Mirantes e torres da laranja: elementos identitários da paisagem açoriana

Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França

Albergaria, I. S. & França, I. E. (2011), Mirantes e torres da laranja: elemen- tos identitários da paisagem açoriana. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 21: 149-176.

Sumário: Os mirantes e torres da laranja são objectos arquitectónicos providos de interesse histórico, artístico, técnico-construtivo e paisagístico que testemunham uma relação particular com os sistemas produtivos da laranja e até certo ponto, também, do vinho verdelho, com maior expressão durante o século XIX, e associando as funções técnicas e práticas do sistema tecno- ‑agrário às dimensões lúdicas e simbólicas, de acordo com características ideosociais próprias. Particularmente concentrados na ilha de São Miguel, em virtude da economia da laranja que dominou durante grande parte do século XIX, as torres da laranja e, especialmente, os mirantes, também surgem noutras ilhas, com alguma frequência na Terceira e pontualmente em ilhas como Santa Maria, São Jorge e Faial. No Pico, associam-se à cultura da vinha e estão por isso concentrados na costa norte da ilha, particularmente em volta da Madalena até Areia Larga. A inventariação e estudo dos mirantes e torres da laranja, de que aqui se dá conta, visam contribuir para o reconhecimento do interesse arquitectónico e paisagístico deste conjunto patrimonial verdadeiramente idiossincrático, projectando algumas medidas de salvaguarda e de valorização que se afiguram necessárias.

Albergaria, I. S. & França, I. E. (2011), Lookouts and orange towers as iden- tity elements of the landscape. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 21: 149-176.

Summary: The lookouts and orange towers are architectural objects with historical, artistic, technical, constructive and landscaping interest that testify a particular relationship with the orange culture and to some extent, the “verdelho” wine, both with a larger significance in the 19th century, associating technical functions and agrarian practises to a symbolic and leisure dimension, according to specific idiosyncrasies. Showing a concentration in S. Michael’s Island due to the orange economy period which prevailed along the 19th century, the orange towers and in particular the lookouts, also appear in other islands. They appear frequently in Terceira and occasionally in Santa Maria, São Jorge and Faial. In Pico Island they are connected with the vineyards and are therefore concentrated in the north coast, particularly in the area of Madalena up to Areia Larga. The inventory and study of lookouts and orange towers, which are 150 Boletim do Núcleo Cultural da Horta the objective of the present essay, intend to contribute to draw the attention to the architectural relevance and an interesting element of the landscape of a truly idiosyncratic heritage. At the same time the article suggests some measures for protection and enhancement of this heritage.

Maria Isabel Whytton da Terra Soares Albergaria – Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores. Igor Tavares de Melo Espínola de França – Departamento de Ciências Tecnológicas e Desen- volvimento da Universidade dos Açores.

Palavras-chave: mirantes e torres da laranja; paisagem; Açores; tipo-morfologias; construção identitária; salvaguarda e valorização patrimonial.

Key-words: Lookouts and orange towers; landscape; Azores; typologies and morphologic aspects; construction features; protection and heritage enhancement.

Introdução O artigo que agora se apresenta re- simples mas fortemente identitárias sulta de um trabalho de inventariação das paisagens açorianas, particular- e descrição dos mirantes e torres da mente significativas na ilha de São laranja existentes nos Açores, por Miguel, mas com extensões visíveis nós realizado durante o biénio de às ilhas Terceira, São Jorge, Pico, 2007/2008, na sequência do pedido Faial e Santa Maria. da Direcção Regional da Cultura para O levantamento levado a cabo per- a formalização de uma proposta de mitiu identificar a existência de um classificação. Entendemos então que universo de 165 mirantes e torres da a classificação isolada de um exem- laranja, dos quais 137 estão em São plar deste tipo – no caso incluía-se Miguel. No conjunto, constituem um mirante situado nas imediações peças arquitectónicas de uma grande do Pico do Salomão e uma conheci- originalidade e forte carácter singu- da torre da laranja situada na Fajã de lar, pese embora a sua diversidade Baixo, ambos em São Miguel – não tipológica e funcional. No grupo alar- faria sentido sem uma visão de con- gado pertencente à mesma família, junto e uma identificação dos exem- encontram-se os mirantes, com as plares mais significativos existentes suas variantes tipológicas (mirantes no território insular. Partimos, pois, tronco-piramidais, tronco-cónicos, na aventura de «espiolhar», por terra prismáticos de base quadrangular ou e por ar, a existência destas estruturas rectangular, em pirâmide de degraus, Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 151 de forma helicoidal, ou em terra- de laranja que regularmente aporta- ços desnivelados); e os torreões ou vam à baía de para torres da laranja providos de espa- carregamento dos citrinos destinados ços interiores habitados, desenvolvi- ao mercado britânico. Esta visão de- dos em vários pisos, por vezes com masiado restritiva do fenómeno não terraços desnivelados e assumindo explica a presença de mirantes nou- elementos morfológicos variados. tras localidades dos Açores e, inclu- Diferem ainda destes dois conjuntos sivamente, na costa norte da ilha de os mirantes-cisterna e os mirantes- São Miguel, desde Capelas e São ‑balcão que, pela sua função, não se Vicente, passando pelo Pico da Pedra, independentizam do conjunto habi- Rabo de Peixe até Ribeira Grande, tacional constituindo possivelmente onde a relação directa com o tráfico uma estrutura genética do mirante marítimo nunca existiu. propriamente dito. Há pois que rever os contextos e as Um outro aspecto absolutamente funções atribuídas a estas estruturas, indispensável para a compreensão encontrar as formas genéticas e a destas peças arquitectónicas, é a rela- evolução histórica, desde as origens ção estreita que mantinham com o ao tempo presente. Após um longo sistema produtivo da quinta (ou da período em que desempenhavam fun- vinha), articulando-se com outros ções reconhecidas, mirantes e torres elementos inertes como muros, arrua- da laranja tendem a converter-se, no mentos e portões de acesso ao inte- rior do espaço produtivo, ocupando decurso da primeira metade do século relativamente a esse espaço, uma XX, em signos da paisagem das posição de vigia e atalaia. Merecem quintas e vinhas da orla costeira, de ainda destaque as calçadas, ruas altas carácter lúdico e progressivamente e escadarias, que estruturam percur- emblematizado. A esse movimento sos elevados ao nível dos muros e valorativo contrapõe-se, ao longo da cumprem simultaneamente a função segunda metade do século, a negli- de abrigar as culturas dos ventos e gência, o abandono e a decadência a libertar a terra de cultivo do excesso que têm sido paulatinamente votados. de pedra acumulada. A ambição que sustentou o estudo por Habitualmente associa-se a presença nós levado a cabo e que justifica a dos mirantes com o ainda por vezes publicação deste artigo, visa, por um designado «ciclo da laranja», inter- lado, reencontrar o significado cultu- pretando-se a sua função estritamente ral identitário destas estruturas com na mira do avistamento das escunas forte impacto na paisagem costeira 152 Boletim do Núcleo Cultural da Horta de algumas ilhas, ligadas ao contexto guarda e revalorização dos mirantes das quintas, e, por outro lado, projec- e torres da laranja, de forma viável e tar as modalidades possíveis de salva- sustentável.

Antecedentes históricos

Não é fácil precisar uma cronologia dos mirantes e torres surgiu a partir de exacta para estas estruturas que com- meados do século XIX. Contudo, há põem um conjunto diverso de cons- casos anteriores que vale a pena serem truções de carácter vernacular, sobre analisados com alguma detenção. as quais raramente há datação ou se Um pavilhão torreado existente na conhece o nome do encomendador Rua de São Gonçalo, em Ponta Del- ou, menos ainda, o do mestre-de- gada (actualmente um stand de auto- ‑obras. Trata-se de edificações cons- móveis), ostenta a data de 1776 ins- truídas sem projecto desenhado e sem crita sobre a banqueta no interior da uma filiação directa nos modelos da quadra, o que constitui o elemento arquitectura erudita. A relativa pouca datado mais antigo que encontramos importância que lhes era reservada associado a uma torre da laranja. como construção de vulto faz também Noutros casos, é o nome do proprie- com que poucas vezes sejam explici- tário e o conhecimento do seu percur- tamente referidos na documentação so que nos levam à datação da cons- relativa a descrição de bens, inventá- trução, como acontece com o mirante rios de partilhas ou outra afim, pelo erguido na Quinta dos Prestes (São que a melhor aproximação possível Roque – S. Miguel) pelo morgado ao problema da cronologia dos mi- José Caetano Dias do Canto e Medei- rantes e torres da laranja continua a ros (1786-1838), durante as obras de ser a análise morfológica e compara- beneficiação que realizou no ano de tiva a partir das peças existentes. 18171. Sobre a construção o proprie- Pelas raras situações em que apare- tário regista a pedra aparelhada que cem elementos datados, ou das quais foi usada, os oficiais paredeiros que conhecemos o nome dos proprietá- a construíram e o modo de constru- rios, sabemos que a grande maioria ção «em seco» com reboco de barro,

1 No seu caderno de obras, o morgado José goarnecer o mirante feitio de tres sema- Caetano regista o seguinte: «lavoura para nas aos paredeiros, barro, e pedra mol – o mirante – 14$000 rs; feitio aos Paredei- 37$000 rs». BPARPD, ADCM, cx. 2, Livro ros que o fizeram em seco – 20$000 rs; De de Obras do morgado José Caetano. Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 153 o que representa um conjunto de contramos referência a uma «torri- indicações preciosas sobre a espe- nha» ainda existente no local. Trata- cialização envolvida na construção ‑se do torreão de inspiração medieval destes equipamentos. que o próprio diz ter picado durante O caso do mirante dos Prestes é as obras que levou a cabo nos Pres- muito interessante não apenas pela tes na década de 18503. Mais adiante possibilidade de datação, como ainda falaremos da forma e do programa porque nos dá a garantia de que o lúdico que lhe foi atribuído. Por agora termo em uso na época se refere ao retenhamos que a designação de mesmo tipo de estruturas que conhe- «torrinhas» pode remontar aos finais cemos hoje pela designação de mi- do século XVIII, constituindo então rante. Pela análise terminológica de- uma estrutura de contornos indefini- paramo-nos com o emprego de outro dos, quer na forma quer na atribuição vocábulo, a «torrinha», vigente num funcional. contexto semântico que remete para Até onde será possível recuar na estruturas do mesmo tipo, talvez mais datação destas estruturas? A análise próximas do torreão pavilhonar. É o mais consistente é ainda a compa- que acontece com a torrinha erguida ração morfológica das construções, pelo morgado Maurício de Arruda e no sentido de encontrar formas primi- Melo (1726-1804) na quinta de São tivas ou genéticas a partir das quais Sebastião em Rabo de Peixe. Entre as se tenham desenvolvido os mirantes e melhorias introduzidas durante a sua torreões. Neste ponto devemos olhar administração fez erguer «ao pe da para a formação dos maroiços cons- porta da vinha huma torrinha e junto tituídos pela acumulação ordenada a esta huma casinha de huma agoa»2. de pedra retirada do solo, adquirindo Não sabemos a data exacta da inter- formas bastante irregulares – parti- venção nem outros detalhes morfo- cularmente visíveis na paisagem lito- lógicos da construção, dado o seu gráfica da ilha do Pico, mas também desaparecimento material. Porém, presentes noutras ilhas –, como uma num outro caso que, uma vez mais, forma primitiva do mirante. A técnica envolve a Quinta dos Prestes e o construtiva aplicada a estas estru- nome do morgado José Caetano, en- turas maciças coincide, quase abso-

2 BPARPD, Inventários Orfanológicos, 3 Cf. “Cartas do Morgado José Caetano a comarca da Ribeira Grande, mç. 25, n.º 723, seus filhos Ernesto, Eugénio e Filomeno 1810. (1850‑1856)”, Insulana, Vol. XIX, 1963, carta de 14 de Fevereiro de 1851, p. 23. 154 Boletim do Núcleo Cultural da Horta lutamente, com a desenvolvida pelos em todas as ilhas, e que do ponto de mirantes. Outra forma genética po- vista semântico nos parecem estabe- derá encontrar-se no grupo dos mi- lecer uma forte relação com o grupo rante-cisterna e dos mirante-balcão de objectos de que nos ocupamos. normalmente integrados em constru- Entre os exemplos que poderiam ser ções residenciais. Neste caso a regu- citados como antecedentes históricos, laridade formal, de base ortogonal e há alguns que merecem particular desenvolvendo volumes prismáticos, destaque. Um dos exemplares de mi- aproxima-se mais directamente dos rante-balcão mais interessantes é o mirantes isolados, enquanto estrutu- que se situa encostado à vertente pos- ras autónomas do corpo habitacional. terior do corpo mais antigo do Solar Mais além destas estruturas genéticas, da Boa Nova, em Vila do Porto, ilha podemos detectar uma outra filiação de Santa Maria (actual Biblioteca que remete, desta vez, para a conota- Municipal de Vila do Porto) Trata‑se ção militar e defensiva associada aos de uma construção que na sua fase mirantes e torres da laranja. Falamos mais antiga data de 1657, devida a das torres, atalaias e postos semafó- João Falcão de Sousa, capitão-dona- ricos que pontuavam a linha da costa tário de Santa Maria e superinten-

Figura 1 – Balcão- mirante do Solar da Boa Nova, Vila do Porto (Santa Maria). Foto Isabel Albergaria, 2009. Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 155 dente das fortificações da ilha desde No que respeita às torres semafóricas 16544. O enorme balcão-mirante e atalaias, os dados históricos con- volta-se para nascente sobre a Ribei- formam-se com a patente ancestrali- ra de São Francisco e possui assentos dade deste tipo de estrutura defensiva, afrontados incorporados no muro destinada à vigia da costa e equipada limítrofe. Outro exemplar, porven- com um sistema de comunicação por tura de construção ainda mais remota, bandeiras. No debuxo da cidade de é o mirante-balcão da Conceição, na Angra deixado pelo holandês Yan Horta, associado a uma calçada ín- Huygen Van Linschoten e gravado greme ladeada por um muro onde se em 1595, divisa-se claramente no encontram incorporados uma levada Pico do Facho do monte Brasil, as de água e um vão com lintel de perfil torres semafóricas encimadas pelas manuelino. Este conjunto integra-se, hastes de bandeira. Não só a cidade efectivamente, na estrutura urbana de Angra possuía equipamentos deste primitiva da vila da Horta, no sector género. Diz-nos o P.e António Cor- ligado à antiga igreja matriz. deiro que na ponta mais alta da serra de João de Teve (conhecida actual- mente por serra das Lajes) existia um 4 Cf. Manuel Chaves Carvalho, Igrejas e Ermidas de Santa Maria, em Verso, Vila do «Facho, & atalaya de perpetua vigia, Porto, Câmara Municipal de Vila do Porto, que descobre todo o mar, & tem doze 2001. mil réis de soldo, sem mais obriga-

Figura 2 – Torres semafóricas no Pico do Facho, Monte Brasil (Terceira). Yan Huygen Van Linschoten, Planta da cidade de Angra, 1595 (detalhe). 156 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

ção que levantar a bandeyra no facho quando apparece navio»5. A reminiscência das atalaias e postos semafóricos estará presente nos mastros de bandeira existentes em todos os mirantes oitocentistas, como confirma o jardineiro inglês Peter Wallace em meados do século XIX: «todas as quintas tem uma alta torre com mastro de bandeira, donde osci- lam bandeiras e galhardetes em todas as ocasiões»6. A torre como signo da arquitectura recreativa das quintas, não dispensa um dos atributos incon- fundíveis daqueles antigos equipa- mentos militares, tendo-se reconfigu- rado no ambiente das quintas oito- centistas. Figura 3 – Mirante da Quinta do barão de Alagoa, Areia Larga (Pico). Foto Isabel Albergaria, 2008. Em síntese, a partir dos elementos recolhidos somos levados a admitir nando-se mais consistente a forma uma antiguidade para as estruturas assumida pelas «torrinhas» de finais embrionárias dos mirantes que pode de setecentos, enquanto precursoras recuar até ao século XV ou XVI, tor- das torres da laranja.

Contexto, forma e função

A questão terminológica e a respec- mirantes e torres da laranja. Com tiva evolução semântica são fun- efeito, não basta detectar a existên- damentais para aferir o significado cia da designação, ou os antecedentes cultural envolvido na edificação dos tipológicos e as formas genéticas, é

5 P.e António Cordeiro, Historia Insulana nants wave on every occasion.” Peter Wal- Das Ilhas a Sugeytas no Oceano lace, “XXVI. Gardens and Orange Grounds Occidental, Lisboa, ed. facsimilada pelo of St. Michael’s in the Azores – its Climate Governo Regional dos Açores, 2007 [1717], and Peculiarities, (Communicated Sept. 16, p. 256. 1852)”, in Journal of the Royal Horticul- 6 “(…) every quinta must have a high tower tural Society of London, Vol. VII, London, and flagstaff, from which flags and pen- 1852. p. 248. Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 157 necessário perceber o contexto a que Frequentemente, os mirantes estão se ligam nas fases mais evoluídas, a encostados aos muros limítrofes concepção que está na raiz da forma da propriedade e ocupam um lugar assumida e o conjunto de atribuições especial no xadrez das ruas, calçadas funcionais, ou, dito de outra maneira, e muros que compõem a estrutura o programa que lhe dá o suporte e o inerte das antigas quintas de laranja. sentido. Na maior parte dos casos os elemen- Antes de mais, deve atender-se à rela- tos vegetais desapareceram, restan- ção que os mirantes e torres da laran- do apenas este «esqueleto»; noutros ja estabelecem com o espaço envol- ainda, os próprios elementos inertes vente da quinta, ao longo da centúria desapareceram surgindo o mirante, oitocentista. Não só porque os aces- algo descontextualizado. É por isso sos são muitas vezes monumentaliza- importante atender às situações em dos e merecedores de grande cuidado, que ainda é possível compreender a como porque a própria justificação do estrutura física que servia de suporte a um determinado sistema produtivo. mirante depende da qualidade e trata- Um caso particularmente interessante mento das envolventes, sobretudo no é o do mirante helicoidal da quinta de que toca à preservação do sistema de Ricardo Oliveira, nas Capelas, onde vistas. ainda é visível a retícula das calçadas Do ponto de vista tecno-agrário os mi- na sua típica formação em «lagarto». rantes articulam-se com um sistema O caso mais excepcional de acessos de arruamentos que permite a circu- arquitecturais é o da Quinta da Maior- lação no interior da quinta e posi- ga da Lapinha, onde a abertura para o cionam-se, quase sempre, junto dos troço final do percurso que conduz ao muros limítrofes, de tal forma que mirante, é assinalada por um impo- permitem o controlo e domínio visual nente portão inscrito num pano de sobre o interior do terreno cultivado. muro rectangular, a partir do qual Do mesmo modo, a escolha de uma arranca uma escadaria de dois lanços posição altaneira é sempre preferida que em seguida diverge simetrica- com vista a alcançar o horizonte ma- mente para a direita e esquerda do rítimo, situação que na costa sul da volume do mirante. O percurso até ao ilha de São Miguel ou da Terceira portão faz-se por uma rua alta, ladea- seria importante no sentido de acom- da por muretes rebocados e pintados. panhar à distância o movimento ma- Situação semelhante é o do mirante da rítimo no porto, por onde se fazia o Quinta de Santo António, na Fajã de embarque da fruta. Baixo, onde a rua do mirante se inicia 158 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

Figura 4 – Ruas altas em sistema de «lagarto» na quinta do Sr. Ricardo Oliveira, Capelas (S. Miguel). Foto Isabel Albergaria, 2007. com um portão em arco e conduz, en- num único sentido, dividida por três cerrada entre dois altos muros rebo- lanços, tendo na base dois pináculos cados e pintados, a uma portentosa encimando o murete, que enobrecem escadaria de três lanços separados o conjunto. São situações de procura por patamares. A base do mirante é intencional de monumentalização do vasada por três altos arcos plenos, o espaço e que pressupõem a ideia do que acentua a monumentalidade do passeio que conduz ao mirante, esco- conjunto e cria efeitos cénicos. lhido como ponto de vista privilegiado. Uma solução semelhante que inclui Em termos funcionais é sabido que escadaria de três lanços articulada os mirantes cumpriam um requisito com uma rua alta (calçada) é a que indispensável à preparação dos solos se verifica na quinta da canada dos para cultivo, precisamente a limpe- Padres, na Lagoa (S. Miguel); na za do excesso de pedra. Do ponto de quinta das Bicas, em São Carlos (Ter- vista tecno-agrário os mirantes articu- ceira), a extensa escadaria, perpen- lam-se, como acabámos de ver, com dicular ao corpo do mirante, corre um sistema de arruamentos que per- Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 159

Figura 5 – Portada de acesso ao recinto do mirante, Figura 6 – Mirante na Quinta das Bicas de Cabo Quinta da Lapinha da Maiorga, Livramento Verde, São Carlos (Terceira). Foto Isabel Albergaria, (S. Miguel). Foto Isabel Albergaria, 2008. 2005. mite a circulação no interior da quinta lagem e transporte da fruta – com a e posicionam-se de forma a poderem aproximação das escunas da laranja desfrutar da paisagem envolvente. ao porto. Mas para além da vantagem Uma outra dimensão funcional diz competitiva no que toca à actividade respeito ao papel que os mirantes comercial, parece que os mirantes poderão ter desempenhado na sina- terão cumprido outros objectivos lização costeira. Sabemos já que a menos «egoístas», tendo funcionado sua posição elevada permitia divisar «em rede» como atalaias na sinali- à distância o mar e o porto e assim zação costeira, dando continuidade a acertar os ritmos do trabalho no inte- um sistema vigente desde longa data7. rior da quinta – da apanha à emba- Sobrepondo-se e coexistindo com os

7 É assim que se explica, por exemplo, a teira, o certo é que a presença do mastro rapidez com que a notícia do desembarque de bandeira nos mirantes é uma constante das tropas liberais na Ladeira da Velha, em e que em muitos troços das costas, sobre- 1832, chegou às Capelas e daí a Ponta Del- tudo voltadas a norte, a vista para o mar não gada. Não existindo dados comprovados do trazia vantagens do ponto de vista estrita- papel desempenhado na sinalização cos- mente comercial. 160 Boletim do Núcleo Cultural da Horta domínios já referidos, os mirantes e como acontece com o torreão-miran- torres da laranja compõem um con- te da Quinta dos Prestes, Livramento junto de carácter recreativo associa- (São Miguel), ou no torreão-mirante do às características ideossociais de Terra Pinheiro, no Capelo (Faial)8. Oitocentos, com prolongamentos na Noutras situações, são sobretudo os primeira metade do século XX. Com elementos decorativos que fazem a efeito, o traço lúdico-recreativo é diferença, como os arcos de perfil indissociável de uma certa vivência quebrado, o rendilhado das bandeiras do espaço campestre e rural, que de- dos arcos onde por vezes se colo- nuncia a posição social elevada dos cavam vidros coloridos à maneira de seus detentores, ou, pelo menos, uma um vitral simplificado – situação que posição acima do nível dos trabalha- ocorria no torreão-mirante das Tei- dores agrícolas. Nessa medida, o mi- rante é o local de reunião da família e dos amigos nas tardes longas do Verão, o espaço escolhido para pique- niques, passeios e convívios, assu- mindo-se por via disso num sinal de distinção e prestígio social. O horizonte medieval constitui um campo de referência evidente e fun- damental (sobretudo nos torreões ou torres da laranja), associado à ima- gem da arquitectura militar como su- porte histórico e cultural, mas ultra- passando-a na concretização formal, pela incorporação de elementos mor- fológicos e estilísticos mais elabora- dos. A fantasia medievalizante pode assumir a forma de uma torre de menagem facetada, provida merlões, Figura 7 – Torreão da Quinta dos Prestes, S. Roque ameias e machicoulis (mata-cães) (S. Miguel). Foto Isabel Albergaria, 2004.

8 Sobre o papel das fantasias medievalizan- revivalismos, às novas propostas do paisa- tes na arquitectura oitocentista dos Açores gismo oitocentista», in História da Arte nos veja-se Isabel Soares de Albergaria, «Arqui- Açores (no prelo). tectura e jardins. Do Neoclássico e outros Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 161 mosas, na Fajã de Baixo, ou na villa Perdidos os usos directamente rela- Maria da Glória, ao Ramalho (ambas cionados com as funções que servi- em São Miguel). ram de justificação à sua construção, Ao longo do século XX os aspectos hoje temos a oportunidade de olhar práticos associados ao universo tecno- para estas edificações com olhos que ‑agrário e ao sistema produtivo da valorizam a sua dimensão estética e quinta deixam praticamente de existir documental. O que foi um depósito e os mirantes assumem uma dimen- de pedra, atalaia e ponto de vista são progressivamente mais lúdica e privilegiado, local de encontro e de recreativa, por vezes evidenciando convívio, converte-se agora num esse aspecto com o reforço de uma objecto investindo de novas e seduto- retórica decorativa e emblemática. ras qualidades. Uma existência histó- Exemplo de afirmação da imaginação rica carregada de referências técnicas livre aplicada à mística histórica é o e utilitárias, alia-se a uma configura- mirante-castelo na Quinta das Vinhas, ção arquitectónica muito expressiva, na Ribeira Grande. Outras vezes, a sugerindo, motivando e sustentando função recreativa converte o mirante novas formas de apropriação, do es- num simples balcão-de-ver-a-rua, de- tudo aos usos recreativos mais va- saparecendo os acessórios que esta- riados. A redescoberta dos mirantes vam ligados ao mirante tradicional, nasce do exotismo – um exotismo como a pedra do pau da bandeira ou que se afirma pelo distanciamento as calçadas e ruas altas articulados histórico e ruptura cultural – e simul- com estes, podendo até ganhar ele- taneamente, vê-se ampliada com a mentos protectores como alpendres sedução única dos seus volumes (mirante da rua da quinta da Caloura) puros, das suas formas simples e ou pérgulas (mirante Montalverne, no claras, da sua aparência austera e des- Livramento, mirante da Conceição, pojada, aspectos que condizem com a na Horta). sensibilidade contemporânea.

Classificação tipo-morfológica

Partindo de actividades preparatórias, bliografia (com relevo para os volu- como a análise cartográfica, os voos mes então publicados do Inventário realizados sobre a ilha de São Miguel do Património Imóvel dos Açores) (empreendidos no âmbito do pro- foi possível implementar um plano de jecto Açores em vista aérea) o apoio reconhecimento de campo. Esse reco- de informadores locais, e alguma bi- nhecimento, que cobriu de forma bas- 162 Boletim do Núcleo Cultural da Horta tante exaustiva o território do grupo forma mais definida e capaz de rece- Oriental, e de forma menos sistemá- ber novas funções. tica o do grupo Central do arquipéla- Os mirantes, com 143 exemplares in- go permitiu identificar, quer no caso ventariados, compõem o grupo mais dos mirantes, quer no dos torreões ou numeroso de entre os espécimes que torres da laranja, diversas tipo-mor- integram o estudo efectuado, o que de fologias. resto constitui outro factor compro- Embora constituam objectos arqui- vativo do seu maior grau de vetustez. tectónicos distintos, os mirantes e Embora se registe uma maior concen- torres da laranja evidenciam aspec- tração na ilha de São Miguel, que se tos comuns que nos permitem incluí- distribui de forma muito assimétrica, ‑los dentro da mesma “família”. Pode com o concelho de Ponta Delgada a mesmo estabelecer-se uma relação possuir 84 espécimes, confirma-se genética entre os dois grupos, na a sua presença nas restantes ilhas medida em que alguns torreões evi- que constituíram objecto do levan- denciam inspiração em, ou mesmo tamento. Uma análise comparativa reaproveitamento de, estruturas pré- permite-nos separar os mirantes em ‑existentes que integram o grupo dos dois grupos: os de base quadran- mirantes, como atrás foi mencionado. gular ou rectangular, e os de base A paisagem vitivinícola do Pico, curvilínea, grupos que por sua vez povoada por maroiços, fornece-nos, se decompõem, respectivamente, em neste aspecto, algumas pistas para o quatro e em três variantes tipoló- estabelecimento deste elo genealó- gicas. Assim, temos no primeiro caso gico. Efectivamente deduz-se sem po- os tronco-piramidais, pirâmides de lémica que, à semelhança do maroiço, degraus, prismáticos e prismáticos o mirante primitivo constituiu-se por com compartimento, e, no segundo amontoamento de pedra resultante da caso os tronco-cónicos, cilíndricos e limpeza do terreno, técnica constru- espiralados. tiva que determina que estes objectos sejam preferencialmente maciços, ao A tipologia mais frequente é a dos contrário das torres que albergam mirantes tronco-piramidais, que cor- sempre compartimentos no seu inte- respondem certamente às construções rior. Outras estruturas, como os mi- mais primitivas, e materializam uma rantes-cisterna e os mirantes-balcão, solução construtiva básica em que que não se separam do conjunto habi- os elementos parietais estabelecem tacional poderão ter “sugerido” evo- ângulos agudos com o plano do solo, lução daqueles montículos para uma obtendo-se assim resultados mais Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 163

Figura 8 – Esquema de mirantes tronco-piramidais. Desenho Igor França. firmes. Em regra, estes exempla- de acesso à plataforma surge no eixo res possuem escadarias adossadas a da construção enfatizando um per- uma, ou duas das suas faces, poden- curso de acesso ao terraço protegido do, também, apresentar escadas com por ameias, como nos mirantes-cas- desenvolvimento na perpendicular do telo da Casa Brum, nos Biscoitos, ilha corpo do mirante, apoiadas em muro, Terceira, ou na Quinta das Vinhas, na ou isentas como na Quinta de Santo Ribeira Grande, em São Miguel. António, na Fajã de Baixo, que se estrutura em três imponentes lanços. Os mirantes em pirâmides de degraus Em casos mais recentes, a escadaria (atente-se na semelhança morfoló-

Figura 9 – Mirante da Quinta de Santo António, Fajã de Baixo (S. Miguel). Foto Isabel Albergaria, 2011. 164 Boletim do Núcleo Cultural da Horta gica com os maroiços) podem assumir Outro aspecto distintivo dentro desta dimensão mais expressiva em virtude tipologia é a posição da escadaria, da técnica construtiva empregue, uma ou rampa de acesso ao terraço, que vez que a plataforma inferior oferece assume expressão assinalável no mi- apoio logístico à edificação daquela rante da Quinta do Serpa, em Rabo de que se lhe segue, permitindo assim Peixe. Neste exemplar as rampas cir- erguer construções mais altas. Estes cundam os dois patamares que cons- exemplares estruturam-se em va- tituem o mirante, ora separando-se, riantes que têm, nas soluções menos ora fundindo-se num percurso único, volumosas, dois níveis ou patamares, desenvolvendo uma complexidade mirante do jardim António Borges, topológica que permite uma ascensão em Ponta Delgada, e, nas mais volu- marcante. Outro exemplar assinalá- mosas, quatro níveis, mirante da vel é o existente na Galera, em Água Quinta das Rosas, na Madalena do de Pau, que apresenta dois sistemas Pico, que é uma construção mais de acesso em rampas helicoidais, dis- recente erguida em pedra aparelhada. tintos para a subida e para a descida.

Figura 10 – Mirante da Quinta dos Serpas, Rabo de Peixe (S. Miguel). Foto Isabel Albergaria, 2008. Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 165

Um dos tipos mais elementares de mirantes de planta ortogonal, onde também se integram alguns dos exemplares mais antigos, é o mirante- ‑balcão prismático. Estes exempla- res, que assumem pouca altura, são maciços e implantam-se, por norma, associados às extremas das proprie- dades apoiando-se nos seus muros divisórios. Destacam-se neste grupo os mirantes do Solar do barão de Alagoa, na Areia Larga, ilha do Pico, o da Quinta do Falcão, na Almagreira, em Santa Maria e, na mesma ilha, o da Quinta de Jesus Maria José, em São Lourenço, que apresenta a parti- cularidade de lhe ter sido imposta uma cobertura de uma única água).

Figura 11 – Mirante-balcão da Quinta do Falcão Exemplar mais elaborado, implanta- (Santa Maria). Foto Isabel Albergaria, 2009. do no eixo de uma calçada, foi encon-

Figura 12 – Mirante, Urzelina (São Jorge). Foto António José Almeida. 166 Boletim do Núcleo Cultural da Horta trado na Urzelina, em São Jorge, no vramento em São Miguel, ou como extremo sul de uma propriedade que espaço de apoio à actividade agrícola. se presume ter pertencido à viscon- Os modelos com compartimento habi- dessa de São Mateus. Trata-se de um tável são muito frequentes em São mirante desenvolvido em dois pata- Miguel, mormente no concelho da mares, sendo o mais elevado acedido Ribeira Grande, implantando-se junto por duas escadas laterais, reservando das entradas das quintas. O acesso ao espaço para uma banqueta central. terraço concretiza-se por escada en- costada ao muro de delimitação da Os mirantes prismáticos com com- propriedade. O exemplo mais espec- partimento assumem maiores dimen- tacular é o da arruinada Quinta do sões que os seus congéneres maciços, Ribeiro, sita à Fajã de Baixo, que com os quais partilham contudo a conjuga dois mirantes a dois portões morfologia prismática e a planta orto- de acesso ao terreiro que antecede a gonal, de desenho rectangular ou casa. Outros exemplos fisicamente quadrangular. O compartimento loca- isolados, como o da Quinta Botelho lizado no piso térreo pode ser usado de Gusmão, assumem grande altura, como cisterna, como no exemplar da evidenciando um domínio efectivo Quinta das Necessidades, sita ao Li- da construção, e um requinte espa-

Figura 13 – Esquema de mirantes prismáticos. Desenho Igor França. cial que se reflecte na complexidade complexidade espacial e construtiva construtiva patente na cobertura em é o mirante da antiga Quinta da Terça, abóbada de berço do compartimento. a cujo terraço superior se acede por Outro exemplar que patenteia grande sistema de escadas que, partindo do Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 167 exterior, se insere num comparti- estabelecer relações de semelhança. mento interior, arrancando desse Os mirantes tronco-cónicos são dos nível com dois lanços simétricos que mais numerosos dentro deste grupo. voltam a unir-se num patamar inter- Nestes exemplares a escada adossa- médio, para daí arrancar novo lanço ‑se ao corpo do mirante assumindo a eixo da entrada principal em direc- especial relevância o que se encon- ção ao terraço superior. Neste miran- trava no extremo sudeste da antiga te a cobertura do compartimento é em Quinta da Glória, no Livramento, abóbada de aresta. em São Miguel, e que foi entretanto demolido. Tratava-se de um exemplar Embora em menor número, os miran- único, carácter que lhe era empres- tes que integram o grupo das constru- tado pela escada encastoada, degrau ções de base curvilínea constituem-se, a degrau, no tronco de cone. pela organicidade da sua morfologia, como marcas importantes na paisa- Os mirantes cilíndricos são os mais gem natural com a qual tendem a simples deste grupo. Em regra paten-

Figura 14 – Maquete da torre-mirante da propriedade do Botelho, Livramento. Trabalho dos alunos de Arquitectura da Universidade dos Açores. 168 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

A sua organização topológica impõe um desenvolvimento espacial que se reflecte numa volumetria com alguma expressão, razão porque se encontram neste grupo alguns dos maiores mi- rantes do arquipélago. Sobre a baía da Silveira, em Angra do Heroísmo, um destes mirantes empresta o seu nome (caracol) ao Hotel em cujo jardim se ergue. É uma tipologia frequente em São Miguel, que assume no exemplar da villa Pereira, na Abelheira, uma imponência inaudita.

Figura 15 – Mirante da antiga Quinta da Glória (desaparecido), Livramento (S. Miguel). Foto Igor França, 2007. teiam volumetria reduzida, pelo que as escadas de acesso ao terraço, certa- mente em virtude do seu curto desen- Figura 16 – Esquema de mirante cilíndrico. volvimento, implantam-se na perpen- Desenho Igor França. dicular do corpo cilíndrico. O exem- plo mais interessante encontra-se no No que diz respeito aos torreões- Hotel da Vinha da Areia, em Vila ‑mirantes, também designados como Franca do Campo, em posição que torres da laranja, regista-se uma permite usufruir da paisagem costeira concentração quase exclusiva na ilha que se estende para sul. de São Miguel, onde se inventariaram 21 exemplares, constituindo única Temos, finalmente, o último grupo excepção o torreão da Quinta Terra de mirantes de base curvilínea, o dos Pinheiro, sito ao Capelo, na ilha do mirantes espiralados. Trata-se de um Faial. Estas construções distinguem- tipo de mirante com um percurso as- ‑se dos mirantes pela sua morfologia censional organizado em helicoidal. turriforme, que se pode estruturar Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 169 em dois, três e quatro pisos (os dois justificar a sua associação a quintas exemplares com mais pisos foram de laranja com alguma dimensão e localizados em Ponta Delgada: tor- importância, tendo-se contudo regis- reão das Teimosas e em Vila Franca, tado algumas excepções. De facto, torreão do Externato) contendo com- embora estas edificações se concen- partimentos, em regra, intercomuni- trem maioritariamente (dezasseis em cantes através de acessos verticais vinte e um) nos limites periurbanos interiores, ou exteriores, utilizados de Ponta Delgada – se atendermos ao como arrumos agrícolas e espaços de período em que foram edificados – estar. Outro aspecto distintivo destas dois exemplares (o da casa Raposo construções, face aos mirantes, é o de Amaral, hoje delegação da Assem- superior grau de elaboração que pa- bleia Regional dos Açores, bem como tenteiam nas suas soluções espaciais e o da casa Alfredo Bensaúde) inserem- estilísticas. Esta complexidade acres- ‑se no núcleo urbano daquela cidade cida, resultante de um maior dispên- sugerindo uma utilização diversa e dio de recursos financeiros, parece eminentemente lúdica.

Figura 17 – Mirante da Villa Pereira, Fajã de Baixo (S. Miguel). Foto Isabel Albergaria, 2008 170 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

Como referimos anteriormente, a Os exemplos isolados de morfologia análise efectuada permitiu identifi- turriforme estruturam-se segundo car diversas tipologias que se podem modelos prismáticos, ou tronco-có- associar a dois grupos distintos. Um nicos, de base quadrangular, rectan- primeiro grupo de objectos isolados, gular, hexagonal ou octogonal (tor- e um segundo grupo de objectos as- reão da Quinta dos Prestes, em São sociados a outras construções. Por Roque) apresentando por vezes as sua vez estes dois grupos podem arestas chanfradas, como no exem- decompor-se, de acordo com as suas plar do Castelo Branco, situado no particularidades, originando quatro limite nascente do concelho de Vila tipologias diferenciadas (isolados de Franca do Campo. A sua cobertura morfologia turriforme, isolados de é sempre em terraço acessível, onde morfologia composta, associados a podem existir banquetas adossadas muros e, associados a construções aos muretes. habitáveis). Não obstante as diferen- ças tipológicas encontradas, quase todos os espécimes consagram fanta- sias medievalizantes. Essas fantasias expressam-se no recurso à implanta- ção altaneira (evocativa do bastião) que pode constituir barreira física no acesso à propriedade, no emprego de elementos construtivos; (ameias, merlões e mata-cães), tipificadores das fortificações neuro-balísticas, e ainda no desenho dos vãos, que apre- sentam frequentemente inspiração gótica, ou desenho de seteira, sendo mais raro, mas ainda assim obser- vável, o recurso a decoração herál- dica. Não é obviamente estranha a esta vontade de recuperação de um tempo mítico, anterior ao próprio Figura 18 – Torreão das Teimosas, Fajã de Baixo povoamento das ilhas, o facto de, (S. Miguel). Foto Isabel Albergaria, 2008. na sua maioria, estas construções se terem materializado no século XIX, a Os torreões isolados de morfologia centúria, por excelência, da revalori- composta evidenciam as soluções es- zação romântica do passado. paciais mais complexas, constituindo Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 171 embora o grupo mais numeroso, e à casa da quinta a que pertenceu, ao denotam, em alguns casos, a edifica- qual se associa um torreão implan- ção do elemento turriforme sobre um tado num dos seus lados, em posi- mirante provavelmente pré-existente. ção claramente subalterna, condição Nesses casos, a torre de base quadran- que resulta quer da sua implantação gular assenta sobre tabuleiro rectan- periférica, quer das suas proporções. gular, podendo implantar-se num dos A cobertura dos modelos deste grupo extremos da base (torreão da quinta é variável, sendo mais frequente a Âmbar Correia na Caloura) ou no seu estruturação em quatro águas de te- centro (torreão da Quinta do conde de lhado, embora se registem também Fenais, nas Capelas). Mais raramente coberturas com duas águas e ainda o tabuleiro da base pode assumir uma em terraço. forma helicoidal (é este o caso do tor- reão sito ao Egipto, na Fajã de Baixo) que resulta do desenvolvimento da rampa de acesso à torre. Neste grupo de torreões inserem-se ainda os que, constituindo embora soluções isola- das, patenteiam morfologias mais complexas resultantes da agregação do sistema de acessos verticais, esca- darias e rampas, ao corpo torreado. Assume relevância neste grupo o torreão de Santana, sito às Capelas, que apresenta um complexo sistema de escadarias envolventes do corpo cen- tral, e a torre das Teimosas, na Fajã de Baixo, com corpo adjacente rematado por terraço através do qual se acede ao interior, e daí aos pisos superiores, Figura 19 – Maquete da cisterna-mirante do Jardim e que, curiosamente, combina cober- António Borges, Ponta Delgada. Trabalho dos alu- tura de duas águas com o remate nos de Arquitectura da Universidade dos Açores. superior dos elementos parietais com ameias. Identificou-se ainda um Os modelos associados a outras exemplar (sito ao Livramento) que construções apresentam em regra associa um mirante de base quadran- base quadrangular, embora dois casos gular alinhado por um eixo de acesso possuam base hexagonal (torreões 172 Boletim do Núcleo Cultural da Horta da Candelária, em São Miguel, e da na cidade de Ponta Delgada). Neste Quinta Terra Pinheiro, no Faial) e de- grupo as coberturas variam entre os senvolvimento máximo de dois pisos, telhados de quatro e de duas águas, constituindo-se, por vezes, como a sendo também visível, nas soluções entrada na propriedade (torreão de urbanas, o terraço. Outros exempla- Santana em Rabo de Peixe e do res implantam-se na extremidade de actual stand da Peugeot na estrada de um corpo habitável de planta rectan- São Gonçalo, que integrava um con- gular, pontuando a paisagem e quali- junto edificado hoje desaparecido) ficando a residência, podendo assu- evocando assim os sistemas fortifi- mir planta quadrangular e cobertura cados. Noutros casos, evidentes em de quatro águas (villa Maria da soluções urbanas, podem igualmente Glória no Ramalho) ou hexagonal e implantar-se nos limites das proprie- cobertura em terraço resguardado por dades, mas em posição dissociada da ameias, como é o caso do torreão da entrada (torreão da casa Alfredo Ben- Quinta Terra Pinheiro, na freguesia saúde e da casa Ponte Pereira, ambas do Capelo, na ilha do Faial.

Figura 20 – Torre-mirante da antiga quinta do Solar do Conde, Capelas (S. Miguel). Foto Isabel Alber- garia, 2008. Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 173

Aspectos técnicos e construtivos

O material de construção mais cor- aparelhada nas faces externas do rentemente utilizado nos espécimes volume. Os exemplos mais antigos mais antigos, quer sejam mirantes, raramente são rebocados, contudo, quer sejam torres da laranja, é a quando o são, o revestimento é par- alvenaria de pedra, que pode ser apa- cial formando uma platibanda junto relhada ou irregular, podendo receber ao terraço superior, acompanhando reboco parcial ou total e por cima as guardas internas das escadarias deste, pintura ou caiação. Frequente- ou, mais raramente, desenhando um mente fazem uso da cantaria de pedra enquadramento rectangular onde se nos cunhais, capeamento dos muros abre um arco no piso térreo (caso e guardas das escadarias, degraus de do mirante do Outeiro da Égua, nas escada, banquetas em volta do ter- Calhetas, concelho de Ribeira Gran- raço, lajes de pavimento e molduras de). Um dos casos em que o progra- dos vãos. O sistema de cobertura dos ma decorativo é mais elaborado é o compartimentos existentes no piso supramencionado mirante da Quinta térreo é normalmente formado por de santo António, na Fajã de Baixo, arcos onde assentam compridas ver- rebocado e caiado em todo o corpo gas de pedra; raramente se recorre ao do prisma com faixas horizontais sistema abobadado, mas quando isso coloridas, decoração que se repete na acontece, a abobada pode ser de cru- interior dos muros que dão acesso ao zaria como no exemplo do mirante da mirante e nas guardas da escadaria. antiga Quinta da Terça, ou de berço, Os mirantes construídos durante a como acontece no mirante da Quinta primeira metade do século XX, recor- Botelho de Gusmão, ambos exem- rendo embora à alvenaria de pedra plares localizados no Livramento, e como elemento estrutural, são muitas que já referimos. vezes total ou parcialmente reboca- A tecnologia da pedra usada nos mi- dos a cimento, o mesmo acontecendo rantes é a mesma que serve a constru- ao pavimento do terraço e degraus. ção dos muros de pedra tradicionais, Como exemplos temos o supracitado com pedra solta, pouco argamassada. mirante-castelo da Quinta das Vinhas, As exigências técnicas dos mirantes na Conceição da Ribeira Grande, obrigam, no entanto, ao desenvolvi- totalmente rebocado a cimento, e inú- mento de processos mais apurados meros outros exemplos de construção em função da dimensão destas estru- novecentista. Mais recentemente re- turas, sendo frequente o uso de pedra gistam-se mirantes construídos com 174 Boletim do Núcleo Cultural da Horta recurso a materiais que não se en- caixilhos e decorações das bandeiras quadravam no universo tectónico tra- dos arcos, bem como nas portas de dicional, como o betão armado, e as acesso. Em muitos casos a cobertura guardas em aço inox, comprovando deixa de ser plana, surgindo com a que o tema longe de estar esgotado, forma tradicional de 4 águas coberta continua a motivar encomendas em de telha de cana. Como exemplos pleno século XXI. podem citar-se os torreões-mirantes Os torreões-mirantes com programa de Santana, no jardim do palácio de espacial mais desenvolvido integram Santana, em Ponta Delgada, da Quinta compartimentos assoalhados nos pi- Âmbar Correia, na Caloura, da casa sos superiores e escadarias interiores, Raposo do Amaral, em Ponta Del- que podem ser de pedra no primeiro gada, ou da villa Maria da Glória, sita piso e de madeira nos restantes. Aqui ao Ramalho. também os vãos usam a madeira nos

Diagnóstico e prospectiva

O levantamento efectuado em 2008 rantes e torres da laranja permitiu revelou-nos algumas boas surpresas sublimar, ao garantir a contemplação quanto ao número e qualidade das e constatação da grandeza da paisa- peças existentes no território insular, gem açoriana, constituiu sempre um reforçando a ideia de que os miran- factor indutor da sua construção. tes e torres da laranja constituem um É certamente nesse mecanismo de traço marcante das paisagens histó- inversão das condicionantes geográ- ricas, associadas à época da laranja, de ficas que radica o processo da sua forma particularmente significativa disseminação no arquipélago, justi- na ilha de São Miguel. Testemunhos ficando o seu inquestionável contri- de um tempo histórico e de uma vi- buto identitário. Importa pois, tirando vência cultural que remonta aos finais até partido da revalorização dos con- do século XVIII e que, a partir do textos que se têm vindo a impor como termo do século XIX até meados do reacção à globalização, encontrar a XX, foi persistindo, revestido embora melhor forma de preservar a sua me- de um carácter progressivamente mória material. Essa estratégia deve mais emblemático e decorativo. apoiar-se quer no seu estudo e divul- A fragilidade e pequenez do territó- gação, quer na implementação de me- rio, que, de certa forma, o acesso aos didas concretas de salvaguarda. terraços e/ou compartimentos dos mi- De facto, no universo dos 165 mi- Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 175 rantes e torres da laranja estudados, pedra ou do barro, veio alterar a apa- cerca de 35% estavam então em avan- rência, a expressão e a textura origi- çado estado de ruína e 45% em aban- nais. Mas não deixam de ser situações dono e mau estado de conservação, pontuais. situação que demonstra à saciedade a É possível ainda encontrar alguns sua perda de função e o consequente bons exemplos de recuperação, em esbatimento de significações cultu- que as técnicas e os materiais tradicio- rais que lhes estavam associadas. De nais foram respeitados e até mesmo então para cá, um número indetermi- uma construção de raiz na Quinta da nado ter-se-á perdido ou agravado o Torre, nas Capelas, que aplica o siste- estado de abandono e ruína em que se ma construtivo de alvenaria de pedra. encontravam há quatro anos. A con- São, de resto, poucos os mirantes de dição de abandono tem sido propi- construção recente, tendo em alguns ciadora de actos de vandalismo e de casos já sido usado o betão armado, o roubo que muito têm contribuído que atesta a validade funcional destas para aumentar a degradação destas estruturas num contexto tectónico peças arquitectónicas. O mau estado actual. de conservação em que se encontram, Enquanto pontos de vista privilegia- particularmente quando se tratam de dos, como locais polarizadores de peças construídas com apuro técnico percursos e marcos visuais na paisa- deve-se, em grande medida, a actos gem, os mirantes e torres da laranja de vandalismo, como acontece com são elementos diferenciados e poten- o roubo das cantarias de degraus, ciadores de leituras culturais sobre o coroamento dos muros ou lajes de território, constituindo um capital tu- pavimento. rístico-recreativo muito interessante, Por outro lado, verifica-se nas peças que se pode concretizar com o esta- existentes uma relativa integridade, belecimento de passeios guiados, à mantidas sem significativas altera- semelhança do que se faz nos cen- ções de forma ou de uso. Mais uma tros históricos das cidades, ou mesmo vez, aqui, a contabilidade apurada no estabelecimento de roteiros. A sua aponta para raríssimas situações de presença fortemente identitária das reutilização (5 apenas) e poucos casos paisagens ligadas ao ciclo económico em que a recuperação se revela mani- da laranja, sobretudo em São Miguel festamente indesejável. É certo que e na Terceira – com adaptações locais nalguns casos houve um uso inde- à cultura da vinha, no Pico – são por vido ou exagerado de cimento, ou si só um motivo de preservação e que a introdução de blocos em vez da valorização destes bens patrimo- 176 Boletim do Núcleo Cultural da Horta niais. A classificação dos exemplares relação directa entre o investimento a mais notáveis, que já se propunha no realizar e o reconhecimento público Inventário por nós realizado, consti- da mais-valia que o esforço financei- tui-se como um instrumento de pro- ro representa. Nesse sentido impõe- tecção imprescindível, instrumento se a criação de um sistema de incen- que deveria ser antecedido de acções tivos, que poderá passar pela isen- de divulgação e sensibilização das ção de imposto predial, de modo a entidades públicas e privadas. É aliás tornar apelativo para todos, aquilo no âmbito dos privados, detentores que o é ainda só para alguns, e assim da parte mais significativa deste resgatar à voragem do tempo um con- espólio, que se colocam as maiores junto de edificações relevantes para dificuldades à preservação destas o processo da construção identitária estruturas, uma vez que não há uma açoriana.

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