Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Flavia Suzue de Mesquita Ikeda

“Classe C” na TV: Imagens de uma mitologia brasileira

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo 2016

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Flavia Suzue de Mesquita Ikeda

“Classe C” na TV: Imagens de uma mitologia brasileira

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica sob a orientação do Prof. Dr. Oscar Angel Cesarotto

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo 2016

BANCA EXAMINADORA

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Pesquisa realizada com bolsa Cnpq Apoio Fundasp

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, professor Dr. Oscar Angel Cesarotto pela confiança e estímulo para encontrar os melhores caminhos para minha pesquisa e pelos incontáveis aprendizados, inspirações e sinapses em sala de aula.

Ao Cnpq e à comissão do COS pela bolsa de estudos concedida, essencial para a realização desta pesquisa.

À professora Dra. Leda Tenório da Motta por me iluminar de Barthes e pelas contribuições em todas as etapas do mestrado, especialmente no Exame de Qualificação.

À professora Dra. Maria Cristina Palma Mungiolli, pela oportunidade de cursar suas disciplinas e pela delicadeza e atenção que emprestou ao meu Exame de Qualificação.

Ao professores Dr. Eugênio Trivinho e Dr. Amálio Pinheiro, cujas aulas, bibliografias e visões de mundo foram essenciais para ampliar e aprofundar esta pesquisa.

A Cida Bueno pelo trabalho e carinhosa atenção em todos os momentos.

A toda "a gente", colegas e amigos que direta ou indiretamente me ajudaram com leituras, sugestões e papos. A Andreia Ramalho, Carolina Gavino, Eliane Diógenes, Maria Augusta Mitre, Renata Cuch e Sueli Andrade. A Marina e Patrícia Moser e Eduardo Feijó.

A Daniela Cucchiarelli pelos livros, carinho e paciência.

A Júlio e Olivia Ikeda por me serem sempre suporte e exemplo sob o céu que nos une.

RESUMO

O objetivo deste trabalho é investigar a construção de sentidos nas imagens da chamada “classe C” na TV, em especial na Globo. Interessa como, a partir da apropriação de denominação de classe esvaziada de sentido sociológico, a emissora tem contribuído para criar e fixar imagens referentes a esse público. O estudo é norteado pelo conceito de mito oferecido por Roland Barthes em suas análises semiológicas dos discursos da cultura de massas. A fala mítica pode compreender escritas ou representações, e todas as mídias podem servir de suporte, na medida que se observe a naturalização das ideologias e práticas sociais. Recorremos a autores de diferentes frentes teóricas pertinentes à proposta. A televisão é abordada a partir da inserção na indústria cultural, conforme referências da teoria crítica, tendo em vista seu importante papel para a formação de um repertório comum a diferentes classes, regiões e grupos e para o debate da realidade. Destaca-se que a TV se desenvolveu imbricada a transformações sociais, econômicas e políticas que influenciaram sua evolução técnica, mas também conteúdos e discursos. Operamos uma retrospectiva mediante seleção de momentos da história da nossa televisão, buscando interseções entre o conteúdo e alcance televisivos e a ampliação, manutenção ou transformação de mercado consumidor em dados momentos, a partir de autores como Hamburger, Ortiz, Bucci e Motter, entre outros. Sublinhamos imagens formuladas na ficção a partir de padrões da consciência coletiva sobre o brasileiro. O interesse é refletir como tais figuras são acionadas no imaginário sobre as periferias urbanas e regionais, contribuindo para as construções relativas à "classe C". Convocamos textos que tratam especificamente da “classe C” e buscam situar o grupo em termos de “nova classe média", como Marcelo Neri, contrapondo a autores como Jessé Souza e Márcio Pochmann. Na Globo, o reconhecimento simbólico da existência de uma "nova classe média", refletiu em programas de humor, ficção e jornalismo. Ressaltamos os anos de 2011 e 2012, quando o tema da “classe C” na emissora pautou não só a imprensa, mas também despertou o interesse de pesquisadores envolvidos nos estudos de televisão, sobretudo de ficção teledramatúrgica. Para análise, abordamos especificamente a telenovela Cheias de Charme, que destacou-se no período citado por elaborações formais e de conteúdo relacionadas à "classe C" e às ideias de modernização e transformações sociais recentes.

Palavras-chave: Mitologias; Classe C; TV Globo; Nova classe média; Teledramaturgia; Cheias de Charme

ABSTRACT

The main objective of this dissertation is to investigate the construction of senses in televised images from the so-called “C class”, especially on Globo TV channel. That interests how, from the appropriation and denomination of a deprived sociological sense of class, the TV station has contributed and fixed images related to this audience. The study is guided by the concept of myth which is offered by Roland Barthes in his semiological analyses of discourse and mass culture. The mythical speech can understand writings or representations and all media that can suit as a support, as far as the naturalisation of ideologies and social practices are observed. Authors from different theoretical perspectives, who are relevant to this proposal, are investigated. Television is approached from its insertion in cultural industry, according to references from critical theory, bearing in mind its important role to the formation of a common repertoire towards different classes, areas and groups concerning a debate about reality. It is highlighted that television had developed itself linked to social, economic and political transformations that have influenced not only its technical evolution, but also its content and discourses. This dissertation involves a retrospective through moments of our television history, searching intersections between the content and televised outreach, plus increase, maintenance or transformation of consumer market at certain moments, based on authors such as Hamburger, Ortiz, Bucci and Motter, among others. We emphasize images formulated in fiction from patterns of collective consciousness about Brazilians. The interest is to reflect about the way such figures are activated in imagination about urban and regional outskirts, contributing to constructions related to this “C class”. Texts from Marcelo Neri that specifically deal with this “C class” and search to locate the group in terms of the “new middle class” are summoned to oppose authors such as Jessé Souza and Márcio Pochmann. At Globo, the symbolic recognition of the existence of this “new middle class” has been reflected in humorous, fictional and news programs. We consider the years of 2011 and 2012, when the “C class” theme at this TV station lined not only the press, but also arose researchers’ interest, those who were involved in television studies, mostly soap operas. For analysis, we scrutinize the soap opera called “Cheias de charme”, that had stood out in the time period mentioned above because of its formal and content elaboration related to the “Class C”, besides the recent ideas of modernization and social transformation.

Keywords: Mythologies; C class; Globo TV; new middle class; soap operas; Cheias de Charme.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 8 1 A TELE-FÁBRICA DE MITOS ...... 13 1.1 IMAGENS EM DOMICÍLIO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O MEIO ...... 13 1.2 O DESENVOLVIMENTO SERÁ TELEVISIONADO ...... 21 1.2.1 Genuinamente Brasileira ...... 34 1.3 IMAGENS DA NAÇÃO ...... 41 1.3.1 Notas Sobre Mestiçagem ...... 43 1.3.2 A Raiz Cordial ...... 52 1.3.3 Antropófagos Por Natureza ...... 54 1.5 COMO FUNCIONA O MITO ...... 58 1.5.1 Figuras Retóricas Do Mito ...... 62

2 “CLASSE C” DE QUE? ...... 65 2.1 NOMEANDO A DESIGUALDADE ...... 67 2.2 O SÉCULO DA CLASSE MÉDIA ...... 77 2.2.1 Anotações Teóricas...... 81 2.3 O BRASIL É CLASSE MÉDIA? ...... 82 2.3.1 A Capa Da Visibilidade ...... 91

3 “CLASSE C” NA TV ...... 97 3.1 A NOVIDADE NA NOVELA ...... 101 3.2 “C” DE CHARME ...... 107 3.3 O MITO DAS EMPREGUETES ...... 112 3.3.1 A Família ...... 116 3.3.2 O Direito Ao Sucesso ...... 120

CONCLUSÃO ...... 125

REFERÊNCIAS ...... 133

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INTRODUÇÃO

Com 65 anos de história no país, a televisão se desenvolveu imbricada a profundas transformações sociais, econômicas e políticas, as quais influenciaram não apenas sua evolução técnica, mas também os conteúdos e discursos produzidos. Outrossim, a televisão brasileira contribuiu ao longo do tempo para a promoção de ideais e valores ligados tanto aos poderes políticos de cada período, quanto à naturalização de conceitos e padrões marcadamente ligados ao consumo. Nesse sentido, a ascensão de uma parcela expressiva da população para o estrato da classe C na última década foi, em larga medida, tomada como baliza para a programação da televisão. O reconhecimento simbólico da existência de uma "nova classe média" no Brasil refletiu em programas de humor e ficção ao jornalismo (LOPES; MUNGIOLI; ALVES; LEMOS, 2011). A presente pesquisa interessa-se em como, a partir da apropriação de uma denominação de classe esvaziada de sentido sociológico e referenciada à estratificação por poder aquisitivo, as empresas de comunicação têm contribuído para criar e fixar imagens referentes à "classe C", alçado a alvo da propaganda no Brasil. Cada meio, levando em conta suas particularidades, possibilidades e limitações, acompanha os movimentos do mercado de consumo para aumentar seu alcance e a injeção de capital publicitário. A televisão é tratada neste trabalho pela perspectiva de sua inserção no sistema da indústria cultural, tendo em vista que constitui um importante meio de informação, entretenimento e reconhecimento dos brasileiros, contribuindo para a espetacularização das existências individuais e coletivas desses. Não se visa postular a televisão como um meio de influência direta sobre uma plateia passiva, mas remeter à concepção da televisão como a mediação que industrializa, precipita conceitos presentes no seio da sociedade e devolve-os à comunidade pretensamente livres de ambiguidades, claros, naturalizados. Nessa perspectiva, a televisão legitima práticas que são absorvidas pelo senso-comum, sintetizando os mitos em voga (BUCCI; KEHL, 2009). Este estudo é norteado pelo conceito de mito oferecido por Roland Barthes (2013a) quando opera uma crítica ideológica da linguagem utilizada nos meios de comunicação de massas, mas não exclusivamente neles, e uma desmontagem semiológica da mesma. Para o autor, o mito na comunicação de massas confunde-se com ideologia enquanto mascaramento das relações de produção e dominação social, e reitera ao sujeito os conceitos da sociedade 9

em que está inserido. O mito constitui uma “fala”, um sistema semiológico dependente de um primeiro e cuja elaboração conota e imobiliza uma determinada significação, contribuindo para a cristalização de certas ideologias. Suas análises não se limitaram a uma forma ou gênero específico, demonstrando a abrangência da teoria barthesiana para a leitura de variados produtos culturais. A semiologia trata de compreender como a sociedade produz estereótipos, os quais são consumidos depois como sentidos naturais, a "língua trabalhada pelo poder". Na década de 1970, o próprio Barthes pontuou que as suas análises dificilmente seriam produzidas da mesma maneira devido às transformações da sociedade que as sucederam, onde cada vez mais grupos opositores tomaram o discurso de poder, mas reafirmou a validade da conjunção entre crítica ideológica e análise semiológica (2013a, 2013b). Interessa-nos, portanto, descortinar imagens referentes à "classe C" tendo em vista que uma leitura semiológica, seja para o caso da televisão, da telenovela ou outro, deve acompanhar as mutações dentro do próprio sistema mítico. O essencial da investigação, como diz Barthes, é descobrir a história das formas. Cotejamos como imagens identificadas com as periferias urbanas e regionais e outras relativas à "classe C" são acionadas também a partir de padrões da consciência coletiva sobre o brasileiro, como a democracia racial, o personalismo, o verbalismo e uma predisposição antropofágica no contato com o outro. Propomos reflexões que seguem, cada uma a seu tempo, do cenário mais amplo para o específico, tendo como base, além da revisão bibliográfica, material extraído da imprensa e vídeos dos programas citados disponíveis para consulta por meio digital. Dessa maneira, a cada parte desta pesquisa é abordado um aspecto implicado numa desconstrução mítica das imagens da "classe C". No primeiro capítulo, tratamos da televisão e seu papel como veículo de reafirmação de valores, costumes e identificações. A partir de autores que pensaram criticamente o papel dos meios de comunicação de massa, mormente impactados pelo marxismo e pela psicanálise, comentamos os efeitos da TV nas formas de percepção da realidade e conformação social dos indivíduos. A partir da década de 1950, quando se expandiu em diversas regiões do mundo, a TV passou a apresentar, seguindo antecedentes do cinema, do rádio e da literatura, aos povos em vias de desenvolvimento, um modelo ideal centro-europeu e norte-americano, o qual impactou na ordem econômica, política e social daqueles. 10

A história da televisão no Brasil será abordada sob dois aspectos. O primeiro diz respeito à dependência econômica e regulatória do meio em relação ao Estado e o modelo em voga de relações internacionais, seu papel no desenvolvimento do mercado e da indústria nacional. A segunda ponderação trata do diálogo entre as redes de comunicação e a diversidade cultural e social do país, o qual marca os textos da televisão e contribui para sua eficiência como espaço público de reconhecimento dos brasileiros. Herdeira do folhetim, a telenovela esteve presente na programação nacional desde os primórdios e o desenvolvimento de sua linguagem conflui com o da televisão como um todo. Emissora mais longeva sob a mesma administração e também a maior do país, a TV Globo investiu na telenovela desde o primeiro ano e deve a isso sua agigantada audiência e penetração em todas as classes. Damos lugar a uma exposição sobre a telenovela, gênero considerado ainda o principal produto da televisão brasileira e, especialmente, da Globo. Explicitando a importância do caráter de reinterpretação do ambiente circundante e de efeito de demonstração para o consumo cultural e material, alimentando um repertório simbólico comum aos brasileiros, superando diferenças e classes, raças, gêneros ou origens (HAMBURGER, 2005; LOPES, 2009a). A ideia naturalizada de brasilidade, o mito nacional, ativo para a integração de todos a um projeto compartilhado, remonta tentativas de reconhecimento de uma cultura autóctone e confirmação simbólica do território no último século. Dessa forma, traços como a democracia racial, a cordialidade, o apego à família e às origens, a natureza antropofágica, essa como uma vocação para o aprendizado e a criação, são referências perenes da televisão e da teleficção. Elas aparecem em narrativas pedagógicas sobre nacionalidade e, como pretendemos demonstrar, nos discursos sobre a "classe C. Para avançar na compreensão do meio e da elaboração de imagens mitificadas, introduzimos a concepção de conotação e fixação de sentidos proposta por Barthes. Como referência para a análise proposta na última parte deste trabalho, são apresentadas algumas figuras retóricas do mito destacadas pelo autor visando a possibilidade de sua correspondência nas análises sobre “classe C” na telenovela. O segundo capítulo é dedicado à reflexão sobre a “classe C” no Brasil, trazendo uma introdução aos estudos de classe sociológicos. Citamos, como referências solares as elaborações marxistas e weberianas sobre o tema. A definição de “classe média” evoluiu no século XX, tornando-se segmento central tanto para o desenvolvimento econômico dos países quanto para a problematização da sociedade e dos novos contornos das lutas de classes. 11

Convocamos textos que tratam especificamente da “classe C” no país em bases econômicas e sociológicas e que buscam situar o grupo em termos de “nova classe média", como Marcelo Neri, contrapondo a autores como Jessé Souza e Márcio Pochmann, os quais destacam que o implemento da renda não implica por si só a mobilidade social. Como recorte temporal, propomos os anos a partir de 2008, quando foi formalizada a atribuição de “nova classe média”, especialmente o período entre 2011 e 2012, quando o tema teve destaque amplificado tanto por pesquisas científicas quanto nos meios de comunicação e como projeto político do Governo Federal. O fenômeno cultural da “classe C” será brevemente observado em algumas de suas manifestações mais destacadas na cobertura midiática, indicando preliminarmente algumas das imagens relacionadas a esse público. Orientamo-nos no sentido de que os dados da cultura popular são apropriados pela televisão a partir do reaproveitamento das formas, significantes do mito, para a naturalização da consciência histórica da classe que a controla (SODRÉ, 1972). Finalmente, no terceiro capítulo, trataremos propriamente da “classe C" na TV apresentando um panorama da questão na programação da TV Globo. Entre 2011 e 2012, a emissora alardeou o interesse em dar voz à “classe C”, estreando ou readaptando diversas produções ficcionais ou não. Destacamos abordagens da "classe C" em programas como Esquenta!, A Grande Família e Tapas e Beijos, todos do núcleo Guel Arraes, além das telenovelas estreadas entre 2011 e 2012. Nelas, destaca-se o protagonismo de personagens de origem na periferia e das classes pobres, como visto em Avenida Brasil e Fina Estampa. A última parte deste trabalho dedica-se à telenovela Cheias de Charme, de Talma Guedes e Filipe Miguez, escolhida pela inserção de temas relacionados à “classe C” e à cultura popular. A novela sobre três empregadas domésticas que viram cantoras de "eletroforró" (nome dado ao tecnobrega na novela) destacou-se abordando temas como a independência feminina, diferentes conformações familiares, o preconceito social, a educação e o mérito como determinantes para o progresso pessoal, a formalização do trabalho doméstico e a música popular de massas, todos coincidentes em alguma medida com anseios identificados com a "classe C". É possível encontrar paralelos das abordagens com a realidade do período. Em 2012, a justiça autorizou a primeira adoção de criança por um casal de homens; a chamada “PEC das domésticas” foi promulgada um ano depois. Também o número de mulheres chefes de família estava em plena ascensão, inclusive sendo elas titulares da maior parte dos benefícios do 12

bolsa-família, além de ser o segundo ano do governo Dilma, a primeira mulher eleita para governar o país. A educação superior também registrava grandes estímulos no período. Não se visa, entretanto, defender uma relação de causa e efeito que aceite que os conteúdos exerçam influência direta e sem filtros (do receptor) sobre a realidade, mas refletir sobre como a escritura da telenovela se alimenta do real e investe em diferentes perspectivas em relação ao país e aos padrões de comportamento como mecanismo próprio do gênero e da cultura de massa em geral. Como ponto de partida para a desconstrução dos mitos na novela, o primeiro capítulo, exibido em 16 de abril de 2012, será tratado levando em conta a apresentação das principais personagens, núcleos e tramas. Além dele, outras cenas e comunicações sobre a novela darão suporte à identificação das imagens relacionadas à "classe C" e a sentidos nacionais. Em seu trabalho sobre a arte mediada pela técnica, Walter Benjamin (2013) expôs a urgência do controle dos meios pelo proletariado para sua existência emancipada. A pretensão que acompanha a presente dissertação é contribuir para a elucidação dos mitos os quais, primeiro, ajudamos a construir e, a partir daí, interferem na nossa interação com a realidade.

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1 A TELE-FÁBRICA DE MITOS

O objetivo deste capítulo é refletir sobre a televisão no Brasil debatendo as especificidades que justificam sua relevância e, principalmente, da telenovela na construção e disseminação de imagens com as quais os brasileiros podem se identificar e ressignificar suas experiências concretas. Inicialmente, contextualizamos a televisão no sistema da indústria cultural, conforme tratado pela teoria crítica, situando reflexões a respeito do ambiente embrionário da televisão. Interessa elucidar seu papel na difusão global das ideologias do capitalismo tardio, evidenciando possíveis impactos das tecnologias de acesso a produtos culturais na forma dos indivíduos perceberem a realidade e se relacionarem com o ambiente, tendo em vista que

A cultura de massa integra e se integra ao mesmo tempo numa realidade policultural; faz-se conter, controlar, censurar (pelo Estado, pela Igreja) e, simultaneamente, tende a corroer, a desagregar as outras culturas. A esse título, ela não é absolutamente autônoma: ela pode embeber-se de cultura nacional, religiosa ou humanista e, por sua vez, ela embebe as culturas nacional, religiosa e humanista. Embora não sendo a única cultura do século XX, é a corrente verdadeiramente maciça e nova deste século (MORIN, 2002, p.16).

A pretexto de que todos os discursos são socialmente construídos e determinados a partir de uma posição de enunciação determinada, considerar as particularidades da televisão no sistema da indústria cultural e suas implicações no Brasil faz-se essencial para uma leitura de seus produtos com vistas em sentidos conotados.

1.1 IMAGENS EM DOMICÍLIO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O MEIO

As tecnologias de tubos de televisão e de transmissão começaram a se desenvolver no final do século XIX, com importantes contribuições norte-americanas e europeias. Não obstante, quando foi atingida a maturidade técnica necessária para comercialização, já haviam ocorrido grandes transformações nos sistemas de informação, com o desenvolvimento e a popularização de meios como rádio e cinema. Estes, em larga medida, anteciparam a preparação do público para assimilar os efeitos de áudio e imagem daquela. Hoje, é bastante difundida a ideia de que o desenvolvimento dos meios de reprodução e transmissão de informação impactam na própria capacidade de percepção da realidade e 14

relação entre indivíduos. Se tal elaboração pode soar em conformidade à expansão dos meios digitais e está presente nos inúmeros estudos da comunicação atuais, é válido destacar a importância das ideias de Walter Benjamin e Theodor Adorno os quais, ainda na primeira metade do século XX, trataram dos efeitos da comunicação de massa na sociedade e influenciam desde então distintas correntes dos estudos comunicacionais e sociológicos. Suas reflexões, diversas em alguns sentidos mas de mesma raiz no marxismo e na psicanálise, nos servirão de ponto de partida para pensar a importância da televisão nas construções simbólicas e na fixação ideológica do modelo corrente. Para Adorno, a capacidade desse meio “[...] de cercar e capturar a consciência do público por todos os lados” (visão e audição no ambiente privado) é também o que a “[...] permite introduzir furtivamente na duplicata do mundo aquilo que se considera adequado ao real” (ADORNO, 1978, p.346). Segundo ele, a prescrição de um modelo ideal determinado pelas classes dominantes seria a operação final de todas as obras produzidas na sociedade moderna. Em 1936, Walter Benjamin enxergou o impacto cognitivo das novas tecnologias como uma consequência natural do desenvolvimento da cultura e da técnica, mais uma etapa da grande jornada do ser-humano. “Ao longo de grandes períodos históricos modifica-se, com a totalidade do modo de existir da coletividade humana, também o modo de sua percepção” (2013. p.56). Sua teoria sobre a arte na sociedade tecnocêntrica e industrializada, ao mesmo tempo em que criticava sua mercantilização, reconhecia potenciais positivos do controle das tecnologias pelo povo1. Para ele, a função política da arte seria exercitar o homem para se relacionar com as máquinas que ora já cercavam-no nas indústrias e em casa2.

Isso vale sobretudo para o cinema. O filme serve para exercitar o homem nas apercepções e reações que são exigidas para se lidar com uma aparelhagem cujo papel em sua vida aumenta quase que diariamente. Lidar com essa aparelhagem ensina-lhe, ao mesmo tempo, que a submissão a seu serviço apenas trará consigo a libertação quando a condição humana tiver se adaptado às novas forças produtivas desencadeadas pela segunda técnica (BENJAMIN, 2013, p.63).

O autor, testemunha do amplo uso dos meios de comunicação pelo III Reich, vislumbrava uma forma de arte inutilizável para fins fascistas. Em linhas gerais, o trabalho se

1Faz-se pertinente observar que, no Manifesto do partido comunista, Marx já reconhece no desenvolvimento industrial dos meios de comunicação uma importante ferramenta para a articulação política unificada dos trabalhadores de diversas regiões e países. (MARX; ENGELS, 2008, p.23). 2 “Atualmente, as máquinas competem com o homem. Em condições adequadas, servirão ao homem. Não resta dúvida de que esse será o futuro das máquinas” já ansiava Oscar Wilde em 1891. 15

dirige à expectativa de uma arte alternativa, que substituiria o caráter ritual de períodos anteriores pela postura política, uma arte visando a transformação social. Segundo ele, nos primeiros momentos da fotografia era marcante a resistência dos seus observadores ao distanciamento das obras reproduzidas do seu referencial real. Arte nova, a fotografia buscava afirmar-se como autêntica preservando a aura através da imagem humana, e foi precisamente quando passou ao registro despovoado que afastou seu valor de culto, ligado à tradição da arte, e se definiu como prova do processo histórico, prerrogativa do seu atributo político. Benjamin salienta que a evolução técnica, quando aproximou os produtos culturais de seu público, confluiu com o forte desejo das massas de trazer as coisas para si. O valor de culto da arte foi, a passos largos, se convertendo em valor de exposição. Se antes era necessário ir ao museu o à casa de espetáculos, as reproduções permitiram atrair as obras ao extremo do ambiente doméstico. Seja em forma de pôsteres de pintores famosos, discos ou transmissão via rádio e TV, a arte mediada pela técnica propicia, através dessa proximidade com o espectador em situação íntima, a atualização do que foi reproduzido. No cinema, extremo da transformação técnica e de percepção até a altura da década de 40, o autor reconheceu o comprometimento da cultura com a lógica do mercado, e a potencial interferência abjeta de tal relação no que vem a ser produzido e mostrado ao público.

O cinema, controlado pelo grande capital, especialmente devido a seu alto custo, trabalha para substituir nas massas o interesse original de ver a si mesmo, pelo autoconhecimento e conhecimento de classe, pela realização conforme as regras estabelecidas pela indústria cinematográfica. [...] a indústria cinematográfica tem todo o interesse em estimular a participação das massas por meio de representações ilusórias e ambíguas (BENJAMIN, 2013. p.79).

Na década seguinte, Theodor Adorno e Max Horkheimer apresentaram pela primeira vez a concepção de indústria cultural. O conceito não trata estritamente das empresas de comunicação e de bens culturais, mas refere-se à transformação da cultura em bem material, às práticas de produção e de consumo “[...] através das quais se expressam as relações sociais que os homens entretêm com a cultura no capitalismo avançado” (RUDIGER, 2004, p.28). Escrito sob o impacto da comunicação de massas dos Estados Unidos, onde os autores se auto-exilaram durante a Segunda Guerra, A indústria Cultural: o iluminismo como mistificação das massas integra volume sobre os desdobramentos da racionalidade da sociedade mercantil nas relações de opressão entre as classes e na perda das subjetividades particulares. É válido lembrar que a história é construída, segundo a tradição marxista a quem 16

os autores de Frankfurt se referenciam, das práticas dos homens para se relacionar com a natureza e entre si. Nessa perspectiva, a teoria tem origem na prática, e não o inverso, e o pensamento corrente em cada época é tanto mais proveniente das práticas sociais do que estas são a concretização de ideias. Portanto, a crítica feita pelos intelectuais alemães é também uma crítica aos sistemas de produção e exploração do trabalho. Como Benjamin, Adorno e Horkheimer destacam o uso potencial dos meios de produção e difusão de cultura, ou da indústria cultural, em prol de ideologias totalitárias, sejam relacionadas ao socialismo, sejam desdobramentos diretos do desenvolvimento do capitalismo. Há, entretanto, distinções nas suas formas de encarar o desenvolvimento tecnológico da humanidade no geral, os avanços do pensamento técnico em sua essência. Para Benjamin, as transformações sociais e psicológicas inerentes à supremacia da técnica na produção material e cultural poderiam ser revertidas em favor das próprias massas, as quais, assim, tomariam o lugar de decisão e ação utilizando-se dos meios disponíveis. Adorno, entretanto, considerava que a relação entre o capital, a ordem de manutenção do status quo e a produção e difusão de produtos culturais para a massa era irremediável. Portanto, o resultado principal do desenvolvimento técnico relacionado às “produções do espírito” seria a perda total da autenticidade e o controle absoluto dos meios para os fins capitalistas.

Toda a cultura de massas em sistema de economia concentrada é idêntica, e o seu esqueleto a armadura conceptual daquela, começa a delinear-se. Os dirigentes não estão mais tão interessados em escondê-la; a sua autoridade se reforça quanto mais brutalmente é reconhecida. [...] O cinema e o rádio se autodefinem como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores-gerais tiram qualquer dúvida sobre a necessidade social de seus produtos (ADORNO; HORKHEIMER, 2002. p.8).

Tal sistema de produção cultural, desenvolvido seguindo a evolução do capitalismo das grandes corporações, refletiria desde a arquitetura das metrópoles até o mais simplório filme ou revista, sendo todos eles veículos de reafirmação da ideologia hegemônica. A homogeneidade dos palácios e grandes edifícios por todo o mundo, os estreitos apartamentos modernos, esses últimos construídos supostamente para atender à demanda dos indivíduos independentes, como toda a sorte de mercadorias destinadas a eles, colocaria a todos sob os auspícios do capital. Mesmo a arte de vanguarda seria integrada pela indústria cultural, na qual teria liberdade de abraçar o que não faz parte do escopo desta. Entretanto, presa ao ciclo da 17

renovação constante e da eterna quebra de paradigmas, aprendida da lógica do capitalismo moderno, a contracultura seria também subordinada a sua ideologia. O conceito de fetiche de mercadoria é retomado por Adorno e Horkheimer para descrever o distanciamento das pessoas em relação ao sentido original da arte, progresso que tornou seu valor de troca em fetiche para os consumidores dos produtos culturais, sendo os últimos valorizados pelo prestígio social que representam. Por conseguinte, o ocultamento da essência das mercadorias da cultura tornou-se operação perceptível em toda a dinâmica da indústria cultural. “A pretendida apropriação das faculdades humanas através da compra de bens de consumo é um estágio superior de alienação, em relação ao fetichismo de mercadoria estudado por Marx” (RUDIGER, 2004, p.35). Submetido ao trabalho alienado e inserido profundamente no sistema que o oprime, o público (ou consumidor) da indústria cultural, em busca de se desligar das tensões do cotidiano, deveria manter-se de acordo com os padrões que garantiriam a continuidade do status quo. O indivíduo, nesse contexto, só é tolerado se está completamente integrado, ciente de seu papel no sistema e agindo de acordo com os padrões considerados universais. Não se trata apenas de um ajuste particular, mas de uma auto-regulamentação da sociedade, a qual só aceita o que lhe é semelhante. (BUCCI; KEHL, 2009, p.47). Adorno atesta que a reificação do homem chegou a tal ponto ao longo da história do trabalho mercantilizado que quem está em posição de poder é capaz de interferir plenamente na vida dos demais, no nível das ações e também das consciências. O princípio da individualidade, enquanto conceito desenvolvido na sociedade burguesa, sempre esteve em posição contraditória. A aparente liberdade dos indivíduos em si, foi sempre limitada pelos modelos ideais do sistema industrial, os quais definem de antemão as opções aceitáveis de existência sobrepondo-se à subjetividade. “O individual se reduz à capacidade que tem o universal de assinalar o acidental como uma marca tão indelével a ponto de torná-lo de imediato identificável” (ADORNO; HORKHEIMER, 2002, p.59). Nenhum dos elementos sensíveis das obras da indústria cultural, nada na sua forma, seria capaz de esconder a verdadeira intenção de confirmar a ideologia que as produziu em primeiro lugar. Desse modo, se o desenvolvimento técnico nos meios de produção mudou substancialmente a relação dos homens com o trabalho e com o consumo de mercadorias, a evolução técnica dos meios de comunicação contribuiu para ampliar a dominação da lógica industrial e mercantil ao campo da vida privada, abarcando as diversas produções culturais. "Por esses meios as ideologias populistas podiam ser tanto padronizadas, homogeneizadas e 18

transformadas quanto, obviamente, podiam ser exploradas com propósitos deliberados de propaganda por Estados ou interesses privados". (HOBSBAWM, 2011, p.170). Como Morin salienta, ainda que tenha se desenvolvido graças ao impulso capitalista, o qual adaptou o progresso científico ao lazer e ao consumo, a indústria da cultura desenvolveu- se em todos os regimes, fossem ligados ao Estado ou à iniciativa privada. Enquanto nos sistemas do Estado o objetivo seria educar e convencer, nos privados o interesse maior seria o divertimento (2002, p.23). Antes da Segunda Guerra Mundial, apenas Inglaterra, França, a então União Soviética, além dos Estados Unidos e Alemanha, possuíam redes de TV. Neste período, entretanto, a indústria cinematográfica já havia se desenvolvido nos Estados Unidos e na Europa e estava integrada aos hábitos de cultura e lazer em grande parte do mundo (MATTOS S., 2002). Para Benjamin (2013), o sucesso comercial dos filmes podia ser creditado à semelhança desses com a realidade das ruas, a qual viabilizava a identificação com os personagens e situações representadas. Tal proximidade e o estímulo ao culto das estrelas, garantiria o elo entre as aspirações do público de autorreconhecimento e emancipação e a perspectiva de figurar na tela. Embora os produtos da televisão compartilhem parte da estética e das narrativas audiovisuais do cinema, esta diferencia-se radicalmente por, tal qual o rádio, embrenhar-se no ambiente doméstico do público. Segundo Adorno, tais meios têm a capacidade de incutir determinadas leituras ideológicas enquanto se oferece ao consumo gratuito e desinteressado, condicionado apenas pela posse do aparelho. Conforme Guy Debord (1997), a sociedade da indústria moderna tem no espetáculo a sua principal produção. Adestradas para a aparência da coisas, e não pelas coisas em si, as pessoas aceitam a própria vida humana e todos os acontecimentos pela forma como elas aparecem. Segundo o autor, o espetáculo não constitui apenas as imagens produzidas pelos meios técnicos, mas as relações sociais construídas com a mediação das imagens. Ele seria, em sua expressão, um modelo da vida dominante na sociedade, uma vez que só pode ser consumido o que é oferecido pelas redes, e o que se oferece é mais do próprio vivido. Arlindo Machado (2001), por outro lado, acusa nesse tipo de reflexão uma moderna iconoclastia, a qual desqualifica as imagens como causa abstrata do mal da humanidade enquanto oblitera das verdadeiras circunstâncias geradoras da crise da civilização. Convém-nos, a essa altura, lembrar que os conceitos de indústria cultural e sociedade do espetáculo foram construídos observando sociedades onde os processos de industrialização e massificação se encontravam em estágios avançados, como na América do Norte e na 19

Europa. Destaque-se que, apesar do período de restrições, cinco anos após a Segunda Guerra, os Estados Unidos já contavam com quatro milhões de aparelhos de televisão. Além do avanço técnico, a grande experiência com produções cinematográficas e o modelo privado de gestão dessa indústria forneceram o alicerce para o acelerado desenvolvimento da sua TV comercial (CAPARELLI, 1982). Posto isso, consideremos que o país assumiu ainda a posição de orientador da implantação da televisão ao redor do globo, interferindo principalmente em países ditos de terceiro mundo, e tornando-se protagonista da colonização cultural do século XX. Essa, como citada por Edgar Morin (2002), não mais se dirige aos territórios, mas fala diretamente ao espírito, contribuindo para naturalizar a cultura oriunda da imprensa, do rádio, do cinema e da televisão.

[...] nas sociedades ocidentais, são as transformações econômicas, principalmente o progresso industrial, que transformaram as mentalidades. No Terceiro-Mundo, a indústria ultraligeira, as das comunicações (rádio, cinema, antes de qualquer outro), começa a revolucionar as mentalidades antes mesmo que a sociedade seja transformada (MORIN, 2002, p.161).

Em sentido análogo, Ortiz diferencia a realidade brasileira da dos países europeus, onde a superestrutura (cultura, arte, instituições) se modificou lentamente e posteriormente às mudanças da infraestrutura, só depois que o capitalismo já havia se instaurado. Se, ainda na primeira metade do século, já existiam os meios para se comunicar com as massas, nosso país ainda não havia se reestruturado em função da modernidade. Segundo o sociólogo sublinha, só se pode falar de indústria cultural reconhecendo seu caráter de integração na sociedade de massa, viável apenas pela ligação da população com um centro em uma sociedade urbanizada (1988, p.18, 39, 49). Em 1950, enquanto os Estados Unidos possuíam 107 emissoras de televisão e a Inglaterra realizava sua primeira transmissão internacional, Assis Chateaubriand inaugurou a primeira emissora de toda a América do Sul, a TV Tupi de São Paulo. Se a distância temporal entre implantação da TV nos países ditos desenvolvidos e nos em vias de desenvolvimento pode parecer pequena, a discrepância nos índices sociais e econômicos em dados locais e momentos era sensível. Diferente dos Estados Unidos, onde desde a década de 1920 se apresentava um número maior de habitantes nas zonas urbanas, o Brasil contava, três décadas depois, com 64% dos seus 50 milhões de habitantes vivendo no campo (BRITO, 2006). 20

Ao longo de sua história no Brasil, a televisão deu visibilidade a peculiaridades e multiplicidades nacionais, políticas ou culturais, e importou, disseminou modelos civilizatórios estrangeiros. A ingerência exterior nas programações locais deu-se, com destacada importância, através da relação germinal entre a televisão e o mercado publicitário. Nos primeiros anos, além de serem patrocinados, muitos programas eram escritos e produzidos por agências multinacionais, especialmente as de origem norte-americana (SIMÕES, 1986). Detenhamo-nos rapidamente sobre a publicidade, cujas formas influenciaram todo o complexo da indústria cultural, do qual, por sua vez, ela mesma faz parte e se alimenta. Na sociedade do capitalismo competitivo, a propaganda já se fazia presente como facilitadora do encontro do vendedor com o consumidor. Diversamente, no cenário das grandes firmas, a publicidade contribui antes para reforçar o vínculo ideológico entre elas e o público. Além disso, se é verdade que ela ajuda a desenvolver a competição entre os produtores, também o é sua capacidade de torná-la desleal, excluindo de antemão os mantidos fora da comunicação de massas. “A publicidade é hoje um princípio negativo, um aparelho de obstrução, tudo o que não porta o seu selo é economicamente suspeito” (ADORNO; HORKHEIMER, 2002, p.71). Da mesma maneira, como exposição de um modelo social voltado ao consumo, a publicidade contribui para a exclusão dos que estão fora do seu público-alvo, ou seja, os que têm acesso aos produtos anunciados. Tal efeito segregador pode ser ainda mais danoso sobre uma sociedade que não chegou a altos patamares do desenvolvimento econômico e da distribuição de renda.

Uma das mais graves acusações contra a publicidade multinacional nos países de Terceiro Mundo é a de que exerce influência negativa nos consumidores, bem como estimula-os e incita-os a desejarem produtos dos quais não precisam e com os quais a economia dos países subdesenvolvidos como um todo também não se beneficia (MATTOS S., 2002, p.63).

Sodré afirma que, no Brasil, o sistema de cultura de massas atua com o efeito de demonstração de modelos sócio-culturais importados para estimular o consumo, não obstante as limitações econômicas.

De evolução rápida e planetarizada, ela apresenta características transacionais em vários aspectos. São exemplos comuns os modelos (de felicidade, beleza, bem-estar etc.) do cinema americano, as bossas da redação publicitária, os copyrights das grandes revistas europeias ou americanas, importados, adaptados e consumidos por países de culturas nacionais diversas (fenômeno, aliás, marcante nos países em 21

desenvolvimento, com consequências dificilmente benéficas). (SODRÉ, 1972, p.17).

Cabe-nos, outrossim, acrescentar a ideia de que a transmissão dos valores ideológicos pela indústria cultural “[...] se faz através da classe dominante dos países dependentes: esses valores passam pelo crivo de seus interesses e são adaptados, aceitos ou recusados, de maneira consciente ou não.” (CAPARELLI, 1982, p.17). Ao tratar da América Latina, Martín-Barbero, afeito às ideias de Benjamin, atestou que os dispositivos de mediação de massa atuam para realizar uma abstração da forma mercantil implícita na prática da fábrica e da comunicação tecnológica. Essa mediação encobriria o conflito de classes, “[...] produzindo sua resolução no imaginário, assegurando assim o consentimento ativo dos dominados” (1997, p.169). Para o autor, a cultura de massa se constituiu “acionando e deformando” dados da antiga cultura popular, integrando ao mercado as demandas do próprio público. Tendo em vista que a trajetória da TV brasileira remete a diferentes fases políticas e econômicas do país, analisar o veículo requer inevitavelmente explorar algumas dessas congruências.

1.2 O DESENVOLVIMENTO SERÁ TELEVISIONADO

Vimos que a indústria cultural só efetiva seu objetivo universalista de influência através da ação combinada de todos os seus mecanismos. Nesse contexto, tanto o meio televisivo quanto as próprias emissoras se inserem em um sistema amplo, e suas mensagens corroboram com determinada tendência que garante o estímulo e a manutenção de ideais que regem a configuração da sociedade como um todo.

Assim como a própria tela da TV, antes mesmo de ser construída, já possuía seu lugar no imaginário, é preciso levar em conta, nem que seja por certa cautela metodológica, que aquilo que o telespectador vê na tela emerge não apenas da tela em si, mas também de algo que ele, telespectador, já estava demandando antes (BUCCI, KEHL, 2009, p.29).

Já nas primeiras transmissões realizadas em território brasileiro, a televisão sinalizou os vínculos que viriam a ser o motor de seu desenvolvimento. Em junho de 1950, foi transmitido, extraoficialmente, um discurso em que o então ex-presidente Getúlio Vargas anunciava sua volta à vida política, retorno coroado com a eleição para um novo mandato. O empresário Assis Chateaubriand inaugurou, em 18 de setembro daquele ano, a primeira 22

emissora da América do Sul, a Tupi de São Paulo. Exemplo da chegada da “modernidade” no país, a TV se converteria no principal divulgador das empresas nacionais e das políticas de desenvolvimento deste governo e dos posteriores (MATTOS S., 2002; SIMÕES, 1986). Durante o Estado Novo (1937 a 1945), Vargas investira em substituir bens de consumo estrangeiros por nacionais. O interesse provinha, em parte, das dificuldades de importação advindas da guerra em curso na Europa e da inspiração do governo nos modelos populistas e fascistas do velho continente. “A politica de Vargas era orientada para a participação do Estado como investidor na economia. Os objetivos eram investir no setor industrial e começar a construir a infraestrutura necessária para a produção de bens de consumo duráveis” (MATTOS S., 2002, p.19). A televisão, nesse aspecto, era um dos fatores que marcavam o progresso, o desenvolvimento trazido ao país na década de 40. Dono do maior grupo de comunicação do país à época, os Diários Associados, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (o Chatô) já era reconhecido como grande investidor e incentivador da cultura e da modernização nacional. Inmá Simões (1986) lembra que suas empresas já haviam contribuído para campanhas como a “Deem asas para o Brasil”, a qual estimulou a criação de inúmeros aeroclubes e o treinamento de pilotos no país durante o Estado Novo, e para a importação pioneira de diferentes tipos de gado. Além disso, em 1947, o jornalista paraibano havia inaugurado o Museu de Arte de São Paulo (MASP), o qual ocupava alguns andares da sede dos seus Diários Associados. Além do apoio de Vargas, Chateaubriand se vinculou desde o início ao investimento de anunciantes, como o Banco Moreira Sales e o Banco do Estado de São Paulo. No otimista discurso de inauguração da Tupi Difusora de São Paulo, em que enalteceu a prosperidade da indústria brasileira, ele destacou a contribuição da Companhia Antártica Paulista, Sul América Seguros de Vida, Moinho Santista e F. Pignatari para trazer ao país, como transcrito por Inmá Simões: “[...] a mais subversiva máquina de influir na opinião- uma máquina que dará asas à fantasia mais caprichosa e poderá juntar os grupos humanos mais afastados” (1986, p.20). Segundo ela, apesar de ter recebido muito dinheiro do Estado para seus investimentos, o “velho capitão” sempre deu mais crédito à iniciativa privada. Em defesa desta, por exemplo, se posicionou contra o monopólio estatal da exploração de petróleo e também a criação de uma rede de eletrificação independente da Light para a linha Central do Brasil. Para a inauguração da Tupi Difusora de São Paulo, Chateaubriand mandou importar duzentos aparelhos receptores, os quais foram posicionados em pontos de fluxo de pessoas, como lojas e bares, além da sede dos Diários Associados. Em 1951, ano da inauguração da 23

Tupi do e também da TV Paulista, o número de televisores chegava a sete mil, localizados nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse mesmo ano começou a ser produzido a primeiro aparelho de televisão da indústria nacional, da marca Invictus, concorrendo com as marcas tradicionais estrangeiras. Tal fato contribuiu para o barateamento do televisor, que na época custava pouco menos que um automóvel. (MATTOS S., 2002; SIMÕES, 1986). Observemos que, mesmo antes da inauguração da primeira emissora no país, havia em curso uma campanha para despertar o interesse na tecnologia3. Além disso, o país passava por um período de grande expansão dos espaços culturais, com a abertura de museus, a popularização do teatro nacional, do rádio e das salas de cinema. Para estimular a compra de aparelhos de TV, jornais e revistas traziam anúncios que clamavam pela participação da população no empreendimento. “Bater palmas e aclamar admiravelmente é louvável, mas não basta – seu apoio só será efetivo quando você adquirir um televisor” (SIMÕES, 1986, p.23). Mattos ressalta que tal convite foi recebido por uma elite impactada pela proibição dos Cassinos, instituída em 1950, o que pode ter servido de estímulo para buscar novas formas de entretenimento (2002). Primeiro exclusiva de uma elite restrita, a televisão se integrou ajudando a formar a mentalidade de acumulação capitalista no país, instigando a aquisição tanto do próprio aparelho quanto de outros produtos no momento de desenvolvimento da indústria e das grandes empresas brasileiras. A tendência persistiu nos períodos seguintes, e durante todo o governo de Juscelino Kubitscheck a TV figurou ao lado do carro como símbolo de modernidade e orgulho da nação (CAPARELLI,1982). No ano da inauguração da primeira fábrica de automóveis no Brasil, em 1956, existiam seis emissoras nacionais, sendo três em São Paulo, duas no Rio de Janeiro e uma em Belo Horizonte. Estima-se que a essa altura um milhão pessoas já haviam se convertido em telespectadores no país, havendo mais de 200 mil aparelhos instalados nas três cidades. Nessa época, os Associados adquiriram nove estações retransmissoras (antenas) destinadas a , Porto Alegre, Salvador, Curitiba, Campina Grande, Fortaleza, São Luiz, Belém e Goiânia. Logo, incluiria também Vitória e Brasília. No começo, sem uma política oficial de

3 Um exemplar datado de 1949 do elitista Jornal das Artes traz a televisão na lista dos seus temas. Não há, contudo, nenhuma menção ao meio no interior do volume, apenas na sua página de apresentação, em forma de tópico e acompanhado do cinema, da moda, das artes plásticas e da literatura. Não era incomum periódicos da época tratarem da televisão nos países da Europa e nos Estados Unidos mesmo antes de o veículo aportar no Brasil, uma articulação que anteviu a grande receptividade da TV entre os brasileiros. Sobre o assunto, o professor Roberto Tietzmann, da PUC do Rio Grande do Sul vem desenvolvendo uma pesquisa, cujos primeiros resultados foram apresentados no 10o Encontro Nacional de História da Mídia, em junho de 2015. 24

comunicação, as próprias empresas investiram em infraestrutura para transmissão e começaram a montar as redes no país. Esta só viria a ser completada durante o Regime Militar (MATTOS S., 2002; SIMÕES, 1986). A limitação no número de aparelhos e na estrutura de transmissão não era a única preocupação dos pioneiros da televisão. Diferente dos Estados Unidos, onde a implantação das televisões comerciais foi beneficiada pela experiência empresarial e artística da indústria cinematográfica, no Brasil as primeiras empresas nacionais de cinema, Atlântida e Vera Cruz, foram criadas em 1941 e 1947, pouco antes do nascimento da TV (ORTIZ, 1988). Porquanto existisse a carência de profissionais habilitados para produzir os programas, agências de publicidade, como a McCan Erickson e JWT foram mobilizadas pelos próprios anunciantes para contribuírem. Em geral, elas adaptavam originais americanos para o público nacional, levando ao ar típicos exemplos do american way of life em programas como Essa é a sua vida, tradução do This is your life da TV norte-americana, e o programa de perguntas e respostas O céu é o limite, ambos apresentados por J. Silvestre no Rio de Janeiro (em São Paulo, este era comandado por Aurélio Campos) (SIMÕES, 1986). Nessa fase, não era incomum que os programas fossem batizados com os nomes dos patrocinadores, e estes chegavam a exercer total controle sobre as produções. Exemplos são A grande gincana Kibon, Carrossel Kibon, Sabatina Maizena e Concertos matinais Mercedes Benz. No começo, possuir uma televisão era sinal de prestígio e diferenciação, privilégio de poucas famílias mas, apesar das restrições, a televisão se caracterizou desde o início como um veículo para a publicidade. Se, por um lado, esta pode ser relacionada com a liberdade de imprensa perante os governos e pela multiplicidade de patrocinadores e interesses, é considerada por alguns autores como um dos fatores mais importantes para a influência dos países hegemônicos sobre os veículos de comunicação dos subdesenvolvidos.

Como no início a televisão não atingia um grande público, também não conseguia atrair os anunciantes. Mas, as agências de publicidade estrangeiras instaladas no Brasil, e que já possuíam experiência com esse veículo em seus países de origem, logo começaram a utilizar a televisão brasileira como veículo publicitário, passando a decidir, também, o conteúdo dos programas (MATTOS S., 2002, p.70).

Recordemos oportunamente as considerações de Adorno, para quem a indústria cultural teria na publicidade as bases da sua linguagem. “Numa e noutra a mesma coisa aparece em lugares inumeráveis, e a repetição mecânica do mesmo produto cultural já é a repetição do mesmo slogan de propaganda” (ADORNO; HORKHEIMER, 2002, p. 73). 25

Além disso, a programação dos primeiros anos era majoritariamente voltada para os círculos culturais dos abastados das próprias cidades de origem. Como as emissoras só alcançavam 100 km a partir da fonte de transmissão, os programas eram produzidos localmente e dirigidos a um público específico. “Presos pelo cordão umbilical da transmissão ao vivo e da impossibilidade de registro das imagens, os artistas, técnicos e jornalistas permaneciam fixados em suas próprias regiões, onde faziam televisão para seus conterrâneos” (PRIOLLI, 2000, p.17). O processo nacional de urbanização tendia para a separação cada vez mais marcada entre a cultura das cidades e dos interiores do país. A cultura a ser mostrada, era a dos museus, dos shows e das práticas culturais oriundas das metrópoles, capitaneadas por Rio de Janeiro e São Paulo, ou importadas por elas (SIMÕES, 1986; ORTIZ, 1988). Nos anos iniciais, já ficaram estabelecidas as frentes nas quais atuaria a televisão no país: informação, entretenimento e teledramaturgia. Seus parâmetros, entretanto, divergiam dos modelos consolidados mais adiante. Devido à limitação da programação ao vivo, as telenovelas eram transmitidas apenas poucas vezes por semana. Os primeiros telejornais não eram sequer produzidos nas emissoras. Lançado na Tupi em 1952, o “Repórter Esso” carregava o nome do seu patrocinador e era totalmente elaborados por uma agência de publicidade multinacional, a qual majoritariamente adaptava notícias importadas (SIMÕES, 1986). Entre as grandes pioneiras da TV no Brasil, a Excelsior, fundada pelo empresário Mario Simonsen destaca-se pela importância na construção de um formato brasileiro dessa indústria. Em 1960, o país já contava com quase seiscentos mil aparelhos e a Excelsior inovou colocando no ar uma programação prioritariamente voltada à cultura nacional. A emissora contratou os maiores talentos da TV na época, donde chegou a ser responsabilizada pela decadência da TV Rio, importante canal que, no seu auge, chegou a ter mais audiência que a Tupi na capital fluminense. Outro grande diferencial da Excelsior diante dos canais da época diz respeito ao seu modelo empresarial, mais moderno que os dos grupos familiares, como os Diários Associados, sendo o primeiro a investir na organização dos espaços publicitários e na modernização administrativa. A emissora é ainda apontada como a pioneira em apresentar vinhetas de passagem nos intervalos comerciais e a fazer a autopropaganda, tão comuns à televisão atual (COSTA, 1986). 26

Uma propaganda exibida pelo canal, em 1963, apresentava o Tropical Erontex “tropical nacional de sucesso internacional”4. O comercial destacava a modernidade do tecido fabricado com novas tecnologias trazidas ao Brasil, uma “moderníssima maquinaria, representando o mais alto padrão industrial”. Além de vender o próprio produto, o estímulo à indústria nacional era reafirmado pelo anúncio de um sorteio entre os compradores. O prêmio era um carro Simca Jangada, primeiro station wagon tupiniquim, lançado três anos antes na inauguração da primeira edição do Salão do Automóvel. A tecnologia do videotape surgiu em 1962 e mudou radicalmente a maneira de se fazer televisão no Brasil, possibilitando a gravação de programas de uma só vez para serem exibidos ao longo da semana. Além de baratear as produções, a nova agilidade permitiu finalmente a organização vertical e horizontal da programação. Assim, a primeira telenovela diária foi exibida um ano depois pela Excelsior, “2-5499 Ocupado”. Com o VT, a novela passa a ser um modelo desejado por ser diário e poder, se cair no gosto do público, garantir audiência por longos períodos (SIMÕES, 1986, p.54). Importante jornalista e empresário das comunicações, Roberto Marinho, decidido a entrar no negócio da televisão e inspirado no sucesso da Excelsior, firmou um acordo com o grupo norte-americano Time-Life, garantindo apoio de capital e treinamento empresarial e técnico nos primeiros anos de implantação. “A entrada das multinacionais da cultura no mercado brasileiro era um indicador do que ocorria em outros países da América Latina e, geralmente, em outros países dependentes” (CAPARELLI, 1982, p.31). O convênio foi assinado em 1961 e garantia que os norte-americanos ficariam com 45% dos lucros da empreitada. Porém, com a reforma constitucional de 1964, a participação de companhias estrangeiras nos meios de comunicação no Brasil foi tacitamente proibida e o contrato teve que ser rompido. O caso culminou em uma Comissão Parlamentar de Inquérito. (CAPARELLI, 1982). Marcadamente, a partir do golpe militar, o Estado alargou a influência sobre a televisão, inclusive estabelecendo leis, agências reguladoras e adotando tecnologias novas. Estações terrestres de satélites, ampliação do sistema telefônico e linhas de micro-ondas possibilitaram a transmissão de TV em todo território nacional. Nesse período foram criados o Ministério das Comunicações, a Embratel e o Conselho Nacional de Comunicação. Além do foco no desenvolvimento técnico, o que permitiu a formação de uma rede nacional, e do controle através das concessões, o governo censurou e estimulou a autocensura

4 Disponível em: . 27

nas emissoras sob pena de retaliações oficiais, especialmente após os Atos Institucionais de 1967 e 1968. Os atos definiram diretrizes quanto ao uso da comunicação ligado ao desenvolvimento do país e a formação da opinião pública, interferindo no conteúdo dos programas (MATTOS S., 2002, p.92). Em 1968, com a criação do crédito direto ao consumidor, a compra de televisores cresceu 48% no país. A televisão tinha a vantagem de, além de alcançar grandes plateias, poder ser compreendida também pela grande massa analfabeta, na época quase metade da população. Com a alegada intenção de diminuir as desigualdades entre as regiões e defender as fronteiras, o regime descentralizou os investimentos em infraestrutura e comunicações, tomando a disseminação de um espírito unificador como ferramenta para a integração nacional. Para ressaltar a sincronia dos avanços da televisão com o programa político em vigor, faz-se justo lembrar que é também desse período o projeto da Transamazônica. Na década de 1960, coincidentemente, houve um grande estímulo internacional, personificado pela Unesco e pelas Nações Unidas, para o uso da comunicação de massa, visando a aplicação do modelo de desenvolvimento estadunidense nos países em processo de industrialização (CAPARELLI, 1982). A primeira transmissão de televisão em rede nacional foi realizada em 1969. A TV Globo exibiu, via Embratel, ao vivo, a chegada do homem à Lua. No mesmo ano, estrearia o Jornal Nacional no canal, pioneiro na transmissão simultânea para todo o Brasil. Batizado com o nome do seu primeiro patrocinador, o Banco Nacional, o telejornal ajudou a difundir a ideia de prosperidade durante o “milagre econômico” do regime militar (KEHL, 1986). Desde os anos de 1970 o governo já era o maior anunciante individual do país, e em 1980 possuía duzentas empresas não-financeiras. Com reformas bancárias e regulamentações específicas, o Estado estabeleceu todas as condições de influenciar diretamente na comunicação de massa. “Os veículos de comunicação de massa, principalmente a televisão, passaram a exercer o papel de difusores não apenas da ideologia do regime como também da produção de bens duráveis e não-duráveis” (MATTOS S., 2002, p.89). A Globo estreou sua primeira telenovela, Ilusões Perdidas (escrita por Enia Petri) no mesmo ano de sua inauguração. Assim como as demais produções do período, a telenovela seguia a tradição dos melodramas românticos. Inspirada no sucesso de Beto Rockefeller, exibida pela Tupi no ano anterior, em 1969, a telenovela Véu de Noiva (primeira de Janete Clair para o horário das 20h) marcou uma virada importante na emissora, que a partir daí passou a investir em tramas urbanas e com narrativa mais “realista”. A intencionalidade de 28

gerar identificação com o público foi muito clara desde a chamada de divulgação: “Em Véu de Noiva tudo acontece como na vida real”5. Trataremos especificamente da telenovela mais adiante. Por ora, interessa apenas situar que, a partir da década de 1970, a emissora investiu fortemente na nacionalização dos temas com foco na atualidade e nas transformações da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, as telenovelas relativamente mais realistas ampliaram a possibilidade do público identificar-se com as personagens de forma menos alusiva, beneficiando a exposição de produtos acessíveis aos espectadores e agradando também os anunciantes. De telenovelas e telejornais a programas de auditório, muitos dos quais distribuíam prêmios como geladeiras, fogões e televisores, a TV “[...] serviu como vitrine aos comerciais e merchandisings que divulgavam os novos produtos da indústria nacional” (HAMBURGER, 2011, p.66). A TV Globo deve parte de seu sucesso à maneira inteligente com que se apropriou e retrabalhou os modelos empresariais e artísticos bem-sucedidos das emissoras anteriores ou contemporâneas. “(A Globo) assumiu sua posição buscando os códigos de comunicação da época sem nenhum pudor”, declarou Valter Avancini em uma entrevista (KEHL, 1986, p.243). Antes de trabalhar na Globo, a partir de 1972, ele havia se destacado na Tupi, na TV Excelsior e na TV Bandeirantes, e assinou, ao lado de Lima Duarte, a direção inovadora de Beto Rockefeler. O diferencial de qualidade da TV Globo, para Avancini, seria de fundo técnico, determinado pelo acesso a equipamentos mais modernos, os quais contribuiriam para ampliar as possibilidades de captação de imagens e produção de narrativas, o desenvolvimento de uma linguagem própria. Segundo o diretor, já em meados dos anos 60 a emissora percebeu a necessidade de direcionar as mensagens para o público da classe média urbana, capaz de consumir os produtos dos anunciantes. Tal intento restringiu o interesse inicial no mercado popular. Por conseguinte, as produções ganhariam um tratamento estético diferente, mas mantendo as linhas de conteúdo. Especializando-se nos gêneros de ficção e no jornalismo, a TV Globo firmou ao longo dos anos o chamado “padrão Globo de qualidade” o qual determina a suposta superioridade de seus produtos. A expressão “[...] não corresponde apenas a um slogan, mas a uma reestruturação total da grade de programação, produção de programas e organização da

5 Como consta no site memoriaglobo.globo.com. 29

empresa empreendida pela emissora na década de 1970” (MOTTER; MUNGIOLI, 2007, p.160). Tal padrão, muito marcado pela superioridade técnica, mas também por qualidades artísticas, sugere a repetição de uma receita de eficiência inerente à lógica mecanicista, a qual se impõe nas mercadorias culturais interferindo diretamente na padronização do estilo. Barthes (2013a, p.109) identificou a “quantificação da qualidade” como uma das figuras retóricas apresentadas nas construções de sentido mítico da mídia. O objetivo seria dar ao público a certeza de ser recompensado, tal qual um consumidor ao adquirir um bom produto. Também para Adorno (2002) e Debord (1997), as ricas produções e o apuro técnico dos produtos seriam uma reafirmação do modelo capitalista de eficiência. O primeiro se refere ao “triunfo do capital investido”, e o segundo ao espetáculo como “o dinheiro que se olha”. O período áureo da emissora, é válido ressaltar, coincide com a decadência da Tupi e o fechamento da Excelsior. Posterior a essa fase, durante a maior parte do tempo a Globo não teve nenhuma concorrente com audiência regular realmente expressiva. Salvo em casos atípicos, como o da telenovela Pantanal, exibida pela Manchete em 1990, e outros exemplos isolados, até poucos anos era possível falar da emissora considerando, sem risco de exageros, seu caráter hegemônico. A alardeada decadência do império não tomou forma até hoje e a emissora, apesar de mudanças ne audiência, deteve 38,7% em 2013 (OBITEL, 2014). Segundo os dados, os números da Globo são superados apenas na Colômbia, onde os canais Caracol e RCN dividem a audiência nacional quase ao meio. Uma matéria publicada em 2014 pelo jornal The Economist destacou o grande poder e diversidade de investimentos do grupo Globo e comparou seus resultados aos da CBS, canal aberto mais popular dos Estados Unidos, cujo share gira em torno de meros 12% (GLOBO DOMINATION, 2014). A TV Globo se mantém na liderança mesmo diante do cenário de concorrência ampliada. Após a reabertura política, em meados da década de 80, o país entrou em uma nova fase de desenvolvimento e, consequentemente, de telecomunicações. Em 1999, as concessões de retransmissoras mistas de TV, dadas por José Sarney, foram transformadas em micro- geradoras regionais, podendo veicular espaço publicitário. Fernando Henrique Cardoso aprovou 44 pedidos de concessões até 2001 (MATTOS S., 2002, p.52). Indício da onipresença do veículo é o fato de sua posse ter sido excluída dos parâmetros de pontuação do Critério Brasil 2015. A geladeira, por exemplo, continua como diferencial de classe de consumo na mesma referência. 30

Citando Muniz Sodré, assumimos que a cultura de massa se configurou no Brasil como uma extensão da cultura letrada da elite histórica. A cultura oral, baseada na memória, nos ritos coletivos, na poesia popular, no folclore descaracteriza-se quando incorporada à nova forma. Além disso, o processo tradutório implica marcas das discrepâncias seculares de renda e acesso a educação formal (1972, p.22). Mesmo em comparação às colônias vizinhas, o Brasil teve a população apenas tardiamente apresentada à imprensa e mesmo à educação. Até o início do século XIX, a maior parte da população permanecia aquém do desenvolvimento da ciência e das humanidades centro-europeias, salvo uma pequena elite educada em escolas da Europa. Tal panorama mobilizou-se apenas após a mudança da corte portuguesa para o Brasil, em 1808. Data desse ano a fundação da Imprensa Régia (hoje Imprensa Nacional) e as primeiras escolas oficiais de alfabetização do país, ainda destinadas a poucos privilegiados, as quais foram instaladas no país ao mesmo tempo em que as primeiras escolas de ensino superior. Impedida de voltar para a Europa, a Coroa portuguesa foi pressionada, afinal, a investir na formação dos moradores do país (OLIVEIRA, 2004). Para comparação, em 1890, quando o Brasil tinha 16% da população alfabetizada, na França o número chegava a 90% e a Inglaterra, em 1900, já indicava 97% (ORTIZ, 1988, p.24; 28). Apenas durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, no início da era industrial e urbana brasileira, e em resposta a demandas crescentes dos cidadãos, a educação entrou na pauta principal das políticas do Estado. Destaque-se que, em 1940, 56% da população acima dos 15 anos continuava analfabeta (IBGE, 2010). Morin assinala que o conhecimento intelectual é construído a partir de “[...] paradigmas que selecionam, hierarquizam, rejeitam as ideias e as informações, bem como em função de significações mitológicas e de projeções imaginárias” (1998, p.29). Tais paradigmas são absorvidos pelos sujeitos a partir de suas primeiras experiências, incutindo marcas das diferentes culturas a que eles são expostos (familiar, escolar, universitária, profissional etc), configurando um imprinting cultural. Nessa perspectiva, tal “atraso” brasileiro, diferente de marcar uma inferioridade cultural ou cognitiva, deixaria espaço para o desenvolvimento de obras e linguagens libertas dos padrões próprios da racionalidade científica. “Os subcultivados sofrem um imprinting e uma normalização atenuados e há mais opiniões pessoais diante do balcão de um café do que num coquetel literário” (MORIN, 1998, p.35). Supomos que uma sociedade “quase-não-da-escrita” ou “também-da-escrita” (PINHEIRO, 2013, p.89) como o Brasil só poderia ser plenamente alcançado pela cultura dos 31

países desenvolvidos ocidentais a partir de uma matriz oral. Se, na França, o cinema respondeu a uma aspiração presente na sociedade (SCHWARTZ, 2001), no Brasil a dinâmica com a televisão se complexibilizou. Aqui, a televisão não só respondeu às novas formas de experimentação da realidade dos moradores das cidades, mas destacou-se pela capacidade de afetar pessoas de todos os níveis de instrução formal, expandindo-se por quase todo o território habitado. Foi com a televisão que a versão brasileira da indústria cultural se impôs (quase) absolutamente sobre as diferentes culturas nacionais, realizando-se na homogeneização de uma leitura determinada do país. Também o rádio permitia a transmissão de informações à população analfabeta, mas esse não contava com o apelo das imagens.

Diante da tevê, que se impõe como um simulacro de realidade, o receptor se abandona descuidado. [...] Na iconosfera (universo das imagens), a sensação tende a predominar sobre a consciência, fazendo apelo a todos os sentidos, mas enfraquecendo-os. (SODRÉ, 1972, p.60).

Não obstante, se nas impressões sobre a televisão na década de 1960, Adorno (1978) atestava que o grande trunfo do meio era o uso da linguagem-imagem, sendo o texto um acessório redundante, a televisão se desenvolveu alicerçado na palavra. Repare-se que o silêncio é um atributo raro nas programações. De telejornais a programas de auditório e ficção, o essencial das informações será passado mormente na forma verbal. Arlindo Machado salienta que é fácil notar a predominância de programas fundados no discurso oral na televisão, nos quais as imagens seriam mero suporte para as falas. Ele aponta como indício o fato de que muitas pessoas deixam o aparelho ligado enquanto executam outra tarefas, sendo o áudio suficiente para a compreensão. “Ao contrário da propalada civilização das imagens, vivemos em uma civilização fortemente marcada pela hegemonia da palavra, seja ela escrita ou oralizada” (MACHADO, 2001, p.17). Barthes já havia acusado uma falsificação nas percepções de uma civilização da imagem independente do texto. Para ele, a linguagem da comunicação é logoicônica, relação exposta nas legendas das fotografias, nas histórias em quadrinhos ou no cinema e na publicidade falados (2005a, p.79), conceito este, extensível à televisão. Ademais, o veículo está enraizado na cultura nacional, seja pela sua relação a interesses do Estado e do comércio locais, seja pelos valores estéticos e culturais presentes em seus produtos. As imagens que apresenta são construídas a partir de dados extraídos da própria realidade. Sua dramaturgia é diretamente ligada ao folhetim e à crônica, a arte das 32

ruas expressa nas páginas de jornais na embrionária indústria cultural brasileira do fim do século XIX (MOTTER, 2004, p.254). Martín-Barbero (1997) lembra que o folhetim, oriundo da França, foi o primeiro texto escrito em formato popular de massas e seu surgimento relaciona-se com o grande aumento da capacidade de produção de jornais, pelas, então, novas rotativas. Com um volume maior de impressões, os jornais passaram a almejar um público mais amplo, superando o privilégio de seu consumo pela burguesia. O autor situa, outrossim, que toda a literatura (da qual o folhetim é uma das expressões) foi afetada pelas transformações da comunicação literária a partir de 1850, quando a necessidade de uma escritura próxima da realidade das ruas se impôs. Tal demanda estaria ligada ao retrocesso demográfico europeu, ao nascimento do capitalismo moderno e à divisão da sociedade em classes.

Massa designa, no movimento da mudança, o modo como as classes populares vivem as novas condições de existência, tanto no que elas têm de opressão quanto no que as novas relações contêm de demanda e aspirações de democratização social. E de massa será a chamada cultura popular. [...] Sabemos que essa inversão vinha sendo gerada há muito tempo, mas ela não podia tornar-se efetiva senão quando, ao se transformarem as massas em classe, a cultura mudou de profissão e se converteu em espaço estratégico da hegemonia, passando a mediar, isto é, encobrir as diferenças e reconciliar os gostos (MARTÍN-BARBERO, 1997, p.169).

De acordo com ele, as narrativas ocuparam um lugar central na incorporação das classes populares à cultura hegemônica, confirmando a emergência de um meio de comunicação para as massas e entre as classes. Ressalte-se que Martín-Barbero remete ao conceito de Gramsci para hegemonia. Esta não consistiria em uma imposição dos dominantes, mas no local do compartilhamento de interesses e visões entre aqueles as classes subalternas. Tal concepção rompe com a ideia de que toda assimilação do hegemônico implica uma submissão, atentando ainda que outras lógicas, fora a de dominação, agem sobre as construções da cultura de massa6 (1997, p.104-115, 170). O folhetim, “crônica do cotidiano”, primeiro relegada ao rodapé dos jornais, tinha como fonte de inspiração o próprio ambiente dos seus autores e imbricou-se no Brasil, sendo o legado de alguns dos nossos maiores escritores. Amálio Pinheiro (2013) salienta que criadores como Machado de Assis, José de Alencar e Aluísio Azevedo deram ao gênero uma dimensão que o engrandeceu. Tal dimensão caracterizou-se nos formatos para serem apreciados no espaço urbano, enquanto se vive a cidade, na apreciação do jornal diário.

6 Emerge desse entendimento, aliás, suas críticas a Adorno e sua elaboração de indústria cultural. 33

Ele atesta que o jornal contribuiu para colocar no mundo dos letrados os traços das culturas populares. Dessa forma, a relação entre as tecnologias de impressão importadas “[...] e os fatores materiais peculiares da cultura (multiplicidade e variação externo-migrantes) promove um território de invenção de que participa a fruição coletiva, mesmo num veículo que busca sua padronização” (PINHEIRO, 2013, p.72). Em 1876, Machado de Assis situou o termo cronista ao lado de folhetinista, aproximando ainda o conceito de contador de histórias, este oriundo do povo, não da elite letrada, ante a ideia de que qualquer relato é sempre criação fantasiosa. Assis também cobraria dos escritores brasileiros a aclimação do folhetim francês aos sabores locais. A crônica era, afinal, a “frutinha do nosso tempo” (MOTTER, 2004, p.254).

Assim, por exemplo, num folhetim/crônica/conto/romance machadiano e aluisiano convivem, em fluxos intermitentes, assimétricos e encadeados, guardados os limites mínimos de cada gênero, pelo menos, a incorporação de tendências literárias internacionais, uma nova concepção crítico- corrosiva, do humor, a agilidade táctil/oral e sintática do folhetinista, o enorme arquivo de falas e imagens barroquizantes da paisagem cultural da cidade em tela. (PINHEIRO, 2013, p.75)

Se na época áurea, o folhetim levou aos círculos aculturados imagens da pluralidade do cotidiano das cidades, resquícios da cultura e da arte populares, podemos dizer que a televisão, porquanto dispense o conhecimento das letras, não apenas transporta e traduz a sociedade em seus produtos, mas consegue apresentar suas leituras de volta para a ampla apreensão, sem intermediários, da sociedade a qual lhe serve matéria de prima. Outrossim, a rua do folhetim é a mesma rua das telenovelas e, antes, da enchente de 1966, no Rio de Janeiro (tema da cobertura telejornalística que colocou a TV Globo no centro das atenções dos cariocas, atentos aos desdobramentos da tragédia). Sem o benefício das unidades móveis de transmissão, Walter Clark mandou câmeras de película para as ruas da cidade, além de usar o equipamento de estúdio apontado para fora da sede da emissora. Em 1975, a Globo já havia nacionalizado seus conteúdos como nenhuma outra emissora, exibindo 64% de programação nacional contra o limite de 8% das concorrentes. No horário nobre, das 18 às 23 horas, o índice chegava a 84%. (KEHL, 1986, p.253). Além da atenção do público brasileiro, a telenovela tornou-se um importante item cultural de exportação. Desde a década de 1970, a TV Globo vende suas produções, primeiro para Portugal e América Latina e logo em diversos outros países. Hoje, pela Globo Internacional, a programação da emissora pode ser acompanhada por milhões de brasileiros que vivem no exterior o que contribui para a manutenção de um elo simbólico com a terra 34

natal. A imagem da Globo, cada vez mais, afirma-se como referente de brasilidade, inclusive realizando festas como o Brazilian day nos Estados Unidos e no Japão, onde reúne milhares de emigrados para ver, ao vivo, as bandas e atores que conheceram via satélite. Os mitos na antiguidade eram narrações que, tendo como base a própria sociedade, permitiriam às pessoas compartilharem um mesmo ponto de vista, sendo as principais funções desempenhadas pelos mitos a identificação social e a racionalização das respostas para as questões existenciais (MININI, 2008, p.34). A televisão, por todos os dados expostos, assumiu o lugar de desenvolvimento de tais composições do imaginário no Brasil, mitos olhados, imagens fixadas, geradas na mediação entre a televisão e o público: videologias (BUCCI, KEHL, 2009).

1.2.1 Genuinamente Brasileira

A telenovela é o principal produto da TV Globo, ocupando há décadas o horário nobre da emissora. Além de três telenovelas regulares inéditas, a emissora incluiu um novo horário das 23 horas, revezando com seriados de curta duração, e mantém no ar uma reprise no programa Vale a pena ver de novo. Pode ser incluída ainda Malhação, no ar desde 1995, com constante renovação das tramas e do elenco.

O horário da novela foi uma criação da TV Globo nos anos 1970 quando passa a produzir 3 novelas diárias [...] Segue-se a novela das seis, de temática geralmente histórica ou romântica; a novela das sete, de tema atual, em chave jovem e de comédia e a novela das oito (atualmente, das nove), do horário nobre, de tema social e adulto. [...] Falar de telenovela brasileira é falar das novelas da TV Globo. São elas, sem dúvida, as principais responsáveis pela especificidade alcançada pela teleficção brasileira (LOPES, 2009b, p.4)

Nas seis décadas de existência, a telenovela brasileira demonstrou que a diversidade e a complexidade narrativa de muitas obras prescindem uma leitura generalizante que descarte de antemão, baseado numa crítica ao formato, a sua relevância no desenvolvimento da cultura de massas e, também, da intelectualidade brasileira. Como outrora a literatura foi difundida pelos jornais, a televisão agregou também o teatro, o cinema e o rádio (ORTIZ, 1988, p.28).

O que se rotula hoje como “ficção televisual” é, na realidade, o resultado de várias atividades culturais cujas origens se perdem no tempo. Os formatos ficcionais da TV são herdeiros de um vasto caudal de formas narrativas e dramatúrgicas prévias: a narrativa oral, a literária, a radiofônica, a teatral, a pictórica, a fílmica e a mítica, entre outras (BALOGH, 2002, p. 32). 35

Malgrado as próprias empresas produtoras, historicamente partes de grandes conglomerados de comunicação, interfiram na criação artística quando submete-a a filtros políticos ou morais próprios e às disponibilidades técnicas, como Morin afirma, não é possível desprezar um segundo fator essencial do consumo cultural, qual seja, o da demanda constante pelo novo. “A indústria cultural deve, pois, superar constantemente a contradição fundamental entre suas estruturas burocratizadas-padronizadas e a originalidade (individualidade, novidade) do produto que ela deve fornecer” (MORIN, 2002, p.25). Segundo ele, da mesma forma como se pode alterar o conjunto de um produto material, imprimindo diferenças entre marcas, existem técnicas padrão de individuação do produto cultural mas, em determinado momento, a criação inovadora deve ser acionada e a originalidade aperfeiçoa o padronizado. Como fator central de individuação, além do nome do criador, situa a existência de vedetes, personalidades ao mesmo tempo padronizadas e individualizadas que contribuem para superar a contradição entre produção burocratizada e originalidade. Segundo Motter, a televisão brasileira e em especial a TV Globo, construíram uma dramaturgia genuinamente brasileira notadamente com as telenovelas. Ela situa o roteirista de telenovela como um moderno contador de histórias cuja função é transmitir emoções usando instrumentos novos para manter a tradição. Assim, a televisão seria uma moderna e privada versão da praça, onde no passado as pessoas reuniam-se para ouvir histórias que transmitiam valores enquanto se distraíam. Citando Silverstone (2002), Motter defende que mantemos um “senso profundo de encantamento” expresso em diversas manifestações, inclusive na novela (2004, p.256-262). Entretanto, diferente das leituras públicas e dos filmes, a telenovela caracteriza-se pela extensão agigantada, na casa das centenas de capítulos, o que justificaria “[...] sua vocação antropofágica para a incorporação do outro, seja da ordem da própria ficção ou da realidade concreta”, a incorporação de elementos da realidade, nas tramas e subtramas como prática instauradora da verossimilhança. Provém, dessa maneira, ampla oferta de modelos para identificação (MOTTER, 2004, p.258-260).

Sempre igual a si mesma do ponto de vista de estrutura, sua agilidade para incorporar inovações garante-lhe permanência como forma narrativa e mantém seu poder de sedução, ainda que a eminência de seu esgotamento seja permanentemente alardeada. [...] Situada no passado ou no presente, tratando de temas históricos ou puramente ficcionais, a telenovela incorpora elementos de diversos sistemas semióticos e fala do hoje, rearticulando 36

dados da memória coletiva na produção de sentidos renovados e se firma como documento histórico, lugar de memória, refratando, pela ótica ficcioautoral, um momento do processos de desenvolvimento da sociedade brasileira (MOTTER, 2004, p.251-252).

Além de alimentar-se da realidade, a telenovela tem a capacidade de impactá-la de volta. É fato conhecido que a estreia das novelas é pauta de coberturas jornalísticas em todos os meios, sejam notícias diretamente sobre as produções ou temas relacionados às situações representadas. Com tal suporte, as telenovelas têm seu papel de vitrine de mercadorias e estilos de vida potencializado.

A novela, além de turbinar vendas, possibilita que, via consumo, o espectador se sinta parte do universo narrativo. […] espectadores se relacionam entre si e com os personagens através da adoção de certos modismos que fazem sentido enquanto a novela está no ar. A novela acena simultaneamente com a possibilidade de inclusão no universo interno e externo à narrativa ficcional (HAMBURGER, 2011, p. 71-72).

À citada filiação da novela ao romance-folhetim, para sua construção como gênero autônomo soma-se a forte presença de elementos das soap-operas e das rádio novelas da América Latina. O rádio se popularizou nos Estados Unidos durante a depressão- era um meio barato de entretenimento- e para reduzir os prejuízos da época, empresas como Procter and Gamble, Colgate-Palmolive e Lever Brothers passam a investir e produzir as chamadas soap-operas, ou “óperas de sabão”, destinadas às consumidoras donas-de-casa e ocupando os horários diurno das estações a partir de 1930. A destinação ao público feminino reflete na temática das soap-operas, nas quais prevalecem personagens mulheres.

Por outro lado, as histórias tendem a privilegiar assuntos como a mulher só, os problemas do casamento, a saga da família. Algumas feministas, como Tania Modleski, entendem a soap opera como uma forma de narrativa feminina, que se desenvolveu historicamente nos Estados Unidos a partir das novelas domésticas, gênero do século XIX escrito especificamente para as mulheres, e no qual elas eram consideradas como fator moral e ético de preservação do lar contra as forças do mundo exterior (ORTIZ, 1989, p.21).

Em Cuba, o rádio desenvolveu-se nas décadas de 1920 e 1930 com suporte das agências de publicidade norte-americanas. Como as soap-operas, as primeiras radionovelas cubanas também eram patrocinadas pelas fábricas de higiene e limpeza. A partir daí, o país destaca-se por exportar artistas, diretores e roteiros de radionovela para toda a América- Latina. Da tradição folhetinesca, a radionovela especializa-se no enfoque romântico, porém determinada pelo imperativo do interesse econômico dos patrocinadores. 37

Com a ampliação dos patrocínios multinacionais, a produção para o rádio é feita em grande parte no interior de agências e publicidade e os mesmos textos de novela são disseminados por toda a região em que essas empresas se estabelecem. Isso inclui o Brasil, onde a primeira radionovela estreou em 1941. Então, as gravações de estações do Rio de Janeiro e São Paulo eram distribuídas para todo o país. Com o crescimento desse mercado, além dos roteiros traduzidos são introduzidos autores nacionais, muitos dos quais posteriormente contribuiriam para a linguagem melodramática na televisão. (ORTIZ, 1989, p.23-54). A primeira telenovela, Sua vida me pertence, de Walter Foster, foi ao ar em 1951, mas até 1963, elas eram transmitidas ao vivo apenas alguns dias na semana. A relevância da novela para a televisão tem como ponto crucial a sua transmissão regular e diária. “Como a soap-opera dos Estados Unidos e a radionovela, ela surge como uma narrativa apropriada para ampliar o público das emissoras” (BORELLI; RAMOS, 1989, p.58). A telenovela contribuiu para a formação do hábito de ver televisão, afeiçoando os espectadores à narrativa fragmentada, seriada. Para Ismael Fernandes, além de ser a maior produção de arte popular da televisão, a novela é desde então o grande fenômeno de massa brasileiro, atrás apenas do futebol.

Descobriu-se que, para segurar o público, era necessário criar o hábito de mantê-lo diante do aparelho de tevê todas as noites, no mesmo horário. Curiosamente, 1964- de triste lembrança- foi o ano maior para a consolidação de nossas novelas. [...] Em 31 de março, por exemplo, os telespectadores brasileiros assistiam a duas histórias importadas, com entrechos recheados de lugares comuns. [...] velhos clichês folhetinescos, que nada têm em comum com a realidade brasileira daqueles dias de março e abril de 1964 (FERNANDES, 1987, p.36-37).

Destaca-se o tom melodramático das novelas, adaptadas de clássicos da literatura ou de roteiros cubanos e argentinos. A primeira telenovela diária, 2-54499 Ocupado, era uma adaptação de um texto argentino e foi também dirigido e cenografado por argentinos (BORELLI; RAMOS, 1989, p.60). O direito de nascer, adaptação do original cubano de Félix Caignet que já havia sido transmitida em forma de radionovela na Rádio Nacional e na Rádio Tupi na década anterior, foi um grande marco da popularização da telenovela. Em comemoração ao encerramento da novela, exibida entre dezembro de 1964 e agosto de 1965, milhares de pessoas reuniram-se no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, e no Ibirapuera, em São Paulo, para ver os atores (FERNANDES, 1987, p.50). 38

Também em 1964, a Colgate-Palmolive de São Paulo nomeia como supervisora de novelas a cubana Glória Magadan, depois contratada pela Globo. Suas novelas seguiam a linha melodramática de sucesso nas telenovelas latino-americanas, trazendo histórias de tempos e lugares distantes da realidade. “[...] o estilo Magadan recheava os lares brasileiros de condes, duques, ciganos, vilãs sem qualquer lógica, mocinhas ingênuas e galãs totalmente comprometidos com a bondade” (FERNANDES, 1987, p.67). Como já mencionamos, Beto Rockefeller representou uma renovação da dramaturgia televisiva. “A preocupação central de Bráulio Pedroso era trazer o cotidiano vivido para o vídeo, o que significava ‘escrever uma novela com proposta realista’” (BORELLI; RAMOS, 1989, p. 79). O termo realista aparece para demarcar uma mudança premente na ficção televisiva, no que diz respeito aos temas e à própria linguagem, uma diferenciação, individuação da telenovela brasileira ante as similares da América Latina. Interessava distinguir-se das novelas melodramáticas mexicanas e cubanas que inspiraram o período encabeçado por Glória Magadan no Brasil. A partir de Beto Rockefeller, os enredos incluíram elementos modernos, personagens semelhantes às pessoas reais, que falam em linguagem coloquial e seguiam novos padrões de comportamento. Segundo Ismail Xavier a indústria cultural brasileira assumiu como tarefa ajustar a mentalidade da população seguindo novas tendências da sociedade de consumo.

De fato, realismo tout-court não é o termo cabível para novas formas da teleficção brasileira, uma vez que seus dramas familiares mantém as fórmulas básicas do gênero melodramático, com algum ajuste de seus motivos às novas tendências sociais, à maneira do melodrama de Hollywood nos anos 50 (XAVIER, 2003, p.143).

Essa mudança mostra-se cabal para a identificação do público e permite que, a partir das enunciações das telenovelas ao longo da história, possa-se indicar aproximações entre os períodos de exibição e os conteúdos denotados ou sentidos subjacentes. Deve-se levar em conta que “colocar um tema na trama central, em tramas secundárias, com irradiações ou não daquela para estas ou vice-versa, implica valoração diferenciada […]” (MOTTER, 2003, p.36). Hamburger descreve que a partir de 1970 e por uma década, a novela brasileira demonstrou um até então inédito potencial para atrair os consumidores, espectadores homens e mulheres de diferentes classes sociais, regiões e gerações. Nesse período, a nacionalidade era convocada pelas abordagens ao esporte- à Fórmula 1 e ao futebol- e em personagens arquetípicos como o coronel, o padre, o prefeito e o delegado. 39

A opção por narrativas que se passam em espaços significativos do Brasil contemporâneo atende à expectativa de realizadores, autores, atores e diretores provenientes do cinema e do teatro dos anos 1950-60, envolvidos com diversas proposições de realização dos ideais nacionais e populares (HAMBURGER, 2011, p.68).

O caso de Dias Gomes, ilustra bem essa situação. Autor da peça O pagador de promessas, teve sua história adaptada para o cinema por Anselmo Duarte em 1962. O filme tornou-se uma das produções brasileiras mais reconhecidos internacionalmente, chegando a ser premiado no festival de Cannes. Na televisão, onde entrou em 1969, o escritor inseriu o universo nacional a partir de um ideário presente também na música, no teatro e no cinema, como o coronelismo, retirantes, marginais, jogadores de futebol etc. Destacam-se ainda as bem-sucedidas O bem-amado, de 1973, primeira novela em cores e comercializada com o exterior, e Saramandaia, de 1976, com referências a situações brasileiras através do realismo fantástico (BORELLI; RAMOS, 1989, p.93-94). Em 1985, o autor pode finalmente ver a novela Roque Santeiro, censurada nos anos de chumbo, ser levada ao ar. Era, no ano da reabertura política, uma volta ao universo do interior para contar uma cidade controlada por um coronel e que gira em torno da adoração a um falso santo. Uma análise mais aprofundada das obras de Dias Gomes seria útil para questionar a conformidade com o pensamento de Morin, para quem a indústria cultural, ao atrair escritores de talento, permite apenas a criação conciliável com seus padrões (2002, p.32). Segundo Hamburger (2011), a partir da redemocratização a Globo realizou suas produções mais densas e críticas em relação ao país, a exemplo de Vale Tudo, de 1988, de Gilberto Braga, cuja abertura estampava a música Brasil, de Cazuza. “Mostra a sua cara! Quero ver quem paga pra gente ficar assim!”, bradava o jovem roqueiro carioca sobre uma colagem da bandeira e de fotografias do país. No ano seguinte, o da primeira eleição direta para presidente, último do governo Sarney, foram ao ar O salvador da pátria, de Lauro César Muniz, e Que rei sou eu?, de Carlos Lombardi. Na primeira, um homem rude do interior livra uma cidade de sua elite corrupta e torna-se o salvador do título. A segunda, exibida às 19 horas, contava a bem- humorada história do reino de Avilan, onde prevalecia a corrupção dos governantes, que tinham o monopólio do rapé, a exploração do povo e a instabilidade econômica até a insurgência de um herói mestiço da terra. Filho bastardo do rei, o jovem e galanteador Jean Pierre (Edson Celulari) combate os velhos poderes e frustra os planos do bruxo Ravengar (Antônio Abujamra). 40

No último capítulo de Que rei sou eu?, exibido no dia 15 de setembro de 1989, após matar o vilão Pichot (Tato Gabus Mendes), Jean Pierre faz um discurso emocionado para o povo de Avilan, em que comemora o domínio da coroa pelo povo e proclama a justiça como caminho para tirar o país da menoridade e acabar com a ganância das elites. Por último, conclama: “Ninguém vai mais explorar o trabalho do pobre. Agora quero que gritem comigo: viva o Brasil!”7 Foi a primeira vez que a identificação de Avilan com o Brasil foi declarada. A última cena, em um salão de baile, trouxe a atriz Vera Holtz travestida de Carmem Miranda e cantando Brasil, de Aldo Cabral e Benedito Lacerda: "Brasil, és no teu berço doirado, um índio civilizado e abençoado por Deus”. Brasil foi gravada pela primeira vez por Francisco Alves, em 1939, mesmo ano em que o cantor gravou Aquarela do Brasil. Passados cinquenta anos, a telenovela retratava um país que tinha novamente a chance de realizar seu futuro glorioso. Dois meses depois, ocorreu a primeira votação direta para Presidência da República desde 1960, que elegeu o jovial alagoano Fernando Collor de Mello. A passagem de década marca também uma nova mudança de linguagem na telenovela. Lopes (2009b) divide a produção brasileira em três fases: sentimental, de 1950 a 1967; realista, de 1968 a 1990 e naturalista, a partir de 1990 e propõe que a adesão à linguagem naturalista contribuiu para dar ao gênero credibilidade junto ao público pela potencialização da verossimilhança. Como experiência comunicativa, a telenovela sinaliza uma integração de repertório, uma “participação imaginária”, em que os telespectadores sentem-se dentro da novela e refletem o próprio cotidiano. O próprio tempo da ficção é sincronizado com as datas do calendário, e as personagens vivem do carnaval ao ano novo no mesmo período do telespectador. Segundo Lopes, ainda, a novela sintetiza uma nação imaginada moderna, acionando o imaginário a partir de eixos temáticos recorrentes: mobilidade social, nova família, diversidade (sexual, racial e étnica), afirmação feminina e renovação ética.

Na história que a telenovela tem construído ao longo dos anos, a matriz melodramática – forma de narrar – foi se repetindo, porém incorporando a novidade, o acontecimento e transformando-se segundo as demandas sociais de cada contexto histórico. Nessa evolução histórica da matriz do melodrama se persegue-se o efeito de verossimilhança a partir do aprofundamento do tratamento naturalista de temáticas sociais nas tramas, notadamente na década de 1990, superando a proposta realista dos anos 1970 (LOPES, 2009b, p.14).

7 Transcrito no site Memória Globo. Disponível em: . Acesso em: 10 mar.2016. 41

1.3 IMAGENS DA NAÇÃO

Hamburger destaca a relevância da prática “ritual” que pessoas de localidades diferentes compartilham, como ler o mesmo jornal ou o mesmo programa de TV, para a formalização de comunidades nacionais. “A indústria cultural está, desde os seus primórdios, imbricada com a emergência de interpretações do Brasil” (2011, p.62). Nesse sentido, tomemos o caso de 1999, quando a Globo elegeu, por votação popular, a música Aquarela do Brasil como a música brasileira mais importante do século XX. Dois anos antes, a composição de Ary Barroso fora consagrada pela Academia Brasileira de Letras como música “mais marcante” do século. Primeira reconhecida do estilo batizado de “samba exaltação”, estava em sintonia com o momento ufanista do país, expressando otimismo e gratidão pelo país abençoado dos brasileiros. “O Brasil de Ary Barroso reflete um ideal do eu- nós-nacional tal como ele vinha sendo concebido na ditadura do Estado Novo: um rótulo para consumo do mundo, com pandeiro, caldeirão de raças etc.” (BUCCI, 2000, p.116). Destaque-se ainda que ela foi gravada no começo da década de 1940 por Carmem Miranda, eternizado símbolo da cultura tupiniquim, e tocada no filme Alô amigos, iniciativa de Walt Disney de apresentar personagens da América Latina que apresentou a personagem Zé Carioca, um papagaio “malandro” e brasileiro. Desde então, a canção é mencionada constantemente como uma espécie de hino informal, uma representação musical mais próxima de uma imagem verdadeira do país do que a pomposa composição de Francisco Manuel da Silva e Joaquim Ozório Duque Estrada8. Não surpreende, portanto, que a música tenha sido cantada por Cláudia Leite na abertura da Copa do Mundo do Brasil, em 2014. Expressão de uma determinada imagem nacional, Aquarela do Brasil foi muito utilizada em programas de televisão e a benevolência das ideias sobre o país expressas na letra, entre inúmeros outros usos, também serviram como trilha para a irônica abertura da novela Deus nos Acuda, exibida entre 1992 e 1993, após o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo. A peça de 75 segundos criada por Hans Donner mostrava um mar de lama invadindo uma festa da alta sociedade, uma alusão à corrupção flagrante no Brasil9. Em 2000, ano comemorativo aos 500 anos do Descobrimento e dos 50 anos da televisão o país, a TV Globo investiu em três minisséries: A muralha, de Maria Adelaide Amaral e dirigida por Denise Saraceni, sobre as incursões bandeirantes de São Paulo, no século XVII; A invenção do Brasil, escrita por Jorge Furtado e Guel Arraes, o qual também

8 Como em coluna televisual de Nelson Motta para o Jornal da Globo, em 2014. 9 Disponível em: < http://globotv.globo.com/rede-globo/rede-globo/v/relembre-a-abertura-da-novela-deus-nos- acuda-1992/2072649/>. Acesso em: 20 abr. 2016. 42

assina a direção, uma comédia sobre os primeiros contatos dos portugueses com os tuminambás; e, fechando o ano, Aquarela do Brasil. Essa última, ambientada entre 1943 e 1950, ano da chegada da televisão ao país, tinha como protagonistas um militar íntegro e patriota e uma bem-sucedida cantora de rádio. Ao final de cada capítulo de Aquarela do Brasil eram exibidos trechos de cinejornais produzidos durante o Estado Novo. Cada um a sua maneira, os três programas envolveram temas da história do Brasil, dando indícios de múltiplas abordagens dadas ao tema da nacionalidade no último século. Mungioli (2013) trata da produção de sentidos de nacionalidade a partir do estudo de três minisséries mais recentes: Queridos Amigos; Capitu e Brado retumbante. Nelas, localiza o tema da sexualidade e da fidelidade, caras às narrativas melodramáticas, mas destaca a intenção imanente dos autores das duas primeiras de utilizar a ficção televisiva para ampliar uma certa compreensão da cultura nacional. Em Brado Retumbante, escrita por Euclydes Marinho, sobre um deputado honesto que, por manobra do destino, termina assumindo a Presidência da República, ela destaca o ineditismo da apresentação de um Presidente da República totalmente ficcional, sem inspiração direta em nenhuma figura histórica brasileira. A minissérie foi exibida em 2012, ano que, conforme será visto mais detalhadamente no capítulo três, o país vivia os resultados de investimentos econômicos e políticos voltados à inclusão na cidadania através do consumo. Segundo Mungioli, há pertinência em considerar nos discursos do político ficcional, ávido combatente da corrupção, a expressão da crise da representatividade política que se instalava no país. “[...]a primeira aproximação em relação aos discursos sugeriu uma vigorosa negação dos partidos políticos e de suas práticas” (2013, p.15). Tendo em vista o que já foi dito sobre a importância dos meios de comunicação para a consolidação de uma unidade imaginária, evidenciamos a preocupação de líderes e intelectuais locais com a questão.

No Brasil e na América Latina existe uma obsessão pelo nacional que faz com que a problemática da identidade seja recorrente. A pergunta ‘quem somos nós?’ recebe respostas diferentes em função da inclinação teórica dos autores, do contexto histórico, dos interesses políticos, mas permanece ao longo do tempo como uma inquietação insaciável (ORTIZ, 2015, p.141).

Nesse contexto, as ideias de autores como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Junior, entre outros, povoam os trabalhos de grande parte dos intelectuais 43

e, ainda que de forma inconsciente, da população geral, referenciando os debates sobre cultura e nacionalidade. Desde a declaração de independência, em 1821, a busca por uma compreensão totalizante do povo brasileiro tornou-se ferramenta para a consolidação do território como nação. Para minimizar a diferenças regionais, entre os espaços urbanos e rurais ou entre classes, é necessária a identificação de um fator comum a todos e, nesse aspecto, “a cultura é a consciência coletiva que vincula os indivíduos uns aos outros” (ORTIZ, 2015, p.142). Conforme Souza J., a noção de brasilidade foi construída a partir da internalização do mito nacional pelos brasileiros, tomadores daquele como próprio e indissociável de sua personalidade. O objetivo é que todos sintam-se parte de um mesmo projeto, compreendendo- se e identificando-se com suas famílias e comunidades mas, especialmente, com a nação.

A construção do mito nacional tem que ser o caminho para a construção da ‘identidade nacional’. Nesse terreno, para que a ‘invenção’ efetivamente ‘pegue’, o comunitário tem que coincidir com o pessoal, os sentimentos públicos, com nossos sentimentos mais íntimos (2009, p.34).

1.3.1 Notas Sobre Mestiçagem

As primeiras noções positivas de brasilidade, ainda no século XIX, relacionavam-se à natureza exuberante de um país “deitado em berço esplêndido”. São exemplos as obras do romantismo literário brasileiro, representado, entre outros, por José de Alencar com suas histórias de índios heroicos (O Guarani, Iracema etc.) e Gonçalves Dias, os quais, apesar de conceberem um Brasil multiétnico, não falam dos negros, então escravos (ORTIZ, 2015). Entre as características mais tipicamente atribuídas ao ser brasileiro, a mestiçagem aparece ora como traço negativo, o qual nos condena ao atraso em relação a outros povos, ora como transmissor de criatividade e adaptabilidade regeneradoras. Até as primeiras décadas do século XX, especialmente após a abolição da escravidão negra, predominou uma abordagem racista da formação do povo brasileiro. Ao mesmo tempo, fundamenta-se o “mito das três raças”, origem do perene e brasileiríssimo “mito da democracia racial” (ORTIZ, 2015, p. 144; SOUZA J., 2009, p.35-36). A influência das teorias do darwinismo social, do evolucionismo e do positivismo justificam a tendência da intelectualidade nacional do período a postular o meio e a raça como argumentos para um relativo atraso do país.

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A história brasileira é, desta forma, apreendida em termos deterministas, clima e raça explicando a natureza indolente do brasileiro, as manifestações tíbias e inseguras da elite intelectual, o lirismo quente dos poetas da terra, o nervosismo e a sexualidade desenfreada do mulato (ORTIZ, 2012, p.16).

Mesmo que, já na época, fosse aceita a formação dos brasileiros pela fusão do branco, do negro e do índio, prevalecia a ideia de superioridade branca, posto que o modelo almejado era o da Europa ocidental. Seguia-se a premissa de que a história segue no sentido do primitivo para o civilizado, o que punha o negro e o índio como ligações com estágios a serem superados. Mestiçagem, mecânica de “aclimatação” dos europeus no país, seria também a transmissora das fraquezas morais e culturais do brasileiro. “A mestiçagem simbólica traduz, assim, a realidade inferiorizada do elemento mestiço concreto” (ORTIZ, 2012, p.21). Vejamos que no livro América latina: males de origem, escrito na França e publicado pela primeira vez em 1903, Manoel Bonfim, que anuncia a obra como derivado “[...] do amor de um brasileiro pelo Brasil”, apresenta sua teoria para justificar os defeitos que identifica nas ex-colônias ibéricas na América a partir da relação entre colonizador e colonizado. Tais mazelas seriam causa de uma infelicidade generalizada e superá-los, o caminho para “[…] subir à civilização, à justiça, a todos os progressos” (2008, p.2-3). Sua ideia de “parasitismo social”, que aproxima a relação colonizador e colonizado com a de parasita e parasitado, responde à preocupação em torno de conceituações formuladas por europeus sobre a América do Sul, as quais Bonfim considera equivocadas e frutos da ignorância sobre a realidade. Dentre elas, destaca a ideia de que todos os políticos sul- americanos seriam ladrões, a qual rebate exemplificando a probidade e humildade dos representantes brasileiros. Ele compara o Brasil a uma criança que, após ouvir repetidas vezes que é sem valor, termina por aceitar a acusação como verdadeira e degenerar. Ao recusar o apadrinhamento dos Estados Unidos, únicos do continente vistos com bons olhos pelos antigos colonizadores, alega uma ameaça à soberania das outras nações, porém, reafirma a “situação lastimável” em que considera estarem todos os países da América do Sul.

Há casos em que, num estado de relativa barbaria, os povos podem ser felizes: quando, por isolados, não chegam a sentir os efeitos da sua inferioridade; esta não existe quase. Mas, no nosso caso, participando diretamente da civilização ocidental, pertencendo a ela, relacionados diretamente, intimamente a todos os outros povos cultos, e sendo ao mesmo tempo dos mais atrasados, e por conseguinte dos mais fracos, somos forçosamente infelizes (BONFIM, 2008, p.15).

45

No Dicionário da terra e da gente do Brasil, de 1939, Bernardino José de Souza, então ministro do Tribunal de Contas, propõe um vocabulário geográfico exclusivamente brasileiro, compreendendo termos que denominariam de maneira original fatos geográficos físicos, demográficos, econômicos, políticos e históricos. O intuito, levado a cabo em pleno Estado Novo, era mais antigo. Outras versões do dicionário foram lançadas em 1910 e 1917, com o título Nomenclatura Geográfica peculiar ao Brasil e, em 1927, como Onomástica Geral da Geografia Brasileira. Note-se que o jurista baiano empregou um rigoroso senso regionalista nas suas investigações, o que destoa do espírito nacionalista unificador de Getúlio Vargas. Este, na constituição de 193710, aboliu juntamente com as casas legislativas e os partidos políticos os símbolos e hinos regionais, estaduais e municipais, promovendo inclusive uma cerimônia para cremação das bandeiras. Lembremos que Aquarela do Brasil, a qual nos referimos no começo desse capítulo, refletia tal intento unificador e, curiosamente, foi lançada no mesmo ano do Dicionário da terra e da gente do Brasil. Enquanto a primeira edição apresentava apenas 65 verbetes, constam na quarta edição 1.916 denominações retiradas da leitura de autores brasileiros, incluindo dicionários de línguas indígenas, português e regionalismos. Nele, existe mais de uma dezena de verbetes referentes a denominações étnicas mestiças usadas em diferentes regiões do país, como caboré, cabo-verde, cafuzo, gorutubano, mameluco, pardavasco, sarará e xibaro, entre outros. “Vale referir que nada mais arbitrário no linguajar brasileiro do que o uso dos nomes que designam os mestiços das três raças que entraram na formação do nosso povo” (SOUZA B., 1939, p.72). A perspectiva racial da obra, ainda que inclusiva, mantinha sintonia com a concepção de diferenciações qualitativas entre as raças. Temos como exemplo a definição do termo cabra, uma “dição de uso frequente no norte do Brasil, designativa de mestiço de negro e mulato, sendo este por seu turno um produto euro-africano”, apontado como sinônimo de “[...] pardo, fula ou fulo, bode e cabrito, todos, em suma, mestiços nos quais a dosagem dos sangues inferiores é maior” (SOUZA B., 1939, p.75). Tal ideia ampara-se, entre outros, em citação de Rodolfo Theophilo:

O cabra é pior do que o caboclo e de que o negro. É geralmente um indivíduo forte, de maus instintos, petulante, sanguinário, muito diferente do mulato por lhe faltarem as maneiras e a inteligência deste. E tão conhecida é

10 “Art 2º - A bandeira, o hino, o escudo e as armas nacionais são de uso obrigatório em todo o País. Não haverá outras bandeiras, hinos, escudos e armas. A lei regulará o uso dos símbolos nacionais.” (Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 10 de novembro de 1937). 46

a índole perversa do cabra que o povo diz: não há doce ruim, nem cabra bom (THEOPHILO, s/d, p.72 apud SOUZA, B., 1939, p.75).

Em dezembro de 1933, Gilberto Freyre lançou Casa Grande e Senzala, recebido com entusiasmo por propor uma visão diferente, passando do conceito de raça para cultura. Nele, o negativismo acerca da miscigenação foi substituída por uma visão positiva, capaz de colaborar para a aceitação e valorização de uma imagem identitária do brasileiro.

[...] a mistura étnica e cultural do brasileiro, ao invés de ser um fator de vergonha, deveria, ao contrário, ser percebida com motivo de orgulho: a partir dela é que poderíamos nos pensar como o povo do encontro cultural por excelência, da unidade na diversidade, desenvolvendo uma sociedade única no mundo precisamente por sua capacidade de articular e unir contrários. Aquilo que durante um século fora percebido apenas como algo negativo agora passa a ser visto com outros olhos. [...] Para Freyre, enfim, o mestiço ‘is beautiful’ (SOUZA J., 2009, p.36-37).

O movimento modernista paulista, cujo emblema é a Semana de Arte Moderna de 1922, já havia colocado nos altos círculos culturais uma concepção de nacionalidade cabocla, onde a absorção do estrangeiro desembocaria para uma identidade peculiar. Considerada o marco da percepção do Brasil como um país moderno, impulsionada pelo então embrionário processo de industrialização e urbanização, ilustrou também a aderência dos intelectuais locais aos movimentos modernos europeus. Exemplo dos bem-sucedidos periódicos de literatura e variedades da iminentemente cosmopolita São Paulo do início do século XX, a revista A vida moderna de 12 de janeiro de 1922 abre com a afirmação de que “Já constitui um verdadeiro clichê gasto pelo uso, isto que se repete a cada passo e a propósitos necessários, - que nós, os americanos, de paiz a paiz (sic), nos desconhecemos vergonhosamente” (FREIRE, 1922). A sentença, extraída de uma crônica de Júlio Freire a respeito do desconhecimento dos escritores e intelectuais latino-americanos nos seus próprio países, ilustra bem a preocupação da época com o reconhecimento da existência de culturas autóctones. Como em outros textos para a revista, Freire aplica o termo raça (“nós outros da raça latina” ; “símbolo da própria raça americana”) como sinônimo de identificação nacional, cotejando tanto o sentido biológico quanto cultural. Era, portanto, o espírito do tempo o que terminaria por inviabilizar a manutenção das concepções racistas da virada do século. Apesar de sugerir uma leitura totalizante do país, o modernismo paulista estava ligado em sua gênese à elite cafeicultora de São Paulo e esta, desde o século anterior, propunha a 47

metrópole como polo central do desenvolvimento econômico, político e cultural11. Nesse sentido, é emblemática a atuação de Paulo Prado, eminente empresário do café, mecenas das artes e intérprete da história brasileira o qual “[...] se dedicou à reconstrução do passado nacional à luz da consciência histórica de sua classe” (PIVA, 2009, p.15). Desde o início do século XIX e principalmente após a abolição da escravidão negra, a imigração europeia intensificou-se no país. Além de suprir a demanda prática de mão de obra nas lavouras de café, seguiu-se, em nível simbólico, uma tendência a incentivar o “embranquecimento” da população. Conquanto os negros respondessem pela maior parte da produção agrícola até então, a forçosa adaptação ao sistema assalariado poderia ser facilitada pela importação de europeus munidos dos princípios capitalistas modernos de aumento da produtividade (PIVA, 2009). A família Prado encabeçou o movimento em torno da Sociedade Promotora da Imigração, centrando esforços na substituição da mão de obra escrava nas lavouras de café paulistas. Antônio Prado celebrou-se como um dos grandes autores da urbanização de São Paulo, cidade que comandou por quatro mandatos consecutivos (1899-1910), e Paulo, seu filho e conselheiro municipal, fora responsável pela construção do Theatro Municipal, posteriormente palco da Semana de Arte Moderna. Na obra literária de Paulo Prado, é notória a argumentação da mistura das três raças como responsável pela formação do brasileiro a partir de uma suposta origem insubordinada da maioria dos “aventureiros e conquistadores” e a “amoralidade dos costumes, a ausência de pudor civilizado” dos nativos da terra. No momento da independência do Brasil do império português, Prado observa os primeiros traços de uma consciência territorial relacionada à evolução de uma raça própria do “reino da mestiçagem” (2006, p.8-21; p.75). Como frutos da mistura de raças, para o autor, estão a luxúria, a cobiça, a tristeza e o “mal romântico”. Ao descrever os grupos étnicos nacionais, enumera características que toma como típicas de cada um. Aos índios “domesticados do norte”, por exemplo, atribui sinceridade, coragem, hospitalidade e generosidade. Dos negros escravos, em complemento, diz que envenenavam a formação da nacionalidade pelo “relaxamento de costumes e pela dissolução do caráter social, de consequências ainda incalculáveis”, e afirma que os escravos domésticos trariam a corrupção no seio das famílias brancas (PRADO, 2006, p.76; 80). Se Rio de Janeiro e Bahia degradavam-se sob a maioria negra e mulata de sua população, São Paulo seria, para Padro, indicativa da qualidade superior da mistura do branco

11 No aniversário de 450 anos da cidade de São Paulo, a TV Globo exibiu a minissérie Um só coração, tendo os idealizadores da Semana de Arte Moderna como personagens. 48

com o índio sobre as misturas com negros. A arianização da população, inclusive, teria efeito ilusório ao apagar as diferenças visuais e psicológicas dos mestiços. Para ele:

O mestiço brasileiro tem fornecido indubitavelmente à comunidade exemplares notáveis de inteligência, de cultura, de valor moral. Por outro lado, as populações oferecem tal fraqueza física, organismos tão indefesos contra as doenças e os vícios, que é uma interrogação natural indagar se esse estado de coisas não provem do intenso cruzamento das raças e sub-raças (PRADO, 2006, p.108).

Entre outros eméritos modernistas paulistas que pensaram o país pela ótica racial, citamos Mário de Andrade. Sua obra mais célebre - dedicada a Paulo Prado- conta a história de Macunaíma o qual, após um banho em águas encantadas, passa de “preto retinto” a “branco louro de olhos azuizinhos”. Seus acompanhantes não tiveram o mesmo destino e, com o resto da água usada por Macunaíma, tornam-se “cor de bronze novo” e negros de palmas e plantas de pé vermelhas. Estavam distintas as três raças que compõem o brasileiro. Esse “herói da nossa gente”, possuía caráter preguiçoso e indolente e, em trajetória com riqueza de ilustrações dos folclores regionais, aventura-se por São Paulo, segundo Macunaíma, “a maior do universo, no dizer de seus prolixos habitantes” (ANDRADE, 1988, p.72). A busca por uma cultura nacional, como em geral para os autores modernistas, deveria passar pelo reconhecimento do passado, a origem de sua gente e sua cultura. Nesse cenário, o livro de Gilberto Freyre (do modernismo regionalista) teria ido de encontro a uma demanda preexistente da inteligência brasileira. Nele, a reconciliação entre as três raças seria possível a partir das ideias de que um certo imperialismo benigno português e a íntima aproximação entre proprietários e seus escravos teriam impossibilitado a separação radical por etnia no país. “O mestiço é o ideal harmônico no qual se espelha o ‘segredo do sucesso’ do Brasil" (ORTIZ, 2015, p.145). Em conferência do 2o Congresso brasileiro de psicanálise d’A causa freudiana do Brasil, realizado no Rio de Janeiro em 1985, Gilberto Freyre definiu suas interpretações relacionando-as a freudianos, marxistas e a “[...] uma emergente perspectiva existencialista”, entre outros “[...] capazes de contribuírem para uma maior compreensão do complexo, muito complexo, passado social brasileiro, projetado sobre presentes nacionais e futuros nacionais”12.

12 Transcrito de vídeo disponível em: , visto em: 20 fev. 2016. 49

Outras referências presentes em Casa Grande e Senzala foram identificadas por Barthes o qual, em 1953, escreveu sobre Maîtres et esclaves, tradução para o francês do livro de Freyre, na Lettres Nouvelles. Para o intelectual, a grande qualidade da obra para uma investigação ampla sobre a mistura étnica no Brasil decorria da aplicação de “todos os poderes da ciência moderna”, “todos os métodos atualmente possíveis”, relacionando-a às propostas de historiadores franceses como Bloch, Febvre e Braudel. Outrossim, atribui-lhe um caráter inovador pela abordagem da sexologia dos brasileiros em “escala de História” (2005b, p.40-43).

Por fim, se pensarmos na pavorosa mistificação que sempre constituiu o conceito de raça, nas mentiras e nos crimes que essa palavra, aqui e acolá, ainda não deixou de autorizar, será preciso reconhecer que esse livro de ciência e inteligência é também um livro de coragem e luta. Introduzir a explicação no mito é o único modo eficaz de luta para o intelectual” (BARTHES, 2005b, p.42-43).

Se por um lado Casa Grande e Senzala permitiu tal desmistificação da formação racial do brasileiro, a obra contribuiu para a aceitação do pressuposto de uma convivência harmoniosa e da evolução conjunta de todos os brasileiros. Neste ponto, o mito das três raças, o mito da democracia racial, ajuda a forjar as bases da unidade nacional. Definir o brasileiro como mestiço é, também, sugerir o mestiço como brasileiro, substituindo a história das manifestações oriundas de outras culturas pelo senso de originalidade, pela ideia de que são frutos típicos da nossa evolução. Considerando os conflitos anticolonialistas da Argélia na década de 1950, Barthes analisou as inflexões do verbo ser na afirmação “A Argélia é francesa”. Nesta, critica a contradição entre uma ideia de inclusão irremediável da colônia como província da França e a veemente recusa em aceitar os rebeldes muçulmanos como cidadãos franceses, o que sugeriria a existência de “[...] uma massa que muda de natureza: francesa quando se cala, muçulmana quando ousa falar” (BARTHES, 2005b, p.81). É possível, de maneira análoga, questionar o mito de uma democracia racial a partir de fatos que sugerem a persistência das desigualdades de ordem econômica, política e social entre pessoas e regiões da “grande nação brasileira” e a inferiorização simbólica da população não branca. Para Sodré, a TV reitera uma ocultação do preconceito comum no país. “Na televisão, as novelas e os programas de variedades refletem bem essa situação: o personagem negro é sempre empregado doméstico ou exerce profissão equivalente na escala social. Mas o seu filho, mulato, pode ‘embranquecer’” (SODRÉ, 1972, p.34). 50

Vejamos algumas abordagens da ficção televisiva sobre a questão racial. Em 1969, foi ao ar a novela Cabana do Pai Tomás, sobre um escravo do sul dos Estados Unidos na Guerra de Secessão. O roteiro baseava-se em uma peça americana e no papel principal trouxe o ator branco Sérgio Cardoso, inaugurando tanto a temática negra quanto a chamada blackface nas novelas da emissora. Em sua coluna para o jornal Última Hora, Plínio Marcos fez duras críticas à iniciativa, a “jogada cavernosa” e botou em questão a pouca importância da democracia racial na prática:

Meus cupinchas, a Cabana do pai Tomás é um romance contra a nojenta escravidão. E vai servir, na bolação dos majuras do canal 5, para amesquinhar patrícios nossos. [...] Não cabe uma besteira dessas no Brasil. Nós aprendemos isso com os nossos pais, com nossos mestres ‘todos os homens são iguais’. Que interessa a verdade dos livros, os conselhos sábios, se no dia-a-dia é tudo uma caca? (MARCOS, 1969).

No cenário da escravidão dos distantes norte-americanos, a telenovela, exibida no horário das 19 horas, é apontada no site Memória Globo como a que fechou o ciclo de novelas distantes da realidade brasileira. Antes de seu fim, Véu de noiva estreou na faixa das 20 horas, uma aposta da emissora nas representações locais e contemporâneas. Em 1976, a novela Escrava Isaura, escrita por Gilberto Braga, personalizou o retrato da luta abolicionista na figura de uma escrava branca em busca da alforria. Seu pai, descobre- se depois, é um antigo feitor da fazenda onde sua mãe era mucama, e ajuda a triste Isaura a fugir. No final, anterior à abolição, ela é comprada pelo jovem abolicionista Álvaro, que liberta-a da escravidão e os dois se casam13. Dez anos depois, baseada em um romance do século XIX, Benedito Ruy Barbosa conta a história de Sinhá Moça14, como o título anuncia, a novela fala de uma sinhazinha, filha de barão escravocrata, que se envolve com um jovem abolicionista. Há dois casais interraciais na trama: o negro alforriado Dimas e Juliana, filha de seu chefe no jornal, e o filho de fazendeiro José Coutinho e Adelaide, dama de companhia da protagonista. Nas duas tramas, o destino é o nascimento de uma nova geração brasileira, sem segregação, em que os descendentes de negros participarão em condições iguais dos benefícios da cidadania. Em 1965, a Tupi apresentou a novela A Cor da sua pele, escrita por Walter George Durst a partir do original de Abel Santa Cruz. Nela, a atriz Yolanda Braga interpretava uma mulher que sofria com o racismo da família do amado, branco e rico. A história destaca-se por ter trazido a primeira protagonista negra e o primeiro casal interracial da televisão brasileira,

13 Exibida entre 11 de outubro de 1976 e 05 de fevereiro de 1977, no horário das 18 horas. 14 Exibida entre 28 de abril de 1986 e 15 de novembro de 1986. 51

mas não foram encontrados muitos registros a seu respeito no âmbito desta pesquisa. Em 2004 foi ao ar a primeira novela da TV Globo com uma protagonista negra15, emblematicamente intitulada Da cor do pecado. Nela, Preta, interpretada pela atriz Thaís Araújo, que em 1997 consagrara-se na novela Xica da Silva, na TV Manchete, é uma humilde paraense, sensual e obstinada que apaixona-se pelo milionário Paco, interpretado por Reynaldo Gianecchini, com quem tem um filho. O pai de Paco é um velho rico racista que supera seus preconceitos pelo amor ao neto. Se a raiz negra do brasileiro foi paulatinamente sendo introduzida como típica, por processo de absorção e tradução que se expressa fisicamente nos corpos mulatos, não é com semelhante abordagem que se encontram outras misturas. Enquanto os negros são inseridos num universo amplo de descendentes de escravos e os índios subtraídos quase completamente, as telenovelas costumam denotar diferenças entre os europeus e asiáticos imigrados ao país. Nesse caso, são exemplares as trajetórias dos italianos em novelas como Terra Nostra, e Esperança, ambas de Benedito Ruy Barbosa. Também é persistente o destaque de imagens de imigrantes italianos em tramas urbanas, principalmente passadas em São Paulo, como Nino: o italianinho (1969) e Passione (2010-2011), entre outras. Em 2014, na novela Geração Brasil, de Talma Guedes e Filipe Miguez, o personagem Shin-Shoo, coreano, foi interpretado pelo ator Rodrigo Pandolfo, o qual teve os olhos ocidentais maquiados. O mesmo recurso foi usado em A próxima atração, de Walter Negrão, exibida entre 1970 e 1971. Nela, Edney Giovenazzi interpretava o japonês Yamashita. Chama a atenção a ínfima presença de atores de traços nipônicos nas telenovelas, apesar de muitas serem ambientadas em São Paulo. Quando denota a distinção de personagens ítalo-descendentes ou nipo-descendentes, como nos exemplos, as novelas reafirmam suas alteridades, a existência de culturas independentes, não brasileiras, no interior da nação. Suas imagens remetem às figuras retóricas do outro e do exotismo, que para Barthes constituíam as mitificações a respeito do estrangeiro mais civilizado e também do selvagem. Claramente, a imigração de brancos europeus e amarelos orientais, deliberadas e individualmente registradas, foi bastante diferente da imigração forçada e sistemática de negros escravos de vários países da África. A queima dos todos os registros da escravidão em 1891, dois anos após a abolição, para impedir que antigos proprietários reclamassem por indenização, amarrou os negros definitivamente na nação brasileira imaginada.

15 A personagem da atriz Ruth de Souza em Cabana do pai Tomás, é eventualmente apontada nesse lugar. 52

Fundamentava-se politicamente o mito das três raças originais, onde o branco de Portugal e os índios da América fundiram-se ao negro sem passado para formar o brasileiro mestiço. A televisão e a telenovela participaram para a naturalização da ideia de democracia racial e da convivência harmoniosa dos brasileiros.

1.3.2 A Raiz Cordial

Três anos depois do lançamento de Casa Grande e Senzala, Sérgio Buarque de Holanda publicou sua tese sobre a formação do brasileiro no livro Raízes do Brasil. A seu respeito, diz Cândido:

Num momento em que os intérpretes do nosso passado ainda se preocupavam sobretudo com os aspectos da natureza biológica, manifestando, mesmo sob aparência do contrário, a fascinação pela ‘raça’, herdada dos evolucionistas, Sérgio Buarque de Holanda puxou sua análise para o lado da psicologia e da história social, com um senso agudo nas estruturas [...] Com segurança, afirmou estarmos entrando naquele instante na fase aguda da crise de decomposição da sociedade tradicional (CÂNDIDO, 2003, p.20).

Para Buarque de Holanda, a família tradicional rural, ao instituir o poder do proprietário de terras- o pátrio poder- sobre escravos, ex-escravos e agregados, geraria um tipo de subordinação inabalável, tão poderosa que transpassa os limites da vida doméstica. Ampliar-se-ia para toda vida social, inclusive o Estado e a prestação de serviço, os padrões familiares de convivência (2003, p.81-82).

No Brasil, onde imperou, desde os tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização- que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades- ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos até hoje (HOLANDA, 2003, p.145)

Traços constitutivos do caráter brasileiro, a hospitalidade, a generosidade e a maleabilidade, longe de sinonimizarem boas maneiras, são postas como defesas contra a possibilidade de conflito. O “homem cordial” representa a conversão de uma forma natural em fórmula que atravessa todas as relações, impedindo a adesão verdadeira aos ideais liberais e democráticos de igualdade, posto que “[...] amar alguém, é amá-lo mais do que a outros” (HOLANDA, 2003, p.185). 53

A cordialidade não dizia respeito apenas a relação com amigos, mas uma relação de inimizade também poder ser cordial na medida que baseia-se em julgamento de esfera íntima, privada. Buarque de Holanda diferencia cordialidade de benevolência, esta tendo como contrário a hostilidade. Identifica no brasileiro a aversão aos rituais de civilidade, expressa na dificuldade de manter relações de reverência, tendendo a substituir manifestações de respeito pelas de intimidade. O autor ampara-se em Max Weber para diferenciar o burocrata puro do funcionário patrimonial, cuja função pode ter traços burocráticos, mas difere por sua escolha basear-se em uma confiança pessoal, e não por suas qualidades. Consequentemente, no Brasil, não existiria realmente um Estado burocrático com ordenação objetiva e impessoal. Jessé Souza afirma que a ideia desse “homem cordial, equalizada com a de “jeitinho brasileiro”, colocam na mesma lógica o favor pedido pelo pobre e o grande empresário corrupto. Para ele, tal crença generalizou a todos os brasileiros uma suposta pré-disposição nata à degeneração moral, especialmente quando ligados ao Estado. O patrimonialismo seria a ideologia política que permite a manutenção de privilégios e injustiças, como outrora foram os discursos religiosos, e o conceito serviria para ressignificar a complexidade da vida social para a população. Esta deve se convencer de haver ligação direta entre o que ocorre na vida cotidiana e na sociedade como um todo.

Não é outra coisa que fazem as novelas, os livros de autoajuda ou os filmes comerciais, ao simplificarem a complexidade a ambivalência da vida e reduzirem o mundo a um jogo entre pessoas essencialmente boas e más. A segunda função seria ainda mais importante, pois consiste na possibilidade de transferir a responsabilidade dos problemas reais (corrupção, injustiça, inércia dos agentes públicos etc.) a um ente perene e externo ao povo (SOUZA J., 2009, p.62).

Fernando Collor de Melo, nosso primeiro presidente pós-reabertura, simbolizava, com sua juventude, agressividade e gosto por novidades, o mito do Brasil finalmente “moderno”.

O governo circunscreveu sua doutrina de modernização apenas à implementação prática de duas decisões: a simples abertura de mercado – que agradava a uma classe média consumista – e à privatização de empresas públicas – que interessava a portadores de títulos da dívida interna. (CERVO, 1997, p.16).

Ao mesmo tempo em que aderiu abertamente ao liberalismo nas relações comerciais, o governo Collor bloqueou a poupança de todos os cidadãos como um de seus primeiros atos, uma demonstração anacrônica de intervencionismo do Estado nas liberdades de movimentações financeiras e realizações pessoais dos indivíduos. O “caçador de marajás” 54

deixou o governo precocemente, acusado de corrupção e reafirmando, no campo simbólico, a fórmula personalismo e patrimonialismo do Estado. Na teleficção, em 1992, às 19 horas, Deus nos Acuda, de Silvio de Abreu, tratava em forma de fantasia da corrupção e dos privilégios. Nela, Dercy Gonçalves interpreta o anjo da guarda do Brasil que, como condição para não ser condenada a viver no país que deixou degenerar, recebe a incumbência de provar que poderia transformar um brasileiro em uma pessoa honesta. Para tanto, escolhe Maria Escandalosa (Cláudia Raia), que realiza trapaças com o pai. Era preciso, pois, superar esse vínculo personalista para tornar-se uma pessoa melhor. Em 1994, mais um ano de eleição, foi ao ar às 20 horas a novela Pátria Minha, de Gilberto Braga. Mais uma vez o cenário é a corrupção e as relações patrimonialistas e familiares. Como Xavier identificou em outras obras do autor, a modernização da sociedade impõe-se sobre o patriarcado decadente (2003). Um último caso em que o binômio personalismo e patrimonialismo transpareceu. Em 1997, ano de grandes discussões em torno da reforma agrária com o fortalecimento do Movimento Sem-Terra e brutais retaliações da polícia e dos latifundiários (culminando em centenas de mortos nos Carajás), o Governo Federal, do então presidente Fernando Henrique Cardoso, reestruturou o Ministério da Reforma Agrária. No mesmo ano, estreou O rei do gado, de Benedito Ruy Barbosa. Transposta para a telenovela, a questão agrária serviu de pano de fundo para reafirmar a importância do amor e da família. A protagonista, interpretada por Patrícia Pillar, era integrante de um acampamento sem-terra. No final descobre-se herdeira de um barão do café e se casa com o “rei do gado” interpretado por Antônio Fagundes, um patriarca que, graças a essa aproximação, mostra empatia com a luta pela Reforma Agrária. A trama também apresentou o senador Caxias (Carlos Vereza), pai carinhoso e político honesto em meio a companheiros perversos, que termina morto por não conseguir superar a cultura corrompida do sistema.

1.3.3 Antropófagos Por Natureza

Menções à antropofagia dos nativos estão presentes desde os relatos dos primeiros visitantes em terras brasileiras. Considerado a melhor descrição dos ritos, o relato do alemão Hans Staden (2008) de sua prisão por uma tribo é marcado por uma interpretação dos rituais, relativos a guerras entre tribos, como impulsionados por hostilidade e ódio. Em uma 55

passagem, relata que ouviu de um índio a frase “Lá vem nossa comida pulando”. A intenção, certamente, foi explicitar como sentia-se ameaçado, mas não deixa de remeter a uma certa irreverência tupinambá. No Manifesto Antropófago, lançado em 1928, Oswald de Andrade propunha uma ordem de importação, alimentação, constante no Brasil, postulando a assimilação cultural como verdadeira natureza nacional. “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. A perspectiva era a da busca de uma identidade cultural com o uso do estrangeiro a partir da mistura com elementos brasileiros obliterados pela cultura dominante na época. Aqui, a antropofagia descortinava uma relação de retenção e apropriação do outro, oposta à sua eliminação, a “[...] deglutição do espiritual pela sedução alimentar da paisagem” (PINHEIRO, 2013, p.122). Como vimos, Mário de Andrade volta-se para o interior do Brasil em busca de sua gênese. A assimilação do estrangeiro só poderia realizar-se relacionada à deglutição das profundezas do país. A Câmara Cascudo, sobre sua curiosidade acerca do norte e do nordeste escreveu: “Tem momentos em que eu tenho fome física, estomacal de Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me alimento!” (ANDRADE, 1991, p.35 apud FIRMO, 2015, p.10). Grande estudioso da música brasileira, em 1972 tratou da sua diversidade de fontes, desde as primitivas ameríndias, africanas e europeias. “Além dessas influências já digeridas temos que contar as atuais [...] Está claro que o artista deve selecionar a documentação que vai lhe servir de estudo ou de base”, e completa “A reação contra o que é estrangeiro deve ser feita espalhafatosamente pela deformação e adaptação dele. Não pela repulsa" (ANDRADE, 1962, p.26). Lembremos que o nome da primeira emissora do país era Tupi. “Seu logotipo, um menino indígena de feições ocidentais com um par de antenas na cabeça no lugar do cocar, sugere a apropriação, ainda que infantilizada, da tecnologia estrangeira” (HAMBURGER, 2011, p.64). Por outro lado, Ortiz atribui a Chateaubriand coragem empreendedora oriunda de uma ideia de nacionalidade ligada ao pioneirismo de “individualidades criativas”, reiterando uma fetichização da individualidade (1988, p.60; 79), no limite, ligada ao personalismo dos primeiros tempos da televisão. Além da própria iniciativa de implantar a televisão no Brasil, contrária ao diagnóstico de especialistas norte-americanos que julgavam o país despreparado, a informalidade e a improvisação, ligadas a um suposto “jeitinho brasileiro”, transpareceram desde a estreia da Tupi, no programa com o sugestivo nome de TV na Taba (SIMÕES, 1986). 56

Nos anos 1960, a música, o teatro, o cinema e a literatura voltam-se novamente para a imagem da antropofagia como signo do espírito nacional. Tal alusão guarda semelhanças com a do movimento modernista, mas é marcada por distinções nas perspectivas sobre a cultura nacional, ora afetada pelos desdobramentos do golpe militar. Guiomar Ramos (2008) pontua que, entre as décadas de 1920 e 1960, houve um deslocamento do debate sobre a originalidade cultural brasileira para o sobre a indústria cultural e o desgaste da relação entre arte e cultura popular.

Em sua montagem de signos extraídos de contextos opostos, o Tropicalismo promoveu o retorno do modernismo de Oswald de Andrade e combateu uma mística nacional de raízes, propondo uma dinâmica cultural feita de incorporações do Outro, da mistura de textos, linguagens, tradições. No cinema moderno brasileiro, tal mistura é a tônica de cineastas como Joaquim Pedro, a partir de Macunaíma, Sganzerla, Ivan Cardoso, Arthur Omar e Júlio Bressane (XAVIER, 2001, p.32).

Caetano Veloso, um dos cabeças da Tropicália, e que contribuiu e foi beneficiado pela massificação da música brasileira através dos programas e festivais promovidos pela televisão, atesta que a ideia do "canibalismo cultural" servia perfeitamente aos fins do movimento, pois eles estavam realmente “comendo os Beatles e Jimi Hendrix”, colocando-os em relação direta com os ritmos e tradições locais.

No entanto, há pertinência em notar na Tropicália (na esteira da Antropofagia) uma tendência a tornar o Brasil exótico tanto para turistas quanto para brasileiros. Sem dúvida eu próprio até hoje rechaço o que me parecem tentativas ridículas de neutralizar as características esquisitas desse monstro católico tropical, feitas em nome da busca de migalhas de respeitabilidade internacional mediana. (VELOSO, 2012, p.59).

Sueli Rolnik é incisiva ao atribuir à televisão uma “baixa antropofagia”, consequência de uma tradição da elite brasileira em negar a alteridade:

O enredo da mais prestigiada telenovela, que acontece todos os dias às oito da noite na Globo, é uma cartografia bastante fiel dos movimentos políticos, econômicos, sociais, comportamentais que convulsionam o cotidiano da vida coletiva, mas para reinjetar uma promessa de transcendência apaziguadora. É como se todos passassem o dia desesperando-se com as turbulências para acalmar-se à noite, quando a novela coloca em cena estas experiências desetabilizadoras, porém anestesiando o desconforto, domesticando o estranhamento, apagando seu fogo problematizador, fazendo com que tudo pareça voltar ao mesmo. Baixa antropofagia que devora em sua linguagem as mais atualizadas tecnologias de televisão, que tem a liberdade e a inteligência de improvisação para compor uma cena com tudo que se movimenta na ordem do dia, só que sem passar pelo crivo do corpo vibrátil e pelo critério ético do que seria bom para a vida coletiva no encaminhamento do enredo. (ROLNIK, 1998, p.134). 57

Para Ismail Xavier, na televisão se apresentaria apenas uma “versão industrializada e mercadológica do nacional-popular, bem estampada nas novelas e nas minisséries” (XAVIER, 2001, p.47). Vejamos a minissérie Caramuru: a invenção do Brasil, onde a antropofagia aparece num duplo sentido. Primeiro na sua dramaturgia: Diogo Álvares Correia, degredado português, vem ao Brasil e apaixona-se pela tupinambá Paraguaçu. Esta resiste à tentação de devorá-lo e parte com ele para Portugal, não sem antes apresentá-lo aos hábitos libertinos e malandros dos índios. Inspirado em obra épica de Santa Rita Durão, a produção guarda semelhanças com o filme Como era gostoso o meu francês, de Nelson Pereira dos Santos, que tem o mesmo pano de fundo e remete aos relatos de Hans Staden. Também nele, um náufrago, Jean, termina aprisionado pelos tupinambás. Sua sorte é diferente da de Caramuru e de Staden e, após meses de relacionamento com Seboipep, Jean é devorado por ela em um ritual coletivo dos índios. É precisamente o desfecho violento que aproxima o filme da perspectiva de antropofagia oswaldiana, a antropofagia como ideal superior e contíguo à sensualidade, em pleno 1971 (RAMOS, 2008). Pelo seu refinamento da linguagem televisiva pode-se aproximar a metáfora da antropofagia da infinidade de referências e técnicas aplicadas tanto na produção das imagens quanto no roteiro de Caramuru: a invenção do Brasil. A minissérie constituiu a segunda experiência na TV Globo de uma dramaturgia produzida em forma de ficção seriada com versão para o cinema. Além de absorver formas de outras linguagens, a televisão, ao oferecer- se ao cinema, devora-o16. Ademais, pensar a televisão no sentido de evidenciar uma natureza antropofágica transplanta para o meio atributos do nosso seio social. A ideologia de uma identidade nacional pela multiplicidade cultural e apropriação de variados universos semióticos é apropriada como identidade da indústria. “A gente se vê por aqui”, repete a vinheta. Em outros termos, Morin atribuiu à indústria cultural a característica do sincretismo, considerando a absorção de linguagens, formatos, gêneros e também os dados da realidade. Para ele, o sincretismo opera no sentido de homogeneizar a diversidade de conteúdos, não de valorizá-las (2002, p.36-37).

16 Hoje as produções com entrega em dois formatos tornou-se prática comum, incluindo tendo o cinema como primeira janela, a exemplo de Serra Pelada, de Heitor Dália, e Alemão, de José Eduardo Belmonte. A Globo Filmes, criada em 1998, assinou até o início de 2016 a coprodução ou distribuição de mais de 170 filmes em associação a produtoras independentes segundo a página da empresa na internet. Disponível em: . 58

As aparências antropofágicas agem no meio para consolidar o simbólico e a apropriação de dados reprimidos no cotidiano são usadas para reafirmar sua conformação ao modelo de vida estabelecido (BUCCI, 2000). Aditivamente, porém, como tentamos explicitar, é o que permite ao veículo posicionar-se como instrumento de difusão de um ideário comum com o qual os diversos subgrupos do Brasil podem se reconhecer.

1.5 COMO FUNCIONA O MITO

Uma vez apresentada a televisão e a telenovela e introduzidos conceitos-chave relacionados ao universo simbólico brasileiro reforçados por elas, interessa explorar a concepção de conotação e fixação de sentidos dos mitos da mídia, conforme proposta por Roland Barthes (2012; 2013a). Pesquisador do Centro de Estudos de Comunicação de Massa, ao lado de Georges Friedmann e Edgard Morin- quem introduziu o conceito de indústria cultural na literatura francesa, Barthes propôs-se a analisar não apenas a estrutura geral da comunicação de massa, como Adorno, mas apreciando o interior de suas produções (MATELLART, A.; MATELLART, M., 2005). Ao longo de sua obra, Barthes tratou da cultura da sociedade pós-industrial com rara amplitude de ideias. “Atravessada por um claro princípio de inteligibilidade- ligado a sua eterna suspeita do ‘mito’ [...] sua última surpresa é a perfeita coerência com que terá sustentado, de mil maneiras, uma oposição da ultrassignificação mítica à infrassignificação do ‘grau zero’” (MOTTA, 2015, p.30). O recorrente interesse em Mitologias entre os pesquisadores da cultura repousa em que esta constitui uma “[…] tentativa bem sucedida de leitura, pelas vias da linguagem trabalhada pelos meios de comunicação, do homem situado socialmente e das formas assumidas pelas mitologias que o envolviam” (BRAIT, 2014, p.11). Logo, considerando diferenças circunstanciais entre as culturas em dados momentos e locais, suas análises e propostas teóricas podem conduzir a leituras reveladoras de objetos atuais. O ponto de partida das suas reflexões é a identificação do mito como uma fala, um discurso. Não se trata de um conceito incutido a uma imagem específica, mas sim uma forma, ou um sistema de comunicação. A fala mítica, enquanto mensagem, pode compreender escritas ou representações, e todas as mídias podem servir-lhe de suporte, uma vez que se 59

observe o tratamento de naturalização das ideologias e práticas da sociedade em que se inserem. Apesar de não haver deixado um método de aplicação plenamente estruturado, adaptando ideias da semiologia de Saussure o autor esmiuçou os sistemas de signos relacionados à sociedade burguesa pós-industrial expostos nas mais diversas plataformas da cultura de massas, incluindo cinema e espetáculos de catch até brinquedos de plástico, publicidade e horóscopos de revista. Suas observações se ocupam de propagandas de saponáceos e detergentes”, com vistas na psicanálise incutida em diferentes tipos de produto, das colunas de astrologia, do cinema e até do valor mítico do cérebro de Einstein. Comentando uma versão ilustrada de Mitologias 17, Motta ressalta que:

[...] ao debruçar-se sobre o espetáculo das mídias francesas dos anos 1950, Barthes não se fixou nesta ou naquela imagem, em particular, mas, como Proust com suas personagens de muitas chaves, condensou situações, transfigurou o cenário que se lhe apresentava, arrogando-se o direito de refundi-lo em 'imagens imaginadas' [...]" (MOTTA, 2011, p.18).

O centro das análises é a significação das imagens (verbais ou visuais), as quais, de antemão, devem ser contextualizadas historicamente, implicando com isso o caráter impermanente dos mitos, ligados a períodos e sociedades específicos.

[...] é a História que transforma o real em discurso; é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia só pode ter um fundamento histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela História: não poderia de modo algum surgir da ‘natureza’ das coisas (BARTHES, 2013a, p.200).

Nesse contexto, a matéria prima da fala mítica pressupõe uma consciência significante. Isso quer dizer que a fala mítica é constituída por significados já pré-existentes em determinados signos, selecionados entre os outros possíveis e cristalizado em um sistema de significações específico. O objeto dessa fala pode ser qualquer unidade significativa a qual, a partir do momento que intenciona dizer alguma coisa, se torna um texto a serem decifrado. A mitologia “[...] faz parte simultaneamente da semiologia, como ciência formal, e da ideologia, como ciência histórica: ela estuda ideias em forma” (BARTHES, 2013a, p.203). A naturalização dos conceitos historicamente determinados é o objetivo primordial do mito, e é precisamente esse dado que o relaciona à ideologia.

17 Organizada por Jacqueline Guittard e lançada em 2010 na França. 60

Vejamos mais atentamente a estrutura do sistema mítico. O esquema tridimensional: significante (imagem acústica), significado (conceito) e signo (relação entre o conceito e a imagem) se mantém como nos demais sistemas semiológicos, entretanto, ele se constrói a partir de um anterior, do qual é um segundo sistema que se utiliza de uma outra linguagem, seja de matéria visual ou verbal. O mito é um significado a mais, uma conotação, sobre um primeiro significado, de cujo saber próprio e história são tornados acessórios. O sentido esvaziado do signo linguístico, reduz-se à forma no sistema mítico, que se fortalece daquele, mantendo-o em segundo plano, e entretanto, à disposição para reiterar e conferir vivacidade à mensagem do mito. “Seja qual for o modo pelo qual a conotação ‘vista’ a mensagem denotada, ela não a esgota: sempre sobra ‘denotado’ (sem o quê o discurso não seria possível) [...]” (BARTHES, 2012, p.115). O conceito do mito confere, pois, a essa forma uma nova história, a desdobrar-se em uma leitura precisa, visto que o conceito no mito corresponde à intenção da mensagem, esta historicamente definida. Na comparação com o sistema freudiano, em que há o sentido manifesto, o sentido próprio e a correlação dos dois (o sonho, o ato falho), o segundo sentido, o sentido próprio equivale ao conceito, “[...] ele é a própria intenção do comportamento” (BARTHES, 2013a, p.211). O conceito mítico é passível a diversos significantes, determinados e substituídos ao longo da história. “Esta repetição do conceito por meio de formas diferentes é preciosa para o mitólogo, pois permite-lhe decifrar o mito: é a insistência num comportamento que revela sua intenção” (BARTHES, 2013a, p.211). A associação entre forma e conceito é a significação, a qual constitui o próprio mito. Observamos que essa correlação se realiza especialmente pela deformação do sentido do sistema linguístico, não pela eliminação. Tal fenômeno decorre da duplicidade do significante, ora pleno de sentido, ora esvaziado e tido como forma a abrigar uma intenção. Essa ambiguidade dá ao mito a liberdade de ser sempre tomado como uma verdade, seja visto pelo sentido, seja pelo conceito, sem um jamais eliminar o outro. “É que o mito é uma fala roubada e restituída. Simplesmente, a fala que se restitui não é a mesma que foi roubada [...]” (BARTHES, 2013a, p. 217). Diferente dos signos linguísticos, arbitrários, a fala mítica pressupõe uma motivação determinada. Existem três leituras possíveis do mito, conforme se focalize o significante entre o sentido e a forma. Se tomarmos o significante esvaziado da conotação, abolimos a ambiguidade do mito, tornando sua significação clara. A desmistificação total das mensagens, porém, decorre da leitura objetiva do significante, distinguindo-se o sentido e a forma e 61

tomando-se consciência da deformação gerada pelo mito. A imagem passa a ser reconhecida pela sua intencionalidade. Se o significante for visto como a totalidade inseparável do sentido e da forma, o mito é vivido conforme seus objetivos, tornamo-nos os leitores desejados pelo produtor do mito. Para existir, o mito deve naturalizar seu conceitos intrínsecos, ou seja, ao mesmo tempo em que sua intenção é clara, a imagem é vista como geradora natural do conceito, como se estivesse ali desde sempre, no significante, o significado implícito. Como pondera Mattelart: “O evidenciar do significado e da conotação, o interesse pelo sistema subjacente às aparências indica a distância que separa o projeto semiológico da descrição da significação da análise funcionalista do ‘conteúdo manifesto’" (1999, p.87-88). Para ilustrar o sistema do mito, tratemos de dois exemplos dados pelo próprio autor. Em uma capa de revista francesa dos anos 50, vemos um negro de uniforme das forças armadas fazendo uma saudação militar diante da bandeira da França. Como significante, temos o negro soldado francês saudando uma bandeira, sendo esse seu sentido primeiro e também sua forma no sistema mítico. O conceito em questão na capa é a força da imperialidade francesa, e a significação é a conjunção entre os dois termos. Aqui, a história deste negro específico e sua participação nas forças armadas francesas são obscurecidos e ele se torna não um símbolo, mas passa ele próprio a significar o poderio francês sobre suas colônias. Da mesma maneira, no filme Júlio César, de Mankiewcz, o conceito de “romanidade” é associado à forma da franja na testa dos personagens, signo que deve assegurar uma leitura imediata. A imponderabilidade dessa representação, entretanto, está em que é totalmente identificável a sua intenção, ao mesmo tempo em que se disfarça de natural (BARTHES, 2013a, p. 30). A mesma operação, guardadas as diferenças inerentes, é encontrada na publicidade em geral, a qual para vender uma mercadoria, pressupõe padrões ideais para a vida dos consumidores, e estes, apesar de reconhecerem facilmente a intenção comercial, são envolvidos pela mensagem de inspiração. Segundo Barthes, a cultura burguesa, incluindo seus desdobramentos ao longo dos séculos, se impôs paulatinamente pela normatização de seus padrões e modelos econômicos e sociais, disfarçando sua ideologia de ordem da natureza, e a evolução técnica das comunicações serviu desde o princípio como facilitador para tal processo. A naturalização da ideologia burguesa, abordada por Barthes a partir da omissão de tal nomenclatura, é ainda 62

mais radical pela sua imbricação na moral pública geral, a qual atinge também as classes intermediárias, como consumidoras, influenciando-as e definindo-as. Essa é a questão inerente à cultura pequeno-burguesa, a qual assimilou como ordem natural a ideologia dos dominantes, recobrindo-se do sonho de se igualar a eles. “O fato burguês é assim absorvido num universo indistinto, cujo único habitante é o Homem Eterno, que não é proletário nem burguês” (BARTHES, 2013a, p.232). A sociedade aliena-se por esse meio da natureza objetiva da história, abarcando os produtos ideológicos como sendo universais, substituindo a realidade pela imagem construída da realidade. O mito na sociedade da segunda industrialização tem o objetivo de eliminar a memória da produção das coisas, purificando as significações a medida que as trata como resultado direto daquelas, sem implicações históricas. A fala mítica é despolitizada, e prescinde da ação, entretanto, para sua desmontagem, é primordial identificar o ambiente político em que se formatou. Justifica-se, portanto, no caso do mito da “classe C” tratada neste estudo, a contextualização do fenômeno no interior do principal veículo de comunicação do Brasil, considerando suas implicações com a memória coletiva, a cultura de massa nacional e com a organização do grupo dentro das formas estabelecidas para consumo e circulação social. Observações mais específicas sobre o público para quem a televisão produz podem contribuir para a desmontagem semiológica das mensagens da cultura de massas e, inversamente, a desmontagem dos mitos deixa transparecer o público a que se destina (BARTHES, 2013a).

1.5.1 Figuras Retóricas Do Mito

Ao final de sua exposição teórica, Barthes indica o que chama de esboço das formas retóricas do mito burguês. São figuras fixas para as quais se colocam significantes variados e graças as quais se delineia a “[...] pseudophysis, que define o sonho do mundo burguês contemporâneo” (BARTHES, 2013a, p.242). A primeira figura é a vacina, que consiste, como o nome sugere, em revelar um mal parcial de uma instituição para dissimular o mal indispensável para a sua manutenção. A mistificação serve para desviar o foco da exploração inerente ao sistema de trabalho no geral, e das grandes corporações especificamente, contribuindo para apaziguar as tensões entre as classes na realidade. 63

Antecipando sua identificação na leitura de Cheias de Charme, a figura pode ser facilmente relacionada, por exemplo, à demonização das patroas exploradoras. Embora a novela tenha investido em campanha pela formalização do trabalho doméstico, no limite, isso também poderia ser identificado no contexto da vacina a medida que torna-se significante das injustiças da situação das domésticas, e o respeito ou não às leis trabalhistas é um diferencial entre as boas e as más patroas. A figura da omissão da história, pode ser identificada, mutatis mutandis, com a alienação da mercadoria que, suprimida de sua origem, torna-se objeto da eternidade, sem relação com a ação do homem. Sobre ela, mencionamos a imagem da ascensão social da população trabalhadora das periferias, cuja história é subordinada ao conceito de uma nova “classe C”, mascarando ainda as contingências de suas lutas. O niilismo: figura mitológica que sugere a escolha, quando há apenas o confrontamento de dois equivalentes. Impossibilitado da escolha, o leitor do mito se conforma e aceita o que lhe é posto pela vida. A figura da quantificação da qualidade permeia todas as outras na retórica mítica, estabelecendo a todo momento a vantagem sobre outrem. Além da superioridade tecnológica, Barthes coloca que também nas representações do drama essa figura é encontrada. Na análise de Dois mitos do jovem teatro encontramos a descrição de uma peça em que os atores se esforçavam para transmitir a paixão dos seus personagens em forma de “choro, suor e saliva” (2013, p.109). A demonstração, no interior de uma arte que se vale do mito da intuição e do talento, é colocada como a quantificação da psicologia, mensurada pela intensidade da representação dos sentimentos, da apresentação escancarada de signos escolhidos. Não é difícil localizar exemplos da quantificação de qualidade nos produtos da televisão. Especialmente no caso da TV Globo, a consolidação de um completo polo de produção e o investimento em tecnologia são acionados para apresentar ricos cenários onde atores e atrizes interpretam de forma intensa os sentimentos das personagens. A intenção transparece ainda mais pelos planos fechados nos rostos. As figuras da tautologia e da constatação são as mais diretamente ligadas à naturalização da ideologia burguesa. Na primeira, há reiteração constante de uma definição, a qual não se dirige a nenhuma explicação, pelo contrário, busca refúgio em um argumento de autoridade. A tautologia está constantemente presente nos discursos de críticos das artes e do “anti-intelectualismo”. A constatação também investe para o universalismo e pela aceitação da hierarquia eterna, pelo “aforismo burguês”, versão em segundo sistema do provérbio popular, e diferente 64

desse por falar do ponto de vista de um mundo totalmente acabado, apagando o rastro dessa construção. “O fundamento da constatação burguesa é o bom senso, isto é, uma verdade que a decisão arbitrária daquele que a profere pode bloquear” (BARTHES, 2013a, p. 247, grifo do autor). Tratemos finalmente da figura da identificação, que está implicada em praticamente todas as representações míticas, postas sempre em relação aos sujeitos que as produzem e as leem. A pequena-burguesia, classe intermediária que se espelha na burguesia tradicional, é o termo central para compreender essa figura, posto que é a ela e à sua imagem de si própria que falam as mensagens da mídia. Com o pressuposto de que “o pequeno-burguês é incapaz de imaginar o Outro” (BARTHES,2013a, p.243), Barthes pontua que diante desse outrem, o sujeito ora o renega, ora o assimila, transformando-o em uma versão si mesmo. Uma análise bastante curiosa dessa figura está no texto Marcianos, o qual trata das imagens relacionadas aos vizinhos da Terra nas fantasias da ficção científicas e do imaginário coletivo, instigado pela separação entre a “Ordem” dos países parceiros e capitalistas e o mundo comunista, a União Soviética. O autor alega que os marcianos imaginados são sempre similares aos humanos, tanto em suas estruturas sociais quanto no espírito científico e expansionista, suas motivações se assemelham às nossas, não obstante sua posição seja sempre a de juiz e carrasco, superior pelo avanço tecnológico, tal qual ambicionam os seres da Terra. Mais especificamente, os extraterrestres são reflexo da pequena-burguesia. Mas, e quando a diferença empírica se impõe sobre a forma, distanciando-a do modelo aceitável para identificação do grupo, como por exemplo, a imagem do negro para a sociedade francesa, ou dos moradores das favelas para a classe média tradicional brasileira? Nesse caso, está a figura do exotismo, em que o outro é reificado e espetacularizado, apresentado como um tipo distante e raro, evitando, assim, que seja posta em questão a perenidade do status quo. De maneira semelhante, poderíamos situar o conceito de grotesco apresentado por Muniz Sodré ao tratar da comunicação de massa no Brasil. “A estranheza que caracteriza o grotesco coloca-o perto do cômico ou do caricatural, mas também do Kitsch” (1972, p.39). Para ele, grotesco é tudo que se localiza fora da normalidade, o miserável e estropiado são grotescos em relação à sociedade de consumo, especialmente quando espetacularizados. Sodré elege, nos produtos da televisão, o que chama de “mecanismos psicossociais que apoiam a sobrevivência de valores da velha cultura nacional, e dos modelos transnacionais da cultura de massa estrangeira no Brasil” (1972, p.34). Eles seriam, entre 65

outros, o espírito de conciliação e bom-senso, o otimismo generalizado, o personalismo exagerado, as relações interpessoais de prestígio e o mito da democracia racial. “Combater os estereótipos é, pois, uma tarefa essencial, porque neles, sob o manto da naturalidade, a ideologia é veiculada, a inconsciência dos seres falante com relação a suas verdadeiras condições de fala (e de vida) é perpetuada” (PERRONE-MOISÉS, 2013, p.63). As abordagens que mais nos interessam para entender as imagens de classe propostas nesta pesquisa dizem respeito ao universo imaginário relacionado aos núcleos populares em movimento de modernização, também, das periferias. “A televisão bem-sucedida não pode ser estritamente conservadora. Ela se alimenta do novo, do progressista e também a partir de manifestações das classes oprimidas” (KEHL, 1986, p.289).

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2 “CLASSE C” DE QUE?

Vimos que, nos últimos 60 anos, a televisão se destacou como principal engrenagem da indústria cultural brasileira, apresentando imagens do “país do futuro” à sociedade em transformação. Suas representações, em alguma medida, serviram de parâmetro modelar dos novos padrões e estilos de vida possibilitados pela expansão econômica e urbana do último século. Da mesma maneira, a televisão contribuiu para a construção de uma determinada imagem da “classe C”. Este capítulo visa compreender como a mobilidade ascendente registrada nos últimos decênios impactou no mercado de ideias do país, expressamente no interesse de economistas, políticos e cientistas sociais. Inicialmente, aborda a definição de classe, ponderando entre concepções da sociologia para classes sociais e classes (estratos) econômicas a fim de expor algumas das múltiplas significações virtualmente embutidas no fato “classe C”. Formalmente, segundo publicação da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, a classe C representaria em 2014 mais da metade da população, estando entre os limites de R$2.005 e R$8.640,00 de renda domiciliar. Entre 2003 e 2013, 44,7 milhões de pessoas ascenderam das classes D e E a esse patamar (NERI, 2014). Tal mobilidade econômica somada ao avanço das tecnologias de informação digitais, deram visibilidade a manifestações culturais e políticas de milhões de brasileiros que, ao mesmo tempo, aumentaram o consumo de todos os tipos de bens. Nos últimos anos, popularizou-se nos meios científicos, na imprensa e na mídia em geral identificar a classe C como uma “nova classe média”. Essa leitura impactou nos direcionamentos das políticas públicas e, ecoando o aumento consistente do consumo de bens e serviços, também mobilizou a publicidade e os veículos de comunicação que a atendem. Optamos por utilizar a grafia classe C, quando referente ao critério de classificação econômica, aplicando o termo entre aspas para indicar o significante cujo sentido conotado é objeto desta pesquisa. O título desta seção remete a uma fala do cantor Criolo. Em entrevista ao programa Espelho, do Canal Brasil, ele questiona o uso da expressão “classe C” e mostra insatisfação quanto ao parâmetro de renda, aproximando o “C” com avaliações de qualidade de produtos ou de notas escolares18. A entrevista, foi exibida em 2014, mas a confusão do discurso do

18 Disponível em vídeo em: . Acesso em: 20 mar.2016. 67

cantor paulista é um exemplo da ambiguidade de interpretações que a massificação do termo vem gerando há mais tempo. Não intenciona-se, portanto, julgar um ou outro agente específico da comunicação de massa os quais, como seus produtores empregados, integram um sistema bem mais amplo19. Antes, refere-se à ideia de um sistema da indústria cultural que submete suas criações à instância geral da renovação constante e ao compromisso com a atualidade e reafirmação do senso comum.

2.1 NOMEANDO A DESIGUALDADE

O termo classe não possui sentido único e claro para todos os autores e abrangeu múltiplas interpretações ao longo da história. Nas últimas décadas, a piora em índices de mensuração da desigualdade, incluindo em países de desenvolvimento antigo, chama a atenção para as questões da estratificação e das classes, mas o recorrente interesse nos temas condiz com a presença desses fatores em todos os tipos de agrupamentos humanos e sociedades. Para o sociólogo norte-americano Melvin Tumin (1970), desigualdade e estratificação podem ser consideradas sinônimos, posto que compreende a última como a tendência de quaisquer grupos a relações de hierarquia com desigualdade nas posições de poder, propriedade, prestígio ou satisfação psicológica. Ele cita que, em sua República, Platão pensou uma cidade nova na qual a justiça não se expressa pela igualdade entre todos, mas pela disciplina e pela organização estável. A cidade, crescida em população e extensão, seria habitada por três grandes classes: guardiães, auxiliares e trabalhadores. Apesar da tripartição, suas ideias guardam grandes diferenças frente às teorias de classe social em pauta atualmente. Destaquemos que não existia, para o filósofo, a previsão de algum tipo de herança de status de classe. A organização e divisão da sociedade seriam definidas por inclinações específicas de cada pessoa, habilitada a destacar-se por seus próprios talentos e aptidões para, enfim, desempenhar o papel que lhe fosse atribuído (TUMIN, 1970, p.13-14).

19 Pesa sobre eles, tal qual o Ulisses descrito por Adorno e Horkheimer, vislumbrar a eternidade da arte sem poder segui-la, sob o risco de desmoronar toda uma estrutura que depende daquela ordem e também sua própria existência. 68

Para a efetividade de tal organização ideal, todos deveriam ter acesso às instâncias necessárias à identificação de tais méritos, sendo a classe dos guardiães, única a virtualmente abrigar governantes, passível de agrupar indivíduos oriundos de qualquer uma das outras, como ilustra a passagem:

[…] mas o deus que vos formou misturou ouro na composição daqueles de entre vós que são capazes de comandar: por isso são os mais preciosos. Misturou prata na composição dos auxiliares; ferro e bronze na dos Lavradores e na dos outros artesãos. Em geral procriareis filhos semelhantes a vós; mas, visto que sois todos parentes, pode suceder que do ouro nasça um rebento de prata, da prata um rebento de ouro e que as mesmas transmutações se produzam entre os outros metais. […] um oráculo afirma que a cidade perecerá quando for guardada pelo feno ou o bronze. (PLATÃO, 1997, p.132).

Platão identificava os riscos implicados na atribuição pessoal de poder, defendendo que os guardiães, junto aos benefícios da posição, seriam limitados no direito de constituir família e proibidos de ter qualquer propriedade em seus nomes. A essa classe “superior” seria dada a missão exclusiva de cultivar o bem-estar coletivo da comunidade. Também Aristóteles defendeu a existência de três classes, porém, divididas entre a muito rica, muito pobre e média. Para ele, estar no estrato médio deveria ser o desejo de todos, posto que tanto os muito ricos quanto os muito pobres têm suas faculdades prejudicadas pelas suas condições e seus interesses pessoais prevaleceriam sobre o racional. A observação nos interessa especialmente por indicar a identificação de uma classe média, termo a ser melhor explorado oportunamente ainda neste capítulo.

Sabe-se que a moderação e a média são melhores, e portanto, é evidentemente melhor possuir com moderação os bens de riqueza, pois é nessa condição de vida que os homens estão mais prontos a seguir o princípio racional. Mas aquele que se coloca muito alto em beleza, força, nascimento ou riqueza, ou ,ao contrário, é muito pobre, ou muito fraco, ou muito infeliz, acha difícil seguir o princípio racional. No caso desses dois, um tipo se desenvolve em grandes e violentos criminosos, e o outro em trapaceiros e canalhas. (ARISTÓTELES, 1943, p.190 apud TUMIN, 1970, p.14).

Já na era cristã, Santo Agostinho propôs a organização hierárquica adequada aos homens e prescreveu aos desfavorecidos e infelizes o consolo de estar em harmonia com a ordem do mundo, afirmando um caráter permanente e predestinado à desigualdade. Nos séculos seguintes, foram inúmeras as tentativas de explicar o mundo e as receitas para a sociedade ideal (TUMIN, 1970). 69

Os iluministas do século XVIII marcaram o questionamento das oligarquias em relação ao reconhecimento de um direito natural e generalizado à felicidade. Jean-Jacques Rousseau, em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1755, apontou dois tipos de desigualdade entre indivíduos, uma natural ou física, como sexo, raça, idade e saúde, e outra moral ou política, relacionada à estrutura de cada sociedade e que refletia em privilégios para alguns em detrimento de outros. Para ele, o direito à propriedade e a divisão do trabalho expuseram as desigualdades políticas entre os homens e “[...] disseminaram a progressão de um sistema de diferenciação entre os humanos, que não mais se manifestava naturalmente, mas por razões políticas, econômicas, sociais e culturais” (POCHMANN, 2015, p.20-21). As ideias de Rousseau sobre democracia e igualdade entre os homens são tidas como inspiradoras da Revolução Francesa, concretizada alguns anos após sua morte. A industrialização dos países da Europa fez emergir a distinção de classes sociais por critérios específicos de riqueza e poder, afastando-se dos antigos conceitos das sociedades feudais.

Nos demais tipos de sistema de estratificação, as desigualdades são expressas primeiramente nas relações pessoais de dever ou de obrigação- entre o servo e o senhor, o escravo e o amo, ou entre os indivíduos de castas mais baixas e os de castas mais altas. Os sistemas de classes, em contraste, funcionam primeiramente por meio de conexões de larga escala com caráter impessoal (GIDDENS, 2005, p.234).

É em meados do século XIX que Marx e Engels colocam as circunstâncias econômicas, as formas de produção e circulação de bens, como fatores centrais à organização das sociedades, subordinando àquelas as formas culturais e relacionais dos homens. A infraestrutura, a dinâmica da subsistência, influenciando inevitavelmente a superestrutura, as formas de relacionamento, comunicação e cultura. Suas ideias partem de determinada maneira de desenvolver o conhecimento e compreender a história. Na sua introdução para o livro A ideologia Alemã, Ivo Tonet delibera que para essa concepção da história nenhuma forma de sociabilidade é permanente, inclusive a divisão por classes, e a realidade social deve ser apreendida na totalidade de suas nuances (2009, p.9-15). Para o materialismo marxista é o trabalho dos homens, não as ideias, o que fundamenta as formas de vida social. “Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2009, p.32). Nessa perspectiva, todas as 70

desigualdades entre os homens em uma dada sociedade estão relacionadas às divisões de papéis dentro da cadeia de produção. O conflito de classes teria em Marx um duplo sentido, significando tanto a luta inconsciente e predefinida pelos modos de produção quanto a luta intencional pelo controle dos instrumentos de produção. Em sentido amplo, as classes e a luta de classes estariam presentes tanto na sociedade capitalista moderna como nas de castas e estamentos de períodos anteriores, como atesta o célebre trecho do Manifesto do partido comunista:

A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro das corporações e aprendiz, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em contraposição uns aos outros e envolvidos em uma luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em conflito (MARX; ENGELS, 2008, p.8).

Apesar da importância da luta de classes para suas reflexões e destas para os debates em torno da estratificação nos últimos dois séculos, o autor deixou a teoria de classes inacabada, expressa em passagens ao longo de sua obra. Curiosamente, a escritura de O Capital foi interrompida justamente no ponto em que dissertaria sobre as constituições das classes. Marcelo Ridenti aponta que, para diversos leitores da obra marxista, a ausência de uma definição formal de classes reforçaria que essas não podem ser claramente definidas de maneira isolada, mas apenas no interior das lutas de classes (2001, p.13). Para Marx, o período burguês, ou pós-ascensão de uma classe proprietária não aristocrática, típica do capitalismo, simplificou a identificação dos agentes antagônicos da luta de classes, pressionando a uma divisão da sociedade na oposição burguesia e proletariado ou capital e trabalho. “A condição essencial para a existência e a dominação da classe burguesa é a concentração de riqueza nas mãos de particulares, a formação e a multiplicação do capital; a condição da existência do capital é o trabalho assalariado” (MARX; ENGELS, 2008, p.29). Na literatura de Marx é mister o conceito de mercadoria, fruto do modo de produção capitalista. Em termos bastante simplificados, o que tipifica a mercadoria é seu “valor de uso social”, que é manifesto apenas na virtualidade da troca de uma mercadoria por uma outra, sendo a medida de valor comum a todas as mercadorias o dinheiro. A relação de troca do trabalho para produção de mercadorias por dinheiro, enfim, tornariam o próprio trabalho uma mercadoria.

A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, [...] Há uma relação física entre 71

coisas físicas. Mas a forma mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada têm a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (MARX; ENGELS, 2008, p.326)

O fetichismo de mercadoria para Marx é, portanto, essa substituição da relação concreta com os produtos do trabalho humano por uma abstração de medida de valor universal e homogeneizadora, originada da própria forma de trabalho aplicado na produção da mercadoria. Marx interessou-se especialmente em compreender o Estado burguês, para o qual vislumbrava, como consequência final, a aniquilação. Ele acentuou a relação entre poder político e poder econômico, colocando a propriedade como determinante fundamental que implica automaticamente na oposição de interesses, luta de classes ainda que em estágio inconsciente. A quem não possui meios de produção, logo não pode consumir de antemão para viabilizar a criação da mercadoria, restaria vender sua força de trabalho, fazendo-o na posição de homem livre e, apenas nisso, em igualdade de condições com o empregador (MARX, 2012, p.316-340). Apontada como “[...] expressão precisa do grau de exploração da força e trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo capitalista” (MARX, 2012, p.370), a mais-valia é a diferença entre o valor da mercadoria e o custo com os meios de produção e com a força de trabalho necessários. A mais-valia tende a crescer a medida que evoluem a condições técnicas de produção, reduzindo o custo a mão de obra. No lugar de as máquinas reduzirem o trabalho, o valor da mão de obra passa a ser contado em horas e não mais relacionado com o volume de produção. Em Marx, a exploração do trabalho alheio e apropriação da mais-valia, seriam fatores fundamentais do capitalismo, mantidos e renovados pelo poder e pela influência da classe capitalista junto ao Estado e pela fraqueza de articulação coletiva da classe dos trabalhadores. Estudando as classes sociais em si, tal como abordado em diversas obras de Marx, Ruy Fausto identifica três classes em sentido pleno: a dos capitalistas, definida pela posse do capital e compreendendo os capitalistas industriais, comerciais e a juros; dos proprietários fundiários, proprietários de terra que lucram de arrendá-los aos capitalistas; e a dos trabalhadores assalariados, proprietários da força de trabalho. Destaque-se que o trabalhador distinto por qualificação ou comando, o qual executa tarefas de mediar as relações entre o patrão e o operário, como gerentes e administradores em geral, distancia-se da identificação com a classe dos assalariados, constituindo uma classe intermediária, como seriam também 72

outros grupos, como camponeses e artesãos, profissionais liberais e assalariados do Estado, entre outros (FAUSTO, 1987, p.233 apud RIDENTI, 2001, p. 14-20). Em tal distinção, o proletariado refere-se a parte da classe dos trabalhadores assalariados, mas não representa sua totalidade. Ele seria composto por uma fração de mão de obra pouco qualificada dos empregados na indústria e também trabalhadores improdutivos, como assalariados do comércio. Para Marx, o proletariado, especialmente o industrial, ocupava um lugar privilegiado para a mobilização da sociedade e para a ação revolucionária. Não obstante, mesmo a tripartição seria uma possibilidade nem sempre efetivada na transformação de classe em si (como apresentada pelas posições na produção) em classe para si (consciência de classe).

Ou seja, para determinar a existência de uma classe, não basta a inserção na produção de um conjunto de homens, mesmo daqueles a quem é atribuída uma consciência. Além da posição no processo produtivo, importa como os agentes sociais constroem sua própria consciência. Esta não pode ser literalmente trazida ‘de fora’ da classe em si, por partidos ou intelectuais que supostamente tenham o domínio das leis da História, ela deve brotar de dentro da própria classe, de sua práxis. Por isso, os assalariados, proprietários de terra e capitalistas são construtores (Bildner) de suas classes (RIDENTI, 2001, p.24-25).

As classes intermediárias para Marx, são fragmentos temporários de classe, e tanto a pequena burguesia (pequenos proprietários rurais e urbanos) quanto os assalariados técnicos superiores tenderiam a proletarização natural ao movimento do capital (POCHMANN, 2014, p.22). A dicotomia essencial capital e trabalho ou burguesia e proletariado emergiria de forma mais transparente apenas em momentos revolucionários, quando todas as frações de classes, oriundas do cotidiano dos indivíduos, das famílias e agrupamentos diversos, em concorrência nos períodos normais, tenderiam a se identificar novamente em um dos polos na passagem das classes "em si" às classes "para si", a caminho de uma ruptura com o sistema capitalista. “O proletariado percorre diversas etapas em seu desenvolvimento. Sua luta contra a burguesia começa com sua própria existência” (MARX; ENGELS, 2008, p.21). Dessa forma, a verdadeira consciência de classe, a consciência revolucionária do proletariado, é fruto do reconhecimento interior deste a respeito do lugar dos seus na cadeia de produção e da convicção de que só a ação coletiva e direcionada para derrubar os proprietários e o sistema capitalista seria capaz de dar aos trabalhadores sua parte justa, a apropriação da mais-valia. Qualquer tendência à integração dos trabalhadores ao sistema burguês, a aceitação da possibilidade de uma solução da desigualdade dentro do próprio 73

capitalismo é, para Marx, fruto de falsa consciência, e esta não pode levar a nenhuma mudança real (TUMIN, 1970, p.19). Nas nações capitalistas modernas, a organização entre as trocas e litígios possíveis entre pessoas é prerrogativa do Estado, tido como mantenedor do equilíbrio entre classes antagônicas, instituição acima da luta de classes e reguladora da justiça. Essa instância, que dá ao Estado também a exclusividade do uso da força para manutenção da ordem e imposição da justiça, reflete-se em um tipo especial de fetichismo. Uma mistificação que afasta da consciência das pessoas o fato de serem eles os atores de todas as instituições humanas, atribuindo ao Estado a organização justa de demandas coletivas e pessoais. Em regimes democráticos, as classes sociais se representam por meio de lideranças, sindicatos e, pelo voto, partidos políticos (RIDENTI, 2001). Com o modelo de representação política, as classes desfavorecidas seriam integradas ao universo das decisões coletivas. “Já vimos que o primeiro passo da revolução dos trabalhadores é a ascensão do proletariado à situação de classe dominante, ou seja, a conquista da democracia” (MARX; ENGELS, 2008, p.42). No prefácio de seu livro A formação da classe operária inglesa, Thompson nega uma interpretação marxista de classe como estrutura e o que acusa como tentação metodológica de generalizar a classe como um dado objetivo. Recusa portanto que, a partir da concepção econômica, seja possível atestar uma existência real de quaisquer classe fora do processo da luta de classes. Para ele, baseado no próprio Marx, a noção de classe pressupõe automaticamente a de relação histórica, e esta, fluida, não pode ser imobilizada.

A relação precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais. Além disso, não podemos ter duas classes distintas, cada qual com um ser independente, colocando-as a seguir em relação recíproca. Não podemos ter amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses. A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas, ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus (THOMPSON, 1987, p.9-10).

O historiador inglês reforça que a experiência de classe é mormente resultado das relações de produção em que se nasceu ou entrou involuntariamente. “A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais” (THOMPSON, 1987, p.10). A consciência de classe não é pré-determinada, embora aconteça em diversas sociedades, sempre acontecerá de forma diferente. 74

Thompson reconheceu que, no momento da produção de suas análises, na década de 1960, haviam ainda muitos países com questões problemáticas em torno da industrialização e da formação de instituições democráticas semelhantes às flagradas por ele na Inglaterra do século XIX e para as quais havia ainda a possibilidade de desdobramentos diferentes (THOMPSON, 1987, p.13). Suas observações introdutórias ao estudo da formação da classe operária para si na Inglaterra nos interessam especialmente por, servirem a uma análise de classes no Brasil a medida que negam a existência de modelos de classes generalizados a todos os países e a qualquer estágio de desenvolvimento (RIDENTI, 2001, p.47). A abordagem de Thompson, com ênfase na dimensão cultural e na vida comunitária da classe operária, influenciou cientistas sociais brasileiros especialmente a partir do final da década de 1970, em estudos sobre a classe trabalhadora e a escravidão. O período foi marcado pelo chamado novo sindicalismo encabeçado pelo grupo de metalúrgicos do ABC paulista (MATTOS M., 2005). Por seu turno, Marx já havia observado especialmente as idiossincrasias da Alemanha da segunda metade do século XIX frente a países de capitalismo mais avançado. No livro I de O Capital, Marx compara a evolução da luta de classes na Inglaterra com a situação da Alemanha, sugerindo que quando o país atingiu a maturidade do modo de produção capitalista o eminente proletariado já possuía consciência de classe aprendida de outras lutas no continente (MARX; ENGELS, 2012, p.313-315). “As transformações em curso no país sugeriam a ele e a Engels [...] que o centro da gravidade da revolução se deslocava para lá” (NETTO, 2012, p.33). Marx criticava especialmente alguns teóricos alemães, os quais acusava de absorver sem critérios teorias da Inglaterra e da França sem levar em conta a realidade de seu próprio país, onde, por peculiaridades históricas relativas também a sua unificação tardia, apenas a crítica à economia burguesa poderia ter lugar (2012, p.316). Marx previa, portanto, que a consciência do proletariado seria precipitada na Alemanha, mas seguindo a mesma divisão de classes cabível aos demais países capitalistas. De uma geração posterior de pensadores alemães, Max Weber também se dedicou a analisar o capitalismo e o Estado. Seu entendimento das estruturas, porém, aponta a perspectivas diferentes tanto sobre os mecanismos políticos quanto para a constituição (e importância) das classes.

75

Em matéria de estratificação social, sem tirar importância à classe social dentro da sociedade capitalista, no que segue literalmente Marx, introduz um refinamento ao destacar a importância que têm o prestígio social e as associações de prestígio, ou de status dentro de cada classe. Para Weber, em última análise, ao contrário do que acontece nas sociedades tradicionais, patrimoniais ou de casta, o que predomina na sociedade capitalista é o mercado e a classe (MARSAL, 2002, p.22).

Weber apontava para três tipos de agregação social, a propriedade, o poder e o prestígio. As desigualdades nesses fatores gerariam, respectivamente as classes, os partidos políticos e os agrupamentos de status ou estratos.

Podemos falar em ‘classe’ quando: 1) certo número de pessoas têm em comum um componente causal específico em suas oportunidades de vida, e na medida em que 2) esse componente é representado exclusivamente pelos interesses econômicos da posse de bens e oportunidades de renda, e 3) é representado sob as condições de mercado de produtos ou mercado de trabalho [Esses pontos referem-se à ‘situação de classe’, que podemos expressar mais sucintamente como a oportunidade típica de uma oferta de bens, de condições de vida, e na medida em que essa oportunidade é determinada pelo volume e tipo de poder, ou falta deles, de dispor de bens ou habilidades em benefício de renda de uma determinada ordem econômica. A palavra ‘classe’ refere-se a qualquer grupo de pessoas que se encontram na mesma situação de classe] (WEBER, 1982, p.212).

Embora aceite a propriedade e a falta dela como categoria básica das distinções de classe, Weber pontua que diferenças de posição de mercado, como qualificação profissional e credenciais influenciam nas oportunidades de vida, variando nas posições funcionais que podem ocupar e, consequentemente, na remuneração (GIDDENS, 2005, p.236). Também negava a probabilidade de os membros de uma classe econômica formarem imediatamente uma comunidade.

Ao localizar o problema da classe no mercado e nos fluxos de renda e propriedade, Weber se volta para a produção e sua unidade moderna, a empresa capitalista. Dispõe-se a reconhecer o que deve a Marx pela sua percepção da natureza histórica da moderna estrutura de classes. Somente quando opiniões subjetivas podem ser atribuídas a homens numa situação objetiva de classe, fala Weber da ‘consciência de classe’; e quando focaliza problemas de ‘convenções’, ‘estilos de vida’, de atitudes ocupacionais, prefere falar de ‘prestígios’ ou de ‘grupos de status’. Esses últimos problemas, decerto, relacionam-se com o consumo que, na verdade, depende da renda derivada da produção ou da propriedade, mas que vai além dessa esfera. (GERTH; MILLS, 1982, p.89).

Weber coloca que as lutas de classes, ou “antagonismo entre classes”, de seu tempo diferiam das encontradas na antiguidade ou na idade média por ser centrada na discussão do preço do trabalho. Elas seriam mais aguerridas entre antagonistas diretos nesse campo, como 76

trabalhadores e industriais, deixando à margem investidores capitalistas e banqueiros, os que mais lucram. As lutas de classes existem, portanto, a partir da ação comunitária de indivíduos em mesma situação de classe (WEBER, 1982, p.216-218). Segundo a concepção weberiana, o “poder condicionado economicamente” é apenas uma das formas de poder virtualmente almejadas, podendo ser consequências de poderes em outras esferas. Dessa forma, a luta pelo poder muitas vezes é determinada pelas honras sociais que o acompanham. À constituição das classes econômicas, Weber contrapõe a estratificação estamental. Os grupos reunidos por “situação de status” são comunidades a medida que os integrantes compartilham determinadas qualidades que conferem honra ou prestígio social. “No conteúdo, a honra estamental é expressa normalmente no fato de que acima de tudo um estilo de vida específico poder ser esperado de todos que desejam pertencer ao círculo” (1982, p.219). As situações de status estão relacionadas à situação de classe em muitos sentidos, e embora a propriedade não carregue em si a honraria, muitas vezes pode indicar uma tendência, mas enquanto as classes referem-se à estratificação por relação na produção e na aquisição de bens, os estamentos dizem respeito ao consumo de bens e estilos de vida determinados. “Sinais e símbolos de status - como moradia, o vestir, o modo de falar e ação - ajudam a moldar a posição social do indivíduo aos olhos dos outros" (GIDDENS, 2005, p. 237). E mais: “a situação estamental, por sua vez, influi na situação de classe pelo fato de que o estilo de vida exigido pelos estamentos leva-os a preferir tipos especiais de propriedades ou empresas lucrativas, e rejeitar outras” (WEBER, 1982, p.459). Os partidos políticos não vinculam-se a nenhuma das outras classificações diretamente, sendo composto por pessoas de ambos mas não se limitando a nenhuma. Giddens elucida que, diferente do que foi convencionado por Marx, a constituição dos partidos para Weber não poderia ser explicada em termos de classe, posto que eles podem basear-se em outros termos, como filiação religiosa ou ideológica. “O partido define um conjunto de indivíduos que trabalham juntos por terem formações, objetivos ou interesses comuns” (GIDDENS, 2005, p.237). Conclua-se dessas considerações que Weber não desprezava em absoluto a concepção marxista das classes, mas recusa a ideia de estabelecer um sentido universal para elas. Ou seja, criticava o marxismo por propor uma leitura monocausal, desconsiderando outras variáveis sociais (GERTH; MILLS, 1982, p.64). 77

Também em Weber, é ponto de importância crucial tanto a causalidade entre as ideias e o mundo tal qual se apresenta. Para ele, como para Marx, as ideias não constituem forças absolutas a definir os destinos da humanidade. Entretanto, se para o primeiro a origem de todo o universo simbólico é também no modo de produção, para Weber, se não são definidoras das ações, as ideias servem de guia para cada tendência observada na história. Weber é referido ocasionalmente como “Marx da burguesia”, por supostamente ter conseguindo desqualificar as ideias marxistas, mas muitos autores identificam nele um aperfeiçoamento de Marx em novos termos.

[...] a razão política para a preeminência de Weber reside em ter sido um dos autores que serviu de base europeia para o lançamento do funcionalismo norte-americano, teoria sociológica predominante no mundo depois da II Guerra Mundial até meados dos anos 1960” (MARSAL, 2002, p.13).

José Paulo Netto (2012), tradutor e comentador de Marx e Engels, concorda com Ridenti (2001) quando diz que, com o fim do socialismo real, a queda do muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, as teorias marxistas perderam o protagonismo no meio acadêmico. Sant’anna, identifica o aumento da importância de Max Weber e do aprofundamento do diálogo com a obra marxista. “Hoje é possível e necessário recorrer a ambos para a compreensão das sociedades modernas e atuais” (2001, p.15).

2.2 O SÉCULO DA CLASSE MÉDIA

Como exposto, na segunda revolução industrial e tecnológica, a partir da metade do século XIX, ampliou-se o potencial produtivo das indústrias e de distribuição de mercadorias. A transição para o modo de produção capitalista industrial marcou o abandono de uma economia baseada na escassez, onde se poderia dizer que existia uma pobreza generalizada. Seria esperado que a evolução da indústria permitisse à humanidade produzir o suficiente para atender à maioria das pessoas ao aumentar quantitativamente a geração de riqueza de uma sociedade. Entretanto, a própria constituição do mercado e a monetarização das relações impôs limitações e fez crescer a diferença dos padrões de vida dos mais ricos e os mais pobres. Para descrever esse processo de empobrecimento da classe operária em relação à classe capitalista, Marx empregou o termo pauperização (GIDDENS, 2005, p.236). 78

O novo contexto de produção em massa foi marcada pelo capitalismo oligopolista, em substituição ao da livre-concorrência anterior havia o interesse na redução do tempo de trabalho demandado. A mão de obra é cada vez mais inserida no custo fixo da empresa, sendo independente do lucro gerado pela comercialização. No começo do século XX, Henry Ford deu início à produção de automóveis em linhas de montagem automatizadas o que, além de multiplicar a quantidade de veículos fabricados, permitiu o barateamento e consequente popularização do produto final. Tal modelo exigia grandes investimentos em equipamentos, mas diminuía a necessidade de capacitação dos operários, limitados cada vez mais a trabalhar em funções e ritmos determinados pelas máquinas (POCHMANN, 2014, p.22). Impõe-se remeter ao filme de Chaplin Tempos Modernos, de 1936, no qual seu humilde personagem é tragado pelas engrenagens da fábrica em que trabalha. A imagem chama a atenção pela observação crítica no interior da própria sociedade americana e, especificamente, da ascendente indústria cinematográfica a respeito da atividade que elevaria o país ao centro do capitalismo no século XX. Mas não só o proletariado foi afetado pelas transformações. As grandes empresas demandaram uma multiplicação de cargos não ligados diretamente à base da produção, mas à organização do trabalho, como gerentes, diretores e supervisores, além de técnicos e especialistas diversos. Também, para dar saída ao volume da produção, multiplicaram-se as funções relacionadas à comercialização e, logo, à comunicação para vendas, o marketing e a publicidade. “Em síntese, o predomínio das técnicas do fordismo compreendeu a formação de um novo contingente de quadros de nível técnico e superior nas grandes empresas públicas e privadas”, o que convergiu para a ampliação das concepções sobre classe trabalhadora e novas interpretações do que consistiria a classe média (POCHMANN, 2014, p.23). O modelo foi amplamente difundido no período posterior à Segunda Guerra em movimento proporcional ao avanço de um ideal da economia norte-americana como exemplo para o desenvolvimento do resto do mundo. Como tratamos no item sobre indústria cultural, o american way of life, o estilo de vida americano, foi difundido e almejado em grande parte do mundo, inclusive como parâmetro de comparação para a realidade da União Soviética socialista durante toda a Guerra Fria. O crescimento de países de terceiro mundo serviu para dar saída às mercadorias provenientes dos territórios mais desenvolvidos. Acelerou-se a industrialização tardia de países como Brasil, México e África do Sul e a internacionalização de empresas tornou-se norma. Ao mesmo tempo em que se reestruturaram as economias, o setor terciário, 79

principalmente o de serviços, cresceu em países como Estados Unidos, França e Inglaterra (POCHMANN, 2015; 2014). Outro fator importante para a diversificação e ampliação de funções especializadas da classe média foi o fortalecimento dos Estados e sua interferência no mercado, tanto em experiências capitalistas de Estado de bem-estar social quanto socialistas e o consequente e imenso crescimento do número de funcionários públicos. Estes são não proprietários, não capitalistas, mas também administradores da máquina pública, gerentes dos fundos públicos. Daí a complexidade de se entender sua posição entre os interesses coletivos e a defesa de seu empregador. Ridenti explica que o modelo da socialdemocracia implicava a gestão do fundo público pelo povo, que arbitraria sobre os investimentos, mas, diferente de se caracterizar como uma ruptura com o sistema capitalista, tornava o povo um gestor do capitalismo (2001, p.102-104). Pochmann pontua que o período entre 1945 e 1970 foi registrado como “anos gloriosos do capitalismo”, quando houve a diminuição da pobreza absoluta com a produção e o acesso ao consumo regulados pelos Estados, além de garantias sociais, dando suporte a uma relativa diminuição das desigualdades nos Estados Unidos e alguns países europeus. Havia a ideia do progresso coletivo como consequência do progresso econômico e o incentivo ao consumo destacou o último elo da cadeia produtiva, o consumidor final, como agente ativo para a sanidade da economia capitalista20. As políticas públicas influenciavam objetivamente a redução das desigualdades, mas também serviam como gestoras da economia para garantir a estabilidade dos papéis nas relações de produção. O ciclo se interrompeu com o surgimento de um neoliberalismo baseado na regulação espontânea do mercado para o crescimento econômico e relativa desvinculação do Estado no atendimento das demandas de classes e indivíduos, no final da década de 1970. Difundiu-se, nessa época o modelo empresarial japonês. O toyotismo aplicava a cadeia de produção horizontalizada, com simplificação da hierarquia e abarcando a ideia de trabalho terceirizado, conduzindo a uma especialização dos serviços. Ainda, no lugar da produção em larga escala do fordismo, introduziu-se a ideia de produção just in time, a partir de demandas dos distribuidores.

20 Lembramos que, como visto no capítulo 1, enquanto o polo industrial nacional ainda engatinhava, Chateaubriand conclamava à crescente população de São Paulo a adquirir uma televisão e ajudar a precipitar o país na modernidade que lhe era destinada. 80

A distinção entre trabalho produtivo e improdutivo foi enfraquecida no final do século XX, uma vez que todos os trabalhadores se submetem à lógica do capital independente de ser na fábrica ou no escritório. “Uma nova classe média dos serviços estaria sendo influenciada pela transição para a sociedade pós-industrial capaz de alterar a polarização na estrutura tradicional de classes entre proletários e burgueses” (POCHMANN, 2014, p.25). Segundo Pochmann, ainda, as diferenças entre classes tornam-se visíveis proporcionalmente ao desenvolvimento de um mercado financeiro global e da concentração dos meios de produção em empresas transnacionais, A segunda onda de fusões e as políticas de abertura comercial, assim, desregularam os sistemas de produção e consumo autóctones.

As elites mundiais são cada vez mais ricas, com capacidades crescentes de intervir nas decisões políticas dos governos e manipular as economias nacionais, conforme seus particulares interesses. A parcela mais pobre da população torna-se cada vez mais excluída da prosperidade nesse início do século XXI (POCHMANN, 2015, p.46-47).

Fleury destaca que o desemprego e a vulnerabilidade no trabalho de jovens bem qualificados nas economias desenvolvidas, fazem emergir uma classe denominada precariato.

Desde a década de 1980, uma nova morfologia do trabalho está sendo desenhada a partir de fortes processos de reestruturação produtiva e organizacional. Essa reestruturação caracteriza- -se pelo enxugamento da força de trabalho combinada com mudanças sociotécnicas no processo produtivo e na organização e controle social do trabalho, acarretando flexibilização e desregulação de direitos sociais, terceirização e novas formas de gestão da força de trabalho, embora ainda convivam com a preservação do fordismo em certas áreas. A expansão do trabalho em telemarketing, por exemplo, mostra como a superexploração do trabalho por ritmos intensos em condições precárias convive com o desenvolvimento tecnológico no ramo das telecomunicações (FLEURY, 2013, p.73).

Giddens discorda que a crescente desigualdade seja o efeito colateral inevitável para garantir o desenvolvimento econômico. Para ele, uma renovada mobilidade social baseada no mérito é possibilitada pela expansão do ensino superior e profissional, pela internet e pelo surgimento de uma “nova economia”. Entretanto, reconhece o alcance limitado da mobilidade social, posto que grande parcela das pessoas tendem a permanecer em nível próximo ao da origem (2005, p.251-252).

81

2.2.1 Anotações Teóricas

Na esteira das ideias de Weber, na década de 1950, C. Wright Mills analisou a formação de uma “nova classe média” norte-americana formada por trabalhadores assalariados não proprietários, funcionários administrativos, considerando a regressão da antiga classe média de pequenos empresários, artesãos e profissionais liberais. O sociólogo denomina “colarinhos brancos” (white collars) a esses trabalhadores que, no século XX, ultrapassariam o número de operários não qualificados nos Estados Unidos.

O homem de colarinho branco do século vinte nunca foi independente como o fazendeiro costumava ser, nem tão esperançoso de uma grande chance como o antigo homem de negócios. Ele é sempre o homem de alguém, da corporação, do governo, do exército, e ele é visto como o homem que não cresce. O declínio do empreendedor livre e o crescimento do empregado dependente no cenário americano ocorreram em paralelo com o declínio do indivíduo independente e o crescimento do pequeno homem no imaginário de seu povo. Em um mundo povoado por forças grandes e feias, o homem do colarinho branco é prontamente identificado como possuidor de todas as supostas virtudes da pequena criatura. Ele pode estar na parte de baixo do mundo social, mas ele é, ao mesmo tempo, grato por ser de classe média (MILLS, 1951, p.12 apud ABDALA; MISOCZKY, 2012).

Para C. Wright Mills, o poder político da classe média do século XIX estava sendo substituída por uma classe política e economicamente dependente de empregados submissos à autoridade corporativa e não haveria uma unificação política da nova classe média. Julga que, se economicamente, os colarinhos brancos estão em igualdade de condições com os demais trabalhadores assalariados, politicamente, estão abaixo posto que, diferente dos operários, não eram centrais para a dinâmica de mudanças socais. "Eles não são a vanguarda da mudança histórica, eles são no máximo a retaguarda do Estado do bem-estar social" (MILLS, 1958, p.38, tradução nossa). Ele salienta que, na sociedade norte-americana da época, a influência da opinião pública ou das massas na vida política era cada vez mais guiada pela comunicação de massas. Formado pelos velhos e novos integrantes da classe média, o público não conseguiria definir claramente seus interesses, apaziguando as diferenças pelo relaxamento dos padrões, abstenção da opinião em assuntos púbicos e pela norma da tolerância (MILLS, 1958, p.39). Conforme Giddens, na década de 1950, houve a ideia de que muitos operários que ganhavam salários de classe média adotariam os valores e o estilo de vida da classe média. A proposta de que haveria um “aburguesamento” da classe trabalhadora sugeria a medianização da sociedade como um todo. Ele cita uma pesquisa feita pelo grupo do britânico John 82

Golthtorpe, na década de 1960, com trabalhadores de indústrias automobilísticas e químicas, que concluiu que a tese do aburguesamento era falsa. “Apesar de chegarem a níveis de riqueza comparáveis àqueles dos empregados de colarinho-branco, os trabalhadores do estudo não se juntavam a eles nos momentos de lazer e não aspiravam à escalada de classes” (GIDDENS, 2005, p.244). Com o tempo, o capitalismo tornou a estrutura social cada vez mais complexa e difícil sua compreensão. O francês Pierre Bourdieu é um dos autores que, na segunda metade do século XX, propuseram considerar a posição de classe mais em relação ao estilo de vida que a posição na cadeia de produção, e grupos de classe são identificados a partir de níveis de capital cultural e econômico. Para Bourdieu, cita Giddens:

Cada vez mais, os indivíduos distinguem-se uns dos outros não com base em fatores econômicos ou ocupacionais, mas pelos gostos culturais e pelas atividades de lazer, sendo auxiliados, nesse processo, pela proliferação de ‘mercadores de necessidades’, o número crescente de pessoas que lidam com a apresentação e a representação de mercadorias e serviços- quer sejam esses simbólicos ou verdadeiros- para o consumo dentro do sistema capitalista. Anunciantes, marqueteiros, designers de moda, consultores de estilo, designers de interiores, personal trainers, terapeutas e webpage designers, para citar apenas alguns, todos influenciam os gostos culturais e promovem as escolhas de estilo de vida entre uma comunidade de consumidores em ampla expansão (GIDDENS, 2005, p.245).

2.3 O BRASIL É CLASSE MÉDIA?

Em agosto de 2008, o Centro de Pesquisas Sociais (CPS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgou um documento postulando a ascensão de uma “nova classe média” como principal novidade da década no Brasil. O texto da pesquisa coordenada por Marcelo Neri destaca seu ineditismo em tratar dos recentes avanços estruturais oriundos principalmente da ampliação de renda do trabalho e conclui que entre os mais pobres essa teve crescimento ininterrupto desde 2004, em média 6,5% ao ano. A definição da classe média baseia-se em duas perspectivas. Primeiro, a partir das atitudes e expectativas das pessoas, inspirado nas abordagens do psicólogo behaviorista George Katona e, mais recente, do colunista do New York Times, Thomas Friedman. Nesse prisma, a classe média é definida mais pela capacidade de visualizar o desenvolvimento futuro do que pela condição presente. “Esta mobilidade social estrutural social-ascendente seria algo como realizar o similar em cada país do chamado ‘sonho americano’, da possibilidade de ascensão social” (NERI, 2008, p.21). 83

Consideram-se, então, além do acesso à universidade pública ou privada e à escola de qualidade -potencialmente privada-, a disponibilidade de “elementos da era da Tecnologia da Comunicação e da Informação”. Além da renda corrente do trabalho, contempla a renda estimada a partir de estatísticas fixas, como sexo, idade, região e educação. A segunda perspectiva é a da determinação das classes sociais pelo acesso ao consumo de bens duráveis, como no Critério Brasil, no qual se dividem as classes em A1, A2, B1, B2, C, D, E. Aqui, a camada na média de renda corresponde à classe C. Além do consumo, a pesquisa leva em conta a capacidade de gerar e manter riqueza. Contam o emprego formal, o acesso à previdência privada, crédito imobiliário e ao seguro saúde, além da moradia própria. A pesquisa aponta também para um aumento das classes A e B, que passaram de 12,99% do total da população em 2002, para 15,52% em 2008. “Os limites da classe C seriam as fronteiras para o lado indiano e para o lado belga da nossa Belíndia”. A alusão está no relatório de 2010 A nova classe média: o lado brilhante dos pobres, também coordenado por Neri. Nele, reforça-se a ideia de continuação da mobilidade ascendente no país, apesar das agruras oriundas da crise internacional deflagrada dois anos antes. A carteira de trabalho desponta como símbolo maior do surgimento da “nova classe média”, considerando a proeminência da renda do trabalho como marcador. Também a ampliação do crédito relaciona-se diretamente com a melhora das condições de vida da “classe C”. O Brasil está como diz na gíria bombando [...] O tamanho do bolo brasileiro está crescendo mais rápido e com mais fermento entre os mais pobres. O Brasil está prestes a atingir o seu menor nível de desigualdade de renda desde registros iniciados em 1960. Na verdade, a desigualdade no Brasil permanece entre as dez maiores do mundo, e levaria 30 anos no atual ritmo de crescimento para atingir níveis dos Estados Unidos; porém, isso significa que existem consideráveis reservas de crescimento pró-pobres, que só começaram a serem exploradas na década passada. (NERI, 2010, p.10-11).

Teresinha Pires destaca a adesão dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e, depois, de Dilma Rousseff, às considerações de Marcelo Neri sobre uma “nova classe média”, assumida então como projeto político. Aponta que, ainda em 2002, na primeira campanha vitoriosa de Lula, houve a troca da promessa de igualdade pela de igualdade de oportunidade, a qual virtualmente aproxima a ideia de prosperidade ao mérito. No programa eleitoral de 21 de agosto de 2010, da futura presidenta Dilma Rousseff, identificou a proposta da inclusão pelo consumo e o discurso do aumento da classe média como resultado das políticas centradas nos pobres do governo anterior. Pires menciona que Antônio Lavareda, em 2009, tratou da importância da pesquisa da FGV para as eleições do ano seguinte: 84

Essas mudanças na composição das classes sociais, com alterações visíveis na renda e na educação da população, necessitam ser meticulosamente levadas em conta, nos contextos específicos, ao serem elaboradas as estratégias das próximas campanhas, considerando-se que esse novo tecido das classes sociais se materializou de forma heterogênea no conjunto do país. (LAVAREDA, 2009, p.91 apud PIRES, 2012, p.13).

A compreensão da vitória do Partido dos Trabalhadores como a vitória da classe operária sobre as elites históricas tendeu a uma leitura equivocada. Afinal, não se tratava de uma ruptura com o sistema capitalista a que todos somos subordinados, mas à abertura das possibilidades gloriosas do capitalismo à parte da população que sequer podia sonhar com a integração. Em 2011, Marcelo Neri lançou o livro A nova classe média: o lado brilhante da pirâmide, o qual lhe rendeu o reconhecimento por parte da presidenta como um dos brasileiros que mais ajudam ao país a combater a pobreza e a miséria (PIRES, 2012, p.12).

Há alguns anos, usei coisas para qualificar a classe C brasileira: carro, computador, TV a cabo, casa própria financiada e crédito ao consumidor. Agora, mais do que assíduos frequentadores de templos de consumo, o que caracteriza a nova classe média brasileira é o lado do produtor. Ao contrário da fábula de cigarras consumistas, a nova classe C busca construir seu futuro em base sólidas que sustentem o novo padrão adquirido. (NERI, 2011, p.168).

Nesse mesmo ano, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, com o ministro Moreira Franco, criou a Comissão para Definição da Classe Média, com vista no redirecionamento das políticas públicas. A SAE divulgou em 2012 o primeiro relatório Vozes da classe média, reafirmando a tendência oficial de considerar uma “medianização” da sociedade brasileira. Segundo o documento, naquele momento a classe média somava 110 milhões de pessoas, ou 53% da população, o que tornava central o debate sobre os programas sociais - mormente voltados para a população na faixa da extrema pobreza- e as demandas dessa nova maioria da população. O relatório foi baseado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), da Confederação Nacional das Indústrias (CNI) e do Instituto Data Popular. A SAE considerou a divisão dos brasileiros em três grandes classes determinadas em relação à vulnerabilidade à pobreza a partir da renda per capta. Dessa forma, a classe baixa abrigava as pessoas com alta chance de permanecer ou tornar-se pobre (fracionada entre famílias com renda per capta inferior a R$ 162, consideradas como abaixo da linha de pobreza e, disso até R$ 291, vulneráveis). A classe alta compreendia pessoas com irrisória 85

possibilidade de ficar pobre (renda superior a R$ 1.019), e a classe média consistia em pessoas com baixa probabilidade de descender à pobreza, com renda per capta entre os limites das outras duas. Entre 2002 e 2012, 21% da população deixou a classe baixa para a média e 6% passou da média para a alta. O relatório indica quatro fatores determinantes para o aumento da classe média. São eles a redução da dependência, ou seja, aumento relativo no número de adultos ocupados; os programas sociais de transferência de renda; a maior participação da renda do trabalho na composição de renda das famílias; e o aumento da remuneração média dos trabalhadores, no que também interfere a valorização do salário mínimo. O presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, destaca que Vozes da Classe Média atende ao interesse da indústria sobre seu mercado consumidor ante a flagrante “revolução no padrão de consumo” dos brasileiros (2012, p.10). Em uma década, o consumo da classe média registrou aumento de 2,7%, compreendendo, em 2012, 38% do consumo nacional. Chama a atenção que a SAE considere de maneira diferente a capacidade da classe média e da classe baixa para expressar suas demandas.

Ao contrário da população pobre, que tem que dedicar grande parte de sua atenção à formulação de estratégias de sobrevivência, a classe média já dedica a sua à visualização do futuro, ao desenho de estratégias voltadas à preservação dos ganhos alcançados ou à continuidade do seu processo de ascensão (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2012, p.33).

Ao mesmo tempo em que “dá voz” à classe média, o relatório repete uma antiquíssima e transnacional justificativa para negá-la às pessoas da base da pirâmide: “Na sociedade, há apenas uma classe que pensa mais em dinheiro do que os ricos, e é a dos pobres. Estes não podem pensar em mais nada. Aí está o grande infortúnio de ser pobre” (WILDE, 2003, p.33). Especializado em pesquisas sobre as classes C, D e E desde a criação, em 2001, o instituto Data Popular tornou-se uma das principais referências para empresas interessadas em atingir o mercado popular. Na apresentação O mercado da base da pirâmide no Brasil, produzida em 2006- antes do batismo da “nova classe média”- a empresa tratava do consumo nas “classes populares”, destacando as diferenças entre o repertório simbólico da “baixa renda” e das classes média e alta. A apresentação indica como os maiores desafios para a comunicação com pessoas da base da pirâmide: transmitir mensagens acessíveis sem infantilizar o receptor e tratar o consumidor como “adulto, senhor de si, apesar das suas limitações”. Sugere também que se 86

trabalhe com referências estéticas da “cultura popular brasileira”. Além do uso de cores primárias, artifícios que remetam à fartura, extravagância e alegria são aconselhados, além da atenção às diferenças de repertório em relação às classes altas tradicionais. Em 2008, Renato Meirelles lançou um guia para consumidores de primeira viagem21, os da "classe C", que tinham acesso pela primeira vez a produtos e serviços para os quais deveriam se preparar. São conselhos como ler os rótulos dos produtos, fazer tratamentos estéticos, escolher uma escola particular ou como fazer uma viagem de avião. Os aeroportos cheios de novos viajantes, é justo destacar, vem sendo motivo de manifestações individuais preconceituosas há algum tempo no país. Quando foi declarado que os integrantes da classe C passavam da metade do total da população, como imagem, o Data Popular propõe que, no lugar da pirâmide social, a sociedade brasileira representar-se-ia pela figura do losango, com a “nova classe média” inflada no meio e os dois extremos de riqueza e pobreza sub-representados. No citado relatório da SAE, Renato Meirelles, fundador e diretor do Data Popular, avalia que a classe média como um todo beneficiou-se do controle da inflação, podendo realizar suas aspirações e definir novos objetivos. Ele identifica nos emergentes a importância do otimismo e salienta que esse “novo brasileiro” é apegado às raízes e tem como referência pessoas próximas que venceram na vida por mérito próprio.

No novo Brasil as coisas mudaram. O aumento da renda e do emprego formal, a consequente expansão do crédito, o aumento da escolaridade e a democratização da informação por meio da internet e da TV por assinatura deram à classe média liberdade de escolha. E liberdade de escolha é poder (MEIRELLES, 2012, p.46).

A carta de clientes da empresa inclui desde governos e grandes indústrias e bancos a veículos de comunicação, como Globo, SBT, Record, TV Cultura e o grupo Google. Em 2013, o Data Popular, em Um país chamado classe média, compara o consumo da “nova classe média” com o de países como Holanda e Suíça e a classe é definida por “integrar plenamente o universo do consumo”. A compra de produtos de marca é relacionada à expectativa de aceitação social. 40% do crescimento da classe C corresponde à região nordeste, mas é no sudeste que se concentra a maior quantidade de pessoas desse estrato (43%). A apresentação indica como "protagonistas da classe C", as mulheres, os negros e os jovens. Sobre as primeiras, aponta que tiveram massa de renda aumentada em 83%, contra

21 Um Jeito Fácil de Levar a Vida: O Guia para Enfrentar Situações Novas sem Medo. 87

crescimento de 45% entre os homens, representando, em 2012, 40% da renda total dos brasileiros. Além disso, afirma que as mulheres da classe média são mais escolarizadas que os homens, chefiam mais famílias e contribuem mais com a renda familiar do que as mulheres da classe alta. Sobre os negros, indica serem 75% das pessoas que chegaram à classe C, concentrando metade da renda da classe média. Os jovens da "classe C" (55% dos jovens brasileiros) são citados como novos formadores de opinião da classe média, com mais influência nas decisões familiares que na classe alta. Outro estudo do instituto, realizado em parceria com o SERASA Experian, chamado Faces da Classe Média, propõe a fragmentação da “classe C” em quatro grupos, empreendedores, experientes, promissores e batalhadores. A divisão está relacionada especialmente à faixa etária, estilos de vida e visão de mundo. “Ao conhecer esses grupos que compõem a classe média as empresas poderão alçar voos mais ousados”, pois “consumidores diferentes exigem estratégias diferentes” (2014, p.55, 58). Jessé Souza (2012) critica a ideia de “nova classe média”, que deveria corresponder à transição do Brasil para um país de primeiro mundo, e argumenta que a sociedade brasileira percebe seus problemas sociais e políticos a partir de uma ótica economicista, quantitativa da realidade. Tal economicismo seria o subproduto do liberalismo dominante em todo o planeta. Assim, os miseráveis e a miséria são encarados como contingentes, a partir da crença de que a força do Estado ou o mérito individual são suficientes para uma mudança de condição.

O que o liberalismo economicista dominante faz é dizer que existem classes e negar, no mesmo movimento, a sua existência ao vincular classe a renda. [...] O economicismo liberal, assim como o marxismo tradicional, percebe a realidade das classes sociais apenas ‘economicamente’, no primeiro caso como produto da ‘renda’ diferencial dos indivíduos e no segundo, como ‘lugar na produção’ [...] Esconder os fatores não econômicos da desigualdade é, de fato, tornar invisível as duas questões que permitem efetivamente ‘compreender’ o fenômeno desigualdade social: a sua gênese e a sua reprodução no tempo (SOUZA, 2012, p.22-23)

Um exemplo dado pelo autor é o da carência de mão de obra qualificada para atender à demanda da produção interna, amplamente tratada pela mídia em 2008. Segundo ele, atribuiu-se essa defasagem estritamente a fatores econômicos, esquecendo-se de que essa grande massa de brasileiros foi historicamente excluída do preparo para o mundo competitivo. O governo Collor desponta como um importante momento na transição para o protagonismo de técnicos economicistas nas decisões do Estado. Pela primeira vez, as expressões econômicas se sobreporiam às políticas. Com Fernando Henrique Cardoso, esse 88

modelo tornou-se hegemônico, mobilizando duas ideologias, a da competência e a do mercado (CHAUÍ, 2013). A naturalização da desigualdade, conforme Souza, é fator característico e hereditário na sociedade brasileira. Assim, por exemplo, termina-se por aceitar uma boa educação e bom atendimento de saúde para as classes mais altas, as quais podem pagar pelo benefício, e serviços inferiores para quem depende do serviço público. A construção desse mito perpetuador da desigualdade seria viabilizado pelas ideias de intelectuais brasileiros, associadas aos interessas econômicos e políticos, na construção de uma ideia de nacionalidade, a qual conduziria ao o apagamento da noção de pertencimento de classe. As abordagens inspiradas no binômio personalismo/patrimonialismo justificam uma divinização do mercado e seu desenvolvimento passa a ser visto como solução para os problemas sociais. “Existe no fundo uma ‘aliança secreta’ entre esse culturalismo do ‘mal de origem’ que nunca muda e a perspectiva economicista e liberal que diz que toda mudança só pode vir da economia e do progresso econômico” (SOUZA J., 2009, p.60). Em sua perspectiva, inspirada principalmente em Weber e Bourdieu, a permanência de uma classe social e de seus privilégios ou prejuízos é transferida não apenas pela herança material, mas também pela transmissão de costumes e valores, do estilo de vida. Tais códigos compartilhados viabilizam as aproximações e relações sociais, o que colabora para a manutenção ou ampliação da riqueza. O simbólico debruça-se sobre o real para perpetuar determinada estrutura. Para Souza, o que existe no Brasil não é a clássica oposição de trabalhadores e capitalistas, mas a do conjunto das classes com possibilidade material e simbólica de reconhecimento e cidadania e uma classe totalmente excluída, a “ralé”. Para esta não existe a força do exemplo, posto que mesmo os estímulos ao estudo são superficiais e não passam pela experiência positiva dos próprios pais com a escola.

O capital cultural, sob forma de conhecimento técnico e escolar, é fundamental para a reprodução tanto do mercado quanto do Estado modernos. É essa circunstância que torna as ‘classes médias’ , que se constituem histórica e precisamente pela apropriação diferencial do capital cultural, em uma das classes dominantes desse tipo de sociedade. (SOUZA J., 2009, p.21).

A classe média ilustra como condições de perpetuação de posição ou privilégio são transmitidas no convívio familiar. Os jovens crescem seguindo os exemplos de casa, onde os seus predecessores compartilham de determinada formação intelectual e cultural. Aos valores comuns da classe média (higiene, alimentação regular, bom comportamento social e sexual, 89

etc.) soma-se a valorização individual do filho pelos pais, o que incute confiança e esperança no futuro, importantes para o êxito no mercado competitivo (SOUZA J., 2009). A respeitabilidade em nossa sociedade, diz, é atribuída medindo a utilidade do trabalho individual e a “expressividade”, a singularidade que difere um sujeito entre a massa de seus iguais ante a lei e o Estado. Contudo, no Brasil, as duas possibilidades são ainda exclusivas, privilégios, das classes mais altas e médias.

Do mesmo modo que o tema da ‘dignidade’ do trabalho, especialmente em países como o Brasil, onde a tantos é negado esse tipo básico de reconhecimento social moderno, também a possibilidade de vivenciar ‘expressivamente’ a vida não é algo dado, fácil e possível a todos. Ao contrário , o potencial expressivo é uma mera ‘possibilidade’ aberta pela modernidade, e uma realidade efetiva de muito poucos. Existe, nesse sentido, toda uma indústria cultural, de cosméticos, de mota etc., que ‘vende’ estilos de vida prêt-a-porter , ou seja, já construídos e coisificados como mercadoria, imitando a ‘originalidade pessoal’, que é a promessa do verdadeiro expressivismo. [...] A promessa expressiva tende a se transformar, no contexto moderno aqui e alhures, em mero pastiche destinado a produzir “distinções sociais” (SOUZA J., 2009, p.115).

Souza (2012) argumenta que a nova classe formada pelos emergentes recentes, situada entre a "ralé" e as classes média e alta, deve ser considerada como uma "nova classe trabalhadora", a esse grupo, que destaca como próspero pelo próprio esforço, expresso em jornadas duplas de trabalho, educação noturna etc., chama "batalhadores brasileiros". A partir de sua pesquisa empírica, pondera que muitos "batalhadores" têm origem na "ralé", tendo apreendido uma "ética do trabalho", imposta desde cedo pela necessidade para sobrevivência, e conquistado o direito de vislumbrar o futuro. Com gostos e opções muito diversas das classes média e alta, a classe C levaria em conta interesses comunitários nas suas escolhas, como preferir se manter próximo aos amigos e parentes do que se mudar para um bairro melhor e distante. Outros autores também acusaram o superdimensionamento sem levar em conta, por exemplo, que dois terços dos trabalhadores domésticos, e metade dos moradores de favelas e chefes de família sem escolaridade estão incluídos formalmente no estrato.

Ao dissociar a análise da ascensão da classe C das condições de emprego e trabalho opera-se uma descontextualização de cunho político e ideológico que impede a tematização da superexploração e endividamento dessa população. [...] A reação da mídia e da sociedade à recente equiparação dos direitos das empregadas domésticas aos demais trabalhadores mostra como a superexploração do trabalho, no país com o maior contingente mundial de trabalhadoras domésticas, é banalizada e justificada (FLEURY, 2013, p.75).

90

Para Fleury a fetichização do mercado veio substituir a fetichização do Estado, caro ao projeto nacional desenvolvimentista. Nos dois casos, a sociedade, as relações de força, os valores compartilhados, os conflitos e as relações entre classes são deixadas de lado. No projeto politico em prática propõe-se o consenso da ascensão social ligada ao consumo no lugar dos conflitos postos pela desigualdade de classe (FLEURY, 2013, p.72). Pochmann problematiza o mito de um país majoritariamente de classe média, atentando que a partir dessa condição naturaliza-se a oferta de serviços exclusivamente na lógica do mercado. O crescimento da utilização de serviços de saúde e educação privados na “classe C” apontam para a deficiência de serviços públicos de qualidade somada a uma ideia de eficiência superior das empresas privadas. Nesse caso, as concepções sobre o aumento de renda, a ascensão da “nova classe média”, reforçam a tendência de tomar o consumo individual como fator de inclusão à cidadania (POCHMANN, 2014). A denominação, entretanto, é insuficiente para designar as idiossincrasias do grupo emergente.

[...] dois dos critérios centrais de que se dispunha tradicionalmente para determinar o pertencimento à classe média (e reforçados pela ditadura, primeiro, e pelo neoliberalismo, depois), isto é o consumo de bens duráveis e serviços e o crédito bancário, se desfazem na materialidade real, uma vez que esses critérios, agora, alcançam a classe trabalhadora (e, sobretudo, os trabalhadores mais pobres). No entanto, ideologicamente, esses critérios continuam aparecendo como definidores da classe média, donde o prestígio ideológico tanto da ideia de ‘medianização’ da sociedade quanto da afirmação de que surgiu no Brasil uma nova classe média, contra todos os dados concretos que mostram de maneira inequívoca o surgimento de uma nova classe trabalhadora (CHAUÍ, 2014, p.14).

Chauí (2013) argumenta que, se no capitalismo industrial a ciência e a tecnologia eram desenvolvidas de forma autônoma e os cientistas e técnicos enquadravam-se na classe média, hoje não cabe mais a definição de classe a partir da ocupação. Quando a ciência e a técnica passaram ao interior das empresas, tornando-se parte essencial da força produtiva, os seus executores deslocaram-se cabalmente à classe trabalhadora. Uma classe heterogênea que também incluiria cada vez mais, também, o pequeno proprietário e o profissional liberal. Conforme exposto, a classificação de “classe média” por poder e consumo, interessa tanto ao mercado quanto influencia no planejamento das políticas públicas. O fenômeno “classe C” chamou a atenção da indústria, do comércio e das instituições financeiras quando atrelado a ideia de uma “nova classe média” composta por indivíduos virtualmente ávidos por compensar sua longa história de privações. Muitos pesquisadores empenharam-se para determinar as melhores estratégias para atender a esse público. 91

Lançando mão de um amplo leque de pesquisas quantitativas e qualitativas com dados sobre hábitos e visões de mundo de pessoas cujas opiniões até recentemente eram pouco notórias (pelo desinteresse do mercado), esses trabalhos também colaboram para estabelecer os limites entre a “classe C” e a classe média tradicional, sugerindo a impossibilidade da existência de uma enorme e nova classe média com identidade própria e distinta. A “classe C”, afinal, não se define na dinâmica da luta de classes nem se refere a posição na cadeia produtiva, como elaboraria o marxismo. Tampouco agrupar-se-ia por situação de classe ou honra estamental, dadas as distinções dentro da própria "classe C". Nessa premissa reside o interesse em compreender como ela é construída nos discursos oficiais, no comércio e na comunicação de massa.

2.3.1 A Capa da Visibilidade

A repercussão na imprensa do estudo da FGV em que apresentou a “nova classe média” foi imensa. Em agosto de 2008, após a divulgação dos resultados, foram veiculadas 34 matérias em telejornais, 25 no rádio, 208 matérias na mídia impressa e 404 na internet (PIRES, 2012). A “nova classe média” alimentou as pautas da imprensa de forma consistente em notícias de economia e política até de cultura e esportes. A seguir, citamos algumas das abordagens nas principais revistas semanais sobre o tema a partir desse marco. Ressalte-se, entretanto, que o assunto do inchaço da classe C chamava atenção da imprensa desde antes. Por exemplo, em 2 de abril do mesmo ano, a revista Veja já estampara a chamada de capa “A Classe dominante”, em que abordava os resultados da pesquisa Observador Brasil 2008 22 . A revista reforça que empresários já demonstravam grande interesse na classe C, ainda identificada como distinta da classe média:

Mas não é tão fácil seduzi-la. Até o início do plano Real, eram raríssimas as pesquisas de mercado voltadas para a classe C. Hoje, são maioria. Dessas pesquisas saem lições valiosas. A principal delas: seus integrantes têm ojeriza aos termos “popular” e “pobre”, vetados nas campanhas publicitárias. Eles preferem identificarem-se como consumidores da classe média- o que de fato, são, ainda que se situem nas camadas inferiores desse estrato econômico (BORSATO; DUAILIBI, 2008, p.86).

Em 13 de agosto a publicação foi mais discreta, incluindo a pesquisa da FGV em uma matéria interna de apenas uma página, de título “O reino do meio”. A matéria e capa da Veja

22 Desenvolvida pela Cetelem BGN em parceria com a IPSOL- Public Affairs. 92

de 17 de setembro, relaciona a resistência da economia brasileira em meio à crise mundial à ascensão da “classe C”. Situa sua origem no plano Real e nas medidas do governo de Fernando Henrique Cardoso (GUANDALINI, 2008), esboçando que “classe C” tornava-se motivadora de uma disputa de paternidade política. A edição de 11 de agosto da revista IstoÉ trouxe a ascensão da “classe C” na matéria “O sonho começou”. Em 15 de outubro, “O Brasil real contra o baixo-astral”, cuja chamada de capa era “Acredite no Brasil”, aponta que o surgimento de uma nova classe média dinamizou os investimentos do país. A revista Época, na semana do anúncio da FGV, trouxe a pauta na capa e na matéria “A nova classe média do Brasil”:

A expansão da classe média e a redução da desigualdade de renda não são um fenômeno brasileiro apenas. Ele vem ocorrendo simultaneamente – e de forma acelerada – em todas as economias emergentes, sobretudo na China e na Índia. A explosão da classe média teve início há cerca de dez anos, ainda não atingiu seu pico e, segundo se prevê, deve durar pelo menos mais dez anos (FRIEDLANDER, 2008).

Somado ao aumento do poder de compra, cresceu a quantidade de pessoas passíveis de controlarem um negócio ou atuarem em postos executivos e criativos. O empreendedorismo também vincula-se a imagem da “classe C”. Nesse cenário, redes de varejo como Magazine Luiza e Ricardo Eletro, toraram-se símbolos da ascensão econômica. A visibilidade dada aos seus fundadores deve-se tanto por seu sucesso coincidir com o aumento da venda de móveis e eletrodomésticos pela “classe C” quanto pela história de seus proprietários- ambos trabalharam desde crianças e “cresceram na vida”. Em 2009, a mineira Ricardo Eletro havia ampliado seu mercado para São Paulo e, como estratégia de marketing, passou a patrocinar o programa Caldeirão do Huck, na rede Globo. Em um quadro do programa, Ricardo Nunes contou a Luciano Huck sua trajetória de vida, de criança que vendia mexerica a rico empresário de eletroeletrônicos. Em 2012, a empresa já era a segunda maior no varejo, atrás apenas das Casas Bahia. Luiza Helena Trajano, dona da Magazine Luiza, consagrou-se ainda mais. Em 2008 foi eleita pela revista Época como uma dos cem brasileiros mais influentes do ano. Lá, consta que “Luiza não é apenas empreendedora, mas muito humana e generosa”. Em 2011, foi convidada pela presidenta Dilma Rousseff para encabeçar a Secretaria da Micro e Pequena Empresa, a qual ainda não havia sido criada. Entre 2011 e 2012, a classe média vira política pública e há o aumento do número de abordagens sobre a “classe C” nos meios de comunicação de massa e nos institutos de 93

pesquisa nacionais. Mais do que os resultados estatísticos considerados, nos interessa explorar valores culturais, hábitos, gostos e anseios identificados com a “classe C”. Exemplo dessa abordagem é encontrada no primeiro número da revista Época de 2012, que traz na capa o cantor Michel Teló. A matéria “Michel Teló: Ai se eu te pego...” fala do sucesso do cantor que tornou-se símbolo do novo sertanejo, com sucesso retumbante nas classes A e B. À edição, Heloísa Buarque de Holanda pondera que o cantor e sanfoneiro tem origem em um segmento social que nos últimos tempos se legitimou, criou seu nicho de mercado, e agora influencia os gostos de toda a sociedade. Com a ascensão da “classe C”, afirma, a periferia urbana e o interior do Brasil tornaram-se referência de inovação na música, no comportamento e na moda. A revista salienta que a autenticidade do músico como produto cultural é garantida pela forte presença das suas raízes. “A origem, a história e os instintos musicais qualificam Teló como uma espécie de porta-voz dos valores da cultura popular junto às elites”. Outro fator destacado é o fato de ser um fenômeno musical da era das redes sociais (O Twitter chegara ao Brasil em 2008 e o Facebook em 2009). Na mesma edição, sublinhe-se uma matéria sobre a prosperidade do emprego na área metalúrgica que relaciona a classe operária do ABC à nova “classe C”. A capa do número de 23 de janeiro traz a instigante chamada “A vida sem empregada”. A revista chama a atenção para a redução da oferta de mão de obra doméstica no país, atribuída ao crescimento da economia, a uma melhor distribuição de renda regional que “secou a fonte de fornecimento de empregadas baratas”, e à escolarização. Como ilustração, conta a história de Maiara Zimmer, de 17 anos, que começou a trabalhar como faxineira aos 15, seguindo os passos da mãe, empregada doméstica, mas decidiu tentar trabalho na rede de lanchonetes e, com esforço e sorte, acabara de conseguir entrar em uma faculdade de administração. A matéria cita ainda a presença de personagens empregadas domésticas na teledramaturgia da TV Globo, especificamente, na novela Cama-de-gato, de 2009, e anuncia a estreia da novela Marias do Lar (rebatizada depois como Cheias de Charme), que traria empregadas mais instruídas e ambiciosas: “É uma mudança simbólica importante, que sublinha a possibilidade de ascensão social.” (CORONATO, et al., 2012b). O funk ostentação mereceu destaque em Época em setembro pela rápida popularidade que alcançara junto aos jovens de “classe C” em São Paulo (PINO; CASSEMIRO, 2012). O sucesso é atribuído à uma identificação entre as aspirações do público e os carros e marcas de 94

luxo cantadas pelos MC’s. “Nasci na comunidade, sei que lá ninguém quer cantar pobreza e miséria”, diz o MC Menor à reportagem. Nos anos seguintes, o funk ostentação chamaria ainda mais atenção após a intensificação dos “rolezinhos” em shoppings de diversas cidades. No lugar das denúncias do rap e das celebrações libidinosas do funk carioca, os novos MC's paulistas queriam falar dos bens que finalmente podiam comprar. Um dos artistas mais populares do funk ostentação, o MC Bio-G3, que se popularizou com músicas como “Bonde da Oakley”, avalia em uma no documentário Funk Ostentação, que o movimento seguiu uma tendência natural a partir da facilidade do acesso aos itens considerados de luxo: “(a periferia) quis mostrar que pode”. Os novos funkeiros se beneficiaram da popularização da internet e garantiram a exposição para o grande público, especialmente pela plataforma Youtube, onde veiculam videoclipes que chegam a milhões de espectadores. Nos vídeos, os artistas não falam de drogas ou de sexo, mas do dinheiro e claramente do poder que este dá ao portador diante da sociedade. Nas estrofes do MC Menor do Chapa: “Eu sou patrão não funcionário, meu estilo de vida é foda. Só pego as melhores e ando sempre na moda”. A suposta gana de consumir marcas de luxo intensificou o movimento das empresas para vender aos emergentes. O destaque na mídia desses fatos culturais parecem corroborar para vincular a imagem da “classe C” ao desejo de ascender socialmente e, através do consumo, se impor. Uma vez postas como centro de uma revolução na economia e figurando cada vez mais como um renovado núcleo de criatividade e geração de produtos culturais, as periferias e a classe emergente foram citadas também como motrizes de transformações formais nos produtos e na linguagem da comunicação de massa como um todo, não só nas propagandas. “[...] a intelectuação do signo pode depender de certos níveis de cultura. Não apenas a cultura de um público autoriza o refinamento da mensagem, como também o signo segue a evolução dos públicos [...]” (BARTHES, 2005a, p.36). No setor editorial, por exemplo, as transformações já aconteciam há mais tempo. Segundo levantamento da Meio & Mensagem, o segmento das revistas populares- em geral voltadas para a beleza, celebridades e programas de TV com matérias mais curtas- cresceu 14% entre 2005 e 2009, muito mais do que os 3% registrados no total do mercado editorial, somando algumas dezenas de títulos vendidos por menos de R$2,00. Em depoimento para a matéria, Renato Meirelles do Data Popular aborda o interesse dos leitores: "É uma classe C mais ávida de informação fora da TV e que por isso procura a internet, revistas e jornais. Ela 95

precisa de informação de mais fôlego que o timing da TV não possibilita resolver" (REVISTAS..., 2011). Também houve um grande crescimento de público do cinema nacional, impulsionado pela ampliação das formas de incentivo público, tanto para produções quanto para abertura de novos pontos de exibição. Ainda em 2010, o diretor da Agência Nacional do Cinema (Ancine), Manoel Rangel, afirmou que também teve influência o gosto da “classe C” por filmes falados em português (MOURA, 2010). Nesse cenário, o filme Até que a sorte nos separe, lançado em 2012 pela Globo Filmes, e suas sequências, destacam-se por baterem recordes de bilheteria no país, acompanhando a tendência de popularidade das comédias urbanas junto ao público nacional. Também em 2012, a Globo filmes lançou títulos como De pernas pro ar 2, O diário de Tati e E aí, comeu?, Os penetras e Totalmente Inocentes, todos entre as 30 maiores bilheterias de filmes nacionais no ano, segundo site da revista Exame. Na televisão, a busca pelo reconhecimento simbólico da "nova classe média" foi especialmente impactante:

A tomada de decisão por parte das redes em tornar a programação da televisão mais popular não deve ser entendida como simplificação ou produção de conteúdos mais apelativos, mas antes como um processo bastante difícil de incluir novas vozes ou demandas nessa programação. Assim, chegamos a 2011 com uma oferta crescente de oportunidades de se fazer e de ver televisão de diferentes maneiras, e a nova classe C quer se ver retratada, pelo menos nas “três telas” (TV, celular e computador). (LOPES; MUNGIOLI, 2012, p.130).

Em 2011, o SBT (sigla de Sistema Brasileiro de Televisão), comemorou os 30 anos de fundação celebrando a "classe C". "[...] o SBT pode orgulhar-se de dizer que, desde os primórdios, voltou as atenções para a classe que vem impulsionando a economia nacional e fomentando o desenvolvimento nos últimos anos" (SACCHITIELLO, 2011). Na ocasião, foi criada uma plataforma online para que o público desse sugestões para os programas e opinasse sobre o estilo da emissora. Nesse mesmo ano Raul Gil promoveu em seu programa no SBT o concurso "A mais bela empregada doméstica". Dez anos antes, na Record, o apresentador já havia realizado a competição, inspirado em quadro semelhante de Chacrinha. Também em 2011, promoveu outro concurso "A melhor empregada doméstica do Brasil", no qual as concorrentes, vestidas de uniforme, deveriam limpar uma casa usando produtos Bombril. Nos três casos as patroas também recebiam premiações pela eleição de suas empregadas. 96

Então diretor geral da TV Globo, em 2011, Octávio Florisbal assumiu ao colunista Maurício Stycer o direcionamento da emissora para atender ao público da “classe C”. As mudanças para deixar a programação mais popular se dariam no jornalismo, nos programas de humor e nas novelas. “Aquela divisão de que 80% do público é das classes C, D e E continua, mas eles têm mais presença, mais opinião. Eles ascenderam. Têm um jeito próprio de ser”, declarou Florisbal.

Hoje a Rede Globo muda sua programação para atender a essa nova classe C, que não é mais seguidora das classes A e B. Uma classe que não é mais atingida, em se tratando de comunicação de massa, pela média, que quer se ver representada nos conteúdos ficcionais, informada sobre assuntos próximos de sua realidade, pelos telejornais, que tem, no sábado, seu dia de “sair de casa” para o lazer, agora acessível, ou até para as compras. (TONDATO, 2011, p.114).

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3 “CLASSE C” NA TV

Neste capítulo, abordamos diretamente os esforços da Globo para adaptar sua programação ao novo contexto do público da "classe C, como propagado pela própria empresa e reconhecido por diversos pesquisadores da televisão. Entre 2011 e 2012, ocorreram alterações nos telejornais da emissora, com trocas de apresentadores e ajustes de linguagem. O Bom dia Brasil, no ar desde 1983, trouxe Chico Pinheiro para dividir a bancada com Renata Vasconcelos no lugar de Renato Machado. Na ocasião, Carlos Henrique Schroder defendeu que o novo âncora “[…] tem a habilidade de apresentar e analisar a notícia de modo a torná-la acessível a todos, sempre num tom muito próximo ao telespectador”23. Depois de 14 anos, Fátima Bernardes foi substituída no Jornal Nacional pela jornalista Patrícia Poeta, supostamente mais popular. Desde então, também o estilo de William Bonner passou a ser mais informal ao ler as notícias. Em matéria da Veja, o diretor do Data Popular, Renato Meireles atribuiu a troca ao dado de Patrícia poeta ser de um tipo físico com o qual as mulheres da “classe C” se identificam, “cheio de curvas”. A mesma reportagem definiu as alterações dos programas da TV Globo como um “banho de Casas Bahia” e destacou o deslocamento dos “pobres” do papel de coadjuvante para o de protagonista. Em sua dissertação de mestrado, Maria Teresa Garcia, ex-editora-chefe do Jornal Hoje, esmiuçou adaptações tanto na estrutura quanto nas construções sintáticas promovidas nos telejornais da Globo.

Conversar com o telespectador, comunicar-se com mais naturalidade, tornar o texto mais solto e descontraído na televisão. Esses objetivos foram repetidos nas discussões entre profissionais que jornalismo que se debruçaram na tarefa de repensar a forma de contar as histórias para um público cada vez maior e mais exigente (GARCIA, 2014, p.15).

Ela cita declaração de Priscila Natale, executiva de contas do IBOPE, segundo a qual desde 2008 a relação entre poder aquisitivo e audiência nos telejornais se inverteu e, em 2013, a audiência era maior quanto menor o nível de vida. Isso é atribuído ao aumento no número de aparelhos de TV em todo o país a partir do crescimento da “classe C” (GARCIA, 2014, p.43).

23 Comunicado do diretor geral de jornalismo e esporte da Rede Globo divulgado em 10 jun. 2011. Disponível em: . 98

Entre os objetivos da equipe do Jornal Hoje salienta-se a importância de tomar a linguagem em parâmetros de linguagem oral. Frases mais curtas, tom coloquial e a escolha de termos mais simples. Foi contratada a consultoria da linguista da Universidade de Campinas Valéria Paz, a qual analisou por mais de três anos os textos do telejornal, apresentando propostas de simplificação dos mesmos a fim de inspirar os jornalistas. Estimulou-se o uso de uma linguagem solta, o recurso da repetição de informação e a mistura dos pronomes tu e eu como formas de transparecer uma conversa descontraída com o telespectador. Garcia destaca desde mudanças nos cenários e aumento da duração das reportagens à inclusão de personagens da "classe C" e textos mais didáticos como artifícios para atrair e manter a audiência do público, objetivo atribuído a todos os jornalistas de TV. Na linha de shows, o principal destaque foi o programa Esquenta!, semanal que estreou na programação de férias da TV Globo no dia 2 de janeiro de 2011. Entre as principais atrações da estreia, uma entrevista com Lula, que acabara de encerrar o segundo mandato presidencial. Lula comenta com alegria o enriquecimento da população mais pobre do país e celebra o aumento da autoestima dos brasileiros: “Nós somos ator principal!”, declara. Sua própria trajetória é assinalada por ele, em que é reforçado por Regina Casé, como um exemplo para o brasileiro de origem pobre, feliz por saber que um semelhante pode ser presidente. Corrobora com essa imagem o que disse Marcelo Neri a respeito do ex-presidente.

Getúlio era o pai dos pobres, já Lula não é o pai dos pobres, nem mesmo pai dessa nova classe média. Ele é a nova classe média. Ele encarna melhor do que ninguém a possibilidade de ascensão social de cada brasileiro. [...] Quando a elite brasileira vê Lula falar, critica seu português. Já o povo pensa: "Ele fala 'que nem' eu". Se ele pode, "sim, nós também podemos!" Lula desperta nos mais pobres a realização do sonho brasileiro, que é similar ao americano ou de outros povos, o de subir na vida (NERI, 2011, p.257).

Em formato de programa de auditório, Esquenta! propôs-se um espaço para valorização da cultura popular e de personagens selecionados do “povo”. A música de abertura, composta por Gilberto Gil e Arlindo Cruz, desenha uma Regina Casé com “sina de ser popular”. Gilberto e Preta Gil, Túlio Maravilha, Cauã Reymond, Sheron Menezes, funkeiros e, entre outros, um pedreiro, um vendedor de praia e um carregador de malas participaram da estreia. O programa foi produzido no Núcleo de Guel Arraes 24 , diretor e roteirista pernambucano reconhecido por reunir artistas de diversos registros culturais, desde

24 Cabe lembrar que Guel é neto do já falecido político Miguel Arraes, figura icônica da esquerda brasileira. 99

humoristas e jornalistas, a dramaturgos de cinema e de teatro. Entre eles, o grupo Asdrúbal trouxe o trombone foi base para os semanais de sucesso no anos 1980 Armação Ilimitada e TV Pirata, importantes exemplos de renovação na linguagem da televisão a partir de referências do vídeo. Integrante original do Asdrúbal trouxe o trombone, a partir da década de 1990 Regina Casé esteve envolvida em diversas produções de Guel Arraes cujo tema eram as culturas populares das periferias, como Brasil Legal, de 1995, Muvuca, de 1999 e Central da Periferia, de 2006. Outro parceiro importante de Guel Arraes nesse campo é Hermano Vianna. O antropólogo carioca foi um dos primeiros a abordar o funk no meio acadêmico, em sua dissertação de mestrado em 1987, tornando-se referência sobre cultura de periferia desde então. Segundo Maria Eduarda da Mota Rocha, “[...] é possível dizer que sua atuação no Núcleo Guel Arraes contribuiu fortemente para levar a ‘periferia’ à maior televisão do país, tendência que alcançou recentemente até a telenovela” (2013, p.566). Para Rocha, o trabalho do trio Guel Arraes, Regina Casé e Hermano Vianna é expressão de um projeto de visibilidade afirmativa da periferia, ligada a uma valorização da diversidade acima do nacionalismo desacreditado. Abrindo espaço para ritmos que não se enquadram na denominação "nacional", o Esquenta! se alinharia ao discurso da diversidade disseminado por instâncias internacionais como a UNESCO e com as políticas culturais brasileiras a partir do governo Lula.

O caráter anti-intelectualista da estrutura de sentimentos25 desses artistas e intelectuais permite maior partilha entre eles e o mundo do funk, do axé, do tecnobrega, do rap, da música sertaneja, sem deixar para trás a reverência ao velho samba na figura de Arlindo Cruz, que é uma espécie de mestre de cerimônias do programa. Na verdade, o samba pode ser visto como o núcleo duro da “cultura do consenso” de viés nacionalista [...] seu uso no programa sugere que ele continua indispensável para a construção de uma imagem positiva da periferia, especialmente a carioca. Mas esse uso implica uma marcação mais explícita do seu lugar social, em contraposição à sua diluição na identidade nacional, e o termo “periferia” vem trazer essa carga semântica [...] tudo leva a uma tentativa de extrair o samba do registro ideológico nacional e reinseri-lo naquele da autoestima das classes populares (ROCHA, 2013, p.568).

Ao mesmo tempo, ela avalia que o Núcleo Guel Arraes não pode desligar-se do mito da "pátria mãe gentil", em que há espaço para todos. Assim, a concepção de democracia racial é ampliada para abranger as relações de gêneros, classes e variados grupos apresentados como

25 O termo "Estrutura de sentimentos" foi cunhado por Raymond Williams como alternativo aos conceitos de "ideologia" e "visão de mundo", abrangendo os valores a partir da prática, antes de serem institucionalizados (ROCHA, 2013, p.558). 100

membros de uma sociedade harmônica e tolerante. Ao mesmo tempo em que abre um espaço para o diálogo e a disputa entre as variadas formas culturais presentes no Brasil, a TV Globo reafirmaria o poder de impor sua própria versão da periferia (ROCHA, 2013, p.571-573). Com Maurício Farias e José Bonifácio Sobrinho (Boninho), em 2012, Guel Arraes implanta o novo diário matinal Encontro com Fátima Bernardes, uma versão atualizada de programa feminino com auditório. Nele, a antiga âncora do Jornal Nacional exibe uma face simples, próxima da mulher comum, bem casada, que trabalha, cuida da casa, dos filhos e se diverte. A atração inclui apresentações musicais especialmente com sabor popular, grupos de samba, funk, tecnobrega e sertanejo. Chamou a atenção o uso, até então inédito, de um cenário todo preenchido com vídeo mapping. Também os programas de ficção do Núcleo Guel Arraes chamaram a atenção para a "classe C", como o seriado Tapas e Beijos, cujo mote é uma loja de noivas onde trabalham as protagonistas vividas por Andreia Beltrão e Fernanda Torres. Sueli e Fátima são vendedoras em Copacabana, mas dividem um apartamento no bairro do Meier, subúrbio carioca. Na abertura, uma versão moderna do sucesso sertanejo dos anos 1990 Entre tapas e beijos, da dupla Chitãozinho e Xororó, gravada pela banda de tecnobrega paraense Calypso. A banda também participou fazendo um show no último capítulo da primeira temporada. Como os dois programas supracitados, A grande família também tinha direção geral de Maurício Farias. O seriado foi utilizado por Souza (2012) para exemplificar o que chama "duplo racismo de classe", relacionando os "batalhadores brasileiros" a um arcaísmo patriarcal (indicado pela excessiva defesa dos integrantes da família por Lineu) e à instrumentalidade (impulsionada pela busca do bem próprio, assumida por Agostinho). A segunda versão do seriado sobre uma família suburbana, no ar desde 2001, configurando-se o mais longevo da televisão brasileira, apresentou transformações profundas, com investimento para atualização das histórias e das personagens. A temporada de 2011 girou em torno da ameaça de desapropriação das casas da rua onde mora a família Silva para a construção de um viaduto, reação adversa do progresso em curso. Na temporada seguinte, situando um salto temporal de cinco anos, os cenários e as tramas foram ajustadas para intensificar a impressão de realidade e incluir mais temas contemporâneos. Assim, o patriarca Lineu Silva (Marco Nanini) deixa de ser servidor da vigilância sanitária e dono de petshop para tornar-se um triste e sonhador aposentado. Seu genro, o malandro Agostinho (Pedro Cardoso), como um típico empreendedor da "classe C", funda uma empresa de táxis e constrói uma piscina para seu filho Floriano (Vinícius Moreno) e sua esposa, Bebel (Guta Stresser), a qual aproveita do aumento da renda para investir em 101

implantes de silicone e tratamentos estéticos caros. O dinheiro para investir no novo negócio, Agostinho conseguiu graças à fama de seu antigo táxi, todo reformado ("tunado") no quadro Lata Velha, do Caldeirão do Huck. Nenê (Marieta Severo) deixa de ser dona de casa para trabalhar em uma boutique e o filho caçula, Tuco, o qual na primeira temporada era um jovem funkeiro e preguiçoso, torna- se ator. Todos os cenários foram atualizados e, com recurso de pós-produção, foi inserida uma paisagem real do bairro da Penha nos planos gerais da cidade cenográfica, assim como o famigerado viaduto. A mesma tecnologia também é usada em Tapas e Beijos para o cenário da rua de Copacabana, sendo implantada em diversas outras produções. Uma abordagem diferente sobre a periferia foi exibida na minissérie Subúrbia, do diretor de núcleo Luís Fernando Carvalho. Sobre ele, note-se que, celebrado por novelas como Renascer e O Rei do Gado, destaca-se por aproximar suas direções de uma estética mais cinematográfica e pelo interesse no interior do Brasil, como atestam as minisséries inspiradas em Ariano Suassuna (A pedra do reino) e Carlos Alberto Soffredini (Hoje é dia de Maria). Em 2012, com o autor de Cidade de Deus, Paulo Lins, Carvalho escreve e dirige Subúrbia, semanal em oito episódios exibida entre novembro de dezembro. Conceição (Erika Januza), imigrante pobre que cresce como empregada doméstica em uma casa no Rio de Janeiro, depois de assediada pelo patrão, foge e muda-se para o bairro de Madureira, onde vira uma estrela do baile funk e é envolvida com a violência do tráfico pelo ex-namorado Cleiton (Fabricio Boliveira). Subúrbia, como Conceição é conhecida, ao final é coroada rainha de bateria da escola da escola de samba do bairro e reata com Cleiton, então regenerado e evangélico.

3.1 A NOVIDADE NA NOVELA

Entre 2011 e 2012, a TV Globo exibiu 14 telenovelas, quatro em cada um principais horários (18, 19 e 21 horas) e duas às 23 horas. Constituíram três releituras de grandes sucessos do passado (Gabriela, O Astro e Guerra dos Sexos), duas novelas "de época" (Cordel Encantado e Lado a Lado) e nove passadas no presente. Dessas, quase metade pode 102

ser relacionada ao foco na "classe C", excetuando-se Amor Eterno Amor, A vida da gente, Morde & Assopra, Insensato Coração e Aquele Beijo26. Silvio de Abreu, autor de Insensato Coração, veiculada no horário das 21 horas, entre janeiro e agosto de 2011, associou um relativamente fraco desempenho da novela no IBOPE ao aumento do público pobre: "O público D/E tem dificuldade de perceber as coisas. Eles precisam de tempo. O público A/B percebe com mais propriedade porque tem raciocínio mais rápido" (VEJA, 2011). Em seu lugar, foi ao ar a novela Fina Estampa, de Aguinaldo Silva. A trama gira em torno de Griselda da Silva Pereira, mulher batalhadora que trabalha como faz-tudo e atende pelo apelido de "Pereirão". Com ela, moram os três filhos e um neto. Suas melhores amigas são uma dona de casa e uma taxista, vizinhas na área pobre do da Barra da Tijuca, conhecida como uma região de novos ricos cariocas, como visto em 1998 na novela Por Amor, de Manoel Carlos. A grande mudança na trama ocorre quando Griselda ganha sozinha na loteria e muda- se para o condomínio de luxo onde mora Tereza Cristina, socialite maquiavélica defendida por Cristiane Torloni, a qual faz de tudo para prejudicar a nova vizinha e, por ironia do destino, sogra de sua filha. Em novembro de 2011, a revista Veja estampou a capa "Pereirão, esse mulherão", chamando atenção para o sucesso da personagem de Lilia Cabral com a "nova classe média" como exemplo de ética e valores familiares. Griselda representava a mulher forte, matriarca que assume a função de chefe de família após a suposta morte do marido. Trabalhadora, independente, mãe carinhosa e amiga gentil, a personagem reunia todas as qualidades defendidas na novela. Faltava-lhe a vaidade, descoberta após o envolvimento amoroso com o enganado marido de Tereza Cristina. Quando fica rica, torna-se uma patroa justa e não deixa de trabalhar. Além de Griselda, Tereza Cristina e seu mordomo, o espalhafatoso Crô (Marcelo Serrado) caíram nas graças da audiência e seus bordões eram repetidos de escritórios a padarias do país. Crô ficou tão popular que ganhou um longa-metragem próprio dois anos depois, dirigido por Bruno Barreto e lançado pela Globo Filmes. De forma mais explícita, foi em 2012 que a "classe C" norteou a programação ficcional da emissora. Já em março, foi lançada a novela Avenida Brasil, retumbante sucesso de público que foi apontada como grande fenômeno do ano na televisão. Nela, Nina (Débora Falabela), mulher a qual fora injustiçada e abandonada em um lixão quando criança, volta

26 Dados extraídos do site Memória Globo. Disponível em: . 103

para se vingar da madrasta má e encontra-a rica e casada com um jogador de futebol. Para se aproximar da cruel Carminha (Adriana Esteves), a quem culpa pela morte do pai, Genésio (Toni Ramos), Nina disfarça-se de cozinheira e é contratada para trabalhar na mansão onde mora toda a família do jogador Tufão (Murilo Benício), o homem que atropelou Genésio por acidente. O autor João Emanuel Carneiro já havia feito sucesso na faixa das 21 horas com a novela A Favorita, de 2009, sobre as rivais Donatela e Flora, vividas por Cláudia Raia e Patrícia Pillar. Quando jovens e pobres, as duas começaram a dupla sertaneja de sucesso Faísca e Espoleta e casaram-se com dois amigos. A trama começa anos depois, quando Donatela é uma artista famosa e rica e Flora deixa a cadeia onde esteve presa pelo assassinato do marido de Donatela, Marcelo, com quem teve uma filha. A essa altura, Donatela está casada com Dodi, ex-marido de Flora e os dois criaram a menina. Com 197 capítulos, uma originalidade da novela estava em não ser claro desde o início qual das duas era a verdadeira vilã e quem era a mocinha. O autor conduziu as atitudes e ações das personagens de forma a manter a dúvida sobre a verdadeira assassina até o capítulo 56. Até então, o público simpatizava muito mais com Flora, figura pobre e supostamente injustiçada. Ao jornal Extra- conforme consta na versão digital do dia 07 de agosto- João Emanuel Carneiro disse: "É curioso que as pessoas não perdoam o rico. O público fica indignado por Donatela ter 22 milhões guardados"27. Antes, além de colaborações, havia assinado duas novelas das sete em 2004 e 2006, respectivamente, Da cor do pecado, com Silvio de Abreu, e Cobras e lagartos. Particularidade de ambas é o protagonismo de pessoas negras. A primeira foi mencionada no primeiro capítulo como a primeira com personagem principal negra da Globo, interpretada por Thaís Araújo. Cobras e Lagartos trazia Lázaro Ramos como o trambiqueiro Foguinho. Tendo o mesmo nome do verdadeiro herdeiro, ele recebe por engano uma fortuna do milionário de bom coração Omar (Francisco Cuoco). As cenas da família de Foguinho usufruindo da vida de "novo rico" deram a tônica de humor da novela. Esclarecido o mal entendido e derrotados os vilões, um regenerado Foguinho e sua amada Ellen, novamente Thaís Araújo, a qual antes renegava o passado pobre, terminam felizes vendendo comida na região de compras conhecida como Saara, no centro do Rio de Janeiro.

27 Disponível em: . 104

O autor também foi supervisor de texto de Cama de Gato, de Thelma Guedes e Duca Rachid. Exibida em 2009, era protagonizada por Camila Pitanga, intérprete da faxineira Rose. Apaixonada pelo empresário e novo rico Marcos Palmeira, a mãe esforçada de quatro filhos descobre ser, na verdade, filha de um milionário. É notável o trabalho de João Emanuel Carneiro fora da televisão. Além do emblemático Chatô, de Guilherme Fontes, foi co-roteirista de filmes como Central do Brasil, dirigido por Walter Salles, Cronicamente Inviável, dirigido por Sérgio Biancchi, Orfeu e Deus é brasileiro, de Cacá Diegues, importantes títulos do cinema brasileiro pós-retomada. A temática centrada no universo popular e marginal, como visto, permeia sua obra e confirma-se que não foi aleatória sua escolha para tão grande investimento no público de "classe C". Quando apresentou Avenida Brasil, João Emanuel Carneiro declarou que a novela deveria falar com todas as classes, mesmo que representasse personagens de "classe C". (MARTHE, 2012). Como empregada de Carminha, Nina encanta a todos por sua educação refinada - depois do lixão ela foi adotada por um casal de argentinos ricos- e descobre que seu grande amor da infância miserável no lixão é, na verdade, filho da vilã. Na mansão, localizada no bairro fictício Divino, moram ainda os pais, a irmã, o cunhado e os dois filhos de Tufão e Carminha, Jorginho e a pequena Ágata. Apesar de enriquecido, Tufão fez questão de continuar morando no bairro pobre onde cresceu, seguindo uma tendência identificada com a "classe C". Ícones dessa concepção são os jogadores de futebol, muitos dos quais, apesar de saírem de seus bairros ou mesmo do país, mantém fortes vínculos com suas comunidades. Em sua dissertação, Rosana Mauro analisou Cheias de Charme e Avenida Brasil com vista na midiatização do consumo e do sentido de classe social. Ela salienta a simulação de diálogos informais nas cenas de Avenida Brasil, notadas principalmente envolvendo a família de Tufão, além da fragilidade de uma estrutura patriarcal, posto que as mulheres têm muita força nas decisões da família. Sobre o perfil das personagens desse núcleo, salienta uma aproximação com as práticas sociais da nova classe trabalhadora, a mãe, Muricy (Eliane Giardini) no passado foi empregada doméstica e camelô e Ivana (Letícia Isnard), irmã de Tufão, é empresária bem sucedida de uma rede de salões de beleza. O pai, Leleco, é identificado com a figura do malandro carioca, também atribuída por Souza a uma instrumentalização do racismo de classe. Outra aproximação com o autor é feita em relação à classe denominada "ralé", representada pelo núcleo dos moradores do lixão (MAURO, 2014, p.84-114). 105

Avenida Brasil registrou grandes picos de audiência e suas personagens ilustraram inúmeras matérias e capas de jornais e revistas ao longo dos seus 175 capítulos. Carminha tornou-se um ícone da vilania simpática das telenovelas. Suas maldades, crudelíssimas, incluíam, entre outras, além de abandonar uma criança em um lixão, enganar Tufão para fazê- lo se casar por culpa de ter matado Genésio no acidente, fazer o novo marido adotar Jorginho sem saber que este era filho dela com o amante, assim como, sabe-se depois, é Ágata. Seu amante e comparsa, Max (Marcelo Novaes), casa-se com a irmã do jogador. Note-se, portanto, que apesar das marcantes inovações no gênero, Avenida Brasil manteve a estrutura melodramática das tramas centradas em conflitos familiares e amorosos. Além disso, a vingança de Nina, guarda semelhanças com a clássica história do Conde de Monte Cristo, folhetim de Alexandre Dumas, sobre um homem preso que injustamente volta disfarçado para vingar-se dos inimigos. Apenas vinte dias após o início de Avenida Brasil foi ao ar o primeiro capítulo de Cheias de Charme, a qual dedica-se integralmente a última parte deste capítulo. Foi a primeira novela assinada pela dupla Filipe Miguez e Izabel de Oliveira. Ambos já tinham um histórico de colaborações com autores já consagrados na TV Globo, mas assinavam juntos a primeira novela. Dois anos depois, a dupla se associaria novamente à diretora Denise Saraceni na novela Geração Brasil que, além de repetir parte do elenco de Cheias de Charme, filia-se também à elaboração de uma imagem sintética do Brasil moderno e emergente onde a tecnologia promove a integração. Na abertura, "País do futebol", música do funkeiro ostentação MC Guimê. Outras produções merecem menção no contexto da "classe C" em 2012. De autoria de Glória Peres, Salve Jorge tinha como protagonistas Theo (Rodrigo Lombardi), um oficial da cavalaria do exército locado na segurança de uma favela carioca "pacificada", e Morena (Nanda Costa), uma jovem pobre que termina sendo enganada e vítima de uma quadrilha de tráfico internacional de mulheres. Como tornou-se uma marca de seus textos, Glória Peres incluiu um país geográfica e culturalmente distante para ser um cenário de sua trama. Morena torna-se prisioneira na Turquia, onde é obrigada a trabalhar em uma boate. Como em outras tramas, a autora remete ao estilo Magadan de folhetim eletrônico. No Brasil, a história centrava-se na vida de Theo após a partida de Morena, incluindo sua conturbada relação com a mãe, que não admite sua proximidade com os moradores da favela. Peres também é reconhecida por suas criações do 106

"núcleo pobre" dos subúrbios brasileiros, principalmente carioca, tratados em geral com o mesmo nível de alegoria que Turquia ou Marrocos. Em O Clone (exibida entre 2001 e 2002), o Piscinão de Ramos, espécie de praia de açude com água salgada, construída na margem da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, reunia as personagens cômicas do “núcleo pobre”. Apresentado como uma janela da periferia carioca para o universo do glamour da zona sul praiana, o piscinão era reverenciado pela personagem Odete, vivida por Mara Manzan, quem repetia o bordão “Cada mergulho é um flash”, referência à visibilidade dada à Ramos graças ao novo local de lazer. Se, na realidade, o Piscinão de Ramos, hoje Parque Ambiental Roberto de Oliveira “Dicró”, foi uma iniciativa do governo do estado para ser alternativa à praia de Ramos, poluída como todas as da Baía de Guanabara, sendo uma opção para os moradores da baixada fluminense, na ficção era reforçada a ideia de uma valorização da população da periferia do Rio de Janeiro. Em Salve Jorge, além de Morena, inúmeras personagens vivem no Morro do Alemão. Destacam-se Pescoço, malandro vivido por Nando Cunha, e dona Diva, interpretada por Neusa Borges. A atriz já havia interpretado outra suburbana fofoqueira de muito sucesso com o público em América, também de Glória Peres, exibida em 2005. No horário das 18 horas, Lado a Lado, pode ser observada como um tratamento diferente à questão da visibilidade da "classe C" ou das periferias. Ambientada no Rio de Janeiro do começo do século XX, tinha como pano de fundo o surgimento das favelas e as transformações da sociedade carioca após a abolição. A novela aproxima a realidade dos negros das favelas cariocas do início da República com as lutas afirmativas atuais. Veiculada entre setembro de 2012 e março de 2013, acompanha a amizade de duas mulheres, Laura (Marjorie Estiano) e Isabel (Camila Pitanga), uma branca e uma negra, no caminho para realizarem seus desejos de independência, sucesso profissional e amor. Conforme atesta Márcia Perecin Tondato (2013), apesar de ser uma novela de época, Lado a lado também pode ser chamada de uma novela "realista", pois os conflitos e experiências sobre a sociedade em modernização refletem situações do presente, como os preconceitos raciais, culturais e de gênero, a violência nas cidades e a deficiência do serviço público. Sublinha que a importância das tramas sobre a integração dos negros e das mulheres ao emprego assalariado no começo do século passado reafirma uma perspectiva sobre a cidadania a partir da posição de indivíduo trabalhador e consumidor. Em Lado a Lado, o trabalho como espaço para inserção do escravo recém liberto e emancipação das mulheres; as opções de lazer, cultura e esportes (futebol, capoeira, teatro, roda de samba); as crenças religiosas (cristianismo, candomblé); a alimentação (quitutes de origem afro no morro, iguarias na 107

Confeitaria Colonial, petiscos no Bar Guimarães) definem e estabelecem posições e, mais do que isso, permissões de pertencimento. (TONDATO, 2013, p.12).

Como os autores de Cheias de Charme, Cláudia Lage e João Ximenes também estreavam como autores principais em 2012, o que indica a renovação dos autores da TV Globo concomitante aos esforços de imprimir novas formas de produzir para a audiência nacional.

3.2 “C” DE CHARME

A novela Cheias de Charme foi exibida entre dia 16 de abril de 2012, 28 de setembro, somando 143 capítulos. O núcleo e a direção geral são da diretora Denise Saraceni. Antes mesmo da estreia, a novela era comentada na imprensa e blogs como aposta da emissora para agradar o público da “classe C”, entretanto, segundo Miguez28, não houve um direcionamento oficial da TV Globo nesse sentido:

Houve a nossa "antena" de captar esse momento, não apenas econômico, mas cultural, com a explosão de consumo da música popular que, graças à democratização dos bens de cultura, pela primeira vez não precisava do chamado "mainstream" para ter vida própria. Com um aparelho de celular ligado à internet, pela primeira vez era possível um artista gravar, editar e veicular um clipe e se tornar um sucesso. Isso sim é mobilidade! Nos inspiramos em pessoas como a Stephany, sucesso com um clipe caseiro, e mostramos essa cena em ebulição em diversos cantos do país, com expressões como o Tecnobrega no Pará (Chayene), o Funk carioca, o Sertanejo Universitário (Fabian), etc.

Miguez lembra que o sucesso da novela junto ao público foi instantâneo:

Para ilustrar isso, conto um episódio real. No dia seguinte à estreia, uma cobra foi encontrada na Ponte Rio Niteroi e batizada pelos populares de Chayene, notícia que chegou aos telejornais. Logo, não houve necessidade de correção de curso. A empatia dos universos dos trabalhadores domésticos e dos cantores populares foi enorme desde o começo. Era um momento muito feliz, positivo e otimista do Brasil. E Cheias de Charme tinha esse astral.

Para se aproximarem do universo popular, os autores de Filipe Miguez e Izabel de Oliveira contaram com a colaboração da pesquisadora de texto Leusa Araújo e de Hermano

28 Conforme respostas enviadas por email para perguntas elaboradas para esta pesquisa. 108

Vianna. Este apresentou a cantora Gaby Amarantos e o hit Ex-my love, usado na abertura da novela. A produção musical foi um dos carros-chefes de Cheias de Charme, com músicas compostas especialmente para serem interpretadas pelas personagens, além da trilha sonora com cantores e bandas reais. Fora Gaby Amarantos, fizeram participação na novela, entre outros, Alcione, Joelma da banda Calypso, Ivete Sangalo, Michel Teló e Zezé de Camargo e Luciano, alguns dos quais ligados a mesma gravadora, mas todos de origem em regiões periféricas e muito celebrados pelo público “de baixa renda”. No especial de São João do Esquenta!, em 2012, as atrizes Leandra Leal, Thaís Araújo e Izabela Drummond, protagonistas em Cheias de Charme, foram convidadas e destacaram a importância da novela para o novo momento do país e o orgulho de fazer parte do projeto, como Rocha transcreve da declaração de Leandra Leal:

Além da gente tá dançando, cantando, fazendo um grupo musical que é muito divertido, eu me sinto muito feliz de estar fazendo uma novela em que três empregadas domésticas são protagonistas. Isso tudo que você tá falando aqui e que o Esquenta! representa e essa mudança que a gente tá tendo, a utilização da internet, eu me sinto assim, cara, eu tô fazendo um negócio que eu acredito muito, muito mesmo (2014, p.570).

Em cenário de celebração da ascensão da "classe C", Cheias de Charme destacou-se por ser protagonizada por empregadas domésticas e remeter à referências culturais e estéticas das periferias do país. Antes dela, poucas novelas tiveram esse perfil. Divididas e núcleos ricos e pobres, as telenovelas têm por tradição incluírem esse tipo de personagem em suas tramas em posição coadjuvante. "Os empregados domésticos têm importante participação nas telenovelas, em particular na TV Globo, na medida em que constituem pontos de articulação do ambiente doméstico por onde circularão as personagens" (MOTTER, 2003, p.115). No longínquo 1964, A moça que veio de longe, adaptação de original argentino exibida na Excelsior, levou ao público o romance entre uma empregada e seu patrão, mas o contexto era bem diferente. Em 2009, Cama de gato também tinha uma protagonista negra e que inicialmente era faxineira. Em Cheias de Charme, três mulheres: Maria da Penha (Taís Araújo), Maria do Rosário (Leandra Leal) e Maria Aparecida (Isabelle Drummond) são identificadas inicialmente como empregadas domésticas mas mudam de vida depois de formarem um grupo de tecnobrega, ou, como chamado na novela, "eletroforró". 109

No primeiro capítulo é possível identificar traços distintivos dos principais personagens e núcleos, os quais servirão à análise aqui proposta.

Do ponto de vista temático, o início de uma telenovela representa uma mudança, uma ruptura no cotidiano do telespectador que deve se adaptar à nova proposta, como se, subitamente ele tivesse que mudar de assunto sem estar suficientemente preparado para fazê-lo. É nesse particular que a curiosidade e o hábito agem no sentido de manter o telespectador nesse espaço nebuloso e crucial da telenovela (MOTTER, 2003, p.33).

Cheias de Charme abre com a apresentação de suas três protagonistas a um delegado. Em ordem, elas declaram seus nomes e suas profissões: Maria da Penha Fragoso Barbosa, a Penha, apresenta-se prontamente como empregada doméstica, Maria Aparecida dos Santos Souza, a Cida, oscila entre o orgulho e um ar de constrangimento ao dizer: “Estudante...também trabalho de arrumadeira”. A terceira, Maria do Rosário Monteiro da Silva empertiga-se de dizer-se “cantora e cozinheira nas horas vagas”. Quando começam a relatar o que as levou à delegacia, a narrativa segue para um flash back do começo do dia, marcado pela vinheta animada de um relógio andando para trás. “Bom dia, dona Maria”, diz o locutor de rádio Gentil Soares, cuja voz ecoa em diversos cenários. A música, por esse recurso, tem a importância sublinhada desde os primeiros minutos da telenovela. O programa é ouvido pelas três personagens, cada uma em seu ambiente. Em favela no bairro fictício do Borralho, Penha recebe amigos para um churrasco organizado por seu marido em uma laje. Ela usa um vestido justo, faixa laranja no cabelo, batom vermelho e argolas douradas. Uma música de Chayene toca no rádio e ela pede que a irmã desligue: "Aí, a voz da dona Chayene no meu ouvido eu não tô podendo, né". A personagem de Thaís Araújo comemora a conclusão de seu “puxadinho”, o qual pretende alugar para completar a renda. Ela mostra o lugar para uma amiga. De figurino recatado e com voz baixa e doce, Ivone, diz que ora pela amiga. Elas são interrompidas por um fiscal da prefeitura, o qual alega a irregularidade da obra. Penha pede que o fiscal converse com Elano: "O senhor conversa com meu irmão. Que o meu irmão é advogado". Pode surpreender o dado de Penha ter se preocupado em aprovar o projeto da obra na prefeitura antes de construir, pressupondo que, apesar da ambiência pobre e extremamente informal, a comunidade é organizada e observada pelo poder público e consequentemente, deve seguir as normas. 110

Socorro desce uma escadaria da favela com seu irmão. Eles discutem porque Naldo desaprova que ela tenha denunciado a obra de Penha à prefeitura. "Você não vai ficar morando comigo não, Socorro. Se tu não arranjar um serviço de dormir, tu vai voltar pro Nordeste!", diz Naldo à irmã. De um jatinho cor de rosa, Chayene, cantora de "eletroforró" e patroa de Penha, liga avisando que está voltando para casa e que quer a empregada a postos. Esta corre para pegar uma van e dirigir-se ao trabalho. Ao descer no aeroporto, Chayene é recepcionada por fãs que finge não saber terem sido avisados pelo seu próprio empresário para estarem ali. Essas duas primeiras cenas onde a personagem de Cláudia Abreu é apresentada indicam tanto sua personalidade autoritária e desrespeitosa ante seus subordinados quanto sua fortuna, fama e orgulho. Penha apressa-se para dar conta dos serviços enquanto fica cada vez mais aflita com o problema da licença de sua obra. Quando se dá conta que Sandro usou o dinheiro da licença para fazer o churrasco, acaba queimando uma roupa de Chayene com o ferro de passar, pelo que é humilhada. Mais tarde, a patroa ainda atira-lhe um prato de sopa na face. Penha, então, decide ir à delegacia para prestar queixa. Cida, usando uniforme de arrumadeira, trabalha em uma mansão e ajuda a filha da patroa, Sônia Sarmento, a escolher um vestido para usar no seu noivado. Ariela Sarmento é uma jovem mulher apresentada como preguiçosa, mimada e gorda. Cida recebe de Sônia um caro vestido tirado do guarda-roupas de Isadora Sarmento, outra filha da milionária, apenas mencionada no primeiro capítulo, o qual deve usar na festa da noite. Rodinei, namorado de Cida, motoboy e grafiteiro, vai à mansão e, na cozinha, insiste que é mais importante que ela vá a sua apresentação em um evento de grafite do que ao noivado da patroa. Cida deixa claro nesse momento que sente-se parte da família Sarmento e que estará presente na festa nesse papel, não no de serviçal. Rodinei é enfático ao apontar seu engano: “a filha da copeira servindo a filha da madame”, acusa irritado. Mais tarde, já arrumada, Cida lamenta junto à Valda, copeira da casa, pela ausência da mãe. A personagem tem a confirmação de que Rodinei estava certo, quando, apesar da expectativa, não é chamada para a foto da família Sarmento. Triste, Cida vai ao jardim da mansão, onde conhece um jovem rico que mora no mesmo condomínio de luxo. No decorrer da trama, eles formarão um triângulo amoroso com Isadora Sarmento, jovem rica e ambiciosa que no começo quer conquistar um marido que mantenha seu padrão de vida. Após esse encontro, onde já fica sugerido o futuro envolvimento, Cida segue para o evento do namorado, onde encontra-o aos beijos com outra moça. Para se vingar, beija "o 111

primeiro que passa", por coincidência, Elano, irmão de Penha. As duas moças acabam brigando e Cida é levada para a delegacia. Ainda na festa de noivado, outra personagem importante é apresentada. Lygia (Malu Gali) é uma advogada do escritório da família e chega à festa sendo fotografada pelo marido, Ortega, contratado para cobrir o evento. Ela é apresentada pelo patrão ao novo genro como a prova de que as mulheres exageram ao dizer que não têm tempo para se cuidar. "A doutora Lygia, Humberto, além de brilhante causídica, esposa e mãe, está sempre impecável", diz. Em flashback, Lygia atrapalha-se antes de ir à festa para cuidar dos filhos, que botam fogo na cozinha ao tentar fritar um hambúrguer. Na cena, a advogada decreta: "Eu preciso de uma empregada!" Em sua casa, um apartamento localizado em um prédio popular no Borralho, Rosário prepara o café da manhã do pai. Ela está animada porque conseguiu que o buffet onde trabalha atendesse o camarim do cantor Fabian, seu ídolo. Em seu quarto, muitas fotos do cantor, inclusive um recorte quase em tamanho natural, posto em pé no centro do cômodo. O pai, Sidney, arruma-se para irem à empresa, onde ele também é cozinheiro. Já no bufê, Rosário é informada pelo patrão de que, a pedido de Dinha (Juliana Alves) sua escala foi trocada e ela não trabalhará mais no camarim. Oprimida pela hierarquia, ela não se conforma e segue escondida para o local do show. Rosário tranca Dinha no banheiro e toma seu lugar no trabalho no camarim de Fabian. Ela encontra o ídolo preparando-se para a apresentação nos bastidores e se declara. O ambiente e os enquadramentos utilizados na cena reforçam o encantamento de Rosário. Depois, no camarim, quando tenta entregar uma gravação amadora de suas músicas a Fabian, é interrompida por Dinha, que chega com seguranças e acusa Rosário de querer atentar contra o músico. É por essa acusação que Rosário é levada à polícia. Na delegacia, quando esperam para serem atendidas, as três sentem-se preteridas quando o delegado prioriza atender uma pessoa mais rica que chegara depois. Elas acusam o delegado de favorecer a "madame" e são levadas detidas. Na cela, elas compartilham suas experiências e expõem suas expectativas sobre a vida. Rosário conta do sonho de ser cantora, enquanto Cida demonstra crença em um futuro melhor. "O que é teu tá guardado", diz esperançosa. Penha, entretanto, apesar do otimismo demonstrado sobre o seu "puxadinho" mais cedo, afirma que melhorar de vida não é uma opção real. "Meu futuro é negociar dívida de cartão...eu não tenho esperança de largar essa vida de empreguete", lamenta. Rosário não se conforma e propõe um pacto em prol da mudança de vida: “Dia de empreguete, véspera de madame” é o lema. As três são liberadas pelo delegado e partem 112

esperançosas. Já em casa, Cida escreve em seu diário e acredita que o encontro com Penha e Rosário vai mudar a vida das três. O capítulo termina no dia seguinte. O "Bom dia, dona Maria" toca um sucesso de Chayene. Penha cobra do marido pelo problema com o puxadinho. Na casa de Rosário, a campainha toca e, quando abre, ela encontra Inácio Paixão, sósia de Fabian e, no futuro, seu par romântico. Além deste capítulo, remeteremos a seguir a cenas de outros episódios29 relevantes para a leitura dos sentidos conotados relativos à problematização da "classe C" na telenovela.

3.3 O MITO DAS EMPREGUETES

Cheias de Charme foi ao ar em um período de mudanças no perfil dos trabalhadores domésticos no país. Conforme o autor Filipe Miguez:

Não criamos a partir de pesquisa, até porque o intuito do produto novela não é agradar "apenas" a classe C. Temos que tentar agradar todas as classes. Na época em que criamos Cheias de Charme o trabalho doméstico vivia pela primeira vez uma situação de pleno emprego. Antes, existia mais gente querendo trabalhar em casa de família do que empregos. Naquele momento, a coisa equilibrou, as pessoas passaram a ter outras opções de trabalho dada a maior oferta de empregos e o trabalhador doméstico pela primeira vez pôde escolher e impor suas condições30.

No primeiro capítulo, Aparecida é empregada de uma casa onde sua mãe também foi funcionária e Penha trabalha para a grande antagonista das “três Marias”: a cantora Chayene. Rosário trabalha como assistente de cozinha em um bufê. Opera-se, portanto, uma diversificação do que é entendido como trabalho doméstico. Diferente das duas amigas, ela tinha pretensões artísticas desde o início da trama. Sua identificação como empregada doméstica propriamente ocorre apenas quando vai trabalhar na casa de Chayene, acreditando que isso pode ajudá-la a virar cantora e aproximar-se de Fabian. Reunidas pelo destino, as três Marias têm em comum a revolta pelos maus tratos relacionados à sua condição social e unem-se na expectativa de tornarem-se "madames". Bem integradas, as personagens não insinuam mudanças na estrutura social, mas apenas sua realização dentro de padrões predeterminados. Não existe, portanto, a luta de classes como

29 Todos disponíveis na plataforma Globoplay.. Disponível em: . 30 Conforme respostas enviadas por email para perguntas elaboradas para esta pesquisa. 113

imaginada pelos marxistas, mas insinua-se um ceticismo diante da impossibilidade de uma ruptura da classe proletária, mais próximo à visão de Weber. A distinção nos estilos de vida e os conflitos entre patroas e empregadas, ou da trabalhadora pobre e das socialites, apresentada em Cheias de Charme fica bem clara nas letras das músicas Vida de empreguete e Vida de patroete. A primeira, canta as agruras da convivência com as patroas e foi seu clipe postado na internet o estopim para o sucesso das Empreguetes:

Todo dia acordo cedo, moro longe do emprego / Quando volto do serviço, quero o meu sofá / Tá sempre cheia a condução / Eu passo pano, esfrego o chão / A outra vê defeito até onde não há / Queria ver madame aqui no meu lugar: eu ia rir de me acabar / Só vendo a patroinha aqui no meu lugar: botando a roupa pra quarar / Minha colega quis botar aplique no cabelo dela, gastou um extra que era da parcela. As filhas da patroa, a nojenta e a entojada, só sabem explorar não valem nada / Só vendo a cantora aqui no meu lugar: tirando a mesa do jantar / Levo a vida de empreguete. Eu pego às sete. Fim de semana é salto alto e ver no que vai dar / Um dia compro apartamento e viro socialite. Toda boa, vou com meu ficante viajar.

A segunda música foi gravada por Chayene como retaliação ao sucesso do clipe das Empreguetes, e apresenta a vida fútil e as queixas de uma patroa:

Vivo na dieta, comidinha light / Vou pra academia, malho meu pilates / Chamo minha turma pra tomar um chá / Só que a empreguete foi embora / A roupa tá um lixo, a comida é o ó / A casa tá que é de dar dó / Ela ganhou um aumento, eu ganho ingratidão / Essa curica é sem noção / Minha vizinha quer alguém que dê um jeito nas crianças, use uniforme e faça as compras / Só que as empreguetes não tão nem aí e ficam no mercado só de tititi / Parece até piada, é só botar um avental que a curica passa mal / Minha vida de patroa não é mole / Trabalho todo dia e ainda me chamam de madame / No fim de semana quero descansar / Cadê a folguista pra me ajudar?

A separação entre as empregadas e as patroas, em Cheias de Charme, confere características bem definidas de cada grupo e termina distinguindo as classes entre trabalhadores e proprietários a partir da premissa. Enquanto Penha, Cida e Rosário são mulheres boas e justas, somando traços como responsabilidade e caridade, as patroas Chayene e Sônia têm ojeriza ao trabalho braçal e mantém os empregados sob regimes de opressão. A figura barthesiana da vacina cabe bem a essa caracterização. As patroas encarnam o mal e todas as desvantagens do trabalho de empregadas domésticas. As tensões provenientes da falta de dinheiro para subsistência, a violência, a dificuldade de acesso aos serviços de transporte, saúde e educação são condensadas na forma de desrespeito aos direitos trabalhistas e, especialmente no caso de Cida, à recusa de aceitar a empregada como membro da família. 114

Os ricos são moradores do Condomínio Casa Grande. A referência à obra Casa Grande e Senzala demarca a separação clara entre as posições de senhor e escravo replicadas nas relações de trabalho das personagens da novela. Destacamos duas situações em que o condomínio foi utilizado para tratar de mudanças nas relações de poder entre as classes e na autoestima dos emergentes. No capítulo do dia 20 de junho, durante o casamento de Isadora e Conrado na mansão dos Sarmento, Cida surpreende aos patrões e pede demissão. Penha e Rosário chegam para buscá-la em uma limusine cor-de-rosa, na qual toca Vida de Empreguete. Cida tira e pisa no uniforme de copeira, revelando o figurino de cantora, um vestido prateado e muito brilhante. Os convidados da luxuosa festa de casamento aplaudem e dançam ao som do trio. Exatamente um mês depois foi ao ar o capítulo em que Rosário, já rica, muda-se para um apartamento de quatro quartos no condomínio com Sidney. Rosário é quem mais aproxima seu estilo de vida do de Chayene após ficar rica. Ela, inclusive, contrata Socorro, então ex-empregada da cantora piauiense. Apesar de manter seu estilo exuberante, no que diverge da vizinhança refinada, Rosário também realiza-se com a possibilidade de acesso aos mesmos privilégios dos antigos patrões. É possível remeter, em certa medida, à ideia de aburguesamento das classes proletárias quando ascendem economicamente. Ainda, o acesso a bens e o nível da renda apresentam-se por si só como chaves para a percepção de igualdade. Há também, na novela, espaço para ilustrar uma patroa boa, a qual justificadamente necessitaria de ajuda com as tarefas domésticas para dar conta do sustento dos filhos e da própria realização profissional, oferecendo boas condições de trabalho para quem emprega. Lygia representa uma classe média clássica, intermediária entre o núcleo de milionários e o núcleo "classe C". Ela é patroa, mas é ao mesmo tempo empregada de um escritório de direito. Lygia é a imagem de um perfil diferente de patroa, uma referência para as próprias Marias quando ficam ricas - Aparecida e Rosário mantém empregadas domésticas. Lygia é designada para defender Chayene da acusação de agressão feita por Penha no primeiro capítulo. Depois de conhecer a dura vida de Penha, entretanto, Lygia cria empatia pela queixosa. Em uma conversa com o marido, ela questiona se não é anacrônico contratar uma pessoa para cuidar da sua vida pessoal. No capítulo de 24 de abril, Lygia finalmente faz uma oferta de emprego a Penha: 115

É serviço completo. Não é pouco, né. Casa com criança e tal...Mas eu assino carteira, pago direitinho, faço tudo conforme a lei. Te garanto que eu sou uma patroa melhor do que a Chayene. Há tempos eu tô procurando uma parceira de confiança, Penha. E eu tô achando que pode ser você!

A harmonia é garantida pela justeza nas relações laborais e pelo trato afetuoso com os funcionários. A esse respeito, cabe mencionar a colocação de Sérgio Buarque de Holanda, para quem a cordialidade brasileira expressa-se em uma aversão a hierarquias e na tendência a transformar relações profissionais em relações de intimidade. "Nosso temperamento admite fórmulas de reverência, e até de bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais familiar". O autor destaca o uso do diminutivo, aplicado a pessoas e objetos, como reflexo de tal característica. "É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los do coração" (HOLANDA, 2003, p.148). Outra manifestação é a comum supressão do sobrenome no tratamento social. Em Cheias de Charme, podemos identificar as duas situações relacionadas a costumes de personagens pobres ou emergentes. Apesar de, no primeiro capítulo, Rosário, Cida e Penha darem seus nomes completos para o delegado, salvo em situações de formalidades jurídicas, com a audiência entre Chayene e Penha, são raros os momentos em que o sobrenome é mencionado. O rico e poderoso Ernani, entretanto, é mormente tratado com doutor Sarmento. Três personagens são nomeadas no diminutivo, Niltinho (Sérgio Malheiros), entregador de um mercado no condomínio Casa Grande, Dinha (Juliana Alves) e Gracinha (Lidi Lisboa), ambas domésticas. As personagens são interpretadas por duas atrizes e um ator negros. Além de Penha, Niltinho, Dinha e Gracinha, outras duas personagens negras também são trabalhadores não qualificados. Valda é a cozinheira da mansão dos Sarmento e Heraldo (Sérgio Menezes) é garçom. O quadro é condizente com o que Sodré já identificara nas antigas telenovelas, onde o mito da democracia racial seria utilizado para omitir a realidade de inferiorização dos negros no campo simbólico, superada pela possibilidade de "embranquecimento" (1972, p.34). Kleiton (Fábio Neppo) é o único que difere do perfil, dono de uma lan house, torna-se produtor de estúdio das Empreguetes. A referência familiar aparece aqui pela presença da avó Voleide, interpretada pela atriz branca Maria Pompeu, dona de um bar e casa de shows no Borralho. Tem-se, portanto, que Kleiton e Elano (irmão de Penha, mas de pai branco) personificam o jovem mestiço de "classe C", aquele que superará certos padrões de limitação profissional e social impostos por sua origem. 116

Finalmente, destaque-se que uma certa docilidade das relações entre senhores e escravos é um dos fatores a que Gilberto Freyre atribui a ideia de uma democracia racial brasileira a qual, como dito a respeito do Esquenta!, ampliou-se a partir das novas acepções de diversidade. Na mesma linha, pode-se dizer que a apropriação do discurso afirmativo da periferia, ou de parte dos membros da "classe C", insinuado em Cheias de Charme, ao mesmo tempo em que garante seu reconhecimento como peça de uma sociedade harmoniosa, aciona uma variedade de estereótipos os quais afastam a percepção da "classe C" identificada com valores da classe média. O mesmo contexto pode ser utilizado para pensar as imagens dos nordestinos da novela. Chayene, a "brabuleta do Piauí", é a única personagem nordestina que escapa do trabalho doméstico ou não qualificado. Lucileia, como é seu nome verdadeiro, nasceu em Sobradinho mas, apesar de explorar a raiz nordestina na sua composição de estrela da música popular, renega o passado pobre. As demais personagens piauienses, Socorro, Naldo e a mãe deles, dona Epifânia, acabam servindo à cantora. Núbia de Andrade Viana (2013) pontua a descrição das personagens rudes e do sertão piauiense como reflexos de um imaginário de subserviência do nordeste em relação ao sudeste, similar a do negro em relação ao branco. Socorro difere das Empreguetes por ter características negativas, como a desonestidade e a preguiça, similares às de Chayene. Outros sinais da semelhança entre elas é o gosto por cores espalhafatosas, os cabelos alourados e volumosos, a fala alta e a postura insolente. Algumas particularidades linguísticas do Piauí foram apropriadas nas falas das personagens, recurso que contou com a consultoria da escritora paulista Leusa Araújo. Para tratar suas empregadas, por exemplo, Chayene usa o termo regional "curica", geralmente de forma pejorativa.

3.3.1 A Família

Conforme tratado, o apresso às relações de familiaridade configura um traço distintivo atribuído ao ser brasileiro. Nas telenovelas, a maioria das tramas gira em torno desses vínculos, confirmando uma tendência da produção cultural de massa, não apenas no Brasil, mormente voltada ao público feminino. A referência mais direta nesse sentido é a soap opera norte-americana, sobre a qual mencionamos a predominância de personagens femininas e tramas sobre mulheres sozinhas, problemas no casamento e sagas familiares.

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[...] podemos dizer que a figura da mulher é percebida duplamente: primeiro, enquanto figura central do lar, portanto uma consumidora potencial; segundo, como um ser que vive um universo particularmente feminino povoado por expectativas que podem ser exploradas ficcionalmente por uma narrativa específica. A soap opera ‘vende’ e ‘fala’ para a mulher. (ORTIZ, 1989, p.21-22).

Como as antepassadas do rádio, Cheias de Charme também conta com o patrocínio de uma marca de higiene, a SC Jonhson, e sua comunicação dirige-se para as mulheres. Aqui, a possibilidade de identificação da espectadora é potencializada à medida que se apresentam diversos núcleos com marcantes diferenças nas organizações familiares. Chama a atenção o acento dado às representações da novela para modelos familiares em que a mulher é chefe de família, não havendo contestação dessa posição. Saliente-se que as mudanças nos comportamentos, a emancipação feminina e os novos papéis da mulher nas famílias e no mercado produtivo sempre interessaram às telenovelas da TV Globo:

Novelas são organizadas em torno do movimento de relações amorosas frágeis e cada vez mais volúveis. Em novelas como Irmãos coragem (1970) ou Selva de pedra (1972), sexo antes do casamento resultava em gravidez e matrimônio futuro. Ao longo dos anos, o divórcio foi legitimado (antes de legalizado), o prazer e a independência femininos também. Em geral houve uma expansão despolitizada do universo feminino e a valorização perversa de uma ideia de “mulher forte”, que, além de responsável pela família, deve trabalhar e pode almejar a satisfação amorosa. (HAMBURGER, 2011, p.75- 76).

Em Cheias de Charme, Penha é uma mulher esforçada a qual, por contingências ligadas à sua origem paupérrima, terminou responsável pela criação dos irmãos Elano e Alana. Com o marido Sandro teve Patrick e todos moram na mesma casa na favela. Aqui, a retração da figura patriarcal se dá primeiro pela ausência dos pais de Penha e, depois, pela inapetência de Sandro ao trabalho. Há anos ele usa a desculpa de uma dor nas costas para não trabalhar como pedreiro, o que faz raramente, entre um pequeno golpe e outro para conseguir dinheiro para festejar com os amigos. Órfã desde muito nova, Penha valoriza o trabalho e é responsável pelo sustento e bem-estar de toda a família. Apesar da malandragem do marido, Penha permanece casada e mantém ao máximo uma estrutura familiar tradicional. A presença de seus irmãos sugere a ampliação da família nuclear, ou um retorno à uma cultura de agregados, comuns às famílias pobres e às antigas aristocracias. Também em novelas, é comum que personagens do "núcleo rico" vivam em uma mesma mansão, independente da idade ou do estado civil dos familiares. 118

Além de Penha, Lygia, advogada bem-sucedida contratada da empresa dos Sarmentos e mãe de dois filhos, também sustenta a família e precisa conviver com os defeitos do marido, o ex-modelo e fotógrafo espanhol Alejando Ortega, o qual costuma se engraçar com as empregadas domésticas que trabalham no prédio onde moram. O casamento acaba quando Lygia flagra-o com a empregada de sua casa, de quem também dispensa os serviços. Apesar das profundas diferenças de suas vidas, Penha e Lygia têm suas trajetórias postas em relação. São dois lados complementares da emancipação feminina na sociedade brasileira. Se, para Lygia, ser chefe-de-família completa a aspiração de sucesso profissional e independência da mulher moderna, para Penha é consequência da falta de qualidade do marido, o qual não responde às obrigações do papel. Também, o espírito galanteador, ora é posto como típico do malandro carioca Sandro, ora traço do aventureiro espanhol Alejandro. Como relaciona Ismail Xavier, a crise da ordem patriarcal aparece nas leituras modernizantes da teledramaturgia- no que segue as crônicas de Nelson Rodrigues- na figura de pais incapazes ou de "[...] maridos fracos cuja mediocridade, moralismo ou paranoia arruínam a vida conjugal” (2003, p.162). O núcleo familiar de Cida é o de seus patrões, por quem foi criada após a morte da mãe, sob os cuidados da empregada doméstica Valda. A família Sarmento é a imagem típica da família tradicional rica das telenovelas, com um homem chefe-de-família, uma mulher que não tem trabalho remunerado (uma "dondoca") e duas filhas dependentes. Ernani Sarmento, descobre-se depois, é o verdadeiro pai de Cida, fruto de um relacionamento extraconjugal com a antiga empregada da casa, Dolores, remetendo ao recurso melodramático clássico da paternidade desconhecida. Some-se o caráter fabular da história de Cida, uma cinderela moderna. Como a personagem do conto de fadas, ela serve à madrasta e a suas filhas, ainda que no começo desconheça o parentesco. A ordem patriarcal, dessa maneira, aparece não apenas na forma como a família Sarmento apresenta-se, mas especialmente na influência direta das ações de Ernani sobre todas as personagens do núcleo. Quando é acusado por crimes de colarinho branco, sua esposa e filhas legítimas o acusam e abandonam, e ele recorre à Cida. Entretanto, o epicentro dos conflitos é mesmo feminino. Quando fica famosa, são a meia-irmã Isadora e a mãe, Sônia, quem tentam interferir no destino de Cida. Também Conrado, o rapaz rico que se envolve com Cida e com Isadora, indo morar também na mansão, é totalmente influenciado pela avó, a ucraniana Máslova Tilman, vivida por Aracy Balabanian. 119

A descoberta da identidade do pai e seu reconhecimento na família confere à Cida um novo status, ainda que seu pai esteja ligado à crimes e sua fortuna venha da carreira de cantora no grupo das Empreguetes. Apesar de ter sido criada na área de serviços, Cida ajuda o pai que, ao final, confirma sua vilania ao roubar e agredir a filha. Em contraposição ao bom coração e honestidade da pobre Cida, a quem a possibilidade estar próxima do pai fez superar as mágoas do passado, o rico, ambicioso e corrupto Ernani não hesita em traí-la. A terceira Maria, também órfã, foi adotada pelo cozinheiro Sidney (Daniel Dantas) quando criança. Muito desejada, criada com amor e uma consistente formação moral, Rosário é muito grata ao pai, com quem tem uma relação de cumplicidade e cuidado mútuo. No capítulo de 16 de junho, depois que Rosário vai morar com o namorado e sósia de Fabian, Inácio, Sidney relembra do companheiro, morto anos antes. A questão da homossexualidade da personagem foi tratada de forma sutil pelos autores e também pela direção e pelo ator Daniel Dantas, em uma interpretação bem distante do estridente Crô de Marcelo Novaes na novela Fina Estampa, exibida no ano anterior. Sobre Rosário e Sidney, diz Filipe Miguez:

Rosário era uma menina sonhadora, criada num orfanato, que se refugiava em seus devaneios de estrela. Era importante esse passado para justificar o fato dela ser fabianática e até se envolver com Fabian, mesmo apaixonada por Inácio. Daí foi surgindo esse pai adotivo, que seria uma espécie de mãe de miss, sonhador e apaixonado pela filha, mas ainda assim mais pé-no-chão que ela, um contraponto de sensatez à insensata Rosário. Como não havia lugar para uma mãe ali (até por economia de personagem), pensamos nesse pai gay, um gay discreto, positivo, trabalhador, excelente pai, com o coração ainda enlutado pela perda de um amor do passado. Rosário já era suficientemente "viada" para Sidney o ser também. O público adorou o personagem e torceu para ele encontrar um novo amor, o que acabou acontecendo31.

Em 2011, a novela Insensato Coração, exibida às 21 horas, já havia abordado as mudanças nas configurações familiares através dos jovens Eduardo (Rodrigo Andrade) e Hugo (Marcus Damigo). "A relação retratada culminou com um casamento gay na mesma época em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável de casais do mesmo sexo" (TONDATO, 2012, p.105). A diferença, no caso de Sidney, é que sua opção sexual jamais foi questionada ou alvo de preconceito, havendo em Rosário um atestado de que é possível haver uma família estável e com valores tradicionais formada por uma pessoa homossexual. Coincidentemente, em 2012 a justiça autorizou a primeira adoção de criança por um casal de homens.

31 Conforme respostas enviadas por email para perguntas elaboradas para esta pesquisa. 120

Em Cheias de Charme, o discurso de inclusão política implica que, mesmo fora dos padrões heteronormativos, seja mantida uma estrutura sólida aos moldes do que é pregado pelo bom senso. Complementarmente, o happy end das três Marias é garantido pelo sucesso nos palcos e também pelo casamento. Nesse sentido, note-se que todas conquistam espaço no mundo dos ricos e famosos, mas mantêm seus corações junto aos iguais. No começo da novela, Cida abandona o namorado pobre e encanta-se com um "príncipe", mas seu derradeiro amor é o batalhador Elano. Rosário, que no começo da trama era apaixonada pelo ídolo Fabian, casa-se com Inácio Paixão, mais um exemplo de batalhador. Penha se separa e ensaia um namoro com outro homem, muito rico e responsável, mas, ao final, reata com Sandro, então regenerado. Ela é, também, a única das Empreguetes que continuou morando na mesma casa de antes da fama, agora reformada e decorada com móveis caros. Diferentemente, a maioria das personagens que se apresentam ricas no primeiro capítulo mantém relações por interesse. Fica claro, por exemplo, que o noivo de Ariela Sarmento quer ascender na empresa de Ernani. Posteriormente, Isadora disputa Conrado com Cida interessada em seu dinheiro, ao qual, depois, descobre que ele não tem acesso. Chayene envolve-se com o ídolo do sertanejo universitário Fabian interessada na publicidade do relacionamento. Seu fiel escudeiro, Laércio, é seu ex-marido e companheiro desde o início da carreira no Piauí, mas mantém com ele uma relação servil.

3.3.2 O Direito ao Sucesso

O otimismo com relação ao futuro é uma das características mais relevantes atribuídas à "classe C", relacionado diretamente a sua identificação como classe média. A perspectiva de Neri, por exemplo, baseia-se na ideia de classe média como a que tem expectativas e planos para desenvolvimento futuro (2011, p.80). Ao longo do primeiro capítulo de Cheias de Charme, essa crença na superação das adversidades e na conquista de melhores condições de vida é flagrante nas três protagonistas. O pacto firmado por elas na delegacia marca claramente tal postura em que, apesar do presente tortuoso, existe a confiança no êxito vindouro. Nas palavras de Neri, "o mais relevante determinante da desigualdade e da pobreza no país é a educação". Para cada ano adicional de estudo, ele mensura um ganho médio salarial de 15% (2011, p.133, 170). 121

De modo similar, a taxa de ocupação entre os extremos do espectro educacional sobe de 60,7% para aqueles que nunca passaram de um ano de estudo, até 81,5% daqueles que já conheceram os bancos da pós-graduação. Mesmo quando comparamos pessoas com as mesmas características sócio- demográficas - como sexo, idade, raça e geografia- menos a educação: os salários dos universitários é 540% superior ao dos analfabetos e a chance de ocupação 308% maior (NERI, 2011, p.170).

Para Souza (2009), um conceito de justiça de fundo economicista está ligado à ideia de compensação por produção e desempenho. É a crença na meritocracia, pela qual define-se que o indivíduo deve ter formação para participar da competição do mercado. Assim, obscurece-se o fato de que parte das capacidades do indivíduo partem da identificação e dos exemplos e que a possibilidade de desenvolvimento e as limitações também são determinadas socialmente. Por esse viés, o campeão é quem mais se aproximou dos requisitos para o sucesso, incluindo a formação profissional, uma boa adaptação às normas e o respeito a modelos familiares. Em Cheias de Charme, entre as três protagonistas Penha é a que mais se aproximaria da classe que Souza denominou "ralé". É a única sem instrução e também a que encara o emprego doméstico com mais naturalidade, como explicitado na cena em que se apresenta ao delegado. A personagem, entretanto, reconhece a importância da educação, tanto que se esforça para possibilitar que Elano faça direito. No primeiro capítulo, Elano é apresentado ao fiscal da prefeitura como advogado, mas sua formatura ocorre apenas no episódio do dia 15 de maio: Em um auditório, muitas pessoas esperam o início da cerimônia. Penha destaca-se no centro do quadro, com vestido justo e decotado em tons fortes de azul, roxo e lilás, cores que também são predominantes, em tons mais suaves, em diversos figurantes e no cenário. O clima é de seriedade. No palco, Elano está sentado entre vários alunos, todos de beca. Ele é chamado ao púlpito como orador da turma e, no discurso, relembra o sacrifício da irmã:

Não estaríamos aqui se não fosse o apoio de nossas famílias e amigos. Eu tenho certeza que cada um dos meus colegas tem um agradecimento especial a fazer. E eu hoje aqui como representante deles gostaria de dirigir esse agradecimento a uma pessoa muito especial. A pessoa mais importante na minha vida é a pessoa mais importante nessa caminhada até aqui. Minha irmã: Maria da Penha Fragoso. [...] Nossa mãe era lavadeira e quando eu tinha nove anos e nossa irmã mais nova, Alana, só dois, nossa mãe nos deixou. Então a Penha nos pegou pra criar.

Nessa época a Penha sonhava em ser enfermeira, mas começou a trabalhar como doméstica pra dar o que comer pra gente. E nunca se queixou. Nunca deixou faltar nada. Mesmo sofrendo com patroas nem sempre tão bacanas. 122

Sofrendo com salário apertado, nunca deixou de comprar um livro pra mim. Quantas vezes eu não fiz lição de casa em caderno que ela mesma fazia pra mim com papel de pão. Penha, se eu tô aqui hoje me formando, eu devo isso a você. É com seu exemplo de ética que eu pretendo guiar meu espaço nessa profissão.

Bom, o diploma que eu recebo hoje, eu juro usar como instrumento em favor da dignidade e da justiça nas relações de trabalho. Em prol da luta pra garantir a todo brasileiro o direito e o acesso ao conhecimento. Que é um direito garantido pela nossa constituição. E pra transformar o nosso país em um Brasil mais justo. Onde uma menina como a Penha. Onde uma menina como a minha irmã não tenha que sacrificar o seu futuro. Quem vai cuidar de você agora sou eu, minha irmã. Te amo. Obrigado.

Depois de formado, Elano vai atuar com Lygia em um escritório de direito, onde é valorizado pela responsabilidade e pela disposição ao trabalho. A personagem, assim como Cida, filha de empregada doméstica, enquadrar-se-ia no que o Data Popular (2014) denominou grupo dos "batalhadores", os quais têm mais escolaridade que seus genitores e valorizam muito o esforço pessoal. Apesar da menção aos estudos como motor para a mobilidade e otimizador das expectativas de futuro, as personagens principais mudam de status de forma súbita, através da música, ocupação que em certa medida prescinde de formação institucional. Nesse caso, a popularização das tecnologias de comunicação é apresentada focalizando seu movimento de invenção de novas formas de relacionamento pessoal e de produção de valor. Cabe aqui, brevemente, uma relação com a novela de 1995 Explode Coração, de Glória Peres. Nela uma cigana apaixona-se por um milionário através de um site de bate-papo na recém inaugurada internet doméstica brasileira. Em outro contexto, o meio já era retratado como viabilizador da aproximação entre pessoas que não habitam os mesmos círculos sociais na realidade (MOTTER, 2003, p.66). Quando ainda é empregada de Chayene, Rosário e as amigas Cida e Penha gravam um clipe para a música Vida de empreguete na casa da cantora. O clipe, veiculado na internet, torna-se um grande sucesso e transforma a vida das personagens. A popularidade do clipe não deu-se apenas no universo ficcional. Em uma ação inédita, a emissora “vazou” o clipe na rede dois dias antes de sua exibição na novela e, assim, quando foi ao ar, a cena já havia sido vista quase 4 milhões de vezes na internet e figurava na lista dos trendtopics da rede social Twitter. Contribuiu com o sucesso o fato de celebridades da música e da TV terem compartilhado o vídeo. Mas o sucesso das Empreguetes não restringe-se os meios digitais. Para prosperar, elas contam com o agenciamento de Tom Bastos (Bruno Mazzeo), empresário também de 123

Chayene e Fabian. É com a ajuda dele que as cantoras conseguem gravar um CD e aparecer para o público da mídia tradicional. A percepção é de que, mesmo com as possibilidades abertas pelos novos canais de comunicação e divulgação, o sucesso deve ser validado pela integração do artista ao mainstream. A novela apresenta um programa de rádio, veículo que mantém ampla penetração e importância para a divulgação de músicas no Brasil, sendo ainda o meio de acesso mais barato de comunicação de massa. Também a televisão tem destaque na trajetória das Empreguetes, as quais participam de diversos programas exibidos na grade da própria Globo, como Esquenta!, Encontro com Fátima Bernardes, Domingão do Faustão e Caldeirão do Huck. A transição de uma produção caseira, impulsionada pela afetividade, para a indústria do entretenimento guarda semelhanças com a história de Gaby Amarantos, cantora da música de abertura da novela, "Ex-my love". No mesmo ano, ela lançou um álbum pela , selo de música ligada ao grupo Globo, pelo qual ganhou o Grammy Latino. A cantora do Pará estava em plena ascensão depois do sucesso alcançado por suas músicas produzidas e distribuídas fora das grandes gravadoras. Como, desde a década de 1990, o funk se popularizou beneficiado pela introdução da internet no país, o tecnobrega paraense conquistou grandes públicos antes de ser integrado pela indústria fonográfica. O primeiro videoclipe de sucesso de Gaby Amarantos, para a música Xirley, remete a isso. A narrativa, ressalte-se, é referência óbvia da abertura de Cheias de Charme. No clipe, dirigido pela também paraense Priscilla Brasil, registra-se a trajetória de profissionalização e glamourização da cantora. Do CD pirata, vendido em camelôs ao pendrive e daí para uma grande gravadora. Das roupas simples ao figurino vermelho e exuberante, próximo ao que as escolas de samba desfilam misturando a cultura ornamental indígena das plumas, a sensualidade e o desconforto dos espartilhos europeus e o luxo das pedrarias brilhantes. Figurino semelhante é usado pelas personagens de Cheias de Charme em suas apresentações. Como no carnaval, os sinais do que é aceito como mais brasileiro, a mistura e a exuberância das cores, a ostentação e os ritmos dançantes são abordados sob prisma que destaca o exotismo de suas imagens diante das grandes cidades do país. Apesar da atualidade da "classe C", o que a novela apresenta como popular pode não diferir muito do visto em produções remotas, como Rainha da Sucata, de Silvio de Abreu, que trazia na abertura eletrodomésticos velhos e outras sucatas dançando ao ritmo latino da 124

de Sidney Magal, na década de 1990. A Maria do Carmo de Regina Duarte, aliás, também enfrentava uma elite reacionária, representada por uma socialite falida (Glorinha Figueiroa), para alcançar a felicidade. Uma das ideias por trás do retumbante sucesso das Empreguetes é a da democratização da exposição, relacionada ao sucesso na nossa sociedade e reforçada pela internet, a possibilidade de superar os limites impostos pelo poder econômico e realizar-se na sociedade do espetáculo. Ela foi reforçada por estratégias transmidiáticas da produção. Além do site no portal digital da Globo.com, foram criadas páginas para personagens e o fã-clube online das Empreguetes. A página oficial trazia informações relacionadas à novela e incluía no conteúdo dicas de manutenção doméstica, expondo o público a que se destinava. Paralelo à exibição da novela, o dominical Fantástico promoveu o concurso “A empregada mais cheia de charme do Brasil”, ao final do qual foi escolhida uma baiana, Marilene de Jesus. Em seu perfil, publicado pelo portal G1, é destacado o fato de ela ser uma empregada alegre e bem humorada, sempre disposta a esconder os próprios problemas para não incomodar a patroa. Essa, aliás, teria sido a grande incentivadora da funcionária, inclusive emprestando suas roupas. Escolhida pelas atrizes da novela, Marilene foi premiada com uma participação em uma cena de Cheias de Charme, onde apareceu como ela mesma, mas maquiada e vestida pela equipe da novela. Na ficção e no mundo real, buscava-se reafirmar o compromisso de que todos podem ter seus 15 minutos de fama e de madame. Em tempo, mencionamos que para gravar a novela Marilene, como inúmeros trabalhadores brasileiros no período, viajou de avião pela primeira vez. 125

CONCLUSÃO

A ascensão de milhões de brasileiros para o estrato econômico da classe C na última década ampliou massiva e rapidamente o número de consumidores de bens materiais e simbólicos no Brasil. O aumento no número de aparelhos de televisão, presentes hoje em 98% dos lares, a pluralização da oferta de conteúdos e tecnologias de comunicação e o interesse dos anunciantes em atingir a "classe C" são fatores que ajudam a entender as motivações da Globo para fazer ajustes na programação. As adaptações à uma estética da “classe C” e a ampliação de personagens- ficcionais e reais- de origem na periferia ou pobre, inserem-se no funcionamento geral da televisão bem- sucedida, posto que as renovações de linguagem e o espaço para a criação, o apelo a diferentes níveis de identificação e a aproximação da dimensão ficcional da realidade são essenciais para o sucesso e a perenidade do meio (KEHL, 1986; HAMBURGER, 2005; LOPES, et al., 2011). Os mesmos atributos garantiram à telenovela o reconhecimento como gênero genuinamente brasileiro. Sua linguagem, tanto na dramaturgia quanto nos campos visual e sonoro, constituiu-se ao longo do tempo pela assimilação de outras artes e expressões sociais, desenvolvida majoritariamente pelas mentes e mãos de autores e profissionais brasileiros (MOTTER, 2004). Nesse cenário, a televisão e a telenovela são identificadas como antropofágicas. A esse respeito, mencionamos uma equiparação com o conceito de sincretismo (MORIN, 2002). A diferença essencial é a circunscrição em termos de operação da indústria cultural, afastada do sentido de uma característica atávica do brasileiro. Esta pesquisa, imersa no contexto brasileiro pela própria natureza da proposição, teve como substrato a concepção barthesiana do mito, lente pela qual buscamos analisar a construção simbólica da "classe C", investindo no diálogo com autores que tratam da comunicação de massa e do imaginário nacional. A proposta de desmontagem mítica demonstra atualidade- com adaptações que consideram a contingência histórica dos mitos- e pertinência nessas primeiras décadas do século XXI, já marcado pela proliferação e popularização das tecnologias da informação e do comércio de entretenimento. Mesmo nesse cenário, a concentração das empresas de comunicação em poucos grupos de poder mantém uma quase omnipresença de suas produções e visões de mundo nos lares brasileiros. Quando ganha visibilidade espetacular, a "classe C" é apresentada por esse filtro. Rememorando Barthes (2013a) quando diz que ao pequeno burguês é impossível 126

imaginar o outro, põe-se que a imagem da "classe C" foi construída, e continua o sendo, a partir da sua negação parcial e de uma assimilação que passa pela transformação em uma versão do que o "brasileiro médio" acredita de si.

Quando se fala do 'brasileiro' em geral, do 'jovem', da 'mulher', do 'caráter nacional', do 'jeitinho brasileiro' etc., é para se dar a impressão de que o 'brasileiro', o 'jovem', ou a 'mulher' da classe média, por exemplo, teria algo a ver, ainda que remotamente, com o brasileiro das classes baixas (SOUZA, 2011).

Como visto no primeiro capítulo, desde o passado colonial, as tentativas de comprovar a existência de uma cultura autóctone, de promover a unificação simbólica do território, passam pelo reconhecimento da mistura de raças e culturas como traço de identificação. As mitificações em torno de um ser brasileiro -nelas incluídas a democracia racial, a supervalorização da família e das relações pessoais e o patrimonialismo hereditário- úteis a programas de unificação nacional no passado- e estereótipos de classe foram reformatados para contar a existência de uma nova classe, cuja eminência em todo o território, por fim, superaria as diferenças regionais, sexuais e raciais. Considere-se que são atribuídos valores aos membros da “classe C” que não contribuem diretamente para a individuação de classe. Entretanto, na medida que se reconheça a transferência de poder para os meios de comunicação, estes pressionam em algum nível o processo de identificação dos sujeitos, a expressão de potências e carências, mas sem contribuir necessariamente para sua autonomia. "Tipologias e classificações não explicam ou respondem questões sobre inclusão e inserção, valores, identidade e autoestima" (TONDATO, 2011, p.115). A recente mobilidade econômica relaciona-se com a disputa de projetos políticos que dinamizaram as relações entre classes no país. Nesse sentido, o mito da "classe C" e o reconhecimento de uma "nova classe média" corroboram com o deslocamento do discurso de poder a novos grupos e representantes. Pode-se conceber que, quando abre espaço para o universo "popular" pela ótica da diversidade e valoriza explicitamente tal feito, a televisão, e os profissionais da comunicação de massas, tomam o papel de gestores da identificação simbólica de um grupo até então delimitado apenas em termos economicistas. Como citado no capítulo 3: "Ideal de nacionalidade substituído pelo da diversidade. A periferia engloba todos os temas e grupos que em outro espaço seria descartado" (ROCHA, 2013). 127

Ídolos da música e do futebol são referências para a "nova classe média" como ideais de ascensão e aceitação social pela capacidade de consumo. As estrelas tornaram-se modelos, cada vez mais, atingíveis. Essas figuras, sobre quem se flexibiliza a tolerância a comportamentos fora dos padrões tradicionais da classe alta, servem também para diluir as diferenças culturais e naturalizar a ideia de que, independente da sua origem, com dinheiro é possível assumir uma posição de visibilidade e poder. Sempre existiram, afinal, milionários excêntricos. Em Cheias de Charme a alegoria mantém imagens do pobre como expressão do ser brasileiro cordial, alegre e permeável. As protagonistas, ressalte-se, não são pobres e nem "nova classe média", mas novas ricas, ideais de realização das aspirações da maioria das pessoas (lembremos que a classe A, com renda média familiar de R$20.272, 56, soma apenas 2,7% dos cidadãos brasileiros, segundo o Critério Brasil 2015), mas adornadas e munidas com os figurinos e padrões de comportamento esperados dos, insolitamente exóticos, brasileiros humildes. A história das “empreguetes” que alcançam o sucesso na música é permeada de subtemas relacionados às transformações recentes do país, como o empreendedorismo, o acesso à educação superior, o aumento de lares liderados por mulheres, a migração interna, a cultura popular, o impacto do maior acesso às tecnologias da informação, a homossexualidade, a valorização da juventude e do sucesso etc. A ênfase em temas ligados ao universo feminino e o papel das protagonistas remetem ao momento de fortalecimento da imagem da mulher como agente ativo da sociedade, não dependente de uma autoridade masculina como fez-se crer outrora. Ao mesmo tempo, a própria forma da telenovela, em sua descendência da soap-opera e da rádio novela, é historicamente marcada pelas situações tidas como de interesse feminino (ORTIZ, 1989). Cida e Elano personificam os jovens da "classe C" para quem a educação é destacadamente viabilizador da ascensão, e suas construções seguem a lógica de aburguesamento de costumes. Fora o interesse nos estudos, outro traço distintivo dos dois é falarem mais baixo, serem mais discretos e ponderados que a maioria das personagens da "classe C" da trama. Preserva-se assim a ideia de um sentido evolutivo do primitivo ao culto, do caótico ao ordenado, do corpo à razão, do pobre ao rico. A crença em tal ordenamento inescapável promove uma inferiorização simbólica da cultura e das práticas da população menos instruída e abastada- supostamente a mais próxima do estereótipo do brasileiro- ao mesmo tempo em que omite as circunstâncias históricas das desigualdades nas oportunidades de vida e do acesso à aclamada cidadania para grande parte 128

da população que ainda se mantém à parte da educação formal. A classe é assumida como um dado mensurável e definido, afastando qualquer sentido que a relacione à luta de classes pela desigualdade de propriedade. Não coube a este trabalho aprofundar-se nos conceitos de classes sociais e classe média, mas apresentar uma introdução sobre os temas a partir de alguns marcos teóricos pertinentes. Segundo a linha marxista, as classes são históricas, construídas no processo da luta de classes na disputa pelos meios de produção e, consequentemente, pelo poder. É a luta de classes que pressiona o caminho da classe em si, definida pela posse ou não de capital, à classe para si, fruto da consciência de classe. Entre proletários e capitalistas formam-se apenas frações de classe provisórias, e estas tenderiam sempre à proletarização no momento da luta de classes (RIDENTI, 2001; TUMIN, 1970). Embora reconheça a organização sindical e partidária, Marx (2008) defendia que a consciência de classes só poderia ocorrer no interior da própria classe. O agrupamento não poderia ser imposto ou ensinado, mas fruto da reflexão individual e coletiva sobre a desigualdade no capitalismo. Thompson influencia os marxistas brasileiros especialmente na época da reorganização dos sindicatos, nas décadas de 1970 e 1980. Como sublinha, a consciência de classe é a manifestação cultural das experiências de classe e expressa-se nos sistemas de valores, tradições e instituições. Ele nega a ideia das classes como estruturas fixas e reforça sua impossibilidade fora do contexto da luta de classes dada sua natureza histórica. "Não podemos ter amor sem amantes" (1987, p.9). Nisso, apesar de afirmar de antemão que não se trata de uma classe no sentido sociológico, as considerações de Marcelo Neri sobre uma "nova classe média", e o próprio uso de tal expressão dão sugestões de como se organiza e naturaliza a desigualdade no Brasil. Quando afirma que "Lula é a nova classe média" (NERI, 2011), a imagem do ex-presidente, e junto a do seu partido, reafirmam um vínculo simbólico com os "batalhadores" (SOUZA, 2012) e, ao mesmo tempo, lembra a existência de uma grande parte da população aquém da expectativa de sucesso, a quem caberia ao Estado garantir tal oportunidade. Se, por um lado, a alcunha de “nova classe média” pode virtualmente aumentar o orgulho da população das periferias quanto a seu status, por outro dá indícios de ter contribuído para radicalizar um limite simbólico entre a classe média “tradicional” e os novos integrantes desse estrato da pirâmide. Márcio Pochmann (2014) é um dos autores a sustentar que tal denominação não reflete apropriadamente o resultado da mobilidade registrada 129

recentemente no país. Para ele, no lugar de “nova classe média”, trata-se de uma “nova classe trabalhadora” (2012). Passado o entusiasmo causado pela ampliação acelerada da população "economicamente relevante" do país, os últimos três anos foram marcados por discussões e mobilizações, ressaltando-se os gigantescos protestos iniciados por questões do transporte urbano. Chegamos a 2016 com o cenário agravado pelos resultados parciais de investigações de corrupção e por uma ruptura institucional entre os Três Poderes, que passaram a disputar publicamente os rumos políticos do país. O descrédito da população nas representações partidárias, entretanto, culminaram com a aparente identificação da corrupção, um tema historicamente recorrente nas iniciativas de pensar os problemas brasileiros e o Estado, como uma vilania, se não isolada, concentrada e agravada por um único grupo de poder, uma vacina para os males institucionais. Encampadas majoritariamente por pessoas com alta escolarização e renda, as manifestações a favor ou contra o impedimento de Dilma Roussef parecem não ter agregado da mesma maneira a "classe C" das empregadas domésticas e dos funkeiros, a mesma cujo presente e destino é pivô de muitos debates dos militantes. Para Renato Meirelles, a "classe C" percebe os conflitos como uma disputa entre dois grupos da elite e, desacreditada de toda classe política, não haveria a adesão a nenhuma solução ideal. Segundo ele, mesmo as manifestações acompanhadas por movimentos sociais como os sem-terra e os sem-teto têm pautas que não conversam com o brasileiro das classes C e D (LIRIO, 2016). Caberia aqui uma referência à figura barthesiana da tautologia, quando a faculdade de escolha é apenas aparente, o que a população da "classe C" parece reconhecer. No dia 13 de maio deste ano, a imagem da babá Maria Angélica Lima indo à manifestação de uniforme branco e empurrando o carrinho do filho dos patrões, que andam à sua frente com camisetas de futebol verde-amarelas, gerou polêmica e foi usada como exemplo da opressão ainda sofrida pelas empregadas domésticas e pela população pobre em geral em relação a uma elite que lutaria para manter seus privilégios. Em declaração em vídeo ao jornal Extra 32 ela mostrou-se chateada pela exposição e, apesar de não ser contra a manifestação, recusou a ideia de que uma troca de presidente pudesse melhorar alguma coisa para os pobres. Ao mesmo tempo, nas periferias, destacam-se as manifestações em torno de direitos e serviços básicos, incluindo apelos por cidadania através da visibilidade das questões de

32 Versão digital, 14 mar. 2016. Disponível em: < http://extra.globo.com/videos/v/baba-da-foto-viral-comenta- repercussao-apos-manifestacoes/4883891/>. 130

grupos em vulnerabilidade de cunho étnico, sexual, econômico ou social. Recentemente, a ocupação de escolas por estudantes do ensino médio das redes públicas estaduais de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e outros estados, muitos enquadrados no que se rotularia como "classe C", demonstraram que, apesar dos avanços, a mensalidade das escolas privadas ainda não é o principal problema da estrutura educacional no país, como poderia fazer crer uma concepção de medianização da sociedade. A pertinência de abordar tais acontecimentos atuais no momento da conclusão desta pesquisa que trata da televisão remete, além da latente relação com a "classe C", à uma preocupação em relação à ação da mídia para interferir nas decisões da esfera política, expressa por pesquisadores e programas de pós-graduação e pesquisa em comunicação de todo o país nos últimos meses. O portal brasileiro do jornal El País, traçou um perfil digital dos manifestantes dos dias 13 (contrários à chefe do Executivo) e 18 de março (a favor da continuação do mandato) a partir de suas ações no meio digital, como a confirmação nos eventos no Facebook e interação com textos de páginas selecionadas. Segundo o levantamento, de maneira geral, a imprensa tradicional é mais acompanhada pelos manifestantes a favor do impedimento (RIBEIRO; CHALOM; ALMEIDA; ORTELLADO, p. 2016, p.2). No último ano, segundo o Critério Brasil, as classe C1 e C2 mantiveram praticamente a mesma participação no total da população, havendo um pequeno aumento percentual das classes D e E. O atual estado das coisas, o pessimismo aparentemente generalizado em relação ao país, encerram a imagem do “país da classe média”, aquela definida essencialmente por sua fé na prosperidade. Porém, se o acelerado ritmo da economia pode dar sinais de regressão da "classe C", na música, no cinema e na televisão sua presença até agora é relevante. Observando as telenovelas recentes da TV Globo, nota-se a persistência em tramas com alusões à “classe C”, às favelas e ao Brasil contemporâneo. Em 2015, I love Paraisópolis, de Alcides Nogueira, ambientada em São Paulo, e Babilônia, de Gilberto Braga, passada no Rio de Janeiro, foram batizadas com os nomes das favelas onde moravam suas protagonistas, vividas respectivamente por Bruna Marquezine e Camila Pitanga. Também a novela A regra do jogo, de João Emanuel Carneiro, que substituiu Babilônia no horário das 21 horas, concentrava as personagens centrais em uma favela fictícia no Rio de Janeiro. Ocorreram mudanças nas direções de núcleo da TV Globo, com Silvio de Abreu e Guel Arraes no comando das produções ficcionais diárias e semanais. Apesar do fim definitivo de A grande família e Tapas e beijos, o seriado Chapa quente, criado por Cláudio 131

Paiva, constituiu a permanência da periferia na faixa de series da emissora. O Esquenta! , destacado programa relacionado à visibilidade da "classe C", porém, foi retirado da grade no final de 2015. Em 2016, ano de muitas movimentações na esfera política nacional, a Globo voltou a investir em tramas imbuídas de um certo "espírito fundador da nação". Enquanto Êta mundo bom!, de Walcir Carrasco, e Velho Chico, de Benedito Ruy Barbosa, tratam de maneiras bastante distintas de um Brasil arcaico e ligado ao ambiente rural, Liberdade, Liberdade, escrita por Mário Teixeira, relembra a Inconfidência Mineira em uma trama ficcional sobre uma filha perdida de Tiradentes. No ano anterior, a Globo Filmes lançou Que horas ela volta?, de Anna Muylaerte, que trouxe Regina Casé, figura recorrente em produções de cunho popular na televisão, no papel de Val, uma empregada doméstica e retirante nordestina que percebe a situação de exploração em que vive a partir da chegada da filha. Esta se muda para São Paulo a fim de fazer um exame vestibular, no que é aprovada. O filme é mais uma amostra de como as empregadas domésticas tornaram-se símbolo da luta de classes e de recentes mudanças do país. A "PEC das domésticas", que estendeu os direitos já válidos para a maioria dos trabalhadores com carteira assinada aos profissionais domésticos foi sancionada apenas em 2015. Outro exemplo, de 2013, é o documentário independente Domésticas, de Gabriel Mascaro, que retrata o cotidiano de sete empregadas domésticas através dos registros dos filhos dos patrões. Em um caso ou em outro, apesar das narrativas simpáticas às trabalhadoras, predomina uma visão externa do tema. Cabe destacar ainda que já foi anunciada a produção de um longa-metragem sobre as Empreguetes de Cheias de Charme, ainda sem previsão de estreia. É desejável que a relativa visibilidade dada às demandas e expectativas da classe trabalhadora e da população das periferias das cidades e do país seja mantida ou ampliada, ainda que confirme-se a retração do seu poder aquisitivo. Caberia, nesse sentido, atentar para as produções simbólicas oriundas da própria população. A expressividade possibilitada pelo acesso à educação e à tecnologia, espera-se, é irreversível. Considerando as recentes mudanças no cenário político brasileiro, será importante observar de que maneira e com que intensidade as medidas do Poder Executivo anunciadas pelo governo interino (entre elas a interrupção de pastas relacionadas aos direitos humanos, à diversidade e à cultura, frutos de diferentes governos pós-redemocratização, além da ausência de mulheres no comando de ministérios) irão refletir na forma de estruturação social no Brasil, especialmente em relação aos grupos mais vulneráveis. 132

Pela perspectiva da indústria cultural, a cultura da periferia tendeu a ser organizada sob a alcunha “classe C”, enevoando a percepção das movimentações sociais, políticas e artísticas presentes nesses ambientes. Entretanto, mesmo assumindo o mito como constituído a partir dos ideais do status quo, não é possível negar que há diferenças de penetração nos diferentes subgrupos. Virtualmente, uma abordagem semiológica de produções, quem sabe ficcionais, feitas por pessoas das periferias ou identificadas como "Classe C" poderia demonstrar como, no movimento da autoconstrução simbólica, a doxa, ou o senso comum, alimentou a autoimagem e as expectativas da classe trabalhadora, essa sim antropofágica.

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