FUNDADO POR ÉDSON RÉGIS CorreioEM 27 DE MARÇO DE 1949 das Artes Fevereiro 2016 – ANO LXVI Nº 12

Flávio Tavares Há 60 anos o mistério desfila na passarela de sua arte

6editorial

O artista e a cidade O artista plástico Flávio Flávio Tavares que remonta à xilogravura Tavares comemora, este do folheto de cordel, esten- mês, sessenta anos de pro- é dualismo, dendo-se pela Ibéria, pas- fissão. Profissão? A palavra pluralidade e sando pela Arábia, até che- é inadequada para definir a gar à Grécia Antiga, berço atividade deste pintor. Me- síntese. Um de nossa civilização. lhor considerar o que ele faz Uma fauna e uma flora mí- como fruto de uma espécie teatro e um tica e edênica. Mulheres sen- de árvore misteriosa que cinema onde suais, misteriosas, ora ofe- cresce no interior de pessoas renda, ora recato. O grotesco com talento para a arte. os movimentos e o lírico. A penumbra e o Flávio parece caminhar luar, depois a explosão solar. pela cidade nas horas em acontecem Flávio é dualismo, pluralida- que ela sonha, colhendo, dentro da de e síntese. Um teatro e um no chão arquetípico do cinema onde os movimentos inconsciente coletivo, os cabeça dos acontecem dentro da cabeça temas de suas telas. Daí dos espectadores. a intimidade que ele tem espectadores. Se cada cidade tem o com os seres do encanto, as “seu” artista, Flávio parece entidades do mistério, que ser o artista da capital da caminham e flutuam pelas Paraíba. Claro, sua pintura matas, mares e rios; praças, não tem fronteiras, mas é ruas e avenidas. que a gente e a terra, a cultu- O artista sonha por todos e demônios travam a antiga ra, enfim, desta cidade está nós, ou melhor, devolve-nos batalha, ao som de um coro tão bem representada na o que sonhamos e nem per- de seres angelicais. sua arte, que ela, a capital, cebemos, perdidos que esta- A paleta de Flávio contém bem que podia encantar-se mos na selva da rotina, com esmaltes armoriais. Seus re- em duas grandes mãos, e a sensibilidade exaurida tratos, paisagens e ambien- bater palmas para ele. pelo julgamento. Pelas cer- tes exibem formas, cores e das de seus pinceis deuses assuntos de uma tradição O Editor

6 índice , 4 @ 21 2 28 D 37 ARTES PLÁSTICAS poesia romance conto O artista plástico Flávio O poeta Joedson Adriano Leia um excerto do "E se Jesus voltasse à Tavares comemora 60 escreveu um longo poema romance A instrução da Palestina?!" é o título do anos de pintura. Seu mais inspirado em Aquiles, noite, de Maurício de conto inédito que marca recente trabalho foi o considerado "o herói dos Almeida, que a Editora a estreia do escritor grande painel do Hospital heróis" da Ilíada, o poema, Rocco, do Rio de Janeiro, Rodrigo Caldas no Nossa Senhora das Neves. literalmente, homérico. acaba de publicar. Correio das Artes.

O Correio das Artes é um suplemento mensal do jornal A UNIÃO e não pode ser vendido separadamente.

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Foto: Antônio David Efeito photo-paint - Paulo Sergio Flávio Tavares ARMORIAL, UNIVERSAL: 60 ANOS DE AMOR À PINTURA

Linaldo Guedes [email protected]

| João Pessoa, fevereiro de 2016 4 Correio das Artes – A UNIÃO d

O casarão localizado no Bairro vi do Altiplano Cabo Branco, em João Pessoa, está sujo de tinta. Mas não daquela tinta normalmente utiliza-

da pelo seu proprietário para pin- Foto: Antônio da tar quadros e telas que encantam pessoas de todo o mundo. Desta vez, são os pintores de parede que dominam o cenário da casa de Flá- vio Tavares, com seus andaimes, suas escadas e seus pincéis. Flávio, que completou 66 anos no dia 15 deste fevereiro, e já rodou o mundo com seu talento e sua arte, chegou a ser interrogado pelo mestre que coordena as obras que estão sendo feita em sua residência: – O senhor está desempregado, Flávio Tavares recebe “o auxílio

não é, “Seu” Flávio? t luxuoso” da esposa, Alba,na e

– Que é isso, amigo! Meu traba- rn finalização do painel do Hospital e N. S. das Neves lho é esse, pintar quadros... nt – Mas isso não dá sustento a ução I ninguém, Seu Flávio. Pode falar, d pro eu também já passei um tempo de- e sempregado e minha mulher que segurou as despesas de casa... Foto: r ENTRONIZAÇÃO NO O diálogo parou por aí e, en- quanto o mestre de obras se vol- MUNDO ARTÍSTICO tou para comandar o serviço que está sendo feito na casa, Flávio DA PARAÍBA retomou sua rotina, entre pincéis, palhetas e telas. artista plástico Raul Córdula (foto acima) foi quem começou a levar Flávio Tavares para exposições. Depois, outros profissionais Uma rotina que começou bem da área entronizaram Flávio no mundo artístico paraibano, a cedo, aos seis anos de idade, é bom exemplo de Archidy Picado e Breno Matos. que se diga. Flávio ganhou recente- O Era uma época de confluência artística, sem discriminação. Teatro, mente o avental de pintor, coisa que música, cinema, artes plásticas... tudo se misturava. Todas as artes nunca teve. Mas a pintura e o dese- e vários artistas. Nessa lógica, Flávio fez seu primeiro cenário para o nho entraram na sua vida quando teatro. Foi para a peça O santo e a porca, de . Depois, tinha seis anos. Apesar da preco- vieram cenários para trabalhos de Altimar Pimentel e de Fernando cidade, Flávio prefere não mitificar Teixeira, entre outros mestres das artes cênicas. esse seu ingresso tão cedo nas artes O trabalho de artista plástico era, então, diluído em meio às outras plásticas, ou artes visuais, como artes. Daí o envolvimento com nomes como Pedro Osmar, Buda, preferem os mais modernos. Afinal, Nanego e Soia Lira, Luiz Carlos Vasconcelos e outros. “Não era um lembra ele, até pela questão lúdica, artista isolado em meu mundo”, diz. Com certeza, não. Tanto que aos 16 anos ilustrou o livro A ilha na ostra, de Sérgio de Castro Pinto, toda criança que tiver em mãos ma- até hoje seu amigo. E assim ele foi se integrando ao que chama de terial para isso, começará a rabiscar “núcleo de força de elementos estéticos”. Nesse núcleo, nomes como alguns desenhos no papel. Martinho Moreira Franco, Barreto Neto, Wills Leal e Manoel Clemente. Modéstia ou não, Flávio trabalha Mas de onde vem tanto talento? Quais são suas principais referências, há 60 anos com pintura, cenário, de- suas influências? Flávio Tavares acredita que a matriz de sua obra senho e gravura. E, de certa forma, é formada pelo Movimento Armorial, principalmente de Francisco ele comunga com o pensamento do Brennand e Gilvan Samico, já que na época em que incorporou essa seu mestre de obras e não considera vertente ao seu trabalho ainda não conhecia Ariano Suassuna. “A flora o que faz como uma profissão, “mas e a mitologia deles estão em minha pintura”, esclarece. uma vontade misteriosa que vem de Depois chegaram outros. Ou outras influências. Mexicanos, Portinari, dentro da gente”. Flávio não sabe Di Cavalcanti, principalmente. “Era uma geração que lia muito, que dizer onde começa a vontade de ser assistia a muitos filmes italianos, ouvia muitos músicos como Zé artista e o talento nato. Aliás, ele Ramalho, Alceu Valença, , Jackson do Pandeiro, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Geraldo Vandré”, lembra. Sobre alguns desses compara esse “talento nato” com artistas, conta histórias deliciosas. De Zé Ramalho recorda bate-papos, o que acontece com um jogador digamos, psicodélicos, quando estava fazendo um quadro sobre o de futebol. Ninguém sabe explicar autor de “Admirável Mundo Novo”, conversa regada a muito disco porque alguns jogadores viram voador. De Vandré, conta que hospedou o autor de “Caminhando” craques e outros são apenas media- por seis meses, tempo suficiente para o músico compor “Tangará”, nos. “Alguns nascem com o dom de uma espécie de sinfonia. serem craques”, acrescenta.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 5 O TEMPO RELATIVO DA CARPINTARIA TAVARANA

Flávio Tavares costuma levar em torno de duas semanas para concluir um quadro. Já um quadro com muitos personagens pode levar até dois me- ses. “O tempo da pintura é muito relativo”, obser- va. Tempo que sempre o leva às reminiscências da Rua da Palmeira, onde viveu sua infância. Seu pai, Arnaldo Tavares, era médico. Mas era também poeta e desenhista. Desenho que, aliás, na avaliação de Flávio, está per- dendo espaço nos tempos atuais. Para ele, hoje em dia os sobreviventes nesta arte são os desenhistas de His- tórias em Quadrinhos. Da Paraíba, cita Shiko e Mike Deodato. “O desenho é a base do pintor”, ratifica. “O pintor sem o desenho não pinta. Eu me acho mais de- senhista. Quando olho para você, por exemplo, olho logo seu contorno”, explica. E completa: “Claro que há exceções e existem pintores que engolem o desenhista e que são geniais no domínio da imagem, entende?”. Flávio tem se notabilizado, também, nos últimos anos pela construção de grandes murais. Cruz da Me- nina, Zé Ramalho, José Américo, Estação da Ciência são alguns desses murais. O da Estação Ciências resu- me uma espécie de carnavalização pictórica. O mais recente mural que fez foi para o Hospi- tal Nossa Senhora das Neves, em João Pessoa, uma obra que faz o sincretismo entre ciência e misticismo. Conta a lenda, que uma pessoa do povo, na Itália, sonhou que ia nevar entre 4 e 5 de agosto de determi- nado ano. O Papa Libério também teria tido o mesmo sonho. E assim aconteceu. E assim se fez o mito de Nossa Senhora das Neves. No mural feito para o hos- pital, Esculápio, Hígia (medicina), menino Jesus, São Francisco de Assis (religião). São 10 metros de com- primento por três de altura onde o pintor mostrar a conexão entre a medicina e a fé. Flávio já rodou o mundo com sua arte. Estados Uni- dos, Guiana Francesa, Alemanha e Israel foram alguns

d dos países que viram sua arte in loco. Para ele, a gen- vi te costuma esquecer muito da importância de nossa cultura e de grandes mestres. Lamenta terem existido períodos muitos negros na arte universal, com diver- sas perseguições políticas. Cita artistas como Jose Luís Foto: Antônio da Cueras e Diego Rivera, mexicanos praticamente desco- nhecidos no Brasil. “Quando a gente se distancia dos trópicos, você vê que pinta o mundo diferente, com muito mais cores do que nos outros países”, comenta. Flávio não se lembra de uma época em que não estivesse pintando. Quando menino, jogava bola nas ruas, como qualquer criança de sua idade. Mas sem- pre que chegava em casa corria para desenhar. O que ele procura com sua arte? Talvez o mesmo que Picas- so, Niemeyer e procuraram a vida toda. Antonio David fez o registro fotográfico de todas as etapas da confecção do “A gente procura com a pena acertar o desenho de grande painel que Flávio produziu para uma vez só”, explica. Se consegue, ninguém sabe. Mas o Hospital N. S. das Neves é dessa procura misteriosa que vive a arte.

| João Pessoa, fevereiro de 2016 6 Correio das Artes – A UNIÃO SOBRE O ARTISTA d e p o i m e n t o s

Fotos: reprodução Internet importantes artistas do Nordes- “O artista surpreende- te e tem uma posição respeitável -se, subverte, registra tudo entre os artistas brasileiros figu- em sua volta, neste desfi- rativos de sua geração.” lar de mistério por onde (Jacob Klintowitz) transitam flores, pássaros, florestas, bichos acuados, gente perplexa ou contem- plativa, nas horas que vão se sucedendo entre o céu e a terra num tempo marca- do para acabar.” (Hermano José)

“Flávio Tavares, em sua pesquisa artística, dá asas aos seus sonhos, através de desenhos e pinturas cujos componentes prin- cipais são a representação das lembranças da infân- “Suavizada na superfície por cia, das paisagens oníricas suas cores e volumes carregados de sua terra e da criação de calma sensualidade, recur- de um mundo melhor. Sua so que sempre atrai e envolve o arte convida o espectador a apreciador desprevenido, a pin- entrar na viagem artística tura de Flávio Tavares, no próxi- semeada de alegria, de en- mo passo, como que nos arreba- canto e de mistério.” ta e transforma o ‘devaneio’ em (Risoleta Córdula) mergulho profundo. Em quase “A obra de Flávio Tava- todas as suas fases, a profusa res é fruto de 40 anos de emoção que emana de suas figu- processo contínuo, que re- ras, em diferentes planos, instala sultou em uma linguagem uma atmosfera densa de signifi- artística perfeitamente cados, transcende todo o quadro adequada à sua expres- e nos conduz a indagações no são plástica. Para perceber mínimo inquietantes. É assim sua poética é necessário que vejo e sinto a arte de Flávio compreender, ao mesmo Tavares, um pintor da alma, para tempo, as imbricações da mim um inveterado dostoiesvs- concepção estética, a cria- kiano, que se tornou, em seu lu- tividade da imagética e o minoso trajeto, um dos maiores percurso de sua produção, artistas da contemporaneidade manifestados em meios ex- brasileira.” pressivos diferenciados e (Vladimir Carvalho) em variações técnicas que nos auxiliam, inclusive, na “Conheço o trabalho do compreensão da arte con- artista plástico Flávio Tava- temporânea.” res há 30 anos, aproximada- (Elvira Vernaschi) mente. Nestas três décadas impressionou-me a constan- Linaldo Guedes é poeta e jornalista, te evolução do artista e a sua autor, entre outros, dos livros Os capacidade de aprofundar zumbis também escutam blues e outros poemas (1998), Intervalo lírico os seus temas básicos e o (2005), Metáforas para um duelo no refinamento dos instrumen- sertão (2012) e Receitas de como se tos. Certamente, hoje, Flávio tornar um bom escritor (2015). Mora Tavares está entre os mais em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 7 Fotos: Antônio david 6 artes plásticas

Orientados por Flávio Tavares, trabalhadores instalam o painel na parede do Hospital N. S. das Belo Neves, em João Pessoa e instigante

Eudes Rocha Especial para o Correio das Artes

técnica do muralismo no ocidente teve seu renas- cimento por volta de 1920 por conta da Revolução Mexicana de 1910 quando uma grande mobiliza- ção social ocorreu e artistas como Orozco, Rivera e Siqueiros se propuseram pintar para o povo em um discurso social e político que teve grande re- percussão na América Latina e por todo o mundo A dito civilizado. No Brasil, a arte do mural surgiria a partir da dé- cada de 1940 com Paulo Werneck, Cândido Portinari, Clóvis Graciano e Athos Bulcão, seguindo pelas dé- cadas posteriores com mais nomes como Lula Cardo- so Ayres, Maria Bonomi, Yara Tupynambá, Carybé, , J. Câmara, Cláudio Tozzi, Mi- guel dos Santos, Flávio Tavares e tantos outros. Os muralistas de todo o mundo sempre enfren- taram grandes desafios ao aceitarem encomendas colossais como aconteceu com os mexicanos e aqui no Brasil ocorreu algo semelhante. Imagino o que se passou na cabeça de Portinari ao receber, ainda nos anos 1950, a encomenda para produzir os dois enormes painéis Guerra e Paz (medindo 14m x 10m Flávio Tavares segue a cada) para a sede da ONU, em Nova Iorque. Igual tradição de grandes muralistas impacto devem ter sentido cada um dos demais brasileiros, a exemplo de Paulo Werneck e Cândido Portinari artistas brasileiros ao receberem encomendas para murais de grande porte e certamente com Flávio c

8 | João Pessoa, fevereiro de 2016 Correio das Artes – A UNIÃO pasão em que dias e noites com- põem o inexorável tempo! Nessa estruturação Tavares acrescenta divindades representativas da flora (medicinal) entre outras, reunindo assim santos da Igreja Cristã com deuses da mitologia greco-romana, formando com isso um raro e curioso panteão. Na produção desse novo tra- balho o artista revisita a cali- grafia e a proposta pictórica então usadas por ele no mural da Clínica São Camilo, ainda na década de 1970, e agora, quarenta anos depois, brinda- -nos com este trabalho de ma- triz naïf, desta feita com mais segurança e competência no traço e na composição. Iden- tificado desde sempre com a obra de F. Brennand, Samico e Flávio Tavares ladeado pelos com os muralistas mexicanos, c Tavares não foi diferente – ele trabalhadores que o ajudaram na agora Flávio revela ainda sua foi convidado e aceitou produ- instalação do painel do Hospital afinidade com as ilustrações N. S. das Neves (acima) zir esse enorme mural inspira- dos nossos Folhetos de Cor- do no tema de Nossa Senhora del e aproveita o ensejo para, das Neves, Padroeira do Esta- sutilmente, encaixá-las nessa do da Paraíba e que também composição pictórica, o que faz empresta o seu nome ao novo com bastante propriedade. hospital de nossa capital, em e simbologias que contam a sua Rico em personagens, ele- cuja fachada principal será afi- história. Mas o artista criou uma mentos, simbologias e cores, o xada a obra desse artista. composição em que, além da mural do Hospital Nossa Se- Apesar da experiência de principal homenageada, existem nhora das Neves mostra-se, executar painéis públicos, esse personagens alusivos à ativida- em toda a sua magnitude, uma atual, medindo 3m de altura x de de um hospital – assim, para obra bem estruturada, elegante 10m de largura, foi um desafio o lado extremo esquerdo ele es- e rica em detalhes e, para resu- e tanto e desta vez Flávio teve colheu Hígia - a deusa da saúde mi-lo em dois adjetivos, eu di- que criar uma infraestrutura de e, para o lado oposto, Esculápio, ria que é belo e instigante! grande porte em seu atelier para o deus da medicina, sendo que Com isso o novo hospital e a que, sobre pranchas parafusadas ambas as divindades têm aos população da Paraíba ganham em cavaletes, ele pudesse apoiar seus pés potes de farmácia dos uma obra de arte a altura das as pedras cerâmicas e, partindo quais eles se fazem guardiões. nossas melhores tradições nes- do esquema de um projeto, deu Hígia é ladeada por uma figura se gênero! I início a esse trabalho desenhan- que representa a Lua enquanto do as figuras e os cenários para Esculápio tem ao seu lado uma essa formação pictórica – a fi- figura representando o Sol, cria- gura central é a Nossa Senhora dos para que essa dualidade das Neves a qual é representa- possa mostrar que a nossa exis- Eudes Rocha é crítico de arte, sócio da Associação Brasileira de Críticos da em tamanho maior do que tência, seja ela boa ou ruim, sau- de Arte (ABCA) e da Associação os demais personagens e vem dável ou doente, rica ou pobre, Internacional de Críticos de Arte cercada de todos os elementos etc., sempre se passa num dia- (AICA). Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 9 6 perfil Rafael Monteiro Um jovem artista monteirense

Lizziane Negromonte Azevedo Especial para o Correio das Artes

Rafael Monteiro, er um artista é algo especial, um 25 anos, foi dom de Deus. Agora, ser um artista descoberto pela revista Boca devidamente reconhecido e valori- Escancarada, de zado em sua terra é outra questão. Monteiro (PB) E o problema se agrava ainda mais quando esses artistas, muitos deles autodidatas, residem no interior do S Estado, onde geralmente não há incentivo dos governos theus Nachtergaele e Marcélia municipais e nem mesmo há um local de divulgação. Cartaxo. A família de Rafael tem Diante dessa realidade, em 2013, foi lançada em Mon- uma vocação artística indubitá- teiro (PB) a revista Boca Escancarada, a primeira revista de vel. O pai de Rafael, seu Francis- literatura e arte do Cariri, cujo objetivo era revelar e regis- co, além de também ter vocação trar a produção artística da região. Dentre os artistas que para as artes plásticas, é poeta e a revista descobriu durante seus trabalhos, um deles foi compositor. No entanto, as cir- Rafael Monteiro, um jovem de 25 anos, que desenha desde cunstâncias que os permeiam os seis anos de idade, incentivado pelo pai. À medida que muitas vezes não permitem que ia crescendo, Rafael foi sentindo a necessidade de aprimo- seus trabalhos sejam divulgados rar suas técnicas, foi quando fez um curso à distância de pelo Estado da Paraíba, com ex- desenho artístico e publicitário, o único curso que pôde ceção das primorosas edições do fazer diante das condições financeiras da família, que o suplemento literário do Jornal A obrigaram a trabalhar desde cedo como ajudante em forro União, Correio das Artes, que já de gesso, servente de obras e com a fabricação de painéis, revelou e vem revelando muitos faixas e enfeites para aniversário. poetas, contistas, cronistas, ar- As dificuldades financeiras impediram que Rafael con- tistas plásticos e diversos outros I cluísse alguns cursos técnicos: como o de técnico em ma- artistas. Viva a cultura! nutenção e suporte de computadores; técnico em seguran- ça do trabalho e o curso de tecnólogo em construção de edifícios. Mas não impediu que ele continuasse a desen- volver, sozinho, sua arte, uma das quais foi capa da edi- ção de número seis da revista Boca Escancarada, a primeira revista a divulgar o trabalho dele e a fazer ressurgir nele a Lizziane Negromonte Azevedo é esperança de um dia viver apenas de sua arte. escritora, advogada, cofundadora e Rafael é sobrinho de outro artista da cidade de Montei- coeditora da revista de literatura e ro, o fotógrafo e cineasta Asley Ravel, que já participou de arte Boca Escancarada. Tem contos publicados no Correio das Artes e na diversos trabalhos artísticos, dentre eles o making off do fil- Câmara Brasileira do Jovem Escritor. me Big Jato, dirigido por Cláudio Assis e estrelado por Ma- Reside em Monteiro (PB).

| João Pessoa, fevereiro de 2016 10 Correio das Artes – A UNIÃO painel

Traços e temas Desenhos e xilogravuras de Rafael Monteiro, incluindo a capa da revista literária Boca Escancarada, ilustrada pelo artista. Nas várias técnicas que domina, percebe-se a boa caligrafia de Rafael; o traço seguro na composição de retratos realistas. Os temas são claramente identificados com o meio onde vive - a região polarizada pelo município de Monteiro, no Cariri Ocidental da Paraíba -, terra marcada pelas agruras das estiagens e a cultura popular, com destaque para os poetas e violeiros.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 11 6 convivência crítica Hildeberto Barbosa Filho [email protected] Entre Augusto, Dioniso e Parfeno (UMA CARTA [ENSAIO] AO ERUDITO EVANDRO NÓBREGA)

Caro Evandro: vigor da representação, e a se- miose, isto é, o jogo especial dos evidente que as diversas razões signos, conforme a lição barthe- de ordem teórica, reunidas em siana, tendem a se mesclar e a se Augusto dos Anjos & o Mistério fundir sob o regime da qualida- de Parfeno, obra mais recente de de estética do texto, a que a crí- É sua atividade de erudito e pes- tica literária, em seus simultâ- quisador incansável, não consti- neos procedimentos de análise,

Foto: reprodução/internet tuem, a rigor, o que entendo por interpretação e julgamento, in- crítica literária. tenta examinar e compreender. À crítica, diretamente não Ora, se digo que seu trabalho interessa os aspectos perifé- intelectual não é propriamente ricos do texto, assim como as crítica literária, não quero dizer notações paraliterárias que que ele não tenha valor, não te- o conformam historicamen- nha méritos, não tenha serven- te enquanto resultado prático tia. Ao contrário: sou dos que e material. Não dispensando, vejo, em esforços dessa natu- sobretudo em certas situações reza, uma grande e imprescin- do labor exegético, elementos dível contribuição aos estudos culturais, biográficos, linguís- literários, na medida em que ticos e científicos peculiares empreendimentos que tais po- a uma “demanda extrínseca”, dem abastecer o olhar do crítico, para me valer da expressão de a posição do historiador, o com- René Welleck e Austin Warren, promisso do teórico, que têm, em seu indispensável manual todos, na literatura, o núcleo de de Teoria da Literatura, procura seus respectivos interesses. Seu focar o valor estético, isolando- trabalho de investigação cogni- -o, no âmbito específico da ta- tiva me parece enquadrar-se no refa judicativa, como o elo que elenco das peças ancilares, no preside o fluxo e a conexão dos acervo variado das disciplinas outros valores que palpitam na auxiliares que, atentas a por- Evandro Nóbrega é jornalista, tessitura da obra. menores e particularidades do tradutor, editor e ensaísta. A mathesis, isto é, o conjunto fenômeno em estudo, terminam Publicou, entre outros livros, A glândula pineal do urubu de saberes; a mimesis, isto é, o por abrir portais de acesso na c

| João Pessoa, fevereiro de 2016 12 Correio das Artes – A UNIÃO 6 convivência crítica c percepção da complexidade do empenho criador. De certa maneira, reside aqui, nesta sinalização que você pro- move, insinuando-se, qual um Sherlock Holmes das hipóteses, índices, rastros e pistas literá- rios, pelo emaranhado enigmá- tico da transfiguração poética, o primeiro ponto que me chama a atenção na riqueza e ousadia de suas premissas metodológicas. Antes de qualquer coisa, afirmo que seu livro aponta para um fato fundamental, para um ve- tor decisivo, um dado seminal, a que a crítica literária, em espe- cial no caso de Augusto dos An- jos, não pode ficar indiferente: a complexidade dos ingredientes mobilizados no seu processo de criação poética. O poeta Augusto dos Anjos, no Pois bem: ao analisar o deta- traço de Tonio lhe retórico do segundo quar- teto do poema “Gemidos de Arte”, materializado no recur- so da comparação metafórica, da ciência, da filosofia, da lite- les de Mileto, Augusto Comte, envolvendo as figuras de Par- ratura, da arte, enfim, do calei- Rembrandt, Ugolino, Rei Lear, feno e de Dioniso, você remete doscópio simbólico que reflete Hamlet, Dioniso, Parfeno etc. para o fato de que, entre tantos os multifários prismas da aven- etc. etc.. outros que se atritam e se har- tura cultural e humana. Observe que o percurso odis- monizam na matéria vocabular Diria que, ao lado de Parfeno seico que você traça e enfren- e vérsica da poesia de Augusto, e de Dioniso, e com eles estabe- ta para elucidar o “mistério de a sua poética é, sobretudo, uma lecendo sinuosas correspondên- Parfeno”, Parfeno que arrancou poética da leitura, o que me leva cias semânticas e estéticas, uma os olhos a Dioniso, desvendado a supor que, só por isto, a sua vez que o Eu e outras poesias, mas, quando da leitura do romance A poética já é rigorosamente uma principalmente o Eu, o de 1912, morte dos deuses: Juliano, o Apósta- poética moderna. pode ser lido como um longo, ta, do escritor russo Dmitry Ser- Não são somente os persona- tortuoso, dilacerado e unitário gueyévitch Merejkóvsky, pode gens Parfeno e Dioniso (e claro, poema, habitam outros seres seguir a mesma lógica rastreado- você, como ninguém, sabe isto!) reais e imaginários, ocupando ra diante de todas as outras per- que, frutos de sua experiência os vastos espaços da engenhosa sonas que falam e dialogam na de leitura, terminam por habi- máquina lírica de Augusto dos polifonia dos versos anjelinos. tar seu lírico casarão, quer na Anjos. Permita-me enumerá- Veja, por este aspecto, a relevân- redoma encantatória de uma -los caoticamente, a título de cia de sua pesquisa. Observe que metáfora visionária, quer no exemplo probatório: o verme, a o seu livro, estribado na preocu- ritmo excessivo e dilacerado de membrana, o cão, o corrupião, a pação de esclarecer um enigma, uma redundância ou de uma prostituta, o bêbado, o filósofo, sugere, por sua vez, a elaboração hipérbole, quer no espesso qua- a mônada, a morte, o canivete, a de outros livros, na procura e drilátero de uma arquitetura lagartixa, o cupim, a dor, a po- na sondagem de outros enig- sintática de todo heterodoxa. dridão, o sexo, a lama, a mosca, mas, a compactar um acervo de Em Augusto, reina, por entre a moeda, a garrafa, o caixão, a obras de referência, dicionários, as estrofes dos seus sonetos e lua, o doente, o louco, a babu- enciclopédias. A propósito, por de seus poemas longos, toda gem, a gosma, os ossos, o pus, ser enciclopédica, a poesia de uma humanidade estranha e o sangue, a cal, a resina, a tape- Augusto merece um dicionário, surpreendente, ora extraída da ra, a cinza, o esqueleto, a cavei- dicionário de grande porte e po- realidade vital, biológica e me- ra, finado Tôca, Guilhermina, litemático, com amplos verbetes tafísica; ora da pura liberdade Elias, Platão, Spencer, Darwin, acerca de seus personagens, con- de imaginação, ou seja, da fan- Schopenhauer, Dante, Shakes- ceitos, ideias, teorias e outras so- tasia criadora; ora da mitologia, peare, Hackel, Aristóteles, Ta- licitações. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 13 6 convivência crítica

Foto: reprodução/internet c Você não põe em discussão mais ricas e remotas tradições – aliás, não é o seu propósito do pensamento filosófico e da – o caráter livresco da poesia criação literária. Em certo senti- do autor de “Monólogo de uma do, ela, a professora Sandra (au- sombra” e, mais detalhadamen- gustóloga da gema e da melhor te, o quanto este caráter pode cepa) me ensina a sempre perce- trazer insumos ideativos para ber, em qualquer texto do poeta sua densidade estética e filo- do Pau d`Arco, um metatexto, sófica. Não obstante, a energia um transtexto, um arquitexto intelectiva e perscrutadora do em que as dores do mundo, com erudito que você é, com seus seus suseranos e vassalos, seus instrumentos linguísticos, filo- deuses e demônios, seus títeres lógicos, mitológicos e científi- e suas vítimas, são vividas e en- cos em geral, vão, direta e in- cenadas com refinada maestria. diretamente, ao encontro desta Ora, seu livro também me singularidade, devassando pis- fala destas largas possibilida- tas preciosas no que concerne à des. Por isto mesmo já ocupa sua riqueza intertextual, meta- lugar de destaque numa estante textual e transtextual. especial de minha biblioteca, es- Não há um só poema de Au- tante que denominei de “Ilha de gusto que não revele o leitor que Cipango”, e na qual consta tudo ele foi, leitor ansioso e onívoro, que possuo (até agora) sobre disperso e circular, enciclo- nosso amado poeta. pédico e erudito, ao modo de Um segundo tópico do seu certos personagens borgeanos, trabalho também me estimula perdidos e realizados no eterno a reflexão. Vou chamá-lo, como labirinto de uma biblioteca de fariam os teóricos da literatura, Babel. Não há um só poema de de o “desnudamento do pro- Augusto que não trave, em sua cesso”. E lhe adianto: este des- São Tomás de Aquino, de intrínseca tensão verbal, uma vestir-se, este revelar-se, este Botticelli batalha aguerrida com um ou despir-se nos bastidores da cria- vários antecessores poéticos, ção, demonstrando o método, os sobremodo os mais “fortes”, na conceitos e as teorias, conforme arena inadiável da “angústia da diria Horácio, o latino, ensina e influência”, para referir Harold deleita, deleita e ensina... Bloom, cristalizando, assim, Seu ponto de partida é a per- seus matizes intertextuais, sua gunta chave: Quem é Parfeno?, Você deixa claro, desde o cadência dialógica, seus sortilé- desdobrada em outras: Parfeno início de sua empreitada cog- gios referenciais, suas transpo- é personagem real, mítico, fic- nitiva, que sabe alguma coisa sições simbólicas. tício? Se real ou mítico, donde acerca de Parfeno, embora não A melancolia da criatividade na Augusto o retirou? Ou é pura consiga lembrar o contexto des- poesia de Augusto dos Anjos (você invenção de poeta, como suge- ta remota informação, o que conhece; você, como São Tomás riu um professor norte-ameri- me faz pensar num daqueles de Aquino, leu tudo!), de Sandra cano, em quem você merecido típicos casos de criptominésia a S. Fernandes Erickson, publica- piparote? que alude Umberto Eco, numas do pela Editora Universitária/ Para organizar meu pensa- das conferências reunidas em UFPB, em 2003, aproveita o fa- mento, transcrevo, acostado à Interpretação e superinterpreta- moso crítico norte-americano minha edição preferida, a trigé- ção. O fato de lermos, e lermos para, socorrendo-se das estra- sima primeira, da Livraria São muito e continuamente, ao lon- tégias analíticas do seu Mapa José, de 1971, a quadra que lhe go da vida, faz com que nossa da Desleitura, penetrar funda- desafiou na leitura do poema mente arquive informações que, mente nas entranhas verbais de “Gemidos de arte”, uma das pe- por esta ou aquela razão, ficam três sonetos (“A um mascarado”, ças centrais do Eu: como que incubadas, só vindo “Solilóquio de um visionário” e à tona, quando se cria um “Versos íntimos”), descortinan- contexto propício à do-lhes as diversas camadas e Tenho estremecimentos indecisos sua emersão. E quan- subcamadas que levam o liris- E sinto, haurindo o tépido ar sereno, do isso ocorre, experi- mo agônico do poeta a se con- O mesmo assombro que sentiu Parfeno mentamos a sensação frontar, no corpo do texto, na ( Quando arrancou os olhos de Dionisos! de que já vimos ou já c liberdade do eu poético, com as

| João Pessoa, fevereiro de 2016 14 Correio das Artes – A UNIÃO 6 convivência crítica

Foto: arquivo a união c conhecemos aquele nome, aque- cado das palavras, entra em cena la coisa, aquele personagem, en- e vai apontar-lhe a pista mais Evando Nóbrega na Grande fim, aquela situação etc. Muralha da China. Em 2001, segura, uma longa e estafante Logo que você estabelece suas ele publicou (em chinês e pista, culminada no prazer da hipóteses, em certo sentido arru- português) Traduzindo Li descoberta e da resolução do pro- madas dentro da lógica dedutiva, Bay & Du Fu – Século VIII – blema, numa oferta de dados tex- Dinastia Tang isto é, do geral para o particular, tuais que me parecem relevantes não tive dúvidas de que estava ao exercício da crítica literária. diante de um exemplo que en- Verificando que na primeira cheria os olhos do grande semió- edição do Eu, Parfeno está escri- logo italiano. Procedendo por to com PH (“Parfhéno”) do grego eliminação das possibilidades TH, e que PH em russo corres- que não se confirmam perante as ponde a F, começa a se desenhar provas da pesquisa textual, você a hipótese de que Parfeno seria vai revelando a nós, estupefato um personagem da literatura leitor, os passos ziguezagueantes russa. Daí em diante, e a partir de um percurso intelectual dos de cada detalhe linguístico e fi- mais sofisticados, uma vez que lológico que você disponibiliza, seu repertório cultural acolhe os como um virtuose do poliglotis- mais variados setores do saber mo e como um leitor voraz, bi- especializado, numa prática in- bliômano e bibliófilo, o quebra- terdisciplinar que não dispensa, -cabeça começa a se encaixar e entre outros, os utensílios essen- a indagação primeira, motivo de ciais da linguística, da filologia, tantas discussões, será, afinal, da mitologia, da história, da lite- respondida. E esta resposta resi- ratura, da tradução, da bibliogra- de na figura do grande leitor que fia, da etimologia, da religião e foi Augusto dos Anjos. da filosofia. A passagem do romance de Nas suas andanças livrescas Merejkóvsky, que você reproduz, e nas suas navegações pelo cibe- sinaliza, sim, para as correspon- respaço, pois o vejo como aquela dências intertextuais entre a pro- rara espécie de intelectual que sa do escritor russo e os versos alia as matrizes eruditas do sé- do poeta paraibano, demons- culo XVIII aos meios de ponta trando, por assim dizer, que este das novas tecnologias, você vai se apropriou daquele, como, de descartando, item por item, as resto, tantos de tantos, no espaço possíveis suposições no sentido aberto e ambivalente da criação de saber e provar quem foi este literária. Parfeno que arrancou os olhos Seu argumento me parece ir- de Dioniso, ao mesmo tempo em refutável. O “assombro”, que en- que ostenta, entre humilde e irô- volve o eu lírico nos versos de nico, seu método de trabalho, em Augusto, tem tudo a ver com o todas as suas minudências. “calafrio de horror” que sentiu o Fico sabendo, a princípio, e de- monge Parfeno, depois de extrair pois que você repassa as páginas os olhos da estátua de Dioniso, de tantas obras antigas e moder- na verdade duas safiras rouba- nas, inclusive o livro Miserável das ao patrimônio do mosteiro a Dioniso, do poeta e prosador ro- que pertencia. meno, Mihai Eminescu, que nem É importante conhecer este de- Dioniso, o deus do vinho, nem os talhe? É óbvio que sim. Mas, ain- dionisos históricos nunca tive- da mais importante é saber que ram seus olhos arrancados. Ora, sua explicação pode demandar como explicar, portanto, o gesto o esforço de uma longa pesquisa de Parfeno? Como interpretar a que só a paciência dos eruditos imagem utilizada por Augusto? consegue realizar, abrindo, cada De outra parte, também não exis- vez mais, o leque de opções face te nenhum personagem mítico aos objetos literários de estudo. com o nome de Parfeno. Meu caro Evandro, li com pra- Eis que a etimologia, ciência zer todo o seu texto, e com ele, que estuda a origem do signifi- aprendi tanto! c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 15 6 convivência crítica

Foto: reprodução/internet quantas páginas deliciosas pode- riam ser escritas! Pois bem: é seu livro que me entrega, na sua poliédrica gra- mática epistemológica, na germi- nal irradiação de todo um temá- rio novo e flexível, estas incríveis possibilidades. Você mesmo, que já se deu à proeza de escrever o caleidoscópico romance A glân- dula pineal do urubu, bem que po- dia tentar uma travessura estéti- ca como esta. Só mais um breve comentário: se “Gemidos de arte” está data- do de 4 de maio de 1907, um dia de sábado, e no poema “Tristezas de um quarto minguante”, publi- cado em 5 de julho deste mesmo ano, aparece com a data de 03 de maio, talvez seja, de fato, como você defende, por força da métri- ca, e eu acrescentaria, também, da rima. Talvez, talvez. Segundo Orris Soares, pri- meiro Augusto mentalizava, numa espécie de transe deliran- te e repetitivo, todos os versos de seu poemas, para, somente conclusa a fatura mental, pô-los Baco, de Caravaggio na página em branco do papel. c Aprendi, por exemplo, que Quem sabe, Augusto não tenha ele não é somente um pequeno começado o poema na sexta-fei- manual de introdução à litera- ra, quando de suas costumei- tura russa, como você insinua ras caminhadas noturnas pelos em certa passagem, mas tam- ermos do engenho Pau d`Arco, bém uma propedêutica à filolo- vindo a concluí-lo, e a escrevê- gia e à etimologia, assim como -lo, no entanto, no dia de sába- um tratado de história biblio- por exemplo, como fez, com o do. Eu não sei. Creio que você gráfica, um ensaio de investiga- próprio Augusto, a escritora Ana não sabe. Como sabê-lo? ção literária, uma inscrição no- Miranda, em seu romance A úl- Antes de qualquer resposta velesca cuja trama fulcral reside tima quimera; como fez Rubem definitiva, devo me recolher: esta na vontade de saber e cujos pro- Fonseca, com Getúlio Vargas, em carta já vai longa. De qualquer tagonistas aparecem nas figuras Agosto; como fez J. J. Veiga, com maneira, não me entregarei aos de Augusto, de Dioniso e dos Antonio Conselheiro, em A casca braços de Morfeu, sem ler e reler, múltiplos e desgarrados Parfe- da serpente, e o húngaro Sándor com prazer e espanto renovados, nos da literatura universal. Márai, com Veredicto em Canudos. esses dois grandes poemas de Aprendi também, nas suges- Que os ficcionistas possam ex- Augusto dos Anjos, com a con- tões oblíquas que figuram, aqui plorar, na malha de seus enredos vicção de que a poesia é o ápice e ali, no seu texto desafiador, e na sua geografia imaginária, da linguagem e toda linguagem que Augusto dos Anjos, a par qual seria a reação de Augusto é possuída de mistério. do homem e do poeta, pode vi- dos Anjos face ao suicídio de Ma- Abraço forte de quem o admi- rar personagem de ficção, vindo yakóvsky, assim como sua posi- ra. HBF. I a ampliar tendência marcante da ção teórica frente ao dialogismo narrativa contemporânea, preo- e à polifonia de Mikhail Bakthin, cupada em inserir, no estatuto estudando Dostoiévski. Como da ficcionalidade, ou da poiesis, seria, por exemplo, uma conver- como queiram, personalidades sa de Augusto com Nabokov, de Hildeberto Barbosa Filho literárias, situações estéticas e Augusto com Borges, de Augus- é poeta, crítico de literatura e professor da Universidade Federal da experiências históricas. Assim, to com Baudelaire! Imaginemos Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

| João Pessoa, fevereiro de 2016 16 Correio das Artes – A UNIÃO 6 livros

Micheliny Verunschk e o fascínio pela morte e pelos santos literários de cada dia

Linaldo Guedes [email protected]

eu primeiro poema foi escrito aos 10 anos. Sem saber ainda que aquilo seria sua vocação, Micheliny Verunschk desco- briu cedo que podia se expressar melhor por meio da escri- ta. Nascida em Recife em 1972 e hoje radicada em São Paulo, Micheliny é uma das autoras mais respeitadas entre leitores e críticos literários do país. Como poeta, foi finalista, em 2004, S do prêmio Portugal Telecom com o livro Geografia íntima do deserto. Como prosadora, ganhou o Prêmio São Paulo de Li- teratura 2015 - categoria melhor romance de 2015 - autor es- treante acima de 40 anos, com o livro Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida. Tanto na prosa como na poesia, dois te- mas perseguem sua obra: a morte e os santos. Mas, afinal, quem é Micheliny Verunschk? “Alguém que escreve e que, no meio disso, vive. Mas ambas as coisas são viver. Então talvez a melhor resposta seja essa: alguém que vive”, responde de bate-pronto. Quando criança, era muito tímida, e leitora voraz. Talvez por isso tenha seguido o ca- minho natural da escrita. Por essa época, leu tudo o que caía nas mãos, de gibis a fotonovelas, de enciclopédias a histórias infantis. “Devo ter lido Morte e vida severina por volta de 11, 12 anos, mas o que me marcou mesmo foi a leitura que minha mãe fez comigo, aos 10 anos, de Dom Casmurro”. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 17 c Seu primeiro livro de poemas não daria conta do que eu queria ROMANCE – Geografia íntima do deserto – foi para ela. Foi um exercício e tanto aclamado pela crítica. Micheliny e depois de pronto, percebi que E POESIA REUNIDA admite que não esperava a re- era capaz e que ainda há outras No momento, Micheliny está cepção que a obra teve. “Foi uma histórias por contar”, assegura. preparando sua “poesia reuni- surpresa para mim”, revela. Não O romance fala do suicídio. da”, além de trabalhar em outro porque não visse qualidades no Mais do que sobre Teresa, a per- romance. Nos Poemas reunidos, a livro – “se eu não acreditar no sonagem-título, é uma reflexão ser lançado este ano pela Marte- que escrevo qual seria o sentido sobre o tabu da morte escolhida lo Editorial, estarão os quatro li- disso?” -, mas porque achava e sobre os discursos moralizan- vros anteriores: Geografia Íntima distante demais da sua realidade tes sobre as ações individuais e do deserto, O observador e o nada, essa atenção. A indicação do li- coletivas que cercam esse ato. A cartografia da noite e b de bruxa. vro ao Prêmio Portugal Telecom Teresa é uma adolescente ligada Além desses, dois inéditos: Ou- lhe deixou, à época, feliz, mas à Igreja de sua cidade e ainda tra arte e Maravilhas banais. também incomodada, porque em vida tida como vidente. Em Todos os livros anteriores são parecia que estava tendo uma vida e morte é sequestrada pelo livros hoje de difícil acesso ao atenção maior do que aquela que discurso dos outros, pela cons- leitor, praticamente esgotados. deveria ser dada ao livro. trução que fazem dela. “Mais do “Os dois inéditos são fruto de “Houve certo interesse da im- que uma crítica a qualquer reli- novas vozes que têm atravessa- prensa, na época, e eu não sabia gião, é uma reflexão sobre como do minha poética. Tenho uma lidar muito bem com isso. Ficava o discurso religioso sobre as vi- ótima expectativa sobre essa re- pensando o tempo todo se não das humanas é capcioso”, define. união e, para mim, ótima expec- estava falando ou fazendo boba- Por que esse tema? Micheliny tativa é ser lida. Estou também gem. De todo modo, sempre fui explica que o tema mais urgente preparando um novo romance, muito atenta a não me deslum- em toda a sua escrita é a morte. chamado provisoriamente de O brar com holofotes. As críticas “Talvez a razão desse fascínio amor, esse obstáculo. É a história em geral foram muito positivas, não possa ser explicada. Escreve- de um menino que, depois de mas fiquei bem atenta àquelas mos sobre essas coisas enormes a presenciar o assassinato dos pais mais incisivas: ora, sou e sempre vida, a morte, o amor. Não fugi- se auto-educa, para a vingança, serei aprendiz, então a chamada mos muito ao roteiro”. Não só a e, nesse processo, se transforma crítica ‘negativa’ é a que me ensi- morte. O tema dos santos parece num pequeno serial killer. Essa na mais”, observa. que mexe com O imaginário da é a história de fundo, mas o ro- Para ela, os prêmios são uma escritora e está até em suas pro- mance trata (ou quer tratar) fun- forma de reconhecimento impor- duções acadêmicas. De forma damentalmente da aquisição da tante, mas não o principal ou úni- simples, ela explica esse fascínio: linguagem. É uma história vio- co reconhecimento que um autor “Venho de um lugar em que a lenta contada sob a perspectiva possa ter. “É bacana que possa ha- espiritualidade é criada sob a as de uma criança”, informa. ver prêmios, editais e outras for- bases do compadrio celeste. Todo Para Micheliny, a literatura é mas de reconhecimento ou mece- santo é santo de casa, é íntimo. o seu modo de estar no mundo. nato, mas tendo em vista que isso Me seduz esse diálogo contínuo Aliás, ela vê que a literatura no não é a finalidade da escrita, que entre o lá e o aqui, entre vivos e Brasil de hoje tem um espaço ninguém é melhor ou pior autor mortos”, esclarece. plural e múltiplo que, a despei- por ter ou não algum troféu na Nascida em Recife, Miche- to das determinações mercado- estante”, analisa. liny se criou em Arcoverde, in- lógicas, permite a polifonia, o terior pernambucano, e adotou encontro/desencontro de vozes. CRÍTICA DO São Paulo. A partir de então, as “Isso se deve, obviamente, às coisas foram acontecendo. Pu- redes sociais com sua capacida- DISCURSO RELIGIOSO blicou primeiro em Pernambu- de reverberante. A existência de Micheliny teve o romance co, no Jornal do Commercio, mas um livro, por exemplo, e quando Nossa Teresa – vida e morte de uma Geografiaí ntima do deserto foi pu- falo em existência falo das pos- santa suicida agraciado no Prêmio blicado em São Paulo e teve de sibilidades que ele pode vir a ter São Paulo de Literatura. Escrever cara uma ótima recepção. “Vim de ser lido, comentado, resenha- em prosa não é novidade para a São Paulo para o lançamento do, depende cada vez menos dos ela. Pouco antes de morrer seu do livro e foi amor à primeira meios tradicionais. É um cená- pai lhe mandou um dos seus vista. Pouco mais de três meses rio interessantíssimo, na minha cadernos da época de infância e já havia mudado para a cidade opinião”, enfatiza. descobriu que já havia uma pro- de mala e cuia, como se diz por Como é interessante e desa- sadora em formação antes disso. aí. Em 11 anos de São Paulo já fiador escrever, tanto em poesia “Sempre escrevi pequenas nar- retornei duas vezes a Pernam- quanto em prosa. Existe uma rativas, mas por algum motivo buco, mas São Paulo tem um linguagem mais fácil de escre- o trabalho da poeta se sobrepôs ímã irresistível para mim, uma ver? “Cada um tem seus desa- ao trabalho da prosadora. Quan- conjunção de coisas que me pu- fios e especificidades. Mas es- do pensei a história de Teresa, xam para a Desvairada. Acho crever seja o que for não é fácil”, percebi que uma narrativa curta que é amor”, comenta. garante a autora.I

| João Pessoa, fevereiro de 2016 18 Correio das Artes – A UNIÃO 6 entre os livros Expedito Ferraz Jr. [email protected] Notas de leitura: Servir a quem vence, de Astier Basílio

1. É preciso um tanto de maturidade literária para convivermos serenamente com nossos arquétipos, sem desmerecê-los, mas sem Fotos: augusto pessoa respeitá-los em demasia, para que a reverência não nos esterilize criativamente. Em seu mais recente livro de poemas, Servir a quem vence (Ed. Mondrongo, 2015), Astier Basílio se impõe e enfrenta esse desafio de “transformar tabus em totens”.

2. E o faz desde o título do livro, na ousadia que é partir ao meio o conhecido verso camoniano, privando o verbo de sujeito, para transformar-se a frase numa construção aberta e ambígua.

3. Ou simplesmente para estabelecer desde logo, com o leitor, aque- la intimidade camarada de quem compartilha o prazer de um verso de estimação. Porque o livro de Astier parece mesmo encerrar esse convite à releitura de uma tradição de discursos eróticos que vão do casto ao fescenino, e vêm de Camões a Drummond, de Curtiz a Kubrick (nomeados), ou mesmo de Vinícius a Murilo, entre outras evocações diretas e presenças subjacentes.

4. E nisto me parece residir uma primeira qualidade do livro: suas referências e citações são, evidentemente, artifícios literários, ma- nuseados ludicamente pelo poeta. Entretanto, nenhuma delas pare- ce funcionar como argumento, ou como muleta estética. Há um gosto pela sofisticação, às vezes diluída em ironia, mas não há pedan- tismo. Os poemas valem por si e as alusões se incorporam como numa conversa sobre experiências estéticas as mais variadas. Todo o conjunto, aliás, soa como uma rememoração de fragmentos do que teria sido visto, lido, ouvido, vivido.

5. Uma das referências que me ocorreram, enquanto lia os poemas de Astier, não está citada (nem mesmo indiretamente) no livro, e talvez nem esteja em sintonia com a atmosfera de aparente (só apa- rente) espontaneidade que o perpassa. Lembrei-me, mais de uma Astier Basílio, poeta, dramaturgo vez, da descrição que faz Paul Valéry do processo de criação do e jornalista, autor de Servir a seu “Cemitério Marinho”. Explico por quê: a certa altura do depoi- quem vence (mondrongo, 2015) mento sobre a gênese de seu poema, Valéry diz que a obra nasceu c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 19 6 entre os livros c como uma espécie de “imagem escuro”; “Então pintei de blues quando envoltas numa engano- rítmica” – um movimento ain- os meus sapatos”; “que a verti- sa coloquialidade. Veja-se, por da sem corpo, mas já claramente gem tem fim. O fim de sempre”; exemplo, neste aspecto, o intenso definido, que se foi preenchendo “ou de um risco – obtido à flor da colorido destes versos: ...de teu ne- posteriormente, num longo exer- pele”, “Amor, aqui abismo, ali já nhum / vestido / e de tua / displicên- cício de (re)elaboração. pássaro”, “Como fenda de fogo cia / compondo / vitrais / e alegorias em flor em fúria”, entre outros. / de primavera; [...] da conferência / de vaga-lumes / que seu olhar / con- 6. segue / quando uma alegria / está Pois essa ideia do poema sur- 8. próxima... gindo com uma frase musical é Dos decassílabos às redondi- que me pareceu pertinente à lhas, marcadas com rimas toan- apreensão da poesia de Astier tes, os exemplos se somam, como 10. Basílio. Há versos, ou conjun- naquele “Romançal para Senhora Gosto de pensar que o erotis- to de versos, em seu livro, que dos Navegantes” e no “Roman- mo, em seu sentido mais amplo, se justificam inteiramente pela ce para a moça sob o céu da São é um dos raros temas, em poesia, força do ritmo, como se o poe- Gonçalo”, que se abre com esta que dispensam justificativas – já ma existisse para ou por conter bela (e cabralina) estrofe: Aquela que a própria linguagem poéti- aquela frase – numa espécie de que traz o mundo / não nos ombros, ca, forjada em ritmos e imagens, poesia feita com o ouvido. mas no abraço. / Que fala por seu sempre apela, de alguma manei- olhar / a sépia de alguns retratos. / ra, aos sentidos do leitor. Servir a Como se um tempo de tempos / hou- quem vence, de Astier Basílio, me 7. vesse somente em algo / seu. E para dá bons argumentos para conti- Não me refiro, evidentemen- onde ela olha: / paisagens que dicio- nuar apostando nisso.I te, apenas ao emprego de formas nários / não tocam, pois sua língua / fixas. Mas é certo que sobretudo é mar de amanhãs arcaicos... nestas, o poeta nos mostra uma rica provisão de recursos rítmi- cos, que emprega com apuro, mas 9. sem servilismo. Todo o livro está E desses ao verso livre, em que pontuado de belos versos que a imagem é que salta ao primeiro Expedito Ferraz Jr. é poeta e professor de Teoria Literária da podem confirmar essa impres- plano, em metáforas imprevistas, Universidade Federal da Paraíba. são: “Seja Amor habitar o que é repletas de sensualismo, mesmo Mora em João Pessoa (PB)

Astier vem acumulando prêmios na literatura e no teatro. Em 2014, por exemplo, venceu o Prêmio Funarte de Dramaturgia com a peça “Maquinista”

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| João Pessoa, fevereiro de 2016 20 Correio das Artes – A UNIÃO POESIA Joedson Adriano

Aquiles que eu jamais seja rei se for pra essa nobreza de enfeite e flatulência e adiposo apodrecer no trono estabelecido sobre as cinzas dos jovens que morrem incógnitos em batalhas inúteis me enojam e são maioria os príncipes sem princípios que se ajoelham como cães diante do ditador e no duro da verdade a única das minorias que importa sou eu que posso não partir e deixar os troianos sobrepujarem os gregos com exceção daqueles que sempre ficam comigo a turma mais que tropa a privar do meu carinho e não a malta sem rosto muletas prum cérebro dos dois lados sofredores da linha ilusória afinal essa peleja não é dos meus nem minha e pra mim tanto faz se perecem helenos ou teucros nas trincheiras ou dentro das muralhas embora eu não tenha nada contra os últimos em geral tão estúpidos quanto são os primeiros em particular parem os seus grandes guerreiros como o nosso Ajax e engenhosos estrategos como vós conselheiro que me assediais pra aventura que me arrastará pras ilhas afortunadas onde vos esperarei como a Heitor e Enéas que me parecem homens honrados igualmente mas nenhum como eu que não tenho nada a ver com nenhuma nação e apesar de ansiar pelos gritos da guerra e seus cruentos combates eu preferiria lutar com os deuses do Olimpo entretanto por Zeus pai que eu jamais seja nem rei se pra preso no palácio a presidir gente inerme até afracar mais que ela como agora Príamo injustamente ameaçado por bárbaros bandidos que desejam destruir seu estado de fato pois criminosos somos e assim seguiremos saqueando e incendiando cidades e plantações sequestrando e estuprando mulheres e crianças e anciãos estripando mas não pode ser somente por uma mulher mesmo que seja a loira Helena quantas são tão boas quanto embora não tão belas e chorarão a perda de varões valorosos inclusive a minha o mais forte e belo de todos pois o coroa dos aqueus Agamenon não me engana com a dor de cotovelo do corno Menelau seu irmão tão covarde quanto seu rival Páris nos arrastam pro roubo das joias estrangeiras assim como assassinam e assaltam seus compatriotas sabei que sei que me usam mas também usarei seus motivos mercantis pra me avultar sobre os vermes e se vou pra chacina que então se inicia

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 21 POESIA por vaidade de outrem e terminará de certo com o luto do povo é só pela ambição de ser seu campeão pois eu só sairei dela na minha glória eterna de infatigável guerreiro que quer ser o maior herói e não desistirá outros motivos não me interessam nem um pouco meu desejo não é por despojos senão pela luta e a vitória mas na hora do combate nem em vencer penso pois a adaga se adiaria e quando venço já não há mais a ação da saúde e assim posso sair sem mais além de mim que é tudo o que tenho a essência do corpo que teima em se tornar um nome e só para morto pois melhor morrer jovem que não viver quando velho desejo ser o melhor e depressa ou nada pra pós senão que cantem com acelerados pés de palavras aladas a minha divina cólera que caia sobre Ílion ou Hélas tanto faz no apogeu da vida desejo esbanjá-la pra ser jovem pra sempre porquanto a velhice apenas forma fracos e deforma os fortes antes a vida ativa e curta do combatente a ferir diretamente que a sedentária e longa dos políticos de lábia pra não perder o poder que não têm por si mesmos e até os filhos matam incitam os iniciantes porém não se arriscam não respeitam seus pares nem quem não tem parelha e bem mais atrapalham que ajudam os simples a progredir nas ciências como sabeis parente dos lobos de fala fácil e feitos pra confetes quantos não foram mortos e quantos não matarei contudo se eu ficasse muitos mais morreriam e eu não me eternizaria com a destruição de Troia de quem não me fez mal tampouco me fará falta e eu não me humilharia sob o comando ardiloso dum crápula que abomino embora eu possa falar tão eloquente quanto qualquer desses quadrilheiros por gênio e cultura como Fênix me ensinou eu posso enganar com frias argumentações contrariando os fatos em fogo à nossa frente porém o meu fado é a vontade de mostrar a minha sabedoria com máxima força ainda que eu me descontrole pondo em risco meus amores e pisoteie as formigas que fieis me acompanham pois não quero ser bom se não for poderoso pro meu bem que não é calar ante a ofensa pois insulto ou rasgo as gargantas falazes de governadores gordos pra arrastá-los pelo arraial capaz que sou de cortá-los e comê-los inda crus porém também arranco as vísceras dum qualquer pra no fim um covarde me acertar sem o corpo a corpo ao calor e brilho dos escudos e espadas porque a vida vibrante que tudo contém com força pra mover terras e céus até no forte é frágil

| João Pessoa, fevereiro de 2016 22 Correio das Artes – A UNIÃO POESIA pra se acabar no auge da saúde num tropeção em providencial pedra do acaso ou destino que é nosso infiel e antigo desconhecido mas não temo a morte só não quero expor a vida por outro nem viverei por nada ou conforto pois se fico alegro meu pai Peleu raridade de razoável rei e crio meu filho Neoptolemo pra não ser um tirano ao menos se não demais mas a verdade é o meu desejo de ir pois sinto que mais que todas pra essa guerra fui feito deus pra nunca morrer e homem pra morrer logo pra guerra que foi feita pra mim o escolhido pra me elevar ao panteão pra eu exceder a humanidade visto que essa tal de humildade é pros fracos que não podem ser mais que a espécie e pros falsos que ambicionam entrar na lista dos mais humildes não posso ter paciência pra obter a glória eterna nem parar neste tempo nem fugir do destino de estar entre as estrelas e apenas meu orgulho é que vale a pena e pra conseguir meu posto a apostar meu único e o mais precioso bem o palco será o campo da batalha vizinha nem que eu lute sozinho com uma hoste de bárbaros contudo quero duelos de grande contra grande e não com infantarias de insignificantes a perecer por ideais nem por si mesmos morrem ao se ludibriarem por pátria ouro ou honra que nem têm nem sabem o que seja como vós que abandonastes tudo que nunca fostes ninguém e pra onde quer que eu vá não terei pra onde voltar e assim não me importo se regresso não houver nem pela minha mãe Tétis teimosa ninfa que enquanto quero perigo insiste em me proteger e mesmo assim quase me matou da maneira que fez com meus irmãos pra que eu nunca morresse mas este também é meu fado sem dar ouvidos a numes nem a homens tampouco a mulheres boas de Eros mas más de Ares inclusive Atenas mas mesmo se eu fosse uma nem os deuses poderiam me obstar ser um deles dos quais eu sou idêntico em intento e inteligência pra não me curvar ao vácuo e a lugar nenhum que não me seja eu quero ir até porque apenas em mim é que eu posso estar JOEDSON ADRIANO DA SILVA e só posso ser ao máximo no combate onde a ação SANTOS nasceu em 1983, em é mais rápida e intensa e assim há mais talento Bayeux (PB). Reside em João nem se pra paz tecelã com meus maiores amores Pessoa (PB). É policial militar e poeta. Publicou Ode aos Deuses pois os primeiros Pátroclo e Deidamia complacente (Edição do Autor, poema, 2009), eu desistiria de mim pois a oportunidade Ode aos Homens (Edição do Autor, faz o herói e esta será a minha última poema, 2010) e O Evangelho de Diógenes segundo os vates que dizem também que sem mim (Ideia, poema, 2013). É membro do Clube do Conto de os dâneos se danarão entretanto sem ela João Pessoa e integrou o Núcleo eu perderei mais portanto aperto vossa mão Literário Caixa Baixa. blog: e olho nos vossos olhos de vaca que têm apenas joedsonadriano.blogspot.com.br. email: odeaosdeusesjoedson@gmail. um pouco menos de ódio que estes meus de touro com. facebook: www.facebook.com/ joedson.adriano.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 23 POESIA Júnior Damasceno

Reminiscências

Tenho atributos para vento. Ainda posso inventar uma tarde a partir de uma garça.

Barquinhos de papel na correnteza Banhos de chuva Bolinhas de gude Cavalinhos de folha de carnaúba Bandeirinha Sapoti Nas árvores Canários, sanhaços, juritis Estórias de Timiza Fadas, monstros, encantamentos Lampião subiu a Serra E conversou comigo Hoje tem espetáculo? Às vezes tento lembrar do teu rosto Tem, sim senhor! E não consigo. Futebol no meio da rua Você foge. Minhas primeiras leituras Some. Cervantes, Verne, Bandeira, Drummond Como naquela manhã Um mundo novo descoberto Em que você seguiu Menina linda de estranha leveza E deixou a beleza do teu sorriso Correndo de bicicleta pela rua Guardada para sempre comigo. Invento Depois você volta. Menina de papel Toda. Correndo na chuva Inteira. Pela rua Como naquela mesma manhã Barquinhos de estranha beleza Em que tuas lágrimas molharam Estrela da manhã Teus olhos de menina E eu viajei no teu corpo Sem medo de que aquela Fosse a derradeira. E é nestes momentos Em que você aparece inteira Que percebo o quanto a vida É ilusória e passageira. Não deveria haver separação Nem aquela estrada terminar. Bem que você poderia, Minha estrela da manhã, Ter me carregado No carinho dos teus olhos Para uma viagem sem fim.

FRANCISCO JÚNIOR DAMASCENO PAIVA é natural de Martins (RN). É graduado em Filosofia pela UFPB, com pós-graduação em Educação pela UEPB. Professor de Filosofia do Estado da Paraíba. Ganhou Menções Honrosas no VI e no X Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães da FJA – Natal/RN, em 2006 e 2015. Escreveu os livros Delatório e Estórias de Timiza, ainda inéditos. Autor do blog Osseva: http://ossevaodonecsamad.blogspot.com.br. Mora em João Pessoa.

| João Pessoa, fevereiro de 2016 24 Correio das Artes – A UNIÃO 6 jogada de letras Edônio Alves [email protected] O prometido e o não cumprido

o futebol, assim como na literatura, nem sempre o ato criativo tem consequên- cia produtiva, no sentido de que “produtivo” possa ser entendido aqui como algo que renda, que se acrescente a algo que antes não existia; que se desdobre em algo que funda beleza e suscita reflexão, prazer de fruição e alegria na ex- perimentação; densidade na simplicidade, enfim. Assim, no primeiro caso, uma jogada de firula pode se esgotar apenas na -fi N rula em si; um passe que se prometia magistral redundar num tosco caminhar da bola em direção ao nada ou um drible engenhoso transformar-se apenas e unicamente num desenho vago de uma jogada inconclusa e infeliz. Também na literatura, que é o segundo caso, uma ideia de um texto que prometia uma narrativa mirabolante ou inventiva; uma trama intrincada ou sagaz, com um desfecho vívido e inesperado, pode vir a perder-se nas garras de seu próprio processo criativo e de desenvolvimento, e afundar nas águas turvas das promessas não cumpridas. Eis aí o preâmbulo de conteúdo para a nossa conversa de agora sobre litera- tura e futebol. A análise que segue, do conto “Uma vez Flamengo...”, de Dias da Costa, é, então, sobre esses impasses que são comuns nos dois campos de nossa aborda- gem aqui por essas páginas; ou seja: tratamos do prometido e do não cumpri- do, que tanto na literatura quanto no futebol ao invés de animar, alegrar, fazer sorrir, frustram igualmente leitores e torcedores. c

O DIA EM QUE O TORCEDOR MORREU

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 25 6 jogada de letras c Esse, portanto, é um daqueles forma alguma: sado? Tu que já andastes por todos contos de futebol que não trás ne- os campos da cidade, acompanhando nhuma novidade técnico-literária Luiz sentiu-se feliz. Naquele mo- o teu Flamengo... Tu queres agora e tampouco investe de forma se- mento não estava se lembrando de comprar cadeira no cambista, ficar gura em nenhum dos seus aspec- uma porção de coisas chatas que no bem-bom, longe da torcida boa, tos temáticos mais fascinantes enchiam a sua semana. Esquecia a dos bofetões, das bandeiras rubro-ne- como, por exemplo, os paradoxos luta com o agiota para arrancar mais gras saracoteando, das cabrochas, da de complementaridade e de fun- aquele dinheiro que estava gastan- girafa – é a maior – das barracas, da dação do jogo da bola. Aqui, no- do ali, aquele agiota miserável que charanga, das piadas boas... Tu estás vamente é tematizada uma situa- cobrava dez por cento de juros por ficando velho, Luiz? Tu que ias pra ção que se não for devidamente semana; esquecia que só tinha aque- tudo quanto era campo. Pra Madu- elaborada de forma que dela se la roupa de brim que trazia no cor- reira, pra Bariri, pro Alçapão de São possa extrair um bom rendimen- po; esquecia a furunculosa da filha, Cristóvão que caiu naquele dia, pro to estético, o seu mero registro o gênio ruim da mulher, a conta da Fluminense, pra General Severiano, ficcional pode se tornar inócuo, padaria, os conselhos do médico do então, agora queres ir pra cadeira senão perigosamente clicheriza- Sindicato, as safadezas do patrão, as azul? Estás borocochô, Luiz? do, como é o caso em questão, discussões bestas na oficina sobre a de um sujeito que em meio a bomba atômica, o preço dos gêneros, Ou: um fluxo poderoso de emoções a vida apertada de todo dia. díspares, morre em plena arqui- Isso era antigamente. Gostava da- bancada do Maracanã, vitimado Contudo, o problema geral quilo tudo. Mesmo agora, imaginan- por um ataque cardíaco. Ou seja: dessa narrativa não é apenas essa do, achava ainda bonito, sem saber o clássico quadro estrutural da visão alienante do futebol que ela bem por quê. Gostava de ver aquela reversibilidade semântica do fu- deixa, nas entrelinhas, transpa- gente toda, barulhenta, alegre, com tebol, por onde se pode ver que recer, numa outra clicherização trajes multicolores, se agitando pelos da mais funda alegria pode-se de fundo temático. A ponto de degraus largos de cimento da arqui- extrair a mais profunda tristeza. seu personagem principal não bancada, no meio daquela paisagem Não que esta narrativa de Dias atentar para a recomendação do majestosa e calma, enquanto ele fi- da Costa não se sustente do ponto “médico do Sindicato” e susten- cava lá embaixo, na geral, junto da de vista estético. O autor até que tar, por criação do narrador, nes- cerca, junto do campo verde, perto do consegue uma boa empatia do se evento particular, o móvel da seu Flamengo, correndo no campo, leitor para com os acessos emo- sua razão de ser e da própria his- suando a camisa. Coisa de antiga- cionais do seu personagem Luiz, tória. Para o bem e para o mal, há mente. um típico torcedor do Flamengo mais que se observar nesta histó- que depois de muito tempo sem ria curta em que Dias da Costa se Ora, esses dois trechos aí de- ir a campo, retorna ao Maracanã aventurou glosar ficcionalmente monstram muito bem a eficácia para ver uma final de campeona- o tema do futebol. estética da estratégia do narrador to num dia típico de Fla-Flu. Pelo lado bom, ressalvemos al- em dramatizar a transição de um Um tanto baqueado pela idade, guns procedimentos narrativos tempo feliz vivido pelo seu per- condição existencial que, diga-se de mínimo efeito estético da for- sonagem para um tempo que, no de passagem, o personagem só ma a se espraiar sobre o conteú- seu peito, se vai apertando, aper- vem ter acesso por conta de sua do. O primeiro deles é o narrador tando, apertando... até que: condição de torcedor, Luiz outra fazer coincidir a concepção do vez se vê experimentando o que tempo da narrativa com o tem- Voltou ao presente, estava de novo mais gosta de fazer: assistir ao po interior vivido pelo persona- na fila pra comprar a entrada. Não seu Mengo jogar e disso extrair gem. E mais ainda: a passagem havia pressa. Àquela hora nem o jogo grande parte do significado da do tempo ser medida por índices dos juvenis começara. Tinha tempo. sua vida. Aqui, o futebol é trata- intrínsecos ao mundo do futebol, É verdade que estava chegando gen- do, através de um narrador em o que faz gerar outra coincidência te pra ‘xuxu’. Mas o Maracanã era terceira pessoa, por um dos seus digna de nota, o mundo existen- grande – o maior do mundo! Tinha aspectos sociológicos mais con- cialmente significativo interior lugar pra todos. Pena é que não esti- troversos. Como pura evasão, por do personagem ser aferido pelos vesse acabado, tão feio por fora, que assim dizer, como “fuga do real, dados do mundo exterior do bo- não dava idéia do que era por dentro. representação imaginária”, o que, lapé, como diriam os escritores Não deviam deixar estragar aquela nas palavras do historiador Hi- dos tempos primevos do futebol. beleza... lário Franco Júnior,* inevitavel- Exemplos: mente o liga ao mundo das artes, Esse ir e vir do tempo na cabe- do cinema, do teatro, da literatu- Que é isso, Luiz, estás ficando ve- ça do personagem, sempre pon- ra; por esse traço do campo artís- lho? Vê lá se tu és torcedor de cadei- tuado por índices externos afeitos tico não se diferenciando dele de ra. Então estás esquecendo o teu pas- ao universo do futebol (por exem- c

| João Pessoa, fevereiro de 2016 26 Correio das Artes – A UNIÃO 6 jogada de letras c plo: a datação da história sendo outra das suas maiores falhas: feita pelos nomes dos jogadores PARA SABER MAIS o tomar um paradoxo fundante daquele Fla-Flu, ou pela visão do do futebol (a sua fascinante ca- Maracanã ainda em construção Dias da Costa nasceu racterística de juntar opostos, ou para abrigar jogos da Copa de 50 em Salvador, Bahia, em sociologicamente falando, a sua no Brasil), é um recurso narrativo 1907. Foi redator, no Rio de constante estrutural de unir ale- bastante feliz para um tema que Janeiro, das revistas Pã e gria e tristeza, local e universal, tem no seu aspecto mítico um Leitura. Publicou os volu- individual e coletivo, por exem- apelo bastante forte para captar a mes de contos, Canção do plo) para “resolvê-lo” literaria- atenção afetiva do leitor: beco (1939) e Mirante dos mente de forma ortodoxa e não aflitos (1960). Deixou um paradoxal também, como sime- Esperou que os quadros se ar- legado literário pequeno, tricamente exigiria, a meu ver, rumassem e ficou contente de ver o mas expressivo, merecendo essa dimensão antropológica do Flamengo completo. Não faltava nin- sua obra estudo de avalia- tema. Pode-se antever literalmen- guém. Ari embaixo dos paus, Joubert ção crítica. O conto “Uma te isso pela leitura do segmento e Pavão na zaga, os médios mais na vez Flamengo...” foi, ori- textual imediatamente anterior frente, Jadir, Dequinha, e Jordan, ginalmente, publicado na ao seu desfecho: e mais espalhados, no centro, Joel, coletânea Dias da Costa Moacir, Henrique, Dida e Zagalo. conta histórias do Mirante Um grande clamor elevou-se nos Olhou para o outro gol e viu Castilho dos Aflitos, publicada por ares nesse instante. Os morteiros no arco, o homem da ‘leiteria’, Cacá e Gumercindo Rocha Dórea explodiram na tarde clara, mulheres Pinheiro – arrumados como Joubert e Editor, em 1943, com o títu- gritaram histéricas, a charanga tou- Pavão do outro lado. Aquilo era boni- lo, De tarde e domingo: um cou alto, e o estádio se agitou sacudi- to, sim, era de deixar a gente maluco, conto de futebol. Já com do num pandemônio. E os locutores esquecer tudo. Já uma vez ele tinha o título de “Uma vez Fla- anunciaram nos seus microfones o dito: ‘Para mim três coisas no mundo mengo...” foi inserido na gol do FLAMENGO. são sagradas – minha mãe, a memó- coletânea Contos brasilei- ria do doutor Getúlio e o Flamengo. ros de futebol, organizada Ressalvando que mulheres por Cyro de Matos e publi- não só gritam quando histéricas, Pois bem. Das três coisas sagra- cada pela Editora LGE, de mas também de alegria inconti- das para o personagem-torcedor, Brasília, em 2005. da, assim como esse outro clichê o Flamengo de Dida, Dequinha linguístico do “grande clamor e Pavão, assim como a memória elevar-se nos ares nesse instante”, do doutor Getúlio, são realidades não preciso lembrar, pelo que foi perfeitamente datadas que si- dito no início desta resenha crí- tuam efetiva e afetivamente o lei- lhança interna plenamente sus- tica, de que instante está-se tra- tor num tempo por volta do final tentável, o que não é o caso deste tando aqui para encerrar o conto. da década de quarenta, início dos causo. Previsibilidade plena. E assim cinquenta, época muito cara na Por fim, usei a expressão “sur- como para o bom jogador no fute- memória histórico-afetiva-cultu- preendentemente previsível” bol, o que se deve exigir do bom ral brasileira. E quem não se en- para classificar o desfecho final escritor de estórias curtas é um volve com uma narrativa que de deste conto de Dias da Costa, bom grau de imprevisibilidade maneira relativamente bem reali- para intencionalmente indicar no trato com a palavra-bola. I zada não desenvolve esse apelo? Para encerrar, desçamos ao lado, digamos, não muito bem re- solvido da narrativa. Esse mesmo passar do tempo tomado na sua função diegética, isto é, na sua tarefa de fazer avançar as ações da história de modo que culmi- nem com o seu desfecho, é aqui exposto de modo bastante lugar- -comum, prejudicando o efeito de sentido do conto, tornando- -o de final surpreendentemente previsível, o que, para a tessitura de uma estória curta, é absolu- Edônio Alves é jornalista, poeta e tamente injustificável. A não ser professor de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba. que haja uma razão de verossimi- Mora em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 27 6 livros

Fotos: divulgação A instrução da noite EXCERTO DO ROMANCE DE MAURÍCIO DE ALMEIDA, LANÇADO ESTE MÊS PELA EDITORA ROCCO

Capa do romance de Maurício de Almeida, publicado pela Editora Rocco, do Rio de Janeiro

Maurício de Almeida cria metáforas ro neste quarto um gatilho de inusitadas para memória que me convença ser o falar, à sua maneira, da homem feito que sou e prove que condição humana estou vivo entre esses tantos fan- tasmas que é o pai me culpando pelo dinheiro que eu não tenho, a mãe me negando cuidados, Ali- ce me ignorando num sono, você me assombrando em abandonos. uero acender um cigarro e ter ao menos a proteção Palmilho o tropeço num par da nicotina e o acolhimento intermitente e diminuto de sapatos, apalmo a lisa planície da brasa para não me abater nessa transfiguração do tampo da escrivaninha po- confusa de tudo que habita esse quarto (a cadeira voada por pequenos objetos, um dançando infestada de sombras, o armário exibindo edifício regular de livros, a ma- as roupas penduradas em cabides, um exército de deira fria da cadeira, a reconfor- fantasmas estampados, espectros de lantejoulas e tante aspereza de tecidos postos Q miçangas) enquanto ando esmerando calma, certe- sobre seu respaldar. Entretanto, za que um pouco de luz minguaria o breu reinven- as roupas não têm meu cheiro, os tando terrores, dando-lhes proporção. No entanto, sapatos não cabem nos meus pés, toldando-me no silêncio e na prudência de ações desconheço os livros que toco e controladas, fecho a cortina, tiro minha camiseta e os outros que quase não vejo mas a estendo ao pé da porta para que nenhuma fresta que repousam enfileirados na es- me faça possível aos olhares atentos dessas pessoas tante, amparados por uma car- que desconheço nos retratos espalhados por todo o ranca enfezada, separados por quarto (as fotos que Alice faz incessantemente como um largo peixe talhado em ma- se estivesse em busca de alguém) pois sei que me deira e um ramalhete de flores julgam em desconfiança não só por atrapalhar o secas. Perdido nessa empreitada sono de Alice, mas também devido aos movimen- ridícula, me aventuro em outros tos que acontecem ríspidos por conta da ansiedade lugares e, quase ao lado da cama, com que busco algo que me afeiçoe e no qual eu me descubro uma bolsa que boceja reconheça. Dedicado outra vez a vestígios, procu- os papéis desorganizados dentre c

| João Pessoa, fevereiro de 2016 28 Correio das Artes – A UNIÃO c os quais encontro uma máquina de compreensão e afeto: o ímpeto de fotográfica que pego com raiva. acordá-la deve-se ao fato de imaginá- Detesto o olho arregalado dessa -la tomando minhas mãos para beijar lente, Teresa, porque há muito escoriações e dizer tempo Alice se punha a me foto- – calma grafar ajeitando-se na cama com o propó- – sorria sito de me aceitar no colo, os dedos e meu rosto compunha retra- traçando caminhos aleatórios no meu tos desagradáveis (traços desar- cabelo, eu aninhado a ela sentindo se- mônicos, olhos desalinhados, gurança ao ouvi-la um sorriso no canto da boca) – calma retratos que pioravam à medida indefinidamente. Risível, eu sei. que ela se impacientava, Alice Que pode Alice além de me aturar por trás da máquina já quase a por não ter aonde ir ou quem a sus- contragosto, eu fingindo natura- tente, ela, que depois daquela noite lidade até brilharem dois ou três de uísques e perversidades pediu-me flashes e ela balançando a cabeça para ficar porque não tinha como pa- – não ficaram boas gar o aluguel, o pai doente em sei lá almejando outros rostos na que cidade, a mãe morta ou perdida métrica perfeita dos ângulos no mundo? E mesmo ciente dessas certos, olhos e bocas em sorrisos contrariedades, envenenado por im- fáceis, ela encantada com feições pulsos diabólicos e movido pela pos- graves, barbas por fazer moldan- sibilidade de tê-la devota, escapa-me do mandíbulas, olhares propon- boca afora do enigmas, esses estranhos que – Alice? ainda me observam. Desalenta- e de pronto fico arrependido ao vê- do por jamais satisfazê-la, sem -la virando-se a mim e aquele ar ao esforço imaginava redor dos olhos que é um sarcasmo (como agora imagino) duvidando da minha virilidade, ela Alice satisfeita ao esquadri- menosprezando-me ao chão como se nhá-los, ela dizendo a eles todos eu implorasse uma atenção há muito – sorria perdida, absolutamente oposto à se- com a boca entreaberta como gurança do siso de mandíbulas e bar- nos autorretratos que ela tem bas, aqueles estranhos. numa caixa ao alto dos vestidos, Repreendo-me na expectativa de um maleiro repleto de Alices que ela não acorde, a respiração pro- Que pode com os ombros nus sugerindo funda, as mãos arranjadas em ora- nudez, uma sedução implacável ção sob o rosto, Alice volta a dormir. Alice além de que nunca vi senão nessas fotos Quanto a mim, conformado de que que por vezes roubo, o prazer ilí- jamais encontrarei coisa alguma que me aturar por cito de tê-la em poses e olhares. me comprove vivo, o homem feito Porque, numa impertinência do que nunca fui, ressinto ao aceitar que não ter aonde tempo, restam a deterioração do não adiantaria desnudar o armário que fomos e mais nenhuma gar- de roupas, destruir as estantes aguen- ir ou quem a rafa de uísque nem a dedicação tando os livros e revirá-los num es- dela sobre mim em toques, só forço, esse tormento só catalisaria a sustente, ela, a boca desferindo palavras in- claridade que há de me expor enlou- transigentes como se mordidas, quecido e aniquilado. Por isso, mal- que depois os olhos dela não pro- curando grado o inoportuno dessas vontades, mais fotos no meu rosto como se tiro a roupa, deito desperto e distante daquela noite me previssem desfigurado e con- do sono e, à sorte de desfechos, me fuso, nenhum retrato meu pela dedico atento ao delicado rumor das E de uísques e casa. árvores chovendo depois da chuva. Aos pés da cama, inflamado perversidades pela rejeição, observo a silhue- ta dela dormindo indiferente a tudo que aconteceu e me sinto pediu-me para estúpido por essa vontade de acordá-la em violência, enchê- Maurício de Almeida é escritor e ficar porque -la de gritos sujos de asserti- antropólogo. Foi vencedor do Prêmio vidade, num impulso doentio Sesc de literatura 2007 com o livro de não tinha como contos Beijando dentes e lançou este pegá-la aos chacoalhões, pois mês, pela Rocco, A instrução da noite, sei que esse arroubo nada mais seu primeiro romance. Nasceu em pagar o aluguel é que uma inevitável esperança Campinas (SP) e reside em Brasília (DF).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 29 6 artigo 1

Fotos: internet

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1 - Olga Savary 2 - Adélia Prado 3 - Astrid Cabral Quedê 4 - Lenilde Freitas a primeira poeta da Casa 5 - Maria Lúcia del Farra de Machado de Assis? 6 - Alice Ruiz 7 - Maria de lourdes hortas Diego Mendes Sousa 8 - Myrian Fraga Especial para o Correio das Artes 9 - yeda prates 10 - Maria Carpi c

| João Pessoa, fevereiro de 2016 30 Correio das Artes – A UNIÃO c de voos longínquos e/ou ilhados. de um atlântico de infâncias e A poesia abraçou muitas Começo sensibilizado com lembranças, entrego a tecelagem mulheres brasileiras durante o Astrid Cabral (1936-; cânon: De extremamente literária de Maria século XX, damas eruditas que déu em déu), cuja principal qua- de Lourdes Hortas (1940-; cânon: redefiniram a linguagem e a lidade é ser uma soberana alma Relógio d’água), portuguesa mais alma da língua. São perfis co- do rio, vivente da água doce, de pernambucana que conheço. moventes e peculiares, de sóis onde extrai suas sendas e ala- Se a contenção é uma forma de e chuvas, que credenciaram o medas. Sigo o erotismo de Olga alumbramento, leio sempre os si- humanismo na chama das suas Savary (1933-; cânon: Repertório lêncios de Alice Ruiz S (1946-; câ- vozes clarividentes: Gilka Ma- selvagem), paraense, vermelha non: Navalhanaliga); e navego na chado (1893-1980), Cecília Mei- dos magmas de sua explosão in- lua imaginária de Denise Emmer reles (1901-1964), Adalgisa Nery terior. Merece anunciação cuida- (1958-; cânon: O inventor de enig- (1905-1980), Henriqueta Lisboa dosa a paraibana Lenilde Freitas mas), que ilumina o céu de Ipane- (1901-1985), Dora Ferreira da (1939-; cânon: A corça no campo), ma ou do Irã; e as frutas e os le- Silva (1918-2006), cujo horizonte plana a sua corça gumes de Maria Lúcia Dal Farra (1930-2004), Adalcinda Camarão de saltos belíssimos. Da Bahia, (1944-; cânon: Livro de auras), que (1914-2005), Marly de Oliveira vem a encantadora realeza de experimentam formas novas de (1935-2007), Orides Fontela (1940- Myriam Fraga (1937-; cânon: Ma- dizer o perecível nos poemas. 1998), Jacinta Passos (1914-1973), rinhas), exemplar a cada mani- Estudiosa, alfabética e prelimi- Lupe Cotrim Garaude (1933- festação de seu lírico universal. nar a cada raio de sua inteligência 1970), Helena Kolody (1912-2004), Pelo centro do palpitar do país, é Leonor Scliar-Cabral (1929-; câ- Cora Coralina (1889-1985), Lara encontro a formidável metafísica non: Sagração do alfabeto). de Lemos (1923-2010), Celina Fer- rilkeana de Darcy França Denó- Proponho ao leitor destas li- reira (1925-2012), Zila Mamede frio (1936-; cânon: Amaro mar) e nhas, que sugira mais um nome (1928-1985), Leila Echaime (1935- descendo um pouco mais, che- de elegância e essência (Maria 2013), Lélia Coelho Frota (1938- gando a Minas, revejo a filosofia José Giglio, Vera Pedrosa, Leila 2010), Yêda Schmaltz (1941-2003) alada de manhãs e tecidos de- Míccolis, Raquel Naveira, Da- e Déborah Brennand (1927-2015), sérticos de Lina Tâmega Peixoto lila Teles Veras, Vera Lúcia de dentre outras de olhares diversos (1931-; cânon: Água polida), até Oliveira, Carolina Ramos, Te- e múltiplos. Todas, nomes inatos cair no mar de cantos e assom- rêza Tenório, Lourdes Sarmen- em permanência. bros de Yeda Prates Bernis (1926-; to, Alice Spíndola, Marita Vi- Em sua história centenária, a cânon: O rosto do silêncio). nelli, Lucila Nogueira, Mirian Academia Brasileira de Letras Do Rio de Janeiro, na vida ace- de Carvalho, Janice Japiassu, (ABL) abrigou oito escritoras: lerada de suas paisagens paradi- Rita Moutinho, Thereza Chris- (romancis- síacas, miro o vulto emblemático tina Rocque da Motta, Cláudia ta), Dinah Silveira de Queiroz de uma Stella Leonardos (1923-; Ahimsa, Ana Miranda, Maria- (romancista), Lygia Fagundes cânon: Geolírica e outros 249 títu- na Ianelli, Sonia Sales, Angéli- Telles (romancista), Nélida los de alta vocação) ou a finesse do ca Torres Lima, Maria Helena Piñon (romancista), Zélia Gattai amor incansável de uma Marga- Chein, Neide Archanjo, Regina (romancista), Ana Maria Ma- rida Finkel (1929-; cânon: No tear Lyra, Aglaia Souza), porque te- chado (romancista), Cleonice dos ventos). Mas quero o absinto nho pleno medo de ser injusto. Berardinelli (professora e pes- das palavras recolhidas na visão Caberá aos quarenta admi- quisadora) e Rosiska Darcy de de Renata Pallottini (1931-; câ- ráveis imortais da nossa Aca- Oliveira (cronista). Nesta conta non: Arcos da memória); as peque- demia Brasileira de Letras - em primacial, falta o primeiro gran- ninas peças de uma inspiração uma oportunidade futura - dig- de nome feminino da poesia incomum nos átomos de Eunice nificarem o seu nobre lar, com brasileira para representar, na Arruda (1939-; cânon: É tempo a lucidez de uma dessas poetas Casa de Machado de Assis, a de noite); e o mel de pelagens da originais, que transcrevo reso- força da mulher poeta. Quedê? paranaense Dirce de Assis Ca- luto e fiel à pena que constante- valcanti (1932-; cânon: O livro dos mente releio, coração comovido, Arrisco-me a apresentar vin- I te autoras atuais fundamentais, mistérios), a escultora Daja, cor- que se amplia. que construíram obras sólidas e pórea no sangue e na glória, uma expressivas, minadas de imagé- voz renascida. tica e criatividade, que são abso- Como a memória é uma ins- lutas em seus destinos com a pa- crição de Deus e os símbolos, lavra, razão maior de suas vidas. um tapete da fé, por que não Do norte ao sul do Brasil, elas sagrar Adélia Prado (1935-; câ- Diego Mendes Sousa é escritor, non: Bagagem)? E sobre a bele- jornalista, documentarista, promotor levantam dicções díspares, so- cultural e blogueiro literário. lares ou noturnas, luzeiras ou za geral da dor de Maria Carpi Publicou, entre outros, os livros anímicas, sempre evidenciando (1939-; cânon: A força de não ter Divagações (2006), Metafísica do claridades de seus corações ávi- força), essa pampiana de luz, la- encanto (2008), Alma litorânea teja as esfomeadas sementes do (2014) e Tinteiros da casa e do dos de sonho e desejo. Poetas gi- coração desertos (2015). Mora em gantes, singulares, que são aves extraordinário. E na atmosfera Teresina (PI)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 31 6 artigo Fotos: reprodução/nternet

Charles Bukowski (1920- 1994) é um dos escritores mais associados a um “estilo ébrio” de escrever

não seja lá grande coisa, mas Nem todo poeta é que, sob determinadas circuns- tâncias, possam trazer uma luz ou lenitivo para alguém sobre- carregado e desorientado. A questão é a seguinte: sem- pre que leio as crônicas literárias, artigos, resenhas, alguém me insinua que é no fogo acalorado boêmio das mesas de bares que se forja a nata da intelectualidade tupini- PARA quim e alhures... Sim, até mesmo nos portentosos salões da fidal- ALGUNS guia romanesca, as noites são regadas (e as almas renegadas) A VIDA É UM PRÊMIO por finos e traiçoeiros licores, gin, vodca, uísque... em que con- correm farrapos humanos sob a Gilmar Brasileiro roupagem aristocrática. Especial para o Correio das Artes Esta minha cisma intensifi- cou-se ultimamente depois de algumas leituras etílicas, pouco retilíneas, que me adentraram Algo me inquieta já há algum as narinas, sem perturbar-me tempo e que de certa forma de- os passos da jornada. Trata-se sencoraja-me do costumeiro há- de textos já publicados outrora bito de escrever (...) mesmo que – porém, a bebida é atemporal e c

| João Pessoa, fevereiro de 2016 32 Correio das Artes – A UNIÃO c parece ter o dom da ubiquidade mesmo, sem trema) e sem tremer vez mais ao paladar insípido da – sobre a boemia dos poetas ro- as mãos e cozer o fígado. crítica literária. mânticos, em especial Álvares de Antigamente, certa elite inte- Outra matéria que me cha- Azevedo, o qual fora acometido lectual até ensaiava um tal “Chá mou a atenção foi sobre o “me- de tuberculose e morreu prema- da tarde”, mas parece que as er- nestrel” Virginius da Gama e turamente, exclamando: “Que vas eram um tanto sedativas, coi- Melo (Correio das Artes, edição fatalidade, meu pai!”. sa de mulher, e a intelectualidade de agosto de 2015), com seu ca- Outro artigo recente, aqui precisava de algo mais quente, risma aglutinador da ”juventu- mesmo no Correio das Artes, edi- que mantivesse a mente aberta de transviada” dos anos 50/60, ção de outubro de 2014, sobre o para outras novidades, além da a nata pensante e pulsante em “Panorama Literário de Campi- vida deserta das univer(Sali)da- volta das mesas da Churrascaria na Grande”, em que aparecem des ou para preciosas confabu- Bambu ou do Cassino da Lagoa, os intelectuais na... “Fruteira de lações, alerta para altas inspira- dava suas “aulas extras” – uma Cristino”. Não sei se por ironia ções, contanto que não fosse do extensão da academia – uma ver- ou se “fatalmente” o tal Cristi- céu tão altas, pois poeta que se são moderna, caricatural, de um no “progrediu” de sua primitiva preza...” ajoelha, mas não reza”. Artur da Távola redondamente quitanda aos auspícios da Dro- Nada de arroubos metafísicos, enganado quanto à mística do garia Etílica. Eis que a tal “Fru- êxtases, samadhi... “Estou pre- ser e da metafísica do corpo. Pre- teria” era justamente o ponto de so à vida e olho meus compa- feria a Física do copo. encontro da boemia letrada – sá- nheiros, eles estão taciturnos...” Talvez Sócrates ficasse rubori- bia? Não sei – a qual toda noite (Drummond). zado com a permissividade pue- profanavam seus fígados & Cia, Alguém depois teve a ideia ril dos novos pupilos (e mesmo com o etanol barato – caro tam- de propor um tal de “Café Filo- dos “mestres”) e até entenderia, bém fazia o mesmo efeito. sófico”, outra droga permissiva, de fato, se fosse o seu caso, o mo- Triste maneira de ganhar a porém, como o chá, permitiria tivo de sua causa mortis: “cor- vida, a do vendedor de drogas abrandar a crise de consciên- rupção da juventude”. (mesmo as lícitas)! Bem que se cia com a vantagem de deixar a Fiz estas digressões iniciais, poderia chamar, sim, Bar dos mente um pouco mais “produ- a fim de conjecturar sobre um Sucos, onde os nossos poetas tiva”. Com o tempo, verificou- aspecto que considero funda- “sábios” pudessem se confrater- -se que o tal café, já não tinha o mental relacionado à ontologia nizar com a consciência tranqui- mesmo sabor do grão filosofista da vida plena: a preservação da la (palavra de Maranhão - assim de antanho e restringia-se cada vida mesma como instrumento de serviço à humanidade, nossa missão nobre, mesmo que sim- ples e rotineira. E o escritor às vezes esquece que a vida é um dom precioso e desatina nos bares e cantinas, com suas can- tilenas, lamúrias e ladainhas... Vive enfeitiçado com sua pró- pria autoimagem – puro narci- sismo e hedonismo (deturpado) – que não enxerga o próprio corpo como maravilhosa engre- nagem biológica – um micro- cosmo formidável. Penso que os poetas deveriam estudar mais ciência e os cientis- tas, mais poesia. Porém, tudo isto é pouco se não transcender ao mero existencialismo niilista da falsa modernidade – o “Huma- no, demasiado humano”. Isto de sublimação é para poucos! Isto é para os que amam a vida, para os que a têm como um prêmio (Dharma); para aqueles que con- c

Vinicius de Moraes (1913- 1980), além de exímio sonetista, era um fumante e bebedor de uísque inveterado

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 33 c servam a “mente sã em um corpo são” e me parece que, definitiva- mente, o álcool não combina com essa assertiva milenar. O escritor é uma antena de seu tempo. É imperativo que cheque a ecologia do seu corpo e do planeta - sua extensão - que entenda e refute os agrotóxicos e transgênicos, que cultive a “poesia orgânica”, que tome ba- nho de sol, mar e chuva... sinta o sabor das uvas, sem capas e luvas... espalhe cultura viva, vi- vida em suas páginas coloridas, com a mesma desenvoltura com que inventa estórias, fantasias, tece personagens, memórias em versos ou prosa. Enfim – não do – - algu Tennessee Williams (1911-1983) mas palavras sobre famosos be- era viciado em álcool e morreu berrões e abstêmios, que me caí- num quarto de hotel, engasgado ram nas mãos enquanto redigia com uma tampa de garrafa este artigo, através da revista Ga- lileu, edição de outubro de 2015 -, discussão entre médicos e sociólo- gos sobre a relação álcool e criati- fado” e acrescenta: “Metade de vidade na literatura. Conta-se que minha obra foi feita quando eu William Faulkner, que veio ao Bra- estava meio bêbado. E a outra sil em 1954, para um congresso de metade, quando estava meio só- escritores, bêbado, até no aeropor- brio”. Ressalte-se, contudo, que to, indaga: “Afinal, o que eu vim o poeta-filósofo Afonso Roma- fazer em Chicago?”. no de Sant’Anna, em rasgados Outros como Charles Bu- elogios ao poetinha, admite que kowski, Jack Kerouac, Edgar sua obra peca pela irregularida- Allan Poe, F. Scott Fitzgerald, -Er de, de altos e baixos e que talvez nest Hemingway, Tennesee Wil- sem o álcool fosse melhor. Tal é o liams, etc. vivenciaram verdadei- pensamento do ex-alcoólatra Ruy ras tragicomédias – semelhante Marguerite Duras (1914-1996) Castro e é dele a palavra final: “A a anterior - e as explicações são escreveu O amante e A dor e bebida não impediu que escri- também era conhecida como a várias e controversas para o con- tores alcoólatras fossem geniais. roteirista do filme Hiroshima, Mas é provável que sem o álcool sumo do álcool, onde o bar seria meu amor, de Alain Resnais uma espécie de “confessionário” eles fossem mais geniais.” profano e público para chorar as Então, um brinde com Suco desventuras amorosas, um antí- de Poesia Integral, direto do Bar doto para timidez, ansiedade e dos Sucos, a todos os sóbrios, depressão, predisposição genéti- naturistas e iluminados, trans- ca e até mesmo uma compensa- gressores do infinito, embriaga- dos de êxtase...... nos ção para a falta de dopamina, a I molécula do prazer, etc. Até mu- espaços azuis... lheres escritoras como Margueri- Aos poetas S. João da Cruz, te Duras não ficaram imunes às Dante, Virgílio, Goethe, estripulias de Baco e chegava a S. Francisco e Zé da Luz, esvaziar oito garrafas de vinho Zé Ramalho, Zé Limeira por dia, no auge da doença, de- Sóror Saudade, Terezinha de Jesus, pois que parou de beber escre- Pero Camões, Vaz por onde Caminha... veu sua obra-prima: O amante. Sozinhas, Marias das Dores na fila do SUS! No Brasil, temos também os famosos representantes do Gil Braz Campus, Parahyba, Outubro/2015. copo, como Graciliano, Le- minsky, Vinícius, ... Aliás, é de Vinícius a célebre frase: “O uísque é o melhor amigo do ho- Gilmar Brasileiro é poeta e servidor público federal. Tem participações em coletâneas. Nasceu em Gama (DF) e mora em mem, ele é o cachorro engarra- João Pessoa (PB)

| João Pessoa, fevereiro de 2016 34 Correio das Artes – A UNIÃO 6 scholia Milton Marques Júnior [email protected] A estrela cadenta

niciamos com uma advertência ao revisor e ao leitor: é exatamente isto o que vocês estão lendo – estrela cadenta! O título deste pequeno ensaio se justifica diante da celeuma provocada pelo termo presidenta. As ar- gumentações a favor do termo vão desde uma razão de seu registro na língua portuguesa até a afirmação da identidade de gênero, simples bajulação ou coisa que o valha. Poderíamos dizer em favor do termo que o sistema de nossa língua permite, tendo I em vista que existe governanta, ainda que com um sentido diferente do masculino governante. Tanto quanto poderíamos argu- mentar contra o termo de várias maneiras, evocando, por exemplo, o uso. É possível que passado o ímpeto revolucionário, sempre desejoso de inovar e de reinventar a roda, o termo caia em desuso. O verbo soer está devidamente documentado na língua e a última pessoa que o utilizou, segundo a minha falha memória, foi o poeta Camões. Vejamos o caso de governante/gover- nanta. Assim como presidente/presiden- ta, trata-se de um adjetivo verbal pro- veniente de um particípio presente. O fato é que o adjetivo se fossilizou e, com o passar do tempo, foi subs- tantivado. Em latim, o particípio presente é um adjetivo de segunda classe, uniforme. O que signifi- ca que há uma única forma para masculino, feminino e neutro. Assim, gubernans, gubernan- tis, o que tem o leme do navio, portanto, o que governa o na- vio, ou praesidens, praesiden- tis, o que preside ou que está sentado à frente, o que vela e protege, portanto, o que co- manda, o que dirige, o que preside, são aplicados aos três gêneros. O problema é que na evolução da lín- gua latina para a língua portuguesa, a uniformidade de gênero do particípio presente caiu em desuso e o termo subsistiu apenas em alguns adjetivos c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 35 6 scholia

c substantivados que se congela- está errado, apenas o uso faz soar ram: estudante, amante, pedinte, mal em nossos ouvidos. É óbvio ouvinte, mais modernamente ca- que, do ponto de vista etimoló- deirante, contribuinte, cadente, gico, a questão é mais complexa, decadente, conveniente... Cha- pois houve uma confusão dos mamos a atenção para o fato de termos eruditos aster, asteris, que evoluir não significa necessa- estrela, masculino no latim, com riamente progredir, avançar. Eti- o termo astrum, astri, neutro no mologicamente, tem o sentido de latim, de sentido mais amplo, abrir-se para fora (podemos, sim, designando estrela, astro ou céu. abrir para dentro!), expandir-se. O uso, no entanto, consagrou na Mesmo na evolução das espécies, língua corrente o vocábulo stel- não evolui o melhor ou o mais in- la, stellae, de onde provém di- teligente ou o mais bonito, mas o retamente estrela, embora a sua que se adaptou melhor às exigên- etimologia remonte aos termos cias da natureza. anteriores. De qualquer forma, Para ilustrar o que dissemos em latim seria aster cadens, as- a respeito do termo evoluir, vol- trum cadens ou stella cadens, temos a governante/governanta. sem mudança da forma do par- Enquanto a governante admi- ticípio presente. nistra uma casa e a mantém fun- Diante destes fatos, o que não cionando em ordem, o mesmo podemos fazer é obrigar, por não acontece com o governante. lei ou pelas injunções do, des- Como já nos referimos antes, o culpem, politicamente correto, termo governar vem do latim todos a dizer estrela cadenta ou gubernare, pelo grego kuber- chamar a presidente de presi- náw, com o sentido de dirigir o denta. Sobretudo porque a lín- navio, ter em mãos o timão, de gua tem seus caprichos e não dá comandar (interessante pensar muita importância à lei escrita que cibernética tem a mesma ori- dos homens. Ela se guia pelo gem...). O piloto é o kubernétes, uso, contrariando muitas vezes em grego, ou o gubernans, em o seu sentido original ou o que latim. Por mais que o navio este- se encontra nas regras grama- ja à deriva, no Brasil, ainda cha- ticais. Veja-se o motivo por que mamos quem o dirige de gover- não se pode obrigar todos a um O que não podemos nante... Já em relação a presidente/ determinado uso. O pronome presidenta, o termo vem do verbo todo, em latim, é omnis, omnis, fazer é obrigar, por praesideo, praesidere, que, como no nominativo singular. Quando sabemos, significa estar à frente o declinamos no plural, encon- lei ou pelas injunções e, por extensão, defender, pro- tramos no dativo e no ablativo a teger. A palavra presídio (prae- forma omnibus, que no primeiro do, desculpem, sidium, praesidii) é da mesma caso significa para todos; no se- raiz, mas não protege ninguém. gundo, por todos, com todos. De politicamente correto, Nem os que estão dentro, nem os omnibus resultou ônibus, que, que estão fora. A evolução destes por definição, é a única coisa que todos a dizer estrela termos, como vemos, não foi das é para todos e, ainda assim, nem melhores. No entanto, o uso é todos podem pagar uma andada que faz a palavra continuar exis- de ônibus. Trata-se, inclusive, de cadenta ou chamar tindo, mesmo que ela não corres- um fato singular. É a única situa- ponda a sua etimologia. ção em que uma desinência de a presidente de Não estamos querendo com caso transforma-se em substanti- isto dizer que as pessoas não po- vo – bus, buzu, busão. presidenta. Sobretudo dem ou não devem utilizar o ter- Enfim, presidente ou presi- mo presidenta. Acreditamos que denta, quando se trata de uma porque a língua tem fica a critério de cada um. Não mulher no cargo; estrela cadente há erro em utilizar um ou outro. ou estrela cadenta; a diferença seus caprichos e não Apenas ainda não estamos acos- entre governante e governanta, tumados ao uso. É como se de tudo vai ser estabelecido pelo dá muita importância repente alguém começasse, por uso e, ainda assim, nem todos uma afirmação de gênero, a - di vão obedecer. I zer estrela cadenta. A situação é a à lei escrita dos mesma, com a utilização do par- Milton Marques Júnior é professor ticípio passado cadens, cadentis da Universidade Federal da Paraíba homens. do verbo cado, cadere, cair. Não (UFPB). Mora em João Pessoa (PB).

| João Pessoa, fevereiro de 2016 36 Correio das Artes – A UNIÃO 6 conto

E se Jesus voltasse à Palestina?!

Rodrigo Caldas Especial para o Correio das Artes

s lágrimas correm pela face de Maria... Seu olhar de mãe contempla, com pesar reservado, a face do seu filho agonizante sob o sol cáustico da árida Judéia. Aquele corpo definhado, massacrado pela agressão de seus algozes, A banhado em sangue e feridas abertas, cozinhando sob o sol calcinante, desenha uma silhueta em forma de cruz. A cruz onde eram lentamente mortos os criminosos, os indesejados, os marginalizados da Judéia ro- mana. A pena de suplício era um símbolo do poderio de Roma, o maior império do planeta. Um império que detinha o poder de vida e de mor- te. Um império do tamanho do mundo, com suas legiões de guerreiros que conquistavam povos e estendiam as fronteiras da grande Roma sobre todos os povos da humanidade. “Deus salve Cesar”, o homem mais poderoso e afortunado sobre a terra. Mas aquele corpo frágil, agonizante, que transpirava sangue por todos os poros, estendia seus braços presos em uma cruz como que c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 37 c querendo abraçar toda a huma- nidade que, como ele, sentia dor, agonia, angústia e solidão diante do sol impiedoso e da morte que se avizinhava sem qualquer pu- dor. Sentia sede e fome, sentia-se abandonado por seus seguido- res, homens e mulheres que se- guiram os seus passos e escuta- ram suas pregações. Uma legião de homens, mulheres, velhos e crianças que acompanharam com admiração o rastro daque- le homem que falava em amor e misericórdia, em uma terra mar- cada pela seca, fome, sede, opres- são e ocupação por um inimigo estrangeiro e militarmente mais forte. Pregado em uma cruz, aquele corpo que se desintegrava, que se derretia em uma poça aver- melhada que tingia sua pele e se acumulava sob os seus pés com as marcas da opressão tatuadas sobre o seu corpo, expressava os seus últimos momentos nesse mundo, a dor de um Deus, um Deus que se crucificou, que se flagelou, que se permitiu cobrir com o manto da dor, para se fa- zer humano. Um Deus que se fez humano e deu sua carne e san- no teológico, o signo de um Deus mal saradas, vagando em sua gue em um ato de misericórdia, único. Um Deus que cobria a hu- propriedade. para redimir os pecados de uma manidade inteira, como a metá- - Hei! Heiii!!! O que pensa que humanidade inteira. fora de um Deus crucificado que está fazendo?! Essas são minhas Jesus morreu naquele dia, en- abraça toda a humanidade, em terras?! Você enlouqueceu?! tre dois ladrões, entre a blasfê- um ato derradeiro de misericór- O homem de aspecto sofrível mia e a piedade. dia. se volta em sua direção, prova- Maria, anônima e solitária, Entre o último suspiro de um velmente um andarilho palesti- chorou as lágrimas que se mis- Deus crucificado e a sua volta no, um mendigo sem abrigo de turaram ao sangue do seu filho ao mundo dos homens se passa- algum acampamento de refugia- morto... ram mais de dois mil anos, a hu- dos e provavelmente enlouqueci- As últimas palavras do ho- manidade explodiu demografi- do pela fome, pensou Abraão. mem foram: “Pai, por que me camente, hoje somos 7 bilhões, - Desculpe, meu senhor. Essas abandonaste?!” 4 bilhões só na Ásia. O mundo, são suas terras?! (Disse o homem A Palestina é como os roma- nesse intervalo de tempo viu a com voz amável em um tom de nos a chamavam desde o sec. II queda de Roma, o império mais admiração) da nossa era, mais precisamente poderoso e influente do mun- - Sim, são minhas, serão dos Syria Palaestina, a parte sul da do antigo, o florescer e a que- meus filhos, e desde sempre, se- província romana da Síria. Um da de outros tantos impérios, gundo as sagradas escrituras do território que ia da costa oriental a eclosão de guerras, mortes, povo escolhido, o povo de Israel. do mar mediterrâneo às frontei- genocídios e o gozo temporário - Eu só queria um pouco de ras ocidentais dos atuais Iraque daqueles que se acreditavam água... Estou sentindo muita e Arábia-Saudita. Compreen- senhores do mundo, um mun- sede, acho que tem uns dois mil dendo os territórios das atuais do que sempre se lhes escapava anos que não bebo... (Sorriu) Jordânia, Israel, sul do Líbano, por entre os dedos. O colono judeu o olha com faixa de Gaza e Cisjordânia. Foi Foi em um dia qualquer, em desconfiança... Aquele homem nessa terra que floresceu o mo- meio ao deserto, pedras e o calor é um palestino que veio pers- noteísmo, a crença em um único de um sol inclemente que um co- crutar suas terras, para depois Deus, a maior criação teológica lono de um assentamento judeu trazer sua horda de assassinos, da história que unificou todos os na Palestina viu aquele homem pensou... Depois de um breve homens, de todas as origens, ra- magro, solitário, feio e com o cor- silêncio o colono apontou uma ças e credos sob um mesmo sig- po coberto por marcas de feridas espingarda de dois canos para o c

| João Pessoa, fevereiro de 2016 38 Correio das Artes – A UNIÃO c forasteiro de aspecto repulsivo militarmente superior. e andrajoso e disse com feroci- O corpo de Ismael Moham- dade... med, 9 anos, é envolto na ban- - Você tem cinco minutos para deira palestina, banhado em sumir da minha frente, das mi- sangue, coberto de feridas, o nhas terras, eu juro por Deus que seu rosto conserva a expressão se não sumir em cinco minutos angelical de um anjo. Sua mãe, eu estouro seu crânio!!! Samira, cabisbaixa, chora a mor- Não muito distante dali, na te do filho em silêncio, já gritou, faixa de Gaza, uma mãe chora vociferou, suas lágrimas derra- a morte do seu filho. Era uma maram copiosamente, agora, seu criança de 9 anos. Ele foi morto choro era para dentro. O corpo em um ataque aéreo das forças de seu pequeno Mohammed foi militares de Israel na noite an- levado por uma multidão a gri- terior. Sua casa foi destruída, tar palavras de ordem contra o há meses ela e seus outros três inimigo assassino de crianças. filhos não sabem o que é tomar O pequeno Mohammed estava banho, pois falta água. O alimen- jogando com seus primos no ter- to é racionado, ela é viúva, pois raço de casa quando uma bomba seu marido foi morto ao tentar lançada pela força aérea Israelen- cruzar a fronteira em busca de se os colheu de forma fatal. Em emprego, por um soldado de Is- meio aos escombros, o pequeno rael, há 2 anos. Mohammed teve sua alma pre- Gaza é uma estreita faixa de cocemente devolvida ao poleiro terra, apinhada por 2 milhões de das almas, seu pequeno corpo, almas oprimidas, desde a década vertido em troféu de guerra nas de 40, após o fim da Segunda- mãos e sob os gritos de seus com- -Guerra, os habitantes de Gaza patriotas. passaram a ser denominados de A noite caíra, as estrelas cinti- palestinos, um povo sem Estado, lavam em um céu claro e aberto, sem liderança, sem reconheci- onde podia se ver o traçado lumi- mento. Tendo como vizinhos os noso da via láctea. Abraão, após judeus, um povo historicamente a ceia, pensa na estranha visita perseguido, fundadores da mais daquele forasteiro magro, feio e poderosa tradição teológica do com o corpo coberto de marcas. ocidente, que após o genocídio de Contempla da sua janela, a larga 6 milhões de judeus em terras eu- propriedade, onde ele trabalha ropeias, resolveu regressar à ter- de sol a sol para plantar e colher ra prometida. Os palestinos, tão os frutos daquela terra sagrada, a dignos da mesma histórica e tão boa terra que desde o início dos perseguidos quanto, passaram a tempos estava reservada ao esco- dividir, por força da pressão da lhido povo de Israel. comunidade internacional, suas Aquele dia atípico o fez pen- terras com os judeus, terras essas sar... Trouxe à sua memória as que não bastavam para tantos ju- lembranças de seu pai, sobrevi- deus que chegavam de todas as vente do campo de concentração partes do mundo, que vinham de Sobibor, na Polônia. As histó- às terras da antiga Palestina para rias que ele lhe contava, sobre os criar um Estado novo, o Estado perversos soldados da Schutzstaf- de Israel. fel, a SS alemã. Das milhares de Aos poucos, os palestinos pessoas mortas nas câmaras de foram sendo empurrados para gás, do despojo de seus perten- aquela estreita faixa de terra, a ces, da existência desumana de Faixa de Gaza. Desde a guerra fome e opressão, onde o pedaço dos seis dias, onde Israel derro- de uma batata podre boiando no tou o Egito e os demais países esgoto era uma iguaria disputa- do mundo árabe e se apossou da a tapas por aqueles judeus e da Cisjordânia e empurrou os ucranianos sobreviventes ao ím- palestinos para aquele pequeno peto assassino da SS. gueto que se converteu na Faixa Abraão carregava na sua pró- de Gaza, um gueto como aquele pria carne aquelas memórias e de Varsóvia, onde, anos antes, os histórias. O extermínio da famí- judeus sentiram fome, sede e a lia de seu pai, onde este fora o força de um inimigo impiedoso e único sobrevivente e a sua fuga c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 39 c desesperada de Sobibor, onde seu era só o titular atual de uma pro- intolerância, de egípcios a nazis- pai fora um dos cinquenta a es- priedade que vai além de seu tas. Onde o sangue judeu foi der- capar com vida dentre centenas patrimônio, faz parte do patri- ramado e suas tradições negadas de fugitivos assassinados. Para mônio de um povo inteiro como pela ignorância e preconceito de Abraão a construção de um Es- condição de possibilidade para povos alienígenas. Seu tanque tado Judeu foi o maior feito da as gerações vindouras do povo cortava aquele solo pedregoso e história desde a fuga do cativei- escolhido de DEUS. seco, eclodia em disparos con- ro no Egito. Desde fins do sec. Abner é um militar do exér- tra um inimigo covarde que não XIX coexistia a doutrina racis- cito de Israel, Tzahal em hebrai- mostra o rosto e se esconde atrás ta que tinha no povo judeu seu co. Desde os dezoito anos, Ab- de sua população civil de velhos, alvo preferencial na Europa, e a ner segue aquele rígido regime mulheres e crianças. Abner é um doutrina sionista que pregava a militar. O exército de Israel é o militar que ora, jejua e conhece a reunificação do povo judeu no quarto mais poderoso do plane- Torá em todos os seus detalhes, a oriente-médio. Esse preconceito ta e é conhecido mundialmente poesia teológica reverbera sobre antissemita não foi uma inven- pelo rigor draconiano de seus o seu blindado que é a encarna- ção germânica, existia de forma treinamentos. Desde que aquele ção dos exércitos de guerreiros difusa por toda a Europa. Ele conflito eclodiu, Abner pilotava judeus, como o seu próprio nome aparece na literatura de Gogol, um tanque blindado, algo que sugere, como os exércitos do len- em Taras Bulba, romance que re- lhe dava orgulho e o fazia sen- dário rei Saul. trata a formação da identidade tir irmanado ao seu pai e avô. Desde que voltara ao mun- nacional ucraniana, onde o ju- Filho de Abraão sempre ouviu do em forma humana, Jesus só deu é descrito como um vilão. E as histórias de perseguições e encontrou fome, sede, guerra está presente também na escla- assassinatos contra o seu povo, e morte. Vagou pelo deserto, recida França, desde meados do sabia que cabia a ele a defesa de avistou o primeiro ser humano sec. XIX, onde parte considerável sua história, de seu povo e de após dois mil anos e recebeu de sua população apoiou a ocu- seu território. como cartão de visitas uma pação alemã nazista e colaborou O gigante de metal que corta- ameaça de morte. Se em sua com a deportação de judeus para va barreiras, arames e barricadas primeira passagem, Jesus en- campos de extermínio. em território palestino caçava os controu o oriente-médio opri- Aquela terra que hoje dava inimigos de sua estirpe, o Hamas mido pela ocupação romana, frutos foi semeada com o sangue era a própria encarnação de to- sendo perseguido, condenado, dos seus antepassados, Abraão dos aqueles séculos e séculos de torturado e assassinado. Em c

| João Pessoa, fevereiro de 2016 40 Correio das Artes – A UNIÃO c sua segunda aparição o filho encontra o olhar afável de Ma- mento para suas novas feridas, de Deus se deparou com uma deeha, a jovem e bela prostituta assim como aquelas que os ro- terra marcada pela discórdia, palestina. Ela lhe oferece água e manos tatuaram em sua pele há por radicalismo, insensibili- comida ao som das explosões do mais de dois mil anos. No olhar dade e muita violência. Se o exército de Israel e os zumbidos de Madeeha, Jesus encontrou império romano era coisa do dos foguetes do Hamas. um brilho de ardor, um ardor passado, o império da discór- Ahmed era jovem, impetuo- de uma mulher apaixonada e dia era coisa do presente. Por so e seu coração fervilhava em que o desejava. Jesus a conven- onde passou, dessa vez, Jesus um ódio atroz àquele que jul- ceu, com muita relutância dela, foi completamente ignorado, gava ser o causador de todos de que ele não poderia amá-la confundido com um andarilho os males, o diabólico Estado de como ela queria, pois era um ou um refugiado, de israelen- Israel. Com suas botas negras e Deus encarnado em forma hu- ses e palestinos não encontrou camisa verde, Ahmed era um mana, seu amor era um amor nenhuma receptividade. A pri- soldado do Hamas, uma orga- que iria além do desejo carnal, meira pessoa que dele se apro- nização política e filantrópica, era um amor pela humanidade ximou, o enxergou e resolveu nascida como o braço palestino inteira, ainda que essa mesma aplacar sua sede foi uma jovem da Irmandade Muçulmana do humanidade não o entendesse. palestina de 17 anos. Morena Egito. Uma organização política Ela também não o entendeu e de olhos negros e cabelos cas- que promove assistência social continuou apaixonada pelo ho- tanhos, ela, após semanas, foi na Faixa de Gaza e resistência mem que falava em amor, fé, o primeiro ser humano a falar armada a Israel. Seu objetivo é justiça e em um reino onde os civilizadamente com o filho do criar um Estado Palestino em últimos seriam os primeiros. criador após dois mil anos... seu território histórico, com Jesus, sentindo que tinha es- Madeeha era o seu nome, uma isso negando existência a Israel. colhido o momento errado para garota palestina de 17 anos, sem Ahmed foi treinado por organi- voltar, resolveu mais uma vez família e que vivia nas ruas de zações paramilitares, carrega adiar o reino de Deus na terra. Gaza desde os 10 anos. Sobre- no corpo e na alma os embates Sentia que os homens deveriam vivera pela indulgência e pelos contra o exército de Israel, é um antes encontrar sua paz inte- serviços que seu jovem corpo sobrevivente que não pensa em rior, a concórdia, mas em um prestava. Madeeha tinha uma outra coisa, senão destruir o Es- ato derradeiro, dois mil anos memória seletiva, dos pais não tado sionista que oprime o seu depois, Jesus seguido de Madee- recordava muito, apenas de uma povo, o povo palestino. ha se colocou como um escudo enorme explosão que jogara tudo Jesus andou entre o povo, humano, entre o exército de Is- e todos pelos ares. Vivia do lixo, falou de amor e misericórdia, rael e o Hamas, em meio a uma abrigando-se entre os escombros clamou para que todos os opri- multidão de famintos, desabri- e à noite aprendera a alugar o midos e insultados o seguissem gados, desiludidos de ambos os corpo em troca de comida. Ape- em seu reino de justiça e con- lados, Jesus caminhou por um sar de uma existência extrema córdia. Mas por onde passou, corredor de fogo, entre os fo- e oprimida, Madeeha conserva- do deserto, assentamentos ju- guetes do Hamas e os tanques va um estranho brilho no olhar, deus e Gaza, o filho do criador e baterias antiaéreas de Israel. um rosto lindo e moreno, aque- não encontrou seguidores. Só Entre o coração cheio de ódio la atmosfera de morte, dor e so- recebia aquele olhar de descon- do soldado Ahmed do Hamas e frimento parecia não subtrair o fiança ou, quando muito, um o orgulho salvacionista de Ab- brilho vital que a animava a so- sorriso zombeteiro. Jesus, em ner, o soldado de Israel, que pi- breviver a cada dia nas ruas to- Gaza, foi levado diante de uma lotava e assassinava através do madas por mendigos famélicos, liderança local, pois se dizia o seu tanque de última tecnolo- lixo e escombros na populosa rei dos judeus, o filho de Deus. gia. Jesus, desiludido, evaporou cidade de Gaza. O jovem Ahmed, guerreiro ar- no deserto da Palestina, deixan- Jesus sentia fome, sede e seu diloso de vários embates contra do atrás de si a indiferença da- corpo estava trêmulo de fra- as poderosas forças militares queles que não o ouviram, uma queza. Sem forças para cumprir de Israel, diante de Jesus não legião de exaltados que citavam a sua missão, o filho de Deus fez mais que ignorá-lo, orde- a Torá e o Corão e se explodiam sentia as forças o abandona- nando aos seus soldados que o de ambos os lados. No rastro de rem, não imaginava que seria espancassem e o jogassem para Jesus, só o olhar doce de uma um retorno tão difícil, após dois fora da cidade de Gaza, pois es- jovem prostituta pareceu enten- mil anos a humanidade não tava ocupado demais para tra- der sua passagem...I aprendera nada, todos os vícios tar com aquele famélico enlou- persistiam e agora eram ainda quecido e prestidigitador. piores. Entre os escombros do Jesus foi espancado, tortu- último bombardeio israelense rado e jogado na periferia de Rodrigo Caldas é advogado com à Gaza, o filho do criador cho- Gaza. Madeeha, a jovem pros- a atuação em direitos humanos e mestrando em direitos humanos, ra como chorou há mais de dois tituta, foi sua única seguidora cidadania e políticas públicas da mil anos no deserto. Seu corpo fiel. Em suas delicadas mãos o Universidade Federal da Paraíba. trêmulo e fragilizado pela fome filho do criador encontrou trata- Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, fevereiro de 2016 | 41 6 tramas visuais Lívia C o s t a