Agradecimentos

É, de facto, uma honra baixar em palavras o agradecimento a nível académico ao Professor Doutor Manuel Frias Martins e, de salientar, à Professora Doutora Mentora Teresa Cadete.

A nível mais intimo, Obrigado pelo regresso dos que nunca partiram. Por vós, Sou eu.

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Resumo

O mito, sendo trilho para as potencialidades espirituais da vida humana, funciona como mediação simbólica entre o sagrado e o profano, surgindo como guia que acalma os “espíritos” mais descontentes com a realidade, ajudando-os a curar a sua ferida de existência. Reflexo da contracultura dos anos 60 nos Estados Unidos da América, , vocalista do grupo , quis, através da sua música e das suas palavras, libertar as pessoas que julgava estarem presas a uma conformidade de normas sexuais e sociais, desempenhando, assim, o papel de xamane. Jim viveu intensamente e morreu cedo. Uma carreira curta e poderosa, que o consolidou como lenda viva, herói trágico. Analisando a complexidade do seu ser, verifica- se que reactualizou mitos ancestrais ao representar histórias de deuses e de heróis titânicos, tais como Dioniso, Édipo e Prometeu. Surge, assim, o mito do eterno retorno através da repetição de arquétipos. Numa cronologia sem tempo, contendo, porém, uma tonalidade nebulosa, Jim Morrison permanece no âmbito do eterno, remetendo para um tempo que não é histórico, mas cíclico. O mito de Jim Morrison perdura através da sua poesia, da sua música, da sua sepultura, da sua incessante audiência.

Palavras-chave: Jim Morrison – Xamane – Herói Trágico - Mito

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Abstract

The myth, path for the spiritual potentialities of human life, acts as a symbolic mediation between the sacred and the profane, emerging as a guide that calm down the "spirits" more dissatisfied with the reality and help them to heal their wound of existence. Jim Morrison, lead singer of the band The Doors, is a reflection of the counterculture of the 60s in the United States of America. Through his music and his words, he wanted to free the people that he thought to be attached to sexual and social norms, performing thus the role of a shaman. Jim lived intensively and died young. He had a short and powerful career, that have consolidate his character of living legend, of tragic hero. When analyzing the complexity of his person, it is verified that he updated ancient myths by representing stories of gods and titanic heroes, such as Dionysus, Oedipus and Prometheus. It is in this way that emerges the myth of the eternal return, through the repeat of archetypes. In a chronology with no time but with a misty tone, Jim Morrison remains as eternal, referring to a time that is not historical but cyclical. The myth of Jim Morrison endures through his poetry, his music, his grave, his incessant audience.

Key words: Jim Morrison – Shaman – Tragic Hero - Myth

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Introdução

Jim Morrison, poeta e vocalista do grupo The Doors , trouxe uma nova dimensão espiritual à música. Dotado de ambições titânicas e de uma forte necessidade de transgressão, viveu experimentando a sua vontade de poder. A sua acção quis causar a ruína de todas as leis, criando um círculo mágico mais elevado, entenda-se transcendente, pretendendo a fundação de um novo reino. No seu impulso heróico em direcção à universalidade, na tentativa de ultrapassar a barreira da individuação, a lenda transgride, perece jovem e revela-se trágica. William Blake escreveu em Marriage of Heaven and Hell : “The road of excess leads to the palace of wisdom” (Blake, 1993: 29). Jim Morrison compreendeu e foi imoderado. Sendo um herói metamórfico, repleto de energia e respirando audácia, jogou com os seus sentidos e alterou-os com álcool, com ácido e com o elixir interior da sua própria glorificação e inspiração, colocando, deste modo, a máscara de Dioniso. Jim pretendia romper com tudo o que se lhe apresentasse como obstáculo, numa busca metafísica até ao desconhecido, mas queria levar o público consigo, no seu pensar, para um reino melhor, porventura ideal. Se por um lado permanece a ideia de auto-destruição, em que o excesso e a fama foram aspectos determinantes e exclusivos para a morte de Jim Morrison; esta tese surge como tentativa de demonstrar o lado oculto deste processo, ou seja, o seu percurso de herói trágico tendo como último estádio o estatuto de mito. Os padrões pelos quais a sua arte deve ser medida são ancestrais e mais profundos. Estruturada em três partes, esta dissertação visa o contexto, conjunto de condições para a erupção mitológica; a narração e interpretação da lenda viva que foi Jim Morrison, espelho da sua era; e a construção e constatação do mito que surge como eco da sua morte. O primeiro capítulo transmitirá a imagem do pano de fundo, do palco do estudo de caso, remetendo, principalmente, para os Estados Unidos da América nos anos 60. Uma era de agitação política e social, de experimentação e celebração; uma época em que, através de revoluções psíquicas, sexuais e psicadélicas, se busca por um maior sentido de liberdade e

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por uma experiência transcendente; tornando-se, assim, palco propício para o aparecimento do mito. No segundo capítulo, irei demonstrar como o herói público se mostra sensível às necessidades da sua época, visto que Jim Morrison foi reflexo do movimento de contracultura dos anos 60. O seu mito não traria tanto significado se não se encontrasse na margem, passeio da contracultura, seguindo seu princípio de libertinagem. Mais do que um mero marginal dado à introspecção, Jim afrontou símbolos de autoridade do seu país. Não sendo artista materialista, procurou, através da sua arte, atingir o seu auge interior. Foi Rei Lagarto , libertino, estrela de rock ; e foi James Douglas Morrison, poeta, tendo como único desejo a leitura das suas palavras. Por último, irei explorar o caminho do herói rumo ao mito. Ser superior, xamane, lenda viva, Jim Morrison colocou máscaras ancestrais de deuses e titãs regressando aos primórdios. A abolição do tempo surge, assim, por meio da imitação de arquétipos e da repetição de gestos paradigmáticos. Não importa como Jim Morrison morreu, apenas como viveu. Não estava na corrida para o seu fim, mas sim saboreando intensamente o agora existencial. Fiel ao seu espírito seguiu seus instintos. Viveu com o objectivo que o nascimento propõe: descobrir-se a si próprio e ao seu potencial. Ele fê-lo. A sua curta vida exprime-o bem. O xamanismo criado por Jim Morrison, a sua irreverência, a sua liberdade, as suas actuações teatrais dionisíacas, a sua vida intensa sempre no estreito muro espreitando a morte e o seu último sono envolto em mistério, evaporaram o tempo e elevou-se o mito. Nos dias de hoje, é-lhe prestado homenagem junto à sua sepultura, como que num ritual ancestral.

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“Is everybody in? The ceremony is about to begin”

Jim Morrison, An American Prayer 1

1 Em anexo áudio, faixa 1 Awake

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Contexto

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Após a 2ª Guerra Mundial, nos Estados Unidos da América, verificou-se que o elevado crescimento económico originou uma sociedade de abundância, o que permitiu um aumento do poder de compra e uma melhoria da qualidade de vida. Contudo, a publicidade, o marketing, as grandes superfícies comerciais e as vendas a crédito estimularam o aparecimento de uma sociedade de consumo, ou seja, uma sociedade em que as pessoas são levadas a comprar produtos muitas vezes supérfluos e acima das suas possibilidades económicas reais. Além de originar gastos desnecessários, e até o endividamento das famílias, este tipo de sociedade gera também graves problemas ambientais, devido ao rápido esgotamento dos recursos naturais e ao aumento da poluição. Os anos 60, a era do pé na lua, de Easy Rider , do sonho de Martin Luther King; da guitarra psicadélica de Jimmi Hendrix, da harmónica de Bob Dylan, do puro rock de Rolling Stones e The Doors; de Ernesto Che Guevara, do espéctaculo Hair e de Living Theater , da arte pop de Andy Warhol e Roy Lichtenstein; do Dr. Strangelove de Stanley Kubrick, do uivo de Allen Ginsberg e seguindo Jack Kerouac pela estrada fora, abrindo as portas da percepção de Aldous Huxley, encontramos o despertar dos jovens que tentaram acordar o mundo adormecido no seu próprio consumo. Apontando o seu dedo aos símbolos de autoridade; enfurecidos pela fraude, não divagaram, acusaram. Não sendo materialistas a correr atrás do dinheiro, mas sim atrás da experiência, da acção e da riqueza espiritual, condenaram a Guerra do Vietname e acusaram não só o sistema capitalista, como também o próprio esqueleto funcional da tecnocracia e a ideia de falsidade que residia em membros da sociedade americana. Através de várias irrupções, entre as quais as mais significativas nos Estados Unidos da América e na Sorbonne, em Paris; muitos jovens americanos e europeus explodiram em contestação rumo a um novo mundo que, segundo a sua percepção, seria um reino melhor.

“Um mapa do mundo que não inclua a Utopia não merece o mais breve olhar.” (Wilde, 1975: 14)

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Uma das “enfermidades” que contaminaram os anos 60 foi designada de tecnocracia. Para melhor entendimento vou citar Theodore Roszak que a define como a “forma social em que uma sociedade industrial alcança o auge da sua integração organizacional.” (Roszak, 1971: 22); e para explicitar o sentido pejorativo do termo vou solicitar as palavras de Jacques Ellul: “A técnica exige previsibilidade e, em medida não menor, que a previsão seja exacta. É, pois, necessário que a técnica prevaleça sobre o ser humano. Para a técnica isto é uma questão de vida ou morte. A técnica tem de reduzir o homem à condição de animal técnico, rei dos escravos da técnica. O capricho humano esboroa-se ante esta necessidade: não pode haver autonomia humana perante a autonomia técnica. O indivíduo tem de ser moldado pelas técnicas, quer negativamente (pelas técnicas da compreensão do homem), quer positivamente (pela adaptação do homem à estrutura técnica), para eliminar os borrões que a sua determinação pessoal deixa na concepção perfeita da organização” ( apud Roszak, 1971: 22). As necessidades vitais do ser humano, ao contrário do que dizem grandes poetas da História, aparentam ser de carácter puramente técnico, ou seja, permanece a ideia de que existem requisitos objectivos para o ser humano se sentir feliz e satisfeito, tais como por exemplo: uma infância e adolescência saudáveis, uma profissão remunerada, um lar, uma família e uma descendência; o que remete para a ideia popular de que o ser humano se sente realizado quando reúne os feitos de plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Inclusive, o cliché do sonho americano, visto do ponto de vista masculino, remete para uma casa, um automóvel, uma esposa “fada-do-lar” e dois filhos. Deste modo, se surge um problema que não tenha uma designada solução técnica é porque o problema não será autêntico, apenas ilusão, ficção do fórum psicológico; pois o ser humano terá tudo ao seu dispor para concretizar os seus desejos e sonhos. Um atrito social, visto deste prisma, será apenas um ruído na comunicação e a felicidade humana estará, rigorosamente, calibrada. O regime de peritos que reduz o ser humano a uma ferramenta da engrenagem económica, explorando o amorfismo, a rendição (sem que se tenha a noção de que se ergueu a “bandeira branca”), leva a uma atitude de conformismo, manipulado pelo conforto da prosperidade industrial que a ciência ofereceu.

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Como se não houvesse nada a melhorar, ou a problematizar, ou a mudar; na sua maioria, a sociedade americana nas suas manifestações mais ostensivamente burguesas, age e vive com uma atitude derrotista e convencional, aceitando a visão do mundo tal como foi visto pelos seus antecessores, rejeitando a possibilidade de existência da visão das asas do ser audaz, de alguém que veja não apenas os defeitos da árvore, mas também a doença sediada na raiz, ou seja, que ponha em causa o próprio funcionamento do mundo. A rotina do emprego e sua consequente mecanização é um exemplo de aprisionamento do ser humano que nasce com a ilusória sensação de liberdade, remetendo para uma existência programada e calculada: o mundo já pensado, não contestado. As próprias universidades surgem, frequentemente, como alavancas de melhores empregos. Existem como que passos obrigatórios de um dever generalizado a seguir, ignorando-se, em parte, toda a complexidade desta efémera passagem, sonho assombroso, que é a vida. Terá o ser humano apresentado qualquer justificação para o trabalho que não fosse a recompensa sob a forma do prazer e da prosperidade? Não sabendo o motivo de alguém abandonar o mundo convencional seguindo as pisadas de Henry David Thoreau, fugindo para a sua Mãe Natureza, ou escrevendo os seus próprios passos, abraçando o trilho de Making Do de Paul Goodman; estes técnicos, severamente contestados nos anos 60, estão convencidos de que sabem os desejos e paixões de cada ser humano, por mais complexos que sejam, e, por saberem realmente o que dizem, estão inscritos nas folhas oficiais de pagamentos do Estado e/ou da estrutura colectiva: “Os peritos que contam são os encartados. E os peritos encartados pertencem ao quartel- general” (Roszak, 1971: 27). Em nome do progresso e da razão, a tecnocracia está, silenciosamente, presente no quotidiano mundano, transformando muito do ser humano em seu escravo. É esponja, na medida em que oferece satisfação em troca de submissão. A ameaça à democracia e à liberdade do indivíduo provém, assim, do subdirigismo. A força da tecnocracia estará então na sua invisibilidade, como denota Theodore Roszak: “De facto, a característica da tecnocracia é tornar-se ideologicamente invisível. Os seus pressupostos acerca da realidade e seus valores tornam-se tão discretamente envolventes como o próprio ar que respiramos” (Roszak, 1971: 24).

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Outro aspecto bastante criticado pelos jovens contestatários dos anos 60 foi a ideia de falsidade de membros pertencentes à classe média americana que remete para a questão do parecer social, para a máscara de representação, que é colocada devido a padrões educacionais. A sociedade americana, nas suas exibições mais visivelmente burguesas, verifica-se obcecada pela ganância, escada material da tecnocracia, vivendo, assim, à mercê da sua rotinização mercenária, tornando-se, por momentos, em escravos da convenção e do passado, deambulando no reino em que o segundo importa e custa dinheiro com o seu indeclinável vestuário e apresentação a preceito. A sua existência, regularmente, despojada de alegria, abrange tanto a esfera pública como a privada. Não esquecendo as lições de História das guerras pretéritas (genocídio por parte da Alemanha nazi sobre grupos minoritários na 2ª Guerra Mundial; a ameaça de extermínio universal da espécie através da bomba atómica), a Guerra do Vietname foi alvo da maior contestação neste período. Iniciada em 1965, a Guerra do Vietname foi um pacote de sangue nacional que, segundo os jovens contestatários dos anos 60, nunca deveria ter sido encetado. Através da Guerra, emerge a sensibilidade pela vida humana, transposta, como posteriormente irei demonstrar, para gritos de revolta. Existindo também a noção de fracasso de revoluções passadas, em que políticas que substituem governos, classes ou sistemas, não progrediram, pretende-se agora, nos anos 60, o Apocalipse. O fim, o caos e a desordem para o novo e belo recomeço: o regresso ao uno primordial. Nos anos 60, com efeito, foi o Terceiro Mundo a devolver ao Primeiro a esperança da revolução. As duas grandes inspirações internacionais eram Cuba e o Vietname, que não só configuravam vitórias da revolução, mas desempenhavam também o papel de David contra Golias, dos fracos contra os todo-poderosos. “A guerrilha” – termo emblemático do tempo – tornava-se a chave que era indispensável usar para se transformar o mundo. Mas antes de se explicitar as considerações a nível global, deve-se salientar a diferença óbvia de prioridades entre estados democráticos e ditatoriais. O pensamento e preocupação principais estarão, evidentemente, condicionados. Primeiro estará a libertação de prisões e censuras exteriores, ou seja, impostas por regimes ditatoriais; e só após tal cenário virá a ideia de libertação de amarras interiores. Um estado democrático, como os

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Estados Unidos da América, é um solo propício para o surgimento de manifestações como as que despontaram nos anos 60. Sendo assim, revolucionários visavam derrubar os anteriores regimes políticos, no seu país ou no estrangeiro, como é o caso dos Estados Unidos da América, da França e da Alemanha, com o fim de os substituírem por outros novos, que daí em diante instituíssem uma sociedade nova e melhor, ou lançassem os seus alicerces. Em alguns casos, a sua inquietação resulta de uma consciência materialista dos factos subjacentes à vida educacional da actualidade, pois na Inglaterra, Alemanha e França os alunos que tiveram mais dificuldades foram aqueles que engrossaram as fileiras das humanidades e estudos sociais, descobrindo, afinal, que o que a sociedade quer que as escolas lhe forneçam são técnicos e não filósofos ou poetas. Colhidos pelo vórtice de uma rebelião internacional, os jovens revolucionários sentiam que estavam a ser levados até aos limites do mundo conhecido. Esvoaçava no ar um optimismo quase cósmico dos jovens que se sentiam arrastados pelo torvelinho da revolta internacional, como se pode verificar na reportagem enviada de Paris por Edward Mortimer a 17 de Maio de 1968: “A revolução que começa agora porá em causa a sociedade não só capitalista como também industrial. A sociedade de consumo tem de desaparecer por morte violenta. A sociedade da alienação tem de desaparecer da história. Estamos a inventar um mundo novo e original. A imaginação apossa-se do Poder” ( apud Roszak, 1971: 40). Desenrolou-se um constante desejo de mudança. O próprio mundo fora construído erroneamente. A tolerância disse basta a uma sociedade de consumo, apática e contagiosa, apontando erros que não estariam apenas no capitalismo, mas também na invisível tecnocracia. O próprio sistema de funcionamento terreno é posto em causa. Será a vida, singular existência, apenas isto? A procura de uma recompensa material através de um labor que sacrifica o prazer e o gozo de viver? A desilusão levada a contestação lamenta a venda de valores e ideais. Ao cabo de poucos meses, os “acontecimentos de Maio” seriam reconhecidos como o epicentro de uma explosão de revoltas estudantis em dois continentes, passando por cima de todas as fronteiras políticas e ideológicas – de Berkeley, nos Estados Unidos da América

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a Paris, em França. Na sua maioria, a sociedade americana na década de 60, “amarrada” a valores e atitudes fixos, estáticos; aprisionava e asfixiava os seres humanos ao seu sistema, anunciando então as consequentes reacções libertárias e revolucionárias, óbvias pelo contexto de saturação. Durante o período dos finais dos anos 60, grande parte da juventude sentiu que estava a viver a revolução, quer através de uma simples ruptura pessoal colectivamente partilhada com as esferas do poder, dos pais e do passado, quer através de uma exasperação constante, cumulativa, quase orgástica da actividade, ou aparentemente política, bem como dos gestos que representavam a acção. As palavras de ordem de contestação dos anos 60 não eram simplesmente expressões de uma contra-cultura marginal, apesar do evidente intuito de chocar a burguesia que as animava. Palavras de ordem como “É proibido proibir”, que, com efeito, talvez exprimam da maneira mais clara possível o sentimento dos jovens em relação ao governo, aos professores, aos pais, ao universo inteiro; visavam subverter a sociedade, e não fugir-lhe ou pô-la apenas de lado. Foi quase impossível para alguém desta geração estabelecer uma distinção entre os planos pessoal e político. Nota-se uma propositada oposição em aspectos sociais com o intuito de provocar, mas também de se afastar da corrente convencional. Ergue-se uma total contra-cultura, de salientar o movimento hippie , alargando o fosso entre os novos e os velhos, tendo como indicadores a rejeição do material, do terreno e a viragem para a mãe Natureza, para um sentimento de primórdio. “Por «contracultura» entenda-se uma cultura tão radicalmente afastada dos pressupostos centrais da nossa sociedade que para muitos mal parece uma cultura, assumindo, pelo contrário, o aspecto alarmante de uma irrupção barbárica” (Roszak, 1971: 64). Um bom exemplo desta antítese será a Anti-Universidade de Londres, inaugurada em 1968, contendo cursos como “«anticulturas», «antiambientes», «antipoesia», «antiteatro», «antifamílias» e «instituições contrapostas»” (Roszak, 1971: 67). Identificados com os rejeitados, desfavorecidos e marginalizados; os hippies têm em comum o seu desvio à norma. Nota-se uma pobreza simbólica, imagem de revolta contra os próprios pais, normalmente de classe média ou abastada; e uma forte identificação com os

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índios nativos americanos, que simbolizavam a simplicidade e a sobrevivência primitiva no continente do avanço tecnológico. Nos anos 60, cumpriu-se o ensaio de uma quebra radical de continuidade na cultura em que se vive, o choque entre conceitos irreconciliáveis de vida, tendo como objectivo abalar os modelos tradicionais de relações existentes entre as pessoas e o comportamento individual no interior da sociedade estabelecida. O designado radical adulto que se identificava com a contestação hippie , ao enfrentar uma audiência cada vez menor e menos participativa da sua geração, deslocou-se espontaneamente ao encontro dos jovens “inquietos”, correndo o “perigo” de se converter em guru destes, ou, talvez, tivessem sido os próprios jovens a mobilizá-lo para a sua causa. Rumo ao seu objectivo de despertar e de libertar, pode-se distinguir duas facções: de um lado, os boémios ( beats e hippies ) e do outro, os activistas políticos (novas esquerdas estudantis), que, mesmo se contrapondo em alguns aspectos, dão as mãos na semelhança de sensibilidade humana, no dever consigo próprio e na libertação psíquica e social. Nos anos 60, verificou-se uma enorme onda de contestação por parte dos jovens revoltados americanos que agitaram as suas palavras num mar de rebelião. Começou com o movimento a favor da liberdade de expressão (FSM – Free Speech Movement) em 1964 em Berkeley na Universidade da Califórnia, liderado por Mário Savio, cuja voz apregoava a liberdade académica e de expressão, influenciada então pelo movimento dos direitos civis do Sul do país. Passou pela contestação da Convenção Nacional Democrática a 26 de Agosto de 1968 em Chicago e atingiu o clímax com os tiroteios na Universidade de Ken State em 1970, que foi considerada a maior manifestação contra a guerra, resultando em 4 mortes de estudantes e 9 feridos pela Guarda Nacional, que causou, além de transtorno e choque, uma total descrença pelo próprio país, tornando-se um emblema de anti-guerra do Vietname. Com a imaginação ao poder viveu-se uma era de mudança: O Movimento dos Direitos Civis (através de protestos, boicotes, sit-ins ); a luta contra a segregação e pelo direito de voto no Sul; o crescimento do SDS (Students for a Democratic Society); as reividicações da Nova Esquerda; o SNCC (Student Non-Violent Coordinating Commitee); o «Poder Negro»; e a geral contestação à guerra do Vietname, incluindo a resistência ao

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recrutamento. Interligadas e entrelaçadas, todas estas organizações visavam o mesmo objectivo de salvação, procedente da consciência activa e política do mundo. Proveniente do Congresso sobre a Igualdade Racial em 1942 em Chicago, a estratégia de sit-in adquiriu atenção nacional nos anos 60. Os pacíficos intervenientes, actuando em todos os lugares públicos, tais como parques, praias, bibliotecas, teatros e museus; evocavam sensibilidade humana, tendo inclusive a intenção de, na hipótese de prisão, declarar o desejo de permanecer nesta, não querendo então que pagassem a fiança, causando, deste modo, problemas financeiros para os estabelecimentos prisionais, assim como dificuldades em termos de espaço e alimentação. Em Abril de 1960, os activistas que lideraram estes sit-ins deram uma conferência na Universidade Shaw em Raleigh, que levou à formação do SNCC (Students Nonviolent Coordinating Committee), que utilizou estas tácticas de confrontação não violenta para construir a sua estrada rumo à sua noção de liberdade. A Nova Esquerda, termo nascido das palavras do sociólogo C. Wright Mills, através da sua carta aberta Letter to the New Left , afastou-se da tradicional Esquerda focada no labor, em direcção a assuntos mais personalizados como a alienação e o autoritarismo. Sendo assim, Mills despega-se da “antiga” esquerda de encontro aos valores de uma nova contracultura. A Nova Esquerda, tendo também uma facção mais radical, anarquista, apoiada por Noam Chomsky, que visava uma libertação social total da tradição Americana, opôs-se às estruturas de autoridade predominantes na sociedade, a que denominou de Sistema , originando o seu oposto, os anti-sistema, rejeitando assim esta autoridade. Não querendo apenas recrutar operários, mas apostando num activismo social e político, muitos activistas da Nova Esquerda estavam confiantes numa melhor e autêntica revolução social. A organização que mais simbolizou a Nova Esquerda foi a SDS (Students for a Democratic Society). Em 1962, Tom Hayden escreveu o seu documento fundador, Port Huron Statement , que solicitava uma democracia participante baseada em desobediência civil não violenta. A SDS marchava contra a guerra do Vietname a favor dos direitos civis e da liberdade de expressão. Direitos civis que também eram requeridos por vários membros do Poder Negro, que

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começaram a adquirir um sentido de orgulho negro e a conquistar a sua identidade cultural, exigindo, inclusivamente, que os tratassem como Afro-Americanos e não mais de negros. O Poder Negro tornou-se público através do partido dos Panteras Negras , fundado em Oakland, na Califórnia, em 1966. Liderados por Malcolm X, utilizando todos os meios possíveis, quiseram travar as desigualdades, gritando de raiva “Power to the people”. Poder ao povo, poder ao «eu», poder à voz, poder poder, serão então estes os exemplos de como a vida e o agir destes anos 60 se revelou como um ensaio para uma visão utópica futura: “Los hippies no quieren conquistar sino transcender la confrontación, sofocar toda esta clase de poder com un motín de flores” (Hall, 1970: 39). Principiando em São Francisco, o movimento Flower Power , a nova cultura de amor livre acudiu milhões de jovens que abraçaram o ideal hippie , apregoando o poder do amor e a beleza do sexo como parte natural da vida quotidiana, tendo como segurança e garantia de continuidade experimental o surgimento da pílula contraceptiva no ano de 1960. A própria ideia de descoberta e de acção alastrou-se ao lugar da maioria das mulheres, que ainda era como companheira do homem, em casa, domesticada, excluída de muitos trabalhos e profissões. As feministas saíram à rua marchando e protestando, escrevendo livros e debatendo rumo a uma mudança social e política, com o intuito de promulgar a imagem da mulher como um ser activo e produtivo. Em 1963, o papel desempenhado pela mulher foi posto em causa através do revolucionário livro de Betty Friedan, The Feminine Mystique . Em 1966, o movimento começou a crescer, disseminando-se, e Friedan, em conjunto com outras feministas, fundaram a Organização Nacional para a Mulher, acabando a Liberação da Mulher por, inevitavelmente, a partir de 1968, tornar-se assunto corrente. A 14 de Janeiro de 1967, a concentração ao ar livre Human Be-In , organizada por Michael Bowen, popularizou a cultura hippie nos Estados Unidos, reunindo 20 mil jovens, entre os quais hippies e beats , no Parque Golden Gate, com o poeta beat Allen Ginsberg a personificar a transição geracional. O Human Be-In focou as ideias chave da contracultura, tais como: o poder individual, a descentralização política e cultural, a vida em comunidade, a consciência ecológica e a própria consciência da consciência. Com o Festival Monterey Pop de 16 a 18 de Junho em 1967, a música rock introduziu

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a primeira nota do Verão do Amor , propagando o estilo e o comportamento para todo o resto do país. Brotou assim uma noção de união, de comunidade tribal, contraposta ao individualismo e competitividade; e principalmente de amor. Propunha-se o amor livre e abertamente celebrado, eliminando barreiras sexuais, tabus repressivos. O amor representante da comunidade física e espiritual, impondo um respeito sagrado pelas relações humanas. Amor universal. Uno. Make love, Not war , entoavam os jovens americanos, pretendendo aniquilar com benevolência a guerra do Vietname. O movimento Flower Power , símbolo de alegria primitiva, elevava o reino dos sentidos. O movimento pela Paz, repleto de cores de arte psicadélica, anunciava a celebração do segundo, o brinde ao momento no agora existencial e o agradecimento por estarem vivos. Os jovens seguiam as suas pulsões, entoando os seus desejos e paixões. Autenticidade, espontaneidade, expressividade, deambulam na busca eterna do prazer, no jogo do aqui e agora. Uma viagem de busca não meramente exterior, mas primeiramente interior, como salienta Roszak: “Vêem, e muitos dos que os seguem acham esta visão aliciante, que construir a boa sociedade é primacialmente uma tarefa não social, mas psíquica. O que torna a deserção juvenil do nosso tempo um fenómeno cultural mais do que um mero movimento político é o facto de ultrapassar a ideologia e atingir o nível da consciência, procurando transformar o nosso sentido mais profundo do eu, do outro e do ambiente” (Roszak, 1971: 70-71). Para além da revolução da vida quotidiana através da transformação das relações pessoais, surge também a revolução da consciência. Mais do que social é psíquica, ou, antes de se tornar social, primeiro parte de dentro. Não pode haver uma revolução exterior se não se acreditar nela primeiro intimamente. O que se pretende modificar já tem que estar alterado no campo da consciência e só depois no campo terreno. Stuart Hall situa o fenómeno hippie no marco da crescente emergência política de grupos e movimentos radicais dentro da geração jovem, a que denominou «underground político geracional»: “Los símbolos, valores expresivos, creencias y actitudes, proyectos y aspiraciones de un grupo como el de los hippies, constituyen, tomados en conjunto, un modo de estar-en-el-mundo significativo y com sentido para ellos” (Hall, 1970: 13). É assim um modo de estar na vida, a way of life , e não meramente simples ideias que se

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desenham no quadro da mente ou uma “moda de cabelo comprido”. Nos Estados Unidos da América, o país que acreditou na liberdade do ser humano, o ser é verbo, acção. Acordados pela Geração Beat , pelos artistas boémios, vagabundos, loucos e sonhadores; os hippies , com a sua visão utópica da vida, o seu crescente compromisso, activismo político e consequente manifestação, tentaram lutar por uma consciência social, despertando (ou tentando despertar) as pessoas do seu presumível amorfismo, rumo a um mundo livre.

"If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, infinite. For man has closed himself up, till he sees all things through narrow chinks of his cavern." (Blake, 1994: 32)

Abrindo portas de percepção, alcançando estados primitivos de contemplação, através de ajudas químicas modernas (como por exemplo o LSD), os hippies passam de um modo de consciência a outro, demonstrando a artificialidade dos limites estabelecidos pelo código moral da sociedade. Ken Kesey, autor de One Flew Over the Cuckoo's Nest , e os seus Merry Pranksters , ajudaram a moldar o aperfeiçoamento da contracultura dos anos 60 quando embarcaram numa viagem atravessando o país no Verão de 1964 num autocarro psicadélico denominado de Further . Começando a sua experiência psicadélica em 1959, Kesey voluntariou-se como cobaia para o projecto com fins “medicinais”, entenda-se experimentais, MK Ultra, financiado pela CIA, que visava verificar os efeitos de drogas psicadélicas como o LSD e a mescalina. Após estes testes, Kesey continuou a sua própria investigação envolvendo os seus amigos próximos, Merry Pranksters , colaborando com Timothy Leary e ligando então os anos 50 com os 60 através dos poetas beat Neal Cassady e Allen Ginsberg. O slogan hippie retirado a Timothy Leary no seu The Politics of Ecstasy , «Turn on, tune in and drop out», tradução deste contexto, é tanto uma ordem directa como também uma metáfora. «Turn on», literalmente, conectar-se, tomando drogas expansivas da mente, mas também mudar, ou seja, abandonar os trilhos seguros e cómodos da sociedade e viver

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formas de experiência sentidas como mais autênticas. «Tune in», sintonizar-se com outra forma de vida, mas também, de modo subjacente, criticar os meios de comunicação de massas, alegando que a sociedade convencional estaria sintonizada com uma má estação emissora, recebendo mensagens e sinais errados. «Drop out», sair do sistema regido pelo trabalho, poder, status e consumo, tendo o seu sentido mais simbólico no gesto de abandonar toda a questão educativa, toda a vivência rotineira. O psiquiatra R. D. Laing, autor de The Politics of Experience and the Bird of Paradise , observou que “Mais do que teorias, precisamos da experiência, que é a fonte da teoria.” E definiu o objectivo do verdadeiro equilíbrio mental: “É, de um ou de outro modo, a dissolução do ego normal, desse falso eu competentemente ajustado à nossa realidade social alienada: o emergir dos mediadores, arquetípicos internos do poder divino, e através desta morte um renascer e o restabelecimento eventual de um novo tipo de funcionamento do ego, sendo este agora servo do divino, e não mais o seu traidor” ( apud Roszak, 1971: 71). Torna-se assim impreterível para esta geração passar por uma experiência interior com a própria consciência, desafiando as potencialidades do cérebro humano, buscando visões para além da óbvia realidade. Pretende-se uma revolução psicadélica, sexual, mental. Questionam-se todas as certezas e verdades. O que é o indivíduo? O eu? O mundo? A consciência da consciência, aspecto em que o activismo político e a boémia beat e hip dão as mãos, revela-se inadiável na busca pela autêntica resposta. A visão do mundo não é nada que se aprenda tão conscientemente como uma matéria de ordem intelectual. É, antes, algo que se absorve do espírito da época, ou a que se é convertido (ou obrigado), ou que provém de experiências inexplicáveis. Interessados pelas filosofias orientais, os hippies voltam-se para a contemplação e para a procura de experiências místicas, transcendentes, opostas a tudo o que o ocidente representa. Esta confrontação vai verificar-se nos seus gestos: voltam-se para a Arcádia pastoral, para o homem arcaico e para as comunidades agrícolas, tendo apenas a sabedoria para sobreviver na rua e na cidade; e uma filosofia activa, possuindo meramente o essencial, opondo-se ao consumo da civilização moderna. Ergue-se uma nova faceta cultural em que as faculdades não intelectivas da

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personalidade, ou seja, as faculdades que exploram o esplendor visionário e a experiência de comunhão humana, se convertem em avaliadoras do que é significante e não é. Buscam a sua salvação e a do universo. Querem o mundo e reclamam-no agora, com o intuito de cuidar da “bola verde e azul” (no seu sentido ecológico), voltando-se para a Mãe Natureza, regressando ao útero, ao uno primordial. Invoca-se uma nova era, mais natural. A 21 Outubro de 1967, em Washington D.C., ocorre uma inédita manifestação contra a guerra do Vietname ao marcharem até ao Pentágono exigindo o fim desta. Além dos académicos e activistas, homens de letras, ideologistas das Novas Esquerdas, pacifistas; também surgiram bruxas, feiticeiros, videntes, profetas, místicos, magos, xamanes, vagabundos e loucos. Anunciava-se, assim, a revolução mística, tendência sem precedentes para o ocultismo, a magia, o ritual exótico. Timothy Leary foi quem integrou a visão psicadélica num contexto religioso: o êxtase da droga, no seu entender, será o rito sagrado de uma nova era. A religião visionária, dependendo de como se utiliza a droga, não barbaricamente, futilmente, será o início para um próspero futuro. Símbolo desta faceta mística encontra-se a poesia de Allen Ginsberg, o poeta do protesto com uma sensibilidade à experiência visionária de William Blake, à «loucura angélica», como lhe chamou. O tempo, a eternidade, loucura, visão, céu, espírito; preenchem os seus temas. Pretende o Apocalipse e não meramente uma revolução. Tanto Ginsberg como Jack Kerouac e Gary Snyder, poetas beats , através das suas palavras, foram emblemas de uma tendência budista da época, não como religião, mas sim como modo de ver, modo de estar na vida, utilizando juntamente o lado zen e o seu sabor sexual (Kama Sutra e tradição tântrica), como modo de libertação pessoal.

“Queimei todo o meu dinheiro num cesto dos papéis.” (Ginsberg, 2002: 19)

É óbvio que o poema não coloca o pão na mesa. Não faz falta a fome de arte; é hobby, lazer, entretenimento. Mas existe a necessidade desta mesma arte, que não enche o

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estômago, para uma vida saudável. Um bom exemplo é o de Gay G. Luce e J. Segal com o seu livro sobre a importância do sono, Sleep , em 1967. Necessitam-se de orientadores que, através de sábias palavras, indiquem o melhor dos caminhos: “O apetite é saudável e ousadamente omnívoro, mas necessita com urgência de um espírito amadurecido que lhe dê de comer” (Roszak, 1971: 68). O começo não passará de um começo? Efémera moda? Será apenas para soltar suculentas sementes? Surgem então as interrogações, os perigos, as eternas falhas humanas. Através da ignorância, reduzem ideais a um sistema de símbolos e frases pré-feitas para desertarem da sociedade, resumindo a cultura a um punhado de colagens. Daí vem a necessidade de grandes líderes, símbolos culturais, mitos. Mentes amadurecidas que distinguem o que é superficial e essencial. Já Goethe tinha observado que nada seria mais inadequado do que uma opinião madura quando adoptada por um espírito imaturo. No entanto, não se pode negar de que se tratam de instintos saudáveis. Ninguém é induzido em erro ou manipulado. Todos têm igual acesso aos acontecimentos. Proclama-se a liberdade individual no reino não material. Este êxtase, esta alegria, é pura celebração existencial deste animal humano tão vividamente consciente do mundo natural. Esta libertação que, para Norman Brown, através do seu Life Against Death, se alcança através do ego dionisíaco, ergue, novamente, o homem sonhador, o audaz que joga com aspirações divinas e transcende o reino da necessidade natural. Não havendo um farol no presente, a geração de 60 recorre aos mitos. Os símbolos de Narciso, Orfeu, Dioniso, Apolo, Édipo, revelam-se mais semelhantes com o ser humano contemporâneo do que com o mísero mortal que apenas ganha e gasta. Lembre-se, por exemplo, da célebre efígie de Che Guevara que poderia ter sido concebida, expressamente, para se converter no símbolo de uma nova era de romantismo político à escala mundial. Necessitam dos mitos tal como se precisa citar um autor num trabalho académico mesmo que o pensamento seja idêntico. Dá força, substância. Força e substância estas que vão buscar às palavras, à perspectiva dos instintos de videntes dionisíacos como Friedrich Nietzsche e William Blake. O seu reconhecimento como símbolos de grandes almas da

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História acompanha a sua eterna credibilidade.

“The devotion of the greatest is to encounter risk and danger, and play dice with death” Friedrich Nietzsche (apud Davis, 2004: 3)

As palavras: ainda há seres que morrem por elas. Os anos 60, circunstancialmente, foram anos oportunos para uma erupção de mitos. Os mitos, culturas imortais inscritas na história dos seres humanos, revelam que o colossal sorri com o seu fim terreno. Assim, a análise que deve ser feita é a de toda a civilização através da linguagem dos séculos. Timothy Leary afirmou que o LSD seria o sacramento que faria a ponte com a antiquíssima sabedoria de dois milhões de anos que se alberga dentro de cada ser. Os hippies , os adeptos do ácido e as tribos das flores realizam então uma função clássica… o império torna-se próspero, urbanizado, completamente dependente das coisas materiais e surgem, então, os novos movimentos subterrâneos. A mensagem que todos eles pregam é ligar, sintonizar, abandonar.

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Utilizando as palavras de Goethe, retiradas de Fausto , Nietzsche profetizava o advento do herói trágico… “Não deveria eu, com ansiosa violência, trazer para a vida a mais singular das figuras?” (Nietzsche, 1997: 19)

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Espelho

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Jim Morrison, espelho do contexto contracultural dos anos 60, foi símbolo, causa e consequência desta geração. Revoltado contra as instituições, para ele símbolos de autoridade, quebrou todas as regras e leis, inclusive os seus laços familiares, rumo ao seu conceito de liberdade. Libertino, na altura do amor livre, quis um mundo à sua imagem; e tentou alcançar o desconhecido, baloiçando entre o estreito muro da vida e da morte, acenando a todos os que o quisessem seguir, tentando abrir as portas da percepção a quem o quisesse ouvir, despertando quem quisesse ser acordado. Na entrevista que deu, em Maio de 1970, à rádio CBC , Jim lamentou que muitas pessoas aceitassem o status quo , deixando que controlassem o seu próprio destino. Afirmou: “I think people should be more involved, rather than designating all their power to a few individuals. One of the tragedies of our time is that decisions are made for you, in which you have no input at all” ( apud Davis, 2004: 375). Tal como demonstra no seu livro The Lords and the New Creatures , torna perceptivel que, para si, existe uma elite de seres superiores, (até influenciado pelo Super-homem de Nietzsche) que deve reinar sobre as massas, visto estas seguirem vidas mecânicas e programadas, no seu limitado mundo de objectos. Jim Morrison tentou agitar as águas para que seguissem outra maré. Na mesma entrevista nota-se a tristeza de o não ter conseguido, pois sempre haverá limitações: “I lament that so many people are living a quiet, ordinary, well mannered life when so many injustices are going on. I think that’s sad. It’s almost as if people are programmed by some higher form of life, from birth to the grave, to live a well- ordered, programmed existence. It’s tragic, man. Is is. Let’s be aware of life in all its complexity” ( apud Davis, 2004: 375). Jim foi sempre considerado hipercrítico das instituições sociais, tais como a escola. Ao descrever a sua experiência na escola de Virgínia, refere que desde cedo pressentiu que algo não estava correcto, que algo o estava a tentar obstruir do real conhecimento das coisas, como se não houvesse liberdade ou a informação não estivesse completa num livro escolar. Em relação ao curso de cinema (UCLA 2), tendo como colegas Ray Manzarek 3 e Francis Ford Coppola, Jim descobriu um tipo de liberdade nunca antes encontrado pois não

2 University of California, Los Angeles

3 Teclista dos Doors 27

havia especialistas nem figuras de autoridade. Devido à sua história precoce, ao contrário das outras artes, qualquer indivíduo poderia assimilar e compreender toda a história do cinema, podendo tornar-se igual ou superior ao seu mestre. Em busca do seu conceito de liberdade e de vida, metamorfoseou-se, mudando de pele, entenda-se de imagem, em busca da melhor paisagem possível, como um camaleão rumo à sua adaptação. Uma das suas primeiras metamorfoses sucedeu quando passou de estudante dependente dos seus pais abastados de classe média alta para o poeta beat sem quaisquer posses: um sonho para Jim, cortando com todo o seu passado, o que incluiu queimar todos os seus apontamentos pretéritos. Jim explicou o motivo ao entrevistador da revista Rolling Stone , Jerry Hopkins: “But maybe if I hadn’t thrown them away, I’d never have written anything original… I think if I’d never gotten rid of them, I’d never have been free” ( apud Davis, 2004: 75). Foi seguindo as suas pulsões, através da perseguição aos seus designados valores e interesses, construindo o seu próprio carácter e personalidade; a sua própria função ou missão: “In that year, there was an intense visitation of energy. I left school and went down to the beach to live. I slept on a roof. At night the moon became a woman’s face. I met the spirit of music” ( apud Davis, 2004: 75-76). Ao longo da sua vida, Jim Morrison teve a influência da geração beat , tanto como poeta, como também como devorador de literatura, sendo extremamente influenciado no seu próprio modo de estar na vida. Desde a sua adolescência, quando morava em Alameda, a quarenta minutos de North Beach - a sede beat perto de São Francisco - não perdia uma oportunidade para folhear alguns livros na livraria City Lights , cuja montra tinha uma tabuleta apelativa: “Banned Books”. Na altura em que frequentava a UCLA, já tendo o rótulo de homem das boleias, Jim não tinha morada nem poiso fixo, alternando entre sofás o seu sono. Um vagabundo beat que, por puro gozo, passeava na praia de Venice, que tinha sido a Meca da geração beat e da tradição boémia a ela ligada nos anos cinquenta. Venice foi ideal para a construção de Jim, visto que era uma pequena comunidade artística que atraía cada vez mais fugitivos, boémios e artistas: a música soltava-se dos rádios ambulantes; grupos de jeans fumavam erva; e vendia-se LSD aos balcões. Venice em Los Angeles era como Haight Ashbury em

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São Francisco. Em Janeiro de 1967, após terem lançado o seu primeiro álbum e antes de se apresentarem no auditório Fillmore de Bill Graham, em São Francisco; os Doors fizeram parte do marco histórico Human Be-In , em Golden Gate Park, que deu início ao Verão do Amor . Complemento da sua geração ao participar em tais eventos, Jim Morrison foi também símbolo do corte com a autoridade. O seu pai, Almirante Steve Morrison, trabalhador, abstémio, disciplinador, seguidor da tradição de serviço militar, entrou para a academia naval dos Estados Unidos nos anos 30, sendo, em 1964, nomeado capitão de um dos maiores porta-aviões do mundo, o Bon Homme Richard . O seu pai representava, assim, a autoridade; e a sua mãe, Clara Clarke Morrison, a convenção. O advogado de Jim, Max Fink, uma espécie de figura paternal e confidente, mencionou o desabafo de Jim em que tinha sido molestado em criança por um homem chegado à família, não revelando de quem se tratava, e que a sua mãe não tinha querido acreditar. Jim, de facto, nunca perdoou a sua mãe. O Natal de 1964 foi a última vez que viu os seus pais. Quando os Doors começaram a actuar, Jim cortou abruptamente o contacto com os seus progenitores. Na biografia 4 da Elektra 5 declarou que estavam mortos. Provavelmente estaria a fazer-lhes um favor, até pelas acções que tinha em mente. Este facto remete para o fosso de gerações dos anos 60, mas com um corte, mais profundo, ancestral, edipiano. Na sua música The End , reescreve a lenda de Édipo, cantando “Father, I want to kill you. Mother, I want to fuck you”. A primeira vez que cantou a secção edipiana foi um choque para o público, que o tomou por louco, acabando por ser expulso do Whisky a Go Go . Literalmente, as palavras tornam-se perversas. No entanto, o seu lado oculto é a mensagem que os próprios Doors pretendem passar: abrir as portas da percepção, tal como explicou o seu produtor Paul Rothchild: “Kill the father means kill all of those things in yourself which are instilled in you and are not of yourself. They are not of your own. They are alien concepts which are not yours. They must die. Those are the things that must die. The

4 Ver anexo 1

5 Editora dos Doors 29

psychedelic revolution. Fuck the mother is very basic. And it means, get back to the essence. What is the reality? Fuck the mother is, very basically, Mother: mother-birth, real, very real, you can touch it, you can grab it, you can feel it. It’s nature, it’s real, it can’t lie to you” ( apud Davis, 2004: 143). A maior das ironias desta era foi o fosso entre Jim e o seu pai, estando o filho a cantar uma música austera contra a guerra, enquanto o seu pai estava a lutar numa guerra, para muitos fútil, contra o comunismo no outro lado do mundo. The Unknown Soldier obteve imediatamente atenção nacional pois reflectia o clima de revolta dos ouvintes. Nenhuma banda, outra senão os Doors, poderiam, numa época de guerra acesa, produzir uma canção, um video clip e uma representação teatral tão chocantes. Nos seus concertos representavam a execução de Jim com Manzarek a erguer o braço numa saudação quase fascista; 6 a apontar a guitarra como se fora uma espingarda, ouvindo-se apenas as baquetas de 7. Após a morte simbólica de Jim, os jovens na audiência gritavam que os Doors tinham acabado com a guerra. Tão devastador para a época que foi totalmente proibido em 1968, tendo apenas sido exibido no Fillmore East . Foi neste momento que o nome dos Doors e de Jim Morrison entraram para os ficheiros do FBI como ameaça eminente. No dia 6 de Outubro de 1968, os Doors viram o espectáculo de televisão da Rede Granada The Doors Are Open , que apresentava Jim num contexto revolucionário, intercalado com um documentário da Convenção Democrática de Chicago e de uma recente demonstração na Embaixada americana em Londres. A 5 de Novembro de 1968, Richard Nixon foi eleito presidente dos Estados Unidos da América, um facto que teria consequências para Jim Morrison, seu contestatário, como se verificou nas suas palavras num concerto após a eleição: “Well, we have a new president… That’s right… He hasn’t made any mistakes… yet!... But if he does, we’re gonna get him… That’s right! Right on! We’re not gonna stand for four more years of this bullshit!” ( apud Davis, 2004: 292). Em 1970, reafirmou a sua contestação ao governo, dizendo: “A revolution is really just a switch from one faction to another. (…) We just need

6 Guitarrista dos Doors

7 Baterista dos Doors 30

to change a few leaders, change a few laws” ( apud Davis, 2004: 375). Como consequência da sua revolta contra a autoridade, Jim Morrison foi detido onze vezes, iniciando o seu currículo a 29 de Setembro de 1963 quando roubou o capacete de um polícia de um carro patrulha. Foi preso, algemado e na confusão que se seguiu a uma tentativa de fuga, o capacete desapareceu e Jim foi acusado de pequeno furto, assim como de distúrbios, resistência à prisão e embriaguez pública. A 4 de Dezembro de 1967, em New Haven, após ter estado nos chuveiros dos bastidores com uma mulher, surgiu um polícia que acabou por borrifar mace nos seus olhos. Já em palco, Jim contou toda a história ao seu público: o jantar, a miúda, os chuveiros, o polícia, utilizando sotaque sulista para ridicularizar o membro de autoridade: “We weren’t doing anything, just standing there talking, and this little man came in… a little man in a little blue suit and a little blue cap, and he reached down behind him, and brought out this little black can and he sprayed it in my eyes… I was blind about thirty minutes, man” ( apud Davis, 2004: 215). O público protestou com assobios e insultou os polícias de porcos (sendo pigs , sinónimo habitual de polícias), enxovalhando a autoridade local, o que originou a detenção de Jim em pleno palco. Foi acusado de exibição indecente e imoral, perturbação da ordem pública e resistência à prisão. O New York Times cobriu a notícia como a primeira detenção em palco de um vocalista de rock , o que levou à ideia generalizada de que Jim Morrison e os Doors representavam uma ameaça à estabilidade pública. A 1 de Março de 1969, em Miami, ocorreu um ponto de viragem na carreira musical dos Doors. A flecha do sucesso, da fama, da aceitação pública que estava a subir, em Miami caiu. Dioniso esteve em palco, na pele de Jim Morrison. O caos e a desordem fora dele. Depois de ter assistido várias vezes, na semana anterior, aos espectáculos de Living Theater , Jim começou a espevitar a sua audiência, provocando-os, insultando-os, tentando quebrar a apatia e despertá-los para o que estava a pensar, planear: “You’re all a bunch of fuckin’ idiots. You’re a bunch of slaves, man. How long you think it’s gonna last? How long you gonna let it last? How long you gonna let them push you around? How long? Maybe you love getting your face stuck in shit. Come on!” ( apud Davis, 2004: 318). Depois explicou a solução, o amor, o carpe diem , um festim dionisíaco: “Hey, I’m not

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talkin’ ‘bout no revolution, no demonstration. I’m talking about getting’ out in the streets. I’m talkin’ about having some fun. I’m talking about dancing. I’m talking about loving your neighbor – until it hurts! I’m talking about love. Grab your fuckin’ friend and love him. Come on!” ( apud Davis, 2004: 318). O público neste momento dissolveu-se numa massa de carne agitada e excitada, enquanto Jim se pôs de joelhos e simulou um fellatio à guitarra de Robby durante um dos seus solos. Seguidamente, começou a discursar sobre o Living Theather : “Hey, listen. I used to think this whole thing was a big fuckin’ joke. I used to think it was something to laugh about. And then, the last couple of nights, I met some people who were doing something. They’re doing something, and I want to get on that trip. I want to change the world. Yeah! Change it. Come on! The first thing we’re gonna do is take over the schools!” ( apud Davis, 2004: 319). Continuou, incitando ao caos e à desordem, à dissolução: “I want to see some action out there. I wanna see you people come on up here and have some fun! Come on now, let’s get on up here! No limits! No laws!” ( apud Davis, 2004: 320). As pessoas saltaram para o palco ao mesmo tempo que Jim despia a camisola e a atirava para o público. Começou a despertar o cinto e perguntou em off se queriam ver o seu órgão reprodutor. Seguidamente, fora do palco, Jim formou uma cobra humana, liderando centenas de jovens atrás dele numa selvagem, ancestral dança pagã. Sobre a desordem habitual dos seus concertos, Jim explicou a situação logicamente, argumentando que o único incentivo que fazia com que os jovens atacassem e tentassem conquistar o palco seria o facto de haver uma barreira, apetecível de ser ultrapassada. Se não houvesse esta barreira policial, os jovens, provavelmente, nem saberiam o que fazer quando chegassem ao palco, ou nem tentariam tal. Jim via antes o lado positivo da situação, sendo esta uma oportunidade para desafiar e testar a autoridade, tendo como base a ideia de experimentação, acção, ou seja, o despertar do amorfismo. Para Jim, mesmo que não soubesse o que iria acontecer, nunca perdia o controlo. Aparentemente contraditório, mas válido, visto que ele sabia exactamente o que estava a fazer e o que pretendia fazer; mesmo que tal esteja na estrada do descontrolo, testando os limites da realidade: “It’s never gotten out of control, actually. It’s pretty playful. We have fun, the kids have fun, the cops have fun. It’s kind of a weird triangle… Sometimes I’ll extend myself and work people up a little

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bit. Each time, it’s different. There are varying degrees of fever in the auditorium waiting for you. So you go out onstage and you’re met with this rush of energy potential. You never know what it’s going to be. So I try to test the bounds of reality” ( apud Davis, 2004: 276- 277). Jim descreveu a sua adolescência como “an open sore”, uma ferida aberta, originária de impulsos que arruinavam cada situação em que estivesse envolvido. Sabia exactamente o que estava a fazer, percebia e compreendia com uma exactidão de poeta, mas, simplesmente, lhe faltava os mecanismos apolíneos de controlo interior que o impediriam de se comportar como Dioniso. Em 1963, Jim conseguiu o papel de Gus, numa produção estudantil da peça de teatro de Harold Pinter, The Dumbwaiter . O encenador Sam Kilman apresentou a Jim a obra de Antonin Artaud, dizendo-lhe que se devia reconhecer que o teatro, como a peste, é um delírio e é comunicativo, sendo este o segredo do seu fascínio. Jim adorou e começou a tornar os ensaios em experimentações anárquicas, absurdas e obscenas de improvisação, o que fez com que todos temessem que o material dos ensaios saísse, espontaneamente, na actuação ao vivo. Existiu sempre um constante substrato de apreensão, uma sensação de que as coisas estavam próximas da perda de controlo. Jim Morrison era completamente imprevisível. Ninguém o conseguia controlar, nem adivinhar, chegando a provocar uma erupção cutânea persistente nas pernas de John Densmore; uma dermatite de ansiedade que surgiu quando conheceu Jim e apenas abalou com ele. Nos concertos dos Doors, os próprios elementos da banda nunca sabiam o que Jim iria inventar, improvisar, tal como aconteceu no fim dos seus espectáculos no Whisky a Go Go , quando, pela primeira vez, Jim vociferou a parte edipiana de The End ; ou como em Miami; ou como no Ed Sullivan’s Show . O programa de Ed Sullivan era a única emissão ao vivo que apresentava música popular. Trampolim de sucesso, quase pré-requisito obrigatório para o estrelato, o programa de Ed Sullivan lançou Elvis em 1956, os Beatles em 1964 e os Rolling Stones em 1967, tendo, porém, censorado as ancas de Elvis, e obrigado Mick Jagger a mudar o verso “Let’s spend the night together” para “Let’s spend some time together”. Em 1967, convidaram os Doors para sete programas, mas a 17 de Setembro pediram para retirar o verso “Girl, we

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couldn’t get much higher” de . Jim Morrison, obviamente, disse a palavra “higher”, ignorando quem o quisesse modificar, cantando como normalmente o fazia em concerto. Os outros seis espectáculos foram cancelados, ao que Jim retorquiu: “So what? We just did Ed Sullivan”. A missão estava cumprida: a aparição na televisão nacional, acompanhada da sua irreverência. A própria articulação de Jim era cuidadosa, fazendo pausas entre as sílabas, como se escolhesse palavras e frases tão cuidadosamente como um cirurgião segura num bisturi. Existia no seu modo de pronunciar e na sua música uma sensação de resistência, um aviso, antecipação, medo. Inteligente, esmerou-se em entrevistas e citações, o que fez com que críticos se interessassem a escrever sobre ele. Esse era o verdadeiro segredo: fez com que críticos sentissem gozo em redigir sobre ele; de maneira que o interpretaram seriamente. O melhor exemplo será a sua biografia da Elektra , algo que a imprensa nunca tinha visto. Tendo lido McLuhan, percebeu que a entrevista era uma forma de arte que devia ser preparada tal como qualquer outra. O sinónimo para Jim era “calling signals”. Pedras preciosas, migalhas de pão, deixadas no seu rasto. Identificaram Jim como ele quis que o identificassem: sombrio, enigmático, misterioso, rebelde provocador, desafiador. Tal como a mensagem oculta no verso “Show me the way to the next whisky bar”, quando cantava a 8 no London Fog quando ainda eram a banda da casa, que indicava onde os Doors queriam estar, ou seja, no final da rua, no Whisky a Go Go , onde os Love e os Buffalo Springfield eram as bandas do momento em Sunset Strip; como também pretendia que os Doors fossem a banda de Los Angeles quando afirmou: “The city is looking for a ritual to join its fragments. The Doors are looking for such a ritual too – a sort of electric wedding” (apud Davis, 2004: 166). Jim, ciente do papel dos media, falava com o crítico da revista Time sobre o conceito de teatro rock , misturando a música com a estrutura de um drama poético; e sublinhava as palavras que queria que fossem citadas no final da entrevista com John Carpenter, editor musical de Los Angeles Free Press.9 “I was aware of the national media while growing up. They were always around the house, so I started reading them. And so I became aware of

8 Retirada de uma composição de Berthold Brecht e Kurt Weill, A Ascensão e Queda de Mohagonny

9 O primeiro e maior jornal underground de Los Angeles 34

their style, their approach to reality. When I got into the music field, I was interested in securing a place in that world, and so I was tuning keys – and I just instinctively knew how to do it. They look for catchy phrases, and quotes they can use for caption, something to base an article on, to give it an immediate response. Erotic politicians is the kind of term that does mean something, but it’s impossible to explain. If I tried to explain what it means to me, it would lose all its force as a catchword” (apud Davis, 2004: 183). Na sua adolescência, Jim tirou dois cursos influentes para a construção do seu próprio “eu”: um sobre as filosofias de protesto, reunindo pensadores que foram críticos, cépticos ou revoltados contra a tradição filosófica: Montaigne, Rousseau, Hume, Sartre, Heidegger e Nietzsche; e o outro sobre o comportamento colectivo, a psicologia de massas, em que redigiu um trabalho sobre as neuroses sexuais das multidões com uma bibliografia que incluía Freud, Jung, Aldous Huxley, e George Orwell. Este trabalho discutia inclusive a utilização da música para estimular as energias sexuais de uma audiência. Ainda durante o liceu, Jim leu os sociólogos do momento, com interesse especial na psicologia de massas e relacionado com o drama e o teatro. Leu The Lonely Crowd de David Riesman, que explorava problemas individuais e as ameaças à liberdade pessoal devido à cultura de massas; e Life Against Death de Norman O. Brown, que afirmava que a repressão sexual não só causava neuroses individuais, como também uma patologia social. Jim concluiu que as massas podiam ter neuroses sexuais muito parecidas com as dos indivíduos e que estas perturbações podiam ser rápida e efectivamente diagnosticadas e depois tratadas. Jim, depois do conhecimento adquirido, explicava que podia olhar para uma multidão e diagnosticá-la psicologicamente. Depois podia curá-la. Fazer amor com ela. Agitá-la. Jim começou cedo a sua investigação, tendo inclusive uns binóculos para o seu voyerismo nocturno, anotando tudo o que via. Até os seus amigos eram matéria de investigação. Bebia as cervejas, devorava a comida e vestia a roupa de todos sem pedir, guardando registos exactos de todas as acções e reacções, escrevendo no seu diário com se fosse um sociólogo. Em 1971, numa entrevista à Rolling Stone , Jim afirmou: “It took me a while to realize that this thing – performing rock and roll songs – was really about a theater trip. That’s

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when I understood what was going on” (apud Davis, 2004: 120). Teve Introdução ao Teatro, História do Teatro, elementos fundamentais de representação e princípios de design de cenário, que eram, sob muitos pontos de vista, a música clássica dos Doors: realizada num estilo altamente dramático, conduzia à apreciação da banda tanto em termos teatrais como em termos musicais. Leu também Crowds and Power de Elias Canetti, ensinando-lhe técnicas que iria aplicar, controlando e manipulando a audiência dos Doors. Disse inclusive que controlar a sua audiência era como olhar para um mural. Existia movimento e de súbito tudo ficava gelado, gostando de testar, de ver quanto tempo o público aguentaria; e precisamente na altura em que estavam para “rebentar”, soltava-os, sabendo sempre o momento exacto em que o deveria fazer. Uma experiência máxima de que chegou a elucidar Gloria Stavers, editora da revista 16 : “You have to have them. They can’t have you. And if you don’t have them, you have to stop and get them” ( apud Davis, 2004: 295). Um bom exemplo será em When the Music’s Over , no álbum Absolutely Live , em que as suas técnicas de controlo de multidões resultaram na perfeição, silenciando a audiência: “Shut up! Shhhh. Now is that any way to behave at a rock and roll concert? You don’t wanna hear that for the next half hour, do you? No. All right. Shh. Shh. C’mon. Give the singer some, man. All right.” 10 Explicitando a sua performance, ambígua como a sua vida, oscilando entre o teatral e o real, Jim afirmou: “You have to be tragic, man. We’re performing music for the final dance of death. Truth lies beyond the grave” ( apud Davis, 2004: 177); e chegou a aconselhar Mick Jagger: “Everything had to be more exaggerated. If you fall, man, you really gotta fall” ( apud Davis, 2004: 264). Por um lado, Jim incluía uma espécie de sonambulismo numa das suas actuações, baloiçando ao largo da borda do palco com nove metros de altura e depois caía sobre a audiência. Parecia um acidente e era chocante, deixando a multidão extasiada. Por outro, tomava tudo verdadeiramente a sério. Não sentia que a obra estivesse completa enquanto não conseguisse pôr o público no “teatro” numa espécie de chão comum. Algumas vezes interrompia pura e simplesmente todas as hostilidades, inquietações e tensões latentes antes de se unirem todos.

10 Em anexo áudio, faixa 2 When the Music’s Over (a partir de 8:42s)

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Jim Morrison explicou a contradição, ao afirmar que a música libertava a sua imaginação: “When I sing my songs in public, yes, that’s a dramatic act, but not acting as in theater, but a social act-real action” ( apud Davis, 2004: 228); não vendo, porém, a sua missão como um mero espectáculo, como um elementar soltar de sons: “For me, it was never an act, those so-called performances. It was a life-and-death thing – an attempt to communicate, to involve many people at once in a private world of thought” ( apud Davis, 2004: 408). Os Doors eram muito mais do que apenas uma actuação, mais do que uma banda de rock . Jim estava a soltar sinais e os receptores da crescente cultura rock estavam, definitivamente, a recebê-los: O crítico de cinema de Los Angeles Free Press , Gene Youngblood escreveu: “Os Beatles e os Stones existem para vos rebentar a mente; os Doors existem para o que se segue, quando a vossa mente já tiver desaparecido. (…) A música dos Doors é a música do ultraje. Não é falsa. Explora os segredos da verdade. Contrariamente à sua técnica, o seu conteúdo é de vanguarda: fala da loucura que vive dentro de todos nós, da depravação e dos sonhos, mas fala de tudo isso em termos musicais relativamente convencionais. É isso a sua força e a sua beleza – uma beleza que aterroriza. (…) A música dos Doors é mais surrealista do que psicadélica. É mais angustiante que amarga. Mais do que rock, é ritual – o ritual do exorcismo psíquico-sexual. Os Doors são os feiticeiros da cultura pop. Morrison é um anjo; um anjo exterminador. (…) Os Doors podem proporcionar a Iluminação através do sexo” ( apud Hopkins, 1994: 148). Tom Robbins, do semanal underground Helix , redigiu: “Jim Morrison is an electrifying combination of angel in grace and dog in heat… The Doors are musical carnivores in a land of musical vegetarians… The Doors scream into the darkened auditorium what all of us in the underground are whispering more softly in our hearts: We want the world and we want it… NOW!” ( apud Davis, 2004: 189-190); A Vogue afirmou que Jim agarrava as pessoas com as suas músicas sinistras, carregadas de simbolismo freudiano, poéticas mas não bonitas, cheias de sugestão de sexo, morte, transcendência, escrevendo como se Edgar Allan Poe tivesse reencarnado um hippie . A Time e a Newsweek comentaram o seu primeiro álbum, The Doors , dando uma atenção que nem os próprios Rolling Stones tiveram. A Time chamou os Doors de “black

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priests of the Great Society”, e a Jim de “Dionysius of rock”. Houve também a aceitação de Richard Goldstein, que aos vinte e cinco anos era um dos mais importantes críticos da música rock no país. No The Village Voice , descreveu o álbum The Doors como “uma divagação convincente, tensa e poderosa”. Sobre The End , ele argumentava que “para qualquer pessoa que queira discutir o conceito de literatura rock o melhor era ouvir com tempo e profundidade esta música”. Era, disse Goldstein, nada menos que rock “joyceano”. Chamava a Jim um “punk de rua que foi para o céu e que reencarnou como um menino de coro”, como também o nomeou de xamane sexual. Para além da sua libertinagem, que sabida pelo público aumentava o símbolo e o desejo do símbolo; a sua própria imagem emanava sexualidade. Nos concertos, a sua representação era violentamente sexual, esfregando-se contra o descanso do microfone, até ficar visivelmente erecto, trabalhando sobre si próprio rumo a um ritual pagão, como modo de invocar a sua musa. Sexual, mas também aliado ao intelectual, o que levou Jim a afirmar e a soltar mais uma palavra-chave: “We’re really politicians. You could call us erotic politicians” ( apud Davis, 2004: 182). Seguidamente, explicou a função sexual nos seus concertos, o seu poder, as suas consequências, fugindo do rótulo banal e primário do sexo: “We’re primarily a rock and roll band, a blues band, just a band – but that’s not all. A Doors concert is a public meeting called by us for a special kind of dramatic discussion and entertainment. When we perform, we’re participating in the creation of a world, and we celebrate that creation with the audience. It becomes the sculpture of bodies in action. That’s the political part, but our power is sexual. We make concerts sexual politics. The sex starts with me, then moves out to include the charmed circle of musicians onstage. The music we make goes out to the audience and interacts with them. They go home and interact with their reality, then I get it all back by interacting with that reality. So the whole sex thing works out to be one big ball of fire” ( apud Davis, 2004: 182-183). Mesmo explicando a iluminação através do sexo, Jim Morrison não se conseguia despegar da célebre efígie do jovem leão, fotografia tirada por Joel Brodsky, que lhe deu contornos de um deus grego.11 A imprensa colocava-o como sex symbol e a sua libertinagem passava-lhe o certificado, mas Jim não queria tal. Tudo era mais profundo,

11 Ver anexo 2

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complexo e sério. Mesmo na sessão com Joel Brodsky, o fotógrafo afirmou que a maioria dos grupos quando se tira uma fotografia no estúdio divertem-se uns com os outros, enquanto os Doors nunca fizeram tal. Estavam empenhados sobre aquilo que estavam a fazer e Jim era o mais sério dos quatro. Seria uma intenção de imagem, de ícone, mas nunca de venda carnal. A Elektra , para promoção da banda, pretendia sempre uma foto do grupo realçando Jim, mas a banda, e, especialmente, Jim, foram inflexíveis, não querendo sequer uma fotografia na capa do segundo álbum, Strange Days .12 Jim odiou a capa do primeiro álbum, como também do Absolutely Live e de 13 , que, precisamente, o destacavam. A sua imagem fez gerar também várias propostas cinematográficas, entre as quais, de Andy Warhol; de Elliot Kastner que pretendia que Jim representasse o papel de Billy the Kid numa adaptação da peça do poeta beat Michael McClure, The Beard ; e de Jim Aubrey, lendário presidente da televisão CBS e, posteriormente, controlador da MGM . Jim Morrison recusou de ser estrela de vários filmes, denotando que o verdadeiro interesse seria, simplesmente, pendurar a sua carne no ecrã. A solução de Jim estaria em elaborar os seus próprios filmes através das suas próprias ideias, alimentando-se assim de uma vida artística profunda: “Estou interessado em filmes porque para mim é a aproximação mais íntima em forma de arte que temos para o fluxo de consciência, tanto no sonho como na percepção diária do Mundo” ( apud Hopkins, 1994: 210). Para além do documentário sobre os Doors em 1967, Feast of Friends , iniciou o filme HWY em Março de 1969 com a ajuda de Frank Lisciandro, Babe Hill e Paul Ferrara. Contactaram também Timothy Leary e Carlos Castaneda para documentários, mas que falharam; similarmente como a ideia para um novo filme, cujo tema seria a identidade, contando a história de um jovem montador cinematográfico em Los Angeles que, um dia, largou o seu emprego, mulher e filhos para desaparecer nas selvas do México, naquilo a que Jim chamou de procura louca do zero absoluto. Jim acreditava que na arte e, especialmente no cinema, as pessoas tentavam confirmar a sua própria existência: “I’m hung up on the art game. You know? My great joy is to give form to reality. Music is great to release, a great enjoyment to me. Eventually I’d like to write something of great importance. That’s my ambition – to write something worthwhile”

12 Ver anexo 3

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(apud Davis, 2004: 375). Em 1969, devido ao seu estatuto de estrela de rock , Michael McClure aconselhou Jim Morrison a publicar os seus poemas em circulação restrita, o que viria a suceder com American Prayer e The Lords and The New Creatures . A sua fama e o seu rótulo de excessos seriam um entrave à aceitação como poeta. Se bem que, para Jim, beber fosse um imperativo de rica tradição poética, o público entendia este excesso de modo mais negativo, correlacionado com a sua rebeldia e excentricidade, o que fez Jim perguntar-se: “I wonder why they like to believe I’m high all the time. I guess maybe they think someone else can take their trip for them” ( apud Davis, 2004: 249). O público tinha-se tornado ciente daquilo que se deveria esperar de um concerto dos Doors: desordem e transcendência. Na ausência de tal, conseguiam pelo menos ver o Rei Lagarto a comportar-se de uma maneira como mais ninguém podia, ou fazia. Cambaleava de tão drogado, gritava de tão alcoolizado versos esquecidos, e depois caía no palco, incapaz de se levantar. 13 Os Doors proporcionavam um espectáculo – um espectáculo como jamais se tinha visto, um espectáculo excêntrico. Mas quanto mais Jim constatava que as letras e a música estavam a ser negligenciadas, mais a sua frustração explodia no palco e fora dele. A audiência só ficava satisfeita quando tocavam o que pensavam que iriam ouvir, reclamando Light my Fire , a sua música mais comercial, cada vez que tinham oportunidade. Jim tinha concebido os Doors como uma fusão inteligente de teatro, poesia e música bem executada e exploratória, conceito este que se estava a desvanecer entre a sua audiência, em grande parte arrastada pelo sensacionalismo do ídolo sexual na moda, o que o fez escrever que estava a ter um esgotamento. Foi antes de publicar a sua colecção de poemas, The Lords and The New Creatures , que Jim tentou desistir dos Doors. A educação, inteligência e background de Jim separava-o de muitos dos seus fãs: licenciado e devorador de livros, era dificilmente o homem para agradar e entreter aqueles que não ligavam ao que Jim considerava o mais importante, as palavras. A sua faceta de estrela de rock era apenas uma actuação, pois Jim Morrison considerava-se um poeta. A música tinha a função do livro, passar uma mensagem através da sua poesia: “É uma pesquisa”, Jim disse, “Abrir uma porta a seguir a

13 Ver anexo 4

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outra. Até agora não existe uma filosofia ou uma política consistentes. A sensualidade e o pecado são hoje uma imagem atraente para nós, mas penso nela como uma pele de cobra que um dia será mudada. O nosso trabalho, a nossa actuação, são uma luta pela metamorfose. Agora estou mais interessado no lado sombrio da vida, no pecado, na face escondida da Lua, na noite. Mas na nossa música parece-me que estamos a procurar, a lutar, a tentar atravessar para um reino mais limpo, mais livre” ( apud Hopkins, 1994: 133- 134). Para as centenas de milhares de admiradores, Jim era um rebelde bem-vindo, um parceiro imaginativo para o sexo, o Rei Lagarto , romanticamente doido. Para o americano médio era uma ameaça pública, obscena e arrogante. Esse era o seu lado apocalíptico. Mas o lado que Jim queria que trespassasse, não estava a chegar aos seus receptores. Então deixou crescer a sua barba, ganhou peso e desleixou-se na aparência, na casca, querendo que reparassem no seu miolo. 14 Fernando Pessoa disse que “Assim como lavamos o corpo devíamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa”. Assim tentou, Jim Morrison, que, em Junho de 1969, na entrevista a Jerry Hopkins da Rolling Stone , trocou a imagem de Rei Lagarto , “erotic politician”, por James Douglas Morrison, poeta veterano, meditativo, com algo por dizer. Quando lhe perguntaram se não queria mais ser visto como um político erótico, Jim admitiu publicamente que apenas tinha dito tal para dar a um crítico a frase-chave que todos os jornalistas pareciam procurar. Surge um novo Jim Morrison, mas que continuava a manipular os meios de comunicação, fazendo com que se esquecessem da sua aparência, para se preocuparem com o seu interior, realçando assim a sua poesia. Sendo franco sobre o seu passado maquiavélico, estava a constituir outra imagem de si próprio. Sobre o verso do seu poema The Celebration of the Lizard , “I’m the Lizard King. I can do anything”, Jim explicou o seu fascínio por répteis, identificando o lagarto e a cobra com o inconsciente e com tudo o que se teme; e comentou que o poema seria uma invocação às forças obscuras, mas, posteriormente, admitiu que a imagem do Rei Lagarto que projectara era irónica: “It’s like when you play the villain in a western, it doesn’t mean that that’s you. It was supposed to be ironic. I mean, come on” ( apud Davis, 2004: 243). A

14 Ver anexo 5

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personagem do Rei Lagarto era como que uma piada para Jim, mas uma piada séria, cósmica. A evocação do deserto americano e do mundo réptil fazia parte do seu trilho existencial, transpondo a sua experiência de vida rumo à eternidade. Contudo, esta representação do Rei Lagarto foi apenas uma personagem entre várias ao longo da vida de Jim Morrison, que chegou a dizer que com uma imagem não existia qualquer perigo que se aproximasse. No primeiro álbum dos Doors, Jim até pensou em mudar o seu nome para James Phoenix, o que, por um lado, era uma protecção à sua família, inclusive à carreira naval do seu pai, calculando os possíveis danos dos seus projectos; por outro, era o nome e o símbolo de uma ave mítica: Phoenix, erguendo-se das cinzas da consciência burguesa, arauto da era do Aquário. A própria imagem do renascer das cinzas foi constante em Jim Morrison, queimando o Rei Lagarto no concerto de Miami: “I think I was just fed up with the image that was created around me, which I sometimes consciously, most of the time unconsciously, cooperated with. It just got too much for me to stomach, so I just put an end to it in one glorious evening” ( apud Davis, 2004: 392); retornando como James Douglas Morrison, o poeta e como Old Blues Man 15 em palco, acabando o cantor ao vivo por “morrer” a 12 de Dezembro de 1970, quando, no solo de Light My Fire , agarrou no suporte do microfone e bateu no chão até a madeira começar a estalar. Ray Manzarek disse que testemunhou o processo oculto de evaporação da vitalidade de Jim, a dispersão do seu chi 16 . Os Doors nunca mais apareceriam em público como quarteto, mas Jim ressurgiria como Mr. Mojo Risin 17 , que, para além de ser um anagrama de Jim Morrison, poderia ter vários significados devido à ambiguidade da palavra mojo, que remete para magia, encanto ou feitiço; sex appeal , talento; ou recuperação de um trauma ou experiência negativa. Este erguer de Jim pode-se aplicar a todas as alusões de mojo, particularmente ou mesmo em conjunto. Jim criava assim várias personagens que ele próprio desempenhava, passando, na sua juventude, de estudante dependente da sua família para poeta beat, vivendo de pé descalço (literalmente) a sua felicidade de mendicidade; na sua carreira musical, de Rei Lagarto ,

15 Surge em Maggie M’Gill

16 Energia vital chinesa

17 Surge em L.A. Woman 42

James Douglas Morrison, Old Blues Man a Mr. Mojo Risin , desenhando também um viajante existencial, homem das boleias, sem rosto e perigoso, um estrangeiro com fantasias violentas, o misterioso “killer on the road” 18 . Alcoolizado, a sua mente criava múltiplas personagens, que incluía o arrogante Jimbo; o romântico celta, à imagem de Dylan Thomas; o idiota com alma de palhaço; o aldrabão emproado; o poeta beat; e o cavalheiro sulista: “See, singing has all the things I like. Writing and music. There’s a lot of acting. And it has this one other thing… a physical element… a sense of the immediate. When I sing, I… create… characters” ( apud Davis, 2004: 249-250). Metamorfeando-se, mudando de pele, Jim Morrison foi o poeta das mil máscaras. Tal como todos os seres que constroem a sua identidade através de influências, Jim foi construindo a sua “casa” com vários tijolos, sendo estes influências artísticas, tal como o próprio disse: “My heroes were artists and writers” ( apud Davis, 2004: 333). Em 1955 Jim viu James Dean em Rebel Without a Cause , filme arquétipo de delinquência juvenil, tendo ficado impressionado pelo herói irrequieto Jim (a quem o seu pai alcoólico chamava “Jimbo”) e pela morte trágica sacrificial de Sal Mineo no final do filme. Em 1958, quando vivia em Alameda, Jim Morrison apanhou o vírus da poesia beat, que o infectou para o resto da sua vida. Leu On the Road de Jack Kerouac e apaixonou-se pela energia furiosa de Dean Moriarty, que, segundo Kerouac, era um daqueles loucos com cio de viver: “the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones who never yawn or say a commonplace thing, but burn, burn, burn like fabulous roman candles exploding like spiders across the stars” ( apud Davis, 2004: 18). Jim, inclusivamente, imitou o riso de hiena de Moriarty “heeeee-heeeee-heeeee”. Foi durante este Verão que Jim leu (duas vezes) o livro que mais o impressionou: O Nascimento da Tragédia de Friedrich Nietzsche. Jim, na sua passagem pela UCLA, teve como ideia cinematográfica exibir a famosa cena da vida de Nietzsche, na qual este chega ao pé de um homem que está a bater num cavalo e abraça-se ao pescoço do animal, desmanchando-se em lágrimas, acabando, posteriormente, por enlouquecer. A banda sonora seria o som de aplausos. Jim iria também

18 Surge em

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homenagear Nietzsche numa sessão de piano (Como se pode verificar em http://www.youtube.com/watch?v=unHoj9QGRYc ) e introduzi-lo intimamente na sua vida, como também na sua música The Soft Parade : “When all else fails, we can whip the horse’s eyes and make them sleep and cry”. Na faculdade, os próprios colegas serviram de base para Jim: Dennis Jakob 19 discutia pensamentos de Nietzsche e Norman O. Brown; John DeBella falava sobre xamanismo e sobre o poeta visionário, acreditando que os sonhos criavam a realidade; Phil Olano vociferava psicologia jungiana, argumentando uma teoria do verdadeiro rumor, segundo a qual, se a vida não fosse tão excitante e romântica como deveria ser, criavam-se imagens, não importando que não fossem verdadeiras, desde que se acreditasse nelas; E, por último, Félix Venable, símbolo do excesso de álcool e ácidos, que citava Dylan Thomas: “My poetry is, or should be, useful to me for one reason. It is the record of my individual struggle from darkness toward some measure of light” ( apud Davis, 2004: 51). Jim leu avidamente vários livros, entre eles, para além dos que já foram referidos, The Power Elite de C. Wright Mill; The function of the Orgasm de Wilhelm Reich; Mythology de Edith Hamilton; Marquês de Sade; Arthur Rimbaud, em especial Illuminations ; vasta literatura beat, salientando-se The Dharma Bums de Kerouac; Nova Express e Naked Lunch de William S. Burroughs; e Howl de Ginsberg. A noção romântica da poesia tomava forma: a lenda de Rimbaud, a tragédia predestinada; a tradição boémia e poética de Dylan Thomas, a loucura beat ; ficaram gravadas na sua consciência, na qual a dor se uniu às visões. As páginas tornavam-se um espelho no qual Jim via o seu reflexo. Já no tempo dos Doors, Jim foi buscando ideias para a construção da sua obra, do seu «eu», roubando mesmo o visual a Gerard Malanga, assistente de Andy Warhol, que dançava nos espectáculos dos Velvet Underground todo vestido de couro negro; e ficou impressionado com a rebeldia de Brian Jones, baixista dos Rolling Stones, tornando-se num ídolo para Jim, que começou a imitá-lo, sussurrando quando falava; e prestou-lhe homenagem, distribuindo nos seus concertos um poema em honra da sua morte: Ode to L. A. While Thinking of Brian Jones, Deceased.

19 Posteriormente trabalharia como assistente comercial de Francis Coppola em Apocalypse Now

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Este “saque” de influências também se verificou nas músicas dos Doors, tendo sido Alabama Song retirada de uma composição de Berthold Brecht e Kurt Weill, A Ascensão e Queda de Mohagonny ; Backdoor Man proveio de Backdoor Friend de Willie Dixon; para , inspirou-se no romance de Louis- Ferdinand Céline, Voyage au bout de la Nuit , para The Spy em A Spy in the House of love de Anaïs Nin, para Universal Mind em Illuminations de Rimbaud; Take it as it Comes dedicada aos ensinamentos de Maharishi; e retiraram a William Blake o verso “Some are born to sweet delight, some are born to the endless night” para End of the Night , como também, para o próprio nome do grupo, inspirado no verso “When the doors of perception were cleansed, everything would appear to man as it is, infinite” de Marriage of Heaven and Hell , como também da obra de Aldous Huxley, The Doors of Perception . Os Doors, a porta entre o conhecido e o desconhecido. Jim Morrison queria ser essa porta, essa ponte, que retira as limitações e guia para o que mais importa, rumo ao melhor dos reinos. Jim não queria ser estrela de rock , mas sim um xamane, alguém que saiba o que realmente tem valor. A música serviria como meio de despertar, de, simplesmente, abrir as portas da percepção, tal como a poesia. A fama e o dinheiro nada significavam. Jim Morrison, a maior estrela de rock da América, podia ser visto a andar a pé, totalmente vulnerável, apenas protegido pelo seu couro. Preferia motéis em vez de um local fixo. Parecendo um monge zen, vagabundo, sem posses, apenas com o cartão de crédito e a carta de condução nos bolsos, Jim, simplesmente, desaparecia. Os direitos de autor e todos os outros rendimentos dos Doors seriam divididos em quatro partes iguais; e todas as decisões criativas não eram tomadas por maioria mas por unanimidade, fazendo do grupo uma espécie de mosqueteiros de Alexandre Dumas. Inclusive num concerto em que o apresentador anunciou a banda como “Jim Morrison and The Doors”, Jim não entrou em palco e exigiu que o apresentador dissesse o nome correcto do grupo. Uma outra editora fez uma proposta a Jim, oferecendo-lhe uma casa em Beverly Hills, um Rolls Royce e um milhão de dólares, ao que Jim apenas se riu. Os Doors tinham um pacto, selado a sangue e fogo, que Jim pretendia honrar. Era uma questão de carácter, integridade, valor; uma questão de honra, remetendo para a ancestral aretê do herói grego. Desprezava o material, o mundo dos objectos, dando tudo o que Pamela, o seu amor

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cósmico, quisesse, incluindo a loja de roupa Themis ; como também ofereceu a um hippie sem-abrigo um telefone francês de marfim e ouro que Andy Warhol lhe tinha presenteado. Numa entrevista à L.A. Free Press , Jim disse que estava orgulhoso que os Doors nunca se tivessem vendido, permanecendo insubmissos até ao fim, deixando a sua integridade intacta. Porém, o sonho dos mosqueteiros teve um fim. A General Motors quis comprar os direitos de Light My Fire para um anúncio da Buick; e como ninguém conseguia encontrar Jim e a agência precisava de uma resposta rápida, os outros três votaram, assinando o advogado, Max Fink, por Jim. Sentiu-se traído, levando-o a dizer: “I don’t have partners anymore. I have associates” ( apud Davis, 2004: 297). Alías, Jim chegou a comentar a Michael McClure que a única vez que não o prejudicaram foi quando viu a capa do seu livro The Lords and The New Creatures . Linda Ashcroft, no seu livro Wild Child: Life with Jim Morrison , comenta que Jim foi violado pelo seu pai, como final de uma demonstração de disciplina, quando Jim estava no ensino secundário. Em 1968, depois do clip de The Unknown Soldier aparecer nos concertos dos Doors, um grupo de empresários de rádio no Sul enviaram várias cartas ao director do FBI, J. Edgar Hoover, sugerindo que os Doors estavam a disseminar propaganda inimiga e a denegrir a moral civil com a sua performance obscena e as suas mensagens contra a guerra. O próprio concerto de Miami, que acabou com sorrisos entre os polícias e a banda nos bastidores, surgiu como oportunidade de extinguir os Doors. Nos três dias posteriores ao concerto de Miami, Jim estava na Jamaica, e o seu futuro estava a ser maquinado pela polícia, por políticos e pela imprensa de Miami. Larry Mahoney, do Miami Herald , começou a liderar uma campanha contra os Doors, alegando que Jim tinha gozado com as leis de obscenidade, através da sua exposição indecente e incitamento à rebelião. A 5 de Março de 1969, Bob Jennings, empregado de vinte e dois anos no escritório do Procurador do Estado, concordou em servir como queixoso no caso e, assim, Jim foi acusado de um delito grave: comportamento impúdico e lascivo; e três delitos leves: exibição indecente, profanação pública e embriaguez. Alegaram que Jim exibiu impudicamente e lascivamente o seu pénis, agarrou nele e

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abanou-o, tendo também simulado actos de masturbação sobre si próprio e copulação oral sobre outro, o que enviava Jim para a prisão de Raiford (Florida) durante sete anos e cento e cinquenta dias. No dia seguinte, o nome de Jim e dos Doors foi enxovalhado nas primeiras páginas de todo o país; e, consequentemente banido de quase todo o sítio, incluindo de Woodstock . As próprias estações de rádio começaram a retirar as suas músicas e a Rolling Stone imprimiu uma página com um cartaz a dizer “Wanted” contendo a fotografia de Jim Morrison.20 No final de Março, o FBI “lembrou-se” de acusar Jim de fuga ilegal, sendo esta uma acusação ridícula pois Jim tinha deixado Miami três dias antes de qualquer mandato ter sido emitido; porém, o FBI enviou, mesmo assim, um dos seus agentes ao escritório dos Doors com um mandato de captura. A defesa argumentou utilizando a própria atmosfera da época, dando como exemplos o The Living Theatre , Hair , Woodstock , o Tropic of Câncer de Henry Miller; e também se tentaram justificar através de quadros de Gauguin, Picasso e Miguel Ângelo. Cento e cinquenta fotografias foram apresentadas como prova e nenhuma delas mostrava Jim a praticar algo de ilegal. Contudo, o juiz Murray Goodman tinha sido nomeado para preencher uma vaga no tribunal e enfrentava a sua primeira votação em Novembro, transformando, assim, uma condenação Morrison numa garantia de apoio popular. A testemunha estava empregado no escritório do Procurador do Estado, enquanto a sua mãe trabalhava no mesmo edifício e a sua irmã era secretária de um juiz local. Resultado: Excluíram a prova respeitante aos padrões de comunidade. A 30 de Outubro, Jim Morrison foi condenado a 6 meses de prisão e multado em 500 dólares por actuação indecente e imoral em público. Jim pode sair em liberdade, mediante uma caução de 50 000 dólares, até novo julgamento. Questionado sobre o facto de ter exibido o seu órgão reprodutor, Jim respondeu que não se lembrava, pois estava demasiado alcoolizado. Todavia, foi, ironicamente, absolvido da acusação de embriaguez. Oficiais do FBI e da Casa Branca acreditavam que Jim Morrison tinha ameaçado a presidência Nixon, o que pode ter estado relacionado com esta perseguição. A operação do

20 Ver anexo 6

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FBI, COINTELPRO, estava a neutralizar, por vezes de modo violento, os críticos e inimigos do governo, tendo como alvo, na mesma altura, John Lennon, que tinha criticado as políticas de Nixon. A 23 de Março de 1969, o próprio Presidente Richard Nixon escreveu uma carta de apoio ao “Rally for Decency”, que decorria no Orange Bowl em Miami, com o intuito de protestar o comportamento dos Doors. Após Miami, os Doors tinham de pagar uma fiança de 5 mil dólares para cada concerto que davam, apenas perdendo a fiança se o espectáculo fosse obsceno. Segundo Stephen Davis, um advogado reformado de Hollywood que jogou golf com o advogado de Jim, Max Fink, disse em 2002 que acreditava que Fink poderia ter sido alertado sobre uma ameaça a Jim Morrison, cerca de um mês antes de Jim voar para Paris, por volta de Fevereiro de 1971. De acordo com este advogado, que quis permanecer anónimo, Fink recebeu a dica através de um associado de Mickey Rudin, advogado de Beverly Hills, que tinha como cliente Frank Sinatra, e estabelecia contacto com a administração Nixon. Este advogado reformado deu a entender que Fink foi avisado de que o seu famoso cliente iria ser neutralizado na prisão, assassinado ou incapacitado, ao que deveria sair do país antes que os seus apelos se extinguissem e o seu passaporte fosse, consequentemente, confiscado. O que realmente foi dito não se sabe. O certo é que, dentro de um mês, Jim Morrison estava a viver num apartamento do edifício nº 17, na Rua Beautrellis em Paris, sob o nome de James Douglas. Paris, idílico. Paris, exílio para organizar o seu pensamento e dedicar-se às palavras, sendo importante que o reconhecessem como poeta. Paris, a cidade da sua liberdade, deambulando incógnito na sua calçada. Paris, sua última morada. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu na manhã de 3 de Julho de 1971, sendo Pamela Courson e Jean de Breteuil 21 os únicos que presenciaram a morte de Jim Morrison, mas pereceram cedo demais para terem tempo para explicações. Pamela contou várias versões do sucedido: uma à policia, outra a Alain Ronay 22 e a Agnés Varda 23 e ainda outra aos seus amigos na Califórnia, silenciando-se três anos depois.

21 Traficante de heroína, amigo de Pamela

22 Colega de Jim Morrison na UCLA

23 Realizadora, amiga de Jim Morrison 48

Um esboço consistente do acontecimento pode ser feito através de um conjunto de informações críveis. Jim e Pamela tinham estado a snifar a noite de heroína; às 4 da manhã Jim vomitou pedaços de sangue, indo tomar um banho, o seu último, por volta das 5. Uma hora depois, Pamela acordou e verificou que a porta da casa de banho estava trancada por dentro. Às 6.30 Pamela ligou a Jean de Breteuil. Quando este chegou, abriu a porta e depararam com Jim na banheira, ainda com sangue a jorrar do nariz e da boca, a cabeça inclinada ligeiramente para a esquerda e um ténue sorriso. Pamela, descontrolada, começou a tentar acordá-lo, mas o conde francês, num gelado instante calculista, teve a ideia de fugir para Marrocos (pois tinha sido ele a vender a heroína); e ordenou a Pamela que primeiro deitasse fora toda a droga que havia no apartamento. Às 7.30 Pamela voltou para a beira de Jim que tinha perecido miseravelmente sozinho, ilimitado e liberto, desesperadamente necessitado de uma mão de um estranho, num mundo desesperado. 24 Por volta das 8, o dj da discoteca La Bulle , o americano Cameron Watson, anunciou a morte de Jim, sendo, misteriosamente, a primeira pessoa a fazê-lo. Curiosamente, o telefone de Agnès Varda tocou por volta das 7.30 e Alain Ronay atendeu, estando do outro lado Monique Godard, curandeira de yoga com dons extra- sensoriais, a quem Alain tinha pedido ajuda para Pamela. Monique alertou Alain de que Jim tinha que ir urgentemente ao médico e, inclusive, lhe perguntou se Jim tomava drogas ou tinha problemas circulatórios. Instantes depois, o telefone voltou a tocar, sendo, desta vez, Pamela para informar que Jim estava inconsciente e para chamar uma ambulância, visto que ela não dominava a língua de Rimbaud. Alain Ronay e Agnés Varda chegaram ao local trágico por volta das 9.30, minutos antes de os bombeiros tirarem Jim da banheira e tentarem a reanimação. Transmitiram que aquele corpo tinha expirado há cerca de uma hora. Alain, Agnès e Pamela combinaram ocultar a identidade de Jim, informando apenas de que era um poeta, que bebia, mas não tomava drogas. Com esta informação o Dr. Max Vassile presumiu que Jim tinha perecido de ataque cardíaco causado por coágulos de sangue numa das artérias.

24 Verso de The End : “so limitless and free, / desperately in need of some stranger’s hand, / in a desperate land”

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Havia, então, a urgência em enterrar Jim antes que qualquer questão fosse levantada. Alain lembrou-se do comentário que Jim tinha feito sobre a aura de tranquilidade sinistra de Père Lachaise, o cemitério dos artistas no centro da cidade. O funeral ficou marcado para 7 de Julho. Sem padre, nem cerimónia religiosa, Alain Ronay, Agnés Varda, Robin Wertle 25 e Bill Siddons 26 despediram-se de Jim Morrison, ao som das suas próprias palavras, proferidas por Pamela: “Now Night arrives with her purple legion Retire now to your tents and to your dreams Tomorrow we enter the town of my birth I want to be ready” 27

25 Amigo de Jim Morrison

26 Manager dos Doors

27 Últimos versos de Celebration of the Lizard 50

“O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.” (Pessoa, 2004: 19)

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Mito

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O último sono profundo envolto em mistério não silencia a vida, apenas aumenta o eco. As contradições, invenções e suspeições que surgiram do seu último leito; as premonições e presságios do final trágico; e a precoce mortalidade, trazem uma força inigualável à construção do mito. Mesmo antes de perecer, Jim Morrison era aquela figura rara sobre quem os boatos de morte circulavam muitas vezes. Quando estava no auge da sua carreira musical, Jim “morria” quase todos os fins de semana, normalmente num acidente de carro, caindo de uma varanda de hotel ou com uma overdose. Se existiu alguma vez um homem que estivesse pronto, apto e desejoso de morrer era Jim Morrison, como também de desaparecer para encontrar a paz de escrever e a liberdade do anonimato. A origem vem do tempo inicial da carreira dos Doors, em que Jim sugeriu que simulassem a sua morte para conseguir atenção nacional para a banda. Mr. Mojo Risin , segundo Jim, não era simplesmente um anagrama para o seu nome, mas também o nome que utilizaria quando contactasse com o escritório depois de ter partido para África, tal como Arthur Rimbaud. Este mito escapista era reforçado por Jim ter dito que tinha o sonho de comprar uma antiga igreja no sul de França, a qual seria o seu refúgio de escrita; e por ter ficado fascinado com o final da peça de Robert Wilson, Le Regard du Sourd , em que vários actores, simulando estarem mortos, cercam o revolucionário assassinado Marat, que tinha sido esfaqueado até à morte, deitado na sua banheira. Foi o próprio Ray Manzarek, que por motivos desconhecidos, ou interesse ou descrença, alimentou o mito de que Jim poderia estar vivo, para além do facto de não se ter visto o seu cadáver, tendo Alain Ronay apenas visto os seus pés e John Densmore achar o caixão muito pequeno. Outra descrença deve-se ao simples facto de Jim Morrison, lenda viva, ter perecido aos 27 anos, de ataque cardíaco, numa banheira. Um espanto espelhado por William Burroughs: “Jim Morrison - it’s a strange story - that he drowned in a bathtub in Paris. It seems a Goddamned odd thing to happen. I never believed it for a minute” ( apud Davis, 2004: 461); que não surpreende os mais próximos de Jim, sugerindo a ideia de que Jim poderia ter sido vítima de uma conspiração política com a finalidade de eliminar o estilo de

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vida contracultural, sendo uma das várias conspirações que incluíram as misteriosas mortes do “clube dos 27”: Brian Jones, Jimi Hendrix e Janis Joplin; os símbolos do rock e do ácido. A 3 de Julho de 1969, Brian Jones morria misteriosamente aos 27 anos na sua piscina, soltando o rumor de homicídio, desencadeando uma série estranha de extinções de estrelas de rock , apenas terminando numa banheira em Paris dois anos depois. Jimi Hendrix perecia a 19 de Setembro de 1970, asfixiado no seu próprio vómito; e Jim perguntava se alguém acreditava em presságios. A 4 de Outubro de 1970, Janis Joplin morre de overdose, mudando a interrogação para a afirmação, sendo o novo hábito de Jim dizer que estavam a beber com o número três. Contudo, estes pressentimentos de Jim não eram novidade: em 1966 já dizia que iria morrer em dois anos; a 8 de Dezembro de 1968, ao fazer 25, perguntava aos seus próximos se achavam que iria conseguir chegar aos 30; e escreveu na sua colecção de poemas Tape Noon : “Last words, last words - out” e “Lord help us” (Morrison, 1993: 56), intuições sobre o seu fim. Outros boatos correram sobre o seu fim, como, por exemplo, ter sido morto quando alguém lhe arrancou os olhos com uma faca para libertar a sua alma, ou também, por feitiçaria por um amante desprezada que o matou de Nova Iorque; ou, de overdose, tendo confundido heroína com cocaína no bar parisiense Rock and Roll Circus . Este último boato tornou-se mito, mas que Hervé Muller 28 desmistificou, investigando os últimos dias de Jim Morrison, sendo a sua vida, inclusivamente, ameaçada. Muller foi informado por pessoas do submundo da droga de que Jim tinha comprado heroína dentro do Rock and Roll Circus nos últimos dias de Junho; snifado na casa de banho do bar, desmaiado e dado como morto. Seguidamente, levaram-no para o seu apartamento na Rua Beautrellis; colocaram-no na banheira e fugiram. De qualquer dos modos, não foi essa a última noite de Jim. A sua morte é um enigma, um véu que apenas se pode ir abrindo para calcular possibilidades e pensar em probabilidades. Houve quem quisesse ter a certeza, tentando desenterrar o cadáver, mas o tempo escasseou, acabando por ser detido, mantendo o mistério característico do mito.

28 Crítico de rock parisiense, amigo de Jim Morrison

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Considerado, trivialmente, exagero da realidade, ficção ou até mesmo mentira, o mito continua parte integrante do vocabulário do homem contemporâneo. Agradando ou não, tal como a arte, persiste no tempo e no espaço na companhia de um tom provocatório, incitando ao exercício de pensar. Mesmo envolto em neblina, o mito, que surge para Roland Barthes como fala, palavra, comunicação; ou na sua língua materna, «parole» (Barthes, 1978: 193); é ao mesmo tempo código e mensagem, tendo assim um significado oculto para além do que é imediatamente visível. «O nada que é tudo» pessoano manifesta-se difícil de definir pois é tão vasto que engloba tudo o que o Imaginário humano produziu ao longo dos séculos. A sensação de infinito traz consigo a impossibilidade de encontrar um vocabulário que exprimisse tal sentimento. À impotência de traduzir positiva e exactamente a noção de mito, o «nada que é tudo», equipara-se a tentativa de demonstrar o sentimento numa «ridícula» carta de amor, tornando-se evidente a tarefa árdua para exprimir na linguagem humana, baixando em palavras, o conceito que os sentidos segredam. Tal defeito torna-se, porventura, qualidade, pois se fosse simples exprimi-lo e torná-lo refém analítico da Ciência, silenciaria o nevoeiro de mistério, perdendo a sua mística, sua essência vital. A leitura do mito, tal como na poesia, apela, deste modo, para o eterno sensível, para a captação sensorial, para a crença vendada: “Claro que não se identificam, mas a mitologia integra-se na religião, é o seu suporte poético, o elo de relação imediata, o primeiro elemento de expressão da Fé” (Jabouille, 1986: 41). O mito, sendo uma descrição do sobrenatural e pertencendo à esfera do real, funciona como mediação simbólica entre o profano e o sagrado. Este elo místico é pautado pela sacralidade mas que também tem em conta a sua eficácia funcional, humana, tal como defende Victor Jabouille: “Transbordando do domínio restrito dos eruditos para o campo de interesses do homem comum, ganha uma nova dimensão, recupera capacidade criativa e imprime uma nova dinâmica a aspectos da sociedade” (Jabouille, 1986: 101). Os mitos são, assim, pistas para as potencialidades espirituais da vida humana, para a procura individual de conhecimento e de experiência. O mito é a narrativa de vida que propõe a busca interior, “uma realidade cultural que se assume como um meio de o Homem se conhecer a si próprio” (Jabouille, 1986: 118).

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Jim Morrison quis ser a ponte provocadora de pensamento. Através dos seus gestos e palavras, quis ser guia para um reino que, no seu entender, seria o melhor: “I offer images. I conjure memories of… freedom. But we can only open doors; we can’t drag people through” ( apud Davis, 2004: 183); reproduzindo a ideia de Zaratustra: “Eu sou um parapeito na margem do rio; agarre-me quem puder. Mas não sou vossa muleta” (Nietzsche, 1973: 45). O mito, directamente ligado à necessidade do ser humano se transcender através da sua espiritualidade, das suas crenças, das suas fés; surge então como um guia, como um exemplo, que acalma os “espíritos” mais descontentes com a vida, ajudando-os a adaptarem-se à sua realidade, tal como Jim explicitou: “We appeal to the same basic, human needs as classical tragedy or, you know, southern blues. Think of it as a séance in an environment which has become hostile to life, cold, restrictive. People feel they’re dying in a bad landscape. So they gather together in a séance to invoke, palliate, and drive away the dead spirits through chanting, singing, dancing, music. The shamans try to cure an illness, to restore harmony to the world” ( apud Davis, 2004: 229). Jim Morrison desempenhou o papel de xamane: curandeiro e condutor de almas, como místico e visionário, esforçando-se por abolir, na altura, a actual condição humana do ser humano caído em desgraça; e por reintegrar a condição do homem primordial de que falam os mitos paradisíacos: “Um vidente deve ser um exemplo, no sentido de ultrapassar o quase invencível relaxamento da condição humana. Mais importante que ver, é o que videntes fazem com o que vêem” (Castaneda, 1998: 57). Ele mostrou como poderia ser: “I tell you ‘bout the world that we’ll invent, / wanton world without lament, / enterprise, expedition, / invitation and invention”29 . E quis levar as pessoas com ele: “We’re going on the run / And you’re the one I want to come (…) Brothers & sisters of the pale forest / O children of Night / Who among you will run with the hunt?” 30 . “Os primeiros e escassos anos mágicos da vida dos Doors não eram mais do que visitas abreviadas a outro lugar levadas a cabo por Jim, a sua banda e o seu público – um território que transcendia o bem e o mal; uma paisagem sensual, dramática e musical” (Hopkins,

29 Versos de We could be so good together

30 Versos de Celebration of the Lizard 56

1994: 12). Jim Morrison pensava e sentia em termos planetários, cósmicos; e procurava sempre melhores formas de explicar e transmitir as suas visões. O tempo tudo muda e o novo xamane tem de incorporar novas palavras, novas ideias, para descrever a sua vidência. Jim descreveu a noção básica de xamane a Richard Goldstein: “See, the shaman… he was a man who would intoxicate himself. See, he was probably already an… ah… unusual individual. And, he would put himself into a trance by dancing, whirling around, drinking, taking drugs – however. Then he would go on a mental trip and… ah… describe his journey for the rest of the tribe” ( apud Davis, 2004: 183). O elemento chave da experiência do xamane será a sua visão ou o seu sonho, mas tendo como base uma forte acreditação pela parte do próprio xamane, como pela do receptor: “first, the sorcerers belief in the effectiveness of his techniques; second, the patient's or victim's belief in the sorcerer's power; and, finally, the faith and expectations of the group” (Lévi-Strauss, 1976: 168). Através do seu carisma e confiança, Jim projectou a sua credibilidade com palavras e gestos. A sua manipulação de audiências e os elogios dos críticos, como por exemplo de xamane sexual, reflecte o respeito pelas crenças do indivíduo. Quase todas as iniciações xamanísticas têm lugar na infância ou adolescência. Visões ou outros eventos sagrados decorrem nesta fase da vida, alertando o ser em causa para a sua missão. Tendo em consideração este “dom”, o xamane vai explorar ao máximo a sua vocação, de modo a guiar a sua vida, sendo, ao mesmo tempo, guia de outrem. Na infância de Jim, por volta dos seus quatro anos, algures no deserto entre Albuquerque e Santa Fé, um acontecimento modificou a vida de Jim, como ele próprio descreveu, posteriormente: “Indians scattered on dawn's highway bleeding. Ghosts crowd the young child's fragile eggshell mind. Me and my -ah- mother and father - and a grandmother and a grandfather - were driving through the desert, at dawn, and a truck load of Indian workers had either hit another car, or just - I don't know what happened - but there were Indians scattered all over the highway, bleeding to death. So the car pulls up and stops. That was the first time I tasted fear. I must been about four - like a child is like a flower, his head is just floating in the breeze, man. The reaction I get now thinking about it,

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looking back - is that the souls of the ghosts of those dead Indians...maybe one or two of them...were just running around freaking out, and just leaped into my soul. And they're still in there.”31 Com a “inspiração” no seu interior, Jim começou a explorar as suas visões ou projecções já na sua adolescência, período este que recordou à Rolling Stone: “You see, the birth of rock and roll coincided with my adolescence, my coming into awareness. It was a real turn-on, although at the time I could never allow myself to rationally fantasize about ever doing it myself. I guess that all that time I was accumulating inclination and nerve. My subconscious had prepared the whole thing. I didn’t think about it. It was just… thought about. I never even conceived it. I thought I was going to be a writer or a sociologist, or maybe write plays. I never went to concerts – maybe one or two at most. I saw a few things on TV, but I’d never been a part of it all. But I heard, in my head, a whole concert situation, with a band and singing and an audience, a large audience. Those first five or six songs I wrote, I was just taking notes at a fantastic rock concert that was going on inside my head. And once I’d written the songs, I had to sing them” ( apud Davis, 2004: 75). Como uma previsão do futuro, visionava uma performance musical e trabalhava as suas letras em inúmeros diários à espera que o som chegasse. Em Janeiro de 1966, Jim já fazia viagens até ao deserto de Sonora no México, com o intuito de encontrar índios xamanes e tomar peyote 32 . O LSD abria as suas portas de percepção, vendo para além da vida física, ouvindo previsões enquanto caminhava na praia de Venice: “Walking the beach, Jimmy experienced strange auditory visions, like a psychoprophetic radio show, featuring him singing in front of a rock band. (…) his precognition was something heard, not seen” (Davis, 2004: 76). Em 1964 Timothy Leary comparava a experiência psicadélica com o transe do xamane e em 1968 Carlos Castaneda publicava o seu livro, The Teachings of Don Juan: A Yaqui Way of Knowledge , relatando a experiência que teve com o xamane Juan Matus, índio da tribo Yaqui do deserto de Sonora, no México; com que teve uma percepção peculiar através do peyote. Jim Morrison, como xamane, especialista do êxtase por excelência, tinha como única motivação atravessar tudo, transbordando através do seu

31 Em anexo áudio, faixa 3 Dawn’s Highway

32 Droga psicotrópica 58

“Break on through to the other side”, em busca do desconhecido, do reino das energias e não dos objectos, tal com Don Juan Matus: “Para mi solo recorrer los caminos que tienen corazon, cualquier camino que tenga corazon. Por ahí yo recorro, y la única prueba que vale es atravesar todo su largo. Y por ahí yo recorro mirando, mirando, sin aliento” ( apud Castaneda, 1999: XX). Já Juan Matus alertava Castaneda de que o seu problema seria estar agarrado ao inventário da razão, e não pensar no ser humano como energia: “A razão lida com instrumentos que criam energia, mas nunca ocorreu, seriamente, à razão, que nós somos mais que instrumentos: somos organismos que criam energia. Somos uma bolha de energia” ( apud Castaneda, 1998: 126). Para obter esta percepção peculiar o xamane Don Juan auxiliava-se de drogas psicotrópicas, tal como o peyote, ou cogumelos, rumo à visão de infinito: “O efeito das plantas de poder sobre o ponto de conjunção é, em princípio, muito parecido com o dos sonhos: os sonhos fazem-no deslocar-se; mas as plantas de poder conseguem uma mudança numa escala maior e mais abrangente. Então, o professor deve usar os efeitos desorientadores dessa mudança para reforçar a noção de que a percepção do mundo nunca é final” ( apud Castaneda, 1998: 281). O próprio grupo dos Doors estava a tentar abrir estas portas de percepção, como o próprio nome indica. Ray Manzarek, John Densmore e Robby Krieger presenciavam as aulas de meditação transcendental, que, sendo fundado na Índia em 1957 por Maharishi Yogi, foi dos primeiros cultos espirituais asiáticos a penetrar nos Estados Unidos, o que levou Ray a dizer que todos os membros do grupo buscavam iluminação espiritual. As letras das canções demonstravam esta procura, utilizando imagens de elementos em vez de algo específico, como se verifica com Light My Fire . Mesmo as músicas mais simples tinham uma característica enigmática e visionária, um ritmo ou um verso ou uma imagem que davam ao poema uma força especial. Os Doors começaram a tocar com Jim de costas para o público, o que, segundo Ray, seria uma concentração de energias. Voltavam-se para dentro para dirigir as energias na direcção uns dos outros, o que, com a ajuda do LSD, numa intensidade invulgar, desenvolveria a sua mente comum. Os seus concertos encaminhavam para rituais ancestrais como se fora uma sessão xamanística que, de modo geral, comporta vários elementos, tais como: o chamamento dos

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espíritos auxiliares, a maior parte das vezes de animais, através do que o próprio Jim apelidou de gritos primordiais 33 ; música e dança, como preparativos para a viagem mística; e o transe (fingindo ou real), durante o qual se presume que a alma abandonou o corpo. Um bom exemplo de música tribal será My Wild Love 34 , que, ao som de cânticos e tambores, numa expressão oral primordial, remete para a sensação de ritual ancestral. A finalidade de qualquer sessão xamanística é a obtenção do êxtase, porque só em êxtase o xamane pode cumprir a sua missão de curandeiro ou de condutor de almas. Ray Manzarek descreveu o lado xamanístico dos concertos dos Doors: “Quando o shaman da Sibéria está preparado para entrar em transe, todos os aldeões se juntam, abanam os chocalhos, assobiam e tocam quaisquer instrumentos que tenham à mão para o mandar embora. (…) Era como se Jim fosse um shaman eléctrico e nós a banda do shaman eléctrico, martelando atrás dele. Algumas vezes não lhe apetecia entrar no estado, mas a banda continuava a martelar, a martelar, e pouco a pouco, envolvia-o. Meu Deus, podia enviar-lhe um choque eléctrico com o órgão. John podia fazê-lo com as suas batidas de bateria. E de vez em quando – uma contorção! – podia tocar um acorde e fazê-lo contorcer- se. E lá arrancava ele de novo. Às vezes ele era simplesmente incrível. E a audiência também o sentia” ( apud Hopkins, 1994: 144). O concerto dos Doors surge como ritual, como jogo de energia, tal como Jim clarificou: “É uma espécie de escultura humana. De certa maneira é como a arte, porque dá forma à energia, e de certa maneira é um costume ou uma repetição, um plano ou um cenário habitualmente recorrente e com significado. Penetra em tudo. É como um jogo.” (apud Hopkins, 2004: 210). A relação entre a música e a mitologia é, como diz Lévi- Strauss, de dois tipos: de similitude e de contiguidade. De facto, tal como a partitura musical, o mito, estruturado frase a frase, é não só passível de uma leitura global como a exige para uma completa compreensão. “E é na música que permanecem os grandes temas e unidades míticas que remetem sempre para uma relação pluridimensional. Mas um realça o som e a outra, a mitologia, privilegia o significado” (Jabouille, 1986: 21-22). Jim Morrison chegou a reunir os seus rascunhos e gravou a declamação dos seus

33 Em anexo áudio, faixa 4 Backdoor Man

34 Em anexo áudio, faixa 5 My Wild Love 60

poemas, tendo alguns cantando a capella como se o acompanhamento musical pudesse vir a ser acrescentado. Em 1969, questionado por Jerry Hopkins sobre o futuro, Jim Morrison respondeu que a América necessitava de um grande bacanal, onde um “Lord of Misrule” governasse por um dia; e previu várias tendências musicais, tais como a música étnica, punk e techno : “Obviously there’ll be a new synthesis… like Indian music, African music, Eastern music, electronic music. I can see a lone artist with a lot of tapes and electronics, like an extension of the Mood synthesizer, a keyboard with the complexity and richness of a whole orchestra. We’ll hear about it in a few years. I think the kids that are coming along next aren’t going to have much in common with what we feel. They’re going to create their own, unique sound… so maybe after the Vietnam War is over – it’ll probably take a couple of years – it’s hard to say – but maybe the deaths will end, and there will be a need for a new life force to express and assert itself” ( apud Davis, 2004: 332). O punk rock emergiu no ano seguinte às tropas americanas voltarem do Vietname e o techno apenas apareceria vinte e cinco anos depois. Jim concluiu as suas previsões com o romantismo e embelezamento da sua geração: “From a historical vantage point, it’ll look like the troubadour period in France. I’m sure it will look incredibly romantic. We’re incredible, man. I guess I mean people who ride motorcycles and have fast cars and interesting clothes, who are – saying things, expressing themselves, honestly. Young people. So, yeah, it seems romantic to me. I’m pleased to be alive at this time. It’s incredible. I think we’re going to look very good to future people, because so many changes are taking place, and we’re really handling it with a flair” ( apud Davis, 2004: 333). O xamane, poeta visionário, alcançando as suas visões transcendentes, tende, porém, a sucumbir. Observando e comparando, Don Juan revela a Carlos Castaneda que os seres de razão estavam destinados a viver mais tempo, visto que ignoravam o impulso das emanações livres, acalmando a agitação natural do seu interior. O xamane e o ser humano transcendental, por outro lado, ao usar o impulso das emanações livres para criar uma maior agitação, tinham a tendência em encurtar a sua vida: “Don Juan tinha-me repetido que os guerreiros vivem com a morte ao lado e, do conhecimento de que a morte está com eles, retiram a coragem para enfrentar tudo. Don Juan tinha-me dito que o pior que nos podia

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acontecer era ter de morrer e, dado que esse é, desde sempre, o nosso destino inalterável, somos livres; quem já perdeu tudo, não tem mais nada a temer” (Castaneda, 1998: 255). Ray Manzarek disse que Friedrich Nietzsche matou Jim Morrison. No primeiro parágrafo de On the Road , Jack Kerouac cita Nietzsche como guia espiritual do seu livro. Nietzsche foi, antes de mais, o guia da vida de Jim Morrison. Nietzsche, “o prólogo que anuncia a entrada dos melhores actores” (Nietzsche, 1973: 235); profetizava a chegada do homem superior, do homem que, liberto do medo da morte, desafiasse a própria vida e efectuasse feitos extraordinários: “Do fundo do futuro chegam até nós brisas com misteriosas palpitações de asas; e os que têm ouvidos apurados percebem a fausta notícia” (Nietzsche, 1973: 86). Jim Morrison ouviu, percebeu e desempenhou o papel lançado pelo poeta filósofo alemão. A frase de Nietzsche “The devotion of the greatest is to encounter risk and danger, and play dice with death” ( apud Davis, 2004: 3); revelou-se importante como base de que se parte para alcançar algo e não como, num sentido niilista negativo, uma espécie de suicídio ou de auto-destruição. Jim não tinha medo de nada e, se o tinha, enfrentava-o com arrogância ao ponto de o fazer desaparecer. Amava a vida e não a morte. A morte seria o contraste que lhe daria a força por viver, para fazer de carpe diem o seu lema. Robby Krieger espelhou esta situação de “corda bamba“: “Jim was a wild guy. He lived his life on the edge, all the time. Jim had a burning fire inside of him. He was testing life, all the time” ( apud Davis, 2004: 221). Incorporando as palavras de Nietzsche, foi imoderado, sendo flecha determinada no seu percurso de vida: “Semelhantes à tempestade, os sóis percorrem as suas órbitas; é esse o seu caminho. Só obedecem à sua vontade inexorável; é essa a sua frieza” (Nietzsche, 1973: 118). Para Nietzsche e para Jim todos os seres deveriam ser divinos e todos os dias sagrados, elevando a estrada do excesso ao ponto de testar os limites da realidade a cada dia que passava, como Jim dizia: “Baby, you never know when you’re doing your last set” (apud Davis, 2004: 110). Grande parte do mito Jim Morrison advém desta força, desta sensação de indestrutibilidade que até o som da inevitabilidade é posto em causa. Jim representa o herói que não tem medo do seu fim, que até joga aos “dados” com a própria morte, num desafio frontal, enfrentando os elementos divinos: “I don’t know what’s gonna happen, man… but I want to have my kicks before the whole shithouse goes up in flames!”

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(apud Davis, 2004: 363). Jim Morrison quis fazer tudo num curto espaço de tempo, quis explorar todas as potencialidades do seu ser, superando-se a si próprio, dia após dia, repleto de convicção, tal como descreve Bill Siddons: “Jim levava as coisas até ao fim, especialmente o Jim bêbado – seguia uma linha de acção até à sua conclusão, quer o levasse para o pântano do inferno ou para o céu. Essa é uma das razões pela qual as pessoas o seguiram, porque elas sentiam isso” ( apud Hopkins, 1994: 274). Esta oposição entre o bem e o mal, que levaram aos críticos a nomear Jim de “dog in heat and an angel in grace”, demonstra a própria dissolução dos opostos, extinguindo esta barreira moral, rumo a algo mais puro e mais real. Os designados maus instintos são, deste modo, aproveitados por Jim para um fim benéfico: “Queres escalar as livres alturas, a tua alma aspira às estrelas. Mas os teus maus instintos também têm sede de liberdade. Os teus cães selvagens querem libertar-te; ladram de alegria na tua cave enquanto o teu espírito tende a abrir todas as prisões” (Nietzsche, 1973: 49). Abrindo todas as prisões, amarras convencionais da razão, Jim lutou por uma liberdade total, não recuando em nenhuma proibição, vivendo a vida que quis viver. “E aquele que tem a vocação de inovar em matéria de bem e de mal começará necessariamente por destruir e quebrar os valores” (Nietzsche, 1973: 128). Se se quer criar, é necessário começar por destruir: “Our work, our performing, is a striving for metamorphosis. It’s like a purification ritual, in the alchemical sense. First, you have the period of disorder, chaos; returning to a primeval disaster region. Out of that, you purify the elements, and find a new seed of life, which transforms all life, all matter, all personality – until, finally, hopefully, you emerge and marry all those dualisms and opposites. Then you’re not talking about good and evil anymore, but about something unified and pure” ( apud Davis, 2004: 183). Jim começou por tentar agitar as mentes para que estas destruíssem conceitos já formados e nunca repensados. Pretendeu um apocalipse para que se começasse do zero, se voltasse ao uno primordial, à idade de Ouro: “É preciso ter ainda um caos dentro de si para gerar uma estrela dançante” (Nietzsche, 1973: 17). Uma mente revolucionária para tentar recriar, reinventar o mundo, visto que o actual estava a arder, literalmente com napalm . A própria razão, imagem, vontade de Jim Morrison quis o seu próprio conceito de mundo. E quis trespassar a sua utopia ao público, a quem o ouvisse, ou lesse. Quis ser ponte, guia, visionário de um mundo melhor. O seu livro

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The Lords and The New Creatures , descreve este ser superior que, actuando num plano psíquico mais elevado que o resto da humanidade, consegue ver as coisas como deveriam ser. Mesmo os críticos mais rígidos admitiram que Jim Morrison era um super-homem cultural, com dimensão que excedia a própria vida, capaz de levar raparigas e muitos homens ao deleite sexual, e intelectuais à profundidade. Jim quis renovar o valor de todas as coisas, purificando-se através do conhecimento, santificando os seus instintos; e demonstrando, através do seu exemplo, que explorou novos esplendores nocturnos, uma cura possível para a vida do ser humano. “Atrás de ti os teus passos apagaram o seu rasto, nesse caminho está escrita a palavra: Impossível” (Nietzsche, 1973: 168). É devido a este “impossível” e ao “nunca” da frase de Daniel Sugerman: “Nunca mais haverá alguém como ele” ( apud Hopkins, 1994: 13); que após a sua morte, a sua luz de influência continuará a percorrer o tempo e o espaço. A lenda viva ergue-se do túmulo como eterno mito, pois a lembrança sobrevive pouco. O mito é, assim, o último estágio no desenvolvimento de um herói. “No seu impulso heróico em direcção à universalidade, na tentativa de ultrapassar a barreira da individuação, querendo identificar-se com o próprio Ser único e universal, o ente isolado sofre em si a contradição primordial oculta nas coisas, isto é, transgride e padece” (Nietzsche, 1997: 74). Apesar de toda a destruição, o herói, fenómeno supremo da vontade, através da crença na sua omnipotência, e seguindo o seu principium individuationis, adquire um prazer metafísico perante o trágico. A vida eterna é sonhada. O assento na poltrona púrpura, em vida assegurado real, na morte desejado divino. Uma sabedoria mística, instintiva e inconsciente ensina o herói a lidar com o sofrimento na vida efémera, prometendo-lhe uma recompensa eterna. O facto de “…os amados dos deuses morrerem cedo (…) [faz com que vivam] então eternamente como os deuses.” (Nietzsche: 1997, 146). Ao revelar um destino trágico, o mito adquire um sentido mais profundo e mais rico, anunciando-se mais verdadeiro. A morte vem cedo porque cedo se conquista o mundo. Sofre, assim, as consequências da sua transgressão, da sua ousadia, ao atrever-se a jogar na “roleta russa” com os deuses, irrompendo o seu espaço divino, exibindo-se como seu semelhante. Como que um custo a pagar, o sofrimento do artista de ambições titânicas remete para uma recompensa não material oferecida pela justiça divina. A morte surge

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como início do eco, e também como amiga 35 , poupando-o do reino da dor, do reino terreno. “O caminho é árduo, semeado de perigos, porque é, efectivamente, um rito de passagem do profano ao sagrado; do efémero e do ilusório à realidade e à eternidade; da morte à vida; do homem à divindade” (Eliade, 1993: 33). Só a partir do preço da eternidade compreendemos um prazer na destruição do indivíduo, um eterno prazer existencial em que se pressente a inabalável condição, em êxtase, até à sua fatalidade. “…o sentido da repetição da Criação, acto divino por excelência. (…) qualquer território ocupado com vista à fixação ou à sua utilização como «espaço vital» é previamente transformado de «caos» em «cosmos»; isto é, por um ritual, é- lhe conferida uma «forma» que o torna real” (Eliade, 1993: 25). É, assim, através do caos que se alcança o cosmos, da destruição surge a sua purificação, repetindo o acto de criação. Do “mundo” em ruínas, ergue-se o “reino” celeste. A transformação do aspecto negativo da dor numa experiência de conteúdo espiritual positivo revela a valorização do sofrimento proveniente da vontade divina. O mito carrega o fardo pela humanidade em troca da sua eternidade, da nossa compaixão. O ser humano contemporâneo interessa-se pelo mito e é ele que o mantém vivo. Nos anos que passaram desde a morte de Jim Morrison, os seus feitos alimentaram dezenas de livros e artigos, tributos, inúmeros sites e um filme nomeado para os Óscares. A Elektra lançou An American Prayer em 1978, aproveitando a gravação de alguns dos poemas de Jim a que os restantes Doors adicionaram música. Francis Ford Coppola utilizou o épico The End do seu antigo colega para ser a música capital da sua obra sobre a Guerra do Vietname, Apocalypse Now , recordando ao público o papel crucial dos Doors e, principalmente, de Jim Morrison como símbolos de contestação. Para coincidir com a estreia de Apocalypse Now em 1980, a Elektra lançou The Doors: Greatest Hits que chocou a editora ao vender rapidamente 2 milhões de cópias para uma geração que nem assistiu a concertos da banda. A primeira biografia de Jim, No One Here Gets Out Alive , também esteve no topo de vendas de 1980. Jerry Hopkins difundiu a imagem de Jim como poeta rebelde, lenda trágica

35 Verso de The End : This is the end / My only Friend

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e, colocando a possibilidade de estar vivo, aumentou o boato iniciado por Ray Manzarek, acabando por se tornar mito falacioso. Em 1989, enquanto The Lords and The New Creatures continuava a vender, o estado responsável pelos bens de Jim Morrison publicava a segunda compilação de poemas, Wilderness: The Lost Writings of Jim Morrison ; chegando a publicar os restantes poemas em 1990, incluindo Paris Journal , no volume . Mas se a chama do mito engrandeceu deve-se, em grande parte, ao filme The Doors de Oliver Stone estreado em 1991. Um sucesso comercial com uma integridade vibrante, que excitou um renovado interesse pelos Doors e por Jim Morrison, o que levou a novas publicações de livros sobre a banda, Jim e a sua era. No presente ano (2009), a 17 de Janeiro, o realizador Tom DiCillo apresentou o filme documentário sobre os Doors, Strange Days , no Sundance Film Festival , com o intuito de demonstrar o outro lado de Jim Morrison, ou seja, o sensível. Se por um lado houve e permanece o interesse por parte de escritores, realizadores, editores; por outro, Jim Morrison nunca deixou de ser extremamente significativo para os seus fãs, admiradores e seguidores. A sua sepultura, no cemitério Père Lachaise em Paris, começou a ser ponto obrigatório de passagem e paragem para o itinerário internacional hippie . Graffiti e setas pelo cemitério mostram o caminho para o seu túmulo, onde se reúnem para tocar guitarra, cantar, beber, fumar, ler os poemas de Jim; e deixar ofertas: flores, drogas, cartas. Em 1981, para celebrar os dez anos de ausência de Jim Morrison, o escultor croata Mladen Mikulin, num gesto de homenagem, colocou o seu busto de Jim sob a pedra do seu túmulo. 36 Busto este que desapareceu a Março de 1988. A 3 de Julho de 1991, no 20º aniversário da morte de Jim, ocorreu uma grande concentração de admiradores junto à sua sepultura, que devido a excessos, orgias e desordem, levou os responsáveis pela segurança do cemitério a fechar as portas às 5 da tarde. Cantaram, dançaram, mas ao serem impelidos de chegar perto do túmulo, uns tentaram escalar os muros do cemitério, outros incendiaram um automóvel, até que a CRS,

36 Ver anexo 7

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a polícia de intervenção francesa, chegou e utilizou gás lacrimogéneo. (Como se pode verificar em http://www.youtube.com/watch?v=qAu0NpWNrJM&feature=related) O director do cemitério comentou que a situação estava a ficar descontrolada, chegando a haver rumores de transladar o corpo de Père Lachaise, a não ser que se pagasse a limpeza dos graffiti e se fornecesse segurança à sepultura. Em 1995, o estado responsável pela fortuna de Jim, limpou as paredes do cemitério, estabeleceu um fundo para segurança permanente e colocaram uma placa em bronze com a inscrição em grego KATA TON ∆AIMONA EAYTOY 37 , que significa fiel ao próprio espírito. Para além das habituais deslocações turísticas à sepultura de Jim Morrison, sendo um dos sítios mais visitados de Paris; todos os anos, no dia da sua morte, surgem grandes afluências de admiradores no intuito de prestar tributo a Jim. O mito é, assim, revivificado por um ritual através de uma comunhão que tem o desejo de desvalorizar o tempo, tornando-o cíclico, anual: “Ritual como expressão, entre as manifestações religiosas, das emoções e dos aspectos dominantes da conduta e do pensamento primitivos. O mito reproduz, no plano linguístico, o procedimento ritual do culto; este é o acto verdadeiramente importante sob o ponto de vista colectivo” (Jabouille, 1986: 84). “…Zeus (…) seria um rei que teria, ainda em vida, instituído o próprio culto, que permaneceu para além da morte. Os deuses surgem, assim, como homens poderosos e distintos - reis, conquistadores, filósofos - a quem, após a sua morte, os outros homens, vulgares, chamam deuses e, por admiração, terror ou reconhecimento, atribuem a imortalidade” (Jabouille, 1986: 62). Os deuses serão, assim, antes de mais míseros mortais que, dependentemente das suas acções (heróicas ou não), ascenderão a uma esfera superior. Uma espécie de julgamento moral fúnebre, avaliando a grandeza e o impacto da essência do homem, irá ditar, aquando do seu momento trágico, se a morte dará início ao eco ou se silenciará debaixo de terra. “Em muitas tradições (na Grécia, por exemplo) as almas dos mortos vulgares já não têm «memória», quer dizer, perdem aquilo a que se pode chamar a sua individualidade histórica” (Eliade, 1993: 61). No entanto, é evidente o relacionamento

37 Ver anexo 8

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entre a esfera humana e divina, verificando míseros mortais a caminharem como semi- deuses na Terra; sendo lendas vivas, mesmo antes de mergulharem no tal sono profundo. Seguindo o pensamento de Nietzsche, os bem-aventurados, os fiéis ao próprio espírito, que seguem seus próprios passos, amando seu fatum, serão os que duram sempre. A sorte estará, assim, do lado do audaz, do que ousa, do que joga com os deuses, estando liberto do medo da morte. “…o Dioniso verdadeiramente real surge numa multiplicidade de figuras, na máscara de um herói que luta e se encontra de certo modo enredado nas malhas da vontade individual” (Nietzsche, 1997: 77). A partir desta ideia de multiplicidade de figuras, Jim Morrison foi colocando várias máscaras de mitos e deuses, como Dioniso, Édipo e Prometeu; baseando a sua vida na tragédia grega, surgindo, por um lado, como possível espelho purificador, curandeiro; e como salvador de si próprio, por outro. Os efeitos da vida de Jim Morrison são idênticos à contradição da consequência da tragédia, contradição esta provocada pela compreensão de catarse na Poética de Aristóteles, como verifica Albin Lesky em História da Literatura Grega , que poderia referir-se à purificação da audiência ou simplesmente à purgação do artista em palco. Retém-se, no entanto, a possibilidade do culto a Dioniso não se destinar apenas a accionar os mecanismos humanos da loucura e da embriaguez, mas também a desempenhar a função de ponte purificadora para o conhecimento de si próprio e do mundo. O próprio Jim equipara a história do rock and roll com a origem do drama grego: “Sometimes I look at the history of rock and roll like the origin of Greek drama, which started out on the threshing floor in the crucial harvest season, and was originally a tribe of worshippers, dancing and singing. Then, one day, a possessed person jumped out of the crowd and started imitating a god. At first it was pure song and movement. As cities developed, more people became dedicated to making money, but they had to keep contact with nature somehow, so they had actors do it for them. I think rock serves the same function” ( apud Davis: 246). A união do canto do culto a um herói e do serviço a Dioniso foi fundamental para o conteúdo da tragédia na sua fase de maturidade. Em diversos lugares houve cantos a heróis e, na sua generalidade, terão sido cantos fúnebres: “Tanto para o mito como para a tragédia, foi de suma importância o facto de, por influência do culto aos heróis, a lenda heróica ter

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passado a constituir o conteúdo do drama trágico. Desta maneira, depois do período épico e de lírica coral, o mito entrou na sua fase trágica, e os poetas fizeram dele o suporte da problemática ético-religiosa. Com o mito heróico, a tragédia conquistou um âmbito temático que vivia no coração do povo como um trecho da sua história, mas que, ao mesmo tempo, assegurava, relativamente ao objecto tratado, a distância que é condição irrevogável da grandeza de toda a obra de arte” (Lesky, 1995: 258). Jim Morrison representou o papel de herói trágico, colocando a máscara de Dioniso, desempenhando o que Gilbert Durand denominou de «constelações de afinidades», “as afinidades de mitemas ou de mitos de uma cultura para a outra” (Durand, 1983: 37); “que permitem reflectir sobre os meios de transmissão de um mito, seja por difusão, seja por ressonância antropológica” (Durand, 1983: 42). Jim coloca a máscara de Dioniso como recurso de transformação, que é o primeiro pressuposto de toda a verdadeira representação dramática e através do fenómeno do êxtase místico, imitando as forças demónicas, crê senti-las no seu próprio interior. Sendo também fonte da tradição da máscara, da persona , Dioniso representa não só a intoxicação e o poder do vinho, mas também remete para as suas influências benevolentes sociais, sendo visto como promotor da civilização, purificador e amante da paz. Tal como Jim, em que o seu consumo de álcool ia ao encontro da imagem dionisíaca com que ele se identificava e que gostava de projectar, mas que também estava, firmemente, introduzida na tradição cultural americana e poética. Se, por um lado, o álcool servia como alavanca das suas palavras, possíveis libertadoras da mente humana; por outro, catapultava para um festim em que o caos e a desordem reinavam: “A entronização de um «rei carnavalesco» (…) evocando a confusão universal, a abolição da ordem e da hierarquia, a «orgia», o caos. Assiste-se como que a um «cataclismo» que anula toda a humanidade, preparando o caminho para o advento de uma espécie humana nova e regenerada” (Eliade, 1993: 72). Este rei carnavalesco, «Lord of Misrule», como já foi mencionado, teve a sua mais célebre aparição no concerto de Miami. Dioniso, almejando a dissolução do indivíduo, a desmesura e o excesso, foi representado por Jim Morrison que guiou a audiência numa dança serpenteante, deixando, no final vazio, um panorama de caos, sexo e álcool, pretéritos recentes e ancestrais: o palco desmoronado,

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milhares de garrafas e roupa interior no solo. Dioniso dissolveu-se na massa, na orgia, no excesso, o que levou Ray a comentar: “It was Dionysius calling forth the snakes (…) What happened in Miami was a mass hallucination” ( apud Davis, 2004: 320-321). A própria obra de Eurípides está intimamente determinada pela interpenetração de um sentimento elementar e do pensamento racional, em que se exprime a sua personalidade bem como a imagem do homem duma época que, por cima das ruínas da tradição, via surgir o novo por toda a parte. Como um símbolo das tensões dentro da obra de Eurípides, encontra-se, no final desta, As Bacantes . O argumento remete para uma imagem em que se reflecte mais a repulsa da razão face ao delírio dionisíaco do que a acontecimentos históricos, ao introduzir-se este culto: “Eurípides, que num importante período da sua criação, tinha feito das forças irracionais na alma do homem o tema dramático fundamental, dominou também agora o irracional que lhe aparecia em domínios totalmente diversos, mediante a grandiosa objectivação da obra de arte. (…) Nesta polaridade de paz e tumulto, de sorridente encanto e destruição demónica, Eurípides viu o culto dionisíaco como espelho da natureza e talvez até mesmo como espelho da vida” (Lesky, 1995: 427). É, em parte, através da música que nasce o mito trágico que deve ser entendido como uma representação imagética da sabedoria dionisíaca por métodos artísticos apolíneos, sendo Apolo símbolo da aparência, da forma, da ilusão e individualidade: “São dois os efeitos que a arte dionisíaca exerce sobre a capacidade artística apolínea: a música incita à intuição simbólica da universalidade dionisíaca, a música realça então a imagem simbólica na sua significação suprema” (Nietzsche, 1997: 117). Através da música dos Doors, Jim Morrison enfatizou as suas palavras, símbolos de conhecimento, de libertação, do fogo de Prometeu. Prometeu, o titã que trouxe o fogo ao ser humano, salvando-o, assim, da destruição: um motivo tradicional que, nesta obra de Ésquilo, está recoberto, em grande medida, pela imagem do portador de cultura. Jim Morrison quis ser esta porta de conhecimento, de fogo, ao tornar-se poeta, seguindo o manifesto poético de Rimbaud, retirado de uma carta a Paul Demeny em 1871: “The first study for a man who wants to be a poet is the knowledge of his entire self. He searches his soul, he inspects it, he tests it, he learns it. As soon as he knows it, he

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cultivates it… But the soul has to be made monstrous. Imagine a man planting and cultivating warts on his face. One must, I say, be a visionary; make oneself a visionary. The poet makes himself a visionary through a long, a prodigious, and rational disordering of all senses. Every form of love, of suffering, of madness; he searches himself, he consumes all the poisons in him, keeping only their quintessences… He arrives at the unknown: and even if, half crazed at the end, he loses the understanding of his visions, he has seen them! Let him be destroyed in his leap by those unnamable, unutterable, and innumerable things: there will come other horrible workers: they will begin at the horizons where he has succumbed” (apud Davis, 2004: 54). Jim percebeu, através de Rimbaud, de que o verdadeiro poeta seria o ladrão de fogo, Prometeu. Para além de abrir as portas do saber ao resto dos seres humanos através das suas palavras, abriria também a sua porta para a eternidade: “It’s so eternal. As long as there are people, they can remember words and combinations of words. Nothing else can survive a holocaust but poetry and songs. So long as there are human beings, songs and poetry can continue” ( apud Davis, 2004: 333). Tal como Prometeu que desafia o próprio raio de Zeus em prol dos seres humanos; Jim segue-lhe os passos, oferecendo as suas palavras para uma eliminação de limitações, colocando-se, arrogantemente, no plano eterno e divino. No ser humano, agir é expor-se ao perigo e repetidamente conduz a uma situação complexa, na qual a mesma acção significa necessidade, dever, mérito e, ao mesmo tempo, a maior culpa. Situação esta em que o próprio Jim se colocou ao pronunciar a parte edipiana de The End . O assassinato do seu pai e a relação sexual com a sua mãe teriam outras conotações, como já foi referido, porém, o risco que corre em ser mal interpretado coloca-o num plano trágico elevado, na pele de Édipo, “o homem nobre destinado ao erro e à miséria apesar da sua sabedoria, mas exercendo no final uma força mágica e benéfica, obtida através do seu enorme sofrimento, força essa que ainda produz efeito para além do seu desaparecimento” (Nietzsche, 1997: 69). Livre de todo o fortuito e sendo extremamente individual, Jim pretende apresentar-se com os seus traços essenciais, expressar-se na dor como herói trágico e constituir uma herança perpétua. A trilogia trágica de Sófocles revela o trilho do ser humano rumo à

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eternidade, tendo como cena final o acolhimento dos deuses: “Em Rei Édipo vemos o homem tragicamente atingido, a quem a divindade lança na miséria mais profunda que se possa imaginar. Em Édipo em Colono, percebemos um grandioso paradoxo: o mesmo homem, a quem os deuses castigaram tão duramente, é ao mesmo tempo um eleito. Ao tomá-lo como exemplo, os deuses fazem da sua queda também algo de edificante. Por isso, ao concluir a sua atormentada peregrinação, chamam-no para a excelsa existência do herói que exerce o seu poder a partir da sua sepultura e como espírito protector do seu país se torna merecedor que lhe ofereçam sacrifícios” (Lesky, 1995: 322). Édipo, o ser que não é vítima passiva do seu destino, intervém nos acontecimentos, mas os deuses dispuseram-no de tal modo, que a cada passo com que se crê afastar da sua fatalidade, o aproxima mais dela. A sua audácia, a sua ansiosa busca da verdade e a sua capacidade de sofrimento; converteram-no numa das maiores figuras da cena trágica. Como se carregasse uma cruz de sofrimento, Édipo remete para uma compaixão dos seres que lhe prestam adoração, em troca de uma súbita luz de alívio; como que a troca do fardo pela leveza do ser: “É sumamente difícil explicar o indubitável fenómeno que consiste no facto de, duma representação do Édipo, sairmos com um sentimento de elevação, e até mesmo de alegria” (Lesky, 1995: 317). Tal como o conselho de Jim a Mick Jagger, que o incitava a ser trágico para raiar mais verdadeiro, “o mito tornava-se mais verdadeiro na medida em que conferia à história um sentido mais profundo e mais rico: ele revelava um destino trágico” (Eliade, 1993: 61). O episódio histórico em si, por mais importante que seja, não é conservado na memória colectiva, e a sua lembrança tampouco alimenta a imaginação popular, salvo enquanto o episódio histórico particular estiver próximo de um modelo mítico. A representação torna Jim hodierno do momento mítico do princípio do mundo, sentindo a necessidade de retornar a esse momento, tão frequentemente quanto possível, de modo a se regenerar: “A materialização do mito passa também pela erupção de fenómenos de recuperação de mitos antigos através da sua actualização e da integração dinâmica da sua estrutura referencial no contexto hodierno” (Jabouille, 1986: 14). Jim Morrison ao cantar “The West is the best / get here and we’ll do the rest” em The End , remetia para o Oriente que “não aceita o destino do homem como definitivo e irredutível. As técnicas

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orientais esforçam-se sobretudo por abolir ou ultrapassar a condição humana” (Eliade, 1993: 171). Ergue-se a noção de liberdade, emancipação e de criação, “porque se trata realmente de criar um homem novo e de o criar num plano supra-humano, um homem- deus, que o homem histórico nunca imaginou poder criar” (Eliade, 1993: 171). Jim, através de pormenores como os seus gritos primitivos, primordiais, tenta despertar o nostálgico pressentimento de um mundo metafísico, de um reino ancestral e sagrado, pois “o real por excelência é o sagrado; porque só o sagrado o é de uma maneira absoluta, age eficazmente, cria e faz durar as coisas” (Eliade, 1993: 26). Jim Morrison, pretendendo petrificar-se como mito contemporâneo, futuro e eterno, vai respirar às origens: “Só na medida em que o génio, no acto da criação artística, se funde com aquele artista primordial do mundo, é que ele saberá alguma coisa sobre a eterna essência da arte…” (Nietzsche, 1997: 49). Ao admitir-se que o mito se refere a um passado prestigioso e longínquo, a um tempo heróico ou aos primórdios, aproxima-se da concepção de um tempo mítico em que os homens dialogavam com os deuses, do tempo cíclico, do eterno retorno. O ser humano arcaico, oposto do ser humano moderno que se pretende exclusivamente histórico, encontra a possibilidade de transcender definitivamente o tempo e de viver na eternidade: “As figuras mitológicas já não representam os grandes benfeitores da humanidade, mas, sim, os antepassados fundadores, os homens que estão na origem da glória dos povos ou, até da de personagens individualizadas” (Jabouille, 1986: 69). Através da imitação dos modelos ancestrais, o homem é enviado temporalmente para uma época mítica, na qual os arquétipos foram pela primeira vez revelados. O tempo evapora e ergue-se o mito novamente, no eterno retorno do ser. A repetição de gestos paradigmáticos confere realidade a um acto, ou a um objecto, e é desse modo que há uma abolição implícita do tempo profano, da duração, da História. Apenas o arquétipo se mostra verdadeiramente real, regressando ao Uno primordial, à revelação in illo tempore das normas de existência, feita por uma divindade ou por um ser mítico. Segundo Carl Gustave Jung, os arquétipos não serão as imagens, mas sim os impulsos que, por sua vez, é que darão origem a imagens, manifestando-se ao nível do inconsciente individual e colectivo. Jim Morrison, através das suas pulsões, criou estes impulsos, remetendo para o arquétipo, herdeiro do mais antigo passado, ou seja, dos traços tornados hereditários, das primeiras

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experiências existenciais do homem perante a natureza, perante os outros e perante si próprio. Tal como numa secção de Celebration of the Lizard , denominada de Little Game , Jim quer demonstrar este regresso às origens: “Just close your eyes, forget your name / Forget the world, forget the people / And we’ll erect a different steeple.” Através do êxtase, principalmente provocado pelo LSD, Jim pretende deslocar a mente para o estado inicial da humanidade. Neste aspecto, a sua experiência mística equivale a um regresso às origens, ao tempo mítico do paraíso perdido. Para o xamane em êxtase, o mundo contemporâneo, o mundo em desgraça que se encontra sob a lei do Tempo da História, é abolido. Existe a vontade de abolir tudo o que foi modificado na própria estrutura do cosmos e na forma de existir do ser humano no seguimento da ruptura primordial, tendo como que uma nostalgia do paraíso, o desejo de reencontrar o estado de liberdade e beatitude iniciais, a vontade de restaurar a comunicação entre Terra e Céu.

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Conclusão

Está morto há décadas, porém, a sua reminiscência nunca desvaneceu. Nos dias de hoje continua a especulação sobre a sua morte, a sua vida, a sua lenda. Por todo o mundo lhe prestam tributo pelo significado da sua essência, mantendo eterno o seu ser. As suas visões poéticas ecoam através da sua voz, da sua escrita, da sua imagem. O renovado interesse de míseros mortais permite o fôlego do mito, sendo esta dissertação espelho de tal. Na era da imaginação ao poder, da guerra do Vietname, Jim Morrison captou a inquietude e a ameaça que pairava no ar e quis ser o caminho rumo à sua ideia de liberdade, de virtude, de um reino quimera. Foi xamane, poeta visionário, que repleto de energia criticou de raiva o seu mundo e os seus contemporâneos. Um profeta. Avatar da sua era. Os seus concertos eram rituais, tentativas de despertar, agitar mentes adormecidas. Jim Morrison provocou o seu público com o intuito de lhes mostrar novas perspectivas, incitando ao exercício de questionar o óbvio. A sua irreverência, rebeldia, liberdade, violaram os tabus da América puritana e, a um ritmo frenético, apelou para o protesto e revolta, para o caos e a desordem. Por um lado, foi símbolo de contestação, de rebeldia libertária, de excessos. É esse o seu rótulo, o mito do Rei Lagarto . Contudo, por outro lado, mais profundo, foi um ser extremamente complexo, inteligente e sensível. Jim Morrison desempenhou e representou modelos míticos, exigindo uma análise não só contemporânea, como, sobretudo, ancestral. É o seu lado oculto que esta tese tenta demonstrar. O lado que não permite falar de autodestruição, mas de uma arrogante audácia; o lado que não admite proferir suicida, mas sim herói trágico. Jim Morrison foi o herói metamórfico, o poeta das mil máscaras. É essa a sua grandeza. Ao analisar este ser humano descobre-se sempre fragmentos inéditos da sua intensa existência, para além da lenda imediatamente perceptível. Jim englobou várias particularidades de mitos, convertendo a sua própria vida numa narrativa de cariz mitológica: desde Dioniso, Prometeu, Édipo, Rimbaud, ao Ser Superior de Nietzsche, Jim tornou-se, ele próprio, uma parábola.

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Estando plenamente instruído quanto aos primórdios, Jim procurou também as fontes do futuro e das novas origens. Através das suas pulsões perseguiu a sua utopia. O destino do seu mito consistiu em penetrar na estreiteza de uma realidade alegadamente histórica, com o intuito de se ver tratado por qualquer época posterior como sendo um facto único com pretensões intemporais. Jim Morrison remete para um tempo que é cósmico, cíclico e infinito. Os seus valores petrificados, as suas virtudes intactas, alicerces da sua perpétua essência, permitem-lhe uma contínua existência na eternidade, verificando-se, portanto, a abolição definitiva, aqui e agora, do tempo profano.

“We live, we die & death not ends it”

(Morrison, 1993: 16)

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Anexos

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Anexo 1

“Full real name: James Douglas Morrison

Birth date and place: December 8, 1943, Melbourne, Florida

Personal data: 5’11” [enhanced by about an inch and a half], 145 lbs., brown hair, blue-gray eyes

Family info: Dead

Home info: Laurel Canyon, L.A. – nice at night

Schools attended: St. Petersburg Junior College, Florida State U., UCLA

Instruments played/Part sung: Lead voice

Favorite singing groups: Beach Boys, Kinks, Love

Individual singers: Sinatra, Presley

Actor and actress: Jack Palance [psychotic villain in late-period Hollywood westerns, and craven American movie producer in Godard’s Contempt], Sarah Miles [slatternly British actress in Joseph Losey’s The Servant]

Tv shows: News

Colors: Turquoise

Foods: Meat

Hobbies: Horse races

Sports: Swimming

What do you look for in a girl: Hair, eyes, voice, talk

What do you like to do on a date: talk

Plans/Ambitions: make films

You could say it’s an accident that I’m ideally suited for the work I am doing. It’s the feeling of a bowstring being pulled back for 22 years, and suddenly being let go.

I am primarily an American; second, a Californian; third, a Los Angeles resident.

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I’ve always been attracted to ideas that were about revolt against authority. I like ideas about the breaking away or overthrowing of established order. I am interested in anything about revolt, disorder, chaos – especially activity that seems to have no meaning. It seems to me to be the road toward freedom. External revolt is a way to bring about internal freedom. Rather than starting inside, I start outside – reach the mental through the physical.

I am a Sagittarian – if astrology has anything to do with it – the Centaur – the Archer – the Hunter. But the main thing is that we are the Doors.

We are from the West

The whole thing is like an invitation to the West

The Sunset

This is the end

The night

The sea

The world we suggest is of a new wild west

A sensuous evil world

Strange and haunting, the path of the sun, you know?

Toward the end

At least for our first album

We’re all centered around the end of the zodiac

The Pacific

Violence and peace

The way between young and the old.” (apud Davis, 2004: 153-155)

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Anexo 2

Fotografia de Joel Brodsky, 1967

Anexo 3

Capa do álbum Strange Days , 1967 80

Anexo 4

Legenda:

Fotografia de Michael Montfort, Frankfurt, 1968

Anexo 5

Metamorfose de aspecto visual de Jim Morrison, 1969 81

Anexo 6

Página da Rolling Stone após concerto de Miami

Anexo 7

Busto de Jim Morrison por Mladen Mikulin

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Anexo 8

Lápide na sepultura de Jim Morrison com inscrição em grego de “fiel ao próprio espírito”

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Bibliografia

Barthes, R. (1978) Mitologias . Tradução e prefácio de José Augusto Seabra. Lisboa: Edições 70.

Blake, W. (1994) The Marriage of Heaven and Hell . Nova Iorque: Dover Publications.

Caillois, R. (1980) O Mito e o Homem . Tradução de José Calisto dos Santos. Lisboa: Edições 70.

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Durand, G. (1983) Mito e Sociedade . Tradução de Hélder Godinho. Lisboa: A Regra do Jogo.

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Eliade, M. (1993) O Mito do Eterno Retorno: arquétipos e repetição . Tradução de Manuela Torres. Lisboa: Edições 70.

Ginsberg, A. (2002) Uivo Seguido de Kadish . Tradução, prefácio e bibliografia de Paula Ramalho Almeida. Vila Nova de Famalicão: Quasi.

Hall, S. (1970) Los hippies: una contra-cultura . Tradução de Isabel Vericat. Barcelona: Editorial Anagrama.

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Hopkins, J. & Sugerman, D. (1994) Daqui Ninguém Sai Vivo . Tradução de Rita Freudenthal. Lisboa: Assírio & Alvim.

Jabouille, V. (1986) Iniciação à Ciência dos Mitos . Lisboa: Editorial Inquérito.

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Morrison, J. (1993) Últimos Escritos . Tradução e introdução de Jorge Pires. Lisboa: Assírio & Alvim.

Morrison, J. (1994) Os Mestres e as Criaturas Novas . Tradução de Paulo da Costa Domingos. Lisboa: Assírio & Alvim.

Morrison, J. (1997) Abismos . Tradução de Ana Paula Sousa e António Costa. Lisboa: Assírio & Alvim.

Nietzsche, F. (1973) Assim Falava Zaratustra . Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores.

Nietzsche, F. (1997) O Nascimento da Tragédia ou Mundo Grego e Pessimismo . Tradução, comentário e notas de Teresa R. Cadete. Lisboa: Relógio D’Água Editores.

Pessoa, F. (2004) Mensagem . Lisboa: Assírio & Alvim.

Roszak, T. (1971) Para uma contracultura . Tradução de Jorge Rosa. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

Wilde, O. (1975) A Alma do Homem Sob o Socialismo . Tradução de Maria da Graça Morais Sarmento. Lisboa: Vega.

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