Figurantes – a invisibilidade em cena

Maria Cecília Bello Moutinho Universidade Federal do Rio de Janeiro

Índice dido a partir de seu poder de atrair os holo- fotes midiáticos. A experiência cotidiana at- 1 Introdução1 esta que a posição social de uma pessoa é 2 Mídia e Espaço de Ser4 favorecida quando repercute na mídia, prin- 3 Celebridade ou anonimato na visibili- cipal palco das representações sociais da at- dade? 26 ualidade. 4 Conclusão 37 A partir desta temática, acreditou-se ser 5 Referências 38 relevante estudar a importância da visibili- dade midiática para um grupo de pessoas ex- postas à televisão, porém apenas como ele- mentos do contexto – os figurantes de nov- 1 Introdução elas. Na realidade, o tema deste trabalho foi escolhido dando continuidade a linha de pesquisa apresentada como trabalho de con- O estudo da importância da visibilidade clusão do curso de Radialismo em 2004. midiática para a formação dos indivíduos A discente apresentou um documentário vem ganhando cada vez mais relevância no intitulado “Papagaios de Pirata” no qual ap- mundo acadêmico. É sabido que pratica- resentava quatro cidadãos que diariamente mente desde o seu surgimento, os meios de se posicionavam atrás das câmeras dos “ao comunicação passaram a ter o poder de legit- vivo” dos telejornais, com o único propósito imar o status social dos indivíduos. Assim de aparecer na televisão. Este desejo de como os produtos são vendidos e têm suas “estar do outro lado do vidro” transfor- qualidades validadas pela mídia, os indiví- mava a rotina destes homens. Aparecer na duos também passaram a perceber os meios televisão significava para cada um daqueles de comunicação como um local de legiti- indivíduos estar inserido num contexto de mação de seu prestígio. visibilidade e notoriedade, mesmo sabendo Hoje, na sociedade contemporânea, pode- que estavam lá, simplesmente por acom- mos afirmar que a visibilidade midiática é panharem diariamente as equipes de TV e para alguns indivíduos tão importante quanto se posicionarem estrategicamente atrás das sua condição social ou econômica. O recon- câmeras. Embora com esta consciência, os hecimento de um indivíduo passa a ser me- quatro declaravam que se sentiam de alguma 2 Maria Cecília Bello Moutinho forma mais visíveis dentro de seus círculos exercer funções sociais antes de responsabil- sociais e com notoriedade diante dos demais idade do Estado e da sociedade como um cidadãos. Eles afirmavam viver uma espécie todo. A principal delas é legitimar o prestí- de fama. gio e o valor social não só de coisas, mas Assim como os papagaios de pirata, os fig- principalmente de pessoas através de suas urantes não são o centro das atenções nos mensagens. Também são utilizados estu- contextos em que aparecem. Embora em dos sobre a sociedade do espetáculo e en- cena, os figurantes não são expostos como tretenimento, procurando contrapor os au- donos de suas próprias individualidades, mas tores norte-americanos, Gabler e Postmann sim como elementos da encenação, viven- ao francês Guy Debord. Através de Erv- ciando uma invisibilidade quase que obri- ing Goffman, abordarei como são dadas as gatória. Eles estão, literalmente, à margem representações dos indivíduos na vida cotid- das celebridades na tela da TV e podemos iana. Por fim, procura-se fazer um retrato compará-los ao setor de arte das novelas, da importância da visibilidade midiática em como os cenários e objetos de cena. sociedade pessoalizadas como a brasileira, Desta forma, pretende-se investigar a através do texto “Você sabe com quem está dimensão e o significado da visibilidade falando?” de Roberto da Matta. Em so- midiática para eles, discutir qual a relevância ciedades como a nossa, circular por um am- desta visibilidade para a construção de suas biente altamente valorizado, repleto de cele- identidades individuais e sociais, e se veem bridades e câmeras de TV, pode garantir por esta atividade como um degrau para a fama si só a algumas pessoas um sentimento de ou estão conformados com a permanência no pertencimento e importância. A leitura de anonimato da visibilidade. Procura-se tam- Gilberto Velho irá auxiliar no que diz re- bém apresentar o papel dos figurantes nas speito à análise das trajetórias deste grupo e produções das , a realidade da seus projetos futuros, sejam ele em busca da classe, o que almejam e como estão inseri- fama ou a permanência no anonimato. dos nestes contextos. Para direcionar este trabalho ao seu objeto É importante destacar que os figurantes de estudo – os figurantes – são feitas entre- são pagos por esta atividade, e para muitos vistas temáticas individuais com os próprios, é um trabalho como outro qualquer, sendo às com a dona de uma agência de figuração e vezes sua principal fonte de renda. Ainda as- com um fiscal de figuração. Através desta sim, acredita-se que este tema possa se reve- pesquisa de campo, pretende-se avaliar como lar uma interessante pesquisa, pois se acred- estas pessoas começaram nesta atividade, ita que para grande parte destas pessoas a que contextos os influenciaram e perceber possibilidade de participar de contextos de qual a relevância para a construção de suas visibilidade garanta uma espécie de singular- identidades transitarem neste ambiente de el- ização diante de uma massa anônima. evada visibilidade atuando como parte de Uma das principais fontes teóricas deste uma coletividade anônima, onde raramente trabalho são os estudos de Merton e Lazer- conseguem se destacar como um cidadão re- feld que datam do final da década de 40 sobre conhecível no meio de um grupo. Procura- como os meios de comunicação passaram a se pessoas de diferentes idades e contextos

www.bocc.ubi.pt Figurantes – a invisibilidade em cena 3 sociais para que a temática pudesse ser bem urante num set de gravação. Com o em- explorada. basamento teórico de Goffman e Roberto da Será desenvolvida também uma pesquisa Matta discutimos como esses procedimen- documental informal, através da análise dos tos são regidos através de normas específi- capítulos da novela "Caminho das Índias". cas àquela realidade e que significados essas Esta pesquisa visou analisar em que contex- participações podem ter para este grupo. tos e espaços os figurantes geralmente apare- No último capítulo, a partir das entrevis- cem nas novelas. tas com os figurantes, apresento a realidade No primeiro capítulo apresento uma dis- deste grupo, o que almejam e como estão in- cussão teórica sobre como a mídia tornou- seridos neste espaço de ser que é a mídia. se um espaço de ser na sociedade contem- Através de Gilberto Velho, procuro identi- porânea, a partir do momento que passou a ficar como suas escolhas definiram suas tra- ser o principal palco das representações dos jetórias dentro do campo de possibilidades fatos sociais. A partir de Merton e Lazer- existentes em diferentes momentos de suas feld, apresento as principais funções sociais vidas. Procuro apresentar também como a dos meios de comunicação e como eles são mídia os influenciou e a partir da observação capazes de legitimar indivíduos através de da figuração na novela “Caminho das Ín- suas mensagens. Amplio a discussão sobre dias”, apresento os diversos contextos que se a inserção dos indivíduos numa sociedade utilizam figurantes e se esses contextos po- voltada para o espetáculo e entretenimento, a dem influenciar o julgamento que se faz so- partir de diferentes pontos de vista dos norte- bre esta função. americanos Gabler e Postmann e o francês É importante destacar que o objetivo deste Guy Débord. Ainda discorro sobre a im- trabalho é apresentar a importância da visi- portância da contrução do renome na so- bilidade para a formação desses indivíduos ciedade contemporânea e, a partir de Erving e verificar se a exposição adquirida através Goffman, como os indivíduos são capazes de da figuração garante a eles um significado representar de maneiras diferentes suas in- de importância e legitimação social. Não dividualidades na vida cotidiana. Por fim, se pretende julgar o motivo que leva algu- atualizo a discussão a cerca das novas pos- mas pessoas a buscarem a fuga do anoni- sibilidades existentes de visibilidade a par- mato e sua valorização pessoal através da tir das novas tecnologias de comunicação, mídia. Não se pretende também apresentar como as redes de relacionamento e o You lógicas conclusivas a respeito da valoriza- Tube. Com as novas tecnologias, especial- ção da fama e da importância da visibili- mente a Internet, os indivíduos não precisam dade midiática na construção das individual- mais dos meios de comunicação tradicionais idades, mas tratá-las como fenômenos con- para alcançar a visibilidade. temporâneos importantes. No segundo capítulo, através da entre- Escolheu-se como objeto de estudo os fig- vista com a dona de uma agência de figu- urantes de telenovelas, pois se deseja am- rantes, apresento como é o procedimento de pliar a discussão de como estes fenômenos chegada dos figurantes à agência, seu cadas- atingem vários setores sociais expostos à mí- tramento, seleção e como é a atuação do fig- dia, além de ídolos, fãs e celebridades – seg- www.bocc.ubi.pt 4 Maria Cecília Bello Moutinho mentos já amplamente discutidos e estuda- nos meios de comunicação de dos. massa, que detém o poder de ele- var os acontecimentos à condição de históricos. O que passa ao largo 2 Mídia e Espaço de Ser da mídia é considerado, pelo con- junto da sociedade, como sem im- portância. (GOULART: 2000; 33) Na sociedade contemporânea, a visibilidade é um fator de extrema importância na con- Assim, como qualquer acontecimento strução da identidade individual. Com a pro- para tornar-se um fato social relevante pre- fusão das tecnologias e o aumento significa- cisa passar pelos meios de comunicação, o tivo do acesso dos cidadãos aos meios de co- cidadão comum só passa a ganhar destaque municação, os fatos sociais ganham relevân- quando consegue ser visível através de suas cia quando veiculados pela mídia. Assim, mensagens, sem se restringir ao reconheci- a possibilidade de se tornar visto e adquirir mento de sua comunidade local. A midiati- uma visibilidade pública, passa em grande zação da sociedade não faz somente com que parte, pela presença do indivíduo nesse con- os acontecimentos passem pela mídia, como texto. No final da década de 40, Mer- também com que nosso lugar no mundo seja ton e Lazersfeld já citavam como uma das muitas vezes determinado por ela. Segundo funções sociais dos meios de comunicação a Thompson (2002), o desenvolvimento dos atribuição de status social, conferindo prestí- meios de comunicação teve um profundo im- gio e autoridade aos indivíduos. pacto no processo de autoformação do self. Segundo Ana Paula Goulart (2000), Antes do desenvolvimento da mídia, os ma- a própria história, enquanto disciplina teriais simbólicos empregados na formação acadêmica, perde seu papel central na con- da identidade individual eram adquiridos no strução da memória oficial das sociedades, a contato face a face. Para muitos, esta identi- partir da inserção das tecnologias de comuni- dade estava ligada ao local de vivência e in- cação nas sociedades industriais. Hoje, cada teração com . Quando os indivíduos vez mais, são os meios de comunicação o têm acesso às formas mediadas de comuni- espaço dos acontecimentos e representações cação, eles passam a utilizar este leque de sociais – instância de consagração dos fatos recursos simbólicos para a construção de sua como históricos. individualidade. Não somente a própria formação do self é Os meios de comunicação, neste alterada com o acesso facilitado aos meios século, passaram a ocupar uma de comunicação, como também o reconhec- posição institucional que lhes con- imento social, o alcance da afirmação e da fere o direito de produzir enun- intervenção política de quem quer que seja ciados em relação à realidade so- passam a depender em grande escala da di- cial aceitos como verdadeiros pelo mensão midiática que se têm. Alguns au- consenso da sociedade. A História tores chegam até ao exagero de afirmar que passou a ser aquilo que aparece não ser noticiado ou não aparecer nos meios

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de comunicação equivale a uma não existên- eram as propagandas que passaram a utilizar cia, a uma não projeção pública e por sua o testemunho e a opinião de pessoas publica- vez, à não legitimidade do seu valor como in- mente importantes endossando a qualidade divíduo (FIDALGO, 2007). Passa-se a viver de determinados produtos. numa sociedade dominada pela ilusão das aparências, na era do “sou visto”, onde os O público dos mass media que não estão enquadrados na lógica do es- aparentemente é adepto da crença petáculo recebem a punição de não terem circular: ’Se você é realmente im- valor. O “parecer” passa a valer muito mais portante, estará no foco de atenção que o “ter”, e ainda mais ao “ser”. Pes- da massa, e se você está no foco soas passam a encenar personagens em busca de atenção da massa com certeza de reconhecimento (FREIRE FILHO, 2003). você é realmente importante’. Ganha destaque aquele que consegue atrair (LAZARSFELD & MERTON: por mais tempo as luzes e a atenção dos 1969; 109) meios de comunicação. Este poder de legitimação do indivíduo na sociedade, explica ainda hoje o fascínio que 2.1 A Sociedade do espetáculo a mídia exerce sobre muitas pessoas, pois es- tar nos meios de comunicação significa ter garantida sua importância dentro do contexto Já nos final dos anos 40, Merton e Lazarsfeld em que se vive. Ao mesmo tempo em que (1969) anunciaram através do ensaio “Co- garante importância aos indivíduos cuja ex- municação de massa, gosto popular e a orga- istência veicula, os meios de comunicação nização social” o grande interesse e preocu- também servem notadamente para reafirmar pação que os meios de comunicação desper- as normas sociais, estabelecendo os padrões tavam em muitos teóricos e estudiosos soci- e condutas adequadas aos seus públicos e, ais. Isto se devia ao fato dos meios de comu- quando necessário expor os seus desvios. nicação terem se espalhado rapidamente por Através da propaganda, patrocinada pelas toda a parte e atingido um número cada vez grandes indústrias, é possível garantir o es- maior de cidadãos nas sociedades industrial- tabelecimento das condutas éticas, econômi- izadas. Os meios de comunicação, sobretudo cas e sociais predominantemente valorizadas através da propaganda, tornam-se um espaço em cada comunidade. de controle, exercício de poder uma vez que eram propriedades das classes dominantes. A publicidade é dirigida espe- Os meios de comunicação adquiriram cialmente para canalizar padrões funções sociais que antes pertenciam ao Es- ou atitudes de comportamentos tado, às entidades de classe e às comu- pré-existentes. Ela raras vezes nidades locais. Entre as funções dos meios procura incutir novas atitudes ou de comunicação, esses autores destacam a de criar novos padrões de comporta- atribuição de status e prestígio, conferindo mento. (LAZARSFELD & MER- autoridade a este indivíduo. Um exemplo TON: 1969; 122) www.bocc.ubi.pt 6 Maria Cecília Bello Moutinho

Apesar de todas as funções sociais atribuí- porânea. Essas diferenças irão aparecer das aos meios de comunicação, Merton e através da maneira como eles tratam os con- Lazarsfeld (1969) relativizam o poder da mí- ceitos da sociedade do entretenimento e a so- dia, deixando claro que ela não age soz- ciedade do espetáculo. inha. A mídia não impõe padrões sociais, Segundo Gabler (1999), a audiência vê e sim reforça e dissemina aqueles que veic- diariamente pela televisão as vantagens e ula. Declaram que foram de suma importân- adorações recebidas pelas celebridades. Ao cia os contatos diretos nas organizações lo- mesmo tempo, a televisão gera a sensação cais como um reforço aos meios de comu- de inadequação, não apenas diante da cele- nicação (pontos de encontro onde cidadãos bridade, mas também diante da vida. A eram expostos em conjunto aos meios de co- insatisfação é um dos motores da publici- municação de massa). Ainda hoje, estes re- dade: você compra coisas para compensar forços aparecem em nossa sociedade, princi- aquilo que você não tem. Assim, a estrela palmente através das chamadas celebridades fornece um ícone acessível de identificação instantâneas. As celebridades instantâneas pessoal. (GABLER, 1999) Quanto mais as são indivíduos que passam a circular pela celebridades derivam do “mundo comum”, mídia por relacionar-se com alguém famoso. com uma história de luta para ter alcançado a Os fatos cotidianos de suas vidas são trans- tão sonhada visibilidade e são expostas prat- formados em acontecimentos midiáticos am- icando atividades do dia a dia, mais elas al- plamente veiculados. Ir à praia ou ao cin- imentam o sonho de outros milhares de pes- ema já se os torna alvo das colunas de fo- soas de ocuparem aquele lugar e declaram focas. As celebridades instantâneas ao cir- “ser possível para qualquer um”. cular pelos meios de comunicação parecem mostrar que todo indivíduo poderia estar lá. Mas isso não nos impediu de nutrir Segundo Gabler (1999), os meios de comu- esperança de um dia obter acesso nicação foram inundados de episódios ger- a esse mundo, de poder chegar ao ados pela vida – o que ele chama de lifies, outro lado do vidro. A questão uma mistura de life e movie – sobre fatos da era como. A resposta está cada vida de celebridades, como o julgamento de vez mais na televisão, que sep- O. J Simpson, a vida amorosa de Elizabeth arava os famosos dos anônimos. Taylor e as aventuras extraconjugais do pres- Como a celebridade fosse um en- idente Bill Clinton. Estes fatos fazem com tretenimento humano, não era pre- que o cidadão comum identifique-se com o ciso necessariamente haver talento que vê, como num espelho. A mídia val- algum para obtê-la, e aí residia oriza as experiências que os indivíduos co- o grande e não mencionado fator muns também podem viver cotidianamente. igualitário da celebridade. Tudo Autores norte-americanos, como Gabler, de que se precisava era a san- Postman e Boorstin e o francês Guy Débord tificação da câmera de televisão. apresentam diferentes perspectivas a respeito Por esse motivo é que as pes- da relevância dos meios de comunicação soas reagem imediatamente, sem- como espaço privilegiado da vida contem- pre que são apanhadas pelas lentes

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da câmera, ainda que por meros in- tretenimento tem seu início com uma nova stantes.(GABLER: 1999; 179) ênfase no ato de ver. Até mesmo as vitrines das lojas de departamentos passaram a ser Gabler e alguns sociólogos norte- planejadas para dar o maior número de es- americanos irão apresentar o entretenimento tímulos visuais. O cinema foi a arma mais como um dos males da sociedade americana sensacional desta mudança. Nenhuma outra no final do século XX. Numa sociedade forma de entretenimento poderia fornecer a onde o padrão de valor é saber se algo mesma proximidade, a mesma escala mon- pode ou não atrair e manter a atenção do umental, o mesmo impacto sensorial. Pos- público, o restante como literatura ou debate teriormente, ele seria a matriz de um país político sério tem grande probabilidade de a ser moldado e selaria o triunfo do en- ser diluído ou marginalizado. (GABLER, tretenimento sobre a alta cultura e a mid- 1999) Podemos pensar na sociedade do cult.(GABLER, 1999) entretenimento como uma evolução extrem- A partir do final do século XIX e início do ista da sociedade do espetáculo. Para esses século XX, os meios de comunicação sofr- teóricos, o entretenimento passou a ser o eram uma grande mudança, a revolução grá- valor número um na cultura americana e isto fica. Isto se deu a partir do aumento sig- tem consequências profundas na vida social nificativo de material visual disponível para daquele país. Tudo, inclusive a vida, tornou- o grande público. Os Estados Unidos tin- se matéria-prima para entreter e suavizar ham se tornado uma “cromocivilização”, na os problemas diários. O entretenimento qual as reproduções visuais teriam expul- passa a ser o combustível da sociedade da sado a cultura autêntica. Para Neil Post- ilusão e do escape contrapondo-se com um man (apud GABLER, 1999), crítico da cul- modelo formal de sociedade, exemplificada tura popular americana, cada veículo é um pela sociedade aristocrática européia, no “modo único de discurso”, que reforça a qual se tem uma cultura autêntica e real. própria forma de processamento mental e as Não podemos deixar de considerar que o próprias idéias de inteligência. O texto im- modelo social e cultural norte-americano presso exige raciocínio. Empregar a palavra é fortemente disseminado pelos meios de escrita significa seguir uma linha de pen- comunicação, principalmente através do samento que exige um poder considerável cinema, e desta forma, replicado em grande de classificação, inferência e argumentação. parte do mundo ocidental. Os valores ditos Consequentemente, uma sociedade baseada importantes na cultura norte-americana sobretudo no texto escrito, como era a so- são, principalmente após a globalização, ciedade americana até o final do século XIX, os mesmos valorizados em muitas so- ainda que não necessariamente altamente in- ciedades – assim como na brasileira. Desta telectual, era aquela em que a lógica, a or- forma, podemos pensar na sociedade do dem e o contexto predominavam. Por outro entretenimento não como uma experiência lado, para esse autor, uma sociedade baseada única norte-americana, mas fortemente em imagens dispensava tudo isso porque as disseminada por ela. imagens não exigiriam grandes esforços de Para Gabler (1999), a Revolução do En- www.bocc.ubi.pt 8 Maria Cecília Bello Moutinho raciocínio. (POSTMAN apud GABLER, Perspectivas teóricas divergentes das 1999) norte-americanas irão afirmar outros razões Para Postman (apud GABLER, 1999), a para a sociedade ter-se transformado na revolução gráfica seria apenas o começo sociedade do espetáculo e o entretenimento de uma longa caminhada rumo ao anti- ter-se tornado a grande matriz de nossas raciocínio, que acabaria por culminar na tele- vidas. O francês Guy Debord, não creditará visão. A televisão teria influenciado de tal este fator à fraqueza intelectual e à busca maneira a vida da sociedade norte-americana pelo prazer das sociedades modernas, como que transformara todas as reportagens em afirman Boorstin, Postman e Gabler. Ele entretenimento, veiculando um número in- argumentará que esta sociedade não é édito de imagens. Obrigada a nos manter superficial ou tola, mas que os indivíduos estimulados, a televisão converteu tudo que são inseridos neste modelo, devido ao modo parecia na tela em entretenimento, que era de funcionamento da sociedade contem- a sua forma natural de discurso. Não im- porânea. Para ele, o sistema não permite que porta o que a televisão mostrasse, ela estava os indivíduos escolham uma outra forma, ali para nos divertir e nos dar prazer. Trans- embora acredite numa possível organização formada no meio primordial mediante o qual contra o sistema espetacular. as pessoas se apropriavam do mundo, a tele- Assim, vê-se cada vez mais separado dele. visão disseminou uma epistemologia na qual “Quanto mais a sua vida se torna seu pro- toda e qualquer informação, não obstante a duto, tanto mais ele se separa da vida”. fonte, era forçada a se transformar em en- (DEBORD apud FREIRE FILHO: 2003; 8) tretenimento.(GABLER, 1999) Desta perspectiva, a institucionalização da divisão técnica do trabalho fez com que ‘Uma crescente devoção ao prazer, os homens se concentrassem em atividades à , à dança, ao esporte, às fragmentárias que não apresentavam um sen- delícias do país, ao riso e as todas tido completo para ele. O produto final de as formas de alegria’ (CROWN- seu trabalho já não representava mais nada, INSHIELD apud GABLER: 1999; além de não mais pertencer a ele. À medida 59). Como o prazer fosse muito que este modelo econômico se expandia, a prazeroso, essa atitude levou uma alienação presente em seu núcleo original expectativa de que tudo deve- também crescia. (DEBORD apud FREIRE ria dar prazer, quanto mais não FILHO, 2003) fosse porque qualquer coisa não o As mercadorias eram oferecidas ao con- fizesse com toda a certeza seria su- sumidor como ídolos, causando ondas de en- perado por algo que o fizesse. Esse tusiasmo propagadas pela mídia – grandes poder de expectativa levou por seu estrelas do espetáculo se sobressaíam como lado ao poder da conversão, pelo modelo de identificação, representando tipos qual cada vez mais a vida norte- diferentes de papéis e estilos de vida. americana, para poder sobreviver, Os indivíduos passam, então, a habitar se tornaria semelhante ao entreten- uma sociedade onde vigora o princípio do imento. (GABLER: 1999; 59) fetichismo das mercadorias. Através da pro-

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paganda, bens materiais são aproximados ao fato de o homem moderno ser dos indivíduos como detentores, mais do que demasiado espectador. Boorstin de funções utilitárias, de gratificações emo- não compreende que a proliferação cionais e espirituais. Imagens do exótico, do dos pseudo-acontecimentos, pré- surreal e do inconsciente fazem parte agora fabricados que ele denuncia deriva dos argumentos para o consumo dessas mer- deste simples fato: que os próprios cadorias. Antes vistas como meros instru- homens, na realidade maciça da at- mentos para facilitar a vida prática dos in- ual vida social, não vivem acon- divíduos, agora as mercadorias passam a ser tecimentos. E porque a própria tratadas como se fossem munidas de facul- história persegue a sociedade mod- dades, propriedades, valores e significados erna como um espectro, que se en- intrínsecos transferíveis ao consumidor me- contra a pseudo-história construída diantes as relações de compra e posse. O ob- a todos os níveis do consumo da jeto material simples e puro dá lugar a “uma vida, para preservar o equilíbrio multidão crescente de imagens-objetos” val- ameaçado do atual tempo conge- orizadas e consumidas como imagem. As- lado.2 sim, “O consumidor real torna-se um con- sumidor de ilusões. A mercadoria é esta Esta sociedade do espetáculo seria con- ilusão efetivamente real, e o espetáculo a sua struída a partir do modelo econômico de pro- manifestação geral”.1 dução vigente a partir da Revolução Indus- Na sociedade espetacular, o operário é trial. A industrialização trouxe a divisão transformado em consumidor, passando a do trabalho e consequentemente, a perda da circular num ambiente fora do universo consciência do trabalhador sobre o seu pro- da produção. Além disso, seus desejos cesso de produção. E, principalmente, se- são explorados e moldados, sendo alvos de gundo o marxismo, sobre o valor de seu tra- constante pressão social. As necessidades balho. A propaganda era, para as perspec- dos indivíduos são moldadas pela sociedade tivas teóricas socialistas, o instrumento que como necessidade de seus produtos. Desta garantiria a instalação deste modelo na so- forma, os indivíduos se identificam com a so- ciedade. As mercadorias não seriam mais ciedade, a partir do momento em que podem vendidas pelo que valiam, mas sim, pelo consumir o que é oferecido. Esta identifi- valor que ela seria capaz de agregar aos indi- cação acontece não pelo fato de terem suas víduos, valores esses que eram não somente necessidades satisfeitas, mas porque a so- práticos como também, subjetivos. Os indi- ciedade definiu suas necessidades em termos víduos passam, assim, a desejar o que a pro- das satisfações que oferece. (SLATER apud paganda lhes vende e, junto com as mercado- FREIRE FILHO, 2003) rias, é vendido também um modelo social, um modelo ideal de vida que será o ideal Assim, o espetáculo seria devido para que os indivíduos atinjam as suas real-

1 DEBORD, G. (1967; #47). Disponível em: 2 DEBORD, G. (1967; #200). Disponível em: www.geocities.com/jneves_2000/socespcapitulo2.htm; www.geocities.com/jneves_2000/socespcapitulo2.htm; acesso em 31 de março de 2009. acesso em 31 de março de 2009.

www.bocc.ubi.pt 10 Maria Cecília Bello Moutinho izações pessoais diante dos demais cidadãos. que a audiência se identificava com narrati- A mídia passa, desse modo, a comportar a vas, com histórias bem contadas, especial- função de garantir o status social que já era mente as que traziam um traço vívido dos apontada por Merton e Lazarsfeld. O lugar fatos. A Rede NBC elaborou para a cober- que cada indivíduo ocupa na sociedade passa tura das Olimpíadas de Atlanta uma grande a ser legitimado pela mídia, através do que estratégia que envolveu extensas pesquisas ele possui e, consequentemente pela imagem que visavam garantir altos índices de audiên- que constrói e passa aos outros de si mesmo cia. Segundo esta pesquisa, os telespecta- através da mídia. dores se interessariam mais pelos perfis dos Se, para algumas perspectivas teóricas, o atletas do que pelos eventos esportivos em principal efeito da mídia no final do século si. “A competição era uma desculpa e um XX foi transformar tudo o que era noticiado desenlace para o filme, e o filme era o melo- em entretenimento, o efeito secundário foi drama do atleta”. (GABLER: 1999; 117) basicamente forçar quase tudo a se transfor- De fato, muitas vezes, conseguir um lu- mar em entretenimento para atrair a atenção gar nos meios de comunicação nada mais da mídia. Daniel Boorstin irá lançar o termo é do que ser bem-sucedido nas estratégias “pseudo-evento” para tratar dos eventos que midiáticas criadas para atrair a atenção da os profissionais de relações públicas irão mídia. A relevância destes personagens criar para a mídia. O indivíduo passa a ter é fabricada através de uma lógica ditada uma agenda de ações com potencial para por estratégias e processos de visibilidade, chamar a atenção dos veículos de comuni- de aquisição de audiências, de reforço de cação. Esses acontecimentos não ocorreriam posição midiática, sendo elevado ou sacrifi- se não existissem pessoas querendo chamar cado, conforme as conveniências. Isso vai a atenção e, veículos de comunicação ávidos de encontro com as idéias de Débord, para por ocuparem seus espaços, principalmente quem “o espetáculo é o momento em que a com ações capazes de entreter. (GABLER, mercadoria chega à ocupação total da vida 1999) social. Não só a relação com a mercadoria é Todo aquele que desejasse chamar a visível, como nada mais se vê senão ela: o atenção da mídia deveria contratar um agente mundo que se vê é o seu mundo”.3 ou um relações-públicas que fosse capaz Pode-se pensar também na lógica da oferta de criar e identificar as melhores oportu- e da procura. O público, que se identifica nidades de chamar a atenção dos meios de com estes personagens e histórias, procura; a comunicação. A mídia, de fato, não re- mídia oferece. Pois, a vida pessoal é a forma latava mais o que as pessoas faziam e sim, de entretenimento que mais interessa às pes- o que elas faziam para obter a atenção da soas e se tornou o padrão primordial de valor mídia. Neste processo, o que todo mundo para quase tudo na sociedade moderna. Se estava tentando descobrir era a forma mais a criação de celebridades é uma função da espetacular e sensacional de apresentar o 3 DEBORD, G. (1967; #41) Disponível em: que estivesse fazendo. Os assessores de www.geocities.com/jneves_2000/socespcapitulo2.htm; imprensa e os relações-públicas juntamente acesso em 31de março de 2009. com os meios de comunicação, descobriram

www.bocc.ubi.pt Figurantes – a invisibilidade em cena 11 publicidade, tudo o que a mídia precisa é am- os candidatos a celebridades havia pliar o alcance de seus holofotes. pouquíssima diferença. Como o Nenhum outro símbolo representou tão talento não fosse mais um pré- bem quanto a celebridade este modelo social requisito, era uma questão tanto nascido no século XX. A celebridade con- de sorte quanto de qualquer outra temporânea pode ter sido criada como a en- coisa o que punha algumas pes- carnação da fama democrática. Se, anteri- soas de um lado do vidro e out- ormente, para ser bem-sucedido ou famoso ras do outro, fazendo da celebri- era necessário mesmo que de forma frouxa, dade mais um exemplo da teoria do alguma habilidade ou façanha pessoal, para caos. (GABLER: 1999; 182-183) a celebridade ser reconhecido passa a se dar em função de como se é percebido. Quanto mais conhecida maior a celebri- dade. (GABLER, 1999) “A celebridade é 2.2 Fama, anonimato e uma pessoa conhecida por sua notoriedade”. construção da identidade (BOORSTIN apud GABLER: 1999; 140) Sendo assim, o maior valor da celebridade contemporânea não reside naquilo que essa condição pode render aos que a possuem, mas sim naquilo Nenhum indivíduo, em qualquer contexto, que os outros presumem a respeito das pes- pode prescindir de algum reconhecimento soas que a têm. Esta conclusão é facilmente social. Para Erving Goffman, é através do compreendida, a partir do princípio de que olhar do outro que nossas características são se tornar uma celebridade se dá muito mais percebidas e que nos constituímos como in- pela forma que se é visto pelos demais do divíduos. Independentemente do objetivo que somente por algum feito individual. Na particular que cada pessoa tenha em mente sociedade contemporânea, se você não é re- e da razão desse objetivo, será do interesse conhecido ou notório através dos meios de dele ajustar o seu comportamento aos out- comunicação, está fadado a fazer parte da ros, principalmente para guiar a forma como grande platéia anônima. E para aqueles que o tratam. É da vontade de cada um, em toda a acreditam que a mídia é o único lugar de re- interação, regular e guiar as respostas dadas conhecimento e garantia do status social esta pelos outros presentes. Assim, quando uma perspectiva pode ser terrível demais. pessoa chega à presença de outras, existe, em geral, alguma razão que a leva a atuar Os caminhos para a celebridade de forma a transmitir a impressão que mel- eram caprichosos, assim como hor lhe convém. Isto se dá também diante eram os caminhos que determi- de diferentes platéias. Para cada uma delas, navam quais entretenimentos con- os indivíduos representam o papel que lhes vencionais teriam êxito. E o mais é mais interessante naquela ocasião. Assim exasperante para aqueles que que- é de grande valia perceber que as aparências riam tornar-se entretenimento hu- podem ser livremente manipuladas. (GOFF- mano é que entre as celebridades e MAN, 1985) www.bocc.ubi.pt 12 Maria Cecília Bello Moutinho

Seguindo uma tendência da sociedade de nossa personalidade. Entramos americana voltada para o espetáculo, os no mundo como indivíduos, adqui- filmes de Hollywood e posteriormente a tele- rimos caráter e nos tornamos pes- visão vão enfatizar cada vez mais o valor das soas. (PARK apud GOFFMAN: aparências. Isso se dá, por uma mudança 1985; 27) cultural em direção a um ideal inteiramente novo. Enquanto a cultura puritana orien- O processo da construção da auto-imagem tada para a produção honrava o que chamava pela projeção de uma imagem para os out- de caráter, a nova cultura orientada para o ros é inseparável da própria condição hu- consumo, valorizava a personalidade, uma mana. Fama, glória, honra, boa ou má função daquilo que se projetava para o outro. reputação, desonra, infâmia, esquecimento, Ou seja, a nova cultura da personalidade en- o prestígio ou o desprezo são todas for- fatizava o charme, a aparência e a capacidade mas da construção do renome. O nome, de se fazer amado. Como disse o historiador primeira percepção de si, individualiza; mas Warren Susmam, “o papel social exigido de é no renomear que se constrói a identidade todos, na nova cultura da personalidade, era através da interação com o olhar do outro e o de artista. Todo americano iria se transfor- a própria percepção de si. (COELHO, 1999) mar num eu intérprete”. (GABLER: 1999; De todos as formas da construção da imagem 188) de si, a fama é a versão mais moderna da construção do renome, e abre caminho para Não é provavelmente um mero aci- examinarmos os contornos que esta prob- dente histórico que a palavra “pes- lemática individual da construção da iden- soa”, em sua acepção primeira, tidade através do olhar do outro ganha no queira dizer máscara. Mas, antes, mundo contemporâneo. A busca moderna o reconhecimento do fato de que pela fama ganha contornos de uma tentativa todo homem está sempre e em todo desesperada de fuga do anonimato, através lugar, mais ou menos consciente- da suposta singularização que a exposição mente, representando um papel...É pública da imagem de si garantiria. nesses papéis que nos conhecemos Nas sociedades modernas, a metrópole é uns aos outros; é nesses papéis o lugar privilegiado para o individualismo que nos conhecemos a nós mes- sustentado pela sua característica fragmen- mos. Em certo sentido, e na me- tária, espaço de convivência de múltiplos dida em que esta máscara repre- grupos sociais com códigos divergentes e senta a concepção que formamos conflitantes. Dessa experiência multifac- de nós mesmos – o papel que nos etada, em que o indivíduo tem acesso a in- esforçamos por chegar a viver – úmeros códigos, diferentes alternativas de esta máscara é o nosso mais ver- vida, que freqüentemente se sucedem e con- dadeiro eu, aquilo que gostaríamos tradizem, emerge uma consciência exacer- de ser. Ao final a concepção que bada da própria singularidade. A mul- temos de nosso papel torna-se uma tiplicação e a fragmentação de domínios, segunda natureza e parte integral associadas a variáveis econômicas, políti-

www.bocc.ubi.pt Figurantes – a invisibilidade em cena 13 cas, sociológicas e simbólicas, constituem mos –, dramatiza de forma radi- um mundo de indivíduos cuja identidade é cal esse paradoxo em que a indús- colocada permanentemente em xeque e su- tria cultural e a ideologia individ- jeita a alterações drásticas. (SIMMEL apud ualista se unem inextricavelmente. COELHO,1999) E é o rosto, o locus priv- (COELHO: 1999; 63) ilegiado dessa singularidade nas sociedades modernas, espaço de expressão da individ- Embora uma grande maioria anônima seja ualidade. Através da fama, um rosto é ex- necessária para a singularização do outro, posto incessantemente e intensamente à ad- o mito da fama permite que o caminho miração pública. Dessa forma, aquela in- percorrido no projeto de alcançá-la seja de dividualidade em particular é destacada da certa forma reconfortante, pois, assim como massa e, a partir daí está criado o grande uma pessoa comum, sem nenhum talento paradoxo da sociedade moderna: para aquele especial, pode atingir a visibilidade, o eu- rosto tornar-se famoso, exige-se o anonimato comum-anônimo tem motivos em prosseguir de muitos outros. Um indivíduo que alcança na luta pelo alcance da notoriedade. A cele- a singularização, só a consegue porque uma bridade bem-sucedida alimenta milhares de outra imensa maioria continua a viver na anônimos a continuarem sonhando com o massa de anônimos. A busca pela fama é estrelato, ao mesmo tempo em que é per- vista para muitos estudiosos como a chance manentemente destacada pela mídia por se dos indivíduos escaparem da massificação na diferenciar daqueles que não o atingiram. sociedade moderna. Além disso, a fama também garantiria a alguns indivíduos uma possibilidade de O desejo de singularizar-se é, se ascensão social. Estar na mídia, mesmo seguirmos as sugestões de Sim- que não necessariamente seja garantia de mel, o desejo de constituir-se dinheiro e poder, para muitos equivale a como indivíduo. A indústria cul- ser promovido a uma outra camada social tural, ao apelar para que os in- mesmo que simbolicamente. Na contem- divíduos sejam singulares frustra poraneidade, como já explicitado anterior- qualquer possibilidade de atendi- mente, transitar pelos meios de comunicação mento desse apelo na medida em dá ao ser um status social que lhe garante que o generaliza. A indústria uma determinada distinção perante os out- cultural fala para todos como se ros. A sociedade está organizada de forma falasse para um; é o apelo à in- que qualquer indivíduo que possua certas dividualidade, contradito em sua características sociais tem o direito moral de massificação, que constitui, nessa esperar que os outros o valorizem e o tratam hipótese, o conteúdo basilar da de maneira adequada, já anteriormente pre- moderna indústria cultural, regida vista na sociedade. Ligado a este princípio pelo modelo do “duplo vínculo”. há um segundo, ou seja, de que um indi- O mundo da fama, opondo/unindo víduo que implícita ou explicitamente dê a superindivíduos – as celebridades entender que possui certas características so- – a subindivíduos – os anôni- ciais deve de fato ser o que é. Não é pre- www.bocc.ubi.pt 14 Maria Cecília Bello Moutinho

ciso provar sua condição aos outros, ape- ará em grandes ou pequenas alterações nas nas se comportar como tal. Há uma relação representações sociais previamente vividas. de confiança perante o comportamento al- Haverá a necessidade de esforços contin- heio. Desta forma, se exerce uma exigên- uados para que se estabeleça um compor- cia moral de receber um tratamento digno de tamento adequado àquela nova posição so- pessoas de sua estirpe. (GOFFMAN, 1985) cial. Quando um indivíduo passa a uma Seguindo este raciocínio, as celebridades de- nova posição na sociedade, provavelmente sejam ser tratadas de maneira diferenciadas, não receberá as informações detalhadas de pois presume-se o direito à diferenciação como deverá se comportar nem os novos aqueles que conseguiram singularizar-se e fatos ocorridos farão com que altere drastica- escapar do anonimato. mente sua conduta, será necessária uma re- A partir de Gilberto Velho (1994), pode- flexão posterior para isso. Comumente este mos apresentar a lógica da mudança de sta- indivíduo receberá apenas algumas deixas e tus social através da fama, a partir da noção insinuações, pois se acredita que já tenha de trajetória, projeto e campo de possibil- em seu repertório “pontas” de representações idades. Todo indivíduo, em determinados que o possibilitem experienciar bem aquele momentos, faz escolhas que são definidas a novo papel. partir de um projeto individual e conseqüen- Para alguns autores como Gabler (1999), temente social. Essas escolhas estão inseri- esta mudança de posição social também das dentro de um campo de possibilidades de se dá a partir de materiais simbólicos re- cada indivíduo ou grupo e, desta forma, o su- cebidos através da mídia. O indivíduo jeito do projeto pode conscientemente mudá- via um gênero de vida o qual aspirava e lo ou permanecer da forma o qual se encon- passava a se comportar como tal, usando tra. Poder escolher garante ao indivíduo a os padrões já ditados pela sociedade para possibilidade de alterar o contexto vivido e aquele modelo, operando dentro dos lim- traçar o projeto que ambicionar. Sendo as- ites pré-estabelecidos devido sua aparência sim, permanecer em contextos de invisibil- física, recursos financeiros, cooperação dos idade ou atingir a visibilidade passa a ser demais, entre outros fatores. possível. É importante afirmarmos que um É comum a mídia noticiar histórias de projeto coletivo não é vivido de modo total- celebridades que alcançaram a fama e não mente homogêneo por todas as pessoas do souberam se comportar como a coletivi- grupo que o compartilham e que toda es- dade esperava e a situação determinava. É colha é estratégica e implica um cálculo de também por isso que podemos imaginar perdas e ganhos. Quando um indivíduo opta porque muitos cidadãos de camadas altas por uma trajetória, deixa de vivenciar outras da sociedade criticam as celebridades e não experiências referentes à outra trajetória não gostam de intercâmbios com os chamados escolhida. “novos ricos”. A família do jogador de A idealização da ascensão social, segundo futebol, Ronaldo “Fenômeno”, foi alvo de Goffman (1985), implica na representação críticas e até exposição nas páginas polici- de desempenhos adequados à camada pre- ais dos jornais, por mau comportamento no tendida. Toda mudança de papéis ocasion- condomínio onde viviam na Barra da Ti-

www.bocc.ubi.pt Figurantes – a invisibilidade em cena 15 juca. Neste caso, é provável que o próprio imediatas na autopercepção e representações Ronaldo já tivesse recebido algumas “dicas” individuais. Pode-se dizer que a própria de como se comportar. Ao trazer sua família, possibilidade de socialização reside na inter- que não havia sido exposta aos mesmos am- ação das diferenças, com a conhecida prob- bientes que ele durante o curso da trajetória lemática da troca e reciprocidade. Os proje- de ascensão social, a expôs a novas situações tos, como as pessoas, mudam. Ou as pessoas para as quais não estava “preparada”. Aquela mudam através de seus projetos. Pois em família carecia de materiais simbólicos que cada projeto será necessário apresentar-se e os ajudassem a agir de acordo com as rep- representar-se de uma maneira diferenciada. resentações sociais previstas. O dinheiro, a A transformação individual se dá ao longo visibilidade e o poder não garantem que os do tempo. A heterogeneidade, a globaliza- indivíduos saibam como se adaptar e a rep- ção e a fragmentação da sociedade moderna resentar as novas posições sociais que a au- introduzem novas dimensões que põem em diência com quem convivem esperam deles. discussão todas as concepções de identidade social e consistência existencial. O que parece ser exigido do indi- Nas sociedades contemporâneas, ser víduo é que aprenda um número famoso é para muitos indivíduos ou um suficiente de formas de expressão grupo deles um projeto de possibilidade de para ser capaz de “preencher” e di- mobilidade social. Para muitas famílias, rigir mais ou menos qualquer papel um filho tornar-se jogador de futebol não que provavelmente lhe seja dado. só garantirá a saída do anonimato, e a As encenações legítimas do cotid- consequente singularização dentro da massa, iano não são “representadas” ou como uma ascensão social pelo mérito “assumidas” no sentido que o ator individual da criança e pelo mérito do sabe de antemão exatamente o que projeto bem-sucedido colocado em prática vai fazer e o faz exclusivamente em por aquele grupo de pessoas, ou seja, pela razão do efeito que provavelmente família. Para outras famílias esta ascensão venham a ter. (GOFFMAN: 1985; poderia se dar através de uma estrela-mirim. 73) Não é à toa que muitas mães levam seus filhos, ainda bebês às agências de elenco Para Gilberto Velho (1994) as trajetórias para tentarem um estrelato em novelas, dos indivíduos ganham consistência a partir filmes e comerciais de televisão. Este é da delimitação mais ou menos elaborada de um típico exemplo de que se tornar uma projetos com objetivos específicos. A via- celebridade pode ser um projeto dos pais, bilidade de suas realizações vai depender do e não do indivíduo em questão, pois neste jogo e interação com outros projetos individ- caso ele ainda não tem o discernimento da uais ou coletivos, da natureza e da dinâmica possibilidade e necessidade da sua singu- do campo de possibilidades. Para transitar larização como fator importante da vida em mundos distintos com alguma segurança, moderna. o indivíduo tem a necessidade de fazer e re- Estar inserido nos meios de comunicação fazer seus mapas de ações, com implicações é alcançar o status social através da trajetória www.bocc.ubi.pt 16 Maria Cecília Bello Moutinho bem-sucedida dos filhos/sobrinhos/netos, a indesejado: todos são assuntos possíveis no partir de um projeto elaborado por um mercado da indústria cultural. Ele vende o grupo. Depois de alcançada a visibilidade, mito da fama como objetivo a ser alcançado estes projetos são sempre mencionados pe- para muitos indivíduos e como entreteni- los meios de comunicação como o retrato da mento para aqueles que se conformam com difícil trajetória daqueles indivíduos antes do o seu anonimato. estrelato. Os personagens familiares ou ami- Como produtores da fama, os meios de gos próximos são sempre mostrados como comunicação precisam provar que não é so- agentes chaves para o alcance da tão son- mente possível sair da massa anônima gan- hada fama, já que a visibilidade daquele in- hando os seus 15 minutos de fama, como se divíduo só foi possível a partir de um pro- manter no mundo das celebridades. A TV jeto coletivo que implicou em renúncias e Globo, por exemplo, ao mesmo tempo em redesenhos de muitos papéis. É importante que promove o programa de reality show Big perceber que a mídia valoriza e espetacular- Brother Brasil, fabricando celebridades in- iza as trajetórias mais tortuosas. O quadro stantâneas, faz questão de garantir o sucesso “Arquivo Confidencial” do programa “Dom- de pelo menos alguns. A ex-BBB Gra- ingão do Faustão” pode ser tido como exem- ziela Massafera é o maior exemplo desta plo. O apresentador traz ao palco uma cele- lógica. Outros não se tornaram protago- bridade e mostra através do discurso emo- nistas de novela, mas continuam a habitar o cionado de amigos e parentes a difícil tra- tão sonhado e efêmero mundo das celebri- jetória até a fama. Professores, vizinhos e fa- dades: Kléber Ban-Ban, Diego Alemão e Ju- miliares contam as dificuldades e superações liana Alves, todos ex-BBBs ainda na mídia. vividas por aquele personagem. É comum Desta forma, o sonho em alcançar o estrelato ouvirmos falar da carreira de jogadores ou da massa anônima é reforçado diariamente, cantores muito pobres que precisaram fazer e provando que o sucesso perene, mesmo raro, refazer suas escolhas, alterando seus projetos é possível. individuais e familiares. Do mesmo modo, Ainda pensando no alcance da fama, mas não é tão comum a valorização de histórias trazendo para a vida cotidiana das pes- que não enfrentaram tantos percalços em soas, Gabler (1999) irá afirmar que cada vez seus caminhos, como atletas de famílias mais mais os cidadãos contemporâneos encaram abastadas ou atores e atrizes que são filhos de a própria vida como entretenimento. Esta pais já estabelecidos no meio artístico. percepção seria incentivada e induzida pelas Espaço produtor dos mitos contemporâ- novas tecnologias. Essas novas tecnologias neos, a indústria cultural desempenha um du- poderiam ser comparadas às comunicações plo papel quando o assunto é fama. Por um de massa diante do efeito das celebridades. lado, a comunicação de massa é condição de Quando pensamos em novas tecnologias, possibilidade do fenômeno “fama”, através podemos partir da chegada dessas novas tec- da celebridade, mas por outro, faz da fama nologias aos lares. E, sem dúvida, o VHS4 um dos seus temas prediletos. Ídolos, tra- 4 O VHS é a sigla para Video Home Sys- jetórias de sucesso, fãs, concursos de beleza tem (Sistema de Vídeo Caseiro). Um sistema e de celebridades instantâneas, o ostracismo

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– Vídeo Home System, criado em 1976 pela já abrem espaço nas suas editorias para abri- JVC, primeiramente para gravar os progra- gar os comentários e notícias enviadas pelos mas de TV e logo em seguida para registrar leitores e ouvintes. gravações caseiras, foi o seu pontapé inicial. Se o anonimato era o grande receio de Sem dúvida, o fascínio da câmera de vídeo indivíduos contemporâneos temerosos em foi ter colocado as pessoas comuns do outro habitar um mundo massificado, as diver- lado do vidro, transformando em astros to- sas possibilidades de exposição podem até dos que estivesse sob suas lentes. O vídeo mesmo ter criado um sentido inverso deste passou de um simples veículo de preservação medo. Para muitos, quase a ser “obrigado” de lembranças a veículo de entretenimento. a se expor e a participar dessas redes de Não demorou que os cidadãos não só dis- relacionamento e conectividade agride de al- pusessem de recursos para gravar como para guma forma sua privacidade. A interativi- editar e acrescentar títulos e efeitos, transfor- dade e as diversas possibilidades de contato mando seus vídeos caseiros em espetáculos com outros indivíduos, sem que para isso profissionalizados. Mais do que atuar para fosse necessário os meios de comunicações a câmera, as pessoas começaram a adaptar de massa (jornais, rádio, televisão e cinema) seus principais eventos para ela. A vida, que possibilitou uma profusão de novos conteú- segundo Goffman já estava intrinsecamente dos e novos sucessos de público e audiência. ligada à encenação das representações soci- Não seria mais necessário ser descoberto por ais, havia encontrado o seu veículo. um produtor de TV para estrelar uma novela. Anônimos em busca de visibilidade en- Através do You Tube , tornou-se possível es- contraram nessas novas tecnologias, prin- trelar aquilo o que se desejar. O site de di- cipalmente na Internet, a forma mais vulgação gratuita de vídeos pode ser visto democrática e fácil de atingir a sonhada sin- também como uma ferramenta de democra- gularização individual. Hoje, a mensagem tização do sucesso. Tornou-se possível fazer não precisa da mídia comercial para ser ve- sucesso entre os amigos, familiares ou sim- iculada. O cidadão comum pode não só pro- plesmente virar um hit mundial de uma hora duzir sua mensagem através de blogs, sites para a outra, como é o caso de David after the pessoais ou redes de relacionamento, como dentist , vídeo estrelado por um garoto sob comentar os fatos publicados na TV, rádio ou os efeitos de anestésicos após uma cirurgia jornal. Alguns jornais e programas de rádio odontológica. O vídeo foi gravado e postado por seu próprio pai, em 30 de janeiro de 2009 de gravação de áudio e vídeo inventado pela JVC que foi lançado em 1976, ele era composto de fi- e virou um dos links mais acessados do site. tas de vídeo e de um equipamento de gravação e Até o dia 20 de abril do mesmo ano, o link reprodução que permitia o registro de programas tinha sido acessado 19.216.520 vezes. Pos- de TV e sua posterior visualização. A facilidade teriormente, o pai criou um site com outros de operação e a uma razoável qualidade fizeram vídeos do filho, foi convidado ao programa com que o sistema se difundisse, com o tempo foram introduzidos gravadores portáteis alimenta- de entrevistas de David Letterman e vendeu dos por baterias que acoplados a câmeras permi- camisas estampadas com as frases ditas pelo tiam gravações caseiras em vídeo. Fonte Wikipédia: garotinho. O pai declarou que fez o vídeo http://pt.wikipedia.org/wiki/Video_Home_System para que a mãe visse posteriormente, mas www.bocc.ubi.pt 18 Maria Cecília Bello Moutinho não disse o porquê da divulgação. O vídeo entrevistas com os figurantes e profission- continua no ar e David tornou-se uma cele- ais de agências de elenco discutiremos como bridade do You Tube. os meios de comunicação são capazes de le- Podemos concluir que as novas tecnolo- gitimar indivíduos como ícones sociais e se gias possibilitaram que cada indivíduo per- mesmo como elementos do contexto, os fig- corresse dentro do seu campo de possibil- urantes acreditam diferenciar-se do restante dades, uma trajetória em busca do sucesso, da massa anônima. fosse ele através dos meios de comunicação de massa ou de blogs, vídeos compartilha- dos ou simplesmente sites de relacionamen- 2.3 Nos Bastidores do Espetáculo tos. E essas mesmas novas tecnologias fab- ricaram diferentes modos de sucesso, seja ele por ser “dona” do blog mais famoso para cri- Neste capítulo, apresento o papel dos fig- anças ou do perfil de vídeos mais acessados urantes nos bastidores do espetáculo e o no You Tube. Assim, cada indivíduo ante- modo como participam das novelas, desde riormente atormentado com a possibilidade sua chegada à agência de elenco, seu cadas- de estar fadado ao anonimato, agora, cidadão tramento até a convocação para aparecer nas desta sociedade fragmentada e de possibili- cenas. dades divergentes e conflitantes, poderá es- O primeiro passo para ser figurante é colher a forma que melhor lhe convier para procurar uma agência de elenco e fazer colocar em prática seu projeto em busca da o cadastro. O cadastro é simples: são tão discutida singularização. E se junto com necessários apenas os dados pessoais e duas 5 esta singularização, estiver a necessidade de fotos, uma de corpo inteiro e outra de rosto . se tornar visível, esta visibilidade não de- A agência de elenco e figuração é a porta pende mais somente da mídia tradicional. Há de entrada do figurante nas novelas, pois a possibilidade de encontrar o sucesso junto é através delas que os canais de televisão a sua comunidade local ou virtual, através de chegam aos figurantes. A figuração é ter- vizinhos, familiares ou colegas de trabalho. ceirizada nos canais de televisão, apenas os Para muitos indivíduos este reconhecimento atores principais são contratados diretamente pode ter o mesmo significado que a visibili- pelas emissoras. Os atores que fazem parte dade alcançada através dos meios de comu- do elenco e os figurantes são prestadores de nicação tradicionais. serviços das agências e recebem cachê por Nos capítulos a seguir, apresentarei o dias trabalhados. Os assistentes de direção caso dos figurantes de televisão que viven- das novelas pedem as agências os tipos físi- ciam uma espécie de visibilidade invisível cos desejados para cada cena, e através de atuando, principalmente nas novelas. Emb- seu banco de dados, as agências selecionam ora em cena, eles são apenas elementos do alguns figurantes para os testes. Algumas contexto, não vivenciando na prática a visi- vezes, não há a necessidade de teste de figu- bilidade inicialmente esperada de quem cir- ração. cula pelo meio de comunicação que é na sua 5 Pode ser consultada uma ficha de cadastro de fig- essência produtor de imagens. Através de urante no anexo 3.

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O acesso a um profissional de agência de e “”, próxima novela das 21h, elenco foi mais difícil do que o esperado. ainda em fase de pré-produção. Antes de conseguir efetivamente fazer a en- O depoimento de Maria da Paz é bas- trevista, houve algumas tentativas frustradas. tante representativo, visto que seu principal A primeira produtora de elenco acionada foi cliente, a TV Globo, é a principal produtora solícita, porém diferenciou sua função de um audiovisual do país e absorve a maior parte produtor de figuração. Através do discurso dos figurantes do mercado televisivo. A Pool dela, ficou evidente o preconceito sobre a Comunicações trabalha com o mesmo mod- função “produtor de figuração”, já que o tra- elo de funcionamento das outras agências. A balho era relacionado a figurantes e não a figuração é contratada através das agências atores. Para ela, a evolução natural do profis- que prestam serviços aos canais de televisão. sional desta área era se tornar produtor de A entrevistada explica que antigamente elenco e deixar de trabalhar com a figuração. as agências precisavam colocar anúncios A produção de figuração era tida como uma nos jornais convocando figurantes para “coisa menor”. Por seu intermédio, consegui cadastrarem-se nos bancos de dados. Os o contato de um profissional que “continu- anúncios eram direcionados a alguns tipos ava fazendo produção de figuração”. Mesmo físicos, de acordo com o pedido da TV após algumas insistentes ligações, não con- Globo. Hoje em dia, não há mais essa neces- segui marcar a entrevista. Mais dois outros sidade, pois figuração já virou uma profis- contatos foram feitos ainda sem sucesso. são e muitas pessoas procuram as agências Finalmente, consegui através de uma querendo cadastrar-se. Há uma ficha a ser colega de trabalho o contato da proprietária preenchida e uma taxa inicial de apenas dez da Agência Pool de Comunicações. Inicial- reais. mente por e-mail e posteriormente por tele- É um processo longo, porque hoje fone, marcamos a entrevista. é tranqüilo, mas no início o quê A entrevistada foi funcionária da TV que você tinha que fazer? Bo- Globo por alguns anos como produtora de tar anúncio no jornal, pedindo figuração e percebeu que aquele mercado era pessoas pra virem até a agên- promissor, devido aos crescentes investimen- cia, fazer inscrição, trazer mate- tos da Globo em produções audiovisuais e o rial, ou seja, e daí de acordo com consequente aumento da demanda por figu- os pedidos na Globo, dos assis- rantes. Em 1993, pediu demissão e com um tentes de direção. Eles querem sócio montou sua primeira agência. Hoje figurantes preto, branco, amarelo, é dona da Agência Pool de Comunicações enfim, vários tipos. (Maria da que mantém um contrato com a TV Globo Paz, dona da agência de figuração, fornecendo figurantes para suas principais anexo 2.1)6 produções. A Pool Comunicações também fornece elenco, mas o seu forte é figuração. O trabalho passou a ser uma prestação de No momento, está produzindo para as nove- serviço à TV Globo e acontece da seguinte las “Caminhos das Índias”, “Caras e Bocas” 6 A entrevista pode ser consultada na íntegra no anexo 2.1. www.bocc.ubi.pt 20 Maria Cecília Bello Moutinho

forma: ainda na pré-produção da novela, o efetivamente “pessoas” dentro das novelas – assistente de direção faz o pedido de fig- muitos acreditam, que mesmo como elemen- urantes e a agência manda uma lista para tos do contexto, é possível diferenciar-se do ele escolher. Depois de aprovados, os figu- restante da massa anônima. rantes relacionados são mandados para o set No caso do Brasil, tudo indica de gravação. Depois que a novela começa que a expressão permite passar de a ser gravada, a agência já sabe o perfil dos um estado ao outro: do anoni- figurantes para cada núcleo de personagens e mato (que indica a igualdade e desta forma, o trabalho fica mais fácil. o individualismo) a uma posição Teoricamente, os figurantes precisam ter bem definida e conhecida (que in- registros de trabalho expedido pelo Sindi- dica a hierarquia e a pessoaliza- cato dos Artistas. Há uma diferenciação ção); de uma situação ambígua entre figurantes e atores, pois os figurantes e, em princípio, igualitária a uma não podem ter fala. Se eles falarem, pas- situação hierarquizada, onde uma sam a elenco de apoio e consequentemente o pessoa deve ter precedência so- cachê aumenta. O cachê, segundo Paz, pode bre a outra. Em outras palavras, variar de R$ 40,00 a R$ 300,00, depende o “Você sabe com quem está fa- do destaque na cena que eles possam vir a lando?” permite estabelecer a pes- ter. Às vezes, o figurante pode tornar-se fixo soa onde antes só havia um indiví- numa produção, como por exemplo, um mo- duo. (DA MATTA: 1983; 170) torista ou um porteiro. Ele será o motorista de algum personagem, não falará, mas será Podemos pensar nos figurantes e seu lu- sempre ele. Isso implicará em ele não gravar gar nesta sociedade – onde se valoriza o in- mais nenhuma outra produção da Globo em divíduo de acordo com as possibilidades de que ele possa aparecer na linha de frente. Só visibilidade que ele tem – a partir da lógica se for apenas como mais um, fazendo vol- das celebridades. Enquanto as celebridades ume. Ela também conta que dependendo da são a exacerbação da individualidade, onde produção, é criado um grupo fixo de figu- através do sucesso é possível tornar-se pes- ração. A novela “Caminhos das Índias” que soas; os figurantes são a minimização da in- tem núcleos que retratam a cultura indiana e dividualidade, pois num contexto de alta vis- que se passam na Índia é um caso destes. Os ibilidade como as telenovelas, fazem parte figurantes dos núcleos indianos passaram por apenas do pano de fundo para o aconteci- workshops na fase de pré-produção da nov- mento da ação principal. Desta forma, pode- ela para poderem “atuar” melhor nas cenas mos chamar de “o invisível na visibilidade”. que são ambientadas na Índia. Pensando a partir de Erving Goffman Para muitos desses figurantes, os meios (1983) podemos ainda localizar uma outra de comunicação representam a possibilidade região de representação. Os figurantes at- de ser legitimado como ícones sociais. Es- uam num local que podemos denominar de tar na mídia é como poder dizer “Você sabe “cenário” ou “pano de fundo” das cenas. com quem está falando?”. Mesmo no caso Não podemos chamar esta região de “basti- dos figurantes – que não conseguem se tornar dores”, pois os indivíduos que se encontram

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nos bastidores não aparecem. Os bastidores Um bom figurante é aquele que não olha são os locais de atuação de toda a equipe téc- para a câmera, não tem atitudes forçadas, nica – a camareira, o cenógrafo, o produtor e isto é, passa imperceptível pela cena. Não até mesmo o diretor. Embora não apareçam deve haver interlocução com a lente da em cena, estes profissionais são creditados e câmera. Eles são quase como uma peça aparecem nas fichas técnicas das obras. Já do cenário. Para ser figurante é preciso os figurantes atuam junto ao cenário, am- saber atuar a invisibilidade desejada para bientando humanamente os acontecimentos, esta função. Podemos pensar os figurantes como um “pano de fundo” para a cena. Em- como integrando o setor da direção de arte bora apareçam, não são citados nas fichas da novela, pois eles junto com o cenário e técnicas. Já a “fachada” seria o lugar onde com os objetos de cena farão que aquela os fatos relevantes acontecem. É no “pano ação principal, encenada pelos atores, pareça de fundo” que os membros menos capazes, cada vez mais real. E para isso, quanto ou neste contexto das telenovelas, os menos menos atenção for chamada, mais natural a importantes para aquela trama, localizam-se. cena ficará. A agência precisa garantir que Assim, o olhar do público está voltado para o o trabalho de toda uma equipe de produção centro principal da encenação, a “fachada”, e não será colocado em risco devido a atitudes o “cenário” muitas vezes não é sequer perce- dos figurantes, como olhar para a câmera bido. querendo ser reconhecido.

Foram consideradas duas espécies E a briga lá, ás vezes, o dire- de regiões limitadas: as regiões tor, quando eles ficam olhando de fachada, onde uma dada ence- pra câmera. Aí, o diretor, o nação está ou pode estar em curso, Jorge Fernando que é engraçado: e as regiões de fundo, onde se “ô figurante, quantos anos você passa uma ação relacionada com é figurante?”, aí ele fala... “e a representação, mas incompatível por que você está olhando pra com a aparência alimentada por câmera? Você não precisa olhar, ela. (GOFFMAN:1983; 126) não é bicho, não vai lhe comer...” As produções de telenovelas, filmes e Porque aí não fica a coisa natu- seriados são classificadas como de melhor ral, sabe? Mas, eles hoje têm qualidade quando a platéia não nota o que um pouco de cuidado, têm uns acontece no cenário. Os erros de con- que não têm jeito, aquele que tinuidade, sombras ou falhas gritantes deslo- eu chamo indisciplinado... Eles cam a atenção do público da trama princi- têm um pouco de cuidado que pal e desacreditam aquele produto. É pre- eles sabem que se queimam, ficar ciso muito cuidado com tudo o que ocorre na muito na frente, eles mesmo falam: região da fachada, do pano de fundo e basti- “olha eu apareci muito naquela dores, por isso os atores, figurantes e equipe cena...sabe eu não posso ficar na vivem atentos aos momentos da necessidade frente...” Porque eles têm tudo, é de encenação. uma profissão e eles têm uma boa www.bocc.ubi.pt 22 Maria Cecília Bello Moutinho

relação com os assistentes de di- A principal motivação desta pesquisa foi reção, sabem os nomes de todos e acreditar que os figurantes tivessem como gravam. (Maria da Paz, dona da objetivo alcançar a visibilidade e ainda, a agência de figuração, anexo 2.1) fama. Que a finalidade de quase que diari- amente, centenas de pessoas se colocarem à O assistente de direção é o responsável disposição da TV Globo, às vezes por mais pela marcação dos figurantes em cena. Junto de 12 horas seguidas, teria que ser o alcance com o fiscal, funcionáro da agência de figu- da fama. Após a entrevista com Maria da Paz ração, os dirige durante a gravação e percebe e conversas com pessoas que já haviam feito os que querem sempre aparecer na frente. figuração, ficou evidente que muitas das pes- Muitas vezes, esses são excluídos no dia soas que se cadastram nas agências, procu- seguinte. Pois, um mesmo indivíduo não ram principalmente uma fonte de renda. Para pode aparecer na frente em todas as cenas, muitos desempregados, a figuração é uma fica irreal para a dramaticidade da novela. atividade rentável e que não requer nen- Existe até um “código de ética” entre eles: huma formação em especial nem experiência os que apareceram muito num dia tentam prévia. Ao invés de trabalharem no comér- se esconder no outro. Assim, sabem que cio ou em outras áreas da economia, muitos serão sempre chamados para gravar. Estas preferem ser figurantes. Paz diz que tem regras, muitas vezes impostas pela agência o cuidado de tentar oferecer trabalho a to- de figuração, produtores, assistentes de di- dos, já que estes se predispuseram a fazer reção e pelos próprios figurantes, nada mais parte do banco de dados de sua agência. são que artifícios para manter o controle Outro grupo que também faz figuração reg- dos problemas que surjam nos bastidores, ularmente são os idosos. Aposentados em assim como em qualquer instituição social. casa, sem nenhuma distração ou função so- (GOFFMAN, 1983) cial, eles cadastram-se nas agências para, (...) Tem uma senhora que um dia além de movimentarem o corpo e a mente, eu fiquei até com pena. Ela chegou ganharem um dinheiro extra. Em todas as aí e começou a reclamar que não situações, a fonte de renda é sempre dita a colocavam pra gravar e eu ol- como fator importante para os participantes. hei e falei “ela é o tipo de Camin- Mesmo assim, o fator da visibilidade é hos, por que não colocam?”, aí eu muitas vezes apontado como uma das mo- depois falei: “Carlos, porque que tivações. Muitos enxergam na figuração uma essa senhora” – Carlos é um (...) possibilidade de início de carreira e, estar recepcionista – “Por que que ela próximo do staff da TV Globo, uma opor- não grava?”. Aí ele “ah, vou falar tunidade de ser descoberto. Maria da Paz com o Ravier”. “Ravier porque...”, afirma que os figurantes que geralmente al- “Ih, Dona Fátima, ninguém quer cançam a fama já chegam na agência com a saber dela, ela é uma chata de- formação de ator. Outras vezes, os figurantes mais, ela se mete em tudo...”. Aí passam a integrar a equipe da agência, como se queima. (Maria da Paz, dona da fiscal ou produtor e até mesmo à equipe da agência de figuração, anexo 2.1) TV Globo. Ela diz que quando vê que o fig-

www.bocc.ubi.pt Figurantes – a invisibilidade em cena 23 urante tem potencial, incentiva a entregar seu sangue. A lógica do sucesso é um modo material para os diretores. de conciliar a diferenciação concreta en- tre iguais, diferenciar sem hierarquizar, pois Eu tenho um que começou fazendo como sabemos o sucesso não é transmissível figuração, depois passou a fiscal, ou transferível socialmente. Embora, hoje depois passou a produtor, depois em dia, ser filho de algum VIP, mesmo nas passou a assistente de direção e sociedades igualitárias como a americana, já hoje é diretor da Globo... também seja garantia da atração da mídia e uma facil- tem isso (...) O André Toscano foi itação em transformar-se posteriormente em um, o Adriano Melo foi outro. O uma celebridade. Adriano não tinha nada a ver com Como membros do círculo do sucesso, os esse meio, trabalhava em outra VIPs (very important person) podem dispen- coisa e foi fazer figuração, foi tra- sar filas de espera e possuem a regalia de re- balhar...A gente viu que ele era conhecimento num mundo de rostos anôn- realmente muito competente, aí ele imos. O sucesso os faz deixar o universo foi trabalhar como produtor, fiscal de indivíduos e viver no mundo das pessoas. e logo em seguida, a gente con- Em sistemas individualistas e igualitários, seguiu uma brecha na Globo e pas- como a sociedade americana, as celebridades sou a ser assistente de direção e passam a operar valores de relações pessoais, hoje ele é diretor. E tem outros, diferentemente dos indivíduos anônimos e né? O André Toscano também é a comuns que têm seus valores operados pelas mesma coisa e...ator tem um bando leis e regulamentos. (DA MATTA, 1983) de...mas eles já eram, já tinham a Para muitas dessas pessoas, estar diaria- profissão, foram fazer a figuração mente circulando na maior empresa de tele- assim sabe... não é que ficaram visão do país e se reconhecer como fazendo bastante tempo fazendo figuração, parte dos seus produtos é uma garantia de foram fazer a figuração pra esse status social. Tanto é que muitos figurantes propósito, de entrar e entregar o fazem questão de ir até os monitores quando material. (Maria da Paz, dona da acabam as gravações para ver como apare- agência de figuração, anexo 2.1) cerão, e também avisam a seus parentes e amigos próximos quando e como aparecerão Segundo Roberto da Matta (1983), a ide- nas novelas ou seriados. Há também o de- ologia do sucesso deixa transparecer os val- sejo de muitos pais que seus filhos façam ores das sociedades individualistas e prag- parte desta engenhosa máquina de ilusões e máticas, pois legitima o pessoalismo em for- sendo assim, os levam até as agências para mações igualitárias. O sucesso junto com que sejam selecionados como figurantes ou as categorias de glamour, charme e apelo elenco. Até bebês são cadastrados, demon- sexual, parece exprimir a idéia de diferen- strando que a vontade de aparecer é dos pais ciação entre indivíduos inicialmente iguais. e não de “crianças prodígios”. O sucesso é algo que se faz ou se tem, não A produtora conta que é comum os fig- é uma coisa que se recebe, como nome ou urantes levarem fotos “produzidas” para a www.bocc.ubi.pt 24 Maria Cecília Bello Moutinho agência, mas ela não as cadastra no banco de Não, só foto. Se você manda fazer, dados. Pois, para estar cadastrado como fig- eles fazem e você chega aqui e olha urante o ideal é estar ao natural, pois é assim pra pessoa e pra foto e não tem que eles irão aparecer, como pessoas nor- nada a ver. Então a gente pref- mais. Porém para os figurantes, levar suas ere tirar a foto aqui, com a digital. melhores fotos é uma tentativa de contro- As pessoas dizem que estão feias, lar a impressão que a agência e a produção na hora, mas bonitas elas vão ficar da novela terá deles. (GOFFMAN, 1983) depois com os figurinos. Eles te É como se fosse uma declaração daquilo colocam belo. Pra gente é mais fá- que eles podem ser transformados na hora cil quando a pessoa está no natu- da encenação, mesmo que “ao natural” se- ral. (...) Aí complica, porque o as- jam diferentes. Eles apenas esquecem, que sistente de direção diz pra mandar como figurantes, muitas vezes atuarão como foto pra escolher e a gente manda peças do cenário, sem a necessidade de uma pelo e-mail. E aí ele vai apontando “glamourização” dada apenas aos person- o que ele quer, quando chega lá agens principais. no dia seguinte não é nada daquilo. (Maria da Paz, dona da agência de Os empregadores completam a figuração, anexo 2.1) harmonia contratando pessoas com atributos visuais pouco atraentes Para Paz, um bom figurante é o disci- para o trabalho na região do fundo plinado, o quê para ela significa não faltar as e colocando pessoas que “dão boa gravações e não deixar a agência dar “furos” impressão” nas regiões da fachada. com os clientes, neste caso a TV Globo. Pois Podem ser usadas reservas de tra- como os figurantes não têm vínculo empre- balho que não impressionam bem gatício com as agências – eles recebem cachê não somente numa atividade que por diária de gravação – muitos deles faltam deve ser oculta do público, mas as gravações sem avisar. Assim, as agências também na que pode ser escon- precisam produzir na hora mais figurantes. dida, mas não precisa ser. (GOFF- MAN:1983; 117) Disciplinado. Ele não precisa ser bonito, não precisa ser belo, tem Embora atuando sem visibilidade, os figu- que ter respeito, tem que ter re- rantes passam pelo setor da maquiagem, ca- sponsabilidade, porque... “ah eu beleireiro e figurino, para entrarem dentro do vou...e não aparece. Ah, eu hoje perfil daquele núcleo de personagens. Ape- preciso sair cedo”. Você tem uma nas quando se tratam de gravações mais sim- continuidade, você não pode as- ples, como numa praça ou rua, pode ser que sumir compromisso com ninguém, eles não sejam encaminhados para estes de- no dia seguinte “Ah, eu não vou partamentos. Todas as cenas são ensaiadas porque pintou um outro trabalho diversas vezes, com seus atores principais e que eu vou ganhar mais e eu não figuração. vou”. Então esse figurante não

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serve para trabalhar com a gente mento diferenciado. O indivíduo, ao con- e nem com a Globo. Porque ele trário, é o sujeito da lei, foco abstrato para assumiu um compromisso, enten- quem as regras e a repressão foram feitos”. deu? Apesar que é cachê, mas (DA MATTA:1983; 169) ele assumiu, sabe? (Maria da Paz, dona da agência de figuração, Pode-se agora parodiar o célebre anexo 2.1) ditado brasileiro já mencionado, dizendo “aos mal-nascidos, a lei, Mesmo que conscientemente muitos aos amigos, tudo!”; ou, “aos indi- desses figurantes tenham como objetivo víduos, a lei; às pessoas, tudo!”(E)ˇ ganhar dinheiro, a visibilidade adquirida por Os medalhões, as pessoas, não eles agrega um valor muito maior àquela foram feitas para essas leis que ação, já que o cachê não é muito representa- igualam e tornam os indivíduos tivo. Desta forma, a oportunidade de ganhar meros recipientes, sem história, re- dinheiro e estar circulando por um local lações pessoais ou biografia. (E)ˇ repleto de câmeras e cheio de celebridades Sim, porque para nós depender de preenche inconscientemente o desejo de um órgão impessoal (seja particu- singularidade desses indivíduos fadados até lar ou de Estado) é revelar que não outrora a permanecer na massa anônima da se pertence a nenhum segmento. coletividade. Estar do outro lado do vidro É mostrar que não se tem família garante uma possibilidade de pessoalização ou padrinho: alguém que nos “dá importante. a mão” ou pode “interceder por Na sociedade brasileira, é perceptível o nós”. (DA MATTA: 1983; 183) quanto que as relações pessoais permeiam o núcleo de moralidade e como têm um Quando o sucesso é alcançado por al- enorme peso no sistema social em que vive- guém, essas relações sociais se transformam mos, sempre ocupando o espaço onde as leis em relações de poder, pois como já foi dito, do Estado e a economia não penetram. Se estar na mídia garante destaque diante dos um cidadão não tem um bom relacionamento demais. Se relacionar com quem é VIP social, a ele restará as leis do Estado, como garantirá a possibilidade de diferenciação so- um indivíduo comum. E ser um indivíduo cial, do mesmo modo que se relacionar com comum, é o mesmo do que ser ninguém. No juízes, políticos, ricos e afins. Numa so- Brasil, há um domínio da pessoa e das re- ciedade como a brasileira, onde as relações lações pessoais perante os sistemas que dev- sociais substituem a ordem pragmática de eriam garantir a igualdade entre os cidadãos. igualdade dos cidadãos, o “Você sabe com Somos muito mais dominados pelos papéis quem está falando?” parece fundamental que desempenhamos do que por uma identi- para o estabelecimento da ordem e hierar- dade que nos envia às leis gerais que temos quia. E a mídia possui o status de transfor- que obedecer, característica dominante da mar um indivíduo em pessoa e garantir sua identidade de cidadão. (DA MATTA, 1983) entrada no mundo hierarquizado de relações “A pessoa merece a solidariedade e um trata- sociais. www.bocc.ubi.pt 26 Maria Cecília Bello Moutinho

Ser transformado em VIP ou “medalhão” fizeram ou fazem figuração e transitam por seja num âmbito midiático ou ainda num contextos de visibilidade. Jonatas Oliveira, âmbito local, dentro das relações em sua 28 anos, começou como figurante e logo comunidade, garante mais do que transfor- se tornou funcionário da agência de figu- mar aquele indivíduo em pessoa, mas fazer ração. Estudante de Comunicação, Jonatas escapá-lo do anonimato. Pois, se sou ape- começou a fazer figuração interessado na re- nas mais um indivíduo dentro de uma massa muneração. Como era um trabalho que lhe anônima, não sou ninguém. Ser anônimo, dava mais liberdade de horário e não exi- especialmente em sociedades pessoalizadas gia vínculo, Jonatas achou que seria uma boa como a brasileira, é visto como um castigo. maneira de conseguir um dinheiro extra. Na Para muitos figurantes, circular mesmo que medida em que foi desempenhando papéis, apenas no pano de fundo, de uma realidade foi ganhando destaque e foi contratado como de extrema visibilidade com a TV Globo, fiscal de figuração. Exerce esta função há poderá garantir alguma espécie de singular- cinco anos. Com isso, precisou trancar a fac- ização. Dentro da lógica pessoalizada da uldade e ainda não concluiu sua graduação. nossa sociedade, para muitos cidadãos é mel- Eric Carvalho, 48 anos, é figurante há tan- hor estar próximo de pessoas importantes e tos anos que já perdeu a conta. Fez o curso famosas do que estar relegado a permanecer de teatro no Tablado em 1979. Até 2007, tra- anônimo e sem nenhuma espécie de relações balhava como figurante e ainda tinha como sociais. expectativa conseguir um papel como ator. Admite que é difícil, mas conta com o apoio de sua família para não desistir do seu sonho. 3 Celebridade ou anonimato na A entrevista de Eric foi feita em 2007, as- sim que nasceu a idéia de fazer este trabalho visibilidade? monográfico. Lourdes de Campos, 54 anos, é figurante Neste capítulo, a partir das entrevistas com há quatro anos. Ex-comissária de bordo da os figurantes apresento o modo como este VASP começou a fazer figuração ao ficar de- grupo percebe a sua própria realidade no que sempregada. Seu marido, Ricardo, que es- se refere ao espaço midiático, o que almejam teve presente durante a entrevista, também e como estão inseridos na mídia. Procuro atua como figurante, assim como seu filho e apresentar também sua relação com a mídia a namorada dele. Para a família, a figuração influenciou a escolha das suas trajetórias e é uma fonte de renda. Eles não almejam se projetos. A partir da observação da presença tornarem conhecidos nem famosos. dos figurantes na novela “Caminho das Ín- Ângela Pataro, 59 anos, iniciou sua car- dias”, procuro discutir em que contextos os reira artística há dez anos, como figurante. figurantes são vistos e se esses contextos po- Há sete obteve o registro de atriz e, atual- dem influir no julgamento que o público faz mente, faz pequenos papéis em novelas, cin- sobre este papel. ema e comerciais de TV. É advogada e dona Foram entrevistadas quatro pessoas que já de um trailer na praça de alimentação de uma universidade pública carioca. Conta que

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concilia as atividade de advogada, atuando iniciou a carreira artística levado por sua em pequenos processos e, comerciante e mãe que era professora de teatro, mesmo atriz. Além disso, canta música lírica e declarando-se ator, não conseguiu se desven- faz shows performáticos como Carmem Mi- cilhar do trabalho de figurante. No entanto, randa. embora faça figuração há muitos anos, acred- Em relação aos motivos que levaram ita que sua oportunidade ainda há de chegar. os entrevistados a iniciarem suas atuações Para ele, ser figurante já é ter uma carreira como figurantes, podemos dividir o grupo artística. apresentado em duas categorias: os que almejavam a carreira artística e aqueles que Eu “tava” pensando nisso hoje, procuravam principalmente uma fonte de sempre existe a possibilidade de renda. Para os que almejavam uma carreira você achar que vai dar certo, artística, a atividade de figuração é consider- porque você está ali no meio, está ada quase que como um começo obrigatório. ali na gravação, você está ou- vindo o diretor falar “gravando” ou Porque não tem outra “cue”, “close”, “fecha nele”, “abre opção...começar como figurante, a luz”, “fecha a luz”, “olha o con- pegando pontinha e se sujeitando tra plano”. Você vai ouvindo, você a várias coisas. A várias críticas, vai se adaptando, você vai criando porque muito diretores, eles não intimidade com o meio, é como um são acessíveis e, às vezes, os jogador que fica no banco de reser- erros são dos próprios atores e vas, ele “tá” doido para entrar em atrizes, mas o figurante é que campo então quando ele entra, ele leva a culpa. Então a gente tem arrebenta. (E)ˇ É praticamente im- que engolir porque é isso que eu possível, mas é uma cachaça, você quero e vamos bola pra frente, né? começa a gravar, você tem outra (Ângela Pataro, atriz, anexo 2.5)7 gravação, outra gravação, aí te ligam para um comercial, para um Nem sempre, entretanto, o resultado es- cinema, quer dizer, você não quer perado é alcançado. Ângela Pataro iniciou largar aquilo. Porque você está no seu trabalho de figuração com o objetivo de teu meio, é onde você nasceu, é o seguir a carreira artística. Fez um curso que você quer e você tem um obje- de teatro e conseguiu o registro de atriz no tivo, lógico é muito difícil porque sindicato dos artistas. É esse registro que existe apadrinhamentos...(E)ˇ En- garante ao profissional a possibilidade de tão tem que estar sempre gravando fazer parte do elenco. Hoje, ela afirma não para sempre receber, eu graças a fazer mais figuração ter conseguido alguns Deus tenho uma certa estrutura da pequenos papéis no elenco de novelas, filmes minha família que pode me dar e comerciais de TV. Já Eric Carvalho, que essa possibilidade de eu sonhar em 7 A entrevista pode ser consultada na íntegra no um dia ser ator, ficar na figuração, anexo 2.5. no meu meio, que é o meu mundo, www.bocc.ubi.pt 28 Maria Cecília Bello Moutinho

é o meu universo. (Eric Carvalho, ter um plano B, caso eu não con- figurante, anexo 2.3)8 siga ser ator, eu vou ser outra coisa. (Jonatas Oliveira, fiscal de figu- O registro de ator deveria ser obrigatório ração, anexo 2.2)9 para o exercício da função, porém, quando as grandes emissoras querem que alguma Jonatas também começou como figurante. celebridade ou modelo estrele suas novelas Como era estudante e precisou trancar a fac- consegue-se um registro provisório. Esta é uldade, procurou uma maneira de ganhar uma das principais reclamações da classe. dinheiro que o possibilitasse voltar a estudar. Os apadrinhados têm a vantagem de con- Segundo conta, como demonstrou profis- seguir um registro provisório e burlar a lei sionalismo e interesse foi contrato como fis- que regulamenta a profissão. cal de figuração. O fiscal é a pessoa respon- Muitas vezes, o ator que não consegue sável pela participação da figuração no set. parar de fazer figuração sofre preconceito e É ele quem entra com os figurantes nas de- tem sua carreira prejudicada. Porém, o fiscal pendências da emissora de televisão ou os de figuração, Jonatas Oliveira acredita que acompanha nas gravações externas, os leva fazer figuração não prejudica a possibilidade para os setores de maquiagem e figurino, en- de se tornar ator ou atriz. Para ele, estar fim, é quem acompanha a figuração em to- em contato com atores e atrizes consagrados das as fases. Durante as gravações, Jonatas deve fazer parte do aprendizado do figurante. marca a posição dos figurantes na cena e seu bom desempenho garante que a agência para Mas o que acontece...figuração qual trabalha esteja entre as preferidas de para ser ator é meio mal visto. muitos assistentes de direção. Muitas pessoas veem um ator fazendo figuração, veem como A princípio o trabalho do fiscal é queimação. Eu já não vejo por só esse, é só pegar a figuração, é esse lado. Eu vejo queimação a entrar com a figuração, caracteri- partir do momento em que o figu- zar e apresentar para o assistente rante se acomoda. Quando, em que de direção. Isso na teoria, mas na curso de teatro você vai ter a opor- prática, o fiscal é o braço direito do tunidade de ver um Tony Ramos assistente de direção. (E)ˇ Ele com- atuando? Uma Elizabeth Savalla partilha com o fiscal essa função atuando, um Tarcísio Meira at- de que cada figurante tem que fazer uando? Não tem como, então se no set. (E)ˇ Começou com alguém o figurante souber filtrar, souber querendo mostrar serviço e acabou aproveitar a chance que tem, eu se tornando meio que uma obri- acho que é muito válido, mas eu gação assim, mas o que acontece? acho que todo figurante tem que Pra agência é bom. Pra agência é bom ter um fiscal que se destaque. 8 A entrevista pode ser consultada na íntegra no anexo 2.3. 9 A entrevista pode ser consultada na íntegra no anexo 2.2.

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O assistente de direção determina ada à faculdade de comunicação. Ao tornar- com que agência ele quer trabal- se figurante, percebeu que, mesmo não alme- har. O assistente de direção ele jando uma carreira de ator, existiam opor- olha, ele não vê muito a agência, tunidades que lhe agradavam naquele ambi- o bem da verdade é essa, ele vê ente. Destacando-se como figurante, foi con- o fiscal e o produtor. (E)ˇ Porque vidado a trabalhar na agência de elenco. uma novela não tem só um assis- tente de direção, tem vários. E As trajetórias dos indivíduos gan- de uns tempos pra cá vários assis- ham consistência a partir do delin- tentes gostam de trabalhar comigo, eamento mais ou menos elaborado é uma unanimidade. A grande de projetos com objetivos especí- maioria dos assistentes de direção, ficos. A viabilidade de suas real- eles, graças à Deus, gostam de tra- izações vai depender do jogo e in- balhar comigo e, às vezes, entre teração com outros projetos indi- eles até...“não, amanhã o Jonatas viduais ou coletivos, da natureza e vai trabalhar comigo”, “não, não, da dinâmica do campo de possibil- não ele vai trabalhar comigo”, aí idades. (VELHO: 2004; 47) olham pro plano de gravação e Hoje, Jonatas almeja um cargo de assis- veem o que é mais difícil e en- tente de direção na TV Globo e sabe que o tram num acordo... (E)ˇ Então você caminho a ser seguido já foi traçado por out- acaba tendo uma liberdade maior ros fiscais de figuração como ele. no set de gravação por ele já con- hecer o seu trabalho. Você acaba Eu pretendo voltar a estudar pra tendo uma intimidade maior e é até estar conseguindo uma coisa mel- engraçado, porque as pessoas que hor dentro da Rede Globo, porque não te conhecem, olham e falam como eu trabalho para uma agên- assim: “Como é que pode um fis- cia, acabo sendo terceirizado, mas cal ter essa intimidade com o di- ou na parte de produção ou um retor”? Porque tem muito isso, a objetivo maior na parte de assis- hierarquia dentro da Rede Globo e tente de direção. (E)ˇ Foram três o fiscal, apesar da responsabilidade assistentes de direção e por coin- toda que ele tem, ele só está acima cidência um deles, o Adriano Melo do figurante. (Jonatas Oliveira, fis- era fiscal, que foram os meus pro- cal de figuração, anexo 2.2) fessores quando eram assistentes. (Jonatas Oliveira, fiscal de figu- Podemos analisar sua trajetória como um ração, anexo 2.2) exemplo de adequação dentro de um campo de possibilidades existentes. Depois de parar Assim como Jonatas, Ângela também de- de estudar devido a dificuldades financeiras, lineou um projeto para alcançar seu objetivo Jonatas buscou uma área de trabalho de seu de virar atriz. Mesmo administrando um pe- interesse e que de alguma forma, estava lig- queno comércio, de onde afirma tirar o seu www.bocc.ubi.pt 30 Maria Cecília Bello Moutinho

sustento, ela procura dar prioridade à car- e apoio para a realização da novela em todos reira de atriz e cantora, já que são essas as os momentos, até mesmo no momento das funções que garantem maior relevo para a refeições. sua identidade individual. Para ela, não tra- Agora não tem um sindicato, um balhar como atriz, mesmo que fazendo “pon- décimo terceiro, carteira assinada, tas” e pequenos papéis, é como se sentir in- fundo de garantia, férias, não tem completa. Por isso, há dez anos foi atrás de nada. Porque o figurante é prati- um sonho antigo, até então não priorizado: camente “quarteirizado”, as agên- tornar atriz. Neste sentindo, conseguiu ade- cias são terceirizadas e contratam quar seu projeto às condições de visibilidade figurante e o figurante não tem di- existentes, através de uma escolha estratég- reito a nada. Ontem, inclusive, ica entre diferentes alternativas. Assim, sua eu estava gravando, eu falei assim: trajetória se enquadra na articulação entre “será que eu posso sentar nessa projeto individual e contexto cultural apre- cadeira?”, aí um senhor, até falou, sentado por G. Velho: figurante também, disse: “melhor Os projetos individuais sempre in- não sentar não, já viu figurante teragem com outros dentro de um poder alguma coisa?” (E)ˇ primeiro campo de possibilidades. Não op- que o figurante está sempre de pé, eram num vácuo, mas sim a par- sempre na fila, fila do crachá, fila tir de premissas e paradigmas cul- pra assinar, fila pra pegar o docu- turais compartilhados por univer- mento, fila pra ir no banheiro, fila sos específicos. Por isso mesmo pra entrar no set, fila pra cabelo, são complexos e os indivíduos, fila pra maquiagem, é a fila para em princípio, podem ser porta- ver a roupa, ele é tocado que nem dores de projetos diferentes, até gado: “figuração pra cá, figuração contraditórios. Suas pertinência e na fila”. Chega na hora da alimen- relevância serão definidas contex- tação nem isso, toda a equipe, a tualmente. (VELHO: 2004; 46) iluminação, etc, almoça antes e o figurante fica pra depois (E)ˇ (Eric Todos os entrevistados declaram que a re- Carvalho, figurante, anexo 2.3) muneração como figurante é muito baixa, principalmente se consideradas as horas de É interessante contrapor as declarações da trabalho exigidas. A jornada de trabalho de dona da agência de figuração às dos figu- um figurante é de 12 horas, podendo ser ul- rantes. Maria da Paz declara que os figu- trapassada. Se ultrapassada, eles recebem rantes são tratados da mesma forma que to- hora extra. Apesar de receberem por diária, dos os outros atores dentro da emissora de são contratados como autônomos e descon- TV. É claro que como dona da agência e con- tam INSS. Outro ponto em comum entre os tratada da TV Globo, ela não poderia dar entrevistados é a reclamação em relação às declarações muito diferentes. Mas podemos condições de trabalho. Os figurantes são sep- perceber que ela no final de sua declaração arados do restante do elenco, equipe técnica valoriza a função de figurante.

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A maioria gosta de ser figurante. com a emissora. A solicitação foi encamin- Eles gostam. Virou profissão, hada, mas como a resposta demorou demasi- pronto. Eles gostam de ser fig- adamente, segui outros caminhos para con- urantes e brigam pra sentar na tatar alguns figurantes. Coincidentemente, frente, aparecer, no dia seguinte, Jonatas Oliveira, funcionário de sua agência ver as novelas, avisa para os ami- foi entrevistado, não tendo sido indicado por gos que apareceu “olha, eu vou ela. aparecer bem”. Porque depois As novelas são produzidas em larga es- eles vão lá e olham no monitor, cala, razão pela qual, muitas vezes, o seu eles têm acesso a tudo, porque lá modelo de produção é considerado indus- dentro eles são tratados, num set, trial. Assim, as agências preocupam-se em gravando, é igual, o tratamento é garantir que os figurantes não ocasionem igual, são atores né? Tem alguns nenhum transtorno nem prejudiquem o ritmo diretores que gostam muito, re- das gravações. Quando um figurante par- speitam muito. O Jorge Fernando, ticipa de uma gravação pela primeira vez, a por exemplo, ele tem um respeito agência precisa lhes explicar como agir. Há muito grande pelos figurantes e orientações específicas como, por exemplo, a eu gosto muito disso, porque sem de não assediarem os artistas pedindo autó- eles não tinha cena. (Maria da grafos e fotografias. Segundo Erving Goff- Paz, dona da agência de figuração, man (1993), estas são expressões de artifí- anexo 2.1) cios para controlar o cenário onde se pas- Eles dão a noção de que você não é sam representações, cuja responsabilidade é absolutamente nada! Tanto que eu da agência de elenco. Assim, “o controle te disse, tem diferença de refeição, do cenário pode dar à equipe controladora diferença de várias coisas lá den- um sentimento de segurança”. (GOFFMAN: tro. (Lourdes de Campos, figu- 1993; 91) rante, anexo 2.4)10 O que acontece, quando... nós tra- É importante observar que, válido infor- balhamos já com alguns figurantes mar que para dar continuidade a este projeto, que já estão lá há muito tempo, al- solicitei nomes e telefones de alguns figu- guns são atores e tem a mesma am- rantes a Maria da Paz. Ela disse que não bição de virar ator, entendeu? No poderia me dar e que eu deveria encamin- caso, quando o figurante entra pela har esta solicitação à TV Globo. Para ela, primeira vez, o fiscal tem a obri- seria melhor que eu fizesse as entrevistas no gação de fazer um briefing com set de gravação. Questionei se precisaria da ele. O que pode ser feito e o que autorização da TV Globo mesmo no caso não pode ser feito. Porque se o fig- dos figurantes não terem nenhum vínculo urante no meio de uma cena com emoção olhar pra câmera, o tra- 10 A entrevista pode ser consultada na íntegra no balho de uma equipe toda está em anexo 2.4. jogo. Então, o fiscal passa o brief- www.bocc.ubi.pt 32 Maria Cecília Bello Moutinho

ing do que deve fazer, algumas declaram que avisam a amigos e familiares palavras que são utilizadas no co- quando vão aparecer e que é muito gratifi- tidiano de um set pra que nada dê cante ser reconhecido por eles. Para eles é errado, mas mesmo assim a gente este o resultado almejado depois de passar sempre trabalha com uma margem por todas as dificuldades atuando como figu- de erro, às vezes dá uma coisa er- rantes. rada. (Jonatas Oliveira, fiscal de figuração, anexo 2.2) Eu corro atrás porque eu gosto disso. Eu adoro me ver na tela, Na verdade, a gente até recebe um adoro ser reconhecida na rua como papel da produtora dizendo pra não eu fui, vai fazer quatro anos agora falar com os artistas, pra não ficar em novembro quando eu fiz um assediando, não tirar fotografia. Eu comercial da Angélica sendo a nunca fui disso, de tirar fotografia. mãe dela (E)ˇ Então pra mim, Tem gente que tira, mas, na ver- quando eu fiz o teste e passei dade, ali, é... você não tem contato pro comercial para ser a mãe da com os artistas. Você vê um artista Angélica, aquilo foi uma vitrine, aqui e faz aquele comentário “ah, os fregueses: “era você no com- ela é magrinha, ah, ela é gordinha”, ercial ontem da Angélica, fazendo mas eu... eles também não têm o papel de mãe dela?” e eu disse muito contato. É um ou outro que “era” e muitos que não reconhece- conversa com a gente, que bate um ram a minha fisionomia porque papo. Têm outros que nem olham, é muita maquiagem (E)ˇ identi- que é assim, é uma coisa assim, ficaram pela voz. Poxa, não tem sabe? (Lourdes de Campos, figu- coisa mais feliz pra pessoa do que rante, anexo 2.4) isso. Você ser reconhecida na rua, O fascínio da visibilidade que a televisão no mercado, no ônibus. (Ângela exerce é um dos principais atrativos da ativi- Pataro, atriz, anexo 2.5) dade de figuração. Conseguir o sucesso na Mas se ele aparece, ele muitas carreira artística é muito difícil, então muitos vezes fica contente, fica feliz. Aí aspirantes a atores preferem estar próximo ele volta para falar para essas pes- das câmeras de tv através da figuração. Para soas. Pro senhorio que ele aluga eles, estar no mesmo ambiente das celebri- o quarto, pro cara da banca de dades já têm algum significado de proximi- jornal, pro cara da portaria: “eu dade com a fama. Desta forma, nutrem a es- apareci do lado do Casseta e Plan- perança de conseguirem um papel no elenco eta, do Bussunda! Que legal! ou uma “ponta” em alguma produção. Mas Vá me ver”, mas muitas vezes, percebemos que, mesmo assim, a visibili- chega na hora e ele não aparece, dade que adquirem com a figuração preenche porque está fora de foco. Colo- o desejo de aparecer nas telas de TV. Os caram o foco no ator principal. figurantes que desejam tornarem-se atores Ou então o editor cortou a cena,

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e ele fica sem saber. Ou então agem. Muitas pessoas falam pra é diferente, você está num barz- mim “ah, eu te conheço”, “ah, inho, fazendo uma gravação de mas de onde eu te conheço?”. Eu restaurante e de repente o câmera, brinco e falo “não sei, vai saber...”. que é um cara legal, que te con- Quer dizer, a pessoa já me viu, mas hece, ou então sem mais nem não sabe aonde. Porque de repente menos, é uma loteria, ele pega teu eu apareço na novela das seis, ali close! Você comendo, você ba- no Profeta, e de repente eu to lá tendo papo. Olha, a emoção é tão na TV Record, lá na Vida Oposta, grande, você fica tão feliz. (E)ˇ fazendo um médico; de repente eu É indescritível a emoção. Você tô na outra novela das oito fazendo chora. Você ganha um presente um advogado, fazendo um jornal- desses, um close. Então você não ista, fazendo um doente, fazendo pode dizer se vai aparecer ou se um mendigo, um policial. As pes- não vai. Muitas vezes, você pode soas já me viram, mas não sabem não aparecer. Muitas vezes você de onde. (Eric Carvalho, figurante, aparece mesmo, quando é um com- anexo 2.3) ercial, pras pessoas poderem ver o teu trabalho, do jeito que você está Lourdes cita um amigo da família que at- trabalhando. (Eric Carvalho, figu- uava como figurante apenas para se ver na rante, anexo 2.3) televisão. O tal amigo não precisava do din- heiro, mas gostava de aparecer na televisão Podemos perceber que há figurantes que já e fazia questão de avisar a todos por uma estão nesta função há muitos anos. Muitos questão de vaidade. deles preferem trabalhar na figuração, fi- cando expostos de alguma forma aos meios Tinha um amigo nosso que era en- de comunicação e adquirindo uma visibil- genheiro do metrô. Ele nem pre- idade restrita a permanecer no total anon- cisava fazer bico nem nada. E imato. Para muito deles, estar nos meios ele ia lá porque ele era vaidosís- de comunicação é a única forma de se sin- simo, então ele fazia questão... gularizar e adquirir um status diferenciado Ele apareceu em muitas cenas, en- dentro da sociedade. Como já apresentado tende? Ele tinha um jeito assim anteriormente, estar nos meios de comuni- meio de alemão. Até naquele.. não cação, especialmente numa sociedade como foi JK, foi num outro que teve... a brasileira, mesmo que circulando pelo que ele apareceu muito. E ele adorava podemos chamar de “cenário” é o mesmo aparecer. Todo mundo sabia que que perguntar: “Você sabe com quem está fa- ele queria aparecer mesmo. No lando?” e garantir um status social de prestí- caso eu, ele... nós nunca fizemos gio e diferenciação. questão de aparecer. A gente ia lá, Então não existe o nome. Eu não fazia “ah, é pra ficar aí parado...”. tenho o nome, mas eu tenho a im- E nós descobrimos, na verdade, www.bocc.ubi.pt 34 Maria Cecília Bello Moutinho

que a gente aparecia. (Lourdes de que eu divulguei “ah, vou aparecer Campos, figurante, anexo 2.4) e tal”. (Jonatas Oliveira, fiscal de figuração, anexo 2.2) Para a entrevistada, a vaidade está intima- mente ligada ao desejo de aparecer. Ângela Lourdes, inicialmente, ficou impression- Pataro, que já atua como figurante e atriz ada ao ser reconhecida nas ruas. Como ela só há dez anos, canta e faz performance como aparecia no fundo das cenas, jamais esperou Carmem Miranda, declara que adora se ver que conhecidos fossem reconhecê-la. Muitas na tela e se sente muito feliz em receber o vezes, o próprio figurante não consegue se aplauso do público. ver no vídeo pois, além das cenas passarem muito rápido, os figurantes aparecem fora de É ótimo, é emocionante, agora eu foco. O foco da câmera é obviamente feito nunca gosto. Eu me acho, Maria nos personagens principais. Cecília, horrorosa, eu sou muito crítica comigo mesmo. Demais, Porque a gente acha que a gente eu acho até que muitos aí falam não está sendo vista, quando a que eu não deveria ser assim: “ta gente está lá atrás, está sujando ótimo, foi ótimo teu papel”. (E)ˇ O a cena, como a gente fala, você aplauso é bom demais, mas você acha que ninguém vai reparar. Mas se ver na televisão e alguém ver eu e ele já entramos uma vez você depois, te parar, no mercado, no supermercado e uma colega é ótimo. (Ângela Pataro, atriz, minha, que foi de faculdade, que anexo 2.5) há muito tempo eu não via, ela entrou e disse: “ah, vocês estão Mesmo aqueles que não procuram a fig- fazendo ponta”. Eu achei até en- uração como um trampolim para a fama graçado, dizer “ponta”. “Vocês es- afirmam perceber uma certa visibilidade tão fazendo ponta na televisão. Eu adquirida com a atividade de figuração. Ape- vi vocês”. E outras pessoas tam- sar de ter dito que nunca avisou a ninguém bém, outros colegas também. Até sobre quando e como iria aparecer, Jonatas colegas da Vasp, me encontraram afirma que amigos o reconheciam nos pro- “quer dizer que você agora está na gramas de TV. televisão”. Eu, pelo menos, que nunca fiz questão de aparecer, que Quando eu fazia figuração tinha al- não tenho essa... “ah, que quero gumas cenas que eu aparecia, mas ser artista”, então eu achei que eu eu nunca fui de comentar com os nunca... até eu, meu marido, até outros que “ah, eu vou aparecer”. o Marcelo também, a gente achou Eram sempre as pessoas que viam, que nunca ia aparecer, mas as pes- ligavam e falavam: “ah, te vi no soas, algumas pessoas reconhecem Casseta & Planeta”, “te vi na nov- muito a gente. E a gente não tem ela tal”, mas nunca foi uma coisa essa noção. (E)ˇ A gente acha que

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é invisível, mas a gente não é in- mercados e eventos sociais contam sempre visível. E eu acho interessante com figuração. Isso se faz necessário, pois isso, porque eles lá dentro, pare- esses lugares são contextos de espaços públi- cem que acham que a gente tam- cos, cheios de indivíduos circulando. Neste bém é invisível. (Lourdes de Cam- tipo de cena, o que percebemos é um vari- pos, figurante, anexo 2.4) ado biótipo de indivíduos, já que estes lu- gares são universos de diversidade e anoni- De uma forma geral, as pessoas não obser- mato: os transeuntes, os vendedores de lojas, vam a figuração nas produções audiovisuais. os caixas de supermercado, os professores, O figurante tem a função e quase a obrigação os sócios do clube e os freqüentadores de de passar desapercebido. Quanto maior for bares e restaurantes. É preciso encaixar-se a importância da produção audiovisual, isto no perfil de rico, pobre, perua, empregados, é, quanto mais bem feita e com maior in- serviçais e etc. Porém, a escolha dos figu- vestimento, melhor será a qualidade da figu- rantes é feita de acordo com o aspecto sócio- ração e, consequentemente, mais difícil para econômico de cada um desses ambientes. o público em geral notar aqueles indivíduos Na novela “Caminhos das Índias”, no segundo plano das cenas. Porém, quando percebemos que alguns figurantes precis- avisados que seus conhecidos vão aparecer, aram encaixar-se no perfil “indiano” traçado amigos e parentes passam a observá-los e pela TV Globo. Esse grupo de figurantes deslocar seu foco de atenção do primeiro foi preparado por uma equipe e receberam plano para os ambientes e cenários. Na ver- noções de cultura indiana. Alguns figurantes dade, quando o figurante avisa que irá apare- tornaram-se fixos, para que houvesse maior cer na tela, procura dar detalhes da cena e verossimilhança nas ações do núcleo, que das ações que estão realizando. Desta forma, se passa na Índia. Outros núcleos que pre- fica mais fácil ser reconhecido. Para muitas cisaram de figurantes fixos foram a clínica pessoas, quem faz figuração quer de alguma psiquiátrica, o spa, a diretoria da empresa e forma seguir a carreira artística e muitos con- a escola. Nestes ambientes há a necessidade sideram que esta atividade é “fazer ponta em de contar com alguns figurantes que sejam novela”. os mesmos nas várias cenas. Em qualquer novela observamos que é Ricardo, marido de Lourdes, que foi figu- necessário um grande número de figurantes rante da novela América, encaixou-se no per- para dar verossimilhança às cenas. Os figu- fil “sambista / frequentador de mesa de bar” rantes representam sempre papéis pequenos, e foi chamado, durante toda a produção, para e por isso, muitas vezes, a função da fig- atuar como figurante no núcleo de Vila Is- uração tem um valor irrelevante no con- abel. texto geral. O telespectador comum muitas vezes não percebe que, sem os figurantes Quando nós gravamos a cena seria impossível. Na novela “Cam- América...América, engraçado, inho das Índias”, as cenas de caminhadas a gente aparecia... ele aparecia nas ruas, compras em shoppings, atividades muito. Que diziam até que ele em clubes e academias, restaurantes, super- tinha um perfil daqueles que www.bocc.ubi.pt 36 Maria Cecília Bello Moutinho

ficavam em Vila Isabel sentado, tico. As viabilidades destes projetos irão de- bebendo e... jogando. Uma coisa pender de como interagirão com outros pro- que ele nem faz nada disso! Mas o jetos individuais dentro de diferentes possi- produtor achou que ele tinha esse bilidades tidas por cada um deles. De acordo negócio, então ele aparecia muito. com a escolha de cada um deles em difer- (Lourdes de Campos, figurante, entes momentos é que se poderão analisar anexo 2.4) suas trajetórias futuras.

Os figurantes que não almejam uma car- É importante, no entanto, não só reira artística geralmente encaram a figu- estar atento para o sentido da tra- ração como uma atividade passageira, mas jetória, seu ritmo, direção e daí ex- não desmerecem a atividade. Lourdes e seu trair conseqüências, mas também marido Ricardo, hoje em dia, não fazem mais procurar perceber a própria tra- figuração. Como a remuneração é pouca e jetória enquanto expressão de um o local das gravações, o PROJAC, é muito projeto. Ou seja, a trajetória tem distante da casa deles, deixou de valer a um poder explicativo, mas deve ser pena. Os figurantes não recebem ajuda de dimensionada e relativizada com a custo para o deslocamento de ida e volta tentativa de perceber o que possi- das gravações. Para eles, a figuração foi bilitou essa trajetória particular e uma forma de conseguir dinheiro num mo- não outra. (VELHO: 2004; 106) mento de dificuldades financeiras, mas não descartam a possibilidade de voltar a trabal- O grande objetivo de Ângela é assinar har como figurantes. um contrato como atriz com algum canal de televisão. Para isso ela continua investindo Eu pretendo me aposentar, não em sua carreira artística, tem aulas de canto digo que eu não vá fazer figuração, lírico num coral, e continua fazendo pe- porque eu fiz amizades lá dentro, quenos papéis no elenco de filmes, nove- e realmente você vai e se distrai las e comerciais de TV. Contraditoriamente, muito, sabia? Você vê lá dentro quando perguntada se gostaria de ser famosa, pessoas de várias condições, pes- ela disse que não. Mas afirma que ser re- soas muito humildes, até assim, conhecida e trabalhar num set de gravação é a pessoas que têm uma condição bom. Já Eric continuava fazendo figuração muito boa. Que está aposentado, até 2007, pois acreditava que em algum mo- que vai lá assim... (E)ˇ Eu não diria mento pudesse “estourar” e mostrar do que que eu não continuaria fazendo. era capaz. Para ele a fama significava ter din- Mas não é uma coisa que eu quero heiro, sendo perceptível uma busca de ascen- fazer. (Lourdes de Campos, figu- são social e econômica como objetivo de seu rante, anexo 2.4) projeto em ser ator. Jonatas, como dito an- teriormente, almeja tornar-se funcionário da Eric, Ângela e Jonatas têm projetos com Globo e continuar a trabalhar nos bastidores objetivos específicos ligados ao meio artís- da televisão. Assim, como outros fiscais já

www.bocc.ubi.pt Figurantes – a invisibilidade em cena 37 conseguiram, deseja tornar-se assistente de Assim como a importância em ser visível direção e posteriormente, diretor. crescia, a mídia também precisava de mais ícones para estampar suas páginas e partici- par de seus programas de TV. Logo, não só 4 Conclusão célebres e famosos habitavam os meios de comunicação. Estes espaços foram abertos a celebridades instantâneas e a mais àqueles Cada vez mais, a visibilidade midiática que pudessem reivindicar seus “15 segundos ganha destaque dentro da sociedade contem- de fama”. A busca incessante pelo recon- porânea. Os indivíduos antes valorizados hecimento midiático passou a ser um movi- por suas comunidades locais, agora buscam mento comum na contemporaneidade, abrig- de alguma forma transitar nos meios de co- ando não mais somente aspirantes à carreira municação para que possam ter legitimados artística, mais uma sorte infinita de personal- seu prestígio e reconhecimento. Em toda idades. O que muitos indivíduos passaram a sociedade, o homem necessita do olhar do reivindicar não era necessariamente uma car- outro como forma de construir sua reputação reira artística, mas sim a legitimação de sua e garantir seu status, tendo desta forma, sido importância como sujeitos. conferido a si prestígio, honra, glória e mais A partir da análise do lugar dos figurantes recentemente a fama. Porém, ao passo do de- nas produções televisivas, esse trabalho bus- senvolvimento dos meios de comunicação, a cou entender como no lugar da visibilidade, mídia passou a ser o palco central das rep- também se encontram personagens que são resentações dos acontecimentos sociais. Há praticamente invisíveis. um certo consenso de que se algum aconteci- Procurou-se também perceber como a vis- mento é realmente importante, deve ser noti- ibilidade dos figurantes, apesar de restrita, ciado pela mídia. garante uma certa importância ou ainda um Desta forma, existe uma noção dissemi- sentimento de pertencimento a este meio de nada pela sociedade contemporânea que as comunicação de grande destaque social que pessoas realmente importantes circulariam é a televisão. pelos meios de comunicação, tendo seu valor Através de entrevistas com os profission- legitimado por eles. As qualidades de cada ais de agência de figuração e indivíduos um seriam mais valorizadas se fossem noti- que trabalham como figurantes foi possível ciadas pela mídia. Assim, atores, políti- chegar a alguns aspectos que caracterizam cos, esportistas e celebridades começaram a esse universo. contratar assessores de imprensa e relações- Os figurantes são vistos dentro do set públicas para divulgar seus atos ou “fab- muitas vezes de forma preconceituosa. Emb- ricarem” eventos que fossem plausíveis de ora, saibam que os figurantes são essenciais publicação. Muitos cidadãos, vendo-se rele- para tornar a novela verossímil, a produção gados ao anonimato, numa sociedade em que cria regras e empecilhos para que eles ten- se passou a valorizar a exposição pública, ham acesso aos atores e diretores. Os figu- também partiram para a busca de visibilidade rantes afirmam que poucos são os atores que e fama. se aproximam e são simpáticos com eles. www.bocc.ubi.pt 38 Maria Cecília Bello Moutinho

Embora, aparentemente ávidos pela vis- social à aparição. Em nenhum momento ibilidade midiática, muitas vezes os figu- ouviram-se declarações diminuindo a im- rantes não estão nesta função com esta fi- portância desta aparição por tratarem-se de nalidade. Através desta pesquisa foi pos- ações ocorridas no “pano de fundo” das ce- sível perceber que muitos figurantes, difer- nas. entemente do que antes se imaginava, não Todos os entrevistados, sem exceção, têm como objetivo alcançar a carreira artís- declararam que a figuração garante a eles tica ou tornar-se reconhecido através da tele- uma certa visibilidade social. Muitos de- visão. É claro que como esta pesquisa não les passaram a ser reconhecidos nas ruas, foi quantitativa, não é possível mensurar este porém sempre por pessoas do seu círculo so- fato através de números precisos. O que cial. Embora, aqueles que veem a figuração podemos afirmar é que grande parte dos in- como uma fonte de renda declararem não de- divíduos que faz figuração está em busca de sejarem tornarem-se famosos, nenhum deles uma ocupação e de uma fonte de renda. Mas disse desgostar desta, mesmo que pequena, é claro que para muitos deles, um convite visibilidade adquirida. Eles afirmam ser “en- para atuar como atores não seria recusado, graçado” e “curioso” ser reconhecido. A vis- visto a possibilidade de maiores ganhos. ibilidade dos figurantes é local, muitas vezes Outra parte dos figurantes, que almeja a restrita ao círculo social mais próximo. carreira de ator, vê esta função como a única Como todo trabalho acadêmico, as porta de entrada para os canais de televisão. proposições feitas aqui podem ser levadas a Para aqueles que não têm “padrinhos” no outros níveis. Os figurantes são somente um meio artístico, começar como figurantes é grupo dentre muitos outros que circulam por quase que obrigatório. Apenas uma pequena ambientes de alta visibilidade, mas que estão minoria consegue sair da função de figurante à margem da imagem veiculada pelos meios e tornar-se ator. de comunicação. Outros grupos podem A atividade de figuração cria ainda dois servir como objetos de estudo e ampliar diferentes grupos dentro das novelas: os fig- esta temática cada vez mais relevante para a urantes que se tornam fixos, pois se en- sociedade atual. caixam no perfil desejado e aqueles es- porádicos. Os que se tornam fixos podem participar durante toda a produção da novela, 5 Referências gravando praticamente todo dia. Assim como se acreditava no início deste trabalho, foi conseguido confirmar que a BENTES, Ivana. Guerrilha de sofá ou a possibilidade de aparecer na televisão é imagem é o novo capital. Disponível declarada pelos figurantes que almejam uma em www.bocc.ubi.pt/pag/bentes-ivana- carreira artística como uma coisa “muito televisão-guerrilha.pdf. Acessado em boa”, que causa extrema felicidade e grat- 17 de outubro de 2006. ificação. Ser reconhecido pelos outros é o ápice desta função, agregando um sen- CAESAR, Terry. Harold Pinter, Ed- timento de reconhecimento e importância ward Dorn, a celebridade e eu.

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