Patrícia Soraya Mustafa (Org.)

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS):

Brigada Ramona Parra, Chile, 1968

"Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência"

Câmpus de 2019 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Reitor Prof. Dr. Sandro Roberto Valentini

Vice-Reitor Prof. Dr. Sérgio Roberto Nobre

Pró-Reitor de Pesquisa Prof. Dr. Carlos Frederico de Oliveira Graeff

Pró-Reitora de Extensão Universitária Profa. Dra. Cleópatra da Silva Planeta

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

Diretor Prof. Dr. Murilo Gaspardo

Vice-Diretora Profa. Dra. Nanci Soares

Comissão Editorial UNESP - Câmpus de Franca

Presidente Prof. Dr. Murilo Gaspardo

Membros Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes Profa. Dra. Analúcia Bueno Reis Giometti Profa. Dra. Cirlene Aparecida Hilário da Silva Oliveira Profa. Dra. Elisabete Maniglia Prof. Dr. Genaro Alvarenga Fonseca Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz Engler Profa. Dra. Hilda Maria Gonçalves da Silva Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França Prof. Dr. José Duarte Neto Profa. Dra. Josiani Julião Alves de Oliveira Prof. Dr. Luis Alexandre Fuccille Profa. Dra. Paula Regina de Jesus Pinsetta Pavarina Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira Profa. Dra. Rita de Cássia Aparecida Biason Profa. Dra. Valéria dos Santos Guimarães Profa. Dra. Vânia de Fátima Martino Patrícia Soraya Mustafa (Org.)

V SEMINÁRIO DO GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISA EM POLÍTICAS SOCIAIS (GEPPS): “TEMPOS DE RADICALIZAÇÃO DE NEOLIBERALISMO: OS IMPACTOS PARA A SEGURIDADE SOCIAL BRASILEIRA E FORMAS DE RESISTÊNCIA” Anais do evento

Câmpus de Franca 2019 © 2019 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Franca

Contato Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP 14409-160, Jd. Petráglia / Franca – SP [email protected]

Diagramação e Revisão Laura Odette Dorta Jardim (DTBD) Sandra Aparecida Cintra Ferreira (STAEPE) Carlos Alberto Bernardes (STAEPE) Comissão Científica Comissão Organizadora Profa. Dra. Patrícia Soraya Mustafa Ana Caroline Vilioni Santos (Assistente Social) Profa. Dra. Raquel Santos Sant’Ana Bruna Bueno (discente de Serviço Social) Profa. Dra. Edvânia Ângela de Souza Lourenço Edilaine Aparecida dos Santos (Assistente Social) Profa. Dra. Onilda Alves do Carmo Jonorete de Carvalho Benedito (Assistente Social Prof. Dr. José Fernando Siqueira da Silva e Doutoranda em Serviço Social) Prof. Dr. Marcelo Gallo Patrícia Soraya Mustafa (Coordenadora GEPPS) Doutoranda Jonorete de Carvalho Benedito Pedro Endrigo Trejo Doutoranda Tatiane Ferreira dos Santos (Mestrando em Serviço Social) Mestrando Pedro Endrigo Trejo de Oliveira Rafael Pereira da Silva Alves (Discente de Serviço Social) Tatiane Ferreira dos Santos (Doutoranda em Serviço Social) Thomás André Vendrame Rodrigues (Discente de Serviço Social)

Anais do V Seminário do Grupo e Estudos e Pesquisa em Políticas Públicas (GEPPS) : “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” / Patrícia Soraya Mustafa (org.). – Franca : UNESP - FCHS, 2019. 373 p. ISBN: 978-85-7818-106-2

1. Serviço social – Políticas públicas. 2. Seguridade social – Brasil. 3. Neoliberalismo. 4. Estado. 5. Gênero. 6. Classes sociais. 7. Educação e Estado. 8. Relações trabalhistas. 9. Política econômica. I. Título. II. Mustafa, Patrícia Soraya. CDD – 361.61 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira – CRB8/8773 APRESENTAÇÃO Os Seminários do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Sociais (GEPPS) - vem sendo realizados de dois em dois anos, e seguindo esta regularidade, chegou neste ano de 2018 em sua 5ª edição. Trata-se de uma importante instância de debates científicos, com a participação de pesquisadores vinculados aos Programas de Graduação e Pós-graduação em Serviço Social e áreas afins, bem como profissionais que atuam nestas áreas do conhecimento, de Franca/SP e região. O V Seminário do GEPPS, realizado na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), câmpus de Franca, debateu o papel do Estado nos dias de hoje, de radicalização de neoliberalismo, e seus impactos para a Seguridade Social brasileira, temática que permeia pesquisas e o trabalho profissional dos assistentes sociais e afins. Este Seminário possibilitou por meio dos debates suscitados nas mesas, nas oficinas e nas apresentações de trabalhos científicos, o amadurecimento intelectual e cientifico dos participantes, bem como o intercâmbio de experiências do trabalho profissional, devido à densidade das reflexões trazidas em todas as instâncias do encontro. A socialização das pesquisas apresentadas neste Seminário, e agora publicadas neste Anais, cujos temas permeiam a temática geral da política social, contribuem para um debate permanente na área dos direitos sociais, especialmente na área da Seguridade Social, nos dias de hoje, os quais denominamos na temática geral deste V Seminário - de tempos de radicalização de neoliberalismo. Neste ANAIS, os leitores(as) poderão encontrar textos de distintos eixos temáticos: Estado e políticas públicas no campo e na cidade; Política social, classe, gênero e etnia; Política social e seguridade social; Política social educacional; e Trabalho e Política Social. No eixo “Estado e políticas públicas no campo e na cidade”, temos pesquisas que analisam: o combate global aos agrotóxicos; as implicações da ofensiva neoliberal para as políticas sociais no tempo presente; os limites e desafios da política de assistência social, num cenário neoliberal, no atendimento à população em situação de rua; a cidade como mercadoria na lógica de acumulação do capital. Em outro eixo: Política social, classe, gênero e etnia, os trabalhos refletem sobre as implicações do neoliberalismo para políticas sociais voltadas às pessoas trans, e as marcas das relações sociais de sexo na política de assistência social. No debate acerca da Política social e seguridade social, há trabalhos que refletem desde uma análise de políticas sociais, com recorte de geração (idoso); outros que debatem sobre a seguridade social brasileira, conceitualmente, seu financiamento, e políticas de seguridade específicas: a assistência social e a saúde, sobretudo. Na área da saúde, temos pesquisas sobre o financiamento da política de saúde brasileira, sobre os determinantes sociais da saúde, outros que relacionam saúde com as condições de trabalho dos trabalhadores, e um que analisa o processo de americanização da saúde no Brasil. Há ainda ensaios que evidenciam o processo de judicialização cada vez mais corriqueiro, uma vez que quando se tem parcos direitos sociais os indivíduos se atomizam e buscam uma tentativa de efetivação solitária de direitos que cabe lembrar são sociais. Sobre política social educacional apenas um trabalho foi apresentado e agora se publica aqui, o qual versa sobre a contrarreforma no ensino superior, evidenciando os reveses pelas quais as universidades vêm passando em tempos de neoliberalismo. E por último, no eixo “Trabalho e Política Social” podemos observar pesquisas acerca da saúde do trabalhador, de condições de vida de trabalhadores rurais de setor cafeeiro, e sobre o trabalho profissional de assistentes sociais em município de pequeno porte e numa Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), neste último reflete-se sobre a precarização do trabalho neste espaço. Pois bem, convidamos a todos(as) a apreciarem estas pesquisas aqui publicadas e a continuarem conosco no fomento a este tipo de debates. Até o próximo seminário, rumo a 2020! SUMÁRIO

EIXO TEMÁTICO: ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO CAMPO E NA CIDADE

GOVERNANÇA GLOBAL DOS AGROTÓXICOS: MOVIMENTOS INTERNACIONAIS DE COMBATE AOS AGROTÓXICOS E A CONSTRUÇÃO DO PROJETO DE LEI 891/2013 DO ESTADO DE Henrique Freitas Alves...... 13

REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO E AS IMPLICAÇÕES PARA AS POLÍTICAS SOCIAIS: QUEM PAGA “O PATO” COM A OFENSIVA NEOCONSERVADORA de Souza Vieira Junior Camile Alves Cezar...... 33

OS LIMITES E DESAFIOS DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DIRECIONADA À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO CONTEXTO DE NEOLIBERALISMO Laís Caroline Neves Andréia Aparecida Reis de Carvalho Liporoni...... 49

A CIDADE-MERCADORIA: A LÓGICA DA ACUMULAÇÃO DO CAPITAL Márcia Maria Cunha...... 61

EIXO TEMÁTICO: POLÍTICA SOCIAL E SEGURIDADE SOCIAL

PERSPECTIVA DA SEGURIDADE NO CONTEXTO DO SERVIÇO SOCIAL Amanda Gabrielle Osório...... 77 ENVELHECIMENTO E ASSISTÊNCIA SOCIAL: A CONTRIBUIÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL E DO SCFV NESTE CONTEXTO Bruna Alves Gazeta Camila Barbosa Vieira Daiana Cristina Nascimento...... 91

“AMERICANIZAÇÃO” DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL: UMA INVESTIGAÇÃO DESTE PROCESSO NA ATUALIDADE, TENDO COMO REFERÊNCIA A AUTORA WERNECK VIANNA Bruno Bertazzi...... 107

PARTICIPAÇÃO E CONTROLE SOCIAL DOS USUÁRIOS DO SUS NO CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE ITUVERAVA/SP Edilaine Dias Lima...... 123

A JUDICIALIZAÇÃO, A PENETRAÇÃO DO CAPITAL NA VIDA SOCIAL E O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL Fernanda de Castro Nakamura...... 137

O SISTEMA DE SEGURIDADE SOCIAL NO BRASIL: ENTRE A UNIVERSALIDADE E A EFETIVIDADE Fernanda de Castro Nakamura...... 147

SERVIÇO SOCIAL E SAÚDE: REFLETINDO AS DEMANDAS PROFISSIONAIS NA SANTA CASA DE FRANCA/SP Gabriela Cristina Braga Bisco...... 157

A POLÍTICA DE SAÚDE NO CONTEXTO DO MUNDO DO TRABALHO Laís Vila Verde Teixeira...... 171 PROCEDIMENTOS TÉCNICO-OPERATIVOS DA PNAS, RESPONSABILIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS USUÁRIAS DA POLÍTICA E OS DESAFIOS PARA O SERVIÇO SOCIAL Luana Alexandre Duarte...... 185

O SUBFINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE SAÚDE E A NÃO EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DE UNIVERSALIDADE DO SUS Mariko Hanashiro...... 203

PREPOSTOS NEOLIBERAIS PARA SUA RADICALIZAÇÃO: UM BREVE OLHAR NAS CIFRAS PARA SEGURIDADE SOCIAL Pedro Dantas Menezes Zornoff Táboas...... 221

A JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS: PARÂMETROS PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA Renan Lucas Dutra Urban...... 241

DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE E SERVIÇO SOCIAL: REFLEXÕES SOBRE A SAÚDE NO BRASIL Zilda Cristina do Santos...... 255

EIXO TEMÁTICO: POLÍTICA SOCIAL, CLASSE, GÊNERO E ETNIA

OS IMPACTOS DO NEOLIBERALISMO SOBRE AS POLÍTICAS SOCIAIS VOLTADAS A PESSOA TRANS Bruna Beatriz Lemes Carneiro...... 273

A MARCA DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO NA ASSISTÊNCIA SOCIAL Patrícia Gomes Morandi...... 283 EIXO TEMÁTICO: POLÍTICA SOCIAL EDUCACIONAL

A CONTRARREFORMA DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL Letícia Terra Pereira...... 295

EIXO TEMÁTICO: TRABALHO E POLÍTICA SOCIAL

SAÚDE E TRABALHO NO SETOR CALÇADISTA EM FRANCA: UMA DISCUSSÃO A PARTIR DE UM GRUPO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA Edvânia Ângela de Souza...... 309

AS CONDIÇÕES DE VIDA DO/A(S) TRABALHADORES RURAIS DO SETOR CAFEEIRO DE SÃO TOMÁS DE AQUINO/MG Élica Batista dos Santos...... 325

A EBSERH COMO EXPRESSÃO DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO: UM ESTUDO EM UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO Nairana Abadia do Nascimento Gomes...... 341

POLÍTICAS SOCIAIS E DESAFIOS DO TRABALHO PROFISSIONAL: ANÁLISE DE UM MUNICÍPIO DE PEQUENO PORTE Ingrid de Sousa Vieira...... 359 EIXO TEMÁTICO: ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO CAMPO E NA CIDADE

GOVERNANÇA GLOBAL DOS AGROTÓXICOS: MOVIMENTOS INTERNACIONAIS DE COMBATE AOS AGROTÓXICOS E A CONSTRUÇÃO DO PROJETO DE LEI 891/2013 DO ESTADO DE SÃO PAULO *

GLOBAL GOVERNANCE OF AGROCHEMICALS: INTERNATIONAL MOVEMENTS TO COMBAT PESTICIDES AND THE CONSTRUCTION OF DRAFT LAW 891/2013 OF THE STATE OF SÃO PAULO

Henrique Freitas Alves ** RESUMO: O debate da governança global dos agrotóxicos se apresenta de suma importância no cenário internacional. As consequências do uso destes produtos para a saúde humana representam um grande conflito entre movimentos sociais transnacionais e o aspecto estatal e empresarial. Dessa forma, a pesquisa tem por objetivo analisar as iniciativas dos âmbitos local e global relacionadas ao combate do uso de agrotóxico na produção agrícola, abarcando os diferentes níveis de atores presentes no processo, bem como as estratégias de resistência adotadas. Será utilizado a análise da construção do Projeto de Lei 891/2013 de São Paulo, que prevê a proibição do uso e comercialização de 11 tipos de agrotóxicos dentro do município em questão, como referência para o estudo. Para tanto, além da análise bibliográfica de livros, artigos, relatórios e documentos oficiais, serão realizadas entrevistas semiestruturadas com os autores formais do projeto e com movimentos sociais envolvidos na formulação do Projeto de Lei para o entendimento completo da relação entre iniciativas globais e locais de resistência. Palavras-chave: governança. internacional. agrotóxicos. redes. movimentos sociais. ABSTRACT: The debate on the global governance of agrochemicals is of great importance in the international scenario. The consequences of using these products for human health represent a major conflict between transnational social movements and the state and business aspect. In this way, the research aims to analyze the local and global initiatives related to the use of pesticides in agricultural production, covering the different levels of actors present in the process, as well as the strategies of resistance adopted. The analysis of the construction of Draft Law 891/2013 of São Paulo will be used, which provides for the prohibition of the use and commercialization of 11 types of pesticides within the in question, as a reference for the study. In addition to the bibliographic analysis of books, articles, reports and official documents, semi-structured interviews will be conducted with the formal authors of the project and with social movements involved in the formulation of the Bill to fully understand the relationship between global and local initiatives. resistance. Keywords: governance. International. pesticides. networks. social movements.

INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA

O crescente uso de agrotóxico na produção alimentícia levanta importantes questões relacionadas à saúde humana e ao meio ambiente. * Iniciação Científica orientada pela Profa. Dra. Fernanda Mello Sant’Anna e subsidiada pela Fundação de Âmparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). ** Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Câmpus de Franca-SP.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 13 A utilização intensiva destes produtos demanda uma discussão entre os atores envolvidos e afetados no processo, quais sejam os Estados, organizações internacionais, movimentos sociais e sociedade como um todo. A necessidade de tal diálogo é latente, visto a quantidade de estudos relacionando o emprego de agrotóxicos na produção agrícola e a decorrente degradação ambiental, além das incertezas que permeiam seu impacto à saúde humana. Assim, o debate acerca da regulamentação da utilização de agrotóxicos envolve atores de diferentes níveis. Questões ambientais impactam não apenas no local específico em que ocorrem, e sim abarcam o âmbito global, uma vez que um desequilíbrio no sistema Terra é sentido em diferentes partes do globo. Portanto, ao analisarmos problemas relativos ao meio ambiente, é fundamental adotarmos tanto a perspectiva local quanto a global, e a maneira pela qual ambos estão intrinsecamente relacionados. Contudo, esta relação é por vezes conflituosa. A diversidade de valores, princípios, objetivos, estratégias e interesses entre os âmbitos local e global torna qualquer discussão acerca dos impactos ambientais extremamente complexa. A gama de atores que participam deste processo ultrapassa o âmbito estatal, abarcando organizações nacionais e internacionais, bem como os movimentos sociais e a sociedade civil. A atual interdependência do cenário internacional, mesmo sendo assimétrica, permite a criação de redes de resistência, como, por exemplo, os movimentos em defesa dos alimentos orgânicos e contra o emprego de agrotóxicos na produção alimentícia. Tais redes proporcionam a intensificação da relação local-global, propiciando o compartilhamento de estratégias e elaboração de novas, podendo partir do local ao global ou vice-versa. Dessa forma, é perceptível a lacuna existente na formação de uma governança ambiental internacional, sendo o estudo deste processo um dos objetivos da presente pesquisa. Utiliza-se o termo governança por nos referirmos a presença da diversidade de atores e de diferentes níveis (subnacional, nacional e internacional) na elaboração de uma política ambiental internacional que não seja imposta de cima para baixo, como veremos adiante. Um exemplo deste processo, e o principal objeto da pesquisa, é a criação do Projeto de Lei (PL) 891/2013 (NATALINI et al., 2014), no município de São Paulo, o qual previa a proibição do emprego e comercialização de 11 tipos de agrotóxico dentro do município. Contudo, é necessário entender a maneira pela qual tal projeto de lei foi pensado enquanto estratégia de resistência e proteção à saúde humana e do meio

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 14 ambiente restringindo a utilização de agrotóxicos, em um momento no qual o Brasil se encontra na posição de maior consumidor de agrotóxicos do mundo.

1 GOVERNANÇA AMBIENTAL GLOBAL

Cristina Inoue (2012) destaca o papel da governança global e como se constitui. Governança pressupõe a existência de múltiplo níveis no processo político decisório, ou seja, pressupõe a participação de diferentes camadas nas negociações, tais como os âmbitos nacional, regional e local. Além disso, a governança ambiental global predispõe a descentralização do Estado nas negociações internacionais, analisando que o Estado e a sociedade estão entrelaçados, o que inclui a participação de uma gama de atores sociais a fim de construir novos meios de governança (INOUE, 2012). Isso se deve ao caráter transnacional das questões ambientais. Dessa forma, ao se tratar de estratégias de combate à degradação, o multinível é imprescindível para uma análise completa do problema, uma vez que o local impacta no global e vice-versa. Contudo, os métodos utilizados na elaboração de políticas de governança ambiental global variam entre de baixo para cima, de cima para baixo ou em equidade. Paterson (2000) discute a relação da globalização com o surgimento de uma política ambiental global, a partir de uma perspectiva crítica. Opondo-se ao slogan “Pense globalmente, aja localmente”, Paterson analisa a maneira pela qual as políticas hegemônicas do capitalismo propagam-se por meio da globalização, uma vez que esta é estruturada para impor o discurso da homogeneização, de maneira a ocultar as diferenças locais (PATERSON, 2000). Dessa forma, Paterson (2000), sustenta a tese de que é preciso pensar e agir localmente, pois apenas consegue-se entender com a complexidade necessária aquilo que se conhece, ou seja, o local. A reorganização local pressupõe a superação da noção de Estado-Nação, substituindo-o pela disposição de comunidades menores autogeridas. Assim é possível romper com a estrutura capitalista global, refazendo-a de baixo para cima, do local ao global, a partir de princípios de equidade e com meios de produção ecologicamente sustentáveis (PATERSON, 2000). Para Paterson (2000), essa radicalização do local é a melhor forma de resistência frente ao sistema capitalista e seus atores, além de ser a única alternativa que realmente modifique a maneira de encarar as mudanças ambientais. Contudo, mais um ponto importante do pensamento

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 15 de Paterson é importante de ser ressaltado. Ainda que a globalização tenha o discurso homogeneizador, as redes de comunicação criadas por esta podem ser utilizadas enquanto mecanismos para articular os movimentos de resistência, buscando-se recriar uma globalização que não seja comandada pelo capital, ou seja, um espaço onde as grandes corporações não possam ditar as regras. Partindo de uma perspectiva similar de Paterson, Martinez-Alier (2002), analisa os conflitos ambientais locais e globais gerados pelo sistema capitalista. Martinez-Alier destaca o local enquanto foco dos movimentos de resistência frente ao sistema hegemônico. Argumenta, também, que as redes globais, em geral, são criadas pelos movimentos locais, contudo estes últimos agrega para si a força da articulação global e outras estratégias de resistência. Em uma análise mais abrangente, Adil Najam (2005) examina a relação Norte-Sul e os objetivos traçados dentro da política ambiental. Em síntese, a definição de Najam da dicotomia desta relação é sentida na medida que o Norte possui controle de seu próprio destino, enquanto os países do Sul perpassam entre estabilidade e instabilidade dependendo, muitas vezes, de fatores externos (NAJAM, 2005). Assim, no que concerne às políticas ambientais, as duas visões divergem. Enquanto o Norte busca o estabelecimento de normas e metas que não alterem a ordem internacional e as perspectivas de crescimento, os países do Sul adotam um olhar ao longo prazo, visando a mudança da estrutura internacional. Isso se coloca, pois, os países do Sul enxergam as alterações nas políticas ambientais como algo para o futuro, semelhante a perspectiva de mudança do sistema internacional (NAJAM, 2005). Portanto, o Sul, articulado enquanto um bloco, tem a pretensão de alcançar os objetivos da sustentabilidade na mesma medida em que se modifica a relação Norte-Sul (NAJAM, 2005).

2 MOVIMENTOS SOCIAIS E DEMOCRACIA

Castells (2013) analisa a atuação dos movimentos sociais em rede com a esperança de alterar os rumos atuais da democracia, buscando o aumento da participação social. Para tanto, define o conceito de poder, alvo de constestação principal dos movimentos sociais em rede. O poder é exercido pela coerção do monopólio da violência pelo Estado, que por sua vez têm suas instituições construídas a partir das crenças daqueles que detém o poder, que o fazem a fim de se perpetuarem

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 16 (CASTELLS, 2013). Tal estrutura é consolidada, entre outros fatores, por estarem presentes no pensamento das pessoas, ou seja, a legitimidade do Estado e suas instituições se dá pela construção de significado na mente das pessoas de que o governantes são capazes e responsáveis por regular os limites e moldes das relações da sociedade, e este é o principal alicerce de sustentação do poder. Mesmo com a coerção sendo determinante, o pensamento da sociedade, seus valores e normas que acabam por definir os rumos das instituições públicas. “Torturar corpos é menos eficaz que moldar mentalidades.” (CASTELLS, 2013). Dessa maneira, as relações de poder embutidas na sociedade são, como esta própria, conflitivas e contraditórias, portanto onde há poder também há contrapoder (CASTELLS, 2013). Assim, mesmo dentro do Estado e suas instituições existem espaços (contrapoder) a serem explorados pelos movimentos sociais em busca de uma inclusão da participação social de fato nas tomadas de decisão dos detentores do poder, e a luta por este último se concentra na comunicação, na (des)construção de significados na mente das pessoas. A comunicação é um fator chave na construção de significados no pensamento das pessoas, não à toa os canais de comunicação são tão disputados por Estados e empresas. Entretanto, a internet e as redes sociais se mostraram ferramentas imprescindíveis na divulgação visões contrárias ao imposto pelo status quo vigente. Apesar destas também não estarem livres de manipulação, vide os recentes escândalos relacionados à seletividade na divulgação de notícias no Facebook e o impacto nas eleições nos Estados Unidos, permitem a possibilidade da autocomunicação, como define Castells (2013, p. 16): É autocomunicação porque a produção da mensagem é decidida de modo autônomo pelo remetente, a designação do receptor é autodirecionada e a recuperação de mensagens das redes de comunicação é autosselecionada. A comunicação de massa baseia-se em redes horizontais de comunicação interativa que, geralmente, são difíceis de controlar por parte dos governos ou empresas. Além disso, a comunicação digital é multimodal e permite a referência constante a um hipertexto global de informações cujos componentes podem ser remixados pelo autor que comunica segundo projetos de comunicação específicos. A autocomunicação de massa fornece a plataforma tecnológica para a construção da autonomia do ator social, seja ele individual ou coletivo, em relação às instituições da sociedade. É por isso que os governos têm medo da internet, e é por isso que as grandes

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 17 empresas têm com ela uma relação de amor e ódio, e tentam obter lucros com ela, ao mesmo tempo que limitam seu potencial de liberdade (por exemplo, controlando o compartilhamento de arquivos ou as redes com fonte aberta). A busca pelo controle da comunicação é a busca pela capacidade de definir as normas e valores da sociedade. Portanto, da mesma forma que o poder é exercido e legitimado por redes, o contrapoder também será. Por isto a necessidade dos movimentos sociais em rede. Contudo, não basta ocupar a internet e os canais de comunicação, é preciso fazer-se presente em novos espaços públicos, alternativos aos institucionais, permitindo o relacionamento direto com a sociedade e a vida pública (CASTELLS, 2013). É preciso ocupar o espaço público, e criar neste novos significados. Este novo espaço público é um espaço de comunicação autônoma (CASTELLS, 2013). Os movimentos sociais são formados a partir da indignação da sociedade, fundamentados na busca pela justiça, seja qual for sua definição ou aspecto. Assim, a autonomia da comunicação é vital para os movimentos sociais, ao possibilitar sua relação com a sociedade como um todo, sem o controle instituicional (CASTELLS, 2013). Uma característica fundamental dos movimentos sociais é a capacidade de construir uma nova visão de mundo, um novo ponto de vista, uma interpretação da realidade compartilhada pelos integrantes, solidificando o senso de coletividade (DELLA PORTAet al., 2006). Deriva disto o conflito constante com o sistema hegemônico, na perspectiva de um abalo entre os valores consolidados pelo sistema a partir do choque com o crescimento de uma nova e distinta forma de interpretar o mundo compartilhada, possivelmente, por milhões de pessoas. Entretanto, para que as redes de contrapoder alcancem uma efetividade de fato, é necessaria uma estruturação consistente a fim de reprogramar a organização da sociedade em seus diversos âmbitos, econômico, político, cultural e introduzindo nos programas das instituições, novas instituições, ainda que utópicas, para alterar a visão convencional que estas impuseram na sociedade (CASTELLS, 2013). Esta tarefa só poderá ser exitosa por meio da conexão de redes distintas que possuem reinvindicações similares, fortalecendo os movimentos. A passagem das mobilizações para a efetividade política institucional em busca da reforma do sistema vigente é permeada por contradições. Os movimentos sociais surgem da crise de representatividade e do descrédito das instituições, contudo, a mudança social passa pelas

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 18 mudanças nestas mesmas instituições. O impacto que as mobilizações podem provocar no sistema político depende do grau de permeabilidade destas e do interesse dos governantes em negociarem as pautas reivindicadas, que por sua vez estão relacionadas à necessidade das políticas de conseguirem o apoio da opinião pública (CASTELLS, 2013). Assim, mesmo se articulando enquanto oposição ao sistema político institucionalizado, os movimentos sociais não o rejeita completamente pela necessidade deste para mudanças a curto prazo. Carlos, Dowbor e Albuquerque (2017) definem esta situação como um encaixe institucional, quando os movimentos sociais conseguem alinhar pautas e estabelecer uma cooperação com o governo vigente, inclusive ocupando cargos públicos, a fim de promover avanços, mesmo reconhecendo que as reivindicações dificilmente serão alcançadas em sua totalidade nesta institucionalização (CARLOS; DOWBOR; ALBUQUERQUE, 2017). Entretanto, tais situações são importantes por ao menos colocar na agenda política formal a discussão de pautas ignoradas. Além disso, este encaixe institucional não significa o cessar das outras formas de ação (CARLOS; DOWBOR; ALBUQUERQUE, 2017), pelo contrário, a presença na política formal pode auxiliar na elaboração de outras estratégias de articulação. A entrada dos movimentos sociais na política institucional pode ser vista também como uma maneira de descentralização do poder, uma busca pela modificação do modelo democrático e sua crise de legitimidade (DELLA PORTA et al., 2006). Soma-se a isto o caráter representativo, simbólico, que a conquista de um espaço institucional por um movimento social ressalta. Esta demonstração da capacidade de influênciar atores estatais e não estatais (DELLA PORTA et al., 2006) estabelece uma grande visibilidade e fortalecimento ao movimento em questão. Contudo, o grande objetivo das mobilizações é a longo prazo, na mudança na mente das pessoas, no aumento da consciência e participação coletiva dos cidadãos, algo que está sendo potencializado a partir dos movimentos sociais em rede (CASTELLS, 2013). Boaventura de Sousa Santos (2002) segue esta mesma linha de pensamento, argumentando que são pelas articulações e pelos movimentos sociais que passam qualquer tentativa de uma globalização contra-hegemônica, construída pela participação social, ocupando o contrapoder que define Castells (2013). Os movimentos sociais não são eternos. Castells (2013) procura definir qual o principal legado que os movimentos em geral deixam, e

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 19 conclui que é a busca por uma nova forma de democracia. O objetivo principal se coloca em retomar a voz e participação social que foram retiradas pela democracia representativa liberal ocidental. Esses movimentos sociais em rede são novos tipos de movimentos democráticos – de movimentos que estão reconstruindo a esfera publica no espaço da autonomia constituídos em torno da interação entre localidades e redes de internet, fazendo experiências com as tomadas de decisão com base em assembléias e reconstituindo a confiança como alicerce da interação humana. (CASTELLS, 2013, p. 181). Santos (2002) vai mais além nesta perspectiva. Analisa a questão em torno da discussão entre democracia representativa e democracia participativa de forma a encontrar duas maneiras de conciliação dos modelos: coexistência e complementaridade. A primeira é detectada nos países centrais, implicando em uma democracia representativa no âmbito nacional (formação dos governos, hierarquia burocrativa pela administração pública) e a democracia participativa no âmbito local (SANTOS, 2002). Por outro lado, a complementaridade se mostra ser uma característica dos países do Sul, buscando formas de fiscalização pública aos governos e deliberações públicas, atribuindo mais poder à voz popular e fomentando a participação social. Dessa forma, o reconhecimento de particularidades socioculturais são fortalecidos, e a democracia representativa passa a integrá-las nos processos decisórios (SANTOS, 2002). Assim, “[...] as novas democracias devem, se tal perspectiva está correta, se transformar em novíssimos movimentos sociais, no sentido que o estado deve se transformar em um local de experimentação distributiva e e cultural.” (SANTOS, 2002). Contudo, para que este processo seja bem sucedido, é necessário uma reformulação das regras de sociabilidade, na invenção de novas, e não apenas através da cópia de modelos externos, uma vez que cada contextos têm suas particularidades e pluralidades específicas. A busca por modelos alternativos de democracia é central na estruturação dos movimentos sociais (DELLA PORTA et al., 2006).

3 AGROTÓXICOS E SAÚDE

Larissa Mies Bombardi (2016) faz uma análise do número de intoxicação por agrotóxicos. Apresenta números alarmantes de casos de notificação de intoxicação por agrotóxico. No período de 2001-2013 houveram cerca de 4000 casos apenas no Estado de São Paulo, sendo

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 20 importante salientar que para cada caso notificado estima-se que existam outros 50 casos não notificados (BOMBARDI, 2016). Do número de casos notificados, cerca de 25% as vítimas possuem entre 1 e 19 anos de idade, e quase 50% entre 20 e 39 anos (BOMBARDI, 2016). De acordo com o Dossiê Abrasco sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde humana, um terço dos alimentos consumidos em território nacional encontra-se contaminado por pelo menos algum tipo de agrotóxico (CARNEIRO, 2015). Além disso, segundo o dossiê, em uma análise feita pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em 2011, 63% das amostras apresentaram contaminação por algum tipo de agrotóxico, e 28% de produtos não autorizados (CARNEIRO, 2015). Além disso, em outro estudo da ANVISA em 2010 com o mesmo objetivo, 30% dos agrotóxicos encontrados nos alimentos estavam em processo de reavaliação toxicológica pela própria ANVISA, sendo que estes representavam por volta de 70% dos agrotóxicos consumidos diariamente nos alimentos, como o glifosfato e endosulfam (CARNEIRO, 2015). O relatório de 2015 da International Agency for Research on Cancer (IARC), agência especializada em câncer da Organização Mundial da Saúde (OMS), indicou 5 tipos de pesticidas organofosfatos como potencialmente cancerígeno, estando o glifosfato, um dos mais utilizados mundialmente, entre estes (INTERNATIONAL AGENCY OF RESEARCH ON CANCER, 2015). De acordo com a análise, o glifosfato apresenta evidências, encontradas a partir de estudos de exposição na agricultura publicados desde 2001, de potencial cancerígeno nos seres humanos do linfoma non-hodkin (INTERNATIONAL AGENCY OF RESEARCH ON CANCER, 2015). Esse é um dos motivos de, conforme relatado por Aline do Monte Gurgel em documento publicado pelo Greenpeace acerca do uso de agrotóxico no Brasil, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) classificá-los como uma das principais formas de violação do direito humano ao acesso à alimentação adequada (GURGEL, 2017). Além disso, Gurgel (2017) e Bombardi (2016) ressaltam a situação de precariedade da situação dos trabalhadores rurais, estando ainda mais suscetíveis aos problemas de saúde causados pelos agrotóxicos. As intoxicações por estes produtos químicos podem provocar danos irreversíveis à saúde humano, mesmo após cessada a exposição (GURGEL, 2017). Assim, surgem novas confirmações científicas quanto ao potencial danoso dos agrotóxicos. Uma das mais preocupantes está

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 21 relacionada a complicações na formação congênita e na intoxicação do leite materno. Quanto ao primeiro, foram constatados indícios da relação entre exposição ao agrotóxico durante a gravidez e problemas de saúde nos fetos, “[...] incluindo malformações congênitas, prematuridade e baixo peso ao nascer, comprometimento cognitivo, comportamental, intelectual e morte fetal.” (GURGEL, 2017). Referente à intoxicação do leite materno, a vulnerabilidade imunológica dos recém-nascidos e o fato de sua alimentação nos 6 primeiros meses de vida ser somente o leite materno são alarmantes quanto a contaminação do leite materno pelos agrotóxicos (CARNEIRO, 2015). De acordo com o Dossiê Abrasco, foi realizado uma pesquisa na cidade de -MT com 62 amostras de leite materno. Destas todas apresentavam pelo menos um tipo de agrotóxico, sendo que a maioria continha mais de um tipo (CARNEIRO, 2015).

4 SITUAÇÃO BRASIL

O Brasil apresenta índices altíssimos de consumo de agrotóxico, como retratado anteriormente pelo Dossiê Abrasco. Assim, diversas entidades representativas compõem campanhas em favor da diminuição do uso de agrotóxico no país, sendo as mais notórias a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Dessa articulação surgem importantes avanços, como a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO) e o Programa Nacional para Redução do Uso de Agrotóxicos (PRONARA), os quais analisaremos a seguir, com foco especial na PNAPO, devido ao seu processo de articulação e por ter desencadeado os outros projetos.

5 POLÍTICA NACIONAL DE AGROECOLOGIA E PRODUÇÃO ORGÂNICA (PNAPO)

A participação de movimentos sociais nos governos, como fora destacado anteriormente, representa uma relação conflituosa. Apesar da grande importância da ocupação de espaços institucionais, na maioria dos casos as reinvindicações não são atendidas em sua totalidade, entretanto podem representar ao menos pequenos avanços. Esta situação ocorreu, também, no processo de formulação da Política Nacional de Agroecologia

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 22 e Produção Orgânica (PNAPO) de 2012, com importante participação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Surgida em 2002, a ANA possui uma participação destacada no cenário nacional. Formada a partir da articulação de diversos movimentos sociais que estavam se alinhando em torno da agroecologia como alternativa ao sistema de produção convencional patrocinado pelo agronegócio, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), e outros (CHECHI, 2017). Desde seu surgimento, a ANA garantiu o fortalecimento das organizações que a compõem, e a partir disto, em 2012, se propôs a iniciar um diálogo direto com o governo, sem, contudo, limitar o contato com a sociedade civil e outras organizações (CHECHI, 2017). A primeira grande contribuição foi exatamente a construção da PNAPO, no mesmo ano. Convidada pelo Ministério do Meio Ambiente, a ANA percebeu na PNAPO uma forma de inserir a pauta da agroecologia e modelos de produção alternativos dentro da política institucional. Diversos grupos de trabalho foram criados, e a ANA organizou seminários regionais pelo Brasil para discutir junto à sociedade civil a PNAPO, além de ter sido uma grande oportunidade de gerar visibilidade em relação à atuação do movimento agroecológico brasileiro, bem como de suas reinvidicações (CHECHI, 2017). Após todos os seminários e espaços de diálogo, a ANA […] apresentou nove diretrizes, e para cada uma delas, a descrição de objetivos específicos e o detalhamento de ações prioritárias. As diretrizes perpassavam, de modo geral, o direito humano à alimentação adequada, o acesso à terra e à água através da reforma agrária, a valorização das culturas locais da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais, a internalização da perspectiva agroecológica nas instituições de ensino, pesquisa e extensão rural e a valorização das mulheres e jovens. (CHECHI, 2017). Em agosto de 2012, por meio do Decreto 7.794 o governo federal instituiu a PNAPO. Entretanto, o texto final gerou uma série de críticas por parte da ANA, por não atender em sua totalidade todas as pautas levantadas, contudo, a organização destacou que apesar disto alguns avanços consideráveis foram abarcados pelo texto final da PNAPO (CHECHI, 2017). Este processo apresenta as características expostas anteriormente acerca da participação dos movimentos sociais na formulação de políticas públicas, destacando a importância da ocupação

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 23 dos espaços institucionais, mesmo tendo consciência de que dificilmente será conseguido o objetivo em sua totalidade. Além disto, o diálogo aberto pela ANA com o governo brasileiro possibilitou a criação do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO) de 2013-2015 e, posteriormente, de 2016-2019. Neste, grande parte das reivindicações feitas pela ANA na PNAPO foram abrangidas, estabelecendo programas, ações e prazos de implementação destas (CHECHI, 2017). Não analisaremos aqui detalhadamente a PNAPO, os PLANAPOs ou o PRONARA. Contudo, destacamos que um dos objetivos da PNAPO era exatamente a elaboração do PLANAPO, com o objetivo, como consta no Art. 5º, de fazer diagnóstico, estratégias, programas, planos de ação, prazos, metas e modelos de gestão do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (BRASIL, 2012). Fica a cargo da PNAPO, também, o fortalecimento da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), por meio da qual em 2014 foi articulado a proposta do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA), e a Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (CIAPO). A CNAPO terá em sua composição 14 membros de representantes de órgãos e entidades do Poder Executivo federal e 14 membros representantes de entidades da sociedade civil, sendo, portanto, paritária. E, também, compete à CNAPO garantir da participação da sociedade civil na elaboração e acompanhamento da PNAPO e do PLANAPO (BRASIL, 2012).

6 SITUAÇÃO SÃO PAULO

O município de São Paulo apresenta movimentos de combate ao uso de agrotóxico, aliando setores da classe política - principalmente nas figuras dos vereadores Toninho Vespoli (PSOL), Nabil Bonduki (PT), Natalini (PV) e Ricardo Young (REDE SUSTENTABILIDADE) - com movimentos sociais, como o Movimento Urbano de Agroecologia de São Paulo (MUDA-SP) e a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, composta por dezenas de movimentos sociais, dentre as quais destaca-se a Via Campesina. Tal articulação é refletida por dois recentes casos: o Projeto de Lei 891/2013, referente à proibição de 11 tipos de agrotóxico dentro do município, e a Lei 16.140, conhecida como Lei dos Orgânicos, que prevê a introdução progressiva de alimentos orgânicos na merenda escolar. Ambos serão vistos detalhadamente a seguir.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 24 6.1 Projeto de Lei n. 891/2013

De autoria dos vereadores Natalini (PV), Toninho Vespoli (PSOL), Nabil Bonduki (PT) e Ricardo Young (REDE SUSTENTABILIDADE), o Projeto de Lei 891/2013 propõe proibir “[...] dentro do Município de São Paulo o uso e a comercialização de agrotóxicos que contenham os princípios ativos que especifica e dá outras providências.” (NATALINI et al., 2014). O artigo 1º estabelece que os agrotóxicos a serem banidos são aqueles que apresentem em sua composição substâncias que foram proibidas em seu país de origem e/ou que possuam os seguintes princípios ativos, estando em concordância com as recomendações da Convenção de Estocolmo: “[...] abamectina, acefato, benomil, carbofurano, cihexatina, endossulfam, forato, fosmete, glifosato, heptacloro, lactofem, lindano, metamidofós, monocrotofós, paraquate, parationa metílica, pentaclorofenol, tiram, triclorfom.” (NATALINI et al., 2014). Em comentário acerca do PL feito na 21ª audiência pública do ano de 2014 da Comissão de Saúde, Promoção Social, Trabalho e Mulher, o vereador Nabil Bonduki (PT) argumentou a respeito da finalidade do PL, que teria como objetivo fomentar o debate no âmbito nacional sobre a utilização destes produtos químicos (SÃO PAULO, 2014a), na medida que alguns tipos estavam em discussão internacional quanto a sua utilização. Bonduki conclui que a finalidade do PL 891/2013 é, também, mobilizar os cidadãos contrários aos agrotóxicos e de que se divulgue melhor as consultas públicas que estão ocorrendo a nível nacional acerca de sua regulamentação (SÃO PAULO, 2014a). A justificativa oficial para elaboração do PL 891/2013 baseia-se em estudos que apontaram o Brasil como país líder no consumo de agrotóxicos desde 2008, indicando, ainda, para um crescimento anual da utilização destes químicos (SÃO PAULO, 2014b). Dessa forma, apoiado em exemplos dos países classificados como desenvolvidos e de outras nações, os atores envolvidos na construção do PL demonstram a relevância da importância de se proibir os agrotóxicos em questão (SÃO PAULO, 2014b). Entretanto, é preciso salientar a legalidade do PL. Para tanto, os autores do projeto realizaram uma análise jurídica para detectar se suas pretensões estariam de acordo com a Constituição Federal. Destacou-se, portanto, os artigos 23 e 30 da Constituição Federal, transcritos abaixo: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 25 - Proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; - preservar as florestas, a fauna e a flora; [...]. Art. 30. Compete aos Municípios: - Legislar sobre assuntos de interesse local; - Suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; [...]. (BRASIL, 1988). Atestou-se que a União não reserva para si o caráter privativo em matéria de meio ambiente, e sustentando-se no Artigo 30, II, o qual estabelece que compete aos Municípios “suplementar a legislação federal e estadual no que couber” (BRASIL, 1988), os elaboradores do PL entendem que é da alçada dos Municípios “[...] poder legislar em matéria ambiental, desde que imponha maior proteção ao meio ambiente.” (SÃO PAULO, 2016).

6.2 Lei n. 16.140

Projeto de Lei 451/13, de autoria dos “[...] vereadores Natalini – PV, Ricardo Young – PPS, Nabil Bonduki – PT, Goulart – PSD, Dalton Silvano – PV e Toninho Vespoli – PSOL.” (SÃO PAULO, 2015). Sancionada pelo então prefeito do município de São Paulo, Fernando Haddad (PT), em 2015, adquire a nomenclatura Lei n. 16.140 (SÃO PAULO, 2015). A lei: “Dispõe sobre a obrigatoriedade de inclusão de alimentos orgânicos ou de base agroecológica na alimentação escolar no âmbito do Sistema Municipal de Ensino de São Paulo e dá outras providências.” (SÃO PAULO, 2015). Prevê a implementação gradual de alimentos orgânicos, devidamente certificados, dentro do plano de alimentação escolar do município de São Paulo. Para tanto, foi necessário a elaboração de um plano de implementação do projeto, denominado como “Plano de Introdução Progressiva de Alimentos Orgânicos ou de Base Agroecológica no Programa de Alimentação Escolar do Município de São Paulo”. O referido plano de ação foi elaborado para estabelecer estratégias e metas para a implementação dos alimentos orgânicos de maneira gradativa em todas as unidades escolares da rede municipal. Além de garantir maior apoio aos produtores orgânicos, com auxilio técnico para as questões de regulamentação e novos pontos de distribuição, o plano de ação estabelece

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 26 o aumento gradual do gasto com alimentos orgânicos para chegar, em 2026, no crescimento percentual de 100% (SÃO PAULO, 2016)1. Dessa forma, o plano de ação da lei procura não apenas a introdução de alimentos orgânicos nas unidades escolares, mas também o estímulo aos produtores para iniciarem o processo de transição orgânica ou agroecológica, buscando a diminuição da quantidade de produtos químicos despejados nos alimentos e na natureza. Busca-se criar mecanismos para que o poder público possa auxiliar os produtores não-convencionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, os movimentos sociais são redes informais, plurais, organizada de formas distintas ao redor de um ponto de vista construído e compartilhado pelos integrantes (DELLA PORTA et al., 2006). Além disso, em uma rede podemos encontrar atores diversos, não apenas movimentos sociais, mas também ONGs, instituições estatais, organizações internacionais, instituições de pesquisa, universidades, partidos políticos, entre outros. Situação representada na articulação de todos os projetos apresentados: PNAPO, PLANAPO, PRONARA, PL 891/2013 e a Lei dos Orgânicos. Em todos houve um diálogo constante entre movimentos sociais, instituições de saúde e pesquisa, organizações da sociedade civil, partidos políticos e sociedade como um todo. Além disso, percebemos que a partir da participação da ANA na elaboração da PNAPO foi aberto uma importante canal de diálogo entre movimentos sociais, organizações da sociedade civil e governo federal, sobretudo pela composição da CNAPO, que garante uma grande participação social na regulamentação de agrotóxicos. Este cenário reflete a discussão anterior acerca dos movimentos sociais e a crise de representatividade da democracia, e a necessidade de novos canais de comunicação e mecanismos que aumentem permeabilidade das instituições para pleno exercício da cidadania, como argumentam Castells (2013) e Santos (2002). Ainda, relaciona-se com o encaixe institucional analisado por Carlos, Dowbor e Albuquerque (2017), garantindo a ocupação de espaços públicos e avanços significativos no âmbito institucional, ainda que com a consciência de que as reivindicações não serão atendidas em sua totalidade.

1 ANEXO ÚNICO do Decreto n. 56.913, de 5 de abril de 2016 Plano de Introdução Progressiva de Alimentos Orgânicos ou de Base Agroecológica no Programa de Alimentação Escolar do Município de São Paulo.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 27 Diante destes cenário, a tese central da pesquisa, ainda em andamento, é de que a formulação do PL 891/2013 foi possível a partir de redes conectadas nacional e internacionalmente, dentro de um contexto nacional de crescimento da discussão pela produção orgânica e agroecológica, sobretudo pela consolidação da PNAPO, perpassando por exemplos como a Lei dos Orgânicos no próprio município de São Paulo. Não abordamos aqui a análise da jurisprudência do caso, contudo, ressaltamos que casos como a ação movida pela empresa Syngenta contra a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) do Rio Grande do Sul, a Lei do Amianto e também a Lei Antifumo representam um fortalecimento da resistência à ações que coloquem em perigo a saúde humana e ambiental. Isto se reflete por, nestes casos julgados, decidiu-se que estados e municípios podem estabelecer leis mais restritivas que as leis federais em matérias de proteção à saúde e meio ambiente, estando, portanto, o PL 891/2013 dentro da legalidade constitucional. Além disso, a Lei do Amianto e a Lei Antifumo surgiram inicialmente no Estado de São Paulo e a partir daí foram se propagando até serem aprovadas leis federal sobre os dois casos. Contudo, a análise detalhada destes processo será feita, ainda, no decorrer da pesquisa. Portanto, a partir da construção do PL 891/2013 percebemos indícios de uma articulação de uma rede nacional, sobretudo pela atuação de movimentos que compõem a ANA, como a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, municiados por convenções internacionais que buscam restringir a comercialização de agrotóxicos, como a Convenção de Estocolmo, além de diversas pesquisas internacionais que atestam o perigo dos agrotóxicos para a saúde humana, dentre as quais destacamos relatório de 2015 da International Agency for Research on Cancer (IARC), agência especializada em câncer da Organização Mundial da Saúde (OMS), indicou 5 tipos de pesticidas 8 organofosfatos como potencialmente cancerígeno, estando o glifosfato, um dos mais utilizados mundialmente (e presente entre os proibidos pelo PL 891/2013), entre estes (INTERNATIONAL AGENCY OF RESEARCH ON CANCER, 2015).

REFERÊNCIAS

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 28 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Decreto n. 7.794, de 20 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 ago. 2012. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7794.htm. Acesso em: 31 jul. 2018. CARLOS, Euzeneia; DOWBOR, Monika; ALBUQUERQUE, Maria do Carmo Alves. Movimentos sociais e seus efeitos nas políticas públicas: balanço do debate e proposições analíticas. Civitas: Revista de Ciências Sociais, , v. 17, n. 2, p. 360-378, ago. 2017. DOI: http:// dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2017.2.25925. Disponível em: http:// revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/25925. Acesso em: 31 jul. 2018. CARNEIRO, Fernando Ferreira et al. (org.) Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015. CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da Internet. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. CHECHI, Leticia Andrea. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e a construção da PNAPO e Planapos: um estudo sobre a relação de movimentos e organizações sociais e Estado. In: CONGRESSO LATINOAMERICANO DE CIÊNCIA POLÍTICA, 9., 2017, Montevideo. Anais.... Montevideo: ALACIP, 2017. DELLA PORTA, Donatella et al. Globalization from below: transnational activists and protest networks. Minneapolis: University of Minnesota, 2006. (Social movements, protest, and contention, v. 26). GURGEL, Aline do Monte. Impactos dos agrotóxicos na saúde humana. In: GREENPEACE BRASIL. Agricultura tóxica: um olhar sobre o modelo agrícola brasileiro. São Paulo, 2017. Disponível em: https://greenpeace.org.br/agricultura/agricultura-toxica.pdf. Acesso em: 31 jul. 2018.

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Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 31

REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO E AS IMPLICAÇÕES PARA AS POLÍTICAS SOCIAIS: QUEM PAGA “O PATO” COM A OFENSIVA NEOCONSERVADORA?

REDEFINING THE ROLE OF THE STATE AND AS IMPLICATIONS FOR SOCIAL POLICIES: WHO PAYS "THE DUCK" WITH A NEOCONSERVATORY OFFENSIVE? Herval de Souza Vieira Junior * Camile Alves Cezar 2** RESUMO: O presente trabalho objetiva debater como as estratégias governamentais pós-golpe de 2016 tem influenciado a condução das políticas sociais. Essas estratégias correspondem: a retomada do neoliberalismo, da reestruturação produtiva e a redefinição do papel do Estado, com o sucateamento dos serviços públicos e a implementação sistemática de uma política macroeconômica que penaliza a população, atacando os direitos sociais, tratados muitas vezes como privilégios. Palavras-chave: política social. estado. neoliberalismo. reestruturação produtiva. ABSTRACT: This paper aims to discuss how the post-coup government strategies of 2016 have influenced the conduct of social policies. These strategies correspond to the resumption of neoliberalism, the restructuring of production and the redefinition of the role of the state, the scrapping of public services and the systematic implementation of a macroeconomic policy that penalizes the population, attacking social rights, often treated as privileges.

Keywords: social policy. state. neoliberalism. productive restructuring.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo discutir como a retomada da agenda neoliberal tem orientado a condução da política econômica, a redefinição do papel do Estado e os reflexos para as políticas sociais. Portanto, a análise da política social está estritamente relacionada com a política econômica, assim como, a política econômica não está dissociada

* Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Política Social e Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Gestão Pública pela UFSM. Técnico-administrativo em Educação na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). ** Mestranda do Programa de Pós-graduação em Política Social e Serviço Social- Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialização no Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde - Atenção em Urgências e Emergências, do Hospital Universitário Prof. Polydoro Ernani de São Thiago - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/2012). Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/2009).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 33 das políticas sociais (VIEIRA, 2007). Parte-se da definição de que as políticas sociais consistem em uma estratégia governamental, que normalmente se apresenta em forma de relações jurídicas e políticas, sendo uma maneira de expressar as relações sociais, cujas raízes se localizam no mundo da produção. Ela corresponde à intervenção do Estado na garantia, efetivação e operacionalização das políticas sociais por meio da alocação dos recursos públicos do Estado. E a característica contraditória que assume a política social no capitalismo, é o fato de ela ser o resultado da luta dos grupos subalternos, e, ao mesmo tempo, atender aos interesses do capital (CARRARO, 2016). Para que seja discutida a atual condução das políticas sociais, se faz necessária a reflexão sobre o papel assumido pelo Estado com seu receituário neoliberal. Em linhas gerais, o neoliberalismo orienta ações baseadas na diminuição da intervenção do Estado no âmbito social. Ele prevê a desestatização, a privatização de serviços públicos e a redução de gastos com as políticas sociais, sendo uma alternativa que o capital encontra para retomar à acumulação e lidar com suas crises estruturais. Assim, ao se discutir a teoria neoliberal, é importante considerar que o Estado mínimo proposto, é o mínimo para as políticas sociais e o máximo para o capital (PERONI, 2015). A reorientação política e econômica ocorrida no ano de 2016 faz parte das estratégias adotadas pela classe dominante e, mais uma vez, a responsabilidade é transferida para o Estado. Com base em Peroni (2013), a classe dominante vem adotando essas estratégias desde a década de 1970, que são: o neoliberalismo, a globalização, a reestruturação produtiva e a terceira via. Tais estratégias, de viés predominantemente econômico, têm se tornado tema central para compreender e explicar as suas implicações para as políticas sociais, visto que são inúmeras as consequências da crise para a classe trabalhadora: desemprego, desestruturação, precarização do trabalho, redução de direitos e diminuição de salários (PERONI, 2013). Para a compreensão de como essas estratégias afetam as políticas sociais é necessário primeiramente que se defina Estado, sociedade civil e classe hegemônica. Para Peroni (2015, p. 15-16), o Estado e a sociedade civil não são abstrações, “[...] são partes constitutivas do movimento de correlação de forças de sujeitos situados em um contexto histórico e geográfico, perpassados por projetos societários distintos.” Partindo dessa concepção, as políticas sociais são resultados da disputa societária inserida no contexto de um processo de correlação de forças na busca pela

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 34 hegemonia do Estado. Porém, quando ocorrem as crises estruturais do capital, a classe dominante utiliza-se de várias estratégias para superar a sua própria crise, o que inclui redefinição do papel do Estado (PERONI, 2015). E por classe hegemônica podemos definir como aquela que “[...] ao mesmo tempo, tem seus interesses econômicos garantidos na estrutura, suas ideias predominando na sociedade civil e o controle do aparelho político-jurídico-coercitivo do Estado.” (ALMEIDA, 2016 p. 180). Chauí (2016, p. 18-19) defende que uma classe social não pode ser definida somente pelas determinações econômicas, “[...] mas um sujeito social, político, moral e cultural que age, se constitui, interpreta a si mesma e se transforma por meio da luta de classes.” Utilizando o critério de propriedade, a autora define como classe dominante no Brasil, os detentores do capital produtivo e do capital financeiro. A nova classe trabalhadora seria composta pelos operários industriais, trabalhadores do setor de serviços vinculados direta ou indiretamente à produção, cientistas e técnicos especializados assalariados, profissionais liberais assalariados, pequenos produtores familiares e prestadores de serviços particulares que dependem do capital. E a classe média composta pela “[...] burocracia estatal e empresarial, os serviços públicos, a pequena propriedade fundiária, o pequeno comércio não filiado às grandes redes de oligopólios transnacionais e os profissionais liberais não assalariados.” (CHAUÍ, 2016, p. 18). Segundo Boito Júnior (2016), o conflito entre essas classes é o que explica a crise política que culminou com o golpe em 2016 no Brasil. Mas não um conflito entre burguesia e operários, ou, entre capitalismo e socialismo, mas “[...] um conflito distributivo, pela apropriação da riqueza, e ele envolve diversas classes e frações.” (BOITO JÚNIOR, 2016, p. 25). Esse conflito pode ser sistematizado entre dois grupos: a frente heterogênea que dava sustentação ao governo petista, denominado campo desenvolvimentista e a oposição neoliberal, denominado campo neoliberal. O primeiro grupo era composto pela burguesia nacional, por parte da classe média baixa, pela maioria da classe operária e campesina e pelos trabalhadores da massa marginal. O outro grupo representava a burguesia vinculada ao capital internacional e a classe média alta. Porém, “[...] cada um deles estava sob a hegemonia de uma fração da burguesia. Na crise, como iremos indicar, essa divisão foi abalada.” (BOITO JÚNIOR, 2016, p. 27). Com a intensificação da crise do capital internacional, o campo neoliberal partiu para a ofensiva contra as políticas adotadas pela presidenta

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 35 Dilma, através de ações como a redução da taxa de juros, novas medidas protecionistas e a depreciação cambial. Para Boito Júnior (2016), essa ofensiva se deu em uma fase de agravamento das contradições internas da frente “neodesenvolvimentista”, porque estava ocorrendo conflitos entre os trabalhadores e a burguesia nacional por ganhos salariais e a baixa classe média (- beneficiária dos programas sociais como o Programa Universidade para Todos (PROUNI), Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e expansão do ensino superior -), que se deparou com o baixo crescimento econômico e o desemprego. Somado a isso, houve o levante da classe média alta como protagonista política através das mobilizações de rua. Dando continuidade à análise desse movimento da ofensiva neoliberal e as consequências para as políticas sociais no Brasil, este texto foi organizado em quatro partes: A primeira aborda as características do neoliberalismo e o papel do Estado; a segunda faz a discussão acerca da reestruturação produtiva; posteriormente é exposto como o Brasil está vivenciando o modelo “neodesenvolvimentista” de governo e, por fim, são expostas as implicações da redefinição do papel do Estado para as políticas sociais.

1 O ESTADO NEOLIBERAL

Segundo Harvey (2005), para Marx e Engels o Estado é um instrumento de dominação da classe dominante, denominado pelos autores como “o comitê central da burguesia”. O Estado é o agente que garante o funcionamento da sociedade capitalista, através das leis, de tributação e principalmente do uso da força coercitiva. O Estado capitalista não pode ser outra coisa que um instrumento de dominação de classes, pois se organiza para sustentar a relação básica entre capital e trabalho. Se fosse diferente, o capitalismo não se sustentaria por muito tempo. Além disso, como o capital é essencialmente antagônico ao trabalho, Marx considera o Estado burguês, necessariamente, veículo por meio do qual a violência coletiva da classe burguesa oprime o trabalho. O corolário é, naturalmente, que o Estado burguês deve ser destruído para se alcançar uma sociedade sem classes. (HARVEY, 2005, p. 84-85). Partindo dessa concepção, para Harvey (2005), a classe dominante não utiliza somente a força coercitiva para manter a dominação. A elite dominante também utiliza um sistema político que permite o controle de

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 36 forma indireta. Dois pontos sustentam essa concepção de Estado ampliado, conforme o conceito de Gramsci para as sociedades capitalistas ocidentais. Primeiro a incorporação ideológica por parte do Estado, onde é preciso parecer que o Estado é para o bem comum, e que a ideologia burguesa é universal. O segundo ponto é a fragmentação do poder entre o executivo, legislativo e judiciário, o que facilita a dominação. Ou seja, são formas mais sofisticadas e sutis do que somente a força de coerção (HARVEY, 2005). Segundo Harvey (2008), na teoria, o Estado neoliberal corresponde aos arranjos institucionais para garantir o livre funcionamento do mercado. Porém, o Estado neoliberal na prática acaba assumindo os riscos e o setor privado que fica com o lucro. Seja através das parcerias público-privadas, pela transferência da gestão para setores da sociedade civil e até mesmo com subsídios para alguns setores. Para os defensores do neoliberalismo os setores que são controlados ou gerenciados pelo Estado devem ser repassados para a iniciativa privada, pois acreditam que o Estado é ineficiente e burocrático. Afirma-se que a privatização e a desregulação coma competição eliminam os entraves burocráticos, aumentam a eficiência e a produtividade, melhoram a qualidade e reduzem os custos direto ao consumidor (graças a mercadorias e serviços mais baratos) como, indiretamente, mediante a redução da carga de impostos. O Estado Neoliberal deve buscar persistentemente reorganizações internas e novos arranjos institucionais que melhoram a sua posição competitiva como entidade diante dos outros Estados no mercado global. (HARVEY, 2008, p. 76). Para Moraes (2012), o neoliberalismo é uma ideologia, uma forma de enxergar o mundo e uma corrente de pensamento. Em linhas gerais, o pensamento neoliberal defende a privatização dos serviços públicos e a desregulamentação da economia, mas ressalta que o grande problema para o neoliberalismo é a democracia direta, já que os governos acabam aceitando pressões de grupos da sociedade. Com base no autor, percebe-se que não há nada de novo no discurso atual. A desregulamentação da economia e a defesa do livre mercado com base no liberalismo clássico era uma imposição inglesa durante o século XIX. Muitos dos países desenvolvidos hoje, como o caso da Alemanha, Estados Unidos e Japão utilizaram amplamente a intervenção estatal, o protecionismo, o apoio do poder público para implantar e fortalecer a indústria, o comércio, os transportes e o sistema bancário. O pensamento

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 37 dominante liberal perdurou até a grande crise de superprodução de 1929, quando surgiu o que Moraes (2012) chama de “Consenso Keynesiano”, que consistia na participação ativa do Estado na regulamentação da atividade econômica, dando legitimidade ao sistema capitalista. O poder público, desse modo, regularia as oscilações de emprego e investimento, moderando as crises econômicas e sociais. O New Deal americano e o Estado de bem- estar europeu iriam testar (e aprovar durante bom tempo) a convivência do capitalismo com um forte setor público, negociações sindicais, políticas de renda e seguridade social, etc. Em suma, em pouco tempo, o Estado viu-se em condições e na obrigação de controlar o nível da atividade econômica, inclusive o emprego, através de instrumentos como a política monetária a taxa de juros e os gastos públicos. (MORAES, 2012, p. 14). Para Peroni (2013, p. 200) tanto o neoliberalismo quanto a terceira via possuem o mesmo diagnóstico para a crise do capital que está no Estado, mas possuem estratégias diferentes. Enquanto o neoliberalismo defende as privatizações e a transferência das políticas sociais para o mercado, a terceira via defende a transferência da execução para as sociedades sem fins lucrativos, portanto, ambos desresponsabilizam o Estado pela execução das políticas. Enquanto a democracia é um empecilho para o neoliberalismo, pois “[...] atrapalha o livre andamento do mercado pois deve atender a demanda dos eleitores para se legitimar, o que provoca déficit fiscal.” A terceira via defende que a democracia precisa ser “democratizada”, passando para a sociedade civil a execução das políticas do Estado. Portanto, o diagnóstico é o mesmo, mas algumas estratégias são diferentes e outras, semelhantes. O neoliberalismo propõe o Estado mínimo, privatizando e tendo o mercado como parâmetro para a gestão pública; a Terceira Via propõe reformar o Estado, argumentando que este é ineficiente; assim, a reforma do Estado terá como parâmetro de qualidade o mercado, por intermédio da administração gerencial, fortalecendo a lógica de mercado dentro da administração pública. Dessa maneira, tanto o neoliberalismo quanto a Terceira Via usam a gestão gerencial como parâmetro para a gestão pública. (PERONI, 2012, p. 21-22). Para o sistema neoliberal e para a Terceira Via, o Estado é considerado ineficiente, sendo utilizado como parâmetro de qualidade o mercado e defendida a exportação de práticas do setor privado para o

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 38 público, como a ideologia do gerencialismo. Para Newman e Clarke (2012), o gerencialismo é uma ideologia da chamada “Nova Gestão Pública” (NGP), na qual existe a crença de que uma organização bem sucedida é aquela bem gerenciada, na qual os gestores são transformados em heróis. Enquanto no restante do mundo as políticas sociais estavam sendo reduzidas com a crise do pacto keynesiano e o advento do Estado Neoliberal, justamente nessa época que avançaram direitos sociais no Brasil, materializados na constituição de 1988. Porém, houve um contrassenso na especificidade brasileira, pois após a primeira eleição direta pós-constituição, foi eleito um presidente neoliberal, e mesmo depois da sua destituição em 1992, “[...] os governos que o seguiram tinham o ajuste fiscal como meta principal, com sérias consequências para as políticas sociais.” (PERONI, 2015, p. 17). A recente conquista de direitos sociais no Brasil acabou não se efetivando dado à redefinição do papel do Estado, acarretando no que Peroni (2015) chama de “naturalização do possível”.

2 REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

Segundo Antunes (2006, 2009), como forma de superação da crise decrescente da taxa de lucro e do esgotamento do padrão de acumulação Taylorista/Fordista, a reestruturação produtiva surge como resposta para a própria crise do capital e traz consigo várias consequências para os trabalhadores. Novos processos de trabalho emergem, onde o cronômetro e a produção em série e de massa são “substituídos” pela flexibilização da produção, pela “especialização flexível”, por novos padrões de busca de produtividade, por novas formas de adequação da produção à lógica do mercado. (ANTUNES, 2006, p. 24). Antunes (2009) chama a atenção para a conciliação de classe do pós-guerra nos países capitalistas avançados. Um compromisso entre o capital e trabalho mediado pelo estado, onde a luta pela emancipação do trabalho foi deixada de lado em troca da ilusão do chamado “Estado-Providência”. Pode-se dizer que junto com o processo de trabalho taylorista/ fordista erigiu-se, particularmente durante o pós-guerra, um sistema de “compromisso” e de “regulação” que, limitado a uma parcela dos países capitalistas avançados, ofereceu a ilusão de que o sistema de metabolismo social do capital

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 39 pudesse ser efetiva, duradoura e definitivamente controlado, regulado e fundado num compromisso entre capital e trabalho mediado pelo Estado. (ANTUNES, 2009, p. 40). Porém, com a crise do capital e o esgotamento do modelo de Estado de Bem-Estar social, esse acordo foi rompido e o resultado foi a reestruturação produtiva com consequências para o mundo do trabalho. O capital deflagrou, então, várias transformações no próprio processo produtivo, por meio da constituição das formas de acumulação flexível, do downsizing, das formas de gestão organizacional, do avanço tecnológico, dos modelos alternativos ao binômio taylorismo/fordismo, em que se destaca especialmente o “toyotismo” ou o modelo japonês. Essas transformações, decorrentes da própria concorrência intercapitalista (num momento de crises e disputas intensificadas entre os grandes grupos transnacionais e monopolistas) e, por outro lado, da própria necessidade de controlar as lutas sociais oriundas do trabalho, acabaram por suscitar a resposta do capital à sua crise estrutural. (ANTUNES, 2009, p. 49-50). Martins e Molinaro (2013) apontam as principais consequências para os trabalhadores com a reestruturação produtiva. Redução do seguro desemprego, perda da estabilidade no emprego, desvalorização do poder de compra do salário mínimo, flexibilidade salarial e da jornada de trabalho, flexibilização das estruturas ocupacionais na negociação coletiva e redução do poder da esfera pública sobre o processo de alocação do trabalho pelas empresas. (MARTINS; MOLINARO, 2013, p. 1668). Em síntese, a reestruturação produtiva provocou a flexibilização na relação entre capital e trabalho. Conforme Batista (2014), as mudanças do sistema fordista para o taylorista foram boas para o capital, mas não para o trabalho, pois “[...] aprimorou a intensificação do trabalho [fordista] e ampliou as dimensões da exploração da força de trabalho quando

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 40 sistematizou as técnicas de produção de uma subjetividade reificada.” (BATISTA, 2014, p. 32).

3 ESTADO NEODESENVOLVIMENTISTA?

Segundo Mattei (2013), na chamada estratégia “novo desenvolvimentista” o Estado continua assumindo como principais funções: a) ter capacidade para regular a economia, estimulando um mercado forte e um sistema financeiro a serviço do desenvolvimento e não das atividades especulativas; b) fazer a gestão pública com eficiência e responsabilidade perante a sociedade; c) implementar políticas macroeconômicas defensivas e em favor do crescimento; d) adotar políticas que estimulem a competitividade industrial e melhorem a inserção do país no comércio internacional; e) adotar um sistema tributário progressivo, visando reduzir as desigualdades de renda. Além disso, o Estado neodesenvolvimentista deve intervir na área social com o objetivo de reduzir a pobreza e as desigualdades, devem ser fortalecidos os programas sociais, sobretudo nas áreas de saúde, educação, nutrição e assistência social. Além disso, devem ser desenvolvidas ações focalizadas, como os programas de renda mínima, também devem ser fortalecidos os programas de estímulo à geração de empregos e de qualificação da mão-de-obra, como forma de inclusão social. Outra ação que caberia ao Estado na perspectiva desenvolvimentista, de acordo com Mattei (2013, p. 54), seria a de “[...] investir em alguns setores estratégicos, como o setor privado nacional que deve disponibilizar recursos e suas capacidades gerenciais a favor dos investimentos produtivos”, e ainda ser o garantidor da concorrência capitalista. Para Almeida (2016), o “desenvolvimentismo” não foi realmente uma alternativa ao neoliberalismo e à dependência, e sim um viés de resposta social-liberal à crise estrutural do capitalismo. Esse “neodesenvolvimentismo” é mitigado e mantém a hegemonia do capital financeiro e do setor primário exportador, do que decorre uma desindustrialização relativa do país. Como seus antecedentes, é estruturalmente dependente e periférico e se baseia na superexploração do trabalho, do que decorre uma limitada expansão do mercado interno. Além disso, é ambientalmente predatório e expropriador de povos indígenas, quilombolas, camponeses pobres e moradores das periferias urbanas majoritariamente

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 41 afrodescendentes. Não é nacionalista nem “progressista”, como o desenvolvimentismo “clássico” se apresentava e aponta, explicitamente, o mercado como caminho econômico central. A presença do Estado visa viabilizar investimentos e infraestrutura (também prioritariamente privada) para incentivar o setor privado. As privatizações continuam e há mudanças legais para facilitar a reprodução social capitalista, dentro da lógica da ordem internacional. “Neodesenvolvimentismo” é neosubdesenvolvimento. (ALMEIDA, 2016, p. 182). Boschetti (2013) também questiona esse “neodesenvolvimentismo” quando aponta a contradição entre o discurso de desenvolvimento social e a redução das desigualdades com as medidas de austeridade fiscal. Apesar dos avanços em relação ao projeto dos governos FHC, as políticas sociais acabaram tendo um papel coadjuvante frente aos gastos com o capital rentista. Não se pode considerar como novo modelo social de desenvolvimento um país que festeja e se contenta com a pífia redução da pobreza e da miséria, que privatiza serviços públicos essenciais, como educação saúde, luz, água, telefone, transporte, que usurpa recursos públicos para pagar dívidas ilegítimas e odiosas, que garante o consumo e a reprodução do capital. (BOSCHETTI, 2013, p. 363-364). Lowy (2016) aponta que assim como nos governos de esquerda da América Latina, durante o governo neodesenvolvimentista brasileiro, as classes populares obtiveram ganhos sociais, mas nenhum desses governos tentou romper as estruturas centrais do capitalismo e nem com a dependência externa dos preços das commodities e do petróleo. Dois fatores determinaram a derrota desses projetos e a retomada da agenda neoliberal: A queda do preço do petróleo e das commodities e o monopólio dos meios de comunicação nas mãos da classe dominante. Além dos fatores econômicos, Miguel (2016) aponta os fatores simbólicos que contribuíram para o rompimento da conciliação com a burguesia, como as políticas voltadas para as mulheres, população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros (LGBT), população negra e das periferias. Ou seja, grupos em posição subalterna passaram a reivindicar cada vez mais o direito de “falar com

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 42 sua própria voz”, questionando sua exclusão de muitos espaços, buscando reagir à violência estrutural que os atinge.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As estratégias da classe dominante no Brasil estão concentradas na institucionalização do neoliberalismo, na reestruturação produtiva e no neoconservadorismo. Pode-se exemplificar por recentes a Emenda Constituição 95 - PEC: Teto dos gastos públicos; Terceirização irrestrita; Reforma trabalhista; Propostas da reforma da previdência e projeto escola sem partido (BRASIL, 2016). Ressalta-se que essas mudanças estão em processo de desenvolvimento sem a discussão com a sociedade, sendo ignorados os protestos de rua e as pesquisas de opinião. Tais mudanças dificilmente seriam aprovadas através do voto popular, o que demonstra o desprezo da elite neoliberal em relação à democracia. As mudanças ocorridas no período atual do capitalismo têm implicações para as redefinições do papel do Estado, em especial para as políticas sociais. Segundo Vieira (2007) as políticas sociais são respostas às lutas sociais, em um processo de correlação de forças, ou seja, está ligada aos reclamos populares. O Estado acaba assumindo alguns destes reclamos, os direitos sociais significam a consagração jurídica de reivindicações dos trabalhadores, daquilo que é aceitável para o governo. Assim, concorda-se com o autor que ao examinar as políticas econômicas e sociais deve-se levar em conta o desenvolvimento contraditório da história. O método lógico mostra a vinculação dessas políticas com a acumulação capitalista, e em nível histórico, verifica-se que consistem em respostas às necessidades sociais. Assim, a reivindicação por políticas sociais neste momento histórico de minimização de direitos pode ser considerada luta concreta contra o capital. O papel do estado para com as políticas sociais é alterado, pois com o diagnóstico neoliberal, pactuado pela Terceira Via, duas são as prescrições: racionalizar recursos e esvaziar o poder das instituições. As instituições democráticas são permeáveis às pressões e demandas da população, além de serem consideradas improdutivas, pela lógica do mercado. A responsabilidade pela execução das políticas sociais deve ser repassada para a sociedade: para os neoliberais através da privatização (mercado) e para a Terceira Via pelo público não estatal (PERONI, 2013).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 43 O argumento dos empresários e dos organismos internacionais para influenciar as políticas sociais parte da premissa de que a crise está no estado, de que é ineficiente. Assim, o mercado deve compensar as suas falhas, assumindo no interior do próprio aparelho do Estado a lógica mercantil via gestão gerencial e repassar as políticas sociais para o mercado, através da privatização ou de parceiras. O repasse de dinheiro público para o privado não é algo novo, visto que o governo apenas repassa recursos para instituições privadas executarem as políticas sociais ou realizarem parcerias, nas quais instituições privadas levam para o setor público a sua proposta de qualidade com parâmetros de mercado (PERONI, 2013). O neoliberalismo critica a democracia porque entende que ela dificulta o livre andamento do mercado ao atender a demanda dos eleitores para ser legitimada. Para a Terceira Via é um conceito de democracia e participação em que a sociedade deve assumir a execução de tarefas que deveriam ser de responsabilidade do Estado, visto que um Estado em crise não tem condições de executar políticas, então deve repassar para a sociedade civil, que vai focar na população mais vulnerável para evitar o caos social. Os direitos sociais materializados em políticas universais acabam cedendo lugar a apolíticas fragmentadas, individualizadas e focalizadas, como a meritocracia, que preconiza o sucesso individual, sendo os indivíduos considerados clientes no mercado e não mais sujeitos de direitos universais. É correto afirmar que a intensificação do ajuste fiscal e consequentemente as perdas para as políticas sociais já vinham acontecendo no governo da presidenta Dilma, especialmente no começo do segundo período de sua gestão. Porém, a sua radicalização e institucionalização se efetivou após o golpe, através Emenda Constitucional 95 (BRASIL, 2016), que estabelece que o orçamento poderá variar somente conforme a inflação. Isso significa que pelo período de vinte anos não haverá crescimento real do orçamento, mesmo que o Produto Interno Bruto (PIB) cresça a “taxas chinesas” e esse limite não contempla a maior parte das despesas financeiras. Com isso, os próximos governos terão pouca margem ou quase nenhuma para as políticas econômicas e sociais, mesmo que haja crescimento econômico, já que as despesas obrigatórias tendem a crescer. Isso significa na prática a institucionalização do Estado mínimo para as políticas sociais e do Estado máximo para a burguesia financeira detentoras dos títulos da dívida pública. A política de governo atual impõe limites aos gastos com direitos sociais, congela despesas com saúde, educação e

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 44 assistência social, que atendem a maioria da população, enquanto mantém intocados privilégios e injustiças. É fato que no capitalismo a política social é uma das medidas utilizadas para o enfrentamento das expressões da questão social e das diversas formas de reprodução da desigualdade social. Em tempos de mudanças no processo de produção, de precarização das relações e das condições de trabalho, de espraiamento de ideologias conservadoras, de respostas omissas ou violentas por parte do Estado às reivindicações da classe trabalhadora, as políticas sociais passam a ser pautadas não como direito, mas sim como um serviço ou uma mercadoria, a exemplo da educação, da saúde e da previdência social. À população que vive em situação de vulnerabilidade econômica são destinadas ações focalizadas, através de programas residuais ou de ações de benemerência prestadas pela sociedade civil. Os retrocessos sociais que estão em curso hoje no Brasil representam a busca do capital em se apropriar e aprofundar os processos de exploração da classe trabalhadora, com o apoio fundamental do Estado. Seja uma radicalização do neoliberalismo ou supostamente um modelo neodesenvolvimentista, o atual governo adota medidas de destruição da lógica do direito social, em favor das perspectivas de focalização, de privatização e de monetarização da política social. Em suma, os indivíduos são responsabilizados pela sua própria condição social e, consequentemente, penalizados pela crise.

REFERÊNCIAS

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OS LIMITES E DESAFIOS DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DIRECIONADA À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO CONTEXTO DE NEOLIBERALISMO

THE LIMITS AND CHALLENGES OF THE SOCIAL ASSISTANCE POLICY DIRECTED AT THE STREET POPULATION IN THE CONTEXT OF NEOLIBERALISM Laís Caroline Neves * Andréia Aparecida Reis de Carvalho Liporoni ** RESUMO: O presente estudo objetivou compreender as políticas de assistência social direcionadas à população em situação de rua no município de Franca/SP, em consonância com a Política Nacional de Assistência Social. Para tanto discute-se em um primeiro momento a perspectiva histórica e a gênese do fenômeno população em situação de rua, aliado ao desenvolvimento dos meios de produção capitalista e ao acirramento das desigualdades sociais no Brasil. Em seguida, buscou-se analisar as legislações e políticas sociais em âmbito nacional e municipal voltadas a população em situação de rua. O método está alicerçado no materialismo histórico dialético, a fim de compreender essa realidade na perspectiva de totalidade e a metodologia está fundamentada em revisões bibliográficas, por meio de autores que estudam a temática população em situação de rua e as políticas sociais públicas direcionadas a este segmento. Por conseguinte, foi possível perceber que o fenômeno população em situação de rua tem aumentado em consonância com o desenvolvimento do capitalismo, sobretudo, a partir da reestruturação produtiva e do avanço do ideário neoliberal. É desta forma, que o presente estudo busca analisar as perspectivas, desafios e possibilidades da política de assistência social voltada à população em situação de rua, em um contexto de ortodoxia neoliberal em detrimento do Estado social. Palavras-chave: população em situação de rua. política de assistência social. neoliberalismo. questão social. ABSTRACT: The present study aimed to understand the social assistance policies directed at the street population in the city of Franca / SP, in accordance with the National Social Assistance Policy. In order to do so, the historical perspective and the genesis of the population phenomenon in a street situation, together with the development of the capitalist means of production and the intensification of social inequalities in Brazil, are discussed at first. Next, we tried to analyze the laws and social policies at the national and municipal level directed to the population in the street situation. The method is based on dialectical historical materialism in order to understand this reality in the perspective of totality and the methodology is based on bibliographical reviews, through authors who study the issue of the population in a street situation and public social policies directed to this segment . Consequently, it was possible to perceive that the population phenomenon in the street situation has increased in consonance with the development of capitalism, mainly, from the productive restructuring and the advancement of the neoliberal ideology. It is in this way that the present study seeks to analyze the perspectives, challenges and possibilities of the

* Graduanda em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho- Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS). Membro do GEPAPOS (Grupo de Estudos e Pesquisa em Participação nas Políticas Sociais) e membro do GEPPS (Grupo de Estudo e Pesquisa em Política Social) E-mail: laisneves2000@hotmailcom. ** Docente da graduação e do Programa de Pós Graduação em Serviço Social na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho- Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FHCS). Líder do GEPAPOS (Grupo de Estudos e Pesquisa em Participação nas Políticas Sociais). E-mail: [email protected]

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 49 social assistance policy directed at the street population, in a context of neoliberal orthodoxy to the detriment of the social state. Keywords: population in street situation. social assistance policy. neoliberalism. social issues.

INTRODUÇÃO

As reflexões que se apresentam neste artigo estão vinculadas a uma pesquisa mais ampla intitulada: “Um estudo acerca das políticas de atenção à população em situação de rua no município de Franca/SP”, que recebe financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). O presente estudo tem por objetivo compreender as políticas de assistência social direcionadas à população em situação de rua no município de Franca/SP. Para uma maior aproximação ao objeto de estudo é necessário compreender o contexto histórico, político, social e econômico, que acirram a questão social e configuram o fenômeno população em situação de rua. O desenvolvimento do modo de produção capitalista e as transformações que vieram com este processo contribuíram em ordem crescente para o aumento das desigualdades sociais e da extrema pobreza. Neste sentido, o fenômeno população em situação de rua deve ser compreendido no interior das relações sociais que configuram o modo de produção capitalista. É, portanto, um fenômeno complexo, que não se reduz a um fator monocausal e pode ser determinado por múltiplos fatores, mas suas causas estruturais se relacionam ao modo de organização societária e a forma como o trabalho se organiza nesta sociedade. Para a autora Silva (2009, p. 105), pesquisadora do fenômeno em questão e referência fundamental para este estudo, a população em situação de rua pressupõe múltiplas determinações, ou seja, há uma multiplicidade de fatores que conduzem a tal situação, fatores estruturais relacionados “a ausência de moradia, inexistência de trabalho e renda, mudanças econômicas e institucionais de forte impacto social”, ou ainda, pode ser determinado por fatores biográficos, relacionado às “[...] rupturas de vínculos familiares, doenças mentais, consumo frequente de álcool e drogas, etc.” No entanto, o que a autora enfatiza é que este fenômeno não se explica a partir de um único determinante, mas ressalta que “[...] a história revela que as causas estruturais desse fenômeno vinculam-se a estrutura da sociedade capitalista, sua produção e reprodução têm bases nos processos imanentes à acumulação do capital.” (SILVA, 2009, p. 106).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 50 A população em situação de rua é uma das expressões mais radicais da questão social, portanto, precisa ser compreendida através de uma análise histórica, que possibilite entender a sua estrutura e reprodução a partir de uma perspectiva de totalidade, no interior das relações sociais engendradas pela sociedade capitalista.

1 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: SUBPRODUTO DO CAPITALISMO

A população em situação de rua representa uma das expressões mais radicais da questão social. De acordo com Silva (2009, p. 207) o fenômeno população em situação de rua é uma expressão inconteste das desigualdades sociais resultantes das relações sociais capitalistas, que se desenvolvem a partir do eixo capital/trabalho. E, como tal, é expressão da questão social. Neste sentido Montaño (2012, p. 10) considera que o próprio desenvolvimento do modo de produção capitalista gera pobreza e desigualdade social, como já evidenciado por Marx, quanto mais se desenvolvem as forças produtivas, maior acumulação ampliada de capital e maior pobreza. Assim, não é a escassez que gera a pobreza, mas a concentração da riqueza nas mãos de poucos que gera desigualdade e pauperização. A partir de uma perspectiva histórica nota-se que o fenômeno do pauperismo está presente desde as sociedades pré-industriais da Europa, no período da acumulação primitiva, momento em que os camponeses foram expropriados e expulsos de suas terras, sem que a indústria que começava a emergir, nas cidades, os absorvesse com a mesma velocidade com que os trabalhadores se tornavam disponíveis. É, sobretudo, neste contexto que se gesta o fenômeno população em situação de rua, desdobramento do pauperismo, e da acumulação capitalista. Assim, as condições históricas, econômicas, sociais que produziram e que constantemente reproduzem o fenômeno população em situação de rua sob a ótica capitalista são igualmente as que ofereceram as bases para o fortalecimento e acumulação de capital. A produção e reprodução do capital e os contornos complexos que foi adquirindo a partir de seu desenvolvimento levou ao crescimento do exército industrial de reserva com rebatimentos claros na oferta e procura de trabalho. Por conseguinte, a população em situação de rua se insere na superpopulação relativa, e corresponde à parcela excessivamente aviltada

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 51 do proletariado, caracterizada como “lumpem proletariado”, que nos termos de Marx (2013, p. 208) é composto por aqueles que são considerados vagabundos, delinquentes, prostitutas, os órfãos e as crianças indigentes, os degradados, maltrapilhos e incapacitados para o trabalho. Compõe também a população estagnada, aqueles que se encontram no mercado de trabalho informal, que desenvolvem trabalhos precários e irregulares. O desenvolvimento do capitalismo pressupõe também crises cíclicas, geradas pelo próprio modo de produção. A crise vivenciada em 1929 colocou em questão o liberalismo. Silva (2009, p. 67) analisa que nesta crise os excedentes de mercadorias não podiam ser vendidos e como consequência o desemprego aumentava. As estratégias de enfrentamento da crise articulou os âmbitos políticos, sociais e econômicos, que resultou em uma forma de regulação através do modelo de produção fordista e dos princípios keynesiano e beveridgiano, cujas propostas salientavam a intervenção do Estado nas áreas social e econômica, consolidaram a formação do Estado de Bem Estar Social, no pós-segunda guerra mundial. Este período representou 30 anos de crescimento econômico e de ampliação dos direitos sociais, principalmente nos países de capitalismo central. Este crescimento aconteceu no período de 1945 até o início dos anos 1970, momento em que iniciou uma nova crise estrutural impulsionada pela elevação dos preços do petróleo. Em 1973, esta crise representou os primeiros sinais de enfraquecimento do modelo de produção fordista e dos ideais keynesianos. Antunes (1999, p. 21) evidencia que a crise da década de 1970 fez com que o capital implantasse um vastíssimo processo de reestruturação, com vistas à recuperação de seu ciclo de reprodução. O desenvolvimento do ideário neoliberal aconteceu em consonância com a crise do Estado de Bem Estar Social. O neoliberalismo passou a ditar o ideário e o programa a serem implementados pelos países capitalistas, inicialmente no centro e logo depois nos países subordinados, contemplando reestruturação produtiva, privatização acelerada, enxugamento do estado, políticas fiscais e monetárias, sintonizadas com os organismos mundiais de hegemonia do capital como o Fundo Monetário Internacional. (ANTUNES, 1999, p. 22). Com o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas houve a intensificação e a precarização da força de trabalho. O ideário neoliberal chegou, mais fortemente, na América Latina, nos países de capitalismo

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 52 periférico após os preceitos do Consenso de Washington1 em 1989, que propunha políticas de ajuste fiscal como forma de superar a crise econômica. No Brasil, o processo de reestruturação produtiva se ampliou a partir de 1990, com a adesão às políticas neoliberais, mais precisamente no governo Fernando Henrique Cardoso.Segundo Silva (2009, p. 200) com o avanço do neoliberalismo e da reestruturação produtiva no Brasil houve consequentemente a ampliação do mercado informal de trabalho, a expansão do desemprego e também a redução das ocupações na polivalente área industrial que colaborou para a expansão do exército industrial de reserva. Uma vez que, “[...] o mundo do trabalho atual tem recusado os trabalhadores herdeiros da ‘cultura fordista’ fortemente especializados, que são substituídos pelo trabalhador ‘polivalente e multifuncional’ da era toyotista.” (ANTUNES; ALVES, 2004, p. 339). É neste sentido, que as mudanças ocorridas no mundo do trabalho têm relação com o fenômeno população em situação de rua, uma vez que “[...] as principais ocupações desenvolvidas pelas pessoas em situação de rua, antes da condição de rua, eram exatamente as ocupações que mais perderam postos de trabalho, que exigiam alguma qualificação, geralmente vinculadas ao setor industrial.” (SILVA, 2009, p. 215). Essa forma de organização do processo produtivo aliado ao ideário neoliberal provocou o desmonte das relações de trabalho e das condições de vida da classe trabalhadora. Neste período, o agravamento da questão social contribuiu para que um contingente da população fizesse das ruas seu espaço de moradia e/ou sobrevivência e houvesse um aumento das pessoas em situação de rua nos grandes centros urbanos, incluindo-se aí crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos e famílias (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME, 2011, p. 14). A autora Silva (2009, p. 197), salienta que no período de reestruturação produtiva no Brasil e do avanço do ideário neoliberal, na

1 Resultado de uma conferência que ocorreu em Washington nos Estados Unidos, para a qual foram convidados economistas de oito países latino-americanos – Argentina, Brasil, Chile, México, Venezuela, , Peru e Bolívia, com a finalidade de formular um diagnóstico e sugerir medidas de ajustamento para a superação da crise. “[...] o economista norte-americano John Williamson apresentou um documento, que continha dez propostas de reforma econômica [...]. As propostas, visando à estabilização monetária e ao pleno restabelecimento das leis de mercado, consistiam em: 1 – disciplina fiscal; 2 – mudanças das prioridades no gasto público; 3 – reforma tributária; 4 – taxas de juros positivas; 5 – taxas de câmbio de acordo com as lei do mercado; 6 – liberalização do comércio; 7 – fim das restrições aos investimentos estrangeiros; 8 – privatização das empresas estatais; 9 – desregulamentação das atividades econômicas; 10 – garantia dos direitos de propriedade.” (BANDEIRA, 2002, p. 135).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 53 década de 1990, pode-se perceber a presença cada vez maior de pessoas em situação de rua nos maiores centros urbanos do país. “Indivíduos e famílias em situação de extrema pobreza compõem, de forma marcante, o cenário das ruas das cidades, na luta pela sobrevivência.” Conforme a Política Nacional para a População em Situação de Rua (BRASIL, 2009a) Art. 1º [...]

Parágrafo único. [...] considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. Neste sentido, é importante apontar que apesar da multiplicidade de fatores que conduzem as pessoas em situação de rua, três aspectos se vinculam na caracterização desta população: a inexistência de moradia convencional, a pobreza extrema e os vínculos familiares rompidos ou fragilizados.

2 POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DIRECIONADAS À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

Em meio a este cenário de radicalismo neoliberal, já havia sido promulgada a Constituição Federal de 1988, que emergiu na contramão dos ditames neoliberais, conhecida como Constituição Cidadã, ampliando os direitos sociais e inaugurando o sistema de Seguridade Social brasileiro. Para compreendermos o processo de atenção à população em situação de rua no Brasil faz-se necessário compreender a Política de Assistência Social, que compõe o tripé da Seguridade Social brasileira ao lado da Política de Saúde e da Previdência Social. A Assistência Social foi instituída pelos Arts. 203 e 204 da Constituição Federal. Contudo, apenas em 2004 foi implementada a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), por meio da resolução n.145, aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), que coloca a Assistência Social como uma política que tem por dever desenvolver ações de prevenção, proteção, promoção e inserção, prevenindo

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 54 a vulnerabilidade e o risco social e buscando atender as necessidades emergentes ou permanentes decorrentes de problemas pessoais ou sociais de seus usuários (SIMÕES, 2014, p. 320). [...] essa política inaugura uma outra perspectiva de análise ao tornar visíveis aqueles setores da sociedade brasileira tradicionalmente tidos como invisíveis ou excluídos das estatísticas – população em situação de rua, adolescentes em conflito com a lei, indígenas, quilombolas, idosos, pessoas com deficiência. (BRASIL, 2009b, p. 16). É nesta perspectiva que o presente estudo busca compreender os serviços de atenção à população em situação de rua ofertados pela rede socioassistencial do município de Franca/SP, conhecendo as possibilidades que oferecem no que se refere à proteção social e a ampliação dos direitos sociais dos usuários. Como forma de conseguir que os direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988 fossem concretizados, movimentos que se organizavam em favor da população em situação de rua reivindicaram a implantação de políticas públicas de atenção a este segmento. Como resultado do “massacre da Sé”, quando 16 pessoas em situação de rua foram agredidas e sete foram assassinadas na região da grande São Paulo, em 2004, diversos movimentos sociais sentiram a necessidade de se organizarem e reivindicarem a elaboração de uma proposta de política nacional para a população em situação de rua. Pessoas em situação de rua, de diversos locais do Brasil, lideranças desse segmento participaram em setembro de 2005 do 4° Festival Lixo e Cidadania, e foi durante este festival que emergiu o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). Assim, a Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), percebeu que era necessário criar estratégias a fim de organizar políticas públicas voltadas a este segmento populacional, sendo então realizado o I Encontro Nacional de População em Situação de Rua em 2005. Em decorrência desse Encontro foi aprovada a Lei n. 11.258, de 30 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005), que altera o Art. 23 da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) - Lei n. 8.742/93 (BRASIL, 1993), para acrescentar o serviço de atendimento à população em situação de rua. Em 2007, iniciou o processo de elaboração da Política Nacional para a População em Situação de Rua. E em 2009, foi realizado o II Encontro Nacional sobre população em situação de Rua, como desdobramento do I

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 55 e para socializar os dados da pesquisa concluída em 2008, neste Encontro foi aprovada a proposta de Política Nacional para População em Situação de Rua, regulamentada pelo Decreto n. 7.053 de 23 de dezembro de 2009 (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME, 2011, p. 18). Para maior consolidação do SUAS foi aprovado em 11 de novembro de 2009 pelo Conselho Nacional de Assistência Social a Resolução n. 109/2009 (CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2009), que dispõe sobre a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, que traz em seu artigo 1° os Serviços de Proteção Especial de Média Complexidade, no qual insere o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua e o Serviço Especializado em Abordagem Social, assegurando também os Serviços de Proteção Especial de Alta Complexidade, por meio do acolhimento institucional (para indivíduos e famílias em situação de rua) e o serviço de acolhimento em República (para pessoas em processo de saída das ruas). Os serviços no âmbito da proteção social de média complexidade são ofertados através do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP). O Art. 7° do Decreto n. 7.053/2009 assegura a implementação de centros de referência especializados para atendimento da população em situação de rua. Além do serviço especializado o Centro POP pode ofertar o Serviço Especializado em Abordagem Social, de acordo com o planejamento da gestão local. Conforme a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (2009), o Centro POP deve funcionar nos dias úteis, com possibilidade de funcionar em feriados, finais de semana e período noturno, sendo o período mínimo de funcionamento durante cinco dias na semana e por 8 horas diárias. A implantação e a oferta de serviço(s) pelo Centro POP devem ser planejadas, de modo a imprimir uma concepção garantidora de direitos para a inclusão social e a construção de novos projetos de vida das pessoas em situação de rua, rompendo com culturas pautadas no preconceito, na intolerância e no assistencialismo. (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME, 2011, p. 43). O município de Franca/SP de acordo com o Plano Municipal de Assistência Social 2014-2017 (PREFEITURA MUNICIPAL DE

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 56 FRANCA, 2015), conta com dois serviços sociassistenciais destinados a população em situação de rua, o Centro POP tem a finalidade de assegurar o acompanhamento especializado a população em situação de rua, por meio de atendimentos individuais e coletivos e oficinas que visam o fortalecimento ou a construção de novos vínculos interpessoais, tendo em vista a construção de novos projetos de vida que viabilizem o processo gradativo de saída da situação de rua. E o Abrigo Provisório, serviço administrado pelo terceiro setor, que oferece acolhimento institucional para adultos e famílias em situação de rua, visa o restabelecimento dos vínculos sociais e a construção da autonomia dos usuários, possui um tempo de permanência limitado. Estes serviços socioassistenciais direcionadas a população em situação de rua no município de Franca/SP precisam ser analisadas em consonância com as ações previstas pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e com a tipificação nacional dos serviços socioassistenciais (CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2009) a fim de compreender se as políticas e os serviços socioassistencias estão sendo implementados e executados de acordo com o que a legislação dispõe. O Centro POP de Franca/SP foi inaugurado em setembro de 2013 e está vinculado à Secretaria de Ação Social. Outro serviço ofertado é o Abrigo institucional que oferece a indivíduos e famílias acolhimento temporário, segundo Tozatto (2014, p. 58) a prefeitura de Franca/SP promoveu em 2014 a terceirização do Abrigo Provisório, destinado a população em situação de rua, que passou a ser administrado pela instituição religiosa católica “Casa de Acolhida Filhos Prediletos”. É necessário refletir acerca do processo de terceirização e da ausência do Estado na execução e responsabilização das políticas de assistência social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com bases nos estudos sobre a população em situação de rua foi possível perceber que o desenvolvimento do capitalismo atrelado ao ideário neoliberal contribuiu para o aumento gradativo dessa população. Neste sentido, em um contexto de radicalismo e de ortodoxia neoliberal com rebatimentos, sobretudo, nas políticas sociais, que cada vez mais estão focalizadas e restritas na atenção à pobreza extrema, compostas por um escopo contraditório que visa ao mesmo tempo atenuar a pobreza e por outro lado visapermitir produção e reprodução do capital, pouco

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 57 tem feito no sentido de cumprir essa função estratégica, porque não tem conseguido amenizar as expressões da questão social em um cenário que apresenta sua face mais perversa. No entanto, é preponderante ressaltar que os limites das políticas sociais esbarram em fenômenos de ordem estrutural como: desemprego, falta de moradia, má distribuição de renda, assim, não é possível estruturar políticas sociais grandiosas em um cenário de crescente exploração da força de trabalho, que se expressam em condições de vida aviltantes. A este respeito Yazbek (2007, p. 163) considera que diante dessa realidade “[...] esperar que das políticas sociais e assistenciais, e apenas delas, resultem melhorias no bem-estar social das classes subalternizadas é ilusório e ineficaz.” Contudo, é importante reconhecer os avanços tanto que a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) como a Política Nacional para a População em Situação de Rua representam, no sentido de dar visibilidade a esse segmento, mas não se deve ter a ingenuidade de acreditar que por si só são capazes de resolver os problemas estruturais que compõem o fenômeno população em situação de rua, problemas que podem ser superados com a superação da ordem capitalista, cuja direção social é defendida no projeto ético político do Serviço Social “[...] construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero.” (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2011, p. 24). A partir das reflexões também foi possível concluir que no município de Franca/SP não existe ainda uma política consolidada para a população em situação de rua. O que existe são serviços pontuais que buscam se adequar aos preceitos da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), ameaçados pela instabilidade do momento de focalização, terceirização e desresponsabilização do Estado no que se refere aos direitos sociais.

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 60 A CIDADE-MERCADORIA: A LÓGICA DA ACUMULAÇÃO DO CAPITAL

THE CITY-MERCHANDISE: THE LOGIC OF CAPITAL ACCUMULATION Márcia Maria Cunha * RESUMO: Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o desenvolvimento das cidades, direcionado pela lógica da acumulação capitalista e pelos interesses imobiliários, que a transformaram numa mercadoria, excluindo de seu acesso a maior parte da população, relegando-a à " não-cidade". Para isso, serão revisitados os conceitos de: acumulação do capital, produção do espaço urbano, planejamento urbano e direito à cidade. Posteriormente, serão mencionadas algumas ações para fazer frente a este cenário. Palavras-chave: cidade-mercadoria. exclusão social. acumulação capitalista. direito à cidade. ABSTRACT: This work aims at the development of cities, directed to capitalist accumulation and real estate, becoming a commodity, excluding its access to the majority of the population, relegating it to "non-city". For this, the concepts of accumulation of capital, production of urban space, urban planning and right to the city will be revisited. Subsequently, something will be scored to deal with this scenario. Keywords: city-commodity. social exclusion. capitalist accumulation. right to the city.

INTRODUÇÃO

As cidades, desde a sua origem, são marcadas por conflitos de interesses, disputas de poder, privilégios, contradições e desigualdades. São representadas por espaços socialmente produzidos, onde se estabelecem as relações de produção e reprodução da vida social, e é nelas que a maioria das pessoas trabalha, mora, se locomove, estuda, exerce a vida política e constitui suas famílias. Em cada período da história a cidade se desenvolveu em torno de uma função e de uma organização política e administrativa. Com a transição do sistema feudal para o capitalista a partir do século XV, a produção, que se dava no campo, passou a ocorrer na cidade. Impulsionada pelo processo de industrialização, a cidade passa a ser urbanizada. Para Vainer (2015), as cidades brasileiras nascem como cidades escravistas que passam por um processo de transformação com o fim da escravidão e o início do desenvolvimento capitalista urbano e industrial, * Graduada em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social de - Instituição Toledo de Ensino (ITE). Pós-graduada em Gestão de Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Bauru - Instituição Toledo de Ensino (ITE). Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS/ Unesp Câmpus de Franca).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 61 acompanhado de um progressivo processo de urbanização; este se verifica, sobretudo, a partir dos anos 30 e se intensifica no período pós-guerra, acelerando o processo de êxodo rural. Isso gera uma profunda crise agrária, que expulsa milhões de trabalhadores rurais para as cidades; estas, por sua vez, não oferecem condições minimamente dignas para receber esta população. As intervenções de urbanização do poder público nas cidades ao longo do tempo tiveram a proposta de modernizar o país e atender às necessidades de seus habitantes, porém, fundamentadas na propriedade privada e na concentração de terras, transformaram a cidade e os elementos que a envolvem em mercadorias, visando atender à lógica de acumulação do capital e excluindo do direito à cidade1 aqueles que não possuem condições de pagar por ela.

1 O PLANO DA CIDADE COMO MERCADORIA

A vida na cidade regida pelo sistema capitalista é organizada a partir da propriedade privada dos meios de produção e da terra, acumulação, mais- valia, trabalho assalariado, exército de reserva e exploração do trabalho. A acumulação capitalista é constituída pela criação da força de trabalho excedente (desempregados) e consiste em aplicar a mais-valia, obtida pela exploração da mão de obra, na ampliação do próprio processo produtivo, a fim de se reproduzir continuadamente. Para Marx (1996, p. 251): Força de trabalho é aí comprada não para satisfazer, mediante seu serviço ou seu produto, às necessidades pessoais do comprador. Sua finalidade é a valorização de seu capital, produção de mercadorias que contenham mais trabalho do que ele paga, portanto, que contenham uma parcela de valor que nada lhe custa e que, ainda assim, é realizada pela venda de mercadorias. Produção de mais-valia ou geração de excedente é a lei absoluta desse modo de produção. Na cidade capitalista, os espaços urbanos são transformados em instrumentos de acumulação do capital. Rolnik (1995, p. 39) considera que “O primeiro elemento que entra em jogo é o da mercantilização do

1 O conceito de direito à cidade, desenvolvido pelo sociólogo francês Henri Lefebvre em seu livro de 1968, Le droit à la ville, é definido como a “[...] forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao hábitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade).” (LEFEBVRE, 2011, p. 134).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 62 espaço, ou seja, a terra urbana, que era comunamente ocupada, passa a ser mercadoria - que se compra e vende [...].” Para Marx (1996, p. 165), “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie.” Ela possui um valor de uso, que está ligado à sua utilidade, e um valor de troca, que se refere à sua capacidade de ser trocada por outra mercadoria. O valor de troca de uma mercadoria é dado pela quantidade de trabalho humano nela contida, ou seja, pelo tempo de trabalho necessário para produzi-la. Segundo Lefebvre (2011), a cidade até o início do capitalismo era muito mais obra do que produto. A cidade era o centro não só da vida social, política e de acumulação de riquezas, mas um lugar de produção de conhecimento, técnicas e obras, ou seja, era muito mais um valor de uso que de troca. Na dinâmica do processo de produção do espaço urbano da sociedade capitalista, existe uma contradição entre valor de uso (vida cotidiana) e valor de troca (cidade como negócio). O valor de troca tende a se sobrepor ao valor de uso (CARLOS, 2007). Para Arantes (2009, p. 26), com base na tese de Malotch revisada por Peter Hell, a cidade vista como “cidade-negócio” está ancorada numa pseudomercadoria, que é o solo, sendo este outro nome dado para a natureza, que, aliás, não foi produzida pelo homem, muito menos para ser vendida num mercado. Na passagem da construção da cidade enquanto valor de uso para a cidade construída sob a égide do valor de troca, os espaços se transformam em mercadoria trocável, passando a orientar o planejamento político da cidade através da intervenção no espaço (CARLOS, 2007). A intervenção no espaço, por sua vez, se dá pela necessidade de organizar e direcionar o crescimento e o desenvolvimento das cidades, ou seja, a produção do espaço urbano. O Estado criou regulamentos, procedimentos, planos, legislações e instituições para dar conta de implementar o modelo de urbanização que estava sendo criado. Ao analisar a urbanização, Harvey (2012) considera que ela sempre foi um fenômeno de classe, já que o excedente é extraído de algum lugar e de alguém, enquanto o controle sobre sua distribuição repousa em umas poucas mãos. Para Villaça (1999, p. 195), desde o início da história do planejamento urbano no Brasil, os interesses imobiliários estavam

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 63 presentes nos grandes projetos urbanos, os quais patrocinavam, discutiam, defendiam ou atacavam. Na década de 30, quando se inicia o segundo período do planejamento urbano, as propostas de melhoramento e embelezamento, características do primeiro período, são substituídas pelas propostas de eficiência, ciência e técnica. Diante dos problemas urbanos torna-se impossível ignorá-los nos planos; assim, quando a preocupação social surge, o plano passa a não ser mais cumprido, transformando-se em plano-discurso, no plano que esconde ao invés de mostrar (MARICATO, 2009, p. 138). Para Villaça (1999), este período é marcado pela ênfase no discurso dominante, baseado na tentativa de esconder a origem dos problemas, entendido como consequência do crescimento caótico e descontrolado, atribuindo ao planejamento a função de solucioná-los por meio de técnicas e métodos bem definidos. O autor afirma que esse discurso está presente até hoje nos planejamentos urbanos. A elaboração da maior parte dos planos foi realizada por especialistas pouco engajados na realidade sociocultural local. A população não foi ouvida e, frequentemente, nem mesmo os técnicos municipais (Villaça, 1999 apud MARICATO, 2009, p. 139). Segundo Maricato (2009, p. 124), não é por falta de planos urbanísticos que as cidades brasileiras apresentam problemas graves. Não é também, necessariamente, devido à má qualidade desses planos, mas porque seu crescimento se faz ao largo dos planos aprovados nas Câmaras Municipais, que seguem interesses tradicionais da política local e grupos específicos ligados ao governo de plantão. Na busca de superar a crise capital, a partir da década de 70 foi introduzido um novo modelo de planejamento urbano chamado Planejamento Estratégico. No Brasil, o planejamento estratégico teve início em 1995, na cidade do Rio de Janeiro (Vainer, 2000b apud CARVALHO, 2000, p. 76). O planejamento estratégico é orientado pelas seguintes linhas: identificação de uma crise na centralidade econômica da cidade; necessidade de torná-la competitiva aos investimentos estrangeiros; uma ação que venda a imagem da cidade para o mundo, a partir da descoberta de algo que possa se constituir em sua marca de identidade; “parceria” entre os recursos públicos e o capital privado; busca de um consenso entre todos os atores urbanos, a fim de que o projeto possa ser realmente efetivado (BORJA E CASTELLS, 1996; ARANTES, 2000; VAINER, 2000b apud CARVALHO, 2000, p. 76).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 64 O novo modelo de planejamento urbano impõe para as cidades novas funções e novos desafios a serem enfrentados na busca de dar respostas às crises econômicas. Para Harvey (2012), com a necessidade perpétua do capital de encontrar terreno lucrativo para a produção e absorção de excedente, e considerando sua incapacidade de desenvolver atividades realmente produtivas, o capital busca a solução no meio urbano, ou seja, na cidade, para se sustentar. Assim, na busca interminável de acumular capital, a cidade e todos os benefícios decorrentes do processo de urbanização, como a moradia digna, os serviços públicos, como saúde e educação, os espaços e equipamentos de lazer, a infraestrutura, o transporte público, a mobilidade urbana e a segurança, transformam-se em mercadoria. Para atrair novos investimentos, a cidade precisa estar sempre “reinventando, revitalizando, e reestruturando” seus espaços, nos quais não cabe a classe trabalhadora.

2 A EXCLUSÃO E A VIDA NAS “NÃO CIDADES”

Historicamente, a apropriação dos espaços urbanos no Brasil se deu de forma desigual. Até 1850 não existia regulação para a posse da terra. Porém, a partir desta data, o governo estabeleceu que seu acesso dar-se-ia mediante a compra e venda, impossibilitando os escravos e os trabalhadores sem condições financeiras de se tonar proprietários. Enquanto os países desenvolvidos passaram por um processo de industrialização e, consequentemente, de urbanização de forma gradativa, o Brasil, a partir da década de 1950, em um período de apenas 60 anos, deixou de ser um país de população rural, constituindo-se em um país urbano, com 84,4% de sua população residindo na cidade (IBGE2, 2018a). Esse processo de urbanização acelerado e pautado pelos interesses do capital causou diversos problemas estruturais de ordem social e ambiental, como desemprego, pobreza, periferização, segregação socioespacial, gentrificação, poluição do ar e da água, falta de serviços públicos ede infraestrutura básica, falta de moradias, violência, entre outros. Na concepção do planejamento estratégico, os problemas urbanos prejudicam a “imagem” da cidade e, como eles não são a prioridade dos governos, o habitual é que sejam empurrados para longe do seu “cartão- postal”, de forma a não diminuir sua capacidade de fazer negócios.

2 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 65 Assim, o poder público se articula ao mercado imobiliário e investe recursos públicos em determinadas regiões, o que as torna caras, por serem bem localizadas e servidas de todos os benefícios urbanos, e de impossível acesso para a maioria da população, expulsa para locais cada vez mais distantes das áreas centrais, onde existe mais acessibilidade, infraestrutura, empregos, e equipamentos públicos. Sobre a importância da localização no espaço intraurbano, Santos (1987, p. 81, grifo nosso) pontua que: Cada homem vale pelo lugar onde está; o seu valor como produtor, consumidor, cidadão depende de sua localização no território. Seu valor vai mudando incessantemente, para melhor ou para pior, em função das diferenças de acessibilidade (tempo, frequência, preço) independentes de sua própria condição. Pessoas com as mesmas virtualidades, a mesma formação, até mesmo o mesmo salário, têm valor diferente segundo o lugar em que vivem: as oportunidades não são as mesmas. Por isso, a possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está. Assim, a diferenciação, a exclusividade e a qualidade dos espaços nas cidades determinam quem é mais cidadão do que o outro e quem apenas mora na cidade. A população de baixa renda, por viver à margem das regras mercadológicas de acesso à cidade e ser considerada “menos cidadã”, passa a ocupar a não-cidade e seus espaços deixados de lado pela urbanização formal, não interessantes para a especulação imobiliária, como as favelas na periferia ou os espaços que não cumprem sua função social, a exemplo dos imóveis abandonados nas áreas centrais, sendo essas as poucas alternativas de morar na cidade. Segundo Martins (2008, p. 50), a periferia é a designação dos espaços caracterizados pela urbanização patológica, pela negação do propriamente urbano e de um modo de habitar e viver urbanos. Ela se constitui em negação do progresso e da emancipação social prometida pela modernidade e pela urbanização. Em decorrência da forma como se deu o desenvolvimento urbano no país, a população de baixa renda enfrenta, histórica e cotidianamente, problemas estruturais que envolvem as mais diversas políticas públicas. De acordo com o estudo Aglomerados Subnormais ‒ primeiros resultados (IBGE, 2018b), 5,6% (3.224.529) do total de domicílios

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 66 brasileiros estão localizados nas áreas conhecidas como favelas, sendo 6.329 favelas espalhadas em 323 municípios. O estudo aponta também que existem 11.425.644 pessoas vivendo nas favelas, e destas, 3.936.869 são crianças e adolescentes com idade de 0 a 17 anos. Segundo a Fundação João Pinheiro (2015), o Brasil possui um déficit habitacional de 7,757 milhões de moradia. A maior parte do déficit é constituída por famílias com grande comprometimento de renda com o aluguel (3,27 milhões). Diante dos dados alarmantes sobre a falta de moradia, é importante compreender que o país vivencia uma crise habitacional, compreendida como [...] resultado da não possibilidade de compra ou pagamento de aluguel por grandes parcelas da população. Não pode ser vista como um problema conjuntural ou uma simples questão de equilíbrio entre oferta e demanda. Trata-se de uma defasagem “estabelecida” entre a necessidade social da habitação e a produção de moradias e equipamentos regulados por “leis economicistas” de desenvolvimento. (LEHFELD,1983, p. 9). Ao lado do enorme déficit habitacional, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) - 2015, o Brasil possui 7,906 milhões de imóveis vagos, 80,3% dos quais localizados em áreas urbanas e 19,7% em áreas rurais (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015). Apesar de o estudo não obter maiores informações sobre as condições desse estoque de moradias, o número de imóveis vazios é muito expressivo, sendo maior que o próprio déficit habitacional, o que poderia ser utilizado, através da aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade, como, por exemplo, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo, para resolver ou ao menos minimizar o problema da falta de moradia. Quanto à carência de infraestrutura urbana, dos domicílios inseridos no cálculo do déficit habitacional, 7,225 milhões de domicílios não são atendidos por, pelo menos, um dos serviços básicos como iluminação, abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo. A situação mais grave é a falta de esgotamento sanitário; são 6,859 milhões de domicílios sem acesso a este serviço no Brasil (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015). Os dados apontam que o problema da falta de moradia digna e o acesso à cidade formal têm tomado proporções gigantescas, compondo a chamada crise urbana, que revela formas de exclusão e profundas

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 67 desigualdades sociais no uso e apropriação da cidade pela população trabalhadora de baixa renda. Um estudo recente sobre o Perfil dos Municípios Brasileiros (IBGE, 2018c) identificou as seguintes situações de precariedade de habitações: 3.374 municípios (60,6%) possuem loteamentos irregulares e/ou clandestinos; 952 municípios (17,2%) possuem favelas, mocambos, palafitas ou assemelhados; há as ocupações de terrenos ou prédios por movimentos de moradia, registradas em 724 municípios (13,0%); e os cortiços, casas de cômodos ou cabeças de porco, verificados em 684 municípios (12,3%). Em relação à gestão e ao controle social da Política Habitacional, o estudo aponta que 2.212 municípios (39,7% do total) declararam possuir Plano Municipal de Habitação, 3.319 (59,6%) municípios possuem Conselho Municipal de Habitação, e 2.247 municípios (40,3%) possuem Fundo Municipal de Habitação. Contraditoriamente ao panorama de desigualdades sociais e à falta de institucionalização de órgãos de gestão e controle social da Política Urbana nas cidades apresentados nos dados oficiais, o Brasil possui uma das mais avançadas legislações urbanísticas do mundo. Com a Constituição Federal (CF) (BRASIL, 1988), o direito à propriedade passou a não ser absoluto, mas vinculado ao cumprimento da sua função social. Pela primeira vez na CF, a questão urbana foi juridicamente pautada no capítulo sobre a Política Urbana, que obrigou os municípios com mais de 20 mil habitantes a criar seus Planos Diretores, definidos como um instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, mas não estipulou um prazo, o que só foi estabelecido com o Estatuto das Cidades, criado em 2001 para regulamentar os Arts. 182 e 183 da Constituição Federal, que tratam da política de desenvolvimento urbano e da função social da propriedade (BRASIL, 2001). O Estatuto da Cidade trouxe importantes instrumentos urbanísticos, tributários e jurídicos, subordinados ao Plano Diretor e que visam garantir a sua efetividade, sendo o Plano Diretor o responsável pelo estabelecimento da política urbana na esfera municipal e pelo pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. É importante destacar que a criação e a aprovação do arcabouço legal sobre a política urbana se deram graças à atuação dos Movimentos Sociais pela Reforma Urbana, presentes no país desde o final da década de 1970. Apesar do avanço legal da política urbana, na prática existe um abismo entre o que está na lei e a realidade presente nos

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 68 espaços das cidades considerados informais ou ilegais, “reservados” à população de baixa renda. Segundo Maricato (2003, p. 27), [...] a ilegalidade urbanística convive com a ilegalidade na resolução de conflitos [...]. À dificuldade de acesso aos serviços de infraestrutura urbana (transporte precário, saneamento deficiente, drenagem inexistente, difícil acesso aos serviços de saúde, educação, cultura e creche, maior exposição à ocorrência de enchentes e desabamentos) somam-se menores oportunidades de empregos, maior exposição a violência (marginal ou policial), difícil acesso à justiça social, difícil acesso ao lazer, discriminação racial. A exclusão é um todo: social, econômica, ambiental, jurídica e cultural. Ou seja, a exclusão nas cidades é generalizada: de um lado, a ausência das políticas públicas, e de outro, a presença destas em forma de mercadorias disponíveis no mercado, para serem consumidas.

3 QUAIS AS POSSIBILIDADES?

Em face do cenário de desigualdades, violência e segregação vivenciado nas cidades brasileiras, é urgente a necessidade de se buscar novas experiências urbanas que desafiem a lógica da exclusão da população de baixa renda, imposta pelos interesses da acumulação do capital na produção do espaço urbano. O poder público precisa investir em políticas públicas que atendam às necessidades habitacionais e de serviços públicos da população, bem como implementar as legislações existentes. Para isso é necessário maior participação e mobilização da população nos espaços de controle social, a fim de exigir do Estado a materialização do direito à cidade, tendo em vista que a legislação por si só não consegue alterar a realidade urbana, decorrente de desigualdades históricas. Para Correa (2016, p. 43), a produção do espaço urbano não é resultado da “mão invisível do mercado”, nem do estado hegeliano ou de um capital abstrato, mas sim da ação de agentes sociais concretos, históricos, dotados de interesses, conflitos entre eles mesmos e com outros segmentos da sociedade. São eles os proprietários dos meios de produção,

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 69 os proprietários fundiários, os promotores imobiliários, o Estado e os grupos sociais excluídos. Neste sentido, é importante pensar que, enquanto agentes sociais, todos aqueles que vivem nas cidades têm a possibilidade e a responsabilidade de contribuir para a sua construção com ações coletivas que busquem torná-las um lugar mais justo e sustentável para se viver. Com a preocupação em buscar avançar nas discussões e nas práticas que repensem o viver na cidade e de fato transformem a realidade atual, em que a defesa do direito à propriedade privada está acima de todos os outros direitos e a cidade é vista como um negócio, é imprescindível, principalmente à Universidade e aos profissionais das diversas áreas que atuam na Política Urbana, em especial o Serviço Social, superar visões que levam ao fatalismo que de acordo com Iamamoto (2000, p. 20) considera a realidade como dada e sem possibilidade de mudança , ou o conservadorismo, que reforça o senso comum sobre os problemas urbanos. Tais visões devem ser substituídas por uma visão crítica da realidade. Para o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS, 2016, p. 55), o conhecimento dos dispositivos desenhados pelo sistema jurídico brasileiro, referidos ao desenho do espaço urbano (principalmente o Estatuto da Cidade), deve subsidiar reflexões e debates, na implantação de políticas de ocupação do solo, de forma a atender a interesses coletivos, na implementação dos marcos regulatórios da política urbana e no desenvolvimento de projetos urbanísticos e sociais. Isso significa o reconhecimento da moradia digna como direito social e forma de possibilitar o acesso à cidade, com segurança na posse e medidas de prevenção de despejos. Pedro Arantes (2013), ao discutir a Reforma Urbana no Brasil, considera que o que ocorreu no país foi uma (anti) reforma, e pontua que as universidades precisam renovar o ensino e a pesquisa e formar profissionais com outra visão dos problemas urbanos, e que os partidos, sindicatos e organizações de esquerda devem se dedicar mais profundamente ao tema das lutas urbanas. Ele acredita que o cidadão comum, se apoiado por grupos de debates e pesquisa acadêmica sérios, pode ser estimulado a pensar sua cidade, compreender sua história, e também a participar de coletivos que imaginem as cidades de outra forma. Maricato (2009, p. 173), ao abordar propostas alternativas de planejamento e gestão urbana, acredita que para definir técnicas, programas e instrumentos que possam constituir uma ação de resistência à exclusão,

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 70 faz-se necessária uma relação entre o conhecimento teórico e a realidade empírica do universo urbano, social e institucional brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para atender à lógica de acumulação do capital, as cidades vêm perdendo cada vez mais o seu valor de uso em detrimento do seu valor de troca, uma vez que elas e todos os elementos que as envolvem se tornaram mercadorias, excluindo de seu acesso a maior parte da população. O modelo do planejamento urbano ainda em curso foi voltado para os interesses do capital e do mercado imobiliário. Sem considerar a realidade social e desassociados das políticas públicas, os diversos planos elaborados ficaram somente no papel; já os problemas urbanos cresceram drasticamente com o aumento populacional nas cidades. Apesar de o Brasil possuir uma das legislações urbanísticas mais avançadas do mundo, voltada para a função social da propriedade e da cidade, os dados oficiais denunciam a profunda desigualdade social da população de baixa renda no acesso às políticas públicas como as de habitação e de saneamento básico. Diante da realidade social das cidades brasileiras, é necessário buscar novas experiências urbanas de enfrentamento da lógica da exclusão da população de baixa renda, estabelecida pelos interesses da acumulação do capital na produção do espaço urbano. É fundamental que haja maior participação e mobilização da população nos espaços de controle social, na luta pelos direitos sociais. As visões fatalistas, de que não há o que fazer, e conservadoras, que se baseiam no senso comum para entender os processos históricos da sociedade brasileira, precisam ser superadas e substituídas por uma visão crítica da realidade, principalmente por parte da Universidade e dos profissionais que atuam na Política Urbana. Aproximar-se da realidade é essencial para, a partir dela, pensar em novas possibilidades de superar os problemas vivenciados nas cidades, tendo como ponto central a sua função social. Propostas efetivas devem ser debatidas, considerando reflexões sobre qual a melhor forma de viver nas cidades, que relação se pretende estabelecer com o outro e com a natureza, como pretende locomover-se, em qual local morar e quais equipamentos públicos são necessários.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 71 Imaginar como a vida pode ser nas cidades e, a partir disso, ressignificar as relações com o espaço urbano e buscar reconstruí-las, por meio da luta pelo direito à cidade, torna-se um imperativo para aqueles que acreditam na mudança.

REFERÊNCIAS

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 74 EIXO TEMÁTICO: POLÍTICA SOCIAL E SEGURIDADE SOCIAL

PERSPECTIVA DA SEGURIDADE NO CONTEXTO DO SERVIÇO SOCIAL

SECURITY PERSPECTIVE IN THE CONTEXT OF SOCIAL WORK Amanda Gabrielle Osório * RESUMO: A presente pesquisa se insere no curso de Serviço Social, nível Bacharelado, realizada junto à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus Franca. O propósito desta pesquisa é apresentar uma reflexão teórica acerca da construção da seguridade no âmbito do Serviço Social, perpassando por desenvolvimentos históricos que culminaram com a demanda que é ofertada nos dias atuais, desse maneira, os objetivos podem ser compreendidos como compreender o papel da seguridade dentro do Serviço Social, tendo como matriz norteadora a conceitualização da formatação do conceito de seguridade e sua aplicação no âmbito nacional. Entre os autores que formam o aporte teórico sobre essa pesquisa destacam-se Mioto e Nogueira (2013), Pereira (2009) e Boschetti (2006). Para atender os anseios da investigação, o estudo desenvolveu a pesquisa bibliográfica a partir de leituras das obras disponíveis em bases de dados, bem como livros pertencentes às bibliotecas das Universidades públicas e privadas. Esta pesquisa se justifica na medida em que a informação que será gerada mediante a investigação contribuirá de maneira satisfatória para a reflexão a respeito seguridade no Brasil. Dentre as conclusões auferidas se destaca a formulação das teorias sobre o sistema de seguridade brasileiro não é empregado em sua totalidade o que dificulta a aplicação de um Estado de bem estar, além disso, suas políticas sociais e públicas são desmembradas como diz Boschetti (2006), dificultando mais ainda a efetivação doWelfare State. Palavras-chave: seguridade. políticas sociais. Serviço Social. ABSTRACT: The present research is part of the Social Service course, Bachelor level, held at the School of Humanities and Social Sciences of the São Paulo State University "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp), Câmpus Franca. The purpose of this research is to present a theoretical reflection about the construction of security in the scope of Social Service, passing through historical developments that culminated with the demand that is offered in the present day, in this way, the objectives can be understood as understanding the role of security within the Social Service, having as guiding matrix the conceptualization of the format of the concept of security and its application in the national scope. Among the authors that form the theoretical contribution on this research stand out Mioto & Nogueira (2013), Pereira (2009) and Boschetti (2006). In order to meet the research's needs, the study developed bibliographical research based on readings of the works available in databases, as well as books belonging to public and private university libraries. This research is justified to the extent that the information that will be generated through the investigation will contribute in a satisfactory way to the reflection about security in Brazil. Among the conclusions drawn, the formulation of theories about the Brazilian security system is not used in its totality, which makes it difficult to apply a welfare state. In addition, its social and public policies are dismembered as Boschetti (2006), making it more difficult to implement the Welfare State. Keywords: security. social policies. Social Work.

* Bacharelado em Serviço Social – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Câmpus Franca (em andamento).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 77 INTRODUÇÃO

O artigo cientifico que será apresentado a partir das laudas seguintes tem por intuito apresentar uma pesquisa oriunda de estudos relacionados a disciplina de Politica Social I, oferecida no 2º ano do curso de Serviço Social da Unesp Franca, ministrada pela Profª Dra. Patrícia Soraya Mustafa. Dentro os objetivos do curso estavam compreender as politicas públicas e a relação ontológica entre questão social e política social. A partir dessa perspectiva surgiu o questionamento: como se dá a seguridade no contexto do Serviço Social? Através dessa problemática nasceram os objetivos que balizam o diferencial dessa pesquisa que são: observar o papel da seguridade dentro do Serviço Social, tendo como matriz norteadora a conceitualização da formatação do conceito de seguridade e sua aplicação no âmbito nacional. Dessa forma, a pesquisa até a priori está sendo desenvolvida metodologicamente com viés da busca por bibliografias tendo como fonte de pesquisa estudos que possuem por temática a seguridade aplicada ao Serviço Social. Através disso, a consulta em busca dos referenciais foi realizada nas bibliotecas estaduais de São Paulo, bem como em revistas eletrônicas e livros disponíveis para acesso virtual. Assim sendo, até o momento trata-se de uma pesquisa de caráter bibliográfico. A pesquisa se justifica no sentido de compreender como é entendido o conceito de seguridade no Brasil e a partir desse entendimento posicionar os assistentes sociais sobre a importância de possuírem em sua formação este conhecimento e de que forma é fundamental para que se estabeleça em sua plenitude um Estado de verdadeiro bem estar. Sendo assim o texto procurará trazer em seu primeiro momento autores que trabalham a questão da concretização do conceito de seguridade social, para que em seu segundo momento a obra aborde a questão desse conceito aplicado ao campo do Serviço Social, através disso chegando a conclusão que é um campo teórico em construção que demanda estudos voltados para à temática atrelados a politicas públicas sociais que garantam e reforçam a necessidade social da população.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 78 1 APONTAMENTOS DO CONCEITO DE SEGURIDADE SOCIAL

Para analisarmos o conceito de seguridade se faz necessário o termo inglês Welfare State, o qual segundo o que é abordado de acordo com Pereira (2009), levando em conta a ideia de que o individuo possui direitos indissociáveis a sua existência enquanto cidadão, sendo que que essa apropriação social se da a partir de leis estabelecidas pelo Estado em que se faz vigente a partir do nascimento do sujeito e sua inserção no contexto social. De acordo com esta concepção, todo o indivíduo tem o direito, desde seu nascimento, a um conjunto de bens e serviços que devem lhe ser oferecidos e garantidos de forma direta através do Estado, ou indiretamente, desde que esse exerça seu papel de regulador dentro da própria sociedade civil. Ou seja, segundo Pereira (2009, p. 23) o Welfare State pode ainda de conceituar como: “Moderno modelo estatal de intervenção na economia de mercado que, ao contrário do modelo liberal que o antecedeu , fortaleceu expandiu o setor público e implantou e geriu sistemas de proteção social.” Dessa forma percebemos que para que se tenha um Estado de bem estar social é imprescindível que haja um sistema amplo de proteção. Ainda para Pereira (2009), o Welfare State tem origens no século XIX, e nasce como resposta aos conflitos sociais dessa época, esses podem ser entendidos como fundamentais para a criação do mesmo, e, portanto é importante entendermos como se deu a luta por direitos sociais que Marx e Engels (1848) buscam analisar e compreender. Outro ponto relevante é que no século XIX em meio a Revolução Industrial, que para Pereira (2009) também contribuiu para a instauração de politicas sociais que visassem solucionar e sessar os conflitos de cunho social, surgiu uma nova classe, a burguesia, a qual para Marx e Engels “Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte.” (MARX; ENGELS, 2005, p. 12). Com base nos fatos apresentados, observamos que a burguesia dominou os mercados a fim de explorar e fomentar a economia, e nesse momento surge à necessidade de amenizar os conflitos gerados pelos trabalhadores que lutavam pelos seus direitos contra a nova classe que surgia, os quais eram os donos das máquinas que foram responsáveis pela substituição da mão de obra do trabalhador, e na visão de Marx e

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 79 Engels (1848), esses trabalhadores deveriam se rebelar e pegar em armas para a destruição das máquinas e para garantir seus direitos como cidadão (PEREIRA, 2009). Retomando o que anteriormente foi dito, é em meio a esse cenário que nasce as politicas sociais, o sistema de seguridade e consequentemente o Welfare State, dessa forma o século XIX, na Inglaterra, é responsável por tais acontecimentos e nele encontramos esse cenário de lutas e posteriormente a necessidade de resolução como diz Pereira (2009, p. 119): “É no bojo desse duplo movimento tenso e contraditório, sensível, ao mesmo tempo, aos interesses do capital e do trabalho, que nasce a politica social moderna, integrante de um complexo politico-institucional mais tarde denominado Welfare State ou Estado de bem estar social.” Estamos pontuando ser necessário que se tenha a aplicação de politicas sociais, e assim como definimos Welfare State, também devemos definir politica social, que na concepção de Vianna (2002), pode ser denominada como um campo das ciências sociais entendida por uma modalidade de politica pública e como ação de governo com objetivos específicos. De acordo com o raciocínio, podemos citar Pereira (2009), que também procura conceitua-la, e vai além, uma vez que são várias tentativas de demarcar a origem da mesma, e se esbarram em parâmetros institucionais do Welfare State, e por essa perspectiva a politica social e Estado de bem estar seriam a mesma coisa, retornando ao ponto de que ambos segundo Pereira: “Constituíram fenômenos equivalentes, surgidos nos fins do século XIX, em resposta a conflitos sociais adensados pelo avanço da industrialização e por uma progressiva conquista popular de direitos.” (PEREIRA, 2009, p. 23). Como dito nos parágrafos acima politica social e Welfare State surgiram juntos oriundos de um período desordenado. Nesse cenário surgem novas ideias, e passa a ser fundamental instaurar o Estado de bem estar para amenizar o paradigma trabalho versus capital, e com esse aforismo foi implantado as ideias do economista John Maynard Keynes, elaborador da teoria Keynesiana, que ficou conhecida por Keynesianismo. Tal teoria segundo Keynes (1996) consistia em medidas para garantir que o mercado capitalista continuasse livre, e para tanto julgava ser necessário à intervenção do Estado na economia com o objetivo de controlar a inflação e garantir o pleno emprego, ou seja, que todos os adultos em idade apta a trabalhar estivessem empregados. Com a

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 80 aplicação de politicas sociais amplas, que quanto mais atendam uma parcela relativamente grande da população, mais o país e seu Estado serão considerados de bem estar. Agora se faz necessário explicarmos o conceito de seguridade, uma vez que o sistema de politicas sociais para todos, juntamente com as ideias Keynesianas de pleno emprego foram empregada juntas para compor o Welfare State. Dessa forma voltaremos ao ano de 1942, quando William Henry Beveridge, que foi um economista e reformista social britânico, elaborou ainda durante a Segunda Guerra Mundial, o “Report on Social Insurance and Allied Services”, conhecido como Plano Beveridge, que para Beveridge (1942) visava libertar o homem da necessidade. Suas ideias consistiam que todas as pessoas em idade ativa para o trabalho deveriam pagar um seguro para o Estado, ou seja, um tributo para que em contrapartida o governo, no caso inglês, encontra-se uma forma de combater para Beveridge (1942) os cinco maiores males da sociedade: a escassez, doença, ignorância, miséria e a ociosidade. Assim, o Estado proveria assistência social como, por exemplo, saúde, educação, seguridade e lazer. Para tanto o plano de seguridade social de Beveridge se opõe ao seguro social de Bismark, e aqui cabe falar de sua obra. Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen, foi um nobre, diplomata e político prussiano de grande destaque no século XIX, pois criou o seguro social na Alemanha, que colocava ser essencial assegurar os trabalhadores para que melhor trabalhassem e que o mercado tivesse um bom rendimento. Outro motivo para criação foi para que sessassem as greves de operários, assim como ocorrido com a seguridade na Inglaterra , e o primeiro plano foi voltado para a aposentadoria em 1880, na Alemanha, com o intuito de amenizar a insatisfação dos trabalhadores de não receberem nenhum beneficio depois de tantos anos de trabalho. Permanecendo nesse raciocínio o seguro de Bismark era para trabalhadores contribuintes, o que diferentemente para o plano de Beveridge a seguridade abrangia direitos contributivos, tanto quanto direitos não contributivos, ou seja, pessoas que não trabalhavam, assim como crianças, jovens e idosos, e todos eram contemplados pelo sistema. Outro ponto é que estamos falando de um período muito importante para história assim como diz Pereira: “O século XIX testemunhou, de fato, importantes mudanças na estrutura econômica e no sistema político das sociedades capitalistas centrais, as quais exigiram do Estado inéditas intervenções.” (PEREIRA, 2009, p. 30).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 81 Intervenções estas que não quebraram com o capitalismo, mas sim se aliaram a ele para fomentar a economia. O próprio Keynes segundo Pereira (2009) não quebra com o capitalismo, assim como Beveridge, e, além disso, o Welfare State não mexeu nas estruturas como argumenta Offe (2005, p. 212): O Welfare State não possui nenhuma semelhança com o que teóricos marxistas chamariam de processo revolucionário, isto é mudança estrutural básica. O que surge nele são novos elementos dentro de sociedades capitalistas adiantadas, mas não uma mudança básica dessas sociedades. Isto é, o Welfare State não alterou as relações econômicas e politicas de poder; não transformou o modo privado de produção lucrativa no trabalho público destinado à solução das necessidades humanas. Com essa argumentação podemos observar que de fato o emprego do Estado de bem estar social não quebrou definitivamente com o capitalismo e que muito pelo contrário, apenas introduziu novos parâmetros dentro da sociedade, para tentar estabiliza-la cada vez mais. Como dito, é na forma de contradição, entre capital versus trabalho que a politica social surge e com essa o Welfare State se instaura, apregoando o pleno emprego, certa estabilidade econômica e menores conflitos. Sendo assim, a seguridade surge como um sistema de politicas sociais para estabilizar a economia e os problemas da sociedade. Definida seguridade, observamos que mesmo com o Welfare State alguns países não modificaram suas estruturas, como é o caso brasileiro que estudaremos.

2 INTERVENÇÃO ESTATAL BRASILEIRA

No caso brasileiro o Welfare State e os direitos dos cidadãos perante as politicas sociais da seguridade são divergentes, e podemos observar algumas politicas aplicadas no Brasil e percebemos que nem todas contemplam a todos os indivíduos como descrito no plano Beveridge, e muitas são empregadas com base somente no seguro social de Bismark como diz Boschetti (2009, p. 1): Os direitos da seguridade social, sejam aqueles baseados no modelo alemão bismarckiano, como aqueles influenciados pelo modelo beveridgiano inglês, têm como parâmetro os direitos do trabalho, visto que desde sua origem, esses assumem a função de garantir benefícios derivados do

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 82 exercício do trabalho para os trabalhadores que perderam, momentânea ou permanentemente, sua capacidade laborativa. Assim, tanto um modelo como o outro tem por base a função de garantir o direito dos trabalhadores, uma vez que estando no trabalho esses sofrem o risco de se acidentar, adoecer, possuem necessidade de cuidar da família, que muitas vezes são compostos por crianças e idosos que não trabalham e principalmente precisam garantir que ao envelhecer possam receber uma aposentadoria. Porém os países que assim como o Brasil seguem o modelo bismarckiano para aplicar suas politicas em determinadas áreas, como dito anteriormente, não abrangem os direitos de todos, somente dos indivíduos que possuem trabalho. Sendo assim segundo Boschetti (2009, p. 1): Historicamente, o acesso ao trabalho sempre foi condição para garantir o acesso à seguridade social. Por isso, muitos trabalhadores desempregados não têm acesso a muitos direitos da seguridade social, sobretudo a previdência, visto que essa se move pela lógica do contrato, ou do seguro social. Observa-se que essa circunstancia pode ser entendida como realidade brasileira, a qual diariamente seus cidadãos que se encontram desempregados buscam meios para se sustentar, uma vez que ao não serem inseridos no mercado de trabalho durante a vida adulta, ao envelhecer não possuem o direito de aposentar. Ainda nessa perspectiva Boschetti (2009, p. 1): A seguridade social brasileira, instituída com a Constituição brasileira de 1988, incorporou princípios desses dois modelos, ao restringir a previdência aos trabalhadores contribuintes, universalizar a saúde e limitar a assistência social a quem dela necessitar. Em um contexto de agudas desigualdades sociais, pobreza estrutural e fortes relações informais de trabalho, esse modelo, que fica entre o seguro e a assistência, deixa sem acesso aos direitos da seguridade social uma parcela enorme da população. Percebemos nessa colocação um contraponto ao que anteriormente foi dito e colocado por Beveridge (1942) de que a seguridade social abrangeria direitos contributivos e não contributivos. No caso do Brasil isso não ocorre, uma vez que para se receber pela previdência social deve-se contribuir, com base no modelo de Bismark, e em caso de não contribuição não há essa politica.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 83 Importante frisar que foi em 1988 pela Constituição que houve o agrupamento de Politicas de Saúde, Previdência e Assistência Social, tendo em vista alcançar um programa de seguridade mais amplo, seguindo a visão de Beveridge e isso de fato não ocorreu como é dito por Boschetti (2003, p. 9): Após quinze anos, a Seguridade Social não foi implementada conforme previsto na Carta Magna, e as políticas que a compõem são executadas de forma desvinculada e praticamente sem relação entre si, não conformando um todo integrado e articulado. Também persiste uma tendência de confundir e restringir a Seguridade Social à Previdência, desconsiderando as demais políticas sociais (Saúde e Assistência). A Carta Magna brasileira foi promulgada em 1988, com o intuito de trazer as diretrizes da Politica de Inclusão Social e desde sua criação foram criadas leis tais como: Lei 7853/89 que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social.

Decreto – 3.298/99 que regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências.

Decreto 5.296/2004 que regulamenta as Leis nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, do mesmo ano, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Porém, como visto essas politicas estão sendo aplicadas de forma dessincronizadas. Ainda assim, o Brasil conta com alguns sistemas como, por exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS), também criado pela Constituição de 1988 a qual colocou ser imprescindível visar à saúde e coloca ser essa direito e dever do Estado. Não adentraremos nesse assunto, mas sim nesse ponto essencial o Estado. O Estado é a palavra chave desse texto, uma vez que com a introdução das ideias Keynesianas, esse passa a ser essencial para regular e prover a seguridade social. Somente existe Welfare State se houver intervenção direta do Estado na construção e efetivação das politicas sociais.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 84 O assistente social brasileiro tem a difícil tarefa de suprir as necessidades de seus usuários muitas das vezes não contemplados pelo sistema de politicas sociais, como mencionado nos parágrafos acima, e nem todos possuem o acesso à previdência social e a outros programas criados pelo sistema de seguridade brasileiro. O trabalho profissional percorre sobre politicas sociais de princípios e lógica de modelo bismarkiano na previdência social e de modelo beveridgiano como orientação para o sistema público de saúde (SUS). Já o auxilio doença pode ser visto como seguro saúde e esse são rígidos pelas normas da previdência social. Segundo Behring e Boschetti (2006) esse fato faz com que a seguridade brasileira percorra o seguro social e assistência social. Dessa forma a seguridade brasileira apresentará caráter universal ao se afastar da lógica do seguro social, já enquanto permanecer seguindo o modelo bismarckiano como na previdência com a lógica de seguro, o país ainda continuará a não apresentar caráter de seguridade social propriamente dita do modelo Beveridgiano. Ainda segundo Behring e Boschetti (2006), estamos longe de apresentar um padrão de seguridade social, e qual apesar de se ter obtido avanços com a Constituição, ainda assim possuem limites estruturais da ordem capitalista.

3 TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL INSERIDO NO SISTEMA DE SEGURIDADE SOCIAL

No Brasil o trabalho do assistente social tem surgimento nas décadas de 1930 e 1940, Segundo Iamamoto (2011) a gênese do Serviço Social brasileiro , enquanto profissão inscrita na divisão social do trabalho está relacionada ao contexto das grandes mobilizações da classe operária nas duas primeiras décadas do século XX, pois nessa época há o debate acerca da “questão social”, que atravessa a sociedade nesse período, o qual exigiu um posicionamento do Estado, das frações dominantes e da Igreja. Brevemente explicado o surgimento do Serviço Social no Brasil e sua emergência devido aos agravamentos da questão social, é importante analisarmos o trabalho profissional após a Constituição de 1988, uma vez que através dessa é que obtivemos uma semelhança com o sistema de seguridade social.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 85 Sendo responsável por fazer uma analise da realidade social e institucional e de intervir para melhorar as condições de vida do usuário das politicas públicas e sociais, o assistente social após as reformas ocorridas pela constituição, assim como qualquer outro profissão, sente a necessidade de se capacitar profissionalmente e buscar aprimorar suas habilidades de acordo com as diversas áreas de atuação. Sem dúvidas o trabalho profissional é árduo e exige estudo constante, pois só assim consegue-se obter melhores resultados diante a questão social. Segundo Mioto e Nogueira: O trabalho desenvolvido pelos profissionais nas esferas de formulação, gestão e execução da política social é, indiscutivelmente, peça importante para o processo de institucionalização das políticas públicas, tanto para a afirmação da lógica da garantia dos direitos sociais, como para a consolidação do projeto ético-político da profissão. Portanto, o enfrentamento dos desafios nesta área torna-se uma questão fundamental para a legitimidade ética, teórica e técnica da profissão. (MIOTO; NOGUEIRA, 2013, p. 65). Em outras palavras é imprescindível que o assistente social tenha consciência que seu trabalho é muito importante para garantir os direitos dos usuários e consolidar o projeto ético politico da profissão. É preciso que os profissionais se apropriem do debate sobre intervenção profissional e a necessidades de coloca-lo em prática. Porém ao colocar em prática se deparam com um cenário tensionado, cheio de contradições e interesses diversos, esses de cunho social públicos ou privados, os quais segundo Mioto e Nogueira (2013, p. 64): Nessas circunstâncias, os assistentes sociais se deparam com duas questões cruciais: a autonomia e a especificidade profissional. Em tese, significa enfrentar os dilemas que ainda persistem no debate sobre a prática profissional no Serviço Social e que no novo cenário brasileiro se reatualizam. Sobre a autonomia profissional, se concretiza a condição de trabalhador assalariado, tais circunstâncias impõem limites à condução de seu trabalho. Ou seja, segundo Iamamoto (2003) tal autonomia pode ser dilatada ou comprimida, dependendo das bases sociais que sustentam a direção projetada pelo profissional nas suas ações. A especificidade é entendida para cada autor de uma maneira diferente, assim como para Faleiros (1997) que diz serem as palavras chaves do serviço social como profissão a continuidade ou ruptura (com

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 86 as estratégias profissionais) tem como objetivo a emancipação do sujeito (a mudança). Já para Paulo Netto (1996) o serviço social tem por objetivo criar respostas às necessidades sociais. Assim o assiste social tem nas mãos a tarefa de emancipar seus usuários de acordo com suas estratégias profissionais visando criar respostas para a tão estudada questão social, almejando assim buscar além de respostas também mudanças para o cenário atual. Dessa forma, para que o trabalho do assistente social seja efetivado não podemos esquecer que o Estado deve se encarregar de promover uma distribuição de recursos para que se estabeleça de fato a seguridade e para que o assistente social possa atuar de fato, a fim de garantir os direitos dos usuários e desenvolvendo ou promovendo politicas públicas que possam respaldar o acesso da população aos serviços e benefícios sociais, além de preservar e lutar para que alcancemos um sistema integro de seguridade social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de esclarecermos todos os termos tais como Welfare State, politica social, Keynesianismo, seguro social bismarckiano e sistema de seguridade social, elaborado por Beveridge, percebemos que existem diferenças entre seguro social e seguridade, e que no Brasil ambos os modelos são empregados. Para tanto o sistema de seguridade brasileiro não é empregado em sua totalidade o que dificulta a aplicação de um Estado de bem estar, além disso, suas politicas sociais e públicas são desmembradas como diz Behring e Boschetti (2006), dificultando mais ainda a efetivação doWelfare State. Já para os assistentes sociais fica a difícil tarefa de enfrentar a questão social e junto a ele desenvolver projetos para supera-la e principalmente garantir os direitos de seus usuários diante a politicas sociais e públicas que como vimos é setorizado, ou seja, cada setor como no caso da previdência segue um modelo, como no caso o de seguro. Em suma, é importante realizarmos essa reflexão a cerca da questão das perspectivas da seguridade para o Serviço Social, uma vez que os assistentes sociais precisam estar conscientes do cenário que irão trabalhar e como poderão tentar realizar mudanças para alcançar o almejado Welfare State.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 87 REFERÊNCIAS

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 88 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 2005. MIOTO, Regina Celia Tamaso; NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro. Política social e Serviço Social: os desafios da intervenção profissional. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 16, n. esp., p. 61- 71, 2013. Disponível: http://www.scielo.br/pdf/rk/v16nspe/05.pdf. Acesso em: 27 jul. 2018. OFFE, Claus. Princípios de justiça social e o futuro do estado de bem- estar social. In: SOUZA, Draiton Gonzaga de; PETERSEN, Nokolai (org.). Globalização e justiça II. Porto Alegre: Edipucrs, 2005. PAULO NETTO, José. Transformações societárias e Serviço Social. Notas para uma análise prospectiva da profissão no Brasil. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, ano 17, n. 50, p. 87-132, abr. 1996. PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira e. Politica social: temas e questões. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2009. VIANNA, Maria Lucia Teixeira Werneck. Em torno do conceito de política social: notas introdutórias. Rio de Janeiro, dez. 2002. Disponível em: http://antigo.enap.gov.br/downloads/ec43ea4fMariaLucia1.pdf. Acesso em: 27 jul. 2018.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 89

ENVELHECIMENTO E ASSISTÊNCIA SOCIAL: A CONTRIBUIÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL E DO SCFV NESTE CONTEXTO

AGING AND SOCIAL ASSISTANCE: THE CONTRIBUTION OF THE SOCIAL SERVICE AND THE SCFV IN THIS CONTEXT Bruna Alves Gazeta * Camila Barbosa Vieira ** Daiana Cristina Nascimento *** RESUMO: Este ensaio teórico, dentro da perspectiva crítica, discorrerá sobre o envelhecimento na sociedade do capital e a contribuição da Política de Assistência Social neste contexto por meio do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). Considerando a categoria de totalidade, entendendo os contextos da pessoa idosa e sociedade no contexto atual de ofensiva neoliberal. Neste contexto reconhecendo a fertilidade do SCFV ao Serviço Social para a resistência junto o trabalho de base. Palavras-chave: envelhecimento. política de assistência social. serviço de convivência e fortalecimento de vínculos. ABSTRACT: This theoretical essay, within a critical perspective, will discuss aging in the society of capital and the contribution of the Social Assistance Policy in this context through the Service of Coexistence and Strengthening of Links (SCFV). Considering the category of totality, understanding the contexts of the elderly person and society in the current context of neoliberal offensive. In this context recognizing the fertility of the SCFV to the Social Service for the resistance along the base work. Keywords: aging. social assistance policy. service of coexistence and strengthening of links.

* Graduada em Serviço Social (2015) e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais–UNESP/Câmpus de Franca; Bolsista CAPES; Integrante e Pesquisadora do Grupo GESTA e QUAVISSS. Pós- Graduanda em Docência na Educação Superior pela Faculdade Barão de Mauá. * *Graduada em Serviço Social pelo Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos (2012) e especialização em Educação para Direitos Humanos Diversidade Cult, pela Universidade de Brasília (2015). Membro Pesquisadora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e da UNIFEB – Barretos. *** Mestranda em Serviço Social pela Faculdade de Ciência Humanas e Sociais / UNESP de Franca/SP, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES). Especialista na Saúde da Criança e do Adolescente pelo Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Famílias (GEPEFA) e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Políticas Públicas para a Infância e Adolescência (GEPPIA).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 91 1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO: A PESSOA IDOSA NA SOCIEDADE CAPITALISTA

Compreende-se que o processo de envelhecimento é um processo que se inicia na gestação, fazendo-se contínuo no decorrer da vida humana, de formas distintas para cada indivíduo, não podendo ser visto de maneira isolada, estando relacionado ao modo como cada um a vivencia, diante do contexto familiar, social, cultural e etc. Abarcar sobre o processo de envelhecimento dentro de uma perspectiva crítica-dialética exige compreensão sócio-histórica, sobretudo da sociabilidade capitalista, que desde muito cedo, do nascimento ao envelhecimento está presente na história do cidadão, explorando, suprimindo e empobrecendo a vida de todos. Ao contrario do que se pensa a estrutura demográfica, por faixa etária da população brasileira, não esta concentrada nos jovens. Com a diminuição da fecundidade, a queda na taxa de mortalidade infantil, o avanço da medicina, os cuidados e preocupação com a saúde, e alguns aspectos de melhoria da qualidade de vida, vem possibilitando maiores índices de longevidade, no entanto, na lógica societária capitalista este avanço é repleto de contradições, parte das expressões mais aguçadas da questão social que interferem diretamente no que diz respeito aos riscos e vulnerabilidades decorrentes ao processo de envelhecimento neste contexto. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE) informam que aproximadamente à década de 2050 a população idosa ultrapassará os 22.71% da população nacional, sendo a parcela etária com maior representatividade (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO, 2008, [p. 51]). Entendendo a questão da longevidade enquanto um fenômeno na contemporaneidade, visto que o cenário atual não se configura somente com o aumento da expectativa de vida humana, mas também com a mudança da pirâmide etária brasileira e suas necessidades especiais. “O Brasil se mostra um pais jovem de cabelos brancos” (VERAS, 2013). Destarte, configura-se de estrema importância compreender o envelhecimento a partir de uma perspectiva crítica, relacionando com os feitos da Política Pública a esta camada etária populacional. Sabe-se que as condições de vida e oportunidades em uma sociedade capitalista são dadas de formas desiguais, desta forma, parte-se do

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 92 pressuposto de que a pessoa-que-vive-do-trabalho ao envelhecer não vem tendo a garantia social necessária efetivada, vivenciando as contradições do sistema até mesmo no lócus da seguridade social, políticas essas que se encontram em constante desmantelamento, ameaçando até mesmo os cidadãos que contribuem de forma constante, como é o caso do sistema previdenciário. O terreno da Política de Assistência vive consoante ao eixo de políticas públicas, em tempos bicudos e de cortes, são as primeiras opções de redução de um governo que vem, cada vez mais, cerceando várias formas de direitos sociais.

2 A PESSOA IDOSA NA SOCIEDADE CAPITALISTA: A CONTRIBUIÇÃO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E O SCFV

A sociabilidade capitalista vem estimulando relações “líquidas” e “velozes”, com uma cultura moderna de imediaticidade, repletas de sinais propensos a mudar com rapidez e imprevisível, como coloca Bauman (2007): “Vivemos em tempos líquidos, nada foi feito para durar.” No que diz respeito à pessoa idosa não se faz diferente, observa- se que em tempos passados, não muito remotos, era possível ver a relativa importância efetivada á pessoa idosa, como o poder das decisões, liderança da família, respeito dos mais novos etc., o que vem sendo destilado na cultura contemporânea. Tais costumes vêm mudando com os mandos do sistema econômico, quais sob sua lógica têm se dissolvido e introjetado na vida social das famílias. Sendo perceptível a corrida exagerada em buscada juventude, o que vem sendo fortemente fomentada pelas indústrias cosméticas, alimentícias e farmacêuticas, dentre outras. Esse famigerado modelo econômico consegue estar presente na vida do cidadão em qualquer etapa da vida, deixou de ser um luxo concebido a uma pequena parcela da sociedade e consegue presença marcante em muitos aspectos relacionados à saúde, à proteção e até mesmo ao trabalho. Contexto este que deixa claro a lógica perversa do capitalismo, inserindo na cultura societária o desejo de “ser e ter” algo que o mercado diz ser necessário. Esse consumo abusivo tem sido inerente a todas as faixas etárias, algo cuidadosamente planejado pelo sistema capitalista para manter vivo em sua estratégia para alcançar grandes taxas de lucro e mais-valor. Quintana (2008, [p. 167], grifo nosso), corrobora para a desconstrução de estereótipos:

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 93 I Quando a idade dos reflexos, rápidos, inconscientes, cede lugar à idade das reflexões – terá sido a sabedoria que chegou? Não! Foi apenas a velhice. II Velhice é quando um dia as moças começam a nos tratar com respeito e os rapazes sem respeito nenhum. III Ora, ora! Não se preocupe com os anos que já faturou: a idade é o menor sintoma de velhice. Tratando-se de envelhecimento na sociedade capitalista, observa- se que a longevidade têm se tornado um aspecto de grande discussão nas pautas societárias. De acordo com projeções das Nações Unidas (Fundo de Populações) “uma em cada 9 pessoas no mundo tem 60 anos ou mais, e estima-se um crescimento para 1 em cada 5 por volta de 2050”. [...] em 2050 pela primeira vez haverá mais idosos que crianças menores de 15 anos. Em 2012, 810 milhões de pessoas têm 60 anos ou mais, constituindo 11,5% da população global. Projeta-se que esse número alcance 1 bilhão em menos de dez anos e mais, que duplique em 2050, alcançando 2 bilhões de pessoas ou 22% da população global”. (BRASIL, [2012], p. 1). Atualmente, as mudanças ‘estruturais’ no conceito de família revelam que um novo desenho configura as relações familiares, mulheres são responsáveis pela subsistência das famílias, e novos arranjos que antes caracterizavam famílias apenas com a imagem patriarcal do homem. Os novos tempos apontam para um alongamento na vida do brasileiro e esse prolongamento reflete nos serviços oferecidos a esse público. Afinal, o Estado está preparado para atender a essa crescente demanda, sendo assim o idoso no século 21 tem qual dimensão? Este alto percentual de população mundial, que em anos próximo representará grande parcela da sociedade, dá luz a um debate de envelhecimento que não foge da lógica perversa do sistema capitalista e sua valorização. A exploração da pessoa-que-vive-do-trabalho, por meio da venda da sua força de trabalho, faz com que ela esteja ativa e “produtiva”, no entanto, o que tange à pessoa idosa não foge a esta lógica, porém este não representa ao sistema a mesma força de trabalho, produção e valorização do capital, já que este alcançou uma faixa etária onde fisiologicamente se torna a mercadoria menos produtiva a seus interesses.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 94 Esse fator demonstra a crueldade do capitalismo, pois a pessoa idosa representa, para este mercado, uma mão-de-obra barata que, para manterem-se no mercado, geralmente aceitam empregos ou serviços para ter algo a somar na sua renda, a dificuldade em manter-se financeiramente nos dias atuais é fator que aflige qualquer cidadão. Compreendendo este fator enquanto um fenômeno que o país vem, prematuramente passando, devido às carências de evolução no que diz respeito ao Estado Democrático de Direito, depara-se com a Política de Assistência Social, qual por sua natureza abrange maior leque no que diz respeito às prevenções, proteção e luta pela efetivação de Direitos, com ressalvas que a mesma é uma Política Pública, implementada pelo Estado Neoliberalista, ou seja, não traz a segurança para uma vida de dignidade, são políticas feitas para atender um público que precisa “provar” condições de miserabilidade por serviços que geralmente não consegue atender às expectativas dos usuários desse serviço. E mesmo que o século XXI tenha trazido consigo informação, inovação e crescimento de produção em praticamente todos os setores da economia, o que é destinado à classe-que-vive-do-trabalho e aos que necessitam de serviços gratuitos de saúde, educação, segurança entre outros, tem somente um mínimo social, pois o Estado tem transferido suas responsabilidades cada vez mais para a sociedade civil. Quando lembradas, as políticas sociais, geralmente são manipuladas por governantes inescrupulosos que nada fazem para ampliá-las apenas produzirem discursos da falta de dinheiro para investimento na área, oriundos de crise econômica. Ao longo dos tempos as políticas sociais caracterizam-se como dependentes dos interesses econômicos e políticos, tendo viés assistencialista, trazendo consigo um ranço clientelista como corrobora Behring e Boschetti (2009, p. 51): As políticas sociais e a formatação de padrões de proteção social são desdobramentos e até mesmo respostas e formas de enfrentamento – em geral setorizadas e fragmentadas- á expressões multifacetadas da questão social no capitalismo, cujo fundamento se encontra nas relações de exploração do trabalho. Como se pode notar, a forma como as políticas sociais são postas, têm, de forma intencional, formato para atender aos mandos do capital. Sobretudo é importante ressaltar toda a movimentação e

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 95 evolução da Política de Assistência Social neste contexto, o avanço da caridade ao direito, mudando a perspectiva clientelista, imediatista e assistencialista que marcou historicamente o caminhar desta, para uma política que abrange aspectos da esfera do cotidiano da vida social e vem contribuindo, juntamente com a categoria profissional do Serviço Social, para muitas mudanças. Com relação às pessoas idosas, conclui Beauvoir, “essa sociedade (capitalista) não é apenas culpada, mas criminosa. Abrigada por trás do mito da expansão e da abundância, trata os velhos como párias”. Não tendo mais valor de uso, na redefinição de uso e utilidade para o capital, o trabalhador idoso é condenado à miséria, à solidão, às deficiências, às doenças, ao desespero, à condição de não humano, de um “ser isento de necessidades” ou com necessidades abaixo dos seres humanos adultos empregados. (BEAUVOIR, 1990, p. 8 apud TEIXEIRA, 2017, p. 36-37). Pensar a pessoa idosa neste contexto é de extrema importância, visto que esta é uma parcela societária que sofre as consequências do sistema de forma demasiada. Outro aspecto de grande relevância é a desconstrução social do envelhecimento posto pela lógica neoliberal. Trabalhar com a pessoa idosa é tão importante quanto com seu núcleo familiar e societário. Discutir a família na vida social da pessoa idosa, enquanto um dos aspectos de proteção, juntamente com o Estado e sociedade, conforme se encontra no Estatuto do Idoso. É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 2003, grifo nosso). Dentre aos pressupostos enquanto Direito do Idoso, mencionados no Estatuto, depara-se com o direito à Convivência Familiar e Comunitária, aspecto este que é fortemente trabalhado na Política de Assistência Social, sobretudo tendo dentre seu público prioritário para o serviço, a pessoa idosa. Sobre a Política de Assistência Social: Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 96 sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas. (BRASIL, 1993). Percebe-se que ainda há muito no que resistir e caminhar, efetivar direitos em uma sociedade capitalista, pode por muitas vezes se soar contraditório e remoto. De acordo com a reflexão, trabalhar aspectos sobre o envelhecimento vai além de aspectos da necessidade básica, como mesmo assegura a Política de Assistência, o que possibilita compreender, que a pessoa idosa muitas vezes pode estar à margem das políticas públicas, entendendo que o aspecto do envelhecimento ultrapassa a questão de miserabilidade. Isto só corrobora com a própria lógica desse modelo neoliberal. Outro fato marcante nesta sociedade é a forma como se cria condições que dificultam a vida daqueles que envelhecem. Como exemplo de dificuldades aponta-se o encarecimento de planos de saúde para pessoas mais velhas, os preços disparam de forma assombrosa e o que o idoso recebe anualmente de aumento em sua aposentadoria não acompanha os reajustes de empresas dos planos de saúde, fora o fato de quê é cada vez mais difícil conseguir atendimento na rede Sistema Único de Saúde (SUS), pois a procura por serviços de saúde requerem tempo em longas filas de espera, isso se resume a política de (in)saúde brasileira. Abordando aqui aspectos do envelhecimento da pessoa-que-vive- do-trabalho, a mesma que lutou para manter sua subsistência, na velhice sofre com as faltas, com o isolamento social, dentre outras vulnerabilidades decorrentes deste processo. Machado contribui com suas reflexões no que tange a tendência de romantização à etapa da velhice. Verifica-se, também, que elaborações simbólicas e práticas, como a idéia de “terceira, ou melhor, idade”, vêm se impondo, em “resistência” à visão marginalizada, à solidão e aos estigmas do envelhecimento, forjando uma imagem de velhice bem sucedida. “jovens velhos e velhas” podem desempenhar atividades sociais, esportivas e culturais, como critério inclusivo de pertinência social. Estudos que revisam criticamente essa “ideologia da terceira idade” indicam-na como busca exteriorizada de superação dos riscos “naturais”, numa escolha de competência individual para adequação a modernos padrões de sociabilidade, de controle do corpo e do envelhecimento. (MACHADO, 2005, p. 151). É neste contexto que se reforça a importância da Política de Assistência Social e seus programas, enquanto um espaço de

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 97 desconstrução, fortalecimento da identidade da pessoa idosa e palco fértil para disseminação da resistência e enfrentamento à garantia de Direitos. O direito à segurança de convívio familiar e comunitário, regidos pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS /2004) (BRASIL, 2005), efetiva a convivência familiar e a proteção da mesma em relação às situações de isolamento social, enfraquecimento ou rompimento de vínculos familiar ou comunitário, situações discriminatórias e estigmatizastes, dentre outras. Mas do que se trata o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos? Constitui em um serviço da Proteção Social Básica do SUAS, regulamentado pela Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (Resolução CNAS nº 109/2009)1. Sendo reordenado em 2013 por meio da Resolução CNAS nº01/20132. Serviço que é ofertado de forma a integrar o trabalho social com famílias que é realizado por meio do Serviço de Proteção e Atendimento Integral às Famílias (PAIF) e do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado às Famílias e Indivíduos (PAEFI). O SCFV possui um caráter preventivo e proativo, pautado na defesa e afirmação de direitos e no desenvolvimento de capacidades, potencialidades e o sentimento de identidade e pertença dos usuários, com vistas ao alcance de alternativas emancipatórias para o enfrentamento das vulnerabilidades sociais. OBJETIVOS ESPECÍFICOS para Idosos(as) - Contribuir para um processo de envelhecimento ativo, saudável e autônomo; - Assegurar espaço de encontro para os (as) idosos (as) e encontros intergeracionais de modo a promover a sua convivência familiar e comunitária; - Detectar necessidades e motivações e desenvolver potencialidades e capacidades para novos projetos de vida; - Propiciar vivências que valorizam as experiências e que estimulem e potencializem a condição de escolher e decidir, contribuindo para o desenvolvimento da autonomia e protagonismo social dos usuários. (CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2009, p. 12). Entende-se que a Política de Assistência Social é lócus privilegiado de intervenção do profissional assistente social, e esta vem percorrendo caminhos significativos no que diz respeito à vulnerabilidade das famílias

1 Conselho Nacional de Assistência Social (2009). 2 Conselho Nacional de Assistência Social (2013).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 98 na sociedade capitalista, principalmente em propor ações que visam se anteceder aos processos de risco instalados, como é caso das intervenções voltadas ao fortalecimento de vínculos, através do SCFV, como exemplificado anteriormente. E outro importante instrumento de proteção aos direitos dos idosos encontram-se nos chamados Conselhos, este precisa ampliar a discussão acerca da importância do idoso na contemporaneidade, afinal trata-se de um cidadão que pode e deve ter vida ativa e contribuir positivamente com a construção sociohistórica a qual vivencia. Suscita-se aqui a necessidade de fortalecimento dos Conselhos nos quais os conselheiros, na responsabilidade coletiva voltada à ampliação das discussões sobre a problemática dos idosos e sua socialização na comunidade provoquem um processo de conscientização e de controle nas políticas direcionadas a esses segmentos. Cabe aos conselhos deliberar sobre as políticas relacionadas ao idoso, além de fiscalizar o seu cumprimento. É entendido, portanto, como um órgão voltado à orientação e ao estabelecimento de diretrizes para a instituição e controle social das políticas públicas. Imbrica-se na fiscalização das políticas o objetivo de lutar para que os direitos do idoso sejam garantidos e ampliados. A ênfase do Conselho não é entendida como a criação de novas leis, mas a exigência do cumprimento e atualização das leis existentes, avaliando sua instauração. São parte de um processo educativo e informativo da própria sociedade, de conscientização social. (PESSÔA, 2010, p. 112-113). Neste contexto de participação da sociedade para propostas e no cumprimento das leis é importante ressaltar que existem profissionais que desde muito cedo se capacitam para a efetiva participação nas requisições para o atendimento aos cidadãos junto às políticas públicas de Direito. O assistente social é um dos profissionais aptos a compor estes espaços de política pública, também a elaborar propostas de intervenção à essa demanda requisitada na proteção ao idoso.

3 A PROFISSÃO SERVIÇO SOCIAL E A CONTRIBUIÇÃO NESSE CONTEXTO

A profissão de Serviço Social nasceu sob a égide da igreja e teve em suas ações iniciais a representação máxima da caridade, mais tarde, passa a atender aos interesses do Estado e foi durante o interesse em atender ao clamor da sociedade que a profissão começa a despontar. Assim,

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 99 começa a surgir no início da década de 1930 o Serviço social brasileiro, iniciado por “[...] setores da burguesia e respaldados pela igreja católica.” (MARTINELLI, 2011, p. 122). E mais tarde, a partir de 1940, a profissão tem como referencial teórico a matriz positivista e executa suas tarefas de modo a corrigir desajustes sociais através da intervenção psicologizante e moralizadora. A profissão neste período se legitima e é posta como profissão assalariada e ocupante de espaço na divisão sociotécnica do trabalho (YAZBEK, 2009, p. 9). A década de 1960 se dá início ao início do Movimento de Reconceituação, considerado o marco histórico da profissão de Serviço Social, nessa importante década os profissionais começam a repensar sua atuação, despertando a crítica, inquietações e o questionamento buscando novos horizontes na tentativa de romper com o conservadorismo e a pragmática leitura européia e norte-americana que inicialmente caracterizaram a profissão. Desta forma, no arcabouço deste importante movimento é que se dá o contato com o marxismo, e é esta leitura de Marx que vai esculpir para o Serviço Social latino-americano a assimilação da matriz teórica “teoria social de Marx”, que naquele momento sofria com uma leitura equivocada de Marx ainda não tem Marx em sua totalidade, executada de maneira tortuosa. Ainda assim essas vertentes produzidas pelo Movimento de Reconceituação tiveram sua importância no cenário brasileiro, pois essas características foram se transformando. A vertente modernizadora [...] caracterizada pela incorporação de abordagens funcionalistas, estruturalistas e mais tarde sistêmicas (matriz positivistas), voltadas a uma modernização conservadora e à melhoria do sistema pela mediação do desenvolvimento social e do enfrentamento da marginalidade e da pobreza na perspectiva de integração da sociedade. Os recursos para alcançar estes objetivos são buscados na modernização tecnológica e em processos e relacionamentos interpessoais. Estas opções configuram um projeto renovador tecnocrático fundado na busca da eficiência e da eficácia que devem nortear a produção do conhecimento e a intervenção profissional; A vertente inspirada na fenomenologia, que emerge como metodologia dialógica, apropriando-se também da visão de pessoa e comunidade [...] dirige-se ao vivido humano, aos sujeitos em sua vivências, colocando o Serviço Social a tarefa de “auxiliar na abertura desse sujeito existente, singular, em relação aos outros, ao mundo de pessoas”[...]. Esta tendência que no Serviço social brasileiro vai priorizar as concepções

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 100 de pessoa, diálogo e transformação social (dos sujeitos) [...] uma forma de reatualização do conservadorismo. (YAZBEK, 2009, p. 8). Então, ao final dos anos de 1970 e no decorrer de 1980, em solo brasileiro, a relação do Serviço Social com os movimentos, organizações e projetos societários dos trabalhadores se substantiva organicamente, essas possibilidades acontecem por determinações teórico-políticas e socioconjunturais (DURIGUETTO; MARRO, 2016). A reinserção da classe operária no cenário político nacional na segunda metade dos anos 1970, o que repôs a dinâmica da luta de classes a partir do universo fabril e catalisou as demandas econômico-sociais dos movimentos sociais, também engendrados neste período, nos processos de alavancagem da derruição do regime autoritário burguês [...]; A recorrência à teoria marxiana e à tradição marxista, superando a remissão a manuais simplificadores do marxismo por meio de uma crítica voltada para a superação dos influxos teóricos mecanicistas e, em termos políticos, o combate às posturas voluntaristas, basistas e messiânicas; A dimensão sócio-ocupacional; A dimensão acadêmica e a político-organizativa da profissão. São esses processos que constituíram a possibilidade de contestação do histórico conservadorismo profissional e que edificaram o constructo que denominados projeto ético-político do Serviço Social. (DURIGUETTO; MARRO, 2016, p. 101). Destaca-se neste período histórico, acima de tudo, no início dos anos de 1980 que a teoria social de Marx tem sua verdadeira e efetiva interlocução com a profissão de Serviço Social, essa teoria enquanto matriz teórico-metodológica apreende o ser social com suas mediações, ou ainda, parte da posição de que a natureza do ser social não é apreendida em sua imediaticidade (YAZBEK, 2009). Em 1990, a profissão sente os efeitos do neoliberalismo, a flexibilização da economia e intensa reestruturação no mundo do trabalho, as alterações dos padrões de produção e acumulação capitalista trouxe ainda mais precarização à população brasileira e todos são profundamente afetados, a busca pelo enfrentamento deste novo cenário é urgente. Em síntese, o novo estágio do processo de desenvolvimento capitalista, cujas tendências parecem ser irreversíveis [...] tem reforçado a fragmentação social, aumentando a

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 101 diferenciação das classes, ampliando as desigualdades sociais, alterando radicalmente o mercado de trabalho. Dá lugar a uma nova “pobreza”, um excedente de trabalho que não tem preço, porque não tem lugar no processo de produção. (IAMAMOTO, 2013, p. 179). As dificuldades oriundas de toda reestruturação no mundo do trabalho resultaram em impactos que afetaram a todas as classes, e seus reflexos não atingem somente a profissão, mas também aos usuários dos serviços públicos. A profissão de Serviço Social que tem no estado um grande empregador e que inicialmente o transforma em um profissional concebido para atender as demandas da sociedade capitalista e como profissão é utilizada pelo Estado e pelo empresariado na perspectiva de enfrentamento da onipresente questão social (PIANA, 2008). Desde a consolidação da profissão e sua afirmação como profissão inserida na divisão sociotécnica do trabalho, o profissional rompe em definitivo com o endogenismo e conservadorismo e posiciona- se ao lado da classe-que-vive-do-trabalho e nesta vertente atua de modo a atender legitimamente aos interesses desta classe aos que buscam no Estado seus direitos. O desafio do trabalho no campo das políticas públicas é permeado pelos próprios limites que o Estado impõe, e, sobretudo, pela contradição inerente do sistema capitalista, onde o Estado representa-se enquanto maquina pública dos interesses neoliberais. Os cortes no investimento às políticas públicas são cada vez mais frequentes e implementações para melhoria no atendimento estão cada vez mais escassas, ainda assim nota-se o empenho do profissional em sua atuação neste espaço. O trabalho do Assistente social, juntamente com a equipe multidisciplinar prevista pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB-RH), com a pessoa idosa e seus familiares no SCFV, vem sendo um espaço fértil para trabalhar aspectos do envelhecimento e o seu convívio familiar e comunitário, nesta perspectiva crítica. Além de estimular o desenvolvimento da autonomia da pessoa idosa tem por finalidade a realização de ações centradas no fortalecimento da identidade, dos laços sociais e coletivos, sempre sob a perspectiva de incentivar a socialização e a diminuição dos riscos e vulnerabilidades à pessoa idosa. Outro fator que chama a atenção refere-se à forma como cada idoso sofre os efeitos do descaso, não se tratando apenas de desinteresse do poder público, mas também de outras formas de violência. Entre os homens “[...] mortes violentas, que atingem, sobretudo, [...] são apontados

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 102 como determinantes dessa defasagem, e também tabagismo, consumo de álcool, dieta rica em gorduras, hipertensão precoce e doenças decorrentes do trabalho.” (PESSOA, 2010, p. 90). Em relação às mulheres idosas, segundo, Pessoa (2010, p. 91), “[...] estão mais suscetíveis ao isolamento, carência, abandono, violência, principalmente as que se encontram em situação de vulnerabilidade social.” Apesar da diferença sob gênero, as dificuldades e empecilhos existem para ambos e representam problemáticas que precisam ser estudadas para propor soluções, no entanto nota-se, todas são frutos do mesmo ideário do sistema perverso. A oportunidade de contribuir com a pessoa idosa para que esta seja e possa estar cada vez mais presente nas ações e decisões da família e do meio com o que ela vive. A pessoa idosa deve ter garantia efetiva de participação nos processos decisórios de cidadania, toda e qualquer forma de exclusão a este importante cidadão deve ser reprimida. Pesquisas já demonstraram a tendência sobre a longevidade da vida do brasileiro, desta forma, é necessário construir caminhos concretos que garantam realmente o espaço para que este cidadão realmente possa ter participação garantida numa sociedade democrática de direito. Resistir e construir oportunidades a esse público é fundamenta e deve ser alvo de luta cotidiana, pois o “ato de envelhecer” é algo que toda a sociedade, coletiva ou individualmente, irá passar. Se a vida se alonga, as condições para vivê-la com respeito e dignidade devem ser construídas qualitativamente, permitindo que essa condição possa ser desfrutada não somente a um pequeno grupo, mas sim para todos, afinal, as várias pesquisas já confirmaram que em um futuro próximo, o Brasil será um país de idosos, então, que as políticas de proteção a esse público devem ser fortalecidas e cada vez mais evidenciadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abarcar sobre envelhecimento na sociedade capitalista, ancorados na perspectiva crítica, possibilita compreender que este percurso é ainda muito pouco trabalhado a fim de promover a autonomia da pessoa ao envelhecer, entendendo a contradição inerente do sistema. Dentro do momento histórico que se vivencia, de forte ofensiva neoliberal, observa que o assistente social detém um lócus de intervenção fértil junto à Política de Assistência Social. Na intervenção com e não para, o

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 103 trabalho nesta Política tem possibilidades de construção coletiva da pessoa idosa visando o fortalecimento da base, contribuindo para o fortalecimento da identidade da pessoa idosa e a concepção de protagonistas ativos de seu próprio tempo histórico vivido.

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 106 “AMERICANIZAÇÃO” DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL: UMA INVESTIGAÇÃO DESTE PROCESSO NA ATUALIDADE, TENDO COMO REFERÊNCIA A AUTORA WERNECK VIANNA

"AMERICANIZATION" OF HEALTH POLICY IN BRAZIL: AN INVESTIGATION OF THIS PROCESS IN THE CURRENT, HAVING REFERENCE TO AUTHOR WERNECK VIANNA Bruno Bertazzi * RESUMO: A saúde se constitui política pública de seguridade social a partir da Constituição Federal de 1988, possuindo como principio fundamental à universalidade do acesso. Entretanto, Historicamente as políticas sociais brasileiras, adotam um modelo de efetivação baseado no americano, definido por Werneck Vianna (1998) como “americanização”, que significa subordinação aos interesses do mercado, na área da saúde isso se expressa num serviço público cada vez mais reduzido ao atendimento aos pobres, enquanto o mercado absorve aqueles que detém poder financeiro, outra marca deste processo de “americanização” é o “lobismo”, a favor destes interesses (VIANNA, 1998). Este artigo tem por objetivo discutir o processo de “americanização” da política de saúde no cenário atual (2017). Para dar suporte à discussão, apresentam-se, inicialmente, os contornos do neoliberalismo no Brasil e como as medidas advindas desta ideologia influenciaram na efetivação deste caráter americano. Em seguida, avaliam-se as medidas tomadas pelo Estado no atual cenário e o impacto das mesmas na efetivação da saúde como política pública assim como redigida na Constituição Federal. Palavras-chave: política de saúde. americanização. neoliberalismo. ABSTRACT: Health constitutes a public policy of social security as of the Federal Constitution of 1988, having as fundamental principle the universality of access. However, historically Brazilian social policies adopt a model of effectiveness based on the American, defined by Werneck Vianna (1998) as "Americanization", which means subordination to the interests of the market, in the area of health this is expressed in a public service increasingly poor, while the market absorbs those who hold financial power, another "Americanization" is lobbying in favor of these interests (VIANNA, 1998). This article aims to discuss the process of "americanization" of health policy in the current scenario (2017). To support the discussion, we first present the contours of neoliberalism in Brazil and how the measures resulting from this ideology influenced the effectiveness of this American character. Next, we evaluate the measures taken by the State in the current scenario and the impact of the same on the effectiveness of health as a public policy as well as drafted in the Federal Constitution. Keywords: health policy. americanization. neoliberalism.

INTRODUÇÃO

Elucidando a bibliografia estudada Werneck Vianna (2000) quando analisa o processo de americanização da seguridade social brasileira a autora pontua a seguinte contradição

* Graduando do Curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP/Câmpus de Franca.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 107 Pode-se afirmar, assim, que o Brasil fez a sua reforma à inglesa [...]. Contudo, a despeito das britânicas intenções reformistas e da proposta beveridgeana sancionada constitucionalmente, o modelo brasileiro de proteção social vem se tornando, na prática, cada vez mais “americano”. Pois, ainda que formalmente universais e imaginadas como indutoras de cidadania, as provisões públicas se resumem a parcos benefícios para os pobres, enquanto ao mercado cabe a oferta de proteção àqueles cuja situação permite a obtenção de planos ou seguros privados. (VIANNA. 2000, p. 138). Esta contradição apontada pela autora toma corpo principalmente na política de saúde, pois política esta que se configura na Constituição Federal 88 com caráter universal e começa a ser efetivado pelos governos após Constituição de forma a priorizar o mercado. Esta medida de priorização do mercado ocorre pelo fato de que no curso da história culmina que no contexto do período a doutrina político-econômica do neoliberalismo ganha força em âmbito mundial, chegando ao Brasil neste período, havendo assim um embate ideológico durante a redemocratização do país e no momento de efetivação do estado de bem estar social nacional. Na forma que o neoliberalismo influencia a economia nacional, ditando as regras da macroeconomia e a forma em que o estado vai lidar com as políticas sociais, se demonstra essencial a sua compreensão, principalmente a forma que ela se configura no Brasil, já que é em sua alçada que ocorre a efetivação do Sistema Único de Saúde (SUS). Assim o artigo analisa as medidas1 de caráter neoliberal que configuraram a base para o processo de “americanização” da política de saúde no período da década de 90 e as medidas tomadas pelos dois últimos governos2 que demonstram o caráter do posicionamento do Estado perante política de saúde.

1 NEOLIBERALISMO NO BRASIL E EFETIVAÇÃO DO SUS

Preliminarmente, se faz necessário pontuar, que o estudo referente ao neoliberalismo conceitua diferenciá-lo, o neoliberalismo como doutrina político-econômica que surge na critica ao Estado de Bem Estar Social 1 Estas medidas se configuram por austeridade fiscal, acordos com organizações da sociedade civil, realizando um mix entre público e privado, para retirar do Estado a obrigação de lidar com as políticas sociais e o posicionamento dos órgãos econômicos mundiais. 2 Primeiro e Segundo mandato do Governo Dilma (2010-2016). Mandato de Temer após o impeachment (2016-2018).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 108 e ao Socialismo, tendo como conceitos primordiais a diminuição de áreas de atuação do Estado, principalmente na economia onde deve atuar minimamente, priorizando assim o mercado como mais eficiente, por permitir a livre concorrência gerando assim privatizações de empresas estatais. Prioriza a globalização por meio da abertura da economia para capital estrangeiro e empresas multinacionais, sem restrições para a flutuação cambial. Subtrai o Estado da economia ao máximo, reduzindo sua atuação nas políticas públicas e na regulação no mercado de trabalho ao Estado se limita cuidar apenas daqueles que realmente necessitar, a grande parcela fica para o mercado suprir. Doutrina está redigida por Hayek e Friedman, cresce no contexto de crise da década de 70 e após inúmeras crises que permeiam este período é no final da década que começa a ser implementada pelos países democráticos33. Neste momento que surge a primeira diferenciação, o neoliberalismo que será implementado ao redor do mundo em nenhum caso segue fielmente os preceitos da doutrina político-econômica redigida por Hayek e Friedman, mas sim será influenciada pelo contexto sócio histórico e econômico de cada região, levando assim ao projeto neoliberal, que alude à “[...] forma como, concretamente, o neoliberalismo se expressou num programa político- econômico específico no Brasil, como resultado das disputas entre as distintas frações de classes da burguesia e entre estas e as classes trabalhadoras.” (FILGUEIRAS, 2006, p. 179). Após a efetivação do neoliberalismo que se demonstra outra característica a ser diferenciado, o modelo econômico neoliberal periférico, sendo resultado da maneira que o neoliberalismo se constitui no país perante a estrutura econômica anterior, neste momento que a questão sócia histórica e econômica especifica da região toma corpo. Evidenciando a subordinação dos países latinos americanos perante os países centrais44 e esta questão se demonstra um dos pilares do neoliberalismo brasileiro. O Brasil foi o último país da América Latina a implementar o neoliberalismo, mesmo após pressão sofrida pelo Consenso de Washington, 3 Excluindo aqui a experiência chilena, pelo fato da mesma ter sido incorporada durante a ditadura e sendo utilizada como teste. Colocando como primeira experiência o Governo de Margaret Thatcher que começa no ano de 1979, como primeira ministra britânica e o Governo de Ronald Reagan como Presidente dos EUA que começa no ano de 1981. 4 São aqueles países que detém maior pode político, econômico e militar. Permitindo assim uma maior influencia nas relações sociais, já que detém o controle das decisões dos principais órgãos internacionais como a ONU, criação e avanços tecnológicos e utilizam dos países periféricos para manter sua posição, explorando sua mão de obra barata e utilizando de seu mercado para favorecer as grandes empresas multinacionais que detém sede nos países centrais, como caso do EUA, Alemanha e Japão.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 109 que se configuraram como recomendações internacionais elaborada em 1989, que visava propalar a conduta econômica neoliberal com á intenção de combater as crises e misérias dos países subdesenvolvidos, sobretudo os da América Latina. Postulando assim: conferir autonomia aos Bancos Centrais para fixar juros e demais serviços da dívida pública cujos montantes que claramente não são aplicados nas receitas de austeridade; b) considerar despesas públicas primárias com infraestrutura de desenvolvimento e de direitos sociais como marca de uma incontrolável vocação perdulária do Estado e seu objeto de intervenção, c) considerar déficit primário quando a despesa primária excede a receita primária ou quando as despesas totais reduzidas dos juros e serviços da dívida excedem o valor da diferença entre as receitas totais deduzidas as receitas financeiras, e d) disseminar a ideia que o Ebes/welfarianismo é a maior ameaça ao desenvolvimento das nações. (VIEIRA et al., 2018, p. 22), Estas medidas serão essenciais, pois é a partir do Governo Collor (1990-1992) que este discurso ganha as eleições nacionais e começa a ser instaurar, mas as mudanças de peso só ocorrem durante o governo de Itamar Franco (1993-1994) e se consolida nos mandatos de Fernando Henrique (1995-1998; 1999-2002) e de Lula da Silva (2003-2006; 2007- 2010). Assim o discurso do neoliberalismo esta a frente do país desde 1990, levantando a questão de como se programa um política de saúde universal por um Estado que possui como ideologia contraria a políticas universais, agindo de forma que mesmo que a Constituição Federal exigisse um serviço deste principio o que foi acontecendo durante os anos e os mandatos foram criação de leis e emendas que permitisse uma omissão do Estado e um favorecimento a atuação do mercado na saúde; A efetivação do projeto neoliberal quanto do Sistema Único de Saúde (SUS) ocorrem no mesmo período, após Itamar lançar títulos da divida brasileira no exterior, com isso atribuindo ao país o papel de emissor de capital fictício, começa a evidenciar a influencia do capital financeiro nas tomadas de decisões. A vitória desse projeto expressou, ao mesmo tempo em que estimulou, um processo de transnacionalização dos grandes grupos econômicos nacionais e seu fortalecimento no interior do bloco dominante, além de exprimir, também, a fragilidade financeira do Estado e a subordinação crescente da economia brasileira aos fluxos internacionais de capitais.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 110 Em particular, reconfigurou o bloco dominante e a sua fração de classe hegemônica, com destaque para a consolidação dos grandes grupos econômicos nacionais, produtivos e financeiros. (FILGUEIRAS, 2006, p. 183). Sendo neste cenário de subordinação à logica financeira que o Estado começa a ter sua política macroeconômica ligada diretamente àqueles que detêm o capital financeiro, em sua maioria bancos. Configurando assim um modelo de Estado que se financia por impostos e as vendas dos títulos da divida pública, como postulou o Consenso de Washington o superávit primário55 se torna ponto crucial para manter os investimentos no estado, levando a tomadas de decisões que priorizam o saldo positivo, sendo assim um dos pilares do neoliberalismo se consolida no Brasil, diminui o investimento nas áreas, sociais para fortalecer o mercado de capital financeiro e a fomentação da divida pública como uma das principais medidas adotadas na economia nacional. Tendo como forte exemplo a criação em 1994 da desvinculação de parte dos recursos da Seguridade Social, através da concepção do Fundo Social de Emergência, que possibilita que o governo federal aloque 20% das receitas de impostos e contribuições para onde se demonstrar necessário, sendo utilizado principalmente para o pagamento dos juros da dívida. Dando continuo a essas medidas no ano de 1995 durante o governo de Fernando Henrique que ocorre a ofensiva para modificar substancialmente a estrutura do Estado por meio de uma ampla reforma, denominada de Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado. Redigida pelo Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, do Ministério de Administração e Reforma do Estado (MARE). O Plano Diretor é aprovado em Setembro de 1995, defende a superação da burocracia administrativa em órgãos públicos, priorizando um modelo gerencial que se caracteriza por meio da descentralização, eficiência, controle de resultados, redução de custos e produtividades, possuindo assim um caráter empresarial. Outro aspecto é a retirada da responsabilidade por parte do Estado perante as políticas sócias, tornado este um promotor e regulador, passando tais responsabilidades para o âmbito privado ou setor de esfera pública não estatal. Abrindo espaço para a relação que irá se consolidar como um forte

5 Constitui por falso positivo nos gastos estatais, caracterizando este como um bom pagador e assim um bom local de investimento, formentando o mercado da compra de títulos da dívida pública onde o estado brasileiro paga-os caros e para realizar este saldo positivo corta seus gastos incluindo a área social.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 111 aspecto da Saúde brasileira o mix entre público-privado, impactando o SUS de inúmeras maneiras, possuindo como exemplo: A criação de Subsistemas de saúde dentro do SUS; o incentivo por meio de diversas ações à ampliação da iniciativa privada na prestação de serviços de saúde; a transferência de funções do Ministério da Saúde para agências reguladoras e organizações não estatais; a reestruturação da própria estrutura do Ministério da Saúde ou ainda; a criação de programas como o Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e o Programa Saúde da Família (PSF), dirigidos para as populações vulneráveis, o que não proporcionou melhorias na saúde como a efetivação de promoção e recuperação. (RIZZOTTO, 2000, p. 217). A ocorrência destas medidas é respaldada principalmente por meio das interferências do Banco Mundial na política de saúde brasileira, pois a partir da gestão de Fernando Henrique que o volume de empréstimos junto ao Banco aumenta, e este em contra partida exige medidas Estatais que se adequem ao seu ideário neoliberal, delimitando assim medidas ao Estado brasileiro, não são seguidas a risca conforme documento de 1993 nomeado “A Organização, Prestação e Financiamento da Saúde no Brasil: uma agenda para os anos 90”, mas a ideia se mantem e se efetiva tanto na reforma do Estado como na Norma Operacional Básica de 06 de novembro de 1996 (NOB 96) que tem como base o modelo inglês, este prioriza descentralizar a administração e o controle dos gastos, decompor os hospitais em unidades públicas não estatais, criação de um sistema básico que oriente a entrada ao serviço e realiza uma triagem efetiva, por fim a criação de hospitais e ambulatórios especializados. Neste cenário de Reforma do Estado, mudanças no caráter de implementação da saúde pública e lobby praticado pelo Banco Mundial que almejava racionalizar gastos na área de saúde pública que fortalece a parceria Estado-sociedade civil. A particularidade da saúde neste processo se constitui que, [...] ao contrário de outros contratos de serviços realizados com a iniciativa privada – a qual se relaciona com o serviço público oferecendo recursos físicos e humanos para prestar os serviços contratados –, o contratante (instituições públicas) passou a ceder ao contratado (instituições privadas) uma parte ou a totalidade de seus próprios recursos (físicos, humanos e materiais), configurando, assim, novas formas de articulação público-privadas na área da saúde. (PONTE; FALLEIROS, 2010, p. 298).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 112 Através destas reformas administrativas, efetivasse por meio da Lei 9.637/98 que cria o conceito de Organizações Sociais (OS), neste momento que o SUS permite a mudança da natureza jurídica das instituições, passando do caráter de direito público para direito privado. Tornando a grande maioria das instituições públicas, como fundação ou associação civil e as OS a partir daqui começam a ser qualificadas, para exercer os trabalhos na área da saúde. O estado realizando seu papel de regular e gerenciar enquanto as organizações sendo elas públicas privadas ou sem fins lucrativos executem o trabalho. O impacto desta medida se revela, [...] a um intenso processo de terceirização dos serviços de saúde. Assim, a um só tempo, eliminou-se a figura do servidor público, com a flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho; oficializou-se a dupla porta de entrada no Sistema Único de Saúde, ao permitir a celebração de convênios com planos privados de saúde como meio de captação adicional de recursos, agravando as desigualdades de acesso e aumentando a regressividade do sistema; e comprometeu-se o serviço que antes era público com o faturamento, a produtividade e a otimização da relação custo- benefício. (PONTE; FALLEIROS, 2010, p. 299) Lembrando que o que ocorreu durante todo este cenário é uma disputa de interesses há grupos dentro do Estado brasileiro que defendem a saúde como posta na Constituição Federal com caráter universal, mas durante os anos noventa o que é vivenciado é uma forte influencia neoliberal ditando e em muitas ocasiões vencendo a disputa. Houve momentos em que o SUS consegue enfrentar a hegemonia do pensamento neoliberal, como exemplo que grande parte das políticas de ampliação da atenção básica que foram desenvolvidas neste período6, não se efetivou como propugnava o Banco Mundial, por meio de meros programas de focalização, com implementação de cestas básicas, destinada exclusivamente a população carente. Sendo demonstrado por paralelamente a isso ocorrer um aumento nos investimentos nos serviços de média e alta complexidade, evidenciando assim que o ajuste macroeconômico afeta o SUS principalmente pela contenção de recursos destinado a política de saúde, tornando perceptível a intensão de realizar uma crise no financiamento, mas isso não significa que seus gestores efetivaram um serviço precário, em muitos casos realizaram o máximo possível com a verba que fora destinada. Retratando que o fator prejudicial à política pública de saúde advém muito mais de interferências externas, 6 Tendo como carro chefe destas políticas o Programa de Saúde da Família.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 113 como oriundas do ajuste fiscal, superávit primário e a logica neoliberal, do que a forma que o modelo do SUS foi pensado e projetado.

2 A CONTEMPORÂNEA “AMERICANIZAÇÃO”

Após conceituar o cenário em que o SUS se solidifica, permeando o embate entre neoliberalismo e a efetivação de um Estado de bem estar social brasileiro, abordamos o momento atual, com analises realizadas nos dois últimos Governos7, mas tais medidas advêm de outro aspecto do projeto neoliberal não mencionado anteriormente, a austeridade, medida esta que se configura como uma espécie de arrocho por parte do Estado, cortando gasto em suas economias, mas estes cortes especialmente em relação a algo que é considerado luxo, mas o que se vê na pratica é uma grande contradição, considerando que todas as experiências em relação à austeridade como política estatal visou cortar os gastos com serviços públicos que dentro do ideário neoliberal são os luxos das contas estatais. Mas sem o corte relacionando aos lucros dos empresários, defendendo assim, mais os empresários do que o próprio consumidor, levando ao aumento da injustiça social, pois consideramos que quem mais utiliza os serviços do Estado são aqueles que não possuem uma alta renda. Tudo isto em nome de deixar a economia intacta para que esta cumpra seu papel de geradora de empregos, tomando medidas que prejudicam ainda mais a classe que depende do trabalho. A efetivação desta política se demonstra falha, pois acaba não cumprindo com seu principal papel e intuito, a fomentação econômica, gerando a diminuição de empregos e o aumento da necessidade de serviços estatais. [...] é preciso ter equilíbrio adequado e que, quando a economia não vai bem, os governos precisam investir em recursos humanos, tecnologia e infraestrutura para ativá-la, ao contrário da receita de austeridade aplicada em vários países europeus na última década. Ele rebate a ideia de que a dívida do Estado é semelhante à dívida das famílias, quando uma crise econômica exige a redução dos gastos. Esclarece que quando o governo gasta mais e investe na economia, a criação de empregos se multiplica e as finanças públicas se fortalecem. Dessa forma, conforme a economia cresce, diminui a demanda por programas sociais. Já a austeridade provoca efeito contrário. Ela não só prejudicou as economias 7 Segundo mandato do Governo Dilma (2014-2016). Mandato de Temer após o impeachment (2016-2018).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 114 europeias, mas constituiu grande entrave para o crescimento futuro, pois a redução ou a falta de investimento nos jovens diminuirá o potencial de crescimento do capital humano, além dos investimentos que os governos devem fazer em educação, infraestrutura, transporte, comunicações e políticas de emprego e de igualdade entre gêneros. Para Stiglitz, esse investimento gera resultados que são melhores não só para a sociedade, mas também para a economia. (VIEIRA et al., 2018, p. 33).8 A austeridade se demonstra como uma das principais ferramentas do ideário neoliberal no momento atual do Brasil, decorrente da crise mundial encetada no ano de 2008, a economia brasileira começa a adotar medidas para manter a economia aquecida, este cenário torna “As despesas com investimentos empenhadas do Poder Executivo federal caíram significativamente entre 2012 e 2016, passando de R$ 87,2 bilhões, em valores de 2016, para R$ 37,3 bilhões no último ano, com redução de 57%” (VIEIRA et al., 2018, p. 36). Esta prática acentuada em momentos de crise, chega ao Brasil em 2014, adjunto que a Crise (iniciada em 2008) começa a refletir em território nacional. Este momento é possível analisar como a saúde pública é afetada e o movimento de seu desmonte acelerado. Nesta perspectiva, o processo de “americanização” da política de saúde brasileira na atualidade leva a dois pontos cruciais, o primeiro realizado no segundo mandato do governo Dilma Rousseff sancionada por meio da Lei n. 3.097/2015 (BRASIL, 2015), que se constitui por um pacote por assim de dizer de alterações em vários âmbitos do Estado. Alterando o texto da lei orgânica de saúde (Lei n. 8.080 – BRASIL, 1990), permitindo a partir disso à participação do capital estrangeiro sem restrições à saúde e seu mercado, desde planos a hospitais filantrópicos. Ao analisarmos experiências parecidas em outros países, encontrasse exemplos bem pessimistas. O setor privado de saúde em mercados emergentes oferece retornos atrativos para os investidores . Em contrapartida, investimentos estrangeiros em estruturas privadas de saúde de países de renda média e baixa melhoraram pontualmente a qualidade de serviços hospitalares altamente especializados acessíveis à clientela restrita, mas também foram responsáveis pela disputa predatória por recursos humanos, agravando

8 Seguinte Citação retirada do Documento da Austeridade, analisa a obra de Stiglitz intitulada A austeridade estrangulou o Reino Unido. Apenas o Partido Trablhista poderá relega-la à História.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 115 a falta de médicos e de outros profissionais de saúde nos estabelecimentos públicos e nas áreas remotas. No Brasil, os padrões atuais já sugerem que o uso excessivo do setor privado promove concorrência desleal com o setor público, drenando serviços, recursos humanos e financeiros do SUS. (SCHEFFER, 2015, p. 665). O segundo ponto é a medida tomada por Michel Temer9 que por meio da Emenda constitucional 95 congela os gastos públicos, efetivando aqui diretamente o discurso da austeridade, como justificativa para não alcançarmos a falência do Estado, toma tal atitude como única e necessária. Tal emenda nos leva ao desfinanciamento público, pois determina um teto para as despesas primarias, dentro desta conta está à seguridade social, educação, habitação, entre outras áreas dos serviços públicos. Com vigência de vinte anos esse teto será medido a partir do valor referente ao ano anterior corrigido pela inflação. Sendo assim não terá mais o aumento e sim reajuste com base na inflação, deixando de levar em consideração muitos aspectos, como o crescimento populacional e demandas que surgem no bojo social. Esta medida se baseia no alto custo das despesas primarias, mas não leva em consideração o numero alto de subsídios a empresas que compromete diretamente arrecadação de receitas governamentais. Levando em consideração que esta medida acontece como uma reforma implícita do Estado [...] a EC 95 dá corpo ao “Novo Regime Fiscal” (NRF), sem revelar a real intenção de reduzir a participação das despesas primárias em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), implicando a redução da participação do Estado em diversas políticas públicas, entre as quais as de saúde e de educação. Não é por outra razão que a proposta do NRF surge como emenda à constituição, dado que essas duas políticas têm percentuais garantidos de receitas definidos na CF 1988. Ou seja, se a intenção da EC 95 não fosse reduzir a participação das despesas com saúde e educação em proporção do PIB, tal reforma não necessitaria ser inscrita na Constituição. (VIEIRA; BENEVIDES, 2016, p. 4). Fica perceptível quando nos pautamos de Neoliberalismo que essas medidas estão interligadas, se desde a criação do SUS havia por parte dos órgãos internacionais e do mercado a não efetivação de um serviço universal e sim assistencialista que age só naqueles realmente 9 Pontuando que o presidente em questão assume após a realização de um impeachment, que consolida não apenas uma crise econômica, mas também política.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 116 necessitados, efetivando assim a “americanização” das políticas de saúde, priorizando a ação do mercado. Remete-nos a ver que quando se abre mercado para o capital estrangeiro e logo em seguida limita a verba da saúde o que acarreta destas ações é uma precarização do serviço público e que este terá que competir com um serviço privado que se baseia de recursos de países e empresas que detêm um capital muito maior que o produzido nacionalmente. Em análise sobre os desafios e perspectivas para o financiamento do SUS, Marques, Piola e Ocké-Reis (2016) avaliam que um cenário bastante plausível é o da expansão do mercado de planos de saúde e dos subsídios e, consequentemente, de fragilização do SUS, dados o contexto de globalização financeira no setor saúde, o perfil conservador da atual coalizão no governo federal e a baixa capacidade de pressão da sociedade civil. (VIEIRA; BENEVIDES, 2016, p. 14). O ato de favorecer o mercado por meio destas medidas não é fruto de mera especulação, ao analisarmos as opiniões dadas pelo ex-ministro da saúde Ricardo Barros10 em entrevista ao jornal El Pais, demonstra de forma bem evidente o posicionamento do governo. Quando perguntado sobre a constituição garantir um acesso a saúde como direito universal, incentivar as pessoas a não acessarem o SUS não vai contra o direito das mesmas, Ricardo responde: “A Constituição preconiza o direito de acesso universal à saúde, mas o Orçamento é limitado. Temos que ter um equilíbrio. Infelizmente não há possibilidade de dar tudo para todos. Aqueles que têm a capacidade de contribuir, que possam fazê-lo.” (BEDINELLI, 2016). Atualmente isso já vem acontecendo e como coloca autores como Vianna (2000), Boschetti (2009) e Celia Lessa Kerstenetzky (2014), a seguridade social desde sua implementação até sua consolidação por meio da Constituição Federal em 1988 é influenciada pelo mercado, sendo essa pratica acentuada e efetivada principalmente por meio dos lobbies. A partir dessa reflexão que se demonstra a necessidade de analisar e compreender este processo, pois este está acontecendo de forma atual e ter o olhar perceptível à realidade vivida, auxilia na compreensão e efetivação de um serviço social mais capacitado a atuar frente às demandas da questão social, já que estas assim como a totalidade estão em constante formação. Por isso uma analise aprofundada de como o desmonte da

10 Pontuando que no contexto de tais medidas Ricardo exercia tal função, inclusive no momento da entrevista, deixando o cargo em abril de 2018.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 117 política de saúde vem acontecendo na atualidade, nos permite a enxergar o presente para que assim possa planejar medidas para lidar com essa atuação no agora e no futuro.

REFERÊNCIAS

BEDINELLI, Talita. Governo atua para inibir ações a favor de pacientes do SUS e planos de saúde na justiça. El País, [Brasília, DF], 24 jul. 2016. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ brasil/2016/07/23/ politica/1469227260_442280.html. Acesso em: jan. 2018. BOSCHETTI, Ivanete. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. In: CFESS; ABEPSS. (org.). Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília, DF, 2009.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 118 BRASIL. Lei n. 13097, de 19 de janeiro de 2015. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP, da COFINS, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita de vendas e na importação de partes utilizadas em aerogeradores; prorroga os benefícios previstos nas Leis nos 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 9.440, de 14 de março de 1997, 10.931, de 2 de agosto de 2004, 11.196, de 21 de novembro de 2005, 12.024, de 27 de agosto de 2009, e 12.375, de 30 de dezembro de 2010; altera o art. 46 da Lei no12.715, de 17 de setembro de 2012, que dispõe sobre a devolução ao exterior ou a destruição de mercadoria estrangeira cuja importação não seja autorizada; altera as Leis nos 9.430, de 27 de dezembro de 1996, 12.546, de 14 de dezembro de 2011, 12.973, de 13 de maio de 2014, 9.826, de 23 de agosto de 1999, 10.833, de 29 de dezembro de 2003, 10.865, de 30 de abril de 2004, 11.051, de 29 de dezembro de 2004, 11.774, de 17 de setembro de 2008, 10.637, de 30 de dezembro de 2002, 12.249, de 11 de junho de 2010, 10.522, de 19 de julho de 2002, 12.865, de 9 de outubro de 2013, 10.820, de 17 de dezembro de 2003, 6.634, de 2 de maio de 1979, 7.433, de 18 de dezembro de 1985, 11.977, de 7 de julho de 2009, 10.931, de 2 de agosto de 2004, 11.076, de 30 de dezembro de 2004, 9.514, de 20 de novembro de 1997, 9.427, de 26 de dezembro de 1996, 9.074, de 7 de julho de 1995, 12.783, de 11 de janeiro de 2013, 11.943, de 28 de maio de 2009, 10.848, de 15 de março de 2004, 7.565, de 19 de dezembro de 1986, 12.462, de 4 de agosto de 2011, 9.503, de 23 de setembro de 1997, 11.442, de 5 de janeiro de 2007, 8.666, de 21 de junho de 1993, 9.782, de 26 de janeiro de 1999, 6.360, de 23 de setembro de 1976, 5.991, de 17 de dezembro de 1973, 12.850, de 2 de agosto de 2013, 5.070, de 7 de julho de 1966, 9.472, de 16 de julho de 1997, 10.480, de 2 de julho de 2002, 8.112, de 11 de dezembro de 1990, 6.530, de 12 de maio de 1978, 5.764, de 16 de dezembro de 1971, 8.080, de 19 de setembro de 1990, 11.079, de 30 de dezembro de 2004, 13.043, de 13 de novembro de 2014, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, 10.925, de 23 de julho de 2004, 12.096, de 24 de novembro de 2009, 11.482, de 31 de maio de 2007, 7.713, de 22 de dezembro de 1988, a Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006, o Decreto-Lei no 745, de 7 de agosto de 1969, e o Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972; revoga dispositivos das Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.360, de 23 de setembro de 1976, 7.789, de 23 de novembro de 1989, 8.666, de 21 de junho de 1993, 9.782, de 26 de janeiro de 1999, 10.150, de 21 de dezembro de 2000, 9.430, de 27 de dezembro de 1996, 12.973, de 13 de maio de 2014, 8.177, de 1o de março de 1991, 10.637, de 30 de dezembro de 2002, 10.833, de 29 de dezembro de 2003, 10.865, de 30 de abril de 2004, 11.051, de 29 de dezembro de 2004 e 9.514, de 20 de novembro de 1997, e do Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941; e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 20 jan. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015- 2018/2015/Lei/L13097.htm. Acesso em: jan. 2018.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 119 BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 20 set. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm. Acesso em: jan. 2018. FILGUEIRAS, Luiz. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico. In: BASUALDO, Eduardo M.; ARCEO, Enrique. (comp.). Neoliberalismo y sectores dominantes: tendencias globales y experiencias nacionales. Buenos Aires: CLACSO, 2006. KERSTENETZKY, Célia Lessa. Políticas públicas sociais. In: AVELAR, Lucia; CIINTRA, Antonio Octavio. (org.). Sistema político brasileiro: uma introdução. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2014.v. 1. p. 175-188. PONTE, Carlos Fidelis; FALLEIROS, Ialê. Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. RIZZOTTO, Maria Lucia Frizon. O Banco Mundial e as políticas de saúde no Brasil nos anos 90: um projeto de desmonte do SUS. 2000. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. SANTOS, Glaucya Núbia Barros dos. Neoliberalismo e seus reflexos na política de saúde no Brasil. In: SEMINÁRIO DA FRENTE NACIONAL CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE: Saúde em tempos de retrocesso e retirada de direitos, 7., 2017, Maceió. Anais.... Maceió: Ed. UFAL, 2017. p. 1 - 9. SCHEFFER, Mário. O capital estrangeiro e a privatização do sistema de saúde brasileiro. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, p. 663-666, abr. 2015. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102- 311XPE010415. Acesso em: 25 nov. 2017. VIANNA, Maria Lúcia Teixeira Werneck . A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil: estratégias de bem estar e politicas publicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2000. VIEIRA, Fabíola Sulpino et al. Políticas sociais e austeridade fiscal: como as políticas sociais são afetadas pelo austericídio da agenda neoliberal no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: CEBES, 2018.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 120 VIEIRA, Fabíola Sulpino; BENEVIDES, Rodrigo Pucci de Sá e. O direito à saúde no Brasil em tempos de crise econômica, ajuste fiscal e reforma implícita do estado. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, Brasília, DF, v. 10, n. 3, p. 1-28, nov. 2016.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 121

PARTICIPAÇÃO E CONTROLE SOCIAL DOS USUÁRIOS DO SUS NO CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE ITUVERAVA/SP

PARTICIPATION AND SOCIAL CONTROL OF THE SUS USERS AT THE MUNICIPAL HEALTH COUNCIL IN ITUVERAVA/SP Edilaine Dias Lima * RESUMO: O presente artigo visa investigar o direito a participação e o controle social dos usuários do Sistema Único de Saúde-SUS no Conselho Municipal de Saúde de Ituverava/SP. A pesquisa é qualitativa, exploratória, bibliográfica, documental e de campo (entrevista com roteiro de perguntas). Espera-se contribuir com reflexões e incentivo para elaboração de estratégias que fomentem a participação da população, colaborando com o fortalecimento do controle social para contenção dos avanços neoliberais. Palavras-chave: política de saúde. participação social. controle social. Conselho de Saúde. ABSTRACT: The present article investigated the right to the participation and social control of the users of SUS at the Municipal Health Council in Ituverava/SP. The research is qualitative, exploratory, bibliographic, documental and field (interview as a survey). The aim is to contribute with reflections and incentive to draw up the strategies, which encourage the participation of the population collaborating with the enhancement of the social control. Keywords: health policy. social participation. social control. Health Council.

INTRODUÇÃO

Foi somente a partir do século XX que houve as primeiras iniciativas de políticas sociais no Brasil, com o desenvolvimento do capitalismo no cenário socioeconômico do país que transitou do modelo de agroexportador para o capitalismo monopolista, carecendo de um grande contingente de mão de obra para trabalhar nas fábricas e indústrias. Em decorrência disso como destaca Behring e Boschetti (2011) houve um aumento desordenado no contingente populacional, as classes subalternas viviam em péssimas condições de vida e de trabalho, contribuindo para o agravamento dos problemas sociais e para proliferação de doenças e epidemias. Nesse sentido para Vidal et al. (2008, p. 476) “Os problemas de saúde apareceram com a urbanização crescente vieram a favorecer a

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP/Franca; Bolsista Capes; Membro do Grupo QUAVISSS; Graduanda em Serviço Social pela UFTM 9(03/2017- atual); Membro do Grupo Pesquisa ProLisaBr (06/2017); Bacharel em Direito (2012) pela FAFRAM.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 123 posição do Estado como um aparelho repressor, causando na população reações de oposição e de conformação do staus quo.” Diante deste cenário, colocava-se em risco o desenvolvimento econômico do país, assim o Estado teve que buscar estratégias para contenção das epidemias, como vacinação da população, caso contrário ficaria sem mão de obra para explorar, conforme explica Bravo (2006). Neste período a proteção social na área da saúde se restringia a campanhas de vacinação, pois o acesso à saúde era restrito àqueles que possuíam condições econômicas para pagar médico particular, pois o Estado abstencionista guiado pelo liberalismo não reconhecia a saúde como direito, havendo apenas proteção social para categorias estratégicas de trabalhadores, como marítimos e ferroviários, que recebiam um seguro das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs) em caso de contingências e moléstia grave que ocasionasse incapacidade para o trabalho. Após a década de 1930 até 1963, foi um período de desenvolvimento econômico e social no país, a classe trabalhadora obteve algumas conquistas, como a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a partir de então o trabalho formal teria carteira assinada, que resguarda alguns direitos aos trabalhadores, segundo se extrai de Behring e Boschetti (2011). Em 1945 ampliou-se a cobertura na proteção social com os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs), criando-se instituições para regulação dos direitos sociais. Mas em 1964 instaurou-se a Ditadura Militar, que de início o governo deu continuidade às políticas sociais, mas posteriormente diante da crise econômica internacional que refletia no país, adotando uma postura de não investimento na área social, ocasionando assim uma ampliação das expressões da questão social, como miséria, pauperismo, desemprego, doenças, entre outras. Sem contar com a restrição aos direitos civis e políticos, censura, enfim um período de limitação em todos os sentidos. Segundo Bravo (2006) na década de 70 houve mobilização massiva da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, com apoio de intelectuais e instituições como Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), Instituto FIOCRUZ, intitulado como Movimento da Reforma Sanitária, que se engajaram em lutas sociais, contra regime ditatorial. Em 1986 ocorre a 8ª Conferência Nacional da Saúde, em decorrência das lutas do Movimento da Reforma Sanitária, obteve uma ampla participação da população, defendendo preceitos como conceituação ampla de saúde baseada nas determinações sociais, onde a

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 124 saúde foi reconhecida como um direito de todos sob responsabilidade do Estado, devendo ser implementada por meio de um sistema público de saúde. “Assim, surge a politização das demandas, na qual saúde passa a ser vista como um direito social, as reivindicações, e também a construção de princípios relacionados ao conceito ampliado de saúde, à gratuidade, à equidade e a participação ampla nas decisões.” (COELHO, 2012, p. 142). Tais fatores contribuíram para promulgação da Carta Constituinte que assegurou vários direitos fundamentais e sociais e a operacionalização de direitos sociais por meio de políticas públicas, que no caso da saúde culminou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1990. Com a promulgação da Constituição Federal (BRASIL, 1988), houve a universalização dos direitos fundamentais (artigo 5º) e direitos sociais (artigo 6º), sendo que estes seriam de responsabilidade do Estado o implemento de políticas sociais, conforme previsto no artigo 194 instituiu- se a Seguridade Social que abrange a política de saúde.

1 PARTICIPAÇÃO E CONTROLE SOCIAL

A política de saúde está prevista Art. 196 da Carta Magna (BRASIL, 1988) e foi operacionalizada com a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Lei n. 8.080 (BRASIL, 1990a), que tem como princípios o acesso universal aos serviços de saúde, a integralidade, que confere atendimento em todos os níveis de complexidade e a descentralização, que compartilha a responsabilidade pela implementação das políticas de saúde entre os entes federados, sendo que esta permite mais participação social da população. Ocorre que parte dos recursos da seguridade social é destinada ao pagamento dos juros da dívida externas do país, por meio da instituição da Desvinculação das Receitas da União. “A DRU transforma os recursos destinados ao financiamento da seguridade social em recursos fiscais para a composição do superávit primário e, por consequência, a sua utilização em pagamento de juros da dívida.” (SALVADOR, 2010, p. 626). [...] as medidas de desonerações tributárias adotadas para combater a crise afetaram o financiamento do orçamento da seguridade social, enfraquecendo a capacidade deste orçamento para cobrir com suas receitas exclusivas as despesas previdenciárias, de assistência social e de saúde. (SALVADOR, 2010, p. 626).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 125 Vê-se, que mesmo após a democratização e instituição do Sistema Único de Saúde-SUS, ainda não se efetivou a universalização da saúde na prática, pois o SUS enfrenta muitos problemas em decorrência do projeto neoliberal que adotou um Estado Mínimo, que a cada vez mais, diminui os recursos para financiamento do SUS. Como bem lembra Bravo e Correia (2012) o controle social na área da saúde tem suas especificidades, pois foi por meio das lutas sociais, isto é, reivindicações/mobilizações por melhores condições de vida e trabalho, direito a ter acesso a serviços públicos sob responsabilidade do Estado, buscando a democratização do País, se iniciaram em contraposição a ditadura militar. Com o advento da Lei n. 8.142 (BRASIL, 1990b), instituiu-se normativas para criação dos Conselhos e Conferências de Saúde, admitindo assim a participação cidadã nos espaços coletivos nas políticas de saúde para acompanhar a execução, pois somente com a participação ativa da população que se exercerá o controle social pelos usuários. A nova concepção de gestão (lei 8142/90), ou seja, participativa em que o controle social é realizado pelos atores sociais que compõe os Conselhos e as Conferências de Saúde, constitui fator decisivo e para o fortalecimento e consolidação do SUS. Aproximar-se das necessidades da população de modo mais transparência e com maior controle, toma o sistema de saúde democrático e representativo. (RIBEIRO; CRUZ; MARÍNGOLO, 2013, p. 6). Em 2004 o Conselho Nacional da Saúde instituiu a Política Nacional de Educação Permanente no Controle Social do SUS, isto é [...] considera-se educação permanente para controle social no SUS, os processos de transmissão e construção de conhecimentos por meio de encontros, cursos, oficinas de trabalho, seminários e o uso de metodologias de educação à distância, bem como os demais processos participativos e fóruns de debates – Conferências de saúde, plenárias de Conselhos de Saúde, encontros de Conselheiros, seminários, oficinas, dentre outros. (BRASIL, 2006, p. 9). Tal política tem por objetivo assegurar condições para o acesso a informação sobre os serviços e a estrutura SUS, suas diretrizes, forma de estruturação, fontes de custeio, dinâmicas dos conselhos, ocorrência das conferências, exercício do controle social, entre outras. Afim de construir uma consciência sanitária na população-usuária, conforme dispõe Brasil

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 126 (2006). “Participação plena significa decidir, acompanhar e avaliar a organização dos serviços, ou seja, exercer o controle social. Ela se constitui de forma politizada e permite que o coletivo decida sobre assuntos de interesse geral.” (COELHO, 2012, p. 145). Por isso é essencial investir na implementação dessa política, efetivá-la na prática, capacitando os profissionais que atuam no trabalho em saúde, possam disseminar conhecimentos sobre direto a saúde, serviços do SUS, formas de participação e controle social, na busca de tentar conter o desmonte que está em curso no projeto neoliberal. No ano de 2006 fora publicado o Pacto pela Saúde, em suas diretrizes objetivava elevar a participação popular e controle social nas políticas de saúde. Já em 2007 fora criada a Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa no SUS (PNGEP), intitulada PARTICIPASUS que propõe que haja mais à participação da população nas deliberações das políticas de saúde, por meio da ampliação dos espaços coletivos, propiciando assim mais diálogos entre os atores sociais, conforme ressalta Coelho (2012). [...] a participação social no SUS foi concebida na perspectiva do controle social, visando os setores organizados na sociedade participarem das políticas de saúde, desde as suas formulações – planos, programas e projetos -, acompanhamento de suas execuções, até a definição da alocação de recursos para que estas atendam aos interesses da coletividade. (BRAVO; CORREIA, 2012, p. 131). O Sistema Único de Saúde (SUS), foi uma das maiores conquistas sociais, fruto das lutas sociais, com participação ativa da população e engajamento do Movimento da Reforma Sanitária. Tem como princípios a democratização do acesso aos serviços de saúde (universalização), sendo que a oferta de serviços de saúde deve ser de responsabilidade compartilhada entre os governos federal, estadual e municipal (descentralização), priorizando o acesso aos serviços as crianças, idosos, gestantes, situações de emergência (equidade) conforme se extrai de Brasil (1990a). É por meio da descentralização que se garante a participação social, no que se refere a elaboração, execução, aplicação dos recursos da política de saúde. A participação social, este é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988, que contempla o direito dos cidadãos em participar das decisões a respeito das políticas sociais.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 127 A partir da Lei n. 8.142 de 1990 a existência e funcionamento dos Conselhos de Saúde nos três níveis de governo passam a ser obrigatório para a garantia da participação social nas políticas de saúde, no que tange a elaboração e execução. Neste sentido, parte-se do pressuposto que o controle social e a participação social estejam aprimorando suas dimensões e aperfeiçoando seus métodos. Conforme se extrai de Coelho (2012) os conselhos de saúde devem possuir regimento próprio, composição paritária entre os diversos atores sociais, possuir caráter permanente e deliberativo, propondo ações e exercendo controle sobre as políticas de saúde. Mas na prática, alguns espaços de deliberação coletiva sobre política de saúde não seguem as determinações legais.

2 METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa e que a realizou um estudo exploratório segundo Gil (2014, p. 27), “[...] têm como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores”, ou seja, objetiva obter mais proximidade com a temática da participação e controle social nas políticas de saúde. A pesquisa bibliográfica teve como base livros, artigos científicos, dissertações, revistas e periódicos, entre outros que tratam das categorias teóricas expressas nas intencionalidades das pesquisadoras. Para Gil (2014, p. 44) a pesquisa bibliográfica: “[...] é desenvolvida com base em material já elaborado, construído principalmente de livros e artigos científicos.” Apresenta-se como categorias teóricas: políticas de saúde, participação social, controle social; Conselhos de Saúde. Ainda foi realizada pesquisa documental, na qual se analisou a legislação pertinente. Quanto ao delineamento, para uma compreensão mais aprofundada sobre o universo a ser pesquisado, foi necessária realização de uma pesquisa de campo, por meio de entrevistas (perguntas abertas) com um membro do Conselho Municipal de Saúde de Ituverava/SP. [...] caracterizam-se pela interrogação direta das pessoas cujo comportamento se deseja conhecer. Basicamente, procede- se à solicitação de informações a um grupo significativo de pessoas acerca do problema estudado para, em seguida, mediante análise quantitativa, obterem-se as conclusões correspondentes aos dados coletados. (GIL, 2014, p. 50).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 128 A análise e interpretação dos dados foram feita com base na abordagem no materialismo histórico e dialético, tendo em vista a necessidade de uma leitura crítica e reflexiva dos dados obtidos. Segundo Gil (2014, p. 14): “A dialética fornece as bases para uma interpretação dinâmica e totalizante da realidade, já que estabelece que os fatos sociais não podem ser entendidos quando considerado isoladamente, abstraídos de suas influências políticas, econômicas, culturais [...].” O contato com um dos membros do conselho de saúde foi prévio, sendo assinado um termo de autorização para divulgação dos resultados da entrevista. Espera-se que a presente investigação possa contribuir com reflexões para elaboração de estratégias para fomentar maior participação e controle social dos usuários nas políticas de saúde de Ituverava/SP.

3 RESULTADOS

Com base na entrevista realizada com uma conselheira municipal de saúde, constatou-se que a implementação do Conselho Municipal de Saúde em Ituverava/SP se deu em 1990/1991, sendo atualmente regulada por meio da Lei n. 4.361. Há paridade na representação do conselho, sendo oito membros da comunidade-usuária e oito membros (trabalhadores, prestadores de serviço de saúde, representante do poder público), sendo o conselho presidido pelo Secretário Municipal de Saúde. Cumpre-se esclarecer que a presidência do conselho sempre foi designada ao secretário municipal de saúde, e que os próprios membros do conselho aprovam tal incumbência, pois é uma forma de fazer com o secretário da saúde esteja ciente de todas as discussões e problemáticas que envolvam as políticas de saúde no município. Geralmente em cidades de médio e grande porte a presidência do conselho é realizada por meio de eleição, conforme dispõe a Lei. n. 8.142/1990. As reuniões são bimestrais e são realizadas na sede da Secretária Municipal de Saúde, sendo que uma das reuniões deve coincidir com a prestação de contas, em audiência pública conforme artigo 12 da Lei n. 8.689 (BRASIL, 1993), nesta ocasião a reunião ocorre na Câmara Municipal. Ressalta-se que não há comissões técnicas, sendo assim todos os conselheiros participam de todas as discussões. Quanto as formas de divulgação das reuniões/encontros relativos as deliberações do conselho municipal de saúde, é feita por meio do Rádio, pois

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 129 atinge a população de uma forma mais ampla, ainda é feita a divulgação nas Unidades Básicas de Saúde, por meio de afixação de cartazes, sendo que os gestores das unidades de saúde são convidados via Skype. Sendo assim não há uma estratégia específica para a mobilização dos usuários Em relação a escolha dos temas a serem debatidos nas reuniões, estes são definidos pela Secretária Municipal de Saúde com base no Plano Municipal de Saúde e políticas locais, pois estipula-se metas a serem cumpridas. Antes das reuniões do conselho, são enviadas as pautas com a temática para os conselheiros, sendo que todos assuntos e deliberações são registradas em ata, ficando está à disposição para consulta. Os profissionais da saúde, após a reunião do conselho discutem no Comitê de Gestão estratégias para melhoria dos serviços e resolução de problemas nas políticas de saúde. No tocante a implementação da Política Nacional de Educação Permanente no Controle Social do SUS de 2004. Existe um articulador da educação permanente em saúde no município de Ituverava, não sendo adstrito ao Conselho Municipal de Saúde. Citando como exemplo o curso de formação de educação permanente em saúde aos agentes comunitários de saúde (módulo 1), sendo este baseado na metodologia problematizadora. Esses cursos são fomentados pelo Ministério da Saúde assim como foram os cursos destinados a formação de conselheiro. Quanto a Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa no SUS, denominada Participa SUS, tal política não foi implementada no município de Ituverava/SP. A baixa participação dos usuários do SUS nos espaços coletivos que discutem políticas de saúde se dá pela falta de divulgação das reuniões do conselho de saúde, pois o governo não criou estratégias para que a população compreenda a importância da participação social nas políticas de saúde. Outro fato, é que a população possui a cultura de ver assuntos políticos com negatividade, abstendo de participar ativamente, isto ocorre pela falta de politização dos indivíduos, sugerindo como estratégia, a implantação da educação em políticas públicas na educação básica, para que os indivíduos compreendam desde a infância o que abrange as políticas públicas e a importância da participação social.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 130 4 DISCUSSÃO

De acordo com Vidal (2008, p. 476) “[...] a ausência de ator popular na cena política, traduzida em prática corrente nos serviços de saúde, pode representar resquícios de um modelo de saúde pautado em ações normativas com discursos coercitivos.” Isto porque, antes da existência do SUS que garante acesso universal, só tinha acesso à saúde àqueles que possuíam condições econômicas para pagar um médico particular, e como o advento da Carta Magna, o constituinte apesar de criar diretrizes para operacionalização do SUS, manteve o modelo privatista e ainda assegurou que a rede privada deveria ser complementar a rede pública, conforme dispõe artigo 199 do Texto Constitucional, mas não é o que ocorre na realidade. Vê-se que mesmo com a conquista da democratização, por meio da Carta Magna, a instituição de uma política de saúde que se concretizou por meio do SUS, dentre seus princípios está à participação popular nas políticas de saúde, como já preconizava o Movimento da Reforma Sanitária, mas está não se efetivou. Conforme explica Liporoni (2017, p. 338) “A democracia brasileira ‘efetivou-se mais pela institucionalização do estado democrático do que pela realização do processo de participação popular’”, ou seja, a democracia é apenas formal, não ocorrendo na prática. O direito a participação popular nas instâncias de controle, são desconhecidos e inacessíveis, isto porque os usuários não conhecem tal direito e nem sabem a importância de participar dos espaços coletivos nas políticas de saúde, pois tal assunto é restrito e não se tem ampla divulgação, assim o único caminho, para politizar à população é por meio da educação. Assim uma das justificativas pela falta de motivação a participação social da população refere-se ao sentimento de não representatividade em relação aos representantes políticos que elegeram. Os cidadãos creem nas promessas feitas nas campanhas eleitorais, na esperança de que o seu representante irá concretizar um bem- estar social, mas o que ocorre são apenas mudanças pontuais e fragmentadas. “Não existe soberania, mas jogo de interesses, ao mesmo tempo políticos e particulares, o que em muito contribui para crise de democracia representativa que se tem presenciado a partir das últimas décadas.” (LIPORONI, 2017, p. 337).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 131 Essa descrença em relação aos representantes políticos se deu, principalmente, após o governo do Partido dos Trabalhadores, que representavam a esperança do povo em ter um país democrático, onde o Estado fosse comprometido com a melhoria de qualidade de vida e de trabalho para sociedade, assegurando serviços públicos de qualidade, que governasse para efetivar os direitos fundamentais e sociais dispostos na Constituinte. Conforme Vidal (2008, p. 476) “A democracia e a participação cidadã perpassam vários aspectos da vida e no que tange ao setor da saúde, especificamente nas práticas de educação em saúde, pode representar a conexão necessária à satisfação dessa prática.” Dentre as ações que efetivam a gestão participativa estão os mecanismos de mobilização social e a educação popular em saúde “Esta metodologia reconhece o usuário como sujeito capaz de estabelecer uma interlocução dialógica com o serviço de saúde e desenvolver uma análise crítica sobre a realidade, que possibilite incrementar estratégias de lura e de enfrentamento.” (OLIVEIRA et al., 2014, p. 1391) Se o poder público não fornecer condições necessárias para implemento das políticas que propiciem uma educação no trabalho em saúde, tais como a educação popular em saúde e a educação permanente em saúde, que por meio da comunicação em saúde levar-se-á aos usuários informações acerca da participação e controle social aos usuários. “O movimento de educação popular em saúde valoriza a prática educativa, numa perspectiva horizontal da relação trabalhador-usuário, incentivando as trocas interpessoais, as iniciativas da população usuária e, pelo diálogo, busca compreender o saber popular.” (OLIVEIRA et al., 2014, p. 1391). Não basta existir formalmente o direito a saúde e instituir uma política social (SUS), sendo necessária a concretização dos direitos da população, por meio de mecanismos que mobilizem a participação e controle social da população nas políticas de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que universalizou os direitos fundamentais e sociais a todos, estabelecendo políticas sociais para assegurá-las, não foi suficiente para concretizar, na prática, tais direitos.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 132 Especificamente a instituição da seguridade social que contempla a política de saúde, tal direito foi estendido a toda sociedade, sendo financiada com impostos e tributos; tendo se operacionalizado de fato com a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1990 (CFESS, 2010) Na atual conjuntura que vivenciamos, onde o neoliberalismo avança em seu projeto para desarticular as politicais sociais por meio do Estado Mínimo, sob a alegação da crise econômica global, a meta é o desmonte aos direitos sociais, onde as políticas sociais são focalizadas, amplia-se a privatização dos serviços pública, imputando-se ao sujeito a responsabilidade por sua condição de saúde, configurando-se num retrocesso. De acordo com Ribeiro, Cruz e Maríngolo (2013, p. 7) com os avanços neoliberais vem concretizando o Estado mínimo que visa contenção de gastos com políticas sociais, no campo da saúde tenta ampliar o modelo privatista, pois não quer se responsabilizar pela gestão da política de saúde, deixando a população serviços precarizados, incentivando a adesão aos planos de saúde, deixando o SUS restrito aos miseráveis. A política de saúde vem sendo diretamente afetada com tais manobras neoliberais, e a população menos favorecida que depende do SUS é a mais prejudicada, pois são atendidas na precariedade, longas filas de espera, ausência de vaga, falta de medicamentos, escassos recursos humanos para um atendimento de qualidade. No contexto de desmonte do SUS, via privatização e aprofundamento da precarização do trabalho, é necessário fortalecer o protagonismo das classes subalternas com vistas às transformações societárias, enfrentando os determinantes sociais do processo saúde e doença, tendo como horizonte uma nova hegemonia. (BRAVO; CORREIA, 2012, p. 148). É necessário maior comprometimento da sociedade, unindo- se coletivamente, na busca da efetivação do direito à saúde pública de qualidade, por meio da participação social como forma de acompanhar e fiscalizar a atuação do Estado, na execução das políticas de saúde. Mostra-se evidente a necessidade de adotar estratégias que fomentem maior participação dos profissionais da saúde, outros setores da rede intersetorial, e principalmente os usuários dos serviços do SUS, pois em tempos de desmonte às políticas sociais, principalmente a política de saúde, pois esta é imprescindível para que o indivíduo possa subsistir, sem saúde de nada adiantaria o reconhecimento dos demais direitos. Por

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 133 isso a população deve estar atenta e engajada em participar ativamente das decisões que envolvam as políticas sociais. A sociedade mostra-se insatisfeita com as decisões políticas do Brasil e manifestando-se naquilo que lhe atinge diretamente. Por isso é necessário mobilizar os usuários, para que estes se envolvam e se interessem cada vez mais pelo Sistema Único de Saúde (SUS) uma vez que a existência do Conselho Municipal de Saúde é essencial para que a sociedade civil acompanhe com transparência as decisões sobre os recursos que estão sendo aplicados na saúde pública, tais como: serviços ofertados, gestão, financiamento, repasses de verbas, contratação com a rede privada, entre outras e consequentemente suscitará interesse dos usuários a um efetivo controle social, a democracia, sendo esta uma das finalidades preconizadas pelos SUS, segundo (CFESS, 2010). É necessário que a população compreenda também que as determinações sociais interferem no processo de saúde e doença, com vistas a entender a importância de ter um papel ativo nas políticas de saúde, efetivando a participação e controle social. Enfim para que se possa fomentar mais participação dos usuários do SUS nas políticas de saúde, é necessário desenvolvimento de ações (dos profissionais de saúde ou por intermédio do governo), que consigam mobilizar os usuários no próprio espaço de trabalho, por meio da educação em saúde, educação popular em saúde, educação permanente em saúde, entre outras.

REFERÊNCIAS

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 134 BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 20 set. 1990a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm. Acesso em: 6 maio 2017. BRASIL. Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1990b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ CCivil_03/leis/L8142.htm. Acesso em: 27 jun. 2018. BRASIL. Lei n. 8.689, de 27 de junho de 1993. Dispõe sobre a extinção do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 28 jul. 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/LEIS/ L8689.htm. Acesso em: 27 jun. 2018. BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Diretrizes nacionais para o processo de educação permanente no controle social do SUS. Brasília, DF, 2006. (Série A. Normas e manuais técnicos). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_ processo_educacao_permanente_sus.pdf. Acesso em: 10 fev. 2018. BRAVO, Maria Inês Souza; CORREIA, Maria Valéria Costa. Desafio do controle social na atualidade. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 109, p. 126-150, jan./mar. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ sssoc/n109/a08n109.pdf. Acesso em: 27 jan. 2018. BRAVO, Maria Inês Souza. Política de saúde no Brasil. In: MOTA, Ana Elisabete et al (org.). Serviço Social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2006. CFESS. Parâmetros para atuação do assistente social na saúde. Brasília, DF, 2010. (Série trabalho e projeto profissional nas políticas sociais, 2). Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/ Parametros_para_a_Atuacao_de_Assistentes_Sociais_na_Saude.pdf. Acesso em: 22 jan. 2018. COELHO, Juliana Sousa. Construindo a participação social no SUS: um constante repensar em busca de equidade e transformação. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, supl. 1, p. 138-151, 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v21s1/12.pdf. Acesso em: 22 jan. 2018.

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 136 A JUDICIALIZAÇÃO, A PENETRAÇÃO DO CAPITAL NA VIDA SOCIAL E O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL

JUDICIALIZATION, THE PENETRATION OF CAPITAL IN SOCIAL LIFE AND THE WORK OF THE SOCIAL ASSISTANT Fernanda de Castro Nakamura * RESUMO: Este artigo tem como foco a análise sobre a penetração do capital na vida social, levando em consideração, sobretudo, o cenário político vivenciado após a promulgação da Constituição Federal e o trabalho do assistente social em um contexto de negação dos direitos fundamentais. Por meio de uma revisão da literatura sobre o tema, afere-se que em vista das garantias constitucionais colocadas em favor dos cidadãos, há o aprofundamento das iniquidades em face do avanço do mercado em detrimento da questão social. Sob essa perspectiva, tem-se também a intensificação da judicialização, a burocratização da vida social e a inversão dos valores inscritos no sistema de seguridade social. Palavras-chave: assistência social. capital. judicialização. contrarreforma. ABSTRACT: This work focuses on the analysis of the penetration of capital into social life, taking into account, above all, the political scenario experienced after the promulgation of the Federal Constitution and the work of the social worker in a context of denial of fundamental rights. Through a review of the literature on the subject, it is pointed out that in the view of the constitutional guarantees placed on behalf of citizens, there is a deepening of inequities in the face of market advancement to the detriment of the social question. From this perspective, there is also an intensification of the judicialization, the bureaucratization of social life and the inversion of the values inscribed in the social security system. Keywords: social assistance. capital. judicialization. state reform.

INTRODUÇÃO

A análise do capital enquanto relação social, tendo em vista a sua penetração na vida social, deve ser realizada de forma a considerar a atual conjuntura em que vivemos. Na trajetória histórica brasileira verifica-se que, apesar da afirmação de direitos fundamentais e da estruturação do sistema de seguridade social, como um dos meios para efetivá-los, os direitos fundamentais tiveram que conviver com a lógica capitalista, em que se focalizam as políticas públicas e se direciona o trabalho do assistente social para a amenização dos conflitos sociais, sendo estes considerados no âmbito da pobreza pura e simples.

* Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP/Franca; Bolsista CAPES; Mestra em Planejamento e Análise de Políticas Públicas Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP/ Franca; Membro do Grupo QUAVISSS; Vice-líder do Grupo DEMUS da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP/Franca. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca ( 2009).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 137 Assim, o capital penetra na vida social de forma a aprofundar as iniquidades, uma vez que as relações humanas passam a ser permeadas pelo conceito de propriedade, sendo que no âmbito político, os programas governamentais, principalmente àqueles relacionados à efetivação dos direitos sociais, são colocados sob a forma de um “favor” em face dos cidadãos que não detém o poder aquisitivo para se beneficiar do mercado privado. Após a década de 90, observou-se um contexto de negação de direitos, em que é possível aferir, desde então, sobre a forma como o sistema de seguridade social vem sendo desmantelada desde a promulgação da Constituição. Sob essas premissas, este artigo é estruturado de forma a analisar em um primeiro e segundo momentos o capital enquanto relação social e a sua penetração na vida social, de modo a discorrer sobre a lógica capitalista vivenciada pela contrarreforma do Estado na década de 90 e os seus reflexos, bem como, sobre a barbarização das relações sociais em face do contexto atual. Em um terceiro e quarto momentos, levando em consideração a análise inicial dos dois primeiros tópicos sobre o capital, será realizada uma análise sobre as tendências de alterações nas políticas sociais em face da lógica capitalista da década de 90, e da burocratização dos mecanismos de efetivação dos direitos sociais no campo da judicialização dos direitos fundamentais, como um dos meios de controle exercido pelo Estado sobre a vida dos cidadãos.

DESENVOLVIMENTO

1 O CAPITAL COMO RELAÇÃO SOCIAL

O capital é capaz de produzir relações sociais através da organização social do trabalho, deixando clara a existência do controle que o capitalismo exerce nesse espaço. Assim, deve-se considerar que o indivíduo, enquanto ser social, forma sua comunidade na relação social de produção que deixa claro como o capital influencia nas relações entre pessoas, o que gera a predominância do poder de umas pessoas sobre as outras com base no capital, manifestando-se como relação social de troca equivalente a mercadorias. Dessa forma, o trabalho humano abstrato se estabelece em uma relação social entre as coisas, dando forma social a elas. Isso contribui para

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 138 a estruturação das relações de dominação do capital, em que as relações são baseadas no conceito de propriedade. Nesse contexto, as pessoas se relacionam não como pessoas, mas como proprietários de objetos de valor (RUBIN, 1987), estabelecendo entre si relações baseadas no interesse puro e simplesmente econômico. As relações sociais são marcadas por categorias que as distinguem de acordo com a forma de produção material. Essa produção é fruto da combinação dos meios de produção e dos trabalhadores que resultam no modo de atividade social e no modo de se relacionar entre pessoas (HIRANO, 2001). A esse respeito, parte-se da concepção de Marx (1996, p. 64) sobre o trabalho como “[...] uma condição natural eterna da existência humana”, sem o qual o homem não sobrevive e não é capaz de se manter no meio social. E, esse trabalho é organizado de forma a reforçar as estruturas de poder entre os indivíduos, e ressaltar a trajetória histórica de cada época social. Tem-se, dessa forma, que o desenvolvimento histórico de uma dada sociedade sofre com as consequências do capital, a partir do momento em que as pessoas se relacionam de modo a estabelecer entre si uma relação de dominação, em que de um lado colocam-se os trabalhadores e de outro os proprietários privados que vivem à custa desses trabalhadores. Como consequência desse processo, as relações são fragmentadas nas categorias de produtores e proprietários privados. As pessoas passam a se relacionar por meio de coisas, não levando em consideração o aspecto humano da relação, mas, sim, o puramente material. As coisas passam a fazer parte da vida dos indivíduos como algo puramente essencial e determinante da própria condição humana. Assim, a sociedade passa a ser marcada pela divisão social de acordo com as classes em que os indivíduos encontram-se inseridos – nesse âmbito, encontra-se a desigualdade material, em que a divisão vai ocorrer de acordo com a propriedade que cada indivíduo tem. Neste caso, por exemplo, é possível visualizar que as ações governamentais, marcadas como “social” são direcionadas, erroneamente, aos indivíduos sem condições socioeconômicas para ingressar na sociedade mercantil. Por outro lado, é possível perceber que os proprietários se utilizam de sua força econômica para perpetrar ações que venham a manter o status social do indivíduo com menor poder aquisitivo, de modo

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 139 a aprofundar as iniquidades advindas nesse processo social. E, é com base nesses pressupostos que é possível analisar como o capital penetra na vida social de forma a determinar a essência do indivíduo em uma determinada sociedade.

2 A PENETRAÇÃO DO CAPITAL NA VIDA SOCIAL

Levando em consideração a trajetória histórica brasileira, especificamente a partir da década de 90, verifica-se de forma clarao modo como a vida social se coisificou e se mercantilizou, passando a fazer parte do cenário brasileiro desde então. Essa coisificação e mercantilização são representadas pela natureza das ações políticas que foram tomadas sob aquela conjuntura, em que se deu prioridade ao desenvolvimento econômico do país em detrimento da questão social. Nessa época, passa a predominar no meio social brasileiro a geração e acumulação de riquezas, em detrimento do aspecto humano na vida social. O avanço do capital é percebido de forma abrupta, e a relegação dos direitos fundamentais a segundo plano acarretou o aprofundamento das iniquidades sociais. A coisificação e a mercantilização das relações sociais permitiu o avanço do capital, de forma a delegar ao aspecto humano a condição de entrave ao desenvolvimento econômico nacional. O peso do social é direcionado no sentido de se resguardar o desenvolvimento do modelo capitalista, mantendo as relações de poder e dominação, oferecendo o mínimo de respaldo efetivo à imagem do Estado como “mediador de interesses conflitantes” (PAULO NETTO, 2009, p. 31). A esse respeito, cabe destacar a fase denominada como “capitalismo tardio” por Mandel – a inserção do capital na vida social é extremada ao ponto de se tornar insustentável, pois levaria a exaustão dos recursos naturais por conta do consumo excessivo. Este modelo percebido após o período da Segunda Guerra Mundial é marcado pela expansão das grandes corporações multinacionais, pela globalização dos mercados, pela exploração da mão de obra e expansão da capacidade produtiva (MANDEL, 1985). O trabalho, nesse contexto, é visualizado como o meio necessário para se ingressar no mercado privado, porém com a condição de se impor os entraves necessários para a sobrevivência do modo capitalista, e da imposição de poder pelo proprietário privado sobre o trabalhador.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 140 Assim, perpetua-se no cenário brasileiro a expansão da pauperização e a divisão social determinada pelo capital. O aumento da capacidade produtiva de se gerar riquezas não necessariamente provocou a equalização social. Muito pelo contrário. A sua expansão aprofundou as iniquidades sociais e expandiu a pobreza, ocasionando a negação dos direitos mais básicos ao ser humano (PAULO NETTO, 2010). Nessa lógica é vislumbrada a exploração do indivíduo pela sua força de trabalho. O trabalho humano passou a ser sinônimo de exploração, em que a relação de dominação é constantemente marcada pela capacidade aquisitiva de um indivíduo sobre o outro. A expansão da pauperização passou a ser o instrumento de sobrevivência do capitalismo e modo de dominação e controle pelo Estado. A questão social passa a ser um entrave à manutenção do modelo capitalista. Os programas governamentais tornam-se focalizados e direcionados à camada da população mais vulnerável, há o aprofundamento das iniquidades sociais com o advento de modelos políticos voltados ao desenvolvimento econômico, conforme se verá no tópico a seguir.

3 A TENDÊNCIA DE ALTERAÇÕES NAS POLÍTICAS SOCIAIS VIA CONTRARREFORMA DO ESTADO E SUAS NOVAS RACIONALIDADES

A conjuntura vivenciada após a promulgação da Constituição de 1988 foi marcada pela necessidade de se afirmar direitos e de garanti-los frente ao Estado, em uma pura e clara necessidade de se ressaltar o aspecto humano desses direitos. Os direitos fundamentais são definidos como aqueles que são inerentes ao ser humano, essenciais para o desenvolvimento e manutenção do bem comum. Contudo, o marco da redemocratização brasileira passou a conviver com a lógica capitalista da década de 90, em que se priorizava o desenvolvimento econômico do país, em detrimento da afirmação e garantia de direitos do cidadão. Nesse período surge a Contrarreforma do Estado que promove a retração da questão social e a negação de direitos em nome do desenvolvimento econômico do país, em um contexto em que o econômico se sobrepõe ao social que, por sua vez, deve estar inserido nele. A Contrarreforma do Estado deu-se início a uma era de negação dos direitos fundamentais e de vigência à Constituição Federal promulgada anos antes. O resultado dessa reforma foi e continua sendo percebido pela sociedade como uma forma de controle e dominação.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 141 Os serviços públicos passaram a ser direcionados e focalizados para as camadas mais pobres da população, como consequência houve e ainda continua tendo o sucateamento do financiamento desses serviços em detrimento da população, que deve conviver com o mínimo do mínimo relativo aos direitos fundamentais constitucionais. As relações sociais nessa época são permeadas pela necessidade de inserção na sociedade mercantilista e nas relações de exploração e dominação. A contrarreforma, em nome do desenvolvimento econômico nacional, teve como frutos a exclusão dos indivíduos, uma vez que o social não caberia em um contexto de geração e acumulação de riquezas, sendo necessário delegar ao mercado privado a parcela de responsabilidade estatal no que toca à efetivação e garantia de direitos fundamentais. O que passou a ser denominado de social foi direcionado aos indivíduos não inseridos no sistema capitalista, e que, portanto não teriam condições de desfrutar dos avanços tecnológicos impostos ao social pelo mercado privado, que por sua vez foi direcionado aos indivíduos já presentes neste sistema. A questão social, nesse contexto, é vislumbrada sob a ótica da luta de classes, como o agravamento das desigualdades sociais, pois provém como fruto da sociedade capitalista madura, em que o trabalho torna-se social, porém a apropriação dos seus frutos torna-se privada (IAMAMOTO, 2000). Com isso, a contrarreforma alterou a relação entre o Estado e a sociedade, uma vez que representou o sucateamento das políticas sociais e o esvaziamento da participação democrática da sociedade civil (SIMIONATTO; LUZA, 2011). Sob essa conjuntura, perpetuou-se uma cultura de crise e seguridade social; pois o Estado passa a responsabilidade da diminuição dos direitos sociais para uma parcela da população que não tem acesso ao mercado. O campo da assistência social, nesta perspectiva, é visto com base na necessidade de se enfrentar a pobreza de forma pura e simples, deixando de lado o enfrentamento das questões sociais inseridas nas políticas públicas. A luta pelo reconhecimento da profissão nesse âmbito passa a conviver com o sistema capitalista e na lógica do desenvolvimento econômico em detrimento do social. A inserção do assistente social no espaço democrático é vislumbrada sob a ótica da focalização das políticas sociais, e da necessidade de se afirmar os direitos sociais frente ao sistema político vigente. E, nessa esfera, a atuação do assistente social é essencial para afirmação de direitos, sobretudo quando chegam à esfera judicial.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 142 4 A JUDICIALIZAÇÃO E AS ESTRATÉGIAS DE CONTROLE DO ESTADO

Em um contexto em que as políticas sociais se apresentam cada vez mais sucateadas pela dinâmica do capital na vida social, tem-se como meio de acesso às garantias dos direitos sociais, a judicialização. Com a contrarreforma na década de 90, o Estado se desresponsabiliza pelo enfrentamento da questão social, e os direitos constitucionalmente garantidos passam a ser vistos como entrave ao desenvolvimento econômico, sendo os programas políticos voltados, de forma focalizada, a parcela determinada da população. A judicialização apresenta-se como instrumento de controle do Estado, uma vez que é a expressão da burocratização da vida social como meio de se alcançar os direitos fundamentais constitucionais. Em outras palavras, há uma garantia do mínimo social pelo Estado, em função do avanço do mercado privado e da dinâmica da reprodução da força do trabalho, delegando ao indivíduo o encargo de buscar a efetivação dos próprios direitos, em face de sua condição socioeconômica. Nesse âmbito, a assistência social passa a ser vislumbrada de forma a selecionar os indivíduos que serão merecedores da fruição dos direitos que lhe são inerentes, deixando clara a deturpação que envolve o campo de proteção dos direitos sociais em detrimento da manutenção do capitalismo na ordem política vigente. Sob esse prisma, parte-se do princípio colocado pelo autor Souza Filho (2016) de que as políticas sociais no contexto capitalista surgem como um salário indireto, pois elas atendem de forma direta a reprodução da força de trabalho, que se configura nos direitos sociais constitucionalmente previstos: educação, saúde, lazer, moradia, dentre outros - essenciais para a promoção do bem comum, por um lado e, por outro se perfazem como meio de manutenção do capital. A dinâmica das políticas sociais, a partir da década de 90, é vista como um instrumento de amenização aos conflitos que o sistema capitalista impõe. Nessa lógica, os investimentos públicos são mais voltados para o desenvolvimento econômico do que para o social. Ou seja, nesse cenário observa-se uma retração de investimentos na área social que culmina com a exclusão da classe trabalhadora, que é obrigada a conviver com o mínimo proporcionado pelo Estado.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 143 Além disso, afere-se ainda que o controle social passa a ser exercido também pelo mercado. O mercado privado ingressa no âmbito das políticas sociais como instrumento de manutenção do sistema capitalista, em um cenário favorecido pela expansão mercantilista em face da desresponsabilização do Estado. Apesar das promessas governamentais, os anos que se sucederam à Reforma do Estado acabaram por consolidar e manter a lógica capitalista nas políticas sociais. Gurgel (2013) aponta que no governo Lula, por exemplo, as práticas governamentais não condisseram com as promessas de investimento na área social. As políticas sociais da era Lula foram marcadas, também, pelas práticas mercantilistas, pela focalização e retração de investimentos. Nesse contexto, verifica-se o desmantelamento do sistema de seguridade social, tendo em vista que o tripé – saúde, previdência e assistência – passam a ser confundidos entre si. Em outras palavras, tem-se a saúde que é universal, a previdência que é contributiva e a assistência para os mais necessitados. Na racionalidade imposta pelo sistema capitalista, esse sistema passa a ter valores invertidos – a saúde, por exemplo, volta-se para os mais necessitados e a assistência social ao invés de ser utilizada como instrumento de promoção de direitos e enfrentamento da questão social, passa a ser vista como forma de se selecionar os indivíduos que serão merecedores de determinado direito. O trabalho do assistente social, dessa forma, é vislumbrado como meio de se manter o padrão da sociedade mercantilista vigente. Por mais que o profissional busque enfrentar a questão social, a prática do Estado o coloca em uma posição de valores invertidos, utilizando a força de trabalho dele como modo de reprodução dos ideais da contrarreforma da década de 90. Essa mácula dada à área social no pós Constituição de 1988 permanece como meio de se fortalecer a sociedade mercantilista nos dias atuais. Como resposta, a sociedade tem que busca na judicialização uma alternativa à efetivação de seus direitos e a garantia do seu “salário indireto” que é devido pelo Estado, em forma de promessa já constitucionalmente feita. Por outro, a judicialização se revela como meio de o Estado se esquivar de sua responsabilidade e de controlar a vida social através do Poder Judiciário, além de selecionar os indivíduos de acordo com sua capacidade econômica para usufruir das políticas sociais.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 144 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atual conjuntura brasileira contribui para a manutenção do modelo capitalista iniciado na década de 90, pela Reforma do Estado, servindo a favor dos capitalistas e do avanço do mercado privado. Em vista disso, é possível visualizar que as políticas sociais são tendentes à exclusão da classe trabalhadora em detrimento da manutenção da sociedade mercantilista e da retração na área social. Como resultado do avanço do mercado, os programas governamentais direcionam-se para o provimento do mínimo com o mínimo de investimentos destinados aos mais necessitados, que se vêem obrigados a conviver com a mácula da ineficiência e falta de qualidade dos serviços públicos e negação dos direitos mais básicos. Nesse cenário, o desmantelamento do sistema de seguridade social previsto na Constituição de 1988 é vislumbrado sobre a ótica de valores invertidos. A assistência social passa a ser utilizada como instrumento de exclusão, em detrimento da classe trabalhadora que necessita se inserir na dinâmica de mercado. O avanço da judicialização serve como instrumento de controle da vida social, uma vez que, apesar de ser um meio efetivo de se garantir direitos, apresenta-se, também, como forma de seleção dos indivíduos considerados merecedores de tal direito. Nessa ótica, o trabalho do assistente social passa a ser vislumbrado em função da manutenção do sistema vigente capitalista, em uma clara inversão de valores, sendo visto, de forma errônea como meio de se enfrentar a pobreza pura e simples, e não como instrumento de favorecimento social universal.

REFERÊNCIAS

GURGEL, Cláudio; JUSTEN, Agatha. Controle social e políticas públicas: a experiência dos conselhos gestores. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 2, p. 357-378, mar./abr. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rap/v47n2/v47n2a04.pdf. Acesso em: dez. 2017. HIRANO, Sedi. Política e economia como formas de dominação o trabalho intelectual em Marx. Tempo Social: Revista de Sociologia, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 1-20, nov. 2001.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 145 IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000. MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. Tradução de Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah de Abreu Azevedo. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: o processo de produção do capital. Tradução de Regia Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os Economistas, L. 1. t. 1). PAULO NETTO, José. Capitalismo monopolista e serviço social. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2009. PAULO NETTO, José. Uma face contemporânea da barbárie. In: ENCONTRO INTERNACIONAL “CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE”, 3., 2010, Serpa. Disponível em: http://pcb.org.br/portal/docs/ umafacecontemporaneadabarbarie.pdf. Acesso em: dez. 2017. RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. Tradução de José Bonifácio de S. Amaral Filho. São Paulo: Polis, 1987. (Coleção teoria e história). SIMIONATTO, Ivete; LUZA, Edinaura. Estado e sociedade civil em tempos de contrarreforma: lógica perversa para as políticas sociais. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 215 - 226, ago./dez. 2011. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/ fass/article/viewFile/9830/7329. Acesso em: dez. 2017. SOUZA FILHO, Rodrigo de. Fundo público e políticas sociais no capitalismo: considerações teóricas. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 126, p. 318-339, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ sssoc/n126/0101-6628-sssoc-126-0318.pdf. Acesso em: dez. 2017.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 146 O SISTEMA DE SEGURIDADE SOCIAL NO BRASIL: ENTRE A UNIVERSALIDADE E A EFETIVIDADE

THE SOCIAL SECURITY SYSTEM IN BRAZIL: BETWEEN THE UNIVERSALITY AND EFFECTIVENESS

Fernanda de Castro Nakamura * RESUMO: Este estudo propõe-se a investigar o sistema de seguridade social no Brasil, de forma a analisar a universalidade e a efetividade dos direitos que o compõem. Para tanto, foi realizada uma revisão da literatura sobre o tema, abrangendo tanto o aspecto histórico como o político e social que envolve a Constituição Federal de 1988. Neste cenário, têm-se os desafios postos aos profissionais que atuam nas áreas componentes da seguridade social, principalmente no quese refere ao resgate dos seus princípios constitucionais em face do desmantelamento dos direitos sociais no sistema capitalista. Palavras-chave: seguridade social. políticas públicas. universalidade. efetividade ABSTRACT: This work aims to investigate the social security system in Brazil, in order to analyze the universality and effectiveness of the rights that compose it. For this purpose, a literature review was performed, covering the historical, political and social aspects of the Federal Constitution of 1988. In this scenario, the challenges faced by professionals working in the areas of social security, especially as regards the redemption of its constitutional principles in the face of the dismantling of social rights in the capitalist system. Keywords: social security. public policies. universality. effectiveness.

INTRODUÇÃO

O sistema de seguridade social no Brasil é uma rede de proteção que envolve três vertentes: a saúde, a previdência e a assistência social – e tem como fundamentos a ampliação de direitos e a correção de iniquidades. A composição desse tripé representa a interligação dessas áreas a partir de sua vinculação à justiça social, e tem como alvo a classe trabalhadora. O princípio da universalidade dá visibilidade a esse sistema, e se configura em um desafio posto a sua efetivação. A agenda política neoliberal, desde a década de 90, atravanca a realização plena desses direitos e os inserem em uma perspectiva antidemocrática, com a realização de políticas focalizadas em detrimento do seu aspecto universal. Ao se considerar a estrutura e conjuntura política do Brasil, sob uma ótica capitalista que prevê e estabelece a desconstrução dos direitos * Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP/Franca; Bolsista CAPES; Mestra em Planejamento e Análise de Políticas Públicas Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP/ Franca; Membro do Grupo QUAVISSS; Vice-líder do Grupo DEMUS da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP/Franca. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca ( 2009).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 147 sociais, sobretudo com maior ênfase no tripé da seguridade social, verifica-se que o descompromisso constitucional com a população em face da reordenação orçamentária que implicou na retração ainda maior de investimentos na área da saúde e da assistência. Uma das formas que a gestão dos governos utiliza para não alcançar a efetivação das políticas sociais refere-se à setorização delas, fazendo um hibridismo entre estas políticas, gerando uma desarticulação entre elas. Pensar o sistema de seguridade social brasileiro, a partir dos princípios da universalidade e da efetividade, é pensar na criação de estratégias de enfrentamentos a algumas situações impostas, sendo uma das estratégias, o controle social nas decisões e ações acerca deste sistema. O controle social, também estabelecido pela Constituição Federal de 1988 (CF/88 – BRASIL, 1988) como um direito, prevê a participação organizada por meio de conselhos e conferências que discutem e delegam ações sobre a efetividade, ou, não dos direitos sociais, bem como a criação de estratégias de enfrentamento a esta lógica capitalista. Com base nestes pressupostos, a investigação permeia o enfrentamento do sistema da seguridade social na conjuntura política brasileira, considerando os aspectos dos princípios da universalidade e da efetividade que envolvem as políticas sociais que abrangem este sistema.

DESENVOLVIMENTO

1 O SISTEMA DE SEGURIDADE SOCIAL NO BRASIL

A instituição do sistema de seguridade social pela CF/88 reflete a síntese histórica das conquistas da sociedade brasileira que precederam a sua promulgação. Os ideais do Movimento Sanitarista – constantes na VIII Conferência Nacional de Saúde - propiciaram o redimensionamento dos direitos sociais, com a consequente reestruturação das políticas de saúde, contribuindo para a configuração constitucional da seguridade social (DELGADO; JACOUD; NOGUEIRA, 2009). Nesse âmbito cabe dispor que com relação à seguridade social, especificamente, não houve um apoio de movimentos e lideranças da sociedade civil que visassem um sistema de seguro social abrangente, que abarcasse os direitos sociais como um todo.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 148 O projeto da saúde pública era pensado de forma apartada dos outros direitos componentes da seguridade social – previdência e assistência. Pensava-se, na época, em incluir a saúde na CF/88 de forma autônoma e com orçamento específico, pois a inclusão deste direito no tripé da seguridade social poderia representar em perda de garantia de financiamento, além da instituição de um Ministério que abarcasse as três vertentes, em detrimento da saúde, conforme explicam Delgado, Jacoud e Nogueira (2009, p. 20): Com a proposta de instituição de um sistema amplo de Seguridade Social, dois tipos de temores preocuparam os sanitaristas: que a saúde perdesse a garantia de fontes de financiamento, devido às necessidades dos demais segmentos do sistema; e que a proposta evoluísse para criação de um todo-poderoso ministério da Seguridade Social, minando a autonomia do Ministério da Saúde (MS) e sua capacidade de estimular a base político-institucional descentralizada do SUS – trazendo riscos para o próprio reconhecimento da saúde como tema estratégico das políticas sociais. Por isso, entendiam que era urgente realizar um movimento inverso, que consistia no fortalecimento do MS para fornecer as bases técnicas e administrativas do SUS, como de fato veio a acontecer. Em face da proposta do relator da Comissão de Ordem Social de que o sistema de saúde conformasse um dos componentes da Seguridade Social, ao lado da previdência e da assistência, as lideranças do movimento sanitário trataram de fazer incluir o inciso do Art. 195, que preconiza implicitamente a manutenção da identidade institucional e orçamentária para as três instâncias: [...]. A garantia de reserva de recursos específicos para a área da saúde passou pelo processo de retração de financiamento na década seguinte à promulgação da CF/88. Além desse fator, houve a subtração de recursos para a manutenção da prestação dos benefícios previdenciários, que possuem caráter compulsório. Com isso, o que se observou foi que a configuração constitucional passou a conviver com a realidade deuma política desalinhada às conquistas históricas constantes na CF/88, o que resultou na hostilidade em se manter os fundamentos que garantam a vitalidade do sistema de seguridade social como um todo. O formato original do sistema de seguro social do Brasil conforma os direitos sociais fundamentais necessários à manutenção do bem comum e do desenvolvimento socioeconômico do país. As três vertentes da seguridade

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 149 social permeiam o ideário coletivo relativo à garantia de todos os outros direitos constantes na CF/88. Esses direitos se perfazem na garantia do trabalho e aposentadoria (previdência social), na assistência integral e no acesso universal à saúde (garantia do direito à vida), e no amparo social dos mais necessitados (assistência)1. Precipuamente, abarcam um dos fundamentos da República, que é a dignidade da pessoa humana. A garantia desses direitos e do próprio sistema de seguridade social conforma a natureza do bem estar e justiça social inerentes à condição humana. Nesse campo, tem-se a previdência social, cuja configuração encontra-se prevista no artigo 201 da CF/88, prevendo a contribuição dos seus afiliados ao sistema, com vistas à fruição de benefícios e serviços ante as contingências sociais, tais como: doença, invalidez, morte e idade avançada; maternidade; trabalhador desempregado; salário família e auxílio reclusão aos segurados de baixa renda. A assistência social prevista no artigo 203 da CF/88 que será devida a quem dela necessitar, independentemente de contribuição, tendo como objetivos: proteção da família, maternidade, infância, adolescência e velhice; integração das pessoas no mercado de trabalho; habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e a garantia de um salário mínimo às pessoas portadoras de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. As ações governamentais na área da assistência social são realizadas com recursos do orçamento da seguridade social e organizadas com base na descentralização político-administrativa em cada esfera federativa; e participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação de políticas e no controle das ações em todos os níveis. Em vista dessa configuração constitucional, é possível perceber a natureza híbrida da seguridade social brasileira, vez que congrega em si os modelos bismarckiano (alemão) e beveridgiano (inglês), provindos do núcleo central do Estado Social após a Segunda Guerra Mundial (BOSCHETTI, 2009). O modelo bismarckiano alinha-se ao conceito de seguros privados, uma vez que abarca somente os trabalhadores, contribuintes do sistema. E o modelo beveridgiano institui o Welfare State, garantindo direitos universais 1 Artigo 194: A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. (BRASIL, 1988).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 150 a todos os cidadãos, com a garantia do mínimo social aos que se encontram em situação de necessidade. A respeito da incorporação desses modelos no sistema de seguridade social brasileiro, Boschetti (2009, p. 1), explica que: A seguridade social brasileira, instituída com a Constituição brasileira de 1988, incorporou princípios desses dois modelos, ao restringir a previdência aos trabalhadores contribuintes, universalizar a saúde e limitar a assistência social a quem dela necessitar. Em um contexto de agudas desigualdades sociais, pobreza estrutural e fortes relações informais de trabalho, esse modelo, que fica entre o seguro e a assistência, deixa sem acesso aos direitos da seguridade social uma parcela enorme da população. Apesar de tratar sobre a universalidade do direito à saúde e a necessidade de amparo social aos necessitados, a constituição híbrida da seguridade social brasileira não é conformada pelos programas políticos dos governos que sobrevieram à década de 90. A garantia da universalidade do direito à saúde colide, frontalmente, com as políticas sociais que promovem a focalização e deturpam o bem comum, de forma a impulsionar a seletividade e falácia de que, a despeito de ser universal, a saúde pública destina-se aos mais necessitados. Além desses fatores, há a realidade brasileira que desmantela o campo da seguridade social e se traduz no aprofundamento das iniquidades entre os cidadãos. A esse respeito, Mota (2006, p. 3) esclarece que: Embora a arquitetura da seguridade brasileira pós-1988 tenha a orientação e o conteúdo daquelas que conformam o estado de bem estar nos países desenvolvidos, as características excludentes do mercado de trabalho, o grau de pauperização da população, o nível de concentração de renda e as fragilidades do processo de publicização do Estado permitem afirmar que no Brasil a adoção da concepção de seguridade social não se traduziu objetivamente numa universalização do acesso aos benefícios sociais. Em conjunto com esse cenário, observa-se, ainda, o surgimento da agenda política neoliberal na década de 90 e o seu fortalecimento ao longo dos anos que vieram após a CF/88. O fato do desmantelamento do sistema de seguridade social, afastando-o dos princípios que o instituíram na década de 80 com a promulgação da CF/88, permite o questionamento sobre as bases que deram alicerce ao seu surgimento, de forma a refletir sobre como a Reforma do Estado atingiu o aspecto socioeconômico no Brasil, conforme será vislumbrado no tópico a seguir.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 151 2 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS NO CONTEXTO NEOLIBERAL

O advento da agenda neoliberal na década de 90, anos após a promulgação da CF/88, acarretou na divergência entre o que está escrito no texto constitucional e o que efetivamente acontece na prática governamental. A lógica capitalista que permeou a agenda política na década de 90 promoveu a desresponsabilização do Estado quanto à questão social e a retração do financiamento com o intuito de se promover a eficiência, a qualidade e a modernização no setor público (NAKAMURA, 2016). Essa conjuntura não impulsionou a manutenção do sistema constitucional de seguridade social. O modelo político germinado nessa época favoreceu a sobreposição das classes dominantes sobre o restante da população, fomentando o agravamento e a manutenção do sistema capitalista em detrimento do social (MOTA, 2006). Sobre as reformas que assolaram os países da América Latina na década de 90, Boschetti (2003, p. 93) explica que: Essas contra-reformas marcam uma mudança de rota nas políticas sociais após as décadas de 1970/1980, atingem e remodelam o Estado em três áreas estratégicas: 1) as funções típicas do Estado (segurança nacional, emissão da moeda, corpo diplomático e fiscalização); 2) as políticas públicas (saúde, cultura, ciência e tecnologia, educação, trabalho e previdência); e 3) o setor de serviços (empresas estatais estratégicas – energia, mineração, telecomunicações, recursos hídricos, saneamento e outros) [...]. Trata-se da reconfiguração do papel do Estado capitalista assumido após a Segunda Guerra Mundial, que se desencadeou com base em uma repartição dos ganhos de produtividade advindos do fordismo. Com a configuração capitalista do Estado, a universalidade dos direitos sociais e a igualdade entre os cidadãos não faziam parte do projeto político do país. Em face dessa realidade, a escolha política verteu-se no sentido de fomentar o desenvolvimento econômico em detrimento do social, sem considerar, contudo, que para se desenvolver economicamente, o país necessita se desenvolver socialmente: Um dos principais objetivos de desenvolvimento econômico é melhorar o padrão de vida do cidadão médio de um país. Além de atingir rendas per capita mais altas dentro de um sistema de

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 152 razoável eqüidade (isso é, evitando excessiva concentração de renda), um importante objetivo é trazer também para o cidadão médio um padrão decente de escolaridade e saúde. (BAER; CAMPINO; CAVALCANTI, 2002, p. 435). O contraponto da Reforma do Estado foi o de promover a qualidade no serviço público em detrimento da questão social, aprofundando a desigualdade e contribuindo para a quebra da seguridade social. Isso porque, o projeto neoliberal traz como demanda para os profissionais que atuam nas áreas da seguridade social – sobretudo na saúde e na assistência – a seleção socioeconômica dos usuários, a atuação psicossocial, a ação fiscalizadora, o assistencialismo e o predomínio de práticas individuais. No âmbito da saúde, os ideais perseguidos pela Reforma Sanitária – a democratização do acesso; o atendimento humanizado; as estratégias de interação da instituição de saúde com a realidade; a interdisciplinariedade; a ênfase nas abordagens grupais; o acesso democrático às informações e o estímulo à participação social – são desmantelados no cotidiano, em vista da retração de investimentos e da configuração de um sistema que não consegue abarcar a universalidade de pessoas (MOTA, 2006). Nesse campo, apesar da dificuldade em se efetivar o tripé da seguridade social, observa-se que, embora haja o desmantelamento dos direitos sociais, atualmente, apesar de poucas práticas, o controle social tem contribuído para a fiscalização e efetivação destes direitos. A participação nos conselhos permitem o controle das ações do Estado na elaboração, implementação e fiscalização de políticas públicas. A relevância dessas ações se perfaz na transparência às ações do Estado e na maior eficiência dos serviços prestados. A contraposição do controle social sobre o sistema capitalista, apesar de contribuir para a fiscalização, não se afigura como meio suficiente para conter a retração nos investimentos públicos, o avanço e aprimoramento do setor privado em detrimento do público, além do fortalecimento do terceiro setor aliado ao princípio da solidariedade. Com isso, a precarização da seguridade social faz com que o cidadão busque alternativas condizentes com o mercado privado – que por vezes tem a aparência de ser mais eficiente -, ou, ainda, as vias de acesso à justiça como meio de obrigar o Estado a realizar suas tarefas constitucionais, deixando à mostra um sistema que convive com a seletividade e a focalização das políticas sociais.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 153 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Longe de encerrar o tema que envolve a seguridade social no Brasil, há de se reconhecer a previsão e esforço constitucional em se prever e ampliar direitos relativos à proteção social. Entretanto, deve-se ponderar que a realidade política e social desde a década de 90 contribuiu para o fortalecimento de um sistema que apresenta contradições internas, com a consequente desconstrução dos direitos sociais. Apesar de estes direitos estarem interligados, o tripé da seguridade social: saúde, assistência e previdência – não acontece de forma integrada, uma vez que se observam impactos na organização, sistematização e divisão orçamentária nas políticas públicas que compõem o sistema. Para se pensar na universalidade e na efetividade do sistema de seguridade social, faz-se necessário compreender a sociedade de uma forma crítica e propositiva, reconhecendo que as ações de enfrentamento pelos profissionais que fazem parte desse sistema exigem posições que envolvam a intersetorialidade e o resgate constitucional dos direitos sociais.

REFERÊNCIAS

BAER, Werner; CAMPINO, Antonio; CAVALCANTI, Tiago. Saúde no processo de desenvolvimento do brasil. In: BAER, Werner. A economia brasileira. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Nobel, 2002. BOSCHETTI, Ivanete. Implicações da reforma da previdência na seguridade social brasileira. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 15, n. 1, p. 57-96, jan./jun. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/ pdf/psoc/v15n1/v15n1a05.pdf. Acesso em: jan. 2018. BOSCHETTI, Ivanete. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. In: CFESS; ABEPSS (org.). Serviço social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília, DF, 2009. Disponível em: http://portal.saude.pe.gov.br/sites/portal.saude.pe.gov.br/files/seguridade_ social_no_brasil_conquistas_e_limites_a_sua_efetivacao_-_boschetti. pdf. Acesso em: mar. 2017. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 154 DELGADO, Guilherme; JACOUD, Luciana; NOGUEIRA, Roberto Passos. Seguridade social: redefinindo o alcance da cidadania.Políticas Sociais: Acompanhamento e Análise: 20 anos da Constituição Federal, Brasília, DF, n. 17, v. 1, p. 17-37, 2. ed. 2009. Disponível em: http:// repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/4347/1/bps_n17_vol01_ seguridade_social.pdf. Acesso em: jan. 2018. MOTA, Ana Elizabete. Seguridade social brasileira: desenvolvimento histórico e tendências recentes. In: MOTA, Ana Elizabete et al. (org.). Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2006. Disponível em: http://www.fnepas.org.br/pdf/servico_ social_saude/texto1-2.pdf. Acesso em: jan. 2018.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 155

SERVIÇO SOCIAL E SAÚDE: REFLETINDO AS DEMANDAS PROFISSIONAIS NA SANTA CASA DE FRANCA/SP *

SOCIAL WORK AND HEALTH: REFLECTING THE PROFESSIONAL DEMANDS IN SANTA CASA DE FRANCA/SP Gabriela Cristina Braga Bisco ** RESUMO: O direito à saúde foi garantido para toda a população a partir da Constituição de 1988 com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir desse marco histórico, o Estado passou a ser responsável pela garantia universal desse direito. Contraditoriamente, após essa conquista importante na área da saúde, o Brasil e o mundo como um todo, sofreu com o impacto do avanço das ideias neoliberais que defendem um modelo de governo pouco participativo na defesa dos direitos da população, com crescente privatização dos serviços públicos, focalização de políticas sociais e afastamento do Estado. Diante desses retrocessos a área da saúde vem sendo afetada, assim como o trabalho de profissionais dessa área, como o assistente social. O objetivo desse artigo é apresentar as conclusões sobre a pesquisa do trabalho do assistente social na saúde, especificamente na Santa Casa de Franca. Os resultados demonstram que as demandas da profissão são complexas e exigem cada vez mais profissionais críticos, capazes de desvendar a realidade social dos sujeitos e contribuir não só para a efetivação do direito à saúde, mas para uma transformação na vida desses sujeitos. Palavras-chave: política de saúde. Serviço Social. direito à saúde. ABSTRACT: The right to health was guaranteed for the entire population since the 1988 Constitution with the creation of the Unified Health System (SUS). From this historical milestone, the State became responsible for the universal guarantee of this right. Contrary to this important achievement in the health area, Brazil and the world as a whole suffered from the impact of the neoliberal ideas that defend a model of government that is not very participatory in the defense of the rights of the population, with a growing privatization of public services , focus on social policies and distance from the state. Faced with these setbacks the health area has been affected, as well as the work of professionals in this area, such as the social worker. The objective of this article is to present the conclusions about the research of the social worker's work in health, specifically in Santa Casa de Franca. The results demonstrate that the demands of the profession are complex and require more and more critical professionals, capable of unveiling the social reality of the subjects and contributing not only to the realization of the right to health, but also to a transformation in the life of these subjects. Keywords: health policy. Social Work. right to health.

* Este artigo apresenta uma síntese da Dissertação da autora Gabriela Cristina Braga Bisco, apresentada à Unesp Franca-SP, em 2018, com o Título: “O Serviço Social na Santa Casa de Franca/SP: estudo sobre a atuação profissional na perspectiva da efetivação do direito à saúde.” ** Possui graduação (2015) e mestrado em Serviço Social (2018) pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP/Franca; Pesquisadora desde o ano de 2012 do Grupo QUAVISSS; Bolsista PIBIC/CNPq; Atualmente é representante do Grupo QUAVISSS na CIES Nordeste Paulista e na Comissão de Direito à Saúde da OAB de Franca.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 157 INTRODUÇÃO

As transformações societárias que ocorreram no Brasil após a década de 1990, com o avanço das políticas neoliberais com a focalização e fragmentação das políticas públicas impactaram a vida da classe trabalhadora e também o trabalho de profissionais que atuam diretamente na defesa de direitos, incluindo o assistente social, impondo limites e desafios para o trabalho profissional. O assistente social possui um papel importante na área da saúde, pois com o seu trabalho crítico e interventivo, no sentido de desvendar a realidade dos sujeitos por meio de mediações, ele contribui para que a população usuária do Sistema Único de Saúde (SUS) tenha acesso à saúde, contribuindo ainda para que a população reconheça seus direitos e passe a reivindica-los. Porém, o assistente social na atualidade enfrenta limites e desafios para exercer seu trabalho. Muitas vezes esses limites sãoda própria política de saúde que cada vez mais se afasta do princípio da universalização do direito, com fragmentação e seletividade para os serviços, e também, das próprias instituições de trabalho onde muitas vezes os assistentes sociais acabam apenas reproduzindo um trabalho burocrático e não de transformação. Diante disso, o estudo realizado no setor do Serviço Social da Santa Casa de Franca/SP, entre os meses de janeiro a dezembro de 2017, possibilitou uma análise das demandas dos usuários dos serviços de saúde, possibilitando uma reflexão sobre as reais necessidades da população, que enfrenta limites para o acesso ao direito à saúde. Além disso, foi possível apreender os principais desafios que o Serviço Social enfrenta no cotidiano de trabalho dentro de instituição, bem como os principais caminhos e possibilidades que a categoria encontra para contribuir na efetivação do direito a saúde dos usuários. Com o estudo, foi possível novos questionamentos e reflexões sobre as seguintes questões: Como está organizada a política de saúde na Santa Casa de Franca/SP? Quais são as demandas de usuários que chegam até o Serviço Social da instituição? Como está organizada a atuação da categoria? Essa atuação está orientada nos princípios do Projeto Ético-Político Profissional e das Atribuições Privativas do Serviço Social na Saúde?

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 158 Foi possível observar com a análise documental de dados do setor na instituição, que as demandas atendidas pelo Serviço Social são complexas e expressam as mais variadas expressões da questão social do cotidiano da população. Ficou claro que a saúde da população não é apenas determinada pela ausência de doenças, mas sim por fatores econômicos e sociais que interferem diretamente na qualidade de vida da população. Além disso, foi possível apreender como a categoria organiza o seu trabalho dentro da área de saúde, uma vez que esse trabalho é permeado por desafios políticos e institucionais, que afetam diretamente a população e também reflete uma precarização do trabalho do assistente social na saúde.

1 O TRABALHO EM SAÚDE

No final do século XIX e início do século XX, vários países do mundo vivenciaram um aumento de legislações e medidas de proteção social que buscavam, de alguma maneira, amenizar os conflitos e as reivindicações da classe trabalhadora, assegurando alguns direitos como forma de manutenção da ordem social. Na análise de Behring (2006), as políticas de proteção social são produtos do próprio sistema capitalista e do seu modo de produzir e reproduzir-se. Dessa forma, tais políticas surgem tanto como interesse do capital para manutenção da ordem vigente, como também a partir das lutas e reivindicações da classe trabalhadora. A autora ressalta que é importante uma análise crítica da política social, sem reducionismos, uma vez que ela não pode ser vista apenas como uma conquista dos trabalhadores a partir da sua pressão sobre o Estado na garantia de direitos sociais. Dessa forma, é preciso fazer essa análise de forma totalizante, buscando a apreensão das múltiplas determinações e complexidades que compõem a política social. A busca por melhores condições de vida e pela garantia de direitos, mobilizou a classe operária do mundo todo que passou a exigir respostas por parte do Estado, principalmente, com o agravamento das expressões da questão social. Os direitos sociais conquistados no início do século XX, foram pautas das reivindicações de movimentos sociais e da classe operária. Portanto, “[...] a criação dos direitos sociais no Brasil resulta da luta de classes e expressa a correlação de forças predominantes.” (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 79).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 159 O capital sempre buscou adequar à Seguridade Social aos seus interesses, uma vez que ela é tanto uma necessidade dos trabalhadores, como também alvo de disputas e negociações da burguesia (MOTA, 2006). No Brasil, a Seguridade Social é composta por um tripé e compreende o direito à saúde, à assistência social e à previdência social, conforme Artigo 1º da Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991, que dispões sobre a organização da Seguridade Social no Brasil (BRASIL, 1991). As políticas de Seguridade Social se ampliaram ao longo dos anos e em geral, foram implementadas por meio de: [...] ações assistenciais para aqueles impossibilitados de prover o seu sustento por meio do trabalho, para cobertura de riscos do trabalho, nos casos de doenças, acidentes, invalidez e desemprego temporário e para manutenção da renda do trabalho, seja por velhice, morte suspensão definitiva ou temporária da atividade laborativa (MOTA, 2004a apud MOTA 2006, p. 41, grifo do autor). O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), elaborou em 2000 a Carta de Maceió, reafirmando a defesa da Seguridade Social pública. A categoria reafirma ainda a “[...] concepção de seguridade, entendida como um padrão de proteção social de qualidade, com cobertura universal para as situações de risco, vulnerabilidade ou danos dos cidadãos brasileiros.” (CFESS; CRESS, 2000, p. 29). Ao longo dos anos, os direitos civis, políticos e sociais, foram sendo garantidos por meio das Constituições promulgadas no país, sendo que cada Constituição representa em seus artigos os princípios e contextos demandados de cada época histórica em que foram criadas. A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), ou cidadã como é reconhecida, é considerada a que mais avançou em termos da garantia de direitos, principalmente os direitos sociais, como saúde, educação, proteção à criança e adolescente, idosos, previdência social e seguridade social. A garantia de um direito, por meio da Constituição Federal não significa necessariamente que o mesmo está sendo efetivado. As transformações societárias contemporâneas têm afetado o mundo do trabalho como um todo, além da vida da classe trabalhadora, no que diz respeito aos direitos historicamente conquistados a partir de lutas e reivindicações da própria população. Essa mudança ocorre com o avanço do ideário neoliberal, que estabelece um novo modelo de acumulação de capital, com uma renovação

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 160 das ideias liberais. Esse novo modelo de acumulação “[...] inclui (por definição) a informalidade do trabalho, o desemprego, o subemprego, a desproteção trabalhista e, consequentemente uma ‘nova’ pobreza’.” (SOARES, 2000, p. 12). Portanto, com o projeto neoliberal surge a flexibilização, desregulamentação e privatização de serviços que deveriam ser garantidos pelo Estado. Surge então, uma nova configuração mundial que altera os modos de produção e, também, o papel do Estado que passa a transferir sua responsabilidade para a sociedade civil, o terceiro setor e entidades filantrópicas, impactando as políticas sociais, em especial no campo da Seguridade Social e do trabalho. Além disso, as políticas sociais que deveriam ser universais passam a ter caráter focalizado e seletivo. O direito universal a saúde foi conquistado pela sociedade brasileira após lutas e resistências contra o ideário neoliberal, que se iniciou na década de 1970 e se fortaleceu na década de 1980, após a segunda grande crise financeira associada ao baixo crescimento econômico de vários países do mundo. No cenário brasileiro atual, o que se observa é um ataque aos direitos sociais conquistados. Desde 2013 a conjuntura do país apresenta um quadro de grandes mobilizações sociais frente aos ataques do capital, por meio do patronato e do Estado, com precarização das condições de vida dos trabalhadores imposta pela terceirização, desemprego estrutural crescente, desregulamentação das relações de trabalho e cortes orçamentários em políticas sociais que reduzem direitos sociais e trabalhistas arduamente conquistados. (ABRAMIDES, 2017, p. 367). Diante do retrocesso histórico aos ataques na vida da população e em direitos fundamentais como educação e saúde, o Serviço Social é uma profissão fundamental para a luta em defesa dos direitos da população, pois o Projeto Ético-Político organiza-se na defesa das políticas sociais universais e da responsabilidade do Estado na sua garantia. Nos espaços de atuação profissional, a categoria atua na defesa de uma sociedade justa e igualitária, e contribui para que os usuários reconheçam seus direitos e passe a reivindica-los.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 161 2 REFLETINDO AS DEMANDAS NA SANTA CASA DE FRANCA/SP

O compromisso profissional do assistente social está direcionado pela qualidade dos serviços oferecidos, na produção teórico-científica, buscando estratégias qualificadas para o enfrentamento dos desafios e respostas no âmbito das políticas públicas, e da política de saúde. O Serviço Social é considerado uma profissão da saúde, conforme a Resolução do CFESS n. 383 de 1999 (CFESS, 1999), que caracteriza em seu artigo 1º o assistente social como profissional da saúde, atuando por meio de políticas sociais. O aprofundamento científico, sobre os determinantes do trabalho profissional e dos instrumentos próprios da profissão, ajuda na elaboração de propostas mais apropriadas às necessidades sociais e de saúde. A dimensão interventiva e investigativa está estabelecida no projeto profissional como condição central da formação e da relação teoria e realidade. A atitude investigativa é um suposto para a sistematização teórica e prática do exercício profissional, assim como para a definição de estratégias eo instrumental técnico que potencializam as formas de enfrentamento da desigualdade social (CFESS, 2010). O exercício profissional do Assistente Social na contemporaneidade pauta-se nas expressões das desigualdades sociais, que por sua vez é fruto do modo de acumulação capitalista. A questão social em seu ápice necessita de um profissional que vem atuar nas suas expressões. Nos serviços de saúde, a inserção dos assistentes sociais no conjunto dos processos de trabalho destinados a produzir serviços para a população é mediatizada pelo reconhecimento social da profissão e por um conjunto de necessidades que se definem e redefinem a partir das condições históricas sob as quais a saúde pública se desenvolveu no Brasil. (COSTA, 2000, p. 41). O assistente social tem um papel importante neste processo de democratização do SUS. Costa (2000) elucida o compromisso Ético- Político profissional do assistente social, diante sua competência técnica- operativa e teórico-metodológica, em dar respostas aos impasses para a efetivação da saúde pública. Em relação ao trabalho na saúde, o assistente social atua no atendimento direto aos usuários por meio de atendimentos individuais ou em grupo, com equipe multiprofissional, reforçando os princípios

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 162 da Reforma Sanitária. A categoria atua em eixos estratégicos na saúde. De acordo com os Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde (CFESS, 2010), os eixos são: “[...] atendimento direto aos usuários; mobilização, participação e controle social; investigação, planejamento e gestão; assessoria, qualificação e formação profissional.”. Diante do contexto de trabalho do assistente social na saúde, a categoria possui um trabalho interventivo e de atendimento direto com a população, que expressa as mais variadas expressões da questão social do seu cotidiano. Nesse sentido, A Santa Casa de Franca/SP caracteriza-se como um espaço de trabalho do assistente social. A instituição é uma referência no tratamento de alta complexidade para 22 municípios do Departamento Regional de Saúde VIII, além de atender cidades do sudoeste mineiro, abrangendo em média 700 mil pessoas. Ela possui. De acordo com Montaño (2007), existe uma dificuldade para caracterizar o chamado terceiro setor. Na visão do autor, o terceiro setor representa não somente a transferência de responsabilidade do Estado para a sociedade civil, mas também a focalização e precarização dos direitos historicamente conquistados pela população. O terceiro setor é responsável por garantir a população direitos relacionados à assistência, saúde, educação, ou seja, a sociedade civil organizada se reúne para garantir direitos que deveriam ser de responsabilidade do Estado, e que por ineficiência não consegue garantir. O terceiro setor surge como alternativa para tratar a questão social, porém, a origem do termo não possui uma data específica e, ainda, é marcado por dúvidas em relação ao seu surgimento. A reflexão de Montaño (2007, p. 55), exemplifica este questionamento: Surgiu na década de 80, numa construção teórica, com a preocupação de certos intelectuais ligados a instituições do capital por superar a eventual dicotomia público/ privado? Teria data anterior, nas décadas de 60 e 70, com o auge dos chamados 2 ‘novos movimentos sociais’ e das ‘organizações não-governamentais’? Seria uma categoria vinculada às instituições de beneficência, caridade e filantropia, dos séculos XV a XIX (ou no Brasil, com as Santas Casas de Misericórdia, Cruz Vermelha etc.)? Sua existência data da própria formação da sociedade, conforme os contratualistas analisam?

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 163 Montaño (2007), destaca na sua análise que as Santas Casas como instituições de caridade e filantropia que atuavam para garantir assistência à saúde para a população mais vulnerável. Nesse sentido, Nogueira e Mioto (2006) analisam que anteriormente à criação do SUS, restava a população pagar pelos serviços médicos ou recorrer ao serviço de filantropia prestados pelas Santas Casas de Misericórdia. Atualmente, o que observamos na área da saúde é que essa visão de caridade e filantropia ainda estão presentes nas instituições públicas de saúde, além do próprio desconhecimento da população de que a saúde é um direito de todos e garantida pelo Estado conforme a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988). A escolha deste cenário para a pesquisa ocorreu pelo fato da instituição ser uma referência no tratamento de alta complexidade para a região de Franca, podendo expressar assim a realidade da saúde no município e da região. Foi realizada pesquisa bibliográfica com autores que são referência sobre a temática e também análise documental do Planejamento Estratégico e Plano de trabalho do Serviço Social, e dados quantitativos referente ao número de atendimentos realizados durante o período de janeiro a agosto de 2017. A opção em analisar o número de atendimentos é no sentido de demonstrar, através de dados quantitativos, a importância da profissão neste espaço sociocupacional, a contribuição para o acesso dos/as usuários/as no SUS e, sobretudo, a grande demanda de atendimentos que são realizados pelas assistentes sociais. Na Santa Casa de Franca/SP, o Serviço Social tem como missão Intervir nas manifestações da questão social identificadas no atendimento hospitalar e ambulatorial, segundo princípios do Projeto Ético-Político, para recuperação e promoção da saúde e cidadania, buscando aprimorar as relações dentro da instituição e também com outros setores para garantia do acesso da população usuária aos direitos e fortalecimento do SUS, com compromisso à dignidade da vida humana. O atendimento é feito com a acolhida, escuta, orientações, elaboração de relatórios, parecer, encaminhamentos e trabalho multidisciplinar com demais profissionais da instituição. De acordo com os dados obtidos na pesquisa, foi possível observar que a categoria atende um número expressivo de usuários e realiza diversos procedimentos com cada um. Além disso, as demandas atendidas são complexas e refletem o cotidiano da população. A Santa Casa de Franca/SP, está dividida por setores diferentes e durante a pesquisa foram analisados dados estatísticos dos seguintes

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 164 setores: Maternidade; Unidade Neonatal Interno (UNI); Unidade Neonatal Externo (UNE); Pediatria; Usuários externos; Clínica Particular; 2º Andar (acolhimento de pacientes com problemas neurológicos); 3º Andar (usuários com doenças pneumológicas); 4º Andar (atendimento de usuários que realizam cirurgias); Centro de Tratamento Intensivo (CTI) Adulto; Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) Pediátrica; Pronto Atendimento (PA); Plantão de Ginecologia (PA GO); Ortopedia; Hemodiálise. Os setores com maior número de demandas são: setor de Usuários Externos com 625 atendimentos, sendo uma média de 104 atendimentos mês; setor do 2º andar possui 532 atendimentos em média, ou 88 por mês e, setor da Maternidade possui em média 498 atendimentos no período analisado, ou seja, 83 por mês. No período de análise (janeiro a agosto de 2017), o Serviço Social realizou o total de 4.209 atendimentos, dando uma média de 526 atendimentos por mês, e 23 atendimentos realizados por dia por 5 assistentes sociais na Santa Casa de Franca. É importante ressaltar que para cada atendimento, o assistente social realiza procedimentos diversos, como acolhimento, encaminhamentos, orientações sobre recursos socioassistenciais, orientações previdenciárias, mediação de conflitos, dentre outros, que exigem um grau diferente de intervenção, além de um trabalho crítico, de desvelamento da realidade. As demandas de cada setor que chegam ao Serviço Social são complexas e expressam os rebatimentos das expressões da questão social no cotidiano da população. Entre as principais demandas estão: • Pré-natal irregular; • Falta de suporte familiar; • Doenças psíquicas; • Maternidade Precoce; • Pobreza/Vulnerabilidade socioeconômica; • Uso de álcool, tabagismo e drogas; • Resistência ao tratamento; • Situação de rua; • Violência; • Preparo de alta hospitalar; • Orientações sobre acesso a recursos de saúde (medicação, dieta, aparelhos e transporte); • Dificuldade de acesso a medicação e recursos públicos;

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 165 Importante observar como as demandas são variadas e expressam as condições objetivas dos usuários atendidos. Apesar de serem demandas de diferentes naturezas, são expressivas e semelhantes em vários setores, o que demonstra que as manifestações da questão social estão presentes no cotidiano da população atendida. Além disso, ao analisar as demandas é possível observar como a questão econômica e social interferem na vida da população e na sua qualidade de vida. Muitas vezes, pela própria vulnerabilidade socioeconômica, a população não tem acesso aos serviços de saúde e aos recursos necessários para a sua recuperação como medicamentos e alimentação, interferindo diretamente no agravamento de uma doença. Todas essas demandas são marcantes e representam também a importância do trabalho do assistente social junto aos usuários e suas famílias para o fortalecimento dos direitos sociais e acesso a recursos básicos para promoção e recuperação da saúde. O número de atendimentos realizados pelo Serviço Social é muito expressivo diante da quantidade de profissionais para a realização dos atendimentos, pois a instituição possui somente cinco assistentes sociais para atender um alto número de demandas complexas que exigem diferentes formas de intervenção e procedimentos que serão realizados como acolhida, encaminhamentos, orientações e relatórios. Além disso, a clara falta de recursos básicos é um enfrentamento constante da categoria dentro da instituição. Essa falta de recursos representa um limite profissional, pois por mais que o assistente social desenvolva ações de fortalecimento de direitos, sozinho ele é incapaz de conseguir a garantia dos mesmos. Para isso é preciso o fortalecimento constante de políticas públicas de proteção social, tanto de assistência quanto de saúde, capazes de atender toda a população de forma universal assim como determinado na Constituição Federal. Estes elementos representam alguns dos desafios colocados cotidianamente no exercício profissional e que afetam não só a vida dos sujeitos atendidos como também dos próprios assistentes sociais que se sentem impotentes diante de determinadas situações. Todas essas demandas marcam ainda as expressões da questão social que são latentes no espaço profissional. A questão social, considerada pela categoria profissional como a base de sua fundação na especialização do trabalho do assistente social, precisa ser apreendida na contradição

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 166 fundamental da sociedade capitalista: Questão social que, sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam as desigualdades e a ela resistem e se opõem. É nesta tensão entre produção de desigualdade e produção da rebeldia e da resistência, que trabalham os assistentes sociais, situados neste terreno movido por interesses sociais distintos, aos quais não é possível abstrair ou fugir deles porque tecem a vida em sociedade. (IAMAMOTO, 2000, p. 28). Estas manifestações são resultantes da relação contraditória entre capital e trabalho, gerando desigualdades como o desemprego, exploração, adoecimento, fome, pobreza, entre outras formas de exclusão social que constituem as demandas de trabalho dos assistentes sociais. Na saúde, as expressões destas desigualdades e injustiças sociais se manifestam pelas perdas do trabalho, da renda, da falta de recursos materiais e físicos para se ter saúde, as quais estão associadas e interferem diretamente no processo saúde-doença. O agravamento da pobreza e das condições indignas de vida resulta em problemas graves, determinam e interferem diretamente no processo saúde-doença como demonstra as demandas do Serviço Social na Santa Casa de Franca/SP.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No trabalho em saúde, diante da complexidade das demandas e dos atendimentos, é preciso dar visibilidade e demonstrar a importância desse trabalho para as instituições e para o poder público, como forma de valorizar a profissão e fortalecer os direitos dos usuários. Além disso, é importante problematizar tais demandas com os próprios usuários em relação ao direito à saúde buscando fortalecer essa participação popular nas decisões sobre a saúde do município por meio dos Conselhos Municipais, por exemplo. O trabalho do assistente social caracteriza-se como um trabalho interventivo e prático, pois o profissional intervém diretamente na realidade dos usuários, buscando conhecer e se aprofundar nessa realidade para orientações que irão refletir na vida social desses sujeitos. Porém, essa prática profissional não deve ser deslocada de um contínuo acúmulo teórico para subsidiar ainda mais essa prática e intervenção, contribuindo para um trabalho crítico e reflexivo. É preciso cada vez mais fortalecer as ações nos espaços de saúde juntamente com os usuários, movimentos sociais, trabalhadores da saúde e

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 167 outras profissões que compartilham os mesmos princípios e valores, com a finalidade de somar forças para resgatar o SUS universal e com qualidade para toda a população. Espera-se que os resultados obtidos a partir dessa pesquisa permitam um novo olhar para a atuação do assistente social na saúde, ressaltando a importância deste profissional para o fortalecimento do direito social à saúde da população brasileira.

REFERÊNCIAS

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 168 COSTA, Maria Dalva Horácio da. O trabalho dos Assistentes Sociais nos Serviços Públicos de Saúde. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, ano 21, n. 62, p. 35-72, 2000. COSTA, Maria Dalva Horácio da. O trabalho nos serviços de saúde e a inserção dos(as) assistentes sociais. In: MOTA, Ana Elizabete. et al. (org.). Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2006. IAMAMOTO, Marilda Vilela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 3. ed. São Paulo, Cortez, 2000. MIOTO, Regina Célia Tamaso; NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro. Política social e Serviço Social: os desafios da intervenção profissional. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 16, n. esp., p. 61-71, 2013. MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007. MOTA, Ana Elizabete. Seguridade social brasileira: desenvolvimento histórico e tendências recentes. In: MOTA, Ana Elizabete. et al. (org.). Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2006. NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro; MIOTO, Regina Célia Tamaso. Desafios atuais do Sistema Único de Saúde – SUS e as exigências para os assistentes sociais. In: MOTA, A. E. et al. (org.). Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2006. SOARES, Laura Tavares. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo, Cortez, 2000. (Coleção questões da nossa época, v. 78).

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A POLÍTICA DE SAÚDE NO CONTEXTO DO MUNDO DO TRABALHO

HEALTH POLICY IN THE CONTEXT OF THE WORLD OF WORK

Laís Vila Verde Teixeira1* RESUMO: O presente artigo tem por objetivo tecer algumas reflexões acerca da Seguridade Social, em especial na política de Saúde, no atual contexto do mundo do trabalho. Este estudo foi norteado por meio de pesquisa bibliográfica e documental com a análise dos referenciais na perspectiva dialética, a fim de compreender a constituição da política social como política de seguro social e os rebatimentos do neoliberalismo na trajetória de sua consolidação ao longo dos seus 30 anos de construção. Palavras-chave: trabalho. política social. saúde. ABSTRACT: The purpose of this article is to provide some reflections about Social Security, especially in Health policy, in the current context of the world of work. This study was guided by bibliographical and documentary research with the analysis of the references in the dialectical perspective, in order to understand the constitution of social policy as a social insurance policy and the refutations of neoliberalism in the trajectory of its consolidation over its 30 years of construction. Keywords: work. social policy. health.

1 A CATEGORIA TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE

Analisando os aspectos políticos e econômicos da sociedade capitalista madura, percebe-se uma grande transformação nos diversos setores que compõe a economia em relação aos demais estágios do capitalismo que outrora o homem tenha presenciado e construído a sua história. Desde os primórdios da civilização, o trabalho tem sido o elemento de proteção e sobrevivência do homem nas diversas formas de sociabilidade. Sabendo disso, o trabalho e determinantes das relações humanas sempre estarão presentes na vida do ser social, visto que ele é sujeito atuante e elemento modificador desse processo. Diante disso, pretende-se apresentar os elementos pertinentes à sociedade capitalista moderna e contemporânea, considerando os traços do passado que influenciaram os direcionamentos do modo de produção

* Mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP - Campus de Franca) no período de 2014-2016 sendo o objeto de pesquisa a pessoa idosa na atual configuração do mundo do trabalho, com fomento CAPES. Assistente Social no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/SP (HCFMRP-USP) no ambulatório da Clínica Médica e membro do Comitê de Ética com mandato de 2018 a 2020.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 171 na atualidade e tendo como base a centralidade da categoria trabalho na constituição da vida do ser social. “O modo de produção enseja a formação de distintas formas institucionais que garantem as condições de sua reprodução, assim como possibilita aos homens a formação de uma consciência coerente às necessidades dessa reprodução.” (SILVA, L. M. M. R., 1984, p. 27). A partir da década de 1980 o mundo do trabalho sofreu grandes transformações, principalmente em países de capitalismo avançado, onde a classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2008) sofreu profundas crises, afetando inter-relacionamentos e até sua forma de ser. Isso provocou um grande salto tecnológico, mesclando fordismo e taylorismo, ou seja, mudanças nos moldes da produção. A produção em série e de massa foram substituídas pela “flexibilização da produção”, que adequa a produção à lógica do mercado provocando rebatimentos negativos nos direitos trabalhistas que foram aos sendo conquistados. Novos padrões de gestão da força de trabalho são incorporados a essa nova ideologia, como os Círculos de Controle de Qualidade (CCQs), que remetem a uma “gestão participativa, de busca da qualidade total”. O CCQ foi desenvolvido no Japão por gerentes de empresas, a partir dos anos 50, junto com o toyotismo. No sistema Toyota, os engenheiros do chão de fábrica deixam de ter um papel estratégico e a produção é controlada por grupos de trabalhadores. A empresa investe muito em treinamento, participação e sugestões para melhorar a qualidade e a produtividade. O controle de qualidade é apenas uma parte do CCQ. (WATANABE, 1993, p. 5 apud ANTUNES, 2008, p. 35). Os valores toyotistas foram conquistando espaço e adeptos na sociedade, de forma que não somente a organização do trabalho se transformou, mas também a organização dos trabalhadores, que se encontra ameaçada sob o poder dos empresários. Estes incutem na mente de seus funcionários que a empresa na qual trabalham é sua família, e que dela necessitam cuidar, eliminando dessa forma, qualquer forma de organização autônoma dos trabalhadores. Infere-se que todas as conquistas dos trabalhadores são irrisórias diante da nova ordem do capital, da flexibilização do trabalho, da desregulamentação dos direitos trabalhistas, que são características

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 172 próprias da sociabilidade contemporânea moldada pelo sistema produtor de mercadorias. O trabalho assalariado é a forma especifica do regime a que vivem submetidos os produtores diretos no MPC. Isso significa que ele é parte constitutiva do sistema de exploração do trabalho que é próprio do MPC: por mais significativas que sejam as conquistas salariais dos trabalhadores (e elas são importantes em si mesmas, entre outras razões porque podem melhorar as suas condições de vida), não afetam o núcleo do caráter explorador da relação capital/trabalho. Do ponto de vista ideológico, aliás, o regime salarial contribui para difundir a falsa ideia, tão cara aos capitalistas, segundo a qual, mediante o salário, os trabalhadores obtêm a remuneração integral do seu trabalho. (PAULO NETTO; BRAZ, 2008, p. 104). A acumulação flexível quer se voltar para o crescimento, isto é, crescer em valores que se apoiam em e na exploração do trabalho, oferecendo ao sistema uma intrínseca dinâmica tecnológica e organizacional, características intrínsecas ao Modo de Produção Capitalista (MPC). Foram inseridos mecanismos de aproveitamento do tempo de produção, dentre eles temos o quesito da polivalência do trabalhador, que deve operar várias máquinas ao mesmo tempo, na lógica just in time, ou seja, o processo de trabalho é cronometrado e deve responder à qualidade exigida pela empresa, intensificando o ritmo, o tempo e o processo de trabalho, flexibilizando o aparato produtivo e a organização do trabalho, havendo a necessidade de agilidade em se adaptar. Esta lógica mercadológica foi introduzida pela empresa japonesa automobilística Toyota, que influenciou fortemente na forma de racionalização do trabalho, com ênfase na meritocracia da empresa, no sindicalismo manipulado e cooptado e na produção condicionada pela demanda, intensificando o processo de exploração do trabalho. Segundo Dupas (2001, p. 25), [...] é certo que a flexibilidade propiciada pelas novas tecnologias tem permitido que o processo de geração de excedente no capitalismo atual não mais se restrinja à jornada de trabalho, invadindo os demais momentos do cotidiano do trabalhador, o que cria a ilusão de que o capital aproxima-se do trabalho ao não mais exigir cartão de ponto e ao remunerá-lo por resultado. Na verdade, a flexibilidade propiciada pelas novas tecnologias rompeu as limitações

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 173 impostas pelas dimensões espaço/tempo, destruindo a verticalização da produção e fragmentando o trabalho para longe de um único espaço físico. A nova lógica de mercado procura dispor de diversos mecanismos para responder à demanda existente e criar demandas, e para isso não se preocupa em destruir o pouco que sobrou do estado de bem-estar social naqueles países que viveram sobre este regime, se tratando do direito dos trabalhadores assalariados, já que o modelo japonês atua muito mais em sintonia com a agenda neoliberal do que com uma visão verdadeiramente social-democrata. A questão é viver o sonho do capital (ANTUNES, 2008), Estado mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital. Realmente, o capitalismo contemporâneo particulariza- se pelo fato de, nele, o capital estar destruindo as regulamentações que lhes foram impostas como resultado das lutas do movimento operário e das camadas trabalhadoras. A desmontagem (total ou parcial) dos vários tipos de Welfare State é o exemplo emblemático da estratégia do capital nos dias correntes, que prioriza a supressão de direitos socais arduamente conquistados (apresentados como “privilégios” de trabalhadores) e a liquidação das garantias ao trabalho em nome da “flexibilização” já referida. (PAULO NETTO; BRAZ, 2008, p. 226). Diante disso, há um distanciamento de alternativas que vão para além do capital, já que as medidas adotadas se embasam na ótica do mercado, da produtividade, das empresas, não levando em consideração expressões como desemprego estrutural, que é resultado das transformações do processo produtivo. Não se considera a demanda trazida pelo trabalhador, visto que a mesma é fruto da exploração do trabalho, base em que se assenta a acumulação capitalista. Os dilemas da contemporaneidade possuem como raiz a forma de gerenciamento das relações sociais e de trabalho, influenciando em questões éticas, sociais e políticas. Hoje a questão tornou-se mais complexa. No andar de cima potencializa-se a acumulação pelo grau de inovação, pela possibilidade de fragmentação das cadeias produtivas globais e pela enorme autonomia da tecnologia, esta última finalmente liberta de suas amarras éticas ou sociais, antes teoricamente representadas pelo papel mais atuante dos Estados nacionais. [...] Se a consequência desse desenvolvimento for, por exemplo, um maciço aumento do desemprego por conta da radical automação no setor de serviços, este ônus passa a ser

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 174 transferido para a sociedade, tenha ela ou não estrutura para lidar com a questão. (DUPAS, 2001, p. 28). Acerca das metamorfoses do mundo do trabalho e da classe-que- vive-do-trabalho, observamos uma subproletarização (ANTUNES, 2008, p. 47) intensificada, expressa na expansão do trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado e “terceirizado”, que marca a sociedade capitalista, complementando o processo de estranhamento do trabalho que possibilita ao capital a apropriação do saber e do fazer do trabalho. No atual modo de produção, o trabalho é estranhado/coisificado ao homem, fazendo com que ele não conheça todo o processo de produção, ou seja, não faz parte do produto que realiza, não se reconhecendo como parte do processo. A base de acumulação do capital é a exploração, a expropriação de mais-valia e a apropriação da riqueza socialmente produzida. O princípio de totalidade nos possibilita compreender que a subsunção do trabalho ontológico ao trabalho explorado não permite ao ser humano uma realização pessoal, mas responde apenas aos fetiches do capital globalizado. Muitos trabalhadores padecem das transformações do mundo do trabalho precarizado, temporário, terceirizado, tendo seu cotidiano moldado pelo desemprego estrutural. O trabalho possui várias faces resultantes das modificações do mundo da produção de capital ocorrida nas últimas décadas. Podemos dizer que essa nova lógica fez germinar um mercado de trabalhadores informais, ampliando o trabalho desregulamentado sem carteira assinada. Nesta era de informatização do trabalho (transferir as capacidades intelectuais para a máquina), observamos uma informalização do mesmo, que agrega uma classe desprovida de direitos com salários baixos. Vivenciamos uma queda do trabalho contratado e regulamentado, que está sendo substituído pelo empreendedorismo, corporativismo e pelo trabalho voluntário. Esse cenário tem se desdobrado no aumento de instituições do terceiro setor, desenvolvendo atividades ligadas a assistência, com ou sem fins lucrativos, à margem do mercado. A internacionalização do capital se caracteriza, portanto [...] por um processo de precarização estrutural do trabalho, os capitais globais estão exigindo também o desmonte da legislação social protetora do trabalho. E flexibilizar a legislação social do trabalho significa – não é possível ter nenhuma ilusão sobre isso – aumentar ainda mais os mecanismos de extração do sobretrabalho, ampliar as formas

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 175 de precarização e destruição dos direitos sociais arduamente conquistados pela classe trabalhadora, desde o início da Revolução Industrial, na Inglaterra, e especialmente pós-1930, quando se toma o exemplo brasileiro. (ANTUNES, 2008, p. 109). O neoliberalismo tem ditado as regras: reestruturação produtiva, privatização acelerada, recrudescimento do Estado, políticas fiscais e monetárias articuladas com órgãos mundiais como o fundo Monetário Internacional (FMI), desmonte dos direitos sociais, manipulação do trabalho, fragmentação e heterogeinização da classe trabalhadora. Diante deste cenário destruidor, onde o capital enfrenta suas crises criando outras crises para manter seu ciclo vital, podemos considerar e relevar a categoria trabalho como central neste modo de produção e na vida do homem, visto que “[...] o capital pode diminuir o trabalho vivo, mas não eliminá-lo. Pode intensificar sua utilização, pode precarizá-lo e mesmo desempregar parcelas imensas, mas não pode extingui-lo.” (ANTUNES, 2008, p.186). Nesse cenário, o Estado não se posiciona de forma neutra, mas de forma cautelosa diante da nova ordem societária ditada pelo capital. Este novo modelo de Estado deveria garantir os meios mínimos de sobrevivência para as pessoas. Não garantindo o trabalho, acaba por incentivar o trabalho informal e precário. A forma assalariada de trabalho desenvolvida pelo capitalismo visa à integração das pessoas ao modo de produção. A concentração de renda e a desigualdade social contribuem para o desemprego estrutural. Não nos esqueçamos de que toda Política Pública perpassa pela questão de classe, bem como o seu acesso. Já é de nosso conhecimento que a política social possui um caráter seletivo, restrito a extrema pobreza, e somente tem direito aquele que está dentro do corte (condicionalidades/ contrapartidas) proposto nos programas sociais de distribuição de renda. Considerando a nova organização do mundo do trabalho, se percebe uma política neoliberal de redução de custos, que configura uma política social pautada em princípios seletivos e na responsabilização da família por parte do Estado como agente socializadora dos indivíduos. Durante anos a população brasileira viveu sob os mandos dos governantes que direcionavam o nosso país, vivenciando uma cultura paternalista, ainda presente nessa sociedade, não nos reconhecendo como sujeitos de direitos. Com a redemocratização, em 1984, iniciou-se uma caminhada que culminou na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), conhecida também como Constituição Cidadã, na qual muitos

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 176 direitos foram garantidos. Aliado aos direitos, vieram os conselhos gestores: assistência, criança e adolescente, idoso, saúde, entre outros, que funcionam como espaços de participação popular e controle social. Com a criação dos espaços democráticos de discussão vêm também os desafios, e um deles é encontrar lideranças políticas com capacidade de argumentação junto aos representantes do governo para que os direitos sejam efetivados. Por diversas vezes, política pública deixa de ser compreendida como ‘res-pública’, como responsabilidade de todos, do Estado de disponibilizar recursos, formular projetos, programas e prover bens e serviços e da sociedade civil organizada de participar de sua definição e de exercitar o controle social. (BARROSO, 2009, p. 33). Ao passo que a política é um mecanismo de “emancipação” (se efetivada como direito), ao mesmo tempo é uma forma de integrar aqueles que estão à margem da sociedade.

2 SEGURIDADE SOCIAL E SEU DESMONTE

Uma grande conquista advinda da Constituição Federal de 1988 foi a concepção da Seguridade Social como direito do cidadão e dever do Estado envolvendo a Previdência Social, a Assistência Social e a Saúde, com vistas a garantir a proteção por meio do seguro social. A Previdência Social caracteriza-se como política contributiva, ou seja, para acessar os benefícios desta política é necessário ter contribuído com o Instituto Nacional de Seguro Social e ser segurado podendo assim acessar à aposentadoria, ao salário-maternidade, pensão por morte entre outros. Como modelo de seguro, visa a cobertura dos trabalhadores formais e de seus familiares. A Assistência Social é destinada ao público que dela necessitar, portanto, não é para todos os cidadãos, mas sim para aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade social e se enquadram nos critérios de elegibilidade dos programas sociais. A Saúde, política sobre a qual trataremos neste trabalho, se caracteriza como política universal que deve atender a todos, sem uma vinculação contributiva. “Em um contexto de agudas desigualdades sociais, pobreza estrutural e fortes relações informais de trabalho, esse modelo, que fica entre o seguro e a assistência, deixa sem acesso aos direitos da seguridade social uma enorme parcela da população.” (BOSCHETTI, 2009, p. 1).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 177 Nesse contexto observa-se que o objetivo da seguridade social em oferecer proteção aos cidadãos está vinculada ao processo de trabalho formal o qual proporcionava o acesso aos direitos via trabalho, mais especificamente os direitos no âmbito da previdência social, a seletividade da assistência social ao proporcionar serviços, programas e benefícios de transferência de renda focalizados ao público que não acessa o trabalho, limitando a universalidade somente a política de saúde que a partir da Constituição Federal de 1988 começa uma nova fase se desvencilhando da limitação de atendimento ao trabalhador contribuinte e de seus familiares, ampliando os atendimentos a toda a população. Nos limites deste trabalho focalizaremos nossa ótica para a saúde e sua trajetória trilhada após esse novo status de política social pública voltada para a universalização. Uma conquista coletiva efetivada através da luta da sociedade com o projeto de Reforma Sanitária, que culminou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), completando 30 anos de sua construção, apresentando avanços e limites nesse percurso pela efetivação do direito à saúde no contexto da sociedade capitalista. A Constituição Federal de 1988, marco importante para a política social brasileira, possibilitou uma nova forma de se pensar e construir a saúde. Nesse período de consolidação dos direitos sociais, foram debatidas diversas propostas governamentais na área da saúde. Tais debates permitiram novas perspectivas em relação a mudanças nesse âmbito por meio da Reforma Sanitária, onde a saúde é um direito do cidadão e dever do Estado. Diante a ineficiência do setor público e da redução do apoio popular, os anos de 1990 foram marcados pela contrarreforma do Estado, onde a conjuntura de crises propiciou a retração das políticas sociais, sobretudo na saúde com o trinômio privatização, focalização e descentralização. Com as recomendações do Consenso de Washington, o Brasil passa a incorporar as medidas neoliberais, como a reforma fiscal, abertura comercial, política de privatizações e redução fiscal do Estado, e tais medidas condicionavam a possibilidade de empréstimos e negociação de dívidas externas. Esse posicionamento do Estado brasileiro trouxe rebatimentos diretos à efetivação da Seguridade Social pelo viés de seguro. Embora algumas questões tenham tido êxito, como o aumento da expectativa de vida, a ampliação de campanha de vacina, a diminuição da mortalidade infantil, por outro lado, vê-se a falta de saneamento básico, o

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 178 sucateamento do SUS, unidades de saúde precárias, longas filas de espera, falta de equipamentos, de profissionais e em suma, falta de medicamentos. A lógica neoliberal propõe um Estado Mínimo para os gastos sociais, tornando-se um empecilho para a consolidação da política de saúde nos moldes da universalidade e ampliação, uma vez que ela passa a ser garantida aos que não tem meio de provê-la por meio privado. No tocante a política de saúde, pode-se perceber que os governos ora caminhavam pela via da inovação do projeto da Reforma Sanitária, ora pela via da continuidade do projeto neoliberal, aumentando contratos de agentes comunitários sem especialização, desfinanciando a seguridade social e direcionando para pagamento da dívida pública, comprometendo o financiamento do SUS. O que se assiste é uma tentativa de desestruturação e desmonte das políticas sociais na atualidade que foi se delineando ao longo desses trinta anos da Constituição Federal de 1988. O forte ataque a consolidação dos direitos sociais vem se constituindo a partir de reformas da previdência, em contraponto da universalização restringindo direitos, com redução de benefícios, o que produz campo fértil para a mercantilização, ampliando o mercado para os planos de saúde. Outro agravante para a política de saúde é a Emenda Constitucional n° 95 que delineia um Novo Regime Fiscal que congela o piso dos gastos no período de 20 anos, desvinculando as despesas com saúde e educação na Constituição Federal relativos às receitas. Nesse cenário a população que vive em situação de vulnerabilidade social será mais afetada, frente a redução do financiamento do SUS e do aumento da demanda. Corriqueiramente acontece a judicialização dos direitos sociais mediante a esse novo regime fiscal, que reduz gastos com a saúde, e, por outro lado, deixa como alternativa a justiça ser o único meio para garantia de direitos. Aumentam-se cada vez mais os pedidos de medicamentos, suplemento nutricional, aparelhos, equipamentos, entre outros, que são encaminhados para a Defensoria Pública, e que tem dificultado cada vez mais o acesso universal e integral a saúde. Verifica-se um movimento de Reforma da Previdência que objetiva desvincular o benefício do salário-mínimo, uma falácia da crise da previdência, que visa preparar o terreno para investimentos na previdência privada. O favorecimento dos planos privados de aposentadoria, que proliferaram após a contrarreforma da previdência social, é

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 179 outro caminho de desmonte, pois provoca uma privatização passiva, ao estimular a demanda ao setor privado, em detrimento do setor público. (BOSCHETTI, 2009, p. 16). Esse processo de propostas para a efetivação da reforma da previdência apresenta o tensionamento da disputa entre o capital e os trabalhadores, que assistem a olho nu os escassos direitos conquistados sendo desmantelados e tomando um distanciamento da sua realidade. Nos anos 2000 a classe-que-vive-do-trabalho vê com esperança Lula ser eleito presidente, embora tenha investido na área social observa-se um modelo neodesenvolvimentista na condução da economia. Constata-se neste período um aumento em investimentos na área social em contrapartida dos gastos destinados a saúde e a previdência social. Observa-se uma continuidade desse processo no governo Dilma e o contexto de crise econômica e política possibilita uma articulação da oposição do governo a fim de destituí-la do poder através do processo de Impeachment e Temer assumir a presidência, desenhando um cenário cada vez mais restritivo no que tange a recursos para a política social, em especial com a proposição da PEC 241 de 2016 (PODER EXECUTIVO, 2016), com o congelamento de gastos sociais nas áreas de saúde, educação e assistência social pelo período de 20 anos. Tais mudanças já começam a impactar na vida da classe-que- vive-do-trabalho e na vida dos que vivenciam o não acesso ao trabalho, com uma varredura dos beneficiários do Programa Bolsa Família, bem como dos que acessam o Benefício de Prestação Continuada, pessoas com deficiência e idosos, com o corte de muitos desses benefícios. Na saúde observa-se o corte de auxílios-doença, revisões de aposentadoria por invalidez, dificuldade de acesso a medicamentos de alto custo, falta de profissionais nos níveis de atenção básica e secundária que vão procurar um respaldo no nível terciário. O desgoverno apresenta-se cada vez mais como Estado mínimo diante da necessidade dos mais pobres e na contramão da universalização dos direitos sociais. Frente a precarização das relações de trabalho, a ação dos profissionais tem ficado cada vez mais restrita a demandas emergenciais e outras demandas não são contempladas, em sua maioria, por falta de recursos humanos e financeiros. Dessa forma, enfraquece a organização de classe e dá abertura para o clientelismo e o assistencialismo. O que se evidencia no contexto atual é um movimento de desmonte dos direitos através da PEC 241 de 2016, o empenho pela

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 180 reforma da previdência e pela reforma trabalhista, com ênfase no processo de terceirização, o que precariza o acesso ao trabalho. Nesse contexto, a racionalidade hegemônica na concepção da política de saúde brasileira faz priorizar uma política de saúde assistencialista, seletiva, focalizada, individualista e curativa, que atende aos interesses do setor privado, fazendo- se perder o caráter público e universal. (SILVA; BATISTA; SANTOS, 2017, p. 5). São projetos antagônicos em constante tensão: a Reforma sanitária que prevê a defesa do caráter universal e público da saúde em seu sentido ampliado e, de outro lado, o projeto neoliberal, de interesse do capital, que privilegia o setor privado e entende a saúde como mercadoria e fonte de lucro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Afere-se a partir das reflexões e análises deste estudo que o processo de conquista de direitos pela classe-que-vive-do-trabalho no modo de produção capitalista ocorre pelo tensionamento entre capital x trabalho e que estes direitos legitimam esse modo de produção, sendo o Estado máximo para o econômico e mínimo para o social. No cotidiano de trabalho observa-se os rebatimentos do não investimento na área da Seguridade Social com ênfase na política de saúde, com os cortes de benefícios dos segurados pela previdência, como auxílios-doença, aposentadoria por invalidez, No âmbito da saúde, os princípios do SUS, como descentralização e participação democrática, universalização e integralidade das ações, estão sendo diluídos pela manutenção cotidiana, apenas de uma cesta básica, que não assegura nem os atendimentos de urgência. É notória a falta de medicamento, ausência de condições de trabalho, de orçamento e de capacidade de absorção das demandas, o que se evidencia nas longas filas de espera por uma consulta e internação. (BOSCHETTI, 2009, p. 12-13). Analisando sob a perspectiva do direito, o desmonte da Seguridade Social tem avançado de forma vertiginosa, em especial sobre aqueles que vivem em vulnerabilidade social. Os cortes dos benefícios têm provocado um forte impacto sobre aqueles que não possuem outras fontes de renda

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 181 para sobreviver e que sem o benefício também não conseguem se recolocar no mercado de trabalho. O desafio é grande, mas a luta pela reconquista dos direitos deve ser uma bandeira cotidiana para todos aqueles que vislumbram viver em uma sociedade mais justa e igualitária.

REFERÊNCIAS

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 182 SILVA, Agnes Carine; BATISTA, Jessica Hellen Santos; SANTOS, Wene Caroline Mota. Desmonte e sucateamento do SUS: o ataque neoliberal à política de saúde no Brasil. In: SEMINÁRIO FRENTE NACIONAL CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE, 7., 2017, Anais.... 2017. Disponível em: www.seer.ufal.br/index.php/anaisseminariofncps/article/ download/4009/2847. Acesso em: 8 ago. 2018. SILVA, Lídia Maria Monteiro Rodrigues da. Serviço Social e família: a legitimação de uma ideologia. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1984.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 183

PROCEDIMENTOS TÉCNICO-OPERATIVOS DA PNAS, RESPONSABILIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS USUÁRIAS DA POLÍTICA E OS DESAFIOS PARA O SERVIÇO SOCIAL

TECHNICAL-OPERATIVE PROCEDURES OF THE PNAS, ACCOUNTABILITY OF FAMILIES USING THE POLICY AND THE CHALLENGES TO SOCIAL SERVICE Luana Alexandre Duarte * RESUMO: O artigo que segue trata do trabalho profissional do assistente social em sua dimensão técnico-operativa em um Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), buscando problematizar alguns procedimentos técnico-operativos do trabalho social com famílias, que previstos ou não em orientações técnicas que contemplam a normatização da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), fazem parte do cotidiano profissional e remetem a práticas que beiram ao conservadorismo e que conflitam com o trabalho profissional alinhado ao Projeto Ético-Político da categoria. Para tanto, será realizada uma reflexão teórica sobre o tema. Palavras-chave: Serviço Social. trabalho profissional. projeto ético-político. assistência social. trabalho social com famílias. ABSTRACT: The following article deals with the professional work of the Social Worker in his technical-operative dimension in a Social Assistance Reference Center (CRAS), seeking to problematize some technical-operative procedures of social work with families, that foresee or not in technical orientations that contemplate the normalization of the National Social Assistance Policy (PNAS), are part of the professional daily life and refer to practices that border on conservatism and that conflict with professional work in line with the Ethical-Political Project of the category. For that, a theoretical reflection on the theme will be carried out. Keywords: Social Work. professional work. ethical-political project. social assistance. social work with families.

INTRODUÇÃO

A reflexão proposta neste artigo compreende uma problemática identificada no cotidiano profissional da pesquisadora, que trabalha como

* Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade Federal de São Paulo, especialista em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal São João del-Rei (2018), graduada em Turismo (2007) e em Serviço Social (2011) pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Trabalha como Assistente Social para a Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto/ São Paulo, com a execução da Política de Assistência Social, em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 185 Assistente Social em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS)1. Sendo assim, a proposta de pesquisa foi se formulando conforme a pesquisadora verificou dificuldades no cotidiano profissional relacionadas ao exercício profissional em sua dimensão técnico-operativa alinhada ao Projeto Ético-Político da profissão, dados alguns procedimentos técnico- operativos que regulam a operacionalização da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e outras práticas que persistem no âmbito da assistência social, que remetem ao conservadorismo. Mais especificamente, dois procedimentos do trabalho com famílias incitaram os primeiros questionamentos da pesquisa, o que se refere ao Plano de Acompanhamento Familiar e o que se refere às Discussões de Caso em Rede2, que assim como os Programas de Transferência de Renda Condicionados, reforçam a necessidade de contrapartida da família no âmbito da assistência social brasileira e configuram práticas que responsabilizam as famílias usuárias da política de assistência social e/ou de outras políticas sociais a contornar as situações de “vulnerabilidade” e “risco social” vivenciadas. Cabe ressaltar ainda que o ponto alto da definição do objeto da pesquisa, procedimentos técnico-operativos do trabalho social com famílias desenvolvidos no âmbito dos CRAS, foi quando a pesquisadora, participando de uma capacitação sobre o trabalho em rede no âmbito das políticas sociais, ouviu de outra assistente social que conforme os serviços públicos iam atrás ou solicitavam incisivamente a presença de uma determinada família para acompanhamento, a família ia deixando de atender aos chamados, mudava de endereço e chegou até a mudar de município para evitar as abordagens. Aqui se levantou o seguinte questionamento, em que medida o acompanhamento familiar representa

1 [...] unidade pública estatal descentralizada da política de assistência social, responsável pela organização e oferta de serviços da proteção social básica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) nas áreas de vulnerabilidade e risco social dos municípios e DF. Dada sua capilaridade nos territórios, se caracteriza como a principal porta de entrada do SUAS, ou seja, é uma unidade que possibilita o acesso de um grande número de famílias à rede de proteção social de assistência social.” (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME, 2009, p. 9). 2 Podem constituir a articulação em rede os “Serviços socioassistenciais de proteção social básica e proteção social especial; Serviços públicos locais de educação, saúde, trabalho, cultura, esporte, segurança pública, e outros conforme necessidade; Conselhos de políticas públicas e de defesa de direitos de segmentos específicos; Instituições de ensino e pesquisa; Serviços de enfrentamento à pobreza; - Programas e projetos de preparação para o trabalho e de inclusão produtiva; e Redes sociais locais: associações de moradores, ONG’s, entre outros.” (BRASIL, 2014, p. 15).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 186 proteção social e/ou reforça o olhar do vigiar, do controlar, do ajustar os usuários de políticas sociais, e ainda, em que medida esta proteção social é compulsória e quais efeitos isso repercute. Sendo assim, apresentam-se então as reflexões que foram feitas até o momento acerca dos procedimentos do trabalho com famílias supracitados que, importa ressaltar, não são os únicos regulamentados/ realizados no âmbito do trabalho social com famílias desenvolvido nos CRAS, bem como algumas reflexões sobre o trabalho profissional do assistente social, com o objetivo de contribuir, no que tange à produção intelectual e ao exercício profissional do Serviço Social, para a defesa da instrumentalidade do Serviço Social a serviço da população atendida e em consonâncias com os preceitos do Projeto Ético-político profissional, ainda que haja limites e normativas institucionais. Ressalta-se por fim, em relação à Discussão de Caso em Rede, não há menção a este procedimento nas normativas da PNAS, mas trata-se de uma prática arraigada na assistência social. Em Brasil (2012, v. 2), percebe- se apenas a menção a Estudos de Caso, também como um procedimento, mas em uma perspectiva que compreende o trabalho in loco, no caso, nos CRAS, ou entre CRAS e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), mas não em Rede, ainda que esteja prevista a articulação intersetorial.

DESENVOLVIMENTO

O Serviço Social é uma profissão que surge com o amadurecimento da sociedade capitalista, em sua fase monopolista. É uma profissão inscrita na divisão social e técnica do trabalho como um trabalho especializado, cujo exercício profissional é requisitado para o enfrentamento/minimização da questão social e, portanto, perpassa as relações de produção e reprodução social e econômica vigentes na sociabilidade capitalista. Mais especificamente, considerando que a sociabilidade capitalista compreende a divisão da sociedade em classes sociais antagônicas, a classe burguesa e a classe trabalhadora, e que a classe burguesa apropria- se da força de trabalho e consequentemente de grande parte da riqueza produzida pela classe trabalhadora, com a anuência do Estado, a questão social, de acordo com os autores Iamamoto e Carvalho (2014, p. 87), [...] não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 187 cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e da repressão. Neste cenário de pressão da classe trabalhadora por outros tipos de intervenções comprometidas com seus interesses, o Serviço Social, como prática institucionalizada, situa-se [...] no processo da reprodução das relações sociais, fundamentalmente como uma atividade auxiliar e subsidiária no exercício do controle social e na difusão da ideologia da classe dominante junto à classe trabalhadora. [...]. Porém, como o processo de reprodução das relações sociais é, também, o processo de reprodução das contradições fundamentais que as conformam, estas se recriam e se expressam na totalidade das manifestações do cotidiano da vida em sociedade. A instituição Serviço Social, sendo ela própria polarizada por interesses de classes contrapostas, participa, também, do processo social, reproduzindo e reforçando as contradições básicas que conformam a sociedade do capital, ao mesmo tempo e pelas mesmas atividades em que é mobilizada para reforçar as condições de dominação, como dois polos inseparáveis de uma mesma unidade. É a existência e compreensão desse movimento contraditório que, inclusive abre a possibilidade para o Assistente Social colocar-se a serviço de um projeto de classe alternativo àquele para o qual é chamado a intervir. (IAMAMOTO; CARVALHO, 2014, p. 101, grifo do autor). Pode-se dizer que desde a década de 1960 a categoria profissional de Assistentes Sociais no Brasil esforça-se para legitimar e definir uma direção social para a profissão, e que, na transição da década de 70à de 80 se empenhou na construção de um Projeto Profissional coletivo e hegemônico, que expressa a afirmação do compromisso com os interesses da classe trabalhadora e com a construção de uma nova ordem societária, a partir da apropriação da Teoria Social Marxista como orientação teórica e metodológica, colocando a categoria profissional a serviço de um projeto de classe alternativo àquele para o qual é chamado a intervir. De acordo com o autor Paulo Netto (1999), este projeto tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor central- daí um compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais; se vincula a um projeto societário que propõe a

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 188 construção de uma nova ordem social, sem exploração/dominação de classe, etnia e gênero; afirma a defesa intransigente dos direitos humanos e o repúdio do arbítrio e dos preconceitos, contemplando positivamente o pluralismo, tanto na sociedade como no exercício profissional. A dimensão política do projeto é claramente enunciada: ele se posiciona a favor da equidade e da justiça social. Correspondentemente, o projeto se declara radicalmente democrático considerada a democratização como socialização da participação política e socialização da riqueza socialmente produzida (PAULO NETTO, 1999, p. 104-105). Adiante, propõe-se uma breve contextualização da conjuntura da sociedade capitalista contemporânea, destacando os impactos do neoliberalismo e da reestruturação produtiva para a classe trabalhadora, que como veremos, atinge aos Assistentes Sociais duplamente, seja enquanto classe trabalhadora seja enquanto profissionais que atuam com as refrações da questão social, haja vista o cenário de desmonte dos direitos sociais e trabalhistas, como forma de compreender de que forma tem se dado atuação dos Assistentes Sociais na contemporaneidade, especialmente a que se realiza no âmbito das políticas sociais. Segundo a autora Granemann (2007, p. 58, grifo do autor), Na segunda metade da década de 70 do século XX, com o fim dos três decênios de ouro da acumulação capitalista, tem início a desmontagem das políticas sociais em razão das necessidades de o grande capital elevar constantemente suas taxas de lucro. As reestruturações produtivas e suas exigências de reorganização dos processos produtivos e de trabalho combinadas à reversão do modelo estatal de bem- estar social assinalam que o capital monopolista dominado pelas finanças carece agora dos recursos e dos espaços ocupados pelas políticas sociais para dar continuidade ao seu objetivo primário: “o acréscimo de lucro pelo controle dos mercados” (PAULO NETTO, 1992). Complementa-se a discussão, no que tange aos efeitos da reestruturação produtiva na reorganização dos processos produtivos e de trabalho, com observações do autor Antunes. Segundo esse autor, a reestruturação produtiva, que trouxe mudanças significativas no processo de trabalho, como a flexibilização da produção, trouxe também novas exigências ao trabalhador, que deve ser qualificado, participativo e polivalente em alguns ramos e desqualificado em outros, dependendo do grau de especialização exigida ou não pelo trabalho a ser realizado, o que

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 189 reflete diretamente na educação profissional (que se adequa às demandas do mercado) e na organização da classe trabalhadora, que se complexifica; além da precarização do trabalho e do desemprego estrutural. As transformações em curso no mundo do trabalho “[...] afetaram a forma de ser da classe trabalhadora tornando-a mais heterogênea, fragmentada e complexificada.” (ANTUNES, 2015, p.79). Ainda acerca das transformações no mundo do trabalho, observa- se no capitalismo contemporâneo uma subproletarização intensificada, presente na expansão do trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado e “terceirizado”, e o mais brutal resultado dessas transformações é o desemprego estrutural, que atinge o mundo em escala global (ANTUNES, 2015, p. 61, grifo do autor). Já em relação ao reconhecimento por parte da classe trabalhadora de sua existência enquanto uma classe social expropriada, pode-se dizer que “[...] a fragmentação, heterogeneização e complexificação da classe-que-vive-do-trabalho questiona na raiz o sindicalismo tradicional e dificulta também a organização sindical de outros segmentos que compreendem a classe trabalhadora.” (ANTUNES, 2015, p. 82, grifo do autor). No caso da categoria dos Assistentes Sociais, as transformações no mundo do trabalho repercutem tanto na precarização do trabalho, como também na formação universitária e na atuação desses profissionais, como não poderia deixar de ser. De acordo com a autora Iamamoto (2014, p. 629), O desmesurado crescimento do quadro profissional nas últimas décadas, decorrente da expansão acelerada do ensino superior privado - em particular no ensino à distância - tem implicações na qualidade acadêmica da formação, no aligeiramento no trato da teoria, na ênfase no treinamento e menos na descoberta científica. A massificação e a perda de qualidade da formação universitária facilitam a submissão dos profissionais às demandas e “normas do mercado”, tendentes a um processo de politização à direita da categoria. O aumento do contingente profissional vem acompanhado de crescimento do desemprego em uma conjuntura recessiva, pressionando o piso salarial e a precarização das condições de trabalho, aumentando a insegurança no emprego e a concorrência no mercado profissional de trabalho. Dificilmente a oferta de trabalho poderá acompanhar, no mesmo ritmo, o crescimento do número de profissionais, podendo desdobrar‑se na criação de um exército assistencial de reserva, como recurso de qualificação do “voluntariado”, e no reforço ao clientelismo político, aos chamamentos à

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 190 “solidariedade” enquanto estratégia de obscurecimento das clivagens de classe. A autora, na exposição acima, contextualiza um cenário de precarização da formação e do trabalho profissional que beira à desprofissionalização do Serviço Social e aqui já é possível demarcar situações estruturais que por si só tencionam o exercício profissional do assistente social em consonância ao Projeto Ético-politico, ainda que estas situações não sejam determinantes. Nesse sentido, acrescenta-se, segundo a mesma autora, que um dos maiores desafios do Assistente Social no presente é desenvolver sua capacidade de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no cotidiano. Enfim, ser um profissional propositivo e não só executivo (IAMAMOTO, 1998, p. 20). Mais especificamente, acerca dos desafios do trabalho do assistente social na Política Pública de Assistência Social, acrescentamos que, Existe uma necessária autonomia entre o trabalho profissional na política pública e a política pública. Profissão não se confunde com política pública de governo ou de Estado e nem o Serviço Social se confunde com assistência social, ainda que esta possa ser uma das mediações persistentes da justificativa histórica da existência da profissão. Assim, seus agentes não são meros operacionalizadores de políticas emanadas do Estado – um braço operacional do moderno príncipe -, ainda que a política pública – e particularmente a seguridade social - seja uma mediação determinante no exercício da profissão no mercado de trabalho como uma das respostas institucionalizadas à “questão social”. (IAMAMOTO, 2014, p. 611). Aproximando essa discussão da realidade do trabalho profissional no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), destacam-se a seguir algumas observações da autora Raichelis (2010), segundo esta autora, é fundamental no âmbito do SUAS superar a cultura histórica do pragmatismo e das ações improvisadas, exercitando a capacidade de leitura crítica da realidade, sem reforçar naturalizações e criminalizações, violação de direitos, mas procurando compreender criticamente os processos sociais de sua produção e reprodução na sociedade brasileira. É preciso, fazer a crítica e resistir ao mero produtivismo quantitativo, medido pelo número de reuniões, número de visitas domiciliares, de atendimentos, sem ter clareza do sentido e da direção social ético‑política do trabalho coletivo. Por isso a luta pela garantia da qualificação e da capacitação continuadas, por

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 191 espaços coletivos de estudo e de reflexão sobre o trabalho, de debate sobre as concepções que orientam as práticas, é parte da luta pela melhoria das condições de trabalho e da qualidade dos serviços prestados à população (RAICHELIS, 2010, p. 765). Em relação às condições de trabalho no âmbito do SUAS e suas repercussões na qualidade do serviço prestado, a autora afirma a importância da ressignificação do trabalho na assistência social, referenciada em um projeto coletivo, cujas formas de organização e gestão institucional incorporem mecanismos permanentes de democratização, qualificação e capacitação continuada, como valorização da intervenção profissional. Quanto mais qualificados os trabalhadores da assistência social, menos sujeitos a manipulação e mais preparados para enfrentar os jogos de pressão política e de cooptação nos espaços institucionais, conferindo qualidade e consistência ao trabalho realizado (RAICHELIS, 2010, p. 766). Por fim, em relação à configuração das políticas sociais na contemporaneidade, temos, de acordo com as autoras Behring e Boschetti (2011, p. 156), o seguinte cenário: tendência geral de restrição e redução dos direitos, sob o argumento da crise fiscal do Estado, transformando as políticas sociais em ações pontuais e compensatórias direcionadas para os efeitos mais perversos da crise; a limitação das possibilidades preventivas e eventualmente redistributivas, prevalecendo o trinômio articulado ao ideal neoliberal: a privatização, a focalização e a descentralização. No que se refere ao financiamento temos que a alocação de recursos tende a ser “pró-cíclico e regressivo”, ao invés de se constituir anticíclico, conforme o padrão Keynesiano, caindo a qualidade das políticas sociais e impossibilitando a implementação de políticas universais. Os recursos também permanecem extremamente concentrados e centralizados, contrariando a orientação constitucional da descentralização (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 164-165). Mais especificamente, de acordo com a autora Granemann (2007, p. 64), desenha-se na contemporaneidade um cenário que diferencia os trabalhadores entre aqueles que podem adquirir no mercado sua “proteção social” e aqueles que necessitam da intervenção do Estado para o provimento de suas vidas, aprofundando o processo de segmentação e a divisão da classe trabalhadora. Para a autora, nesta perspectiva, o atendimento estatal responde aos seguintes propósitos: “[...] assistencialismo minimalista e monetarizado para os mais pobres, para os trabalhadores precarizados e para os desempregados” e “[...] mercantilização da ‘proteção social’

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 192 provida pelo mercado para os trabalhadores que podem comprar a ‘segurança’ da aposentadoria, da saúde, da educação, do lazer.” (GRANEMANN, 2007, p. 68). Complementa-se que no caso da proteção social da política de assistência social brasileira, o acesso do trabalhador à política pode culminar em acompanhamento familiar, ou seja, diferentemente dos trabalhadores que adquirem sua proteção social direto no mercado, estão previstas na PNAS a execução de serviços de acompanhamento sistemático às famílias. O acompanhamento no âmbito do PAIF é destinado às famílias que apresentam situações de vulnerabilidades, que requerem a proteção da assistência social para garantia de seus direitos socioassistenciais, acesso aos direitos sociais e ampliação de sua capacidade protetiva, demandando, para isso, uma atenção diferenciada, um olhar mais atento dos profissionais do CRAS, na medida em que essas situações vivenciadas, caso não sofram imediata intervenção profissional, podem tornar-se risco social e/ou violação de direitos. (BRASIL, 2012, v. 2, p. 55). Outro tipo de acompanhamento realizado também nos CRAS é o acompanhamento das condicionalidades do Programa de Transferência de Renda Bolsa Família. A autora Silva (2016, p. 198), faz uma reflexão acerca da “[...] pobreza enquanto categoria teórica de fundamentação e foco de intervenção dos programas de transferência de renda na américa latina”, segundo esta autora, Em síntese, os PTRC em desenvolvimento na América Latina tem os seus fundamentos teóricos e suas orientações interventivas fundamentados num conceito de pobreza focado no indivíduo, tendo suas capacidades desenvolvidas numa relação com as estruturas de oportunidades disponibilizadas, quer pelo Estado, quer pela sociedade. Orientam-se por uma concepção multidimensional da pobreza, originada no Enfoque do Desenvolvimento Humano, construído pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), cuja referência maior é o enfoque de capacidades formulado por Sen, sendo as oportunidades capazes de criar possibilidades que garantam a liberdade para que os indivíduos, por si, possam superar sua situação de pobreza. (SILVA, 2015 apud SILVA, 2016, p. 198). A autora Mustafa (2013), ao analisar “como se manifesta a teoria das capacidades na política de assistência social” no contexto

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 193 atual de fragilidade das políticas sociais e de precarização das relações e condições de trabalho, questiona quais capacidades são possíveis de serem desenvolvidas para uma maior autonomia dos usuários da política de assistência social, na sociedade atual, pois, segundo a PNAS, é necessário “[...] entender que a população tem necessidades, mas, também possibilidades ou capacidades que devem e podem ser desenvolvidas”, acrescida de “[...] identificar forças e não fragilidades que as diversas situações de vida possua.” (BRASIL, 2005, p. 15 apud MUSTAFA, 2013, p. 185, grifo do autor). A análise da autora passa então a considerar a Teoria das Capacidades, presente nas reflexões do autor Amartya Sen, a saber, Sen, em seu livro Desenvolvimento como Liberdade, coloca como uma de suas ideias centrais, a complementariedade existente entre as condições sociais e a “condição de agente individual”, o que significa dizer que é preciso verificar o alcance da liberdade individual em um determinado contexto. Decorre daí sua noção de desenvolvimento: “[...] consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente” (SEN, 1999, p. 10). (MUSTAFA, 2013, p.185, grifo do autor). A autora acrescenta que para haver desenvolvimento como liberdade, segundo Sen, é preciso que se eliminem as “[...] principais fontes de privação da liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos.” (SEN, 1999, p. 31 apud MUSTAFA, 2013, p. 186). Nesse sentido, segundo a autora, “[...] toda argumentação de Sen caminha na direção de suprimir as privações de liberdade dos indivíduos para que esses possam desenvolver capacidades, o que lhes permitiria serem agentes ativos [...]”, no sentido de conseguirem cuidar de si e do mundo (MUSTAFA, 2013, p. 186). Por fim, a autora ressalta que não se pode acreditar que a população brasileira (a sua maioria) sairá da pobreza, do desemprego, do trabalho desprotegido por suas próprias forças ou pela força de suas famílias, e complementa, “[...] sem condições objetiva favoráveis, como é possível desenvolver capacidades, desfrutar de real liberdade? Não se nega, contudo, o campo da subjetividade, das práticas educativas, mas apenas salientam-se seus limites.” (MUSTAFA, 2013, p. 187). Complementa-se enfim, que tanto a PNAS quanto os Programas de Transferência de Renda Condicionada (PTRC) e Bolsa Família não

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 194 contemplam em seus textos ou em seus marcos regulatórios, a abordagem das determinações estruturais da pobreza. Segundo a autora Silva, na sua reflexão sobre os PTRC, Ao desconsiderar as determinações estruturais da pobreza, esta é reduzida a um atributo negativo dos indivíduos e de suas famílias, estigmatizados e responsabilizados pelo seu estado de pobreza, ficando a superação da pobreza intergeracional, sob a responsabilidade dos indivíduos. O resultado desse processo não é a superação da pobreza, limitando seu alcance na redução de situações de indigência, com melhorias imediatas nas condições de vida do pobre, que tem seu potencial de sujeito perigoso minimizado, ao transformar-se num consumidor marginal para que a estabilidade da ordem social seja garantida, em certo nível. (SILVA, 2016, p. 198). Passa-se então para uma abordagem mais direta da problemática deste artigo, os procedimentos de acompanhamento familiar e de discussão de caso. O contato inicial das famílias com os serviços do CRAS ocorre por meio do acolhimento, que “consiste no processo inicial de escuta das necessidades e demandas trazidas pelas famílias, bem como de oferta de informações sobre as ações do Serviço, da rede socioassistencial, em especial do CRAS e demais políticas setoriais”, e é neste momento também que “[...] o técnico utilizará instrumentais de coleta e registro de informações, como por exemplo, entrevistas, análise socioeconômica, estudo social e o prontuário da família.” (BRASIL, 2012, v. 2, p. 18). No estudo social, [...] os profissionais responsáveis deverão, em conjunto com as famílias: enumerar as situações de vulnerabilidade social vivenciadas, buscando compreender suas origens e consequências; identificar as potencialidades e recursos que as famílias possuem; identificar/reconhecer as características e especificidades do território que influenciam e/ou determinam as situações de vulnerabilidade vivenciadas pelas famílias. O estudo social da situação familiar constitui momento de compreensão da realidade vivenciada pelas famílias, bem como de afirmação da assistência social como direito de cidadania e dever do Estado. (BRASIL, 2012, v. 2, p. 18). A partir da realização da etapa de estudo social, o técnico identifica se a demanda trazida pelo usuário trata-se de uma situação pontual, que

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 195 requer atendimento imediato, ou de uma situação mais complexa, que requer acompanhamento. O acompanhamento familiar consiste em um conjunto de intervenções desenvolvidas de forma continuada, a partir do estabelecimento de compromissos entre famílias e profissionais, que pressupõem a construção de um Plano de Acompanhamento Familiar - com objetivos a serem alcançados, a realização de mediações periódicas, a inserção em ações do serviço de proteção básica, buscando a superação gradativa das vulnerabilidades vivenciadas (BRASIL, 2012, v. 2, p. 54). Uma vez desenvolvido o acompanhamento familiar, a etapa de avaliação é a etapa que permite verificar o impacto das ações desenvolvidas na superação das vulnerabilidades sociais vivenciadas pelas famílias e, nesse sentido, [...] consiste no levantamento de dados e informações, com temporalidade definida (mês, semestre ou ano) por meio de pesquisas e estudos, com a finalidade de analisar os aspectos de eficiência, resultados, impactos em relação ao objetivo inicialmente traçado, de forma a dar subsídio para o planejamento e/ou programação e tomadas de decisões para o aperfeiçoamento do Serviço. (BRASIL, 2012, v. 2, p. 93). Ressaltamos que a avaliação do acompanhamento caso a caso, realizada entre o técnico e a família pode trazer informações relevantes sobre o impacto ou não das ações da Política de Assistência Social e de outros serviços públicos na vida das famílias, ou seja, compreende também o apontamento de falhas do Poder Público, mas, no cotidiano profissional, caso os objetivos do acompanhamento não sejam atingidos, cabe o estabelecimento de alternativas, como refazer algumas etapas ou elaborar um novo Plano de Acompanhamento Familiar, contudo, salvo exceções, os recursos disponibilizados para essas novas ações serão os mesmos, e caberá então uma reorganização da família frente aos serviços oferecidos. Não se nega aqui possibilidades relativas à identificação de falhas das políticas públicas e de questionamento do Poder Público, mas aponta-se que elas nem sempre se materializam em respostas concretas e menos ainda no tempo requerido, ainda que seja importante também trabalhar nesse sentido. Complementa-se ainda, de acordo com a autora Mioto (2015, p. 708), que, As instituições tendem a se apropriar do trabalho familiar por meio de práticas administrativas­ e de participação. Essas

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 196 práticas, por um lado, impõem-se independentemente de avaliação sobre os recursos de diferentes ordens (financeiros, de tempo e emocionais) das famílias para efetuá-las; por outro lado, estão “alheias” ao conflito entre vida laboral e vida familiar que acomete seus membros (Mioto, 2012). Por exemplo, na área da saúde, observa-se que os serviços de emergência se constituem em importante porta de entrada para o atendimento da população. Isso se dá na medida em que funcionam como estratégia para o enfrentamento do conflito existente entre as demandas do emprego eas responsabilidades familiares, especialmente porque reduzem o tempo a ser despendido para o acesso e o usufruto dos serviços de saúde e porque permitem,­ através de seu funcionamento ininterrupto, compatibilização de horários. Mais especificamente, ressalta-se que o Plano de Acompanhamento Familiar prevê, entre outros procedimentos, o estabelecimento de metas para e com o/a usuário que deverão ser avaliadas e monitoradas pelo técnico, representando não só uma ação tuteladora (às avessas, haja vista a primazia da responsabilização das famílias pela superação das “vulnerabilidades sociais” vivenciadas) como também fiscalizadora por parte dos técnicos, e, em alguns casos, compulsória, quando, por exemplo, seja para “prevenir riscos” ou para responder a demandas judiciais, as famílias que demandam uma “[...] atenção diferenciada, um olha mais atento dos profissionais do CRAS [...].” (BRASIL, 2012, v. 2, p. 55) acabam sendo incluídas em acompanhamento sem terem sido consultadas, e, ainda que nesses casos não se elabore necessariamente o Plano de Acompanhamento Familiar, as famílias acabam sendo monitoradas no limite do possível e deverão ser sempre chamadas, sensibilizadas à participação em alguma forma de acompanhamento. Além desse procedimento e das metas a serem atingidas pelas famílias representarem e reforçarem uma necessidade de contrapartida da família no âmbito da política de assistência social, submetendo o acesso ao direito à vigilância e ao monitoramento de algumas famílias, ainda que de forma velada, já que as metas foram estabelecidas com a concordância do usuário e o objetivo é o acesso aos direitos, a superação de vulnerabilidades e a prevenção de riscos. O procedimento de Discussão de Caso em rede ocorre, normalmente, no caso de famílias que, nos termos da PNAS, já tiveram seus direitos violados ou que apresentam vulnerabilidades sociais que as colocam ou podem as colocar em situação de “risco social”, e representa uma reunião que articula os serviços setoriais que atendem essas famílias

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 197 com o objetivo de estabelecer estratégias de trabalho que evitem a sobreposição de ações, que considerem as dificuldades de acesso das famílias aos serviços e que busquem atender as demandas trazidas por estas famílias, ou situações de vulnerabilidades identificadas pela rede serviços e que requerem uma ação conjunta dos serviços setoriais. Nesta perspectiva, o que se problematiza não é a articulação dos serviços com vistas à satisfação das demandas da família, que ao ver da pesquisadora poderia ocorrer diretamente entre cada serviço, com o consenso e se possível a participação das famílias, mas especulação das vivencias familiares, a individualização de problemas que são sociais, a sobreposição dos saberes profissionais em relação ao modo de viver das famílias, a supervalorização das políticas sociais no enfrentamento da questão social em tempos de políticas sociais residuais, a necessidade de que a família adira ao máximo possível de serviços ao mesmo tempo, para que seja cumprida a perspectiva proteção social integral, não considerando, como apontado acima na reflexão da autora Mioto (2015, p. 708) “[...] os recursos de diferentes ordens (financeiros, de tempo e emocionais) das famílias para efetuá-las” e a busca desenfreada para que as famílias cumpram as estratégias estabelecidas nestas reuniões, que muitas vezes elas não participaram, e que beiram a técnicas de ajustes e de coerção. Ambos os procedimentos conduzem a reflexões de que basta a família seguir um plano de metas e/ou acessar determinados serviços públicos para desenvolver capacidades de lidar com os problemas enfrentados, ou seja, sistematizam e simplificam a questão social. De acordo com a autora Pereira (2016, p.148), o modelo de proteção social adotado pelo Brasil, em respeito à cartilha ideológica do neoliberalismo e do neoconservadorismo, é o que se organiza em redes, conhecido como redes de proteção social e que tem como objetivo a “Gestão de Riscos”, nesse sentido, a [...] a proteção social como simples gestão de riscos sociais será capaz apenas de, por meio de parcerias privadas mercantis ou não tentar postergar a incidência de riscos, remediar as suas consequências nocivas quando estes ocorrerem e, principalmente, oferecer condições para que os indivíduos, famílias e comunidades sejam capazes de lidar com eles por conta própria. Outro aspecto da proteção social brasileira atual é a afirmação da família como referência das políticas públicas, e a crítica mais contundente

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 198 a esta afirmação, de acordo com a autora Mioto (2010, p. 170) “[...] está associada à regressão da participação do Estado Social na provisão de bem-estar.” Para a autora, A idéia central da proposta familista reside na afirmação da tradição secular que existem dois canais naturais para satisfação das necessidades dos indivíduos: a família e o mercado. Somente quando esses falham é que interferência pública deve acontecer e, de maneira transitória. Então a idéia que vem embutida no campo da incorporação da família na política social é a idéia de falência da família. Ou seja, a política pública acontece prioritariamente, de forma compensatória e temporária, em decorrência da sua falência no provimento de condições materiais e imateriais de sobrevivência, de suporte afetivo e de socialização de seus membros. Isso corresponde a uma menor provisão de bem- estar por parte do Estado. O fracasso das famílias é entendido como resultado da incapacidade de gerirem e otimizarem seus recursos, de desenvolverem adequadas estratégias de sobrevivência e de convivência, de mudar comportamentos e estilos de vida, de se articularem em redes de solidariedade e também de serem incapazes de se capacitarem para cumprir com as obrigações familiares. (MIOTO, 2010, p. 169-170). Nesse sentido, fica evidente o quanto os procedimentos abordados são funcionais ao Estado, já que representam o acompanhamento e o monitoramento de famílias que estão gerindo seus riscos através de recursos e serviços públicos e que, de certo modo, já “fracassaram” ou estão em vias de fracassar no cumprimento de suas “funções sociais”, daí a necessidade da prevenção de riscos e do desenvolvimento de capacidades para que a intervenção pública seja transitória e mínima. Assim, mesmo diante de alguns resultados satisfatórios de tais procedimentos, como o acesso das famílias a alguns benefícios e serviços sociais, ou favorecimento destas frente a processos judiciais, acredita-se que é possível propor outras técnicas e procedimentos ou mesmo dar outro direcionamento ao trabalho social com famílias, que não representem necessariamente o acompanhamento e o monitoramento dessas famílias, ou seja, que preservem a autonomia das famílias na condução de suas vidas, apontando que as fragilidades maiores são do Estado, no quesito da Proteção Social.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 199 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A exposição tanto das normativas e orientações técnicas para a operacionalização da assistência social no âmbito dos CRAS, quanto das condições de trabalho e de formação profissional dos assistentes sociais, e ainda, do panorama de proteções social sob a égide do pluralismo de bem estar social, demonstra algo que não é tão facilmente perceptível apenas no âmbito do trabalho profissional. Ou seja, a reflexão teórica aponta contradições dos procedimentos operativos do trabalho social com famílias abordadas, que frente a um Estado neoliberal mínimo, tendem a responsabilizar as famílias pobres por suas condições de reprodução social, a reforçar ideais neoliberais, em contraposição à responsabilização efetiva do Estado no atendimento adequado às demandas dessas famílias. Mais do que isso, percebe-se nos procedimentos abordados uma tendência fiscalizadora e de monitoramento quase coercitivo de famílias pobres, em uma perspectiva em que proteção social confunde-se com ajuste a um tipo de desenvolvimento societário totalmente adverso ao bem-estar dessas famílias, voltado à exploração de suas forças de trabalho e a proteção dessas famílias às suas próprias forças, não sem o auxílio e o apoio técnico do Estado, mas visando à dependência mínima do Estado e reduzindo o “controle” da questão social à organização e ao planejamento intrafamiliar e ao usufruto de políticas sociais públicas irrisórias. Na perspectiva dos procedimentos abordados, evidencia- se a persistente responsabilização das famílias no âmbito da assistência social e vive-se assim, o velho e o novo no cotidiano profissional, à luz da PNAS, aqui, então, os inúmeros desafios que emergem ao Serviço Social comprometido com o Projeto Profissional da categoria, no trabalho social com famílias.

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 200 IAMAMOTO, Marilda Villela; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico- metodológica. 41. ed. São Paulo: Cortez, 2014. IAMAMOTO, Marilda Villela. A formação acadêmico-profissional no Serviço Social brasileiro. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 120, p. 609-639, out./dez. 2014. IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 1998. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social – CRAS. Brasília, DF, 2009. Disponível em: http://www.mds.gov. br/webarquivos/publicacao/ assistencia_social/Cadernos/orientacoes_ Cras.pdf. Acesso em: 28 jun. 2017. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Sistema Único de Assistência Social. Orientações técnicas sobre o PAIF: trabalho social com famílias do serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – FAIF. Brasília, DF, 2012. v. 2. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/ publicacao/assistencia_social/Cadernos/Orientacoes_PAIF_2.pdf. Acesso em: 30 nov. 2017. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Conselho Nacional de Assistência Social. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília, DF, 2014. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/ Normativas/tipificacao.pdf. Acesso em: 27 ago. 2017. MIOTO, Regina Célia Tamaso. Família, trabalho com famílias e Serviço Social. Serviço Social em Revista, Londrina, v. 12, n. 2, p. 163-176, jan./jun. 2010. MIOTO, Regina Célia Tamaso. Política social e trabalho familiar: questões emergentes no debate contemporâneo. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 124, p. 699-720, out./dez. 2015. MUSTAFA, Patrícia Soraya. O Ecletismo da Política de Assistência Social Brasileira: Alguns Apontamentos. In: SILVA, José Fernando Siqueira da; SANT’ANA, Raquel Santos; LOURENÇO; Edvânia Ângela de Souza (org.). Sociabilidade burguesa e Serviço Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 202 O SUBFINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE SAÚDE E A NÃO EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DE UNIVERSALIDADE DO SUS

UNDERFUNDING OF HEALTH POLICY AND NON- IMPLEMENTATION OF THE PRINCIPLE OF UNIVERSALITY OF THE SUS

Mariko Hanashiro*1 RESUMO: Esse artigo tem como objetivo realizar, através da pesquisa bibliográfica e documental, um estudo acerca da política de saúde no Brasil por meio da análise do financiamento dessa política no período de 2006-2014 e assim buscar compreender se a saúde tem se consolidado como um direito social universal. Por meio desse estudo constatou-se que devido a adoção do governo de agendas neoliberais política de saúde vem sendo subfinanciada e consequentemente ameaçada. Palavras-chave: financiamento. política de saúde. seguridade social. ABSTRACT: This article aims to achieve, by means of bibliographic and documental research, a study about the health policy in Brazil, through the analysis of the financing of the policy in the period 2006-2014 and thus seeking to understand if the health has been established as a universality social right. Through this study it was found that due to the government’s adoption of neo-liberal agendas of heath policy has been under funded and consequently threatened. Keywords: financing. health policy. social security

INTRODUÇÃO

Esse artigo é um recorte de uma pesquisa realizada sob fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)12 e tem como objetivo analisar o financiamento publico da política de saúde brasileira no período de 2006-2014 buscando verificar através de uma análise orçamentária se o Estado vem buscando universalizar a política de saúde ou se tem buscado compreender uma política mínima e focalizada favorecendo a atuação do capital privado, já que a decisão sobre o objetivo dos gastos públicos não é somente uma decisão econômica, mas uma decisão política, sendo um reflexo da correlação de forças sociais e políticas da sociedade. Para tanto o trabalho foi desenvolvido por meio do método marxiano que, por meio da pesquisa bibliográfica e documental, * Bacharel em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" (2017). Pesquisadora e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (2016). Pesquisadora e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (2015-2016). Desde 2017 atua como Assistente Social na Secretaria de Habitação - Prefeitura de São Bernardo do Campo/SP. 1 A efetivação do princípio de universalidade na política de saúde Brasileira: um estudo do orçamento público federal nos anos 2006-2014” fomentado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 203 buscou-se compreender o financiamento dessa política de forma integrada a política social e econômica do país. De antemão, pode-se afirmar que a política de saúde é subfinanciada, estando ela ameaçada pelos interesses da grande capital em transforma-la em uma mercadoria, tendo em vista que o setor é extremamente rentável1.

1 DESENVOLVIMENTO

A concepção da saúde como um direito social universal é algo recente. Há exatos 30 anos, ao elaborar a Constituição Cidadã de 1988 (BRASIL, 1988), garantiu-se a saúde como um direito social, sendo esta, ao lado da assistência social e da previdência social, parte da seguridade social brasileira2. A Seguridade Social conforme artigo 195 da Constituição teve garantido como fonte de financiamento de forma direta ou indireta a União, dos Estados, do Distrito Federal, dos municípios e das contribuições sociais. Foi previsto na Constituição também que dentro da Lei Orçamentária Anual estaria garantido uma parcela deste para a seguridade social. Com base na Constituição de 1988, da Lei n. 8.080/90 e da Lei n. 8.142/90 (BRASIL, 1990a, 1990b), garantiu-se que a saúde fosse um direito de todos e dever do Estado, tendo como princípios e diretrizes a universalidade de acesso aos serviços, integralidade da assistência, igualdade de assistência à saúde, com direito à informação, descentralização político administrativa, participação da comunidade no controle social por meio de conferências e conselhos. Essa conquista foi fruto da organização da população por meio do Movimento de Reforma Sanitária3 que ao se organizar conseguiu tensionar na Assembleia Constituinte, disputando forças com os interesses da classe dominante e garantiu que a saúde fosse um direito universal, sendo esse um marco histórico. No fim do século XIX e início do século XX os trabalhadores influenciados pelas ideias europeias trazidas pelos imigrantes começam a

2 A seguridade social se funda no status de cidadania e estabelece o direito a um padrão de vida mínimo para todos, financiado com recursos tributários (KERSTENETZKY, 2012. p. 5). 3 O Movimento da Reforma Sanitária foi um movimento composto por intelectuais, trabalhadores da saúde e sociedade civil que atuou a partir da década de 1970 no Brasil, incorporando uma dimensão política à saúde por buscar reverter a lógica assistencialista da saúde, e defendê-la como direto de todo cidadão, ademais propunha a integração das ações da saúde em um único sistema, a gestão administrativa e financeira descentralizada, e a promoção da participação e do controle social das ações de saúde.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 204 discutir e se organizar exigindo a regulamentação do trabalho e a garantia de direitos, pois até então eram submetidos a jornadas exorbitantes, trabalhavam em condições precárias e recebiam salários baixíssimos. Por meio dessa organização, conquistou-se alguns direitos mediante contribuição prévia, por meio do seguro social4. Dessa forma através das Caixas de Aposentadoria e Pensão, posteriormente organizadas em Institutos Nacionais de Aposentadoria e Pensão, organizados por categorias, os trabalhadores urbanos e formais passam ter direito a alguns benefícios como aposentadoria, auxílio doença, pensão, dentre outros. Dentre esses benefícios estava a assistência à saúde. Alguns Institutos passaram então a criar hospitais para atender seus contribuintes. Tendo em vista que a maior parte da população brasileira na época era trabalhadora informal e/ ou trabalhadora rural, a parcela atendida pelos Institutos de Aposentadoria e Pensão era pequena estando a maior parte da população a mercê de curandeiras ou da filantropia, por meio das Santas Casas de Misericórdia. Vale afirmar também que desde a década de 1950 a cura de doenças passa a ter um formato hospitalocêntrico, medicalocêntrico influenciado pelo modelo norte americano. Nesse período o setor privado passa a se interessar também na assistência à saúde devido a rentabilidade do setor, firmando parcerias entre o setor público e o setor privado. Tendo em vista que a Assembleia Constituinte foi um espaço de disputas de interesses, o setor privado teve seu interesse mercadológico garantido na Constituição de 1988 por meio do artigo 199 que visava garantir a participação do setor privado de forma suplementar a saúde pública.5 Apesar da grande conquista de um Sistema Único de Saúde universal e gratuito amparado pela Constituição como parte da Seguridade Social brasileira, pela Lei n. 8.080/90, pela Lei n. 8.142/1990 a conjuntura político-econômico da década de 1990 influenciada pelo neoliberalismo6

4 O seguro social é concebido pela primeira vez na Alemanha no século XIX por Otto Von Bismark e tem como característica o acesso a direitos mediante contribuição prévia voltada para os trabalhadores e sendo financiado parte pelos empregados, parte pelos empregadores e parte pelo Estado. 5 Para aprofundamento da história da política de saúde buscar autores como Maria Inês de Souza Bravo (2006), Paul Singer (1978), Maria Rita Bertolozzi e Rosangela Maria Greco (1996), Renato Tapajós (2006) dentre outros. 6 A ideologia neoliberal, contém fortes influências do liberalismo clássico de Adam Smith e David Ricardo e tem como característica a redução da participação do Estado na economia, sendo fortemente influenciado pelo mercado, onde o papel do Estado na proteção social é mínimo, sendo restrito à políticas públicas paliativas, focalizadas, meritocráticas, fragmentadas e de curto prazo.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 205 que tem como marco o Consenso de Washington7 e por interesses da classe dominante colocou em disputa a garantia dos direitos sociais em prol da estabilização econômica do país, buscando assim um Estado Mínimo para o social e Máximo para o capital. Dessa forma, deve-se ter em vista a existência de uma disputa constante entre os dois projetos onde um defende uma um sistema único, gratuito e qualidade para todos e outro defende um sistema focalizado e pobre, destinado aos pobres ao mesmo tempo que o capital privado explora esse a saúde como uma mercadoria, conforme afirma autores como Potyara Pereira (2010), Giselle Alice Martins Canto e Fabiana Neves (2006). Nos ataques a seguridade social pode-se destacar a instituição do Fundo Social de Emergência (FSE), posteriormente nomeada de Desvinculação Real da União (DRU) que permitia a retirada de 20% do orçamento da seguridade social em prol do superávit primário, a isenção dos gastos pessoais com saúde do Imposto de Renda, a privatização da gestão (de espaços sociais, inclusive da saúde) por meio de entidades do terceiro setor, a reforma da previdência social, a terceirização das atividades meio, dentre outros. Dessa forma, percebe-se um nítido desmonte da seguridade social recaindo na política de saúde por meio da realização do mix público- privado, da retirada de orçamento da política de saúde, do incentivo aos planos de saúde que provocaram o incentivo ao desenvolvimento do capital privado e o desmonte da política de saúde por meio do sucateamento desta e da focalização da política de saúde.8 Durante os governos Lula e Dilma, apesar do leve aumento no financiamento das políticas sociais, não de forma a universalizar as políticas, mas principalmente incentivando políticas sociais focalizadas como o Bolsa Família, a política macroeconômica manteve-se semelhante à política adotada pelo Fernando Henrique Cardoso (FHC), como previamente já havia priorizando o superávit primário, pagando juros e encargos da dívida pública, incentivando as exportações do agronegócio. Dessa forma mantém-se a mesma ótica em relação as políticas sociais que o FHC não ocorrendo uma ruptura.

7 Segundo Castelo (2013), o Consenso de Washington foi um encontro promovido pelo Institute for Internacional Economics (IIE) em que reuniu a cúpula das classes dominantes imperialistas para discutir medidas necessárias à adequação da agenda política dos países latino americanos à era neoliberal “para a promoção do crescimento econômico nas áreas periféricas do capitalismo.” 8 Para aprofundamento da temática, buscar autores como Elaine Rossetti Behring (2003), Graça Druck e Luiz Filgueiras (2007), Juliana Souza Bravo de Menezes, Maria Inês Souza Bravo, João Pedro Rodrigues e Déborah Barbosa da Silva (2015).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 206 Apesar desses ataques é impossível negar os avanços da política e a importância que o SUS tem nos dias de hoje. Segundo dados de 2011 (PAIM, 2015), o SUS atendia 190 milhões de beneficiários, sendo reconhecido mundialmente como o maior sistema público de saúde do mundo, sendo o Brasil o único país com mais de 100 milhões de habitantes que tem um sistema único, público e gratuito, tento mais de 145 milhões de pessoas que dependem exclusivamente do SUS. Além disso, este movimentava 90% do mercado de vacinas e realiza 20 milhões de consultas. Esses números demonstram a relevância que esse Sistema tem nos dias de hoje, possibilitando o acesso da população à saúde sem fazer distinção, permitindo que pessoas que nunca tiveram acesso formal à política de saúde (não contribuintes excluídos do trabalho formal) pudessem pela primeira adentra-lo. Ainda assim, o SUS apresenta ainda diversas falhas, constantemente anunciadas pela grande mídia como demora no atendimento, falta de remédios ou materiais, dentre outros, mostrando que ele não se efetivou totalmente como previsto na Constituição. Sabe-se, porém, que um dos elementos para a consolidação de um Sistema Único de Saúde público, gratuito, universal e de qualidade é por meio da garantia de um orçamento para a política. A compreensão desse orçamento não se faz de forma desatrelada à compreensão da apropriação do Fundo Público Brasileiro, devendo compreender que o objetivo dos gastos públicos não é somente uma decisão econômica, mas uma decisão política, sendo um reflexo da correlação de forças sociais e políticas da sociedade. Há por exemplo, diversos discursos e documentos que afirmam- se que o valor gasto com as políticas sociais é exorbitante sendo necessário reduzi-lo para conter uma grande crise econômica. Como ilustração desse discurso pode-se citar o documento “Carta Ponte para o Futuro” publicado em 2015 pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)9. Atrelado a esse discurso há os interesses do capital privado em mercantilizar o acesso à saúde por meio de planos de saúde, hospitais com dupla porta de entrada, e privatização da gestão por meio de parcerias público-privadas como as Organizações Sociais (OSs), Organizações de Sociedades Civis de Interesses Públicos (OSCIPs) e Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), são empresas públicas brasileiras.

9 Esse documento apresentava uma agenda de governo do PMDB, posta em prática após o Impeachment da presidenta Dilma buscando a aplicação de medidas ortodoxas que buscavam diminuir os gastos públicos em políticas sociais como pressuposto para superação da crise econômica.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 207 Segundo Salvador (2015) o Fundo Público10 é um espaço de mobilização de recursos adquiridos por meio da tributação com a finalidade de intervir em variados setores. Este é um espaço de intervenção do Estado na economia e na sociedade e tem o caráter dual e contraditório de financiar tanto a acumulação do capital quanto a reprodução da força de trabalho, sendo um espaço dinâmico e em constante disputa entre os interesses da classe dominante e do proletariado. O Fundo Público brasileiro, pautado ao longo do século XX e começo do século XXI por ideários liberais ou neoliberais é historicamente financiado pela classe trabalhadora e usufruído pela classe dominante. Apesar de na Constituição de 1988 constar no artigo 153 uma tributação progressiva dados recentes mostram que no Brasil, a maior parte dos tributos arrecadados são advindos do consumo, sendo pouquíssimo tributado ou não tributados propriedades, transações financeiras, lucro dos bancos e lucro de multinacionais ou grandes fortunas, além de não haver tributação para lanchas, jatinhos, helicópteros e iates.11 Além disso, ao analisar a dimensão financeira do Fundo Público pode-se compreender o compromisso deste com a classe dominante por meio do destino de grande parte do orçamento para o Refinanciamento da Dívida Pública e para o Orçamento Fiscal, restando uma pequena parcela orçamentária para o Orçamento da Seguridade Social. No ano de 2006 segundo dados da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) a seguridade social deteve somente 17% do orçamento total da união, destinando-se no mesmo ano 50% do orçamento

10 O fundo público envolve toda a capacidade de mobilização de recursos que o Estado tem para intervir na economia, seja por meio das empresas públicas ou pelo uso das suas políticas monetária e fiscal, assim como pelo orçamento público. Uma das principais formas da realização do fundo público é por meio da extração de recursos da sociedade na forma de impostos, contribuições e taxas, sendo o resultado, portanto, da tributação das diversas formas de renda da economia: salário, lucro, juro e renda da terra. Esses recursos são apropriados pelo Estado para o desempenho de múltiplas funções (SALVADOR, 2015, p. 9). 11 Segundo dados do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região em 2013 51,3% dos impostos arrecadados advinham de bens e serviços, enquanto isso, a carga tributária sobre patrimônio tem participação irrisória sobre o montante de tributos arrecadados, sendo menos de 4% do total; Segundo dados da Receita Federal, o Imposto Territorial Rural (ITR) gera uma arrecadação irrisória, representando menos de 0,04%, privilegiando assim os grandes proprietários de terra e as propriedades improdutivas. O Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE) de 2006 afirmou, por exemplo, que os imóveis rurais com mais de mil hectares ocupam mais de 43% das terras e que essas terras são pertencentes a menos de 1% dos proprietários rurais (SINDICATO DOS BANCÁRIOS E FINANCIÁRIOS DE SÃO PAULO, OSASCO E REGIÃO, 2015).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 208 para o Refinanciamento da Dívida Pública12 e 33% para o orçamento fiscal. Já em 2014 43% do orçamento foi destinado para o orçamento fiscal, 30% para o orçamento da seguridade social e 27% para o refinanciamento da dívida pública. Apesar do aumento do orçamento destinado para a Seguridade Social no período, através desses dados, pode-se confirmar o grande compromisso do Estado com o capital por meio do refinanciamento da dívida pública e do orçamento fiscal. Além disso, como já citado anteriormente, desde a implantação do ideário neoliberal na década de 1990, diversas medidas foram criadas para benefício do capital em detrimento do social como a criação do Fundo Social de Emergência em 1994 que posteriormente foi nomeado de Desvinculação Real da União13 que permite a retirada atualmente de 30% do orçamento da seguridade social em prol do equilíbrio fiscal, a desoneração tributária14 de diversos segmentos econômicos como agronegócio, indústria de automóveis, bem duráveis, materiais e outros e a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar n. 101/2000 (BRASIL, 2000)15. Pode-se então afirmar que Fundo Público é financiado pela classe trabalhadora e é apropriado pelo grande capital, sendo então a classe trabalhadora duplamente penalizada, pois paga altíssimos impostos e não recebe o retorno desses impostos por meio das políticas sociais. Compreendendo minimamente o funcionamento do Fundo Público Brasileiro e a disputa entre a garantia da saúde como direito social versus a saúde como mercadoria submetida a interesses do capital, pode-se analisar o orçamento da política de saúde no período de 2006- 2014 buscando compreender como essa disputa tem-se travado e quais os desafios para garantia de um financiamento digno para essa política.

12 Ao destinar grande parte do orçamento para o refinanciamento da Dívida Pública beneficia-se os interesses do Capital tendo em vista que os Fundos de investimento e Instituições financeiras que segundo Salvador (2010) são a grande parte dos donos dos títulos da dívida pública. 13Segundo a ANFIP, somente em 2014 a seguridade social perdeu R$ 622.939.000.000,00 com a DRU. 14 Segundo dados do Ministério da Fazenda, nos anos de 2012 e 2013 as desonerações tributarias totalizaram R$ 35,9 bilhões de reais. 15 Criada em 4 de maio de 2000 que limita as despesas não financeiras do orçamento e prioriza o pagamento de juros que permitem a apropriação financeira do capital.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 209 FIGURA 1 - Despesa com a Saúde nos anos de 2006-2014 (%) do PIB

Fonte: World Health Organization (2014). Segundo dados apresentados pela Organização Mundial da Saúde, o gasto total com Saúde no período de 2006-2014 foi de aproximadamente 8% do PIB. Ironicamente, apesar de constitucionalmente a política de saúde ser pública devendo o setor privado agir de forma a complementar a saúde pública, na prática pode-se perceber que o investimento do setor privado foi em todos os anos superior ao investimento público, sendo aproximadamente 54% da saúde brasileira financiada pelo capital privado.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 210 FIGURA 2 - Investimento Público per capita em Saúde no ano de 2014 nos 10 países mais ricos do mundo

Fonte: World Health Organization (2014).

Fonte: World Health Organization (2014).

Segundo dados do Organização Mundial de Saúde apresentados na figura acima pode-se perceber uma diferença drástica de investimentos públicos em saúde quando analisados de forma per capita. No ano de 2014, enquanto países como EUA, França, Alemanha, Itália, Reino Unido e Japão tiveram um investimento acima de US$ 2000,00 os países Brasil, Rússia, Índia e China, pertencentes ao BRICs, tiveram um investimento abaixo de US$ 400,00 per capita, tendo a Índia um investimento ínfimo de US$ 22,53 per capita. Ainda, segundo a mesma fonte, em 2014, somente o Brasil e a Índia dentre os dez países mais ricos do mundo tiveram um investimento privado acima do investimento público. Isso se dá principalmente porque os países pertencentes ao grupo de países Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (BRICS) estarem submetidos a políticas semelhantes dos órgãos multilaterais como o Banco Mundial e o FMI, privilegiando as políticas econômicas em detrimento das políticas sociais como pode ser melhor analisado no gráfico a seguir.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 211 FIGURA 3 - Despesas com a saúde no Brasil nos anos de 1995, 1997, 1999, 2001, 2003, 2005, 2007, 2009, 2011 e 2013 (US$ milhões de dólares).

Fonte: World Health Organization (2014). Apesar do investimento público, ser considerado baixo, deve-se reconhecer, como mostra o gráfico acima, que houve um nítido crescimento das despesas com a saúde pública desde 1995. Deve-se frisar, porém, que esse crescimento ocorre de forma mais intensa a partir da entrada do governo Lula. Não obstante, o capital privado apresentou um grande crescimento durante o período, tendo em todos os anos investido um valor maior do que o capital público. É necessário afirmar que crescente investimento do capital privado atrelado a atuação da mídia e o baixo orçamento público, ao lado da orientação político-econômica do Estado provoca a fetichização dos Planos de Saúde e do atendimento de saúde privado, tornando a política de saúde ao invés de uma política universal, uma política focalizada voltada para aqueles que não têm condições de ter acesso à saúde via mercado. Por meio desse pensamento, considera- se faltosos aqueles que dependem da política pública, permitindo que se destine políticas pobres aos pobres (PEREIRA; STEIN, 2010). No Brasil, a política pública de saúde é custeada, como já explicada anteriormente pela União, pelos estados e pelos municípios. Segundo dados da Câmara dos Deputados (CONOF) em 2011 45,4% das

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 212 despesas totais com saúde foram arcadas pela União, enquanto 25,7% pelos estados e 28,8% pelos municípios. FIGURA 4 - Evolução das despesas do Ministério da Saúde com ações e serviços de saúde pública 2008, 2010, 2012 e 2014.

Evolução das despesas do Ministério da Saúde com ações e serviços de saúde pública 2008, 2010, 2012 e 2014 Ano % em relação ao PIB 2008 1,66 2010 1,6 2012 1,7 2014 1,71 Fonte: Elaborado por Mariko Hanashiro, baseado em ANFIP (2014, p. 113).

Como pode ser observado na tabela acima, durante o período analisado apesar de haver um pequeno aumento no investimento entre 2008 e 2014, pode-se afirmar que foi destinado um valor ínfimo com a política de saúde por parte da União, não chegando a 2% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. FIGURA 5 - Gasto federal per capita com saúde nos anos de 2008, 2010, 2012 e 2014 (R$).

Fonte: Elaborado por Mariko Hanashiro, baseado em ANFIP (2014, p. 113).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 213 Observa-se que entre os anos de 2008 e 2014 houve um aumento no gasto federal per capita, porém é preciso afirmar que é necessário que aumente ainda mais o investimento federal. Afinal, em 2014 investiu-se R$ 478,42 per capita. Esse valor, significa que o Estado investe menos de R$ 1,50 por dia na saúde de cada habitante brasileiro, segundo o Conselho Nacional de Saúde. FIGURA 6 – Evolução das despesas do Ministério da Saúde, com ações e serviços de saúde pública, por subfunção, em 2008, 2010, 2012 e 2014 (valores correntes em R$ milhões). Subfunção 2008 2010 2012 2014 Administração geral 5892 7789 9347 10637 Assistência aos povos indígenas 284 327 732 1116 Assistência hospitalar e ambulatorial 25495 31622 39294 44514 Atenção básica 8603 10349 14463 19056 Saneamento básico rural 294 182 184 168 Saneamento básico urano 898 861 958 610 Suporte profilático e terapêutico 4751 6063 8648 10201 Vigilância epidemiológica 2218 2995 3722 4.252 Vigilância sanitária 273 282 333 347 Outras programações 1562 1858 2403 2222 Soma 500270 62329 80.085 94235 Fonte: Elaborado por Mariko Hanashiro, baseado em ANFIP (2014, p. 114). Pode-se analisar por meio na Figura VII em valor corrente das despesas do Ministério da Saúde aumentou dos anos de 2008 à 2014. Apesar disso, por meio dos gráficos acima, percebe-se que quase não houve alteração percentual no destino do orçamento, ficando este majoritariamente com a assistência hospitalar e ambulatorial (48% em 2014), seguida da atenção básica (21% em 2014). É válido afirmar, porém, que a ANFIP desconsidera nas tabelas e nos gráficos acima o pagamento de inativos, de juros, encargos e amortização de dívidas e transferências de renda às famílias. A abertura na Constituição de 1988 reforçada pelas Leis Orgânicas da Saúde a respeito da participação privada na saúde como forma complementar no país, somada com a agenda neoliberal adotada pelos governos brasileiros, faz com que ocorra o desmantelamento da política de saúde pública com cobertura universal. Desta maneira ocorre uma focalização indireta do SUS para os mais pobres, enquanto o resto da população utiliza planos privados. Essa linha de raciocínio faz com

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 214 que ofereça serviços mínimos e de má qualidade para aqueles que são considerados faltosos e incapazes pela sociedade. Segundo dados do Índice de Desempenho do SUS (IDSUS) 2010 pode-se afirmar que quanto maior a complexidade do atendimento, menor o acesso da população a esses serviços. A Atenção Básica possui uma boa nota na maioria dos estados (exceto o Pará) significando que a maior parte da população possui um acesso facilitado à atenção básica. Porém já na média complexidade praticamente só a população do sudeste e sul possui um bom acesso, ficando a maior parte do país com uma nota extremamente baixa. O documento comprovou que a alta complexidade é praticamente inacessível para a maior parte da população brasileira, exceto o Estado de São Paulo e uma parte do Rio Grande do Sul. Dessa forma, o documento assume que os resultados apontam que o SUS tem deficiências na regionalização. Além disso, dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na Pesquisa de Orçamentos familiares (POF 2008-2009) o gasto com saúde era de 7,2% do total da renda das famílias, sendo gastos na maior parte com compra de remédios (48,6%), planos de saúde (29,8%) e com tratamento dentário (4,7%). Nas famílias de menor renda percebe-se um gasto maior com exames (5,1%) e com consultas médicas (4,4%). Dessa forma, por meio dos dados apresentados durante o trabalho pode-se afirmar que a política de saúde não se efetiva em sua totalidade garantindo uma política universal, gratuita e de qualidade, tendo como um de seus motivos o subfinanciamento da política de saúde, já que a maior parte do orçamento público é destinado para o orçamento fiscal e para o refinanciamento da dívida pública ao invés de garantir a efetivação da seguridade social brasileira. Sabe-se também que o subfinanciamento é fruto dos interesses da classe dominante e da agenda neoliberal adotada pelos governos desde a década de 1990 até a atualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar desse trabalho não esgotar totalmente a temática, devido a complexidade do tema, por meio do estudo bibliográfico e documental pode-se constatar que apesar de um pequeno aumento orçamentário na política de saúde no período de 2006-2014 a política de saúde é subfinanciada, estando o orçamento público a mercê dos interesses do Capital, ao mesmo

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 215 tempo, pode-se afirmar que o princípio de universalidade do SUS não se efetiva em sua totalidade, sendo o financiamento um motivos para a não efetivação desse princípio. É válido afirmar também que no período posterior à 2014 houve um maior tensionamento na disputa orçamentária devido os impactos da crise econômica mundial e da intensificação da corrente neoliberal que até então buscava realizar uma mínima conciliação dos interesses entre as classes. Como consequência desse tensionamento houve a aprovação de medidas como a PEC que prevê o congelamento dos gastos sociais até 2035. Cabe a nós como sociedade brasileira lutar pela garantia dos direitos sociais e pela emancipação humana.

REFERÊNCIAS

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Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 219

PREPOSTOS NEOLIBERAIS PARA SUA RADICALIZAÇÃO: UM BREVE OLHAR NAS CIFRAS PARA SEGURIDADE SOCIAL

NEO-LIBERAL PREPOSITIONS FOR ITS RADICALIZATION: A BRIEF LOOK AT THE FIGURES FOR SOCIAL SECURITY

Pedro Dantas Menezes Zornoff Táboas1* RESUMO: O presente artigo tem como objetivo trazer alguns antecedentes políticos, econômicos e sociais da atual radicalização do neoliberalismo, culminados no impedimento presidencial e Emenda Constitucional n. 95/2016 (limite nos gastos sociais). Abordando a disputo de projetos no campo político, ressaltando os discursos da financeirização brasileira, seus rebatimentos no campo da política social e as cifras para a Seguridade Social promulgadas nas leis orçamentárias anuais entre 2015 e 2017.

Palavras chave: neoliberalismo. seguridade social. poder. ABSTRACT: The present paper aims to brings some of political, economic and social antecedents for the current neoliberalism’s radicalization, culminated in the presidential impeachment and Constitutional Amendment n° 95/2016 (social spending limits). Approaching the dispute of projects in political field, highlighting the Brazilian financialization’s discourses, its refutations inthe field of social policy and the figures for Social Security promulgated in the annual budget laws between 2015 and 2017. Keywords: neoliberalism. social security. power.

INTRODUÇÃO

Toda pesquisa para ser produzida utiliza-se de, em suas múltiplas acepções, uma noção de método. A ordem produtivista vigente na contemporaneidade nos remete ao renascentismo e a desvinculação do saber para com a ordem eclesiástica, rompendo com a fonte de poder sobre a razão que predominante se apoiava a igreja na ordem medieval, dando caminho ao desenvolvimento de uma nova sociedade baseada na produção e geração de lucro onde se predomina a mecanização do corpo pela técnica e adestramento da mente pelo método (OLIVEIRA, 1998).

* Mestrando no programa de Pós-graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC. Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (2016). Foi bolsista de projeto de extensão Educação para Jovens e Adultos do grupo de extensão Núcleo Agrário Terra e Raíz, sob orientação da Profa. Dra. Onilda Alves (2011), bolsista de projeto de extensão Trabalho Social e Comunidade do grupo de extensão Núcleo Agrário Terra e Raíz, sob orientação da Profa. Dra. Raquel Sant’Ana (2012) e, bolsista extensionista no grupo de extensão Centro Permanente de Cultura, sob orientação da Prof. Dr. Adriano Fenerich (2013) - vinculado a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 221 O método existe para ajudar a construir uma representação adequada das questões a serem estudadas. Ele foi constituído no âmbito de um movimento cuja a origem que remonta os séculos XVI e XVII e que valoriza a capacidade do pensamento racional. Acreditava-se que, pelo uso da razão, seria possível aos homens não só conhecer o mundo mas, além disso, transformá-lo. (OLIVEIRA, 1998, p. 22). Dá-se o nome de doenças epidêmicas a todas aquelas que atacam ao mesmo tempo e com características imutáveis, grande número de pessoas. Trata-se da percepção não mais essencial e ordinal, mas quantitativa e cardial, a doença específica sempre se repete, a epidemia nunca inteiramente (FOUCAULT, 1977). Nas devidas proporções pode-se caracterizar assim o neoliberalismo, uma doença que ataca as nações, em alguns momentos com sintomas epidêmicos, tal a financeirização econômica a introdução da governança corporativa e a cortes substanciais nos sistemas de seguridade social. No âmbito foucaultiano, o desenvolvimento do homem moderno o permite desempenhar dois papéis: ao mesmo tempo no fundamento de todas as positividades e no elemento das coisas empíricas. Desenvolve- se o elemento da pura contradição. Nos séculos XVII e XVIII o homem, no campo científico, não existia, estava fixado apenas na vida, trabalho e linguagem. No século XIX, a partir da elevação da ordem burguesa, estudos da psicologia e sociologia desenvolvidos põem o homem de fato como objeto de estudos. “Vê-se que a ciências humanas não são uma análise do que o homem é por natureza, são antes uma análise do que se estende entre o que o homem é em sua positividade.” (FOUCAULT, 2000). Assim facilmente acredita-se que o homem libertou-se de si mesmo, desde que descobriu não estar nem no centro da criação, nem no núcleo do espaço. “Foi o retiramento da máthêsis e não o avanço da matemática que permitiu o homem construir-se como objeto do saber.” (FOUCAULT, 2000). Entretanto, é a retirada da máthêsis, a razão da lógica de Descarte, é o que deixa as ciências sociais uma ciência ambígua em seus intervalos, coloca-se o homem como objeto de estudos, mas não o homem indivíduo. Observa-se como é que se cria o saber, como constituem-se as formas de existência nas estruturas discursivas a ponto de que as condições vivenciadas permitam que as ideias existam e que os discursos traduzam-se em uma verdade, e que a verdade seja a forma de existência e manutenção do poder, onde a sobrecarga significante das palavras mascaram tanto quanto traduzem (FOUCAULT, 2000, 2008) a totalidade presenciada no campo analisado.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 222 Para compreender-se a narrativa presente, a maneira mais realista de explorar a generalidade da comunicação se atendo aos problemas inseparavelmente práticos e teóricos (BOURDIEU, 1999). Deve-se levar em extrema consideração a posição ocupada por quem analisa, por quem faz o discurso e para quem se faz o discurso, por exemplo um deputado de linha política conservadora populista, financiado por latifundiários adeptos da monocultura, que tem sua base eleitoral uma população evangélica que recebe dois salários por mês e em seu discurso fala sobre família, “bons costumes” e “cidadão de bem” ou um deputado que representa setores do mercado financeiro e faz um discurso com termos técnicos de economia para seus investidores do mercado financeiro ou pseudo investidores da classe média que sonham um dia chegar a elite financeira. Ambos analisados por um pesquisador de ciências sociais. O que é posto de maneira relativamente diferente quando se tem camadas ou setores de igualdade ou equivalentes. Enquanto um jovem físico interroga um outro jovem físico (ou um ator um outro ator, um desempregado um outro desempregado, etc.) com o qual ele compartilha a quase totalidade das características capazes de funcionar como fatores explicativos mais importantes de suas práticas e de suas representações, e ao qual ele está unido por uma relação de profunda familiaridade, suas perguntas encontram sua origem em suas disposições objetivamente dadas às do pesquisado; as mais brutalmente objetivantes dentre elas não têm nenhuma razão de parecerem ameaçadoras ou agressivas porque seu interlocutor sabe perfeitamente que eles compartilham o essencial do que elas o levarão a dizer e, ao mesmo tempo, os riscos aos quais ele se expõe ao declarar-se. (BOURDIEU, 2001, p. 698). Assim as posições ocupadas por todos os participantes na totalidade da pesquisa deve ser cuidadosamente levada em conta para não se cometer equívocos a ponto de prejudicar substancialmente a pesquisa. “Principalmente esforçando-se para fazer um uso reflexivo dos conhecimentos adquiridos da ciência social para controlar os efeitos da própria pesquisa e começar a interrogação já dominando os efeitos inevitáveis das perguntas.” (BOURDIEU, 2001, p. 694). Podendo- se explorar deste recurso para análise de um discurso, entrevista e, até mesmo, em certos pontos, de um debate teórico. Deve-se tomar a devida atenção ao analisar os números e discursos, obter um aporte teórico e um

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 223 questionamento sobre o que é ciência e o que é fazer ciência, ao fazer os cálculos e comparações quantitativas e até qualitativas. Em alguns casos, fazer mais que o necessário pode resultar no mesmo sentido e sentimento que fazer menos (BOURDIEU, 1999), sendo mais preciso que o necessário, super relativando a pesquisa, seus objetivos, fugindo do objeto a ser desenvolvido. A questão de saber o que é fazer ciência ou, mais precisamente, o esforço dispendido para saber o que faz o cientista, quer ele saiba ou não o que faz, não é somente uma indagação sobre a eficácia e o rigor formal das teorias e métodos disponíveis, mas um questionamento dos métodos e teorias em sua própria utilização para determinar o que fazem aos objetos e os objetos que fazem. A ordem segundo a qual deve ser conduzida essa interrogação é imposta tanto pela análise propriamente epistemológica dos obstáculos do conhecimento quanto pela análise sociológica das implicações epistemológicas da sociologia atual que definem a hierarquia dos perigos epistemológicos e, por consequência, das urgências. (BOURDIEU, 1999, p. 21-22). Nesse contexto politico econômico e social, caracterizado por um jogo de múltiplos campos, atores e grupos, que demonstram diferentes ideias para apropriação e disputa destes campos, mas tem em comum o interesse (BOURDIEU, 2008) e o investimento no jogo social, ou seja, admitem que o jogo deve ser jogado e dão importância ao jogo social, o que se passa é importante para os envolvidos (BOURDIEU, 2008). Todo campo social, seja o campo científico, seja o campo artístico, o campo burocrático ou o campo politico, tende a obter daqueles que nele entram essa relação com o campo que chamo de illusio. Eles podem querer inverter as relações de força no campo, mas, por isso mesma, reconhecem os alvos, não são indiferentes. Querer fazer a revolução em um campo e concordar com o essencial do que é tacitamente exigido por esse campo, a saber, que ele é importante, que o que está em jogo aí é tão importante a ponto de se desejar aí fazer a revolução. (BOURDIEU, 2008, p. 140). Muitos que dissertam sobre a arte de ser sociólogo ou a maneira científica de se fazer ciência sociológica separam, dissociam método, teoria e técnicas de pesquisa (BOURDIEU, 1999). É interesse do pesquisador, devir do sociólogo, no método, analisar a construção e abordagem discursiva, levando em conta a totalidade ambientada, a razão

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 224 epistemológica, do que venha a ser pesquisado, observar as contradições que venha a cair e superá-las de maneira a evitar uma influência negativa ao resultado final do trabalho desenvolvido. Um verdadeiro discurso em volta do método, que na falta de contestação séria, ameaça impor uma imagem desdobrada do trabalho científico (BOURDIEU, 1999). Portanto, é necessário submeter as operações da prática sociológica à polêmica da razão epistemológica para definir e, se possível, inculcar uma atitude de vigilância que encontre no conhecimento adequado do erro e dos mecanismos capazes de engendrá-lo um dos meios de superá-lo. A intenção de dar ao pesquisador os meios de assumir por si próprio a vigilância de seu trabalho científico opõe-se às chamadas à ordem dos censores, cujo negativismo peremptório só pode suscitar o terror em relação ao erro e o recurso resignado a uma tecnologia investida da função de exorcismo. (BOURDIEU, 1999, p. 11-12). Levantando-se com a devida análise requerida que epistemologia distingue-se da metodologia abstrata, situa-se no apreender a lógica do erro para construir a lógica da descoberta verdadeira (BOURDIEU, 1999). Para ultrapassar o debate acadêmico, usando da razão epistemológica para acessibilizar uma reflexão teórico metodológica da ciência sociológica, a questão da filiação de uma pesquisa sociológica a uma teoria particular social – por exemplo Marx, Webber, entre outros – é sempre secundária a questão de saber se tal pesquisa tem a ver com a ciência sociológica (BOURDIEU, 1999). Para ultrapassar esses debates acadêmicos e as maneiras acadêmicas de superá-los, é necessário submeter a prática científica a uma reflexão que, diferentemente da filosofia clássica do conhecimento, aplica-se não à ciência já constituída, ciência verdadeira em relação à qual seria necessário estabelecer as condições de possibilidade e de coerência ou os títulos de legitimidade, mas à ciência em vias de se fazer. Semelhante tarefa, propriamente epistemológica, consiste em descobrir no decorrer da própria atividade científica, incessantemente confrontada com o erro, as condições nas quais é possível tirar o verdadeiro do falso, passando de um conhecimento menos verdadeiro a um conhecimento mais verdadeiro, ou melhor, como afirma Bachelard, “próximo, isto é, retificado”. (BOURDIEU, 1999, p. 17).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 225 No âmbito do estudo do neoliberalismo persegue-se a identificação do objeto da análise econômica a toda conduta racional. Toda conduta que aceita a realidade deve poder resultar de uma análise econômica (FOUCAULT, 2005). Tendo a mão invisível – reguladora autônoma da economia – estabelecido um lugar vazio, mas secretamente ocupado, na sociedade, se firma como um resto de um pensamento teológico, um deus providencial que ocupa os processos econômicos, é o correlativo do homo economicus que o faz funcionar como sujeito de interesse no interior da totalidade que lhe escapa, mas funda a racionalidade de seu egoísmo. O neoliberalismo possui uma razão de moralidade crítica, o Estado quase sempre está posto em questão, implementa-se a partir de uma ideia de fobia do Estado, pautado nas premissas de que o Estado possui um dinamismo próprio, uma tendência intrínseca a crescer, um imperialismo endógeno, portanto, “O primeiro elemento de fato a percorrer toda a temática geral da fobia de Estado é essa força intrínseca em relação ao seu objeto-alvo, que seria a própria sociedade” (FOUCAULT, 2005, p. 259) e uma segunda característica posta da fobia de Estado seria o parentesco evolutivo, uma espécie de continuidade genética, entre suas diferentes formas: Estado administrativo; Estado burocrático; Estado fascista; Estado totalitário. Assim, a expansão crescente sobre o objeto alvo e as formas que engendram-se umas nas outras a partir de um dinamismo específico criam um lugar crítico comum para o neoliberalismo. Posto como exemplo a critica neoliberal de Hayek a Keynes, sobretudo, ao plano Beverdge de seguridade social a ser implantado no Reino Unido, trabalhando a ideia de que o crescente gasto social tendenciaria a um regime totalitário no Reino Unido, comparando aos caminhos percorridos pela Alemanha Bismarkiana que criou os aspectos e condições para o regime nazista comanda por Hitler se instaurar. Assim, argumenta que governamentalidade de partido está na origem do estado totalitário (FOUCAULT, 2005). No presente contexto o Estado mantém-se respeitado, pois nele tem-se interesse jurídico, nele fixa-se o contrato da sociedade, na perspectiva de que o neoliberalismo necessita de aparatos para garantia dos interesses do capital privado (NEGRI; HARDT, 2016) e tem-se as empresas como centro, e diferentemente do liberalismo, não se importa com o monopólio, a necessidade de contratos em suas diversas formas existe, mas “[...] se respeita o contrato não porque há contrato, mas porque há interesses.” (FOUCAULT, 2005, p. 373).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 226 2 PRECEDENTES BRASILEIROS PARA A RADICALIZAÇÃO NEOLIBERAL

A experiência humana se desenvolve na medida em que se ocupa lugares de poder, poder é o processo mais fundamental na sociedade, a sociedade é dividida em valores e instituições, e é definida pelas relações de poder (CASTELLS, 2013). O poder se mantém através da violência. Violência tanto física, quanto econômica ou social, advinda de meio institucional, empresarial, militar ou até social. O poder está na capacidade relacional entre sujeitos, os que tem e os que não tem, está na capacidade de dominação de atores – organizações; instituições; redes; coletivos – sobre atores humanos. O poder é a capacidade relacional que permite a um ator social influenciar assimetricamente as decisões de outro(s) ator(es) social(is) de forma que favoreçam a vontade, os interesses e os valores do ator que detém o poder. O poder é exercido por meio de coerção (ou possibilidade de coerção) e/ou pela construção de significado com base em discursos por meio dos quais os atores sociais orientam suas ações. As relações de poder são marcadas pela dominação, que é o poder entranhado nas instituições da sociedade. A capacidade relacional do poder está condicionada, mas não determinada, pela capacidade estrutural de dominação. Instituições podem se envolver em relações de poder que dependem da dominação exercida sobre seus sujeitos. (CASTELLS, 2013, p. 57). Nunca há um poder absoluto, ele está sempre passível de resistência, e no caso de resistência usa-se a violência para mantê-lo, porém os conflitos nunca acabam, apenas cessão temporariamente por acordos. [...] a violência, a ameaça de recorrer a ela, discursos disciplinares, a ameaça de acionar a disciplina, a institucionalização das relações de poder como dominação reprodutível, e o processo de legitimação pelo qual os valores e regras são aceitos pelos sujeitos de referência, são todos elementos que interagem no processo de produção e reprodução das relações de poder nas práticas sociais e nas formas organizacionais. (CASTELLS, 2013, p. 59-60). A violência mantém-se presente nas diversas camadas da sociedade e redes nela atuantes, um discurso disciplinador em escolas e fábricas, a imposição do medo à desobediência do patriarcado em uma

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 227 família, a doutrinação estatal regulatória da ordem através da polícia em comunidades com pouco aporte financeiro. O século XX tem como característica a disputa em torno da questão da democracia, onde ao seu final chega-se a um consenso em torno de um procedimento eleitoral para formação de governos (SANTOS; AVRITZER, 2002). Questiona-se assim caminhos para ampliação da participação, visto que a democracia representativa existe como participação eleitoral (SANTOS; AVRITZER, 2002; ARAUJO et al., 2015), sem que para se ter o poder de participação seja necessário o uso extremo da violência. O Brasil no final dos anos 1980 passava por um período político econômico conturbado em meio a movimentos pela redemocratização do país e implementação do neoliberalismo. Neste debate, apresenta-se a existência de uma “confluência perversa” (DAGNINO, 2004) entre projetos políticos – compreendendo que o termo projeto político se aproxima da visão gramsciana, que representa o conjunto de crenças, interesses, concepção de mundo e representação do que deve ser a vida em sociedade – que requerem uma sociedade civil ativa e propositiva. De um lado o projeto neoliberal, tendo a eleição de Fernado Collor de Mello em 1989 como tática para seu ajuste e implementação (DAGNINO, 2004; KERSTENETZKY, 2012; SALVADOR, 2012), caracterizado pelo Estado social mínimo que isenta progressivamente seu papel de garantidor de direitos, visa o encolhimento de suas responsabilidades e as transfere para a sociedade civil, redefinindo-a – deslocamento mais visível produzido na hegemonia do projeto – com um novo papel desempenhado pelas organizações não governamentais (ONGs), com a emergência do terceiro setor e fundações empresariais com forte ênfase na filantropia, além da marginalização e criminalização dos movimentos sociais. Forma-se a “correlação perfeita” entre ONG e Estado, tira-se a obrigação de um (Estado) passando- a para o outro (ONG), em que as ONGs “[...] por mais bem intencionadas traduzem o desejo de suas equipes diretivas.” (DAGNINO, 2004, p. 101). Trata-se da representação social, onde a participação reconfigura-se em participação solidária, ou seja, voluntários; e redefine-se o significado coletivo da participação social em ações privatistas e individualistas, reduzindo o significado político de participação a gestão. Do outro lado, fala-se de um projeto político democratizante, amadurecido desde o final da ditadura militar, visando um processo de alargamento da democracia (DAGNINO, 2004), tendo como marco formal

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 228 a Constituição Federal de 1988 (CF-88 – BRASIL, 1988), fundamentada na ampliação da cidadania e participação da sociedade civil, como conselhos gestores e orçamentos participativos, estes implementados, já no início dos anos 1990, em prefeituras geridas pelo Partido dos Trabalhadores como Porto Alegre e Belo Horizonte (SANTOS; AVRITZER, 2002; MATEOS, 2011; ARAUJO et al., 2015). Buscando a cidadania ampliada, ou nova cidadania – para além dos direitos civis, políticos e sociais, complementando, assim, a ideia de cidadania plena – cujas demandas ganham força no final dos anos setenta, na luta por luz, educação, moradia, saúde e tratam de temas como questão de gênero, raça/etnia e político cultural. A nova cidadania produz três características fundamentais: direito a ter direitos, inclui o direito à igualdade e o direito às diferenças; cidadania “desde baixo”, sujeitos sociais ativos, estratégia dos não cidadãos, excluídos da sociedade e; participação na própria definição do sistema. Já a presunção econômica neoliberal, utiliza a governança corporativa como principal ferramenta pela qual a sociedade brasileira, em seus diversos setores, aceita os pressupostos da visão financeira mundial. “[...] [ferramenta] é uma expressão genérica que designa a relação entre empresas e todos aqueles que têm interesse direto ou indireto no funcionalismo delas e suas consequências.” (GRÜN, 2013, p. 180). Ela surge, ganhando corpo no início dos anos de 1980 nos Estados Unidos, representando um novo estágio da visão financeira na eminência de controlar as disputa de grandes corporações. A governança corporativa irá rezar que os aumentos de eficiência das organizações, das empresas em particular, seriam fruto da qualidade da vigilância (governança) que seus proprietários efetivos exerceriam sobre suas operações, e que essa qualidade é função de um ambiente institucional adequado para tal, salientado o papel de um mercado de capitais semelhante ao norte-americano e, mais genericamente, a um quadro legal respeitoso dos direitos de propriedade individual. (GRÜN, 2005, p. 70). “[...] a governança corporativa vai se incorporando no discurso e na prática de alguns segmentos das velhas e novas elites brasileiras [...].” (GRÜN, 2005, p. 68), o controle da narrativa pelos financistas e seus porta-vozes dá controle para realização de ajustes orçamentários e cortes das despesas sociais, quando então ganha inteligibilidade, passando a ser considerada um “[...] artefato cultural dotado de muita plasticidade.” (GRÜN, 2005, p. 68) e não só uma ferramenta econômica.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 229 Obtendo a possibilidade de manejar a dívida pública de acordo com suas necessidades e objetivos. No fim da década de 1980, início da década de 1990, a alta taxa de inflação, a desvalorização monetária, prejudicavam imensamente a imagem financista brasileira, para a sociedade o mercado financeiro, a Bovespa, era vista como um cassino, uma caixa preta, da qual ninguém tinha acesso ou entendia como se davam os processos que se perpassavam lá dentro. Para ajuste e implantação do neoliberalismo, em definitivo, no Brasil, era necessário uma mudança nessa imagem, era necessário criar uma imagem discursiva na qual o mercado financeiro passasse a ser visto como um lugar para se investir, um lugar no qual é gerado riqueza e desenvolvimento. Assim a governança corporativa chega ao Brasil como instrumento para o mercado de capitais ganhar amplitude (GRÜN, 2013, p. 184), com dois principais grupos de difusores, um falava nos investidores e em indivíduos bem-sucedidos que aplicariam seus excedentes no mercado financeiro numa típica lógica das elites capitalistas. E o outro representado pelos fundos de pensão argumentavam “[...] da governança corporativa como uma necessidade de proteger os pecúlios dos seus numerosos cotistas, [...]” (GRÜN, 2005, p. 71), em geral a ideia de proteção das famílias do brasileiro médio das empresas estatais. No Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), é usado como sua principal ferramenta, as privatizações das empresas estatais e no governo Lula usa-se a justificativa discursiva de “civilizar o capitalismo selvagem” (Grün, 2005b apud GRÜN, 2013, p. 189) que ocorre no Brasil. Na justificativa de civilizar o capitalismo se executa uma bancarização de camadas menos privilegiadas, introduz-se os cidadãos de baixa renda no sistema bancário, mobiliza-se estruturas do governo consequentemente diminui a agiotagem, por outro lado, reforça-se a forma de produção da elite e dos pressupostos de dominação e controle social das classes subalternas a elite econômica. Contudo, os direitos sociais ganham relevância estatal e assumem tom prioritário no governo do Partido dos Trabalhadores (PT), com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente. Durante o período de 2003 a 2014 as políticas sociais tiveram orçamento crescente e o país apresentou números bastante positivos nas políticas de assistência social, combate à pobreza, à fome, luta por moradia, garantindo um mínimo social para a preservação da dignidade humana. Conquistas alcançadas sobretudo a partir da aprovação da Política Nacional de Assistência Social em 2004 e

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 230 a criação do SUAS em 2005, na unificação de programas de transferência de renda no Bolsa Família e valorização do salário mínimo. Pode-se afirmar que a inovação principal se traduziu na aposta na possibilidade de gasto social contribuir não apenas para o alcance de direitos como também para relaxar suas próprias condições de financiamento, tornando o orçamento social de certo modo endógeno à própria política social. Uma inovação secundária, porém, digna de nota, dado o ineditismo na história brasileira, foi certa modulação da própria política econômica por condicionalidades sociais. Em “economicamente orientadas” e “políticas econômicas socialmente orientadas” […]. (KERSTENETZKY, 2012, p. 232). O governo federal, assumiu uma postura de ampliação e estruturação em diversas áreas da democracia participativa (MATEOS, 2011), conectando diversas redes entre si, com a realização de, até 2011, 73 conferências abertas a todos os setores da sociedade, estes espaços de participação geraram oportunidades para atores sociais, grupos, movimentos, associações localizarem suas demandas. Sãos grupos que frequentemente, por representarem minorias políticas, tem grande dificuldade de levar suas demandas aos legisladores e formuladores de políticas públicas (MATEOS, 2011). Além do formato congressual permitir com que algumas conferências comecem a ser discutidas nos bairros, escolas. Conferência e redes de comunicação que para Mateos (2011, grifo do autor) possibilitou o “MAIOR ACORDO COLETIVO DO MUNDO A política de valorização permanente do salário mínimo” – deixa de ser custo da Previdência Social para ser instrumento de desenvolvimento – e “consenso contra a crise”: negociação integrada por empresários, centrais sindicais e governo – promovendo a desoneração tributária condicionada a manutenção do emprego, e a orientação para que os bancos públicos suprissem a toda a demanda nacional por créditos. Reforçando o enquadramento ideal das políticas econômicas socialmente orientadas e das políticas sócias economicamente orientadas. A participação demonstrou impacto não só social e econômico, também no legislativo em 2009, um quinto dos projetos de lei e quase metade das emendas constitucionais que tramitavam no congresso eram deliberações que saíram de conferências (MATEOS, 2011).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 231 3 CIFRAS DO ARROCHO DO NEOLIBERAL NA SEGURIDADE SOCIAL

A crise política e o processo de impedimento instaurado contra a Presidenta Dilma Rousseff, que se revela publicamente desde 2015, afetam sobremaneira a política de seguridade social – que em nossa Constituição Federal de 1988 (CF-88) abrange as áreas da saúde, previdência social e assistência social. Assim, analisando os direitos sociais no Brasil nos debruçamos sobre seu atual desmonte, como exemplo medida tomada ao final do primeiro mandato da Presidenta, já sob influência da crise política: [...] no seguro-desemprego, que agora exige um período de carência, na primeira solicitação, de 18 meses; 12 meses na segunda solicitação; e 6 meses a partir da terceira; antes, a carência era de 6 meses de trabalho; no abono salarial, que agora exige 6 meses de trabalho ininterrupto para adquirir esse direito e o pagamento é proporcional ao tempo trabalhado; antes, a carência era de apenas 1 mês e o valor era de um salário-mínimo; houve também alterações no auxílio doença, cujo teto agora é a média das 12 últimas contribuições; antes, o benefício era de 91% do salário do beneficiado, não podendo passar do teto do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); e, por último, regressões na pensão por morte, que agora exige tempo mínimo de casamento ou união estável entre os cônjuges (2 anos), e tempo mínimo de 2 anos de contribuição do cônjuge falecido (MEDIDAS PROVISÓRIAS 664/2014 e 665/2014) (BRASIL, 2014). Com esses cortes, o governo federal almeja economizar R$ 18 bilhões ou 0,3% do PIB. Esse valor é ínfimo, se considerado o montante que os cofres públicos deixaram de arrecadar devido às desonerações da folha de pagamento, em 2013 – R$ 12,3 bilhões; e em 2014 – R$ 21,6 bilhões, uma alta de 75,6% (PATU, 2015). Ou seja, a conta fecharia. Contudo, ainda se tenta manter hegemônica a ideia de que o Estado é onerado com gastos sociais, e que, para controlar suas contas, gerando o superávit primário, é necessário ser austero nesses investimentos. (MUSTAFA, 2016, p. 73-74). No caminho para a análise do orçamento público, a partir de 2015, já sob influência da crise, é possível constatar as alterações orçamentárias na pasta de Seguridade Social, a partir da Lei Orçamentária Anual (LOA)

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 232 2015, da LOA 2016 e da LOA 2017, observamos os seguintes dados sobre a estimativa de receita e fixação da despesa da União1: Tabela 1: Estimativa de receita da União nos anos de 2015, 2016 e 2017 em bilhões de Reais por área, segundo a LOA de cada ano. Área/Ano LOA 2015 LOA 2016 LOA 2017 Orçamento Fiscal R$ 1278 R$ 1425 R$ 1800 Seguridade Social R$ 693 R$ 643 R$ 668 Refinanciamento da Dívida R$ 904 R$ 885 R$ 946 Total da estimativa R$ 2876 R$ 2953 R$ 3415 Fonte: Elaborado por Pedro Dantas Menezes Zornoff Táboas (BRASIL, 2015, 2016, 2017). Tabela 2: Fixação da despesa da União nos anos de 2015, 2016 e 2017 em bilhões de Reais por área, segundo a LOA de cada ano. Área/Ano LOA 2015 LOA 2016 LOA 2017 Orçamento Fiscal R$ 1175 R$ 1202 R$ 1520 Seguridade Social R$ 797 R$ 865 R$ 948 Refinanciamento da Dívida R$ 904 R$ 885 R$ 946 Total da estimativa R$ 2876 R$ 2953 R$ 3415 Fonte: Elaborado por Pedro Dantas Menezes Zornoff Táboas (BRASIL, 2015, 2016, 2017). Vemos que 2015, antes da consolidação do impedimento, a estimativa de receita da seguridade social foi de R$ 693 bilhões (representando aproximadamente 24% da receita total estimada da União para o ano) e a fixação de gasto para a seguridade social foi de R$ 797 bilhões (aproximadamente 27,7% do orçamento total), o que se verifica é um baixo orçamento na área que abrange o gasto social, visto que o restante da verba foi para refinanciamento da dívida e para o orçamento fiscal. Se em 2015 a receita estimada da seguridade social não chegou a um quarto da receita total estimada pela União, nos anos seguintes foram ainda menores, caindo para R$ 643 bilhões em 2016, já com o governo da Presidenta Dilma extremamente pressionado e fragilizado pela crise 1 Tabelas criadas para esta proposta de pesquisa, a partir da análise das citadas Leis Orçamentárias Anuais.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 233 política, representando aproximadamente 21,7% da receita estimada para o ano. E, em 2017, com um número bruto maior que de 2016 e menor que de 2015, mas com uma percentagem bem abaixo dos anos anteriores, sendo a receita estimada para a seguridade social de R$ 668 bilhões e representando aproximadamente 19,5% da receita total da União estimado para o ano. Na fixação dos gastos temos um aumento na verba nos anos de 2016 e 2017, mas na percentagem do orçamento fixado pela União temos uma variação aumentando em 2016 e diminuindo em 2017, são os valores e percentagem para os anos de 2016 e 2017, respectivamente, R$ 865 bilhões, aproximadamente, 29,2% e R$ 948 bilhões, aproximadamente, 27,7%. O estudo do orçamento deve ser considerado como um elemento importante para compreender a política social, pois é uma peça técnica que vai além da sua estruturação contábil, refletindo a correlação de forças sociais e os interesses envolvidos na apropriação dos recursos públicos, bem como a definição de quem vai arcar com o ônus do financiamento dos gastos orçamentários. O dimensionamento desses gastos permite compreender e mensurar a importância dada a cada política pública no contexto histórico da conjuntura econômica, social e política vivenciada no país. (SALVADOR, 2012, p. 127). A variação orçamentária durante os anos de 2015 a 2017 demostra a influência negativa do impedimento presidencial em um projeto de ampliação da participação democrática e ataques aos direitos sociais com tendências de radicalização neoliberal da política econômica e social. Destaca- se a sua intensificação, após a confirmação do impedimento pelo Congresso Nacional, quando os investimentos em seguridade social foram compulsoriamente congelados pela aprovação da Projeto de Emenda Constitucional 55 (PEC 55 – CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2016a), promulgada Emenda Constitucional 95/2016 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2016b) , além das demais reformas aprovadas e em fase de aprovação, como a reforma das leis trabalhistas – já aprovada – e a reforma da previdência, atualmente parada no congresso devido a intervenção militar no estado do Rio de Janeiro. Todas estas medidas foram aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pela Presidência da República após o impedimento e em nome de uma suposta necessidade de adaptação legislativa para uma melhoria econômica do país. Necessidade esta, tanto no impedimento como nas reformas, caracterizadoras da fundamentação para um Estado de exceção.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 234 Uma opinião recorrente coloca como fundamento do estado de exceção o conceito de necessidade. Segundo o adágio latino muito repetido […] necessitas legem non habet, ou seja, a necessidade não tem lei, o que deve ser entendido em dois sentidos opostos: “a necessidade não reconhece nenhuma lei” e “a necessidade cria sua própria lei” […]. A teoria da necessidade não é aqui outra coisa que uma teoria da exceção (dispensatio) em virtude da qual um caso particular escapa a obrigação da observância da lei. A necessidade não é fonte de lei e tampouco suspende, em sentido próprio, a lei; ela se limita a subtrair um caso particular a aplicação literal da norma. (AGAMBEN, 2004, p. 40-41). Sendo assim “[...] o conceito de necessidade é totalmente subjetivo, relativo ao objetivo que se quer atingir.” (Balladore-Pallieri, 1970, p. 168 apud AGAMBEN, 2004, p. 46). No caso brasileiro, tais reflexões sobre a necessidade podem ser utilizadas em análises sobre o impedimento presidencial, em que o processo continha como acusação a prática conhecida como Pedaladas Fiscais, e as justificativas para as reformas legislativas que refletem perda de direitos conquistados após a organização social de diversas camadas da sociedade, promulgados na CF-88. A perda de direitos afeta drasticamente o Estado democrático e o levam ao que se configura um Estado de exceção, Agamben (2004) vê no Estado de exceção o momento preciso que estado e direito mostram sua irredutível diferença, “[...] estado continua a existir enquanto o direito desaparece” (Schmitt, 1922, p. 39 apud AGAMBEN, 2004, p. 48), e pode assim configurar o extremo do Estado de exceção: a ditadura soberana. Observa-se no pensamento de Escrivão Filho e Sousa Junior (2016, p. 14), partindo da concepção de Lyra Filho que “[...] importante não é estabelecer o que é direito, mas antes dissolver as falsas noções que a seu respeito são elaboradas”, onde propõem que o “[...] debate conceitual dos direitos humanos, encontra como fundamento teórico, um caminho orientado pela ação humana organizada em processo de libertação”, travando assim uma “[...] luta contra hegemônica, legítima, política, econômica, étnico-racial e de gênero” e citam Herrera Flores (2009 apud ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, p. 105) para demonstrar que os direitos humanos fazem o “[...] reconhecimento à diversidade, respeito ao outro, redistribuição de poder, responsabilidade pelos atos praticados.” Escrivão Filho e Sousa Junior afirmam o protagonismo da luta por direitos aos Movimentos Sociais.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 235 Desse modo, a análise do cenário dos direitos humanos, quando orientada em uma praxis contra-hegemônica, é construída a partir: 1) reconhecimento dos sujeitos coletivos envolvidos na luta por direitos; 2) da tomada de consciência e posicionamento diante da agenda de direitos humanos reivindicados pelos diferentes sujeitos coletivos de direitos, segmentos e movimentos sociais; 3) da identificação e combate aos padrões institucionais, sociais e culturais de violação de direitos, e a responsabilização, dos agentes violadores, públicos e privados; 4) da pressão sobre as instituições públicas responsáveis pela defesa, garantia, efetivação ou promoção dos direitos humanos desde uma perspectiva de indivisibilidade e integralidade diretamente referidas a sua diversidade e especificidade temática. (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, p. 107). A construção dos direitos humanos deve passar, sobretudo, pela luta coletiva por autonomia humana e direitos sociais, porém, como visto na estimativa da divisão dos recursos públicos na LOA 2017, os direitos sociais parecem ser descartados em nome da busca da necessidade de econômica, seguindo prepostos teóricos econômicos neoliberais, corta- se as receitas para se explicar o corte dos gastos. Favorece-se das crises econômicas no âmbito privado, retira-se verba social e aplica-se em soluções convenientes, salva-se empresas, perdoa-se dívidas trabalhista e de bancos privados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os séculos XVI e XVII, caracterizam-se pela mudança da racionalidade metodológica, pela transformação social, política e econômica do mundo ocidental. Presente estamos em uma sociedade mercadológica produtivista e consumista, nos âmbitos da razão e da mercadoria, baseada na exploração do trabalho intelectual, técnico e manual, o máximo possível até o ponto onde não se possa mais tirar proveito, e descartando-se ao final. O poder e, sobretudo, a violência se mostram presentes incessantemente no mundo financeiro globalizado e nas nações embatidas pela radicalização neoliberal. Se há o interesse de um ator sobre outro, e não há um acordo. Não há dúvida sobre o uso da violência para a obtenção ou manutenção do poder, essa violência pode ser expressa de diversas formas, bloqueios econômicos, sanções a direitos sociais, civis e políticos, ocupação e intervenções militares, prisões de cunho político.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 236 Para Foucault “não há poder sem verdade”, portanto, a dominação predomina nas entranhas da construção discursiva e manejo doutrinador da palavra pelos diversos atores pertencentes da sociedade. O neoliberalismo se constrói, sobretudo, na apropriação do discurso pela burguesia com interesses econômicos e jurídicos na modulação social para manter-se no topo da hierarquia social. Necessita-se um Estado imponente de sua ordem jurídica, um poder econômico regulável ao mercado e um discurso doutrinador de sua verdade. A governança corporativa produz uma convergência um tanto explícita das elites brasileiras, o neoliberalismo consegue incorporar crises sistêmicas a partir desses movimentos, torna-se um meio de dominação baseada na economia predominante das finanças. O mercado financeiro na sociedade atual ganha tanto relevância de seu discurso chegar a apontar os rumos para o que acha certo ser o sistema democrático. A economia, hoje, representada no mercado financeiro tem tendências soberanas, não mais se desvincula do Estado, mas quer para si o Estado, quer para si a autoridade máxima de formulador de contratos pautados em seus interesses.

REFERÊNCIAS

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Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 239

A JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS: PARÂMETROS PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA

THE JUSTICIABILITY OF SOCIAL RIGHTS: PARAMETERS FOR THE EFFECTIVENESS OF THE RIGHT TO PHARMACEUTICAL ASSISTANCE

Renan Lucas Dutra Urban1* RESUMO: O trabalho explora o tema da justiciabilidade dos direitos sociais. Está delimitado no estudo da possibilidade de reconhecimento de um direito originário à saúde e, especialmente, à assistência farmacêutica. O problema da pesquisa é: pode-se extrair, diretamente da norma constitucional definidora do direito à saúde, um direito à assistência farmacêutica? O objetivo geral é responder a essa questão, tendo em vista tanto a “reserva do possível fática”, relativa à objeção da incapacidade financeira do Estado para prover todas as prestações materiais que compõem o objeto dos direitos sociais, quanto a “reserva do possível jurídica”, concernente à objeção da falta de competência ou da ilegitimidade democrática dos órgãos do Poder Judiciário para controlar políticas públicas e decidir sobre escolhas orçamentárias. Como tese central, adotou-se a seguinte: as prestações materiais compreendidas no núcleo essencial do princípio da dignidade humana, relacionado ao “mínimo existencial”, não estão sujeitas aos limites fáticos e jurídicos da reserva do possível, devendo ser entregues pelo Poder Público em caráter definitivo. No que se refere ao direito à assistência farmacêutica, tal tese implica, por um lado, a possibilidade de que os medicamentos reputados como pertencentes ao mínimo existencial sejam concedidos judicialmente e, de outro, a necessidade de que os órgãos do Poder Judiciário sigam parâmetros mais ou menos uniformes na definição do conteúdo desse mínimo existencial, de maneira que sejam evitados voluntarismos judiciais e não sejam criados obstáculos à efetivação de políticas universalistas. Palavras-chave: direito sociais. direito à saúde. direito à assistência farmacêutica. Justiciabilidade. reserva do possível. mínimo existencial. ABSTRACT: The article explores the issue of the justiciability of social rights. It is delimited in the study of the possibility of recognition of an original right to health and especially to pharmaceutical assistance. The research problem is whether it is possible to derive, directly from the constitutional norm defining the right to health, a right to pharmaceutical assistance. The general objective is to answer this question, in view both of the “reservation of possibility factual”, which concerns the objection of the Government financial incapacity in providing all the positive acts required by social rights, and the “reservation of possibility normative”, which concerns the objection of the Courts democratic illegitimacy to control public policies or handle budgetary choices. The main thesis is as follows: the positive acts included in the essential core of the principle of human dignity, or existential minimum, are not submitted to any factual or normative constraints, and so public authorities must definitively provide them. With regard to the right to pharmaceutical assistance, this thesis implies, on the one hand, the possibility that medicines reputed as belonging to the existential minimum are granted judicially and, on the other hand, the need for Courts to follow uniform parameters in defining the concept of existential minimum, so as to avoid judicial voluntarisms and the creation of obstacles to the implementation of universalist policies. Keywords: social rights. right to health. right to pharmaceutical assistance. Justiciability. reservation of possibility. existencial minimum.

* Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp, Câmpus de Franca) e Bacharel em Direito pela mesma instituição. Membro do Núcleo de Pesquisas Avançadas em Direito Processual Civil Brasileiro e Comparado (NUPAD/Unesp). Advogado.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 241 INTRODUÇÃO

Os direitos sociais são direitos positivos, na medida em que dependem de uma postura ativa do Poder Público para que sejam efetivados. Ordinariamente, as prestações materiais exigidas para a realização desses direitos são providas por políticas públicas universalistas, que definem o que atender (as necessidades públicas), quem atender (os destinatários) e em que extensão atender (as contingências sociais), em detrimento de outras demandas de interesse geral. Como a realização dos direitos sociais é custosa, e os recursos financeiros públicos são escassos, os atos que decidem pela implementação de determinada política pública trazem sempre consigo um trade-off, isto é, uma escolha disjuntiva que não escapa de ser trágica (AMARAL, 2001, p. 150). O pensamento liberal tradicional classificou como próprias dos órgãos de representação popular as tarefas de planejar, elaborar e executar políticas públicas (“doutrina da questão política”). O constitucionalismo tradicional, na esteira dessa doutrina liberal, fez competir aos Poderes Políticos a implementação de tais políticas, submetendo exclusivamente ao juízo discricionário deles a escolha dos meios de ação política e a definição das necessidades sociais a serem satisfeitas (LOPES, 2010, p. 163). Presentemente, porém, num contexto de constitucionalização do direito infraconstitucional e de judicialização das matérias políticas, é impossível exagerar o peso da participação do Judiciário no ciclo de efetivação das políticas públicas. Mais do que simplesmente fiscalizar sua regular constituição e execução, autoridades judicantes têm exercido um papel decisivo no próprio processo de formulação dos programas governamentais, influenciando as decisões tomadas no âmbito dos Poderes Legislativo e Executivo (TAYLOR, 2007, p. 230). O tema deste trabalho é a justiciabilidade de um direito social, em particular: o direito à saúde. Está delimitado no estudo da eficácia e da efetividade do direito à assistência farmacêutica, em face do argumento da “reserva do possível”. O objetivo geral é investigar a possibilidade de se reconhecer um direito subjetivo público a prestações de saúde com base apenas e tão somente na norma constitucional que o define, isto é, independentemente de uma interpositio legislatoris ou de uma ação administrativa específica.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 242 1 O CUSTO DOS DIREITOS

O debate sobre a eficácia e a efetividade dos direitos fundamentais e, particularmente, dos direitos prestacionais,1 é bastante intenso. Embora já tenha se tornado comum a afirmação de que não há norma inscrita na Constituição que esteja privada de imperatividade e, portanto, de eficácia (SILVA, 2009, p. 81), questiona-se se o Poder Público pode ser obrigado pelo Poder Judiciário a adotar as medidas necessárias para a realização dos direitos sociais. O principal argumento geralmente colocado como óbice à exigibilidade dos direitos prestacionais possui natureza pragmático- financeira, e se volta para os custos financeiros que decorrem da efetivação deles. A onerosidade do processo de efetivação dos direitos fundamentais não é característica exclusiva dos direitos a prestações materiais. Também os direitos de defesa – e os direitos a prestações jurídico-normativas – implicam gastos públicos, decorrentes sobretudo da necessidade de criação e de manutenção dos pressupostos materiais garantidores do exercício desses direitos. Não há dúvida, por exemplo, de que é necessário um conjunto de dispêndios para a organização e manutenção da Polícia e dos Bombeiros, para se proteger determinados bens, como a vida e a propriedade. O mesmo pode ser dito relativamente ao cadastramento eleitoral e à realização das eleições, eventos que, não obstante onerosos, se afiguram necessários para o exercício dos direitos políticos. De modo análogo, é evidente que parte de toda a atuação do Poder Judiciário – cujo regular funcionamento imprescinde, como se sabe, de vultosos aportes financeiros – volta-se para a proteção dos direitos de defesa, como a propriedade, a segurança, a imagem, a honra etc (BARCELLOS, 2008, p. 264-265). Os exemplos são inúmeros, e não convém alongá-los. A ideia enunciada é razoavelmente tranquila e chega mesmo a ser intuitiva: todos os direitos, e não só os prestacionais, possuem uma dimensão econômica. Por que o argumento do custo dos direitos, então, é geralmente suscitado apenas em desfavor dos direitos prestacionais (sociais)? Há, basicamente, duas respostas para essa questão.

1 Cf., sobre a divisão dos direitos fundamentais em direitos de defesa (ou direitos a ações negativas) e direitos prestacionais (ou direitos a ações positivas) - Alexy (2008, p. 180-218). Na literatura brasileira, ver, por exemplo, a classificação proposta por Sarlet (2009, p. 162-207).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 243 Em primeiro lugar, os direitos a prestações materiais – precisamente porque a efetivação desses direitos pressupõe o oferecimento de serviços e a distribuição de bens – demandam a mobilização de maiores valores em relação ao necessário para a satisfação dos direitos de defesa. A realização dos direitos prestacionais custa dinheiro – custa muito dinheiro.2 Essa a razão pela qual se afirma que a diferença entre os direitos sociais eas liberdades individuais, quanto ao aspecto econômico-financeiro, não é de natureza, mas de grau: ambas as espécies de direitos fundamentais reclamam dispêndios para que sejam efetivados, mas aqueles, de uma forma geral, demandam recursos financeiros em volume maior que o necessário para a satisfação destas (BARCELLOS, 2008, p. 265). Em segundo lugar, os direitos de defesa e direitos a prestações significam distintos custos, dado o modo diferente de realização de cada um deles. Diferentemente do que ocorre com os direitos de defesa, os direitos prestacionais sociais, pelo fato de que cumprem uma função eminentemente (re)distributiva, implicam custos que variam de acordo com a necessidade de cada indivíduo. Com afirma José Reinaldo de Lima Lopes (2010, p. 157-158), “[...] ao garantir um direito à saúde ou um direito à educação, o que se garante é realmente uma prestação positiva que será diferente conforme a condição social e pessoal de cada indivíduo ou grupo.” É sobretudo no âmbito dos direitos a prestações materiais, em suma, que se coloca e se discute o problema da escassez dos recursos financeiros públicos. Em outras palavras, apesar dos gastos públicos que decorrem da realização dos direitos de defesa, é geralmente como obstáculo à realização dos direitos prestacionais que o argumento da “reserva do financeiramente possível”, analisado na sequência, é suscitado.

2 A RESERVA DO POSSÍVEL

A expressão “reserva do possível” foi cunhada pela Corte Constitucional Federal, numa decisão que pô fim ao assim conhecido caso numerus clausus (BverfGE n° 33, S. 333).3 Nela, entendeu-se que os direitos às prestações materiais estão sujeitos à reserva do possível, isto é,

2 “[...] hoje, como ontem, os direitos sociais, econômicos e culturais despejam um problema inquestionável: custam dinheiro, custam muito dinheiro.” (CANOTILHO, 2008. p. 106). 3 Nessa decisão, a tese da reserva do possível foi invocada como um limite à eficácia do direito de acesso ao ensino superior. Nos termos da solução dada ao caso, a fixação de um número limitado de vagas para o curso de Medicina da Universidade da Bavária não configura violação de obrigação constitucional, uma vez que o Estado só está obrigado as prestações condizentes com os “limites do razoável”.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 244 àquilo que se pode, de maneira racional, esperar da sociedade (KRELL, 2002, p. 52). Firmou-se, a partir desta decisão, a tese do “Limite do Orçamento”, que veicula a ideia de que “[...] todo orçamento possui um limite que deve ser utilizado de acordo com as exigências de harmonização econômica geral.” (SCAFF, 2010, p. 151, grifo nosso). O argumento da reserva do possível foi utilizado, na origem, com base naquilo que fora considerado “razoável” ou “proporcional” pelo Tribunal Constitucional alemão. Não foi a problemática financeira – relativa a um ambiente de escassez absoluta de recursos –, portanto, o ponto central de toda a discussão acerca do caso numerus clausus, “[...] mas sim a razoabilidade com que a alocação destes recursos poderia ser [individualmente] demandada.” (OLSEN, 2006, p. 233). No Brasil, porém, a reserva do possível é interpretada de maneira diferente. Isso porque a prática jurídico-constitucional brasileira frequentemente recorre à reserva do possível para enfatizar os “custos” desses direitos e, assim, demonstrar a impossibilidade de que sejam tutelados diante da alegação de inexistência ou insuficiência de recursos financeiros públicos. Afirma-se, nesse sentido, que os direitos prestacionais estão condicionados à reserva do possível na medida em que dependem de uma viabilidade orçamentária (“cofres cheios”) para que possam ser efetivados.4 Além disso, no âmbito doutrinário, tornou-se comum a menção a duas dimensões ou vertentes da reserva do possível, uma fática e outra jurídica. A reserva do possível fática remete a uma ideia de exaustão financeira, de absoluta impossibilidade econômica (fática) do Estado para prover as prestações materiais indispensáveis à realização dos direitos sociais (BARCELLOS, 2008, p. 262). Ad impossibilia nemo tenetur: ninguém, inclusive o Estado, está obrigado ao impossível (LOPES, 2010, p. 159). A reserva do possível jurídica, por sua vez, funda-se na tese da ilegitimidade democrática do Poder Judiciário para controlar as omissões estatais e as políticas sociais. O argumento central é o de que as escolhas alocativas possuem um caráter nitidamente político, discricionário, uma

4 Essa diferença de perspectiva deve-se, em boa medida, à absorção das lições doutrinárias de José Joaquim Gomes Canotilho (1993, 2008), que deu nova leitura à teoria da reserva do possível alemã. Cf., no ponto, Olsen (2006, p. 237) e Krell (2002, p. 51): “O português Canotilho vê a efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais dentro de uma ‘reserva do possível’ e aponta a sua dependência dos recursos econômicos. A elevação do nível de sua realização estaria sempre condicionada pelo volume dos recursos suscetível de ser mobilizado para esse efeito. Nessa visão, a limitação dos recursos públicos passa a ser considerada verdadeiro limite fático à efetivação dos direitos sociais prestacionais.”

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 245 vez que “[...] não há um critério único que possa ser empregado para todas as decisões a serem tomadas.” (AMARAL, 2001, p. 114). Além disso, possuem um caráter multilateral, na medida em que promovem a apropriação, em favor de algumas pessoas, de bens ou serviços financiados por toda a sociedade (WANG, 2009, p. 16). Por isso, devem ser determinadas no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, eleitos democraticamente e sujeitos à prestação de contas e à responsabilização política (accountability).5

3 O DIREITO AO MÍNIMO EXISTENCIAL

A teoria do mínimo existencial emergiu na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial, como reação à não previsão de direitos fundamentais sociais na Carta de Bonn (KRELL, 2002, p. 60). A Corte Constitucional da Alemanha extraiu o mínimo existencial do princípio da dignidade humana e dos direitos à vida e à integridade física, num esforço de “[...] interpretação sistemática junto ao princípio do Estado Social.” (KRELL, 2002, p. 61) cujo resultado foi o “[...] o reconhecimento de um direito fundamental à garantia das condições mínimas para uma existência digna.” (SARLET, 2010, p. 20). No Brasil, como nota Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 19), a construção da teoria do mínimo se deve sobretudo a Ricardo Lobo Torres (2009, p. 35), para quem “[...] há um direito às condições mínimas da existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos (= imunidade) e que ainda exige prestações estatais positivas.” Esse direito ao mínimo existencial estaria vinculado ao status positivus libertatis, e expressaria o “[...] conjunto de condições materiais essenciais e elementares cuja presença é pressuposto da dignidade para qualquer pessoa.” (BARROSO, 2009, p. 179).

5 Relacionado ao argumento da ilegitimidade democrática dos órgãos julgadores para fazer escolhas alocativas está o da falta de aptidão desses agentes para controlar os programas governamentais destinados a concretizar direitos sociais. Nos termos dessa objeção, a formulação e a execução das políticas públicas constituem um processo complexo, cuja compreensão demanda senso político e alguns conhecimentos técnico-científicos específicos. Assim, por mais bem preparados que sejam os juízes, eles não disporiam das informações e dos conhecimentos necessários para entender a complexidade técnica subjacente às políticas públicas e, mais do que isso, para avaliar o impacto de suas decisões para o orçamento público e para o plano de justiça distributiva encampado pelo governo. Para uma descrição desse último argumento, na perspectiva das críticas à judicialização do direito à saúde, em especial. cf. (WANG, 2009, p. 11-15).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 246 O direito ao mínimo existencial corresponde ao núcleo essencial dos direitos fundamentais (CANOTILHO, 1998, p. 470). No que diz respeito aos direitos sociais, compreende um conjunto de prestações elementares, básicas, que visam a assegurar a todo indivíduo determinado patamar de dignidade. Para Ana Paula de Barcellos (2008, p. 353), “[...] uma proposta de concretização do mínimo existencial, tendo em conta a ordem constitucional brasileira, deverá incluir os direitos à educação fundamental, à saúde básica, à assistência no caso de necessidade e ao acesso à justiça.” O mínimo existencial é exigível independentemente da existência de uma mediação legislativa ou da disponibilidade de recursos financeiros públicos. Constitui, por isso, um direito originário a prestações (SARLET, 2009, p. 350), não condicionado aos limites fáticos e jurídicos da reserva do possível.

4 A CONCESSÃO JUDICIAL DE MEDICAMENTOS

No que se refere direito à saúde, a tese do mínimo existencial fundamenta a exigibilidade das prestações que, se não forem prestadas, podem comprometer bens fundamentais, como a vida, a integridade física e a dignidade humana.6 Nos termos dessa concepção, incumbe aos órgãos judiciais, nas demandas coletivas e mesmo nas individuais sobre prestações de saúde (por exemplo, a realização de determinado procedimento cirúrgico ou o fornecimento de um medicamento), apreciar o grau de essencialidade

6 Esta é a posição, na matéria, seguida por Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 13): “Embora tenhamos que reconhecer a existência destes limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria orçamentária) implicam certa relativização no âmbito da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais [...], sustentamos o entendimento [...] no sentido de que sempre onde nos encontramos diante das prestações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais, notadamente – em se cuidando de saúde – da própria vida, integridade física e dignidade da pessoa humana, haveremos de reconhecer um direito subjetivo do particular à prestação reclamada em Juízo. Tal argumento cresce em relevância em se tendo em conta que a nossa ordem constitucional (acertadamente, diga- se de passagem) veda expressamente a pena de morte, a tortura e a imposição de penas desumanas e degradantes mesmo aos condenados por crime hediondo, razão pela qual não se poderá sustentar – pena de ofensa aos mais elementares requisitos da razoabilidade e do próprio senso de justiça – que, com base numa alegada (e mesmo comprovada) insuficiência de recursos, se acabe virtualmente condenando à morte a pessoa cujo único crime foi o de ser vítima de um dano à saúde e não ter condições de arcar com o custo do tratamento.”

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 247 ou excepcionalidade das prestações reclamadas. Se o bem ou serviço de saúde pleiteado é essencial,7 então é exigível e deve ser concedido. No que diz respeito ao direito à assistência farmacêutica, o grau de essencialidade ou excepcionalidade dos medicamentos pleiteados judicialmente pode ser aferido a partir das regras infraconstitucionais que definem esse direito. Veja-se, nesse sentido, o Decreto-lei n. 7.508/2011 (BRASIL, 2011), que regulamenta a Lei n. 8.080/1990 (BRASIL, 1990), e dispõe, no âmbito da assistência terapêutica, sobre a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). A RENAME consiste em uma lista atualizada de medicamentos essenciais. No processo de elaboração da RENAME, devem ser consideradas as necessidades de saúde prioritárias dos indivíduos, segundo a relevância e a prevalência de determinadas doenças e agravos de saúde (Portaria n. 3.916/98). Conforme o art. 25 do Decreto n. 7.508/2011, incumbe ao Ministério da Saúde, no âmbito federal, dispor sobre a RENAME, selecionando e padronizando os medicamentos indicados para o atendimento de doenças e de outros agravos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Sem prejuízo disso, os Estados, Distrito Federal e Municípios também podem, em caráter complementar à RENAME, elaborar as suas respectivas listas (art. 27), sendo-lhes autorizado inclusive ampliar o acesso dos usuários à assistência farmacêutica, desde que questões de saúde pública o justificarem (art. 28, §2º). O art. 28, do Decreto n. 7.508/2011, estatui que o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe a observância de determinados requisitos, em caráter obrigatório e cumulativo. São eles: (I) estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS; (II) ter sido o medicamento prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS; (III) estar a prescrição em conformidade com a RENAME e; (IV) ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS. Portanto, para que se tenha acesso à assistência farmacêutica do SUS, algumas condições específicas devem ser observadas, entre elas a

7 Para Gustavo Amaral (2010, p. 11-120), “O grau de essencialidade está ligado ao mínimo existencial, à dignidade da pessoa humana. Quão mais necessário for o bem para a manutenção de uma existência digna, maior será seu grau de essencialidade.” Desta forma, “[...] quanto mais essencial for a prestação, mais excepcional deverá ser a razão para que ela não seja atendida.” E conclui: “Caberá ao aplicador ponderar essas duas variáveis [essencialidade da prestação e excepcionalidade da negativa administrativa], de modo que, se a essencialidade for maior que e excepcionalidade, a prestação deve ser entregue, caso contrário, a escolha estatal será legítima.”

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 248 de o indivíduo ter decidido por se submeter aos serviços do SUS e a de o fármaco estar previsto na lista de medicamentos essenciais elaborada pelo Ministério da Saúde (RENAME) ou pelos Estados e Municípios. Tais condições decorrem não apenas do princípio da impessoalidade, mas também do princípio da seletividade ou da distributividade no âmbito da assistência farmacêutica. Se elas forem satisfeitas, encontram- se os Poderes Públicos obrigados a fornecer o fármaco, surgindo para o indivíduo, em casos de inadimplemento, o direito subjetivo (definitivo) de obtê-lo judicialmente. Inexistindo, porém, uma política de saúde pública que abranja o bem ou o serviço pleiteado, o grau de essencialidade da prestação tem de ser aferido por outros parâmetros, construídos tanto pela doutrina como pela jurisprudência. Cinco deles estão descritos a seguir. Em primeiro lugar, o medicamento pleiteado deve estar registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). A razão é simples: tratamentos medicamentosos, quaisquer que sejam, envolvem risco à saúde. Logo, a exigência de que o fármaco tenha se submetido ao controle e à fiscalização do órgão técnico competente – a ANVISA, de acordo com o art. 28 da Lei n. 9.782/99 (BRASIL, 1999) – encontra fundamento no próprio direito à saúde do demandante. É possível exigir, em segundo lugar, que os medicamentos postulados estejam disponíveis no Brasil. Isso porque a Seguridade Social é uma rede protetiva que, da forma mais abrangente possível, deve alcançar todos os eventos geradores de necessidade, provendo prestações a todos quantos delas necessitarem. Eis o princípio da universalidade de cobertura e atendimento, previsto no art. 194, § único, I, CF. Nesse sentido, estabelece o art. 196 da Constituição que as ações e serviços para a proteção, promoção e recuperação da saúde devem ser franqueados a todos, em caráter “universal e igualitário”. É possível afirmar, diante disso, que a assistência farmacêutica deve oferecer cobertura e atendimento em todo o território nacional – e apenas dentro dele. Ou seja: a assistência farmacêutica, em tese, não abrange a concessão de produtos não disponíveis em território nacional, nem a realização de tratamento no exterior (LIMA, 2010, p. 150). Em terceiro lugar, os medicamentos a serem fornecidos pelo Judiciário devem possuir uma eficácia comprovada. Isso porque a concessão de fármacos que não foram minimamente testados e aprovados pelas autoridades sanitárias competentes, tais como aqueles inseridos em terapias experimentais e alternativas (BARROSO, 2008, p. 13-14),

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 249 pode representar até mesmo violação da dignidade do demandante (SARLET, 2010, p. 44-45), agravando seu estado de saúde ou causando- lhe outros problemas. Em quarto lugar, a dispensação judicial de medicamentos deve privilegiar, sempre que possível, os medicamentos “genéricos” e/ou os de menor custo. Desse modo, havendo disponibilidade de equivalente terapêutico, intercambiável com um produto de referência ou inovador – isto é: que tenha a mesma eficácia e segurança deste –, mas de menor preço, o objeto da concessão judicial deve recair sobre eles, ainda que o demandante tenha postulado a prestação do produto de referência. Em quinto e último lugar, deve-se avaliar se o beneficiário é carente de recursos financeiros, de forma a ter não condições de prover, de alguma maneira, a medicação requerida (LIMA, 2010, p. 251). Isso porque, embora seja a saúde um bem fundamental, assegurado por um sistema público não diretamente contributivo – diferentemente do sistema previdenciário, portanto –, a obrigação pela sua proteção não é única e exclusiva do Estado: também a família, as empresas, a sociedade e o próprio pleiteante são responsáveis pela defesa e proteção da saúde (art. 2º, §2º, Lei n° 8.080/90). Destaque-se, nesse sentido, o “princípio da subsidiariedade”, que fundamenta obrigações de “co-responsabilidade” (em relação à proteção da saúde das outras pessoas) e de “autorresponsabilidade” (em relação à própria saúde) em relação à saúde do indivíduo (SARLET, 2009, p. 361).8

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Faça-se, à guisa de conclusão, uma ressalva. É que a tentativa de dar uma solução à problemática da reserva do possível com base na teoria do mínimo existencial pode induzir à conclusão de que os direitos fundamentais prestacionais, em geral, e o direito à saúde, de modo particular, podem ser tomados, em sua área não nuclear, como meras declarações, diretivas cuja realização se relega à boa vontade dos Poderes Públicos. Diante disso, é importante observar que as normas definidoras dos direitos prestacionais sociais possuem força vinculante e imperatividade – como, de resto, toda norma jurídica. Portanto, também elas, originariamente, podem servir de fundamento para pedidos e decisões judiciais.

8 É fundamental observar, todavia, que esse parâmetro – assim como os demais parâmetros aqui descritos – não é absoluto, ou seja, não impede a avaliação de outras circunstâncias do caso concreto.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 250 Faça-se, agora, uma ressalva à ressalva. Cumpre não alargar em demasia o campo de atuação do Poder Judiciário nessa matéria. Isso porque o poder-dever de manejar os meios pertinentes para realização destes direitos está posto a cargo, como assinalado, dos Poderes Políticos. Há um papel a ser desempenhado pelo Judiciário no processo de efetivação dos direitos sociais, não há dúvida, mas uma judicialização excessiva das matérias confiadas às instâncias majoritárias, além de levantar a suspeita da ilegitimidade democrática, ainda pode trazer consequências indesejadas, como a distribuição dos bens e serviços apenas entre os poucos que têm acesso às vias judiciais e a desestruturação da ação administrativa voltada para a concretização destes direitos. Além disso, não se pode fechar os olhos para a realidade, de forma a acreditar que recursos públicos são infinitos e que, se necessidades sociais não são atendidas, encontra-se o Judiciário autorizado a sindicar toda e qualquer opção político-orçamentária. Os Poderes incumbidos da ordenação dos gastos públicos são o Legislativo e o Executivo; logo, é sobre eles que deve cair, tipicamente, o ônus de realizar as decisões orçamentárias e de responder pelas opções equivocadas. A advertência de que os recursos financeiros públicos são limitados, e que, por isso mesmo, as escolhas que decidem por sua destinação são sempre trágicas, dramáticas, continua sendo da maior relevância aqui.

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 254 DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE E SERVIÇO SOCIAL: REFLEXÕES SOBRE A SAÚDE NO BRASIL

SOCIAL DETERMINANTS OF HEALTH AND SOCIAL WORKS: REFLECTIONS ON

Zilda Cristina do Santos1* RESUMO: Este estudo propõe-se a investigar as determinantes sociais da saúde sob o âmbito da política brasileira e a inserção do Serviço Social nessa área. Foi realizada uma revisão da literatura. Nesse paradigma, vislumbra- se os desafios postos ao profissional do Serviço Social na área da saúde atinem-se ao resgate dos propósitos constitucionais da saúde pública em face das iniquidades observadas no contexto político brasileiro desde a década de 1990. Palavras-chave: determinantes sociais da saúde. Serviço Social. política de saúde ABSTRACT: This study aims to investigate the social determinants of health under the sphere of Brazilian Policy and the insertion of the Social Service in this area. It was performed a literature review. In this paradigm, it is possible to see the challenges posed to the professional of the Social Service in the health area are linked to the recovery of the constitutional proposals of the public health in the face of the inequalities in the Brazilian political context since nineties. Keywords: social determinants of health. Social Works. health policy.

INTRODUÇÃO

No Brasil, os Determinantes Sociais da Saúde (DSS) são definidos como as condições sociais que as pessoas vivem e trabalham, sendo essa conceituação realizada com base na Organização Mundial de Saúde (OMS). A esse respeito, tem-se a criação da Comissão Nacional de Determinantes Sociais (CNDSS) pelo Ministério da Saúde, no ano de

* Assistente Social, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Faculdade de Ciência Humanas e Sociais - UNESP de Franca/SP. Bolsista CAPES. Especialização em andamento em Gestão Pública pela Universidade Federal de São Paulo. Preceptora do Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Membro dos seguintes grupos de pesquisas: Estudos em Direito e Mudança Social; Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Política de Saúde e Serviço Social da UNESP e Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Políticas Públicas para a Infância e Adolescência UNESP/FrancA. Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, pós-graduada lato-sensu do Programa Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade Federal do Triangulo Mineiro, graduada pela Universidade de Uberaba, atuou no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, na Clinica Oncologia- Hematologia desde 2012. Atuou como Professora Substituta do Magistério Superior do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (2014-2016). Foi bolsista da FAPEMIG Foi tutora do Programa de Bolsa Auxílio Permanência da UFTM e supervisora de estágio em Serviço Social. Foi professora bolsista Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego- PRONATEC/UFTM 2017 Número do Orcid: https://orcid. org/0000-0002-0161-3832.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 255 2006, fruto do processo de construção de Reforma Sanitária, que antecedeu a Constituição Federal de 1988 e garantiu a saúde de forma universal, além da participação social e política dos usuários e profissionais. O Movimento da Reforma Sanitária, instituído na década de 1970, oportunizou o debate no tocante ao acesso à saúde pela população de forma ampliada e irrestrita. Essa nova configuração do direito permitiu a inserção de parcela da população que não fazia parte do mercado formal de trabalho. Assim, a saúde no Brasil passou a ser entendida numa perspectiva ampliada, para além da ausência da doença, e a envolver diversos outros elementos da conjuntura social e de relações do cidadão, de acordo com o prescrito pela Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 1946 (OMS, 1946). A partir desse redimensionamento, o Estado passou a assumir a responsabilidade pelo provimento do direito à saúde, sendo esta colocada no texto constitucional em seu art. 1961. Contudo, o formato conferido ao direito à saúde em 1988 não conseguiu sobreviver aos anos que se seguiram na política brasileira. A Reforma Administrativa, na década de 90, representou a retração das políticas sociais, a desresponsabilização do Estado na área social e o desmantelamento do sistema de seguridade social implantado pela Constituição Federal, que coloca a saúde como direito universal e sem caráter contributivo. Considerando essa conjuntura, grande parcela da população brasileira viu-se excluída do sistema de saúde pública, vez que a retração nos investimentos nessa área implicou no avanço mercadológico – pois houve a divisão entre público e privado, com base nas condições econômicas das pessoas -, o que representou no âmbito social um entrave à efetivação do direito perante o Poder Público. Com base nesses pressupostos, o presente estudo propõe-se à investigação dos determinantes sociais da saúde sob o enfoque do Serviço Social, de forma a considerar todo o aspecto histórico que envolve essas áreas e as políticas sociais afetas a elas.

1 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 256 DESENVOLVIMENTO

1 A COMISSÃO NACIONAL DE DETERMINANTES SOCIAIS (CNDSS)

A CNDSS foi criada efetivamente no Brasil em março de 2006, pelo Governo Federal – Ministério da Saúde, com o objetivo de mobilizar a sociedade brasileira e o próprio governo para entender e enfrentar, de forma mais efetiva as causas sociais das doenças e mortes que acometem a população, bem como reforçar socialmente o benefício em trabalhar a saúde coletiva (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007, p. 88). Partindo da definição do conceito de saúde pela OMS2, e com base no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, a CNDSS adotou três compromissos de atuação, sendo estes: Compromisso com a ação: implica apresentar recomendações concretas de políticas, programas e intervenções para o combate à iniquidade de saúde geradas pelos Determinantes Sociais na Saúde. Compromisso com a equidade: a promoção da equidade em saúde é fundamentalmente um compromisso ético e uma posição política que orienta as ações da CNDSS para assegurar o direito universal à saúde. Compromisso com a evidência: as recomendações da Comissão devem estar solidamente fundamentadas em evidências científicas, que permitam, por um lado, entender como operam os determinantes sociais na geração de iniquidades em saúde e, por outro, como e onde devem incidir as intervenções para combatê-las e que resultados podem ser esperados em termos de efetividade e eficiência. (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007, p. 88-89). Logo, o modelo de DSS, seguindo pelo Ministério da Saúde, conforme figura 1, apresenta as diferentes camadas distais, desde a mais próxima dos determinantes individuais até a que se situa nos macrodeterminantes - produção agrícola e alimentos, educação, ambiente de trabalho, desemprego, água e esgoto e serviços sociais de saúde e habitação:

2 A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade (OMS, 1946).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 257 Figura 1 – Determinantes Sociais da Saúde (DSS) de Dahlgren e Whitehead

Fonte: Buss e Pellegrini (2007, p. 84). Assim, os principais objetivos da CNDSS são: • Produzir conhecimento e informações sobre o DSS no Brasil. • Apoiar o desenvolvimento de políticas e programas para a promoção da equidade em saúde. • Promover atividade de mobilização da sociedade civil para tomada de consciência e atuação sobre os DSS. (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007, p. 89). Trabalhar a implementação de políticas públicas que garantam o acesso da população à saúde, bem como a prevenção das doenças e seus agravos, ainda se constitui em um desafio tanto para os trabalhadores da saúde como para sociedade como um todo. Cabe destacar que a CNDSS é destinada àqueles que acreditam no processo saúde-doença- cuidado, para além do aspecto biológico e individual, devendo ser vislumbrado na manifestação decisiva dos indivíduos no contexto socioeconômico e cultural em que nascem, vivem e morrem, merecendo toda a atenção e ação desta comissão (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007). Diante disso, a situação de pobreza não pode ser entendida apenas como falta de acesso a bens materiais, mas também como falta de acesso a oportunidades, de opções e de voz frente o Estado e à Sociedade. Os

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 258 DSS abrangem os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam na ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população. Logo, eles devem estar na pauta dos trabalhadores da saúde, bem como dos organismos institucionais de saúde, sejam públicos ou privados. Com base nessa concepção, o Ministério da Saúde optou por uma abordagem mais abrangente, definindo três linhas de ações, sendo a primeira, as desigualdades sociais, regionais, étnico-raciais e de gênero da morbimortalidade e dos fatores de risco; a segunda, a desigualdade no acesso e qualidade dos serviços de saúde e intervenções sociais; e, por fim e não menos importante, a terceira, que se refere aos aspectos metodológicos dos estudos sobre os determinantes sociais na saúde. O trabalho da CNDSS de compilação, revisão e análise de sistemas de informação em saúde, com ênfase em dados e informação sobre os determinantes sociais da saúde deve ter como objetivo facilitar o acesso por parte de pesquisadores, gestores públicos em geral. Assim, tais informações deverão ganhar a vida da população usuária dos diversos serviços de saúde.

2 A ATUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NA SAÚDE

Para dispor sobre a atuação do Serviço Social na Saúde faz-se necessário, primeiramente, abordar a relação entre as ciências sociais e as ciências médicas, sob uma perspectiva de que uma encontra-se interligada a outra: “[...] ‘a ciência médica é intrínseca e essencialmente uma ciência social’, que as condições econômicas e sociais exercem um efeito importante sobre a saúde e a doença, e que tais relações devem submeter à pesquisa científica.” (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2006, p. 2006). Quanto ao termo saúde pública Pellegrini Filho entendia que o seu caráter político e a sua prática deveria conduzir necessariamente à intervenção na vida política e social para indicar e eliminar os obstáculos que dificultam a apropriação e usufruto da saúde, cujo reflexo direto estava diretamente relacionado às condições de vida da sociedade. Dessa forma, há que se fazer a articulação entre os diversos aspectos que se relacionam às condições de vida das pessoas em sociedade, inclusive como forma de buscar a prevenção e a manutenção da saúde, além de impedir o agravamento das doenças já instituídas e em curso.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 259 Nos últimos anos houve um aumento em quantidade e qualidade de estudos acerca das relações entre saúde das populações, as desigualdades nas condições de vida e grau de desenvolvimento no que diz respeito a vínculos e associações entre indivíduos e grupos. Neste sentido Buss e Pellegrini Filho (2006, p. 2006) afirmam: A desigualdade na distribuição de renda não é prejudicial à saúde somente dos grupos mais pobres, mas é também prejudicial para à saúde da sociedade em seu conjunto. Grupos de renda média em um país com alto grau de iniquidade de renda possuem uma situação de saúde pior que a de grupos com renda inferior, mas vivem em uma sociedade mais equitativa. No século XX, observa-se a tensão entre o modelo biomédico de atendimento em saúde versus o modelo de atenção integral à saúde. A OMS apresenta como exemplos desta tensão os enfoques de atendimento centralizados nos aspectos biológicos, individuais e tecnológicos, intercalados com outros, bem como destaca fatores sociais e ambientais. Sob esse aspecto histórico, cabe destacar a importância da Conferência de Alma-Ata3, no final dos anos de 1970, cujas atividades foram inspiradas no lema “Saúde para todos no ano 2000”, e que recolocam em destaque o tema dos determinantes sociais. Após a conferência, já na década de 1980, o predomínio do enfoque da saúde como um bem privado desloca novamente o pêndulo para uma concepção centrada na assistência médica individual, a qual, na década seguinte, com o debate sobre as Metas do Milênio, novamente dá lugar a uma ênfase nos determinantes sociais que se afirma com a criação da Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde da OMS, em 2005 (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007). Neste sentido, a partir da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), com as conquistas dos direitos sociais, dentre eles o da saúde, por meio da organização do Sistema Único de Saúde (SUS), foram elaboradas diversas políticas e programas sociais, decreto e normativas que visavam integrar a saúde pública em uma perspectiva de totalidade de atendimento dos usuários dos serviços de saúde, de integralidade; bem como de regionalização que propiciou a condição da abordagem a partir das 3 A Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, reunida em Alma- Ata aos doze dias do mês de setembro de mil novecentos e setenta e oito, expressando a necessidade de ação urgente de todos os governos, de todos os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade mundial para promover a saúde de todos os povos do mundo (CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, 1978).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 260 condições específicas da doença e seu agravamento, quanto dos aspectos culturais e sociais que estão em presença no processo saúde-doença. A Lei Orgânica da Saúde (LOS) - que regulamenta o SUS, e que compõe o conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais - traz um novo panorama para a saúde e o acesso dos sujeitos demandatários dos serviços de saúde no país. Esta, por sua vez, inclui ainda o controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos, medicamentos, inclusive sangue, e de equipamentos de saúde, bem como aspectos sociais que determinam ou condiciona, o processo de adoecimento do cidadão. Assim, os objetivos do SUS são apresentados da seguinte forma: a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde, a formulação de políticas de saúde destinadas a promover a redução de doenças e outros agravos, nos campos econômico e social, a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação social, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas (BRAZ, 2005). No mesmo aspecto, o art. 200 da Constituição Federal de 1988 define como principais atribuições do SUS: a prevenção e o tratamento de doenças, a formulação de políticas públicas, a execução de ações de saneamento básico, o desenvolvimento tecnológico e científico, a fiscalização e inspeção de alimentos e bebidas, a colaboração com a proteção do meio ambiente, o controle e a fiscalização de elementos de interesse para a saúde, a vigilância sanitária e epidemiológica, a participação na produção de medicamentos, procedimentos, produtos e substâncias de interesse da saúde, bem como a saúde do trabalhador. Além dessas configurações, o SUS é regido pelos princípios da universalidade, integralidade, equidade, descentralização, regionalização e hierarquização, participação do setor privado de forma complementar, racionalização dos serviços, eficiência, eficácia e participação de todos os segmentos da população (MOTA, 2006). Tais princípios corroboram e dialogam de forma íntima com os princípios e valores do Serviço Social, amparados por suas regulamentações e compromisso ético político na sociedade brasileira. Ambos têm em presença, o compromisso com a cidadania entendida para além do acesso, mas de condições de se manter saudável, de forma integral. Destarte, há que se destacar que para a implementação das referidas ações e compromisso, muitos desafios são colocados ao Serviço Social, sobretudo no que se relaciona à condição de trabalho ofertada

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 261 aos assistentes sociais atuantes na área da saúde, que nem sempre vai de encontro aos princípios do Projeto Ético Político da Profissão e do Código de Ética Profissional. Apresenta-se como forma de enfrentamento aos desafios, o trabalho interdisciplinar. Este possibilita ao assistente social, a veiculação de informações e conhecimentos acerca de diretos sociais e políticas públicas, fazendo com que o usuário seja sujeito dos seus direitos. Essa perspectiva faz com que a solução de problemas por esse profissional seja feita com base nos direitos sociais, com o compromisso de construir uma sociedade democrática, cidadã e saudável, no seu sentido mais profundo e fidedigno.

3 A INSERÇÃO HISTÓRICA DO SERVIÇO SOCIAL NA SAÚDE

O surgimento do Serviço Social como profissão se deu a partir da década de 1930, devido ao processo de industrialização no país, que teve como consequência o agravamento das expressões da questão social. Precisamente em 1936 surge a primeira Escola de Serviço Social no país, hoje Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Nessa década, surgiram as primeiras escolas de Serviço Social no Brasil com a influência europeia, e que buscava conhecimento do contexto social, com reforço nas ciências sociais, na sociologia, com abordagem grupal, visando controlar a prática social, fortemente ligada à Igreja Católica (IAMAMOTO, 2007). Tal situação tem ressonância no processo de implantação da profissão na América Latina, a destacar no Chile, em que a profissão surge como “colaboradora” ou “assessora” da medicina. No Brasil, no período de 1930 a 1945 a área da saúde não empregou um grande número de assistentes sociais, apesar da formação profissional do Serviço Social incluir algumas disciplinas relacionadas à saúde. Os assistentes sociais eram recrutados a trabalhar com Ação Social e Ação Católica desenvolvendo suas ações com princípio de caridade, mas com foco de uma intervenção ideológica na vida da classe trabalhadora, com base na atividade assistencial, de caráter de fiscalização, controle e repressão (IAMAMOTO, 2007). A partir de 1945, a influência norte-americana substitui a influência europeia, pois os profissionais começaram a defender queo ensino e a profissão nos Estados Unidos tinham atingido um grau elevado de sistematização da ação profissional de cunho psicológico. Essa influência

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 262 norte-americana era de caráter conservador com princípios da sociologia, incorporando a noção de comunidade e o princípio de solidariedade como diretriz ordenadora das relações sociais, porém caracterizava que indivíduo era a base da sociedade. A partir daí a profissão mantém um caráter missionário, com linha de abordagem psicanalítica, com práticas fundamentadas na alienação, produzindo e reproduzindo dessa forma as desigualdades sociais (IAMAMOTO, 2007). A influência americana no Brasil corroborou para a implantação do modelo direcionado a institucionalização, tempo em que se acreditada que o “doente” ofereceria grande risco social, numa sociedade definida como perfeita, e, assim, todos os que desviavam dos princípios e preceitos convencionalmente definidos pela moral perfeita, passaram a ser institucionalizados, e, assim, excluídos do âmbito e convivência social. Na década de 1950, as assistentes sociais tiveram suas ações voltadas para hospitais e ambulatórios. Apesar de já existirem centros de saúde, esses priorizavam suas ações em nível curativo e hospitalar, pois eram requisitados a trabalhar com a contradição entre demanda e o caráter excludente e seletivo da assistência à saúde. Os centros de saúde, não absorviam o trabalho dos assistentes sociais, por existir profissionais denominados visitadores, os quais conseguiam desenvolver atividades como a viabilização da participação popular nas instituições e programas de saúde, que caberia ao assistente social (MOTA, 2006). Já na década de 60, começa a surgir o questionamento do conservadorismo da profissão com base nos princípios das ciências sociais e humanas, em torno da temática de desenvolvimento, conforme já anunciado anteriormente. Porém este processo foi reprimido pelo golpe de 1964, início da Ditadura Militar, período que neutralizou o protagonismo social. Assim, o Serviço Social nos órgãos de assistência médica da previdência foi regulamentado em 1967, e tinha como ações estabelecidas o atendimento individual e grupal de caráter preventivo e curativo, a organização comunitária para mobilização de recursos e reintegração dos pacientes à família e ao trabalho. Foi focalizada a contribuição do assistente social nas equipes interprofissionais com finalidade de fornecer dados psicossociais significativos para o diagnóstico, tratamento e alta do paciente e participar em pesquisa médico social (BRAVO, 2006). No entanto, a prática profissional do assistente social na saúde continuou sendo norteada pela direção modernizadora, porém com ações

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 263 rotineiras, burocratizadas, empiricista, com ênfase na racionalidade e seletividade. Apesar do processo organizativo da categoria, do aparecimento de outras direções para a profissão, do aprofundamento teórico dos docentes de Serviço Social e dos surgimentos dos movimentos sociais urbanos e do movimento sindical, a profissão empreendeu esforços que culminaram, futuramente, na inserção do assistente social nas equipes de trabalho, bem como o reconhecimento dessa profissão como imprescindível para o entendimento dos sujeitos em situação de vulnerabilidade social e de saúde (BRAVO, 2006). Em 1972, foi aprovado o Plano Básico de Ação do Serviço Social na previdência, o qual teve por finalidade definir a política de ação do assistente social nesse campo do saber. Esse plano colocou como meta para o Serviço Social mobilizar as capacidades próprias dos indivíduos, grupos e comunidades, com vistas à integração psicossocial dos benefícios, e, na mesma medida, concentrando a atuação em duas áreas: saúde, por meio do desenvolvendo atividades educativas e, o trabalho e previdência, desenvolvendo atividades educativas que visavam à divulgação e interpretação da previdência social (BRAVO, 2006). Este plano delimitou ações para o Serviço Social de recuperação de segurados incapacitados, focalizando os fatores psicossociais e econômicos que interferem no tratamento médico e manutenção de benefícios, na atuação integrada na clínica pediátrica centrada nos fatores psicológicos, sociais e econômicos responsáveis pelo alto índice de morbidade e mortalidade infantil, bem como no sistema de proteção e recuperação de saúde, incidindo sobre os fatores psicossociais e econômicos que interferem no tratamento médico (BRAVO, 2007). Junto à elaboração do Plano Básico de Ação do Serviço Social na previdência, tem-se a criação do Instituto Nacional de Previdência Social- INPS, marco significativo da Ditadura, no bojo das políticas sociais. Nessa mesma época, as políticas sociais eram elaboradas deforma setorizada, visando implementar a nova racionalidade do modelo político e econômico imposta pela Ditadura (BRAVO, 2006). Nesse sentido, o trabalho dos assistentes sociais era uma resposta institucional ao agravamento das condições vida da classe trabalhadora, que teria como consequência o agravamento das condições de saúde. A técnica de desenvolvimento de comunidades era uma estratégia utilizada pela política econômica, pois se acreditava que é da força da comunidade que vem o interesse racional, e é na comunidade que o homem concebe sua

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 264 totalidade, ou seja, é por intermédio da comunidade que se dá a legitimação das relações sociais (IAMAMOTO, 2007). A modernização conservadora instaurada no período da ditadura militar exigiu a renovação do Serviço Social frente às novas estratégias de controle e repressão efetivada pelo Estado. Assim, a reatualização do conservadorismo e a intenção de ruptura com o Serviço Social tradicional se deram em três direções profissionais: a modernizadora, a ritualização do conservadorismo e a intenção de ruptura com o Serviço Social tradicional. Essas direções começaram a tencionar e dinamizar a sociedade brasileira. Vários eventos foram significativos e oportunizaram debates profissionais, como o Documento de Araxá que apresentou esforço da teorização e uma prática com ações de promoção e prevenção; o Documento de Teresópolis que apresentou a importância de atender as necessidades sociais. O ponto de partida para a renovação do Serviço Social foi dado a partir da produção do conhecimento realizada pelos cursos de pós-graduação (FALEIROS, 2005). O Movimento de Reconceituação foi um processo, que embora incipiente, de desconstrução de um paradigma, na formulação teórica e prática da profissão e de construção de um paradigma questionador e crítico da ordem dominante. Esse movimento trouxe o debate da transformação social no contexto social do capitalismo e da articulação entre o profissional e o cientifico, bem como do profissional e do político com as condições e relações de trabalho. Em consequência da modernização, o Serviço Social na saúde atuou no âmbito das políticas sociais, sedimentando sua ação na prática curativa, especialmente na assistência médica previdenciária. Foram focalizadas técnicas de intervenção, na burocratização das atividades, na psicologização das relações sociais e a concessão de benefícios (MOTA, 2006). A década de 1980 foi marcada pelo protagonismo político, o qual tem o Movimento Sanitário em prol da saúde pública e no Serviço Social houve o debate teórico e a incorporação da teoria marxista, como vertente da profissão. O Serviço Social teve tímida influência do Movimento Sanitário, mesmo estando recebendo influências da época, como a crise do Estado, a falência da atenção em saúde, e a construção da Reforma Sanitária Brasileira, por ter passado por um processo de revisão da negação do Serviço Social tradicional (MOTA, 2006). Por outro lado pode-se ressaltar que a relação do Serviço Social com a Reforma Sanitária nos anos 1980, se dá devido à área da saúde ser

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 265 a maior empregadora de assistentes sociais e também devido às posturas críticas dos trabalhos em saúde apresentados nos Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais, ocorridos nos anos de 1985 e 1989; destaca-se inclusive, a apresentação de alguns trabalhos no Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Porém, os assistentes sociais não tiveram maior participação no movimento sanitário, pois os próprios profissionais da época não interessavam pela intervenção na saúde coletiva, considerando-a como uma atividade subsidiaria. A articulação do Serviço Social com a Reforma Sanitária, concretizaria por meio da intervenção na saúde coletiva, permitindo assim, uma ação global, a ampliação da discussão de determinantes da condição de saúde e participação social (BRAVO, 2006). Com a implantação da ideologia neoliberal, na década de 90, tem-se a instituição de princípios como: a desresponsabilização do Estado, a privatização do setor público, bem como a desregulamentação das leis trabalhistas e a ideologia do consumo. O Projeto Neoliberal traz como demanda para o Serviço Social a seleção socioeconômica dos usuários, a tônica do profissional eclético, logo com atuação psicossocial, a ação fiscalizadora, a presença do assistencialismo e o predomínio de práticas individuais. Já o Projeto de Reforma Sanitária, traz como demanda para o Serviço Social a busca pela democratização do acesso e implementação do atendimento humanizado, estratégias de interação da instituição de saúde com a realidade, e com a perspectiva interdisciplinar; ênfase nas abordagens grupais como forma de aglutinar os interesses e a mobilização social dos sujeitos sociais, bem como acesso democrático as informações e estímulo à participação social (MOTA, 2006). O Código de Ética do profissional de Serviço Social, assim como a Lei de Regulamentação da Profissão n. 8662/1993 são meios que consolidaram o Projeto Ético Político Profissional, tendo suas raízes no Movimento de Reconceituação. O Código de Ética de 1993 é a revisão do Código de Ética de 1986 que expressa as aspirações coletivas dos assistentes sociais brasileiros, reafirmando os seus valores e princípios fundantes, a liberdade e a justiça social articulando-as a partir da exigência democrática (FALEIROS, 2005). Em contrapartida aos princípios do Código de Ética, tem-se em sociedade, a proposta neoliberal, que prevê (e incentiva) o assistencialismo, políticas sociais fragmentadas e focalistas, redução dos gastos públicos, valorização da privatização, redução dos direitos por meio da seleção e

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 266 classificação socioeconômica; nessa perspectiva destaca-se o grande incentivo da sociedade do capital às iniciativas da sociedade civil para que assuma as responsabilidades do Estado. Essa proposta neoliberal torna-se um desafio para o exercício profissional devido à burocratização e à desresponsabilização do Estado. Com isso, cabe ao assistente social recorrer aos princípios da Reforma Sanitária, concretizados no Sistema Único de Saúde, por meio da Constituição Federal de 1988, buscar a defesa da democratização, bem como propor atendimento humanizado e incentivar a participação social. Dessa forma, o assistente social irá superar a proposta neoliberal e atender aos princípios do Código de Ética e da Reforma Sanitária, por meio de ações propositivas fundamentadas em ambos, e na legislação social e no Projeto Ético Político. O Código de Ética estabelece também disposições gerais sobre a profissão, direitos e responsabilidades gerais dos assistentes sociais, e das relações profissionais com os usuários, assim como das relações profissionais com instituições empregadoras e, outros profissionais, e com entidades da categoria e demais das organizações da sociedade civil. Ainda prevê o sigilo profissional, as relações do Serviço Social com a justiça e penalidades. Nesse sentido, o Projeto Ético Político caracteriza o Serviço Social como uma profissão crítica, tem suas raízes no Movimento de Reconceituação, com comprometimento nos interesses da população, preocupado com a qualificação acadêmica e a interlocução com as ciências sociais, investindo fortemente na pesquisa. O Projeto Ético Político hoje permite ao assistente social intervir ativamente no plano da formulação de políticas públicas, fazendo com que a profissão tenha hegemonia na produção teórica do campo profissional, resultando dessa forma, no reconhecimento social da profissão, respeitabilidade pública, inclusive pela sua intervenção política. É a partir do IX Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), em 1998, que começa a consolidação sobre o Projeto Ético- Político da profissão. Porém, juntamente a esta discussão, fica uma parte da categoria sem conhecer o tema dado à escassa produção de conhecimento, o que foi superado a partir da década de 1990. Dessa forma, de acordo com Braz (2005, p. 413): Os interesses particulares de determinados grupos sociais, como o dos assistentes sociais, não existem independentemente

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 267 dos interesses mais gerais que movem a sociedade. Questões culturais, políticas econômicas articulam e constituem os projetos coletivos, assim os projetos societários presentes na dinâmica de qualquer projeto coletivo, inclusive no projeto Ético Político do Serviço Social. Neste sentido, Mota (2006) nos traz que o processo de cooperação envolve atividades especializadas, saberes e habilidades que mobilizam, articulam e põem em movimento unidades de serviços, tecnologias, equipamentos e procedimentos operacionais. E é partir desse processo que se observa as particularidades da inserção do trabalho dos (as) assistentes sociais no processo de trabalho coletivo no SUS. As políticas sociais que fundamentam a atuação do assistente social na saúde são o Estatuto da Criança e Adolescência, o Estatuto do Idoso, a Política Nacional da Assistência Social, a Constituição Federal de 1988, a Política Saúde (SUS), dentre outras já destacadas no presente estudo. Estas políticas permitem o desenvolvimento de ações que visam à condição de inserção do cidadão às políticas públicas garantidoras de direitos à sociedade, e, assim, de melhoria de condições vida das pessoas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de ser um avanço, a criação da Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde não consegue alcançar toda dimensão e necessidade da saúde pública no Brasil, principalmente as camadas mais pobres. Apesar da existência de algumas ações pontuais, a não valorização do Estado em ampliar estas ações, faz com que os serviços de saúde não sejam ofertados de acordo com necessidade real do usuário. Na política de saúde a dinâmica de exploração versus dominação se expressa a partir das relações de trabalho existentes na operacionalização dos serviços, que conta com privatização e terceirização. E, a partir dessa estrutura de limite da atuação social do Estado, ensejado pela Reforma do Estado iniciada em meados da década de 1990, que fatores como a burocratização impacta no acesso universal à saúde, bem a hierarquização interna da gestão dos serviços de saúde, que resulta em uma sistematização dos serviços de saúde a partir da seleção de prioridade para serem tratadas. Neste cenário, vislumbra-se o aprofundamento das iniquidades na área da saúde ante o avanço mercadológico. A divisão entre o público e o privado nesse âmbito faz com que surjam novos desafios ao profissional do

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 268 Serviço Social, sobretudo no que diz respeito ao resgate dos fundamentos constitucionais do direito à saúde.

REFERÊNCIAS

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Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 269 OMS. Constituição da Organização Mundial da Saúde. , 1946. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/ OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/ constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html. Acesso em: jul. 2018.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 270 EIXO TEMÁTICO: POLÍTICA SOCIAL, CLASSE, GÊNERO E ETNIA

OS IMPACTOS DO NEOLIBERALISMO SOBRE AS POLÍTICAS SOCIAIS VOLTADAS A PESSOA TRANS

THE IMPACTS OF NEOLIBERALISM ABOUT SOCIAL POLICIES AIMED AT TRANS PERSON

Bruna Beatriz Lemes Carneiro1* RESUMO: Este trabalho tem como intuito denunciar a ausência de políticas sociais destinadas às pessoas trans e apontar a necessidade de fomentar as políticas já existentes, ampliando os direitos sociais para que estas tenham acesso. Buscando elucidar as configurações do modo de produção capitalista, pretende-se trazer à luz o debate sobre como se dá a inserção da pessoa trans na sociedade de classes, principalmente nesse momento de ofensiva do neoliberalismo e como que este vem impactando diretamente. Palavras-chave: políticas sociais. pessoa trans. neoliberalismo. ABSTRACT: This work aims to denounce the absence of social policies aimed at transgender people and to point out the need to promote existing policies, expanding social rights for them to have access. Seeking to elucidate the configurations of the capitalist mode of production, it is intended to bring to light the debate about how the insertion of the trans-person in class society occurs, especially in this offensive moment of neoliberalism and how it has directly impacted. Keyword: social policies. trans person. neoliberalism.

INTRODUÇÃO

O modo de produção capitalista não é apenas um sistema produtivo e econômico. É necessário entender a forma como o mesmo se configura para que também possamos compreender as relações sociais intrínsecas à este modo de sociabilidade. Não se trata apenas da produção e reprodução da vida material, mas a estrutura sobre a qual a construção do sujeito está submetida, tendo em vista que a sociedade está dividida em classes sociais. Segundo Iamamoto e Carvalho (2008, p. 30), o modo de produção capitalista “[...] é uma maneira historicamente determinada de os homens produzirem e reproduzirem as condições materiais da existência humana e as relações sociais através das quais levam a efeito a produção.” O capitalismo é um sistema político, econômico e social, envolto em um emaranhado de contradições. Uma das razões pelas quais essas contradições ocorrem é pela forma que esta sociabilidade está organizada, onde seu desenvolvimento

* Graduada em Serviço Social pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP - Franca), integrante do grupo Teoria Social de Marx e Filosofia, Arte e Política (FIAPO). Graduanda em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 273 está pautado na exploração do trabalho e concentração da riqueza socialmente produzida nas mãos de poucos. Dessa forma, o sistema capitalista é por essência injusta e excludente, onde a busca incansável do lucro, aumenta consequentemente a superexploração do trabalho da maioria. Sendo tal sistema produtivo pautado na exploração do homem pelo homem e na apropriação privada da riqueza socialmente produzida, a lógica excludente está imbricada ao modo de produção capitalista. Tendo em vista que o processo produtivo se baseia e se desenvolve na superexploração do trabalho, e já tendo elucidado que tal processo já é por si excludente, percebe-se que na lógica do capital, há um aprofundamento da questão social, onde determinados grupos de pessoas acabam sendo excluídos e privados de seus direitos sociais. Refletindo sobre a lógica capitalista e a sociedade, o presente trabalho busca trazer à luz o estudo sobre a pessoa trans inserida nessa sociabilidade. Historicamente, as pessoas trans sempre estiveram às margens da sociabilidade burguesa, uma vez que essas encontram dificuldades de se inserir no mercado de trabalho formal, dentre outros fatores. Deste modo verifica-se a necessidade do desenvolvimento de políticas sociais que sejam voltadas à população trans. No entanto, no atual contexto do Brasil, há uma ofensiva do grande capital, que tem impacto direto nas políticas sociais e na seguridade social. Para o desenvolvimento do trabalho, buscamos explicitar a função da política social, a problemática envolta sobre a mesma na sociabilidade burguesa, alguns quadros sobre a pessoa trans no contexto do neoliberalismo e na realidade brasileira, e principalmente os impactos do mesmo sobre a política social.

1 POLÍTICA SOCIAL

Existe um debate sobre a política social e suas leituras. Para ler e entender a política social é necessário que entenda o contexto em que a mesma está inserida, onde estão ilustradas em modernas funções do Estado, sendo que este tem como função amenizar as contradições inerentes ao próprio modo de produção capitalista. Pensar a política social é necessário que se pense de forma crítica, reconhecendo a sua importância e necessidade, mas entendendo

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 274 que estamos inseridos na sociedade capitalista, dessa forma, é necessário entender que as políticas sociais estão operando em meio á um sistema produtivo que se movimenta segundo sua própria lógica, estabelecendo assim, um caráter contraditório à sua própria essência, uma vez que a mesma não propõe uma transformação radical da sociabilidade burguesa, mas apenas uma forma de amenizar as “expressões da questão social”. A política social é composta por um complexo político- institucional: a Seguridade Social. A ideia de seguridade social surge com Otto Von Bismarck, e seguido por Beveridge, na década de 1940, do qual constitui a base do Welfare State. O aprofundamento da “questão social” decorrente do modo de produção capitalista e a crise econômica são os fatores determinantes para o desenvolvimento do sistema de proteção social. Com a crise de 1929, aumentou o índice de desemprego, fato que fez com que o Estado passasse a intervir na economia e na sociedade civil. É por meio de investimentos públicos que se poderia assegurar um alto nível de atividade econômica e responder as expressões da questão social: por meio de políticas sociais. Com o passar do tempo, a classe trabalhadora passa a reivindicar seus direitos na sociedade, o que deu visibilidade à outros grupos e seguimento. Grupos que também são trabalhadores, mas que ao longo da história da humanidade, foram marginalizados e excluídos do sistema produtivo. Um desses grupos é o grupo de pessoas trans. As pessoas trans, estiveram em nossa sociedade marginalizadas e subordinadas à discriminação de outros setores sociais. As pessoas trans têm sido alvo de subordinação do complexo sociedade-Estado desde que foram colocadas injustamente à margem de uma sociedade preconceituosa, hipócrita e discriminatória, simplesmente por serem e assumirem quem são, para si e para o mundo, a identidade que lhes é de direito. O desrespeito contínuo, a agressão física, psicológica e moral, os maus tratos, a negação de direitos e falta de cidadania somam – se para se resultar em um ser de direitos limitados e de existência negada. (LIMA; ABALA, 2015, p. 3). Desse modo, se faz necessário o desenvolvimento de políticas sociais destinadas à população trans, e capacitação de profissionais de demais políticas públicas para o acolhimento destas pessoas.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 275 2 REALIDADE BRASILEIRA DA POPULAÇÃO TRANS

Para retratar o quadro da realidade brasileira, partimos de informações levantadas por organizações voltadas ao público trans, revisão de literatura, redes de dados virtuais e a experiência de uma das autoras como mulher trans há 10 anos transitando desde situações de exploração a inserção no Universo Escolar e Acadêmico. A discussão sobre políticas públicas destinadas a pessoas trans foi tardia na história do desenvolvimento da cidadania brasileira. A Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), por não mencionar os termos identidade de gênero e orientação sexual retardou a criação e implementação de leis voltadas a diminuição da minorização e violência causadas por questões de gênero. No entanto os valores de igualdade e direitos humanos comuns a cidadania presentes na constituição permitem desdobramentos jurídicos e avanços legais na luta trans. Essa luta permanece invisibilizada em nosso país, até o final dos anos de 1990, quando nasce a possibilidade de um debate público sobre travestilidade e transexualidade. As primeiras organizações de travestis brasileiras foram independentes, auto-organizadas e surgem como resposta a agressão policial sofrida pelas trans prostitutas de rua e a luta contra a AIDS1. A formação desses grupos militantes foi necessária e crucial para os avanços nas conquistas de direitos por pessoas trans. Coletivos, Organizações não Governamentais (ONGs), nacionais e regionais, ligados a instituições de saúde, ensino, ou independentes foram os propulsores e alavancadores do debate e instauração das políticas públicas existentes hoje nessa área. Apesar desses avanços, queremos ressaltar que essas políticas vêm sendo debatidas a menos de 20 anos. E devido a forte influência religiosa no congresso brasileiro, esses avanços se desenrolam em um ritmo demasiado lento e que não acompanha o desenvolvimento da sociedade e da ciência. Somente em 2018 a transexualidade foi retirada da Classificação Internacional de Doenças (CID) - CID 10 (OMS, 2008) como transtorno de identidade. Nesse mesmo ano, após anos de discussões e votações foi regulamentada a mudança de nome e gênero pelos cartórios civis. Até então era necessária a abertura de um processo judicial invasivo e discriminatório.

1 Acquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS) - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 276 As pessoas trans no Brasil ainda têm sua identidade negada, são alvos de preconceitos e desatendimento de direitos fundamentais como educação. A organização binária e a heterossexualidade compulsória (FARIA, 1998) excluem estes corpos transgressores do ambiente escolar, ao causar constrangimentos por negação da identidade, do nome social, no uso dos banheiros, na forma estrutural e organizacional do espaço e dinâmica escolar e até nos conteúdos curriculares e na forma como são abordados (SANTOS, 2010). Ao serem retiradas do ambiente de ensino-aprendizagem, as pessoas trans se tornam suscetíveis, em geral, a exclusão, marginalização, drogadição, prostituição e o não acesso aos direitos civis mais básicos. Nesse panorama, a quantidade de assassinatos de pessoas trans no Brasil é a maior do mundo em números absolutos, evidenciando o grau de violência contra essa classe social. Além de homicídios, a América Latina desponta nos índices de agressões física, verbais e simbólicas que compõem os signos sociais. Percebe-se que mesmo com a recente inclusão e visibilidade das pessoas trans na mídia e redes sociais, a transexualidade ainda é estigmatizada, com programas de políticas públicas específicas desenvolvidas de forma paliativa, sem eficácia e efeito real, há muito que avançar. Neste contexto é necessário problematizar e refletir sobre as demandas e implementações destas, nos desdobramentos atuais das recentes conquistas e na tentativa de inserir essa temática nos currículos da Educação Básica e Superior, com o cuidado para não reforçar as opressões e violências destinadas à essa comunidade.

3 POLÍTICAS SOCIAIS VOLTADAS ÀS PESSOAS TRANS

Atualmente no Brasil, as questões de transexualidade e travestilidade têm sido discutidas a partir da mobilização popular em conjunto com os poderes legislativo e executivo, resultando em inovações na legislação. A partir da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros (LGBT) lançada pelo Ministério da Saúde em 2013, a perspectiva nacional é de enfrentamento às discriminações e injustiças que afastam pessoas trans e limitam o seu acesso ao serviço de saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 277 A adoção do nome social nos serviços de saúde é normatizada pela Portaria n. 1.820/2009 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009), na qual indica a obrigatoriedade de inclusão do nome social nos documentos dos usuários. No entanto, a Carta dos Direitos dos Usuários do SUS, no terceiro princípio, já garantia desde 2007, o campo para preenchimento do nome social. Além disso, no que diz respeito aos direitos de transexuais realizarem a cirurgia de mudança de sexo, medidas importantes têm sido tomadas pelo Ministério da Saúde. A Resolução 1.652/2002 do Conselho Federal de Medicina, determina as condições em que a cirurgia pode ser realizada, o que inclui, no plano prático, ela deve ser realizada em “Art. 5º [...] hospitais universitários ou hospitais públicos adequados à pesquisa.” (CFM, 2002). A Secretaria Geral da Presidência da República em 2005 iniciou a chamada de editais para instituições públicas ou não governamentais para o financiamento de projetos contra a transfobia. Já o Ministério da Educação no mesmo ano, começou a divulgação de editais para a capacitação de profissionais da educação sobre a transexualidade. Diversos projetos governamentais foram desenvolvidos nos últimos anos para combater e amenizar a violência e exclusão sofridas pelas pessoas trans. Enquanto, outras tentativas foram inibidas e atrasadas. Mostra-se importante fomentar o debate e a produção acadêmica com enfoque às questões de transsexualidade e travestilidade para alcançarmos a equabilidade e cumprimento dos direitos humanos assegurados pela Constituição de 1988.

4 OS IMPACTOS DO NEOLIBERALISMO NAS POLÍTICAS SOCIAIS

O neoliberalismo se trata de uma nova forma do liberalismo econômico, ideologia da qual o capitalismo passou a se desenvolver. No entanto, o neoliberalismo traz ideias antidemocráticas e baseados no Estado-mínimo, no qual o mesmo pretende destruir o Estado democrático de direito, e passa a ser o mais importante o mercado, ou seja, o neoliberalismo faz com que todo direito, que foi conquistado com luta dos segmentos oprimidos da sociedade faça parecer um favor concedido, fazendo parecer que sua suspensão possa se dar a qualquer momento, utilizando-se da demagogia de que o Estado está “inchado” demais, devendo assim cortar gastos sociais.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 278 O neoliberalismo é a ideologia na qual a tese defendida é a de que o principal mecanismo de regulação social é o mercado, podendo o mesmo interferir na proteção social. Enquanto o Estado de bem estar social propõe a implementação de políticas sociais de modo a amenizar as contradições dispostas entre as classes antagônicas, neoliberalismo vem em seu combate. O ajuste neoliberal coloca em prática a reestruturação produtiva, passa a desregulamentar os direitos sociais. Os cortes estimulam o trabalho autônomo, deixando o trabalhador desprovido de qualquer proteção, e intensificando a acumulação. É o cenário em que se passa a transição do capital produtivo para o capital financeiro. Neste cenário que a reestruturação produtiva que estatais passam a ser privatizadas, desmonte da saúde pública, da educação e das políticas sociais em seu âmbito geral. Os resultados de tais medidas só podem terminar em barbárie e caos social, onde a inexistência de trabalhos e recursos que facilitem a vida levam ao aumento da violência, aumento da marginalização e da miséria. Sendo o neoliberalismo o modelo sócio econômico imposto, impacta diretamente a população trans com o corte de gastos, afetando a poucas políticas sociais que são destinadas a população trans.

REFERÊNCIAS

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Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 281

A MARCA DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO NA ASSISTÊNCIA SOCIAL

THE MARK OF SOCIAL RELATIONS OF SEX IN SOCIAL ASSISTANCE Patrícia Gomes Morandi * RESUMO: Esse artigo trata da marca deixada na Assistência Social pelas relações sociais de sexo, ou relações de gênero, termo este que particularmente não acredito ser adequado, porém ao longo do texto pautarei esse ponto. O presente ainda destaca a importância da tradição feminina para os fundamentos da Assistência e concomitante do Serviço Social. Relata então a historicidade da Assistência, os fundamentos de gênero e a interrelação entre ambas categorias. Palavras-chave: assistência. gênero. Serviço Social. ABSTRACT: This article deals with the brand left in the Social Assistance by the social relations of sex, or gender relations, a term that I do not particularly believe to be adequate, but throughout the text I will point this point. The present also highlights the importance of the feminine tradition for the foundations of the Assisted and Concomitant Social Work. It then reports on the historicity of Assistencia, the gender fundamentals and the interrelationship between the two categories. Keywords: assistance. genre. Social Work.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem a contribuir com a formação teórica dos assistentes sociais, dos futuros profissionais e demais quem interessar. Nasceu da necessidade de demonstrar essa marca feminina na Assistência Social. Marca esta que não está camuflada ou mascarada, mas que é fortemente percebida no cotidiano da profissão. Seja pelas usuárias ou pelas profissionais, são números consideravelmente maiores, fato que vem atrelado desde seu passado. Mostrar a importância teórico-prática desse debate para o Serviço Social, assim como a construção ético-política dos profissionais são pontos fundamentais deste artigo. Inserir dentro do contexto político atual, e contextualizar em governos atuais. Pretende- se além dos já citados relatar sobre a ligação entre gênero e assistência. O método escolhido para o trabalho foi o materialismo histórico, onde a partir de uma análise do passado é possível compreender o atual movimento do presente, no qual transpassa-se por uma investigação sobre a assistência em cima de uma conjuntura temporal. A partir disso relata-se a intervenção Estatal, até a própria formação da seguridade * Estudante de Serviço Social na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - FCHS Campus de Franca.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 283 social e como o governo intervém sob politicas publicas que favorecem a repercussão do capital. Importa também a escolha das referências que aqui encontra-se mulheres que pesquisam gênero, e dentre elas, assistentes sociais. Este é um traço importante, pois há de se dar protagonismo aos oprimidos e cabe as camadas dominantes respeitarem seus respectivos espaços de fala.

1 ASSISTÊNCIA SOCIAL

As raízes da assistência social se dão por meio das ações de caridade, realizadas principalmente pelas primeiras-damas, damas de caridade e mulheres associadas a vida religiosa e a igreja. Logo essa marca de gênero vem atravessando toda a trajetória das políticas sociais brasileiras. Em dado momento, concentra-se uma emergente questão social, cada vez mais acentuada e o Estado se vê na obrigação de atenuar conflitos gerados pela contradição presente entre o capital e trabalho. Afim de também controlar movimentos reivindicatórios derivados dos acirramentos dos conflitos de classes, aplica como alternativa uma intervenção. Evoluindo na conotação de clientela ou assistencialismo, a profissão vem ganhando mais espaço em debates, visto que nãoé instantânea esta evolução e o efeito de alterar as legislações, levando um tempo para a sociedade se reformular1. Aspecto expressivo nas relações assistenciais, é constatado majoritária presença do gênero feminino na categoria, visível nas profissionais e tanto como nas usuárias. Os homens vêm ganhando espaço na categoria, ingressando na academia, na vida profissional e como usuários, porem dados demonstram que o número de famílias monoparentais do sexo feminino ainda é maior.2 Por meio do histórico do Brasil, até 1930 a questão social era baseada na repressão e no policiamento, mudança então desencadeada por medo de não ser capaz de conter uma possível movimentação socialista. Assim foi-se construindo novas estratégias para enfrentar seu acirramento, uma dessas adotada é a responsação da população marginalizada ser

1 Ainda é perceptível a ação profissional de alguns assistentes sociais ligadas a ações religiosas, conservadoras e nepotistas. 2 O numero de lares brasileiros chefiados por mulheres saltou de 23% para 40% entre 1995 e 2015, segundo informações da pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, [...] feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é realizada com base nos números da Pesquisa Nacional por Amostra de domicílios (Pnad) (TAIAR, 2017).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 284 transferida para a Igreja, a partir de ações de voluntariado e caridade, sendo estas desconexas e fragmentadas. Ao mesmo momento percebe-se um crescimento na indústria e no mercado, o que consequentemente faz crescer a classe trabalhadora e a acentuar a pobreza. Resulta em uma tomada de consciência desta classe que agora passa a ameaçar a atual ordem vigente. Assim o marco inicial para a intervenção do Estado nas politicas sociais é fruto da dimensão trabalhista, com a Lei Eloy Chaves (BRASIL, 1923), que institui as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAP’s)3. Vale afirmar que essa alternativa não abrangeu todos os trabalhadores inicialmente, mas foi ampliando-se por categorias.4 Iniciada pela Eloy Chaves, o sistema previdenciário tem seus pilares definidos na Era Vargas. São redefinidas as relações de Estado e setores econômicos e sociais, em que o método de exportação, economia política mercadológica que era adotada até então, é substituída por uma instalação de parque industrial no país. Não se pode esquecer de um detalhe, no qual essas mudanças são favoráveis ao sistema capitalista, visto que não modifica suas raízes estruturais. Colabora com a dependência do indivíduo, assegura a reprodução do capital e ainda possui caráter policialesco. Principalmente quando divide pobres aptos ao trabalho e aqueles que não possuem estas condições, sendo uma estratégia para aumento de consumo com finalidade para a regulamentação do mercado. A partir então de avanços e retrocessos, lutas politicas e movimentos reivindicatórios que se dão as politicas sociais brasileiras. A assistência então não se diferencia dessa característica. Além de que atualmente é possível perceber que um direito conquistado perde, ao longo do tempo, seu valor e passa a ser percebido como um favor concedido aos marginalizados, não como sua percepção de conquista, de direito.

2 RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO Aqui essa categoria se aproxima do que estudiosas chamam de gênero, encontra- se imbricada ao sistema de seguridade social, mas antes de tratar sobre essas imbricações, é necessário se tratar um pouco desse conceito. 3 Posteriormente em 1933 as CAP’s se tornam Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP’s), agora este se constituía como uma autarquia pública, superando os limites das empresas. 4 Nota-se aqui que o trabalhador rural é inserido na Previdência Social em 1963.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 285 Saffioti define inicialmente gênero como sendo uma categoria para além de só analítica, mas uma categoria histórica. E como fruto de uma construção social, tanto do gênero masculino como do feminino. Explicita também que o regime de dominação ocasionado hoje não deriva do gênero, ou seja, “O conceito de gênero não explicita, necessariamente, desigualdade entre homens e mulheres. Muitas vezes a hierarquia é apenas presumida. Há, porém, feministas que veem a referida hierarquia, independentemente do período histórico com qual o lidam.” (SAFFIOTI, 2004, p. 45.) Realmente, o que explica a desigualdade hoje presente no sexo é o sistema patriarcal. Apesar de ser uma estrutura familiar, não fica só nesta esfera, transpassando para a sociedade como um todo. Este sistema é anterior ao capitalismo, no qual o segundo se apropria do primeiro de uma forma a expandir ambas as reproduções. Para Scott gênero pode ser entendido em duas partes e subpartes atrelada entre essas. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder. (SCOTT, 1990, p. 21, grifo nosso). Aqui há de se concordar com a primeira definição, cujo gênero é fruto das diferenças perceptíveis entre os sexos. Mas com a ressalva para as relações de poder. Pode-se concordar com essa ideia, se anterior a ela dizer-se que está inserido em um sistema patriarcal, este cujo não abrange apenas a família, mas atravessa a sociedade em geral (SAFFIOTI, 2004). Explicitado o conceito de gênero, passamos a desvendar o porquê não adotar essa nomenclatura e substitui-la por relações sociais de sexo. A própria Scott traz pontuações importantes do porque não se utilizar o termo gênero. Em alguns casos, este uso (termo de “gênero”), ainda que se referindo vagamente a certos conceitos analíticos, trata realmente da aceitabilidade política desse campo de pesquisa. Nessas circunstâncias, o uso do termo “gênero” visa indicar a erudição e a seriedade de um trabalho, porque “gênero” tem uma conotação mais objetiva e neutra do que “mulheres”. O gênero parece integrar- se na terminologia científica das ciências sociais e, por consequência, dissociar-

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 286 se da política - (pretensamente escandalosa) - do feminismo. (SCOTT, 1990, p 6, grifo do autor). Esta mesma afirma então que por ser mais aceito o termo gênero entre o ambiente acadêmico, o objeto de estudo “mulher” passa a ser reconhecido como gênero. Em concordância com Scott, Cisne (2014) afirma que esse conceito da uma conotação teórico-política para o feminismo, bem menos confrontante e mais institucionalizada. A partir da academia estado-unidense destacadamente, o gênero é introduzido na região principalmente através de teóricos(as) praticantes da cooperação, governamental ou multilateral. Embora muitas vezes usados de forma indiscriminada, muitas vezes, para evitar o estigmatizado termo “feminismo” ou para fornecer um “plus” para a palavra “mulher” – o gênero também introduz uma renovação teórica. Para algumas, ele permite desnaturalizar a opressão das mulheres: no decorrer de milhares de oficinas que foram organizadas no continente para conhecer a teoria do “sistema de sexo-gênero”, cada uma aprende que gênero é uma construção social, ainda que se baseie numa diferença biológica (o sexo). Nessas formações aceleradas sobre gênero, a noção de hierarquia entre os sexos é muitas vezes apagada. Quanto às outras relações [rapports] sociais, elas simplesmente desaparecem. Por outro lado, cada vez mais, acrescenta-se a sexualidade, especialmente gay e queer a palavra gênero – a tal ponto que as mulheres quase desaparecem deste discurso para serem substituídas pelas preocupações sobre financiamentos concernentes à discriminação contra gays e trans. (Falquet, 2012, p. 108 apud CISNE, 2014, p. 138).5

5 Grifos de Falquet, tradução de Cisne. Texto original: “Issu de l’académie états-unienne notamment, le genre est introduit dans la région principalement à travers les théoricien-ne-s et les pratiquant-e-s de la coopération, gouvernementale ou multilatérale. Quoique souvent utilisé à tort et à travers —souvent pour éviter le terme stigmatisé de « féminisme » ou pour apporter un « plus » au mot « femme »—, le genre introduit aussi un renouveau théorique. Pour certaines, il permet de dénaturaliser l’oppression des femmes: au cours des milliers d’ateliers qui ont été organisés sur le continent pour faire connaître la théorie du « système sexe-genre », chacune apprend que le genre est une construction sociale, même si elle est basée sur une différence biologique (le sexe). Dans ces formations accélérés sur le genre, la notion de hiérarchie entre les sexes est souvent gommée. Quant aux autres rapports sociaux, ils disparaissent purement et simplement. Par contre, de manière croissante, on accole la sexualité, surtout gay et queer, au mot genre — à tel point que les femmes disparaissent quasiment de ce discours pour être remplacées par des préoccupations et des financements concernant la discrimination contre les hommes gays et trans.”

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 287 O termo relações sociais de sexo se origina da escola feminista francesa, no qual tem sua tradução do termo ‘rapports sociaux de sexe’ Percebe-se aqui que há duas traduções para uma palavra que no português só há uma, a palavra relações. Rapport designa relações mais amplas, estruturais, enquanto relations diz respeito às relações mais pessoais, individuais, cotidianas. O conceito de rapports sociaux de sexe é diretamente fundamentado no de relações sociais de classe. Uma relação [rapport] social está vinculada aos conflitos e tensões entre os grupos sociais com interesses antagônicos. (CISNE, 2014, p. 136). Porém Scott utiliza outra terminologia, Enquanto o termo “história das mulheres” revela a sua posição política ao afirmar (contrariamente às práticas habituais), que as mulheres são sujeitos históricos legítimos, o “gênero” inclui as mulheres sem as nomear, e parece assim não se constituir em uma ameaça crítica. (SCOTT, 1990, p. 6). Concordar-se com Cisne quando esta utiliza o termo relações sociais de sexo, cujo esta autora nos dá argumentos fortes para essa utilização. Um deles é quando relata que a partir de estudos os franceses preferem a utilização do conceito de “relações sociais de sexo”, exatamente pela noção de relações mais amplas, estruturais, como as de classe. Devreux (2011 apud CISNE, 2014, p. 141) retrata que as relações entre homens e mulheres constituem de relações sociais enquanto o gênero diz mais da categoria do sexo, este ultimo sendo um fator da relação, mas não a própria relação em si. É como se empregássemos que toda a relação social é baseada pela diferença biológica, e não é. Ultrapassa a esfera biológica, assim como a social e a psíquica. Devreux (apud CISNE, 2014, p. 141) diz que além do mais o termo gênero eufemiza o sujeito mulher, para assim as feministas serem vistas como menos agressivas e até mesmo menos feministas por instituições. A autora também coloca que o termo “gênero” transmite a ideia de um problema social sofrido pelas mulheres, mas na qual os homens não seriam atores. Como já nos trazia Saffioti (2004) o conceito de gênero é demais palatável e amplo, cujo da margens aos sujeitos dominantes influenciarem sob uma pesquisa que deveria ser apenas de seu protagonista.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 288 3 GÊNERO E ASSISTÊNCIA, CATEGORIAS EM ANÁLISE

Já vista então a marca de gênero na assistência, há de se demonstrar fatos históricos que corroboraram com esse fim. Desde a Legião Brasileira de Assistência (LBA) em 1942 não se escapou da trajetória atrelada ao gênero, visto que a primeira a ocupar o cargo de presidência foi a Darcy Vargas. Esta que não rompeu com a tradição assistencialista no enfrentamento da questão social (RUSSO; CISNE; BRETTAS, 2008, p. 135-136). Apesar de ingressar na política, o papel conferido a mulher é o secundário, com ações extensivas as ações ditas como ‘de mulher’, ou ações extensivas às aquelas domesticas. O Estado então transfere sua responsabilidade com a questão social para a sociedade sob a supervisão das primeiras-damas. Essa ação vai ser tratada por um viés moralizante, ocasionada pelo medo a manifestações socialistas, afim de assegurar a ‘harmonia social’. Porém a partir desse mesmo há um esvaziamento político, onde a luta se perde (RUSSO; CISNE; BRETTAS, 2008). Vemos que a partir da construção da família, com base de um sistema patriarcal, formada por traços positivistas, uma de visão social das mulheres é elaborada. Essa também constitui a construção sócio-histórica do gênero, cujo mulheres e homens determinam as relações, modo de produção, ideologia e reprodução da sociedade (RUSSO; CISNE; BRETTAS, 2008, p. 143). Visto então que esta construção social é sexuada percebe-se uma dimensão de gênero nas funções exercidas por mulheres e homens. Onde a reprodução biológica determinava a divisão sexual do trabalho no capitalismo (SCOTT, 1990). A hipótese mais convincente para justificar a divisão sexual do trabalho nas sociedades de caça e coleta parece ser a que se segue. Como não havia Nestlé, era obrigatório o aleitamento do bebe ao seio. Desta sorte, o trabalho feminino era realizado com a mulher carregando seu bebe amarrado ao peito ou as costas. Os bebes eram, assim, aleitados facilmente toda vez que sentissem fome. Como o bebe não fala, sua maneira de expor suas necessidades é o choro. [...] Presuma-se que as mulheres fosse atribuída a tarefa da caça. O menor sussurro do bebe espantaria o animal destinado a morte e as caçadoras voltariam, invariavelmente, para seu grupo, sem nenhum alimento. Já as plantas, desde as raízes, passando pelas folhas e chagando aos frutos, permanecem imperturbáveis ouvindo o choro da criança. (SAFFIOTI, 2004, p. 61).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 289 Expressões dessa relação são comprovadas através da precarização vistas no mundo do trabalho; como o trabalho em casa, em tempo integral, não remunerado. Fora as atividades econômicas realizadas com mais contratos informais6 e somado ao fato de que esta camada é a mais expostas ao desemprego. Depois que a assistência passa a ser reconhecida como uma política pública traz consigo parâmetros seletivos e universais. Essa mudança veio com a Carta Magna de 1988 e a partir de então a assistência configura-se como parte da seguridade social brasileira. A respeito de seus parâmetros; a seletividade é percebida quando é direcionada a aqueles que a necessitam, e o caráter universal como capacidade de facilitar acesso às outras políticas sociais (RUSSO; CISNE; BRETTAS, 2008). Barreiras são impostas para a fim de comprometer a possibilidade de efetivação das políticas de assistência social, onde em 1990 é adotado uma contrarreforma imposta pelo receituário neoliberal. Principalmente a previdência com os planos de aposentadoria, mudanças em seu corpo relativas a privatização e com incentivo aos sistemas privados complementares. Constituída tardiamente no Brasil, já é inserida em um contexto de desmonte e privatização da previdência e saúde, além da redução com os direitos trabalhistas. Parte de um processo de reprodução ampliada da força de trabalho, que ocupa uma condição de politica subsidiaria na proteção social, afim de universalizar o acesso aos bens (BOSCHETTI, 2015). Estratégias são adotadas para a reprodução então do capital, tal como programas de transferência de renda e o forte estimulo ao consumo (BOSCHETTI, 2015). Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva elucidam bem essas estratégias com programas como bolsa-gás, auxilio-aluguel, entre outros e atualmente o mais polêmico, bolsa-família. Hoje o principal público da assistência são jovens mulheres, mães solteiras, zonas periféricas das metrópoles e inclusive responsáveis pelo sustento da família. Programas sociais que garantem o consumo de famílias direcionam os benefícios as mulheres, causalidade que a responsabilidade financeira feminina com a família é maior, onde mulheres não gastam recursos com produtos que não estejam vinculados com o consumo da família. Visto que são mais responsáveis pelo gasto familiar e tem maior probabilidade de garantir a racionalidade dos gastos.

6 Além de contratos informais é percebido um predomínio no trabalho doméstico, cujo tem a pior remuneração econômica.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 290 Esse movimento da atualidade nega assim a visão de senso comum do homem como arrimo de família, traço que não impõe a mulher uma posição social melhor, mas só repercute mais o machismo através da responsabilização da mesma sob a família. Incluso relatório do Banco Mundial de 2004 considera a sua importância, cujo famílias em que o poder de negociação das mulheres é maior tendem a investir mais em saúde e em educação (TREILLET, 2008 apud CISNE, 2008). Percebe-se então uma instrumentalização da mulher para otimização de recursos governamentais para programas sociais.

CONCLUSÃO

Assim temos a assistência social hoje, uma política social com características assistencialistas atreladas ao seu passado, e com controle estatal interessado em tornar cada vez essas políticas mais neoliberais. Essas políticas adotadas não emancipam o indivíduo, visto que não são dados subsídios para o mesmo ser capaz de superar as precárias condições, tornando-se assim dependente de políticas assistencialistas Visto então que a construção de gênero é social e histórica, esta mesma é passível de mudança, cujo depende então do caráter político da categoria gênero, que possibilitará construir relações igualitárias entre mulheres e homens (RUSSO; CISNE; BRETTAS, 2008). O caráter feminino na assistência é mais que pautável, e ainda o caráter feminino da pobreza, notórios dados relatados ao longo do corpo do texto. Mas essas particularidades não são pensadas a fundo. Questionamentos para além desses devem ser postos; do que é necessário para atender as particularidades da pobreza feminina? Quais politicas públicas abrangem essas necessidades? Ainda há desafio a serem enfrentados para se romper coma politica do favor que descaracteriza a assistência como política pública. Necessário então lutar contra esse caráter, entre outros como politicas fragmentadas, precarizadas e com fortes ofensivas neoliberais (RUSSO; CISNE; BRETTAS, 2008). Além de se rompem com o favoritismo é necessário romper com o patriarcado, com as relações de opressões imbricadas nesse sistema e com as outras formas de opressão, principalmente de raça/etnia e classe, do qual o capitalismo se apropria.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 291 REFERÊNCIAS

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A CONTRARREFORMA DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL

THE COUNTER-REFORMATION OF HIGHER

Letícia Terra Pereira1* RESUMO: O presente artigo sobre a contrarreforma do ensino superior é fruto de uma discussão realizada na tese de doutorado que teve como objetivo geral analisar os impactos da precarização no mundo do trabalho no trabalho profissional dos assistentes sociais docentes, no Brasil - (A expansão dos cursos de serviço social e os desafios enfrenta dos pelas assistentes sociais docentes em Serviço Social - 2018). A sociedade capitalista madura apresenta um contexto de precarização no mundo do trabalho, nas relações de trabalho, o que impacta diretamente nos processos de trabalho das assistentes sociais que estão no exercício da docência, interferindo também na formação de futuros profissionais. Para a construção do artigo foram utilizadas referências bibliográficas, além do acesso a outras fontes disponíveis na internet como jornais e revistas, além das informações coletadas na pesquisa de campo, de natureza qualitativa, realizada por meio de entrevistas semiestruturadas e aplicação de formulário para a caracterização das participantes. O universo da pesquisa compreendeu cinco Instituições de Ensino Superior do estado de São Paulo que oferecem cursos de Serviço Social, e as participantes da pesquisa, foram oito assistentes sociais docentes nessas IES. Palavras-chave: ensino superior. contrarreforma. trabalho docente. ABSTRACT: This article on the counter-reform of higher education is the result of a discussion held in the doctoral thesis whose general objective was to analyze the impacts of precariousness in the world of work on the professional work of social workers in Brazil (The expansion of social service courses and the challenges faced by social workers in Social Work - 2018). Mature capitalist society presents a context of precariousness in the world of work, in labor relations, which directly impacts on the work processes of social workers who are in the teaching profession, also interfering in the training of future professionals. For the construction of the article, bibliographical references were used, as well as access to other sources available on the Internet such as newspapers and magazines, besides the information collected in the field research, of a qualitative nature, carried out through semi-structured interviews and application of the characterization form of the participants. The research universe comprised five Higher Education Institutions of the state of São Paulo that offer Social Work courses, and the research participants were eight social workers teaching at these HEIs. Keywords: higher education. counter-reform. teaching work.

* Possui graduação (2008), mestrado (2012) e doutorado (2018) pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Câmpus de Franca/SP. Foi bolsista Capes (2013-2017). Foi professora substituta do Departamento de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais/Unesp (2013-2014). Professora temporária do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Triângulo Mineir (2012-2013), docente do curso de Serviço Social da Faculdade Frutal (2011), do Instituto de Ensino Superior de Bebedouro “Victório Cardassi” (2011) e do Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos (2015- 2016). Trabalhou como assistente social: Centro de Referência de Assistência Social da Prefeitura Municipal de Piumhi/MG (2011-2012); Hospital Psiquiátrico e Hospital Dia da Fundação Espírita Allan Kardec (2009-2011); Centro de Atenção Psicossocial II e AD do município de Piumhi/MG (2017). Foi representante suplente discente de pós-graduação da Executiva Nacional da ABEPSS, gestão 2015-2016.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 295 O Brasil é um país que recebeu e incorporou o ideário neoliberal, sofrendo os impactos dessa política em diversos campos, dentre eles o da educação superior. Lima (2005) defende em sua tese de doutorado que a mundialização financeira e a mundialização de uma nova sociabilidade burguesa são duas faces de um mesmo projeto de dominação, que se apresentam como sendo parte da “globalização econômica” na “sociedade da informação”. A difusão desses valores fica por conta dos organismos internacionais, os quais a autora denomina como sendo “sujeitos políticos coletivos do capital”: o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Grupo Banco Mundial (BM), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Esses organismos vêm desenvolvendo um conjunto de contrarreformas econômicas e políticas com impactos nas sociabilidades dos países da periferia do capitalismo. No final do século XX e já no século XXI, essas contrarreformas foram impostas ao contexto mundial, desenvolvendo as bases materiais e ideológicas para o desenvolvimento da mundialização financeira, envolvendo a reestruturação da esfera produtiva, o reordenamento do papel dos estados nacionais e a formação de uma nova sociabilidade, marcadas por contrarreformas educacionais nos países da periferia do globo (LIMA, 2005). Isso pode ser observado na fala de algumas docentes, que foram coletadas ao longo da pesquisa de campo no processo de elaboração da tese de doutorado. Uma das participantes da pesquisa disse ser difícil separar o capital nacional do capital internacional, tendo em vista que até a década de 1980, falava-se em “capital multinacional, capital internacional, capital nacional e empresa nacional.” (PEREIRA, L. T., 2018, p. 30). E ressaltou ainda que atualmente é raro encontrar uma empresa que seja apenas nacional, porque de uma forma ou de outra, ela tem relação com o mercado internacional, o que é próprio do processo de acumulação do capital. As contrarreformas educacionais são parte desse projeto de sociabilidade que vê na educação uma forma de difundir o ideário imposto socialmente, as quais precisam ser compreendidas no embate entre capital e trabalho, pois são fruto da necessidade do capital de se reafirmar e se fortalecer cada vez mais, ampliando suas margens de lucro. As políticas dos organismos internacionais foram elaboradas a partir do binômio pobreza-segurança, criando uma aparência de

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 296 enfrentamento da pobreza, quando na realidade apresentam apenas um “alívio da pobreza”, com o objetivo de garantir a reprodução global do capital. Além disso, são políticas que reafirmam a promessa inclusiva da educação, trazendo a ideia de que a capacitação dos indivíduos será uma forma de conseguirem empregos, negando, portanto, a verdadeira face dessa realidade, que se refere ao processo de certificação nos países periféricos, além da não absorção de todos os trabalhadores pelo mundo do capital, pois já existe uma constituição do exército industrial de reserva e a exclusão estrutural de grande parcela dos trabalhadores (LIMA, 2005). Tudo isso se confirma com as “reformas” propostas que o governo ilegítimo1 do atual presidente Michel Temer vem propondo e promovendo nas áreas previdenciária, trabalhista e nas políticas públicas como saúde, educação e assistência social, acarretando graves perdas de direitos sociais conquistados ao longo das décadas. Conforme pontuou uma das participantes da pesquisa, os direitos sociais, mesmo que de forma tensa, conviviam com o mundo do capital, entretanto, ela acredita que essa tensão aumentou, por estar basicamente vinculada ao estágio de acumulação do capital, que ataca brutalmente os direitos. O atual estágio de acumulação capitalista justifica a destinação de verbas públicas para as instituições privadas e a utilização de verbas privadas para financiamento de atividades realizadas nas instituições públicas, em concordância com as políticas desenvolvidas por esses organismos internacionais. Em que pese o fato da educação estar submetida às exigências da lucratividade do capital internacional, no qual muitos interesses estão envolvidos, os interesses do capital sempre são levados em consideração. Isso faz com que as escolas e instituições de ensino superior se tornem prestadoras de serviços e formadoras de força de trabalho e de exército industrial de reserva para atender às demandas do capital. Os organismos internacionais elaboram, difundem e monitoram essas contrarreformas educacionais, condicionando um processo de ajuste estrutural aos países periféricos com o objetivo de impor um novo projeto de sociabilidade burguesa, que naturalize o processo de mercantilização da totalidade da vida social, além de viabilizar o movimento do capital em

1 Sem nenhuma base jurídica o processo de impedimento contra a presidente Dilma Rousseff foi armado em cima de um grande acordo nacional protagonizado pelo governo golpista, contando com o apoio do Congresso Nacional, do Judiciário e das grandes corporações midiáticas. Acrescido a esse “grupo”, é possível constatar a consolidação de uma base social de segmentos da sociedade que defendiam um discurso contra a corrupção e contra o comunismo.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 297 crise buscando novos campos de lucratividade. Tudo isso se dando a partir da lógica perversa de empresariamento da educação (LIMA, 2005). Portanto, esse processo de mercantilização da vida social se naturaliza de tal forma que viabiliza a entrada do capital na esfera educacional, sendo vista como um amplo campo para a exploração e acumulação lucrativa do capital em crise. Nos dizeres de uma das participantes da pesquisa, o capital é uma relação social de expropriação, de acumulação e centralização crescentes, sendo estas as formas que encontra para sobreviver e se recuperar de suas sucessivas “crises”. E a mesma participante completou que as grandes corporações são monopólios imensos, transnacionais e que estão presentes em vários segmentos, como no agronegócio, investindo na universidade, na Bolsa de Valores. Essa lógica de acumulação do capital pode ser vista, sentida e materializada através da privatização das instituições públicas e do estímulo cada vez maior ao empresariamento da educação (LIMA, 2005). De acordo com a análise de uma das participantes da pesquisa, esse processo não é novo, no entanto, a característica desse momento é um aprofundamento brutal de uma pauta que já estava esboçada no início da era de monopólios, em que o Estado é totalmente capturado no processo de acumulação”. Além disso, ela traz alguns pontos que caracterizam o atual estágio do capital em sua forma de acumulação desmesurada “Quando vem o Estado, vêm os fundos públicos inteiros, inteirinhos. Quer dizer [...] só é investimento pro capital, o fundo público que entra no processo de que permite o bom desenvolvimento do mercado de negócios. O resto é gasto.” (PEREIRA, L. T., 2018, p. 32). Ou seja, políticas de saúde, educação, previdência social, assistência social são “gastos” para o Estado, enquanto as parcerias com as instituições privadas são “investimentos”. Além desse primeiro ponto, esta participante apresento outros dois: O segundo ponto, e que eu acho importante, a grande fusão de empresas que até então eram concorrentes e que cada vez mais se fundem e refundem, refundam pra ganhar os mercados. [...] E o terceiro ponto é a financeirização absurda, que nasce da fusão entre o capital industrial e o capital bancário. [...] na ultra radicalização do monopólio, na ultra captura dos fundos públicos. (PEREIRA, L. T., 2018, p. 33). Essa captura pelo fundo público se torna muito presente, numa pauta muito atual, quando se trata principalmente da Previdência

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 298 Social. Apresenta-se um discurso de que os fundos da Previdência estão deficitários, e para tanto, defende-se que é necessária uma “reforma”, quando na realidade o que se pretende é que a população compre a sua aposentadoria privada. Esse discurso não é novo Larissa Pereira (2007) aponta que na década de 1990, houve uma importante redução de recursos públicos desviados para o processo de ajuste fiscal, difundido pelo ideário neoliberal. A lógica geral de funcionamento da sociedade era, portanto, a do mercado como campo máximo de sociabilidade, a qual transforma tudo em mercadoria, inclusive a educação. Em se tratando dessa política, a partir de 1995, desencadeou-se um processo profundo e acelerado de mercantilização do ensino superior no Brasil, trazido pela agenda neoliberal “[...] sob a máscara ídeo-política da ‘Terceira Via’, da qual o presidente FHC fez parte até o ano de 2002.” (PEREIRA, L. D., 2007, p. 199). Todo esse discurso veio atrelado à ideia da necessidade de “amenizar” os impactos da pobreza e das desigualdades sociais e econômicas geradas pela própria política vigente. O projeto burguês de sociedade apresentou essa alternativa ao neoliberalismo e ao socialismo, identificada como “terceira via” para a construção de uma nova sociedade, baseada na perda da centralidade da luta de classes e na mercantilização da totalidade da vida social, na qual a educação era considerada como principal estratégia política de conformação dos indivíduos à ordem do capital (LIMA, 2005). Essa nova possibilidade de sociabilidade pretendia articular ajuste fiscal com justiça social, ou seja, propondo no nível da política, a modernização do centro, a rejeição da política de classes e da igualdade econômica, além de procurar apoio político em todas as classes. No plano econômico, procurou regular uma economia mista, através de parcerias entre o público e o privado (LIMA, 2005). Acredita-se que é impossível humanizar um modo de produção que busca a cada dia expandir desmesuradamente sua fonte de lucros, e que atinge e afeta quem quer que seja, demostrando atitudes um tanto quanto conservadoras. A opção política desse modo de produção, inserido na modernização da produção através do trabalho livre e da disseminação do mercado capitalista moderno apresenta traços neocoloniais, com rupturas e atualizações em relação ao padrão colonial. Os países periféricos, dentre eles o Brasil, têm aprofundado o seu padrão dependente na economia mundial, na medida em que sofrem os

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 299 impactos da desindustrialização, desnacionalização e concentração cada vez maior de renda (LIMA, 2005). Todos esses elementos políticos do projeto neoliberal de sociabilidade atravessarão e constituirão o projeto neoliberal de educação: privatização, desregulamentação e desnacionalização da educação farão parte da pauta política dos organismos internacionais para os países periféricos naturalizando, da forma mais perversa possível, a possibilidade de conversão de nossa região. (LIMA, 2005, p. 90, grifo nosso). Nos governos dos presidentes Luís Inácio Lula da Silva (2003- 2011) e Dilma Rousseff (2011-2016) observou-se uma tendência de ampliação do número de vagas no ensino superior, favorecida pelo incentivo financeiro através do Programa Universidade para Todos (Prouni) e do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), aprofundando ainda mais o processo de mercantilização da educação superior brasileira. Entretanto, cabe ressaltar que esse processo já era desenvolvido também pelos governos anteriores (ALBUQUERQUE, 2015). O Prouni, programa criado em 2004 e vinculado ao Ministério da Educação, destina bolsas de estudo, integrais e parciais (50%) a estudantes brasileiros sem diploma de nível superior. As bolsas são oferecidas em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, disponibilizadas por instituições privadas de ensino superior. Já o Fies é também um programa do Ministério da Educação, destinado a financiar a graduação de estudantes matriculados em cursos superiores não gratuitos. Conforme já pontuado, uma tendência que se destacou nos últimos anos foi o processo de concentração de poder nas mãos de grandes empresários da educação. Essa necessidade de aumentar as áreas de atuação, fazem com que as empresas educacionais se fundam em grandes conglomerados, absorvendo as menores instituições educacionais. Um grande exemplo de ações como essa é a Kroton Educacional, maior empresa educacional do Brasil, que hoje se encontra associada a outra grande empresa, a Anhanguera. Tal fato pode ser observado na fala de uma outra participante da pesquisa, que vivenciou em sua trajetória profissional no exercício da docência em Serviço Social, momentos em que duas das faculdades nas quais trabalhava, foram vendidas. Uma delas, privada sem fins lucrativos, que inicialmente pertencia a um pequeno grupo familiar e foi vendida para o grupo UNIESP S.A. (COSTA, 2017), momento em que houve

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 300 uma demissão massiva dos docentes, os quais foram posteriormente recontratados com uma nova forma de contrato, com várias alterações, dentre elas a redução do salário hora/aula de professor/mestre. Completou também que após a venda da faculdade, os docentes passaram a viver um processo de precarização, que não trata da modalidade de ensino, seja ela semipresencial ou a distância, mas que se materializa na questão do ensalamento. Ou seja, turmas de séries distintas unificadas em uma sala, com o objetivo de diminuir os custos com professores. Ainda em se tratando dessa questão do ensalamento, outras duas participantes da pesquisa disseram que essa foi uma estratégia utilizada pela coordenação do curso em que ministravam aulas, com o objetivo de não perder os discentes que se matricularam no primeiro ano de Serviço Social. Ou seja, esses discentes iniciaram o curso logo no segundo ano. Experiências como estas, nos mostram algumas estratégias que as coordenações dos cursos utilizam para enfrentar essa contrarreforma do ensino, muitas vezes ferindo até mesmo o que está preconizado nas Diretrizes Curriculares elaboradas pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) (CADERNOS ABESS, 1998, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO, 1999). Portanto, entendemos que a formação deva acontecer de forma processual, oportunizando os discentes passarem desde o primeiro ano, por disciplinas, seminários temáticos e oficinas, que os possibilite apreender a gênese, as manifestações e o enfrentamento da questão social. E acreditamos, que dessa forma, como a coordenação do curso de Serviço Social dessa instituição organizou a dinâmica das turmas, não compreende a formação de forma processual, mas sim de forma fragmentada. Retomando a compra das faculdades por grandes empresários da educação, uma das participantes da pesquisa relatou a venda de uma faculdade em que foi docente, uma instituição privada sem fins lucrativos, comprada em 2014 pela norte-americana Laureate International Universities2. Isso aconteceu no momento em que ela havia passado no concurso para docente em uma universidade pública, mas soube por intermédio de companheiros de trabalho que ninguém foi demitido e que num primeiro momento, não mudaram nada. Porém, é possível compreender qual é a lógica na qual as instituições privadas operam, o custo de cada aluno por professor. 2 A Laureate International Universities é composta por mais de 70 instituições de ensino superior no mundo, uma das maiores empresas educacionais.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 301 De acordo com informações obtidas no site da empresa (KROTON EDUCACIONAL, 2018), a Kroton iniciou seus trabalhos ainda na década de 1960 no município de Belo Horizonte/MG, ampliando sua área de atuação ao longo das décadas seguintes. No início dos anos 2000, no campo do ensino superior, surgiu a Faculdade Pitágoras, em parceria com uma das maiores companhias de educação do mundo, a Apollo International. Em 2007, a rede Pitágoras abriu seu capital na BM&FBovespa com o nome Kroton Educacional, possibilitando uma grande fase de expansão da companhia. Nesse período, vivia-se no país o processo de crescimento do ensino superior, com a expansão no número de matrículas no nível superior de ensino, campo fértil para a ampliação da área de atuação da Kroton, que adquiriu várias outras Instituições de Ensino. Em 2011 fez a maior aquisição da história incorporando a Universidade Norte do Paraná (UNOPAR), tornando-se líder no setor da educação a distância no Brasil. Além dessa fusão, adquiriu também o Centro Universitário Cândido Rondon (Unirondon), a Uniasselvi, fortalecendo cada vez mais o ensino a distância. Cerca de 1 milhão de estudantes assistem a aulas em 120 campi e 600 operações de ensino a distância numa cobertura que chega a 500 cidades de todos os estados do país. [...] Juntas, Kroton e Anhanguera faturam o dobro da segunda colocada, a Estácio de Sá [...] Apesar de ter sido tratado como fusão, uma das empresas claramente deverá predominar. (GRANDO, 2013). De acordo com matéria do jornal O Globo publicada em julho de 2016 o grupo Kroton foi consolidado como maior empresa de ensino superior do mundo, com 1,6 milhão de estudantes; seguida pela Estácio com 600 mil alunos, e a terceira colocada é a Ser Educacional que conta com 150 mil alunos – considerando apenas empresas de capital aberto (SCRIVANO, 2016). A Revista Exame de setembro do mesmo ano apresentou uma reportagem dizendo que o mercado educacional se tornou um meio muito atraente e lucrativo para o investimento por parte de grupos nacionais e internacionais. Ainda de acordo com a mesma reportagem, em 2009, a empresa britânica Actis abriu um escritório em São Paulo e em 2012, passou a investir na Cruzeiro do Sul Educacional.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 302 O negócio entre Kroton e Anhanguera pode dar início a uma onda de consolidação entre as maiores do setor. [...] A razão é simples: a formação de grandes grupos privados de ensino ganhou uma nova dimensão no mercado brasileiro. Diferentemente do que acontece na Europa e nos Estados Unidos, há milhões de alunos sem vagas nas universidades públicas. (GRANDO, 2013). Ainda de acordo com matéria publicada no Estadão em junho de 2016, apenas 8 grupos concentravam 27,8% das matrículas do ensino superior, os quais já têm 2,1 milhões de estudantes e superam os números da rede pública, que soma 1,9 milhão de universitários. Ou seja, os oito maiores grupos educacionais do Brasil já somam uma em cada quatro matrículas no ensino superior. Entre os anos de 2010 e 2014, o percentual de universitários desses conglomerados passou de 12,8% para 27,8% do total. Vale destacar, que o FIES acompanhou essa expansão e o que demonstra a reportagem, é que nesse mesmo período, o montante de recursos públicos reservado para as instituições privadas ampliou demasiadamente (TOLEDO, 2016). Esse crescimento acelerado da educação superior, principalmente de instituições privadas e que oferecem cursos na modalidade a distância, requisitou para o trabalhador docente novos conteúdos, demandando desses profissionais o atendimento às exigências da política educacional de corte neoliberal “[...] cuja finalidade principal é a expansão lucrativa com base na intensificação e na precarização do trabalho do professor submetido ao processo de assalariamento.” (ALBUQUERQUE, 2015, p. 2). Com todo esse investimento no setor privado, existe uma preocupação com a qualidade da formação, além das condições de trabalho dos docentes que desenvolvem seu trabalho profissional nessas instituições de ensino. A Kroton, por exemplo, afirmou que os docentes que trabalham no grupo passam por qualificação, treinamento e programas de formação, além de ter plano de carreira, em que o professor tem reconhecimento por tempo de serviço e merecimento (TOLEDO, 2016). No entanto, o que se observou é que a condição de trabalho docente independente das modalidades se mostra muito precária. Em se tratando da modalidade a distância, o docente ministra as aulas com base em “apostilas” e para um elevado número de estudantes que se encontram nos polos espalhados pelo país. Esse é o exemplo de Instituições de Ensino Superior como a Universidade Paulista (UNIP), a Universidade Anhanguera e o Centro

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 303 Universitário Internacional (UNINTER), os dois últimos pertencentes à Kroton Educacional.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Valéria de Oliveira. Serviço Social e trabalho docente: precarização e intensificação do trabalho nas Instituições de Ensino Superior em São Paulo. 2015. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. CADERNOS ABESS: Diretrizes curriculares e pesquisa em serviço social. São Paulo: Cortez, n. 8, 1998. 117 p. COSTA, Fernando. UNIESP: compromisso renovado com o futuro. São Paulo: Uniesp, 2017. Disponível em: http://www.uniesp.edu.br/sites/ institucional/uniesp_sa.php. Acesso em: GRANDO, João Werner. Kroton, o azarão que chegou ao topo do mundo. Exame, São Paulo, 25 abr. 2013. Disponível e: https://exame.abril.com. br/revista-exame/o-azarao-chegou-ao-topo. Acesso em: 20 dez. 2017. KROTON EDUCACIONAL. Belo Horizonte, 2018. Disponível em: http://www.kroton.com.br. Acesso em: 2018. LIMA, Kátia Regina de Souza. Reforma da educação superior nos anos de contra-revolução neoliberal: de Fernando Henrique Cardoso a Luís Inácio Lula da Silva. 2005. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2005. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Secretaria de Educação Superior. Coordenação das Comissões de Especialistas de Ensino Superior. Comissão de Especialistas de Ensino em Serviço Social. Diretrizes Curriculares: Curso de Serviço Social. Brasília, DF, 1999. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/legislacao_diretrizes. pdf. Acesso em: 15 jan. 2018. PEREIRA, Larissa Dahmer. Política educacional brasileira e Serviço Social: do confessionalismo ao empresariamento da formação profissional. 2007. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 304 PEREIRA, Letícia Terra. A expansão dos cursos de Serviço Social e os desafios enfrentados pelas assistentes sociais docentes. 2018. 208 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2018. SCRIVANO, Roberta. Kroton se firma como maior empresa mundial de ensino superior. O Globo, Rio de Janeiro, 9 jul. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/economia/negocios/ noticia/2016/07/conselho-da-estacio-aprova-proposta-de-compra-pela- kroton-20160709101505794047.html. Acesso em: 20 dez. 2017. TOLEDO, Luiz Fernando. Só 8 grupos concentram 27,8% das matrículas do ensino superior. Estadão, São Paulo, 8 jun. 2016. Disponível em: http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,apenas-8-grupos-privados- concentram-27-8-das-matriculas-do-ensino-superior,10000055857. Acesso em: 20 dez. 2017.

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EIXO TEMÁTICO: TRABALHO E POLÍTICA SOCIAL

SAÚDE E TRABALHO NO SETOR CALÇADISTA EM FRANCA: UMA DISCUSSÃO A PARTIR DE UM GRUPO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

HEALTH AND WORK IN THE FOOTWEAR ECTOR IN FRANCA: A DISCUSSION FROM A UNIVERSITY EXTENSION GROUP

Edvânia Ângela de Souza1* RESUMO: A exploração do trabalho não se resume ao tempo de trabalho não pago, mas também à expropriação da saúde de assalariados, que num grande esforço -- físico e mental -- produzem a riqueza social, sem dela ter parte ou ter apenas no sentido restrito da sua sobrevivência. No mundo contemporâneo, o trabalho socialmente funcional à sociabilidade capitalista perde, cada vez mais, a sua capacidade de auto realização e aprofunda o sofrimento e a alienação. Este texto discute a relação trabalho e saúde a partir de dois relatos, que traduzem a história de um trabalhador e uma trabalhadora atendida\o(s) pelo projeto de extensão universitário desenvolvido no sindicato dos trabalhadores do calçado em Franca, SP12e que também aceitaram participar de um projeto de pesquisa que investiga as condições de trabalho e saúde no referido setor23. A partir dos relatos são discutidos os principais elementos da relação trabalho e saúde no setor calçadista ante a intensa fragilização das relações de trabalho promovidas pelas Leis n. 13.429 e n. 13.467, ambas aprovadas em 2017 (BRASIL, 2017a; 2017b). Palavras-chave: terceirização do trabalho. saúde do trabalhador. acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. trabalho no setor calçadista. ABSTRACT: The exploitation of labor is not limited to unpaid working time, but also to the expropriation of the employees’ health, who in a great effort - physical and mental - produce social wealth, without having part of it or having only in the strict sense of their survival. In today's world, the socially functional work on capitalist sociability increasingly loses its capacity for self- realization and deepens suffering and alienation. This text discusses the relationship between work and health from two reports, which reflect the history of a male worker and a female worker served by the university extension project developed at the footwear workers' union in Franca, SP, and which also accepted to participate in a research project that investigates the conditions of work and health in that sector. From the reports, the main elements of the relationship between work and health in the footwear industry are discussed, in front of the intense weakening of labor relations promoted by Laws n. 13,429 and n. 13,467, both approved in 2017 (BRASIL, 2017a, 2017b). Keywords: outsourcing. worker's health. labor related accidents and diseases. work in the footwear sector.

* Profa. Dra. Departamento de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS), UNESP- Franca. Profa. Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais - PPGSSPS - Mestrado Acadêmico da UNIFESP- Baixada Santista. Pós-doutorado em Saúde Coletiva, PPGSC da Unifesp (2015-2017) e em sociologia pela Universidade de Havana, Cuba (2013). Líder do grupo de estudos e pesquisas: "Mundo do Trabalho, Saúde do Trabalhador e Serviço Social” (GEMTSSS), Unesp-Franca, SP. Contato: [email protected]. 1 Projeto de extensão universitário intitulado: grupos com trabalhador\a(s) adoecidos e ou acidentados do setor calçadista” desenvolvido no ano de 2018 com o apoio e participação das bolsistas: Gabriela da Silva Cintra e Maria Clara Sargi, PROEX-UNESP. 2 Projeto de pesquisa: Reestruturação Produtiva no setor calçadista Franca/SP: um estudo sobre a saúde do\a(s) trabalhadore\a(s), o qual vem sendo coordenado pela autora deste texto.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 309 INTRODUÇÃO

Ao discutir as questões do campo Saúde do/a Trabalhador/a (ST) é preciso ter em mente a sua estreita vinculação com as mudanças do mundo do trabalho, as quais interferem diretamente no modo como o trabalho é realizado, a sua organização e as relações sociais de trabalho, compreendendo tanto as novas tecnologias e engenharias produtivas (que há tempos extrapolou a ciência mecânica) e as relações contratuais, as quais têm uma relação direta com o modo de organização da vida em sociedade indo muito além das questões patológicas propriamente ditas (LOURENÇO, 2016a). O atual contexto econômico, social e político no Brasil chama a atenção para o fato de que, de modo geral, a renda da classe trabalhadora caiu, o que interfere diretamente nas suas condições de vida. De um lado, o desemprego causado em grande parte pela ampla recessão econômica de âmbito mundial, mas com particularidades no País, sobretudo, a partir de 2014/2015, “[...] que praticamente fez dobrar o desemprego no país, de 6,8% em 2014 para 12,7% em 2017” (OXFAM BRASIL, 2018) e, de outro, o aumento do valor da cesta básica e a piora nas condições de bem-estar-social, dada as amplas mudanças que o Estado brasileiro vem imputando na sua relação com a sociedade, estabelecendo patamares muito mais duros para os níveis de civilidade. Segundo o Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE), em 2018, já eram quase trinta milhões de desempregado\a(s)s e desalentado\a(s) (pessoas que já não procuram trabalho) (OXFAM BRASIL, 2018). O número de pessoas em situação de extrema pobreza no Brasil passou de 13,34 milhões, em 2016, para 14,83 milhões no ano passado (DOLCE, 2018). A resposta apresentada até agora para o momento de crise tem seguido na contramão do que se aprende sobre política fiscal para a redução de desigualdades. No campo das despesas, reduziu-se o gasto social, tão importante para proteger a base da pirâmide, ao mesmo tempo que, no campo das receitas, foi mantido um sistema tributário que onera ainda mais essa base. (OXFAM BRASIL, 2018, p. 11). Entre os vários movimentos realizados pelo Estado para conter a crise econômica e a possível retomada do crescimento, incrivelmente, não se menciona nenhuma medida de contenção ou de enfrentamento das consequências sociais oriundas desse processo, portanto, não se fala em

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 310 reduzir as desigualdades sociais. Foi assim, que o governo promoveu, em 2016, o mais duro Ajuste Fiscal ditado pelo capital e extremamente danoso em termos de políticas sociais, uma vez que congelou o investimento público nas três esferas de governo por 20 anos. Outro movimento do governo a partir de discurso pródigo aos empresários foi a realização de uma reforma trabalhista draconiana, que permite ampla terceirização e legaliza a informalidade do trabalho. Do ponto de vista social é preciso destacar o aumento da pobreza e de problemas sociais que vinham sendo controlados, mas que agora voltam a chamar a atenção devido a sua ascensão. “Sob o critério-base do Banco Mundial, de US$ 1,90 por pessoa/dia, havia cerca de 15 milhões de pobres no país em 2017, 7,2% da população, um crescimento de 11% em relação a 2016 quando havia 13,3 milhões de pobres (6,5% da população).” (OXFAM BRASIL, 2018, p. 16). Em situação de privação miserável, vivendo com menos de US$ 1,90 por pessoa/dia, conforme estabelecido pelo Banco Mundial, no Brasil, em 2017, havia 7,2% da população ou cerca de 15 milhões de pessoas. Entretanto, se for considerado o cálculo de US$ 5,5 por pessoa/dia, uma vez que grupo de países em decorrência do tamanho da economia, como é o Brasil, pode ser medido sob critérios do Banco Mundial, Upper-middle Income Economy, tem-se o total de mais de 22% de sua população em situação de pobreza, 45 milhões de pessoas em vez de 15 milhões de pessoas ou 7,2% (OXFAM BRASIL, 2018, p. 16). O crescimento da pobreza, em ascensão desde 2015, cria inúmeros efeitos sociais, os quais, na maioria das vezes, são incomensuráveis, porque há uma dor cotidiana frente a escassez. Embora essa dor nem sempre possa ser medida, outros indicadores sociais dão conta de evidenciar esse sofrimento, por exemplo, o crescimento dos índices de mortalidade infantil “Em 2016, pela primeira vez desde 1990, o Brasil registrou alta na mortalidade infantil, que subiu de 13,3, em 2015, para 14 mortes por mil habitantes (4,9% a mais que o ano anterior).” (OXFAM BRASIL, 2018, p. 16). O Relatório da Oxfam (“Um país estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras 2018”) destaca que: “Nesses dois anos [2016- 2017], o Brasil se manteve no mesmo patamar do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), 0,74338, permanecendo na 79ª posição do ranking do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), de um total de 189 países.” (OXFAM BRASIL, 2018, p. 16), sendo a renda o

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 311 indicador mais negativo entre os menos favorecidos. “No comparativo global, em matéria de desigualdade de renda caímos, em 2017, da posição de 10º para 9º país mais desigual do planeta.” (OXFAM BRASIL, 2018, p. 16). Caiu a renda, como também caiu a regulação do trabalho. Interessante observar que 60% da população, o que significa pouco mais de 120 milhões de pessoas) possuem algum rendimento, sendo que desses 73,8% é renda do trabalho e 19,4% origina-se de aposentadorias e benefícios previdenciários, uma pequena parte, 2,4% vive de alugueis; 1,2% de pensão ou outros (3,3%) (OXFAM BRASIL, 2018, p. 18), mas a grande maioria concentra-se no Trabalho e uma parte menor na Previdência Social. A truculência do desemprego e das restrições para o acesso aos benefícios sociais incide sobre os mais pobres, cuja renda média, em 2017, foi inferior a um salário mínimo ou R$ 787,69; são essas pessoas que mais perderam (OXFAM BRASIL, 2018, p. 18). Em 2017, a renda média mensal per capita levantada pela PNAD Contínua foi de R$ 1.268,0048; uma queda de 2,7% em relação à de 2016 - R$ 1.303,1249. Entre 2016 e 2017, o índice de Gini que mede desigualdade de renda domiciliar per capita manteve-se inalterado, no patamar de 0,54950, o que contrasta com os 15 anos anteriores nos quais sempre houve alguma queda em relação ao ano anterior. Este índice é importante por refletir o grau de concentração da renda, sobretudo da renda do trabalho, mas, também, incluindo rendimentos que não sejam provenientes do trabalho como as aposentadorias, pensões, aluguéis recebidos e outros benefícios e fontes. (OXFAM BRASIL, 2018, p. 18). Embora a desocupação, o desemprego e a desigualdade social constituem forte ameaças para toda população, é importante considerar nessa análise que a diferença de renda também é fortemente marcada segundo os marcos regionais, o gênero e a etnia. Assim, no computo geral, 22% da população sofrem com a ameaça explícita, constante e onipresente da mais profunda escassez. Mas as desigualdades sociais ainda têm características regionais, sendo os estados do Maranhão e Alagoas aqueles que apresentam os piores índices, mas o quadro se agrava quando são destacados os componentes sexo e a cor das pessoas. Em relação a questão étnica-racial o rendimento médio de negros em relação aos brancos é de 53%, já foi 57% em 2016, mais caiu para 53% em 2017; já a relação ao ganho mulher x homem, “segundo

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 312 dados das PNAD contínuas, mulheres ganhavam cerca de 72% do que ganhavam homens em 2016, proporção que caiu para 70% em 2017 (OXFAM BRASIL, 2018, p. 22). A situação se agrava ao considerar a mulher sem cônjuge e responsável pelo lar, se ela for negra, a desigualdade se acentua ainda mais. Por outro lado, há uma abundância de renda entre os 10% mais ricos, os quais tiveram incrementos na renda em mais de 6%, enquanto os mais pobres experimentaram o sacrífico das perdas. “Com base em dados da PNAD Contínua 2017, a renda média total do decil mais rico foi de R$ 9.519,10, cerca de 10 salários mínimos por mês (sendo de R$ 9.324,57 em 2016).” (OXFAM BRASIL, 2018, p. 18). Se se considera os dados da Receita Federal a partir do Imposto de Renda (IR), “[...] a renda média mensal declarada em 2017 (ano-calendário 2016) dos 10% mais ricos no Brasil foi superior a R$ 13.000,00.” (OXFAM BRASIL, 2018, p. 18). Há também uma desigualdade entre os mais ricos, sendo que “[...] o grupo de cerca de 1,2 milhão de pessoas que compõem o 1% mais rico do país tem rendimentos médios superiores a R$ 55.000,00 ao mês.” (OXFAM BRASIL, 2018, p. 18). Embora a riqueza e a pobreza compareçam de forma autonomizadas na sociedade como se fossem fruto do esforço pessoal, benção, herança, imperfeição, castigo, vagabundagem, ou outro, é preciso considerá-las como decorrentes do modo de produção capitalista e, na particularidade brasileira, de um capitalismo tardio, dependente, com fortes resquícios do trabalho escravo e da dominação das terras e dos recursos naturais pela elite brasileira e associada. Quando se analisa as atuais mudanças promovidas pelo governo na legislação trabalhista o quadro da desigualdade social se intensifica ainda mais, uma vez que a legislação promove maior segurança jurídica para as empresas e deixa os trabalhadores e trabalhadoras à deriva (LOURENÇO, 2018). A informalidade no trabalho chegou a patamares alarmantes em 2017, quando a cada cinco trabalhadores, dois eram informais. Aqui, é preciso grifar o papel dos direitos do trabalho para a sociedade como um todo. Assim, busca-se evidenciar os transtornos do trabalho, com enfoque para o setor calçadista em Franca, onde houve profunda reestruturação. Para tanto, é preciso embrenhar-se nestas relações, desnaturalizando o que está posto e estabelecendo as articulações necessárias entre a diversidade e unidade dos fenômenos gerais e particulares posto na realidade. Portanto,

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 313 não se pode perder de vista a organização, a gestão, as condições, os tipos de contratos de trabalho, os salários e, entre outros, os seus significados para a saúde e vida social.

MÉTODO

A partir do projeto de extensão “grupos com trabalhador\a(s) adoecidos e ou acidentados do setor calçadista”, devidamente aprovado pela Reitoria de Extensão da Unesp e do projeto de pesquisa: “Reestruturação Produtiva no setor calçadista Franca/SP: um estudo sobre a saúde dos trabalhadores”, aprovado pelo Comitê de Ética da UNESP, tem sido possível acompanhar pessoas que trabalham ou trabalharam no setor calçadista e que sofreram algum acidente de trabalho ou desenvolveram doença relacionada ao trabalho, como também tem sido possível a realização de entrevistas com trabalhador/a(s) evidenciando as suas condições de trabalho e de saúde. Dessa maneira, para essa discussão, foram selecionados dois relatos, os quais foram construídos a partir de entrevistas semiestruturadas, antecedidas pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas ocorreram em junho de 2018, foram gravadas, após, transcritas e analisadas. Neste texto, optou-se por expor os dados das entrevistas na forma de relatos, os quais evidenciam as perdas e prejuízos orgânicos, sociais, emocionais e profissionais de trabalhador/a(s) do setor calçadista.

1 NOVA MORFOLOGIA DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA NO BRASIL

As Leis n. 13.429 e n. 13.467, ambas aprovadas em 2017 (BRASIL, 2017a, 2017b), permitem profunda mudança nas formas de contratação e torna legais a desregulação e informalização do trabalho. As empresas passaram a ter mais liberdade para contratar e demitir. As atuais contratações, já sob os auspícios da Lei n. 13.467, transferem para o/a(s) trabalhador/a(s) os tributos e taxas, já que agora, além da possibilidade da terceirização total, as empresas também podem contratar trabalhador/a(s) como autônomos, por hora (trabalho intermitente), Microempreendedor Individual (MEI), temporário etc., retirando toda margem de responsabilidades e encargos que deveriam ser custeados pelas empresas e imputando-os o/a(s) trabalhador/a(s).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 314 Art. 442-B. A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação. Art. 443. O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente. § 3º Considera-se como intermitente o Contrato de Trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria. (NR). (BRASIL, 2017b). É importante destacar que as mudanças na legislação trabalhista estabelecem profunda insegurança para o/a(s) trabalhador/a(s). No caso dos artigos ora destacados, evidencia-se a miríade de tipos de contratos que agora podem ser feitos livremente, inclusive a partir de acordos individuais entre trabalhador\a e empregador. O caso do contrato temporário é notório, pois esse agora pode ser estendido para até seis meses (de 90 dias de duração, passou para até 180 dias) (Lei n. 13.429, BRASIL, 2017a). O contrato temporário era muito usado no setor da agropecuária no País, sobretudo, no período de safra e também para o comércio ante o aumento das vendas em datas natalinas ou outras que tinham picos de vendas. Contudo, com a atual legislação essa forma de contratação passa a ser corriqueira no dia-a-dia das empresas e, às vezes, sob a justificativa de substituição de trabalhador/a(s) afastado/a(s). Na realidade, se trata de contratação ampla e irrestrita sob a forma temporária, criando uma insegurança social muito grande para a classe trabalhadora e segurança jurídica e financeira para as empresas. O aumento do período do tempo de duração do contrato temporário de três para seis meses, com possibilidade de prorrogação, faz ampliar uma situação já muito complicada do ponto de vista social, que é a terceirização do trabalho. Os contratos de trabalho temporários ocorrem a partir da contratação de uma empresa ou uma agência que realiza os cadastros de trabalhador/a(s) e o\a(s) encaminha para trabalhos em determinadas empresas, com salários e respectivos direitos distintos dos que são contratados diretamente pelas empresas tomadoras. Dessa maneira, a contratação do/a(s) temporário/a(s) já era uma forma de burlar

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 315 a legislação trabalhista que não autorizava a terceirização das atividades fim, assim, a empresa contratando temporariamente por meio de outra empresa terceirizava qualquer função dentro da empresa. Agora, essa manobra empresarial passa a contar com o respaldo legal do aumento do tempo desses contratos, que tiveram a possibilidade de extensão , além de poderem praticar a terceirização irrestrita do trabalho tanto no setor público quanto no privado (LOURENÇO, 2018). Trata-se de frisar que o contrato é entre o/a trabalhador/a e uma empresa terceira, mas que esse/a irá trabalhar e desenvolver as suas funções em outra empresa, no caso, a tomadora, para a qual ele/a estará totalmente subordinado, ao mesmo tempo não vinculado para efeitos contratuais e salariais. Tanto o contrato quanto o salário serão pagos pela empresa terceira. Em geral, a legislação e a regulamentação presentes em uma sociedade representam os patamares acordados de sociabilidade e de justiça social. Assim, a preocupação do governo deveria ser no sentido de reduzir as desigualdades e injustiças sociais (LOURENÇO, 2016b). Contudo, seguramente, o que se tem visto com as inúmeras medidas aprovadas pelo Congresso Nacional, junto ao assédio do “governo” de Michel Temer, que assumiu o posto presidencial a partir do golpe jurídico, midiático e parlamentar em 2016, é que a injustiça, agora, fica regulamentada, como se vê na terceirização irrestrita e na Lei n. 13.467 (BRASIL, 2017a), que alterou profundamente a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (BRASIL, 2017b), que segue esse prisma, pois não apenas flexibiliza os direitos do trabalho, mas também desregulamenta (MAIOR; SEVERO, 2017). A Lei n. 13.467 muda radicalmente a legislação do trabalho no país, além de fragilizar profundamente os vínculos contratuais, garante também que os acordos coletivos prevaleçam sobre os direitos legislados; além de permitir o acordo individual para definição de horas extraordinárias, férias, banco de horas, horário de almoço etc, sem a presença ou acompanhamento sindical (KREIN; GIMENEZ; SANTOS, 2018). Também promoveu ampla dificuldade de acesso à justiça do trabalho e pôs fim à contribuição obrigatória de um dia de trabalho aos sindicatos, além de outros fatores, garantiu a possibilidade de realização de acordos coletivos abaixo do que a legislação garante (LOURENÇO, 2018). São mudanças que interatuam com a insegurança e instabilidade social (LOURENÇO, 2016b).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 316 O sindicato, a justiça do trabalho e as normas protetoras expõem um limite que não deve ser excedido ou ultrapassado pelas relações sociais de trabalho. Agora, com a negociação individual, por comissões, ou mesmo coletiva e com a possibilidade real das deliberações ou acordos a serem efetuadas abaixo das garantias legais, ocorrerá a ultrapassagem desses limites. O trabalhador/a fica acuado ante uma proposta patronal porque sabe que se não aceitar, outro\a ocupará o seu lugar. Ele/a está constantemente fragilizado econômica, socialmente e subjetivamente. Neste contexto, destaca-se o processo de reestruturação produtiva da economia, marcado por ampla terceirização do trabalho ocorrido na cidade paulista de Franca, a qual, tradicionalmente, é uma cidade conhecida pela produção de calçados masculinos, e que aderiu fortemente ao processo de reestruturação produtiva, como vistas a vencer a crise do setor. Ou seja, na década de 1990, o município perdeu considerável número de postos de trabalho, algo em torno de 16 mil vagas (NAVARRO, 2003). Isso foi um reflexo da abertura econômica brasileira efetivada no governo Collor de Mello, transparecendo a baixa capacidade de competição das fábricas calçadistas francanas no mercado mundial sob a alegação da valorização do real (PLANO REAL). Frente a necessidade de competir com calçados importados que passou a barrotar o mercado interno, as empresas promoveram amplo processo de reestruturação produtiva, transferindo grande parte da produção para as residências do/a(s) trabalhador/a(s), onde o trabalho é feito sem qualquer respeito às normas de proteção do trabalho e aos direitos trabalhistas e previdenciários (LOURENÇO, 2014; 2015). Nesse sentido, o sofrimento está relacionado ao trabalho, mas que se faz presente no ambiente familiar, portanto, o nexo entre trabalho e problema de saúde apresentado é bem mais complicado de ser feito.

EXPOSIÇÃO DOS DADOS: RELATO DOS CASOS

2 CASO IVAN

Ivan tem 57 anos, trabalha desde os 13 anos de idade, mas tem apenas oito anos de registro em carteira de trabalho. Trabalhou na maior parte do tempo como pregador de salto manual, sendo essa uma atividade essencialmente repetitiva e pobre em conteúdo, a qual consiste bater repetidamente o martelo na parte inferior do sapato para pregar o salto.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 317 Adoeceu, mas para não perder o emprego se manteve trabalhando até que as dores se agravavam e ele se afastou do trabalho com o diagnóstico de fibromialgia, quando, segundo ele, a dor tinha se espalhado por todoo corpo e também intenso mal-estar físico e emocional. Após o afastamento médico, foi demitido. Recorreu contra o fim do afastamento contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), com uma demanda na justiça federal, mas, segundo ele, o perito judicial disse que ele estava bem e que a sua pele estava boa e não autorizou o auxílio-doença. No momento, diz que para sobreviver teve que vender os móveis da casa e procurou ajuda no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e foi incluído na renda cidadão com valor de 80 reais/mês. Contudo, situação financeira é muito delicada, pois ao perdeu a capacidade para o trabalho, como refere ter passado a vida toda fazendo praticamente uma função no setor calçadista, não sabe fazer outra coisa, também não tem recursos para investir em um negócio próprio. Além disso, o valor recebido pela renda cidadã é insuficiente para os gastos de alimentação, água e energia, ele paga aluguel. Ivan diz que para conseguir conviver com a fibromialgia, é como conduzir a vida pensando só na dor e afirma: “[...] tem que lutar contra isso, porque senão morre antes de deitar.” Ele reforça os sintomas que são dores fortes no corpo inteiro e em todas as articulações como: joelho, quadril e também no calcanhar, diz que ao pisar sente um choque, que percorre o corpo. Também se diz cansado, o que chega a impedir, em certos dias, que se levanta da cama. Está em tratamento para depressão.

3 CASO VERA

Vera tem 40 anos de idade e está grávida de 38 semanas do seu quarto filho. Vera sempre trabalhou na função de coladeira de peças em calçados. Na sua atual experiência de trabalho, diz ter sido humilhada, perseguida e assediada sexualmente. Relata que, na atual empresa os patrões são da mesma família e inclusive alguns funcionários são parentes dos proprietários. Informa que a dona da fábrica usa de muita violência verbal com os funcionários, inclusive chegou a gritar, algumas vezes, com ela. Vera diz que se sentiu muito mal quando o seu empregador a assediou, informa que, em dezembro último [2017], a fábrica fez uma festinha de confraternização e que durante esse momento festivo o seu patrão teria convidando-a para ir nadar com ele na piscina do seu rancho [casa de

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 318 veraneio], afirmando que gostaria que ela fosse totalmente nua. Vera diz que ficou muito nervosa e o destratou, mas a partir desse dia a sua vida na empresa virou um “inferno”, pois ele passou a persegui-la e a chamar a sua atenção constantemente. As péssimas condições de trabalho mais as perseguições e humilhações sofridas fez com que Vera desenvolvesse diabete gestacional, além de outros sintomas como: tontura, vômito e sensação de secura na garganta e nariz. Tudo isso, associado ao clima na empresa, que segundo ela, estava tão pesado, que fez com que ela perdesse o interesse de ir trabalhar, diz que: “[...] só de pensar no trabalho sente-se mal. A partir daí demandou os seus direitos na justiça do trabalho e aguarda julgamento.”

4 DISCUSSÃO DOS DADOS

A lei, a justiça do Trabalho e, sobretudo, a organização e participação sindical na demanda das melhorias das condições de trabalho, salarial, como também a fiscalização dos ambientes e condições de trabalho propiciaram determinados limites para a exploração, tanto em termos de jornada de trabalho quanto em termos ambientais, condições e segurança trabalhista. Entretanto, é preciso ter clareza que, na atualidade, ainda que sob a vigência da CLT e de alguns avanços propiciados pelo direito do trabalho e protagonismo de alguns sindicatos, a classe trabalhadora ainda convive com flagrante condição de desrespeito à sua integridade física e mental, tais como explicitado nos casos ora relatados. Os registros de acidentes de trabalho pela Previdência Social dão conta de mais de meio milhão de trabalhador/a(s) que sofrem algum tipo de acidente de trabalho anualmente. Esses dados contemplam os acidentes considerados típicos que ocorrem durante o desenvolvimento da função, de trajeto (percurso de ida-volta-ida do trabalho) ou doença relacionada ao trabalho. Do total de mais de dois milhões de acidentes de trabalho ocorridos no triênio 2013-2015, 84% foram ocorrências consideradas leves com incapacidade temporária para o trabalho e 44 mil pessoas, 2,15% daquele total tiveram incapacidade permanente. Um dado alarmante diz respeito aos acidentes fatais, pois, nesse período, ocorreram 8.162 mortes em decorrência de acidentes de trabalho, ou seja, foram 2.700 mortes vinculadas ao trabalho por ano. 225 pessoas sucumbiram por mês e mais

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 319 de sete por dia, ou seja, a cada três horas morre um/a trabalhador/a por acidente de trabalho no Brasil (LOURENÇO, 2016b). Além de as estatísticas de acidentes de trabalho se resumirem aos trabalhador/a(s) do mercado formal de trabalho, cabe registrar aqui, a luta cotidiana para se conseguir o reconhecimento de uma acidente como decorrente do trabalho, ainda mais quando se trata de doença e se for relativa a esfera mental, o reconhecimento é ainda mais difícil. Portanto, cotidianamente, os serviços de saúde recebem uma grande quantidade de pessoas que buscam um diagnóstico e uma assistência aos problemas relacionados ao trabalho, mas são, cotidianamente, tratados como problemas comuns e independentes das condições de trabalho e das relações subjacentes (LOURENÇO, 2009). Mesmo em casos de acidentes de trabalho típico, há uma falta de preparação e de vontade do/a(s) profissionais da área da saúde em fazer a relação com a atividade exercida e fomentar os registros. Falta essa cultura e também a formação adequada de profissionais da saúde para relacionar as causas dos problemas de saúde e não apenas assisti-los, tanto nos serviços públicos de saúde quanto nos privados, nesses, talvez essa dificuldade seja maior ainda. Outro problema é a ausência de fiscalização nos ambientes de trabalho. São raras as fiscalizações realizadas pela Vigilância Sanitária ou pelas Delegacias Regionais do Trabalho a favor da defesa da saúde do/a(s) trabalhador/a(s). Assim, os casos atendidos no sindicato dos sapateiros em Franca, conforme projeto de extensão já citado neste texto, considerando inclusive os relatos ora discriminados, evidencia a precarização e violência do trabalho anteriores à aprovação das Leis n. 13.429 e n. 13.467 (BRASIL, 2017a; 2017b), mas que agora tendencialmente se aprofundarão. Os relatos apontam para a vulnerabilidade de) trabalhador/a(s), que têm a sua saúde saqueada. Ambos entrevistados, Ivan e Vera, puderam contar com o sindicato da sua categoria (dos sapateiros) e demandam ação na justiça do trabalho. Contudo, cabe dizer que com a aprovação da Lei que permite a terceirização irrestrita (Lei n. 13.429) e a Lei que muda mais de cem dispositivos da CLT (Lei n. 13.467) tornarão as condições de trabalho muito mais vulneráveis e apartadas dos sindicatos, além das sérias restrições para o acesso a justiça do trabalho. Embora os problemas que afetam o trabalho não podem se resumir a um processo judicial, também não se pode desconsiderar que a judicialização tem favorecido determinado controle dessas situações.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 320 O processo de mudança em curso é amplo, no geral, blinda os empresários contra qualquer cobrança e responsabilidade sobre os encargos e condições de trabalho e, isso, por si só, já representa um forte impacto para a saúde do/a(s) trabalhador/a(s), hoje, já tão fragilizada. Então, num país em que as condições de trabalho continuam a promover níveis altos de acidentalidade, cuja força de trabalho -- jovem e barata -- vem tendo a sua saúde sucumbida de forma bastante prematura, o governo deveria ter tido a preocupação com a criação de políticas de emprego e renda, bem como a aprovação de leis para garantia e proteção do trabalho e não o oposto. Na verdade, está se vivenciando uma verdadeira destruição dos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários (LOURENÇO; LACAZ; GOULART, 2017). No âmbito do trabalho, foi promovida a garantia das empresas a maior exploração e captura da mais valia, sem qualquer preocupação com dignidade, saúde e vida da classe trabalhadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atual reforma trabalhista não trouxe qualquer avanço na proteção do trabalho, ao contrário, o seu pressuposto básico é a ampliação da extração da mais valia (LOURENÇO, 2018), criando maior subordinação do trabalho ao capital. Quanto mais inseguro o vínculo contratual ante um quadro geral de desemprego, maior a subserviência do trabalho ao capital. A finalidade é eliminar gastos empresariais com o pagamento de tributos e encargos para financiar o trabalho e o fundo público, limitando as empresas a pagarem somente a hora trabalhada. Quanto mais insegura a situação de trabalho maior será o desgaste da saúde física e mental, além é claro, do quadro geral de depauperamento. Claramente as Leis n. 13.429 e n. 13.467, ambas aprovadas em 2017 (BRASIL, 2017a; 2017b) não têm a finalidade de gerar empregos e recolocar os desalentados no mercado de trabalho. Trata-se, na verdade, de tornar ampla gama de trabalhador/a(s) em desprovidos de vínculos de trabalho estáveis, contratados diretamente pelas empresas tomadoras para se tornarem efetivamente terceirizados, autônomos, prestadores de serviços e intermitentes. Em Franca, a indústria calçadista -- veio principal da economia local -, apresenta processos de trabalho simplificados, pobres em conteúdos e repetitivos, o que não raramente, expõe o/a(s) trabalhador/a(s) ao desgaste físico e mental, expressado mais comumente nas doenças relacionadas ao

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 321 trabalho do tipo osteomuscular, que atinge os membros superiores e coluna e também o sofrimento mental, como os casos ora explicitados. A partir do trabalho de extensão universitária no sindicato dos sapateiros em Franca, verifica-se que os sindicatos de trabalhador/a(s) embora vivenciem no seu cotidiano a presença de inúmeros problemas provenientes das condições laborais danosas, as quais contribuem para as mais diversas morbidades e incapacidades para o trabalho, ainda tardam em colocar em suas pautas de negociação coletiva e demais reinvindicações as questões que se referem ao trabalho e à saúde, em geral, essa se limita ao encaminhamento a um advogado, ou seja, judicializa-se a questão. Por fim, frisa-se que a universidade ao produzir conhecimentos precisa se aproximar da realidade e conjugar as suas pesquisas às experiências populares e cidadãs, assim, como colocar o conhecimento produzido, sempre fruto de movimentos coletivos, à serviço dessa comunidade, para quem sabe produzir novos conhecimentos articulados ao fortalecimento da/o(s) participantes (LOURENÇO, 2016a). Dessa maneira, a proposta de reunir sistematicamente com trabalhador/a(s) que sofreram acidentes e ou adoeceram no e pelo trabalho, especifico do setor calçadista, conforme o referido projeto de extensão, é possível construir novos conhecimentos a partir de uma compreensão mais ampla das condições de trabalho e os seus impactos para a saúde, assim como intentar alternativas coletivas em torno do cuidado, recuperação, prevenção e promoção da saúde.

REFERÊNCIAS

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 324 AS CONDIÇÕES DE VIDA DO/A(S) TRABALHADORES RURAIS DO SETOR CAFEEIRO DE SÃO TOMÁS DE AQUINO/MG

THE LIVING CONDITIONS OF RURAL WORKERS IN THE COFFEE SECTOR OF SÃO TOMÁS DE AQUINO/MG COFFEE INDUSTRY

Élica Batista dos Santos1* RESUMO: Este texto discute a saúde do trabalhador na agricultura cafeeira de São Tomás de Aquino- MG. A pesquisa está subsidiada nos estudos bibliográficos e na coleta de dados empíricos por meio da realização de entrevistas semiestruturadas com onze trabalhador/a(s) das lavouras de café. A partir das entrevistas e análises são evidenciadas as precárias condições de trabalho no meio rural, marcadas pela sazonalidade e informalidade do trabalho, com consequências para a saúde desses indivíduos. Palavras- chave: trabalho rural. cafeicultura. saúde do trabalhador. ABSTRACT: This text discusses the health of the worker in the coffee agriculture of São Tomás de Aquino - MG. The research is subsidized in the bibliographical studies and in the collection of empirical data through semi-structured interviews with eleven worker (s) of the coffee plantations. From the interviews and analyzes, the precarious working conditions in the rural environment are marked, marked by the seasonality and informality of the work, with consequences for the health of these individuals. Keywords: rural work. coffee cultivation. worker health.

INTRODUÇÃO

O trajeto do café até as mesas dos brasileiros é marcado pela exploração da força de trabalho de milhares de trabalhador/a (s), que se constituem como a parte mais fraca da cadeia produtiva do café. A produção do café gera grandes riquezas para as empresas, entretanto para o/a trabalhador/a, o que resta, é se submeter às condições precárias de trabalho, insuficientes para garantir qualitativamente a sua subsistência e de sua família. Com a desregulamentação e a flexibilização do mercado de trabalho, sob a perspectiva neoliberal, a vida do/a trabalhador/a rural tende a piorar, conforme pontua Veras (2002),

* Graduação em Serviço Social - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCHS/UNESP)- Câmpus de Franca. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Meio Ambiente e Educação Ambiental; Grupo de Estudos e Pesquisa em Política Social e do Grupo de Estudos Teoria Social de Marx e Serviço Social. Foi membro do Grupo de Extensão Universitária: Participação social, direitos e cidadania (2016-2017). Foi Bolsista FAPESP.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 325 Nesse novo modelo de produção, os elos mais fortes da cadeia transmitem para os mais fracos- assalariados e agricultores familiares- o ônus da redução dos custos. As consequências são redução de rendimentos, exclusão social, desemprego e êxodo rural. A crise é agravada pela mecanização da lavoura, que leva ao aumento na oferta de mão-de-obra e pressiona os assalariados a aceitar trabalho em condições piores. (VERAS, 2002, p. 26). Acrescenta-se, também, que a história do País é marcada centralmente pelo latifúndio e trabalho escravo, além disso, ao longo dos tempos, essas características são reafirmadas a partir de novas roupagens, como, por exemplo, a política de valorização das terras a partir dos anos de 1960, que contribuiu para “[...] acentuar ainda mais a concentração fundiária e a expulsão do homem do campo.” (SANT’ANA, 2012, p. 22). Nesse sentido, busca-se com este estudo compreender a realidade do/a (s) trabalhador/a (s) que trabalham na colheita do café. Para uma melhor apreensão da realidade, foi realizada, em 2017, a pesquisa “Saúde do trabalhador rural na agricultura cafeeira”, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), com processo sob o número 2017/06968-8. Assim, essa pesquisa foi organizada e estruturada a partir dos estudos bibliográficos e da realização de entrevistas semiestruturadas com onze trabalhador/a(s) das lavouras de café na cidade de São Tomás de Aquino, localizada na mesorregião Sul do estado de . Foram entrevistados seis trabalhadores do sexo masculino e cinco do sexo feminino. Além de entrevistar trabalhador/a(s) do café, também, foram entrevistadas as assistentes sociais do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e a do Serviço de Saúde da referida cidade, com vistas a compreender como que o trabalho profissional se aproxima ou atende os trabalhador/a(s) rurais. Contudo, para este estudo, buscou-se evidenciar as informações apresentadas pelo/a(s) trabalhador/a(s) acerca das condições de trabalho e saúde. A população que vive neste município tem, em sua grande maioria, o trabalho rural como única fonte de renda. Para a realização das entrevistas também foi utilizado um roteiro como parâmetro para a entrevista, mas não ficou restrito a ele, e o/a (s) trabalhador/a (s) assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), após a explicação do objetivo da pesquisa, também foi frisado que os dados obtidos seriam usados para fins acadêmicos, e que as informações não iriam prejudicá-los, uma vez que seus nomes não seriam identificados.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 326 Dessa maneira, a pesquisa realizada contribui para analisar os impactos do trabalho na cafeicultura para a saúde do/a trabalhador/a rural do estado de Minas Gerais, tendo em vista que este estado é atualmente o maior produtor de café do país1. Espera-se com este estudo, contribuir para a compreensão da complexidade da realidade do/a(s) trabalhador/a(s) rurais inseridos no setor cafeeiro, que reflete, também, em outras culturas agrícolas.

1 CONDIÇÕES DE TRABALHO

O trabalho rural possui uma importante característica, da qual se diferencia do trabalho urbano, pois ele depende das condições climáticas para ser realizado. Suas tarefas e ritmos são desenvolvidos de maneiras diferentes ao longo de todo o processo agrícola, dependendo das forças da natureza, para que assim, diminua o risco de prejudicar a plantação, ou até mesmo, para evitar a perda total do plantio. Essa característica do mundo rural implica em uma maior sazonalidade no trabalho. O trabalho sazonal só acontece em determinadas épocas, sobretudo, na colheita do produto, no caso o café, assim, o/a(s) trabalhador/a(s) deslocam-se para outras cidades em um determinado período em busca de trabalho, submetendo-se a condições precárias de habitação, trabalho e saúde para que consiga ter alguma renda para suprir as necessidades de sua família. Dessa maneira, a sazonalidade afeta diretamente o modo de vidas do/a(s) trabalhador/a(s) rurais. [...] entendemos que o trabalhador rural se insere nas migrações sazonais que se caracteriza pelo ciclo produtivo da cultura (colheita ou cultivo da planta). É uma migração temporária, mas desestrutura a vida do trabalhador, pois o migrante sai de um determinado local para o outro, por um determinado período do ano, não leva a família e sofre as sequelas do “novo” mundo do trabalho. Muitas vezes, esse trabalhador perde o vínculo familiar devido a ausência e a condição financeira, com isso, não acompanha o crescimento dos filhos, quando tem e é obrigado a viver num mundo estranho, desenvolvendo um trabalho estranho, devido as condições impostas pelo modelo produtivo. (RIBEIRO, 2014, p. 100-101).

1 Conforme dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (FERREIRA, 2016).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 327 Ao estudar a saúde do trabalhador (ST), enquanto campo teórico e prático do conhecimento, Lourenço (2016) afirma que essa só pode ser garantida a partir de um conjunto de medidas de proteção social. Portanto, a rotatividade no trabalho significa, entre outros, forte insegurança para o sócio reprodução. Além disso, no meio rural, a sazonalidade, que implica em rotatividade e em ter trabalho durante curtos períodos no ano, é uma das principais características desse trabalho, mas ela não está sozinha, mas acompanhada da alta informalidade que gere o trabalho rural. Assim, as entrevistas realizadas evidenciam que para ter trabalho o ano todo, o/a(s) trabalhador/a(s) rurais necessitam saber trabalhar em várias atividades e não apenas na fase da colheita, por exemplo. No caso do café, é preciso conhecer as etapas da produção, tais como: a plantação, desbrotar e colher, como evidenciado durante as entrevistas: Trabalho o ano inteiro uai. Acaba a colheita nóis vai trabalhar de enxada, desbrotar café. (AZARIAS).

O ano inteiro direto. (ANTÔNIO). Embora, o desemprego no meio rural tenha sido percebido e sublinhado pelas assistentes sociais entrevistadas e por cinco dos onze entrevistado/a(s). Só na colheita do café. De maio até outubro. (JUAREZ).

Uai, trabalha uns seis meses né, só na época da safra, né. (MAURO).

Mais na safra e no final de ano na planta do café. Nos demais meses fico em casa cuidando das meninas. Durante a safra eu junto dinheiro para manter o resto dos meses que fico parada. (MARIA). Grande parte da força de trabalho na cafeicultura na região sul do estado mineiro, são estabelecidas através de contratados por trabalho sazonal, ou seja, contrato temporário de trabalho. Essa realidade não é muito diferente da realidade que se encontra no município de São Tomás de Aquino/MG como indicado pelo/a(s) entrevistado/a(s). Os motivos que levaram o/a (s) trabalhador/a (s) a se inserirem no trabalho rural são diversos, mas todos giram em torno da renda para garantir a sua subsistência.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 328 Uai, eu morava na roça, tive que ajudar o pai e a mãe. (ROBERTO).

Eu não tive pai nem mãe, né, minha filha. Eu tinha que trabalhar pra sobreviver, né. Como é que faz? Quando tinha, você trabalhava; quando não tinha; você passava falta. (NAIR).

Uai, não tinha outra opção, era a roça mesmo. (MAURO).

Têm uns 15 anos que eu estou trabalhando com o café. Lá em a gente trabalhava mais com feijão, arroz, milho, café era pouquinho, só pro gasto mesmo, da casa mesmo. Eu mudei pra cá, pra região daqui. Eu já trabalhei bastante tempo na diária pros outros. Aqui, eu comecei a mexer com o café tem uns 15 anos. Eu vim duas vezes e voltei, daí, eu vim de mudança e fiquei. (ANTÔNIO).

Eu perdi minha mãe muito cedo e meu pai não dava conta de tratar da família, então eu tinha que ajudar ele. (ANA PAULA).

Comecei a trabalhar com 15 anos, depois que ganhei minha menina, aí, eu precisava para sustentar minha filha. (HOSANA). Observa-se que os depoimentos expressam carências materiais, necessidades de auxiliar os pais em relação à renda familiar, inclusive acompanhadas de ausência de pai ou mãe. Daí que se pode afirmar que o trabalho no meio rural está acompanhado da falta de oportunidades, ás vezes, da falta de estudos, mas, em geral, é reportado, como única opção, a qual é assumida por necessidades materiais de vida. Quanto à rotina de trabalho verifica-se que essa pode ter uma relação com o tipo de contrato, de empreita ou por dia. Eu levanto cinco horas, sete horas eu já estou no serviço e vou até às cinco da tarde. Já deixo a comida pronta, depois só esquento [...] Por empreita, eu almoço a hora que eu quiser, agora, por dia, é às onze horas, aí, eu tenho uma hora e meia. Passa direto até as cinco. (JUAREZ).

Eu saio daqui às 6hrs, almoço às onze. Almoço e já volto a trabalhar. A vida nossa, é essa menina. Como diz o outro o pobre tem que pular pra não passar fome. Fome ninguém passa, mas você passar apertado. (CÍCERO).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 329 E em outros casos é garantido ao trabalhador/a, uma hora para o almoço, e alguns minutos para um lanche no período da tarde. Eu saio daqui de casa as seis horas, seis e meia à gente saí do ponto, chega às sete horas. O almoço é as 11hrs, tem uma hora de almoço, aí vai direto até as 16hr45, direto. (MAURO).

Nois têm que estar no ponto 6h20. Acorda 5h30 e tomo café, tem que chegar lá 7h, 7h tem que pegar no serviço. Nois para 10h, quando é por dia, nois almoça às 10h e pega às 11h, uma hora de almoço. Tem 30 a 40 minutos de café às 14h, aí nóis para ás 16hr, chego em casa umas 17hr. (AZARIAS).

Tem que levantar às cinco horas, pra fazer marmita no caso, né, faz, saio 6h30 do ponto, aí chega, o trabalho começa as sete hora até as dez, normalmente a gente almoça, aí das dez as onze, vai até as duas trabalhado, as duas e quarenta é a merenda, para as quatro. (MARIA).

Eu acordo às 5hr da manhã, faço almoço, saio às 6h40, vou na fazenda pego o ônibus e vou direto pra lavoura. Chego na base de umas 7h30, paro às 10h00, são uma hora de almoço, às 14h00 é a merenda, são meia hora de merenda e paro às 16h00. Eu chego às 17h00 em casa. (HOSANA). Uma das trabalhadoras participantes da pesquisa afirma que, O melhor serviço é roça, nem se eu tivesse estudo ou oportunidade. Eu queria roça. Eu queria. (NAIR). O trabalho é central na vida das pessoas e mesmo o trabalho nos cafezais sendo um trabalho pesado, desgastante e com baixos status salarial e de poucos ou nenhuma garantia trabalhista, deve-se observar que as pessoas gostam de trabalhar, referem ao trabalho como parte importante da sua identidade. Seligmann-Silva (2011) mostra que o/a trabalhador/a desenvolve as suas aptidões e as suas relações dependentes do trabalho que executa, assim, a sua identidade é forjada neste processo. Portanto, quando falta trabalho essa identidade fica sem sustentação, daí que o desemprego também é motor de sofrimento. Ou seja, o trabalho causa desgaste, sofrimento e envelhecimento precoce, mas o trabalho também proporciona meios de subsistência, perspectivas de futuro, relações sociais, inclusive o referente para inúmeras famílias. A constituição do ser tem um vínculo intrínseco com o que ela faz e do modo como o faz e, ainda, sob quais condições e com quais garantias.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 330 Mas há de observar também que o modo como esse trabalho é realizado pode desencadear sérios problemas de saúde, além do mais, pode gerar sentimentos de injustiça, humilhação e outros que elevam as condições para adoecimento mental relacionado ao trabalho e/ou para uma vida sem perspectivas de futuro.

2 CONDIÇÕES DE SAÚDE

É importante salientar que o conceito de saúde apresentado nesse estudo, não remete à doença, mas é entendido como totalidade da vida que abrange questões como moradia, alimentação, educação, lazer, dentre outros, como regulamentado na Lei Orgânica da Saúde n. 8.080/1990. O conceito de saúde aqui adotado vai ao encontro com a Organização Mundial de Saúde (OMS)2, que define a saúde como “[…] um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade” (OMS, 1946); e com o que está preconizado pela Constituição Federal de 1988, na qual em seu art. 196 define, “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (BRASIL, 1988). Nesse sentido, é importante trazer aspectos do trabalho na agricultura para podermos compreender a dinâmica do trabalho rural e como ela interfere nas condições de saúde do/a(s) trabalhador/a(s) inseridos nesse setor. No caso, o trabalho é executado sob as intempéries. Sabe-se que a rotina do trabalho no campo é árdua e cansativa, outro fator determinante para a saúde do/a(s) trabalhador/a(s) rurais é às diferentes climatizações da natureza, como sol, chuva, frio, calor, entre outros. Assim, as condições climáticas influenciam, também, nas condições de saúde desses sujeitos, bem como a insegurança de ter trabalho apenas por um curto período do ano. É necessário mencionar também que existem animais que habitam as lavouras ou em suas proximidades, como cobras, mosquitos e maribondos, daí que o/a(s) trabalhador/a(s) ficam expostos as suas picadas, além de já ser um trabalho muito pesado, como informado:

2 A OMS é uma agência especializada em saúde, fundada em sete de abril de 1948 e subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU). Sua sede é em Genebra, na Suíça.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 331 É pesado, né. É pesado porque, como diz, você enfrenta serviço de tudo quanto é jeito. Como diz, você carrega muito peso, você enfrenta a cobra, o marimbondo, a formiga, tudo você corre risco na roça, mas é como diz, o roceiro é abençoado, né. (ANTÔNIO). O trabalho na agricultura é marcado pela carga física, o que inclui o fato de ser um serviço realizado na lavoura, sempre exposto às intemperes e demais aspectos ambientais, como tipo de terra, declive e a presença de animais nesses ambientes, além de exigir do/a(s) trabalhador/a(s) o uso da força, o deambular constante, o agachar, o levantar peso, carregar peso, tudo isso, marcado por poeira, sol quente, daí que essas contribuem para a degradação da saúde, como evidenciado: Muito, porque a gente carrega peso o dia inteiro. (ANA PAULA).

Considero, é pesado, você tem que fazer muitas coisas no dia, né. Você tem que panhar, você tem que puxar o pano, você tem que limpar, carregar, então, é muito cansativo. Você trabalha oito horas por dia na roça, até dá essas oito horas, você está acabada, muito cansada. (MARIA).

O serviço é pesado, ainda mais na colheita. Na colheita você tem que puxar pano pesado, você tem que carregar café e por no carreador, tem que medir café e jogar na carreta. O café maduro é pesado, você pega de 80 litros, aí, dá o que fazer pra colocar nas costas, pra por no carreador por caminhão passar pra medir. (AZARIAS).

É um pouco pesado, às vezes, você começa a panhar café, o café tá maduro, você tem que carregar o café, medir, despejar na carreta, então, é um pouco pesado. (ROBERTO). O trabalho na colheita do café exige uma rotina que se inicia por volta das 5h e se encerra por volta das 18h. Sendo que, em muitas vezes, o percurso é feito em um veículo inseguro, inadequado para o transporte de trabalhador/a(s), com ônibus quebrado, chacoalhando o que dificulta dar uma cochilada, ou mesmo relaxar um pouco. Ao sair cedo, o/a trabalhador/a enfrenta o vento gelado na sua cara, e ao voltar enfrenta o calor da tarde, quando há sol. O/A trabalhador/a enfrenta as intempéries chuva, vento, o calor forte, frio, entre outros, uma vez que não se pode perder dia de trabalho.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 332 Em relação ao processo de trabalho, observa-se que esse exige movimentos repetitivos, pois para colher o café, o/a trabalhador/a puxa a vara do pé e derriça os frutos que caem já sobre um pano, que antes de iniciar essa coleta foi colocado no chão, embaixo dos pés de café, a serem colhidos. Observa-se que o pano, o qual é instrumento de trabalho, assim como a luva que é utilizada para a colheita de café, que é um Equipamento de Proteção Individual (EPI) são adquiridos pelo/a(s) próprio/a(s) trabalhador/ a(s). Assim, a colheita exige que a pessoa fique de pé e se movimente o dia todo arrastando o pando de café e realizando movimentos interruptos de ir e vir dos braços, por oito horas ou mais. Por isso, a trabalhadora diz que ao chegar em sua casa, no final do dia se sente “acabada”. Além de puxar a vara e derriçar os frutos do café, é necessário percorrer toda a rua ou leira como é chamada a linha de café e a cada três pés de café, mais ou menos, o/a trabalhador/a tem que arrastar o pano que está no chão abaixo dos pés, para acomodar os frutos que vão sendo colhidos. Então, o processo de trabalho exige constante esforço físico, o que expõe o/a (s) trabalhador/a(s) a inúmeros problemas, osteomusculares, como problema de coluna, rinite, inflamações da bursa, desgaste ósseo, sobretudo no joelho e coluna (LOURENÇO; SANT’ANA; CARMO, 2017). São problemas que desencadeiam inúmeras limitações, gerando inclusive aposentadoria precoce. Ao se tornar uma força de trabalho que já não consegue mais atender o ritmo de produtividade, nem sempre esse/a(s) trabalhador/a(s) conseguem aposentar, dado que em grande parte do tempo trabalham sem registro em carteira e, portanto, sem contribuírem com o INSS, assim, quando doentes, muitas vezes, não conseguem se aposentar e tampouco trabalhar, daí que acabam recorrendo à política de Assistência Social, porém nem sempre serão reconhecidos como trabalhador/a(s) rurais, são vistos como desempregados, e a categoria trabalho se perde, como demonstra Sant’Ana (2012). Entretanto, há também a perspectiva da naturalização do modo como o trabalho é feito. Assim, dos onze trabalhador/a(s) entrevistado/a(s), três indicam que já se acostumaram com o trabalho nas lavouras. Eu não acho não, já acostumei. (CÍCERO).

Eu não acho não. O mais pesado é varreção né, tem que varrer empurrar, fazer tudo, bana, só isso aí. Mas eu faço tudo. (NAIR).

Não, considero não. (HOSANA).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 333 Em relação ao uso de agrotóxicos nas lavouras, somente dois trabalhadores afirmaram que quando o utilizam recebem de seus patrões o equipamento necessário, assim, como as orientações de como utilizá-los corretamente. Porém, é necessário destacar que essa realidade serve mais a quem está registrado: Sempre quando nóis trabalha contratado tem os EPI, né, tem óculos, tem boné, tem máscara, tem perneira, butina. Tem que usar, tem o fiscal, se não usar não trabalha não. Tem vez que eles fazem palestra na fazenda com as informações. (AZARIAS). Possuir registro na carteira de trabalho como trabalhador rural, infelizmente é uma realidade que não representa a maioria do/a(s) trabalhador/a(s). Neste estudo, somente quatro contavam com registro na carteira de trabalho. Mesmo quando as fazendas são denunciadas aos órgãos públicos competentes há uma gigantesca dificuldade na fiscalização dessas fazendas, e isso auxilia no crescente aumento no número de trabalhador/a(s) sem registro, colocando um obstáculo à garantia de seus direitos trabalhistas. No mundo do trabalho rural, também, há várias denúncias Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) sobre trabalhador/a(s) fazendo uso indiscriminado de agrotóxicos sem proteção. Algumas falas do/a(s) trabalhador/a(s) sobre o uso do agrotóxico nas lavouras, O veneno que estraga, né. (NAIR).

Antes, não tinha não (refere-se ao EPI), hoje, já usa, né. Usa a máscara, o macacão, a bota. (ANTÔNIO).

Nunca trabalhei com máscaras. Nunca trabalhei direto com veneno, só com adubo, veneno não. Mas, aí, quando a pessoa passa veneno na lavoura a gente sente aquilo lá, o dia inteiro, a gente inala aquilo lá, faz mal pra gente, pro estomago, dá dor de cabeça, aquele “fedô” mesmo, com veneno direto eu nunca trabalhei não, mas com adubo sim. Mas tá lá direto com veneno, sem nenhuma máscara, nem nada. (MARIA). Nessa última fala, podemos perceber que mesmo que o/a trabalhador/a não trabalhe no manuseio dos agrotóxicos, tem contato direto com eles, uma vez que inalam o veneno. Durante a realização desse estudo, buscou-se informações junto à Vigilância Sanitária da cidade de São Tomás de Aquino-MG, sendo que a responsável pelo levantamento

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 334 de casos de intoxicação exógena por agrotóxicos em lavouras, informou que, em 2012, foram registrados cinco casos, de 2013 a 2015 houve uma redução e o número de casos manteve-se em três, mas já no ano passado, em 2016 esse número dobrou, sendo registrando seis casos por intoxicação, superando os registrado em 2012. Cabe enfatizar que a notificação de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho é sempre muito complicada, porque é necessário que o/a(s) profissionais façam o nexo entre o trabalho e o problema de saúde e isso acaba não ocorrendo como já demostrado por Lourenço (2009). A questão da intoxicação exógena é pior ainda pra ser reconhecida, tendo em vista que o/a trabalhador/a sente medo de falar que estava trabalhando com agrotóxicos e prejudicar o seu patrão, o que redundaria em represálias, como a perda de emprego. Através das declarações do/a(s) trabalhador/a(s) nota-se como o trabalho na agricultura cafeeira afeta e/ou prejudica sua saúde. Prejudica e muito, tenho problemas nos braços, problema de coluna, no joelho, pressão alta, como diz comecei a trabalhar muito nova né, já prejudica. (MARIA LUCIA).

Uai, pode prejudicar. Dá dor nas costas, igual panhar café mesmo, quando você vai panhar lavourinha nova, tem hora que você tem que panhar de joelho, tem hora que dá muita dor nas costas. Conforme o serviço dá dores, igual panhar café novo, da segunda carguinha dá você tem que trabalhar mais agachado. (AZARIAS).

Pode, por causa dos venenos do café, muita poeira. Muito sol, muita poeira, você pode pegar uma doença [...] coceira, joga muito veneno no café, essas coisas, entendeu? Tipo assim. (JUAREZ).

Afeta, principalmente carregar peso né. Afeta bastante. (MARIA).

Uai, prejudica muito né, prejudica por causa que pra trás não tinha experiência, aí trabalhava de qualquer jeito. É o caso que aconteceu comigo, uai, o problema do coração que fraqueió né. Trabalhava de qualquer jeito, quando deu por fé, o coração já tinha fraqueado, aí, tive que usar o marca- passo, faz 12 anos. (ANTÔNIO).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 335 Muito, porque movimenta o dia inteiro uai, é um baixa levanta o dia inteiro. (ANA PAULA). Embora três trabalhador/a(s) tenham respondido que não prejudicam a sua saúde, relataram que sofrem com dores musculares, tonturas, dores nas costas, nos ombros e braços, entre outros. Ficando evidente que de fato a saúde desses é afetada pelo de modo como está organizado, mesmo que ele/a(s) próprios não consigam reconhecer de tão naturalizado que está a sujeição ao trabalho. Não tem como um trabalhador que fica oito horas fazendo movimentos com os braços estendidos indo e voltando, carregando peso, agachando, levantando, enfrentando calor, chuva, entre outros, não ter um impacto para a sua saúde. O Estado sabendo disso deveria dar uma tutela, ou seja, diminuir a carga horária desse trabalhador, diminuir a intensidade, a quantidade, entretanto, não é isso que se vivencia. A fala de Nair, que atualmente está afastada devido ao um rompimento de uma veia de sua perna, problema que pode ter sido desencadeado pelo trabalho, afirma que Tô aqui com o coração apertado querendo trabalhar. O serviço tá ruim pra tudo quanto é lado. Agora, que eu tinha, deu azar, foi por água abaixo. Agora o que me resta é chorar. Parei os dias, tem hora que as pessoas conversam comigo [...] Nossa Senhora, meu Deus do céu, vontade de estar trabalhando, o meu Jesus. Parece que eu tô num sonho e nunca que eu to acordada, Nossa Senhora. (NAIR, grifo nosso). Percebe-se nesta fala a preocupação e o desespero de Nair, que impossibilitada de trabalhar devido a sua saúde, enfrenta a tristeza, o sentimento de inválida, pois deseja manter-se ativa, trabalhando. É importante lembrar que a trabalhadora não tem registro na carteira, logo, o fato de não estar trabalhando significa uma renda a menos para a subsistência de sua família, uma vez que não conta com a Previdência Social, e por estar em tratamento devido a sua perna, se torna um gasto a mais, por isso, não consegue descansar devidamente, pois a preocupação com os gastos é maior do que com sua própria saúde. Tendo em vista que essa trabalhadora tem 57 anos e trabalha em torno de oito horas por dia, desde sua infância, é possível, a partir de um olhar do Serviço Social, que é leigo em termos patológicos, afirmar que o rompimento da veia esteja relacionado com as condições de trabalho a qual está submetida.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 336 O que ocorre também, em alguns casos, quando o/a trabalhador/a é registrado e pode, com suas férias garantida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), tirar um “tempinho” para descansar e ou fazer uma viagem, ou qualquer outra atividade que não esteja relacionada ao trabalho, já nas lavouras de café, elas não conseguem em decorrência dos salários, do aperto e da situação instável mesmo de trabalho, porque trabalha, ainda que registrado por tempo determinado. O lazer a essas pessoas sempre foi negado, então não conhecem outra forma de viver. Observa-se que pelo trabalho é possível a construção da solidariedade marcada por laços de amizades construídas no dia-a-dia de trabalho, o que auxilia na vivencia da dureza da vida, quando também conseguem ter alguma alegria, como na fala de uma entrevistada que afirmou que: “a gente ri muito”. Em relação aos acidentes de trabalho, somente uma trabalhadora sofreu um acidente com a enxada, Assim, foi pequeno, mas sofri. Foi com cobra e trabalhando na enxada, o meu colega acabou de amolar a enxada pra mim, eu tava trabalhando com uma butina novinha, eu tava com duas meias e eu fui “coisar” a enxada, aí, ela passou direto, não senti nada na hora não, depois eu senti que meu dedo doeu que eu olhei tava sangrando, taio o meu dedo do pé. Aí, eu tive que descer no sitio que eu tava pra poder fazer um curativo, entendeu? Pra parar de sangrar, e voltei a trabalhar, mesmo com pé cortado, eu voltei a trabalhar. Era cedo isso, eu trabalhei até as 16hrs. E no outro dia, fui normal com o pé machucado. Eu mesmo que fiz o curativo, eu tinha uma fita “crep” na minha mochila, peguei e fiz. Peguei um pedacinho de pano pus e continuei trabalhando, coloquei a meia normal e trabalhei. (MARIA). E outras duas trabalhadoras relataram que embora não tenham sofrido nenhum acidente de trabalho, já presenciaram e/ ou tomou conhecimento, Eu já vi um cara quebrar a perna. Na época ele teve atendimento, mas demorou muito. (ANA PAULA).

Não. Ficá sabendo, a gente sabe, né. Uma vez o caminhão tombou com pau de arara, teve gente que machucou. (MARIA LUCIA).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 337 Novamente se tem a ausência de suporte para cuidados com o/a trabalhador/a acidentado e a questão das condições do transporte. Tanto nas declarações de Maria Lúcia e Ana Paula fica evidente o despreparo para auxiliar o/a(s) trabalhador/a(s) em casos de acidente no trabalho. Ressaltando que é de extrema importância que existam equipamentos para um atendimento emergencial nas fazendas e/ou um veículo disponível para transportar o/a(s) trabalhador/a(s) em casos de acidente. As fazendas produtoras de café são afastadas da cidade o que dificulta o acesso a hospitais, postos de saúde ou outro estabelecimento médico. Devido a esse fato a NR31 (2005) em seu Art. 31.5.1.3.6, determina que, “[...] todo estabelecimento rural, deverá estar equipado com material necessário à prestação de primeiros socorros, considerando-se as características da atividade desenvolvida.” (BRASIL, 2005, p. 3). Nota-se, assim, que há um infringimento da Lei.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, evidenciou-se as condições precárias de vida e trabalho do/a(s) trabalhador/a(s) rurais do setor do café. Trata-se de um trabalho sazonal e nem sempre com registro em carteira, assim, quando ocorre situações de doenças e incapacidade para o trabalho, a precarização se intensifica, uma vez que as pessoas não têm como se manter, como relatado pela trabalhadora: Agora o que me resta, é chorar (NAIR). Impossibilitada de trabalhar, devido ao um rompimento de uma veia em sua perna, Nair enfrenta a tristeza por não conseguir manter-se trabalhando. Como não possuía carteira de trabalho com registro, na época em que adoeceu, a trabalhadora tem que custear os gastos para o tratamento de sua perna, tornando-se um gasto a mais para a família. Verificou-se também que se trata de um trabalho pesado que provoca o desgaste da saúde e adoecimento do/a(s) trabalhador/a(s), além das situações de acidentes de trabalho. Os principais problemas de saúde relatados se referem a dores nos braços, nas pernas e nas costas, problemas de coluna, no joelho, pressão alta, problema do coração, entre outros. Destaca-se que a ausência de Equipamento de Proteção Individual (EPI) para o trabalho nas lavouras, inclusive para aplicação de agrotóxicos, sobretudo, quando se trata de trabalhador/a(s) informais. Além disso, a

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 338 ausência de socorristas e de socorro rápido quando ocorrem acidentes de trabalho nas lavouras, como no caso relatado pela trabalhadora: Eu já vi um cara quebrar a perna. Na época, ele teve atendimento, mas demorou muito. (NAIR). Apesar de todas as problemáticas indicadas durante as entrevistas, o trabalho na agricultura cafeeira, ainda, permite a solidariedade entre o/a(s) trabalhador/a(s) que, mesmo com o trabalho pesado e cansativo, conseguem ter momentos alegres entre companheiro/a(s) de trabalho e constroem vínculos de amizades. Por fim, registra-se também que o tema do trabalho rural ainda é pouco estudado pelo Serviço Social, sendo importante essa aproximação, inclusive para melhor compreensão da questão social.

REFERÊNCIAS

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Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 340 A EBSERH COMO EXPRESSÃO DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO: UM ESTUDO EM UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO

EBSERH AS AN EXPRESSION OF THE PRECARIOUSNESS OF WORK: A STUDY IN A UNIVERSITY HOSPITAL

Nairana Abadia do Nascimento Gomes1* RESUMO: O presente artigo tem como principal objetivo analisar as condições de trabalho dos profissionais de saúde em um Hospital Universitário (Hu) a partir da implantação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Com o avanço do ideário neoliberal verificam-se diversas transformações no âmbito das políticas sociais. Destaca-se neste contexto a Política de saúde que sofre diretamente com essas mudanças advindas do processo de reestruturação produtiva e avanço do neoliberalismo. Palavras–chave: gestão de políticas sociais. privatização da saúde. condições de trabalho. ABSTRACT: This article aims to analyze the working conditions of health professionals in a University Hospital (Hu) from the implementation of the Brazilian Company of Hospital Services (EBSERH). With the advancement of the neoliberal ideology there are several changes in the scope of social policies. In this context, the health policy that suffers directly from these changes arising from the process of productive restructuring and the advancement of neoliberalism stands out in this context. Keywords: social policy management. privatization of health work conditions.

INTRODUÇÃO

A partir da década de 1990 com o aprofundamento do ideário neoliberal o debate da parceria público-privada na gestão das políticas sociais no Brasil ganha destaque, trazendo profundas mudanças no âmbito da política pública de saúde, com o processo de privatização. O Plano Diretor da Reforma do Estado no Brasil foi formulado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Neste contexto observa-se o acompanhamento da reforma às tendências internacionais, com a adoção de medidas pelas quais o mercado passa a ser o condutor principal, destacando-se a redução do papel do Estado, o ajuste fiscal e a privatização dos serviços públicos.

* Assistente Social graduada pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Mestre em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Atuei como estagiária no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Triângulo Mineiro durante um ano e meio, em específico no setor ambulatorial e no Pronto-socorro. Estagiária no Centro de Referência de Assistência Social Morumbi no período de seis meses (2015). Foi integrante bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) e monitora da disciplina “Fundamentos teóricos-metodológicos do Serviço Social.”

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 341 Essas mudanças no campo da administração pública caracterizou- se um grande retrocesso para os trabalhadores, posto que o Estado isentou- se de sua função de gestão das políticas sociais, transferindo para o mercado e a sociedade civil, o que denotou o desmonte dos direitos alcançados pelos trabalhadores. Conforme Teixeira (2013, p. 63): O ideário neoliberal é imposto pela burguesia em termos mundiais, de acordo com as condições sócio históricas, incidindo em cada país de forma particular, a partir da crise do capital iniciada na transição da década de 1960 para 1970. Buscando saídas para essa crise o Estado adquire outra conformação, passando a implementar políticas de desregulação da economia, privatização e terceirização dos serviços públicos e focalização das políticas sociais, com destaque para a quebra do “pacto social”, realizado após a Segunda Guerra Mundial, nos países de capitalismo centrais. Neste cenário destaca-se a proposta de criação das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), Organizações Sociais (OSs) propostas pelo Plano Diretor Plano Diretor da Reforma da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE). Essas organizações integram os novos modelos privatizantes de gestão ordenados na parceira público-privado para a efetuação das políticas sociais. A Política de Saúde neste contexto encontra-se extremamente afetada, uma vez que não é assumida na concepção expressa na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), que em seu art. 196 aponta que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Com a contrarreforma do Estado brasileiro são visíveis às diversas mudanças, destacando-se as transformações no âmbito da política pública de saúde, em que não há a priorização da implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), mas sim da privatização, que vem atender os interesses do capital. Na atualidade destaca-se a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). A Ebserh caracteriza-se como a proposta mais recente dos modelos privatizantes de gestão da saúde, a qual passa a operar na administração dos Hospitais Universitários (Hus). A criação da Ebserh se justifica com o discurso de que “[...] atuará no sentido de modernizar a gestão dos hospitais universitários federais.” (MINISTÉRIO

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 342 DA EDUCAÇÃO, 2018). Contudo, a natureza da Ebserh transparece o caráter mercadológico que a permeia. Com a criação da Ebserh ocorre a mudança da contratação do Regime Jurídico Único (RJU) para a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), sendo visível o aprofundamento na precarização das condições de trabalho. Os trabalhadores contratados por essa Empresa são submetidos a concursos públicos, contudo não possuem a estabilidade, podendo ser demitidos a qualquer momento, estando assim, ameaçados pela gestão privada. A qualidade dos serviços prestados à população usuário da política pública de saúde é também afetada por essa nova gestão. As mudanças advindas com a criação da Ebserh nos traz uma grande preocupação, uma vez que esse novo modelo privatizante de gestão representa um ataque à classe trabalhadora, visando somente atender os interesses do capital. Perante essa conjuntura de desmonte da politica pública de saúde com o surgimento de mais um modelo privatizante de gestão, o presente artigo1 tem como finalidade refletir acerca da contrarreforma do Estado brasileiro e seus rebatimentos para política de saúde especialmente no que refere às condições de trabalho dos profissionais de saúde em um Hospital Universitário (Hu). Para melhor compreensão dessa realidade busca-se a seguir fazer uma retomada histórica das políticas sociais no Estado brasileiro bem como o processo de contrarreforma brasileira e seu rebatimento na política pública de saúde.

1 CONTEXTUALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS

A partir da década de 1930, surge no Brasil o Estado interventor, não obstante nesse mesmo período nos países de capitalismo central surgem os sistemas de proteção social. Diferentemente das políticas sociais dos países capitalistas avançados que de acordo com Pereira (2002, p. 125): “[...] nasceram livres da dependência econômica e do domínio colonialista, o sistema de bem-estar brasileiro sempre expressou as limitações decorrentes dessas injunções.” É durante esse processo de intervenção estatal que os direitos sociais, civis e políticos foram pouco a pouco estendidos à população brasileira.

1 O presente artigo é fruto da Dissertação de Mestrado o qual fez uma análise das condições e relações de trabalho dos profissionais de saúde do Hospital de Clínicas, e ainda da assistência à saúde da população.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 343 Em uma perspectiva assistencialista concorda-se com Carvalho (2008a) ao afirmar que os direitos sociais no Brasil foram concedidos enquanto aparato para a reprodução do capital e complexo constituinte de sociabilidade que resultam de necessidades sociais historicamente evidenciadas. Na primeira metade do século XX as políticas sociais materializadas por meio das ações do Estado, são pensadas com vistas à crescente industrialização do Estado brasileiro. Deste modo, “[...] alguns direitos sociais pelas classes trabalhadoras foi mediada pela interferência estatal, no seu papel de manutenção da ordem social capitalista e de mediação das relações entre as classes sociais.” (BRAVO, 2009, p. 89). Nos anos 1930 a 1964 a política social se caracteriza pelo seu cunho populista e desenvolvimentista. Neste período há a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, da previdência social, e também do Ministério da Saúde e da Educação. Esses foram ganhos importantes para a população, todavia, a garantia dos direitos sociais se limitava somente aos trabalhadores urbanos, que através de contribuições previdenciárias eram abonados pelos mínimos da proteção social brasileira, explicitando assim, a inexistência da regulação do trabalho no âmbito rural. Consoante com Souza Filho e Gurgel (2016, p. 159, grifo nosso): “[...] não existe um projeto de universalização e aprofundamento de direitos sociais e, portanto, a estrutura burocrática organizada para operar as políticas sociais se efetiva, também, de forma seletiva e limitada.” Deste modo o desenvolvimento das políticas sociais neste período no Brasil se ajusta no modo de inclusão limitada e seletiva das classes subalternizadas às riquezas criadas nacionalmente pela instituição da organização industrial (SOUZA FILHO; GURGEL, 2016). Esse modo de operacionalização das políticas sociais permanece até a década de 1964, quando é instaurada no Brasil a ditadura militar. O período ditatorial (1964–1985) é marcado pela limitação dos direitos políticos civis, concentração econômica e o consequente aumento da desigualdade social. Neste contexto as intervenções do Estado vêm a romper com o desenvolvimentismo/populismo dos anos anteriores, com o estabelecimento de um regime autocrático-burguês, ditatorial e com o cerceamento dos direitos civis e políticos. Nessa fase foram introduzidas “formas autoritárias de controle político, ao mesmo tempo em que proliferaram as políticas sociais como respostas estratégicas aos descontentamentos da sociedade civil.” (PEREIRA, 2002, p. 143). Consoante com Bravo (2006, p. 41):

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 344 Em face da questão social no período de 1964 a 1974, o Estado utilizou-se para sua intervenção o binômio repressão-assistência, sendo a política assistencial ampliada, burocratizada e modernizada pela máquina estatal, com finalidade de aumentar o poder de regulação sobre a sociedade, suavizar as tensões sociais e conseguir legitimidade para o regime, como também servir de mecanismo de acumulação do capital. É importante salientar que a política social no Brasil e na Europa apresentava diferenças, todavia, a década de 1970 foi assolada pela crise2 tanto naqueles países como aqui, advinda pelos mesmos motivos: crise fiscal e erosão de suas bases de legitimidade. Este cenário delineado nos anos 1970 foi assinalado por uma série de transformações societárias na estrutura capitalista dos países centrais e de capitalismo periférico, que rebateram diretamente no modo de produção e reprodução no modo de organização da vida social. As ações do Estado neste contexto são redimensionadas no que concerne às relações econômicas e políticas com a sociedade civil, destacando-se a resseção econômica e a reestruturação da produção. De acordo com os teóricos da economia política da social- democracia, assiste-se, a partir de então, a uma erosão crescente do compromisso entre capital e trabalho, da chamada "relação salarial fordista". Lutas operárias contestando a organização do trabalho, reivindicações de salários reais acima dos ganhos de produtividade, a crise fiscal do Estado, instabilidade financeira, inflação etc., tudo isso cortou o círculo virtuoso de crescimento e de desenvolvimento social, jogando a economia em uma crise estrutural, que se arrasta até os dias de hoje. (TEIXEIRA, 1996, p. 220). A crise da década de 1970 é enfrentada por meio de um processo de reestruturação, através do desenvolvimento de novas tecnologias no processo de produção, os quais possibilizam novas formas de gestão da força de trabalho, flexibilização, com o propósito de responder as necessidades impostas pelo mercado e, assim, “[...] criar condições para que a oferta de bens e serviços possa acompanhar as mudanças societárias.” (BASÍLIO, 2016, p. 90). No Brasil, em oposição aos países de capitalismo central 2 A crise nos anos 1970 já se manifesta no final dos anos 1960, a partir da desaceleração do crescimento econômico (crise de superprodução), do déficit comercial americano e da intensificação, no mercado financeiro, das apostas contra o dólar, devido à impossibilidade de o governo americano sustentar simultaneamente o valor da moeda e a competitividade das exportações norte-americanas.” (SOUZA FILHO, 2013, p. 143).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 345 em que a proteção social impulsionava a estabilidade dos empregos, com o propósito de obtenção de lucro no período fordista, encontrava, [...] menos resistência aos retrocessos civilizatórios implicados na ausência de proteção ao trabalho. Há certa “naturalização” de relações de trabalho precárias e, há algumas gerações, a referência de um emprego com proteção social já não existe para várias famílias de trabalhadores brasileiros. Algo inteiramente diferente do que ocorre quando as tendências de desregulamentação tentam avançar em países capitalistas desenvolvidos haja vista os inúmeros protestos noticiados em países como a Itália, Inglaterra, Espanha e Grécia, onde a população tem se insurgido contra medidas que implicam cortes públicos no padrão de proteção social vigente. (SANTOS, 2012, p. 438). Esse contexto é caracterizado pela precariedade e flexibilidade que se exprime pela: [...] inexpressividade e, em vários casos, ausência de regulação do trabalho; alta rotatividade nos postos de trabalho; subemprego; informalidade... Isso tudo está presente no Brasil ao longo da formação de seu mercado de trabalho (desde o final da escravidão), acentuando-se com a regulação do trabalho estabelecida por Vargas a partir dos anos 1930 e, especialmente, no momento da ditadura militar. (SANTOS, 2012, p. 434). Este cenário delineado nos anos 1970 assinalado pela crise econômica propiciou a insatisfação popular devido às diversas questões (econômicas políticas e sociais). É neste panorama que ocorre a efervescência dos movimentos sociais que se opunham à autocracia burguesa, elementos estes que buscavam a redemocratização brasileira, cujo objetivo era o reestabelecimento dos direitos políticos, sociais e civis. A busca da redemocratização brasileira ocorreu através de muita luta e da organização dos setores populares da sociedade. É imprescindível acentuar que “[...] diferentemente do que ocorria nos países centrais, no Brasil, os anos da década de 1980 são de revigoramento das forças democráticas da sociedade civil e da ampliação das lutas sociais.” (SOUZA FILHO; GURGEL, 2016, p. 167). O indubitável fortalecimento das organizações progressistas da sociedade civil, o surgimento do sindicalismo combativo destrelado do Estado, à criação de um partido orgânico

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 346 de base popular, o Partido dos Trabalhadores, apesar de não terem sido suficientes para provocar uma ruptura no sistema político, formaram um conjunto de elementos de contraponto não só ao regime autocrático, como também à prática política tradicional brasileira fundada em fortes traços patrimonialistas. (SOUZA FILHO; GURGEL, 2016, p. 167). A organização da sociedade, neste cenário de reabertura politica, num agrupamento de associações progressistas das inúmeras esferas populares, conforme menciona Mota (2006, p. 42): “[...] ensaia a institucionalização e constitucionalização dos primeiros passos em prol do exercício da cidadania, de formas de democracia, da constitucionalização de novos direitos sociais, trabalhistas e político.” Essa intensa mobilização popular culminou na elaboração da Constituição Federal de 1988, por meio das emendas populares. A Constituição de 1988, denominada também “Constituição Cidadã” trouxe uma série de avanços no âmbito dos direitos sociais, civis e políticos. No concernente aos direitos sociais, neste período busca-se a criação de um Estado de Bem-Estar social, com vistas à universalização dos direitos. “O processo constituinte e a promulgação da Constituição Federal de 1988 representou [...], a promessa de afirmação e extensão dos direitos sociais no país frente à grave crise e à extensão de enfrentamento dos enormes índices de desigualdade social.” (BRAVO, 2006, p. 96). Na esfera da saúde a Constituinte, pautou-se nos princípios defendidos pela pelo Movimento da Reforma Sanitária3, afirmando os princípios da universalidade, equidade, entre outros. Estes princípios visavam “[...] o fortalecimento do setor público e a universalização do atendimento; a redução do papel do setor privado na prestação dos serviços à saúde; a descentralização política e administração do processo da política de saúde [...].” (BRAVO, 2006, p. 99). Neste contexto a saúde foi assegurada como direito de todos e dever do Estado, a assistência 3 O Movimento da Reforma Sanitária surgiu em meados dos anos 1970, paralelo a um conjunto de amplas manifestações societárias em decorrência das insatisfações sociais, políticas e econômicas engendradas na autocracia burguesa. Este movimento levantou bandeiras para um novo sistema de saúde, descentralizado, público estatal, hierarquizado, com a presença da participação da sociedade civil, integralidade da assistência e o principal o acesso universal à saúde. Este foi um movimento de luta e resistência e articulações dos movimentos sociais e trabalhadores da saúde, sendo um marco histórico, com vistas à consolidação dos espaços institucionalizados e efetivação do Sistema Único de Saúde (SUS). Nesta contextura, a saúde não é vista apenas como sinônimo de doença, mas sim em uma perspectiva ampliada, envolvendo melhores condições de vida (moradia, educação, participação social, universalização, trabalho, lazer, integralidade, descentralização), sendo estas financiadas pelo Estado. (GOMES, 2016).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 347 social como política pública para quem dela necessitar e direito social e a previdência social passou a ser uma forma de seguro ao trabalhador contribuinte, sendo a seguridade social brasileira composta por esse tripé. A CF/1988 institui na década de 1980 uma normatização legal- institucional que desenha os elementos para a elaboração de um Estado de Bem-Estar social de caráter universalista, com vistas à assegurar direitos, baseados em princípios democráticos e ordenados em uma estrutura administrativa burocrática, instituída nos fundamentos do mérito e da impessoalidade. Esse foi um período extremamente importante para o Brasil, com avanço em várias questões. Contudo, a década de 1990 é caracterizada pelo avanço do neoliberalismo. Conforme alude Bravo (2006, p. 99) nesta década: “[...] assiste-se ao redirecionamento do papel do Estado, influenciado pela Política de Ajuste Neoliberal.” Essa conjuntura é assinalada por diversas mudanças no aparelho do Estado, tais transformações rebatem diretamente no cenário politico, econômico e social do país.

2 AVANÇO DO NEOLIBERALISMO E CONTRARREFORMA DO ESTADO BRASILEIRO

É em especial na década de 1990 que se observa o avanço no neoliberalismo no Estado brasileiro com a prevalência de políticas macroeconômicas e com a elaboração do Plano Diretor da Reforma4 do Estado no Brasil. Bresser-Pereira foi o formulador do Plano, em sua concepção para a resolução da crise que se acirrou na América latina, que foi retratada precedentemente era necessário diversas medidas, como a privatização, disciplina fiscal, liberalização comercial. Bresser visava com este modelo a reconstrução de um Estado responsável pela área social e com foco no mercado, sendo este (mercado) segundo Bresser responsável pela contratação de serviços e também pela área social. A crise fiscal de acordo com Bresser é caracterizada a partir de componentes existentes nos anos 1980: “[...] déficit público; poupanças públicas negativas ou muito baixas; dívida interna e externa excessiva; falta de crédito do Estado; expresso na ausência de confiança na moeda nacional e no curto prazo de maturidade da dívida doméstica; e pouca credibilidade do governo.” (BEHRING, 2008, p. 174-175). Assim o PDRAE traz os seus objetivos globais:

4 O Plano Diretor da Reforma do Estado foi formulado por Bresser-Pereira e encaminhado ao Congresso Nacional em agosto de 1995, através da Proposta da Emenda Constitucional n°. 173.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 348 • Aumentar a governança do Estado, ou seja, sua capacidade de governar com efetividade e eficiência [...] • Limitar à ação do Estado àquelas funções que lhe são próprias, reservando, em princípio, os serviços não exclusivos para a propriedade pública não estatal, e a produção de bens e serviços para o mercado para a iniciativa privada. • Transferir da União para os estados e municípios as ações de caráter local [...] Transferir parcialmente para os estados as ações de caráter regional [...]. (BRESSER- PEREIRA, 1995, p. 45). Há assim, a redefinição do papel do Estado, onde este continua realocando recursos com o propósito da asseguração da segurança externa e da ordem interna, com objetivos econômicos voltados para o desenvolvimento e estabilização do país. É imprescindível destacar que a reforma do Estado brasileiro se deu em um cenário onde havia um processo de crise do capital e ascendência do sistema neoliberal, representando assim um ataque aos direitos sociais promulgados na Constituição Federal de 1988. Para Oliveira (2011, p. 142): [A Reforma do Estado] construiu-se [de] uma ideia sustentada em orientações econômicas, com funções do Estado sendo transferidas para o mercado, principalmente as mais rentáveis, e redução dos direitos sociais com a reforma previdenciária, pois ao se incentivar os planos de previdência complementar (privados) transformam-se direitos em mercadorias. O não fortalecimento da seguridade social, a privatização dos bens públicos e a redução do papel do Estado, a redução da previdência pública e supervalorização da previdência complementar e o superdimensionamento do mercado financeiro e depreciação do setor público caracterizou este período. Diante destes aspectos, pode-se afirmar que este não foi um momento de Reforma do Estado brasileiro, mas sim de uma contrarreforma, que segundo Granemann (2004, p. 30 apud OLIVEIRA, 2011, p. 144): “[...] a contra-reforma pode ser entendida como um conjunto de ‘alterações regressivas nos direitos do mundo do trabalho. As contrarreformas, em geral, alteram os marcos legais – rebaixados – já alcançados em determinado momento pela luta de classe em um dado país’.” O avanço do neoliberalismo instituiu inúmeras mudanças no país, tais transformações impactaram diretamente na configuração das políticas

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 349 sociais, que adquiriram um caráter minimalista, focalizado e residual. Houve um avanço referente às reformas da previdência do setor público, na transição dos serviços públicos para as OSs, elaboração das fundações estatais, e da transferência da gestão dos Hospitais Universitários (HUs) para a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). A transferência dos serviços públicos para essas organizações interferiram diretamente na Política de Saúde. Nesta conjuntura, a saúde não apresenta a perspectiva expressa na CF/1988, onde a saúde possui caráter universal, integral e equânime, sendo um direito fundamental e pautada nos princípios defendidos pelo Movimento da Reforma Sanitária. A criação das OSs5, OSCIPs6 e instituições do terceiro setor evidenciam a transferência da responsabilização do Estado para empresas privadas, evidenciando-se assim, a ausência do Estado na assistência e gestão da saúde da população. É fundamental sublinhar que essas Organizações terceirizam e mercantilizam a Política de Saúde, enfraquecem o movimento sanitário e ainda trazem consequências diretas nas condições e relações de trabalho dos trabalhadores inseridos neste ambiente. Rezende (2008 apud SANT’HELENA et al., 2013, p. 6) retratam acerca dessas questões: [...] a\s ações serão focalizadas, não haverá participação da comunidade nem controle social, a descentralização das ações será para a iniciativa privada. Segundo o autor é estabelecido que as OSCIPS devam publicar regulamento próprio contendo os procedimentos que adotará para a contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder Público, observando-se os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e da eficiência. O capital privado na saúde encontra-se hoje diversificado em diferentes frentes de atuação, através dos planos de saúde, das cooperativas que mantém convênios com o SUS. A partir disso pode-se avaliar que as OS e as OSCIPS trabalham na vertente do capital, na busca de metas, contenção de gastos,

5 “Disposta na Lei n° 9.637 de 15 de maio de 1988 as Os contratam empresa para gerir um serviço público de saúde. Estas apresentam em sua constituição aspectos opostos ao SUS, entre eles destacam-se: gestão dos recursos humanos normativos e centralizadora; extinção de servidores públicos onde a gerência é realizada pelas Os; a saúde não é assumida na perspectiva do mercado, deixando de ser um direito público; não há valorização do controle social, quebrando os princípios do SUS.” (GOMES, 2016, p. 64-65). 6 “As OSCIPs se diferenciam das OSs no que tange a prestação de serviços. Estas se referem à gestão de entidades que desempenham serviços públicos, que o Estado decide apoiar; enquanto as OSs destinam-se à gerência dos serviços que são realizados pelo Estado.” (GOMES, 2016, p. 65).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 350 desvinculando o poder público de sua responsabilidade passando para iniciativa privada, nota-se que para atingir seus objetivos, não são medidos os esforços por parte das empresas contratadas. Nesta conjuntura destaca-se também, a Lei Complementar (PLP) nº 92/2007 (PODER EXECUTIVO, 2007), que cria as Fundações Estatais de Direito Privado (FEDP), e a medida atual foi a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) através da Lei n. 12.550, de dezembro de 2011 (BRASIL, 2011). A Ebserh é caracterizada como uma empresa pública de direito privado, vinculada ao MEC e com patrimônio próprio. Essa empresa caracteriza-se como a proposta mais recente dos modelos privatizantes de gestão da saúde, a qual passa a operar na administração dos Hospitais Universitários (Hus). A criação da Ebserh se justifica com o discurso de que “[...] atuará no sentido de modernizar a gestão dos hospitais universitários federais.” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2018). Contudo, a natureza da Ebserh transparece o caráter mercadológico que a permeia. Com a criação da Ebserh ocorre a mudança da contratação do Regime Jurídico Único (RJU) para a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), sendo visível o aprofundamento na precarização das condições de trabalho. Os trabalhadores contratados por essa Empresa são submetidos a concursos públicos, contudo não possuem a estabilidade, podendo ser demitidos a qualquer momento, estando assim, ameaçados pela gestão privada. Rebate também na assistência à saúde da população usuária da política pública de saúde, no que se refere à qualidade dos serviços prestados. As mudanças advindas com a criação da Ebserh nos traz uma grande preocupação, uma vez que esse novo modelo privatizante de gestão representa um ataque à classe trabalhadora e a sociedade, visando somente atender os interesses do capital. O próximo tópico aborda as consequências desse modelo privatizante de gestão no que se refere as condições de trabalho dos profissionais de saúde inseridos em um Hu onde foi implantado essa Empresa.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 351 3 OS REBATIMENTOS DA CONTRARREFORMA DO ESTADO BRASILEIRO PARA A POLÍTICA DE SAÚDE: UM ESTUDO EM UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO

A partir da pesquisa realizada em um Hu onde foi implantada a Ebserh, é possível identificar as inúmeras transformações neste cenário, em especial no que tange às condições de trabalho dos profissionais de saúde inseridos neste contexto. No que tange às condições de trabalho do Hu investigado é perceptível que estas se encontram fragilizadas e precárias. Infere-se que as condições objetivas de trabalho compreendem a força de trabalho; a estrutura física; remuneração e carga horária. Evidencia-se nesta nova gestão a questão da estrutura física que se encontra precária, destacando- se a ausência de uma estrutura física adequada em diversos setores (como ausência de salas para a realização de atendimentos, portas estragadas, salas pequenas, dentre outras). Os relatos de alguns participantes demonstram essa precariedade. Em relação à estrutura física temos dificuldades, pois as portas dos consultórios não permitem a entrada de macas quando necessário. (SUJEITO B)

As condições de trabalho são dificultadas pela estrutura física que nem sempre funciona. (SUJEITO E).

A sala de atendimento é um pouco pequena para atendimento. (SUJEITO F). Outra questão que merece destaque é a questão da remuneração, que se diferencia em relação aos vínculos. Trabalhadores que realizam as mesmas atividades possuem vínculos de trabalho e remunerações diferentes, criando-se assim uma hierarquização e fragmentação da classe trabalhadora. [...] ocorre diferenças no que se refere à remuneração entre pessoas que ocupam o mesmo cargo e realizam as mesmas tarefas. (SUJEITO B). É importante salientar que os profissionais contratados por CLT não possuem a garantia da estabilidade e há neste vínculo a gestão por metas, o que propicia uma grande insegurança no trabalho.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 352 Realça-se também a questão capacitação profissional que está atrelada ao vínculo de trabalho. Assim a capacitação para os celetistas depende dos acordos realizados pela Ebserh, enquanto os servidores do Regime Jurídico Único (RJU) têm direito à licença e a capacitação profissional. Os profissionais celetistas não tem um plano de cargos e salários, sem perspectivas de mudanças de nível, nem por tempo de serviço e nem por titulação. (SUJEITO F). Outra questão visualizada refere-se aos recursos humanos. Através da pesquisa realizada é notável que o discurso realizado pela Ebserh e pelo Governo Federal sobre a recomposição de trabalhadores não foi realizada, não houve mudanças com a entrada da Ebserh em relação à reposição do quadro de trabalhadores. O relato de participantes da pesquisa elucida tal fato: A reposição dos profissionais, dos trabalhadores, por exemplo, aqui no hospital de clínicas ele não aconteceu de fato. Tanto que o concurso venceu e todas as pessoas que passaram não foram chamadas, na verdade eles colocam no concurso duas pra contratação imediata e vinte para cadastro de reserva, então eles não tem a obrigação de chamar esse cargo de reserva, então muita gente que passou não foi chamada. E aí tem um desfalque muito grande, porque muita gente aposentou, não tem concurso publico mais de RJU. (SUJEITO A).

O número de profissionais está em falta, digo, poderíamos ter mais profissionais para atendermos, para atender pacientes encaminhados de outras clínicas ou mesmo de fora [...]. Não houve reposição de profissionais. (SUJEITO F). Diante a realidade exposta pelos sujeitos da pesquisa é visível à intensa precarização das condições de trabalho, sendo a Ebserh um ataque aos direitos da classe trabalhadora. Classe essa, que se encontra cada vez mais fragmentada, diversificada, precarizada. É visível a inconstitucionalidade desse novo modelo privatizante de gestão, que se opõe aos princípios preconizados na Constituição Federal de 1988 em que aponta em seu artigo 196: “A saúde como direito de todos e dever do Estado garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 353 recuperação.”. Constituindo-se assim como um processo de desmonte da política pública de saúde e um ataque aos direitos da classe trabalhadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O avanço do neoliberalismo trouxe infindas mutações no país, a destacar a política de saúde que sofreu com a mercantilização e privatização, não sendo assumida conforme preconizada na CF 1988 que aponta a saúde como direitos de todos e dever do Estado. A saúde nesse entrecho se reduz como mera mercadoria, num cenário de protagonismo das OSs, dos planos privados de saúde e terceiro setor e desresponsabilização do Estado. Destaca-se também o trabalho em saúde que se encontra profundamente afetado. De acordo com Schraiber et al. (apud RIBEIRO; PIRES; BLANK, 2004, p. 440): “[...] há a tendência de se adotar políticas que passem tanto a desproteger o trabalho e o trabalhador, [...] a regular diretamente o produto direto dos cuidados, interferindo imediatamente em seus processos de trabalho.” Evidencia- se a flexibilização, as terceirizações, os novos modelos privatizantes de gestão e a fragmentação da classe trabalhadora devido a existência de diferentes vínculos de trabalho e formas de contratação. Nesta contextura está imersa a Ebserh, que apresenta um discurso inovador de gestão, todavia, esta não vem inovar, mas sim atender os interesse da burguesia e precarizar ainda mais as condições de trabalho da classe trabalhadora. No âmbito da saúde essa precarização se manifesta nas condições de trabalho, expressada pela infraestrutura inadequada, na não recomposição do quadro de trabalhadores. O cenário atual do Brasil é caracterizado pelo desmonte dos direitos sociais, intensas transformações no mundo do trabalho, privatização das políticas sociais. A reforma da previdência social, a PEC dos gastos públicos, a Emenda Constitucional N° 95 de 2016 confirma a desresponsabilização do Estado no financiamento dos estados e municípios e no gerenciamento das políticas sociais. Concorda-se com Castelhano (2016, p. 177) ao afirmar que essas reformas vêm: “[...] estrangular ainda mais a classe trabalhadora, que além de conviver com um cenário de desemprego massivo, tem ainda que ‘pagar o pato’ por um modelo de sociabilidade que não a beneficia, mas a explora e oprime.” Diante esses tempos de barbárie avassaladora, é preciso lutar e resistir, criar estratégias diante essa ofensiva neoliberal, na busca da construção de novas perspectivas, novos horizontes em prol da sociedade.

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 354 REFERÊNCIAS

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Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 357

POLÍTICAS SOCIAIS E DESAFIOS DO TRABALHO PROFISSIONAL: ANÁLISE DE UM MUNICÍPIO DE PEQUENO PORTE

SOCIAL POLICIES AND CHALLENGES OF PROFESSIONAL WORK: ANALYSIS OF A SMALL MUNICIPALITY

Ingrid de Sousa Vieira1* RESUMO: O presente artigo discute a questão social e as políticas sociais a partir do relato de assistentes sociais que trabalham nas políticas públicas de um município de pequeno porte. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 06 profissionais de município de pequeno porte no ano de 2017 no Triângulo Mineiro no Estado de Minas Gerais. Com os resultados se visualiza os desafios para a efetivação do trabalho profissional no âmbito das políticas públicas. Palavras-chave: política social. trabalho profissional. município de pequeno porte. ABSTRACT: This article discusses the social question and the social policies from the report of social workers who work in the public policies of a small municipality. Semi-structured interviews were conducted with 06 professionals from a small municipality in the year 2017 in the Triângulo Mineiro in the State of Minas Gerais. The results show the challenges for the effectiveness of professional work within the scope of public policies. Keywords: social policy. professional work. small municipality.

INTRODUÇÃO

Este artigo é parte de reflexões teórico práticas realizadas a partir da experiência de estágio supervisionado em Serviço Social no âmbito das políticas de assistência social e saúde em um município de pequeno porte no Triângulo Mineiro/MG, bem como da pesquisa de campo realizada para a elaboração e apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)12 em Serviço Social, realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com todas/os profissionais que trabalham atualmente nas políticas públicas de um município, de pequeno porte totalizando seis assistentes sociais. Destaca-se que a mesma foi desenvolvida mediante a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP). A pesquisa objetivou analisar a apropriação do materialismo histórico dialético pelas/os assistentes sociais que atuam no âmbito das políticas públicas de um município de pequeno porte, com base na direção crítica do Projeto Ético-Político Profissional que direciona para uma

* Assistente Social pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (2014-2017). Interessada em pesquisa na área de trabalho e formação profissional. 1 “A apropriação, ou não, do materialismo histórico dialético pelas assistentes sociais das políticas públicas de um município de pequeno porte.” (2017).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 359 atuação profissional com perspectiva de construção de uma nova ordem societária. Para tanto analisou-se o perfil dos profissionais que atuam no município conhecendo também os espaços sócio-ocupacionais dos mesmos e apreendendo o cotidiano de trabalho das/dos profissionais. Foi necessário ainda analisar a compreensão dos sujeitos entrevistados com relação à questão social, a profissão, a conjuntura e desafios do trabalho profissional com base no Projeto Ético-Político da profissão. Assim, a reflexão que segue na sequência parte da síntese da revisão bibliográfica realizada da categoria questão social, políticas públicas, como também resultados da pesquisa no que diz respeito às políticas de assistência social e saúde de um município de pequeno porte, bem como na apreensão dos sujeitos entrevistados acerca das mesmas e das condições de trabalho a que são submetidas. Com esta pesquisa identificou-se que os desafios que perpassam o trabalho profissional no âmbito da política pública ficam em torno da precarização das políticas sociais em contexto de retrocesso dos direitos conquistados. A dependência dos municípios de pequeno porte dos repasses do governo federal e estadual intensificam ainda mais esta precarização. Ficou evidente também o quanto a política pública de assistência social, ainda está relacionada a serviços que antecedem a política de assistência social como direito, sendo solicitado aos profissionais desenvolverem ações que ficam voltados para a entrega de cestas básicas, entre outras ações pontuais. As/os Assistentes Sociais como trabalhadores assalariados ainda são atingidos com os reduzidos salários, a não efetivação das 30 horas semanais, assim como com as relações hierarquizadas, de mandonismo e autoritarismo.

DESENVOLVIMENTO

1 QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL

Na atualidade o modo capitalista de produção é hegemônico e globalizado, sendo que o trabalho nesta sociabilidade adquire uma configuração de trabalho forçado, alienado, pois é fundado na exploração do homem pelo homem, na apropriação privada dos meios de produção e da riqueza socialmente produzida. Os detentores dos meios de produção constituem a classe burguesa e exploram os que possuem

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 360 apenas a venda da força de trabalho, como única forma de sobrevivência neste modo de produção. O desemprego e a produção e reprodução do “pauperismo” são necessários para o desenvolvimento deste modo de produção, como destaca Marx (2011, p. 735) ao se referir a população trabalhadora excedente, que é aquela disponível a ser explorada para a garantia da produção e reprodução do capital: Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se fosse criado e mantido por ele. Ela proporciona o material humano a serviço das necessidades variáveis de expansão do capital e sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro incremento da população. Para além do desemprego o proletariado é atingido também pelo aumento do empobrecimento decorrente da exploração do trabalho, com condições precárias de moradia, alimentação, com reduzidos salários e trabalho intensificado. É importante ressaltar que a pobreza sempre existiu, estando presente também nos outros modos de produção, sendo resultado da exploração do homem pelo homem. Como Paulo Netto (2001) explicita o diferencial da pobreza engendrada no modo de produção capitalista está no fato de que esta “[...] cresce na razão direta em que se aumenta a capacidade social de produzir riquezas”, enquanto nos outros modos de produção a pobreza estava ligada a escassez e a falta de conhecimentos científicos e materiais. Este empobrecimento avulta-se no século XIX juntamente com a consolidação e desenvolvimento do sistema capitalista advindo do processo de Revolução Industrial, êxodo rural e concentração da população em grandes centros urbanos. A população até este momento se concentrava no campo, de forma que através do trabalho na terra supria suas necessidades e não necessitava vender sua força de trabalho. É através dos “cercamentos” das terras que é incentivado e pressionado o êxodo rural, que significou o aumento de mão de obra necessário para o desenvolvimento do modo de produção capitalista, e o surgimento do “trabalhador livre” (IAMAMOTO, 2008), quando os trabalhadores são obrigados a vender sua força de trabalho para as indústrias que surgiam, para a satisfação de suas necessidades (SANTOS, 2012). É atrelado ao surgimento e intensificação da “questão social” que emerge a organização da classe trabalhadora. As formas de manifestação

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 361 contra as condições de trabalho e vida na sociedade capitalista ocorrem antes de 1830 e do afloramento da “questão social”, porém tais reinvindicações ocorriam sem a consciência de classe, de forma que os trabalhadores/as não lutavam contra os sujeitos e instrumentos de exploração e opressão, a classe burguesa e o modo capitalista de produção, tendo apenas manifestações pontuais, sendo possível evidenciar até mesmo tensões entre os próprios trabalhadores/as. Mas, é na terceira década do século XIX que esta resistência vai se expressar na evolução da “consciência em si” para a “consciência para si”, que significa que neste momento os trabalhadores/as se reconheciam enquanto classe e se organizavam politicamente para o enfrentamento das condições de vida e trabalho a que eram acometidos (SANTOS, 2012). Assim, as lutas de classe se desenvolveram para um estabelecimento nas reivindicações contra o capital em todo seu processo de produção e reprodução, através das organizações sindicais, greves e manifestações. A organização da classe trabalhadora, através dos sindicatos incorporou, com uma dimensão classista, reinvindicações políticas como a jornada de trabalho de 10hrs, possibilidade da eleição de trabalhadores, entre outros. Os protestos dos trabalhadores tem uma ampliação das reinvindicações políticas para as econômicas, “[...] delineando um horizonte de superação da sociedade burguesa.” (SANTOS, 2012, p. 39). Neste período o Estado, que se estabelece para atender aos interesses da classe burguesa, além de não responder ás manifestações da “questão social” ainda intervinha aos protestos da classe trabalhadora de forma repressiva e autoritária para manter a ordem necessária para a acumulação capitalista. A expansão das políticas sociais tem seu marco no período de capitalismo monopolista momento em que se expressa o ápice das contradições deste modo de produção obrigando o Estado a intervir de forma contínua através de políticas públicas para que o capital tenha as condições necessárias para a acumulação. No Brasil o período ditatorial foi um momento de intensa repressão, retrocessos e intensificação das manifestações da “questão social” devido ao modo de desenvolvimento promovido pelo regime militar com medidas como a contenção dos salários, aumento do custo de vida, aliado a uma industrialização pesada que estava de acordo com o desenvolvimento internacional em que já predominava o capitalismo monopolista (SANTOS, 2012).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 362 Porém, neste período de ditadura militar foi vivenciado uma relação entre repressão-assistência, em que é possível evidenciar um avanço para as políticas públicas e direitos dos cidadãos no sentido da desarticulação e desmobilização da população contra o regime militar, fator que vem aliado de muita repressão e perca dos direitos civis e políticos, além da forte repressão a todas as formas de organização e luta social (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Desta forma, é possível analisar que até este momento no Brasil não se tinha uma concepção sobre os direitos sociais, sendo estes, em sua maioria, voltados ou para os trabalhadores formais ou para o campo da caridade e filantropia. A política de saúde, por exemplo, foi por muito tempo delegada a filantropia e a inciativa privada, com ações focalizadas e centradas nos determinantes biológicos, modelo biomédico. Sendo assim, a Saúde era atrelada a prática liberal, ou seja, quem tinha condições financeiras de custeá-la, pois o Estado apenas garantia campanhas sanitárias e de vacinação. No âmbito da assistência social tivemos em 1942 a criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA), conduzida inclusive pela primeira Dama Darcy Vargas com o objetivo de prestar assistência social às famílias de soldados enviados a Segunda Guerra, porém com ações focalizadas, restritas e com caráter caritativo e assistencialista. A previdência social teve suas primeiras manifestações com a implantação de instituições de seguro social, ou seja, de cunho contributivo por alguns segmentos de trabalhadores. A Lei Eloy Chaves (BRASIL, 1923), foi a primeira norma a instituir no país a previdência social, com a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs) para os ferroviários. Em 1930 o sistema previdenciário deixou de ser estruturado por empresa, passando a ser por categorias profissionais de âmbito nacional. Com a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP’s) as aposentadorias começaram a serem organizadas por categoria profissional. O processo de redemocratização brasileira começa a inferir nesse quadro, já que durante a organização das “Diretas Já”, diversos sindicatos, associações de bairros e movimentos sociais se organizaram para lutar por suas causas e bandeiras. O Movimento de Reforma Sanitária é um deles que ressignifica o conceito de saúde pública no Brasil. A Reforma Sanitária traz para o centro do debate a população, os trabalhadores da saúde e especialistas, formando um processo democrático e de grande evolução na garantia da saúde pública do Brasil.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 363 Portanto, no Brasil a incorporação de direitos sociais como a saúde, moradia, educação, assistência social, trabalho, transporte, previdência social entre outros só atingem a dimensão de direito social a partir da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2016), que é promulgada em um contexto pós ditadura militar de forte pressão popular que reivindicou, através de organizações e mobilizações a garantia de direitos. Desta forma, na Constituição Federal de 1988 foram garantidos direitos sociais que até então não eram preconizados, conforme consta no artigo 6º: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988). No entanto, na Constituição Federal de 1988 a seguridade social fica restrita a apenas três pilares: Saúde, Assistência Social e Previdência Social. Contudo, a categoria profissional por meio da afirmação dos princípios do Projeto Ético-Político do Serviço Social se posiciona a favor de uma perspectiva de seguridade social mais alargada, a partir da Carta de Maceió construída durante o XXIX Encontro Nacional Conselho Federal de Serviço Social (CFESS)/ Conselho Regional de Serviço Social (CRESS). Defendemos uma seguridade social que envolva todos os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, superando sua existência apenas legal, pautada apenas em três políticas sociais O que significa que a seguridade social hoje instituída precisa ser analisada criticamente como um espaço restrito que fragmenta as políticas sociais e limita em apenas três políticas, como foi analisado no CFESS Manifesta Carta de Maceió (CFESS; CRESS, 2000, p. 32) onde se tem uma perspectiva de seguridade social de articulação entre as políticas sociais com maior participação da população nos espaços de decisão e controle social, assim como pensar a seguridade social como um conjunto de políticas públicas que garantam condições de qualidade de vida que vá além dos três pilares atualmente instituídos: 4. Superar a fragmentação setorial engendrada à revelia do princípio constitucional da seguridade social, a partir de sua tematização por meio dos eixos da gestão, controle social e financiamento e de propostas no sentido da articulação das três políticas;

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 364 5. Apontar para um conceito mais amplo de seguridade social, que incorpore outras políticas sociais, constituindo um verdadeiro padrão de proteção social no Brasil; Desta forma é necessário visualizar os direitos sociais e especificamente na seguridade social instituída no Brasil um campo de lutas que envolvem interesses e forças de classes sociais antagônicas. Nesta direção é preciso reafirmar, enquanto categoria profissional a defesa de uma seguridade social ampliada, pública, de qualidade, com cobertura universal e com a participação da população nas instancias de gestão, controle social e financiamento. Mas, também é preciso estar cada vez mais junto aos interesses da classe trabalhadora, nas organizações, mobilizações e formas de resistência, via movimentos sociais, partidos políticos progressistas, organizações de classe e sindicatos, pensando a atuação da/do assistente social articulada junto às demandas da classe trabalhadora nos espaços institucionais e não institucionais.

2 AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE UM MUNICÍPIO DE PEQUENO PORTE E AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS/ AS ASSISTENTES SOCIAIS ENTREVISTADAS/OS21

Com o objetivo de identificar a configuração das políticas sociais de um município de pequeno porte do Triângulo Mineiro se tornou necessária uma breve contextualização acerca do município pesquisado e as políticas públicas instituídas atualmente neste espaço, enquanto universo da pesquisa. Segundo a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) o município pesquisado é um município de pequeno porte localizado no Triângulo Mineiro/MG, possui população estimada em 2017 pelo IBGE em 7886 mil habitantes, sendo 78,81% da população urbana. A política pública de saúde atualmente no município tem como referências o Departamento Municipal de Saúde2, o Pronto Atendimento, a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Centro de Especialidades3. Estas

2 Os Departamentos Municipais atuam como Secretarias Municipais e esta distinção teve origem na Lei Complementar nº 3, de 28 de dezembro de 1972 do Estado de Minas Gerais. Com efeito, o § 1º do artigo 79 da referida lei dispôs que: “Somente será criada Secretaria Municipal nos Municípios com população superior a cinquenta mil habitantes e cuja organização administrativa justifique a implantação do cargo.” 3 O Centro de Especialidade do município foi inaugurado no ano de 2017 contando com tais especialidades: cardiologista, pediatra, ginecologista, urologista e clínico geral.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 365 são atualmente as referências de saúde do município que desenvolve desta forma, os serviços da atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS) e tem como referência para alta e média complexidade o Hospital Universitário do município vizinho. A política de saúde do município passa em 2000, conforme a Lei n. 775/2000, pela separação dos departamentos municipais de saúde e de desenvolvimento social, que antes eram juntos, sendo não apenas uma separação concreta, mas também de conscientização do verdadeiro papel de ambos os Departamentos. Em 2006 se tem a primeira Assistente Social para o Departamento municipal de saúde. O ano de 2009 se constitui um marco para a ampliação da saúde pública no município, pois a partir de uma capacitação a nível estadual para os trabalhadores do SUS foi construído e instituído a “Implantação do Plano Diretor de Atenção Primária à Saúde”. Foi realizado um diagnóstico geral em todo o município com atividades relacionadas a territorialização, cadastro familiar e a classificação das famílias por grau de risco, além de levantar os dados para o planejamento das intervenções a níveis de prevenção. Este Plano Diretor acabou por não ter uma continuidade efetiva ficando mais voltada ao planejamento que não teve execução devido a interrupção da capacitação antes de sua finalização. Já com relação a política de assistência social apesar da construção da mesma enquanto direito social ser afiançada e garantida no Brasil a partir de 1988, 1993 e 2004 pela Constituição Federal, Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) e Política Nacional de Assistência Sociais (PNAS), respectivamente, no município pesquisado ela começa seu desenvolvimento para o status de direito social muito recentemente (BRASIL, 2016, 1993, 2005). Apenas em 2008 com a criação do primeiro Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), ano de criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). A partir da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) o CRAS é definido como a unidade de referência para a atenção básica, como podemos analisar: O Centro de Referência da Assistência Social – CRAS é uma unidade pública estatal de base territorial, localizado em áreas de vulnerabilidade social, que abrange um total de até 1.000 famílias/ano. Executa serviços de proteção social básica, organiza e coordena a rede de serviços socioassistenciais locais da política de assistência social. (BRASIL, 2005, p. 35).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 366 O CRAS desta forma tem uma atuação voltada para as ações de prevenção tendo como referência a família e o fortalecimento dos vínculos desta. A política de assistência social no município, conta na atualidade com dois CRAS, um já instalado há oito anos e outro que tem dois anos e meio, que é o referencial da Equipe Volante43, outros equipamentos da política são a Casa de Apoio ao Idoso e o Departamento de Desenvolvimento Social. Nos CRAS’s do município atualmente são desenvolvidos os serviços de proteção social básica, inscritos no Programa de Atenção Integral às Famílias (PAIF), como também os serviços de convivência e fortalecimento de vínculos para crianças de 0 a 6 anos e de 6 a 14 e o grupo dos adolescentes também de vínculos familiares e comunitários. A Equipe Volante atualmente desenvolve apenas o PAIF, não tendo o desenvolvimento de grupos de convivência. A partir da aproximação enquanto estagiária foi possível perceber como a política de assistência social no município ainda carrega fragilidades com relação ao entendimento da mesma enquanto direito social. Tal realidade também pode estar relacionada a inserção de primeiras damas em duas gestões seguidas para este departamento, ação que pode ter contribuído para reforçar a apreensão desta política a partir de um viés caritativo e filantrópico, tão histórico na constituição da política de assistência social e da profissão. As relações políticas de clientelismo perpassadas pelo coronelismo presentes na constituição da sociedade brasileira por meio do processo de “revolução passiva” os termos de Santos (2012), também deram margem para que o direito fosse historicamente construído como favor por meio de práticas pontuais. Exemplo disso são as relações construídas no município pesquisado em torno da histórica entrega de cestas básicas a mando do gestor e as relações de trabalho hierarquizadas ainda que diante de contratação via concurso público, como inclusive apontam as/os entrevistadas/os: Tem essa questão do gestor também chegar pra você e falar olha você vai lá na casa do fulano levar uma cesta básica pra ele. (Esmeralda).

4 A Equipe Volante integra a equipe do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e tem o objetivo de prestar serviços de assistência social a famílias que residem em locais de difícil acesso (áreas rurais, comunidades indígenas, quilombolas, calhas de rios, assentamentos, dentre outros). Essa equipe é responsável por fazer a busca ativa destas famílias, desenvolver o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e demais serviços de Proteção Social Básica, que poderão ser adaptados às condições locais específicas, desde que respeitem seus objetivos.

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 367 É isso... Impacta muito né na profissão é... Por que existe a troca de profissionais, por mais que sejamos concursados existe a questão que as vezes eles vão te mandar pra um outro seguimento, eu por exemplo atuei durante 4 anos no CRAS, aliás, tem 9 anos de formação, eu to à 5 aqui, eu fiquei 4 anos no CRAS agora eu vim pra Saúde “a convite”, entre aspas, porque a gente sabe que não foi um convite [...]. (Ametista). Estes relatos demonstram as relações de favor, mandonismo e autoritarismo que ainda perpassam os espaços de trabalho e as relações de trabalho da/o Assistente Social no âmbito das políticas públicas do município, fatores que podem contribuir para um trabalho desenvolvido de “forma insegura”, conforme relatado pelos sujeitos entrevistados. Cabe destacar que conforme apontam outros estudos, essa não é uma particularidade deste município mas do cenário brasileiro. Também essencial refletir sobre a conjuntura política nacional que desde 1990 avança na radicalização neoliberal resultando na desresponsabilização do Estado frente as manifestações da “questão social”, que são visualizadas como questões individuais, descontextualizadas do embate capital-trabalho inerente a sociedade capitalista. Neste momento o Estado intervém com ações pontuais, focalizadas e seletivas direcionadas a extrema pobreza e as/os Assistente Sociais são convocados a promover o consenso e desmobilização da classe trabalhadora. Neste processo os municípios de pequeno porte, ficam muito dependentes dos repasses das instâncias estaduais e federais, e sofrem grandes consequências pela reorientação dos gastos públicos, que representa a redução dos repasses para políticas públicas em benefício do capital financeiro. Turquesa relata a grande dificuldade para o desenvolvimento dos programas visto que há um ano o governo federal não faz os repasses para a realização destes: [...] o que eu percebi que é a questão dos recursos que é o que a gente tem pra talvez estar investindo em alguma coisa de prevenção, que é nosso papel aqui, atenção básica, eu não tenho, por exemplo eu to com o governo federal a quase um ano sem repassar as parcelas, eu tava olhando esse ano ele não passou as parcelas, então você ta trabalhando com o que você tem ali no caixa, e você não pode gastar porque senão você fica sem e gastar eles também reclamam e se não gasta eles também não mandam recurso, então assim ta uma coisa complicada. (Turquesa).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 368 Assim, cabe destacar que as/os Assistentes Sociais também são trabalhadoras/es assalariadas/os que vendem sua força de trabalho aos empregadores em troca de salário para o atendimento de suas necessidades básicas, sofrendo diretamente com a precarização das políticas públicas, resultando em reduções dos salários, condições precárias de trabalho, aumento da demanda, aumento das horas de trabalho, precarização dos contratos e instabilidade profissional. Iamamoto (2009) coloca como este contexto modifica os espaços ocupacionais das/os Assistentes Sociais atribuindo novas demandas, atribuições e habilidades no sentido da descaracterização da profissão fato que coloca as/os profissionais a serviço dos princípios das políticas sociais pontuais e focalizadas, os distanciando do horizonte crítico do Projeto Ético Político da profissão. A partir da pesquisa de Iamamoto5 (2009) foi constatado que 77,19% das/os profissionais tem apenas um vínculo empregatício, a pesquisa realizada no município neste trabalho reforça este dado, visto que, todas/os entrevistadas/os trabalham apenas neste espaço ocupacional. Com o intuito de entender a realidade do trabalho das/os Assistentes Sociais perguntou-se o vínculo de trabalho dos sujeitos entrevistados, sendo então constatado que a grande maioria (05) é concursada. Uma/um das/ os concursadas/os, está atualmente em cargo comissionado de gestão da política de assistência social e uma é contratada. Na análise de Iamamoto (2009) é constatado que em âmbito nacional 55,68% das/os Assistentes Sociais tem vínculo estatutário e 27,24% tem contratos via Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). É possível identificar uma conquista e avanço no sentido da garantia de direitos dos profissionais uma vez que o concurso público possibilita para os trabalhadores uma estabilidade, com maior autonomia profissional. Os salários das/os entrevistadas/os variam de 2.500,00 a 4.000,00 sendo possível identificar como os salários ainda são precarizados. Foi relatado por 5 das/os 6 entrevistados que este não atende suas necessidades, não havendo garantia para com o deslocamento e alimentação dos profissionais. Como podemos analisar nas falas: Eu não to como assistente social agora né. Então acredito que dentro do meu salário de gestora sim atende minhas

5 “O texto Os espaços sócio-ocupacionais do assistente social pretende caracterizar o assistente social enquanto trabalhador assalariado [...]”, analisando o perfil dos profissionais e dos espaços sócio-ocupacionais de forma quantitativa e qualitativa (IAMAMOTO, 2009, p. 342).

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 369 necessidades, mas de assistente social não. Porque igual te falei meu concurso é de 20 horas, salário base pra 20 hrs aqui é de 1440,00, então assim, mesmo que eu tava fazendo 40 hrs, mesmo com os dois terços que tava me ajudando, pra complementar minhas horas, não tava dando o valor do salário dos profissionais de 40 horas, então eu tava recebendo menos que os outros mesmo fazendo as 40 horas. Então não tava satisfazendo não, agora como gestora já aumenta né, ai esse satisfaz melhor. (Turquesa).

Não atende, não atende. (Rubi).

Olha com a, os 10% da minha pós da em torno de mais ou menos 3500,00 reais. Não atende. (Ametista).

Meu salário base está dando mais ou menos 4 mil, eu tenho dois quinquênios, dez por cento de cada um dá 20 por cento, mais dez por cento de pós graduação, então tem 30 por cento a mais no meu salário. É na medida do possível, sim. (Esmeralda).

3.177,00. Atenderia mais se eu morasse aqui. Eu tenho despesa com transporte, deslocamento, e alimentação né. Visto que quando eu assumi aqui também, comparando com a região o salário estava bem maior, então hoje em dia ta defasado também. Talvez se fosse hoje eu repensaria se viria ou não. (Ágata). Turmalina, que tem o menor salário entre as/os profissionais que trabalham 40 horas, é a/o única/o profissional a afirmar que o salário atende a todas suas necessidades. As/os Assistentes Sociais trabalham em média no município 40 horas semanais, sendo 4 das/os 6 entrevistadas/os. Apenas 2 trabalham 20 horas semanais. Infelizmente 40. (Ágata).

40 horas semanas. Ainda temos que vencer este desafio das 30 horas. (Ametista).

40 né, mesmo meu concurso sendo de 20 eu tava fazendo 40. Nós não conseguimos as 30 horas, já põe ai já porque a gente não conseguiu, aqui a gente tem lutado, tem ido atrás mas realmente temos essa dificuldade. (Turquesa).

Anais do V Seminário do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais (GEPPS): “Tempos de radicalização de neoliberalismo: os impactos para a seguridade social brasileira e formas de resistência” 370 Ficou claro nas entrevistas e nas observações realizadas durante a realização do estágio supervisionado, na política de saúde e assistência social, como as/os profissionais lutaram pela efetivação das 30 horas semanais conquistada pela categoria e pelo conjunto CFESS/CRESS, sendo pauta de grandes enfrentamentos nos espaços sócio ocupacionais, como fica evidente nas falas e que ainda não foi efetivada no município Iamamoto (2009) na análise das pesquisas constatou-se que 68% das/os Assistentes Sociais não tem participação em atividades políticas, o que também está presente nas entrevistas desta pesquisa. Nenhuma das/ dos assistentes sociais relataram participação política em movimentos partidários, movimentos sociais, sindicais ou entidades da própria categoria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises desenvolvidas nesta pesquisa reforçam o quanto as políticas sociais, sobretudo a política pública de assistência social, ainda está relacionada a serviços que antecedem a política de assistência social como direito. Este fato ainda é realidade em todos os municípios brasileiros, mas como se viu com a pesquisa ficam mais evidentes nos municípios de pequeno porte. Os serviços neste contexto ficam voltados para a entrega de cesta básica, a presença do primeiro damismo, clientelismo, as relações de trabalho hierarquizada. Para além disso as políticas públicas tem uma dependência da esfera federal e estadual para o financiamento, muitas das vezes com programas estabelecidos que não atendem a realidade e necessidade da população. Tal desafio se explicita mais nos municípios de pequeno porte devido a pequena arrecadação de impostos municipais o que impossibilita a criação de projetos e programas próprios. Com os resultados da pesquisa ainda podemos identificar o que foi analisado na primeira parte deste trabalho quando fica evidenciado a precarização do trabalho no contexto de capitalismo neoliberal. As/ os Assistentes sociais como trabalhadores assalariados são diretamente atingidos, como se viu nas entrevistas com as expressões de baixos salários, não atendendo nem mesmo as todas as necessidades das/os trabalhadoras/ es, a instabilidade e insegurança no trabalho, que é condição contínua no modo capitalista de produção e se intensifica em tempos de avanço neoliberal de aumento do desemprego e do exército industrial de reserva. As 30 horas semanais garantidas legalmente que são essenciais para

Patrícia Soraya Mustafa (Organizadora) 371 uma formação continuada, com participação em pós-graduação, cursos e especializações, ainda não são efetivadas no município, sendo mais um reflexo da precarização do trabalho neste espaço sócio ocupacional. Com tais desafios impostos ao trabalho das/os Assistentes Sociais nas políticas públicas de assistência social e saúde Iamamoto (1999) coloca que o maior destes desafios seria a capacidade de decifrar a realidade social e desenvolver em contexto de retrocessos propostas de trabalho com estratégias políticas para efetivação dos direitos sociais da população. Para isso se torna necessário clareza das dimensões teórico- metodológica, ético-política e técnico-operativa para identificar as demandas cotidianas de forma crítica e propositiva.

REFERÊNCIAS

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