Mirantes E «Torres Da Laranja
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MIRANTES E TORRES DA LARANJA: ELEMENTOS IDENTITÁRIOS DA PAISAGEM AÇORIANA ISABEL SOARES DE ALBERGARIA & IGOR ESPÍNOLA DE FRANÇA Albergaria, I. S. & França, I. E. (2011), Mirantes e torres da laranja: elemen- tos identitários da paisagem açoriana. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 21: 149-176. Sumário: Os mirantes e torres da laranja são objectos arquitectónicos providos de interesse histórico, artístico, técnico-construtivo e paisagístico que testemunham uma relação particular com os sistemas produtivos da laranja e até certo ponto, também, do vinho verdelho, com maior expressão durante o século XIX, e associando as funções técnicas e práticas do sistema tecno- -agrário às dimensões lúdicas e simbólicas, de acordo com características ideosociais próprias. Particularmente concentrados na ilha de São Miguel, em virtude da economia da laranja que dominou durante grande parte do século XIX, as torres da laranja e, especialmente, os mirantes, também surgem noutras ilhas, com alguma frequência na Terceira e pontualmente em ilhas como Santa Maria, São Jorge e Faial. No Pico, associam-se à cultura da vinha e estão por isso concentrados na costa norte da ilha, particularmente em volta da Madalena até Areia Larga. A inventariação e estudo dos mirantes e torres da laranja, de que aqui se dá conta, visam contribuir para o reconhecimento do interesse arquitectónico e paisagístico deste conjunto patrimonial verdadeiramente idiossincrático, projectando algumas medidas de salvaguarda e de valorização que se afiguram necessárias. Albergaria, I. S. & França, I. E. (2011), Lookouts and orange towers as iden- tity elements of the Azores landscape. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 21: 149-176. Summary: The lookouts and orange towers are architectural objects with historical, artistic, technical, constructive and landscaping interest that testify a particular relationship with the orange culture and to some extent, the “verdelho” wine, both with a larger significance in the 19th century, associating technical functions and agrarian practises to a symbolic and leisure dimension, according to specific idiosyncrasies. Showing a concentration in S. Michael’s Island due to the orange economy period which prevailed along the 19th century, the orange towers and in particular the lookouts, also appear in other islands. They appear frequently in Terceira and occasionally in Santa Maria, São Jorge and Faial. In Pico Island they are connected with the vineyards and are therefore concentrated in the north coast, particularly in the area of Madalena up to Areia Larga. The inventory and study of lookouts and orange towers, which are 150 Boletim do Núcleo Cultural da Horta the objective of the present essay, intend to contribute to draw the attention to the architectural relevance and an interesting element of the landscape of a truly idiosyncratic heritage. At the same time the article suggests some measures for protection and enhancement of this heritage. Maria Isabel Whytton da Terra Soares Albergaria – Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores. Igor Tavares de Melo Espínola de França – Departamento de Ciências Tecnológicas e Desen- volvimento da Universidade dos Açores. Palavras-chave: mirantes e torres da laranja; paisagem; Açores; tipo-morfologias; construção identitária; salvaguarda e valorização patrimonial. Key-words: Lookouts and orange towers; landscape; Azores; typologies and morphologic aspects; construction features; protection and heritage enhancement. INTRODUÇÃO O artigo que agora se apresenta re- simples mas fortemente identitárias sulta de um trabalho de inventariação das paisagens açorianas, particular- e descrição dos mirantes e torres da mente significativas na ilha de São laranja existentes nos Açores, por Miguel, mas com extensões visíveis nós realizado durante o biénio de às ilhas Terceira, São Jorge, Pico, 2007/2008, na sequência do pedido Faial e Santa Maria. da Direcção Regional da Cultura para O levantamento levado a cabo per- a formalização de uma proposta de mitiu identificar a existência de um classificação. Entendemos então que universo de 165 mirantes e torres da a classificação isolada de um exem- laranja, dos quais 137 estão em São plar deste tipo – no caso incluía-se Miguel. No conjunto, constituem um mirante situado nas imediações peças arquitectónicas de uma grande do Pico do Salomão e uma conheci- originalidade e forte carácter singu- da torre da laranja situada na Fajã de lar, pese embora a sua diversidade Baixo, ambos em São Miguel – não tipológica e funcional. No grupo alar- faria sentido sem uma visão de con- gado pertencente à mesma família, junto e uma identificação dos exem- encontram-se os mirantes, com as plares mais significativos existentes suas variantes tipológicas (mirantes no território insular. Partimos, pois, tronco-piramidais, tronco-cónicos, na aventura de «espiolhar», por terra prismáticos de base quadrangular ou e por ar, a existência destas estruturas rectangular, em pirâmide de degraus, Isabel Soares de Albergaria & Igor Espínola de França 151 de forma helicoidal, ou em terra- de laranja que regularmente aporta- ços desnivelados); e os torreões ou vam à baía de Ponta Delgada para torres da laranja providos de espa- carregamento dos citrinos destinados ços interiores habitados, desenvolvi- ao mercado britânico. Esta visão de- dos em vários pisos, por vezes com masiado restritiva do fenómeno não terraços desnivelados e assumindo explica a presença de mirantes nou- elementos morfológicos variados. tras localidades dos Açores e, inclu- Diferem ainda destes dois conjuntos sivamente, na costa norte da ilha de os mirantes-cisterna e os mirantes- São Miguel, desde Capelas e São -balcão que, pela sua função, não se Vicente, passando pelo Pico da Pedra, independentizam do conjunto habi- Rabo de Peixe até Ribeira Grande, tacional constituindo possivelmente onde a relação directa com o tráfico uma estrutura genética do mirante marítimo nunca existiu. propriamente dito. Há pois que rever os contextos e as Um outro aspecto absolutamente funções atribuídas a estas estruturas, indispensável para a compreensão encontrar as formas genéticas e a destas peças arquitectónicas, é a rela- evolução histórica, desde as origens ção estreita que mantinham com o ao tempo presente. Após um longo sistema produtivo da quinta (ou da período em que desempenhavam fun- vinha), articulando-se com outros ções reconhecidas, mirantes e torres elementos inertes como muros, arrua- da laranja tendem a converter-se, no mentos e portões de acesso ao inte- rior do espaço produtivo, ocupando decurso da primeira metade do século relativamente a esse espaço, uma XX, em signos da paisagem das posição de vigia e atalaia. Merecem quintas e vinhas da orla costeira, de ainda destaque as calçadas, ruas altas carácter lúdico e progressivamente e escadarias, que estruturam percur- emblematizado. A esse movimento sos elevados ao nível dos muros e valorativo contrapõe-se, ao longo da cumprem simultaneamente a função segunda metade do século, a negli- de abrigar as culturas dos ventos e gência, o abandono e a decadência a libertar a terra de cultivo do excesso que têm sido paulatinamente votados. de pedra acumulada. A ambição que sustentou o estudo por Habitualmente associa-se a presença nós levado a cabo e que justifica a dos mirantes com o ainda por vezes publicação deste artigo, visa, por um designado «ciclo da laranja», inter- lado, reencontrar o significado cultu- pretando-se a sua função estritamente ral identitário destas estruturas com na mira do avistamento das escunas forte impacto na paisagem costeira 152 Boletim do Núcleo Cultural da Horta de algumas ilhas, ligadas ao contexto guarda e revalorização dos mirantes das quintas, e, por outro lado, projec- e torres da laranja, de forma viável e tar as modalidades possíveis de salva- sustentável. ANTECEDENTES HISTÓRICOS Não é fácil precisar uma cronologia dos mirantes e torres surgiu a partir de exacta para estas estruturas que com- meados do século XIX. Contudo, há põem um conjunto diverso de cons- casos anteriores que vale a pena serem truções de carácter vernacular, sobre analisados com alguma detenção. as quais raramente há datação ou se Um pavilhão torreado existente na conhece o nome do encomendador Rua de São Gonçalo, em Ponta Del- ou, menos ainda, o do mestre-de- gada (actualmente um stand de auto- -obras. Trata-se de edificações cons- móveis), ostenta a data de 1776 ins- truídas sem projecto desenhado e sem crita sobre a banqueta no interior da uma filiação directa nos modelos da quadra, o que constitui o elemento arquitectura erudita. A relativa pouca datado mais antigo que encontramos importância que lhes era reservada associado a uma torre da laranja. como construção de vulto faz também Noutros casos, é o nome do proprie- com que poucas vezes sejam explici- tário e o conhecimento do seu percur- tamente referidos na documentação so que nos levam à datação da cons- relativa a descrição de bens, inventá- trução, como acontece com o mirante rios de partilhas ou outra afim, pelo erguido na Quinta dos Prestes (São que a melhor aproximação possível Roque – S. Miguel) pelo morgado ao problema da cronologia dos mi- José Caetano Dias do Canto e Medei- rantes e torres da laranja continua a ros (1786-1838), durante as obras de ser a análise morfológica e compara- beneficiação que realizou no ano de tiva a partir das peças existentes. 18171. Sobre a construção o proprie- Pelas raras situações em que apare- tário regista a pedra aparelhada que cem elementos