa do Brasil e o possíveis descontroles e internalização do poder do Governo dos Estados Unidos da América, celebrado em hegemon dentro do Estado brasileiro. Se leitoras e lei- Brasília, em 14 de outubro de 1997, corrigido em sua tores se mostraram apreensivos diante do que aqui foi versão em português, por troca de Notas, em 15 de exposto, reforço o temor e digo que mal começamos a fevereiro de 2001. desenvolver o tema.

Expediente Coordenador do curso: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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PUBLICAÇÕES Jesuítas em campo: a Companhia de Jesus e a questão agrária no tempo do CLACIAS (1966-1980)

O número 249 do Cadernos IHU ideias traz o artigo de Iraneidson Santos Costa, da Universidade Federal da Bahia – UFBA, intitulado Jesuítas em campo: a Companhia de Jesus e a questão agrária no tempo do CLACIAS (1966-1980). No texto, o autor se propõe a analisar a atuação social da Companhia de Jesus, entre os anos de 1966 e 1980. Esse é o período de atuação do Conselho Latino-Americano do CIAS – CLACIAS. “Em virtude da amplitude espacial e da diversidade temática das dezessete instituições envolvidas, elegemos como objeto privilegiado da reflexão a questão agrá- ria, um dos campos mais conflitivos deste apostolado, seja em termos de formulação teórica, seja em termos de suas práticas”, justifica Costa. As- sim, nesse trabalho, o autor que se detém em “‘homens e meios’ mobiliza- dos pela Sociedade de Jesus em seu trabalho na área rural, suas principais linhas de atuação e, considerando que estamos diante de uma conjuntura fortemente marcada por governos ditatoriais, a repressão sofrida por con- ta do compromisso com a justiça social”, completa. Pela sua análise ainda passa a discussão em torno do generalato de Pedro Arrupe (1965-1981), “o qual trouxe uma nova dinâmica para o apostolado social da Companhia de Jesus no mundo e, em especial, na América Latina”. Acesse o artigo completo em versão PDF através do link http://bit. ly/2g53FNK Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser obtidas dire- tamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@ unisinos.br. 82 Informações pelo telefone 55 (51) 3590-8213.

A Igreja em um contexto de “Reforma digital”: rumo a um sensus fidelium digitalis? Moisés Sbardelotto, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, assina o artigo A Igreja em um contexto de “Reforma digital”: rumo a um sensus fidelium digitalis?, no número 116 do Cadernos Teologia Pública. O autor busca constituir sua reflexão no contexto de midiatização digital em que a Igreja e a sociedade em geral passam a ter novas possibilidades na construção de sentido. Assim, Moisés quer observar “os desafios apresenta- dos pelas mudanças comunicacionais contemporâneas às Igrejas e às religi- ões, entendidas a partir do conceito de ‘Reforma digital’”. “A partir do caso católico, examinam-se documentos pontifícios que revelam a compreensão da Igreja sobre tais mudanças, especialmente as recentes mensagens anuais para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, articulando-os com entrevistas com responsáveis pela comunicação vaticana”, destaca Moisés. No texto, o autor ainda destaca “algumas respostas da Igreja Católica a tal fenômeno, mediante aquilo que chamamos de ‘Contrarreforma digital’. Sugere-se que os processos comunicacionais de construção do ‘ser católico’ contemporâ- neo podem estar dando origem a formas novas e renovadas de constituição e manifestação do sensus fidelium, agora encarnado no ambiente digital”. Acesse o artigo completo em versão PDF através do link http://bit. ly/2gzg7lb. Esta e outras edições dos Cadernos Teologia Pública podem ser obtidas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus São Leopol- do da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humani- [email protected]. Informações pelo telefone 55 (51) 3590-8213.

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Retrovisor Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

Mística, estranha e essencial. Secularização e emancipação.

Edição 435 – Ano XIII – 16.12.2013 Disponível em http://bit.ly/2h6BzOs “Nada é profano para quem sabe ver”. Nas palavras de Michel de Certeau, a mística é, ao mesmo tempo, estranha e essencial. Por sua vez, Theodor Ador- no, na esteira de Gershom Scholem, propunha que a mística é uma seculariza- ção que representa um avanço emancipatório. Dotada destas características, a mística volta a ser destaque nesta última edição da IHU On-Line do ano de 2013, que reúne pesquisadores, professores e professoras de diferentes áreas do conhecimento.

Niilismo e relativismo de valores. Mercadejo ético ou via da emancipação e da salvação? 83

Edição 354 – Ano X – 20.12.2010 Disponível em http://bit.ly/2gHDf3M O mais incômodo dos hóspedes não cessa de mover nosso chão e certezas. Quais são os valores e uma ética comum a todos os seres humanos? Que espaço sobra para a solidariedade numa sociedade marcada pelo relativismo? Enfim, mercade- jo ético ou da emancipação e da salvação? São essas as questões que iluminam o debate dessa última edição da IHU On-Line do ano de 2010.

Paulo de Tarso: a sua relevância atual

Edição 286 – Ano VIII – 22.12.2008 Disponível em http://bit.ly/2g0B2RV “O crescente interesse de tantos pensadores, na atualidade, por Paulo de Tarso é, de fato, um fenômeno fascinante”, constata Hermann Häring, teólogo ale- mão. Ele se refere a Giorgio Agamben, Alain Badiou, Slavoj Zizek, Jean-François Lyotard, Jacob Taubes, autor do clássico A teologia política de Paulo, que se de- bruçaram sobre a obra paulina, pois “todos eles descobrem em Paulo uma força política atual relevante”. Desta maneira, “eles transformam Paulo – querendo ou não – numa figura central de nossa época”, completa o pesquisador dos escritos paulinos, Alain Gignac. Esse é o tema da edição da IHU On-Line que encerra o ano de 2008.

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