REVISTA CIÊNCIA

PantanalVol.04 / no 01 / 2018 / ISSN 2357-9056

TESOUROS ESCONDIDOS

Parte da Rola-bostas Os peixes riqueza de prestam anuais e suas espécies serviços adaptações pantaneiras essenciais aos extremas vem de fora ecossistemas pg 24 pg 42 pg 32

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 1 PARCERIAS EM FAVOR DA VIDA Fluxos e dinâmicas o WWF-Brasil teve a honra de pro- biológicas comandam duzir após o alinhamento, em 2017, o cotidiano pantanei- que promoveu a migração de algumas ro. A paisagem não é ações da Wildlife Conservation So- só um espaço estáti- ciety – WCS Brasil para a nossa equi- co no qual transitam pe. Nesta edição, tratamos juntos das pessoas, fauna e flora, conexões entre o relevo e as águas, mas um cenário ativo entre meio físico e biodiversidade, em permanente trans- entre paisagem, fauna, flora e pessoas. formação, determinante para o Destacamos a importância do conhe- modo de vida de todas as comuni- cimento para entender os possíveis dades da região. As cheias (ou a falta impactos locais, regionais ou globais delas) governam a pesca, o turismo, promovidos pelo homem. a agricultura, a pecuária, a vida e a Chegamos ao nosso maior desa- morte. Os diferentes hábitats influen- fio enquanto sociedade justamente ciam a composição das diversas popu- por causa desses impactos: toda a vida lações de mamíferos, anfíbios, répteis, no planeta será prejudicada se não re- peixes, aves, árvores e ervas. Algumas vertermos as emissões crescentes de espécies vieram de outras eco-regiões gases do efeito estufa e a perda de es- e se adaptaram. Outras são espécies pécies e ecossistemas naturais. Assim dali mesmo, sobrevivendo há milê- como as dinâmicas interdependen- nios graças a sistemas impressionan- tes do Pantanal, as mudanças urgentes tes de adaptação. que precisamos promover para mudar Essa interação tão especial per- essa história só poderão ser atingidas meia os temas abordados na quarta se agirmos coletivamente. edição da revista Ciência Pantanal, que O WWF-Brasil é uma organiza-

2 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 ção não-governamental brasileira e ca da WCS Brasil em nossa jornada. sem fins lucrativos que trabalha para Agradecemos, ainda, os autores mudar a atual trajetória de degrada- desta edição, por compor uma revis- ção ambiental e promover um futu- ta repleta de conteúdos ricos e interes- ro onde sociedade e natureza vivam santes sobre a biodiversidade e os am- em harmonia. Criada em 1996, atua bientes pantaneiros. A ciência é a base em todo Brasil e integra a Rede WWF na qual devemos ancorar a promo- (Fundo Mundial para a Natureza), ção de capacidade técnica e profissio- presente em mais de 100 países. Atu- nal para o uso de novas ferramentas e amos articulando atores de diversos práticas responsáveis. Esperamos que, setores, como governos, empresas, so- ao conhecer os estudos e ações aqui ciedade civil e comunidades. Nessa apresentados, possamos contribuir no direção, o WWF-Brasil mantém ações fortalecimento de uma visão de de- tri nacionais – entre Brasil, Bolívia e senvolvimento mais sustentável para Paraguai – no e no Pantanal. o Pantanal e para o Brasil. Atualmente, a agenda socioam- biental no Brasil passa por um perí- Boa leitura! odo de ameaças de retrocesso, dadas as dificuldades políticas e econômi- cas. Mas visualizamos oportunida- MAURICIO VOIVODIC des para a construção coletiva de uma Diretor-Executivo nova visão de desenvolvimento, ba- WWF-Brasil seada numa transição justa para uma economia de baixo carbono – mais eficiente, com mais conhecimento e uso de tecnologias sustentáveis, pro- movendo a inclusão e a participação social com maior transparência. Não é um caminho fácil. Os desa- fios são imensos e demandam ações e soluções urgentes de todos, juntos. Acreditamos na parceria em favor da vida e agradecemos, em especial, todo o apoio e a confiança da equipe técni-

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 3 EXPEDIENTE

CONSELHO EDITORIAL Júlio César Sampaio SUMÁRIO Diretor do Programa Cerrado Pantanal do WWF-Brasil 08 ALIANÇA Julia Boock PELAS ÁGUAS Gerente da revista Ciência Pantanal Pacto em defesa das cabeceiras dos rios Alexine Keuroghlian Fundadora e Coordenadora Geral ANATOMIA FUNCIONAL DA PAISAGEM da revista Ciência Pantanal 12 A diversidade física do Pantanal e Donald P. Eaton as inundações Coordenador Científico da revista Ciência Pantanal Leonardo Duarte Avelino PEQUENOS, ÚNICOS E Assessor Jurídico da revista 20 DESPROTEGIDOS Ciência Pantanal Peixes endêmicos da Bacia do Alto Paraguai Liana John Editora Executiva da revista Ciência Pantanal 24 A VIDA ESCONDIDA EM POÇAS CONSELHO TÉCNICO A adaptação extrema dos peixes anuais Fabio de Oliveira Roque – UFMS Andrea Cardoso Araujo – UFMS Cyntia Cavalcante Santos–UFMS DO SUBSOLO PARA OS Donald P. Eaton – WWF 28 HOLOFOTES DA CIÊNCIA Daniela Venturato Giori – Planurb Nova espécie de rã oval e fossorial Walfrido M. Tomas – Embrapa Pantanal Alexine Keuroghlian – Projeto Queixada ALIADOS (QUASE) INVISÍVEIS COORDENAÇÃO EDITORIAL 32 Besouros contribuem para a reciclagem Alexine Keuroghlian de nutrientes Julia Boock

EDITOR A EXECUTIVA JÁ VIU ALGUM TATU-DE-RABO-MOLE? Liana John 36 Ecologia e comportamento de uma (Jornalista responsável MTb 12.092) espécie bem discreta

FOTOS DE CAPA Simone Mamede (paisagem), Rudi R. Laps A RIQUEZA VEM DE FORA (tiribas-fogo), Paulo R. de Souza (peixe anual), 42 Animais e plantas oriundos de Trond Larsen (besouro) outras eco-regiões

DESIGN E PRODUÇÃO GRÁFICA Matheus Fortunato COOPERAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 50 Troca de informações viabiliza SUGESTÕES, pesca comunitária CONTRIBUIÇÕES E DÚVIDAS Renata Andrada Peña [email protected] DE OLHO NAS MUDANÇAS 54 Biodiversidade, uso do solo e clima ENDEREÇO E TELEFONES em estudo de longo prazo PARA CONTATO WWF-Brasil – Programa Cerrado Pantanal Rua Padre João Cripa, 766 62 CUIDADO, Campo Grande, MS – CEP: 79002-380 LÁ VEM TEMPORAL! Tels: (67) 3025 1112 e 3042 3386 Como e onde se proteger de raios

TIRAGEM 1.300 exemplares

4 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Foto: Trond Larsen

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 5 AUTORES

Aguinaldo Silva – Geografia – Universidade Federal do Mato Camila S. Souza – Ecologia e Conservação – Universidade Federal Grosso do Sul (UFMS/Pantanal) – [email protected] de do Sul (UFMS) – [email protected] Alan Fredy Eriksson – Ecologia e Conservação – Universidade Carmen Sofia Lourenço Lemos Dionísio – Ecologia e Federal de (UFMS) – [email protected] Conservação – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e Universidade de Aveiro (UA/Portugal) – Alêny Lopes Francisco – Biociências – Universidade Federal de [email protected] Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Carolina F. Santos – Biociências – Universidade Federal de Mato Alessandher Piva – Medicina Veterinária – Universidade da Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Sociedade Educacional de (UniSociesc) – [email protected] Cibele Stramare Ribeiro-Costa – Entomologia – Universidade Federal do Paraná (UFPR) – [email protected] Alessandro Pacheco Nunes– Ecologia e Conservação – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – Claudenice Faxina – Ecologia e Conservação– Universidade [email protected] Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Ana Lino – Biologia – Universidade de Aveiro (UA/Portugal) Cyntia Cavalcante Santos – Ecologia e Conservação – [email protected] Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Andréa C. Araujo – Biociências – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Daniel W. Carstensen – Macroecologia, Evolução e Clima – Universidade de Copenhagen (KU/Dinamarca) – Arnaud Leonard Jean Desbiez – Projeto Tatu-Canastra – The [email protected] Royal Zoological Society of Scotland (RZSS/Escócia), Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS) e Instituto de Pesquisas Danilo B. Ribeiro – Biociências – Universidade Federal de Mato Ecológicas (IPÊ) – [email protected] Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Danilo Kluyber – Projeto Tatu-Canastra – Instituto de Conservação Bo Dalsgaard – Macroecologia, Evolução e Clima – Universidade de Animais Silvestres (ICAS) e Naples Zoo and Gardens de Copenhagen (KU/Dinamarca) – [email protected][email protected]

Breno Ferreira de Melo – Programa Cerrado Pantanal – WWF- Diego José Santana Silva – Zoologia – Universidade Federal de Brasil – [email protected] Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected]

Bruno Mateus Ribeiro Dias – Agronomia – Universidade Estadual de Elaine Cristina Corrêa – Ecologia e Conservação – Universidade Mato Grosso do Sul (UEMS) - [email protected] Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected]

Bruno Téllez Martínez – Ecologia e Conservação – Universidade Erich Fischer – Biociências– Universidade Federal de Mato Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – Grosso do Sul (UFMS) –[email protected] [email protected]

6 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Fabiano do Nascimento Pupim – Ciências Ambientais – Maurício Silveira – Ecologia e Conservação – Universidade Universidade Federal de (Unifesp) – Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] [email protected] Moacir Lacerda – Laboratório de Ciências Atmosféricas – Fabio de Oliveira Roque – Biociências – Universidade Federal de Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (LCA/UFMS) – Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] [email protected] Fábio Padilha Bolzan – Ecologia e Conservação – Universidade Neder Luis Oviedo Morales – Ecologia e Conservação – Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) –

[email protected] Fernando R. Carvalho – Biociências – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Nelson Rufino de Albuquerque – Zoologia – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/Campus do Pantanal) Francisco Severo Neto – Ecologia e Conservação – [email protected] Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Nina Attias – Projeto Tatu-Canastra – Instituto de Conservação de (UNESP) e Rufford Foundation (proposta 22546-1 “Forgotten Animais Silvestres (ICAS) – [email protected] pools: Revealing the anual fishes (Cyprinodontiformes: Rivulidae) from Brazilian Chaco”) – [email protected] Olivier Pays-Volard – Ciências – Universidade de Angers (UA/ França) – [email protected] Francisco Valente-Neto – Ecologia e Conservaço – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Pierre Cyril Renaud – Ciências – Universidade de Angers (UA/ França) – [email protected] Franco Leandro de Souza – Biociências – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) –[email protected] Poliana Felix Araújo – Ecologia e Conservação – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Gabriel Favero Massocato – Projeto Tatu-Canastra – Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS), Instituto de Pesquisas Rafael Dettogni Guariento – Biociências – Universidade Federal Ecológicas (IPÊ) e Houston Zoo – [email protected] de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected]

Gustavo Graciolli – Biociências– Universidade Federal de Mato Rafael Morais Chiaravalloti – Instituto de Pesquisas Ecológicas Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] (IPÊ) e Ecologia e Ação (ECOA) – [email protected]

Hudson de Azevedo Macedo – Geociências e Meio Ambiente – Rafael Reverendo Vidal Kawano Nagamine – Agronomia – Universidade Estadual de Maringá (UEM) – [email protected] Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) [email protected] Isabel Melo Vasquez – Ecologia e Conservação – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) –[email protected] Renata Andrada Peña – Programa Cerrado Pantanal – WWF- Brasil – [email protected] Ivan Bergier Tavares de Lima – Ciências e Mudanças Climáticas – Embrapa Pantanal – [email protected] Ricardo Koroiva – Ecologia e Conservação – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] José Cândido Stevaux – Geociências e Meio Ambiente – Universidade Estadual Paulista (Unesp/Rio Claro) e Universidade Rudi Ricardo Laps – Biociências – Universidade Federal de Mato Estadual de Maringá (UEM) – [email protected] Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Jose Manuel Ochoa Quintero – Ecologia e Conservação – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – Samuel Duleba – Ecologia e Conservação – Universidade Federal [email protected] de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected]

José Sabino – Projeto Peixes de Bonito – Universidade Sérgio Roberto Rodrigues – Entomologia – Universidade Estadual Anhanguera-Uniderp (Universidade para o Desenvolvimento do de Mato Grosso do Sul (UEMS) – [email protected] Estado e da Região do Pantanal) – [email protected] Suzana Maria de Salis – Biologia Vegetal – Embrapa Pantanal Marciel Elio Rodrigues – Laboratório de Organismos Aquáticos – [email protected] Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) – [email protected] Ulisses Caramaschi – Herpetologia – Museu Nacional/ Maria Ana Farinaccio – Sistemática Vegetal – Universidade Federal Universidade Federal do (MN/UFRJ) – do Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] [email protected]

Urielton Martins Monteiro – Biociências – Universidade Federal Maria J. Ramos-Pereira – Zoologia – Universidade Federal do de Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] (UFRGS) – [email protected]

Maria José Alencar Vilela – Ictiologia – Universidade Federal de Vanda Lucia Ferreira – Herpetologia, Zoologia e Ecologia – Mato Grosso do Sul (UFMS) – [email protected] Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) [email protected]

Mario Luis Assine – Geologia – Universidade Estadual Paulista Walfrido Moraes Tomás – Ecologia e Conservação – Embrapa (Unesp/Rio Claro) – [email protected] Pantanal – [email protected]

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 7 8 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 NASCENTES ALIANÇA PELAS ÁGUAS

PACTO EM DEFESA DAS CABECEIRAS DO PANTANAL PRESERVA E RECUPERA AS PORÇÕES ALTAS DOS RIOS PARAGUAI , SEPOTUBA, JAURU E CABAÇAL, ORIGEM DE QUASE 30% DO PULSO DE INUNDAÇÃO

POR BRENO FERREIRA DE MELO E RENATA ANDRADA PEÑA

O Pantanal é a maior área úmida res, empresas, órgãos governamen- do planeta. Abriga uma rica biodi- tais e organizações não governa- versidade e fornece serviços am- mentais. Em 1999, realizou-se uma bientais essenciais à natureza e ao série de expedições à parte alta do homem, como o suprimento de água, Pantanal. Em 2012, o WWF-Bra- a estabilização do clima e a conser- sil publicou um estudo, juntamen- vação dos solos. te com a The Nature Conservan- Mas o Pantanal também tem suas cy (TNC), o Centro de Pesquisas do fragilidades e está ameaçado pela de- Pantanal, o Conselho Nacional de gradação da vegetação, pela erosão Desenvolvimento Científico e Tec- e pela deterioração da qualidade da nológico (CNPq), o banco HSBC e a água, em função da falta de sanea- indústria de máquinas Caterpillar. mento. Em especial, inspira cuidados Intitulada “Análise de Risco Eco- a região conhecida como Cabecei- lógico da Bacia do Rio Paraguai”, ras do Pantanal, da qual dependem a pesquisa identificou as áreas de as águas de inundação de quase 80% maior contribuição hídrica do Pan- do bioma. E o pulso de inundação, tanal, as chamadas “torres de água”. como se sabe, mantém os processos Só as porções altas de quatro dessas ecológicos e a paisagem cênica pan- “torres de águas” – os rios Paraguai, taneira. Assim, por sua importân- Sepotuba, Jauru e Cabaçal – forne- cia hidrológica, o arco das nascentes cem quase 30% das águas que man- do Pantanal é considerado uma área tém o pulso de inundação da pla- crítica de preservação. nície pantaneira. O mapeamento Propostas para solucionar os de- mostrou o quanto essas importantes safios – sobretudo onde brotam os zonas de contribuição hídrica estão rios mais importantes – estão há um em risco, requerendo ações urgentes bom tempo na pauta de pesquisado- de preservação e recuperação.

Foto: Bento Viana VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 9 “TORRES DE ÁGUA”

MT Rio Sepotuba Rio Cabaçal Rio Jauru

Rio Paraguai

BOLÍVIA CORUMBÁ

CAMPO GRANDE

PARAGUAI MS

ASSUNÇÃO

Áreas de alta contribuição hídrica Áreas de alto Índice de Risco Ecológico Composto (IRE-C)

No mesmo ano de 2012, estabeleceu-se o Pacto em Defesa das Cabeceiras do Pantanal, um compromisso formal adotado por diferentes setores (público, privado e não governamental). Sem qualquer imposição legal, a aliança tem os seguintes objetivos: Proteger as matas ciliares é crucial • Fortalecer a integração e a articulação das instituições na- para conservar as águas límpidas das cionais, regionais e locais; nascentes pantaneiras (acima). Instalar • Fortalecer o desenvolvimento sustentável da região; biofossas (destaque à esq.) e fazer curvas de nível nas lavouras • Capacitar a sociedade civil, representantes do setor privado e (destaque à dir.) do setor público na conservação das cabeceiras do Pantanal; também ajuda no controle da poluição biológica e da erosão. • Fortalecer a cultura local para o desenvolvimento regional sustentável, econômico, social e ambiental;

• Conservar solo e água com a recomposição de matas ciliares em microbacias;

10 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Foto: Bento Viana Fotos: Renata Peña Renata Fotos:

• Proteger áreas de recarga de aquíferos, por meio de recupe- ração e/ou conservação de áreas de drenagens e cabeceiras; • Fortalecer a mobilização da so- ciedade para elaborar políticas de 80 nascentes; a instalação de apro- dois municípios (Tangará da Serra e públicas em defesa das cabecei- ximadamente 40 biofossas, bene- Mirassol D’Oeste), por meio do Pro- ras do Pantanal; ficiando famílias com um bioferti- grama Produtor de Água, para cria- lizante seguro para incrementar a ção de sistemas de Pagamento por • Disseminar informações sobre produção de frutíferas; o incentivo à Serviços Ambientais (PSA). Além linhas de financiamento e pro- construção de três viveiros de mudas disso, centenas de voluntários foram mover boas práticas de conser- de espécies nativas; a adequação am- mobilizados em ações de limpeza de vação. (Por exemplo: Plano de biental de mais de 160 quilômetros rios, em Mato Grosso. Agricultura de Baixo Carbono, de estradas rurais; o apoio de 25 pre- Ainda resta muito a fazer, porém Programa Produtor de Água). feituras do estado de Mato Grosso na a divulgação do WWF-Brasil já atin- implementação de ações de conserva- giu mais de 7 milhões de pessoas, em ção dos recursos hídricos da região; a Mato Grosso e em todo o país. E con- Em cinco anos de atuação, o Pacto criação de quatro leis municipais em tinuará a defender pactos assim efi- conseguiu alguns resultados signifi- prol do meio ambiente e o suporte da cientes, em defesa das nascentes for- cativos, como a recuperação de mais Agência Nacional de Águas (ANA) a madoras do Pantanal!

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 11 Maciço do Urucum (à esq.), com seus pontos mais altos alaranjados, e um trecho do rio Paraguai (à dir.), tendo ao lado alguns meandros abandonados.

GEOLOGIA ANATOMIA FUNCIONAL DA PAISAGEM

CONHECER E CARACTERIZAR A DIVERSIDADE FÍSICA NATURAL DA PLANÍCIE PANTANEIRA É ESSENCIAL PARA COMPREENDER AS INUNDAÇÕES E SUAS VARIADAS INTER-RELAÇÕES COM A FAUNA, A FLORA E AS MUDANÇAS PROMOVIDAS PELO HOMEM

POR MARIO L. ASSINE, IVAN BERGIER, HUDSON A. MACEDO, FABIANO N. PUPIM, JOSÉ C. STEVAUX, AGUINALDO SILVA

12 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Google Earth Image© 2018 images Digital Globe CNES/Airbus Landsat/Copernicus

O Pantanal é uma ampla pla- físicos e bióticos, incluindo rele- tureza da planície pantaneira. Em nície interior, no alto curso do rio vo, solo, hidrologia e vegetação. A 1979, importante relatório do De- Paraguai, com inundações anu- compartimentação geográfica das partamento Nacional de Obras ais e grande diversidade biológica, áreas úmidas é importante para de Saneamento (DNOS, do extin- ecológica e de paisagens. Abrange embasar políticas de uso e ocupa- to Ministério do Interior) registra- terras úmidas abaixo da cota alti- ção da planície pantaneira e para va área total de 139.111 km² para o métrica de 200 metros, mas seus subsidiar iniciativas de preserva- Pantanal, subdividido em 15 sub- limites variam em diferentes pu- ção e conservação. Entender a di- -regiões. Com dados orbitais de blicações e relatórios. Como conse- nâmica associada à diversidade melhor resolução espacial e novos quência, variam também a extensão física natural do Pantanal é funda- sensores, a delimitação do Pantanal de sua área geográfica e a avaliação mental para a compreensão do fe- e a caracterização de sua paisagem dos impactos causados por ativida- nômeno das inundações e das in- foram aperfeiçoadas. Novas classi- des humanas. ter-relações com a fauna, a flora e ficações forneceram melhor deta- A planície é heterogênea, não as atividades humanas. lhamento das diferentes áreas den- só em sua geografia, mas também Até a década de 1960, as ten- tro da planície, destacadas por sua na frequência e magnitude das tativas de classificação do Panta- contribuição à comunidade aca- inundações. Muitas áreas perma- nal eram limitadas pela escassez dêmica (caso dos 3 exemplos apre- necem inundadas durante todo o de dados cartográficos confiáveis. sentados na próxima página). Duas ano, enquanto outras experimen- Por isso, diferentes áreas foram de- importantes classificações foram tam inundações de duração variá- nominadas conforme a toponímia publicadas na década de 1990. Com vel. Por isso, há referências a vários local. Posteriormente, a disponibi- base no padrão de inundação ana- pantanais ao invés de um só. Tal lização de imagens de sensores re- lisado com dados do satélite Nim- pluralidade deu ensejo a tentativas motos para uso civil permitiu abor- bus-7, Hamilton e colaborado- de classificar e subdividir o Panta- dagem nova e de grande impacto na res subdividiram o Pantanal em nal com base em diversos critérios compreensão da dimensão e da na- 10 sub-regiões (mapa A), cada qual

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 13 com dinâmica de inundação pecu- ões caracterizadas em termos geo- 1. levar em conta sua natureza ge- liar, sugerindo relação entre a di- morfológicos e hidrológicos, o que ológica; nâmica hidrológica e os diferen- representou grande avanço no co- 2. entender o comportamento do tes compartimentos geográficos nhecimento da diversidade de pai- terreno, tectônico e superficial, do Pantanal. Paralelamente, Silva e sagens do Pantanal. combinado aos processos que Abdon caracterizaram 11 sub-regi- Apesar dos avanços trazidos produziram a paisagem atual; ões (mapa B), calculando área total pelas classificações existentes, o 3. utilizar um modelo de com- de 138.183 km² com base na in- conhecimento do funcionamento partimentação geomorfológica terpretação de imagens do satélite hidrossedimentar da planície ainda com base em unidades naturais Landsat 5 TM. é incipiente. Muitas perguntas não de sedimentação, ou seja, os sis- O pesquisador Padovani da Em- têm ainda resposta satisfatória. Por temas deposicionais; brapa/Pantanal utilizou novos que a área inundável é tão extensa? 4. conhecer o funcionamento hi- dados orbitais e novos conceitos na Por que alguns rios ficam assorea- drológico do conjunto de siste- sua classificação, conjugando cri- dos e outros não? Por que e como mas deposicionais formadores térios de relevo, solo e vegetação e os rios mudam de curso? Qual o da planície; hidrologia (frequência de inunda- volume de sedimentos retidos na 5. mapear o fluxo de água subter-

ção, fonte das águas e sincronia com planície do Pantanal? Onde e como rânea dentro do Pantanal e áreas vizinhas). E imagens MODIS, atuam os processos de erosão e se- 6. desenvolver programas visan- liberadas pela Agência Espacial dimentação? Conclusão: faltam in- do a aquisição de dados-cha- Americana (NASA), contribuíram formações sobre o balanço hídri- ve para quantificar e modelar para a caracterização da água su- co e sedimentar para responder a os processos sedimentares e hi- perficial e ajustes na delimitação essas e outras perguntas. droecológicos. das áreas inundáveis, incluindo os Assim, para a construção de po- territórios adjacentes da Bolívia líticas públicas apropriadas e a re- e do Paraguai. Na nova classifica- dução das vulnerabilidades do A chave para entender a variabi- ção (mapa C), o Pantanal passou a Pantanal (que implica elaborar clas- lidade de paisagens do Pantanal está ter 150.500 km², com 25 sub-regi- sificações funcionais) é crucial: no fato de a planície alagável ser espa-

14 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 cial e temporalmente dinâmica: tra- cia de terremotos recentes. Blocos ta-se de uma bacia sedimentar ativa, mais subsidentes (os que afundam ou seja, uma área da superfície ter- mais), controlados por movimentos restre sujeita a movimentos verticais nas falhas geológicas, criam espaços descendentes da crosta terrestre, o a serem ocupados pelas águas das que causa afundamento do terreno. A chuvas e dos rios provenientes das paisagem é a de uma depressão, para bacias de captação, situadas no en- onde correm os rios provenientes de torno da depressão. Quer dizer, os relevos mais altos, ao redor. Em uma rios promovem a erosão das rochas depressão fechada, inteiramente cir- nos relevos circundantes e os sedi- cundada por terrenos altos, os rios mentos são carreados rio abaixo, correm todos para seu centro (drena- num contínuo processo de trans- gem radial centrípeta), onde um lago ferência de águas e sedimentos dos pode se formar. Talvez fosse essa a planaltos para a planície pantaneira. impressão dos primeiros europeus ao Rios dissecam os planaltos exis- chegar ao Pantanal, quando eles se re- tentes no entorno do Pantanal e for- feriam à mitológica Laguna de los Xa- mam planícies fluviais exóticas, co- Google 2018 Landsat/Copernicus Earth Image©

Megaleque do rio Taquari, com 50.000 km2: as mudanças de curso são tão frequentes que o rio já nem corre mais no leito retratado nesta imagem

rayes (Xarayes era o nome do prin- nhecidas como megaleques fluviais cipal grupo indígena local). Mas, na devido às frequentes subdivisões de realidade, a grande depressão panta- seus canais. Na planície, os espaços neira tem uma saída a sudoeste, entre inicialmente ocupados pelas águas o Planalto da e o Maciço são, em escalas geológicas de tempo, de Urucum, por onde corre o rio Pa- preenchidos por sedimentos carrea- raguai em direção à bacia do Chaco. dos pelos rios. Partículas finas de silte Em bacias sedimentares ativas, e argila são transportadas em suspen- como o Pantanal, é desigual a ma- são, turvando as águas dos rios du- neira como o subsolo se movimen- rante as cheias anuais. E areias tam- ta verticalmente, criando desníveis bém são transferidas, como carga na planície devido à subsidência do sedimentar de fundo, formando bar- terreno. Essa é a causa da ocorrên- ras nos rios, frequentemente expostas

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 15 durante a estiagem. Este fenômeno de Os rios Taquari, São Lourenço e Evidentemente, a magnitude das sedimentação reduz a profundidade Aquidauana formam os principais sis- inundações anuais decorre do volume dos rios (assoreamento fluvial). temas de megaleques fluviais, drenan- de chuvas e varia em resposta a ciclos O rio Paraguai funciona como sis- do planaltos sedimentares a leste do climáticos. Mas é a geologia da bacia tema coletor de outros cursos d’água Pantanal. Eles podem ser classificados que determina maior ou menor grau para a planície. Funciona também como sistemas deposicionais de drena- de permanência e severidade da inun- como de drenagem das águas da gem distributiva. Em sua área de capta- dação, em determinadas áreas. Alguns planície para a bacia do Chaco. O vo- ção nos planaltos, um grande aporte de fatores geológicos condicionam este lume de sedimentos que sai pelo rio sedimentos para os rios resultou da efi- funcionamento das águas e dos sedi- Paraguai é muito menor do que aquele ciente erosão de rochas sedimentares mentos (hidrossedimentar). A exis- que chega à planície: a maior parte dos dos planaltos de Maracaju-Itiquira. Ao tência de falhas geológicas e de blocos sedimentos fica retida. Isso está - in entrar na planície, os rios depositam mais subsidentes (que afundam mais) trinsecamente relacionado ao fato de sua carga de sedimentos formando me- definem áreas com inundações mais que o Pantanal é uma bacia sedimen- galeques aluviais, que são sistemas de prolongadas, por exemplo. E mudan- tar ativa, que continuamente gera bai- drenagem distributiva compostos por ças no curso de rios, com a construção xios na superfície, para onde correm lobos sedimentares ativos e abandona- de lobos deposicionais em áreas antes incialmente as águas de inundação e, dos. Na superfície dos lobos abando- alagadas, favorecem a deposição de se- progressivamente, para onde os rios nados há antigos canais, não mais ati- dimentos e alteram o padrão de inun- passam a correr e depositar sedimen- vos, indicando por onde correram os dação e a paisagem local. tos trazidos de fora da bacia. rios em sucessivas mudanças de curso O funcionamento hidrológico do A planície do Pantanal é um exten- durante sua evolução. O Taquari é o Pantanal é extremamente complexo so trato deposicional, com variados mais notável dos megaleques fluviais porque coexistem e interagem diversos tipos de sistemas de sedimentação, o do Pantanal, com área de aproximada- sistemas deposicionais muito dinâmi- que resulta em uma bacia heterogênea mente 50.000 km2. cos e sensíveis a mudanças ambientais. em sua geomorfologia. O ‘trato de sis- Planícies interleques são for- O comportamento dos rios nos mega- temas’, à semelhança do trato digesti- madas por canais fluviais existen- leques é bem diferente daquele das pla- vo de vertebrados, é um conjunto de tes entre os megaleques. A planície nícies interleque, promovendo padrões sistemas contíguos e relacionados, que do rio Piquiri é um exemplo típico, de inundação diversos e defasados têm funcionamento integrado. com seu canal de meandros confi- entre si. Os três gargalos hidráulicos, O rio Paraguai corre de norte para nado entre os megaleques fluviais existentes ao longo do curso do rio Pa- sul, na borda oeste da bacia do Panta- dos rios Taquari e São Lourenço. raguai (Amolar, Urucum e Fecho dos nal, formando uma planície em que há O rio Negro, situado entre os me- Morros), retardam o fluxo e promo- três barreiras ou gargalos para o fluxo galeques do Taquari (ao norte) e os vem efeito remanso, atrasando a onda das águas. Antes de entrar na planície de Aquidauana e Taboco (ao sul), é de cheia ao longo da planície. do Pantanal, o canal meandra numa outro exemplo de drenagem interle- A vazão dos rios oriundos do pla- planície estreita, com 4 a 6 km de lar- que, mas sua planície de inundação nalto, que formam os megaleques do gura. Ao adentrar o Pantanal, o rio se é mais complexa: ao perder o con- Taquari, São Lourenço e Aquidaua- abre num megaleque, não mais confi- finamento a oeste, o rio segue para na, responde de forma quase imediata nado, sobre um terreno menos inclina- uma área perenemente inundada e às chuvas. Estes rios correm em vales e do. Seu canal principal então apresen- adquire padrão multicanal. transferem as águas dos planaltos dire- ta bifurcações e a planície se apresenta A complexidade geomorfológi- to para os lobos ativos situados nas suas com um grande número de lagoas. Na ca e hidrológica faz com que o Panta- porções mais baixas. Os canais existen- altura da Serra do Amolar há novo es- nal seja uma região de inundação sa- tes em seus lobos ativos são instáveis e treitamento e vários lagos entremeiam zonal, desigual e defasada. Desigual mudam de posição com frequência. O o relevo serrano, caso das lagoas Man- porque diferentes áreas experimen- Taquari, por exemplo, transfere água dioré e Vermelha. Dali até a confluên- tam inundações díspares em extensão, do Planalto de Maracaju diretamen- cia com o rio Miranda, o Paraguai flui magnitude e duração. Defasada por- te para o lobo do Taquari Novo, onde em uma planície ampla, cheia de ca- que os picos de inundação não acon- o declive diminui bastante e ocorrem nais. No último trecho dentro do Pan- tecem de forma sincronizada com os muitas bifurcações, com a formação de tanal, após atravessar o Maciço do picos de chuvas: duas nítidas ondas de muitos canais e a deposição de grande Urucum, o rio forma novamente me- inundação migram de norte para sul e parte da carga sedimentar. andros ao atravessar a área do Nabile- de leste para oeste. Assim, a área mais Áreas de lobos abandonados – que. O último gargalo está situado na baixa, situada a sudoeste (Nabileque), como Paiaguás e Nhecolândia, no me- área do Fecho dos Morros, na saída do tem inundação atrasada, com defasa- galeque do Taquari – não recebem Pantanal, após o qual o rio Paraguai gem de 4 a 6 meses em relação ao pico água e sedimentos provenientes dos flui em direção ao Chaco Paraguaio. de precipitação de verão. rios: o escoamento superficial é abas-

16 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Anatomia Funcional do Pantanal A planície é um extenso trato deposicional, com vários sistemas de sedimentação funcionando de forma integrada

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 17 tecido unicamente pelas águas das longo do rio Paraguai mostram cla- como se processa a sedimentação e chuvas durante o verão. O escoamen- ramente a defasagem das cheias em como se desenrolam os pulsos anuais to ocorre na forma de fluxos em lençol relação à precipitação, progressiva- de inundação. Os pulsos anuais obede- ou confinados em canais conhecidos mente maior rio abaixo, chegando a cem aos fluxos nos diferentes sistemas como vazantes, capazes de remobilizar seis meses na estação de Porto Mur- deposicionais. O conceito de fluxo tem sedimentos superficiais. Nos períodos tinho, à saída do Pantanal. que ser adaptado para o Pantanal, em mais secos, os fluxos subterrâneos são Quando se analisa toda essa di- especial para os domínios dos mega- essenciais para suprir de água peque- nâmica em relação às mudanças de leques fluviais, pois neles não há uma nos riachos (corixos), formando uma uso das terras na planície pantaneira, planície de inundação confinada, mas rede de drenagem de natureza erosiva. ainda não se notam alterações signifi- sim lobos deposicionais modernos, Assim, além das águas e dos sedi- cativas da paisagem, embora algumas que são áreas amplas nas quais o rio mentos provenientes da própria bacia atividades sejam crescentes – como é divaga e muda seu curso devido às fre- de drenagem (situada a norte), o rio o caso da criação extensiva de gado. O quentes avulsões (mudanças de curso a Paraguai recebe água e sedimentos mesmo não se pode dizer das tenta- partir de arrombados). de canais dos megaleques fluviais e tivas de conter a dinâmica natural de Uma abordagem sistêmica é, Google 2018 DigitalGlobe Earth Image©

das planícies interleque formados por mudança dos cursos dos rios, sobretu- portanto, fundamental para descre- rios provenientes de leste. A chegada do daqueles formadores dos sistemas ver corretamente a complexa dinâ- das águas destes sistemas não é sin- de megaleques fluviais, que são inter- mica que caracteriza as diferentes cronizada, pois depende de regimes venções humanas de maior amplitude. paisagens funcionais e a transferên- de chuvas em áreas distintas – do do- Ou do acentuado grau de mudança no cia de água e de sedimento entre os mínio Amazônia, a norte, e do do- uso das terras nos planaltos de leste, aí sistemas dentro do Pantanal. Isto re- mínio Cerrado, a leste. Isso compli- sim, com forte aumento do aporte de quer a obtenção e a sistematização ca ainda mais a propagação da onda sedimentos para a planície pantaneira. contínua de dados climáticos, hidro- de cheia. Além disso, a existência dos Um novo modelo mais detalha- lógicos, geológicos e sedimentológi- três gargalos hidráulicos menciona- do de compartimentação da planície cos. Tal abordagem tem implicações dos, causando efeito remanso e inun- do Pantanal, que leve em conta o fun- para a compreensão e correta mode- dações defasadas, aumentam a com- cionamento hidrossedimentar dos lagem de processos ecológicos e in- plexidade hidrológica da área. Dados sistemas naturais de sedimentação é tervenções que visem a conservação de estações fluviais existentes ao de suma importância para entender da biodiversidade em consonância

18 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 com o uso sustentável dos valiosos tais, que se tornam áreas frequen- recursos naturais do Pantanal. temente inundadas e sítios de sedi- Uma classificação sistêmica deve mentação atual; (2) a maior parte da levar em conta a anatomia funcional superfície dos lobos antigos não rece- dos sistemas que compõem o trato be águas provenientes dos rios, sendo deposicional do Pantanal, conforme dominados por inundações produzi- apresentado por Assine e colabora- das pelo escoamento superficial das dores, em 2015. No mapa ilustrado águas das chuvas; (3) algumas áreas (pág. 17), os diferentes sistemas de- dos lobos antigos têm contribuição posicionais são agrupados em cinco de águas do rio formador do megale- categorias, cada qual com caracte- que, seja por transbordamento ou ar- rísticas e funcionamento próprios: rombados, havendo nestes casos fluxo (1) megaleques fluviais formados por misto, constituído pelo escoamen- rios oriundos de planaltos sedimen- to superficial de águas das chuvas nas tares; (2) megaleques fluviais for- planícies e pelo fluxo do rio; (4) as pla-

Milhares de lagoas e salinas compõem a paisagem da Nhecolândia, onde o escoamento superficial é abastecido pelas chuvas de verão.

mados por rios provenientes de ter- nícies do rio Paraguai e dos rios in- renos pré-cambrianos dissecados terleques formam um sistema tribu- (depressões); (3) megaleque do Nabi- tário dentro do Pantanal, coletando e leque situado na saída do Pantanal; transportando as águas dentro e para (4) planícies interleque; (5) planícies fora do trato deposicional; (5) a pro- do rio-tronco (Paraguai). pagação da onda de cheia não é linear, Em síntese, numa nova classifica- pois a existência de três gargalos hi- ção, é fundamental levar em conside- dráulicos provoca restrição ao fluxo, ração que: (1) os megaleques fluviais efeito remanso e inundação de áreas funcionam como sistemas de hidro- mais largas da planície do rio Para- logia complexa, pois os rios estão con- guai; (6) a última restrição é a da saída finados em vales na entrada do Pan- do Pantanal, onde a planície sofre es- tanal, transferindo as águas para os treitamento e o rio atravessa relevos lobos ativos situados nas partes dis- elevados do Fecho dos Morros.

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 19 Rio Perdido Foto: Fernando R. Carvalho 20 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 PEIXES ENDÊMICOS PEQUENOS,ÚNICOS E DESPROTEGIDOS

O CONHECIMENTO, FUNDAMENTAL PARA A PRESERVAÇÃO DE GRANDES ANIMAIS, É ABSOLUTAMENTE CRÍTICO PARA OS PEIXINHOS DA BACIA DO ALTO RIO PARAGUAI, TÃO DIVERSOS QUANTO IGNORADOS

POR FERNANDO R. CARVALHO, MARIA JOSÉ ALENCAR VILELA E FRANCISCO SEVERO NETO

Quando se fala em peixes brasileiros é inevitável lembrar dos gigantes: piraru- Bacia do Alto Paraguai Serra de cus, dourados, cachorras, tambaquis, pira- São Vicente (BAP) raras, douradas, filhotes, piraíbas, pinta- dos, cacharas e jaús, cada um a seu modo famoso e majestoso. Eles são os mais po- pulares por garantir a subsistência e cons- tituir fonte de proteínas para muitas pessoas MT que vivem direta ou indiretamente da pesca. Além disso, são astros e estrelas da pesca es- portiva. No entanto, a maior parte da di- versidade de peixes de água doce dos nos- sos cursos d’água é composta por espécies de pequeno porte, com menos de 15 cen- Rio Abobral Rio

Rio Miranda Rio tímetros de comprimento padrão. Eles habitam as nascentes e os riachos forma- dores de rios maiores. Por seu tamanho re- CORUMBÁ duzido, muitas vezes permanecem isola- dos por barreiras físicas e/ou ecológicas que impedem seus deslocamentos. Além disso, Serra da Bodoquena podem passar a vida toda exclusivamente nas cabeceiras ou em um curto trecho do curso d’água. A bacia do alto rio Paraguai (BAP) in- clui a grande e complexa rede hidrográfica MS Perdido Rio pantaneira, com numerosos cursos d’água e uma rica fauna de peixes. A área total tem

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 21 cerca de 368.000 km2 e abrange ter- efetivamente ameaçadas de extinção. da água, transformando corredeiras ras do Paraguai, da Bolívia e dos es- É o caso do cascudo-albino (Ancis- (águas correntes) em lagos (águas pa- tados brasileiros de Mato Grosso e trus formoso Sabino & Trajano, 1997) radas). Como consequência, altera-se Mato Grosso do Sul, onde são regis- e do bagrinho-cego (Trichomycterus toda a dinâmica de vida dos organis- tradas cerca de 350 espécies de peixes. dali Rizzato, Costa, Trajano & Bichuet- mos ali residentes, a ponto de inviabili- Somente na BAP, região compreendi- te, 2011) – ambos habitantes das caver- zar sua reprodução e, consequentemen- da por todos os riachos e rios situados nas na região da Serra da Bodoquena, te, a manutenção da população. acima da foz do rio Apa com o rio Pa- raguai, entre os municípios de Porto lambari fêmea (Hyphessobrycon rutiliflavius) Murtinho, estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, e San Lázaro, Departamen- to de Concepción, Paraguai, existem em torno de 60 espécies de peixes ex- clusivas! Trata-se de uma alta diver- sidade de espécies endêmicas, ou seja, de peixes que habitam uma área restri- ta e única do planeta, não ocorrendo de modo natural em nenhum outro lugar do mundo. Das espécies endêmicas da BAP, cerca de 80% são de pequeno porte e a

lambari espécie nova (Astyanax sp.) lambari macho (Hyphessobrycon rutiliflavius)

Fotos: Fernando R. Carvalho saicanga (Oligosarcus perdido) Nas cabeceiras da BAP existe de- manda para construção de mais de 150 empreendimentos hidrelétricos, in- cluindo Centrais Geradoras Elétricas (CGHs), Pequenas Centrais Elétricas (PCHs) e Usinas Hidrelétricas (UHEs). É necessária uma discussão sobre os be- nefícios reais desses empreendimentos grande maioria vive nas cabeceiras dos MS – e da violinha (Loricaria coximen- na região. O risco é causar prejuízos in- riachos. Entre outras, pode-se citar o sis Rodriguez, Cavallaro & Thomas, calculáveis e imensuráveis aos organis- canivete (Characidium nupelia Graça, 2012), que ocorre nas áreas de planal- mos aquáticos, em especial aos peixes Pavanelli & Buckup, 2008); o lamba- to da BAP. migradores e aos pequenos e endêmi- ri (Hyphessobrycon rutiliflavidus Carva- As principais ameaças a tais peixi- cos peixes de cabeceiras. Além disso, as lho, Langeani, Miyazawa & Troy, 2008), nhos são as atividades agropecuárias e atividades agrícolas nas áreas de planal- a saicanga (Oligosarcus perdido Ribeiro, de mineração no entorno da Serra da to da BAP tendem a substituir a cober- Cavallaro & Froehlich, 2007) e o bagri- Bodoquena, para as espécies que vivem tura vegetal nativa por extensos plan- nho (Microglanis leniceae Shibatta, 2016). nas cavernas (chamadas pelos pesqui- tios de monoculturas, eliminando a Muitas dessas espécies endêmicas são sadores de troglóbias), e a supressão de proteção aos corpos d’água e expondo altamente dependentes da vegetação às hábitats, incluindo a construção de em- o solo frágil às intempéries climáticas margens dos pequenos corpos d’água preendimentos hidrelétricos com gran- e aos grandes processos erosivos. Isto (florestas ripárias) para sobrevivência e des reservatórios, para espécies restri- culmina em volumes enormes de terra perpetuação de suas populações. tas a determinados trechos de riachos, e outros constituintes levados para o Algumas das espécies exclusivas, como a violinha. A formação de um re- leito dos rios e riachos. Como consequ- pequenas e pouco conhecidas já estão servatório muda drasticamente o fluxo ência, há alteração da turbidez, da tem-

22 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 peratura da água e de outros fatores importantes A BAP abriga espécies de peixes não descri- para a estabilidade dos hábitats de muitas espé- tas e já ameaçadas. Provavelmente já perdemos cies de peixes e de outros organismos aquáticos. algumas delas em virtude das alterações huma- A manutenção da ictiodiversidade requer a nas em seus ambientes naturais, motivadas pela proteção dos hábitats aos quais os peixinhos estão ânsia de perpetuar uma única espécie – a nossa. restritos. Algumas medidas são complexas e bu- É inegável que a humanidade precisa dos recur- rocráticas, mas existem numerosas outras, sim- sos naturais para sobreviver, mas o acúmulo ples, efetivas e até benéficas para o homem pan- além das nossas necessidades tem custado a vida taneiro, garantindo inclusive uma boa qualidade de muitos organismos. Quando uma espécie é da água em sua propriedade. Exemplos? Impedir extinta, perde-se com ela toda uma história evo- o pisoteio do gado nas margens dos córregos ou, lutiva, única, de seleção natural ocorrida em cen- pelo menos, limitar esse acesso a algumas áreas, tenas ou milhares de anos, além de se promover a reduzindo o impacto; manter a vegetação nativa ruptura de incontáveis interações entre as espé- nas margens dos rios/riachos; instalar mini siste- cies que compõem os ecossistemas. Foto: Maria José Alencar Alencar José Maria Foto: Foto: Fernando R Carvalho Fernando Foto: Peixinhos exclusivos da BAP (pág. ao lado) podem desaparecer, se não controlarmos o assoreamento de rios (acima à esq.), como nesse trecho do rio Abobral, e os desmatamentos (acima à dir.), como esse na Serra de São Vicente. As matas

Foto: Maria José Alencar Alencar José Maria Foto: ciliares (abaixo) são essenciais para a sobrevivência de muitas espécies

mas para tratamento dos dejetos domésticos e de A diversidade dos peixes da BAP depen- atividades de criação animal, dentre outros. de da manutenção das áreas das cabecei- Certamente, com a ajuda de todos, será pos- ras dos rios/riachos formadores dessa dre- sível conhecer e garantir a preservação dos pei- nagem. Sua rica ictiofauna – caracterizada xes da BAP, ao menos o suficiente para evitar sua principalmente por espécies pequenas, frá- extinção. Para isso, é importante entender onde geis às mudanças ambientais, restritas em e como vivem, como se reproduzem, do que se sua área e, muitas vezes, desconhecidas – alimentam, qual é a sua distribuição e como se precisa de cuidados. Para que esses peixes comportam no ambiente. Vale destacar que mui- continuem entre nós, é necessário conhecê- tas espécies encontram-se em áreas de planal- -los e tomar as medidas adequadas de pre- to, nas quais foram identificados somente um ou servação de seus hábitats. Apenas assim con- dois pontos de ocorrência. Se o conhecimento é tinuaremos a história que herdamos nesses incompleto acerca dessas espécies – já cataloga- 3,6 bilhões de anos de vida na Terra, ao lado das – imagine o quanto falta compreender acerca de cada um dos milhões de organismos com daquelas espécies ainda não registradas ou des- os quais dividimos a nossa casa, com igual critas pela Ciência! direito à vida...

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 23 PEIXES ANUAIS A VIDA ESCONDIDA EM POÇAS

COM A CHEGADA DA ESTAÇÃO CHUVOSA, UMA MIRÍADE DE PEIXINHOS COLORIDOS BROTA DA LAMA PARA CRESCER, PROCRIAR E MORRER, PERPETUANDO SEU LEGADO DE EXTREMA ADAPTAÇÃO NOS OVOS PRESERVADOS NO SOLO

POR FRANCISCO SEVERO NETO Neofundulus paraguayensis

Como as savanas da África Cen- temporárias, onde nascem, cres- quase 500 espécies descritas, sendo tral, o Pantanal também tem seus cem e morrem, mas não sem antes 118 só nos últimos dez anos. Entre “peixes que caem com as chuvas”: es- deixar seus ovos para eclodir na elas, 11 espécies ocorrem no Mato pécies adaptadas para sobreviver estação chuvosa seguinte. Grosso do Sul. A bem da verdade, a ciclos extremos de cheias e secas, Quando estes ambientes secam a família Rivulidae inclui peixes mesmo quando os corpos d’água se completamente, os ovos entram anuais e não-anuais. Os não-anu- tornam muito rasos ou são reduzidos num estado de dessecação e dor- ais são um capítulo à parte, embora a poças de lama. Pouco conhecidos mência, às vezes por mais de um não fiquem para trás nos quesitos fora dos meios acadêmico e aquarió- ano ou até por vários anos. Aos pri- de adaptação. São pequenos, com filo, os peixes anuais são seres extre- meiros sinais de água, porém, o em- cerca de 3 centímetros e habitam mamente interessantes, cuja história brião volta a se desenvolver, nasce, banhados e veredas, principalmen- natural aos poucos é desvendada. cresce e o ciclo recomeça. Daí vem te. Conseguem viver em ambientes A origem deste grupo remonta o termo “peixe anual” e, também, a com menos de um centímetro de ao período em que África e Améri- impressão de que os peixes “caem água; saltam pelo solo entre poças; ca formavam um só continente, há do céu” com as chuvas. Até hoje, os respiram ar atmosférico através da 120 milhões de anos. Sequências dois continentes abrigam diversas pele e passam períodos de estiagem de adversidades ambientais, repe- espécies com essa capacidade fan- enterrados vivos! tidas durante muitas gerações, se- tástica de sobrevivência. Uma característica comum aos lecionaram populações de peixes No presente, o grupo anual sul- dois grupos é a coloração dos ma- com a incrível habilidade de se es- -americano é representado pela fa- chos, sempre muito viva e chamati- tabelecerem em pequenas poças mília taxonômica Rivulidae, com va, com o objetivo de atrair as fême-

24 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Foto: Paulo Robson de Souza as, cuja coloração tende a ser mais tados pelos peixes anuais têm sido gião de Miranda – Stenolebias bellus discreta. Além do apelo visual, ma- modificados para atender ativida- – nunca mais tenha sido encon- chos de peixes anuais conseguem des humanas, por meio de aterros, trada após sua descrição, nos anos emitir sons através de modificações barramentos, dragagens, asfalta- 1990, com base nos 6 únicos exem- do esqueleto e assim “convencem” mentos e transposições. Isso torna plares então coletados. as fêmeas a vir até eles. Tais estra- tal grupo de vertebrados o mais No Alto Paraguai, dentre esses tégias de reprodução são importan- ameaçado no Brasil! onze peixes anuais conhecidos até tíssimas, pois muitas vezes o tempo Desde 2013, existe um Plano o momento, dez são endêmicos é curto, as poças são extremamen- de Ação Nacional para Conserva- da bacia do Paraguai. Ou seja, eles te turvas e os sinais visuais não são ção da família Rivulidae, trans- ocorrem exclusivamente nas dre- suficientes. O comportamento re- formado em portaria pelo Institu- nagens que escoam para o rio Pa- produtivo varia entre espécies, mas to Chico Mendes de Conservação raguai, seja a partir do Brasil, Para- sempre envolve cortejos elaborados da Biodiversidade (ICMBio). O guai ou Bolívia. Apenas Pterolebias entre o casal. Em geral, os ovos são plano visa proteger tanto as espé- longipinnis tem uma distribuição depositados em ninhos feitos no cies ameaçadas desta família como mais abrangente, ocorrendo desde fundo das poças. os ambientes onde habitam, nos a ilha do Marajó até Corrientes, na Infelizmente, apesar de adapta- biomas , Cerrado, Mata . Esta espécie é remanes- ções afinadas ao longo de centenas Atlântica e Pampa. Nenhuma das cente da antiga conexão entre as de milênios, a sobrevivência das 11 espécies de ocorrência no Pan- bacias Amazônica e Paraguaia. próximas gerações é cada vez mais tanal está classificada como ame- Todos são peixes pequenos, com incerta. Os frágeis ambientes habi- açada, embora uma espécie da re- cerca de 10 centímetros. Dentre as

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 25 A coloração dos machos é bem viva e chamativa (fotos à esq. e à dir. abaixo), para que consigam atrair as fêmeas Trigonectes balzanii mesmo nas águas Foto: Paulo Robson de Souza turvas das poças (à dir.acima) dez espécies endêmicas, duas ha- uma pequena lâmina d’água ou bu- bitam as áreas dos planaltos de en- racos de tatu inundados. Essa plas- torno do Pantanal: uma próxima à ticidade no uso de ambientes pro- Serra de Maracaju e a outra, à Serra vavelmente deriva de linhagens que da Bodoquena. As demais ocorrem tiveram de lidar com a frequên- na planície pantaneira, onde podem cia do pulso de inundação do Pan- ser encontradas nos mais diversos tanal, ao longo de milhões de anos, ambientes: em pequenas poças de tornando-se pouco exigentes quan- chuva; nas caixas de empréstimo ao to ao hábitat. longo das estradas; nos campos ala- Assim como acontece em outras gados; em banhados adjacentes aos localidades e com peixes anuais de rios maiores e, fortuitamente, até outros biomas, é possível encontrar mesmo em pegadas de vacas com mais de uma espécie anual em uma

26 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Fotos: Francisco Severo-Neto mesma área. No entanto, o mais ca- Pterolebias longipinnis racterístico no Pantanal, com fre- quência maior do que nos demais locais, é a convivência destes pei- xes com as espécies não-anuais. Sob esse aspecto, é possível separar dois distintos grupos na planície, to- mando o Rio Paraguai como refe- rência: os peixes anuais das áreas de inundação mais ao Norte e as es- pécies que habitam o finalzinho da área de influência da bacia do Alto Paraguai, onde se encontra o Panta- nal do Nabileque e a única área de Chaco conhecida no Brasil. Resultados preliminares obti- O contexto desfavorável torna cana, por exemplo, capaz de com- dos nesta segunda região indicam a fundamental um esforço de pes- pletar seu ciclo de vida em apenas 3 presença de espécies mais sensíveis quisa para melhor compreensão semanas! Sua curtíssima expectati- quanto à presença de peixes não-a- sobre a distribuição e biologia bá- va de vida ajuda os pesquisadores a nuais e cuja distribuição se restringe sica destas espécies, de forma a compreender doenças humanas as- a poças menores, exclusivamente for- mitigar os impactos das ações do sociadas à idade, como problemas madas por água de chuva e associa- homem sobre sua sobrevivência. cardiovasculares, câncer, artrite, das a cobertura vegetal. Tal especifi- Além de serem seres incríveis, que catarata, osteoporose, diabetes e cidade de hábitat, associada ao fato de realçam a diversidade pantaneira Alzheimer. É preciso, portanto, re- a região concentrar a maior taxa de entre as quase 300 espécies de pei- conhecer a importância desses pei- substituição da vegetação nativa por xes do Alto Paraguai, os anuais são xinhos e promover a conservação pastagens da bacia do Alto Paraguai reconhecidos como modelos notá- das poças onde essas magníficas pode acarretar na redução – e até veis para o melhor entendimento espécies habitam, a fim de evitar mesmo desaparecimento – de certas das nuances do envelhecimento em que o fenômeno de anualidade se populações de peixes anuais. vertebrados. Há uma espécie afri- torne uma cabal data de validade.

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 27 ANFÍBIOS DO SUBSOLO PARA OS HOLOFOTES DA CIÊNCIA

DESCOBERTA EM CORUMBÁ EM 2012 E RECONHECIDA COMO NOVA ESPÉCIE EM DEZEMBRO DE 2017, UMA RÃZINHA OVAL E FOSSORIAL É O PRIMEIRO VERTEBRADO A HOMENAGEAR O MUNICÍPIO

POR ALESSANDHER PIVA, ULISSES CARAMASCHI E NELSON RUFINO DE ALBUQUERQUE

Foto: Alessandher Piva Elachistocleis corumbaensis

28 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Onde fica

BOLÍVIA

CORUMBÁ

Parque Municipal de Piraputangas

Maciço do PARAGUAI Urucum M ATO GROSSO DO SUL

As rãzinhas do gênero Elachisto- Em muitos lugares, são conhecidas cleis, da família Microhylidae, vivem por nomes comuns associados às a maior parte do tempo enterradas. suas características físicas como rã É uma estratégia eficiente para pre- oval ou narrow-mouthed frogs (sapos venir a perda de água pela pele na de boca estreita). A maioria das 649 prolongada estação seca do Bra- espécies conhecidas de Microhyli- sil Central, quando a umidade do dae são diminutas: seu tamanho ar pode baixar a níveis perigosos varia entre 10 milímetros (1 cm) e para os anfíbios. Elas costumam 100 mm (10 cm). E elas se concen- emergir de seus esconderijos debai- tram na zona tropical: América do xo da terra apenas ao longo da es- Sul, África, Madagascar, Sudeste da tação chuvosa, para garantir a re- Ásia, Indonésia, Nova Guiné e Aus- produção. E podem ser observadas trália. Porém ocupam ambientes principalmente após as fortes chu- muito diversos, de florestas úmidas vas que costumam ocorrer entre os a zonas desérticas. meses de novembro e março. Como acontece com as rãzinhas Boa parte das rãs dessa extensa do gênero Elachistocleis, as mais de 6 família – com mais de 60 gêneros – 800 espécies de sapos, rãs e perere- são reconhecidas pela boca estreita, cas conhecidas no mundo têm a pele além da cabeça pequena e afilada, extremamente sensível e permeável. contrastando com o corpo redondo. Isso distingue os anfíbios dos demais

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 29 animais e os torna extremamente mente (95%) no Pantanal. O parque cie foi registrada durante as coletas vulneráveis a variações ambientais é uma rara área protegida, que serve de mestrado do biólogo Alessandher no meio em que vivem. O exemplo de refúgio local para diversas espé- Piva, ex-aluno do Programa de Pós- mais conhecido é o aumento da ra- cies de animais, incluindo 28 espé- -Graduação em Biologia Animal da diação ultravioleta B, apontado como cies de anuros. Universidade Federal de Mato Gros- uma das causas do declínio das popu- Em 2015, a Fundação Grupo Bo- so do Sul (PPGBA-UFMS). Ele estu- lações de anfíbios anuros (sem cauda) ticário de Proteção à Natureza reali- dou a “Diversidade de anfíbios anu- no planeta. Além disso, a perda de há- zou a exposição “Sapos, pererecas e ros (Anura) em uma área de floresta bitat e a degradação ambiental estão rãs do Parque Municipal de Pirapu- estacional semidecidual no Parque entre as maiores ameaças, afetando tangas” no Museu Estação Natureza Municipal de Piraputangas, em Co- milhares de espécies. Pantanal, em Corumbá, com o objeti- rumbá, MS”, sob orientação de Nel- Um risco presente (e crescente) vo de promover a educação e a cons- son Rufino de Albuquerque, membro no Estado de Mato Grosso do Sul cientização ambiental. Os visitantes do corpo docente do curso de Ciên- é a degradação da borda oeste do tiveram a oportunidade de conhecer cias Biológicas do Campus do Panta- Pantanal, sobretudo em áreas não as espécies de anfíbios locais e apren- nal da UFMS e professor/orientador inundáveis. Tal deterioração am- der sobre sua importância para o do PPGBA. biental decorre de atividades huma- equilíbrio da biodiversidade e como Ao coletarem quatro indivídu- nas altamente impactantes – sobre- indicadoras da qualidade ambiental. os do gênero Elachistocleis, Piva e Al- tudo para as populações de anfíbios Dentre os anfíbios exibidos, estavam buquerque perceberam algumas di- – como é o caso de assentamentos as espécies de rãs ovais e fossoriais ferenças em relação às espécies já rurais, sistemas agropastoris e mi- encontradas no Parque Municipal de conhecidas, juntamente com o es- neração. Nessa região, a primeira Piraputangas, incluindo Elachistocleis pecialista Ulisses Caramaschi, do e única unidade de proteção inte- corumbaensis (à época citada como Museu Nacional (Rio de Janeiro). gral existente é o Parque Munici- Elachistocleis sp.), o primeiro vertebra- As rãzinhas se distinguiam por sua pal de Piraputangas, localizado no do nomeado em homenagem à cida- morfologia (aparência externa) e co- Município de Corum- de de Corumbá e a quarta espécie loração. Isso motivou o biólogo e os bá, cujo território de do gênero catalogada para o Es- dois professores doutores a dar início 64.963 km2 se inse- tado de Mato Grosso do Sul, ao a uma pesquisa com o intuito de des- re quase integral- lado de E. bicolor, E. cesarii e crever formalmente a espécie como E. matogrosso. A nova espé- nova para a Ciência. Após três anos de trabalho conjunto, o artigo cientí- fico com a descrição da espécie pan- taneira de anfíbio anuro foi publi- cado em 25 dezembro de 2017, na revista Phyllomedusa – Journal of Her- petology (USP). A rãzinha E. corumbaensis se dife- re das demais 18 espécies conhecidas do mesmo gênero por possuir uma combinação de características ex- clusivas. Dentre elas, destaca-se o ta- manho, variando de 26,9 mm a 40,3 mm, um porte considerado entre médio e grande. A nova espécie ainda possui o ventre cinza ou marrom, com manchinhas brancas e manchas maiores amarelas ou creme. As man- chinhas brancas sobre fundo escu- ro são mais numerosas nas laterais, separando as regiões dorsal e ven- tral. Em suas costas, de textura li- geiramente áspera, o tom também é acinzentado, mas todo pontilhado Foto: Alessandher Piva de branco, exceto por uma mancha alongada, de um cinza mais escuro, entre o meio do dorso e a parte pos-

30 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 terior da cabeça. Nas articulações das patas traseiras (virilhas) e nas coxas, sobressaem faixas alaranjadas. Outra diferença importante é o fato de a rã- zinha recém descrita possuir apenas um saco vocal, cinza escuro. Até o momento, a nova rã oval foi encontrada apenas no Parque Munici- pal de Piraputangas, numa área de solo pedregoso, capins e ervas, com diver- sos laguinhos e charcos intermiten- tes, e no Maciço do Urucum, contí- guo à área protegida. Ambas as regiões se situam na borda oeste do Pantanal, no município de Corumbá. A descrição desta espécie reforça a importância da proteção de áreas naturais por meio da criação das Unidades de Conservação. Estas contribuem para a manutenção Foto: Alessandher Piva da biodiversidade e dos recursos gené- ticos das populações protegidas, além de possibilitarem a proteção de espé- cies ameaçadas, de espécies raras e/ou pouco encontradiças. E, claro, de espé- cies ainda desconhecidas pela Ciência, como até pouco tempo atrás era o caso de Elachistocleis corumbaensis. Foto: Arquivo pessoal Arquivo Foto:

Os padrões diferenciados de coloração da rãzinha, no ventre (pág. à esq.) e no dorso (acima) chamaram a atenção de Alessandher Piva (ao lado), indicando a possibilidade de se tratar de uma espécie nova

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 31 rola-bosta (Scybalocanthon sp.) rolando fezes de queixada Foto: Trond Larsen

32 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 BESOUROS ALIADOS (QUASE) INVISÍVEIS

DISCRETOS E POUCO CONHECIDOS, MAS EXTREMAMENTE ÚTEIS, SAPROXILÓFAGOS E ROLA-BOSTAS MERECEM MAIS ATENÇÃO DA PESQUISA, DOS PANTANEIROS E ATÉ MESMO DOS TURISTAS

POR SÉRGIO ROBERTO RODRIGUES, RAFAEL REVERENDO VIDAL KAWANO NAGAMINE E BRUNO MATEUS RIBEIRO DIAS

Sem alarde e sem chamar a aten- pelo movimento do sol, reverencia- ção dos turistas observadores de do em hieróglifos de pirâmides e fauna, besouros de variadas for- outros monumentos egípcios, como mas, cores e tamanhos trabalham – protetor dos mortos em seu cami- exaustiva e minunciosamente – nas nho para outra vida. Como os esca- extensas matas nativas, pastagens e ravelhos sagrados, saproxilófagos e áreas cultivadas com agricultura, no rola-bostas constroem diariamen- Pantanal do Mato Grosso do Sul e te numerosos caminhos entre a de- seus arredores. Nesses distintos am- gradação da matéria orgânica e o bientes ocorrem mais de vinte espé- contínuo reviver da vegetação na- cies de coleópteros da família Scara- tiva, dos pastos naturais ou planta- baeidae, a família dos escaravelhos e dos e das lavouras. de besouros vulgarmente conheci- O trabalho desses besouros é de dos por seus hábitos alimentares e extrema importância para a nature- reprodutivos, como os saproxilófa- za, embora muitas vezes seja invi- gos e os rola-bostas. sível aos olhos das pessoas que co- Representada por cerca de 30 abitam os mesmos ambientes por mil espécies em todo o mundo, tal eles povoados. Esse grupo de inse- família inclui o sagrado escarave- tos apresenta quatro fases de de- lho do Egito (Scarabaeus sacer), as- senvolvimento: ovo, larva, pupa e sociado ao deus Khefri, responsável adulto. Os adultos podem ser obser-

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 33 vados com maior frequência, pois em seu sistema digestivo, tais be- são atraídos por fontes luminosas souros ainda carregam um “exér- e, portanto, chegam mais perto do cito” de bactérias especializadas Besouros adultos homem. Ovos, larvas e pupas per- em digerir as células mais resis- (nos recortes) são mais fáceis de manecem abrigados sob o solo ou tentes, como a celulose. Assim, os observar. Larvas dentro dos materiais em decompo- processos de decomposição rece- e pupas (abaixo) sição, por períodos de 6 a 12 meses. bem imensa ajuda da fauna de co- ficam escondidas nos materiais em São mais difíceis de encontrar. leópteros, apesar do excepcional decomposição Nos ambientes de mata de cer- serviço prestado à natureza e aos rado, encontramos as espécies de cultivos do homem muitas vezes Scarabaeidae associadas a madei- passar despercebido. ras em decomposição. É o grupo Já nos ambientes de pastagens, dos coleópteros conhecidos como rebanhos numerosos de animais saproxilófagos, aqueles que se ali- herbívoros se alimentam de gra- mentam de madeira em decompo- míneas e eliminam quantidades sição: sapro = em decomposição, elevadas de fezes. No caso dos bo- xilo = madeira e fagos = que se ali- vinos, em particular, as fezes cons- menta de. Eles auxiliam no pro- tituem um microambiente im- cesso de decomposição, mastigan- portante para o desenvolvimento do as partes mais duras da madeira de nematoides e de moscas hema- (como a celulose e a lignina), e con- tófagas, como a mosca-dos-chi- tribuindo, assim, para a reciclagem fres. Nematoides são vermes de de nutrientes. corpo delgado, que habitam sobre- Normalmente as árvores ou os tudo solos e corpos d’água. Exis- arbustos, que caem, secam e mor- tem mais de 10 mil espécies cos- rem, são colonizados pelos adul- mopolitas (encontradas em todo o tos desse importante grupo de mundo), parasitas de vegetais e de insetos. Eles se alimentam da ma- animais. Muitas delas causam sé- deira e depositam seus ovos den- rios danos, constituindo verdadei- tro de troncos e galhos apodreci- ras pragas. As moscas hematófagas dos. Quando eclodem, as larvas são aquelas que se alimentam de também utilizam esse material sangue, neste caso dos bovinos. E a Fotos: Sérgio R. RodriguesFotos: em decomposição para nutrição e mosca-dos-chifres é especialmen- ali dentro se desenvolvem. E mais: te prejudicial, devido à sua enorme sp Pelidnota sp. Dichotomius

34 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 capacidade de multiplicação e ao bioindicadores. São boas razões hábito de permanecer sobre os bo- Megasoma sp. para promover mais levantamentos vinos (aos milhares), alimentando- de espécies e populações presentes -se de seu sangue por meio de pi- em cada ecossistema e – por que

cadas dolorosas. Causam estresse, John Liana Foto: não? – também chamar a atenção perda de peso e de produtividade. de pantaneiros e visitantes para o Mas em pasto onde existem ro- trabalho curioso e até agora invisí- la-bostas, as fezes dos bovinos de- vel de tais criaturas. postas nas áreas de pastagens são também colonizadas por estes co- leópteros da família Scarabaeidae. E os hábitos de tais besouros bené- ficos acabam por atrapalhar a pro- rola-bosta (Canthon sp.) liferação dos nematoides e mos- cas parasitas, contribuindo para a saúde dos bovinos. O próprio nome vulgar – usado indistinta- mente para muitas espécies – fun- ciona como explicação: os rola-

-bostas retiram pequenas porções aeração dos solos em diversas pro- de Souza Robson Paulo Foto: das fezes dos bovinos, formam fundidades; aumenta a matéria or- com elas uma pequena bolinha e gânica disponível para as plantas e saem empurrando essas bolinhas acelera a reciclagem de nutrientes. até os túneis previamente cava- Sem contar que as pastagens ficam dos na pastagem. O mesmo besou- mais limpas, na superfície. ro cava vários túneis e os preenche Em geral, nos ambientes de com várias bolinhas. Esses depó- pastagens pantaneiros, as várias sitos servem tanto para a alimen- espécies ocorrentes de rola-bos- tação dos rola-bostas como para a tas podem ser encontradas nas deposição de seus ovos. mesmas placas de fezes de bo- Uma vez enterradas nos túneis, vinos, utilizando e explorando as bolinhas deixam de oferecer as esse microambiente para alimen- condições ideais para os parasi- tação, reprodução e desenvolvi- tas. Eles não conseguem se desen- mento. O papel desses besouros é volver e morrem antes de chegar à considerado tão importante para Os benefícios fase adulta. Além disso, a distribui- o ambiente e para o controle de dos rola-bostas (acima e ao alto) ção das fezes nos túneis favorece a nematoides e moscas, que os fa- inspiraram mudanças bricantes de pesticidas sistêmicos nas pesquisas de (ingeridos pelo gado) passaram a pesticidas sistêmicos para o gado! pesquisar fórmulas mais eficazes contra os parasitas, porém inócu- as contra os coleópteros. Pelos benefícios proporciona- dos aos ambientes de pastagens – com suas galerias; com o revolvi- sp. mento das camadas dos solos e a incorporação de matéria orgânica

Pelidnota em túneis e galerias – os rola-bos- tas são considerados componen- tes fundamentais na manutenção dos ecossistemas onde estão in- seridos. E mais: como respondem de maneiras diversas aos impactos ambientais negativos, podem tam- bém ser considerados organismos

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 35 tatu-do-rabo-mole-pequeno (Cabassous unicinctus) Fotos: Projeto Tatu-Canastra Projeto Fotos:

36 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 MAMÍFEROS JÁ VIU ALGUM TATU-DE-RABO-MOLE?

ESSE ANIMALZINHO INCRÍVEL VIVE 99% DE SEU TEMPO NOS “SUBTERRÂNEOS” PANTANEIROS, CONTROLANDO FORMIGAS E CUPINS. E, QUANDO SAI, É RAPIDINHO, SÓ PARA TROCAR DE TOCA!

POR ARNAUD L. J. DESBIEZ, GABRIEL F. MASSOCATO, DANILO KLUYBER E NINA ATTIAS

TATU-DE-RABO-MOLE?! “saltar” da cabeça. A fronte é cober- Fala sério, quem já ouviu falar ta por escamas, formando um mo- desse bicho? E quem, por um gran- saico diferente em cada indivíduo, de acaso, já teve o privilégio de ver como uma impressão digital. Ambas um deles passar correndo de um as espécies têm grandes garras nas buraco para outro, em pleno sol do patas dianteiras (maiores de 3 cm) e, meio dia? por isso, às vezes os adultos de rabo- No mundo, atualmente são re- -mole são confundidos com filhotes conhecidas apenas 20 espécies de de tatu-canastra. tatus. No Pantanal e seu entorno As duas espécies presentes no podem ser encontradas seis dessas Mato Grosso do Sul se distinguem espécies, sendo que duas são cha- pelo tamanho: o tatu-de-rabo-mo- madas de tatu-de-rabo-mole. E ra- le-grande (Cabassous tatouay) pesa bo-mole por que? Diferente dos cerca de 5 kg e o tatu-de-rabo-mole- demais tatus, as caudas dos tatus- -pequeno (Cabassous unicinctus), em -de-rabo-mole não são totalmente torno de 2 kg. Quando manuseados, revestidas por escamas e, por isso, ambos se encolhem e ficam ainda são mais maleáveis. Seus corpos mais redondos. Por esta razão, em também são bem flexíveis e de for- algumas regiões do Pantanal, são mato arredondado. As duas espé- chamados indistintamente de tatu- cies têm focinhos redondos e acha- -bola, tatu-bolinha ou simplesmen- tados, como os de um porquinho. te bolinha. Algumas pessoas ainda Os olhos são pequenos e as orelhas, se referem às duas espécies como ta- grandes e redondas, parecendo até tu-de-rabo-de-sola.

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 37 O tatu-de-rabo-mole só sai da toca nas horas mais quentes do dia. Parece uma boa estratégia para evitar predação, pois os predadores estão descansando na sombra.

baixo da terra! Ele só se alimen- ta de formigas e cupins, tratando de cavar túneis e galerias por todo lado, sempre à procura dos in- setos. Cavar é tão natural para a espécie que esse tatuzinho pa- rece “nadar” através do solo, en- quanto caça sua comida. Even- tualmente – apenas uma ou duas vezes por dia – ele sai de seus tú- neis para a superfície, caminhan- do para se afastar um pouco da antiga galeria (uns 80 metros). Essas saídas são bem rápidas e logo ele já começa a cavar, mergu- lhando de novo embaixo da terra. Em média, cada saída dura 6 mi- nutos e, no total de todas as saí- das do dia, a tendência é perma- necer somente 11 minutos na superfície. Por isso, é preciso ter mesmo muita sorte para avistar A equipe do Projeto Tatu Ca- um formigueiro, e uma saída no um tatu-de-rabo-mole andando nastra estudou o comportamen- chão, na forma de um cilindro por aí! Seja o grande ou o peque- to do tatu-de-rabo-mole-peque- perfeito, como se fosse o bura- no. Se algum dia conseguir fla- no por dois anos, na fazenda Baía co feito por um trado manual ou grar um animalzinho desses fora das Pedras, no Pantanal da Nhe- uma cavadeira! da toca, considere-se uma pessoa colândia. Não foi nada fácil: para Reconhecer as tocas e montar bem sortuda! estudar um animalzinho tão ha- guarda por perto é uma coisa. Mas Uma constatação curiosa dos bituado a subterrâneos, é preci- conseguir visualizar um tatu-de- pesquisadores foi o horário das so encontrá-lo primeiro! Os si- -rabo-mole é outra coisa, bem dis- saídas: o tatu-de-rabo-mole-pe- nais de ocorrência da espécie no tinta. Centenas e centenas de horas queno só sai da toca nas horas local eram evidentes: suas tocas, de observação – de 10 indivídu- mais quentes do dia. Quem co- fáceis de identificar, estavam por os – foram necessárias para a equi- nhece o calor pantaneiro pode toda parte. Bem diferentes das pe obter dados sobre a espécie e en- achar péssima ideia a escolha dos feitas por outros tatus, elas têm tender seus hábitos. Apesar de ser “piores” horários. Mas esse com- uma entrada que é um montinho diurno, o tatu-de-rabo-mole-pe- portamento tem suas vantagens, a de terra ou areia, parecido com queno passa 99% de seu tempo em- começar pelo fato de os predado-

38 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 res estarem descansando à sombra da vegetação no meio do dia! Esta é uma boa estratégia para uma es- pécie muito vulnerável à predação. Além de se encolher e tentar pro- teger as partes mais vulneráveis do corpo (mesmo sem contar com uma carapaça tão resistente quan- to a de outros tatus), a única de- fesa dos tatus-de-rabo-mole con- tra predadores é cavar velozmente, desaparecendo solo abaixo. A maneira de cavar, por sinal, é outra curiosidade da espécie: o animalzinho é uma pequena esca- vadeira, com patas fortes e longas unhas adaptadas para abrir bura- cos. Enquanto revolve o solo, jo- gando a terra solta para trás, ele vai girando o corpo, formando o ci- lindro perfeito observado em suas tocas diferenciadas. Graças a tais adaptações para a escavação, ele pode desaparecer debaixo da terra menos de um minuto após come- çar a cavar. As patas e unhas adap- tadas para a escavação também são muito úteis para quebrar os duros cupinzeiros e chegar ao alimento. Uma das observações mais gra- tificantes e surpreendentes do es- tudo realizado foi o nascimento de um filhote, registrado cientifica- mente pela primeira vez. O tatu- -de-rabo-mole-pequeno não volta para o mesmo buraco, quase nunca. Por isso chamou a atenção o com- portamento de uma fêmea, ao ser observada voltando para o mesmo buraco durante 22 dias seguidos. Que surpresa, no vigésimo segun- do dia, ao vê-la emergir da toca acompanhada de um pequeno fi- lhote! Ambos saíram em busca de outra toca e passaram a repetir uma rotina de troca de tocas a cada 15 dias. Aos 4 meses, o filhote ficou independente e dispersou. Assim como outros tatus, os de rabo-mole têm hábitos solitários, ou seja, vivem sozinhos a maior parte de sua vida. Então, quando um macho e uma fêmea aparece- ram andando juntos por um tempi- nho, desconfiamos de algo relacio- nado à reprodução. Quatro meses

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 39 mais tarde, essa fêmea também co- é, cães domésticos abandonados que meçou a reutilizar o mesmo buraco voltam a ter comportamento selva- por vários dias e cresceu a expec- gem). Um dos dez indivíduos - tativa de conhecer um novo filhote. servados durante o estudo do Pro- Mas, nesta segunda vez, o tempo de jeto Tatu Canastra foi predado por espera foi mais longo: a mãe demo- um cão doméstico, quando este se- rou 52 dias para sair da toca com guia um boiadeiro. E como os tatus seu filhote pela primeira vez. Nas não são muito ligeiros, se compara- duas observações, ambas as fêmeas dos aos veículos, eles também são de tatu-de-rabo-mole pequeno ti- vítimas de atropelamentos ao tentar veram um único filhote. atravessar estradas. Por seu tamanho diminuto, o ta- Mesmo sem ninguém perceber, tu-de-rabo-mole-pequeno não pre- os dois tatus-de-rabo-mole – pe- cisa de muita área para viver. Cada queno e grande – prestam serviços indivíduo ocupa em média 1 km2. ambientais importantes para os fa- A espécie consegue povoar alguns zendeiros, controlando formigas ambientes alterados pelo homem, e cupins. Eles ainda ajudam a des- como pastagens, porém não so- compactar o solo, por “nadar” em- brevive a certas práticas em cam- baixo da terra, cavando seus túneis pos cultivados, como a subsola- e galerias. Embora pouco conheci- gem ou a gradeação profunda, que das, as duas espécies da megadiver- atingem esses tatus, causando sua sa fauna brasileira são aliadas do morte. Assim como diversos outros homem. Talvez um desses animai- mamíferos silvestres de pequeno e zinhos extraordinários esteja agora médio porte, os tatus-de-rabo-mo- mesmo embaixo de seus pés, “tra- le são ameaçados – e caçados – por balhando” silenciosamente pelo cachorros domésticos ou ferais (isto equilíbrio da natureza!

Assista dois vídeos do tatu-de-rabo-mole- pequeno cavando, ambos gravados pela equipe do Projeto Tatu Canastra.

www.youtube.com/edit?o=U&video_id=2_P_A1epigw www.youtube.com/edit?o=U&video_id=6ZGj2h_tl5A

40 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 41 Foto: Walfrido M. Tomás 42 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 BIODIVERSIDADE A RIQUEZA VEM DE FORA

PLANTAS E ANIMAIS ENCONTRADOS EM DIVERSOS AMBIENTES DO PANTANAL SÃO TESTEMUNHOS DA INFLUÊNCIA DE ECO-REGIÕES VIZINHAS, COMO AMAZÔNIA, CERRADO, CHACO, FLORESTA CHIQUITANA E MATA ATLÂNTICA

POR WALFRIDO M. TOMAS, ALESSANDRO PACHECO NUNES, SUZANA MARIA DE SALIS, VANDA LUCIA FERREIRA, MARIA ANA FARINACCIO E DIEGO JOSÉ SANTANA

Parte da famosa riqueza de flora e no Pantanal. E essa riqueza ímpar fauna do Pantanal pode ser creditada deve ser conhecida e celebrada. Em ao conjunto diversificado e altamen- qual outro lugar seria possível encon- te produtivo de ambientes da planí- trar as amazônicas vitórias-régias flo- cie, com fartura de água e nutrientes ridas, cobrindo uma área inundada para as mais variadas espécies: pas- e, a menos de 100 metros, visualizar tagens nativas, baías, salinas (lagoas enormes cactos típicos dos de água salobra), lagoas com ou sem mais secos, distribuídos pelas encos- plantas aquáticas, corixos (canais na- tas? Onde mais se poderia observar turais de escoamento das cheias, tem- animais cujos hábitats originais são de porários ou permanentes), matas, difícil acesso ou estão em países vizi- campos sujos, cordilheiras (elevações nhos, como é o caso da tiriba-de-cau- de 1 a 2 metros, formando cordões da-vermelha, ave originária de matas arenosos onde predominam ambien- secas da Bolívia? Ou destacar na pai- tes florestais), brejos, vazantes e assim sagem brasileira a carandilla, palmei- por diante. É preciso reconhecer, no ra do Chaco que até recentemente entanto, a contribuição de elemen- era considerada extinta por aqui? Ou tos da biodiversidade de várias outras ainda ver passar um réptil genuina- eco-regiões da América do Sul, bem mente paraguaio, como a bílbola ou ví- adaptados a determinadas condições bora, um lagarto aquático, de grande do Pantanal, ainda que algumas es- porte, erroneamente considerado ve- pécies sejam naturalmente raras ou se nenoso? Só mesmo a diversidade de mantenham restritas a microambien- microambientes da planície pantanei- tes muito particulares. ra para abrigar todos eles! A presença de fauna e flora oriun- Dentre as regiões de influência das de outros ecossistemas aumen- sobre o Pantanal – de onde provém ta a variedade de animais e vegetais essa biodiversidade “extra” – desta- vitória-régia (Victoria amazonica)

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 43 jacaré-do-pantanal ( yacare) Foto: Liana John 44 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 chuveirinho (Pepalantus chiquitensis)

O jacaré veio do Chaco e se

Foto: Alden Bourscheit Alden Bourscheit Foto: espalhou por todo o Pantanal, enquanto o chuveirinho é uma planta restrita na origem – as áreas úmidas do Cerrado – e no destino – o sul da Nhecolândia.

cam-se a Amazônia, o Cerrado, o de de características físicas e eco- Chaco e a Mata Atlântica, embo- lógicas que favoreceu a instalação ra espécies típicas de outras eco- dessas espécies também limitou – -regiões, como a Floresta Chiqui- e ainda limita – um número enor- tana da Bolívia, também cheguem me de outros animais e plantas, aos à planície. As espécies de ecossiste- quais faltam condições adequadas mas vizinhos, bem distintos entre para se estabelecer. E, assim, o Pan- si, atualmente ocorrem junto com tanal também funciona ao revés: as espécies pantaneiras no bioma, como um filtro, selecionando os or- ou seja, na planície de inundação e ganismos com maior capacidade de em seus morros isolados. Embora adaptação. As condições limitantes originalmente “forasteiras”, elas co- geralmente são temperatura, pre- lonizaram o Pantanal naturalmen- cipitação, solos, período e extensão te, ao longo de milênios, e hoje são das inundações e instabilidade eco- consideradas nativas. Neste contex- lógica, entre outras. to de “naturalização”, um detalhe No mundo vegetal, podemos en- que chama atenção é o fato de muitas contrar exemplos bem evidentes serem consideradas espécies raras e/ deste padrão de ocorrência, como a ou ameaçadas de extinção, com dis- já mencionada vitória-régia (Victoria tribuição relativamente restrita nas amazonica), talvez a mais conhecida eco-regiões de origem, e estabeleci- planta de origem amazônica presen- das em áreas igualmente limitadas te no Pantanal. Ela ocorre apenas ao no Pantanal. longo do rio Paraguai e por ali chega Entretanto, a mesma varieda- até os países vizinhos: Paraguai e

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 45 cacto gluboloso (Gymnocalycium mihanovichi) Fotos: Walfrido M. Tomás M. Tomás Walfrido Fotos:

cambarazais (Vochysia divergens)

macaco-boca-d’água (Callicebus pallescens)

Do Chaco vieram os cactos globulosos, com suas flores acetinadas (acima à esq.), e o macaco- boca-d’água (ao lado). Já os cambarás (acima à dir.) saíram da Amazônia para florir em cambarazais amarelos à beira dos rios pantaneiros

46 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 fluencia a maior parte do Pantanal, muitas espécies são bem comuns. Só algumas apresentam distribui- ção restrita e pouco conhecida, caso do coquinho indaiá ( geraen- sis), registrado no Pantanal em pou- cos locais da região do Paiaguás, nos municípios de e Corum- bá (MS). A quina (Vochysia cinna- momea) é outra espécie do Cerrado de distribuição restrita na planí- cie pantaneira. Ocorre também em Paiaguás e numa faixa mais ao leste da Nhecolândia. Infelizmente, esta região encontra-se muito impacta- da pela intensificação da pecuária, pouco restando da vegetação origi- nal. Em alguns locais, a quina se de- senvolve como uma bela árvore de até 7 metros de altura, embora, em outros, pareça mais com uma moita, de 1,5 metro. Mais uma espécie de grande be- leza, mas restrita e raramente en- norte da Argentina. A Amazônia é rumbá, no estado de Mato Grosso contrada no Pantanal é o chuveiri- também a origem do cambará (Vo- do Sul. O termo relictual, vale notar, nho (Pepalantus chiquitensis), típico chysia divergens), árvore pioneira das deriva de relíquia e se aplica a po- de áreas úmidas do Cerrado, regis- beiras de rios e outros locais inundá- pulações de espécies extremamen- trado no sul da Nhecolândia. E há veis, cujas sementes são dissemina- te restritas em função das alterações ainda o cajuzinho (Anacardium humi- das pelo vento e pelas águas, às vezes ambientais causadas pelo homem, le), arbusto muito comum no domí- formando florestas dominadas pela porém resilientes. nio do Cerrado no Planalto Central, espécie, chamadas de cambarazais. A mesma origem chaquenha têm cuja ocorrência na planície pantanei- Da Floresta Chiquitana – mata o algarobo (Prosopis ruscifolia) e o que- ra limita-se às áreas de solos areno- tropical seca cuja maior extensão está bracho-branco (Aspidosperma quebra- sos no centro e leste do Paiaguás e da na Bolívia – vem uma espécie rara e cho-blanco), duas árvores comuns no Nhecolândia. Para não esquecer das pouco conhecida pelo público: o mi- Paraguai, na Argentina e no Uruguai, plantinhas menores, é digna de men- lho-de-cobra ou maquiné (Zamia bo- encontradas apenas no sul do Pantanal, ção uma erva volúvel de diminutas liviana). Ela pertence à família das principalmente na região do Nabileque flores púrpuras (Petalostelma rober- cicas (Cycadaceae), muito usadas em e em Porto Murtinho. A lista de espé- tii), encontrada em áreas de cerrado paisagismo. Esta espécie, em parti- cies chaquenhas inclui também as tre- de Mato Grosso do Sul e Mato Gros- cular, é considerada ameaçada de ex- padeiras do gênero Araujia, cujo centro so, assim como nas bordas da floresta tinção pela União Internacional pela de diversidade é o Chaco. Na Argen- semidecidual, no Pantanal. Conservação da Natureza (IUCN). E tina, as 12 espécies do gênero são co- Entre as espécies da fauna origi- só ocorre nos cerrados e matas secas nhecidas, coletivamente, como tasi ou nárias de outras eco-regiões, é forte da metade norte do Pantanal de Cá- doca. Dessas, seis espécies são abun- a influência exercida pelo Chaco ceres, no Mato Grosso. dantes em Porto Murtinho e também na comunidade de aves, no Panta- Já o carandá (Copernicia alba) – ocorrem em Corumbá, nos arredores nal. Vêm de lá representantes de nu- palmeira típica do Chaco úmido da cidade, próximo à Base de Estudos merosos gêneros, como rapazinho- – tem ampla distribuição na Ar- do Pantanal e na estrada para o Forte -do-chaco (Nystalus striatipectus), gentina e no Paraguai, bem como Coimbra. Completando os exemplos pica-pau-de-testa-branca (Melaner- dentro do Pantanal. Do Chaco ainda do Chaco estão os cactos e, entre eles, pes cactorum), pica-pau-de-barriga- é proveniente a população relictu- chamam atenção: os grandes, da espé- -preta (Campephilus leucopogon), ma- al da palmeira carandilla (Trithrinax cie Stetsonia corynae, e os globulosos, ria-preta-acinzentada (Knipolegus schizophylla), acima destacada, hoje como Gymnocalycium mihanovichi com striaticeps), tesoura-do-campo (Alec- restrita à região sul do Pantanal, mu- suas flores de aspecto acetinado. trurus risora), caboclinho-de-ibe- nicípios de Porto Murtinho e Co- Do Cerrado, cuja vegetação in- rá (Sporophila iberaensis), batuqueiro-

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 47 sapo-preto-e-amarelo (Melanophryniscus klappenbachi) -chaquenho (Saltatricula multicolor) e capacetinho (Microspingus melanoleu- cus), bem como o arancuã-do-cha- co (Ortalis canicollis) e o periquito- -de-cabeça-preta ou príncipe-negro (Aratinga nenday). Santana J. Diego Fotos: Vale destacar igualmente uma subespécie chaquenha de veado- -campeiro (Ozotoceros bezoarticus leucogaster), de ampla distribuição no Pantanal, mas limitada à região, do lado brasileiro. O macaco boca- -d’água (Callicebus pallescens) tam- bém vem do Chaco e tem sua distri- buição no Pantanal restrita à borda oeste, na região de Corumbá e da Serra do Amolar. E não se pode es- quecer os três anfíbios icônicos: a perereca-da-folhagem-chaque- jararaca-de-barriga-pintada (Bothrops matogrossensis) nha (Phyllomedusa sauvagii), o sapo- -de-chifre (Ceratophrys cranwelli) e o super colorido sapo-preto-e-ama- relo (Melanophryniscus klappenbachi). Todos eles são facilmente observa- dos em áreas úmidas pantaneiras. Sem contar o já mencionado lagarto aquático, conhecido como víbora ou bílbola (Dracaena paraguayensis), que se alimenta exclusivamente de cara- mujos. De certa forma, até mesmo o abundante jacaré do Pantanal (Cai- man yacare) pode ser considerado uma espécie de origem chaquenha. Da Floresta Chiquitana da Bo- lívia, além da citada tiriba-de- -cauda-vermelha (Pyrrhura mo- linae), vale notar a presença em terras pantaneiras do beija-flor ra- Entre os anfíbios e répteis do Pan- vião-do-igapó (Helicolestes hamatus), bo-branco-de-barriga-fulva (Pha- tanal, a maior parte é associada com o picapauzinho-dourado (Picumnus ethornis subochraceus), da choca-da- espécies de ampla distribuição no aurifrons) e o anambé-preto (Cepha- -bolívia (Thamnophilus sticturus) e Cerrado, mas vale destacar a jarara- lopterus ornatus). Além destes, a pe- do garrincha-do-oeste (Cantorchilus ca-de-barriga-pintada (Bothrops ma- quena tartaruga muçuã (Kinosternon guarayanus). Como muitas outras que togrossensis) que está distribuída em scorpioides) já foi registrada na região ocorrem no Pantanal, essas espécies toda a planície pantaneira. baixa na borda oeste do Pantanal, podem ser atrativas para os observa- Quanto aos elementos da fauna município de Corumbá. dores de aves. amazônica, estão presentes prin- A Mata Atlântica exerce pouca Do Cerrado, o Pantanal “empres- cipalmente nos planaltos residu- influência na comunidade de aves ta” mamíferos como a raposinha-do- ais dentro dos limites do Pantanal, no Pantanal. De modo geral, grande -campo (Lycalopex vetulus) e o lobo onde há vegetação mais densa. Nes- parte dos elementos atlânticos ces- guará (Chrysocyon brachyurus). Mas ses locais é possível observar o colo- sam suas distribuições para oeste também uma enorme diversidade de rido sapo-venenoso (Ameerega picta), nas florestas estacionais semidecí- aves, entre as quais podemos men- assim como a perereca-dormidei- duas do sul do Mato Grosso do Sul, cionar o papagaio-galego (Alipiopsitta ra (Boana geographica). Entre as aves, oeste do Paraná, Paraguai orien- xanthops), o jacu-de-barriga-castanha podemos citar espécies como a ja- tal e extremo nordeste da Argenti- (Penelope ochrogaster) e o campainha- cutinga-cujubi (Aburria nattereri), o na. No entanto, algumas espécies -azul (Porphyrospiza caerulescens). mutum-cavalo (Pauxi tuberosa), o ga- com centro de distribuição atlânti-

48 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Fotos: Walfrido M. Tomás carandá (Copernicia alba) e cacto (Stetsonia coryne) buição restrita, as espécies “natura- lizadas” pantaneiras podem um dia se provar fundamentais para a con- servação e recuperação de todos os biomas de onde vieram! Neste sentido, o Pantanal é um depositório de biodiversida- de com grande relevância, não só regional, mas sul americana e até mesmo global!

O sapo-preto-e- amarelo (acima à esq.) é mais uma contribuição do Chaco, assim como a palmeira carandá e o cacto grande (ao lado). Já a jararaca-de-barriga- pintada (abaixo à esq.) veio do Cerrado.

co estendem sua área de ocorrência contribuição valiosa de cada um dos até a planície pantaneira. Neste con- grandes ecossistemas vizinhos para texto estão inseridas espécies como a biodiversidade pantaneira. O Pan- o benedito-de-testa-amarela (Mela- tanal representa um limite de distri- nerpes flavifrons), o pica-pau-de-ca- buição de diversas destas espécies, beça-amarela (Celeus flavescens) e o o que torna relevante a conserva- tangará (Chiroxiphia caudata). ção de suas populações e de seus há- Vindos do outro lado, os elemen- bitats na planície. As populações lo- tos andinos são igualmente raros calizadas em limites geográficos das na comunidade de aves pantaneira. áreas de ocorrência de suas espécies Porém um visitante migra para leste, podem apresentar uma capacida- para o Pantanal e planaltos de entor- de maior de adaptação a condições no, após passar o período reprodu- ambientais diferenciadas. Com isso, tivo ao longo da pré-cordilheira dos tornam-se importantes do ponto : o rei-do-bosque (Pheuctictus de vista genético, pois podem con- aureoventris), um elegante cantor de ter indivíduos capazes de sobreviver casaca preta e barriga amarela. em contextos de mudanças climáti- Os variados exemplos de flora e cas globais ou de outras ameaças à fauna, aqui citados, mostram bem a espécie. Mesmo raras ou de distri-

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 49 50 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 PESCA COMUNITÁRIA COOPERAÇÃO E SUSTENTABILIDADE

UM COMPLEXO SISTEMA DE COMPARTILHAMENTO DE INFORMAÇÕES GARANTE SUSTENTABILIDADE ECONÔMICA, AMBIENTAL E SOCIAL ÀS COMUNIDADES RIBEIRINHAS DO PANTANAL

POR RAFAEL MORAIS CHIARAVALLOTI

O Pantanal é um ambiente com- do pelos comunitários é suficiente e plexo. E os pantaneiros precisam deve ser apoiado. buscar mecanismos igualmente Para coletar os dados, minha es- complexos para sobreviver. Soluções tratégia foi morar com os comunitá- simples para ambientes assim, desa- rios entre 2014 e 2016. Adotei basi- fiadores, jamais funcionaram ou fun- camente duas práticas: em primeiro cionarão. “No Pantanal, quem não lugar, propus um mapeamento par- tem criatividade, morre!”, costuma ticipativo, por meio da distribuição dizer a pesquisadora Zilca Campos, de celulares com um aplicativo cha- da Embrapa. Isso vale tanto para pes- mado Sapelli. O aplicativo foi de- quisadores, quanto para pantaneiros senvolvido para permitir que os ri- – embora, no segundo caso, o senti- beirinhos pudessem registrar as do seja literal. regiões onde pescam e o período do Desde 2012, venho estudando ano no qual pescam. Em segundo pescadores e coletores de iscas da lugar, adotei o que os antropólogos Borda Oeste do Pantanal. O objeti- chamam de observação participan- vo é tentar entender como a pesca ar- te: acompanhar as pessoas em seu tesanal é realizada na região e como dia a dia; conversar com elas; enten- as pessoas se organizam, além de der a história de cada uma e a dinâ- avaliar a sustentabilidade de suas mica das famílias. E, principalmen- atividades, verificando se existem te, compreender como fazem para indícios de impactos negativos pre- ter sucesso na pesca. ocupantes ou se o manejo pratica- Primeira lição aprendida: pescar Foto: Virginia Chiaravalloti Virginia Foto:

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 51 Foto: André Luiz Siqueira Luiz André Foto:

Cada pescador (peixe ou isca) é uma profissão es- fechados pela vegetação flutuan- explora uma área (acima) e compartilha tressante. Muito! O pescador acor- te (aguapés), e isso impede o aces- informações com a da, toma café da manhã e então de- so dos pescadores. Segundo nossas comunidade (próx. cide para onde irá, procurar peixe. Se avaliações, algumas regiões de pesca pág. à dir.). Com um localizador de optar pelo lugar errado, pode gastar comunitária chegam a ter 75% de celular (próx. pág. à combustível e voltar sem nada para todos os seus corpos de água trava- esq.) e observação vender; um prejuízo grande. E adivi- dos por aguapés, algo como 50% da participante (próx. pág. abaixo), o nhar onde está o peixe, em meio à di- área de pesca. Vale lembrar que essa pesquisador estuda o nâmica das águas pantaneiras, é uma vegetação também se move constan- complexo sistema de tarefa extremamente complicada. temente e, de maneira imprevisí- pesca artesanal Anualmente, uma grande en- vel, bloqueia ou desbloqueia baías ao chente inunda até 80% dos 160.000 longo do ano. km2 do Pantanal. No entanto, as ca- A conclusão disso tudo é que, a racterísticas dessa cheia sempre cada semana, o ribeirinho é obrigado mudam. As áreas inundadas neste a apostar num novo local de pesca, ano não são iguais às do ano anterior considerando que nem todas as baías, e, com certeza, serão diferentes no lagos ou braços de rio têm peixe ano seguinte. Basicamente, é impos- ou isca e, dentre aquelas com boas sível prever quais áreas terão mais ou chances de ter, muitas estão fecha- menos água. A inundação também das pela vegetação. As possibilida- funciona em pulsos (ou ondas) levan- des (ou impossibilidades) são nume- do cerca de quatro meses para atra- rosas. Segundo as nossas estimativas vessar todo o bioma. O exato mo- baseadas em imagens de satélite e en- mento de chegada da “onda” e seu trevistas, a cada semana, em um uni- tempo de duração em um determi- verso de 400 possibilidades, apenas nado local, é igualmente impossí- duas ou três baias ficam propícias vel prever. O ponto principal é que para pesca. Acertar quais são é como a pesca no Pantanal deve ser feita jogar na loteria. Mas existe uma di- quando as águas começam a baixar. ferença essencial: não ser sorteado Assim, como a onda de inundação se pode significar passar fome. move no espaço, as pessoas também Como digerir tamanha impre- precisam se mover constantemente. visibilidade (e logo após o café da Para complicar um pouquinho manhã)? O fato é que os pantaneiros mais, muitas baías ou lagos ficam vivem nessa região há centenas de

52 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Fotos: Virgina Chiaravalloti Virgina Fotos:

anos e muitos sobreviveram e so- brevivem da pesca. Ou seja, apoia- dos em um sistema tradicional, cuja base é um alto nível de reciproci- dade de informação, eles encontra- ram uma maneira. Funciona assim: um grupo de pescadores sai para pescar e todos procuram peixe ou isca. À tarde, reúnem-se para tro- car informações sobre os locais es- colhidos, o que viram e o que pe- garam. Todos compartilham suas experiências. Então tomam deci- sões sobre a melhor área de pesca naquele momento. No dia seguinte, tros. Juntos, todos contribuem graças, principalmente, aos refúgios alguns vão pescar na área definida para o grupo afinar uma adaptação de peixe (garantidos pelas barreiras como promissora no dia anterior. em relação ao ambiente. Ao lado de aguapés). E outros testam áreas diferentes. de outros pesquisadores dos Esta- O maior problema para tal sis- Na volta, novamente se reúnem dos Unidos, Europa, Ásia e África tema funcionar é a capacidade de para mais uma rodada de discus- estamos desenvolvendo novas te- as pessoas das comunidades se des- são sobre a pesca, regada a sabedo- orias com base em sistemas seme- locarem em grandes áreas, algo em ria tradicional e tereré (mate com lhantes ao Pantanal, o que pode- torno de 30 a 40 mil hectares (na água gelada, tomado na bombilha). rá servir para criar ferramentas de região do presente estudo). Nesse Esse processo é repetido ao longo manejo mais adequadas à comple- sentido, a criação de áreas protegi- de todo o ano, e pode ser conside- xidade ecológica e social de alguns das – como Reservas de Desenvol- rado uma herança de centenas de ecossistemas e biomas. vimento Sustentáveis (RDS) – pode anos. Funciona como uma loteria Na Borda Oeste do Pantanal, ser uma contribuição importan- em que cada um acrescenta um nú- o sistema de pesca compartilha- te. Ainda inexistente no Pantanal, mero. Sozinho ninguém ganharia do pelos comunitários assegura um esse tipo de reserva estimularia o nada. No entanto, juntos, eles mon- mecanismo sustentável de uso de desenvolvimento de mecanismos tam uma aposta certeira e podem recursos naturais. Segundo mos- de manejo adaptados ao ambiente dividir o prêmio. tram os dados coletados em várias complexo do Pantanal. Esses mecanismos de saber co- pesquisas – incluindo a aqui des- Os comunitários conseguiram letivo são chamados de Sistemas crita – não existem indícios de que otimizar a pesca de maneira susten- Adaptativos Complexos. Entre os a pesca feita pelas comunidades lo- tável, com sua criatividade e o co- pantaneiros, não existe uma de- cais tenha diminuído a quantidade nhecimento gerado pela observa- cisão central sobre o local ideal ou o tamanho dos peixes. O sistema ção. Precisamos agora de gestores para pescar, mas ações baseadas rotativo permite uma constante re- e tomadores de decisão igualmente no comportamento e nas infor- colonização dos peixes nos corpos criativos e capazes de valorizar esse mações do outro, dos muitos ou- d’água e o uso sustentável da área, conhecimento tradicional.

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 53 Foto: Franco L. Souza Córrego Salobrinha

54 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 BIODIVERSIDADE DE OLHO NAS MUDANÇAS

PROGRAMA DE PESQUISA MONITORA AS RELAÇÕES ENTRE BIODIVERSIDADE, USOS DO SOLO E MUDANÇAS CLIMÁTICAS EM LONGO PRAZO, NO PLANALTO DA BODOQUENA. E OS PRIMEIROS RESULTADOS JÁ PODEM INFLUENCIAR POLÍTICAS PÚBLICAS

POR FRANCO L. SOUZA, ERICH FISCHER, ALAN F. ERIKSSON, ALÊNY L. FRANCISCO, ANA LINO, ANDRÉA C. ARAUJO, BO DALSGAARD, BRUNO T. MARTINEZ, CAMILA S. SOUZA, CARMEN S. L. L. DIONÍSIO, CAROLINA F. SANTOS, CIBELE S. RIBEIRO-COSTA, CLAUDENICE FAXINA, CYNTIA C. SANTOS, DANIEL W. CARSTENSEN, DANILO B. RIBEIRO, ELAINE C. CORREA, FABIO P. BOLZAN, FRANCISCO VALENTE-NETO, GUSTAVO GRACIOLLI, ISABEL MELO VASQUEZ, JOSE M. OCHOA QUINTERO, JOSÉ SABINO, MARCIEL E. RODRIGUES, MARIA J. RAMOS-PEREIRA, MAURÍCIO SILVEIRA, NEDER L. O. MORALES, OLIVIER PAYS-VOLARD, PIERRE C. RENAUD, POLIANA F. ARAÚJO, RAFAEL D. GUARIENTO, RICARDO KOROIVA, RUDI R. LAPS, SAMUEL DULEBA, URIELTON M. MONTEIRO, FABIO O. ROQUE

Que os usos do solo e as mudanças afetados? Podemos evitar ou mini- climáticas influenciam a biodiversida- mizar os impactos negativos? Como, de e os serviços ecossistêmicos não há quando e onde intervir? qualquer sombra de dúvida. Mas quais Em se tratando de mudanças glo- são exatamente essas influências? bais, não faltam perguntas ainda sem Existem espécies mais vulneráveis? Há respostas. Por isso, é preciso conhe- espécies capazes de se adaptar? Pode- cer e monitorar em longo prazo as mos aprender com elas? Quais ecossis- interações entre as espécies e das es- temas e serviços ambientais são mais pécies com o ambiente, na tentativa

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 55 PAISAGENS AMOSTRAIS

de descobrir alguns caminhos a seguir. Estudos desse tipo – sobre como as mudanças ambien- tais influenciam a biodiversidade e serviços ecos- sistêmicos – são o foco do programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração no Planalto da Bo- doquena (PELD – Bodoquena). Dele fazem parte mais de 30 pesquisadores, do Brasil e do exterior. No Brasil, o PELD corresponde a uma rede de 32 sítios de referência, chancelados pelo Conselho acuri bruquíneo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno- Foto: Liana John Foto: Urielton Monteiro lógico (CNPq). E a rede brasileira é parte da rede BESOURO X PALMEIRAS mundial ILTER (International Long-Term Ecological Research), com mais de 600 sítios distribuídos em O foco, neste caso, foi identificar os besouros da todos os continentes, inclusive a Antártida. A rede subfamília Bruchinae, que se desenvolvem em semen- ILTER representa iniciativa internacional para tes de bocaiúva (Acrocomia aculeata) ou acuri (Scheelea reunir dados e estudos voltados aos desafios glo- phalerata). Devido à sazonalidade da frutificação, indi- bais de conservação e aumento da qualidade de víduos imaturos e adultos do besouro Pachymerus nu- vida humana. cleorum foram mais frequentes em frutos de bocaiúva. O Planalto da Bodoquena é o único sítio da Porém nos frutos do acuri foi observada uma proporção rede PELD em Mato Grosso do Sul, implemen- maior de evidências de predação por bruquíneos, como tado em 2013 com financiamento da Fundação os orifícios de entrada das larvas e os de saída dos in- de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciên- divíduos adultos. A bocaiuva é abundante em paisagens cia e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do abertas, como pastagens, enquanto os acuris são en- Sul (Fundect). Os pesquisadores estão de olho contrados com maior abundância em bordas de frag- tanto em regiões com intenso uso do solo como mentos florestais. Essa diferença pode explicar a prefe- em áreas muito preservadas; observando desde rência dos besouros em predar frutos de acuri. os fatos de momento até processos de maior du-

56 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 bocaiúvas ração, mais todos os intermedi- Palmeiras bocaiúva são mais abundantes ários possíveis, em termos de es- em paisagens abertas, paço e tempo. Ou, como dizem junto a pastagens, os cientistas, os estudos visam a e isso influencia a predação de seus compreensão da dinâmica bioló- coquinhos por gica ao longo do gradiente de pai- besouros sagens, em ampla escala espacial e longa série temporal. E como as primeiras pesquisas podem levar a alterações no rumo dos estudos, o sítio PELD – Bodoquena iniciou com um conjunto de projetos, mas se mantém aberto para a eventual inserção de novas questões. O Planalto da Bodoquena foi escolhido por contemplar ecos- sistemas raros e uma das maiores áreas contínuas de floresta esta- cional decidual (na qual a maioria das árvores perde folhas durante o inverno) e semidecidual (na qual parte das árvores perde folhas du- rante o inverno) do Brasil. É con- siderada uma das áreas cársticas (com corrosão de rochas calcárias, formando grutas e cavernas) mais

Foto: Urielton Monteiro

AVES

O estudo das comu- nidades de aves, e de suas interações com as plantas, ajuda a entender as consequências das al- terações da paisagem, na região da Serra da Bodo- quena. Já foram observa- das mudanças das espé- BORBOLETAS cies de aves presentes, em função do gradien- Foto: Poliana Felix Família: Charaxinae te de cobertura flores- tal. Muitas das 301 espé- Um inventário da fauna de bor- os dois ambientes (57 e 46 espé- cies de aves registradas boletas frugívoras (que se alimen- cies, respectivamente), com algu- na região se mostraram tam de frutas) na Serra da Bo- mas espécies exclusivas apenas a dependentes de paisa- doquena registrou 63 espécies. um dos ambientes. Tais resultados gens pouco modifica- Aquelas que vivem no sub-bosque indicam a importância da disponi- das, o que pode refletir (a parte de baixo das matas) são em bilidade de hábitats diferentes para no equilíbrio e na manu- maior número do que as encontra- a manutenção da riqueza de borbo- tenção das florestas em das no dossel (na altura das copas letas na região, pois ambientes di- longo prazo, incluindo os das árvores). A composição de es- versos abrigam espécies próprias e remanescentes. pécies de borboletas diferiu entre funcionalmente distintas.

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 57 Foto: Rudi R. Laps importantes da região Neotropical, pos- tiriba-fogo suindo muitas espécies endêmicas (que só existem ali) e nascentes que drenam para o Pantanal. A natureza da região tem grande valor turístico (é o segundo maior destino de ecoturismo no Brasil), ativida- de que pode contribuir para a manuten- ção de paisagens pristinas. Além disso, o planalto é marcado pela produção agro- pecuária, da qual depende grande parte da economia. Sobretudo, a região inclui a maior Unidade de Conservação do Mato , PAPAGAIOS E PERIQUITOS Grosso do Sul – o Parque Nacional da Serra da Bodoquena (PNSB), em cujo en- torno vem sendo estimulada a criação de A maioria das 17 espécies de araras, papagaios e periquitos pre- Reservas Particulares do Patrimônio Na- sentes na Serra da Bodoquena não responde às alterações de hábi- tural (RPPNs). tat. Em geral, a riqueza (número de espécies) e a abundância (núme- Para o planejamento de um estudo da ro de indivíduos) de psitacídeos não apresentaram relação evidente magnitude e com a duração de um PELD, com a cobertura florestal da paisagem. Algumas espécies, porém, a equipe projetou 360 hexágonos sobre o são particularmente sensíveis à redução das florestas, caso da tiri- mapa da região, cada um com 5.000 hec- ba-fogo (Pyrrhura devillei). Modificações na paisagem ainda podem tares. Depois mediu a cobertura flores- ter consequências drásticas para espécies com menor capacidade tal, hexágono por hexágono, verifican- de dispersão e/ou dependentes de florestas para sua reprodução. do quanto havia de florestas deciduais e quanto de florestas semideciduais alu-

Foto: Franco L. Souza Planalto da Bodoquena 58 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Fotos: Franco L. Souza viais, identificando nelas as zonas de ten- Ameerega picta ANFÍBIOS são (ou seja, com algum tipo de alteração). Com base nesses dados, foram classifica- dos os 360 hexágonos segundo a propor- Na pesquisa com anfí- ção desses três tipos de ambiente. Do total, bios da Serra da Bodoque- 20 hexágonos foram selecionados para re- na o fundamental é entender presentar a amplitude de variação das pai- como as mudanças na paisa- sagens da região: das áreas mais intoca- gem podem afetar a relação das àquelas mais alteradas. Essas 20 áreas com as presas. Até o presen- representadas nos hexágonos correspon- te foram registradas 20 es- dem às unidades amostrais do PELD – Bo- pécies de anfíbios na região, doquena. Para essa escolha também foram cuja dieta é composta prin- Rhinella scitula consideradas a presença de cursos d’água, cipalmente por formigas e a acessibilidade e a colaboração dos pro- cupins. Algumas dessas es- prietários locais. Os projetos associados ao pécies dependem exclusi- programa concentram amostragens nessas vamente de matas ciliares, 20 paisagens, utilizando métodos distintos, como a rãzinha Ameerega conforme o necessário aos diferentes tipos picta e o sapo Rhinella scitu- de estudo e de organismos estudados. la. A riqueza de espécies en- Apesar do pouco tempo de implanta- contrada nas matas ciliares ção, alguns projetos já apresentam resul- ressalta a importância deste tados e produtos relevantes, como a for- hábitat para essa comunida- mação de dezenas de estudantes em vários de de anfíbios. níveis (graduação, mestrado, doutorado) e a publicação de resultados em meios de co-

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 59 Foto: Alan F. Eriksson MORCEGOS PEIXES E CRUSTÁCEOS mosca em morcego X ALGAS Segundo mostrou o estudo, a dieta de morcegos frugívoros (que se alimentam de frutas) é baseada so- bretudo em plantas pioneiras. Assim, Um estudo experimental não há mudanças na riqueza e na de campo, utilizando técnicas composição de itens alimentares em de exclusão elétrica, investi- função da variação das paisagens na gou como a redução da vegeta- Serra da Bodoquena. A ampla distri- buição espacial de plantas pioneiras ção ripária (das margens de cor- e a grande mobilidade dos morcegos, pos d’água) pode influenciar a provavelmente permitem forragear interação da macrofauna aquá- tanto em áreas preservadas como em tica com suas presas. A even- remanescentes de florestas secun- tual exclusão de peixes e cama- MORCEGOS X dárias. O trânsito desses morcegos rões afetou a biomassa de algas ECTOPARASITAS entre áreas preservadas e alteradas perifíticas ao longo do gradien- pode garantir, inclusive, a capacida- te de vegetação, assim como a de natural de regeneração florestal deposição de carbonato de cál- A comunidade de morcegos da Serra por meio da dispersão de sementes. cio nos córregos do Planalto da da Bodoquena também foi observa- A conservação de remanescentes flo- Bodoquena. Ou seja, sem pei- da quanto às interações com seus ec- restais em meio à agricultura ou pe- toparasitas (parasitas que vivem sobre cuária contribui para a persistência xes e camarões para controlar de morcegos frugívoros e para a ma- as algas, elas crescem exagera- o corpo, como os carrapatos). Foi obser- nutenção das florestas em paisagens damente. Estas algas são pre- vado que alguns ectoparasitas genera- fragmentadas. cursoras das tufas calcárias nos listas (aqueles que ocorrem em diferen- rios da região. Com a exclusão tes hospedeiros) são mais comuns em de peixes e crustáceos, pode populações de morcegos presentes em Foto: Alexine Keuroghlian haver aumento da deposição e áreas de pouca cobertura florestal, en- cateto consequente aumento da for- quanto a quantidade de ectoparasitas mação (mais rápida) de traver- especialistas (aqueles que ocorrem em tinos nos rios (o que implicaria apenas um tipo de hospedeiro) não sofre em mudança da hidrologia). alteração com a perda de florestas.

municação, nacionais e internacio- e mudanças climáticas, portanto, são nais (ver boxes). Organizados em duas grandes forças, atuando juntas uma ampla base de dados sobre in- para tornar o Planalto da Bodoque- terações ecológicas, os dados desse na uma região com paisagens mar- sítio PELD ainda permitirão in- cadas pelo aumento da agricultura HERBÍVOROS fluenciar políticas públicas de de- e por períodos críticos de estiagem, senvolvimento regional, no esforço com efeitos marcantes sobre a biodi- A observação dos mamíferos de conciliar produção agrícola, pe- versidade. Assim, o PELD – Bodo- herbívoros terrestres concentrou- cuária, turismo e conservação da quena tem o papel fundamental de -se nas mudanças das comunida- biodiversidade da região. gerar conhecimento e levar infor- des ao longo do gradiente de perda Com base na história recente e mações aos tomadores de decisão e de hábitat. Trinta espécies foram re- conjunturas socioeconômicas pre- às populações das cidades da região. gistradas, com uso de armadilhas fo- sentes na região da Serra da Bodo- Os dados e as tendências verificados tográficas, armadilhas de captura e quena, há expectativas de alterações devem motivar iniciativas que tam- procura ativa. Os mamíferos meno- nos usos do solo na região. A partir bém conciliem as múltiplas deman- res e especialistas em frutas, como catetos (Pecari tajacu), foram mais das observações climáticas, há pre- das da população com ações volta- sensíveis à perda de habitat, enquan- visão de redução significativa das das à conservação da biodiversidade, to espécies maiores com dieta mais chuvas (pluviosidade média anual) em longo prazo. Além disso, pode- variada, como o veado-catingueiro nas próximas décadas, ou variação rão auxiliar no combate à redução (Mazama gouazoubira), toleram am- no padrão de pluviosidade, com chu- de riscos ambientais, sociais e eco- bientes alterados. vas mais intensas e concentradas. nômicos associados às mudanças cli- Alterações promovidas pelo homem máticas previstas.

60 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Foto: Francisco Valente-Neto Rio Taquaral

Estudo inclui todos os gradientes de paisagem: das mais alteradas às mais DECOMPOSIÇÃO preservadas, como esta cachoeira do rio Um estudo investiga a decomposição de material vegetal (saquinhos de chá), uti- Taquaral, em Bonito lizando substratos padronizados em diferentes ecossistemas terrestres, com objeti- (acima). A escala espacial é ampla e a vo de avaliar efeitos do clima, do tipo de substrato e do uso da terra. A Serra da Bo- série temporal é bem doquena é um dos 336 locais da Terra onde o experimento foi instalado, no âmbito da longa. iniciativa TeaComposition, da Universidade de Copenhagen. Com previsão de 3 anos de duração, a primeira etapa (de 3 meses) indicou que o tipo de substrato tem efeito predo- minante sobre a decomposição de material vegetal.

PARA SABER MAIS Sobre o PELD no Brasil: http://cnpq.br/sitios-peld Sobre o PELD-Bodoquena: http://peldbodoquena.wixsite.com/home Sobre o TeaComposition: http://teacomposition.org/ Sobre a rede mundial ILTER: https://data.lter-europe.net/map/

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 61 Foto: Liana John Baía das Pedras

62 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 RAIOS CUIDADO, LÁ VEM TEMPORAL!

É POSSÍVEL DETECTAR COM ANTECEDÊNCIA A PRIMEIRA DESCARGA ELÉTRICA, NO INÍCIO DE UMA TEMPESTADE? ONDE E QUANDO É MELHOR BUSCAR REFÚGIO DOS RAIOS?

POR MOACIR LACERDA

Qualquer um de nós já viu mui- correntes elétricas produzem in- amperes. É chamado de descarga de tos – ou já fechou os olhos quando cêndios, destroem residências, retorno ou choque de retorno (re- eles riscam os céus! Mas quantos ceifam preciosas vidas humanas, turn stroke, em inglês). sabem realmente o que são raios e matam animais... Assim, enten- O número de descargas por qui- como se proteger deles? der como acontecem pode ajudar a lômetro quadrado por ano é muito Um raio é um plasma cuja tem- evitar alguns desses desastres. alto em todo estado do Mato Gros- peratura pode chegar a 30.000 K (= As descargas ocorrem da nuvem so do Sul, chegando a valores supe- 29.726º C), produzindo correntes para o solo, do solo para a nuvem, riores a 10, enquanto a média mun- elétricas de até centenas de milha- dentro da nuvem e da nuvem para dial é de apenas 1 a 2 raios/km2/ res de amperes. São números mui- atmosfera. Os raios mais comuns ano. A incidência de raios é medida tos altos! Para se ter uma vaga ideia – entre 80% e 90% do total – se por sistemas de localização de tem- do que significam, vale lembrar que dão dentro da nuvem. As descar- pestade e por técnicas monitoradas uma corrente elétrica de 30 milési- gas mais estudadas, no entanto, são por satélite, por meio de um sen- mos de um ampere pode paralisar aquelas entre a nuvem e o solo (em sor de imagens de relâmpagos (em os músculos de uma pessoa; 50 mA torno de 10%), pois são as de maior inglês, Lightning Imaging Sensor ou afetam a respiração e 200 mA cau- impacto para nós, humanos. Entre LIS). Os valores são mais altos sobre sam queimaduras graves e morte! elas, as mais frequentes e, portan- as regiões não inundadas do esta- E um raio pode descarregar uma to, mais monitoradas, são as des- do. Também no Pantanal, as regiões corrente um milhão de vezes mais cargas nuvem-solo negativas: com não inundáveis sofrem mais quedas forte! Em menos tempo que um pis- início nas nuvens, as correntes se de raios que as inundáveis, mesmo car de olhos! propagam para baixo e, ao se apro- durante as cheias. Essa descarga é um mecanismo ximarem do solo, podem se conec- Um índice tão alto justifica mais bastante complexo. Envolve vá- tar com outras correntes emiti- investimentos em sistemas de in- rias fases fisicamente bem distin- das no sentido inverso (para cima) formações sobre a queda de raios. tas, cada uma com duração de cen- por objetos do solo. Esse tipo de Sobretudo para tornar possível a tenas de microssegundos. Todo o raio gera intenso barulho e propa- previsão de quando vai cair o pri- fenômeno, em suas diversas fases, ga para cima uma corrente elétrica meiro raio e quais regiões são mais dura décimos de segundo. Tais da ordem de dezenas de milhares de vulneráveis. A partir de dados do

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 63 LIS, entre 1998 e 2007, a equipe de pesquisadores liderada por João Ri- beiro Soares Júnior, da Universida-

de Federal do Mato Grosso do Sul John Liana Fotos: (UFMS), identificou o horário entre 15 e 17 horas como o mais perigoso, com uma incidência maior de descar- gas. E constatou um período do ano mais arriscado, nos meses de outubro, novembro, dezembro e janeiro, sendo novembro o mês mais intenso. Os re- sultados foram confirmados em 2012, por Robson Jaques Verly, em sua dis- sertação de mestrado na UFMS, por meio de dados do sistema de localiza- ção de descarga STARNET do Insti- tuto de Astronomia, Geofísica e Ciên- cias Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP). Além de saber quando, é impor- tante saber onde os raios incidem com mais frequência. E, mais impor- tante ainda, como usar esta informa- ção para garantir alguma segurança a instalações, animais e pessoas. Existe muita especulação sobre o fato de al- gumas vítimas sobreviverem, mesmo depois de serem atingidas por raios. Seria o conteúdo de água no corpo? O trajeto da corrente elétrica no corpo? A magnitude da corrente? A posição em relação às linhas equipotenciais a partir do ponto onde a descarga caiu e se propagou pelo solo? A exposição ao tempo? Todas essas questões ainda das paredes das edificações. O poten- biente muito plano e descampado. Ela são temas de muitas pesquisas, em cial elétrico dos objetos metálicos é passa a fazer o papel de uma ponta e se todo mundo. maior nas pontas do que ao longo do torna mais vulnerável aos raios. Nes- Existe um modelo eletrogeomé- corpo metálico. Isso faz com que a sas condições, os pés estão em conta- trico utilizado pela norma brasilei- corrente eletrônica se forme na dire- to com o chão, cujo potencial é menor ra NBR 5419 da Associação Brasilei- ção das pontas (e quinas) e a tendên- do que a cabeça (a “ponta” mais alta), ra de Normas Técnicas (ABNT) para cia seja de o objeto metálico fixado no fazendo surgir um movimento de elé- definir a área adequada de proteção solo emitir correntes para cima. trons de baixo para cima, que é inten- em uma estrutura. A partir dela, é Do mesmo modo (embora sem sificado sob uma tempestade. Torres possível modelar a influência de uma metais), as pontas das folhas e extre- instaladas em montanhas ou nas par- haste metálica fincada sobre um solo midades finas das árvores emitem tes mais altas das cidades, mourões de circundante constituído de materiais corrente constantemente. Em situ- cercas, silos, tratoristas sobre tratores, não metálicos. Com essa modelagem, ação de tempestade, abaixo de uma gado ao relento ou próximo aos ara- o desenho da parábola utilizada para nuvem eletricamente carregada, o mes das cercas, todos são exemplos o traçado da região de proteção de- campo elétrico é tão intenso que essas de possíveis “pontas” com capacidade pende da relação entre a densidade de correntes surgidas em terra e emiti- de atrair raios. O campo elétrico no cargas ao longo dos materiais (que em das através das árvores podem dis- solo, na iminência de uma tempesta- última instância depende da capaci- parar o mecanismo de descarga. E de, pode atingir valores de milhares dade de os objetos se carregarem). então um raio é gerado entre o solo e de volts por metro. E isso faz com que Trocando em miúdos: os metais a nuvem. essas correntes se intensifiquem. têm mais elétrons livres que os mate- O princípio é o mesmo quando Já para uma nuvem produzir raios riais não condutores do solo e mesmo uma pessoa está andando em um am- é preciso ocorrer uma eletrização in-

64 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Foto: Marcelo M. F. Saba/INPE M. F. Marcelo Foto:

terna, o que depende da altura por ela do vai cair a descarga, se não forem atingida. Nuvens com o topo baixo incorporadas tecnologias para mo- não produzem conteúdo suficiente nitorar os processos que antecedem O primeiro raio de para gerar dipolos ou multipolos elé- a queda do primeiro raio. Neste sen- uma tempestade (acima) é o de maior tricos intensos em seu interior. Ou tido, o Laboratório de Ciências At- risco. Pode cair em seja, não geram carga suficiente para mosféricas do Instituto de Física da mourões de cerca produzir raios ou descargas nuvem- UFMS (LCA/INFI/UFMS) desen- (acima à esq.) ou em pessoas e animais -solo. Mas como saber se a nuvem está volveu um sistema de sensores de (abaixo à esq.) ou não carregada? E como aumen- campo elétrico e processamento de circulando em locais tar o nível de informação para enten- dados, capaz de monitorar o compor- descampados. der quando vai cair o primeiro raio? É tamento do campo elétrico dentro da bom saber delimitar a região de risco nuvem. Isso possibilita a previsão de depois da queda do primeiro raio: queda do primeiro raio dentro de um ajuda a melhorar a segurança, mas intervalo entre 10 e 20 minutos, com não resolve o problema, pois, em geral, valor médio de aproximadamente 15 é o primeiro raio que causa irrepará- minutos de antecedência. veis perdas humanas e materiais. Ainda é um tempo curto, no en- Atualmente, no Brasil e no tanto pode significar a diferença mundo, os sistemas de alerta mais entre a vida ou a morte. Em 10 mi- empregados monitoram as descargas nutos, com um sistema eficaz de aler- a partir da radiação emitida pelo raio. ta, muitas medidas de segurança pré- Porém não se consegue prever quan- vias podem ser tomadas: interrupção

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 65 Foto: ThaliaTraianou/CC Foto: Kevin Payravi/CC

Raios de nuvem a nuvem (acima) de atividades ao ar livre; recolhimento coletados em 2014 e 2015, Loreany F. são mais comuns, de matrizes animais em local mais se- de Araújo verificou que o intervalo mas os de nuvem guro; suspensão temporária da opera- entre as primeiras descargas internas à ao solo (pág. ao lado) são os mais ção de equipamentos eletroeletrônicos nuvem e a queda de um primeiro raio monitorados, pois etc. Os próprios equipamentos podem foi de aproximadamente 15 minutos. têm maior impacto ser eletricamente desconectados de ob- A técnica de redes de sensores de para as pessoas jetos externos ao volume a proteger, campo elétrico associada a outros sis- entre outras medidas. temas de coleta de dados produz resul- As redes de sensores desenvolvi- tados pioneiros na estimativa de cargas dos pelo LCA já foram testadas em ci- ativas dentro da nuvem. Ao analisar dades como São José dos Campos e São bases de dados com múltiplos sinais é Paulo. Há um projeto de instalação de possível localizar centros de carga den- um sistema piloto em andamento na tro das nuvens e comparar com o sinal cidade de Campo Grande, grandemen- registrado por duas redes de senso- te acelerado por atividades de extensão res de campo elétrico – uma instala- do laboratório da UFMS, financiadas da nos Estados Unidos e outra em São pelo Ministério da Educação (MEC), Jose dos Campos (Instituto Nacional entre 2015 e 2016. A equipe do LCA de Pesquisas Espaciais e Centro Técni- levou os sensores para escolas de Ensi- co Aeroespacial – INPE/CTA). Assim, no Médio de Campo Grande e desen- além de calcular as quantidades de car- volveu atividades didático-pedagógi- gas dentro das nuvens, é possível in- cas, abordando a Física das descargas ferir as polaridades dos centros, com atmosféricas. Os alunos tiveram acesso uma precisão de 85% (solução do pro- aos sensores instalados, aprendendo os blema inverso, Lei de Coulomb). princípios físicos de descargas elétri- A aplicação dessas redes de sensores cas. Os algoritmos computacionais e os em grandes propriedades pode levar a programas desenvolvidos na univer- uma economia significativa no agrone- sidade foram apresentados aos alunos gócio e, sobretudo, evitar mortes de pes- e eles fizeram a captura de dados em soas e animais. O sistema ainda permite tempo real, conseguindo distinguir as otimizar a continuidade de trabalhos em nuvens altas das baixas a partir da aná- campo, mesmo sob nuvens amedronta- lise de imagens de satélite. doramente muito escuras, quando elas Os dados dos sensores dessa rede não apresentam atividade elétrica sig- atualmente são enviados em tempo nificativa no seu interior, como é o caso real para servidores encarregados de das nuvens baixas. Em outras palavras, já emitir alertas de queda de raios. Os é possível interpretar as nuvens de tem- dados também são estocados em com- pestade e fazer uma previsão de queda putadores, o que permite fazer a reaná- de raios a tempo de influenciar as deci- lise das tempestades. Segundo dados sões no campo, evitando tragédias!

66 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018 Foto: Kevin Payravi/CC

VOLUME 04 | 2018 CIÊNCIA PANTANAL 67 OS DESAFIOS DE CONSERVAÇÃO DO CERRADO E DO PANTANAL SÃO IMENSOS E URGENTES. PEDEM CIÊNCIA, CONHECIMENTOS, EMPENHO E PARCERIAS. SE AGIRMOS TODOS JUNTOS – E COMEÇARMOS JÁ – SERÁ POSSÍVEL MANTER O RARO EQUILÍBRIO DE NOSSO PLANETA VIVO. 68 CIÊNCIA PANTANAL VOLUME 04 | 2018