CARRY FIRE: UMESTUDODERECEPÇÃODASCRÍTICASMUSICAIS AODISCODE

Fábio Cruz & Arthur Freire Simões Pires

Universidade Federal de Pelotas

DOI: 10.25768/20.04.01.017

Índice Fire. Já consagrado, o artista carrega consigo números de vendas expressivos2 e atrai vários 1 Dos objetos e dos conceitos iniciais.1 fãs, que conquistou com o legado de seus tra- 2 Aspectos teóricos e metodológicos balhos anteriores e com sua carreira solo. da pesquisa...... 3 Nascido em West Bromwich, Inglaterra, o 3 Primeiros passos da discussão e vocalista tem uma grande bagagem de vida, descrição das resenhas...... 5 ascendendo para o mundo junto com sua an- 4 A crítica do veículo britânico....6 tiga banda (o ), mundialmente 5 A resenha do veículo brasileiro...6 conhecida e com números expressivos em 6 Análises e discussões gerais.....7 vendas de disco. Plant, ao lado de Considerações finais...... 9 (guitarrista), John Paul Jones (baixista e te- Referências Bibliográficas...... 9 cladista) e John Bonham (baterista, este fale- cido em 1980), teve sua união musical home- nageada e eternizada pelo Rock’N’Roll Hall 1 Dos objetos e dos conceitos iniciais of Fame3, em 1995, numa cerimônia que sa- M outubro de 2017, mais precisamente, cramentou o nome deles e da banda para toda E no décimo terceiro dia do mês, o icô- a história, fazendo parte do panteão de artistas nico cantor Robert Plant lançou seu décimo que estampa as dependências do local. primeiro trabalho de estúdio, intitulado Carry Após o fim do Led Zeppelin, com o fa-

impressionantes e não é necessário levar em consideração c 2020, Fábio Cruz & Arthur Freire Simões Pires. sua carreira solo para comprovar a expressividade com o c 2020, Universidade da Beira Interior. público e aclamação sobre seu trabalho para pontuar o su- O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer cesso de vendas que é. Disponível em www.forbes.com/s forma de reprodução, distribuição, comunicação pública ites/markbeech/2018/01/27/led-zeppelin-adds-to-300-mil ou transformação da totalidade ou de parte desta obra ca- lion-sales-with-live--50th-anniversary-surprises/#1 rece de expressa autorização do editor e do(s) seu(s) au- 16ea753ca59. Acessado em 10 out. 2018. tor(es). O artigo, bem como a autorização de publicação 3 das imagens, são da exclusiva responsabilidade do(s) au- Hall da Fama do Rock’N’Roll, localizado em Cleveland, tor(es). Ohio. Disponível em www.rockhall.com/inductees. Aces- sado em 5 jan. 2019. 2 Segundo a revista FORBES, somente o Led Zeppelin, vendeu mais de 300 milhões de cópias. Como Plant é um membro fundador e esteve do início ao fim na banda, os números são contabilizados em sua carreira. Os dados são Fábio Cruz & Arthur Freire Simões Pires lecimento de Bonham, Plant apostou em sua Guardian – e a outra do portal brasileiro Ome- carreira solo, que permanece até hoje. Desde lete (que, na época, era ligado ao site UOL, 2012, o músico inglês é acompanhado pela um dos mais acessados pelo público brasi- banda Sensational Space Shifters, com dois leiro). O site é conhecido por ser um dos prin- discos lançados nesta parceria, a saber: Lul- cipais canais de conteúdo da cultura pop da laby and the Ceaseless Roar, de 2014, e Carry internet brasileira – escolhido exatamente por Fire (que faz parte e dá nome ao nosso estudo). sua popularidade entre o público que consome O jornalismo tem como capacidade, apro- conteúdo do jornalismo cultural. ximar o público-consumidor de pautas e con- Os textos selecionados foram retirados de teúdos, conectando, então, o músico e sua portais virtuais5, que se enquadram na clas- obra com fãs que tem uma grande distância sificação de webjornalismo6. Neste sentido, física. Partindo da forma que divulga acon- segundo Cruz e Curi (2015), o webjornalismo tecimentos, debate, comenta e/ou os aborda nasce do jornalismo impresso durante o início (no caso do estudo que tratamos aqui, o lan- da era digital. Ainda segundo os autores, çamento do long-play), o exercício jornalís- tico dá informações para quem as busca, dei- com o surgimento da rede mundial xando o apreciador mais próximo (em uma vi- de computadores, conhecida pela si- são conteudista – de ter conhecimento do con- gla “www”, os noticiosos impressos, teúdo) em relação ao seu ídolo. aos poucos, foram migrando para o Por se tratar de uma produção que tange mundo virtual. Num primeiro mo- o espaço cultural (na oportunidade, mú- mento, as reportagens eram cópias sica), cabe aos espaços de jornalismo cultu- fidedignas do que havia sido divul- ral abordarem, consequentemente. Neste sen- gado no veículo tradicional. Com tido, buscamos, então, conceitos e discussões o passar do tempo, são criados con- acerca do jornalismo cultural para a discussão teúdos próprios para internet e são e a conseqüente reflexão que serão trabalhadas inseridos outros tipos de mídia para neste estudo. Partindo de uma abordagem de complementar a escrita: vídeos, fo- Piza (2013), traremos significados e preceitos tos, hiperlinks. (Cruz; CURI, 2015, propositivos da crítica cultural, que serão ex- p. 4) plicados na sequência. Acima de tudo, o jornalismo cultural é um Então, a manifestação do jornalismo cul- gênero jornalístico, por óbvio. Então, existe tural, por meio do seu subgênero – que é a crí- o objetivo básico de informar. Durante a lei- tica – dá-se por meio de uma plataforma da in- tura da obra do ator supracitado, percebemos ternet. Partindo daí, entendemos que o jorna- que ele salienta o papel da crítica (ou resenha) lismo cultural não foge dos preceitos do que o dentro desse espaço do jornalismo.4 próprio jornalismo propõe. Para Piza (2013), a Selecionamos duas críticas, uma do país produção jornalística da seção de cultura deve natal do cantor – publicada em um dos prin- ultrapassar a ideia de informar. cipais veículos jornalísticos do planeta, The Especificamente, em um texto de crítica,

4 Ao longo do trabalho, aprofundaremos a ideia aqui posta. 6 Dentro do jornalismo, os produtos do ofício podem ser publicados dentro de materiais impressos (tais quais re- 5 Apesar do The Guardian ser um jornal tradicional e extre- vistas e jornais), rádios, portais dentro da web, televisão mamente relevante para o meio jornalístico, não consegui- etc. No caso, estamos tratando de dois produtos produzi- mos acesso à sua versão impressa mas, sim, à versão di- dos dentro de um site, configurando-se, então, como uma gital, atualizada diariamente. Portanto, na perspectiva tra- plataforma web. balhada, o conteúdo que selecionamos se enquadra como webjornalismo.

www.bocc.ubi.pt 2 / 10 Carry Fire: um estudo de recepção das críticas musicais ao disco de Robert Plant

Piza (2013, p. 70) explica que devem estar ler/ver/ouvir aquela obra” (Piza, 2013, p.71); presentes entretanto, elenca elementos textuais indiscu- tíveis para um debate acerca da obra, ou seja, Primeiro, todas as características de cria uma boa base para a elaboração de uma um bom texto jornalístico: clareza, discussão. coerência e agilidade. Segundo, Dentro desta perspectiva há, também, a re- deve informar ao leitor o que é a obra senha impressionista. Ela se baseia no tato ou o tema em debate, resumindo sua sentimental do autor quando ele tem contato história, suas linhas gerais, quem é com a obra. Esta classificação baseia-se em o autor etc. Terceiro, deve analisar uma honestidade e pontualidade do escritor a obra de modo sintético mas sutil, com seu público, relatando tudo o que o pró- esclarecendo o peso relativo de qua- prio tirou do objeto analisado, curta e direta- lidades e defeitos, evitando o tom de mente. “balanço contábil” ou a mera atribui- “Há também a resenha, muito comum no ção de adjetivos. jornalismo brasileiro, que está mais concen- trada em falar sobre o autor, sobre sua impor- Na sequência, o autor explica um quarto tância, seus modos, seus temas, sua recepção, requisito para se escrever uma resenha crítica do que em analisar aquela obra específica ou jornalística que é, simplesmente, não ficar to- sua contribuição intelectual artística no con- talmente atrelado à obra, mas retirar dela frag- junto” (Piza, 2013, p.71). Considerando isso, mentos, significações e situações para serem apesar de reconhecer a falta de popularidade confrontadas com a realidade contemporânea em seu uso, Piza pontua que essa é a classi- e situações reais da cronologia humana. Tal ficação perfeita para debates sobre autores e qual buscar significados que remetam a uma suas carreiras. Consequentemente, podemos época anterior como, por exemplo, quando se supor que esse também poderia ser o trampo- liga Blackbird a uma forma de apoio à luta da lim para a discussão acerca de estilos, ideias população negra em prol de seus direitos, tal etc. qual escreveu MacDonald, (1994)7. Por fim, a última classificação é voltada De maneira geral, o jornalista brasileiro à história do objeto criticado. Semelhante à classifica as resenhas críticas em diferen- ideia de um making of, essa é construída atra- tes categorias: impressionistas, estruturalistas, vés dos caminhos que levaram à obra, as suas concentradas no autor e as focadas no tema. influências e a maneira pela qual ela foi con- Cada uma correspondendo a uma ideia de nar- cebida. Debater a forma de produção e gerar, rativa trazida por quem a escreve. Em cada por conseguinte, reflexões sobre as temáticas caso, portanto, existe uma gama de atributos trazidas, dificuldades e inspirações originadas que agregam a sua significação e diferencia- ali; fazem parte da esfera desse último tipo de ção, como explicaremos a seguir. resenha. No caso da crítica estruturalista, esta visa analisar as características de construção do 2 Aspectos teóricos e metodológicos texto, omitindo-se (por assim dizer) de um po- da pesquisa sicionamento sobre o objeto analisado de fato. “Em geral, comete o equívoco de vender uma A partir dos pressupostos introdutórios, op- objetividade inatingível ao leitor e/ou abster- tamos por trabalhar com a ótica teórico- se de dizer-lhe qual a importância relativa de metodológica da Recepção. Vislumbrando

7 No livro Revolution in the Head: The Beatles’ Records ligação com os acontecimentos dentro da cultura e socie- and the Sixties, obra na qual o autor faz uma reflexão de dade britânica durante os anos de 1960. uns dos artistas ocidentais mais famosos da história e sua www.bocc.ubi.pt 3 / 10 Fábio Cruz & Arthur Freire Simões Pires captar os efeitos produzidos pelas resenhas vidual (conceituações particulares), instituci- culturais presentes no corpus do estudo, onal (escola, família etc), meios de comuni- utilizamos o filósofo estadunidense Kellner cação (efeitos das técnicas de manipulação, (2001) e o cientista da comunicação mexicano persuasão etc., que os veículos de comunica- Orozco Gómez (2000), para guiar o cabedal ção dispõem e utilizam-se – consciente ou in- teórico-metodológico trabalhado. conscientemente – para influenciar sua audi- A contribuição de Douglas Kellner (2001) ência), situacional (composta por elementos se dá em razão da análise das produções mi- de uma situação específica como quantidade diáticas, suas significações e efeitos. Estes de pessoas, meio para ter contato com a pro- pontos, então, podem ser encontrados através dução midiática etc.), e de referência (faixa das categorias analíticas propostas pelo autor: etária, etnia, gênero, orientação sexual etc., de horizonte social, campo discursivo e ação fi- cada receptor) compõem esta categorização de gural. Cada uma delas contribuirá para esta- Orozco Gómez. belecer o chão na sequência de análises. Levando em conta essas multime- O horizonte social contextualiza a época e diações, o receptor apresenta códi- o cenário em que se dá determinada produção gos culturais específicos: a reprodu- midiática. O campo discursivo engloba os ato- ção, quando aceita tudo o que re- res envolvidos no discurso dos veículos de co- cebe; a negociação, a partir do mo- municação de massa. Já a ação figural mostra mento em que concorda com algu- o produto final de acordo com o horizonte so- mas partes daquilo a que está ex- cial e o campo discursivo. Portanto, a partir de posto e com outras não; e a resistên- uma conjuntura específica e levando em conta cia, processo em que não há aceite os sujeitos envolvidos nesta, a mídia produz de propostas de sentido oriundas da informação. mídia, o que acarreta uma produção Do lado do intelectual mexicano, temos a alternativa ou contraproposta (Hall, contribuição do Modelo de Múltipla Media- 2003, apud Cruz, Garcia, 2016; p. ção (2000), que lança mão da perspectiva do 186). paradigma hermenêutico; ou seja, existe uma observação do pesquisador sobre a pessoa es- É importante averiguar, portanto, em que tudada (a partir de seu discurso) através de condições as falas estão sendo constituídas um aporte teórico. Destarte, os receptores e e construídas. As “posições de enunciação” suas falas, durante o estudo, serão observados (Hall, 1996) são individuais e baseiam-se em e analisados pelos pesquisadores envolvidos, um contexto particular e, ao mesmo tempo, os quais procurarão decifrar os sentidos a par- público, ou seja, referem-se à identidade cul- tir das teorias trabalhadas. tural de cada pessoa, que, cabe ressaltar, con- Portanto, a proposição teórica-metodoló- siste em um processo sempre em construção, gica do autor se baseia em analisar e entender pois interage com o social. como a audiência televisiva recebe as infor- Com o embasamento do pensador mexi- mações dos veículos transmitidos pela própria cano, é possível analisar diferentes aspectos televisão. Faremos uso dos tipos de mediação que compõem a identidade de cada pessoa para entender, então, o conteúdo trabalhado presente no estudo, especialmente pelo fato do com os receptores selecionados neste estudo. conceito das múltiplas mediações ser intrinse- A proposição do autor consiste em cinco camente ligado à noção de cultura e à trajetó- categorias de mediação, que implicam a lei- ria pessoal de cada receptor. tura dos sentidos em uma perspectiva indivi- Na concepção de Orozco Gómez, a pers- dual (tomando como referência da produção pectiva das mediações implica levar em conta de sentido, o receptor). As mediações indi- toda uma soma de fatores que podem causar www.bocc.ubi.pt 4 / 10 Carry Fire: um estudo de recepção das críticas musicais ao disco de Robert Plant influência no processo de produção de sentido de elementos não vai de encontro ao autor no dos receptores. Conforme foi colocado acima, que tange à coleta de informação. essas características ajudam a formar a identi- Cabe ressaltar também que, no dia se- dade particular de cada um, a saber: a família, guinte ao encontro com os receptores, envia- a escola, o grupo de amigos, o bairro, o tra- mos um questionário para os participantes do balho, a cidade, os meios de comunicação e estudo. Nele, coletamos dados como: idade, a disposição dos indivíduos frente a eles, seu formação, grau de conhecimento do cantor nível de instrução, sexo, idade, etnia, religião, Robert Plant, artistas que caracterizam o gosto salário, classe social, ideologia etc. musical do entrevistado, opinião sobre as crí- Assim, através dessa identidade cons- ticas a artistas de rock na mídia tradicional, truída – e jamais acabada –, o receptor produ- frequência e meios que consomem críticas e, zirá significados próprios, particulares e indi- por fim, a influência da crítica na visão do re- viduais. A total apropriação, a negociação ou ceptor sobre determinado artista. até mesmo a resistência plena das mensagens são decorrentes diretas das diferentes media- 3 Primeiros passos da discussão e ções anteriormente citadas. descrição das resenhas Sendo a escolha do aporte teórico a pri- A última pergunta dentro do questionário in- meira etapa do estudo, seguiram-se outros mo- dagava uma autorreflexão sobre a forma como mentos: a seleção dos receptores, o encontro cada receptor consome as resenhas críticas. do grupo focal8 e a captação das informações Questionamos “até que ponto as críticas mu- individuais, para, então, chegarmos às análi- sicais influenciam a tua visão e as tuas es- ses e considerações finais do estudo. colhas quanto à música?”, e, majoritaria- Considerando isso, foram convidados a mente, os receptores negaram a influência participar, como receptores, alunos matricu- e/ou classificaram-na como mínima. Mais: al- lados ou já aprovados (ou seja, graduandos e guns deles criticaram a superficialidade e/ou graduados) nas disciplinas optativas de Histó- a credibilidade de quem escreve, como disse ria Social do Rock I e História Social do Rock Gabriel Huth, II, do curso de Jornalismo da Universidade Fe- Não consigo ver críticas jornalísticas deral de Pelotas (UFPel). Na oportunidade, fo- como balizamento de qualidade ou ram reunidas 13 pessoas, para debaterem so- descrição pra (sic) expressões artís- bre os textos selecionados, além do universo ticas de qualquer sorte e tampouco que tange a crítica musical. para a persona artista, ainda mais em Segundo Orozco Gómez (2000), o número música e ainda uma vez mais em mínimo de receptores é 10 quando desenvol- rock, visto que arte, em seu âmago, é vido um trabalho de recepção televisiva (neste uma expressão interior do artista, sua estudo, a aplicação dos pressupostos do au- perspectiva de algo traduzido em cri- tor será feita no jornalismo cultural, através ação objetiva ou subjetiva que causa das críticas musicais, como apontado anteri- uma reação em quem recebe este ormente). Nesse sentido, foram convidadas 24 produto. Desta forma, o que para pessoas, mas, no entanto, somente 139 confir- uns é um lixo, para outros é um maram presença. Sendo assim, a quantidade luxo; sendo, portanto, impossível a

8 Reunimos os receptores em uma sala do campus Porto, da 9 Cabe ressaltar que nem todas as falas foram utilizadas UFPel, antes de uma aula da disciplina de História Social neste artigo. do Rock. Quando realizamos a atividade de debate sobre as críticas musicais as quais compõe o estudo.

www.bocc.ubi.pt 5 / 10 Fábio Cruz & Arthur Freire Simões Pires

qualquer pessoa descrever um tra- disco Carry Fire e o Lullaby and. . . the Cease- balho sem impressões influenciadas less Roar (long-play lançado em 2014, sendo pelas experiências e vivências pes- o penúltimo trabalho de estúdio de Plant). soais. Tanto para o artista quanto Ademais, o crítico inglês destaca também seu trabalho, as críticas não alcan- a participação da banda de apoio do cantor bri- çam uma verdade universal sobre sua tânico, The Sensational Space Shifters. Se- obra, e por ver sob esta ótica, não as gundo ele, o grupo contribui para completar os acompanho, tanto em mídia tradici- elementos musicais entre rock e folk trazidos onal quanto alternativa. por Plant. Chega a ressaltar o uso de Bendir, Djembe e Oud, dois instrumentos de origem Então, podemos perceber que o texto crí- africana e um de origem árabe, como forma tico está sujeito à interpretação dos próprios de pontuar atributos da sonoridade do álbum. leitores e de suas trajetórias de vida. Isto é, Na sequência, Mongredien faz uma com- a “bagagem” individual influencia necessari- paração envolvendo as músicas New World e amente o modo de compreensão do receptor Immigrant Song10. De maneira que seriam sobre os sentidos dentro da resenha. A dis- contrastantes, ele utiliza os termos yin e yang, cordância para com o que propõe um crítico como forma de tornar as canções uma oposta significa que o leitor em questão não se vê re- à outra. Além disso, o escritor ainda pon- presentado pelos elementos trazidos no texto tua “Lyrically Carry Fire11 sees Plant address do crítico. bigger issues, whether the evils of colonialism A partir disso, iniciaremos a principal dis- on New World or nationalism on Carving Up cussão do trabalho, a relação dos receptores the World Again”12. Ou seja, o crítico traz com a crítica musical. Existe uma relevância (mesmo que sutilmente) suas impressões das das resenhas críticas para o público apreciador temáticas trabalhadas pelo músico na obra. de rock? Elas cumprem o seu papel? Como é Por fim, a crítica do veículo inglês termina o debate desse público quando se depara com com menções honrosas às canções Bluebird um texto crítico a um disco? Antes de dar- Over The Mountain e The May Queen. O ál- mos início à análise dos eventos para respon- bum foi avaliado com nota 4 estrelas, sendo der às perguntas, é necessário descrever as re- que – vale ressaltar – dentro da avaliação o senhas críticas para melhor ilustrar o que es- máximo possível a ser atingido são 5 estrelas. tava sendo dialogado entre os receptores. Ini- ciaremos, então, com a descrição da crítica 5 A resenha do veículo brasileiro publicada pelo jornal inglês sem vírgula aqui The Guardian. Enquanto a primeira resenha crítica apresen- tada no trabalho tem poucas linhas, a brasi- 4 A crítica do veículo britânico leira tem um corpo de texto bastante maior. Em contrapartida, a nota é exatamente igual: A crítica pode ser considerada uma nota, por 4 de 5. Escrita por Felipe Cotta, a linha de conta do tamanho e da falta de aprofunda- apoio sob o título “Robert Plant – Carry Fire” mento a qualquer ponto. Escrita por Phil Mon- é: “vocalista celebra o presente respeitando o gredien, o autor é extremamente sucinto em passado”. suas frases. Pontua uma linearidade entre o Já no primeiro parágrafo, o redator des-

10 Immigrant Song faz parte do arsenal musical da banda 12 Tradução livre: “liricamente Carry Fire vê Plant abordar pregressa de Plant, o Led Zeppelin. A canção foi lançada questões maiores, ou os males do colonialismo em New no disco Led Zeppelin III, de 1970. World ou nacionalismo em Carving Up the World Again.

11 Itálico utilizado pelo crítico.

www.bocc.ubi.pt 6 / 10 Carry Fire: um estudo de recepção das críticas musicais ao disco de Robert Plant

taca a sabedoria do cantor na forma de cantar como o estudo ocorreria. Após cerca de 15 e distribuir sua voz ao longo do álbum. Em minutos aguardando todos chegarem, e dando seguida, começa a diferenciar o “Plant de 45 tempo para que os que não haviam lido o ma- anos atrás” do estágio atual no qual se encon- terial o lessem, iniciamos o trabalho. tra o vocalista inglês. Mesmo assim, o autor Foram 53 minutos de discussão, que medi- traz referências dos trabalhos de Robert Plant amos sem tecer comentários acerca do disco, do início de sua carreira solo, do meio e do das resenhas ou dos espaços argumentativos princípio de sua carreira (dessa vez, com o de cada receptor presente. Nossas interven- Led Zeppelin). ções ocorriam quando o assunto se distanciava Cotta, até o terceiro parágrafo do texto, demais da discussão, algo que aconteceu duas comenta bastante sobre as impressões gerais vezes13. que sentiu e informa sobre a banda de apoio Com as informações recebidas através do ser o The Sensational Space Shifters. “Bas- questionário, descobrimos que todos os pre- tante melancólico”, “sabor refinado” e “pouco sentes conheciam Robert Plant. A esmaga- para se preocupar e muito para compartilhar” dora maioria conhecia e ouvia apenas os seus são caracterizações utilizadas para uma des- trabalhos do Led Zeppelin com regularidade crição em uma visão macro do long-play. – mas ainda o acompanhava em algum grau – A partir daí, dos cinco parágrafos rema- e, do outro lado, poucos não eram fortemente nescentes, três abordam músicas destacadas familiares com sua carreira. pelo próprio crítico. Neste sentido, Cotta uti- Os receptores participantes demoraram a liza suas descrições e impressões para dar no- se manifestar com maior proatividade. Quem vos atributos ao disco. No entanto, ele o faz iniciou a discussão foi Luis Artur14, comen- numa visão mais lírica e específica dentro de tando que a crítica de Felipe Cotta não traz determinadas partes da obra. Além de falar do nada de novo “e é muito parecido com o que álbum, o autor aborda as características pesso- se faz em termos de texto crítico há algumas ais de Plant no seu modo de ver, obviamente. décadas”. Em consonância com o que disse Por fim, o ato final se dá, logicamente, no o primeiro participante, Estevan15 ressaltou a último parágrafo, quando o crítico faz uma quantidade de usos de estereótipos nas críticas certa contemplação ao artista que é Robert de discos de rock, de maneira geral. Plant e sacramenta a nota alta dada a Carry As falas deles tiveram repercussão e mais Fire. receptores começaram a emitir suas opiniões. As frases eram frequentemente formadas por 6 Análises e discussões gerais uma ideia que desaguava em expressões como “estereótipo”, “comum” e “falta de informa- Em um primeiro momento, organizamos a ção”. Havia uma convergência de opiniões sala com cadeiras em formato circular e dei- para um consenso: faltava conteúdo. xamos o disco Carry Fire tocando em um apa- “O texto do Guardian é uma nota. Algo relho de som. Foram distribuídas as resenhas muito superficial, por mais que cite alguma de maneira impressa para cada participante coisa aqui ou ali, falta informação. Não te traz do grupo focal e, posteriormente, explicamos nada de conteúdo. A crítica do Omelete – aí,

13 A primeira intervenção foi necessária aos 17 minutos e 15 Jornalista e mestrando em Sociologia, 23 anos. outra ao final, para terminar a sessão de debate. Na pri- 16 meira intervenção, foi explicado (partindo de uma aborda- Jornalista e professor universitário, 48 anos. gem de Piza, 2013) o que compreendemos como respon- sabilidade da crítica.

14 Professor de história, 43 anos.

www.bocc.ubi.pt 7 / 10 Fábio Cruz & Arthur Freire Simões Pires

sim, uma crítica – consegue dar algo pro (sic) sente representado pelas que lê. A principal leitor, mas ainda muito superficial”, apontou justificativa passa pela utilização de estereóti- Carlos André16. Na medida em que a discus- pos por parte dos críticos e a distância deles são tinha mais participantes, o debate parecia com o que está sendo criticado. chegar a um consenso sobre isso. Eventualmente, Tabaquara19 opinou que Então, Douglas17 abordou em sua fala o parte das indignações constatadas pelos ou- saudosismo presente nos textos críticos sobre tros participantes às críticas de rock são ad- rockstars mais antigos. Segundo ele, nenhum vindas da popularidade do gênero musical no artista novo jamais conseguirá ser equiparado Brasil. Para ele, o fato de sertanejo, sertanejo a músicos como Plant, por conta da contem- universitário, funk carioca e pop terem públi- plação em torno desses consagrados nomes. cos muito grandes, tocarem nas rádios e obte- Para esse receptor, isto é negativo porque cor- rem fidelidade (shows lotados, produtos com- robora com a criação de novos estereótipos e prados etc) por parte de seus consumidores, menos horizontalidade nas informações. corrobora para a crítica não ser tão presente e Matheus18 trouxe uma visão jornalística bem executada no meio do rock’n’roll. Visto de que sempre será feito um apanhado da car- que, por esta ótica, haveria mais motivos para reira do artista, mas também acredita que o au- se falar desses outros estilos de música. tor teve alguma preguiça ao escrever por “ca- Chegando à parte analítica inspirada em minhos óbvios”. Disse acreditar, também, que Kellner (2001), partimos do cenário no qual o fato de estar em um portal como o Ome- podemos visualizar facilmente que o lança- lete “há tendência de funcionar mais como um mento do disco Carry Fire se enquadra como guia do que como um texto técnico. Vai trazer o horizonte social, exatamente por ser o ele- referências mais comuns do que oferecer uma mento que contextualiza o momento anali- visão diferente”. sado. Enquanto isso, o campo discursivo é Aos poucos, o debate rumou para uma composto pelos dois autores, os dois portais conversa sobre a construção do texto. Alguns das resenhas críticas e seus leitores, por Plant defendiam que muitas críticas tentam passar e os Sensational Spaceshifters. uma impressão erudita, mas falham na obri- Por fim, a ação figural é diferente em cada gação de passar informações, enquanto outros uma delas. Existe uma contemplação do ar- acreditam que as críticas costumam pecar na tista, do lado do portal brasileiro, trazendo ele- perspectiva de dar informações e criticar cons- mentos estereotipados. O fato de citar e retor- trutivamente de fato. Carlos André exemplifi- nar diversas vezes cou, afirmando que o próprio autor da resenha brasileira se mostrou bastante fã de Plant: “a o que deixa dúvida sobre a idonei- única parte em que ele faz uma crítica – que dade de todos os pilares da argumen- é quando ele critica a banda de apoio – é aba- tação do crítico brasileiro é o ex- fada. Então, deixa de ser crítico. É um texto cesso de adjetivação durante sua re- que só elogia”. senha. Nitidamente, o autor é um ad- Durante a nossa análise dos questioná- mirador da carreira e obra de Robert rios, contabilizamos que absolutamente ne- Plant. Isso pode, sim, afetar sua per- nhum dos receptores consome críticas de mú- cepção sobre o álbum e dificultar na sica com frequência. O contato com elas se dá análise de pontos negativos. Esta dú- pela internet, através de sites de cultura e/ou vida paira ainda mais por conta da música que acessam; além disso, nenhum se data de publicação: 13 de outubro

17 Mecânico, músico e estudante de história. 36 anos. 19 Bacharel em direito e estudante de jornalismo, 30 anos.

18 Jornalista, 22 anos.

www.bocc.ubi.pt 8 / 10 Carry Fire: um estudo de recepção das críticas musicais ao disco de Robert Plant

de 2017, exatamente a data de lança- debate, que é a subjetividade artística arbi- mento do disco. (Cruz, Pires, 2018, trariamente limitada pela visão do resenhista. p.1001) Nela, constatamos que as duas ações figurais, apesar de distintas convergem na estereotipa- Já a publicação britânica, em que pese o ção do disco, bem como do artista. fato de esta ser caracterizada como uma nota, Contrariando o que Piza (2013) atribui é omissa no dever de informar questões bá- como responsabilidades do jornalismo cultu- sicas do jornalismo. neste sentido, apresenta ral, e neste as diferentes formas de resenha, descaso em relação aos preceitos elencados ambas as críticas pecam no objetivo de forne- por Piza (2013) em se tratando de crítica cul- cer ao leitor subsídios além do, dito anterior- tural. mente, estereótipo. Nesta realidade complexa, Então, podemos assumir que, em ambos em que atuam diferentes fontes e origens, a os casos, a ação figural se configura nos re- cultura é eleita “a grande mediadora de todo flexos declarados pelos receptores. Uso fre- processo de produção comunicativa” (Orozco quente dos estereótipos sobre o cantor e a Gómez, 2000: 114). Portanto, a comunica- falta de descrição dos elementos musicais en- ção vai além dos meios; ela desloca-se para as cadeiam o produto da categoria. Nenhum dos (multi) mediações, que, por sua vez, são per- integrantes do grupo focal classificou como meadas pela cultura. Assim, todos os proces- boa qualquer uma das críticas apresentadas, o sos sociais são perpassados pela cultura. Ela é que corrobora com nossa percepção da discus- o agente central de mediação. são dos participantes. Além disso, o constante uso do passado Referências Bibliográficas do artista traz a dúvida aos receptores sobre o conhecimento dos resenhistas quanto ao can- Beech, M. (2018, jan. 27). Led Zeppelin tor Robert Plant, visto que o Led Zeppelin teve Adds to 300 Million Sales With Live Al- seu fim em 1980 e o vocalista gravou nada me- bum, 50th-Anniversary Surprises. For- nos do que 11 discos como artista solo. Con- bes. Disponível em: www.forbes.com/s templações e uso do passado do artista gera- ites/markbeech/2018/01/27/led-zeppelin ram muitas críticas dos participantes do es- -adds-to-300-million-sales-with-live-alb tudo. um-50th-anniversary-surprises/#116ea7 53ca59.

Considerações finais Cotta, F. (2017, out. 13). Robert Plant – Carry Notamos há notórias diferenças de idade en- Fire | Crítica. Omelete. Disponível em tre os receptores deste trabalho, seja em ter- https://omelete.uol.com.br/musica/critic mos de idade (mediação estrutural), crenças a/robert-plant-carry-fire-critica/. Acesso (mediação cognitiva) e trajetórias (mediação em 25 dez. 2017. cultural). Mesmo assim, percebemos que seus Cruz, F. & Pires, A. (2018). A Way With posicionamentos, majoritariamente, são con- Words: um estudo barthesiano sobre sonantes. Considerando isso, em nível geral, Carry Fire. Revista Observatório, 4(6): a disposição preponderante é a de resistência, 985-1006, out.- dez. Palmas. uma vez que a grande maioria se opõe ao con- teúdo proposto pelas críticas. Cruz, F. & Curi, G. (2015). Communication Tal visão é corroborada pela fala de Breakdown: a cobertura do show de Ro- um dos nossos entrevistados, citada anterior- bert Plant no festival Lollapalooza à luz mente20, que sumariza o principal ponto do do fait divers. Revista Famecos: mídia,

20 Gabriel Huth.

www.bocc.ubi.pt 9 / 10 Fábio Cruz & Arthur Freire Simões Pires

cultura e tecnologia, 22(4): 71-85, out. The Guardian. Disponível em www.theg Porto Alegre. uardian.com/music/2017/oct/15/robert-p lantcarry-fire-review. Acesso em 25 dez. Cruz, F. & Garcia, E. (2017). A donzela es- 2017. tereotipada: um estudo de recepção do Grupo Iron Maiden nos portais G1 e R7. Orozco Gómez, G. (2000). La investigación Animus: Revista Interamericana de Co- em comunicación desde La perspectiva municação Midiática, 16(31): 178-195. cualitativa. La Plata: Ediciones de La Santa Maria. Facultad de periodismo y Comunicación Social. Kellner, D. (2001). A cultura da mídia. São Paulo: EDUSC. Piza, D. (2013). Jornalismo Cultural. São Paulo: Contexto, 2013. Mongredien, P. (2017, out. 15). Robert Plant: Carry Fire review – more of a good thing. www.rockhall.com/inductees.

www.bocc.ubi.pt 10 / 10