Jornal Brasileiro de Pneumologia 30(6) - Nov/Dez de 2004

Lesão por inalação de fumaça* inhalation injury

ROGÉRIO SOUZA(TE SBPT), CARLOS JARDIM, JOÃO MARCOS SALGE(TE SBPT), CARLOS ROBERTO RIBEIRO CARVALHO(TE SBPT)

A lesão inalatória é hoje a principal causa de morte nos Inhalation injury is the main cause of death in burn pacientes queimados, motivo pelo qual se justifica o grande patients and has therefore, understandably, been the número de estudos publicados sobre o assunto. Os mecanismos subject of numerous published studies. The pathogenesis envolvidos na gênese da lesão inalatória envolvem tanto os of inhalation injury involves both local and systemic fatores de ação local quanto os de ação sistêmica, o que mechanisms, thereby increasing the repercussions of the acaba por aumentar muito as repercussões da lesão. injury. The search for tools that would allow earlier Atualmente, buscam-se ferramentas que permitam o diagnosis of inhalation injury and for treatment strategies diagnóstico cada vez mais precoce da lesão inalatória e ainda to lessen its deleterious effects is ongoing. In this review, estratégias de tratamento que minimizem as conseqüências we describe the physiopathological mechanisms of da lesão já instalada. Esta revisão aborda os mecanismos inhalation injury, as well as the current diagnostic tools fisiopatológicos, os métodos diagnósticos e as estratégias de and treatment strategies used in patients suffering from tratamento dos pacientes vítimas de lesão inalatória. Ressalta inhalation injury. We also attempt to put experimental ainda as perspectivas terapêuticas em desenvolvimento. therapeutic approaches into perspective.

J Bras Pneumol 2004; 30(5) 557-65.

Descritores: Lesão por inalação de fumaça/diagnóstico. Key words: Smoke inhalation injury/diagnosis. Smoke Lesão por inalação de fumaça/fisiopatologia. Lesão por inhalation injury/pathophysiology. Smoke inhalation injury/ inalação de fumaça/complicações. Queimaduras por complications. Burns, inhalation/therapy. Review literature. inalação/terapia. Literatura de revisão. Intoxicação por . Poisoning/complications. monóxido de carbono/complicações.

* Trabalho realizado na Disciplina de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, FMUSP, São Paulo, SP. Endereço para correspondência: Rogério Souza. R. Afonso de Freitas 556, CEP 04006-052 – São Paulo, SP. Tel: 55-11-3889 7426. Email: [email protected] Recebido para publicação, em 28/4/03. Aprovado, após revisão, em 20/2/04.

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INTRODUÇÃO superiores, enquanto que partículas com menos A lesão inalatória é o resultado do processo de um micrômetro podem atingir os sacos inflamatório das vias aéreas após a inalação de alveolares. O aumento do fluxo aéreo determinado produtos incompletos da combustão e é a principal pela taquipnéia também pode levar ao aumento responsável pela mortalidade (até 77%) dos da taxa de deposição de partículas nas vias aéreas pacientes vítimas de queimaduras(1, 2). Cerca de mais distais(6). 33% dos pacientes com queimaduras extensas Os gases são divididos em duas categorias, de apresentam lesão inalatória e o risco aumenta acordo com o mecanismo de lesão: irritantes e progressivamente com o aumento da superfície asfixiantes. Os gases irritantes causam lesão na corpórea queimada. A presença de lesão inalatória, mucosa através de reações de desnaturação ou por si, aumenta em 20% a mortalidade associada oxidação. Podem causar broncoespasmo, à extensão da queimadura(3). Nos últimos anos traqueobronquite química e até mesmo edema houve um crescente entendimento dos mecanismos pulmonar. O local de ação dos gases irritantes depende fisiopatológicos relacionados à lesão inalatória, o em grande parte de sua solubilidade em água. Os que vem permitindo abordagens cada vez mais gases mais solúveis como a amônia e o dióxido de particularizadas. enxofre geralmente provocam reações nas vias aéreas superiores, provocando sensação dolorosa na boca, nariz, faringe ou mesmo nos olhos. De modo PRODUÇÃO E CONSTITUIÇÃO DA contrário, os gases pouco solúveis são responsáveis FUMAÇA pelas lesões mais distais nas vias aéreas e, por serem A fumaça é a mistura de gases e partículas em pouco irritantes para as vias aéreas superiores, podem suspensão resultantes da queima de qualquer permitir exposição oligossintomática, aumentando a combustível. A produção de fumaça depende de chance e a extensão da lesão parenquimatosa. Os dois processos: pirólise e oxidação. A pirólise é o gases asfixiantes são definidos como aqueles que fenômeno de liberação de elementos do retiram oxigênio do ambiente. A retirada de oxigênio combustível causada exclusivamente pela ação do ocorre tanto pela diminuição da fração de oxigênio calor, através do derretimento ou fervura. A do ar inspirado, como por qualquer outro mecanismo oxidação é o processo em que o oxigênio reage que impeça a captação e distribuição de oxigênio quimicamente com moléculas do combustível pelo sistema cardiovascular. Assim, são considerados quebrando-as em compostos menores que asfixiantes tanto o dióxido de carbono, que diminui resultam na produção de luz e calor. Como a fração de oxigênio do ambiente, quanto o monóxido produtos resultantes da oxidação podemos citar de carbono, cuja ligação com a hemoglobina diminui o monóxido de carbono (CO), dióxido de a oferta de oxigênio aos tecidos(6, 7). nitrogênio (NO2) e dióxido de enxofre (SO2), além do carbono elementar. A predominância de um ou outro processo, além da temperatura, ventilação, MECANISMOS DE LESÃO e do tipo de material queimado no ambiente levam Para facilitar a compreensão, tanto do quadro à produção de uma grande quantidade de clínico, quanto do tratamento, após o elementos constituintes da fumaça, cada qual com esclarecimento dos componentes da fumaça, são sua toxicidade e mecanismo de lesão peculiar(4, 5). apresentados os quatro mecanismos responsáveis Os constituintes da fumaça podem ser divididos pela lesão inalatória: em dois grupos: material particulado e gases. Tanto um como o outro produzem lesões nas vias aéreas, LESÃO TÉRMICA DIRETA mas por mecanismos e em territórios diferentes. A ação decorrente da temperatura da fumaça O material particulado pode levar à obstrução inalada raramente provoca lesões nos territórios das vias aéreas por efeito direto de deposição e abaixo da laringe. Apesar de ter alta temperatura, pela indução de broncoespasmo. De acordo com a fumaça tende a ser seca, o que diminui muito o o tamanho da partícula, a região de depósito é potencial de troca de calor. Além disso, as regiões diferente: partículas maiores que cinco supralaríngeas têm grande capacidade de troca de micrômetros tendem a se depositar nas vias aéreas calor, já que as mucosas encerram grande

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quantidade relativa de água. As lesões em vias 250 vezes maior que a do oxigênio. A produção de aéreas superiores são caracterizadas pela presença carboxihemoglobina, complexo extremamente de eritema, edema e ulcerações de mucosa, estável, além de causar um decréscimo na saturação podendo haver sangramento local ou mesmo de oxihemoglobina, causa um desvio da curva de obstrução da área acometida(8-10). dissociação para a esquerda, diminuindo a liberação de oxigênio aos tecidos. Além disso, a inibição competitiva com os sistemas da citocromo oxidase, INALAÇÃO DO GÁS HIPÓXICO principalmente a do P-450, impede o uso do Durante a combustão, a concentração de oxigênio para geração de energia. O monóxido de oxigênio cai progressivamente até o momento em carbono liga-se também à mioglobina, prejudicando que o fogo se extingue, pelo próprio consumo o armazenamento de oxigênio nos músculos(14-16). gerado pela combustão. Dependendo do tipo de A toxicidade do cianeto é causada pela inibição da combustível, o momento de extinção do fogo oxigenação celular, o que causa anóxia tecidual pela varia. A maior parte do fogo decorrente da inibição reversível das enzimas citocromo oxidase (Fe3+). combustão de derivados de petróleo se extingue A inibição da via glicolítica aeróbia desvia o metabolismo em frações de oxigênio entre 13% e 15%, para a via anaeróbia alternativa, produzindo então o enquanto componentes que contenham oxigênio acúmulo de sub-produtos ácidos(17, 18). podem permitir a combustão até frações inspiradas O tipo de exposição, o tempo, ou ainda a menores que 10%. Essa diminuição da fração predominância de um ou mais desses mecanismos inspirada de oxigênio faz com que as vítimas determinam diferentes evoluções da lesão passem a referir dispnéia e tontura, que podem inalatória. Na Figura 1 podemos observar a evoluir para confusão mental, torpor, coma e até evolução dos fenômenos relacionados à lesão mesmo óbito, em frações ao redor de 5%, inalatória nos diferentes territórios do sistema (11) consideradas incompatíveis com a vida . respiratório frente a diferentes exposições.

TOXINAS LOCAIS DIAGNÓSTICO DA LESÃO INALATÓRIA Dentre os vários componentes da fumaça, Apresentação clínica podem causar lesão direta nas vias aéreas a acroleína, formaldeídos, dióxido de enxofre e Além da história de exposição à fumaça em dióxido de nitrogênio. A ação lesiva decorre de ambiente fechado, vários sinais e sintomas devem (19) um processo inflamatório agudo, mediado por levar à suspeita clínica de lesão inalatória . Os polimorfonucleares, principalmente neutrófilos. mais importantes são listados na Tabela 1. Esse processo pode gerar sintomas, apenas 24 Alguns achados devem levar à suspeita de horas após a exposição, provocando alterações intoxicação por alguma substância em particular. de permeabilidade capilar, de fluxo linfático e O monóxido de carbono, por exemplo, tem de clareamento muco-ciliar, e pode ainda predileção por atingir o sistema nervoso central e determinar o aparecimento da síndrome de o coração. Portanto, a exposição a este agente pode desconforto respiratório agudo e de infecções levar a sintomas de cefaléia, alterações visuais e secundárias(12, 13). confusão mental, e pode evoluir para taquicardia, angina e arritmias, ou ainda convulsão ou coma. A busca ativa por intoxicações relacionadas à TOXINAS SISTÊMICAS lesão inalatória tem particular importância quando Dois gases têm particular importância, dentre existe o acometimento do sistema nervoso central. as substâncias de efeito sistêmico, pela alta morbi- Sempre que possível, devem ser pesquisados mortalidade a que estão associados: o monóxido marcadores sangüíneos ou urinários. No caso do de carbono e o cianeto. monóxido de carbono, por exemplo, em que os A intoxicação por monóxido de carbono é uma níveis séricos de carboxihemoglobina podem ser das causas mais freqüentes de óbito nos pacientes dosados, caracterizando a intoxicação, o submetidos a lesões inalatórias. Ele possui grande diagnóstico é feito facilmente, desde que a suspeita afinidade pela hemoglobina, podendo ser de 200 a tenha sido elaborada em vista do quadro

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Exposição curta Exposição prolongada Altas temperaturas Baixas temperaturas Gases solúveis Gases pouco solúveis

Sintomas precoces Sintomas tardios

Acometimento de Acometimento de região região supra-glótica traqueo-brônquica

Laringoespasmo Broncoespasmo Edema pulmonar Edema de vias aéreas Deposição de fuligem Colapso alveolar superiores

Aumento do risco de pneumonia Precoce

Tardio

Obstrução de vias aéreas Síndrome da angústia respiratória aguda

Distúrbio ventilação / perfusão

Risco aumentado de barotrauma

Figura 1 – Evolução da lesão por inalação de fumaça de acordo com a exposição predominante

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Broncoscopia TABELA 1 O exame das vias aéreas superiores e da traquéia Características clínicas da lesão inalatória é que permite o diagnóstico de lesão inalatória. Os sinais mais sugestivos de lesão inalatória são a Sinais Sintomas presença de edema ou eritema, com ulcerações nas Queimadura de face / Tosse produtiva vias aéreas inferiores ou ainda presença de fuligem cavidade oral em ramificações mais distais. A ausência destes Vibrissas chamuscadas Rouquidão sinais, porém, deve sempre ser analisada tendo-se Escarro com fuligem ou Dispnéia escarro abundante em vista o estado hemodinâmico do paciente, uma Conjuntivite Sibilos vez que pacientes ainda não ressuscitados Desorientação / coma Lacrimejamento volemicamente podem não apresentar áreas de Estridor laríngeo eritema ou edema visíveis ao exame broncoscópico Desconforto respiratório inicial. Com essa ressalva, o exame broncoscópico tem aproximadamente 100% de acurácia no diagnóstico de lesão inalatória instalada(21, 22). clínico. Nas situações em que o diagnóstico não A avaliação cuidadosa das vias aéreas superiores, possa ser adequadamente realizado através de principalmente nos pacientes sem evidência de lesões marcadores, seja pela inexistência de padronização mais distais, é de significativa importância durante o ou pela sua baixa disponibilidade, como no caso exame broncoscópico, pois a presença de edema da intoxicação por cianeto, institui-se tratamento acentuado na região supraglótica, ou mesmo de presuntivo baseando-se na suspeita clínica(15). grande quantidade de secreção alta, pode identificar pacientes com maior risco de obstrução aguda de Exames de imagem vias aéreas, sendo um dos indicadores de intubação Inicialmente, a maioria dos pacientes apresenta precoce nos pacientes com suspeita de lesão de vias radiograma simples de tórax normal, o que faz com aéreas. Deve-se ressaltar porém, que o exame das que esse exame tenha baixo valor preditivo no vias aéreas superiores não exclui a necessidade de diagnóstico da lesão inalatória aguda. Já o achado avaliar as inferiores, uma vez que o acometimento de infiltrado radiológico recente, porém, é sinal de destas pode ocorrer independentemente do lesão inalatória mais acentuada, sendo marcador de acometimento daquelas. pior prognóstico. O principal papel do radiograma É importante salientar que as alterações de tórax está na identificação de novos infiltrados anatômicas evidenciadas pelo exame broncoscópico durante a evolução da lesão inalatória para as fases precedem as alterações na troca gasosa e, mais ainda, sub-aguda e crônica, ou ainda na identificação de as alterações radiológicas. Por isso é importante a avaliação broncoscópica precoce em todos os quadros mais difusos, como a síndrome da angústia (20) respiratória aguda, por exemplo. Devemos lembrar pacientes com suspeita clínica de lesão inalatória . que a fase crônica da lesão inalatória é caracterizada pelo aparecimento de infecções respiratórias Análise dos gases arteriais secundárias, daí a importância do seguimento Conforme mencionado anteriormente, a alteração radiológico dos pacientes para o correto e mais dos gases arteriais pode ocorrer tardiamente à lesão precoce possível diagnóstico. inalatória, o que torna importante caracterizar o risco Se levarmos em consideração que a fase de de lesão inalatória pela história clínica, pelos achados ressuscitação volêmica e a estabilização da de exame físico e pela endoscopia respiratória. Porém, patência de vias aéreas são os principais pontos ressaltamos aqui a necessidade de se dosar os níveis do tratamento inicial do grande queimado, de carboxihemoglobina na suspeita de intoxicação (15) podemos compreender a ausência de estudos por monóxido de carbono . Níveis elevados são significativos sobre o papel da tomografia de diagnósticos de intoxicação. Deve-se lembrar, porém, tórax na identificação precoce da lesão que esses níveis vão decaindo ao longo do tempo e inalatória, em virtude da impossibilidade de se com o tratamento, e podem estar normais quando proceder ao exame em pacientes ainda dosados em ambiente hospitalar, tardiamente à instáveis(20). exposição, falseando o diagnóstico. Outra

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característica da presença de carboxihemoglobina é vias aéreas aumentada, com diminuição do volume a superestimação da oxigenação através da oximetria expiratório forçado no primeiro segundo e de sua de pulso. Os oxímetros convencionais não têm relação com a capacidade vital forçada, assim como capacidade de diferir os comprimentos de ondas do pico de fluxo expiratório, caracterizando a gerados pela oxihemoglobina daqueles gerados pela obstrução das vias aéreas, e a evidenciação, na curva carboxihemoglobina, fornecendo, portanto, valores fluxo-volume, da concavidade característica do falsamente elevados de saturação de hemoglobina padrão obstrutivo, presente tanto pelo acúmulo de pelo oxigênio(15). fuligem e secreção, quanto pelo edema de mucosa das vias aéreas. O aspecto evolutivo da monitoração da função Radioisótopos pulmonar permite não apenas a identificação da O exame de ventilação/perfusão com Xe133 progressão da lesão, mas também a avaliação da permite a pesquisa de obstrução em pequenas vias resposta às medidas terapêuticas instituídas aéreas, não visualizadas pelo exame broncoscópico. (estratégia ventilatória, terapia farmacológica ou Análises seriadas são realizadas após a administração ainda cuidado fisioterápico). do radioisótopo, a fim de determinar o tempo total de retenção do radiofármaco no pulmão. Retenções maiores que 90 segundos, ou ainda uma TRATAMENTO DA LESÃO INALATÓRIA heterogeneidade significativa na distribuição do xenônio, são consideradas como diagnósticos de Manutenção das vias aéreas lesão inalatória(23). A taxa de exames falso-positivos A identificação de pacientes com alto risco para e falso-negativos é de 8% e 5% respectivamente, obstrução de vias aéreas superiores, somada à em geral decorrentes de hiperventilação (falso- intervenção precoce nos quadros com lesão já negativos) ou da presença de atelectasias ou doença instalada, é um dos pontos principais no pulmonar obstrutiva crônica (falso-positivos)(24). tratamento dos pacientes com lesão inalatória, e A cintilografia de inalação-perfusão com Xe133 reduz significativamente a mortalidade dos é reservada a pacientes com alta suspeita clínica mesmos(11, 20). Sinais clínicos compatíveis com de lesão inalatória, mas que apresentem radiograma obstrução secundária à lesão de vias aéreas de tórax e exame broncoscópico normais. superiores, ou ainda evidências broncoscópicas desse processo, indicam a intervenção precoce. Testes de Função Pulmonar O uso de cânulas traqueais de grande calibre Os testes de função pulmonar, embora ilustrativos facilita a higiene brônquica necessária para quanto à representação fisiopatológica da lesão, têm controlar o grande aumento na quantidade de papel adjuvante no diagnóstico da lesão inalatória, secreções respiratórias(25). A traqueostomia oferece principalmente pela dificuldade em sua aplicação. vantagens tanto ao conforto do paciente quanto Uma série de fatores acaba por determinar a à facilidade na higiene brônquica, porém, segundo dificuldade na aplicação dos testes, entre eles a estudos recentes, não diminui o tempo de presença de dor, baixa colaboração do paciente, ventilação mecânica, a incidência de pneumonia fraqueza muscular e uso de drogas, como sedativos ou mesmo a mortalidade dos pacientes com lesão e opióides. Esses fatores diminuem acentuadamente inalatória, não estando, portanto, indicada como a acurácia dos testes de função pulmonar(22). medida terapêutica geral(26). De forma geral, os achados que caracteristicamente podem ser evidenciados pelos testes de função Oxigênio pulmonar são os seguintes: complacências estática e A reversão dos quadros de intoxicação por dinâmica do sistema respiratório normal nas fases monóxido de carbono constitui o segundo ponto iniciais da lesão, evoluindo com queda progressiva ao significativo no tratamento do paciente com lesão longo do seu desenvolvimento, ou ainda, nas fases inalatória. Em todos os casos de suspeita de crônicas, em que o processo de reparação pode levar intoxicação, está indicado o uso de altas frações de a quadros restritivos, caracterizados pela queda na oxigênio, mesmo em pacientes oligossintomáticos. complacência do sistema respiratório; resistência das O papel do oxigênio nesses casos está tanto no

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aumento da reserva de troca gasosa do paciente, estratégias que mantenham o pulmão aberto, revertendo o efeito da inalação do gás hipóxico, propiciando assim melhor clareamento local das quanto na tentativa de dissociar o monóxido de secreções, assim como otimização das trocas carbono de seus sítios de ligação. gasosas. Um dispositivo bastante útil, infelizmente ainda A adequação da estratégia ventilatória é muito sub-utilizado em nosso meio, é a máscara facial relacionada à fase em que o paciente apresenta com reservatório de oxigênio. Esse dispositivo pode insuficiência respiratória. Isto porque, nas fases oferecer altas frações inspiradas de oxigênio que iniciais, em que a lesão direta das vias aéreas, com podem se aproximar dos 100%. O uso da máscara edema e sangramento, associada ao aumento das facial é uma medida simples e bastante eficiente secreções e fuligem, constitui o principal em ofertar altas frações inspiradas de oxigênio sem mecanismo fisiopatológico envolvido, raramente a necessidade de assistência ventilatória. são necessárias estratégias ventilatórias muito Pacientes com doença pulmonar obstrutiva agressivas, como, por exemplo, o uso de altos crônica associada à retenção de dióxido de níveis de pressão expiratória final positiva. carbono e pacientes comatosos compõem um Já nos quadros iniciais graves ou nas fases grupo em que a intubação imediata é a alternativa mais tardias, onde claramente o paciente mais indicada para aumentar a fração inspirada de apresenta o quadro de síndrome de angústia oxigênio o mais rapidamente possível, sem os respiratória aguda, faz-se necessário o uso de potenciais efeitos deletérios de uma retenção maior estratégias de recrutamento alveolar, o uso de de dióxido de carbono. baixos volumes correntes(28) e ainda a associação de níveis maiores de pressão expiratória final Suporte ventilatório positiva. O papel de cada uma dessas estratégias Esse talvez seja um dos campos com maior especificamente na lesão inalatória ainda não número de estudos clínicos realizados nos últimos foi estabelecido, porém seu uso em outras anos com relação a pacientes queimados. causas de síndrome da angústia respiratória Com o advento da ventilação não-invasiva, a aguda já evidenciou benefícios em estudos perspectiva de se evitar a intubação tornou-se clínicos(29, 30). extremamente atrativa, principalmente numa A ventilação de alta freqüência e o uso de óxido população onde a intubação é um marcador tão nítrico constituem as perspectivas atuais no suporte importante de morbi-mortalidade. A presença de ventilatório invasivo de pacientes com lesão inalatória. lesões de face, somada ao risco de diminuição da Estudos experimentais evidenciaram diminuição da perfusão tecidual nos pontos de apoio dos progressão da lesão inalatória com o uso do óxido diferentes tipos de máscara utilizadas durante a ventilação não-invasiva, limitou o uso prolongado nítrico, enquanto que estudos clínicos mostraram da técnica, mas não evitou o desenvolvimento de apenas melhora da oxigenação com o uso da (31, 32) estudos com o seu uso intermitente como forma técnica . Da mesma forma, a ventilação de alta de se manter o recrutamento alveolar e com isso freqüência foi eficaz em melhorar a oxigenação dos diminuir a necessidade de intubação traqueal. Essa pacientes com lesão inalatória já nas primeiras horas evidência, por si, já estimula o uso da técnica, pelo após a aplicação da técnica, embora não tenha sido menos como ferramenta de suporte fisioterápico, suficiente para evidenciar melhora na sobrevida, ou na manutenção da abertura das pequenas vias mesmo na taxa de infecção associada à ventilação aéreas e do tecido alveolar. O desenvolvimento de mecânica nessa população de pacientes(33, 34). novas interfaces para a aplicação da ventilação Embora ainda iniciais, estudos clínicos na não-invasiva, com menor comprometimento das tentativa de prevenir a intubação, diminuir a áreas de apoio, vem trazendo ainda mais progressão da lesão inalatória ou ainda acelerar a perspectivas para o uso prolongado da ventilação resposta à lesão já instalada são, no momento, a não-invasiva como forma inicial de suporte maior fonte de expectativa para um melhor ventilatório para pacientes com lesão inalatória(27). tratamento de grandes queimados. Caso a intubação traqueal se faça necessária, o Antibioticoterapia suporte ventilatório invasivo deve se basear em O uso precoce de antibióticos, sem evidência

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clara de infecção, não aumentou a sobrevida dos deletérios da intoxicação(38, 39). pacientes e nem foi capaz de diminuir a incidência Alguns antídotos podem ser utilizados na de pneumonia, considerada a mais freqüente tentativa de limitar os danos da intoxicação por complicação infecciosa associada à lesão cianeto: nitratos, que promovem a oxidação da inalatória. Seu uso, portanto, não é indicado(20, 35). hemoglobina transformando-a em metahemoglobina A incidência maior de infecções respiratórias que, por sua vez, compete com a citocromo oxidase dá-se por volta do terceiro dia pós-queimadura. A pelo cianeto; tiossulfato de sódio, que na presença antibioticoterapia deve ser iniciada com base nos da enzima mitocondrial rodanase transfere o enxofre achados radiológicos, exame de escarro e na para o íon cianeto formando o tiocianato (que é leucocitose. Quanto mais tardio o início do quadro, excretado pela urina); e hidroxicobalamina, um agente maior a chance de infecção por agentes Gram- quelante que reage com o cianeto formando a negativos. Nos casos mais agudos, o predomínio cianocobalamina(40, 41). é de agentes Gram-positivos. O papel da broncoscopia com lavado e escovado na Perspectivas terapêuticas identificação dos agentes etiológicos, seja O avanço no tratamento da lesão inalatória precocemente, seja para a adequação do esquema talvez venha a ter um impacto tão significativo na antibiótico introduzido empiricamente, ainda está evolução do paciente queimado quanto foi a por ser determinado. instituição da ressuscitação volêmica, principalmente com o desenvolvimento de métodos Medidas específicas de acordo com a fisiopatologia que permitam a modulação da resposta predominante inflamatória do sistema respiratório. Para a lesão térmica, a manutenção das vias Várias substâncias evidenciaram potencial aéreas é o principal tratamento. É conveniente benefício no manuseio de pacientes com lesão manter a intubação até a reversão documentada inalatória, entre elas as moléculas anti-adesão do edema de vias aéreas. (bloqueando a aderência de neutrófilos na Com relação à inalação do gás hipóxico, a microvasculatura pulmonar), inibidores de retirada do paciente do local do acidente associada leucotrieno, heparina inalatória e antioxidantes(42- ao uso de altas frações inspiradas de oxigênio 44), embora estudos clínicos controlados ainda interrompe a cascata de eventos secundários à sejam necessários para a adoção dessas novas hipoxemia(11, 13, 20). formas de tratamento na prática clínica. Quanto à intoxicação por monóxido de carbono, O ponto central na terapêutica dos pacientes a meia vida da carboxihemoglobina é de 250 vítimas de grandes queimaduras é a compreensão minutos em ar ambiente (fração inspirada de da grande resposta inflamatória existente, com suas oxigênio de 0,21) e de 40 a 60 minutos em repercussões pulmonares e sistêmicas como um pacientes submetidos a fração inspirada de fenômeno global e não como complicações oxigênio igual a 1. Portanto, todos os pacientes isoladas. devem receber oxigênio a 100% já a caminho do hospital. O uso de terapia hiperbárica é ainda REFERÊNCIAS motivo de controvérsia; a existência de estudos 1. Ryan CM, Schoenfeld DA, Thorpe WP, Sheridan RL, que não evidenciaram benefício(36) contrapõe-se a Cassem EH, Tompkins RG. Objective estimates of the probability of death from burn injuries. N Engl J evidências de que seu uso possa levar à diminuição Med.1998;338:362-6. (37) de seqüelas neurológicas . Outra forma de 2. Darling GE, Keresteci MA, Ibanez D, Pugash RA, Peters WJ, aumentar a eliminação de monóxido de carbono é Neligan PC. Pulmonary complications in inhalation injuries através da hiperpnéia isocápnica, que consiste em with associated cutaneous burn. J Trauma. 1996;40:83-9. 3. Shirani KZ, Pruitt BA Jr, Mason AD Jr. The influence of hiperventilar os pacientes intubados, oferecendo inhalation injury and pneumonia on burn mortality. uma fonte suplementar de dióxido de carbono com Ann Surg. 1987;205:82-7. o objetivo de não promover alcalose respiratória 4. Birky MM, Clarke FB. Inhalation of toxic products from por hipocapnia. A hiperventilação reduz a meia fires. Bull N Y Acad Med. 1981;57:997-1013. 5. Terrill JB, Montgomery RR, Reinhardt CF. Toxic gases vida da carboxihemoglobina, diminuindo os efeitos from fires. Science. 1978;200:1343-7.

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