UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação Física

PRISCILA AUGUSTA FERREIRA CAMPOS

AS FORMAS DE USO E APROPRIAÇÃO DO ESTÁDIO MINEIRÃO APÓS A REFORMA

CAMPINAS

2016 Priscila Augusta Ferreira Campos

AS FORMAS DE USO E APROPRIAÇÃO DO ESTÁDIO MINEIRÃO APÓS A REFORMA

Tese apresentada à Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Educação Física, na área de Educação Física e Sociedade.

Orientadora: Profa Dra Silvia Cristina Franco Amaral

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA PRISCILA AUGUSTA FERREIRA CAMPOS, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. SILVIA CRISTINA FRANCO AMARAL.

CAMPINAS 2016

FOLHA DE APROVAÇÃO

COMISSÃO EXAMINADORA

Profa. Dra. Silvia Cristina Franco Amaral (orientadora)

Profa. Dra. Arlete Moyses Rodrigues

Prof. Dr. Gilmar Mascarenhas de Jesus

Profa. Dra. Simone Aparecida Rechia

Prof. Dr. Sérgio Settani Giglio

A ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de vida acadêmica da aluna.

AGRADECIMENTOS

Neste momento especial, de fechamento de mais um ciclo, gostaria de agradecer as pessoas que, de algum modo, estiveram presentes nesta caminhada.

A Deus e a Nossa Senhora, por estarem sempre presentes guiando os meus passos e me trazendo coisas boas. A CAPES, pela concessão das bolsas de Doutorado e Doutorado Sanduiche. A minha orientadora, Profa. Dra. Silvia Cristina Franco Amaral, pela acolhida e sabedoria na condução deste processo. Ao meu coorientador no exterior, Prof. Dr. Horacio Capel, por me receber em seu grupo Geocrítica. Aos membros da banca avaliadora, Profa. Dra. Arlete Rodrigues, Prof. Dr. Gilmar Mascarenhas, Prof. Dr. Sergio Giglio e Profa. Dra. Simone Rechia, por aceitarem o convite e pelas preciosas contribuições acadêmicas propiciadas por esse encontro. A Minas Arena, em nome da equipe de Sandro Teatini, por terem me concedido o apoio logístico para a realização desta pesquisa. Ao Grupo de Estudo e Pesquisa em Políticas Públicas e Lazer (GEPL), pelo apoio e trocas de conhecimento. Ao Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT), pelos ensinamentos, aprendizagens e amizades ao longo dessa jornada acadêmica. Ao André Pereira e Matheus Cruz, meu braço direito e esquerdo, por terem me ajudado na coleta de dados e pela seriedade com a qual fizeram. Ao meu pai, Paulo, e a minha mãe, Edna, por mais uma vez estarem ao meu lado, apoiando nas minhas decisões e incentivando os meus passos. Muitíssimo obrigada. As minhas irmãs Jéssica e Alice, pela compreensão, paciência e carinho. Às minhas mascotas Luli, Safira e Ferrugem, pelo aconchego e pela companhia. Ao meu marido, Silvio, pelo amor, confiança, cumplicidade e boas risadas. Aos Amigos de , Eva e Magno, Camila e Rafael, Nirvana, Azucena e Maria Victoria, pela amizade e pelas histórias compartilhadas. A D. Maria Júlia, por, em Campinas, fazer-me sentir em casa. A Vânia, pela amizade e ajuda ao longo dessa caminhada. À Cândida, pelo carinho e pela delicadeza pelos quais mostra os lados da mesma situação. A Simone Malfatti, secretária da Pós-Graduação da FEF, pela sua educação e profissionalismo. Ao Thiago Costa e a Luíza Macedo pelas conversas e pela paciência. Ao Sr. Lima, pelo minucioso trabalho de revisão. Aos meus familiares, pelo apoio e pela confiança. E, em especial, aos usuários e às usuárias do Mineirão que se prontificaram a ser voluntários e voluntárias da pesquisa. Sem vocês, este trabalho não seria possível.

Quem disse que eu me mudei?

Não importa que a tenham demolido: A gente continua morando na velha casa Em que nasceu.

Mário Quintana

RESUMO

O estádio é um dos espaços que reflete as mudanças sociais em um determinado tempo-espaço, sendo por elas atingido e, ao mesmo tempo, influenciando-as. A Copa do Mundo de 2014 trouxe a promessa de mudanças nas formas de uso e de apropriação de alguns estádios brasileiros, já que estes foram reformados e reformulados para este megaevento. O estádio Mineirão, situado em Belo Horizonte/MG foi um dos que passou por este processo. Este trabalho analisou as formas de uso e de apropriação do Mineirão, em dia com e sem jogos de futebol. Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo exploratório-descritiva. A coleta de dados foi realizada no interior do estádio e no seu entorno, de dezembro de 2012 a dezembro de 2014. Para a coleta de informação, foram utilizados observação participante, formulário semiaberto e entrevista semiestruturada. Os resultados indicam que a esplanada passou a ser uma opção de equipamento de lazer em Belo Horizonte, para os moradores das regionais vizinhas Pampulha, em uma cidade que apresenta uma distribuição desigual desses equipamentos. As principais práticas realizadas na esplanada são skate, patins, caminhada e brincadeiras infantis. A legitimação do espaço é percebida pela sua ocupação, tanto durante a semana, quanto nos finais de semana. No uso do estádio para o futebol foi onde se viu o maior impacto da parceria público-privada, já que o estádio passou a operar dentro de uma lógica empresarial. Nessa reformulação, percebemos que os administradores do estádio e do clube/cliente fizeram a opção por um grupo de torcedores que, além de deter o capital financeiro para a aquisição do ingresso, devem incorporar os hábitos sugeridos por e para uma nova ordem do futebol. Os dados demonstraram que os torcedores têm um sentimento dúbio em relação à reforma do Mineirão, pois, ao mesmo tempo em que reconhecem as melhorias em termos de conforto, limpeza e segurança, sentem falta dos hábitos que constituíram a tradição do Mineirão, entre eles, se reunir nos barraqueiros, conversar e comer o feijão tropeiro. Em função dessa ausência, vários torcedores resistem e reinventam essa prática, via churrasquinho organizado em pequenos grupos ao redor do estádio, em momentos anteriores às partidas. Assim, verificamos que, se o processo de constituição das formas de uso e apropriação do espaço é dinâmico e o lazer, relacionado à cidade, contribui para a sua dimensão pública. Deveria haver uma política setorial de lazer, que levasse em consideração a diminuição das barreiras para a sua vivência, a ampliação dos seus conteúdos e o reconhecimento do seu caráter de mobilização e participação cultural. Por fim, creio que essa pesquisa se junta a outras que vêm tratando os estádios enquanto importantes espaços e equipamentos para as cidades.

Palavras-chave: estádio, futebol, lazer, espaço urbano, apropriação. ABSTRACT

The is one of the spaces that reflect social changes in a given time-space, being hit by them, and at the same time influencing them. The World Cup 2014 brought the promise of changes in usage and appropriation of some Brazilian , as they have been refurbished and redesigned for this mega event. The Mineirão stadium, located in Belo Horizonte/MG was the one who went through this process. This study analyzed the usage and appropriation of Mineirão, with and without scheduled football games. It is a qualitative exploratory descriptive research. Data collection took place inside the stadium and its surroundings, from December 2012 to December 2014. To collect the information we used participant observation, semi-open and semi-structured interview form. The results indicate the promenade has become a leisure tool in Belo Horizonte, for the residents of neighboring regional Pampulha, which has an uneven distribution of such resources. The main practices taking place are skateboarding, rollerblading, jogging and children's games. The legitimacy of the space is perceived by its occupation on both weekdays and on weekends. Using the stadium for football games was where we saw the greatest impact of public-private partnership, since the stadium started to operate within a business logic. In this reformulation, we realize stadium administrators and club / customer chose a group of fans who have the financial capital to purchase the ticket. In addition, they must incorporate the habits suggested by and for a new order of football. The data demonstrated that the fans have a dubious feeling about the reform of the Mineirão because while recognizing the improvements in terms of comfort, cleanliness and safety, they miss the traditional habits of this stadium, including, get together in the food tends, talk and eat Feijão Tropeiro. Due to this absence, several fans resist and reinvent this practice through the barbecue organized in small groups around the stadium moments before the games. Thus, we find the process of constitution of usage and appropriation of space is dynamic. Leisure embodied in the city contributes to its public dimension. There should be a leisure policy which takes into account the reduction of barriers to citizens experience, the expansion of its content and the recognition of its mobilization character and cultural participation. Finally, I believe this research joins others that have been treating the stadiums as important spaces and tools to the cities.

Key-words: stadium, football, leisure, urban space, appropriation.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

1. Lista de figuras

Figura 1 – Vista área do Mineirão antes da reforma (acima) e após a reforma (abaixo) ...... 29 Figura 2 – Desenho esquemático das situações de pesquisa ...... 36 Figura 3 – Desenho esquemático dos locais de pesquisa dentro do Mineirão. Em colorido estão os setores da arquibancada e, em branco, a Esplanada ...... 41 Figura 4 – Plano esquemático dos locais de pesquisa tendo como destaque a Praça Alfredo Camarate ...... 42 Figura 5 – Delimitação do espaço reservado para a pesquisa na esplanada ...... 43 Figura 6 – Planta da Cidade de Minas, com destaque para a região urbana e interesses de lazer ...... 51 Figura 7 – Mancha urbana de Belo Horizonte ...... 64 Figura 8 – Croqui do projeto para o Complexo Arquitetônico da Pampulha ...... 69 Figura 9 – Mapa de acesso ao Mineirão ...... 82 Figura 10 – Imagem da construção do Mineirão na década de 1960, com a presença de trabalhadores ...... 85 Figura 11 – Esquema da divisão interna e portões de acesso ...... 87 Figura 12 – Dia da inauguração do Mineirão ...... 89 Figura 13 – Cartão postal de Belo Horizonte ...... 91 Figura 14 – Acesso e divisão do Mineirão entre atleticanos e cruzeirenses ...... 99 Figura 15 – Divisão da arquibancada do Mineirão antes da reforma, em dia de clássico, na década de 1990 ...... 99 Figura 16 – Reforma do Mineirão ...... 137 Figura 17 – Cercamento e gradeamento do Mineirão após a reforma, vista da Entrada Sul ...... 146 Figura 18 – Vista da Esplanada e das pracinhas, tendo a Lagoa da Pampulha ao fundo ...... 147 Figura 19 – Câmeras de vídeo-vigilância na esplanada ...... 148 Figura 20 – Distribuição de Belo Horizonte por regionais ...... 159 Figura 21 – Iluminação noturna da esplanada ...... 173 Figura 22 – Estratégias para se proteger do sol na esplanada ...... 176 Figura 23 – Esplanada no final de semana ...... 177 Figura 24 – Acesso restrito à esplanada do Complexo Mineirão ...... 185 Figura 25 – Desenho esquemático da Esplanada e Portões do Mineirão ...... 188 Figura 26 – Atividades realizadas pelas crianças na Esplanada ...... 189 Figura 27 – Editorial de moda no Mineirão ...... 198 Figura 28 – A borda do banco de cimento utilizado pelos skatistas ...... 205

Figura 29 – Mídia especializada em skate produzida no Mineirão ...... 207 Figura 30 – Reconhecimento do Mineirão enquanto pico do skate ...... 208 Figura 31 – Sociabilidade skatistas nas pracinhas da Esplanada ...... 209 Figura 32 – Concorrência entre estádios ...... 237 Figura 33 – Informativo exibido antes do jogo nas televisões internas do estádio ...... 238 Figura 34 – Certificados de qualidade do Mineirão ...... 238 Figura 35 – Aviso sobre as normas de utilização do Complexo Mineirão ...... 240 Figura 36 – Em busca de anunciantes ...... 242 Figura 37 – Cartaz de divulgação da nova linha de ônibus que atende ao Mineirão em dias de jogo ...... 262 Figura 38 – Crítica ao tropeiro ...... 267 Figura 39 – Bares e restaurantes no entorno do Mineirão ...... 277 Figura 40 – Comércio ambulante de alimentos no entorno do Mineirão 277 Figura 41 – Confraternização dos torcedores próximos ao Mineirão ..... 278 Figura 42 – Visão parcial da praça Alfredo Camarati e os torcedores reunidos na sombra ...... 280 Figura 43 – Confraternização dos torcedores na Praça ...... 281 Figura 44 – Super-estrutura do churrasco na praça ...... 282 Figura 45 – Preparação da esplanada para o clássico ...... 289

2. Lista de quadros

Quadro 1 – Parceiros comerciais Copa do Mundo da FIFA 1982-2014 . 117 Quadro 2 – Outras possibilidades de usos do Mineirão ...... 168

3. Lista de gráficos

Gráfico 1 – Média da composição da receita do Mineirão entre 1997- 2001(%) ...... 132 Gráfico 2 – Regional de moradia na situação Futebol (n = 185) ...... 160 Gráfico 3 – Regional de moradia na situação Esplanada (n = 81) ...... 160 Gráfico 4 – Regional de moradia por situação de pesquisa ...... 161 Gráfico 5 – Aspectos positivos da reforma do Mineirão para os usuários da esplanada (%) ...... 180 Gráfico 6 – Aspectos positivos da reforma do Mineirão (%) – Situação Futebol ...... 252 Gráfico 7 – Aspectos negativos da reforma do Mineirão ...... 260 Gráfico 8 – O que os torcedores sentem falta do Mineirão antes da reforma (%) ...... 270

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Quantidade de formulário aplicado por situação de pesquisa ... 154 Tabela 2 – Sexo do participante por situação de pesquisa ...... 154 Tabela 3 – Faixa etária dos usuários por situação de pesquisa ...... 155 Tabela 4 – Escolaridade dos participantes por situação pesquisada ...... 155 Tabela 5 – Renda individual dos participantes (SM) por situação pesquisada ...... 156 Tabela 6 – Região de moradia dos não procedentes de Belo Horizonte por situação pesquisada ...... 158 Tabela 7 – Distribuição de moradia das mulheres torcedoras pelas regionais de Belo Horizonte ...... 162 Tabela 8 – Frequência e formas de uso do Mineirão por situação de pesquisa antes da reforma do estádio ...... 167 Tabela 9 – Frequência e formas de uso do Mineirão por situação de pesquisa ...... 169

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABAEM Associação dos Barraqueiros do Entorno do Mineirão ADEMG Administração do Estádio Minas Gerais CEMIG Companhia Energética de Minas Gerais CEU Centro Esportivo Universitário COEP Comitê de Ética em Pesquisa COL Comitê Organizador Local CONMEBOL Confederação Sul-Americana de Futebol FIFA Fédération Internationale de Football Association GEFuT Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas IAPC Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários INPS Instituto Nacional de Previdência Social PPP Parceria Público-Privada PSD Partido Social Democrático RMBH Região Metropolitana de Belo Horizonte S.M. Salário mínimo SPSS Statistican Package for Social Sciences UDN União Democrática Nacional UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

SUMÁRIO

PREÂMBULO ...... 18

1 CONSTRUINDO O PROBLEMA ...... 21 1.1 Objetivo ...... 30 1.2 Objetivos específicos ...... 30 1.3 Justificativas ...... 30 1.4 O todo e as partes ...... 34 1.4.1 As situações de realização da pesquisa ...... 35 1.4.2 Sujeitos da pesquisa ...... 36 1.4.3 Instrumentos de pesquisa ...... 37 1.4.4 Duração do trabalho de campo ...... 39 1.4.5 Locais e procedimentos de coleta de informação ...... 39 1.4.6 Análise dos dados ...... 43 1.5 Estrutura do texto ...... 44

2 CONSTRUÍNDO A CIDADE, O BAIRRO E O ESTÁDIO ...... 46 2.1 Da capital idealizada à capital real ...... 48 2.1.1 O futebol como agente indutor da produção do espaço urbano ...... 55 2.2 A construção da Pampulha ...... 61 2.2.1 A Pampulha Velha ...... 65 2.2.2 A Pampulha planejada para ser o novo locus da modernidade da capital ...... 66 2.2.3 Usos de lazer na Pampulha ...... 70 2.3 Os meandros da construção de um grande estádio ...... 77 2.3.1 O Mineirão como um dos símbolos do desenvolvimento e modernização de Belo Horizonte ...... 85 3 DOS USOS E APROPRIAÇÕES ANTES DA REFORMA AO PROCESSO DE REFORMA/REFORMULAÇÃO DO MINEIRÃO ..... 93 3.1 Entre usos e apropriações – as experiências no Mineirão antes da reforma ...... 94 3.2 A transformação do futebol e dos estádios em um vantajoso negócio ...... 106 3.3 A Copa do Mundo de Futebol (da FIFA) ...... 114 3.3.1 Os estádios de futebol “padrão FIFA” ...... 123 3.4 Belo Horizonte na Copa de 2014 e as transformações do Mineirão ...... 127

4 USOS E APROPRIAÇÕES DO MINEIRÃO PÓS-REFORMA – (RE)CONHECENDO O ESPAÇO E OS SUJEITOS DA PESQUISA 142 4.1 O estádio após a reforma – (re)conhecendo o espaço 143 4.2 O perfil dos usuários do Mineirão 153 4.3 Descrição das formas de uso e apropriações do espaço 167

5 PARA ALÉM DO FUTEBOL – USOS E APROPRIAÇÃO DO MINEIRÃO NA SITUAÇÃO ESPLANADA ...... 172 5.1 O funcionamento da esplanada ...... 172 5.2 As atividades realizadas ...... 187 5.2.1 Espaço de brincar ...... 188 5.2.2 Gosto da Lagoa... mas venho caminhar no Mineirão ...... 192 5.2.3 Tomada 1... gravando! ...... 197 5.2.4 Pico do skate ...... 200 5.2.5 Seja bem-vindo/a e vamos patinar! ...... 214 5.3 Um caminho a melhorar ...... 223

6 MINHA SEGUNDA CASA: USOS E APROPRIAÇÕES DO MINEIRÃO PÓS-REFORMA PELOS TORCEDORES E TORCEDORAS ...... 231 6.1 A logística de funcionamento do Mineirão pós-reforma em dias de jogo ...... 231 6.2 A reformulação do Mineirão ...... 242 6.3 Percepções dos torcedores sobre a reforma do Mineirão ...... 251 6.4 O churrasquinho no entorno do estádio – nova forma de apropriação ...... 278 6.5 Domingo de clássico ...... 285

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 291 REFERÊNCIAS ...... 296 APÊNDICE A ...... 309 APÊNDICE B ...... 311

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PREÂMBULO

Gostaria, primeiramente, por meio de um breve memorial, relatar a trajetória que me fez me interessar pelo estádio de futebol como tema de pesquisa. Assumindo que essa experiência é, ao mesmo tempo, catalizadora e limitadora do meu olhar sobre o fenômeno e o objeto estudado. Tive conhecimento do estádio Governador Magalhães Pinto, mais conhecido como Mineirão, localizado na Região da Pampulha1, na cidade de Belo Horizonte (MG), na infância quando ia com a minha família levar a nossa cachorra ao Hospital Veterinário da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), localizado em frente a ele. Aquela grandiosa construção chamou a minha atenção. No entanto, naquela época, aos 10 anos de idade, não tinha a dimensão do seu tamanho físico e nem simbólico. Meus interesses eram outros e estavam longe do futebol. Mais tarde, já na adolescência, por questões familiares e escolares, desejei muito conhecê-lo. Meu pai é cruzeirense e, embora estivesse afastado do seu torcer clubístico, eu tinha conhecimento de sua história e dos feitos para ver o Cruzeiro2 jogar. Já na escola, começava uma fase de demonstração do pertencimento clubísitco e, às vezes, era cobrada por isso. Meu pai até tentou, mas não teve escapatória. Assim, no ano de 1997, me apresentou ao Mineirão na condição de torcedora, em uma quarta-feira, à noite. Ele me levou para assistir à partida entre Cruzeiro Esporte Clube e Club Social y Deportivo Colo Colo3, válida pela semifinal da Copa Libertadores da América4, coincidentemente realizada no dia do meu aniversário. Nunca tinha ido a um estádio de futebol. Chamou a minha atenção a quantidade de pessoas e as motivações divergentes que estavam presentes naquele contexto: torcedores comuns, torcedores organizados, ambulantes,

1 No Capítulo 2, explicarei e caracterizarei a região da Pampulha. 2 Cruzeiro é o nome do Cruzeiro Esporte Clube, um dos clubes de futebol de Belo Horizonte. 3 Club Social y Deportivo Colo Colo, popularnente conhecido por Colo Colo, é um time chileno, sediado na cidade de Santiago. 4 A Copa Libertadores da América ou Taça Libertadores da América (atualmente denominada Copa Bridgestone Libertadores, devido à exigência do patrocinador da competição) é a principal competição de futebol realizada no continente Sul-americano, sendo organizada pela Confederação Sul-Americana de Futebol (CONMEBOL).

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barraqueiros, policiais militares, organizadores do evento e flanelinhas entre outros. Enquanto nos direcionávamos ao portão de entrada, havia barraquinhas que vendiam tropeiro5, sanduíche de pernil, espetinhos, cerveja, refrigerante e água. O cheiro da comida se misturava com o de suor, o de urina e o de estrume de cavalo. Além disso, a iluminação não era muito boa, o que dificultava a visualização do espaço, pois, além disso, havia as árvores do lado de fora do estádio. Depois dessa experiência sensorial, uma nova experiência: a corporal. Meu pai dizia: “─ Anda com o cotovelo aberto para aumentar o seu espaço e presta atenção onde está andando”. Isso era questão de sobrevivência naquele local, já que o fluxo contínuo não tinha um sentido de ida e o outro de volta, era tudo misturado – pessoas indo em direção à bilheteria, outras, ao portão de entrada, outras às barraquinhas e aquelas que, simplesmente, paravam repentinamente. Além disso, era necessário se desviar dos que andavam em grupo e das poças de água, estrume de cavalo, copos e outros elementos que estivessem no chão. Depois disso, já nos degraus do portão de entrada, outra experiência corporal: empurra-empurra para entrar no estádio e ser revistada pela policial militar. Foi tudo muito intenso. Já, dentro do estádio, uma nova descoberta: encontrei uma massa de torcedores, composta por 31.246 pessoas6. Quando a equipe do Cruzeiro Esporte Clube entrou em campo, fogos de artifícios foram soltos, saudando a equipe. Que emoção! Após os fogos, os torcedores saudavam cada jogador escalado, cantando os seus nomes e, logo depois, entoaram o hino do Clube. Novamente, uma emoção muito forte. Início de partida, cânticos e coreografia das torcidas organizadas, grito de gol, comemoração, festa. Ninguém sentava para assistir ao jogo, apenas no intervalo, para descansar as pernas. Fim de jogo, hora de ir embora e o mesmo procedimento: prestar atenção onde se está andando, aumentar a área corporal,

5 O feijão tropeiro é um prato típico da culinária mineira. Nele, o feijão cozido é misturado com farinha de mandioca e linguiça. No estádio, essa iguaria era servida acompanhada por arroz branco, couve, torresmo, filé de lombo, ovo frito e molho de tomate. 6 http://www.hojeemdia.com.br/esportes/cruzeiro/14-jogos-que-levaram-a-raposa-ao-titulo-da- libertadores-1.21839

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ficar atenta ao entorno7. Embora tudo isso, a partir desse momento, tive vontade de voltar mais vezes ao Mineirão. Além da questão pessoal, o Mineirão atravessou a minha formação acadêmica. Quando estudante de graduação do curso de Educação Física da UFMG, tive a oportunidade de me aproximar da formação do jogador de futebol. Foi enriquecedor ir além das arquibancadas e vivenciar uma das nuances do universo do futebol. Entretanto, isso começou a alterar a minha percepção sobre o futebol e a influenciar no meu torcer. O limite dessa experiência foi quando me vi vaiando um jogador por não jogar tão bem como treinava e, também, em alguns jogos, ter a minha atenção e emoção concentradas nas manifestações da torcida do que na partida em si. Via que deveria mudar o meu caminho de estudo. Ao final da graduação, ingressei no Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT), pelo qual tive a oportunidade de cursar o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Lazer (2008 – 2010). Meu estudo teve por objetivo traçar o perfil sociológico das mulheres torcedoras do Cruzeiro, presentes no Mineirão, bem como analisar a relação que elas estabeleciam com o clube e com o estádio, entendendo o estádio enquanto um equipamento de lazer para essas mulheres. Defendi meu mestrado em 2010, no mesmo ano em que o Mineirão fechou as suas portas para o público, encerando, assim, um ciclo de 45 anos de sua história. O Mineirão ficou fechado por dois anos, sendo reaberto, em 2012, apresentando a configuração necessária para sediar os jogos da Copa do Mundo da FIFA Brasil 20148 e sendo denominado Novo Mineirão. Percebi nesse momento que o Mineirão que conheci havia se modificado, existindo apenas na minha lembrança (e na de muitos torcedores que se viram órfãos desse equipamento de lazer). Nesse mesmo ano, ingressei no Curso de Doutorado em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Nesta etapa, eu e o Mineirão nos aproximamos novamente, uma vez que me propus a estudá-lo enquanto espaço e equipamento de lazer da cidade de Belo Horizonte, analisando seu uso e sua apropriação após a reforma, tanto em dia de jogos de futebol, quanto em dias sem jogos.

7 O Cruzeiro, nesse ano, sagrou-se campeão da Libertadores, no jogo realizado contra a equipe Sporting Cristal, do Peru. Estava no estádio, pela segunda vez, comemorando o meu primeiro título. 8 A partir desse momento, nesse trabalho, a Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014TM passará a ser chamada de Copa.

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1 CONSTRUINDO O PROBLEMA

Os estádios, por seu tamanho e arquitetura, têm grande destaque na paisagem urbana, sendo, para muitos, uma referência espacial e simbólica. Para seus frequentadores, pode constituir-se, também, como formador de identidade pessoal e coletiva. E, ainda para outros, é apenas um objeto construído para a disputa de partidas de modalidades esportivas específicas. Entretanto, para alguns autores (BALE, 1993; BALE, MOEN, 1995; GAFFNEY, BALE; 2004; FRANK, STEETS, 2010; MASCARENHAS, 2013), o estádio deve ser visto, antes de tudo, como um microcosmo social.

Um espaço social, conectado por normas e práticas sociais específicas, onde, não apenas características da cultura nacional ou regional se desenvolvem, como também, um local onde se congrega e se expressa a comunicação e a tendência de projetos de arquitetura (FRANK, STEETS, 2010, p. 1).

De acordo com Luchiari (1996), a expressão espaço social advém de uma grande discussão epistemológica no campo das ciências humanas sobre a categoria espacial9, a qual deixa de ser entendida como a localização dos fenômenos e assume o significado de local de produção social. Dessa forma, o espaço é visto “[...] como produto e ao mesmo tempo condicionante das diversas estruturas (sociais, econômicas, políticas, cognitivas)” (LUCHIARI, 1996, p. 213). Nesse sentido, Milton Santos (1996) enfoca que o espaço tem sempre um componente de materialidade que lhe fornece “[...] parte de sua concretude e empiricidade” (SANTOS, 1996, p. 44), como também serve de condições

[...] para a produção, para a circulação, para a residência, para a comunicação, para o exercício da política, para o exercício

9 Maria Tereza Luchiari, partindo de um mapeamento preliminar das teorias sociais sobre a compreensão da categoria espacial, evidenciou que, partindo da concepção iluminista de progresso, a categoria tempo teve predomínio sobre a categoria espacial. Entretanto, durante a década de 1970, efervesceu um debate sobre a importância da categoria espacial para analisar o espaço enquanto um instrumento de poder e dominação do Estado articulado com a economia capitalista. Nesse sentido, de acordo com a autora, “[...] o espaço, como categoria analítica, torna-se um instrumento interpretativo de fundamental importância para a compreensão da realidade e para o avanço no processo do conhecimento científico” (LUCHIARI, 1996, p. 192).

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das crenças, para o lazer e como condição de ‘viver bem’. Como meio operacional, presta-se a uma avaliação objetiva e como meio percebido está subordinado a uma avaliação subjetiva. Mas o mesmo espaço pode ser visto como o terreno das operações individuais e coletivas, ou como realidade percebida (SANTOS, 1996, p. 45).

Assim, notamos que o espaço é uma estrutura social dinâmica e múltipla, constituído por uma materialidade (sistema de objetos10) e por ações dos sujeitos de forma inter-relacional, que lhe fornece uma autonomia relativa e lhe confere um sentido que tem significado dentro de uma dimensão histórica e cultural. A sociedade se produz em um espaço, ao mesmo tempo em que é produzida por ele, isto é, “[...] o espaço se compõe de experiência, além de permitir a vida, lugar onde gerações sucessivas deixaram marcas, projetaram suas utopias, seu imaginário” (CARLOS, 2001, p. 11). Partindo de uma discussão marxista-lefevriana11, Carlos (2001, 2011) aponta que o termo produção se refere à ação essencial do humano, uma atividade que gera mercadorias e objetos, fundada nas relações econômicas de cada época e que permite analisar o desenvolvimento histórico de uma sociedade. Entretanto, o termo produção também pode ser analisado tendo como perspectiva a produção do espaço enquanto condição da vida em sociedade em sua multiplicidade de aspectos. Esse aspecto é mais amplo e, embora relacionado com o primeiro, aborda a produção das relações sociais, da cultura, da ideologia, do conhecimento, do habitar, do lazer, da vida privada, “[...] guardando o sentido do dinamismo das necessidades e dos desejos que marcam a reprodução da sociedade” (CARLOS, 2001, p. 13). Já o termo reprodução envolve o reprodutível e o repetitivo, isto é, não apenas a reprodução de mercadorias e objetos, mas também de saberes, conhecimentos, relações sociais, instituições, ideologias. O processo é dinâmico e contínuo. Além disso, produção e reprodução ocorrem de maneira concomitante, já que, ao mesmo tempo em que são realizadas intervenções que permitem o

10 Utilizo a categoria de Milton Santos. Para o autor, os objetos existem como sistemas: “[...] sua utilidade atual, passada, ou futura vem, exatamente, do seu uso combinado pelos grupos humanos que os criaram ou que os herdaram das gerações anteriores. Seu papel pode ser apenas simbólico, mas, geralmente, é também funcional” (SANTOS, 1996, p. 59). 11 A expressão abordagem marxista-lefevriana refere-se à utilização das obras de Karl Marx e Henri Lefebvre como orientação téorico-metodologica das obras desses autores para a construção de uma análise da realidade, a partir da geografia. Carlos (2001, 2011) afirma que não se trata de uma leitura dogmática e nem uma tentativa de geografização das obras desses autores.

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desenvolvimento da vida social, esse espaço vai se produzindo enquanto mercadoria e reproduzindo valores (CARLOS, 2001, 2011). Analisando um estádio de futebol, enquanto um sistema de objeto e de ações, presente no espaço, verificamos que ele não é neutro e nem passivo, uma vez que nele se produzem práticas sociais e se reproduzem normas sociais. Dito de outra forma, o estádio de futebol pode ser visto como um espaço material e social, no qual questões econômicas, sociais e culturais se desenvolvem e se intensificam. Assim, Frank e Steets (2010) sugerem que olhemos para o estádio com outras lentes, de modo que, por meio do estudo das dimensões históricas, econômicas, políticas, geográficas, sociais dos estádios de futebol, possamos identificar e compreender as mudanças sociais em fluxo. John Bale (1993) é pioneiro nesse pensamento, ao afirmar que as mudanças nos estádios não refletem apenas o desenvolvimento do esporte. Elas refletem também as mudanças sociais, uma vez que mostram como a sociedade se desenvolve e demonstra suas preferências, convertendo-as em ativismo, no qual o esporte é uma parte. Embora o estádio de futebol12 seja construído para a realização de um jogo de futebol, alguns podem ter representações e abrigar atividades que vão além desse esporte. Flowers (2011) argumenta que alguns estádios são tão representativos quanto a história de seus clubes. Demonstra também que o poder simbólico dos estádios pode vir de contextos não esportivo, citando, como exemplo, os países que são sede de megaeventos esportivos e que recebem apoio para a construção de estádios tendo como argumento o fato de que exibirão uma nova identidade nacional – moderna e tolerante – ligada às forças econômicas e culturais da globalização. No que se refere aos usos, isto é, às atividades que se desenvolvem dentro do estádio, o autor supracitado propõe seis categorias, a saber: 1) o estádio enquanto lugar de morte e destruição proveniente da violência entre as torcidas, mas também da morte das comunidades para a construção de estádios e transformações urbanas; 2) incubador de guerra, já que alguns conflitos podem começar dentro dele, a partir das rivalidades; 3) símbolo de identidade geográfica ou

12 A partir desse momento, quando utilizar o termo estádio, estarei me referindo especificamente ao estádio de futebol, mesmo reconhecendo que o fenômeno estudado possa ocorrer também em estádios de outras modalidades esportivas, tais como beisebol, futebol americano e também nos ginásios de basquete entre outros. Para maiores informações, consultar BALE, John. Sports Geography. London: Routledge, 2002.

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étnica de grupos específicos; 4) símbolo de uma autoridade hegemônica, por meio de sua utilização política para anunciar ou executar os atos de um governo; 5) símbolo de uma imagem consensual devido a sua monumentalidade e a seu caráter redondo que confere a uniformidade e homogeneidade de seus frequentadores; 6) materialização de fluxos de capital transnacional, isto é, a produção de algo icônico que serve para a reprodução gráfica e ilustrativa; não utilizando nomes populares, mas, sim, de firmas associadas (naming rights); venda de commodities, enfim, uma máquina de gerar dinheiro. Embora essas categorias necessitem de maior estudo, aprofundamento e discussão, verificamos que as formas pelas quais os estádios podem ser utilizados, vão além da modalidade esportiva futebol, já que envolvem questões políticas, econômicas, sociais, geográficas, culturais e ideológicas. Ademais, essas formas de uso não são estanques e nem isoladas, já que um mesmo estádio pode estar contido em mais de uma dessas categorias. Mesmo reconhecendo os usos dos estádios propostos acima, a fragilidade das categorias não dá conta de todas as possibilidades nas quais o estádio possa ser utilizado. Neste trabalho, pretendo investigar outra forma de uso desse espaço: o uso destinado ao lazer. Especificamente, compreendo o lazer enquanto um dos elementos da problemática urbana (LEFEBVRE, 2001), decorrente do processo de industrialização no qual houve um rompimento entre o tempo do trabalho e o do não-trabalho, embora tais tempos sejam imbricados. Além disso, trata-se de uma escolha individual, pautada nos elementos da cultura e da relação entre o sujeito e a experiência vivida, que se passa dentro de um tempo disponível e que vai além dos espaços estabelecidos como espaços de lazer (GOMES, 2004; MARCELLINO, 2007). Enquanto objeto de estudo e investigação, o lazer se caracteriza como um campo interdisciplinar, já que pode ser analisado sob o prisma de várias disciplinas que se complementam dentro de suas especificidades. No âmbito do lazer, questões econômicas, de gênero, corporais, ambientais, arquitetônicas, históricas, sociais, geográficas, políticas, entre outras, possibilitam e restringem a vivência desse direito humano inalienável, assegurado pela Constituição Federal de

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198813. Enquanto direito constitucional, o lazer passou a ser tratado no conjunto de medidas políticas necessárias à melhoria da qualidade de vida de todas as pessoas (PINTO, 2006). Nesse sentido, o futebol, para grande parte da população brasileira, é um referencial de lazer, tanto na possibilidade da prática corporal, quanto de assistir a uma partida no estádio, no ambiente doméstico ou em bares, e manifesta-se como uma linguagem da sociedade. Como tal, está presente no cotidiano de homens e mulheres, adultos e crianças; jovens e idosos via expressões, consumo de mercadorias relacionadas ao espetáculo futebolístico, transmissão de valores e normas sociais ou ainda na rede de sociabilidade e significados que se cria a partir de uma agremiação esportiva. Enquanto possibilidade de lazer, o futebol não ocorre somente dentro das quatro linhas que delimitam o campo, na disputa entre duas equipes. Se for levado em consideração o âmbito da festa, do encontro, das redes de sociabilidade, nas arquibancadas uma grande quantidade de pessoas contribui para a realização e a beleza desse espetáculo esportivo. Durante muito tempo foi esse o cenário visto no Mineirão, oficialmente denominado estádio Governador Magalhães Pinto, localizado na cidade de Belo Horizonte (MG) e inaugurado em setembro de 1965. Sua construção teve como objetivo entregar à cidade uma grande praça esportiva, com capacidade para 130 mil pessoas, com a finalidade de fazer jus ao futebol e ao povo mineiro (SANTOS, 2005b). Todavia, ao longo dos anos, o estádio foi se transformando em um espaço onde foram desenvolvidas relações informais, encontros e trocas de vivências para além do futebol. Nos finais de semana, visitá-lo, exercitar-se, levar as crianças para andar de bicicleta e/ou soltar papagaio, ir à Feira de Automóveis, frequentar as barraquinhas de comida antes dos jogos de futebol eram algumas das formas de uso e apropriação daquele espaço. Para seus usuários, o Mineirão faz parte da vida cotidiana, como modo de apropriação que se realiza pelo uso, por meio do corpo - visto, percebido, sentido, vivido (CARLOS, 2001). Para muitos, é um dos poucos espaços para a vivência do lazer.

13 O capítulo II, art. 6º, dispõe que “[...] são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988).

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Em 2010, quarenta e cinco anos após a sua inauguração, uma grande reforma iniciou-se no estádio, para adequá-lo às normas da Fédération Internationale de Football Association (FIFA), já que, em 2014, o Brasil seria a sede da Copa do Mundo de Futebol. Isso fez com o que estádio fechasse suas portas, interrompendo suas atividades por dois anos. Os trâmites legais para a candidatura do Brasil a país-sede da Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014 iniciaram-se em 2003, quando Brasil, Argentina e Colômbia inscreveram seus nomes pleiteando a vaga. Em 2006, a CONMEBOL14 votou de forma unânime pela candidatura única do Brasil. E, em 2007, foi dado fim ao processo de candidatura com uma cerimônia ocorrida na cidade de Zurique/Suiça15 em que a FIFA validou a escolha do Brasil (SANTOS, 2011; DAMO, 2012). A partir do momento em que o Brasil foi escolhido país-sede, as cidades brasileiras começaram a pleitear a sua candidatura a cidade-sede da Copa. Uma vez que Belo Horizonte foi eleita cidade-sede16, os poderes públicos municipal e estadual se reuniram para desenvolver um plano de ações com a finalidade de cumprir as determinações da FIFA e tirar o maior proveito desse megaevento na capital mineira. Assim, como parte da estratégia, o Gigante da Pampulha17 foi reformado, já que uma das determinações da FIFA para a realização do seu principal evento, a copa do mundo de futebol masculino, refere-se à normatização dos estádios. A entidade ordena que eles cumpram uma série de quesitos no que se refere ao uso, à segurança, à comunicação, à sustentabilidade entre outros. Em relação ao uso, a FIFA remete a estádios multifuncionais, “[...] projetados de forma que abriguem outros eventos esportivos e de entretenimento, melhorando, assim, a sua utilização e viabilidade financeira” (FIFA, 2011, p. 43). Sugere, então, que esse espaço seja ocupado por “[...] eventos de entretenimento, incluindo concertos, festivais, peças teatrais e feiras de negócios e de consumo” (FIFA, 2011, p. 44).

14 A CONMEBOL é formada por 10 federações nacionais da América do Sul, membras da FIFA, e se constitui em uma organização regional e esportiva, que tem por objetivo “[...] unir, sob uma autoridade comum, as associações nacionais da América do Sul a fim de obter o melhor desenvolvimento e controle do futebol nesse continente”. 15 Disponível em: 16 No dia 31 de maio de 2009, foram anunciadas as cidades-sedes: Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. 17 Apelido dado ao Mineirão em referência às dimensões do estádio e ao bairro onde está localizado.

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Nesse sentido, visando atender uma norma hegemônica, podemos dizer que o Mineirão, além de reformado, foi reformulado. Não se trata apenas das alterações físicas e estruturais para atender às demandas da FIFA, mas também de uma alteração de conceito e de entendimento. Nesse novo contexto, os estádios que apresentam tais características passam a ser reconhecidos por outras denominações: arena (no contexto brasileiro); stadia (em língua inglesa). Além disso, alguns autores preferem chamar de estádios pós-modernos ou quarta geração de estádios, como será apresentado no capítulo 3. No dicionário da língua portuguesa, reformar é definido como “[...] formar de novo, reconstruir; emendar, corrigir, retificar; dar melhor forma a; melhorar, aprimorar” (FERREIRA, sd, p. 1.205), já reformular, “[...] tornar a formular” (FERREIRA, sd, p. 1.205), isto é, “[...] pôr ou redigir em fórmula; expor com precisão; exprimir (um conceito, pedido, proposta etc); articular, manifestar” (FERREIRA, sd, p. 647). Tomando como base o significado das palavras, não se trata apenas da alteração arquitetônica ou melhoria de alguns espaços (reformar), mas também na alteração nas formas de uso, nas normas de permanência, no público esperado e no valor simbólico (reformular). Assim, utilizando-se da festa, da paixão pelo esporte e da premissa de investimentos, a Copa do Mundo chega como uma solução para determinados segmentos da sociedade. Ela se torna uma justificativa e também um marco necessário para mudar a forma de se pensar o futebol brasileiro e o espaço onde é praticado, no caso específico, o Novo Mineirão, como foi apresentado à população pela imprensa mineira e pelos órgãos dos governos municipal e estadual. O adjetivo novo muito tem a dizer sobre o que se planeja para esse estádio, uma vez que há uma oposição em relação ao antigo (mais um exemplo da reformulação pelo qual passou). De acordo com Le Goff (2013, p. 162), há um antagonismo entre os termos antigo e moderno, no qual “[...] ’antigo’ pode ser substituído por ‘tradicional’, e ‘moderno’, por ‘recente’ ou ‘novo’”.

O estudo do par antigo/moderno passa pela análise de um momento histórico que segrega a ideia de ”modernidade” e, ao mesmo tempo, a cria para denegrir ou exaltar – ou, simplesmente, para distinguir e afastar – uma ”antiguidade”, pois tanto destaca uma modernidade para promovê-la como para vilipendiá-la (LE GOFF, 2013, p. 164).

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Dessa forma, tendo o critério econômico como uma premissa determinante para se atingir a modernidade, podemos compreender o novo, dentro de um tempo presente e em oposição a um tempo antigo, já que, mais cedo ou mais tarde, o que era novo se transformará em antigo, em detrimento de outra forma que surgirá como nova ou renovada e, por isso, moderna (contextualizado na atualidade na qual estiver inserido). É com base nesse argumento, que não utilizo no presente texto, a expressão Novo Mineirão, exceto quando remeter a um discurso coletivo ou de algum sujeito pesquisado. Quando houver a necessidade de demarcar o momento do estádio, utilizarei as expressões antes da reforma ou pós a reforma. Após a reforma/reformulação, o Mineirão passou a ter uma nova arquitetura, principalmente pela criação de uma esplanada com 80 mil m²18. Além disso, passou a ter espaços para lojas e restaurantes, estacionamento coberto e um museu sobre futebol. Tudo isso faz parte do que o Consórcio Minas Arena – a administradora do estádio – passou a chamar de Complexo Mineirão. Identificado como arena multiuso, tornou-se “[...] um espaço de entretenimento, serviços, cultura e lazer disponíveis todos os dias” (MINAS GERAIS, s.d.).

Quando a sociedade age sobre o espaço, ela não o faz sobre os objetos como realidade física, mas como realidade social, formas-conteúdo, isto é, objetos sociais já valorizados aos quais ela (a sociedade) busca oferecer ou impor um novo valor. A ação se dá sobre objetos já agidos, isto é, portadores de ações concluídas, mas ainda presentes. Esses objetos da ação são, desse modo, dotados de uma presença humana e por ela qualificados (SANTOS, 1996, p. 88).

Essa alteração na relação forma-conteúdo é o que a figura 1 demonstra.

18 Embaixo da esplanada, foram construídos estacionamentos cobertos, a entrada para os camarotes do estádio e o Museu Brasileiro do Futebol. O projeto ainda prevê restaurantes e lojas.

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Figura 1 – Vista área do Mineirão antes da reforma (acima) e após a reforma (abaixo)

Fonte - BCMF Arquitetos.

De acordo com Santos (1996, p. 80), há uma unidade entre a forma e o conteúdo de um objeto, assim, “[...] quando alteramos a funcionalidade de alguma de suas partes, diminuímos sua eficácia e, mesmo, podemos adulterá-lo mortalmente, fazendo dele outra coisa”. O autor ressalta, porém, que não podemos prever todas as ações que serão desenvolvidas racionalmente em um objeto, pois essas variam com o meio e têm certa autonomia, gerando uma imprevisibilidade no resultado. Com base nesse contexto, podemos pensar na maneira como essas formas serão experienciadas, já que “[...] o choque entre o que existe e o que se impõe como novo está na base da transformação da metrópole” (CARLOS, 2001, p.14). Dessas premissas iniciais surgiram as perguntas deste estudo: as novas

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formas são, de fato, apropriadas pelos sujeitos em seus momentos de lazer? Quais relações são estabelecidas com esse espaço e quem são seus agentes produtores?

1.1 Objetivo

Diante do exposto, temos, por objetivo, analisar as formas de uso e a apropriação do Mineirão, tanto em dia de jogos de futebol, quanto em dias sem jogos.

1.2 Objetivos específicos

Como específicos, elencam-se os seguintes objetivos: - caracterizar sócio-economicamente os usuários do Mineirão; - identificar os usos e do Mineirão; - compreender a opinião dos usuários sobre a reforma do estádio; - verificar as relações estabelecidas pelos usuários com o Mineirão, tanto em dias de jogos, quanto em dias sem jogo; - comparar as formas de uso sugeridas pelo discurso oficial e a prática da população.

1.3 Justificativas

Para entendermos essas mudanças, é necessário levarmos em consideração que estamos diante de um processo de produção/reprodução de um espaço, no qual existe uma relação dialética entre o que foi e o que será. Enquanto local de produção social e histórica, as práticas e relações sociais aí desenvolvidas e estabelecidas, no tempo presente, lhe darão as suas características. Vale ressaltar que, enquanto um fenômeno social, o processo de constituição de um espaço é algo dinâmico (mas não necessariamente rápido),

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contraditório, transitório, em que forças hegemônicas e não-hegemônicas atuam sobre ele. Assim, de acordo com Santos (1996, p. 40),

[...] a noção de processo permeia todas estas categorias. O processo, entretanto, nada mais é do que um vetor evanescente cuja vida é efêmera; é um breve momento, a fração de tempo necessária à realização da estrutura, que deve ser geografizada, ou melhor, especializada, através de uma função, isto é, através de uma atividade mais ou menos duradoura e pela sua indispensável união a uma forma. A forma geralmente sobrevive à sua função específica. Um processo termina quando uma fração da estrutura chega a ser objetificada numa forma particular, com uma função particular. Então um novo processo se inicia.

Nessa dinâmica, por meio dos órgãos do sentido expostos às formas de usos do espaço, o sujeito vai criando significados e identidades em relação a esse espaço, tornando possível o sentido de apropriação. Entendemos que o sujeito não tomará a posse legal do objeto, tornando-o uma propriedade privada, mas, sim, incorporará o seu significado, seus códigos, sua subjetividade, sua territorialidade e, também, os seus usos (POL, 1996; CARLOS, 2001). Para o filósofo Henri Lefebvre (1978), assim como a dominação, a apropriação faz parte da ação humana sobre o meio material e natural. Contudo, diferentemente da dominação, que tem um sentido de destruição da Natureza pelas operações técnicas, a apropriação se relaciona à sua transformação em bens humanos e que dão sentido à vida social. Dessa forma, é um aspecto da prática social que se constitui dialeticamente entre o conjunto social e os grupos sociais, de maneira efetiva e simbólica. “Sem a apropriação, a dominação técnica sobre a Natureza tende ao absurdo [...]. Sem a apropriação pode haver crescimento econômico e técnico, porém o desenvolvimento social, propriamente dito, se mantem nulo” (LEFEBVRE, 1978, p.164). Pol (1996), tendo a psicologia social como fonte de análise, descreve que a interação do sujeito com o espaço fornece intimidade, sentimento de proteção na eminência do risco e criação de um significado que gera uma identidade. Assim, as formas de apropriação do espaço são necessárias para que ele seja humanizado. Esse processo é cíclico, temporal, individual (embora também possa ser coletivo) e varia entre as culturas, já que cada uma estabelece diferentes relações com os espaços.

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Além do sentido de produção/reprodução do espaço, formas de uso e apropriação, na análise proposta para este estudo, não podemos perder de vista, ainda, que os estádios de futebol, enquanto partes do espaço urbano, estão sendo modernizados dentro dos padrões da FIFA, uma empresa19 privada de capital transnacional que traz uma exigência única, de modelo global, em uma tentativa de homogeneizar os espaços, criando formas estandartizadas, repetidas e com uniformidade na sequência (BALE, 1998). Devemos levar em consideração, porém, que o lugar que cada estádio ocupa dentro de sua cidade e no imaginário da população que o frequenta é diferente. Entendemos que o objeto em si não tem vida própria, é a sociedade no qual está inserido que confere sentido simbólico a ele. Com isso, o lugar torna-se relevante por modificar o significado geral dos objetos, atribuindo-lhes uma significação relativa, provisoriamente verdadeira e impossível em outro lugar (SANTOS, 1996). Complementando essa ideia, Carlos (2001, p. 34) afirma que “[...] no lugar encontramos as mesmas determinações da totalidade, sem, com isso, eliminar as particularidades, pois cada sociedade produz seu espaço, expressando sua função social, determinando os ritmos da vida, os modos de apropriação, seus projetos e desejos”. Assim, compreender os usos e as formas de apropriação do Mineirão inserido nos contextos cultural, político e econômico regionais, poderá aproximá-lo das demandas e expectativas de seus frequentadores.

No caso da produção e apropriação desses espaços pelo uso, as relações podem ser lidas na horizontalidade20, como uma metáfora de trajetórias no espaço de pessoas, que no seu dia a dia, constroem (e são construídas), modificam (e são modificadas) e dão (encontram) sentidos ao (no) espaço público (SOBARZO, 2006, p. 103).

Mesmo reconhecendo a importância que os estádios têm nas sociedades urbanas, poucos são os trabalhos que o trazem como perspectiva de estudo.

19 Embora conste em seu estatuto que a FIFA é uma associação privada sem fins lucrativos, a sua atuação se aproxima à lógica empresarial neoliberal. 20 De acordo com Santos (1996), para analisar o lugar, é importante analisar dois vetores que agem sobre ele: o vertical e o horizontal. As verticalidades são expressas na racionalidade da produção/reprodução do espaço, no discurso oficial feito pelos setores hegemônicos. Já as horizontalidades se dão na forma como a ordem chega, se estabelece e é apropriada pelos habitantes/frequentadores do espaço, por meio dos usos, que podem ser conforme, mas não necessariamente, conformista, podem ser da cegueira, mas também da descoberta, podem ser da complacência e da revolta.

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Conforme dados apresentados pelo levantamento feito por Silva e colaboradores (2009), em um conjunto de 258 teses e dissertações, defendidas entre o período de 1980 a 2007, apenas 13 trabalhos (0,19% do total) tinham os estádios de futebol como temática. Destes, apenas um tinha como objetivo compreender como o estádio era utilizado pelas pessoas, tendo a sociabilidade como categoria de análise. Os demais visavam às transformações arquitetônico-estruturais e gestão dos estádios; a relação estádio e espaço urbano e história e sociabilidade de torcedores de futebol. Com base nesses dados, são poucos os estudos que trazem como perspectiva o estádio em seu uso e possibilidade de lazer da população urbana para além dos eventos futebolísticos. Podemos afirmar, assim, que, no Brasil, esse tema entrou na pauta das investigações acadêmicas com o advento da Copa, uma vez que houve grandes modificações nos estádios brasileiros, de modo que se sentiu a necessidade de registrar e problematizar esse período histórico. Isso pode ser observado pelo levantamento apresentado por Silva (2013), no qual demonstrou que houve, nos anos de 2010 e 2011, um aumento das pesquisas cuja temática envolvia a modernização dos estádios; gerência do futebol e marketing e o aparecimento da temática Copa do Mundo. No que tange à produção do conhecimento sobre espaços e equipamentos de lazer na cidade, Rechia e Teschoke (2014), depois de fazerem um levantamento das teses e dissertações defendidas em programas de Pós- Graduação em Educação Física e/ou Lazer, no período entre 2003-2013, apontam que, dos 10 programas de pós-graduação analisados, apenas cinco apresentaram investigações que abordassem a temática proposta, totalizando 14 pesquisas. Nos resultados apresentados pelas autoras, não encontramos nenhum que enfocasse o estádio como espaço e equipamento de lazer. Entretanto, levantamento apresentado por Bale e Moen (1995) aponta que, em alguns países da Europa (Reino Unido, Alemanha, Dinamarca, Suécia) e nos EUA, o estudo sobre os estádios vem tomando corpo, mais efetivamente a partir da década de 1990, muito evidenciado pelos torneios internacionais realizados naquele continente, como também pelas mortes de centenas de torcedores em duas tragédias ocorridas na década anterior ou como meio de atrair investimentos econômicos para as cidades e para os esportes profissionais, respectivamente.

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1.4 O todo e as partes21

Depois de apresentar os caminhos que me trouxeram à problemática do estudo, traçar e apresentar os objetivos e as justificativas da presente pesquisa, inicio a apresentação da metodologia utilizada. O olhar distanciado, macro, é muito importante para compreendermos a dinâmica dos fenômenos dentro de uma escala global. Entretanto, ele exclui os sujeitos anônimos, aqueles do cotidiano que podem, em seus usos, transformar ou (re)significar o espaço. Com isso, para ver a dinâmica social existente, quais centralidades são formadas, quais sujeitos estão envolvidos, quais lugares são (re)produzidos, é necessário um olhar mais próximo. Isso possibilita verificar os usos do espaço para além daquilo para que foi projetado. Santos (1999, p. 23) propõe que, para ter uma análise da totalidade, é necessário “[...] tentar encontrar o que caracteriza em geral, em seguida o que o caracteriza em particular e, a partir daí, verificar como incide sobre uma sociedade e um lugar”. Assim, esta pesquisa, apoiada em Tripodi, Fellin e Meyer (1975), caracterizou-se como exploratória descritiva. Essa metodologia tem como objetivo descrever de forma mais ampla determinado fenômeno, enunciando questões para investigações futuras. Para isso, uma variedade de procedimentos pode ser usada para a coleta de informações sobre o fenômeno estudado, recorrendo, tanto às descrições quantitativas, quanto às qualitativas. Lüdke e André (1986) complementam esse argumento propondo que, nessa abordagem, haja maior ênfase na busca do significado que as pessoas dão ao fenômeno estudado, bem como a forma com que ele se manifesta nas interações cotidianas. Ressaltamos que, nesse tipo de pesquisa, é reconhecido que a experiência do sujeito (pesquisador/frequentador) incide na construção da imagem do objeto, uma vez que a percepção do sujeito, influenciada por um sistema de valores, cria uma imagem desse objeto. É a partir dessa imagem que o sujeito

21 Informamos que este estudo passou pela aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) da UNICAMP – CAAE 21467313.8.0000.5404 – e respeitou todas as normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Saúde (Resolução n. 422, de 2012) envolvendo pesquisa com seres humanos.

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tomará a sua decisão em apreender o real. Essa apreensão do meio se dá de várias formas: busca de informações acadêmicas, mídia, experiências familiares, conversas in loco e também pelos órgãos do sentido (CAPEL, 1973).

A imagem assim constituída apresenta uma grande variabilidade de um indivíduo para o outro, já que depende da conduta e da atividade específica de cada um, assim como de sua cultura e características pessoais. Apesar dessa variabilidade individual na percepção de um mesmo feito, existem traços comuns que aparecem destacados por um grande número de pessoas (CAPEL, 1973, p. 83).

O Complexo Mineirão, limitado nesta pesquisa ao estádio e à esplanada, foi minha delimitação espacial concreta22. Para analisar as formas de uso e de apropriação desse espaço no tempo de lazer dos seus usuários, tanto em dia de jogos de futebol, quanto em dias sem jogos, foi preciso definir os sujeitos pesquisados, os instrumentos e os procedimentos para a realização da coleta de informações, o período de duração da coleta, os locais e a forma de análise dos dados. Ressalto que esse processo não se deu de forma linear, fria, segmentada, estática e a priori, como sugere a descrição apresentada nos próximos tópicos. No entanto, de fato, essa divisão foi a melhor forma encontrada para descrever um processo que foi dinâmico, experimental, inter-relacionado, controverso, tenso, frustrante, rico, suado, subjetivo.

1.4.1 As situações de realização da pesquisa

Como o próprio objetivo aponta, a coleta de dados foi realizada em dois momentos distintos: dias em que havia jogos de futebol e dias sem jogo. A coleta realizada nos dias de jogos se deu quando a equipe do Cruzeiro jogava no Mineirão como clube mandante. Essa opção foi feita pelo fato de essa equipe ter um contrato firmado com o Consórcio Minas Arena de mando de campo de todos os seus jogos para esse estádio, diferentemente dos outros clubes da capital que realizavam lá apenas os jogos de maior repercussão, não apresentando, assim, uma regularidade. Além disso, a pesquisa de campo foi suspensa durante o

22 O Museu Brasileiro do Futebol e a rampa de acesso ao Ginásio Mineirinho também fazem parte do Complexo Mineirão, porém não foram objetos de pesquisa.

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período de realização da Copa das Confederações, em 2013, e da Copa do Mundo, em 2014, já que o estádio ficou sob a administração da FIFA. Essa coleta foi denominada situação Futebol. Já a coleta realizada em dias em que não havia jogos de futebol foi feita na esplanada do estádio, denominando-se situação Esplanada.

Figura 2 – Desenho esquemático das situações de pesquisa

COMPLEXO MINEIRÃO

DIA DE JOGO DIA SEM JOGO

SITUAÇÃO SITUAÇÃO FUTEBOL ESPLANADA

Fonte - Elaborada pela autora da tese.

1.4.2 Sujeitos da pesquisa

No que se refere aos sujeitos da pesquisa, participaram deste estudo os usuários do Mineirão, independentemente da atividade realizada, do sexo e da idade. Para maior adequação de sentido, porém, na situação Futebol, o termo usuário foi substituído por torcedores/as. Nesse contexto, compreendemos o torcedor/a como

[...] o sujeito que possui um pertencimento clubístico, escolhido pela natureza simbólica que determinado Clube representa em seu contexto socioafetivo, que tem a ida ao estádio de futebol como momento de lazer e espaço de fruição de uma sociabilidade única, que vibra e acompanha o time independente de sua classificação na tabela e dia da semana (CAMPOS, AMARAL, 2013, p. 50).

Com isso, nos dias de jogos, a pesquisa foi realizada com torcedores e torcedoras da equipe do Cruzeiro, presentes no Mineirão.

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Em todas as situações, utilizou-se uma amostra por saturação, isto é,

[...] a suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, uma certa redundância ou repetição, não sendo relevante persistir na coleta de dados. Noutras palavras, as informações fornecidas pelos novos participantes da pesquisa pouco acrescentariam ao material já obtido, não mais contribuindo significativamente, para o aperfeiçoamento da reflexão teórica fundamentada nos dados que estão sendo coletados (FONTANELLA, RICAS e TURATO, 2008. p. 17).

Assim, enquanto houve novas visões sobre o fenômeno estudado, houve pesquisa de campo e a incorporação de sujeitos. Quando tais respostas passaram a se repetir e o conteúdo já não possibilitava novas deduções teóricas, a pesquisa de campo foi suspensa. Entretanto, Fontanella, Ricas e Turato (2008) apontam que o grau de saturação é relativo, já que outro pesquisador, diante dos mesmos dados, pode não se sentir satisfeito e necessitar de mais informações, isto é, o envolvimento de mais sujeitos pesquisados. Outra possibilidade apontada é a de o mesmo pesquisador, de posse de outros referencias teóricos, ter a necessidade de mais ou outros dados.

1.4.3 Instrumentos de pesquisa

Descritos os momentos da pesquisa e os sujeitos envolvidos, falaremos sobre os instrumentos utilizados para a coleta de informação. Os escolhidos foram: observação participante, formulário semiaberto e entrevista semiestruturada. A observação participante foi escolhida para a identificação das formas de uso do Mineirão e a verificação das relações estabelecidas pelos frequentadores com esse estádio, já que ela se refere ao fato de o pesquisador deter o seu olhar, sua atenção e sua percepção para o fenômeno que será investigado. Segundo Negrine (1999), essa técnica envolve o sujeito que observa, o objeto e/ou indivíduo observado, os sentidos utilizados para captar a informação (visão, audição, olfato, tato) e os instrumentos utilizados para o registro da informação. Essa interação é dinâmica de modo que o sujeito/pesquisador influencia e sofre influência do contexto pesquisado.

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A escolha pelo formulário semiaberto se deu como um recurso para minha inserção e meu diálogo com os grupos que frequentam o Mineirão, já que apenas com a observação participante não estava tendo acesso a um grupo amplo e heterogêneo de pessoas e também a algumas informações importantes para o estudo. Segundo Goode (1969, p.172), formulário é o nome dado ao instrumento de pesquisa, “[...] geralmente usado para designar uma coleção de questões que são perguntadas e anotadas por um entrevistador numa situação face a face com outra pessoa”. Como o formulário tem a prerrogativa de uma interação face a face, foi utilizado como possibilidade de fazer o levantamento sociológico dos participantes da pesquisa, como também um meio para iniciar um diálogo com o intuito de compreender os usos, as formas de apropriação, a justificativa de estarem no Mineirão, ouvir algumas histórias de uma maneira muito menos formal que a exigida por uma entrevista, por exemplo. O formulário utilizado no presente estudo foi construído por nós, com perguntas fechadas e abertas, pelas quais os frequentadores puderam emitir opiniões, fazer narrativas, recordar momentos. Estruturou-se em quatro eixos: perfil sociológico dos sujeitos; frequência de usos antes e depois da reforma; aspectos positivos e negativos da reforma e representação do Mineirão para o sujeito pesquisado (APÊNDICE A). Por fim, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com alguns agentes hegemônicos produtores/reprodutores do espaço investigado com a intenção de comparar as formas de uso sugeridas pelo discurso oficial e a prática dos frequentadores. A utilização desse recurso deve-se ao fato de as perguntas estarem previamente definidas pelo pesquisador e, ao mesmo tempo, permitir que ele realize explorações não previstas anteriormente, com a finalidade de um maior aprofundamento sobre um tema e de maior liberdade para o entrevistado dissertar sobre aspectos que considerar relevantes em sua opinião (LÜDKE e ANDRÉ, 1986; NEGRINNI, 1999). As entrevistas foram previamente agendadas e realizadas em um local de melhor conveniência para ambas as partes. Cabe ressaltar que, durante a pesquisa de campo, foram feitos registros imagéticos do espaço nas quatro situações pesquisadas capturando as formas de

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uso e de apropriação do estádio, o seu cotidiano, de modo que esse conjunto se tornou, também, um dado material para a análise.

1.4.4 Duração do trabalho de campo

Minha aproximação com o campo de pesquisa se deu no momento da reinauguração do estádio, no dia 21 de dezembro de 2012, com a participação no evento Entrega da obra do Novo Mineirão. A partir de então, fiz visitas esporádicas até o início de agosto de 2013, já que, nesse primeiro ano, eu estava envolvida com o cumprimento dos créditos e o Mineirão, recebendo os ajustes pós-inauguração e, depois, fechado para a realização da Copa das Confederações, em junho/julho de 2013. Assim, de fato, iniciei as observações como participante em agosto de 2013, primeiro pela situação Futebol, seguido da Esplanada. Esta fase finalizou em dezembro de 2014. A fase de aplicação de formulários iniciou-se em março de 2014 e também se estendeu até dezembro de 2014 para todas as situações de pesquisa. As entrevistas foram realizadas entre outubro e dezembro de 2014. Vale ressaltar que, durante o período da Copa das Confederações (maio a julho de 2013) e Copa do Mundo (maio a julho de 201423), as atividades da pesquisa de campo foram suspensas, já que, nesse período, o Mineirão era de uso exclusivo da FIFA.

1.4.5 Locais e procedimentos de coleta de informação

Durante o meu período de permanência no Complexo Mineirão, nas duas situações de pesquisa, conforme sugere Magnani (1996), fiz uma caminhada mais rápida que a do turista e mais lenta do que a do usuário habitual para uma observação contínua e sistemática, na busca pelo que se repete, pelo padrão em relação à materialidade da paisagem, tentando reconhecer as divisas, anotando os pontos de interseção em relação aos atores. Nestes, tentando detectar tipos, construir categorias, determinar comportamentos.

23 Embora a Copa das Confederações/2013 e a Copa do Mundo/2014 tenham ocorrido no período de junho e julho dos respectivos anos, a FIFA exigia a paralização das atividades no estádio um mês antes dos eventos para que ele fosse preparado.

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Os atores, naquele cenário, seguem um roteiro. São essas regras que dão significado ao comportamento e através delas é possível determinar as regularidades, descobrir as lógicas, perceber as transgressões, os novos significados. Identificar os movimentos, os fluxos e as diferentes formas de apropriação no universo de significado dos atores é o primeiro passo para chegar a padrões mais gerais, responsáveis pela compreensão dos comportamentos articulados a outras instâncias e domínios mais amplos da vida social (MAGNANI, 1996, p. 38).

Na situação Futebol, chegava antes do horário previsto para a abertura dos portões, o que ocorria frequentemente duas horas antes do início da partida. Costumava caminhar próximo ao estádio para acompanhar o movimento e o fluxo de torcedores, tentando distinguir o que era específico de cada jogo, o que já estava se constituindo e o que, talvez, já havia se constituído. Esse procedimento foi repetido durante todo o período da coleta. De posse da credencial de acesso ao estádio, fornecida pela Minas Arena, entrava no Complexo Mineirão e me dirigia à esplanada para observar o fluxo dos torcedores e a maneira como procediam nesse espaço. Depois, ia para as arquibancadas e circulava por todo o anel superior do estádio observando os torcedores, os procedimentos na arquibancada, suas manifestações, bem como o que era proposto para o espaço em cada jogo. Quando a aplicação do formulário foi iniciada, suspendi as observações na esplanada e no anel superior da arquibancada, mas mantive a do lado externo do estádio. Nesse momento, contei com a colaboração de dois outros pesquisadores para a aplicação dos formulários. Entravámos no estádio um pouco antes da abertura dos portões e cada um se dirigia para o setor da arquibancada onde iria realizar a coleta. O Mineirão dispõe de quatro setores na arquibancada superior (roxo, amarelo, vermelho, alaranjado), dois setores na arquibancada inferior (amarelo e alaranjado), camarotes e áreas VIP. Para a pesquisa, as credenciais concedidas pela Minas Arena só nos dava acesso às arquibancadas superior e inferior. Como éramos três pesquisadores e como a arquibancada era composta por seis setores, fazíamos um escalonamento por jogo entre os setores. Desse modo, dividíamo-nos entre os setores Roxo Superior, Amarelo Inferior, Amarelo Superior, Vermelho, Laranja Inferior e Laranja Superior, como seve na figura 3.

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Figura 3 – Desenho esquemático dos locais de pesquisa dentro do Mineirão. Em colorido estão os setores da arquibancada e, em branco, a Esplanada

Fonte - Adaptado do Site Oficial do Cruzeiro, 2014.

Quando os portões do estádio eram abertos, já estávamos em nossos locais de trabalho e, à medida que os/as torcedores/as chegavam e se acomodavam nos assentos, iniciávamos a abordagem. Esse processo se encerrava trinta minutos antes da partida começar. Posteriormente, devido a nossa percepção e à narrativa de que novas formas de apropriação do espaço estavam se constituindo em dias de jogo, aumentei o campo da pesquisa para a Praça Alfredo Camarate, localizada a, aproximadamente, 550 metros do Mineirão, como monstra a figura 4.

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Figura 4 – Plano esquemático dos locais de pesquisa tendo como destaque a Praça Alfredo Camarate

Fonte - Google Maps 2015. Nota - Escala aproximada: 1: 100.

Já, na situação Esplanada (figura 5), iniciei a ida ao Mineirão, de forma aleatória, todos os dias da semana e em horários para uma caminhada de identificação desse espaço, verificando os sujeitos que o frequentavam, o que faziam, quando faziam. A partir de agosto de 2014, concentrei as visitas nos finais de semana, por apresentar maior quantidade de usuários e também de práticas. Ao chegar à esplanada, costumava dar de duas a três voltas ao redor do estádio observando os sujeitos, as práticas desenvolvidas e as formas de interação. Às vezes, estabelecia o diálogo com algum usuário. Entretanto, esse proceder não estava dando conta de responder aos problemas. Iniciei, assim, a fase de aplicação dos formulários. Com ele, chegava aos grupos/sujeitos existentes. Na maioria das vezes, ele foi aplicado individualmente, porém houve situações em que necessitei

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aplicá-lo em mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Em outros casos me vi tendo que aplicar o formulário caminhando ao lado do sujeito pesquisado. Essa inserção no campo não tinha hora para iniciar e nem para acabar, respeitava o horário de funcionamento da esplanada e a saturação do ambiente.

Figura 5: Delimitação do espaço reservado para a pesquisa na esplanada

Fonte - Google Maps 2015. Nota - Escala aproximada: 1:50.

1.4.6 Análise dos dados

Para dar conta da variedade de estratégias utilizadas para a coleta de dados, utilizo uma variedade de estratégia para analisá-los. Assim, recorro ao processo de triangulação dos dados, isto é, um “[...] procedimento de uma validação instrumental feita por meio de uma confrontação de dados recolhidos a partir de uma variedade de estratégias” (GOMES, AMARAL, 2005, p. 57). Ela permite a verificação de que os dados, recolhidos de formas distintas, não se contradigam, ajudando no entendimento do todo. Dessa forma, os dados coletados por meio dos formulários foram tabulados utilizando o pacote estatístico Statistican Package for Social Sciences (SPSS) para Windows, versão 21.0. Esse software permite gerar relatórios e gráficos a partir do cruzamento de variáveis, o que possibilita fazer uma análise descritiva do fenômeno estudado.

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Dos registros feitos em caderno de campo, a partir da observação participante, depois de lidos, foram elencadas algumas categorias para análise do fenômeno estudado: formas de uso/apropriação do espaço, sujeitos, valor de uso/valor de troca. Por fim, as entrevistas semiestruturadas, depois de transcritas, foram analisadas elencando as categorias de análise. Para um melhor entendimento e para dar mais fluência ao texto, tentando captar a particularidade de cada situação pesquisada, optei por fazer uma intra- análise dos dados. Todavia, reconheço que as formas de uso e apropriação do Complexo Mineirão têm relações entre si, de modo que a análise feita não esgota em si mesma, podendo ser lida também como uma inter-análise das situações de pesquisa e das práticas realizadas.

1.5 Estrutura do texto

Diante do exposto, este capítulo traçou o problema de pesquisa, apresentando os objetivos, a justificativa do estudo, os materiais e os métodos utilizados. O segundo capítulo – Construindo a Cidade, o Bairro e o Estádio – constitui-se na apresentação do campo investigado, levando o leitor a conhecer o Mineirão. Aborda alguns aspectos da formação de Belo Horizonte e também da região onde foi construído: a Pampulha. Leva em consideração também o período em que foi erguido e a transformação ocorrida na região mediante a sua inauguração. Este capítulo se encerra na inauguração do estádio. O capítulo três – Dos usos e apropriações antes da reforma ao processo de reforma/reformulação do Mineirão – inicia com os usos e apropriações do Mineirão antes da reforma. Na sequência, contextualiza os meandros da candidatura do Brasil a país sede da Copa, o fechamento do estádio para as obras de adequação ao padrão FIFA e as mudanças que ocorreram no estádio. Para tanto, abordo as temáticas relacionadas aos megaeventos esportivos, à mudança no conceito de estádio e à discussão sobre a cidade no modo de produção capitalista.

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No quarto capítulo – Usos e apropriações do Mineirão pós-reforma – (re)conhecendo o espaço e os sujeitos da pesquisa – começo a expor as análises dos dados da pesquisa de campo, apresentando os espaços do Mineirão após a reforma e o perfil dos participantes da pesquisa nas duas situações pesquisadas. No capítulo cinco – Para além do futebol – usos e apropriação do Mineirão na Situação Esplanada – detenho-me nas formas de uso e de apropriação do Mineirão na Situação Esplanada. Dialogo com referenciais que abordam a temática do lazer e o espaço urbano. No sexto capítulo – Minha segunda casa: usos e apropriações do Mineirão pós-reforma pelos torcedores e torcedoras – apresento os dados coletados na Situação Futebol. Para analisar os dados, trago referências que tratam da transformação mercadológica do futebol, bem como a particularidade do torcer no Mineirão. Por fim, as Considerações Finais procuram responder as indagações iniciais e refletir sobre o estudo de modo a lançar outras possibilidades de estudos como o meu e questões que sugerem estudos a partir deste.

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2 CONSTRUINDO A CIDADE, O BAIRRO E O ESTÁDIO

Para compreender os motivos que levaram à construção do Mineirão, é importante situá-lo na cidade em que foi edificado, isto é, Belo Horizonte e também onde está situado, a Pampulha24. Acredito que seja importante fazer essa discussão histórica, já que “[...] cada lugar, embora ligado a uma totalidade que se autoconstrói ao longo da história, tem sua especificidade relacionada ao entrecruzamento dos tempos diferenciados” (CARLOS, 2001, p. 46). Esses tempos entrecruzados produzem “[...] heranças físico-territoriais [e também] heranças sócio-territoriais” (SANTOS, 1996, p. 36) que influenciam a produção e reprodução do espaço, uma vez que incide na convivência e/ou sobreposição de novas formas em relação às velhas formas em um espaço e em suas formas de uso. Com os estádios ocorre raciocínio análogo, uma vez que sua forma e seus materiais de construção sofrem as influencias das técnicas de cada tempo. Em alguns permanecem as rugosidades, outros são destruídos totalmente. Todavia, em ambos os casos, “[...] refletem os processos econômicos, sociais e espaciais com os quais a sociedade se desenvolve” (BALE, 1993, p. 18). Belo Horizonte apresenta uma característica peculiar: a de ter sido uma cidade planejada, e como tal, passou a existir, como resultado de “[...] acordos políticos25 que visavam ao reerguimento da economia do estado após o esgotamento do ciclo da mineração” (MENDONÇA, ANDRADE e DINIZ, 2015, p. 16) e pautada no discurso da modernidade e do progresso. Esse discurso, aliado à matriz de cidade planejada, influencia o desenvolvimento dessa capital de tal modo que alguns autores (MAIA e PEREIRA, 2009; CAMPOS e SILVA, 2013), vislumbram três marcos distintos de crescimento e de desenvolvimento de Belo Horizonte:

24 Cabe aqui esclarecer que, ao me referir ao termo Pampulha estarei abordando o espaço que abarca o Conjunto Arquitetônico da Pampulha (incluindo a Lagoa da Pampulha), situado entre os bairros São Luís e Bandeirantes (ocupado pelas classes médias e altas de Belo Horizonte). Essa nota se torna relevante uma vez que Pampulha também é o nome de uma das nove regionais político- administrativas da cidade de Belo Horizonte, composta por 43 bairros e ocupada, predominantemente, por uma população de classe trabalhadora. 25 Esses acordos foram fruto da disputa entre as elites mineiras: mineradora, na Região Central; agropecuária, na Região Sul e cafeicultora, na Zona da Mata.

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surgimento (1897), inauguração do Conjunto Arquitetônico da Pampulha (1943) e o projeto Linha Verde que ganhou força com o advento da Copa do Mundo (2014)26. Embora sejam condições econômicas, socioculturais, políticas e geográficas distintas entre esses três períodos, os projetos trazem uma característica em comum: buscar “[...] uma racionalidade, uma normatização do espaço urbano, com produção de exclusão social” (MAIA e PEREIRA, 2009, p. 8). Além disso, Campos e Silva (2013) apontam que o esporte, especificamente o futebol, como produto da modernidade, influenciou as modificações do espaço urbano e a produção de sentidos para o mesmo, nesses três períodos apontados.

A cada período surge um novo discurso que altera a memória e os significados das práticas de renovação urbana numa produção ampliada do esquecimento (MAIA e PEREIRA, 2009, p. 3).

Retomamos aqui a discussão do binômio antigo/moderno, iniciada no capítulo anterior, com o binômio velho/novo. De acordo com Le Goff (2013), as sociedades históricas forjam o vocabulário de modernidade nas grandes viradas de sua história, advindo de um sentimento de ruptura com o passado. Atrelado ao moderno surge a ideia do novo e do progresso. Na maioria das vezes, novo adquire um sentido positivo, já que se refere a um nascimento, um recém-aparecido, um começo que “[...] com o Cristianismo, assume o caráter quase sagrado de batismo. É o Novo Testamento, a Vita Nuova de um Dante, que nasce com o amor” (LE GOFF, 2013, p. 94). Entretanto, novo também apresenta um sentido perverso, uma vez que, além de indicar uma ruptura com o passado, “[...] significa um esquecimento, uma ausência de passado” (LE GOFF, 2013, p. 94). Já progresso refere-se a uma linha de evolução positiva (LE GOFF, 2013), sempre em comparação com o outro, tido como desenvolvido. No caso, esse outro, primeiramente, veio dos países da Europa imperialista e também, em termos de Brasil, das cidades de maior porte e alto grau de influência. Sob essa perspectiva, o subdesenvolvimento/desenvolvimento torna-se relacional e se configura em atrasos/avanços em certos campos de análise.

26 Os dois primeiros períodos serão temas deste capítulo. O terceiro período será discutido em um capítulo posterior.

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Assim, o sentido de progresso, e de moderno, se atualiza a cada tempo, a cada invenção de uma nova técnica de intervenção no espaço: luz elétrica, saneamento básico, asfalto, bondes, automóveis, telégrafos, telefone, avião, educação escolarizada, hábitos de comportamento, fibra ótica, estádios, enfim, cada um como representação de progresso e desenvolvimento – dentro das características do modelo de produção capitalista – de seu tempo. Entretanto, todo esse processo será mais ou menos agressivo, dependendo da forma como os fatos são abordados dentro de uma sociedade.

O pôr em jogo do antagonismo antigo/moderno é constituído pela atitude dos indivíduos, das sociedades e das épocas perante o passado, o seu passado. Nas sociedades ditas tradicionais, a Antiguidade tem um valor seguro; os Antigos dominam, como velhos depositários da memória coletiva, garantes da autenticidade e da propriedade. Estas sociedades voltam-se para os conselhos dos antigos27 (LE GOFF, 2013, p.93). (Destaque nosso)

2.1 Da capital idealizada à capital real

Belo Horizonte, a capital28 do estado de Minas Gerais, tem seu nascimento datado, isto é, passou a existir em 12 de dezembro de 1897, quando foi oficialmente inaugurada, batizada de Cidade de Minas29·. Junto a ela, nasceram outros modos de planejar a vida. Antes, em suas terras, havia o Arraial do Curral Del Rey30, cujos moradores foram desapropriados pela Comissão Construtora, autorizada pelo Decreto n. 680, de 14 de janeiro de 1894 (PENNA, 1997) para a construção da nova capital.

Para que a nova capital de Minas passasse a existir, seria necessário que o velho Arraial do Curral d’El Rey — suas “ruas tortuosas e estreitas, suas casas baixas e deselegantes” — deixasse de existir. Mais de uma vez, o engenheiro-chefe da

27 O autor ressalva que, nessas sociedades, embora haja o respeito pela velhice, há, em contraposição, um desprezo pela decrepitude. 28 Até o nascimento de Belo Horizonte, a capital de Minas Gerais era Ouro Preto. 29 A denominação de Belo Horizonte só seria dada em 1901. 30 Para uma maior compreensão sobre o Curral Del Rey – sua extensão, economia e história – consultar Resende (2004).

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Comissão Construtora, Aarão Reis, fora ouvido dizer “que não queria nenhum dos antigos proprietários [...] dentro da área traçada para a nova cidade, e que tratasse o povo de ir se retirando”. Que se resignassem os curralenses, portanto, diante do fato de que a utilidade de seus terrenos não seria mais a mesma: o que se anunciava era uma cidade modelar, onde não cabia o tortuoso, nem o estreito, nem o baixo, nem o deselegante. Encarregou-se, então, a Comissão Construtora de exercer a sua atribuição o mais rapidamente possível, antes que, “por meio de obras, consertos e benfeitorias fossem valorizados os imóveis que teriam de ser desapropriados” (PENNA, 1997, p.102). (Destaques nossos)

Na análise de Penna (1997, p.103) “[...] o pequeno proprietário, não- capitalista, no antigo Arraial seria convertido em não-proprietário na nova cidade”, o que confere uma transição na organização urbana sobre as práticas de propriedade e a transformação da terra em mercadoria de acumulação capitalista31. Excluída da população que outrora vivia nessas terras32, a Planta Geral da Cidade de Minas, concluída em 23 de março de 1895 e aprovada pelo Decreto n. 817, de 15 de abril do mesmo ano (PENNA, 1997; RODRIGUES, 2006), previa três zonas de ocupação: urbana, suburbana e rural. Nos dizeres do presidente da Comissão Construtora da cidade, Aarão Reis33

[...] foi organizada a planta da futura cidade dispondo-se na parte central, no local do actual arraial, a area urbana de 8.815.382 m2, divididas em quarteirões de 120 X 120m, pelas ruas, largas e bem orientadas, que se cruzam em ângulos retos, e por algumas avenidas que as cortam em ângulos de 45o. As ruas fiz dar a largura de 20 metros, necessária para a

31 Penna (1997) aponta que, antes de sua inauguração, ainda em 1895, por meio do Decreto n. 803, o Estado autorizava a venda e revenda dos terrenos do perímetro e se dava ao direito de reservar alguns quarteirões e lotes que somente seriam vendidos dez anos após a instalação da nova capital, como forma de exercer controle sobre o preço da terra e direcionar a expansão da cidade. Estipulou, nesse primeiro momento uma tabela fixa de preços de acordo com a metragem e localização dos lotes, bem como a quantidade de lotes por adquirentes e o tempo de edificação. Posteriormente, esse Decreto foi modificado e passou a não fixar um preço mínimo e nem a quantidade de lotes por adquirentes, o que resultou em um grande comércio de compra e venda de lotes, como justifica um grande proprietário de lotes da época “[...] para mim, o progresso disto é uma questão de tempo. Por isso tenho comprado quantos lotes me aparecem em boas condições” (PENNA, 1997, p.38). 32 Penna (1997) descreve que a forma de desapropriação foi feita por indenização, com valor insignificantíssimo. A justificativa para a escolha se dava não só pela desconfiança da concretização da construção de uma nova capital, como também da urgência da entrega dos imóveis à Comissão Organizadora e o desencorajamento de fixação da antiga população na nova cidade, já que, para isso, deveriam adquirir um lote equivalente ao valor de uma casa e quintal. 33 Aarão Reis, engenheiro paraense, foi um dos responsáveis pela projeção e execução da nova capital, tornando-se Presidente da Comissão Construtora de Belo Horizonte. Pautado nos ideais positivistas de neutralidade na ciência, em sua equipe de trabalho, evitou relacionar-se com os interesses locais e evitou empregar profissionais mineiros (RESENDE, 2004).

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conveniente arborização, a livre circulação de vehiculos, o tráfego dos carris e os trabalhos da collocação e reparações das canalizações subterrâneas. As avenidas fixei a largura de 35m, sufficiente para dar-lhes a belesa e o conforto que deverão, de futuro, proporcionar á população. Apenas á uma das avenidas – que corta a zona urbana de norte a sul, e que é destinada à ligação dos bairros opostos – dei a largura de 50 metros, para construil-a em centro obrigado da cidade e, assim, forçar a população, quanto possível, a irse desenvolvendo do centro para a peripheria. Como convém à economia municipal, à manutenção da higiene sanitária, e ao prosseguimento regular dos trabalhos technicos. Essa zona urbana é delimitada e separada da suburbana por uma avenida do contorno, que facilitará a conveniente distribuição de impostos locaes, e que, de futuro, será uma das mais apreciadas bellezas da nova cidade. A zona suburbana, de 24.930.803 m2, – em que os quarteirões são irregulares, os lotes de áreas diversas, e as ruas traçadas de conformidade com a topographia e tendo apenas 14m de largura – circunda inteiramente a urbana, formando varios bairros, e é por sua vez envolvida por terceira zona de 17.474.619 m, reservada aos sítios destinados á pequena lavoura (RODRIGUES, 2006, p. 41).

Seu planejamento teve como inspiração o modelo francês dos traçados do Barão de Haussmann por meio dos bulevares e amplas avenidas e o desenho reticulado da cidade de Washington. A região central, com as características descritas acima, seria arborizada e nela se localizariam os prédios públicos, serviços, bancos, praças e igreja matriz. Essa área seria delimitada por uma avenida circular, denominada Avenida do Contorno. A região suburbana, para além da referida avenida, seria composta por chácaras que poderia servir como forma de expansão da área central e, por fim, a zona rural seria a responsável pelo abastecimento da cidade com produtos agrícolas (CARVALHO, 2005; MAIA e PEREIRA, 2009). É o que se vê na figura 6.

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Figura 6 – Planta da Cidade de Minas, com destaque para a região urbana e interesses de lazer34

Fonte – RODRIGUES, 2006, p. 48.

Observa-se que o plano da cidade foi traçado, geometricamente, em linhas retas, não deixando brechas para o crescimento desordenado e dentro de uma orientação positivista e médico-higienista35, pautada na proporção e na hierarquia, que visava à ordem e buscava “[...] disciplinar o espaço físico, adaptando-o às exigências econômicas e sociais, com a criação racionalizada de vias de circulação, nas quais a salubridade e a higiene ditavam as regras” (RODRIGUES, 2006, p. 45). Além disso, esse desejo pela modernidade vinha aliado ao repúdio a tudo o que estivesse ligado à herança colonial barroca. Assim, enquanto a capital Ouro Preto era tida como cidade caótica, de ruas estreitas e sinuosas, rica e escravocrata

34 Do projeto original, apenas o Jardim Zoológico não foi executado. 35 O pensamento higienista expressou-se no Brasil no século XIX e perdurou até início do século XX sendo um dos responsáveis pela mudança na mentalidade das pessoas e nas suas práticas. Legitimado pelo conhecimento anátomo-fisiológico e seguindo alguns preceitos médicos, reconhecia um “[...] novo estilo de vida ‘atlético’, [...], ‘espontaneamente disciplinado’ e ‘saudável’” (PAIVA, 2003, p. 69). Para maiores esclarecimentos, conferir em PAIVA, Fernanda S. L. Constituição do campo da educação física no Brasil: ponderações acerca de sua especificidade e autonomia. In: BRACHT, V.; CRISORIO, R. (Orgs.). A educação física no Brasil e na Argentina: identidades, desafios e perspectivas. Campinas: Autores Associados, 2003, p. 63-80.

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pela mineração do ouro, com casarões rebeldes, Belo Horizonte foi pensada para, além de abrigar a grandiosidade do momento, representar a renovação econômica e a consolidação do domínio rural em detrimento da política central e mineradora (CARVALHO, 2005). Verificamos que o projeto de construção de Belo Horizonte se encontrava inserido em um contexto mais amplo. Tendo como base um ideal moderno, burguês e cosmopolita, foi fruto do momento que o Brasil estava vivendo frente à Proclamação da República36.

A nova capital mineira foi pensada para unificar o Estado e implantar valores econômicos, ideológicos e culturais compatíveis com a República e com a sobreposição de um mundo urbano e industrial sobre a geografia agrária e rural que comandara Minas no século 19 (BRANDÃO, 2009, p.101).

O modelo adotado estava em conformidade com os modelos estéticos europeus, pois a Europa era a grande referência em termos de civilização e progresso. Vale ressaltar que a própria Europa também passou por transformações urbanas, no sentido de possibilitar o crescimento e desenvolvimento das cidades. Entretanto, tanto no Brasil, quanto nos países europeus, teve a França como referência.

Essas intervenções foram realizadas de forma elitista, não levando em conta as necessidades reais dos seus habitantes, e sim o capital. Esses modelos permitiam às elites dar materialidade aos símbolos de distinção relativos à sua nova condição, uma vez que procuravam afastar da fase visível da cidade – e das vistas do estrangeiro – o populacho inculto, os desprovidos de maneiras civilizadas, os mestiços (RODRIGUES, 2006, p. 34).

36 Esse era um momento de transformação social, urbana, política e econômica, com isso, muitas cidades brasileiras sofreram reformas urbanas no sentido de “[...] dissipar, pelo menos em parte, o ar provinciano que caracterizava a atmosfera desses locais” (RODRIGUES, 2006, p.35). No Rio de Janeiro, no início do século XX, a reforma urbana de Pereira Passos foi icônica nesse sentido, pois teve como base a reforma urbana de feita pelo Barão de Haussmann, no século XIX. O prefeito Pereira Passos fez uma grande transformação de reforma, saneamento e urbanização na capital, visando às questões estéticas, sanitárias, viárias e habitacionais da cidade, transformando a paisagem da cidade. Assim, ruas estreitas e escuras e os cortiços foram derrubados para o nascimento de avenidas largas, arborizadas e iluminadas onde se edificariam construções dignas de uma capital federal. Além disso, houve a abertura das avenidas beira mar. Com esse conjunto de intervenções a cidade do Rio de Janeiro deixou de ser a Cidade da Morte e passou a ser a Cidade Maravilhosa. Tal reforma, atendia aos padrões burgueses de segregação e ordem urbana. Além disso, “[...] as intervenções eram de natureza simbólica, isto é, de construção de representações adequadas ao relativamente novo modelo econômico” (MELO, 2006, p. 1).

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Além da produção de espaços físicos, produzia-se também a forma como os habitantes iriam ocupá-los, já que “[...] ao ser criada para atender às demandas da vida moderna, a cidade deveria promover mudanças profundas na vida social e cultural dos mineiros” (RODRIGUES, 2006, p. 45). Todavia, o que se via de fato era que a cidade construída, tecnificada, burocratizada e racionalizada, contrastava com a herança do estado de Minas Gerais, tradicional e rural, como também dos habitantes do antigo Arraial. Brandão (2009) narra que, pelas esquinas da cidade, havia um encontro entre o passado, o presente e o futuro. Um encontro entre os costumes e as memórias trazidas do passado rural que necessitavam ser abandonados e desaparecer frente à expectativa do que a cidade viria a ser, junto à importação de valores, pessoas e materiais. Penna (1997, p.103) conclui que “[...] nas primeiras décadas de sua existência, a Belo Horizonte que já fora convertida em produto, não havia ainda sido convertida em obra”. Para compreender essa afirmação, é necessário recorrer a Lefebvre (2001). Lefebvre (2001) aponta que a sociedade moderna tem como ponto de partida o processo de industrialização do século XVIII e, entre as suas consequências, a problemática urbana. O autor compreende que “[...] o processo de industrialização é indutor dos problemas relativos ao crescimento, as questões referentes à cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana, sem omitir a crescente importância dos lazeres e das questões relativas à cultura” (LEFEBVRE, 2001, p. 11). Entretanto, Lefebvre (2001) afirma que as cidades não são fruto do processo de industrialização, ao invés disso, elas preexistem à industrialização, por assim dizer, antes desse processo já havia várias cidades e, cada qual, com suas características econômicas, políticas e sociais. Cita, como exemplo, as cidades orientais, a cidade arcaica, a cidade medieval. Quando a industrialização começa, isto é, quando surge o modo de produção capitalista37, as cidades já tinham um grande lastro, pois eram “[...] centros de vida social e política onde se acumulam não

37 O modo de produção capitalista introduziu e potencializou a divisão social do trabalho, trouxe a racionalização do espaço, criando locais específicos para cada atividade e a racionalização do tempo, instituindo o tempo do trabalho e o do não-trabalho.

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apenas as riquezas como também os conhecimentos, as técnicas e as obras (obras de arte, monumentos)” (LEFEBVRE, 2001, p.12). É nesse sentido que o autor afirma que

[...] a própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas, na direção dos produtos. Com efeito, a obra é valor de uso e o produto é valor de troca. O uso principal da cidade, isto é, das ruas e das praças, dos edifícios e dos monumentos é a Festa (que consome improdutivamente, sem nenhuma outra vantagem além do prazer e do prestígio, enormes riquezas em objetos e em dinheiro) (LEFEBVRE, 2001, p. 12).

Corroborando com a teoria marxista, o autor afirma que valor de uso e valor de troca têm uma relação dialética. Ao valor de uso Lefebvre (2001, p. 53) destaca a “[...] fruição, a beleza, o encanto dos locais de encontro”. Carlos (2001, p. 41) complementa afirmando que o valor de “[...] uso são os modos de apropriação do ser humano para a produção de sua vida (e o que isso implica)”. Em relação ao valor de troca, Lefebvre (2001, p. 35) compreende que são “[...] os espaços comprados e vendidos, o consumo dos produtos, dos bens, dos lugares e dos signos”. Assim, mediante esses apontamentos, é possível afirmar que Belo Horizonte nasceu como fruto de um período em que se necessitava romper com as ideias anteriores que constituíam a sociedade brasileira. Enquanto alguns estados trataram de reformar suas cidades, conformando-as ao período vigente, Minas Gerais tratou de mudar a sua capital construindo uma nova cidade38, onde o valor de troca se deu em primeiro plano. Belo Horizonte, enquanto obra era frágil, pois toda a acumulação que apontava para a obra no âmbito do Arraial do Curral Del Rey foi desprezada e morta pela nova cidade e habitus39 que se produzia.

38 Um dos argumentos vigentes é que não era possível fazer a expansão de Ouro Preto, já que a cidade é cercada por morros. 39 O sociólogo francês Pierre Bourdieu chamou de habitus o fato de os sujeitos incorporarem uma determinada estrutura social, uma matriz cultural, que influi em seu modo de sentir, pensar e agir, de tal forma que se tornem propensos a confirmá-la e reproduzi-la, mesmo que nem sempre de modo consciente. Tal incorporação, repetida de forma indefinida, faz com que o passado se perpetue. Para maiores esclarecimentos, conferir em BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p.133-84, jul./dez. 1995.

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2.1.1 O futebol como agente indutor da produção do espaço urbano

Dentre as transformações propostas pela modernidade havia o estilo de sociabilidade voltada para o espaço público. Assim, dentro do projeto urbanístico de Belo Horizonte havia áreas destinadas aos parques, às praças e aos jardins (RODRIGUES, 2006), conforme apresentado, anteriormente, na figura 6. Isso deu origem a novas experiências sociais, entre elas, o lazer. De acordo com Melo (2006), as vivências de lazer trouxeram uma nova forma de vivenciar o espaço público40, possibilitando uma nova forma de organização urbana41, articulada com a ideia de modernidade e com o nascimento da sociedade do espetáculo42. Assim, o esporte e as práticas corporais, enquanto uma das possibilidades de vivenciar o tempo-espaço de lazer e coadunando com um modo de vida europeu, constituíram um ambiente propício para o desenvolvimento de novas condutas, a apropriação de novos hábitos e uma das formas de Belo Horizonte se reivindicar enquanto obra, isto é, seu valor de uso. De acordo com Elias e Dunning (1992), o esporte moderno surge nas Public Schools da Inglaterra a partir da regulamentação, sistematização e adaptações de práticas culturais. Sua origem é concomitante com o processo de industrialização e urbanização inglesas, em um contexto de mudanças social, política e econômica, com o advento da burguesia enquanto classe econômica e o capitalismo como modo de produção. Os autores descrevem que, em termos sociais, as mudanças foram decorrentes de um longo processo, denominado processo civilizador pelo qual passou a sociedade ocidental. Uma das características desse processo foi a diminuição da tolerância à violência manifesta, como consequência, diminuíram as guerras e os confrontos sanguinários, passando a população, pelo menos as elites,

40 Melo (2006, p.2) sinaliza que o novo estilo de vida estava impregnado pela “[...] ideia de luxo, pelas marcas de classe, pela influência da tecnologia, pela espetacularização do corpo, pela valorização da imagem, pela perplexidade perante a velocidade e a fugacidade”. 41 O autor aponta que, para compreender o lazer, também é necessário compreender a sua relação com as classes sociais e a urbanidade na produção da cidade. Baseando-se na obra de Mills (1979), o autor aponta que, com o novo modelo econômico, surgiu na cena urbana o “[...] pequeno-burguês, trabalhador intermediário entre o grande capital e o proletariado, o pequeno empresário, os profissionais liberais” (MELO, 2006, p. 2). Conferir também MILLS, Charles W. A nova classe média. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 42 O autor se refere ao livro homônimo de Guy Debord, 1997.

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a ter um maior autocontrole de suas emoções e de seus atos, via regras sociais. Dessa forma, o esporte surge como uma representação civilizada da guerra, no qual há um nível de aceitação, ritualização e controle da violência física. Com isso, a educação inglesa passou a ter, no esporte, um dos pilares para compreender que a vitória deveria ser alcançada de forma pacífica e dentro das regras igualitárias que promoveriam valores civilizatórios presentes no fair play. Dentre os esportes, o futebol foi um dos principais produtos de exportação dos valores da Inglaterra: potência mundial do século XIX. De um modo geral, no Brasil, os primeiros registros43 da prática de futebol datam de 1878 com marinheiros ingleses jogando futebol nas praias brasileiras durante seus momentos de folga. Além deles, o início do futebol também está ligado aos colégios jesuítas, aos funcionários ingleses que trabalhavam nas filiais das matrizes inglesas e aos filhos das classes abastadas que voltam ao Brasil depois de seus estudos na Inglaterra (MELO, 2000). A apropriação do futebol pelos brasileiros trouxe consigo os debates sobre a incorporação de uma prática europeia, logo, civilizada. Em relação aos vários esportes que passaram pela recém-inaugurada capital mineira, foi o futebol que fincou suas raízes. De acordo com Ribeiro (2012), até a chegada do futebol em Belo Horizonte, em 1904, a cidade havia vivenciado experiências muito efêmeras no que diz respeito aos exercícios físicos, uma vez que a capital não apresentava tradições esportivas44.

Apesar desses esforços iniciais, a população se mostrou refratária aos exercícios ao ar livre. As iniciativas esportivas, a exemplo de outras tentativas de implantação de divertimentos na cidade, não tiveram vida longa. Ao que parece, as visões de mundo dos habitantes, em boa parte originários do interior do Estado, não coincidiam com os preceitos relativos à prática atlética naquela época (RIBEIRO, 2012, p. 93).

43 Para o aprofundamento da origem do futebol em algumas partes do Brasil, consultar: MASCARENHAS, Gilmar. A bola nas redes e o enredo do lugar: uma geografia do futebol e seu advento no Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001; PEREIRA, Leonardo. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000; FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; RIBEIRO, Raphael R. A bola em meio a ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904- 1921). Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, História e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007; DIAS, Cléber. Primórdios do futebol em Goiás (1907-1936). Revista História Regional, Colômbia, v.18, p.31-61, 2013. 44 Ainda assim, passaram pela capital: clubes de ciclismo, turfe e boxe que se estabeleceram por pouco tempo. Conferir em Rodrigues (2006).

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Ribeiro (2012) afirma que, nesse sentido, Belo Horizonte se diferenciava de outros centros brasileiros, entre eles, o Rio de Janeiro, onde as modalidades esportivas estavam se estabelecendo de um modo mais efetivo. No final do século XIX e no início do século XX, nos quais predominava o pensamento higienista, o futebol foi considerado uma prática saudável, responsável pela formação da vitalidade física e moral da juventude: disciplina, decisão, iniciativa, coragem e solidariedade. Além disso, privilegiava a coordenação do movimento em detrimento da força. Assim, logo se transformou em uma atividade nobre, útil na promoção da higiene e da saúde sendo incorporada às aulas de educação física dos meninos nas escolas da elite (PEREIRA, 2000). Nesse contexto, Souza Neto (2010) e Ribeiro (2012) apontam que, em Belo Horizonte, iniciava-se a ‘mania foot-ball’, isto é, nos espaços públicos, jovens vindos das classes abastadas – denominados de sportmen e sportwomen – apegavam-se aos novos valores de progresso e modernidade, cujo espírito esportivo, seja na prática ou na assistência, era uma característica. Ademais, a associação de uma vida social mais intensa e pública (possibilitada no e pelo futebol) com um incremento das relações pessoais acabava por legitimar o discurso do esporte como um elemento social desejável. Assim, jogar futebol e assistir às partidas em Belo Horizonte se tornava, cada vez mais, uma importante vivência social que contribuía para a ocupação da cidade.

Áreas destinadas aos divertimentos ao ar livre, como o Parque Municipal e lotes vagos da região central, eram convertidas em campos de jogo. O contexto local favorecia essa situação. Apesar de inaugurada há uma década, Belo Horizonte ainda contava com inúmeros terrenos baldios, mesmo nos bairros centrais. Com a tolerância e até o apoio do poder público e dos proprietários, os clubes criavam ali seus espaços de treino (RIBEIRO, 2012, p. 98).

Entretanto, tal prática não se desenvolveu sem um estranhamento. De acordo com Souza Neto (2010), os que não pertenciam à classe dos sportmen e sportwomen, sejam eles oriundos das classes abastadas, intelectuais ou literatos, teciam críticas e se opunham ao universo esportivo, alegando que não contribuiria para o desenvolvimento do caráter, como, por exemplo, as palestras literárias. Ainda segundo o autor supracitado, mesmo sofrendo críticas e estranhamentos, o futebol estava se efetivando como uma prática social, imbuído do

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sentido da festa, já que, em algumas partidas, havia a presença de bandas de música. Além de se configurar como divertimento público e como sociabilidade pública, havia o sentido moderno de ver e ser visto. Com isso, também começava a ganhar contornos cada vez mais estruturados, transformando-se, paulatinamente, em mercadoria consumida de forma incipiente por um mercado que se forma. Parte desse mercado era constituído, segundo Melo (2006), pelo pequeno burguês, uma classe constituída de forma hibrida, já que compartilhava de algumas vivências comuns com a classe mais privilegiada, mas também era afastada por essa, por não ter os mesmos códigos de conduta. Dessa forma, o pequeno burguês passou a ser foco de interesse pela também incipiente indústria do lazer, já que as atividades de lazer “[...] passaram a ser valorizadas como maneira de quebrar a monotonia do mundo do trabalho desse grupo social que possuía algum poder de compra e consumo” (MELO, 2006, p. 3). Nesse contexto, o ‘pobre’ e a classe trabalhadora, embora presentes, ainda não estavam inseridos, como aponta o trecho abaixo.

Os pobres – os que não tinham dinheiro para a bola, os uniformes e os ingressos espiavam por cima do muro. Mesmo os que conseguiam pagar o preço da geral, sentiam-se intrusos no espetáculo: os craques, ao saudarem a torcida, nunca se dirigiam a eles, mas à seleta assistência da arquibancada, bouquet de moças e rapazes de boa família (SANTOS, 198145, apud SOUZA NETO, 2010, p. 37).

À medida que o tempo passava, clubes foram fundados, terrenos sem uso no centro de Belo Horizonte foram transformados em locais de treino, partidas de caráter interestadual foram disputadas e uma Liga foi criada (RIBEIRO, 2012), tendo o Prado Mineiro46 se transformado no primeiro estádio de futebol da capital. Souza Neto (2010) observa que, ao longo dos tempos, verifica-se um movimento da passagem da assistência para um sentimento de identificação/pertencimento a um clube específico (ainda que embrionário), além do aumento da popularidade do

45 SANTOS, Joel R. dos. História Política do Futebol Brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981. 46 Construído em 1906 para, “[...] por meio de corridas, exposições de outros divertimentos e meios de seu alcance, promover o desenvolvimento da raça cavallar neste estado” (RODRIGUES, 2006, p.129), o Prado Mineiro se instalou na região suburbana, distante 2 km do centro da cidade, conforme estabelecido na planta de construção da cidade e com arquibancada com capacidade para 1.500 pessoas. Conferir figura 1.

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futebol incorporando, não apenas os grupos distintivos da sociedade e o desenvolvimento de uma rivalidade entre as equipes. Além disso, como o processo de urbanização se intensificava na cidade, criou-se a demanda por transporte público para atender a uma parcela específica que se deslocava até o Prado Mineiro para assistir às partidas lá disputadas. “Pela relativa e incômoda localização do Prado Mineiro - principal palco de realização das partidas de futebol na cidade – sendo considerado distante demais e de difícil acessibilidade, ações pontuais intencionavam minimizar esta questão” (SOUZA NETO, 2010, p. 48). Nesse aspecto, uma das ações foi a melhoria das linhas de bonde até o local. Campos e Silva (2013) analisam que o surgimento de novas linhas de transporte público favorecia o desenvolvimento do futebol por permitir um afluxo maior de pessoas aos eventos esportivos. Além disso, a utilização mais efetiva do Prado Mineiro e o sistema de transporte implementado também contribuíam para o desenvolvimento da região criando infraestrutura, comércio e moradia. Ribeiro (2012) aponta que, em 1920, os principais clubes da capital já estavam consolidados, mas novas forças ainda surgiam. Assim, havia a demanda por novos espaços para a construção de novos estádios, já que os campos existentes e o Prado Mineiro passavam a ser considerados inadequados. Assim, com o crescimento e fortalecimento do futebol em Belo Horizonte, com a demanda por novos espaços que comportassem mais público e com a ajuda do poder público, até o final da década de 1920, os principais clubes da capital trocaram seus campos e construíram seus estádios: Estádio Otacílio Negrão de Lima, do América Football Club; Estádio Antônio Carlos, do Clube Atlético Mineiro e Estádio Juscelino Kubitschek, do Cruzeiro Esporte Clube47. Segundo Santos (2005a), eles tinham uma envergadura média e eram modestos em sua capacidade, já que nenhum dos três tinha capacidade maior que 12 mil espectadores e, em jogos importantes, eles não conseguiam suprir a demanda causada pela popularidade do futebol. O acirramento das competições e da rivalidade entre os clubes contribuiu para a efervescência popular em torno desse esporte, bem como o surgimento de

47 Cabe ressaltar que nenhum dos três estádios existe na atualidade. No terreno onde era o estádio do América foi construído um hipermercado, no do Atlético um shopping center e no do Cruzeiro estabeleceu-se a sede social do clube.

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uma cultura esportiva que era, ideologicamente, imposta à sociedade nesse período (CRUZ, 2010; SCHETINO, 2014; FERREIRA, 2015). Ademais, o futebol em Belo Horizonte não estava em consonância com a nova representação que esse esporte adquiriu durante a Era Vargas. Em 1933, durante o período denominado Governo Provisório (1930-1934), houve a profissionalização do futebol, o que trouxe à cena esportiva discussões sobre os rumos desse esporte nas várias praças esportivas, tendo como eixo o embate entre o que se denominou amadorismo e profissionalismo48. Durante o período chamado de Estado Novo (1937 – 1945), Vargas ordenou a construção de um estádio. O Estádio Municipal Pacaembu foi inaugurado em 1940. Sua arquitetura estava pautada em uma nova concepção de intervenção no espaço urbano de erguer um monumento. Além do futebol, o espaço era próprio para abrigar manifestações cívicas e políticas do governo Vargas. Com sua capacidade de 70 mil espectadores, São Paulo passou a ter o maior estádio de futebol do Brasil, título pertencente ao estádio de São Januário (RJ), com capacidade para até 50 mil pessoas (CRUZ, 2005). Em Belo Horizonte, um grande estádio só foi edificado na capital mineira com o advento da Copa do Mundo de 1950. Tratava-se do Estádio Raimundo Sampaio, popularmente conhecido como Estádio Independência, cuja capacidade de público era de 30.000 pessoas e que possibilitou à capital sediar três jogos da principal competição mundial de futebol. O Estádio Independência, localizado no bairro do Horto, região leste de Belo Horizonte, adquiriu esse nome por ser de propriedade do extinto clube Sete de Setembro Futebol. Até a inauguração do Mineirão, este era o principal (e único) estádio de Belo Horizonte, onde os três clubes da capital (América, Atlético e Cruzeiro) disputavam suas partidas, além da seleção mineira de futebol49 (SANTOS, 2005a; SCHETINO, 2014). Quatro anos depois da inauguração do Independência, porém, começou- se a ventilar a necessidade de construir outro estádio em Belo Horizonte, com

48 Para um maior esclarecimento sobre como se deu esse movimento em Belo Horizonte, olhar em MOURA, 2012. O amadorismo, o profissionalismo, os sururus e outras tramas: o futebol em Belo Horizonte na década de 1930. In: O futebol nas gerais. Op.cit. 49 O Independência, em 1997, passou a ser a casa do América, quando este incorporou a equipe do Sete e registrou o estádio como patrimônio do clube. Para maiores informações, conferir em Santos (2005a), Schetino (2014).

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maiores proporções, uma vez que, não conseguindo finalizar a obra dentro do prazo disponível e com o orçamento apertado, o Independência ficou modesto em suas medidas, apresentando problemas de infraestrutura e de acomodação da imprensa, frustrando, assim, a expectativa dos mineiros de dispor de um grande estádio que os inserisse, definitivamente, no cenário futebolístico nacional fazendo frente aos clubes do Rio de Janeiro e São Paulo, que, já nessa época, tinham grandes estádios: Maracanã50 e Pacaembu, respectivamente. Todavia, esse desejo ficou adormecido até final dos anos 1950, quando foi dado o pontapé inicial para a construção do Mineirão e só foi concretizado com a sua inauguração em 1965. Esse tema será abordado no item 2.3. Nota-se, nesse contexto, que, assim como há um esforço para produção do espaço e sua reprodução, há também a produção de um futebol e a sua reprodução. Esse processo, em termos futebolísticos, teve uma mudança muito rápida de conceito. Conforme Bale (1993), em menos de 100 anos, o futebol deixou de ser um divertimento público, um passatempo, praticado em espaços abertos para se transformar em um produto comercializável, praticado em locais próprios e em horas específicas e cujos estádios são frutos da transformação desse esporte em commodities.

2.2 A construção da Pampulha

Nesse ínterim, Belo Horizonte se desenvolvia com ares de modernidade, destacando-se no cenário mineiro, consolidando-se como centro administrativo e principal polo comercial e cultural de Minas Gerais, gerando emprego, ampliando sua rede hospitalar e as redes públicas e privadas de ensino, expandindo sua rede viária e ferroviária articulando-se com as regiões do estado, constituindo-se em um incipiente centro industrial de produção de bens de consumo não duráveis e instalando siderúrgicas em seu entorno (RESENDE, 2004; TUNUCCI FILHO et al., 2015).

50 O Maracanã - Estádio Jornalista Mario Filho – foi construído às margens do rio Maracanã para sediar a Copa do Mundo realizada no Brasil, em 1950 e tinha capacidade de 155 mil lugares. Foi considerado o maior estádio de futebol coberto do mundo.

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Obviamente, uma transformação tão radical no modo de vida não ocorreu, em Belo Horizonte, como um passe de mágica. Só lentamente as elites mineiras se adaptaram àquele novo cenário urbano e adquiriram novos hábitos, vencendo suas resistências e desajustes. [...] Mas, apesar das impressões de abandono ou provincianismo, não se pode deixar de admitir que o cenário urbano acabou por inspirar um modo de vida moderno na capital. Processo que, aliás, alimentou-se, justamente, dessas forças ambíguas e paradoxais, originando uma sociabilidade repleta de hibridismos. O desejo pelo novo articulava-se com o apego ao velho, assim como o cosmopolitismo com hábitos e valores tradicionais. Isso sem falar que a capital, ao mesmo tempo em que oferecia espaços adequados e atraentes para o convívio público, contraditoriamente inibia, com sua “geografia” segregacionista e disciplinadora, a interação entre os indivíduos (JULIÃO, 199651, apud SOUZA NETO, 2010, p. 20).

Não diferentemente das outras cidades brasileiras, Belo Horizonte apresentou problemas de infraestrutura urbana, uma vez que a sua urbanização não ocorreu como o planejado: do centro para a periferia, mas, sim, com os espaços suburbanos e periféricos sendo ocupados, de forma desordenada, por parcela da população, migrantes e imigrantes, que chegavam à capital, mas não tinham condições de fixar-se na área urbana. Além disso, havia na cidade uma deficiência no abastecimento de água potável, consequência do crescimento populacional e territorial. Somavam-se a isso o desejo e a necessidade de melhoria das questões sanitárias e o controle das cheias em períodos chuvosos (RESENDE, 2004, VIANA, 2013). Em meados da década de 1930, a solução encontrada foi o represamento do Rio Pampulha, a partir da construção da Barragem da Pampulha, pelo então prefeito Otacílio Negrão de Lima (1935-1938). A intenção era a de “[...] retificá-la, canalizá-la, a fim de salubrizar bairros inteiros, trazendo vantagens de ordem estética e de tráfego, além de conquistar novas áreas de edificação” (VIANA, 2013, p. 4). Somada à construção da barragem, as novas áreas de edificação indicavam “[...] para a pavimentação e calçamento de avenidas, construção de viadutos, arborização, construção do primeiro bonde e funcionamento de novas linhas, instalações elétricas domiciliares, iluminação pública, fechamento de

51 JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna (1891-1920). In: DUTRA, E. F. (Org.). BH: horizontes históricos. Belo Horizonte: C/Arte, 1996, p. 49-118.

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propriedades com muros e construção de passeios” (BELO HORIZONTE, 193752, apud VIANNA, 2013, p. 4). O prefeito apontava, com essas ações, o investimento em obras de infraestrutura e a inauguração de novos serviços urbanos.

Em torno do grande lago, circundado por uma avenida em construção, é fácil prever a edificação de um novo e pitoresco bairro de recreio, destinado a atrair a afluência daqueles que, em dias de folga, queiram entregar-se a entretenimentos, repousando do diuturno labor da cidade. A larga superfície líquida presta-se aos esportes de natação e remo, assim como o pouso de hidroaviões. Com a proximidade do campo de aviação, o bairro Pampulha constituirá, pois, um “aero-porto” para servir excelentemente a Belo Horizonte (ANAIS...193653, apud FERREIRA, 2007, p.56).

Assim, emergia a Pampulha na paisagem urbana de Belo Horizonte, distante, aproximadamente, 12 km da região central. Primeiramente foi pensada de forma utilitária para a resolução de um problema urbano, mas, posteriormente, teria um valor simbólico, constituindo-se como uma marca da cidade e de um governo. O bairro54 foi idealizado em um vazio urbano, isto é, afastado da centralidade, e coincide com um momento de espraiamento dos grandes centros urbanos. De acordo com Santos (2005c), o funcionamento da sociedade urbana transforma seletivamente os lugares, afeiçoando-os às suas exigências funcionais, com isso, diversas parcelas da cidade ganham e perdem valor (simbólico) ao longo do tempo, acoplados com o sistema socioeconômico e o modelo ideológico sobre desenvolvimento e modernidade. Dessa forma, ainda, segundo o autor, fatores políticos e econômicos norteiam o crescimento das cidades e o “[...] desenho urbano, importado da Europa, vai ser modificado” (SANTOS, 2013, p. 20). Isso foi o que ocorreu com Belo Horizonte, quando transbordou para além da Avenida do Contorno, conforme demonstra a figura 7.

52 BELO HORIZONTE. Relatório apresentado a S. Ex. o Sr. Governador Benedicto Valladares Ribeiro pelo Prefeito Octacílio Negrão de Lima e rellativo ao período administrativo de 1935 - 1936. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, Acervo APCBH, Coleção Relatórios anuais de atividades da Prefeitura de Belo Horizonte, 1937. 53 ANAIS DA CÂMARA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE. Sessão de instalação, reuniões extraordinárias de agosto e setembro; reunião ordinária de setembro, outubro e novembro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1936, p.16. 54 Posteriormente subdividido em outros bairros, fazendo com que o bairro Pampulha deixasse de existir.

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Figura 7 – Mancha urbana de Belo Horizonte55

Fonte - http://www.nomads.usp.br/virus/virus04/project/img/img2_g_pt.jpg

Resende (2004) e Ferreira (2007) apontam que, para compreender a região da Pampulha e os desdobramentos sobre ela, é preciso se debruçar sobre dois momentos: a Pampulha Velha e a Pampulha Rica/Nova, sendo que Resende (2004) ainda aponta para a possibilidade da Pampulha Abandonada56. Embora com o mesmo nome, são três histórias, culturas e espaços distintos com tratamento diferenciado oferecido pelo poder público e pela população de Belo Horizonte, mas que convivem dentro de uma mesma regional político-administrativa.

Protegida a leste pela Aeronáutica, a oeste por um Batalhão da Polícia Militar, ao norte pela Polícia Civil e ao Sul pelo Exército (tem até um Corpo de Bombeiros), a Pampulha Rica dorme tranquila, como uma cidade feudal. Ao seu alcance está o melhor transporte terrestre, aéreo e “aquático”; a melhor universidade, os melhores clubes e os maiores estádios; as melhores diversões e na passagem do ano assiste a um apoteótico espetáculo pirotécnico. Já a outra Pampulha, a Abandonada, tem muitos ‘campos de pelada’, de terra vermelha [...] onde os “pés vermelhos” se divertem, o zoológico com bichos sonolentos e as capivaras, garças e jacarés da lagoa, que não está assoreada, mas mais parece um “rio- esgoto” [...]. E para a outra, mais velha das três, sobra o ronco dos aviões que sobrevoam [...] serão as máquinas que voltaram para arrastar o que restou? Pesadelo que ainda atormenta [...] a Pampulha velha vive de luto. Fogos de artifício estouram em duas épocas: na data da Padroeira do Brasil e nas Festas do Congo (REIS, 199657, apud RESENDE, 2004, p. 65).

55 No mapa, o círculo em preto representa o traçado inicial de Belo Horizonte e, em azul, a Lagoa da Pampulha. 56 A Pampulha Abandonada não será objeto desta pesquisa. 57 REIS, M. F. dos. As três pampulhas. O Tempo, Belo Horizonte, 17-23 ago. 1996, Seção Comunidade, p.5.

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2.2.1 A Pampulha Velha

Embora a Pampulha tenha ganhado notoriedade durante o mandato do prefeito Juscelino Kubitschek (1940-1945), sua origem é anterior a esse período. Aliás, é anterior à própria fundação da cidade de Belo Horizonte. Segundo Resende (2004), a região da Pampulha Velha fazia parte de um grande latifúndio chamado Bento Pires que, por volta de 1771, foi dividido em várias fazendas, para diferentes proprietários. E, como desdobramento da posse, surgiu a Fazenda Pampulha.

Entre as áreas rurais de maior expressão socioeconômica dos vetores Norte e Oeste de Belo Horizonte encontravam-se fazendas que foram, em grande parte, recortadas em glebas. Entre estas, incluía-se a Fazenda Pampulha, que recebeu, no final do século XVIII, uma pequena população de portugueses e escravos. Junto à Fazenda e ao longo do ribeirão de mesmo nome, nasceu, a partir da última década do século XIX, o que se designou posteriormente Pampulha Velha. Correspondendo à área de expansão agrícola, formada por um conjunto de glebas e fazendas, a Pampulha Velha teve seus primeiros sinais de urbanização no início do século XX. Naquela época, além dos colonos portugueses ali já estabelecidos, italianos se fixaram no lugar, então denominado Santo Antônio da Pampulha. Esses colonos, ao ratificarem e assumirem a posse das glebas, formaram um dos primeiros bolsões de abastecimento de Belo Horizonte (LEMOS, 200658, apud, FERREIRA, 2007, p. 48).

Na Pampulha Velha existia um estilo de vida rural e religioso. Rural devido à atividade agropecuária advinda pelo acumulado de fazendas, pela baixa densidade populacional (cerca de 40 famílias), pela dificuldade de deslocamento até o centro de Belo Horizonte e pela baixa tecnificação do espaço. Religioso pela sociabilidade constituída pelas práticas religiosas exercidas: procissões, missas, festas e a benzeção (RESENDE, 2004; FERREIRA, 2007). Insatisfeitos com a forma pela qual a região estava sendo utilizada, o poder público, na década de 1930, iniciou os primeiros investimentos nessa região, sendo que, o de maior expressão, foi a construção do Aeroporto de Belo Horizonte, popularmente denominado Aeroporto da Pampulha e inaugurado em 1933, com o

58 LEMOS, Celina B. Belo Horizonte nas décadas de 1940/1950 e o impacto da Pampulha. In: CASTRO, Mariângela; FINGUERUT, Silvia (Orgs.). Igreja da Pampulha: restauro e reflexões. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2006, p. 60-74.

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objetivo de aproximar a capital a outras cidades, principalmente o Rio de Janeiro59. Para a realização dessa obra, foram desapropriados 200 mil metros quadrados ocupados pelas fazendas da região. Juntamente com o desejo de modernidade local, existia no Brasil um desejo pela integração do território, com a construção de aeroportos, interligação das estradas de ferro, construção de estradas de rodagem que permitiriam a articulação das diversas regiões entre si e também com a região polar do País dentro de um programa de investimento em infraestrutura que possibilitava uma fluidez do território (SANTOS, 2005c, 2013). Paralelamente à consolidação do aeroporto, o prefeito Otacílio Negrão de Lima iniciava a obra para a construção da barragem da Pampulha o que foi finalizada em 1938.

Ali onde vocês pescam nas horas de folga será um aeroporto, onde jogam bola será uma represa, onde tem horta será um conjunto de casas, onde os bois pastam soltos será uma praça. A “Estrada Velha” será asfaltada e “ficará” novinha, disseram os estranhos [...] eles destruíram tudo, expulsariam todos dali tal como fizeram com os moradores do Curral Del Rey? (REIS, 1996, apud RESENDE, 2004, p. 64).

A essa área ainda estavam destinadas obras de pavimentação de ruas, construção de praças, implementação de iluminação pública e a gradativa substituição das cercas de arame das casas por muros e/ou grades (VIANA, 2013). Nesse ritmo, a Pampulha Velha foi construindo o seu caminho e sua identidade, afastando-se, ainda mais, da Pampulha que se iniciava a partir da Barragem e se dividindo em alguns dos vários bairros que compõem a regional político- administrativa da Pampulha.

2.2.2 A Pampulha planejada para ser o novo locus da modernidade da capital

Em 1940, Juscelino Kubitschek foi nomeado prefeito de Belo Horizonte e seu mandato duraria até 1945. Seguindo a visão varguista para o desenvolvimento

59 Primeiramente, foi de uso militar, apenas na segunda metade da década de 1930 que estava apto a receber voos de passageiros (FERREIRA, 2007).

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brasileiro, isto é, o nacionalismo econômico, político e cultural, Juscelino Kubitschek fez uma administração revolucionária na capital mineira (CHACON, 2005). Nesse período, quis alterar a imagem da cidade de administrativa para cidade moderna. Para isso, dedicou-se à renovação da área central, abriu e asfaltou ruas, liberou o tráfego em toda a extensão da Avenida do Contorno, incentivou as artes, construiu arranha-céus, criou museu e, conferindo a arquitetura60 um papel de destaque na propagação de um ideal de modernidade, colocou Belo Horizonte no cenário internacional com a criação do complexo arquitetônico da Pampulha (CARVALHO, 2005; FERREIRA, 2007). Juscelino também cuidou da expansão da cidade em direção ao oeste e ao norte, numa tentativa de recolocá-la no cenário nacional (juntamente com o estado de Minas). A oeste, além de incentivar a criação da Cidade Industrial Juventino Dias61, que tinha por objetivo concentrar a produção industrial da cidade e congregar o projeto industrial do estado, edificada no município de Contagem, o prefeito investiu nesse vetor de expansão que passaria a ser denominado eixo industrial62 prolongando o traçado da Avenida Amazonas até essa região (MONTE- MÓR, 1994; TONUCCI FILHO et al., 2015). Em direção ao norte, Juscelino, em parte, deu sequência aos projetos de Otacílio Negrão de Lima principalmente no que referia à questão viária. Com isso,

60 Juscelino convidou o artista plástico Alberto Guignard para fundar, em 1943, uma escola de artes. A Escola Guignard teve seu apogeu até o ano de 1962 quando o artista deixou a sua direção. A presença de uma escola de arte de renome contribuiu para a Exposição de Arte Moderna em 1944, evento que trouxe a Belo Horizonte os nomes mais importantes da arte moderna, propiciando a inserção da cidade no circuito das artes plásticas (FERREIRA, 2007). 61 Situada em um dos municípios que compõem a região metropolitana de Belo Horizonte e denominada popularmente Cidade Industrial de Contagem, esse parque industrial, de 4km2, foi oficialmente inaugurado em 1946. Todavia, nos primeiros anos não cumpriu com o objetivo proposto, entre outros fatores, pela ausência de infraestrutura de transporte e comunicação, a fragmentação do território e o baixo investimento em eletrificação. O desenvolvimento da região se deu na década seguinte, já com Juscelino Kubistchek à frente do governo estadual em Minas Gerais e com a política centrada na produção de infraestrutura, principalmente, sob o binômio energia e transporte. Assim, em 1952, foi criada e instalada na região a Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), resolvendo o problema de carência de energia e, posteriormente, houve a instalação das principais fábricas. Além disso, asfaltou as estradas que ligavam Belo Horizonte e a Cidade Industrial a São Paulo e Rio de Janeiro, bem como construiu o Anel Rodoviário (TONUCCI FILHO et al., 2015). Verificamos, com isso, que a implantação desse parque industrial contribuiu para o processo de metropolização da região metropolitana de Belo Horizonte, bem como para a conurbação entre essas duas cidades. 62 O local escolhido dentro da região oeste era estratégico, pois estava situado entre a estrada de ferro e a Rede Mineira de Viação. A Avenida Amazonas ganhou centralidade econômica, já que, em uma direção ligava a Cidade Industrial à estação ferroviária, principal terminal de transporte de cargas (situado no área central de Belo Horizonte), e, no outro sentido, era a principal via de ligação externa da cidade com São Paulo, o principal mercado nacional (MONTE-MÓR, 1994; TONUCCI FILHO et al., 2015).

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implantou a Avenida Pampulha63 que facilitou o acesso até o novo bairro e o integrou ao restante da cidade. As obras em torno da Lagoa seguiam o seu ritmo com a pavimentação da avenida64 de 18.300 metros que a circulava, o plantio de árvores e a implantação de um sistema de iluminação. Isso atraía as primeiras casas para a região. Assim, Juscelino desejava construir ali um bairro residencial e centro de atração turística que faltava em Belo Horizonte (FERREIRA, 2007, VIANA, 2013). Contrariando as indicações dadas pelo urbanista francês Alfred Agache65 que vislumbrava para a região a implantação de uma cidade-satélite ocupada pelas camadas de baixa renda para suprir a demanda do crescente aumento populacional e déficit de habitação66 e também a criação de uma zona de abastecimento hortigranjeiro para a capital, Juscelino preferiu criar um bairro de elite, com lotes de 1.000m2, ao redor de um lago artificial em cujas margens seriam construídos equipamentos de lazer e turismo: um cassino, um iate-clube, um restaurante/casa de baile, um hotel e um clube de golfe, além de uma capela (RESENDE, 2004; FERREIRA, 2007). Viana (2013) aponta que o prefeito idealizava a Pampulha como o bairro mais encantador da capital. Ele vislumbrava ali uma série de atrações que seriam fator preponderante para o desenvolvimento do intercâmbio turístico, considerado uma rendosa indústria. Gustavo Capanema67 indicou o jovem arquiteto Oscar Niemayer para a concepção do projeto arquitetônico. Este, tendo a leitura da recém-Carta de Atenas68

63 Posteriormente denominada Avenida Presidente Antônio Carlos. 64 Primeiramente denominada Avenida Getúlio Vargas, passou a se chamar Avenida Otacílio Negrão de Lima. 65 Alfred Agache era um conceituado urbanista francês e foi responsável por diversos projetos urbanos, inclusive no Brasil, entre eles, traçou um plano de remodelação urbanística para o Rio de Janeiro e o Plano Diretor da cidade de Curitiba (FERREIRA, 2007). 66 Posteriormente, a especulação imobiliária converteu a região norte em local de moradia para a classe trabalhadora. 67 O mineiro Gustavo Capanema, ainda nos seus tempos de universitário, vinculou-se, em Belo Horizonte, ao grupo de intelectuais da rua da Bahia, entre os quais, Carlos Drummond de Andrade e Milton Campos. Em 1927, iniciou-se na vida política e, em 1934, foi nomeado Ministro da Educação e Saúde durante o governo de Getúlio Vargas, onde permaneceu até o fim do Estado Novo, em 1945. Ligado a diversos artistas de vanguarda e tendo em mente o desejo de propagar o progresso e a modernização do País, Gustavo Capanema convidou o arquiteto e ex-diretor da Escola Nacional de Belas Artes, Lucio Costa, para projetar o prédio do Ministério. O jovem arquiteto Oscar Niemeyer fazia parte da equipe de trabalho e o prédio construído, o edifício Gustavo Capanema, localizado na cidade do Rio de Janeiro, é considerado um marco no estabelecimento da arquitetura moderna no Brasil. Conferir em e também em FGV CPDOC biografias.

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(PEREIRA, 2004) e sendo influenciado pelos traçados de Le Corbusier69 (RESENDE, 2004), planejou e construiu a Pampulha indo além do funcionalismo modernista e evidenciando a beleza plástica, dando a esta, um valor central em suas obras. Para a integração da obra à paisagem, convidou, entre outros artistas modernistas, Cândido Portinari para cuidar das pinturas e Burle Marx para a elaboração dos jardins.

Figura 8: Croqui do projeto para o Complexo Arquitetônico da Pampulha

Fonte: https://histarq.wordpress.com/2012/11/19/aula-5-o-movimento-moderno-no-brasil/

Em 1943, diante de cerca de 20 mil espectadores, o presidente Getúlio Vargas faz um passeio de barco nas águas da Lagoa da Pampulha, inaugurando oficialmente o Complexo Arquitetônico70, composto pelo Cassino, pela Casa do Baile, pela Igreja de São Francisco de Assis e pelo Iate Golfe Clube (figura 8). Este seria o polo turístico, cultural e esportivo da cidade.

A Pampulha constituía-se em uma utopia urbana modernista, na qual as curvas e a leveza esboçadas nos projetos de Oscar

68 Carta de Atenas, de 1933, é um manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, realizado em Atenas. Dentre os vários aspectos descritos pela Carta, as aproximações se dão em relação à preservação da área verde, à criação de lagos artificiais, ao distanciamento das áreas de lazer do centro da cidade e à construção de vias de acesso (PEREIRA, 2004). 69 Le Corbusier foi um dos representantes da arquitetura modernista e sua obra era considerada funcionalista. “O funcionalismo pregava a arquitetura funcional, que criava espaços para cumprir as suas funções, onde cada forma do espaço deve expressar-se e adaptar-se à sua finalidade, dispensando ornatos e detalhes em profusão” (RESENDE, 2004, p. 57). 70 O Complexo foi inaugurado mesmo com algumas edificações ainda em processo de construção. Posteriormente, Niemeyer projetou uma residência de campo para Juscelino que contribuiu para a maneira de morar dos belo-horizontinos. Entretanto, alguns dos projetos elaborados não foram materializados: o Parque da Pampulha que englobava campo de golfe, espaço para o hipismo e um clube de caçadores e o Hotel que seria instalado próximo ao Cassino.

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Niemayer para a área prometiam romper radicalmente com a paisagem quadriculada predominante na região central e contida pela Avenida do Contorno. Nas palavras do arquiteto, desejava-se uma arquitetura guiada pela imaginação, não pelo esquadro. A abertura de avenidas de acesso garantia que os automóveis compusessem a paisagem charmosa e acolhedora dos novos hábitos sociais urbanos, moldada por muitas das mais caras e elegantes mansões da cidade (DUARTE, 2009, p. 33).

Percebemos, nesse contexto, que a produção do espaço constituído na Pampulha teve como objetivo simbolizar a modernidade (mais uma vez), tanto por sua forma arquitetônica e urbanística como também pela constituição de um espaço de vivências sociais que expressariam seus valores, constituindo novos hábitos e costumes. Se o seu despontamento na paisagem belo-horizontina se deu pelo prefeito Otacílio Negrão de Lima ao construir a Barragem e vislumbrar edificações no local, o seu requinte e sua elegância se deram a partir do prefeito Juscelino Kubitschek que convidou um arquiteto que cumpriu a missão de substituir o traçado em linhas retas (considerado retrógado) por um traçado em curvas, mais arrojado, moderno e brasileiro que prometia maior integração das formas além de inserir o concreto armado como material da construção civil. Com isso, percebemos que Juscelino buscou, por meio da arquitetura e da elaboração simbólica sobre o espaço produzido, tanto o seu reconhecimento e projeção nacional e internacional, como também a inserção de Belo Horizonte (e, como consequência, Minas Gerais) nos dois cenários.

2.2.3 Usos de lazer na Pampulha

Nesse novo espaço que se constituía, os usos da Pampulha, no âmbito do lazer, por meio dos bailes, festas, jogo e práticas esportivas, trouxeram uma mudança de mentalidade. Essa alteração teve um impacto simbólico e atingiu a todas as classes sociais em vários aspectos, não apenas no que diz respeito ao lazer, mas também às novas aspirações de moradia, de convívio social e o desejo de serem modernos para parecerem atuais. Viana (2013) argumenta que, atrelada às novas experiências, existia também uma euforia cultural que produzia um novo patamar de riqueza e de

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consumo. Com isso, de acordo com Ferreira (2015), a região logo se transformou no principal cartão postal da cidade e passou a despertar o interesse, não apenas dos moradores da capital, mas também dos visitantes que vinham do interior do Estado e do restante do País. O Cassino71, primeira edificação projetada, quando inaugurado, chamou a atenção, além de sua arquitetura e desenho paisagístico integrados com o espelho d’água da Lagoa, “[...] por ser a primeira atração noturna da Pampulha e uma das primeiras de Belo Horizonte, um ponto de encontro da alta sociedade da época” (RESENDE, 2004, p. 71). Os seus salões de jogos e de festas, com decoração luxuosa, fez com que logo se tornasse uma atração turística nacional e internacional, das classes abastadas72. A Casa do Baile73 foi construída em uma ilha artificial e se destaca pela sua marquise repleta de curvas, seguindo o movimento do espelho d’água da Lagoa. Está localizada do lado oposto do Cassino, bem como é oposta a sua utilização, uma vez que foi encomendada pela Prefeitura “[...] um local destinado às diversões populares, havendo, portanto, duas finalidades na execução dessa obra – a de valorização artística da Pampulha e a função social, como diversão sadia para o povo” (FERREIRA, 2007, p.65). Sobre o aspecto popular atribuído à Casa do Baile, corroboramos o posicionamento de Resende (2004) e Ferreira (2015), quando questionam o uso desse termo, ao apontar que, naquela época, a cidade crescia desordenadamente e as classes menos abastadas concentravam-se nas áreas periféricas da cidade, afastadas, inclusive dos serviços de infraestrutura básica. Somado a isso, embora tivesse sido inaugurada a principal avenida que ligava a Pampulha ao centro da cidade e houvesse um aumento, tanto da malha viária, quanto dos transportes públicos na capital em direção ao oeste e ao norte, os

71 Com a proibição do jogo no Brasil, em 1946, teve suas atividades encerradas. Reabriu, em 1957, transformando-se no Museu de Arte de Belo Horizonte, mas sem o glamour de outrora. 72 “Era ali que milionários fazendeiros apertados em smokings, mulheres elegantes, com carros modernos e importados e motoristas uniformizados, encontravam-se para desfrutar dos prazeres e riscos do jogo” (ESTADO DE MINAS, 1995, apud RESENDE, 2004, p. 72). 73 A Casa do Baile também teve vida curta, já que o fechamento do Cassino, em 1946, teve influência direta sobre suas atividades. Assim, em 1948, a Casa do Baile fechava as suas portas por inviabilidade econômica. A partir de então, sob a posse da Prefeitura, foi utilizada para os mais diversos fins (salão de festas, depósito, abrigo para mendigos, restaurante particular) ao mesmo tempo em que foi tombada como patrimônio. Em 2002, a Casa do Baile foi reaberta, após a sua restauração, transformando-se em Centro de Referência de Urbanismo, Arquitetura e do Design (RESENDE, 2004).

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bondes, efetivamente, “[...] chegam até a Pampulha em 1947” (FERREIRA, 2007, p.58). Com isso, podemos afirmar que o principal meio de transporte para acessar essa região da cidade era o automóvel. E, como a Casa do Baile sofreu, indiretamente, as consequências do fechamento do Cassino (o que sugere que esses dois equipamentos se inter-relacionavam e tinham frequentadores em comum), deduzimos, então, que a Casa do Baile foi projetada para uma classe média que não deveria gastar as horas de lazer no Cassino, mas que estava disposta a dançar (uma prática de lazer considerada saudável, dentro de uma normativa funcionalista e higienista que vigorava na sociedade). Assim, o sentido de popular torna-se contraditório. Dos equipamentos planejados, a Igreja São Francisco de Assis era o único cujo objetivo não era a diversão, uma vez que foi uma forma de Juscelino homenagear o seu pai, por meio de seu santo de devoção, e também abençoar as obras da Pampulha com a presença sagrada, considerando o sentimento religioso e o forte catolicismo mineiro (VIANA, 2013). A arquitetura da Igreja lembra o perfil das montanhas de Minas, devido à sinuosidade de suas curvas74. Por fim, o Iate Golfe Clube foi projetado para as práticas esportivas, “[...] para que os esportes como os do remo e da vela possam ser praticados pela mocidade, completando-se as finalidades de um plano de aperfeiçoamento da raça, do qual o Minas Tênis Clube é centro irradiador” (FERREIRA, 2007, p. 66). Utilizaria, para isso, as águas da represa. Além da vocação para os esportes náuticos, o Clube dispunha de piscinas e salão para festas e eventos sociais, além de bar e restaurante75. Nos dizeres de Juscelino,

[...] não estaria completa a Pampulha se ali não fossem feitas obras destinadas ao aperfeiçoamento físico do homem, pelos exercícios esportivos. O próprio lago com suas dimensões imensas era um convite à administração, para que não tardasse com os trabalhos destinados à prática de esportes.

74 Nesse projeto Niemeyer foi ousado ao expressar “a modernização da religiosidade, através da nova estética mostrada ao clero, que por sua vez não sabia interpretá-la” (RESENDE, 2004, p.80). Inaugurada em 1947 os clérigos da época a consideravam obra de “velhacos que sonham com invenções e subversões de ordem social” (FERREIRA, 2007, p.69) e com isso só foi consagrada em 1959, quando o município a doou para a Arquidiocese de Belo HorizonteDos quatro equipamentos é o único que cumpre a sua função inicial. Embora a secretaria da Igreja esteja aberta todos os dias, a visitação ao seu interior só é possível aos domingos. 75 Em 1961, por meio de concorrência pública, o Iate foi vendido a particulares, apesar de protestos. Passou a ser chamado Iate Tênis Clube. Os descontentes com o processo fundaram outro clube, o Pampulha Iate Clube (GARCIA, 2007).

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Não hesitamos em dar à Pampulha os elementos destinados ao aprimoramento do corpo. Conhecedores que somos da importância dos exercícios ao ar livre, preparamos um centro de prática intensiva dos esportes. Surgiu, então, o Iate Golfe Clube, dotado de instalações modernas, para que os esportes como os do remo e vela possam ser praticados pela mocidade, completando as finalidades de um plano de aperfeiçoamento da raça (Juscelino Kubitschek, 1940-1941, apud FERREIRA, 2015, p.46).

Percebemos que havia uma relação entre o projeto de cidade moderna, pretendida por Juscelino, e de nação moderna, desejada pelo governo de Getúlio Vargas, na qual os esportes tinham centralidade, já que eram relacionados à função de disciplinar o corpo, promover o aperfeiçoamento da raça, preparar os corpos para o trabalho e integrar o território dando o sentido de Nação76 (SCHETINO, 2014). No que tange ao uso da Lagoa da Pampulha – considerada o “[...] Mar de Minas” (VIANA, 2013, p. 17) – para o esporte náutico (algo incomum para uma capital não litorânea) parece que o Rio de Janeiro foi uma referência. De acordo com Melo (2006), na capital federal, tinha-se difundido a ideologia que associava o mar ao estilo de vida moderna e o remo carregava características dessa associação, uma vez que era considerado um “[...] esporte da saúde, do desafio – contra o outro e contra o mar – que educa o músculo e a moral. É a prática adequada a uma juventude altiva, forte e com ‘liberdade de espírito’ suficiente para conduzir a nação ao progresso necessário” (MELO, 2006, p. 8)77. Além disso, a presença dos esportes náuticos traz outras representações para a população belo-horizontina, uma vez que entra em cena uma nova maneira de relacionar-se com o corpo: exibindo-o e exercitando-o. A novidade e a efervescência causadas pelas práticas de lazer na Pampulha fizeram com que, na orla, também ocorressem corridas de motocicletas, sob a organização do Cicle Moto Clube de Minas e corridas de automóveis promovidas pelo Automóvel Clube (VIANA, 2013), dando visibilidade à região e

76 Para Vargas, o esporte era um dos elementos constitutivos do progresso nacional e uma das formas de controlar o tempo de não-trabalho da massa de operários que surgia com a industrialização brasileira. Também atribuía à mocidade, isto é, aos jovens o futuro do Brasil. Conferir em Schetino (2014). 77 Vale ressaltar que a discussão sobre o remo no Rio de Janeiro refere-se à virada no século XIX para o século XX, diferentemente do que ocorre na Pampulha. Na década de 1940, os esportes náuticos, tais como remo, vela e regatas, já possuíam grande notoriedade no contexto das vivências tipicamente urbanas no Rio de Janeiro.

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ressaltando a centralidade do automóvel na sociedade urbana e industrial brasileira, atribuindo a velocidade à conotação de modernidade. Dos usos não previstos para a Lagoa, a pesca tornou-se a prática exercida pelos trabalhadores. Entretanto, foi controlada78, restrita aos domingos e feriados santos e com o objetivo de os trabalhadores refazerem suas energias gastas durante a semana (VIANA, 2013). Ressalta-se, porém, que a pesca também tinha o sentido de subsistência, pois os peixes pescados eram consumidos por essas famílias (sendo que, mais tarde, alguns passaram o comercializá-lo). Verificamos que, em alguns usos da Pampulha, emerge uma preocupação com a ocupação saudável do tempo do trabalhador em uma evidente associação entre tempo do trabalho e do não-trabalho, onde o primeiro é produtivo e, o segundo, para recuperar as forças produtivas, tendo, assim, uma visão funcionalista do lazer. Além disso, é possível identificar que os usos previstos para essa região se destinava à classe economicamente abastada, pela dificuldade de acesso e pelo caráter das atividades desenvolvidas: concertos, óperas, peças teatrais. Como pode ser identificado nos dizeres de Carsalade (200779, apud Viana, 2013, p. 24),

[...] a Juscelino – e a mim mesmo, confesso80 – pouco importavam as acusações de elitismo, tais como aquelas do Frieiro, o Eduardo, que dizia que era ‘tudo muito belo e aprazível’, mas as obras eram “escandalosamente suntuárias para uma cidade pobre. Jogatinas, danças, bebidas...”. A Pampulha era propositadamente elitista, pois era isso que a fazia atrativa e que fazia correr dinheiro, como era seu intento. Imaginávamos, Juscelino e eu, que esse recurso em caixa seria aplicado em benefício de toda a nossa população. Não contávamos, no entanto, que o Dutra fosse fazer o que fez. O fato é que, por influência da sua esposa – lembro-me até hoje da data fatídica – no dia 30 de abril de 1946, o Marechal Dutra proibiu o jogo no Brasil (CARSALADE, 200781, apud VIANA, 3013, p. 24).

78 O Decreto 25, de 31 de maio de 1938, proibia a prática da pesca na represa da Pampulha, em toda a área circunscrita pela avenida Getúlio Vargas, com multa de cem mil réis aos infratores (VIANA, 2013). 79 CARSALADE, Flávio. Pampulha. Coleção BH. A cidade de cada um. Belo Horizonte: Conceito, 2007. 80 Narrador não identificado. 81 CARSALADE, Flávio. Pampulha. Coleção BH. A cidade de cada um. Belo Horizonte: Conceito, 2007.

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Nesse sentido, podemos apontar que na Pampulha há a comercialização de possibilidades de diversão que “[...] estabelece limites, momentos e mesmo lugares específicos para as práticas de diversão” (MELO, 2006, p. 5), cabendo aos trabalhadores as atividades livres à beira da Lagoa. Verificamos que os usos da Pampulha refletem também questões de classe e formas diferenciadas de apropriação da cidade, pois, segundo Carlos (2001, p. 38), “[...] o uso do solo urbano será disputado pelos vários segmentos da sociedade de forma diferenciada, gerando conflitos entre indivíduos e usos, pois o processo de reprodução espacial envolve uma sociedade hierarquizada, dividida em classes, produzindo de forma socializada”. Durante dez anos a Pampulha cumpria o simbolismo com o qual foi concebida: novo locus da modernidade mineira. Em 1954, porém, houve o rompimento da Barragem da Pampulha que alagou uma vasta área da cidade. Entre os prejuízos materiais estavam a morte de animais e plantações, o desmoronamento de casas, a interrupção dos serviços de luz e telefone, total alagamento da pista do aeroporto e ameaça à estrutura das obras do Complexo Arquitetônico (GARCIA, 2007). No plano social, o estrago trouxe à tona a diferenciação entre as pampulhas, a Velha e a Planejada, no que dizia respeito à falta de investimento na Pampulha Velha em relação à falta de escola, à precariedade das moradias, às condições de acesso, enfim, uma vida sem o glamour da Pampulha Planejada (GARCIA, 2007). Já, no plano simbólico, o estrago também era grande, pois se questionava a modernidade pretendida para a região e tinha-se o receio de que a Pampulha caísse em desuso, já que, sem o lago, a região perdeu a sua função estética e as edificações ficaram isoladas em sua função (FERREIRA, 2015). Em meio a tudo isso, no plano político, a paternidade da Pampulha ainda era digna de reconhecimento e de orgulho, por isso, os ex-prefeitos Otacílio Negrão de Lima e Juscelino Kubitschek trataram de se eximir do ocorrido, ao mesmo tempo em que procuravam identificar a obra aos seus governos. Concomitantemente a

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isso, uma comissão era formada para apurar as causas do rompimento82 (GARCIA, 2007). As obras de reconstrução da barragem iniciaram-se em 1954 e, em 1958, a Lagoa da Pampulha foi reinaugurada83, sob um clima festivo, quando estiveram presentes representantes do governo e parcela da população (FERREIRA, 2015), porém sem o frenesi da primeira inauguração. Após a reinauguração da barragem, a meta era recuperar os antigos equipamentos que se encontravam abandonados84 e construir novos equipamentos também com a finalidade de lazer e turismo, como aponta Ferreira (2015). O objetivo era reafirmar a Pampulha enquanto local de “[...] prestígio, centro máximo das atividades sociais, culturais e desportivas de Belo Horizonte” (GARCIA, 2007, p. 101). Verifica-se, porém, que houve uma alteração na forma de ocupação do solo, já que aumentou a construção de clubes privados na região, em detrimento da construção de casas de fim de semana. Além disso, a construção da Cidade Universitária85 naquela região fez com que o mercado imobiliário diversificasse o tamanho dos lotes e passasse a enfatizar, em seus anúncios, os serviços de infraestrutura urbana (luz, água e transporte coletivo, incentivando a residência fixa), em detrimento da beleza do Conjunto Arquitetônico (GARCIA, 2007), o que evidencia o crescimento dos bairros adjacentes.

82 Foi diagnosticado que a barragem se rompeu por problemas que se deram durante a sua construção: utilização de material impróprio, processo pouco recomendável para a formação do maciço, presença de fendas na placa de cimento (GARCIA, 2007). 83 Nesse ínterim, ciência e religiosidade convieram juntas para explicar os ocorridos da Pampulha. No plano científico, trabalhava-se para apurar os fatos e encontrar os responsáveis, bem como dar conta da epidemia de esquistossomose adquirida pelas águas que transbordaram. Do ponto de vista religioso, diziam que a Pampulha sofria uma maldição, originada enquanto os terrenos eram acertados para a construção da barragem. O fato de a Igreja ainda não ter sido consagrada alimentava o misticismo (GARCIA, 2007). 84 O Cassino e a Casa do Baile tiveram outros usos, a Igreja foi consagrada, o Iate passou a pertencer à iniciativa privada, conforme dito anteriormente. 85 Em 1942, foi escolhido o terreno onde seria instalada a Universidade de Minas Gerais. A Fazenda Dalva, na região da Pampulha, foi desapropriada para que, em 1947, se iniciassem os trabalhos de terraplanagem e demolição da sede da Fazenda. Em 1957, começa a ser construído o Campus Universitário, sendo que o primeiro prédio a ser instalado é o da Reitoria. De acordo com Duarte (2009, p. 35), “[...] era um tempo de afirmação de novas práticas, novos valores e novos sentidos para o que Belo Horizonte deveria ser”, havendo, assim, uma sintonia entre cidade e cidade universitária, vinculando os sentidos da modernidade, o perfil vanguardista atribuído às universidades nos idos dos anos 1940 e a presença de um aeroporto. Além disso, a escolha acompanharia o deslocamento do eixo de urbanização da cidade, contribuindo, também, para a renovação urbana que se iniciava.

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Tendo o lazer como finalidade, o primeiro equipamento público inaugurado foi o Jardim Zoológico. Segundo Garcia (2007) e Ferreira (2015), o zoológico trouxe outra configuração para o espaço, uma vez que passou a receber um público mais diversificado que adotava alternativas de lazer mais populares.

A Capital é carente de atrativos, principalmente para aqueles que, relacionados com a natureza, são de gosto do povo. Entre estes, alinha-se o Jardim Zoológico, lacuna ainda não preenchida. Localizado na Pampulha, ao lado de sua função cultural, constituirá, por certo, frequentado sítio de recreio (Américo René Giannetti, 1952, apud FERREIRA, 2015).

Mesmo tendo um conjunto arquitetônico de status internacional, mesmo sendo um dos principais cartões postais de Belo Horizonte, mesmo tendo equipamentos de lazer de usos variados, faltava à Pampulha algo que a consolidasse como local de lazer, como esfera da vida cotidiana das várias classes sociais e que lhe conferisse o sentido de lugar, valor de uso em detrimento do valor de troca. É nesse momento que a história da Pampulha se encontra com a do Mineirão e do futebol como agente indutor.

2.3 Os meandros da construção de um grande estádio

No final da década de 1950, o futebol já estava consolidado enquanto esporte nacional. A realização da Copa do Mundo, no Brasil, em 1950, e a conquista da Copa de 1958, pela seleção brasileira, deram maior visibilidade ao futebol brasileiro, que passa a ter cada vez mais interesse nacional e internacional. Especificamente, em âmbito nacional, os estádios se converteram nos principais equipamentos públicos capazes de convergir milhares de pessoas. Ao mesmo tempo, as competições intra e interestaduais ganhavam destaque no cenário nacional. Em meio ao aumento da centralidade do futebol, de um modo geral, na vida cotidiana brasileira86, o meio esportivo de Minas Gerais se sentia injustiçado por

86 Como dito anteriormente, o esporte e, principalmente, o futebol, foram utilizados por Getúlio Vargas (e por outros políticos que o sucederam) como veículo para a integração do território nacional e do sentimento de nação. Com a criação da Rádio Nacional, as transmissões das partidas disputadas

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não poder equiparar-se aos paulistas e cariocas – que, além do esporte, comandavam as questões político-econômicas do País -, sendo que o principal motivo alegado era a falta de um estádio como o Maracanã, no Rio de Janeiro, ou o Pacaembu, em São Paulo (SANTOS, 2005b). Além disso, Porto Alegre contava com um estádio com 55 mil lugares, o Estádio Olímpico Monumental, pertencente ao Grêmio de Futebol Porto-Alegrense. E Salvador tinha o estádio Estadual da Fonte Nova, com capacidade para 40 mil pessoas (LA CORTE, 2007). Essa falta de estádio adequado também fazia com que o mineiro não se interessasse tanto pelo futebol praticado pelos times da capital em detrimento dos times do eixo Rio-São Paulo. Dessa forma, a crônica esportiva mineira, também limitada em sua atuação, defendia a construção de um grande estádio para que pudessem ter maior visibilidade na profissão. De acordo com Santos (2005b), o raciocínio era simples: um estádio maior que o Independência atrairia e comportaria mais público, a renda aumentaria e, com isso, diminuiria o êxodo de jogadores para o Rio de Janeiro e São Paulo. Além disso, ter um grande estádio aumentaria a autoestima dos mineiros e desenvolveria o campo esportivo (BOURDIEU, 1990). Nesse contexto, começaram a despontar algumas atitudes individuais para a formação do movimento pró-Mineirão. Entre elas, chamam a atenção os esforços do jornalista Jovelino Nunes que, além de redator de uma tradicional rádio da capital e presidente da Associação Mineira dos Cronistas Esportivos, era tesoureiro do extinto Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários87. Nessa função, fazia viagens ao interior do estado e aproveitava para levar material promocional do futebol mineiro. Para sua surpresa, sua mala voltava cheia devido à falta de interesse da maioria das pessoas pelo futebol mineiro.

“Voltei várias vezes com a mala cheia de panfletos, pois ninguém se interessava. As preferências no interior eram para Flamengo, Botafogo, Vasco, Corinthians, Palmeiras e outros clubes”, descreve Jovelino. Ao constatar a indiferença, o pelos times cariocas chegavam até os rincões do território nacional. Com isso, essas equipes se popularizaram e angariaram torcedores e simpatizantes por todo o País. 87 O Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários (IAPC) foi criado, em 1934, durante o governo de Getúlio Vargas, como subcategoria do Instituto de Aposentadoria e Pensão (IAP’s). Tinha como objetivo atender o operariado urbano, nos serviços de aposentadoria, assistência médica e, em alguns casos, assistência habitacional aos trabalhadores e às suas famílias. Em 1964, foi criada uma comissão para reformular o sistema previdenciário que culminou na fusão de todos os IAP’s para a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Informação retirada da FGV/CPDOC.

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jornalista aumenta a sua disposição de apoiar, integralmente, a proposta do novo estádio. “Somente o Mineirão poderia reverter aquele quadro. O estádio produziu uma mudança na rotina do mineiro e ele passou a se interessar pelo futebol daqui”. A partir da inauguração, as malas panfletárias de Nunes, sempre lotadas de tabelas e informações sobre o campeonato estadual, voltavam vazias de suas viagens (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005, p. 20).

Outra atitude foi a dos estudantes da escola de engenharia da UFMG, Gil César de Abreu e Marum Patrus, ambos dirigentes da Federação Mineira Universitária de Esportes, que planejavam construir um estádio universitário, nos terrenos da Universidade, na Pampulha. O grande entrave era convencer o reitor a ceder o terreno e arrumar os recursos necessários para a construção (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005). Pouco tempo depois, abre-se outra frente, dessa vez, encabeçada pelo presidente da Federação Mineira de Futebol, para a construção de um grande estádio na região centro-sul da cidade, às margens da BR-040, inspirado no modelo de gestão do futebol inglês. Os recursos seriam conseguidos com a venda de cadeiras cativas. Esse projeto conseguiu o apoio do presidente Juscelino Kubitschek – que, enquanto governador tinha montado uma comissão para a construção de um grande estádio em Minas, porém a comissão foi prematuramente engavetada – e logo foi trazido para Belo Horizonte o trio responsável pela construção do Maracanã. Entretanto, o projeto se esbarrava na falta de verba e nos imbróglios políticos (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005). É nesse momento que, junto às atitudes individuais, a atitude política emergia no cenário para a construção do estádio. Aliás, o que se verifica no histórico do Mineirão é que a política permeia a sua construção, por meio de conchavos, barganhas, alteração de leis e busca pelo prestígio. Jorge Carone, recém-eleito deputado estadual pelo Partido Republicano, toma ciência do desejo e da movimentação para a construção de um grande estádio em Belo Horizonte que agregaria valor econômico para a cidade e também para o futebol. Convencido por outros agentes interessados na proposta, Carone apresenta um projeto de lei na Assembleia Legislativa propondo que a verba da Loteria Esportiva pudesse ser utilizada para a construção do estádio. Entretanto, o projeto foi avaliado como inconstitucional e arquivado a pedido do governador do estado José Francisco Bias Fortes (1956-1961) (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005).

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O deputado Jorge Carone vai ao Rio de Janeiro em busca dos estatutos que regulamentam a Loteria Federal, o texto contido em um dos decretos permitia que as loterias criassem taxas com o objetivo de tornar exequíveis projetos de interesse público. Com isso, na nova redação do seu projeto de lei, propõe que uma taxa de 10% sobre o valor cobrado pelo bilhete seja repassada às obras para a construção de um novo estádio. Esse projeto foi aprovado em todas as instâncias, sofrendo apenas uma alteração, dos 10% destinados à obra de um novo estádio, 3% seriam destinados para a construção do prédio da Assembleia Legislativa e os outros 3% para a assistência a tuberculose, cabendo ao estádio – motivo maior do projeto – apenas 4% (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO , 2005). Assim, em 13 de agosto de 1959, foi assinada, pelo governador José Francisco Bias Fortes, a Lei n. 1.947/59 que dispunha sobre a construção de um estádio em Belo Horizonte, para a prática do futebol e atletismo, que se chamaria Estádio Minas Gerais. A lei também trata de sua construção, administração e fonte de recursos (MINAS GERAIS, 1959). Instituídas todas as comissões com base na referida lei, Carone e Gil César – agora como administrador do estádio88 – passam a trabalhar juntos e, com isso, o projeto do estádio universitário é retomado. Contudo, o projeto desenhado pelos arquitetos Eduardo Mendes Guimarães e Gaspar Garreto, embora apresentasse um desenho arrojado e moderno, era modesto em suas dimensões, por ter a capacidade para 30.000 pessoas. Carone exige um estádio maior. E o novo desenho é apresentado e aprovado (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005). Faltava, ainda, escolher um local para o estádio. A limitação se dava pelo fato de o Serviço de Patrimônio do Estado de Minas Gerais não dispor de um local adequado e a compra de terrenos particulares não poderia ser viabilizada por consumir grande parte do dinheiro destinado à obra. Dentre as possibilidades levantadas (às margens da BR-040, na região centro-sul de Belo Horizonte; Avenida Amazonas, próximo ao município de Contagem; bairro Aarão Reis, região norte da capital e região da Pampulha próximo à UFMG), foi escolhida a Pampulha. O terreno de 300 mil m2 pertencia à Universidade de Minas Gerais que, naquela época, estava construindo a cidade universitária.

88 Devido a sua intrínseca relação com o esporte, tanto na condição de ex-atleta de basquete, quanto de ex-presidente da Federação Universitária Mineira de Esportes, a indicação do nome de Gil César foi vista com bons olhos pela crônica esportiva, sendo ele tido como um “[...] engenheiro disposto a molhar as axilas” (SANTOS, 2005b, sp).

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Ela [a universidade] precisava contar com um vizinho imponente que contribuísse para povoar a isolada região. Com as obras do estádio, Penido [Pedro Paulo Penido, reitor da universidade] poderia convencer os funcionários da instituição a trabalharem no novo campus, pois enfrentava forte resistência à mudança (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005, p. 21).

Assim, em 1960, foi firmado um convênio89 entre o Ministério da Educação e Cultura, a Universidade de Minas Gerais90, o Conselho de Administração do Estádio Minas Gerais (ADEMG) e a Diretoria de Esportes do Estado de Minas Gerais. Esse convênio permitiu a construção do estádio em um terreno cedido pela Universidade de Minas Gerais e, em contrapartida, os seus alunos poderiam utilizar, além das instalações do estádio, o centro esportivo que seria construído concomitante à praça de esportes (SANTOS, 2005b).

89 Foram signatários desse convênio: Ministro Clóvis Salgado (do Partido Republicano); Reitor Pedro Paulo Penido; Deputado Jorge Carone (Partido Republicano) e Engenheiro Gil César Moreira de Abreu. 90 Desde 1965, chamada de Universidade Federal de Minas Gerais.

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Figura 9 – Mapa de acesso ao Mineirão

Fonte – Adaptado da Belotur, 2014.

Era dado, assim, o pontapé inicial para a construção do Mineirão. Entretanto, essa não foi uma tarefa simples, uma vez que também havia grupos políticos que não estavam interessados no projeto. As eleições de 1961 fizeram com que mudasse o governo do Estado de Bias Fortes (Partido Social Democrático - PSD) para Magalhães Pinto (União Democrática Nacional - UDN). O clima de revanchismo atingiu as obras do estádio91, uma vez que Magalhães Pinto não via

91 A disputa eleitoral para o governo de Minas Gerais foi acirrada entre Magalhães Pinto (UDN) e Tancredo Neves (PSD). Além disso, a história esportiva em Minas também passava pelo PSD, já que, em 1954, enquanto governador do estado, Juscelino iniciou a ideologia para a criação de uma gigantesca praça de esporte em Minas e, durante o seu mandado presidencial, foi assinado o

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com bons olhos os gastos com o estádio e a herança pessedista. Além disso, terminar a obra implicaria dividir os méritos com o rival, Bias Fortes – homenageado pela crônica esportiva mineira com o título de Governador do Esporte. Nesse clima de disputa, rivalidade e vaidade política, as obras de construção do estádio deixaram de ser uma prioridade, sob o risco de possíveis ilegalidades, criando, inclusive, uma comissão para avaliar os gastos (ASSUMPÇÃO, 2004; SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005). A história dá uma reviravolta quando a seleção mineira de futebol se sagra campeã brasileira, em 1963, conquistando o seu primeiro (e único) título. O que se viu nas ruas de Belo Horizonte foi uma aclamação popular nunca vista antes – nem com a conquista do mundial pelo selecionado brasileiro em 1962. Magalhães Pinto, que pretendia disputar as eleições presidenciais em 1965, viu no futebol uma chance para projetar a sua candidatura, e o estádio em construção seria um poderoso veículo social, político e econômico, já que trataria do segundo maior estádio coberto do mundo. Era um atalho político para dar maior visibilidade ao seu governo (ASSUMPÇÃO, 2004; SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005). Corroborou a sua percepção o fato de a crônica esportiva mineira lamentar o fato de o estado não ter um estádio à altura do seu selecionado, o que inviabilizava o apoio financeiro aos clubes e criava a necessidade de vender os bons jogadores ao mercado nacional, o que frustrava a torcida (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005). Seguindo seus anseios políticos, as obras do Mineirão tornaram-se prioridade, e Magalhães Pinto passou a ser o maior entusiasta da empreitada, de tal modo que os contrários à construção do estádio foram perdendo crédito. O golpe de 1964 parece não ter influenciado o ritmo das obras, uma vez que Magalhães Pinto aderiu aos militares, e a sua administração não foi questionada. Ademais, a grandiosidade do Mineirão corroborava o ideário do governo militar (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005).

O retorno das obras do Mineirão simbolizava o entendimento diante do fato de que possuir um equipamento de lazer de grande porte tornava-se também uma necessidade distintiva ou, ainda, uma espécie de marco simbólico que representaria a convênio de concessão do terreno federal para a construção do estádio. Dessa forma, Magalhães Pinto (e nem a UDN) queriam os seus nomes ligados aos feitos de Juscelino e do PSD.

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desenvoltura e a altivez do Estado mineiro. Tomado como estratégia de criação de um canal que pudesse dar vazão ao discurso e ao pensamento oficial, a classe política mineira buscava capitalizar ao máximo a construção do estádio, reforçando a noção de protagonismo que o Estado de Minas Gerais deveria assumir e, ainda, produzindo um efeito multiplicador, causando um sentimento de mineiridade e de adesão aos clubes de Minas (FERREIRA, 2015, p. 55).

Imbuídos desse propósito, durante a construção do Mineirão, estratégias de marketing foram utilizadas para que houvesse uma identificação da população mineira com o novo estádio e com os seus executores. Desse modo, campanhas para arrecadar recursos financeiros foram utilizadas agregando ao estádio o adjetivo de estádio do povo. Segundo Pereira (2004, p. 76) “[...] divulgavam-se empreendimentos a fim de que a população contribuísse financeiramente para com o ‘seu’ novo centro esportivo”, tais como: venda antecipada de cadeiras cativas via Loteria do Estado, concorrências comerciais para a exploração dos bares e a venda de espaços de publicidade no interior do estádio. No que diz respeito aos executores da obra, Schetino (2014) aponta que o meio jornalístico destacava a importância, não só das figuras notáveis (governador, políticos, engenheiros) como também dos anônimos que trabalhavam no Gigante da Pampulha (figura 10). Da mesma maneira, Magalhães Pinto buscava sua popularidade em meio às figuras proeminentes do esporte e da política, como também dos trabalhadores, projetando neles a importância do desenvolvimento de Belo Horizonte, consolidando-a como uma das principais capitais do Brasil.

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Figura 10 – Imagem da construção do Mineirão na década de 1960, com a presença de alguns trabalhadores da obra

Fonte - http://vejabh.abril.com.br/imagem/2277_mineirao08_dest.jpg

2.3.1 O Mineirão como um dos símbolos do desenvolvimento e modernização de Belo Horizonte

Para a elaboração da planta do estádio, Gaspar Garreto disse que passou um dia inteiro no Maracanã para conhecer os seus defeitos e as suas qualidades (FERREIRA, 2012). A segurança, o conforto, o bom gramado, a iluminação e o sombreamento do Mineirão o colocavam em lugar de destaque. Também foram estudadas as plantas de outros estádios fora do Brasil, tais como Suíça e Itália (FERREIRA, 2012). Assim, o Mineirão não raro era apontado como o mais moderno do mundo, uma vez que a qualidade dos outros estádios era aperfeiçoada e os defeitos eliminados em seu projeto (SANTOS, 2005b). Sua estrutura assemelha-se muito com a do Maracanã, no que diz respeito à construção imagética de um estádio democrático que não dá a impressão de uma sociedade hierarquizada e de classe. De acordo com Brito-Henriques (2013), essa influência vem dos grandes estádios construídos no sul da Europa, em período da ditadura política, quando os estádios públicos serviam para aglomerar as massas e gerar sentimentos nacionalistas. Além disso, a forma elíptica da

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arquibancada permite minimizar os pontos cegos do estádio. Isso possibilita que todos os torcedores se vejam, o que permite um maior controle.

Sua [Maracanã] forma elíptica, toda coberta, colocava a massa dos torcedores diante uns dos outros, no mesmo nível, inclusive das cadeiras especiais e das tribunas de honra, que são uma extensão, com assentos, das arquibancadas, separadas destas por grades. Sendo assim, no anel das arquibancadas e cadeiras especiais de fato existia, mas de tal forma que as cadeiras especiais fossem somente mais um dos setores do estádio em que o conforto é maior, por causa dos assentos. A perspectiva de visão de jogo privilegiada, as arquibancadas cobertas, não eram mais uma exclusividade para alguns poucos, estando disponíveis a todos que frequentam o anel das arquibancadas. Em jogos com grandes públicos – como foram os jogos durante a Copa de 50 – a divisão entre os dois setores se perdia no meio da massa de torcedores, a ponto de não se poder distinguir a separação entre ambos (CRUZ, 2005, p. 63).

O Gigante da Pampulha, com capacidade para 130 mil pessoas, apresentava, como diferencial em relação ao Independência, uma melhor capacidade de evacuação, mais bebedouros e sanitários e uma arquibancada coberta (SANTOS, 2005b). Foi considerado um grandioso empreendimento, de grande imponência e beleza arquitetônica e chamou a atenção para a capacidade empreendedora do povo mineiro.

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Figura 11 – Esquema da divisão interna e portões de acesso

Fonte - SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO (2005).

As qualidades de segurança e conforto fizeram com que o público feminino fosse atraído para frequentar o estádio mineiro. A presença da mulher na inauguração do estádio não passou despercebida pela imprensa mineira. “E as mulheres em campo? Que coisa boa é ter mulher em campo. Com suas calças compridas, seus gritos inofensivos, feminis e, sobretudo beleza, que não faltou em nenhum momento. Vieram dar colorido que faltava ao campo de futebol92” (SANTOS, 2005b, sp). De acordo com as crônicas da época, analisadas por Santos (2005b), o Estádio Minas Gerais era considerado uma síntese da capacidade realizadora do povo mineiro. Havia a demonstração de um orgulho referente à eficiência dos engenheiros, arquitetos, mestres de obras, operários encarregados da execução da obra; à precisão dos calculistas das estruturas; à beleza e à funcionalidade do projeto arquitetônico (SANTOS, 2005b).

92 Texto originalmente encontrado em Revista Foto Esporte, n.10, setembro de 1965.

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Como pode ser percebido nas palavras do arquiteto Gaspar Garreto, um dos responsáveis pelo projeto executivo,”[...] o projeto de construção do Mineirão foi um projeto da Cidade Universitária, do Escritório Técnico da UFMG, dirigido pelo arquiteto Eduardo Guimarães. Nós éramos funcionários da UFMG na época” (O TEMPO, 2012)93. Durante a sua construção, o estádio passou a suscitar comentários sobre a sua necessidade efetiva. O presidente da Federação Paulista de Futebol, embora concordasse com a beleza e modernidade do estádio, alegava que ele seria um elefante branco. “Em tom irônico apregoava que o local seria o ‘maior dormitório do mundo de moscas e baratas’. O cartola procurava justificar seu menosprezo. ‘Tudo bem! Tudo muito bonito! Quero ver se haverá público para tudo isso” (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005, p. 24). Ninguém confirma a frase, mas ela está na memória do estádio94. Para que tais comentários e desconfianças não recaíssem sobre o clima de entusiasmo, uma nova psicoesfera95 precisou ser criada e, para isso, a participação dos formadores de opinião pública e dos meios de comunicação de massa foi fundamental para fazer circular a informação. Nesse sentido, segundo Assumpção (2004) e Schetino (2014), durante a construção do estádio, algumas pessoas de destaque no campo esportivo foram convidadas para visitar a obra, dentre as quais, o Presidente da Comissão Brasileira de Desportos, João Havelange; o jogador de futebol Pelé, que vivia nesse momento o auge da sua carreira e tinha status de celebridade e o ex-jogador bicampeão mundial, em 1958 e 1962, Nilton Santos96. Também foram convidados jornalistas do Rio de Janeiro, São Paulo e de outros estados para jantarem no Palácio da Liberdade, entre os quais, João Lyra, João Saldanha e Armando Nogueira. A intenção era convidá-los para dar visibilidade nacional à obra, fornecer material para matérias contínuas sobre o desenvolvimento da construção e fazer propaganda do governo.

93 O Tempo. Belo Horizonte, 21 dez. 2012. Suplemento Especial Novo Mineirão, p. 6. 94 SILVA, Cândido H. Espaço para mudanças. O Tempo. Novo Mineirão, 21 dez. 2012, p. 3. 95 Santos (1996, 2013) argumenta que há, no território, a presença conjunta e indissociável da tecnoesfera e da psicoesfera. Denomina tecnoesfera o mundo dos objetos, dependentes da técnica, da ciência e da informação que agem sobre o território instalando objetos em substituição ao meio natural ou ao meio técnico precedente, modificando materialmente o território. A psicoesfera age na produção de sentido à vida, tanto fornecendo regras objetivas aos objetos quanto estimulando o imaginário social. 96 “A visita que fez ao Estádio ‘Minas Gerais’ durou mais de uma hora e, depois de percorrer toda a obra, não escondeu seu entusiasmo pelo gramado, considerando-o o melhor do mundo, até mesmo superior ao do Maracanã. Nilton até bateu bola, durante 15 minutos, acompanhado dos ex-jogadores Carlyle e Gerson dos Santos” (O Estado de Minas, 24 de abril de 1965, apud SCHETINO, 2014, p. 209).

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Sobre esse aspecto, concordando com Santos (1996, 2005c), verificamos que há uma combinação entre tecnoesfera e psicoesfera, uma vez que o Mineirão se define, tanto pela sua existência material, quanto pela sua existência relacional, constituindo-se e diferenciando-se de outros estádios. Além disso, esse espaço passa a ser indutor e condicionante de novos comportamentos que, por sua vez, induzem a criação de novas técnicas para agir sobre ele. Por fim, operar com essas duas esferas implica relações de poder, já que “[...] comandam uma nova divisão regional do país e determinam novas hierarquias: entre regiões com grande conteúdo de saber e regiões desprovidas dessa qualidade; entre regiões do mandar e regiões do fazer” (SANTOS, 2005c, p. 51). Apesar da grande distância do centro da capital e o difícil acesso, cidadãos comuns, movidos pelo interesse e/ou curiosidade, também aderiram à visitação das obras. Alguns estendiam a visitação ao Complexo Arquitetônico da Pampulha (PEREIRA, 2004; SCHETINO, 2014). No dia 05 de setembro de 1965, em meio à poeira das obras, os portões do estádio foram abertos ao público, “[...] sendo amplamente difundida a imagem de ‘estádio do povo’, tido como um grande colaborador para a sua construção” (PEREIRA, 2004, p. 81). De acordo com a autora, a ampla divulgação servia para mostrar os feitos do governo estadual. Schetino (2014) narra que os festejos tiveram a duração de duas semanas, incluindo jogos e celebrações. Tudo isso trouxe uma dinâmica para a cidade, para o esporte e para as pessoas.

Figura 12 – Dia da inauguração do Mineirão

Fonte - Manchete, 18/09/1965, apud Pereira (2004).

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Assumpção (2004) afirma que a construção do Mineirão se deu em um período em que, no Brasil, havia uma ideologia da monumentalidade. Para Le Goff (2013), a palavra monumento exprime a memória, aquilo que perpetua a recordação. Pode ser, também, uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura. Assim, o monumento é um sinal do passado que fica para a posteridade e que se configura como uma forma de poder. Dessa forma, “[...] o monumento tem como característica o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva)” (LE GOFF, 2013, p. 486). As sociedades constroem espaços nos quais seus valores, seus momentos históricos, sua memória coletiva e seus rituais possam se perpetuar. Por essa razão, levantam importantes edifícios, grandiosos monumentos, magníficas obras de arte talhadas na pedra e no mármore. Nesses espaços, as pessoas compartilharão memórias, experiências, lembranças comuns e projetarão sua vontade coletiva em direção ao futuro (ASSUMPÇÃO, 2004). Entretanto, o Mineirão não se transformou em um monumento ao longo dos anos, ele nasceu como um monumento, não só pelas suas dimensões e projeto arquitetônico, mas por ocupar um lugar que não existia na cidade. Ainda que antes da sua inauguração nunca tivesse ocorrido um jogo em seu gramado, o Mineirão foi produzido no plano simbólico como motivo de orgulho do povo mineiro, ainda mais por ter sido planejado e construído por mineiros (diferentemente de Belo Horizonte e da Pampulha). Atrelada à popularidade do futebol, sua construção foi sistematicamente narrada; cada revés sofrido, cada nova etapa concluída comemorada como um gol. A sua inauguração foi o término desse campeonato ganhando o título de segundo maior estádio coberto do mundo. O Mineirão desponta como produto de um tempo, como produção de mercadoria e produção da vida. Ferreira (2015) aponta que a construção do Mineirão se coadunou com o diálogo político-ideológico existente; as obras concluídas tornaram-se símbolo da modernidade belo-horizontina; o espaço tornou- se uma nova opção de turismo e lazer da capital e o fato de ter sido construído na Pampulha – locus da vanguarda modernista – fez com que se recriasse a importância desse espaço (figura 13).

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Figura 13 – Cartão postal de Belo Horizonte

Fonte http://www.encontronacional2015.abri.org.br/resources/content/conteudoimage m_1436367465_1_1_LagoadaPampulha.jpg

Assim, a partir do advento Mineirão, uma nova forma de pensar e narrar o futebol mineiro emerge. Concomitantemente a isso, hábitos e usos desse espaço foram sendo criados. Afinal, não se pode desassociar o “[...] espaço como instância social, [como] conjunto inseparável da materialidade e das ações do homem” (SANTOS, 2005c, p. 130). O Estádio Minas Gerais, renomeado para Estádio Governador Magalhães Pinto, em 1966, foi um divisor de águas para o futebol mineiro, tanto do ponto de vista da prática, quanto da assistência. Tal raciocínio pode ser confirmado, também, pela fala do ex-zagueiro Procópio Cardoso que atuou, principalmente, no futebol mineiro no período de 1959 a 1973.

Antes do Mineirão, os nossos craques se destacavam, mas depois iam embora e brilhavam por outras equipes. Depois, todos passaram a valorizar os clubes e o próprio estado. Nosso futebol mudou muito a partir daí e conseguimos glórias97(ESTADO DE MINAS, 2012).

Percebemos que, para além da sua função futebolística, o estádio cumpria uma especificidade simbólica e representava o que de mais moderno

97 Estado de Minas. Belo Horizonte, 22 dez. 2012. Caderno SuperEsportes, p.24.

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poderia existir na cidade. O conhecimento técnico-científico-informacional foi um dos responsáveis por essa transformação da paisagem. Isto é, a união entre ciência, técnica e informação fez com que a cidade tomasse outra dinâmica, uma vez que um objeto foi nela incorporado. Esse objeto, dentro desse espaço, foi apropriado por sua população, tornando-se um lugar. De acordo com Santos (1996, p. 48), “[...] é o lugar que atribui às técnicas o princípio de realidade histórica, relativizando o seu uso, integrando-as num conjunto de vida, retirando-as de sua abstração empírica e lhes atribuindo efetividade histórica”. Sem isso, seriam apenas objetos. Nessa perspectiva, segundo Mascarenhas (1999), o estádio de futebol, por ser um objeto de grande visibilidade urbana, devido as suas dimensões, ocupa o imaginário social e influencia sentimentos em relação ao lugar, podendo constituir importante centralidade física e simbólica no interior do espaço urbano. Assim, no capítulo seguinte, abordo as formas de uso e de apropriação do Mineirão por seus usuários e a dinâmica que constituiu esse estádio, transformando- o em um lugar para os seus torcedores, passível de criar experiências e narrativas.

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3 DOS USOS E APROPRIAÇÕES ANTES DA REFORMA AO PROCESSO DE REFORMA/REFORMULAÇÃO DO MINEIRÃO

Como visto, o Estádio Minas Gerais, posteriormente Estádio Governador Magalhães Pinto, ao ser construído, trouxe consigo valores políticos, econômicos, futebolísticos, sociais e simbólicos. Alguns desses foram se esvaziando ao longo do tempo, tais como o político partidário, já que, uma vez que o estádio foi prontamente apelidado Mineirão, o nome oficial passou a ser vinculado apenas em eventos formais; e o econômico, pois, após alguns anos, foi considerado um equipamento insustentável financeiramente. O valor de troca – político partidário e econômico – só voltará a ser requerido, muito mais tarde, 45 anos depois de sua inauguração, quando o Brasil foi eleito país-sede da Copa do Mundo de 2014 e Belo Horizonte pleiteou a sua candidatura a cidade-sede. No entanto, antes disso, ao longo desses anos, outros valores ganharam importância, tais como o futebolístico, o social e o simbólico. Além disso, sua inauguração transformou, não só a dinâmica socioespacial local, como também da cidade, uma vez que se integrou, sob medida, à paisagem da Pampulha.

Os domingos ganharam um programa obrigatório. A cidade amanhecia respirando futebol, e toda a ansiedade era desfeita, às tardes, na Pampulha, com gritos de alegria ou pura decepção. Mas o importante era ir ao estádio (SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005, p. 42).

Assim, no cotidiano da cidade, foi se tornando um espaço para a realização e concretude da vida humana, possibilitando experiências, criando vínculos e narrativas. A interação estabelecida entre o sujeito e o objeto, dada pelas formas de uso ao longo do tempo, tornou possível uma identidade com o estádio, de modo que ele passou a ser uma fonte de significados para as pessoas e para a própria cidade. Todo esse processo exibe como o Mineirão é carregado de sentidos e simbolismos. Segundo Moranta e Pol (2005), a mudança de significado se dá pelo

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processo de apropriação. No caso do Mineirão, a construção simbólica partiu primeiramente das instâncias de poder, isto é, dos políticos que quiseram vincular o seu nome à obra, margeado pela construção de algo monumental, depois a população transformou esse simbolismo inicial em algo diferente e (até) contrário. De acordo com Lefebvre (1978) e Moranta e Pol (2005) 98, a apropriação do espaço é um processo dialético, pautado em dado contexto sociocultural, no qual o indivíduo se relaciona consigo, com o outro e com o espaço, produzindo nele transformações físicas e/ou simbólicas, por meio de modificações, acréscimos, supressão e/ou sobreposição entre o que havia sido proposto anteriormente com o que os sujeitos também propõem. Como resultado desse processo, o espaço se reveste de sentido, isto é, passa a ter significado e identidade. Assim, no lugar coexistem os aspectos mais singulares e individuais com os aspectos mais complexos e sociais. Para analisar as formas de uso e de apropriação do Mineirão após a reforma, achamos necessário fazer uma breve descrição do que era realizado nesse equipamento, bem como apresentar os discursos que já anunciavam a necessidade de uma reforma e reformulação do estádio, em termos de infraestrutura e gestão. Entretanto, isso só se materializa com a realização do megaevento Copa do Mundo, no Brasil, em 2014, na qual Belo Horizonte foi uma das cidades-sede.

3.1 Entre usos e apropriações – as experiências no Mineirão antes da reforma

O estádio é, em muitas cidades, o maior equipamento de uso coletivo (público ou privado), capaz de concentrar uma multidão. De acordo com Gaffney e Bale (2004), essa multidão se reconhece pelas emoções e experiências capturadas pelos órgãos do sentido (visão, audição, paladar, tato, olfato) e potencializadas por algum artefato tecnológico, durante os usos do estádio, estabelecendo, assim, uma realidade individual e coletiva, ao mesmo tempo em que produz memórias e

98 Moranta e Pol (2005) explica que o conceito de apropriação foi embasado no sentido atribuído por Marx – ‘interiorização’ da práxis humana, através de seus significados. Porém, para o conceito de apropriação do espaço acrescentou-se visões da abordagem fenomenológica que se pautavam na psicologia social. Afirmam ainda que durante muito tempo os estudos sobre os processos de apropriação do espaço foram marginalizados pelo viés positivista da ciência.

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histórias. Dessa forma, a experiência no estádio é algo muito importante para a construção real e simbólica desse equipamento pelos sujeitos que dele usufruem. De acordo com Bondia (2002), podemos definir a experiência como o encontro ou a relação com algo que se experimenta, com o que se prova. Assim, o autor diz que “[...] a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece” (BONDIA, 2002, p. 21). Com isso, define o sujeito da experiência como aquele que se “[...] ex-põe, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco” (BONDIA, 2002, p. 20). O autor segue o raciocínio argumentando que as experiências são capazes de mudar o sujeito. Dessa forma, o sujeito da experiência, ao ser tocado por um acontecimento que lhe traga sentido, está aberto à sua própria transformação. Por fim, conclui que “[...] a experiência e o saber que dela derivam são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida” (BONDIA, 2002, p. 27). Embora a discussão aqui apresentada seja embasada em um filósofo da educação, no estádio de futebol, as experiências (vividas, apreendidas e compartilhadas) e os sujeitos da experiência (torcedores), fazem com que esse equipamento passe a ser considerado um lugar e seja apropriado como valor de uso99. Ademais, no universo do futebol, a experiência do estádio é algo tão singular que alguns clubes a comercializam, sob a forma de simulacro, para atrair visitantes, adeptos e torcedores100. Isso é apontado por Gaffney e Bale (2004) quando afirmam que, quanto mais o indivíduo repete uma experiência em um local particular, mais fortemente o lugar e o tipo de experiência irão figurar em sua estrutura individual. De um modo mais amplo, essa experiência será apropriada pelo sujeito, positiva ou negativamente, já que sofre a interferência de alguns fatores101.

99 Mesmo reconhecendo que o valor de troca também está envolvido em todo o processo. 100 O Futebol Club Barcelona é o exemplo mais expoente desse movimento. O Camp Nou Experience, serviço inaugurado em 1984, é uma visita ao estádio e ao museu do clube e uma das atrações mais visitadas em Barcelona. De acordo com a proposta do clube catalão, os visitantes têm a oportunidade única de sentir a emoção que se vive no Camp Nou durante a visita aos lugares mais emblemáticos do estádio. A experiência Camp Nou perpassa também o dia do jogo, quando milhares de turistas se deslocam ao estádio para assistir a uma partida do Barcelona, comprar suvenires, camisas e tirar fotos. 101 Bondia (2002) afirma que a experiência é prejudicada pelo excesso de informação, uma vez que o sujeito, ao buscar estar cada vez mais informado sobre tudo, nas várias mídias disponíveis, tem cada vez menos tempo de se expor a que algo lhe aconteça, podendo tornar-se um sujeito muito informado, mas pouco sábio; pelo excesso de opinião, isto é, o sujeito moderno e informado se vê no

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Em se tratando de um estádio de futebol e extrapolando os apontamentos de Gaffney e Bale (2004), os fatores que influenciam a experiência no estádio e as formas de apropriação desse espaço podem ser assim considerados: 1) relações de gênero102, idade e classe social; 2) o próprio estádio; 3) os locais ocupados pelos torcedores no estádio (setores da arquibancada – geral103, arquibancada, tribuna de honra104; cadeiras cativas105, camarotes particulares106, bares), 4) região onde o estádio está situado (bairro, cidade, estado e país), 5) os sujeitos envolvidos (espectadores, torcedores organizados, torcedores comuns, torcedores visitantes107, turistas) e 6) a partida em si. Gaffney e Bale (2004) apontam que o senso de continuidade histórica, bem como o senso de participação na história, ajudam a construir a experiência do estádio. Assim, não apenas os clássicos ou os jogos de final de campeonato são direito de opinar sobre todos os assuntos e, quando não tem opinião sobre algo, se vê frustrado e se sente estimulado a buscar mais informação; e, por fim, a falta de tempo, não só pelo trabalho, mas o tempo entre as experiências, já que os acontecimentos nos chegam muito rapidamente e de um modo muito dinâmico, fazendo com que haja uma transformação na nossa capacidade de absorção dos estímulos, de tal modo que aceleramos as nossas percepções, sendo que, em muitos casos, não fazemos uma conexão significativa entre os acontecimentos e nem criamos uma memória sobre o fato. 102 Gênero pode ser entendido como uma categoria de análise que tenta explicar a persistência das desigualdades entre mulheres e homens e as diferenças hierárquicas e de poder que os distinguem, bem como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos. Assim, não se refere apenas às características sexuais, mas a tudo o “[...] que se diz ou pensa sobre elas, tudo o que se representa, valoriza ou desvaloriza que, efetivamente, constitui o feminino e o masculino numa dada sociedade e num dado contexto histórico” (LOURO, 1997, p. 68). Para mais informações, consultar: BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p.133-84, jul./dez. 1995; LOURO, Guacira L. Construção escolar das diferenças. In: IX Encontro Nacional de Recreação e Lazer, 1997, Belo Horizonte. Anais… Belo Horizonte: UFMG, 1997, p. 68-76; SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade. Porto Alegre, v.20, n.2, p. 71-99, jul./dez. 1995. 103 A geral era um espaço, sem acento, sem setorização e sem cobertura, situado ao redor e no mesmo plano do campo, no qual os torcedores podiam acompanhar as jogadas da equipe. Geralmente era o ingresso mais barato do estádio. Tinha como referência os terrances dos estádios inglês. 104 Era um espaço de distinção na arquibancada, frequentado por pessoas de destaque: dirigentes de clubes, agentes produtores do evento, jogadores, artistas etc. 105 Eram cadeiras dispostas em um setor da arquibancada, geralmente próximas à tribuna de honra, e que tinha donos. Estes tinham o acesso a todos os jogos que ocorressem no estádio. Era considerado um lugar de destaque no estádio. 106 Com a transformação dos estádios em arenas pós-modernas, essas divisões se alteraram. A geral não existe mais, todo o espaço da arquibancada está preenchido por cadeiras, as tribunas de honra perderam a sua função e foram substituídas por camarotes. 107 Com base em uma diferenciação e classificação dos torcedores proposta por Reis (1998), denominamos 1) espectadores – o indivíduo que assiste às partidas, mas não exerce predileção por nenhuma equipe em jogo; 2) torcedor organizado – é um torcedor que faz parte de uma facção torcedora, isto é, é membro de uma organização estruturada, relacionada ao clube ao qual torce, mas não pertencente a ele; 3) torcedor comum – sujeito que vai ao estádio, sozinho ou em grupo, torcer pelo seu time, mas que não participa de nenhuma agremiação organizada; por fim, 4) torcedor visitante – grupo composto por aqueles cujo time está indo jogar fora de seu território. Podem compor esse grupo todas as categorias previamente citadas.

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valorizados, mas também os comuns, pela prerrogativa de que cada jogo é único. Com isso, um jogo de futebol pode ser considerado um evento, já que não se repete. De acordo com Santos (1996, p. 116), em um evento “[...] as circunstâncias não são as mesmas duas vezes. Cada ato difere do precedente e do seguinte”. Isso faz de cada partida algo singular que produz memória ao mesmo tempo em que aumenta o vínculo entre indivíduo e lugar. Além disso, enquanto tempo-espaço de lazer, o estádio possibilita ao indivíduo a fruição de suas emoções, em uma sociedade na qual o controle sobre elas e a impessoalidade nas relações é latente, tanto nos locais de trabalho, quanto em outros setores da vida cotidiana. Sendo assim, uma partida pode provocar excitação, prazer, alívio e catarse, de tal maneira que, dentro de um estádio, é visto com certa naturalidade o homem chorar por seu time e a mulher falar palavrão (ELIAS, 1992; DAÓLIO, 1997; PEREIRA, 2004; CAMPOS, 2010). Faz parte da experiência do estádio certa permissividade para violências simbólicas que, em determinados momentos, poderiam desencadear em violência física (DAÓLIO, 1997; PIMENTA, 1997). São alvo dessa violência árbitros e jogadores/torcedores da equipe adversária. No que tange aos torcedores, a violência simbólica era de cunho sexista, de gênero e racista. Dava-se, principalmente, pelos cânticos das torcidas organizadas e pelas imagens a elas vinculadas (e por elas veiculadas), embora tivesse coro entre os torcedores não organizados e que esses, individualmente, expressassem esse tipo de violência. A violência, de um modo geral, é um dos principais vilões do futebol e há a tentativa de coibi-la por meio de normas, aparatos tecnológicos de identificação do torcedor e penalização da equipe agressora. Atualmente, cânticos de caráter sexistas e racistas estão proibidos nos estádios. Mesmo com toda a complexidade que permeia esse equipamento, podemos afirmar que, tanto no seu entorno, quanto na arquibancada, se desenvolve uma rede de sociabilidade entre grupos. Essa sociabilidade é considerada mais ampla que a fundada nos laços familiares e menos impessoal que a da multidão que o constitui, devido a uma lógica preestabelecida, isto é, nem sempre os frequentadores se conhecem, mas se reconhecem enquanto portadores dos mesmos símbolos que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de consumo, modos de vida, enfim, modos de ser (MAGNANI, 1996).

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No que se refere especificamente ao Mineirão antes da reforma, são poucos os trabalhos que procuraram investigar a experiência nesse estádio, identificando as redes de sociabilidade que se formavam a partir desse equipamento, bem como as formas de uso e apropriação desse lugar. Encontramos duas dissertações: 1) Pereira (2004) que analisa o Mineirão como um espaço público onde florescem redes de sociabilidade em três usos distintos: esportivo, comercial e religioso e 2) Campos (2010) que buscou compreender as relações estabelecidas pelas mulheres torcedoras do Cruzeiro com o Mineirão. Outro trabalho disponível é a tese de La Corte (2007) cujo objetivo é analisar os estádios Mineirão, Maracanã, Morumbi e Pacaembu, avaliando questões de planejamento, infraestrutura e construção, bem como formas de usos e manutenção como fatores de sucesso ou fracasso desses estádios em sua destinação social e econômica. Assim, os usos perpassam essa pesquisa só que pela ótica econômica e arquitetônica. Em relação aos usos do Mineirão pelos torcedores, a pesquisa de Pereira (2004) apontou que, em dias de clássico entre Cruzeiro e Atlético, o Mineirão, o seu entorno e suas vias de acesso apresentavam outra configuração, já que todo o espaço era repartido em dois. Os torcedores de ambos os clubes se dirigiam ao estádio por vias de acesso distintas, se concentrando e ocupando partes distintas no estádio. Assim, cruzeirenses acessavam o Mineirão pela Avenida Carlos Luz (em azul na figura 14), enquanto os atleticanos o acessavam pela Avenida Antônio Carlos (em preto na figura 14). Essa operação era feita para que não houvesse o encontro entre as torcidas, já que a rivalidade poderia gerar a violência física. Independentemente do meio de transporte utilizado, ao longo desse trajeto, os torcedores se reconheciam e compartilhavam ritos e signos, fossem flamulando a bandeira do clube/torcida, exibindo a camisa e/ou as cores do clube, cantando o hino, entoando os cânticos de torcida, provocando e sobrepujando o arquirrival. Como dito, o estádio também era dividido em dois. Tomando o hall principal como área fronteiriça, o lado direito era ocupado pelos cruzeirenses e o lado esquerdo, pelos atleticanos. Tal divisão era feita pela desembocadura das vias de acesso ao estádio e reforçava a demarcação de um território cruzeirense e um território atleticano como se vê na figura 15.

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Figura 14 – Acesso e divisão do Mineirão entre atleticanos e cruzeirenses

Fonte - Adaptado de Google Maps 2015. Nota - Escala aproximada: 1:100m.

Figura 15 – Divisão da arquibancada do Mineirão antes da reforma, em dia de clássico, na década de 1990

Fonte - http://www.cruzeiro.org/noticia.php?id=44381

Pereira (2004) observou também que muitos torcedores chegavam ao estádio antes do horário estipulado para a partida. Concluiu então, que, embora a finalidade de estar ali fosse assistir ao futebol, outras ações davam sentido a essa prática, sendo que a principal passava pelo encontro com o outro – amigos,

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familiares, desconhecidos – que compartilhassem os sentimentos e ritos evocados pela partida e pelo local. Assim, “[...] muitos entrevistados disseram que o estádio é lugar para torcer pelo time, para divertir, para tomar cerveja com os amigos” (PEREIRA, 2004, p. 100). Nesse sentido, o estádio era considerado local de lazer e descanso, capaz de fortalecer e criar novos vínculos pessoais. No entorno do estádio, a autora supracitada verificou que a concentração de muitos torcedores ocorria em frente às barraquinhas credenciadas pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e conhecidas pelos torcedores como barraqueiros do Mineirão, que comercializavam bebidas (água, refrigerante e cerveja) e comida (pão com pernil, cachorro quente, espetinho e macarrão na chapa entre outras iguarias). Ali os torcedores bebiam, conversavam, paqueravam, exaltavam o clube, provocavam o adversário. Segundo a autora, havia os encontros breves, conversas rápidas e sem abordar temas mais profundos, como também havia grupos que se conheciam e se reconheciam como frequentadores daquela barraca, estabelecendo redes de sociabilidades. Por esse espaço também circulavam vendedores ambulantes que ofereciam camisas e artigos relacionados aos clubes (almofadas, bolsas, tiaras, chaveiros, adesivos, pôsteres, radinhos). Por essa descrição, o Mineirão se constituía como espaço de lazer para alguns e espaço de trabalho para outros, funcionando como fonte de renda complementar. Já, no interior do estádio, Pereira (2004) também fez suas observações. Nos bares do estádio, o feijão tropeiro era o prato símbolo e filas se formavam para comprar a iguaria. Enquanto esperavam, os torcedores conversavam, se concentravam para a partida, exaltavam o time, comiam. A autora indica a presença das torcidas organizadas no estádio, repassando os materiais (instrumentos musicais, bandeiras, faixas) e posicionando- os na arquibancada, demarcando, novamente, um território. Além de objetos físicos e pessoas, o território é evocado por meio de coreografias, gritos e gestos ritmados com os instrumentos musicais e com os cânticos entoados. Estes servem para saldar a equipe, incentivá-la, provocar e sobrepujar o adversário. Por fim, Pereira (2004) percebeu que, durante a partida, alguns torcedores deixavam a arquibancada e iam acompanhar o jogo nos bares do estádio, pelo radinho, enquanto conversavam com amigos e desconhecidos e bebiam uma cerveja. Isso demonstra que eram “[...] diversas as ações e reações dos

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indivíduos em relação ao espetáculo futebolístico, apresentando diferentes modos de sentir, viver tal evento” (PEREIRA, 2004, p.114). Já no que se refere especificamente às torcedoras e as relações estabelecidas com o Mineirão, Campos (2010) verificou que ir ao estádio para muitas mulheres era um referencial de lazer, representando um local para desestressar, relaxar, vibrar, ter uma rede de sociabilidade e expressar o seu amor ao time, cantando, pulando, falando palavrões, rezando e praticando rituais de boa sorte à equipe. A pesquisa apontou que a maioria das mulheres ia ao estádio acompanhada por homens, prevalecendo a companhia dos seus relacionamentos afetivos e amorosos. Além disso, havia maior presença das mulheres nos jogos realizados à tarde do que nos realizados à noite. Campos (2010) reconheceu, na fala das torcedoras, que havia uma rede de sociabilidade criada no estádio. Essa se dava pela frequência com que as torcedoras iam assistir aos jogos do Cruzeiro, pelo fato de sentarem sempre nas mesmas localidades (mesmo não existindo o lugar marcado) e pela participação em uma torcida organizada. De acordo com a autora supracitada, na visão das torcedoras, a torcida organizada era um temor para a ordem do estádio e um lugar na arquibancada a ser evitado. Entretanto, para algumas mulheres, que eram membros dessas agremiações, a torcida organizada representava a constituição de uma família, já que a amizade e o encontro ultrapassavam a temporalidade do jogo e o espaço do estádio, já que também promoviam encontros em bares, nas próprias casas, viagens e se encontravam para comemorar os aniversários. Mesmo considerando o Mineirão um local bonito, imponente pela sua arquitetura e agradável por estar na Pampulha, as torcedoras reconheciam que o estádio estava malconservado no que dizia respeito à higiene de banheiros e bares, algumas relatando, inclusive, que sentiam nojo dos produtos comercializados. No ínterim das duas pesquisas apresentadas houve duas modificações no estádio: a setorização da arquibancada e a proibição da venda de bebida alcoólica (cerveja). A pesquisa de Campos (2010) identificou que ambas as modificações dividiram a opinião das torcedoras, sendo que a setorização trouxe, como

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consequência, preços diferenciados para cada setor do estádio e o deslocamento dos torcedores e torcedoras reconfigurando os grupos. A pesquisa também destacou que outro problema apontado foi a falta de segurança no estádio, principalmente na bilheteria ao comprar ingresso; em alguns setores da arquibancada, entre eles a geral, e na saída após o jogo. Nos três casos, a principal queixa referiu-se à violência de gênero, já que tanto, na bilheteria quanto, na geral, a presença feminina não era tão comum, o que as deixava em condições de vulnerabilidade. Já, na saída, a insegurança se dava pela baixa iluminação do estádio, falta de policiamento e arrastões. Entretanto, tanto na pesquisa de Pereira (2004), quanto na de Campos (2010), os sujeitos pesquisados reconheceram que ir ao estádio em dia de jogo era um momento de festejar o futebol, de viver o ritual que ele proporciona, de estar próximo às pessoas queridas, de esquecer, momentaneamente, os problemas do cotidiano. Nesses encontros, memórias eram evocadas. Segundo Mattos (1997), as histórias de futebol narradas pessoalmente, de forma sublime, passadas de geração em geração, fazem com que as pessoas tenham vontade de as recordar um dia. Essas narrativas não se esgotam no consumo imediato. Assim, quanto maior as emoções, os conflitos, as tradições e as excitações proporcionadas pelos clubes aos torcedores e às torcedoras, maior a quantidade de filiados tal agremiação terá. Ao mesmo tempo, Gaffney e Bale (2004) abordam que essas histórias que se passam em um lugar específico, muitas vezes de forma rotineira e repetitiva, aprofundam o significado desses lugares para os sujeitos de modo que a identidade coletiva seja formada e mantida. Além disso, esse processo cria uma experiência entre indivíduos, grupos e comunidades. Assim, lembranças de fatos, lances, gols, ídolos, heróis, títulos, situações inusitadas, embaraços, alegrias e tristezas, evocados pela memória e narradas no espaço do estádio, demonstram a sua monumentalidade e sacralidade, ao mesmo tempo em que lhe fornece sentido. De certa maneira, reconhecemos que “[...] os campos de futebol nem sempre são locais atrativos no sentido ornamental. Sua beleza é o tipo de ambiente espacial, apreciado somente pelas pessoas que

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relacionam o cenário a seus vínculos emocionais” (HOPCRAFT, 1988108, apud GIULIANOTTI, 2002, p. 97). Contudo, a experiência do Mineirão não estava restrita apenas aos dias de jogos, embora estes fossem a principal forma de uso e de apropriação desse equipamento. Pereira (2004) aponta que, ao longo dos anos, o Mineirão foi, gradativamente, incorporando outras atividades (como a religiosa e a comercial), favorecendo o surgimento de novos usuários e novas experiências. Assim, transformou-se “[...] em um caleidoscópio de formas, sons, cores, olhares, cheiros, postando-se como palco para o espetáculo de sociabilidades e imagens” (PEREIRA, 2004, p. 91). A primeira atividade incorporada foram as corridas de carros que ocorriam ao redor da Lagoa da Pampulha e que se deslocaram para as avenidas que contornavam o Mineirão. Por esse novo circuito passaram nomes do cenário automobilístico nacional como Emerson Fittipaldi, Toninho da Matta e Nelson Piquet. Entretanto, o circuito automobilístico teve vida curta no Mineirão e em Belo Horizonte. Todavia, da associação entre Pampulha, carro e estádio, nasceu a Feira de Automóveis do Mineirão aproveitando o seu amplo espaço de estacionamento (PEREIRA, 2004; SEIXAS, SIMÕES e RIBEIRO, 2005). A Feira de Automóveis, considerada a maior feira de comercialização de automóveis do Estado de Minas Gerais, ocorria desde 1976, aos domingos, das 6:00 às 13:00 horas, aproximadamente, em um dos estacionamentos do estádio, sob a responsabilidade da ADEMG, o que gerava uma fonte de renda aos cofres públicos. Tinha como objetivo a comercialização de veículos automotores usados, principalmente carro e moto. Além disso, na área do estacionamento ocupada pela feira, havia barraquinhas credenciadas pela Prefeitura e também ambulantes. Pereira (2004) aponta que os usuários reconheciam o Mineirão como centro esportivo e também um local ideal para a feira de carros. Para eles, além da função comercial da feira, aproveitavam o espaço para conversar, comer, beber, paquerar. Para muitos, era uma atividade de lazer com a família e/ou amigos. Mantendo a divisão territorial de dias de clássico, enquanto no estacionamento do lado cruzeirense ocorria a Feira, no outro, o do lado atleticano, crianças, sob o olhar de seus pais e/ou responsáveis, andavam de bicicleta, mini-

108 HOPCRAFT, A. The football man. London: Simon & Schster, 1988.

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bug, motos, soltavam papagaio, corriam e brincavam entre si e com seus pais e/ou responsáveis.

Nessa perspectiva, o Mineirão é local de múltiplos usos. Mesmo em dia de feira de veículos, as pessoas desenvolvem outros usos, estabelecem sociabilidades e, assim, constroem uma imagem peculiar do estádio quando da realização desse evento comercial (PEREIRA, 2004, p. 124).

Por fim, Pereira (2004) analisa os usos religiosos do estádio, uma vez que era alugado para que fiéis católicos e protestantes se reunissem para louvar a Deus, trazendo outra configuração para esse equipamento. O Mineirão era transformado em um templo religioso cujo ambiente era considerado tranquilo e ameno. A autora afirmou que, diferentemente do futebol e da Feira de Automóveis, os eventos religiosos eram constituídos por um público eminentemente feminino, composto por famílias, amigos, membros das igrejas e casais de jovens. Muitos dos homens que iam acompanhando suas esposas se concentravam nos bares do Mineirão e, por lá, comiam, conversavam, bebiam, mesmo não havendo o comércio de bebidas alcóolicas, enfim, realizavam uma atividade paralela. Pereira (2004) descreve que, antes do evento, o estacionamento do estádio se transformava em uma feira onde eram vendidos imãs de geladeira, bandanas, camisas com frases religiosas, alimentos, sapatos, bebidas, roupas infantis, balões, terços, velas, cd’s, bombons, sanduíches. Isso denota uma variedade de produtos em relação aos que eram comercializados, tanto em dias de jogo, quanto em dias de Feira de Automóveis. A autora conclui que, nos eventos religiosos, o estádio se transformava em um templo religioso para a manifestação e celebração de uma fé cristã. Embora os participantes da pesquisa tivessem opiniões divergentes sobre a realização dos eventos religiosos em um estádio de futebol, devido à natureza simbólica desse equipamento, muitos desses usuários reconheciam o Mineirão como um bom local para a realização desse tipo de manifestação pelo seu tamanho e localização. Outros argumentavam que a fé emanada do encontro contribuía para purificar o espaço. Além disso, algumas pessoas afirmaram que estavam indo ao estádio pela primeira vez, única e exclusivamente pelo evento religioso.

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La Corte (2007) acrescenta, aos usos descritos até então, a realização de outros shows e eventos, hospedagem e visitas ao estádio. Assim, por meio dos dados apresentados, percebemos que, desde a sua inauguração, o Mineirão foi usado de diversas formas, institucionalizadas ou não, como experiência de lazer ou fonte de trabalho primário e/ou segunda renda. E, para cada um desses usos, formas de apropriação foram construídas. Nesse sentido, por meio da apropriação que cada sujeito faz do estádio, ele passa a ter um valor simbólico. Isso traz o sentimento de pertencimento ao lugar e também de identidade. É nessa dinâmica social que o espaço adquire significado no contexto da cidade, além de ser um local no qual o capital se desenvolve. Um espaço dotado de conteúdo social que possibilita a realização e concretude da vida humana, investido de sentido e temporalidade, pode ser considerado um lugar para o grupo que dele usufrui. O lugar faz a ligação do mundo com a vida cotidiana. Augé (2012, p. 51) argumenta que o lugar “[...] é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa”, revelando-se identitário, relacional, histórico e territorial. Um lugar é identitário e relacional na medida em que a coletividade que a ele se liga se reconhece e se estabelece levando em consideração a mistura da “[...] identidade partilhada (pelo conjunto de um grupo), da identidade particular (de determinado grupo ou determinado indivíduo em relação aos outros) e da identidade singular (do indivíduo ou do grupo de indivíduos como não semelhantes a nenhum outro)” (AUGÉ, 2012, p. 50). Além disso, o autor afirma que o lugar é histórico, não necessariamente de uma história enquanto ciência, mas de uma história vivida individual e coletivamente, já que “[...] esse lugar que antepassados construíram (‘mais me agrada a morada que construíram meus avós’...), que os mortos recentes povoam de signos que é preciso saber conjurar ou interpretar, cujos poderes tutelares um calendário ritual preciso desperta e reativa a intervalos regulares” (AUGÉ, 2012, p. 53). Em oposição, em uma época que se caracteriza pelo excesso factual, superabundância espacial e individualização das referências, o autor cunhou o

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termo não-lugares109. Entretanto, vale ressaltar que o não-lugar nunca existe sob uma forma pura, já que nele relações podem ser constituídas de modo a formar um lugar. Assim, lugar e não-lugar formam polaridades. Sendo que o lugar nunca é completamente apagado e o não-lugar nunca se realiza totalmente (AUGÉ, 2012). No lugar há o predomínio do valor de uso em detrimento do valor de troca. Nessa relação, por meio de um processo não linear, verificamos que a mercadoria futebol/estádio produz o lugar e seus usos, mas também o lugar e seus usos produz a mercadoria futebol/estádio. Assim, ao pensarmos o Mineirão enquanto o lugar de dada coletividade, percebemos que ele carregava signos e símbolos que faziam sentido para o grupo que dele usufruía. Sociabilidades, rivalidades, territorialidades e memória coletiva podiam ser vistas nos seus usos e apropriações.

3.2 A transformação do futebol e dos estádios em um vantajoso negócio

Como apresentado no capítulo 2, o futebol, fenômeno moderno, foi desenvolvido nas Public Schools da Inglaterra em meados do século XIX e, enquanto esporte, carrega todos os valores a ele atribuído. Sendo assim, é considerado um esporte de confronto, no qual há um combate civilizado capaz de gerar um equilíbrio entre tensão e excitação; é uma importante fonte de validação da masculinidade: força, violência e virilidade e também um elemento de exportação da cultura inglesa (ELIAS, 1992). Em meados do século seguinte, vemos a mesma Inglaterra reinventando o futebol. Não necessariamente na forma de jogar, pois várias outras equipes desenvolveram aspectos táticos para o jogo110, mas na forma de administrá-lo, modificando a sua economia. “Ao mesmo tempo que o nacionalismo do futebol emerge periodicamente nos eventos e torneios internacionais, são interesses locais e municipais que seguram o jogo no nível básico” (GIULIANOTTI, 2002, p. 53).

109 Partindo das características da supermodernidade - superabundância factual, superabundância espacial e individualização das referências, Marc Augé criou o termo não-lugares enquanto oposição ao sentido de lugar. De acordo com Augé (2012), os não-lugares não são identitários, relacionais ou históricos. Por meio dos não-lugares se descortina um mundo provisório e efêmero, comprometido com o transitório e com a solidão, devido à transformação das categorias de tempo, espaço e indivíduo. 110 Cf. FRANCO JUNIOR (2007.

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Assim, em nível clubístico é que se deram as grandes transformações do futebol que são socializadas e normalizadas mundialmente. Se, em um primeiro momento, a administração dos clubes era feita por membros das elites aristocráticas ou classe média, ao longo dos anos, a figura do manager passou a ser inserida, igual a todas as indústrias inglesas (GIULIANOTTI, 2002). Desde a década de 1980, a economia política do futebol vem passando, paulatinamente, por uma rápida modernização, uma vez que esse fenômeno cultural foi mercantilizado. Segundo Giulianotti (2002, p. 118), “[...] a experiência do futebol tornou-se cada vez mais sinônimo de placas de publicidade, patrocínio de camisas, comerciais de televisão, patrocínio de ligas e copas e comercialização da parafernália do clube”. Nesse mesmo período, os clubes do Reino Unido mais bem administrados obtinham uma renda extracampo maior do que a renda de bilheteria. Departamentos de marketing foram criados para cuidar da imagem e dos patrocinadores do clube. Assim, o esporte era cada vez mais espetacularizado (exibição por televisão, merchandising, placas de propaganda, conforto nos estádios), profissionalizado (contratos de compra/venda de jogadores) e internacionalizado (GIULIANOTTI, 2002). Entretanto, ainda havia um descompasso entre as modificações extracampo e o que ocorria nas arquibancadas, já que estas apresentava um esvaziamento. Um dos motivos eram as brigas entre grupos de torcedores rivais e o ambiente de jogo.

A “cultura de arquibancada” da década de 1980 tinha poucas atrações românticas, sendo de “um racismo violento, de um sarcasmo cruelmente sexista e de uma agressividade conduzida pelos grupos de homens brancos jovens de pouca educação e até mesmo menos espirituosos” (TAYLOR, 1991111, apud GIULIANOTTI, 2002, p.64).

O divisor de águas no futebol inglês foi o desastre de 15 de abril de 1989, no Hillsborough Stadium, durante a fase semifinal da Copa da Inglaterra, entre as equipes Liverpool e Nottingham Forest que culminou em 96 mortos. Antes do início do jogo, torcedores do Liverpool, com e sem ingresso, se amontoaram em uma das

111 TAYLOR, I. English football in the 1990s: taking Hillsborough seriously?, 1991.

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entradas. A polícia, para aliviar o aglomerado, permitiu que entrassem sem o mínimo de organização. A maioria se dirigiu para o mesmo setor da arquibancada, que já estava cheio. No início do jogo, os torcedores pediram para abrir os portões que davam acesso a outros setores e ao gramado, mas o policiamento recusou. O excesso de público aglomerado em uma mesma área fez com que as pessoas fossem esmagadas entre as grades, algumas sufocadas. Quando os portões foram abertos, o desastre aconteceu (GIULIANOTTI, 2002). Após o acidente, entre a culpabilização dos torcedores, das vítimas e das condições do estádio, várias medidas foram tomadas. A mais relevante foi a escritura do Relatório Taylor. Tal documento, escrito pela Secretaria de Estado, tinha como objetivo fazer o inquérito do desastre e também “[...] fazer recomendações sobre a necessidade de controlar a multidão e a segurança de eventos esportivos” (TAYLOR, 1990, p. 1). Embora não tivesse sido o primeiro acidente envolvendo torcedores de futebol, esse foi o mais emblemático, pois, coadunando ao modelo de governo de Margareth Thatcher e por meio das recomendações, possibilitou a reforma/reformulação do futebol e dos estádios ingleses, o que repercutiu mundialmente. Assim, o relatório reconhece que o futebol, praticado e assistido na Inglaterra, causava danos e estragos ao próprio esporte e aos torcedores, devido à obsolescência dos campos, às más condições de acesso, ao hooliganismo, ao consumo excessivo de álcool e à liderança fraca dos dirigentes112 (TAYLOR, 1990).

112 De acordo com o relatório, os campos ingleses eram antigos e, quando construídos, as áreas próximas não eram urbanizadas. Com o tempo, porém, os estádios ficaram encaixotados em áreas residenciais, sem possibilidade de área de estacionamento. Além disso, dentro dos campos, havia a decadência e dilapidação dos espaços, bem como o desconforto dos terraces. Em contraste, o relatório aponta que clubes europeus e na América do Sul, nesse mesmo período, estavam construindo estádios mais espaçosos e em condições mais modernas. No que tange à dificuldade de acesso, o desenho arcaico dos estádios ingleses e sua baixa manutenção causavam um desconforto, e os usuários estavam expostos às intempéries da natureza. Além disso, os torcedores tinham o hábito de urinar nas paredes ou no próprio terrace criando um ambiente endêmico e um comportamento que não era tolerável em outro lugar. Contudo, a própria polícia havia se tornado complacente com isso. Sobre o hooliganismo, o relatório apontou que esse fenômeno se desenvolveu na década de 1970, com brigas entre rivais e invasões de campo. As músicas e os cânticos entoados pelos hooligans tinham apelo nacional, locais e/ou clubísticos. Entretanto, no repertório havia o excesso de cantos obscenos ao se referirem ao oponente e racistas quando a equipe adversária tinha um jogador negro. Uma das formas encontradas para cercar esse grupo, além do aumento do controle, foi a divisão e gradeamento das arquibancadas, fazendo com que se assemelhassem a prisões. O álcool foi considerado coadjuvante nesse processo, já que, por si só, a multidão agitada e excitada é difícil de controlar. O efeito do álcool só faz aumentar essa dificuldade. Além disso, o relatório reconhece que, geralmente, os atos de violência e vandalismo são planejados friamente e sobriamente por um grupo (grupo I). Entretanto, durante o conflito, o grupo II (composto por quem planejou e por outros) se rende à desordem pelo efeito do álcool. Por fim, há o grupo III que responde

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Sob essas condições, indicava que mudanças deveriam ser feitas e um novo ethos deveria ser instituído ao futebol inglês.

Grounds should be upgraded. Attitudes should be more welcoming. The aim should be to provide more modern and comfortable accommodation, better and more varied facilities, more consultation with the supporters and more positive leadership. If such a policy is implemented it will not only improve safety. There will also be an improvement in behaviour, making crowd control easier (TAYLOR, 1990, p.12)113.

Dentre as várias medidas apontadas para o aumento do controle da multidão e da segurança dos usuários, o documento recomendava a necessidade de lugar sentado (all-seat stadium), pois seria a maneira mais eficaz de atingir os objetivos propostos em menos tempo e com menos gasto financeiro (TAYLOR, 1990). Taylor (1990) aponta alguns argumentos favoráveis à medida. Para ele, a colocação de assentos nos estádios era uma das medidas mais simples para se controlar a multidão. Considerava que assistir aos jogos sentados era mais confortável do que assistir a eles em pé. Analisava que a cadeira representaria um pequeno território que conferiria mais segurança ao indivíduo, uma vez que não seria esmagado sobre as pessoas ou sobre barreiras. Ponderava que, sentados em cadeiras, haveria uma diminuição do contato físico entre os torcedores, da mesma forma que, sentados, os torcedores não poderiam empurrar ou serem empurrados e nem movimentar-se em coreografias. Considerava que homens, mulheres e crianças, independentemente de sua altura ou condições físicas, não seriam tampados, asfixiados ou teriam sua visão prejudicada por pessoas mais altas e mais robustas que estivessem a sua frente. Por fim, assinalava que, com o monitoramento, seria possível quantificar exatamente o número de pessoas no

às ofensas e reage mais violentamente, também, pelo efeito do álcool. Por fim, a liderança fraca dos dirigentes foi atribuída a hierarquia e ao excesso de dirigentes que atuavam no futebol, fazendo com que o clube estivesse distante dos interesses de segurança e bem-estar do seu torcedor. Argumentava que, na indústria do entretenimento, é importante saber a opinião dos consumidores para traçar a política e o planejamento, porém são poucos os clubes que fazem isso (TAYLOR, 1990). 113 Os estádios deveriam ser melhorados. As atitudes deveriam ser mais acolhedoras. O objetivo deveria ser proporcionar acomodações mais confortáveis e modernas, instalações melhores e mais variadas, deveria haver também mais consultas aos torcedores e uma liderança mais positiva. Se tal política for implementada, ela não irá apenas melhorar a segurança, como também haverá a melhoria do comportamento, tornando mais fácil o controle da multidão.

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estádio. Concluía que, embora em cadeiras, o indivíduo continuaria sendo parte de uma multidão, cujos movimentos ocasionados por incidentes do jogo seriam efetivamente eliminados. Como decorrência dos acentos, o relatório também indicava a cobertura do estádio, já que não havia conforto em sentar no molhado. Indicava também que os acentos deveriam ser numerados e os ingressos deveriam estar identificados. Ao adotarem tais medidas, nascia uma nova geração de estádios, os chamados estádios pós-modernos (PARAMIO, BURAIMO e CAMPOS, 2008). Partindo de alguns estudos sobre os modelos arquitetônicos, econômicos e sociais de evolução dos estádios europeus, Bale (1993) e Paramio, Buraimo e Campos (2008) propuseram uma classificação dos estádios dividida em dois períodos, tendo a Inglaterra e a Espanha como parâmetros: os estádios modernos e os estádios pós- modernos. Segundo os autores, os estádios modernos estariam divididos em três gerações: primeira geração: final do século XIX até início dos anos 1920; segunda geração: início dos anos 1920 até o final dos anos 1940 e terceira geração, início de 1950 até final dos anos 1980. Já os estádios pós-modernos fariam parte de uma quarta geração de estádios que se iniciou nos anos 1990 e seguem até os dias atuais. Vale ressaltar que: 1) esses períodos não são estanques; 2) existem estádios de todas as gerações em uso até os dias atuais; 3) alguns estádios originalmente da terceira geração operam com o ethos dos estádios de quarta geração (os autores citam como exemplo os estádios Camp Nou – FC Barcelona e Santiago Bernabeu – Real CF). Embora não haja consenso acadêmico114 sobre a classificação dos estádios em pós-modernos, e entendendo também que o termo pós-modernidade carece de maiores aprofundamentos para não cair no equívoco do frenesi de sua utilização115, Paramio, Buraimo e Campos (2008) argumentam que os estádios do período moderno gradativamente testemunhavam uma mudança nas regras do jogo por parte de arquitetos e proprietários de clubes, em termos de desenho e

114 Alguns autores denominam de ‘novos estádios’, ‘arenas’, ‘não lugares’ (placeness), ‘stadia’. Essa variação de nominação, às vezes, ocorre dentro de um mesmo texto. 115 Concordo com Bale (1993) quando argumenta que há uma tendência, há uma pós-modernidade no futebol. Embora reconheça que o uso dessa palavra é emergente (current buzz word), da forma como o futebol está se desenvolvendo torna-se difícil não a utilizar e admite estar contente por sua utilização. Para maiores informações sobre a pós-modernidade, consultar HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

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administração dos diferentes tipos de estádios, ao mesmo tempo em que os sinais de crise do modelo fordista de produção capitalista, nos anos 1970, conduziram a um novo período econômico (neoliberalismo) que trouxe mudanças em termos de consumo, estética, arquitetura, cultura, estilo de vida das sociedades ocidentais e que também refletiu no futebol e, consequentemente, nos estádios. Esses novos estádios, com ênfase nos quesitos conforto e segurança, reduziram de tamanho, e os assentos passaram a ser vendidos como mercadoria rara. Além do maior valor do ingresso, os clubes optaram por reduzir a sua venda nas bilheterias, para forçar o torcedor a comprar o pacote para toda a temporada. Aumentou a setorização do estádio com o advento dos camarotes e das áreas de hospitalidade. O aumento do preço dos ingressos e a diminuição da capacidade dos estádios fez com que os populares fossem impedidos de frequentá-los. No fundo era uma reformulação do futebol inglês com alteração da imagem e do perfil de seus frequentadores (BALE, 1993; GIULIANOTTI, 2002; CRUZ, 2005; PARAMIO, BURAIMO e CAMPOS, 2008). Imagem essa difundida pela televisão que, por meio dos contratos de transmissão das partidas, injetou dinheiro que contribuiu para a reforma dos estádios e, via discursos, sua reformulação. De acordo com Giulianotti (2002), a renda advinda da televisão alterou a economia política do futebol, de modo que os clubes pudessem buscar outros patrocinadores e que os seus atletas passassem a ser garotos-propaganda do clube e dos patrocinadores. Vemos, nesse contexto, que as modificações extracampo fizeram com que o público assistente também se alterasse ao longo dos anos. Os tradicionais torcedores que sempre acompanhavam os clubes eram paulatinamente substituídos por espectadores ou consumidores, em um processo de exclusão. Nesse cenário, após a profissionalização dos jogadores e dos dirigentes, foi a vez de os estádios se profissionalizarem entrando em um mercado competitivo e cercando-se do futebol para comercializar produtos e marcas116. O futebol espetáculo chega ao Brasil no final dos anos 1990 e traz uma alteração na forma de pensar esse esporte. Nessa mesma década, muitas mudanças ocorreram no Brasil impulsionadas pelo fim do regime ditatorial, pela

116 Além dos espaços físicos dos estádios cada vez mais diferenciados em vários níveis de camarotes, há a comercialização do nome do próprio estádio e de setores da arquibancada. Assim, empresas patrocinadoras associam suas marcas às marcas das equipes vitoriosas, de modo que os nomes tradicionais que os torcedores reconheciam e se localizavam sejam abandonados.

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assinatura da Constituição de 1988 e por sua inserção no modelo econômico neoliberal, pautado na diminuição dos espaços públicos de direito e expansão do espaço privado e de interesse do mercado como eixo definidor da ação estatal117 (SADER, 2013). Esse novo modelo econômico apresenta algumas características, dentre as quais, a fragmentação e dispersão da produção, com compra e venda de serviços no mundo inteiro, gerando a precarização e a terceirização do trabalho; aumento do desemprego pela automação dos meios de produção e pela obsolescência da mão de obra para operá-los; o deslocamento do poder de decisão para o capital financeiro; a transnacionalização da economia que diminui a exigência de uma base territorial para a fixação do capital; divisão entre bolsões de riqueza e bolsões de miséria (CHAUI, 2013). Durante a mesma década, o futebol brasileiro, acompanhando as tendências de alguns países europeus (Inglaterra, Itália, Espanha), começou uma gradativa transformação encabeçada por alguns cronistas, comentadores, dirigentes esportivos, patrocinadores, torcedores. No bojo do processo havia o debate sobre a modernização desse esporte, tendo como características a introdução de novas diretrizes gerenciais, a revisão da legislação esportiva, a transformação do futebol em um produto globalizado e a crescente aproximação com o mundo dos negócios (PRONI, 1998). Com a entrada do futebol no mundo dos negócios, os dirigentes dos clubes se cercaram de profissionais especializados advindos do campo da economia, administração, marketing e comunicação. Nesse contexto, os clubes e seus atletas surgiriam como marcas em potencial, e a experiência futebolística poderia ser comercializada em placas de publicidade, patrocínio de camisas, comerciais de televisão, patrocínio das competições, venda de souvenir e de outros produtos não relacionados diretamente ao futebol (PRONI, 1998; GIULIANOTTI, 2002).

117 Sader (2013) aponta que a transição democrática no Brasil, embora tenha tido força para assinar uma Constituição que restaurasse direitos cassados pela ditadura militar e fomentava outros direitos, nasceu na contramão da onda neoliberal que se firmava no mundo e na América Latina. Com isso, a democratização política não se desdobrou em democratização econômica, social e cultural, esgotando o ciclo democratizador da sociedade brasileira, uma vez que paradigmas neoliberais entraram em cena.

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Concomitantemente, houve uma mudança de conceito na indústria de entretenimento, devido às inovações tecnológicas que permitiram um uso intensivo das tecnologias, flexibilizando as distâncias. Assim, as corporações de entretenimento puderam expandir seus mercados, vendendo produtos padronizados e homogeneizados aos diversos grupos de interessados. De acordo com Sassen e Roost (2001, p. 68), “[...] para a indústria de entretenimento, as cidades não são apenas locais estratégicos para a produção e coordenação, mas locais de consumo cada vez mais importante”. Um dos negócios de entretenimento incorporado pela nova indústria que se fortalecia foi o esporte e, principalmente, o futebol. E a forma de comercializá-lo foi por meio dos canais pagos na televisão ou os pacotes de programação (pay-per-view). No plano urbano também houve transformações. Tendo em vista o planejamento urbano, pautado no Plano Estratégico da Cidade, a cidade passa a ser gerida como se fosse uma grande empresa, de modo que tenha competitividade e espaço dentro do mercado de competição entre cidades. Dentre os aspectos de relevância defendidos pelos neoplanejadores, destaca-se a noção de flexibilidade como necessária à livre atuação do mercado, e a rejeição ao controle político e burocrático, entendida como entraves, como estratégia de redução e desqualificação política. Calcada nos pilares da flexibilidade, da competitividade e da orientação para e pelo mercado, a cidade estrategicamente planejada se alinha perfeitamente com a lógica administrativa empresarial (empresariamento urbano), tendo padrões de eficiência econômica e a eficácia como metas a serem alcançadas na corrida de ranqueamento das cidades mundiais (VAINER, 2012, 2013). Partindo do discurso neoliberal de uma economia globalizada, os países, as cidades, as empresas que apresentassem as melhores vantagens comparativas seriam mais competitivos no mercado mundial. Assim, percebemos que durante os anos houve mudanças em todos os setores da sociedade. Nesse contexto, os eventos esportivos se transformaram em megaeventos esportivos, capazes de aglomerar multidões e gerar grandes dividendos financeiros. Um dos principais exemplos dessa mudança foi a copa do mundo de futebol masculino.

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3.3 A Copa do Mundo de Futebol (da FIFA)

A Copa do Mundo de futebol masculino, organizada pela FIFA, é um evento que ocorre desde 1930, quando foi disputada a primeira edição no Uruguai. Ao longo de suas edições, esse evento foi ganhando contornos diferentes, do amadorismo dos primeiros torneios à superestrutura em que se transformou, deslocando-se da ênfase na disputa entre selecionados nacionais para a ênfase no capital e na produção/reprodução do espaço urbano, transformando, paulatinamente, a Copa do Mundo em Copa do Mundo da FIFATM, já que a entidade detém os direitos comerciais da competição. Na atualidade, “[...] para a FIFA e suas parcerias comerciais, a Copa é projetada para render dividendos, e nisso consiste um dos aspectos mais polêmicos” (DAMO, 2012, p. 44). A FIFA opera no futebol dentro de um circuito de nações118, no qual as equipes de futebol representam Estados-nação e, para defender a camisa de sua seleção, o jogador precisa ter nascido ou se naturalizado no país o qual defende. Isso, de um modo geral, suscita uma identificação coletiva com o selecionado nacional em grande parte dos países (DAMO, 2006; FRANCO JUNIOR, 2007; DAMO, 2012). De acordo com Giulianotti (2002, p. 42), “o futebol é uma das grandes instituições culturais, como a educação e os meios de comunicação de massa, que formam e consolidam identidades nacionais no mundo inteiro”. Alguns autores (DAMO, 2006, 2012; FRANCO JUNIOR, 2007) apontam que esse caráter nacionalista se transforma, em muitos casos, em uma verossimilhança com situações de guerra. Não são apenas duas equipes compostas, cada uma, por 11 jogadores que se enfrentam, mas, sim, os países que cada uma representa. Com isso, questões políticas, econômicas, sociais e religiosas de forma simbólica e mimética entram em campo. Isso faz com que um público mais amplo se interesse pelo jogo de futebol, de modo que pessoas que, comumente, não se interessam por futebol no circuito clubístico tornam-se fervorosos torcedores de seus selecionados nacionais.

118 De acordo com Damo (2012), no futebol operam dois sistemas distintos de competição capazes de absorver o engajamento dos torcedores. Um primeiro circuito se concentra em eventos nos quais se enfrentam equipes que representam Estados-nações; e o outro, mais amplo, compõe-se de múltiplas disputas entre clubes profissionais ou amadores, que geram rivalidades e identidades local, regional, nacional. A FIFA, por meio da Copa do Mundo, opera no primeiro circuito.

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Pela facilidade de ser explorado, este simbolismo faz da Copa uma espécie de petróleo de superfície. Quem detém os royalties é a FIFA, embora ela não os tenha adquirido ou herdado, apenas se apropriado. Ela detém a patente tecnológica e prospecta globalmente. Mas precisa de um lugar para realizar o evento e parece ser bastante persuasiva, pois até o presente não tem faltado interessados (DAMO, 2012, p. 56).

Tratando a copa do mundo enquanto um negócio movido pelo sentimento, a FIFA comercializa os direitos que detém sobre o evento a parceiros interessados de duas formas: 1) comercializando o direito de transmissão; 2) vendendo o direito das empresas se anunciarem como parceiras da FIFA ao assinarem um contrato de exclusividade por ramo de atividade119.

The formation of a sport-media-business aliance that transformed professional sport generally in tlhe late 20th century. Through the idea of packaging, via tri-partite model of sponsorship rights, exclusive broadcasting rights and merchandizing, sposors of both the Olympic and the football World Cup have been attracted by the association with the sports and the vast global audience exposure that the events achieve (HORNE, MANZENREITER, 2006, p. 5)120.

Horne e Manzenreiter (2006) afirmam que, desde a década de 1980, a Copa tem atraído grandes interesses de parceiros comerciais, devido ao aumento da exposição midiática que recebe. Isso faz parte da política iniciada pelo seu então presidente, João Havelange, que assumiu a presidência da entidade em 1974 e atuou em duas frentes: 1) aumento do número de afiliados, incorporando nações fora do continente europeu, dando à FIFA o título de entidade planetária, atuando em escala supranacional; 2) aproximação de empresas multinacionais (DAMO, 2012). Entre os principais parceiros econômicos estão a indústria de bebidas (refrigerante e alcoólica), automóveis, higiene masculina, comunicação, áudio e

119 Embora a copa do mundo de futebol masculino seja o evento mais popular e lucrativo da FIFA, ela detém os direitos da Copa das Confederações, Mundial de Clubes, Copa do Mundo de Futebol Feminino, Copas do Mundo sub-20 e sub-17 masculino e feminino, Copa do Mundo de Futsal e Copa do Mundo de Beach Soccer, além de outros torneios menos populares. 120 A formação de uma aliança entre esporte-mídia-negócio vem transformando o esporte profissional como um todo, no final do século XX. Por meio da ideia da venda de um pacote composto por três elementos – direito de patrocínio, direito de comunicação exclusiva e merchandising – patrocinadores dos Jogos Olímpicos e Copa do Mundo têm sido atraídos a se associarem a esses eventos e a vasta audiência global que os mesmos têm.

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vídeo, cartão de crédito e vestuário esportivo como mostra o quadro 1. Essa aliança lucrativa com um limitado número de patrocinadores aumenta a sua abrangência a cada edição, já que o torneio aumenta o seu alcance. Os autores, ao analisarem a Copa de 2002, disputada no Japão e na Coreia do Sul, concluíram que houve mais de 41.000 horas de programação exibidas em 213 países, produzindo uma audiência estimada em 28,8 bilhões de espectadores.

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Quadro 1 – Parceiros comerciais Copa do Mundo da FIFA 1982 - 2014 1982 1986 1990 1994 1998 2002 2006 2010 2014 Ano/País-sede

Espanha México Itália E.U.A. França Coreia/Japão Alemanha África do Sul Brasil Atividade Comercial

RJ RJ Tabaco Reynolds Reynolds

Canon Canon Canon Canon Canon Fotografia

Metaxa Cinzano Bebida alcóolica destilada

Seiko Seiko Toshiba Toshiba Toshiba Eletro-eletrônico

Iveco Alfa General General Hyundai Hyundai Kia Motors Hyundai/Kia Veículos/ Romeo Motors automóveis

Bata Adidas Adidas Adidas Adidas Adidas Vestuário

Coca-Cola Coca-Cola Coca-Cola Coca-Cola Coca-Cola Coca-Cola Coca-Cola Refrigerante

Gillette Gillette Gillette Gillette Gillette Gillette Gillette Higiene masculina

Fuji Fuji Fuji Fuji Film/ Fuji Film Fuji Film Fotografia

Fuji Xerox

Philips Philips Philips Philips Philips Philips Televisão

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Quadro 1 – Parceiros comerciais Copa do Mundo da FIFA 1982 - 2014 (continua) 1982 1986 1990 1994 1998 2002 2006 2010 2014 Ano/País-sede

Espanha México Itália E.U.A. França Coreia/Japão Alemanha África do Sul Brasil Atividade Comercial

JVC JVC JVC JVC Sony Sony Áudio e vídeo

Mars Snickers Mars Marfig Alimentação

Vini Italia Vinho

Anheuser- Budweiser Budweiser Anheuser- Budweiser Cerveja Busch Busch

MasterCard MasterCard MasterCard MasterCard Visa Visa Cartão de crédito

McDonald’s McDonald’s McDonald’s McDonald’s McDonald’s McDonald’s Restaurante fast food

Energizer Bateria automotiva

Cassio Calculadora

Avaya Avaya Avaya Empresa de comunicação

KT/NTT Deutsche Deutsche Oi Telecomunicação Telekom Telekom

Yahoo! Yahoo! Yahoo! Serviço de internet

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Quadro 1 – Parceiros comerciais Copa do Mundo da FIFA 1982 - 2014 (continua) 1982 1986 1990 1994 1998 2002 2006 2010 2014 Ano/País-sede

Espanha México Itália E.U.A. França Coreia/Japão Alemanha África do Sul Brasil Atividade Comercial

Continental Continental Continental Fábrica de pneus

Emirates Emirates Emirates Companhia aérea Airline Airline Airline

Eletronic Arts Software games

Castrol Óleo lubrificante

Johnson & Saúde e bem Johnson estar

Yingli Green Energía renovável Energy

FONTE - HORNE, MANZENREITER (2006) e www.fifa.com. Adaptado pela autora da tese.

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Para garantir o aumento de audiência e tornar o jogo ainda mais lucrativo, a FIFA vem, não só aumentando o número de países afiliados, mas também o número de países participantes da Copa. Em 1930, apenas 13 países participaram do Mundial; depois aumentou para 24 e, a partir de 1998, subiu para as atuais 32 equipes (CRUZ, 2005; HORNE, MANZENREITER, 2006). Assim, todos os continentes têm, pelo menos, uma vaga garantida na competição, exceto a Oceania. Ademais, desde 1990, há uma rotatividade dos países-sede da competição por continente, sendo que o ciclo se encerrou em 2014121. Entretanto, além dos parceiros comerciais, a FIFA também busca parceria com os Estados-Nação, uma vez que o evento precisa ocorrer em uma base territorial concreta e pelo fato de que nem a FIFA, nem os seus parceiros privados, conseguirem arcar sozinhos com os custos e com as demandas para a realização da Copa. Nesse momento, entram em cena os Estados nacionais para viabilização do processo. Utilizando-se da venda da marca Copa do Mundo da FIFA, como algo capaz de projetar o país internacionalmente, atraindo investidores e turistas, a entidade vislumbra mercados reais e potenciais para o seu produto, “[...] influenciando, cooptando ou atropelando Estados nacionais, em suas organizações, diretrizes e intenções” (IANNI, 1998, p. 29). Apenas ao Estado é permitido alterar a legislação vigente, para cumprir as cláusulas do contrato, tais como “[...] segurança às delegações, autoridades e turistas (torcedores); [b] meios de mobilidade - aéreo e terrestre, entre e dentro das cidades; [c] proteção legal aos seus parceiros e patrocinadores comerciais” (DAMO, 2012, p. 49). Assim, para garantir o sucesso do seu evento, a FIFA, “[...] que detém a autoridade máxima sobre a forma na qual todas as competições da FIFA ocorrem e são organizadas” (FIFA, 2011b, p. 1), assina um contrato com o país e com as cidades-sede. O contrato assinado pelas cidades-sede é composto por várias sessões cujos itens versam sobre o termo de cooperação; as normativas para a exibição e promoção da imagem da cidade-sede; o direito de propriedade de

121 Em 1994, a Copa foi disputada nos EUA/Zona da América Central, do Norte e Caribe; 1998, França/Zona Europeia; 2002, Coreia e Japão/Zona Asiática; 2006, Alemanha/Zona Europeia; 2010, África do Sul/Zona Africana e 2014, Brasil/Zona da América do Sul (FIFA, sd1).

121 marcas; o Programa de Decoração da Cidade-Sede para exibir as marcas da competição; a realização de eventos paralelos na Cidade-Sede organizados pela FIFA; o fornecimento de segurança e proteção às pessoas envolvidas com a Copa; o gerenciamento do transporte, de modo que aeroportos estejam autorizados a funcionar além de seu horário comum devido aos voos que necessitarem aterrissar/decolar fora do horário de expediente; o fechamento do acesso público de vias públicas dentro da cidade-sede; o funcionamento de ônibus e trens; a elaboração de um planejamento dentro de uma perspectiva de desenvolvimento sustentável; a disponibilização de hospedagem em local central e com entretenimento adequado aos parceiros FIFA; a garantia de que nenhum envolvido deverá divulgar publicamente os serviços fornecidos à cidade-sede e, caso isso ocorra, deverá ser retirada o mais rápido possível; a regulamentação do entretenimento de modo a assegurar que nenhum outro evento esportivo e cultural importante e de grandes proporções ocorra na cidade-sede no período de sete dias antes do início da competição e sete dias após o seu término e, por fim, a exigência da infraestrutura para os estádio (FIFA, 2011a). Assinado o contrato, a cidade-sede

[...] declara e garante que não firmou e nem firmará nenhum contrato com nenhuma entidade que restringiria ou proibiria o COL122, a FIFA e/ou Afiliadas Comerciais, os provedores de serviço da FIFA e/ou outros portadores de direitos comerciais de exercerem seus direitos em relação à Competição (FIFA, 2011a, p. 30).

O que se vê nessa empreitada é que, em maior ou menor grau, dependendo do seu poder econômico-político, o Estado encontra-se atado em suas decisões, pois, em alguns casos, precisa flexibilizar a legislação vigente para poder cumprir o contrato. Isso é um elemento profícuo para a formação de um estado de exceção. Agamben (2004) propôs demonstrar a evolução histórica do estado de exceção associando-o a situações de guerra ou golpe, no qual há um enfraquecimento do poder legislativo em detrimento de um fortalecimento do poder executivo mediante a criação de decretos-lei que alteram a legislação vigente.

122 Comitê Organizador Local.

122

De acordo com o autor, a exceção é justificada pela necessidade de uma ação positiva para resolver uma urgência. Com isso, o poder executivo passa a ter plenos poderes para regulamentar, modificar, anular, por decreto, as leis vigentes por um período específico. O estado de exceção gera um enfraquecimento do Estado democrático e um ciclo-vicioso, uma vez que “[...] a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem ‘força’) e em que, de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua força” (AGANBEM, 2004, p. 61). Por fim, traz como consequência um “[...] espaço vazio, onde uma ação humana sem relação com o direito está diante de uma norma sem relação com a vida” (AGANBEM, 2004, p. 131). O que se vê é que a FIFA age por intermédio de um acúmulo de conhecimentos, de modo que, a cada experiência, incorpora, em suas normativas, determinações que garantam o seu procedimento, aumentando, assim, a sua importância e criando justificativas que dão sentido ao estado de exceção. Ademais, a FIFA “[...] atua em diversas frentes e manipula politicamente sua identidade conforme as circunstâncias” (DAMO, 2012, p. 58). De acordo com Santos (1999, p. 20), “[...] a técnica normativa é normatizada no seu uso e é normativa na sua repercussão sobre os agentes”. Isto é, a partir do momento em que um agente hegemônico (seja político, econômico, social, religioso etc) elabora um conjunto de especificações e determinações a serem cumpridas por alguém, tem-se uma normatização dos procedimentos a serem seguidos. Desse modo, independentemente do lugar, os agentes não-hegemônicos se adaptam, em diversos graus, para entrar em compatibilidade com a normativa hegemônica, gerando a tentativa de padronização que rompe com o equilíbrio de um sistema. A realização da Copa no Brasil é um exemplo desse processo, uma vez que, para receber esse direito e reconhecimento, o Estado teve que cumprir as normativas da FIFA, que a cada edição da copa, atualiza-as, criando e/ou excluindo normas. O fato é que a FIFA opera dentro do Estado nacional buscando garantias para as suas ações e proteção para que marca e imagem do evento não sejam exploradas por outras empresas que não os seus parceiros comerciais, apoiadores e patrocinadores nacionais da Copa no país-sede. De

123 acordo com Damo (2012), ela opera capitalizando os ganhos e dividindo as despesas. Além disso, ela atua diretamente no local onde, de fato, serão disputados os jogos, isto é, os estádios de futebol. Nesse sentido, a cidade-sede “[...] compromete-se a cooperar totalmente com, e auxiliar, o COL no fornecimento de todas as exigências de infraestrutura para os Estádios e dentro da Cidade Sede para facilitar o uso e operação dos Estádios e qualquer campo de treinamento para a competição” (FIFA, 2011a, p. 21). Para isso, as cidades-sede baseiam suas ações no caderno referente às recomendações123 e requisitos técnicos para os estádios de futebol.

3.3.1 Os estádios de futebol padrão FIFA

Como dito antes, a FIFA, a cada evento por ela realizado, revê as suas normatizações criando, excluindo e mantendo certas normativas em relação a todos os aspectos do evento. Isso inclui os estádios de futebol, já que eles passaram a ser considerados uma “[...] engrenagem central nesta nova ordem econômica do futebol dos últimos vinte anos, um espaço de disciplina, de padronização do esporte e de seus espectadores” (CRUZ, 2010, p. 16). Em sua quinta edição e dividido em 12 capítulos, o Stadiumbook (Estádios de Futebol: recomendações e normas) tem por objetivo “[...] ajudar a todos os envolvidos em projeto, construção e administração de estádios de futebol e a criar instalações que permitam assistir aos jogos com segurança e conforto” (FIFA, 2011b, p. 10). Com isso, torna-se uma referência para a construção de novos estádios que atendam as demandas específicas de uma Copa do Mundo, entre elas, a de transformar estádios em instalações com múltiplas funções, agregando serviço de transporte, maior segurança e infraestrutura moderna. Sendo assim, seus capítulos fornecem recomendações referentes à fase de pré-construção, segurança física e patrimonial, estacionamento, área de jogo, espectadores, hospitalidade, mídia, iluminação e energia, comunicação, futsal e futebol de areia (incluído nessa edição com o

123 Embora no corpo do documento apareça a palavra recomendação, podemos afirmar que a FIFA não recomenda, mas exige que se cumpram as normas, pois se não o fizer, a cidade-sede sofre sanções, cujo máximo é ser descredenciada e não receber os jogos.

124 objetivo de desenvolvimento dessas práticas) e instalações temporárias (FIFA, 2011b). Tendo o futebol como fim primário, a FIFA reconhece que os estádios “[...] devem ser projetados de forma que abriguem outros eventos esportivos e de entretenimento, melhorando assim a sua utilização e viabilidade financeira” (FIFA, 2011b, p. 42). Como eventos esportivos, a entidade sugere o críquete, rúgbi e futebol americano (nenhum deles praticados no Brasil) e condena o atletismo, já que a pista em volta do campo faz com que os torcedores de futebol fiquem mais afastados. Já os eventos de entretenimento são os concertos, festivais, peças teatrais, feiras de negócio e consumo (FIFA, 2011b). Entretanto, reconhece, com base em experiência de terceiros, que

[...] a questão de viabilidade econômica tem também encorajado os proprietários de estádios a examinar a utilização não relacionada à função esportiva primária. Há bons exemplos em todo o mundo de centros varejistas, clínicas de saúde, academias e clubes de esportes, hotéis e centros de conferência e educacionais associados diretamente com o desenvolvimento de estádios. Assim, o aumento de utilização e de espaço locável aumenta a autossustentabilidade e a viabilidade da instalação como um todo (FIFA, 2011b, p.44).

Isso demonstra uma alteração na cultura do futebol. Se antes o estádio era o templo sagrado do futebol, atualmente está se tornando em um templo sagrado do consumo. Dentro dessa nova lógica, o estádio precisa oferecer segurança aos seus usuários. Para que isso ocorra é necessário subdividi-lo em setores (autônomos no funcionamento e interligados em termos de deslocamento), ter uma sala de controle de operações e um amplo sistema de sinalização utilizando símbolos universais que sejam capazes de guiar os espectadores.

Os estádios devem ser projetados para que todos os espectadores fiquem seguros e confortáveis, tenham uma perfeita visão do campo e fácil acesso às instalações sanitárias, assim como a instalações de convivência (FIFA, 2011b, p. 107).

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Assim, há também uma grande preocupação com o conforto. Por não permitir que assistam a jogos da Copa em pé, a FIFA exige cadeiras numeradas e confortáveis nos estádios. Contribui também para o conforto, instalação de cobertura que proteja a todos os torcedores nos vários níveis de arquibancada, banheiros limpos para ambos os sexos, bom sistema de autofalantes e placares, rapidez a qualidade no atendimento de bares e lanchonetes, e, para países de clima frio, a aclimatação do estádio, por meio de ar condicionado (FIFA, 2011b). Esse novo modelo de estádio também exige que se tenham parceiros comerciais. Nesse sentido, é necessária uma área de hospitalidade que atraia VIP’s ou consumidores coorporativos que fazem do estádio, também, um lugar de negócio e entretenimento dos clientes. Nessa área reservada é oferecido um maior conforto (poltronas, clima, visão de jogo, banheiro, estacionamento), além de serviço de comida, bebida, maior segurança e outros itens adicionais. Além disso, segundo o documento, “[...] um estádio provido de áreas como salas funcionais para casamentos, bailes e jantares, salas de encontro para grupos menores e um restaurante público poderá obter renda regular adicional à renda gerada pelo propósito central de abrigar partidas de futebol” (FIFA, 2011b, p. 130). Outra alteração proposta pela FIFA é o tamanho do campo de jogo que passa a medir exatos 105x68 metros em todos os estádios que forem sediar uma de suas competições. Ao taxar essa medida, há uma impossibilidade de variação do campo. Mesmo dentro das medidas asseguradas pela International Football Association Board (comprimento lateral mínimo de 90m e máximo de 120m, por largura mínima de 45m e máxima 90m), essa padronização faz com que todos os campos sejam iguais. De acordo com Bale (1998), isso serve para atender a lógica do fair-play, na qual todas as equipes devem ter iguais condições de jogo. Se há variação no tamanho dos campos, uma equipe pode se sentir prejudicada em relação à outra. Ademais, a variação no campo de jogo não permite a obtenção de recordes e nem a escolha dos melhores jogadores. Para que o espetáculo futebolístico seja garantido, o lugar da mídia também precisa ser cuidado. Assim, o documento traz a normatização do seu espaço, tratando da quantidade de assentos, localização, disposição das câmeras, dos narradores, comentaristas e fotógrafos (FIFA, 2011b), de modo que cada lance, cada jogada, cada perfil, cada diálogo dentro de campo possa

126 ser captado e imediatamente transmitido pelos mais diversos suportes midiáticos. Percebemos que há uma mudança de ideologia sobre o futebol. Se na Copa de 1950 poucos eram os registros sobre a escolha do Brasil como cidade- sede e os preparativos para a realização do evento e construção do Maracanã (DAMO, 2012), na atualidade, esse procedimento está bem detalhado. Isso está alinhado à ideologia dos megaeventos esportivos que trata o esporte como o produto de um grande negócio, difundido pela indústria do entretenimento. Assim, a FIFA, ao rever as suas normatizações sobre os estádios incluindo, excluindo e mantendo certas normativas, opera de modo a potencializar a difusão dos chamados estádios pós-modernos que, no Brasil, receberam a denominação de arena.

A partir do momento em que o futebol é transformado em mercadoria, sendo consumido como espetáculo, podemos perceber algumas demandas que contribuem em muito no processo de hierarquização e elitização dos estádios de futebol. Se por um lado, um dos mais fortes argumentos para mudanças estruturais no futebol parte da própria instituição que governa o esporte em âmbito internacional, a FIFA – que, em nome da segurança nos estádios, decretou que, a partir do ano de 1992, ela não permitiria mais a presença de torcedores que assistissem aos jogos por ela organizados em pé – por outro estas mudanças surgiram de demandas econômicas que, como vimos, estão transformando o jogo, convertendo-o em um espetáculo, em um produto a ser comercializado e que pressupõe uma plateia composta por consumidores em detrimento de torcedores (CRUZ, 2005, p. 84).

Tais estádios têm como características em comum a preocupação com estética e funcionalidade, apresentando, portanto, um desenho inovador, segurança, conforto, hospitalidade, acessibilidade a todo tipo de usuário, multifuncionalidade e aumento do desenvolvimento comercial, tanto em dias de jogos, quanto em dias sem jogo. Além disso, esses estádios devem contribuir para a regeneração urbana; ser uma construção icônica, um lugar turístico e capazes de recriar novas e antigas experiências para atender a um público mais vasto, em uma perspectiva, ao mesmo tempo, futurista e museológica (PARAMIO, BURAIMO e CAMPOS, 2008).

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De acordo com John, Sheard e Vickery (2007), no século XXI, o poder financeiro e mundial do esporte o está transformando, verdadeiramente, na mais global das mercadorias. Assim, os estádios, locais que acomodam os esportes, se tornaram uma das mais importantes construções de uma cidade, parcialmente devido ao seu poder enquanto ferramenta de planejamento urbano e como fonte de retorno financeiro (embora o custo alto de sua construção). Os autores defendem que os estádios podem se transformar em uma das mais fascinantes construções de uma cidade.

They can help to shape our towns and cities more than almost any other building type in history, and at the same time put a community on the map. They have become an essential ingredient in the urban matrix that pulls our cities together and in so doing provide a focus for our aspirations. They are also probably the most ‘viewed’ building type in history thanks to the Olympics and other global sporting events. They change people’s lives and may come to represent a nation’s aspirations (JOHN, SHEARD e VICKERY, 2007, p. 21)124.

Vale ressaltar que esse fenômeno perpassa a FIFA, uma vez que, na atualidade, há a remodelação e construção de estádios independentemente se vão ou não sediar os eventos oferecidos por ela. Entretanto, nos locais em que tais eventos, serão realizados, os estádios acompanham a tendência. Em alguns casos, produzem espaços e, em outros, contribuem para a renovação de espaços outrora produzidos.

3.4 Belo Horizonte na Copa de 2014 e as transformações do Mineirão

Como apontado na introdução deste trabalho, os trâmites legais para a candidatura do Brasil a país-sede da Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014 iniciaram-se em 2003, quando Brasil, Argentina e Colômbia inscreveram seus nomes pleiteando a vaga. Em 2006, a CONMEBOL votou de forma unânime

124 Eles podem ajudar no formato das nossas cidades mais que qualquer outra construção na história e, ao mesmo tempo, inserir a comunidade no mapa. Eles se tornaram um ingrediente essencial da matriz urbana para impulsionar nossas cidades e, por isso, se tornaram um foco para nossas aspirações. Eles também podem ser a obra mais visitada, graças os eventos olímpicos e esportivos de escala mundial. Eles mudam a vida das pessoas e podem se tornar um representante da aspiração de uma nação.

128 pela candidatura única do Brasil. E, em 2007, foi dado fim ao processo de candidatura com uma cerimônia ocorrida na cidade de Zurique/Suíça125 em que a FIFA validou a escolha do Brasil (SANTOS, 2011; DAMO, 2012).

Verifica-se que a decisão sobre o lugar de realização de megaeventos esportivos é tomada por organizações privadas internacionais. Os elementos-chave para que as organizações decidam em qual país serão realizados são, afirma-se, calcados em critérios técnicos, entre os quais: infraestrutura geral, capacidade e tipos de estádios, recursos para investir na adaptação e/ou na construção dos mesmos, estabilidade econômica, social e política do país, capacidade aeroportuária, formas de deslocamentos de aeroportos para estádios e/ou cidades-sede, rede hoteleira para hospedar atletas e turistas (RODRIGUES, 2013, p. 15).

Desse então, vários estudos foram publicados pelas diversas áreas do conhecimento debatendo a ocorrência desse megaevento no País. Alguns se mostraram favoráveis, outros, contrários à realização da Copa. De modo geral, sediar um evento de tamanhas proporções, como uma Copa do Mundo, é uma possibilidade de o país-sede difundir uma autoimagem positiva, atraindo investimentos, nacionais e internacionais, dentro de uma economia global, passando a ser conhecida e reconhecida pela comunidade internacional. De acordo com Santos (2011), a visão do futebol como fator mercadológico, capaz de vender outros produtos agregados a ele, tais como o turismo, a autoimagem brasileira, o comércio externo e o crescimento econômico se fez presente na agenda governamental do governo Lula, no período compreendido entre 2003 e 2010.

Faz-se imprescindível uma reorganização do futebol brasileiro por meio da modernização de sua estrutura126. Tem-se ainda a perspectiva de projeção do país perante o mundo como uma nação forte econômica e politicamente; portanto, apta a sediar os grandes eventos esportivos mundiais (SANTOS, 2011, p. 71).

125 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=lFxgh1vOv4E. 126 Logo no seu primeiro ano de governo foi criado o Ministério do Esporte que, entre outras atribuições, tinha como objetivo organizar o futebol brasileiro por se tratar de uma atividade privada de interesse público. Assim, procurou sistematizar o calendário das competições, regulamentar a transferência de jogadores, investir na transparência da administração dos clubes, criar e implementar a Lei n. 10.671, de 15 de maio de 2003, denominada Estatuto de Defesa do Torcedor.

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Além das questões de acumulação de capital, percebemos que sediar um megaevento implica, também, o poder simbólico que eles carregam. De acordo com Brito-Henriques (2013, p. 3), “[...] os megaeventos constroem ou reformulam narrativas sobre os territórios, os Estados e as sociedades que os organizam, e é esse potencial discursivo que as autoridades pretendem mobilizar quando decidem pela organização de um megaevento”. Ainda, de acordo com esse autor, os megaeventos são capazes de proporcionar às elites e às massas experiências portadoras de significados, gerando, em meio à diversidade, um sentido de unidade que fornece identidade. O autor afirma que, em Estados totalitários, é mais fácil perceber essas intenções políticas e simbólicas do que em Estados democráticos. Tais argumentos corroboram a ideia de Damo (2012) quando diz que, de quatro em quatro anos, a Copa ajuda a atualizar e a reforçar a ideia de nação enquanto algo político e sentimental. Nesse sentido, Brito-Henriques (2013) assegura que o discurso dos megaeventos se destina, tanto ao consumo doméstico, quanto à diplomacia e às relações internacionais. No que se refere ao consumo doméstico, os discursos tornam-se um capital político em favor dos atores políticos responsáveis por sua realização, rendendo-lhes prestígio político que pode ser transformado em votos. Nessa linha de raciocínio, Damo (2012) aponta que sediar uma Copa do Mundo é algo sedutor, pois a oportunidade do evento e a exposição didática do assunto em termos de custos e benefícios o são. E deixar de sediá-la seria algo constrangedor, tanto para o Presidente da República (independentemente de qual seja sua legenda), quanto para os governadores dos estados-sede (independentemente se oposição ou aliado), pois envolve o ônus político. No que tange ao discurso voltado à diplomacia e às relações internacionais, os megaeventos servem para marcar um novo tempo assinalando “[...] momentos de inflexão política e mudança histórica, ou quando pretendem reformular narrativas sobre os Estados e passar a ideia de que está em curso algum tipo de reposicionamento na cena internacional” (BLACK, 2007, apud BRITO-HENRIQUES, 2013, p. 4). Esse reposicionamento do Brasil frente ao cenário mundial pode ser visto pelas ações feitas pelo então presidente Lula, no que diz respeito ao fortalecimento de empresas nacionais, da criação do Programa de Aceleração

130 do Crescimento e da recuperação da capacidade do Estado de prover políticas e programas sociais de inclusão e redução da pobreza e valorização dos direitos civis, econômicos e sociais para o fortalecimento da democracia127. Dessa forma, podemos dizer que os megaeventos são torneios de valor e têm uma complexidade em sua análise, pois, além da utilidade econômica, são lugares de troca de informação, afirmação de status e identidade, culturalmente definida. A participação nesses eventos tende a ser simultaneamente um privilégio e um instrumento de disputa daqueles que estão no poder. O que está em pauta nesses torneios não é apenas a posição, a fama ou a reputação dos atores, mas a disposição dos principais emblemas de valor da sociedade em questão (APPADURAI, 2008128, apud CURI, 2012). Além disso, para a FIFA, a realização da copa no Brasil seria algo viável, uma vez que o País tem o futebol como um dos símbolos identitários e ostenta, internacionalmente, a reputação de ser belo, festivo e acolhedor (DAMO, 2012). Ademais, o Brasil é o único país participante de todas as edições das copas do mundo e o maior campeão, tendo cinco conquistas. Com esse histórico, como não sediar uma Copa? A partir do momento em que o Brasil foi escolhido país-sede, as cidades brasileiras começaram a pleitear a sua candidatura a cidade-sede da Copa, exibindo-se, assim, a competitividade entre as cidades, uma das marcas do modelo neoliberal. Por meio de discursos, representações e valorização da cultura local como fonte de investimento e distinção, prefeitos e governadores investiram em marketing urbano, transformando suas cidades em mercadorias. Rodrigues (2007) nos alerta que a cidade não é vendida em pedaços, pois não é um objeto trocável, o que se vende

[...] são fragmentos de lugares, polos de investimentos para capitalistas nacionais e estrangeiros com o objetivo de aumentarem lucros, rendas e juros. Os fragmentos de lugares para eventos, atividades turísticas e de investimento, visando à incorporação imobiliária de bairros nobres, de condomínios murados e, como

127 Para ver um apanhado geral das modificações promovidas pelo governo Lula nas políticas interna e externa, consultar: SADER, Emir (Org.). 128 APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008.

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totalidade, a cidade-mercadoria vende imagem de prefeitos como “gestores” capitalistas (RODRIGUES, 2007, sp.)

Nesse contexto, podemos perceber que os megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo de Futebol, são uma das formas pelas quais o Estado, um agente tipicamente capitalista129, “[...] define, permite, influencia e acelera intervenções do capital nacional e internacional, por meio de organizações privadas” (RODRIGUES, 2013, p. 15) e sob a égide da palavra legado. Rodrigues (2013) defende que a palavra legado por si só não fornece um sentido concreto, uma vez que a sua obtenção depende do processo de produção e reprodução do espaço e da forma como se dará a sua apropriação. Entretanto, ao que tudo indica, de acordo com Raeder (2010), os megaeventos esportivos fornecem legitimidade às transformações urbanas que provocam ajustes espaciais demandadas pelos grupos hegemônicos do capital. Assim, podemos perceber que o espaço produzido por meio das ações humanas e do aparato técnico, durante um tempo histórico, é ponto fundamental para a competição entre países e cidades, via potencialidades que tem a oferecer. Uma vez escolhido, o espaço, enquanto produto, torna-se condição necessária para viabilizar os processos de produção, distribuição, troca e consumo do/no espaço (CARLOS, 2001, RODRIGUES, 2013). Uma vez que Belo Horizonte foi eleita cidade-sede, os poderes públicos municipal e estadual se reuniram para desenvolver um plano de ações denominado Planejamento Estratégico Integrado. Tinha como objetivo, além de cumprir as determinações da FIFA, propor uma gestão compartilhada das obras de infraestrutura urbana, buscando a ampliação dos efeitos da Copa do Mundo no crescimento econômico, no desenvolvimento social e ambiental e na consolidação do espírito cívico do estado mineiro. São projetos de grande impacto na cidade, divididos em seis eixos temáticos: infraestrutura esportiva, mobilidade, turismo e rede hoteleira, comunicação e marketing, utilidade pública (segurança, saúde, energia, telecomunicação, ação social e meio ambiente) e requisitos da FIFA. Um dos projetos pertencentes ao eixo infraestrutura esportiva

129 Outros agentes tipicamente capitalistas que influenciam na produção do espaço urbano são: incorporações financeiras, indústria da construção civil e proprietários de terra. Entretanto, todos são subordinados ao Estado, uma vez que é esse que cria as diretrizes da propriedade da terra e as normas de uso do solo.

132 tem o título de Modernização do Mineirão e na descrição prevê “[...] Modernização do Mineirão com vistas a adequações de infraestrutura para a Copa 2014, promovendo a sustentabilidade após o evento” (MINAS GERAIS, BELO HORIZONTE, 2012). A pesquisa de La Corte, publicada em 2007, identificava, analisava e determinava a necessidade de uma reforma de infraestrutura e de gestão no Mineirão para que ele se comparasse aos estádios europeus – fonte de receita, venda de publicidade, atração turística, viabilidade econômica – e atendesse as exigências da instituição reguladora do futebol internacionalmente (FIFA) para que pudesse receber competições internacionais de sua responsabilidade. Segundo os dados dessa pesquisa, o Mineirão tinha dificuldades de apresentar uma saúde financeira estável que permitisse um equilíbrio nas contas, mesmo com a variedade de exploração do espaço e do ganho publicitário como vemos no gráfico 1.

Gráfico 1 – Média da composição da receita do Mineirão entre 1997-2001(%)

publicidade - TV 31,28 bilheteria 14,1 Feira de Automóveis 11,37 aluguel de bares 10,21 estacionamento 9,14 cadeira cativa 7,42 shows e eventos 5,35 hospedagem 5,13 venda ambulante 3,26 restituições diversas 1,55 visitas ao estádio 0,71 Outras receitas 0,41 Barraqueiros 0,07 0 5 10 15 20 25 30 35

Fonte - LA CORTE, 2007, p. 298.

A pesquisa apontou também que, desde a sua inauguração, o Mineirão não havia passado por nenhuma obra de recuperação estrutural. Com isso, o estádio “[...] sofre pela falta de manutenção, necessitando de um tratamento específico e minucioso no sentido de tratar as patologias visualmente apresentadas” (LA CORTE, 2007, p. 408). Assim, como uma das conclusões do estudo, o autor foi taxativo ao afirmar que o Mineirão “[...] necessita de reformas

133 e modernização de sistemas, especialmente os elétricos, hidráulicos, sanitários e de iluminação, além da melhoria das condições de limpeza, consideradas muito ruins em nossas visitas” (LA CORTE, 2007, p. 212). Além disso, La Corte (2007) identificou problemas na gestão do Mineirão, no que se refere à baixa rentabilidade do estádio, ao alto custo operacional, ao quadro fixo de funcionários, à acomodação do poder público, à burocracia e ao desalinho entre sua gestão pública e sua exploração privada. Assim, propõe que, para que o estádio se torne financeiramente rentável, operando de maneira lucrativa, tanto econômica, quanto socialmente, seria necessária uma reestruturação do modelo atual de gestão, de modo que houvesse uma entidade gestora independente na exploração do espaço. O autor ressalva que o estádio não deveria ser oferecido à iniciativa privada, mas, sim, deveria haver uma gestão compartilhada entre o poder público e a esfera privada130. Como uma das conclusões do estudo, La Corte (2007) afirma que os estádios por ele estudados (Mineirão, Maracanã, Morumbi e Pacaembu) ao mesmo tempo em que representam exemplos da capacidade construtiva de sua época, são considerados verdadeiros ícones da engenharia. São, também

[...] exemplos claros de incapacidade de gerenciamento das necessidades nascidas, com seu uso, gerando certa obsolescência. Sua conservação e os ajustes técnicos- operacionais exigidos com o tempo e com as novas demandas são itens marginais de sua história (LA CORTE, 2007, p. 245).

Uma das justificativas para essa conclusão é que, tanto o Maracanã, quanto o Morumbi e o Mineirão, em analogia à classificação de Paramio, Buraimo e Campos (2008), fazem parte da terceira geração de estádios, na qual havia uma preocupação com as inovações arquitetônicas e tecnologias da época e com a geração de receita arrecadas, principalmente com a bilheteria em dias de jogos. Entretanto, esses não geravam um retorno econômico expressivo.

130 De fato, entre 1995 e 1997, o Mineirão sofreu um conjunto de reformas (gramado, vestiário, sistema de iluminação, instalação de fibra ótica, troca de placar eletrônico e sistema de som) e, logo em seguida, começou-se a ventilar a possibilidade de privatização do estádio. Entretanto, os jornalistas, em suas matérias, ponderavam que essa possibilidade não era viável, por não haver interesse direto do Estado e pelos clubes mineiros não terem condições de juntos administrarem um estádio (O TEMPO, p. 28, 18/03/1997).

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Além disso, as outras atividades desenvolvidas nos estádios estavam associadas a usos alternativos e de baixo custo. Dessa maneira, com base nesses dados, podemos deduzir que tal pesquisa serviu como um estudo primário de viabilidade de uso do Mineirão e uma justificativa para sua reforma, tendo a Copa do Mundo como premissa e o modelo de gestão privado como possibilidade. Além disso, no Brasil, a necessidade da mudança no modelo dos estádios também se deu pela transição e exploração comercial de potenciais produtos negligenciados pela indústria até então. Na sua virada econômica (CRUZ, 2010), o futebol tornou-se sobremaneira uma mercadoria vendável, capaz de atrair mercado consumidor, criar um estilo de vida esportista, fomentar o desejo pelo consumo, não apenas da modalidade em si, mas de qualquer produto que leva a marca e/ou a imagem de um clube ou um jogador. E os estádios são considerados vetores e marcas desse consumo, passando a ter identidade própria. Dentro desse novo contexto, concordamos com Chauí (2013) quando afirma que, no neoliberalismo, o capital financeiro tem como fetiche o dinheiro, não como moeda em si, mas como definidor de uma relação entre credores e devedores. O dinheiro, enquanto mercadoria abstrata, transforma a economia de forma fantasmagórica “[...] porque não operam com a materialidade produtiva e, sim, com signos, sinais e imagens do movimento vertiginoso das moedas” (CHAUÍ, 2013, p. 125). Em dezembro de 2010, quarenta e cinco anos após a sua inauguração, após o show da banda Skank, o Mineirão foi fechado para a reforma de adequação às normas da FIFA para sediar a Copa do Mundo. A escolha de uma banda belo-horizontina, que se destaca pela aproximação com o futebol, pelo pertencimento aos clubes mineiro e com o Mineirão131, para a realização de um show gratuito e gravação de um CD/DVD132, não se deu por acaso. De acordo com Campos e Amaral (2013), tinha-se como propósito

131 O Skank é uma banda formada por quatro integrantes, sendo que dois são cruzeirenses e dois atleticanos. Seus integrantes não escondem seu pertencimento clubístico e frequentemente são encontrados nas arquibancadas do Mineirão acompanhando a partida de suas equipes. Além disso, a banda gravou o clipe da música É uma partida de futebol, tendo o Mineirão como cenário em um dia de clássico entre Atlético e Cruzeiro. 132 Mineirão foi cenário de gravação de clipe do Skank, Revista VejaBH, disponível em: < http://vejabh.abril.com.br/edicoes/novo-mineirao-mineirao-foi-cenario-gravacao-clipe-skank- 726265.shtml> Acessado em: 14 jan. 2014.

135 encerrar um ciclo de história do estádio, uma vez que, após aquele momento, surgiria o Novo Mineirão. Tal atitude pode ser analisada como rito de instituição, isto é, “[...] num sentido mais amplo, trata-se de um rito de passagem cuja finalidade é promover a separação de algo ou de alguém de uma classe a outra – de solteiro a casado, de pagão a batizado, de estudante a profissional e assim por diante” (DAMO, 2012, p. 29). Damo (2012) explica que o rito só faz sentido para aqueles que compartilham a mesma crença, de modo que, tanto a encenação, quanto o que é dito tem um poder diferenciado, fazendo com que cada gesto e cada palavra tenham valor. No caso específico, foi o rito de passagem do velho Mineirão para o novo Mineirão. Não podemos afirmar que todos os que participaram da festa estavam celebrando ou lamentando o mesmo fato, porém podemos afirmar que o evento monumentalizou e sacralizou 45 anos de histórias, experiências e memórias do Mineirão, ao mesmo tempo em que marcou o início de uma nova era. Durante o período em que o Mineirão ficou fechado, houve muita especulação por parte da população sobre os seus usos, porém com pouca informação precisa. Esse fato corrobora a opinião de Rodrigues (2013, p. 16) quando afirma que “[...] o que chama a atenção é que as profundas alterações no espaço urbano não são informadas antes de sua concretização”. Talvez isso possa ser explicado pelo fato de nem os próprios gestores públicos envolvidos no processo da reforma terem clareza de um plano de ocupação do espaço. Isso pode ser verificado pelo estudo realizado por Lages et al. (2015) que teve por objetivo analisar as falas dos gestores públicos, municipal e estadual, com significativa participação na execução do Planejamento Estratégico Integrado sobre as possíveis alterações nas vivências de esporte e lazer em Belo Horizonte a partir da reforma do Mineirão. Um dos resultados apontados pelos autores é que nenhum dos gestores fazia parte das secretarias de educação, cultura, esporte ou políticas sociais e nem tinham experiências previas nesses setores. Lages et al. (2015) reconhecem que isso não os desqualifica enquanto gerentes desse projeto mais amplo, mas limita a atuação profissional e visão do processo em si, uma vez que atuam, principalmente, no âmbito da engenharia e economia.

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Em relação às vivências de esporte e lazer na cidade, os gestores apontaram a esplanada construída no estádio como um aglutinador de possibilidades, capaz de fazer o Mineirão voltar a ter um protagonismo na cidade. Tal fato pode ser visto na fala de um dos entrevistados e que ocupava o cargo de Secretário Extraordinário da Copa.

O Mineirão vai ser o novo ponto focal da cidade em termos de o chamado grande parque, que vai ter todas as áreas de passeio, vai ter as lojas, vai ter várias lojas no Mineirão, lojas importantes, Museu do Futebol, visitação, a parte externa do Mineirão vai estar aberta diariamente pra população usar. Então vai ser, vamos dizer, o novo chamado Eldorado de visita (LAGES et al., 2015, p. 83).

Nesse sentido, os autores salientam que os espaços públicos se transformam em espaços privados, e o lazer passa a ser vendido como mercadoria da indústria de entretenimento como podemos ver na expressão negritada. Por fim, Lages et al. (2015) concluem que os gestores compreendem que a Copa é um agente capaz de promover transformações sociais. O fato, porém, de eles não demonstrarem de forma objetiva e límpida como isso poderia ser alcançado levantou dúvidas sobre a existência de um planejamento consistente, responsável e passível de deixar legados sociais. Ademais, o estudo evidencia que a única clareza apresentada foi referente à alteração do paradigma do torcedor, tratado como cliente, e do Mineirão em um negócio passível de gerar ativos. O Mineirão ficou fechado de entre dezembro de 2010 a dezembro de 2012, quando foi oficialmente entregue à população133. Tal empreitada acarretou sua grande transformação em termos arquitetônicos e funcionais, uma vez que a FIFA normatiza os estádios para o seu uso. Percebemos que isso tem relação com o mercado internacional dos megaeventos esportivos e com a expertise internacional de conglomerados multinacionais especializados nessas

133 A palavra oficialmente encontra-se, em destaque porque, embora no dia 21 de dezembro tenha ocorrido o show de Entrega da Obra do Novo Mineirão e, nos dias 22 e 23 de dezembro, ele tenha permanecido parcialmente aberto para que o público pudesse conhecê-lo, sua entrega à população e abertura contínua da sua esplanada só se deu em 03 de fevereiro de 2014 com o jogo entre Cruzeiro e Atlético válido pela primeira rodada do Campeonato Mineiro do referido ano. Nesse intervalo, o estádio permaneceu fechado ao público para as obras de ajuste.

137 inovações. São modelos de infraestrutura urbana exportados para todos os centros que pleiteiam sediar tais eventos, resultando em um “[...] novo modelo de planejamento e gestão de cidades, calcado na lógica do mercado” (MASCARENHAS, 2008, p. 195). Como está inserido dentro do perímetro de tombamento delimitado pelo IPHAN para o Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Pampulha134, as obras de modernização do Mineirão mantiveram sua fachada, alterando toda a sua estrutura interna e externa.

Figura 16 – Reforma do Mineirão

Fonte - Museu Brasileiro do Futebol, 2012.

Conhecido como o Novo Mineirão, o projeto previu: uma esplanada com 80 mil m²135; estacionamento com capacidade para 2,5 mil veículos; área para imprensa equipada com mesas; computadores e telefone; cobertura especial com sistema autolimpante; iluminação inteligente; acesso rápido por catracas eletrônicas; geração de energia por painéis fotovoltaicos; 64 mil lugares e 80 camarotes; aérea de 7 mil m² destinadas à atividade comercial, restaurante

134 Para maiores informações conferir: LIMA, Helena B.; MELHEM, Mônica M.; POPE, Zulmira C. (Orgs). Bens móveis e imóveis inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: 1938-2009. 5. ed. rev. e atualizada. [Versão Preliminar] – Rio de Janeiro: IPHAN/ COPEDOC, 2009. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1356>. Acesso em: dia 10 jul. 2012. 135 Embaixo da esplanada foi instalado o Museu Brasileiro do Futebol e acessos aos camarotes e ao estacionamento. Além disso, está prevista a instalação de restaurantes e lojas.

138 panorâmico e uma via de integração com o Mineirinho136. Para viabilizar o projeto, optou-se por um modelo de negócio que privilegia a modernização da infraestrutura, buscando o mais alto padrão internacional de operação do estádio, com conforto e segurança e, principalmente, inovando a visão comercial, ao tratar o torcedor como cliente (MINAS GERAIS, s.d.). Percebemos, nesse sentido, uma ação sobre as formas e seu uso, uma vez que os objetos são dotados de conteúdo e finalidade. Santos (1977, p. 35) afirma que “[...] através da ação sobre as formas, tanto novas como renovadas, o planejamento urbano constitui, muitas vezes, meramente uma fachada científica para operações capitalistas”, uma vez que as modificações do espaço em prol de uma modernização tende a atrair investimentos, especulações e traz uma agenda de transformações do espaço, tecnificando-o e burocratizando-o sem, contudo, alterar a estrutura social vigente.

A nova forma introduz novos relacionamentos, uma dependência crescente que, daí por diante, impelirá a formação socioeconômica em direção a uma mudança estrutural, muitas vezes fundamental. Este momento histórico é um momento crucial em que ocorre uma mutação produzindo uma mudança qualitativa nas condições previamente prevalecentes (SANTOS, 1977, p. 41).

Verifica-se que a ideia de modernidade está presente nesse contexto. De acordo com Bell (1973, p. 214) “[...] ‘novo’ é marca distintiva da modernidade, embora essa reivindicação, em muitos casos, não se refira tanto a um aspecto especificamente novo da experiência humana e sim a uma alteração na escala do fenômeno”. Assim, ir ao estádio, torcer para um clube de futebol, passear em seus arredores faz parte da cultura belo-horizontina. Entretanto, o novo refere-se à conjuntura em que essa rotina será realizada, por meio de uma variedade de usos desse espaço, em um sincretismo de ações. Aliás, variedade e sincretismo são termos utilizados pela modernidade (BELL, 1973). Nesse contexto, a modernidade se constitui como um rompimento com o passado, na qual a tecnologia se apresenta como um dos principais fatores de mudança social.

136 Nove meses após a inauguração oficial, o restaurante panorâmico, a passarela de ligação com o Ginásio Jornalista Felipe Drummond (o Mineirinho) e a usina de geração solar ainda não disseram a que vieram, pois o espaço do restaurante ainda não foi locado para esse fim; a passarela, embora construída, nunca foi utilizada (SUPERESPORTES, 2013).

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As arenas multiuso tratam o torcedor como cliente: uma pessoa privada. Gorz (2005) afirma que o cidadão é diferente do cliente. O cidadão é um sujeito de direito, coletivo, enquanto o cliente é um sujeito individual, privado, em quem a publicidade transforma o seu desejo como único, a sua escolha como símbolo de distinção. “A indústria publicitária promete a procura de soluções individuais para problemas coletivos” (GORZ, 2005, p. 49). Campos e Amaral (2013) afirmam que, analogicamente à relação cidadão-cliente, podemos pensar a relação torcedor-cliente. Entendem que o torcedor é o sujeito que tem um pertencimento clubístico, escolhido pela natureza simbólica que determinado clube representa em seu contexto socioafetivo; tem a ida ao estádio como momento de lazer e espaço de fruição de uma sociabilidade única, acompanhando o time independentemente de sua classificação na tabela e do dia da semana. Enquanto isso, o cliente consome o produto futebol, as marcas (ou seriam jogadores?) que cada clube contrata, o conforto e a segurança, os camarotes VIP’s que prometem melhor visibilidade do campo e serviço e, em termos europeus, as ações que determinados clubes dispõem na Bolsa de Valores, visando o lucro. Nessa economia do futebol, o espetáculo futebolístico, o conforto, a comodidade, a infraestrutura, a tecnologia e a segurança são comercializados enquanto produto.

O torcedor passará a ser visto como cliente. Ele tem que querer ir, querer voltar e tem que contar para os amigos que gostou do local e do evento. Por isso, tudo no Mineirão é pensado para que o torcedor-cliente se torne uma família-cliente. O sucesso do negócio passa também pela fidelização do público (MINAS GERAIS, s.d.).

A relação entre capital-produto nas arenas multiuso faz com o que eixo central deixe de ser a partida de futebol em si. Há um novo valor simbólico agregado à marca Novo Mineirão, na qual uma infinita gama de publicidade produz uma imagem desse espaço e as formas de uso desse produto, chancelado por uma marca de escala planetária: a FIFA, e difundida pelos meios de comunicação.

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A marca já é, em si mesma, um capital na medida em que seu prestígio e sua celebridade conferem aos produtos que levam seu nome um valor simbólico comercial. Seu renome, de fato, não é devido somente às qualidades intrínsecas de seus produtos. Foi necessário construí-lo, ao preço de investimentos importantes em marketing e em campanhas publicitárias recorrentes. São estas que construíram a imagem da marca, dotando os produtos de uma identidade distinta e de qualidades alegadas, para as quais a firma reivindica monopólio (GORZ, 2005, p. 45).

Sobre isso, Carlos (2001, p. 16), afirma que “[...] cada vez mais o espaço, produzido como mercadoria, entra no circuito da troca, atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo a viabilizar a reprodução”, alterando a estrutura e o funcionamento do espaço. Por meio da Parceria Público-Privada (PPP), o Mineirão alterou a sua forma de administração. Se antes era administrado pelo setor público, via Administração de Estádios do Estado de Minas Gerais (ADEMG), órgão vinculado ao governo do estado de Minas Gerais. A partir de sua escolha como estádio-sede, houve uma transferência da concessão administrativa para a empresa Minas Arena137, que, pela licitação, se tornou a responsável pelas obras de reforma, renovação e adequação do complexo do Mineirão, além de sua operação e manutenção, pelo prazo de 27 anos, prorrogáveis por mais oito, totalizando 35 anos de exploração (MINAS GERAIS, 2010). O que vemos é que a oportunidade comercial do estádio irá expandir e, seguindo a tendência dos estádios considerados pós-modernos ou arenas, haverá a alteração no perfil dos torcedores (BALE, 1993; CRUZ, 2005; CRUZ, 2010, MASCARENHAS, 2008, PARAMIO, BURAIMO e CAMPOS, 2008). Mas como os torcedores reagirão? Que usos farão desse equipamento? Corroborando com as inquietações de Rodrigues (2013), será que o Mineirão, reformado e reformulado terá um uso que justifique suas transformações, isto é, “haverá um legado social positivo como se tem apregoado?” (RODRIGUES, 2013, p.20). Santos (1996, p. 59) afirma que o “[...] trato do território supõe o uso da informação, que está presente também nos objetos”. Assim, o Mineirão deixa de ser uma paisagem em si para se tornar um objeto repleto de símbolos e de

137 A empresa Minas Arena – Gestão de Instalações Esportivas S.A.─ é uma Sociedade de Propósito Específico, constituída pelas construtoras Construcap, Egesa e HAP Engenharia.

141 interesses econômicos, políticos e sociais, de ordem particular e coletiva, que operam de forma dialética, gerando tensões, disputas, negociações referentes ao valor de troca e ao valor de uso, entre os vários agentes envolvidos nesse processo, muitas vezes, transcendendo a sua própria finalidade, devido às apropriações coletivas e particulares desse objeto. No capítulo seguinte, tratarei desses aspectos dialogando com os agentes produtores desse espaço, isto é, os sujeitos pesquisados.

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4 USOS E APROPRIAÇÕES DO MINEIRÃO PÓS-REFORMA – (RE)CONHECENDO O ESPAÇO E OS SUJEITOS DA PESQUISA

Como visto nos capítulos anteriores, quando o Mineirão foi inaugurado, em 1965, serviu de referência arquitetônica, social, política, econômica e futebolística para a população mineira, transformando-se, tão logo, em um monumento. As experiências vivenciadas no Mineirão ocorriam antes, durante e depois das partidas, sendo capazes de produzir memórias individuais e coletivas e gerar histórias. Além do futebol, vimos que outros usos foram incorporados ao Mineirão fazendo com que ele se transformasse em um lugar onde diferentes grupos desenvolveram redes de sociabilidade e formas de apropriação. O seu fechamento para reforma rompeu um ciclo e marcou uma mudança, já que, no plano do discurso, havia intenções de transformações nesse espaço (CAMPOS e AMARAL, 2013; LAGES et al., 2015). Assim, indagações sobre a funcionalidade e o seu público frequentador vieram à tona. Tendo em vista o processo de constituição dos usos e de apropriações do Mineirão após a reforma, desde que foi reinaugurado, inicio a apresentação dos resultados da pesquisa de campo, coletados por meio da realização de formulários, caderno de campo, imagens e entrevistas semiestruturadas. Para uma melhor organização dos dados, primeiramente, apresento o novo estádio a partir das observações de campo e do diálogo com um dos arquitetos responsáveis pelo projeto executivo da reforma do Mineirão. Depois, apresento os dados referentes ao perfil dos usuários do Mineirão, tanto na situação Futebol, quanto na situação Esplanada. Sobre as entrevistas realizadas com os gestores e idealizadores da reforma do Mineirão, apresento um breve perfil dos entrevistados.

Entrevistado A – Cozinheira e microempreendedora. Trabalha no espaço do Mineirão há 24 anos. Começou como barraqueira no entorno do estádio,

143 depois passou a explorar três bares dentro do Mineirão antes da reforma. Após a reinauguração do estádio, está há, aproximadamente, dois anos, administrando seis bares.

Entrevistado B – Um dos arquitetos responsáveis pelo projeto executivo da reforma do Mineirão. Formado em arquitetura pela UFMG e mestre pela Architectural Association School of Architecture na Inglaterra. Atua com reforma e planejamento de instalações esportivas. Concebeu os projetos para a candidatura de Nova Iorque/EUA e Rio de Janeiro/Brasil às Olimpíadas de 2012 e 2016, respectivamente. Concebeu o Complexo Esportivo de Deodoro, no Rio de Janeiro para os Jogos Pan-Americanos, 2007.

Entrevistado C – Trabalha para o Consórcio Minas Arena, na Gerência de Segurança do Estádio há, aproximadamente, quatro anos. Reformado da Polícia Militar de Minas Gerais, atuava no controle de público e controle de massa. Assim, o Mineirão é uma rotina de trabalho desde 1981.

Entrevistado D – Trabalha para o Consórcio Minas Arena, na Gerência de Operações do Mineirão, desde novembro de 2011. É formado em Engenharia Civil pela UFMG e tem graduação lato sensu – MBA Gestão de Negócios e Projetos. Já trabalhou atuando no gerenciamento, planejamento, coordenação de equipes e execução de obras industriais, comerciais, residenciais de médio e grande portes, sendo essa a sua primeira experiência de gestão em equipamentos esportivos.

4.1 O estádio após a reforma – (re)conhecendo o espaço

Entre os dias 21 e 23 de dezembro de 2012, foi realizado o evento Entrega da Obra do Novo Mineirão. A programação constou de visita guiada ao estádio, show e queima de fogos de artifício no primeiro dia e, nos demais, apenas a visita guiada. No primeiro dia de trabalho de campo, ao chegar ao Mineirão, vejo que o estádio permanecia lá, a princípio, com a mesma arquitetura de antes da

144 reforma. Isso se deve ao fato de, segundo a fala do Entrevistado B, a equipe de trabalho ter decidido que o Mineirão, enquanto objeto de interesse histórico, não seria derrubado e que sua arquitetura seria preservada, alterando apenas a parte interna.

“Então o que fizemos foi partir do princípio de que o estádio ia ser transformado, ia ser reformado, ia ser mantido, ou seja, não ia ser demolido como Wembley138. Era um pré-requisito que ele ia ser mantido. A estratégia era manter o Mineirão quase com a mesma cara, uma máscara por fora, mas por dentro renovar totalmente para o padrão FIFA.” (Entrevistado B)

Ao analisarmos essa frase, vemos que ela vai à contramão dos empreendimentos sobre construção de estádios. La Corte (2007), partindo de seu estudo sobre a viabilidade dos estádios para sediarem eventos internacionais e comparando os estádios brasileiros no cenário internacional, avaliou que o Mineirão não estava em consonância com os ditames estrangeiros. Assim, o autor sugeriu que uma das formas de alcançar esse patamar seria

[...] a demolição do estádio e o aproveitamento da excelente localização e do isolamento do mesmo com estacionamento ao seu redor, onde poderiam ser criados bulevares de aproximação e polos comerciais, passando a ser um catalisador e transformador da região. Um estádio com todos os conceitos modernos seria edificado, sem pista de atletismo, tornando-se um marco arquitetônico espetacular para o cenário brasileiro, maximizando também o potencial turístico de Belo Horizonte (LA CORTE, 2007, p. 209).

Desde algum tempo, clubes da Espanha, Inglaterra, Portugal, entre outros países europeus, têm vendido os seus tradicionais estádios de futebol para construírem outros em locais afastados, usualmente em áreas distantes

138 O Estádio de Wembley foi construído em Londres, em 1923, com capacidade para 100 mil pessoas, sendo considerado o maior estádio de futebol do mundo. Ao longo de sua existência, tornou-se uma referência arquitetônica e ocupou um lugar simbólico no futebol em nível nacional e internacional, entre outros fatores, por ser a casa da seleção inglesa e a Meca do futebol. Em 2002, o estádio foi demolido e, no mesmo local, foi construído um novo Wembley, com capacidade próxima ao antigo, porém com outra arquitetura considerada mais moderna e tecnológica. Para mais informações consultar: Cruz (2005) e www.wembleystadium.com.

145 onde a infraestrutura urbana não está pronta ou em cidades vizinhas. Têm como justificativa a solução de problemas financeiros ou a adequação às novas normativas do futebol, porém, por trás desse processo, há um apelo ao fluxo do capital e à especulação imobiliária incentivada pelos gestores públicos. Assim, não é surpreendente que algumas equipes tenham possuído, ao longo da sua história, mais de um estádio de grande importância139 (BALE, 1993, PARAMIO, BURAIMO e CAMPOS, 2008). Continuando o reconhecimento do campo, olhando mais de perto, ainda na parte externa do estádio, deparo-me com a primeira alteração na forma: o Mineirão estava totalmente cercado.

Na verdade não é o Mineirão em si, pois antes ele era murado e tinha os 14 portões de entrada. Agora, o quarteirão está cercado e, se os portões não estiverem abertos, não tem como ter acesso ao estádio, já que, antes de chegar a ele, há uma grande esplanada. Antigamente era diferente, pois, entre o estádio e o passeio, havia o estacionamento, feito em curvas de nível, pelo qual, a qualquer hora do dia e da noite, as pessoas tinham acesso ao entorno do Mineirão. Agora não, só se tem acesso ao estádio e à esplanada se os portões Norte e Sul estiverem abertos; em caso contrário, só resta dar a volta no “quarteirão”, pelo passeio... (Caderno de campo, 21/12/2012, evento de inauguração)

Assim, para se acessar o Complexo Mineirão, temos apenas duas entradas: a Norte e a Sul. A Entrada Norte está localizada no cruzamento da Avenida Abrahão Caran com a Avenida C, e a Entrada Sul, no cruzamento da Avenida Carlos Luz e Avenida Coronel Oscar Pascoal. De certa forma, elas atendem à desembocadura das duas vias principais que dão acesso ao estádio: Antônio Carlos e Carlos Luz, respectivamente. Exceção ao Museu Brasileiro do Futebol que tem a entrada exclusivamente pela Avenida Coronel Oscar Pascoal. Essa cerca externa é composta por portões que podem ser abertos conforme a demanda. Do lado de dentro também havia pequenas grades,

139 No Brasil, esse fenômeno é recente e se viu, principalmente, durante o período de reforma e construção de estádios para a Copa. Entretanto, não ficou restrito a eles, já que estádios de clubes que não iam receber nenhuma partida desse megaevento também foram reformados. Em ambos os casos, alguns estádios permaneceram no mesmo logradouro, outros foram construídos na periferia urbana ou em municípios vizinhos e outros mudaram de endereço.

146 alugadas de uma empresa privada, que guiavam o fluxo e bloqueavam o caminho, como podemos ver na figura 17. Nesse Novo Mineirão há poucos (objetos) fixos no espaço, o que aumenta a flexibilização do uso e a dispersão da multidão.

Figura 17 – Cercamento e gradeamento do Mineirão após a reforma, vista da Entrada Sul

Fonte - Acervo pessoal da autora, 22/12/2012.

De acordo com o entrevistado B, como existe uma amplitude na topografia do terreno, as grades serviriam para delimitar o espaço, separar o fluxo entre pedestres e automóveis e dar segurança.

“Já da área externa o grande desafio era em relação à topografia, pois o terreno tem um desnível de 15 metros do norte para o sul. Então, é quase que um prédio de cinco andares. Quase todos os estádios são em estações planas. Então, o desafio era como separar o fluxo de pedestres sem perturbar a relação do estádio com a vizinhança e com a própria Lagoa da Pampulha. Então, a gente criou isso que a gente chama de topografia artificial. Então, a gente moldou esse programa de necessidades à topografia do terreno, a grade da rua. Então, ele tem diversos platôs que vão escalonando. Às vezes, ele some como prédio, ou seja, ele chega ao nível da rua, direto. A pessoa está andando e, quando ela percebeu, já entrou na esplanada sem ter que subir nenhuma escada ou rampa, é quase como se fosse uma extensão do espaço público.” (Entrevistado B)

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Nessa topografia artificial, adentrando aos portões, avisto a grande novidade externa do Novo Mineirão: a esplanada. É um lugar bem amplo, com 80 mil m2 e, aproximadamente, 1.400 metros de circunferência, que só temos a noção do seu tamanho quando estamos in loco, pois,

“[...] por maior que seja a quantidade de pessoas que estejam circulando por ela, não parece que está tão cheia assim.” (Caderno de campo, 19/05/2013, jogo)

Ela circunda todo o estádio, tendo como vista a Lagoa da Pampulha e a mata da UFMG. Ainda não há árvores, apenas arbustos plantados dentro de um jardim feito de cimento, a mais ou menos, 1,50 metros do chão. Nessa parte, há grandes blocos de cimento que servem como uma área de convivência, uma praça (figura 18). As lojas não estavam funcionando, pois as poucas que foram alugadas estavam em reforma. A esplanada é iluminada, conta com sistema de som, banheiros e bebedouros.

Figura 18 – Vista da Esplanada e das “pracinhas”, tendo a Lagoa da Pampulha ao fundo

Fonte – Foto tomada pela autora da tese em 22/12/2012.

De acordo com o entrevistado B, a esplanada foi projetada para ter uma dupla função: a dispersão da multidão e uma área de lazer para a população em dias sem jogos.

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“E ao mesmo tempo a gente tinha que transformar a esplanada não só em um espaço inóspito, porque a gente tinha que garantir fluxo de multidão de 60 mil pessoas e toda a área necessária para montagem das instalações temporárias de logísticas, aquele mundo de barraquinhas que entram ali dentro e tal, mas, ao mesmo tempo, a gente tinha que ter para o legado alguma coisa que atraísse a população para usar aquilo 24 horas por dia, todos os dias da semana. Então, a ideia de inserir programas de necessidades nesses desníveis, ou seja, lojas e ter também uma área de refúgio na beira. No perímetro fizemos umas pracinhas que a ideia era ter uma área de sombra onde se pudesse sentar ali e descansar ou você está andando com menino, passeia e leva carrinho de bebê, enfim. Então, é a ideia de ser uma praça, uma grande área semi-pública, porque tem que ter um nível de controle por questões de segurança, com um programa de necessidades incluindo estacionamento, museu do futebol, lado institucional e mais áreas comerciais.” (Entrevistado B)

Embora o entrevistado B tenha feito a alusão apenas a segurança em relação à rua dentro da esplanada, também é perceptível a preocupação com o controle, a segurança e a manutenção da ordem, visto que uma empresa de segurança privada faz o controle 24 horas do espaço e há câmeras de vídeo-vigilância situadas em alguns postes ao redor do estádio.

Figura 19 – Câmeras de vídeo vigilância na esplanada

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 22/12/2012.

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Ainda, segundo o Entrevistado B, a meta era fazer um projeto enxuto, com uma infraestrutura capaz de abrigar eventos internacionais e também deixar um legado para a cidade, isto é, a finalidade era não fazer do Mineirão um elefante branco nos dias em que não houvesse futebol. Nesse sentido, embora não soubesse exatamente que usos seriam feitos da esplanada, para além dos já projetados, e nem a forma de animação desse espaço, havia a intenção de criar um espaço público de lazer para a população de Belo Horizonte, suprindo uma carência da capital.

“A gente sabe da dificuldade de ter espaço público na cidade. A gente fez uma comparação do Mineirão em termos de escala com todos os outros espaços públicos da cidade: Parque Municipal, Praça do Papa, Praça da Estação, mostrando como o Mineirão era maior que tudo isso. Ele é quase do tamanho da área em volta da Cidade Administrativa. Quer dizer... Isso tudo com o Mineirinho na frente, com o CEU, com a UFMG, com o pessoal que mora no bairro, com o Parque Tecnológico, com a USIMINAS. Ou seja, você tem um potencial de gerar espaço para todo esse público. E não só um espaço vazio, mas um espaço que pode ser apropriado de diversas formas. Então, você pode ter shows ou teatro ao ar livre, pode ter um pouco de skate radical e gente andando de patins ou bicicleta, correndo. Você tem uma belíssima vista da Lagoa e você tem esse potencial de sinergia com o Mineirinho e com o CEU. Então, você pode fazer eventos no Mineirinho utilizando a infraestrutura do Mineirão, por exemplo, estacionamento e vice-versa. A gente teve que deixar um certo nível de indeterminação. A gente não falou ‘isso vai ser usado assim e só’, porque a gente sabia que, com o tempo, isso ia ser apropriado pelas mais diversas formas que não estariam no nosso controle. O que tentamos foi garantir que a gente atraísse a população para lá. Então, para isso, você precisa ter o mínimo de infra ali, tipo lanchonete, café, restaurante. A gente queria que sempre tivesse isso, banheiro, área sombreada, que fosse realmente uma praça ou parque suspenso com uma certa infraestrutura.” (Entrevistado B)

Nesse sentido, a fala acima considera a imprevisibilidade sobre os usos das formas e reconhece que, para que algo seja usado e também

150 apropriado pela população, é necessário oferecer infraestrutura, segurança e possibilidades de convivência. Além disso, a fala do arquiteto se mostrou mais ampla à apresentada pelos gestores públicos que participaram da execução do projeto de reforma do estádio, conforme apontado na pesquisa de Lages et al. (2015). Entretanto, como o caderno de encargos da FIFA foi o eixo norteador do projeto, no espaço das arquibancadas, a constatação de que o Mineirão realmente mudou internamente e que não ficou muito diferente do que qualquer outro estádio padrão FIFA, foi evidente.

Cadeiras brancas foram colocadas nas arquibancadas em substituição às vermelhas; as grades foram substituídas por três placas de vidro temperado por bloco de vidro; retiraram a geral; diminuíram o fosso; colocaram pequenas escadinhas entre o gramado e a arquibancada de fora a fora; fizeram camarotes; mudaram o banco de reservas; retiraram os túneis que desembocavam do lado de cada banco de reservas (agora é entrada única para os dois times e arbitragem, pelo centro do gramado); retiraram as grades de setorização (como é que as torcidas serão divididas? E os setores? As grades flexíveis é que irão marcar o espaço do campo?); pintaram e renomearam os setores de roxo (cadeira cativa), amarelo (torcida do Cruzeiro), vermelho (arquibancada central), laranja (torcida do Atlético); retiraram a Tribuna; construíram camarotes; aumentaram a cobertura do teto, só deixando aberto o espaço do campo; aumentaram a quantidade de câmeras de segurança; diminuíram o tamanho do campo (de 110x75 metros para 105x68 metros). (Caderno de campo – 21/12/2012, evento de inauguração)

Durante a entrevista, o entrevistado B explicou o motivo de algumas escolhas. Segundo ele,

“O padrão FIFA é um padrão. Então, você pega o caderno lá da FIFA que diz que você tem que ter isso daqui, você tem que ter isso daqui... quer dizer... é um padrão. E aí você tem que ter as áreas de hospitalidade, você tem que ter os camarotes, você tem que ter os vestiários, então, você tem requerimento para tudo. Do lado de dentro, a gente manteve o anel superior inteiro que estava com condições de visibilidade muito boa, na proporção de 1:2 tradicional das arquibancadas, e com o rebaixamento do campo e a eliminação da pista de

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atletismo, a gente conseguiu resolver o problema de visibilidade da geral e toda a parte de acessibilidade que não existia. Precisávamos ter esse respeito, vamos dizer, tentar valorizar a parte tectônica do Mineirão, tentar recuperar a estrutura de concreto que é muito bonita, brutalista e tal... E, ao mesmo tempo, inserir o programa de necessidades para um estádio completamente moderno, multifuncional para os padrões FIFA. A gente trabalhou com uma empresa de design fazendo a sinalização gráfica e acho que deu uma boa. Assim, a gente usou os acentos todos com tons de cinza para não ser da cor de nenhum time, não ser nada muito cheguei que fosse contrastar com o concreto evidente do Mineirão. Então, tem aquela coisa meio monocromática, todas as estruturas também são em tom de cinza que é muito próximo do concreto e a sinalização são as cores mais vivas, mais fortes. Então, são esses detalhes que eu acho que dá um contraste bacana, chique e elegante, meio austero, mas elegante. O Mineirão não tem aquele carnaval de cores de tom de cadeira, ou é tudo vermelho porque sei lá o que... Ele é um estádio que acho que ficou muito elegante internamente.” (Entrevistado B)

Ao longo da análise do caderno de campo e da fala do entrevistado B, podemos perceber, em um primeiro momento, o alinhamento com a escala global de construção e transformação dos estádios em uma arquitetura padronizada, normalizada e reprodutível (BALE, 1995; PARAMIO, BURAIMO e CAMPOS, 2008), já que o projeto arquitetônico enfatizou os elementos funcionais e a valorização da estética, a preocupação com conforto, segurança, hospitalidade e acesso a todos os tipos de usuários, além do desenvolvimento comercial, tanto em dias de jogo, quanto em dias sem jogo. Entretanto, o projeto adotado teve um caráter intervencionista, valorizando a identidade visual e as características arquitetônicas do estádio. Também fica em evidência que, junto a esse processo, houve a tentativa e há a expectativa de transformar a esplanada do Mineirão em um espaço apropriado pela população belo-horizontina em seu cotidiano, sendo mais um espaço de lazer na capital, disponível em dias sem jogos, levando em consideração, não apenas o consumo proporcionado pelos estabelecimentos comerciais existentes ou pelo futebol, mas também pelas práticas espontâneas desenvolvidas pela própria população.

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Depois do evento de inauguração, o Mineirão voltou a ser fechado para que fossem realizados os ajustes da obra. Foi reaberto à população apenas em 03 de fevereiro de 2013, com a partida inaugural entre as equipes do Cruzeiro Esporte Clube e Clube Atlético Mineiro, válida pela primeira rodada do campeonato mineiro do respectivo ano. Nessa partida, que marcaria os novos tempos do estádio, muitos torcedores tiveram suas expectativas frustradas em relação ao que acompanharam nas propagandas e na divulgação para o que estavam experimentando ali. O que encontraram foi um Mineirão ainda em reforma, pois visivelmente não houve tempo hábil para a sua limpeza completa. Muita areia espalhada, resíduos em pó, entulhos, pedaços de madeira, tijolos e pedras estavam visíveis, além da falta de água e comida nos bares do estádio. Reconhecendo as falhas e alguns dos interesses que estavam postos, o entrevistado C fez o seguinte comentário sobre essa inauguração.

“Administrar um estádio é muito difícil, pois há vários interesses em jogo, incluindo o Estado [ao se remeter à inauguração do estádio em fevereiro desse ano, em um jogo Cruzeiro x Atlético]. Esse jogo não entra em nossas estatísticas. Ele foi um desvio. Ninguém estava preparado. Além disso, grande parte da repercussão se deu pelo tratamento dado à imprensa. Antes eles chegavam à hora que eles queriam, comiam onde queriam. Não tinha limite por emissora. Vinham um, dois, três. Agora não, colocamos ordem. Tem dia para buscar credencial, tem lugar para comer. O controle aumentou e eles não gostaram.” (Entrevistado C)

Com a realização desse jogo, o Mineirão voltou a ser palco do futebol mineiro, porém ainda estava indisponível para outras formas de uso. A população só passou a ter acesso ao Complexo Mineirão, a partir do dia 12 de março de 2013, quando, por meio de uma nota técnica no site da Minas Arena, a nova área de lazer de Belo Horizonte foi anunciada, enfatizando suas qualidades, dimensões e infraestrutura, indicando os possíveis usos e as proibições, informando o horário de funcionamento e a gratuidade do espaço.

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O presidente da Minas Arena, Ricardo Barra, acompanhou o primeiro grupo da Visita Guiada ao novo Mineirão. A Esplanada do Mineirão está aberta para o público. Além disso, poderão ser feitas visitas ao Museu Brasileiro do Futebol e a áreas restritas do estádio. Na Esplanada, a população contará com uma área de 80 mil m2 ao redor do estádio, feito uma grande praça pública que permite a prática de esportes e exercícios físicos ao ar livre. O espaço ainda permite vários tipos de diversão como soltar papagaio, passear de bicicleta e muito mais, em um ambiente limpo, seguro e confortável, com vista pra lagoa e para o próprio estádio. Estarão abertos dois restaurantes e lojas para atender a população com a venda de lanches, água, sucos refrigerantes, pipocas e picolés. O funcionamento da Esplanada será diário, sujeito a alteração em período de eventos, de 7h da manhã às 9h da noite, com acesso gratuito. As únicas restrições são a entrada de carros, motos, som mecânico, pipa com cerol, cães sem coleira e aeromodelismo (MINAS ARENA, 2013).

A partir dessa data, passei a ter todas as condições para o reinício do trabalho de campo.

4.2 O perfil dos usuários do Mineirão

Com a finalidade de identificar o perfil dos participantes da pesquisa, buscamos apontar a idade, o estado civil, a escolaridade, a ocupação profissional, a renda, a cidade de moradia e a região de moradia (para os que vivem em Belo Horizonte). Como o objeto estudado se encontra em uma fase de constituição de usos, em que o antigo povoa memórias e desejos e o novo ainda não se consolidou, acreditamos que o conhecimento de tais dados subsidia a compreensão mais de perto das formas de uso e de apropriação desse equipamento, bem como nos auxilia a abarcar o contexto mais amplo ao qual esse processo está inserido. Assim, na situação Futebol foram aplicados 287 formulários e na Esplanada, 110, totalizando 397 formulários como vemos na tabela 1.

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Tabela 1 Quantidade de formulário aplicado por situação de pesquisa

Situação de pesquisa Número de formulários Futebol 287 Esplanada 110 Total 397 Fonte - Elaborada pela autora da tese.

Das 287 pessoas participantes da pesquisa em dias de jogos, 79,1% são do sexo masculino e 20,9% do sexo feminino. Na Esplanada, dos 110 participantes, 60% são do sexo masculino e 40% do sexo feminino (tabela 2).

Tabela 2 Sexo do participante por situação de pesquisa

Situação de pesquisa Sexo participante (%) Total (%) Homem Mulher Futebol 79,1 20,9 100 Esplanada 60 40 100 Fonte - Elaborada pela autora da tese.

Já, em relação à faixa etária, podemos verificar, com base na tabela 3 que, no que tange ao Futebol, 19,4% dos participantes tem entre 25 e 29 anos; na Esplanada encontrou-se o mesmo percentual de usuários entre 30 a 34 anos e entre 35 a 39 anos. Chama à atenção a variação da faixa etária majoritária em detrimento da situação pesquisada, demonstrando que cada uma apresenta um público específico. Ademais, os dados levam a crer que as faixas de idade mais avançadas não buscam frequentar o Mineirão, nem a isso se sentem estimuladas enquanto um equipamento de lazer, independentemente da situação de pesquisa.

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Tabela 3 Faixa etária dos usuários por situação de pesquisa

Faixa etária (anos) Situação de pesquisa Futebol (%) Esplanada (%) 18 e 19 6,0 11,3 20 a 24 11,7 6,6 25 a 29 19,4 14,2 30 a 34 17,3 16,0 35 a 39 9,2 16,0 40 a 44 8,1 15,1 45 a 49 8,1 6,6 50 a 54 6,4 4,7 55 a 59 6,0 2,8 60 a 64 5,7 0,9 65 a 69 1,1 1,9 70 a 74 0,4 1,9 75 a 79 0,4 0,9 85 a 89 0,4 0,9 Total 100 100 Fonte - Elaborada pela autora da tese.

Em relação ao estado civil dos participantes da pesquisa, encontramos, em ambas as situações, o predomínio das pessoas casadas (48,7% e 54,1%, respectivamente). A categoria solteiro apresentou 48,4% e 40,4%, respectivamente. No que tange à escolaridade concluída, houve o predomínio do ensino médio. Chama a atenção também o baixo percentual de pessoas com baixa escolaridade (ensino fundamental I), para ambas as situações (tabela 4).

Tabela 4 Escolaridade dos participantes por situação pesquisada

Escolaridade Situação de pesquisa Futebol (%) Esplanada (%) n=278 n=103 Pós-graduação 14,0 14,6 Graduação 32,7 24,3 Ensino Médio 47,1 49,5 Ensino Fundamental II (5º ao 9º 5,8 8,7 ano) Ensino Fundamental I (primário) 0,4 2,9 Total 100 100 Fonte - Elaborada pela autora da tese.

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Em ambas as situações, a taxa de ocupação profissional foi superior a 80%. Enquanto o número de pessoas que se intitularam estudantes, seja na educação básica ou ensino superior, em concomitância ou não ao trabalho, foide 23,2%, na situação Futebol, e 28,4%, na situação Esplanada. No que se refere à renda individual dos participantes, tendo como base o Salário Mínimo (S.M.) brasileiro140, para o ano de 2014, verificamos que, das pessoas que responderam essa questão, na situação Futebol, 24,4% dos participantes encontram-se na faixa salarial entre cinco a 10 salários mínimos. Na situação Esplanada, 23% recebe entre dois e três S.M. como vemos na tabela 5.

Tabela 5 Renda individual dos participantes (S.M.) por situação pesquisada

Renda individual (S.M.) Situação de pesquisa Futebol (%) Esplanada (%) n=254 n=87 sem rendimento 7,1 14,9 0 a ½ 0,8 1,1 ½ a 1 3,1 13,8 1 a 2 11,4 11,5 2 a 3 15,7 23,0 3 a 5 20,5 20,7 5 a 10 24,4 10,3 10 a 20 9,4 4,6 Mais de 20 7,5 14,9 Total 100 100 Fonte - Elaborada pela autora da tese.

Podemos perceber, também, que o perfil do público não difere apenas pela questão da idade, mas também financeira. Se observarmos os dois maiores percentuais encontrados para cada situação, veremos que a situação Futebol agrega um público de maior renda individual, em comparação com a situação Esplanada. Analisando conjuntamente as tabelas de 2 a 5, veremos que, respectivamente, sexo, idade, escolaridade e renda são fatores que impulsionam ou limitam as vivências de lazer. De acordo com Marcellino

140 O valor base do salário mínimo para a cidade de Belo Horizonte foi de R$ 724,00 no ano de 2014.

157

(2006), as questões econômicas, caracterizadas pela disponibilidade de tempo e oportunidades de acesso à educação para e pelo lazer, constitui-se em uma barreira interclasses sociais que faz com que o lazer seja apropriado de forma desigual. Segundo o autor supracitado, dentro de uma mesma classe social, também há aspectos que dificultam as vivências de lazer. As barreiras intraclasses sociais referem-se à 1) faixa etária – as crianças e os idosos são os mais prejudicados, uma vez que não são considerados parte do mercado produtivo; com isso há pouca possibilidade de espaços e atividades pouco específicas; 2) as relações de gênero – as mulheres ainda são mais desfavorecidas devido à dupla jornada de trabalho e, também, pela diferença do uso do tempo e dos equipamentos de lazer entre homens e mulheres; 3) a escolaridade que faz com que haja diferença de acesso aos bens culturais produzidos e aos que têm esse direito roubado (MARCELLINO, 2006). Assim, os dados apontam que, nas situações pesquisadas, as barreiras interclasses sociais e intraclasses sociais para a vivência do lazer estão presentes. Em relação à cidade de moradia dos participantes, os dados indicam que, na situação Futebol, 64,7% são provenientes de Belo Horizonte; na situação Esplanada esse valor aumenta para 74,5%. Dos que não moram em Belo Horizonte foram citadas várias cidades de origem. Primeiramente, as cidades foram agrupadas por estado e, especificamente, em Minas Gerais, foram subdividas em Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH)141 e interior do estado. Depois, elas foram agrupadas por região brasileira, sendo que o estado de Minas Gerais não foi computado como membro da região sudeste para não superestimar os valores. Assim, a tabela 6 mostra que a maioria dos usuários do Mineirão, nas situações pesquisadas, é proveniente da RMBH (58%, 42,9%,

141 A Região Metropolitana de Belo Horizonte foi instituída pela Lei Complementar n. 14, de 08 de junho de 1973, orginalmente com 14 municípios. Como consequência do processo de expansão horizontal – inclusão de novos municípios – e do processo de emancipação de alguns antigos distritos, atualmente, a RMBH é constituída por 34 municípios: Baldim, Belo Horizonte, Betim, Brumadinho, Caeté, Capim Branco, Confins, Contagem, Esmeraldas, Florestal, Ibirité, Igarapé, Itaguara, Itatiaiuçu, Jaboticatubas, Nova União, Juatuba, Lagoa Santa, Mário Campos, Mateus Leme, Matozinhos, Nova Lima, Pedro Leopoldo, Raposos, Ribeirão das Neves, Rio Acima, Rio Manso, Sabará, Santa Luzia, São Joaquim de Bicas, São José da Lapa, Sarzedo, Taquaraçu de Minas e Vespasiano.

158 respectivamente), seguido pelos usuários provenientes do interior do estado (37% e 25%, respectivamente).

Tabela 6 Região de moradia dos não procedentes de Belo Horizonte por situação pesquisada

Região de moradia Situação de pesquisa Futebol (%) Esplanada (%) n=100 n=28 RMBH 58,0 42,9 Interior MG 37,0 25,0 Centro-Oeste 1,0 3,6 Nordeste 1,0 7,1 Sudeste (ES, RJ, SP) 3,0 10,7 Sul 10,7 Total 100 100 Fonte - Elaborada pela autora da tese.

Nesse sentido, podemos dizer que, na situação Futebol, o estádio Mineirão atende a um público específico: torcedores e torcedoras da equipe do Cruzeiro, daí a sua ocupação ser majoritariamente de pessoas de Minas Gerais. No que tange à situação Esplanada, verificamos que, embora haja o predomínio de frequentadores mineiros, há uma circulação, ainda que tímida, de pessoas de outras regiões brasileiras. No que diz respeito ao local de moradia, para os residentes em Belo Horizonte, vários bairros foram apontados. Para a análise, agrupâmo-los por Regional, já que, desde 1983, como forma de descentralização administrativa, o município de Belo Horizonte está divido em nove administrações regionais (Barreiro, Centro-Sul, Leste, Nordeste, Noroeste, Norte, Oeste, Pampulha e Venda Nova), como visto na figura 20. Cada uma das regionais apresenta características próprias que serão brevemente mostradas no Apêndice B.

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Figura 20 – Distribuição de Belo Horizonte por regionais

Fonte – http://gestaocompartilhada.pbh.gov.br/estrutura-territorial/regioes-administrativas, 2015. Nota - Escala aproximada: 1:2,5km.

Na sequência, o gráfico 2 exibe os valores da distribuição de moradia dos usuários na situação Futebol e o gráfico 3 exibe os valores da distribuição de moradia na situação Esplanada. Verificamos que, na situação Futebol, grande parte dos participantes são provenientes da Região Centro- Sul, porém na situação Esplanada essa região é a menos presente. Na situação Esplanada, os dados indicam que a maioria é proveniente da região da Pampulha.

`

160

Gráfico 2 – Regional de moradia na situação Futebol (n=185)

Fonte - Elaborado pela autora da tese.

Gráfico 3 – Regional de moradia na situação Esplanada (n=81)

Fonte - Elaborado pela autora da tese.

O gráfico 4 foi feito no intuito de comparar as situações pesquisadas, com a finalidade de facilitar a visualização.

161

Gráfico 4 – Regional de moradia por situação de pesquisa

Fonte - Elaborado pela autora da tese.

Em linhas gerais, podemos dizer, embasados em Mendonça, Andrade e Diniz (2015), que a organização espacial e territorial de Belo Horizonte (e da RMBH) é formada pela segmentação social, apresentando as seguintes características:

[...] concentração de operários a oeste, segmentos de alta renda (empresários, dirigentes, profissionais de nível superior) concentrados na área central da capital e em sua extensão sul e formação de áreas precárias na porção norte do território metropolitano, onde os trabalhadores de menor qualificação e renda se aglomeraram nos chamados loteamentos populares (MENDONÇA, ANDRADE e DINIZ, 2015, p. 16).

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Assim, o desenho apresentado pelo gráfico 2 demonstra que, na situação Futebol, embora haja uma distribuição mais homogênea dos torcedores pelas regiões administrativas da cidade, verificamos que a maioria é pertencente a uma região composta por um segmento de renda média-alta e alta. Já o desenho apresentado pelo gráfico 3 demonstra que, na situação Esplanada, essa distribuição espacial e territorial dos usuários é mais heterogênea, tendo o predomínio de pessoas residentes próximas ao Complexo Mineirão, formadas por uma classe trabalhadora. A partir desses dados, podemos deduzir que o pertencimento clubístico, isto é, o vínculo existente entre os torcedores e o clube, é o diferencial para que torcedores e torcedoras das nove regiões administrativas de Belo Horizonte acessem o estádio, de uma maneira mais equilibrada, embora reconheçamos uma discrepância entre o maior e o menor valor encontrado. Analisando esses dados sob a luz do referencial teórico adotado neste trabalho, podemos afirmar que a retirada da geral do Mineirão fez com que houvesse a diminuição da presença no estádio das camadas mais desfavorecidas economicamente. Entretanto, no espaço da arquibancada, embora com o predomínio da região Centro-Sul, houve pouca mudança na distribuição dos torcedores por regional, tendo como referência os dados de Campos (2010), apresentados na tabela 7.

Tabela 7 Distribuição de moradia das mulheres torcedoras pelas regionais de Belo Horizonte Regional Presença de torcedoras no Mineirão (%) Barreiro 3,2 Centro-Sul 12,9 Leste 6,8 Nordeste 8,8 Noroeste 13,1 Norte 2,3 Oeste 8,1 Pampulha 6,5 Venda Nova 5,2 N.A. 33,2 Total 100 Fonte - CAMPOS, 2010, p. 53, adaptada pela autora da tese.

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Embora reconhecendo a especificidade do trabalho de Campos (2010) e sabendo que certa cautela deve ser tomada, comparando os dados atuais com os de 2010, verificamos que o público pertencente ao setor mais abastado da cidade não foi incomodado por essa mudança. Aliás, proporcionalmente, outras regionais apresentaram um maior crescimento de seus moradores, como, por exemplo, a Pampulha, o Barreiro e a Oeste. De acordo com Mendonça, Andrade e Diniz (2015), o setor imobiliário de Belo Horizonte, impulsionado pelos investimentos municipais em estrutura viária, saneamento básico de bairros outrora periféricos, alteração na legislação urbanística e proliferação de construtoras para média-baixa renda, tem mudado o panorama das classes médias dentro do território belo- horizontino e na RMBH, em um fenômeno que os autores denominaram espraiamento das classes médias e de uma parcela dos grupos superiores pelo território. Assim, em algumas áreas, convivem parcelamentos precários de baixa renda com edificações do tipo médio-superior-operário, possibilitando que ao mesmo tempo haja a concentração de grandes empregadores, profissionais de nível superior, trabalhadores de ocupação média e industrial. Além disso, as políticas governamentais fizeram com que, na última década, houvesse a melhoria do poder de compra do salário mínimo, acompanhado de certa redução das desigualdades de renda, do aumento da ocupação profissional, da escolarização e daqualificação da mão de obra na capital mineira (MENDONÇA, ANDRADE e DINIZ, 2015). Somado a isso, os clubes, por meio de seus pacotes de socio- torcedor, têm buscado intensificar e estabelecer uma relação de fidelidade com seus torcedores de modo a aumentar a captação de recursos financeiros. Especificamente, o pacote de sociotorcedor do Cruzeiro fornece aos torcedores algumas vantagens, entre elas, o direito de aquisição do ingresso com descontos em várias modalidades disponíveis. Embora careça de mais estudos, esse fenômeno vem mudando a relação do torcedor com o clube. Ademais, os ingressos passam a ser comercializados com precificação distinta. Com base nesses argumentos, tomando o espaço da arquibancada como eixo de análise e os dados apresentados até agora, é possível deduzir que grande parte do público presente no Mineirão, após a reforma, é composto pela classe média belo-horizontina distribuída pelas nove regionais.

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Chauí (2013) aponta que uma das formas de analisar a divisão social das classes é tomando o critério da forma de propriedade. Nesse sentido, a autora, baseada nas obras de Karl Marx, argumenta que, no modo de produção capitalista, existe a classe dominante e proprietária privada dos meios sociais de produção e a classe trabalhadora (considerada força produtiva, cuja força de trabalho é comprada na forma de salário). Entre essas duas classes, havia a burguesia e uma pequena burguesia. De acordo com Chauí (2013), Karl Marx falava em pequena burguesia para indicar uma classe social que não se situava nos dois polos da divisão social constituinte do modo de produção capitalista.

A escolha dessa designação decorria de dois motivos principais: em primeiro lugar, para afastar-se da noção inglesa de middle class, que indicava exatamente a burguesia, situada entre a nobreza e a massa trabalhadora; em segundo, para indicar, por um lado, sua proximidade social e ideológica com a burguesia, e não com os trabalhadores, e, por outro, indicar que, embora não fosse proprietária privada dos meios sociais de produção, poderia ser proprietária privada de bens móveis e imóveis. Numa palavra, encontrava-se fora do núcleo central do capitalismo: não era detentora do capital e dos meios sociais de produção e não era a força de trabalho que produz capital; situava-se nas chamadas profissões liberais, na burocracia estatal (ou nos serviços públicos) e empresarial (ou na administração e gerência), na pequena propriedade fundiária e no pequeno comércio (CHAUI, 2013, p.129).

Contudo, tomando como base critérios como renda, escolaridade e profissão e consumo, a sociologia estadunidense, segundo a autora, introduz a noção de classe média e cria a pirâmide de classes sociais para dar a ideia de mobilidade social. Tomando como base o estudo de Almeida (2015), cujo objetivo é refletir sobre a noção de “classe média” no meio publicitário e de marketing, podemos dizer que, para a indústria cultural, a definição de classe média tem mais proximidade com a sociologia estadunidense do que com os conceitos marxistas, já que, para essa indústria, o critério é definido pela posse de bens de consumo e pela capacidade de consumo. Nesse sentido, estar apto ao consumo tem relação com o poder aquisitivo, mas também em ter “[...]

165 condições culturais e de estilo de vida que predisponham ao consumo”. (ALMEIDA, 2015, p. 29). Nesse sentido, usando como critério básico a propriedade de itens de conforto doméstico,

[...] a classe média estaria situada, assim, entre a metade inferior da faixa A e a metade superior da faixa C. Estaria, teoricamente, entre os 5% mais ricos e os 60% mais pobres das populações urbanas nos mercados de consumo. Trata-se de um segmento pequeno em comparação com o total da população brasileira, embora estrategicamente importante para o desenvolvimento do mercado interno de consumo (ALMEIDA, 2006, apud ALMEIDA, 2015, p.32).

De acordo com essa classificação, as políticas econômicas e sociais dos últimos anos fizeram aumentar o número de domicílios pertencentes à classe C (CHAUI, 2013, ALMEIDA, 2015), ampliando o contingente de pessoas pertencentes à classe média para a indústria cultural (ALMEIDA, 2015). Essas pessoas, cuja aptidão para o consumo é sistematicamente treinada, consomem, não apenas produtos, mas desejos e comportamentos. A partir do momento em que foi inaugurado, o Mineirão passou a ser uma novidade e, enquanto tal, despertou o interesse das pessoas. Entretanto, para atender a todas as exigências apresentadas, houve a redução da sua capacidade. Nesse ínterim, o estádio passa a ser vendido como raridade. Esse ávido mercado consumidor passa a ser o público pleiteado para o estádio, como veremos no capítulo seguinte. Voltando ao gráfico 3, verificamos que, na situação Esplanada, há outro padrão de distribuição dos usuários por regional. A região Centro-Sul passa a ser a que menos utiliza o Mineirão quando não há jogos e nem eventos, e a região da Pampulha é a que mais utiliza. Assim, podemos dizer que seu uso atrai um público mais local. Além disso, percebemos um aumento no fluxo de pessoas vindas das regiões Norte e Venda Nova. Tal dado pode ser interpretado levando-se em consideração a distribuição de equipamentos culturais e de lazer em Belo Horizonte. De acordo com o estudo de Silveira e Silva (2010) os quais buscaram analisar o planejamento dos espaços de lazer em Belo Horizonte em relação a sua distribuição espacial, verificamos que a região Centro-Sul é a principal

166 referência simbólica e cultural da cidade, concentrando os principais equipamentos culturais e de lazer. Esse fato ajuda a justificar a baixíssima frequência dos moradores dessa região ao Mineirão em dias em que não há jogos (como apontaram a tabela 6 e o gráfico 2), já que a fruição do lazer se dá em outros espaços, sendo o futebol a exceção. Durante a aplicação do formulário na situação Futebol, a fala de uma torcedora é relevante nesse aspecto.

“Para a atividade física, é muito distante para mim [que moro na Serra]. Para isso, há outras regiões na cidade, mais próximas para a caminhada. De fato, é preciso visitar a Pampulha, faz mais ou menos três anos que não venho aqui, exceto para jogo. Na região Centro-Sul, há muitas possibilidades” (#91, mulher, 60 anos, Futebol).

Além disso, o estudo de Silveira e Silva (2010) apontou a má distribuição dos espaços públicos, com a sua escassez fora da área central e a sua inexistência nas vilas e favelas, predominantemente na região Norte. Ademais, foi percebida a ausência de projetos de previsão de espaços públicos no planejamento de conjuntos habitacionais e de bairros populares. Como se não bastasse, as autoras também verificaram que, dentro das próprias regionais, há a desigualdade na distribuição dos equipamentos de lazer. A má distribuição e conservação dos equipamentos culturais e de lazer é uma realidade que atinge várias cidades brasileiras, como apontam os estudos de Melo e Peres, 2005 e de Marcellino e colaboradores, 2007b. Tal fato leva à apropriação desigual do território, contribuindo para a geração de centralidades e periferias, promovendo a hierarquização dos sujeitos e dos espaços. Nesse sentido, a esplanada se tornou uma opção para a fruição do lazer daqueles que vivem nas regionais próximas ao estádio, isto é, Venda Nova, Norte e Noroeste, como aponta o gráfico 4. Após o conhecimento desses dados, verificamos que o perfil dos usuários do Complexo Mineirão é muito amplo e está relacionado à situação pesquisada. Após essa apresentação, partimos para o conhecimento das formas de uso e apropriação do espaço.

167

4.3 Descrição das formas de uso e apropriações do espaço

Depois de apresentar a caracterização do grupo de torcedores pesquisado, seguiremos fazendo a descrição e a análise de como esses sujeitos usam o Mineirão após a reforma e dele se apropriam. Antes, porém, é interessante perceber como o grupo pesquisado utilizava o Mineirão antes da reforma do estádio, isto é, o que eles costumavam fazer no estádio. Encontramos os seguintes resultados demonstrados na tabela 8.

Tabela 8 Frequência e formas de uso do Mineirão por situação de pesquisa antes da reforma do estádio

Outros usos do Mineirão Frequência Situação de pesquisa Futebol(%) Esplanada(%) n=283 n=106 Assistir a partidas de futebol Sempre 48,3 18,7 frequentemente 22,7 15,0 Raramente 24,1 40,2 Nunca 4,9 26,2 Feira de carros Sempre 7,5 8,5 frequentemente 6,8 5,7 Raramente 32,0 30,2 Nunca 53,7 55,7 Trazer pessoas para conhecerem o Sempre 9,3 8,6 estádio frequentemente 13,9 5,7 Raramente 22,5 19,0 Nunca 54,3 66,7 Praticar atividade física Sempre 1,1 4,7 frequentemente 1,1 1,9 Raramente 2,5 1,9 Nunca 95,4 91,6 Shows 1x 8,8 1,9 2x 10,6 15,0 3x 8,8 4,7 4x ou mais 13,4 7,5 Nunca 58,3 71,0 Evento religioso 1x 4,2 0,9 2x 2,8 4,7 3x 2,1 2,8 4x ou mais 0,7 0,9 Nunca 90,2 91,5 Alojamento 1x 0,4 - 2x 0,7 - 4x ou mais - 0,9 Nunca 98,9 99,1

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Tabela 8 Frequência e formas de uso do Mineirão por situação de pesquisa antes da reforma do estádio (continuação)

Outros usos do Mineirão Frequência Situação de pesquisa Futebol(%) Esplanada(%) n=283 n=106 Barraqueiros Sempre 51,7 31,5 frequentemente 10,4 5,6 Raramente 14,9 9,3 Nunca 23,0 53,7 Fonte - Elaborada pela autora da tese.

Podemos perceber que grande parte dos participantes da pesquisa só tinha o costume de frequentar o Mineirão em dias de jogos, independentemente da situação de pesquisa. Um fato que chama a atenção é a frequência aos barraqueiros do Mineirão em dia de jogo, uma vez que mais da metade dos participantes disseram fazer uso desse serviço. De maneira esporádica, as atividades exibidas no quadro 1 foram lembradas por algum dos participantes.

Quadro 2 – Outras possibilidades de usos do Mineirão andar de walkmachine andar de bicicleta descer de papelão na grama empinar papagaio Festa Fiat museu prova de concurso ver/participar dos rachas vir brincar quando criança soltar papagaio trazer filho para andar de bicicleta, velotrol aos domingos Fonte - Elaborada pela autora da tese.

Entretanto, se olharmos as possibilidades de uso do estádio pós- reforma, veremos outra distribuição dos valores (tabela 9).

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Tabela 9 Frequência e formas de uso do Mineirão por situação de pesquisa

Outros usos do Mineirão Frequência Situação de pesquisa Futebol(%) Esplanada(%) n=287 n=109 Assistir a partidas de futebol Sempre 51,2 2,8 frequentemente 24,4 2,8 Raramente 14,6 26,9 Primeira vez 9,8 - Nunca - 67,6 Trazer pessoas para conhecerem o Sempre 6,6 9,2 estádio frequentemente 10,8 9,2 Raramente 36,6 22,0 Primeira vez 0,3 8,3 Nunca 45,6 51,4 Praticar atividade física na Sempre 0,3 31,2 Esplanada frequentemente 1,4 14,7

Raramente 3,5 11,9 Primeira vez - 5,5 Nunca 94,8 36,7 Comprar nos bares e lanchonetes Sempre 37,4 10,2 do Mineirão frequentemente 14,9 12,0 Raramente 24,6 16,7 Primeira vez 2,1 0,9 Nunca 21,0 60,2 Trazer filho para passear Sempre 3,9 7,4 frequentemente 4,3 13,9 Raramente 10,4 2,8 Primeira vez 1,1 11,1 Nunca 80,4 64,8 Participar de eventos realizados no 1x 11,2 13,9 Mineirão 2x 5,9 5,6 3x 0,7 - 4x ou mais 0,3 1,9 Primeira vez - - Nunca 81,8 78,7 Visitar o Museu Brasileiro do Futebol 1x 7,3 6,4 2x 2,1 - 3x 0,7 - 4x ou mais - - Primeira vez - - Nunca 89,9 93,6 Fazer visita guiada ao interior do 1x 6,6 6,4 estádio 2x 1,4 0,9 3x 0,7 - 4x ou mais 1,4 - Primeira vez - - Nunca 89,9 92,7

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Tabela 9 Frequência e formas de uso do Mineirão por situação de pesquisa Outros usos do Mineirão Frequência Situação de pesquisa Futebol(%) Esplanada(%) n=287 n=109 Comprar na loja do Cruzeiro 1x 8,7 1,8 2x 8,7 - 3x 5,6 - 4x ou mais 4,2 - Primeira vez - - Nunca 72,8 98,2 Fonte - Elaborada pela autora da tese.

Analisando apenas a tabela 9, verificamos que, de certa maneira, há uma especificidade de público para cada situação pesquisada. Tal fato pode ser observado pela repetição da resposta nunca nos usos que não dizem respeito à situação de pesquisa. Assim, grosso modo, os dados apontam que a multifuncionalidade pleiteada para o Complexo Mineirão traz pouca circulação de público entre as possibilidades de usos desenvolvidas no equipamento, sendo as vivências específicas da atividade em si: futebol, esplanada, evento e museu. Dito de outra maneira, na situação Futebol, os usos diretamente ligados ao jogo – assistir a partidas de futebol e comprar nos bares e lanchonetes do Mineirão – foram os que tiveram um maior percentual. É surpreende a baixa frequência de torcedores que conhecem o Museu: fizeram uma visita guiada ao estádio e/ou compraram na loja do Cruzeiro, já que esses também poderiam ser considerados usos de grande interesse futebolístico. Os dados na situação Esplanada apresentam uma distribuição diferente, já que a resposta nunca foi majoritária em todas as formas de uso listadas. Levantamos a hipótese de que tal fato se deu devido ao fato de a esplanada não ter nenhum equipamento específico. Com isso, ela não apresenta nenhum uso específico. Dessa forma, parece haver maior circulação de pessoas. Assim, em sua área, convivem torcedores que também vão praticar uma atividade física ou levar o/a filho/a para passear; turistas/excursionistas que, antes/depois da visita interna ao estádio e/ou museu, também vistam o Mineirão externamente; pessoas que optam por fazer suas refeições nos estabelecimentos existentes e usuários que vão especificamente à esplanada realizar atividades físico-esportivas.

171

Nesse contexto, observando conjuntamente as tabelas 8 e 9, vemos que a esplanada do Mineirão inaugurou uma nova forma de uso do espaço e de se relacionar com o Mineirão. A sua arquitetura inviabilizou a permanência das antigas práticas realizadas no estacionamento do estádio. Assim, podemos afirmar que tal mudança trouxe um novo conceito para o espaço, confirmando a hipótese de que houve, além da reforma, a reformulação do Mineirão, o que tende a justificar a expressão novo Mineirão. Dessa forma, a esplanada vem se constituindo em um equipamento de lazer para além do futebol para uma parcela da população que o frequenta acompanhada de amigos, familiares e também de animais de estimação. Essa demanda corresponde à expectativa apontada pelo entrevistado B que gostaria que a esplanada, dentro do Complexo Mineirão, fosse um equipamento apropriado pela população e que diminuísse uma carência da cidade. As formas de uso e apropriação desse espaço serão a temática do capítulo seguinte.

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5 PARA ALÉM DO FUTEBOL – USOS E APROPRIAÇÃO DO MINEIRÃO NA SITUAÇÃO ESPLANADA

Como dito anteriormente, a esplanada se constitui como a grande novidade do Mineirão após a reforma. Se, por um lado, a sua arquitetura eliminou antigos usos do estádio, por outro, fez surgir um novo espaço de lazer em Belo Horizonte. Com isso, neste capítulo, abordo as formas de uso e de apropriação da esplanada pelos sujeitos pesquisados.

5.1 O funcionamento da esplanada

A esplanada foi aberta ao público somente em março, pois, antes, estava recebendo os ajustes pós-obra de inauguração. Em um primeiro momento, para conhecer a dinâmica do espaço, fui à esplanada em todos os dias da semana, divididos em três horários diferentes: manhã, tarde e noite. Assim, pude perceber que a esplanada apresenta um ritmo próprio de acordo com o dia e com o horário, sendo que segunda feira é o dia mais vazio e, no final de semana, o mais cheio. Depois de um tempo, concentrei a ida apenas aos finais de semana. A esplanada funciona todos os dias da semana das 7 às 21 horas, exceto em dias de jogos. O espaço é gratuito e, como dito antes, está separado da rua por meio de grades. Tem duas entradas: Norte e Sul. Próximo a cada uma delas, há banheiros e bebedouros. À noite, o espaço é iluminado.

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Figura 21 – Iluminação noturna da esplanada

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 21/12/2014.

Iniciava o meu procedimento dando uma volta completa circundando o estádio para sentir o movimento, observar as atividades realizadas, quem as realizava, as formas como eram realizadas e onde se realizavam. Nas segundas-feiras, o movimento de usuários era muito pequeno. Assim, era comum dar duas, três voltas no entorno do estádio e encontrar apenas os trabalhadores responsáveis pela manutenção do Complexo Mineirão ou, quando muito, uma dúzia de pessoas ao longo da manhã.

Cheguei às 9 horas no Mineirão. É uma manhã ensolarada de uma segunda-feira pós-jogo. Olhando para o lado externo da grade vi funcionários do serviço de limpeza urbana recolhendo o lixo produzido no dia anterior. A princípio não localizei nenhum usuário. Havia o pessoal da manutenção do estádio, bem como da esplanada. Havia também os seguranças da vigília e alguns funcionários plantando árvores nos canteiros. Do lado de fora do Mineirão, a vida segue. Ônibus e carros trafegam pela Avenida Abrahão Caran, algumas buzinas... O comércio de restaurantes começa a preparar o seu dia, pedreiros trabalham no passeio da UFMG, pessoas se deslocam e na esplanada parece que a vida está parada ou em um andar lento. Parece que o Mineirão está de ressaca, precisando descansar. Parece o dia seguinte de uma festa em casa. Arruma-se para a festa, tem-se a festa e, no dia seguinte, faz-se a limpeza e tem- se o descanso (Caderno de campo, 12/08/2013, Esplanada).

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Independentemente do dia da semana, a parte da manhã costuma ter pouco movimento. Se a segunda-feira costuma ter um clima de cansaço pós-jogo, o mesmo clima não permanece nas manhãs seguintes aos jogos realizados durante a semana (manhãs de quinta-feira ou sexta-feira, por exemplo). Geralmente, os usuários do Mineirão pelas manhãs são aposentados/as e vizinhos/as do estádio que aproveitam a proximidade para fazerem caminhada. Preferem ir durante a semana aos finais de semana, já que, nesses dias, consideram o espaço muito cheio. De um modo geral, independentemente do dia da semana, proporcionalmente, o período da tarde (das 12:00 horas até o sol se pôr) é o mais vazio de todos. Grande parte da explicação se dá pela própria esplanada, já que, como é feita de cimento, acumula calor e reflete a luz do sol. Nos depoimentos abaixo, abrangendo o caderno de campo, os participantes da pesquisa e os gestores do estádio abordam esse tema.

O dia estava quente, muito quente. Só havia sombra quando uma nuvem pousava no céu. Fiquei na Esplanada das 13:30 às 16 horas e, antes de ir embora, tive uma sensação de insolação. Sentia a minha pele queimando e um desejo muito grande de tomar algo gelado (Caderno de campo, 09/11/2013. Esplanada)

“Eu não aguento andar ali, quando eu tenho que levar alguém para visitar o Mineirão, você tem que falar ‘se prepara que o negócio é...’ como dizia Nelson Rodrigues, ‘é um sol de rachar catedrais’.” (Entrevistado B)

“Venho no final da tarde, porque antes o sol castiga.” (#13, homem, 37 anos, Esplanada)

“Local agradável, mas bate muito sol, no verão é intolerável.” (#50, mulher, 66 anos, Esplanada)

“Faltam as árvores. Hoje tem muito concreto. Antes, o concreto saía das árvores, era majestoso. Agora é tudo uma paisagem só. À noite, se não fosse pela iluminação, não se veria o estádio.” (#111, mulher, 46 anos, Esplanada)

“Faltam árvores. Antes era mais confortável. Hoje, não consigo ficar até às 13 horas.” (#360, homem, 31 anos, Museu)

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“Outro problema da esplanada é que ela é muito... mas aí é um problema de arquitetura mesmo, ela é muito ampla e é cimento, é muito carregada. Eu acho o cimento muito carregado, e aquelas porcarias daquelas árvores não crescem. Não cresceram ainda. Isso gera outro problema. Você quer lugar mais aprazível que essa Alameda das Palmeiras com aqueles flamboyants redondos e tal? Aquilo é gostoso de ficar debaixo, mas aqui não... Aqui com esse calorão e com o sol batendo, duplica o calor. Eu sei, porque eu ando nela o dia inteiro em dia de jogo, sei o que é.” (Entrevistado C)

O incômodo gerado pelo calor, pela luminosidade e pela falta de sombra é um consenso entre os usuários, por quem projetou o espaço e por quem o administra. De certa maneira, o plantio de árvores para amenizar o problema também é consensual. Entretanto, sua execução é uma dificuldade. Torna-se um jogo de colocar a culpa no outro, isto é, no projeto arquitetônico e na gestão do estádio. Enquanto isso, os usuários reivindicam as árvores do Mineirão antes da reforma, alegando que era um local aprazível. Entretanto, o entrevistado B apresenta uma justificativa para o fato.

“É uma loucura... agora, todo mundo gosta de árvore, as pessoas falam isso como se fossemos biruta, né: ‘não, vamos cortar as árvores.’ Não é isso. A questão é que, na verdade, você tem que lidar com um monte de coisas, como estamos falando de um estádio que, inclusive, será usado nas olimpíadas, tem que garantir um espaço vazio em volta, um perímetro de segurança interna, que é a área onde estão as catracas, para a circulação dessa multidão. Não sei se você já foi lá [no Mineirão] em dia de jogo. É uma loucura. Então, assim, não tem como você ter árvores naqueles trechos. Além do mais, a gente está com uma estrutura de pré-moldado que tem uma sobrecarga muito leve. Então, o que a gente trabalhou? A gente pensou em manter as árvores do estacionamento, a gente projetou uma espécie de bosquinho, no acesso norte, na Abrahão Caran, que não foi executado ainda, mas tinha um bosquinho que ia fazer o sombreamento ali, já que ali já é na terra, isto é, não é suspenso. Então, ali a gente tinha o bosquinho, propomos as fontes de água que era para amenizar esse problema e a ideia de ter grandes vasos que é muito comum na Europa. Então, essas nove praças que a gente fez, a gente, inclusive, usou uma árvore que era muito usada por Burle Marx e que dava uma sombra muito espalhada, só que o pessoal da Minas Arena colocou umas mudas que, na primeira chuva, já foram embora. Isso exige uma vontade de você querer fazer aquele negócio e ser realmente uma coisa importante. Se você olhar nossas

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perspectivas iniciais, e a gente não fez isso para enganar ninguém, você pode reparar que a gente tinha árvore de porte médio na esplanada dessas nove pracinhas. Então, pelo menos na beira, onde tem aqueles bancos de concreto a gente tinha, tem também os vasos, e parece que eles estão estudando a possibilidade de ter uma jardineira com vegetação mais baixa. Então, não sei... sentar em um banco com uma jardineira, como tem na Savassi, de certa forma. Isso é uma coisa que é importante pra gente, mas que não está funcionando na prática.” (Entrevistado B)

Assim, o trecho indica que houve a necessidade de se adequar às normativas vigentes, mas também encontrar soluções para os problemas advindos dessa norma. Além disso, mais uma vez há uma diferença de entendimento entre o que foi projetado e o que foi executado. Um dos motivos que podem justificar essa discrepância é o fato de o corpo administrativo do Mineirão, isto é, os funcionários da Minas Arena, não terem participado do projeto de concepção da reforma do estádio, conforme informou o entrevistado D. Nesse imbróglio, os usuários (e também os funcionários) se arrumam como podem em busca de uma sombra durante a sua permanência na esplanada.

Figura 22 – Estratégias para se proteger do sol, na esplanada

Fonte – Fotos tomadas pela autora da tese (dez.2013 a dez.2014).

Por fim, durante a semana, o período compreendido pelo final da tarde/início da noite, isto é, quando o sol se põe até o momento de fechamento do espaço, é o que apresenta a maior quantidade de usuários e variedade das práticas. Esse fato reforça a aridez do Mineirão durante o dia.

Percebi que, à medida que o sol se baixa, as pessoas vão chegando ao estádio, principalmente pela Entrada Norte, onde muitos estacionam o carro no estacionamento improvisado no passeio do estádio. São mulheres que vão levar seus filhos para andar de bicicleta, patins, patinete, velotrol, caminhão elétrico etc. Algumas vêm acompanhadas apenas pelas

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crianças, outras com seus maridos. Também começam a chegar as pessoas que vão se exercitar. Alguns pais levam seus filhos sem estarem acompanhados. Uma das famílias também levou o seu cachorro para a esplanada (Caderno de campo, 12/02/2014, Esplanada).

Já, nos finais de semana, o cenário mudava. E a sensação era a de que

“[...] o Mineirão não era um elefante branco e nem havia a necessidade de um projeto de animação, já que a alma está na interação do sujeito com o objeto” (Caderno de campo, 09/11/2013, Esplanada).

Figura 23 – Esplanada no final de semana

Fonte: própria autora – 02/06/2014

Aos sábados e domingos, o movimento era maior, sendo que, a cada mês, aumentava o número de frequentadores. Fazendo um levantamento nada exaustivo, dava para calcular um fluxo de aproximadamente 5.000 pessoas por final de semana.

Cheguei à esplanada às 12:15 horas. Para um sábado de feriado, não estava cheia. Contei em torno de 20 pessoas entre adultos e crianças. Uma mulher andava de patins e fui lhe perguntar se frequentava ali há muito tempo. Ela me disse que era a terceira vez (Caderno de campo, 12/10/2013, Esplanada).

Entrei pela Entrada Norte e estava lotado! Quase todos os espaços estavam ocupados sendo como paragem ou como circulação. Dei minha volta e percebi muitos turistas/visitantes; famílias que levaram uma parafernália de objetos para as crianças (pequenas) brincarem: patins, patinete, bicicleta, bola; patinadores, skatistas e muitos cachorros. Dessa vez, havia uma criança com uma mini-perna de pau (Caderno de campo, 13/09/2014, Esplanada).

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Na medida em que o lado interno ia sendo descoberto e ocupado pelas pessoas, o lado externo do estádio ia ganhando outra dinâmica. Além do aumento visível na quantidade de carros estacionados, ao longo do período, apareceram os guardadores de carro. Por mais contraditório que pareça, além da quantidade de pessoas utilizando o espaço, a presença de flanelinhas serve como um termômetro para perceber a dinâmica e a relevância que um equipamento, evento ou região assume dentro de uma cidade. Especificamente no Mineirão, até meados de maio de 2014 não havia percebido a presença desses sujeitos. Além disso, durante os dias de semana, eles não estão presentes, exceto em dias de jogo. Não entrando no cerne da discussão, já que não faz parte da temática do trabalho, não podemos nos esquecer, de acordo com Rigatti (2003), de que essa problemática espacial apoiada no mercado informal da segurança veicular faz parte de um processo de privatização do espaço público, rompendo com o entendimento do que é público e do que é privado. Ainda, do lado de fora, nos finais de semana, era comum a presença de vendedores ambulantes com seus carrinhos de picolé da Kibon, de água e chup- chup142. Em vésperas de jogo, a oferta aumentava para vendedores de camisas, bandeiras e cambistas. Vale a ressalva de que as lojas de alimentação alugadas dentro do estádio não vendem picolé. Com isso, os usuários vão até os ambulantes para adquirirem a mercadoria. Estes são proibidos de realizar a venda do lado de dentro, já que, para isso, necessitam da autorização da Minas Arena e também pagar uma taxa considerada alta por eles. Desse modo, o limite e código dentro/fora é perceptível, delimitando o que é público e o que é privado, em se tratando do Complexo Mineirão. Tomando como base os interesses culturais do lazer elencados por Dumazedier (1980)143 e Camargo (1992), verificamos que as atividades desenvolvidas na esplanada têm maior relação com os conteúdos turísticos, sociais e, principalmente, físico-esportivo.

142 Refrescos ou suco de fruta batidos com água ou leite, embalados em sacos plásticos transparentes e pequenos e congelados. Também conhecido como geladinho, sacolé, gelinho. 143 Dumazedier (1980) propôs cinco interesses culturais do lazer: artístico, intelectual, físico-esportivo, manual e social. Em 1992, Camargo (1992) inseriu o interesse turístico a essa classificação. Vale ressaltar que nem sempre é possível definir a fronteira entre esses interesses, denotando sua interdependência. Essa classificação ainda é válida por tentar garantir uma maior diversidade de vivências no âmbito do lazer.

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De acordo com os autores, o interesse turístico é caracterizado pela busca de conhecimento de outras localidades e também do próprio espaço onde vive o indivíduo. No interesse social há o predomínio do encontro entre os indivíduos de modo a gerar o sentimento de pertencimento, de formação de identidade, de solidariedade e de identificação entre grupos. Por fim, os interesses físico-esportivos relacionam-se com o prazer de movimentar ou assistir à movimentação corpórea. Dessa forma, encontramos pessoas que praticam atividades realizadas com patins, skate, bicicleta, bola, brincadeiras, patinete, corrida. Todavia, também há os que vão observar o movimento ou simplesmente desfrutar de um ambiente agradável, tranquilo, limpo e seguro. Somado a isso, há quem vai apenas para conhecê-lo, fotografá-lo/filmá-lo como cenário, comer ou comprar suvenires temáticos na loja do Cruzeiro. Crianças, adolescentes, adultos e idosos são os frequentadores desse espaço. Alguns grupos se reúnem em um local fixo, outros transitam por toda a esplanada. Poucos têm uma permanência maior do que quatro horas na esplanada. A maioria fica em torno de duas horas, seguidos pelos que ficam até uma hora. Logo, percebemos que a rotatividade de pessoas na esplanada durante o dia é muito grande e que a esplanada se caracteriza enquanto um espaço multiuso. No entanto, o sentido do termo multiuso empregado acima é diferente do sugerido pela FIFA e compreendido por parte da direção desse equipamento. Para nós, em se tratando do lazer, um espaço multiuso é aquele que possibilita a ocorrência concomitante de várias atividades e a convivência de vários grupos. Já, para a FIFA e parte do corpo diretivo, como se trata de uma PPP, o retorno esperado à população é de que seja

“um espaço para todos. O parceiro privado cuida e administra um bem público gerando renda para todos.” (Entrevistado D)

Embora os usos citados anteriormente possam ser considerados uma forma de rendimento aos que dele usufruem, não é sobre esse tipo de renda que o entrevistado se refere, já que na visão dele,

“temos conseguido mostrar as pessoas que o estádio não é só para futebol. Já tivemos no estádio, shows,

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convenções, festas de aniversários e encontro de empresas.” (Entrevistado D)

Nesse sentido, o termo multiuso está diretamente relacionado com o valor de troca e com a saúde financeira do espaço, na visão dos gestores. De um modo geral, independentemente da atividade realizada e do grupo que a realiza, há uma avaliação positiva do Complexo Mineirão, principalmente da esplanada. Aliás, quando perguntados sobre os aspectos positivos da reforma do estádio, a maioria citou a esplanada, a área de lazer e a segurança como nos mostra o gráfico 4.

Gráfico 5 – Aspectos positivos da reforma do Mineirão para os frequentadores da esplanada

3,6 0,9 Acessibilidade Área de lazer 20,9 Bebedouro 1,8 31,8 Beleza/estética 6,4 Cadeiras - acento 2,7 Conforto Esplanada 9,1 6,4 Infraestrutura 4,5 Limpeza banheiro 10 Limpeza do estadio 11,8 Não conhecia 5,5 0,9 Organizaçao – administraçao Parceiria Zero

42,7 Segurança Visibilidade do campo

Fonte - Elaborado pela autora da tese.

Depois de apontar os aspectos positivos, alguns pesquisados justificaram sua escolha, conforme relatos abaixo.

“O Mineirão passou a existir. Antes só existia lá dentro, agora tem essa área de lazer.” (#31, mulher, 18 anos, Esplanada, patins)

“Democratizou o espaço. Era só futebol.” (#274, homem, 25 anos, Esplanada, fotografia)

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“O espaço. É difícil ter um espaço como esse em BH sem pagar, além de não ter trânsito.” (#33, mulher, 32 anos, Esplanada, passeado com o filho).

“Só a esplanada, não tinha nada parecido aqui perto.” (#40, mulher, 26 anos, Esplanada, patins)

“Maravilhoso, é uma praça espetacular. Espero que continue além da Copa.” (#49, homem, 55 anos, Esplanada, caminhada)

“Convívio, proteção e segurança. Tem água, comida, para quem vem andar de skate. Quando ando de skate, tenho que preocupar se tem água. Já fui a cada lugar que passei sede...” (#87, homem, 24 anos, Esplanada, skate)

“Nova área de lazer, melhor do que outros parques.” (#53, homem, 30 anos, Esplanada, patins)

Como dito anteriormente, Belo Horizonte é carente de espaços e de equipamentos públicos de lazer, principalmente quando são levados em consideração o acesso, a localização, a infraestrutura, a conservação, a variedade de atividades desenvolvidas, a segurança e a gratuidade. Nesse sentido, a esplanada, construída onde era a área de estacionamento do Mineirão, contém atributos pouco frequentes nos espaços públicos da capital mineira (e, quiçá, do Brasil) principalmente os que não estão localizados na região Centro-Sul. Assim, se, por um lado, a reforma do Mineirão trouxe a diminuição da frequência ou, até mesmo, a exclusão de um grupo social assistente do futebol, por outro, a esplanada, construída mediante a reforma, acabou se tornando um equipamento de lazer importante para Belo Horizonte, mesmo sem a intencionalidade dos gestores públicos, como apresentado por Lages e colaboradores (2015). Especificamente em relação à gratuidade, algumas pessoas veem esse tema com desconfiança, pois acreditam que, depois de certo tempo, quando o espaço já estiver estabelecido, passarão a cobrar pela entrada. Alguns concordam com a cobrança, outros creem que seria um abuso. Além disso, esse temor foi um dos limitantes da minha entrada no campo de pesquisa, já que, antes de estar formalmente identificada com o crachá da universidade, algumas pessoas achavam que eu era uma pesquisadora contratada pela Minas Arena com a finalidade de fazer uma pesquisa de perfil que justificasse as ações da empresa.

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Uma das patinadoras a quem tentei aplicar o questionário não quis me responder, pois estava colando o seu material e atrasada para a aula. Embora tenha me apresentado, ela não identificou quem eu era, queria, apenas, saber se a minha pesquisa iria para a Minas Arena cobrar a entrada no espaço. Disse que não. Logo, chegou o seu professor. (Caderno de campo, 03/05/2014, Esplanada).

Quase encerrando a conversa – as perguntas já haviam acabado e ela já estava terminando sua caminhada – disse que, conversando com um dos seguranças, ficou sabendo que há uma conversa interna na Minas Arena no sentido de cobrar entrada para acessar a esplanada. Ela acha a iniciativa válida desde que sejam preços populares e simbólicos (no máximo R$2,00) para gerar um senso de responsabilidade e conservação, no que diz respeito ao uso, à limpeza da esplanada e banheiros e à conservação. Argumentou que é comum em outros lugares, no Brasil e no exterior, essa prática para acessar alguns locais. Assim... é possível que este espaço público seja privatizado. São pequenas situações em que se vê até onde vai o sentido de público e se inicia o de privado (Caderno de campo, 19/05/2014, Esplanada).

Terminado o questionário, continuei sentada [próximo ao grupo de patinadores] observando o pouco movimento que restava. Até que chegou um, outro e começaram a conversar. Entre os vários temas conversados, cogitaram que o espaço poderia ser cobrado: [1] Vão começar a cobrar aqui, só tá enchendo. Gasta água, banheiro. Quem paga? [2] A gente já paga imposto. [1] Se fechar, a gente manifesta. Fecha isso aqui. Põe faixa, cartaz. Isso daqui é nosso. [3] Devem cobrar uns R$5,00 de cada um. Logo eles se aborreceram e resolveram mudar o rumo da conversa. (Caderno de campo, 13/09/2014, Esplanada).

Essa percepção e discussão sobre a cobrança de entrada em um espaço público é válida, entre outros motivos, pelo fato de, na atualidade, haver o interesse da prefeitura municipal em realizar parcerias público-privadas com empresas que manifestarem o interesse em administrar alguns parques verdes da capital, dando a elas, inclusive, o direito de cobrar entradas144. Verificamos, nesse sentido que, por meio das parcerias público-privada, o poder público vem terceirizando, tanto os direitos constitucionais, quanto a administração dos espaços públicos para a

144 ESTADO DE MINAS. PBH abre processo para privatizar parques. Gerais, Belo Horizonte, 19/10/2015. Acessado em < http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2015/10/19/interna_gerais,699455/prefeitura-abre-processo- para-privatizar-parques.shtml>

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iniciativa privada. Em cada situação, essa age de acordo com os seus interesses de modo que nem sempre o acesso é garantido a todos. Assim, de acordo com Oléias (1999, p.70), “[...] esse modelo social centrado no mercado, como orientador de todas as atividades da vida humana, tem destruído ou deformado conceitos como o de esporte e de lazer”. Outro fato que chama a atenção é a percepção de que o Mineirão passou a existir e de que o espaço ficou mais democrático. Se algo passa a existir, é porque é novo. Sendo assim, para esses usuários, o Mineirão pós-reforma não é à toa o Novo Mineirão. Nesse ponto de vista, o espaço se torna mais democrático, já que deixa de ter unicamente o uso institucional e periódico, por meio de cessão e/ou aluguel, e se transforma em um espaço, pelo menos, a esplanada, onde o sujeito, no seu cotidiano, se torna autor da sua ação. Entendo aqui, como cotidiano do estádio, a vida diária que se desenvolve nesse espaço, onde nenhum grande feito é realizado. Dá-se pela interação entre as pessoas, pelo conjunto de usos e apropriações e, segundo Lefebvre (1991), em um equilíbrio momentâneo e provisório entre produção e consumo, estruturas e superestruturas. Nesse sentido, se os eventos auxiliam na delimitação tempo- espacial, o cotidiano traz dinâmica e ritmo ao local, transformando-o, também, em um lugar e possibilitando aos sujeitos se apropriarem do espaço enquanto obra. Depois de um tempo, parte do corpo administrativo reconhece essa potencialidade e formas de uso desse espaço.

“A gente abre cedo e fica até a noite, a gente fica completamente aberto. Se eu fosse morador da região aqui ou tivesse criança pequena, uh... É o local ideal para passear, porque tem segurança, tem banheiro, tem água, tem serviço médico e é de graça. Não é de graça não, porque alguém paga, mas não o usuário, entendeu. Você é acompanhado pelas câmeras e tal.” (Entrevistado C)

Como visto no gráfico 4 e apontado na fala acima, a segurança é algo que valora positivamente a esplanada e atrai parte de seus usuários.

“O espaço é bom, tem segurança, pois é fechado, tem monitoramento e câmera, não tem trânsito. É um espaço familiar para vir à noite.” (#57, mulher, 48 anos, Esplanada, caminhada e filho)

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“Segurança, iluminação. A Esplanada é controlada, tem monitoramento. É melhor do que a Lagoa, pois tem muitas áreas escuras e ermas, podendo ser abordado por alguém. Aqui isso não ocorre, é seguro. Lá também tem as capivaras que transmitem doenças.” (#89, homem, 30 anos, Esplanada, ciclista)

“A esplanada tem um piso bom para criança brincar, segurança e é espaçosa. Não há rua e nem carro.” (#9, mulher, 41 anos, Esplanada, passeando com o filho)

“A organização externa melhorou. Era um espaço que não utilizava. Era sujo e tinha pouca segurança.” (#175, mulher, 40 anos, Esplanada, passeando com o filho)

De certa maneira, a segurança de um espaço não se dá apenas pela presença física dos agentes de segurança (pública ou privada) e das câmeras de videovigilança que ele tem. A sensação de segurança é algo muito mais ampla, pois, nos trechos acima, também está subentendido que ela se refere à forma de ocupação do espaço, aos sujeitos que o ocupam, à conservação, à iluminação e à limpeza. Também é algo relacional. Assim, sentir-se mais ou menos seguro depende de com o que se compara: outros locais da cidade, vizinhança, trânsito. Por fim, a criação de um discurso sobre a segurança do espaço também é capaz de gerar a sensação de segurança. Não é sem intenção que, ao cruzar os portões que dão acesso à esplanada, há um banner explicitando os itens proibidos no recinto: som mecânico, armas de fogo, armas brancas, cão bravo e cão solto, aeromodelismo e automodelismo, explosivos; pipa com cerol, bebida alcoólica, ambulantes não credenciados e fogos de artifício.

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Figura 24 – Acesso restrito à esplanada do Complexo Mineirão

Fonte- Foto tomada pela autora da tese em 26/10/2013.

No que tange à sensação de segurança na esplanada, além de todos esses apontamentos, há a ação efetiva dos prestadores desse serviço para que a ordem seja estabelecida.

Um dos aspectos de escolherem o Mineirão para patinar é a questão da segurança. “Final de semana passado, no domingo, entrou uns caras com atitude muito suspeita, não estavam com criança, não estavam com patins ou skate, não estavam com nada. Entraram ficaram observando as pessoas e ficaram mexendo com as mulheres. Fui ao carro pegar um negócio e eles mexeram tanto comigo que pensei que fosse cair dos patins. Fui até os seguranças, falei com eles e eles passaram a monitorar os caras que logo foram embora”, relatou uma das patinadoras (Caderno de campo, 12/10/2014, Esplanada).

Por fim, encontrei o grupo de patinadores! Estava conversando e preenchendo o formulário com uma das administradoras do grupo, quando vejo um segurança caminhando lentamente e vindo em nossa direção. Olhei ao redor e não vi nenhuma atividade suspeita. Continuei a conversa. Quando estava finalizando o formulário, o segurança chegou. Ouvindo pelo rádio uma atividade “suspeita” na Entrada Norte, disse que já havia localizado a pessoa. Senti-me uma meliante. Perguntou se eu estava fazendo pesquisa e disse que não podia fazê-la, pois não se pode fazer pesquisa na esplanada. Argumentei que

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tinha autorização. Ele chamou o rádio novamente e ficou um disse-me-disse. Alegaram que não tinham nenhum ofício ou recomendação por escrito e que, sem isso, não poderia continuar. Foi constrangedor... E se eu perdesse toda a conversa até então? Mas... há males que vêm para o bem. E o fato em si fez com que o grupo me acolhesse (Caderno de campo, 10/05/2014, Esplanada).

Se, por um lado, a presença de câmeras pode provocar uma sensação de segurança, por outro, a possibilidade de ser vigiada, sem saber onde e quando, não é agradável. De acordo com Foucault (2002), o panoptismo é um poder visível e inverificável, de tal modo que o sujeito não sabe se está sendo ou não observado, mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo. Com isso, o sujeito é induzido a um estado consciente e permanente de vigia no qual ele sabe que é vigiado, sem que necessariamente o seja em todos os momentos. “O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto” (FOUCAULT, 2002, p. 167). De certa maneira, por várias vezes, tive essa sensação na pesquisa, principalmente nos dias de semana, quando a esplanada não estava cheia. De maneira aberta, poucos frequentadores se mostraram descontentes com essa situação. Geralmente, não se mostraram contentes foram os moradores do entorno do estádio e que pertenciam à Associação de Moradores do Bandeirantes e São Luís.

“Moro aqui há 30 anos. Vinha uma turma fazer caminhada. Quando fechou, o grupo se dissipou, agora poucos voltaram. Um espaço que era público virou uma penitenciária de segurança máxima, com seguranças truculentos. Para que grade? Antes era democrático. Hoje, o meu sentimento é de que sou um intruso na sua casa, posso ser xingado e colocado para fora. Preferia antes, era mais democrático. Hoje há cerceamento da liberdade, para que grade?” (#128, homem, 72 anos, Esplanada, caminhada)

Além da vigilância, o Centro de Controle Operacional também é responsável pela música que é tocada na esplanada. Se até então imperava o concreto de silêncio, desde agosto de 2014, os autofalantes da esplanada passaram a tocar ritmos variados. Estes variavam entre MPB, pop rock e rock nacional e

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internacional. A música iniciava pela manhã com a abertura dos portões e encerrava à noite, no horário de fechar. Para muitos frequentadores, o ambiente ao som de Jack Johnson, Lulu Santos, Ivete Sangalo, , Charlie Brown Jr., Kid Abelha, The Beatles, , Red Hot Chilli Peppers, Guns n’ Roses é mais aprazível.

5.2 As atividades realizadas

Há um leque de atividades sendo realizadas na Esplanada, principalmente nos finais de semana. De certa maneira, os objetos mais utilizados são skate, patins e patinete. O motivo disso é muito evidente, trata-se do piso da esplanada. Logo, a esplanada congrega uma legião de skatistas e patinadores, amadores e profissionais. A esplanada tem piso de cimento queimado, isto é, uma mistura de cimento, água e areia, considerado de baixo custo e de alta durabilidade. As placas de cimento são grandes, o que diminui a interferência dos rejuntes entre elas. O piso, embora liso, fornece o atrito suficiente para deslizar, desenvolver manobras e não desgastar as rodas dos equipamentos. Além disso, os obstáculos presentes na esplanada (escadas, desníveis e bancos de cimento) permitem manobras, e a amplitude do espaço permite que se ande em todas as direções (diferentemente de um rinque de patinação, por exemplo). Entretanto, não é só de skatistas e patinadores que vive a esplanada. Há pessoas que a escolhem para fazer caminhada. Muitos pais/mães vão até lá levar o/a seu/sua filho/a para brincar. Alguns turistas em visita a Belo Horizonte elegem o Mineirão/Pampulha como um dos locais de interesse. E, por fim, há pessoas que escolhem o Mineirão como cenário para algum tipo de produção. Tudo isso ocorre concomitantemente. Às vezes, em locais variados, mas, muitas vezes, sem que as pessoas se deem conta, a esplanada tem uma divisão intrínseca por atividades desenvolvidas. A seguir, descreverei as atividades, os grupos e os locais que ocupam nesse espaço, tendo as Entradas Norte e Sul e os portões de acesso ao estádio como referência145 como podemos ver na figura 25. Ressalto que o objetivo das

145 A leitura dos portões é feita de forma anti-horária.

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sessões que se seguem não é realizar uma análise mais profunda sobre cada grupo ou cada prática identificada, já que tal empreitada carece de outros investimentos em termos de perguntas e referenciais teóricos.

Figura 25 – Desenho esquemático da Esplanada e dos portões do Mineirão

Mirante Turista Entrada Norte

E

D Loja, banheiro, bebedouro F Rampa Desafio

C Portão A

B

Loja, banheiro, bebedouro

Entrada Sul

Fonte - BCMF Arquitetos, adaptada pela autora da tese.

5.2.1 Espaço de brincar

Nos finais de semana, principalmente pela manhã e final de tarde, é grande a frequência de famílias na esplanada. Assim, juntos ou separados, em menor ou maior grupo, é comum ver pai, mãe, tio, tia, cunhado, cunhada, avô, avó, entre outros membros da família menos frequentes, levando suas crianças para brincarem na esplanada. Há também as crianças que estão acompanhadas por colegas de escola ou do prédio onde vivem. Há grupos de adultos que são amigos e têm filhos/as na mesma idade. Dessa forma, aproveitam a esplanada para o encontro social.

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Em algumas situações, alguns adultos (independentemente se amigos ou família), munidos (ou não) de sua cerveja aproveitam esse tempo-espaço para atualizarem a conversa enquanto as crianças brincam. Há adultos que apenas estão levando as crianças para brincarem e passam o tempo todo tomando conta delas, enquanto elas se divertem.

Havia também um grupo de pais e uma mãe (foi o que reconheci) com seus filhos e filhas. Para brincar as crianças tinham bola, patinete, bicicleta e skate. Para comer, lanchinho e chips. Já os pais estavam bebendo cerveja em lata, trazidas de casa. Quando fui perguntar o tempo de permanência no estádio, um respondeu, de brincadeira, “o tempo que durar a cerveja...”. Esse grupo era composto de, aproximadamente, cinco adultos e cinco crianças. Eram parentes, moradores de bairros distintos, sendo que um deles veio do Vale do Jequitinhonha/MG para passar o fim de semana em BH, junto com as crianças. Alguns eram atleticanos e outros cruzeirenses (Caderno de campo, 20/09/2014, Esplanada).

Por outro lado, há também adultos que aproveitam esse tempo-espaço para se interagirem com a criança. Algumas dessas interações ocorrem mais espontaneamente com brincadeiras do tipo pegador, chutar/arremessar bola, soltar papagaio. Outras vezes, o que percebemos é que o adulto traz a criança para a sua prática ou a criança é um motivador para aprender algo. Assim, é comum ver homens/mulheres patinando, pedalando, praticando skate junto com as crianças. A figura 26 tenta captar essa variedade de interações.

Figura 26 – Atividades realizadas pelas crianças na esplanada

Fonte – Fotos tomadas pela autora da tese (março a nov. 2014).

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De um modo geral, a localização desses grupos é mais próxima à Entrada Norte, entre os Portões F e A. Alguns motivos para isso é o acesso, a presença das lojas de alimentação, a estrutura utilizada em dias de jogos que fornece sombra e a proximidade com o banheiro e o bebedouro. Quando as lojas de alimentação tinham mesas com cadeiras e sombreiro do lado externo do estabelecimento, era comum as pessoas as utilizarem para colocar os seus pertences. Com o tempo, as mesas foram retiradas e o fluxo de frequentadores aumentou. Assim, a tenda utilizada em dias de jogos para fazer o primeiro controle dos torcedores passou a ser mais utilizada como ponto de permanência de adultos e crianças. Os grupos se arranjam como podem: alguns se sentam no chão, outros arrumam cadeiras plásticas para sentar, seja a utilizada pela segurança do estádio ou trazida de casa. Por lá, organizam o seu arsenal de objetos, já que, comumente, as crianças vão com várias possibilidades de brinquedo: bola, boneca, patins, skate, patinete, velotrol. Identidades de gênero são reforçadas nesse espaço. Com isso, a maioria das meninas anda de patins, e os meninos jogam bola e andam de skate. São poucas as meninas que andam de skate e os meninos que andam de patins. A maioria dos adultos faz a opção de levar as crianças para brincarem na esplanada por uma questão de segurança (presença dos agentes de segurança, câmeras, gradeamento, ausência de veículos), mas também pelas possibilidades que o local proporciona.

“A esplanada é ampla e a minha filha está aprendendo a andar de bicicleta aqui. O chão é lisinho.” (#29, mulher, 43 anos, Esplanada, filha para passear)

“Minha filha e suas amigas escolheram o espaço para patinar, pois tinham ouvido que era bom.” (#38, homem, 37, Esplanada, filha para passear)

“Informaram-me que aqui era um bom lugar para patinar. Então, trouxe a minha filha e esposa para aprenderem a andar de patins. Minha filha faz aula, uma vez por semana.” (#148, homem, 41 anos, Esplanada, esperando a mulher e a filha patinarem)

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Algo inusitado na pesquisa foi o depoimento de uma criança enquanto eu fazia a pergunta para sua mãe. Interrompendo a conversa, o menino de 10 anos disse: “─ Gosto da esplanada. É um lugar que tem espaço para brincar”. De acordo com Rolnik (2000) e Marcellino (2007a), vemos nas cidades que o crescimento desordenado, o urbanismo moderno, a especulação imobiliária e a visão utilitarista dos espaços são alguns dos fatores que vêm contribuindo para o processo de diminuição e privatização dos espaços públicos das cidades. Dessa forma, os espaços de convívio seguem uma tendência à privatização e, cada vez menos, encontramos nas cidades praças, parques, campos de futebol de várzea, ruas, que possam ser considerados locais de convivência, do encontro, da festa, do lazer. Assim, para essas crianças, a esplanada do Mineirão cumpre um papel importante em sua formação, a da vivência corporal e do lúdico. Entretanto, se a esplanada traz uma sensação de segurança para os adultos, a diversidade e intensidade das práticas desenvolvidas no local tornam-se motivo de preocupação para algumas mães, que temem pela segurança de seus filhos/as e até sugerem a setorização do espaço.

“A forma como os skatistas largam os skates e utilizam os bancos, pode deteriorar. Há choque entre skatistas, patinadores e crianças.” (#57, mulher, 48 anos, Esplanada, caminhada e filho para passear)

“A diversidade de esporte ao mesmo tempo e no mesmo espaço uns não respeitam os outros (tem adulto de bicicleta, criança de bicicleta, skatista e patins). Sugere que, no futuro, deveriam definir o espaço para cada um.” (#175, mulher, 40 anos, Esplanada, filho para passear)

A esplanada pode ser considerada um local de encontro, de troca e de convivência, no qual vários grupos convivem entre si e com suas práticas. Uma norma para definir qual local cada prática deve ocupar seria perder essa diversidade e dinâmica espacial. Enquanto a esplanada não tiver nenhum equipamento específico para qualquer uma das práticas desenvolvidas, não há justificativa para essa setorização. Tal fato se tornaria viável se fizessem, por exemplo, um parquinho para crianças, uma praça para skatistas ou um local próprio para cachorro, já que tais equipamentos trariam um uso específico. Talvez, por trás da ideia de insegurança e o desejo de maior normatização do equipamento, exemplificadas nas

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falas das usuárias #57 e #175, pode haver uma baixa tolerância à diversidade dos sujeitos e à convivência com o diferente que também utiliza a esplanada. Ademais, embora não haja um limite físico entre os grupos e as atividades, há um limite tácito para que tais práticas ocorram. Acompanhados ou não por crianças (filhos/as, sobrinhos/as, netos/as etc), alguns adultos também levam seus cachorros para passearem no Mineirão. Assim, golden retrevier, vira-lata, pastor alemão, maltês, buldogue francês, entre outras raças, adultos ou filhotes, compõem a paisagem do Complexo Mineirão. Observei que alguns de seus donos simplesmente os levavam para dar uma volta no Mineirão, outros aproveitam o momento família e também incluem o animal. Por fim, há os que aproveitavam para se exercitarem junto com o animal: caminhando, pedalando ou andando de skate. Entre os principais motivos de levar o animal de estimação para a esplanada está a limpeza do local e o ambiente familiar.

5.2.2 Gosto da Lagoa... mas venho caminhar no Mineirão

Com menos frequência, outra atividade corporal realizada na esplanada é a caminhada, nem tanto a corrida. Mulheres e idosos são os principais praticantes. Essa prática é mais frequente durante a semana, na parte da manhã, bem cedo, ou no final do dia. O tempo de permanência é o tempo da atividade. A maioria é vizinho/a do estádio.

“Aqui é mais perto e tem segurança. A Lagoa é ótima, mas passa carro. Papai não gosta das bicicletas, pois passam buzinando. Além disso, é preciso ir de carro.” (#84, mulher, 58 anos, Esplanada, caminhada)

A comparação entre a esplanada e a pista em volta da Lagoa da Pampulha no que tange à corrida/caminhada é recorrente, tanto por parte dos gestores do Mineirão, quanto dos próprios usuários.

“Pensei que as pessoas iriam fazer caminhada, mas isso é um hábito que ainda não pegou. Mas também, tem a Pampulha ali do lado, um lugar agradável!.” (Entrevistado C)

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“Ensinei meus filhos de seis e quatro anos a andar de bicicleta na esplanada. Gosto da Lagoa para correr, pois aqui é muito concreto.” (#175, mulher, 40 anos, Esplanada, filho para passear)

“A Lagoa possui um ambiente mais agradável devido às árvores, a maior quantidade de pessoas. É mais povoada e também é bom para levar a minha cachorra. Tentei trazê-la para caminhar na esplanada, era verão e, quando fui ver, as patinhas dela estavam todas feridas, ‘cozidas’ pelo calor do cimento da esplanada. Nessa época do ano [outono] é bom de se caminhar, mas no verão é intolerável. É preciso vir mais cedo.” [era por volta de 8:50] (#50, mulher, 66 anos, Esplanada, caminhada, membro da associação de moradores)

Considerados um cartão postal de Belo Horizonte, a beleza, a paisagem e o ambiente da Lagoa fazem com que muitos a prefiram em detrimento da esplanada. Por oposição, o excesso de cimento e a falta de áreas verdes da esplanada afugentam alguns corredores que preferem a Lagoa. No entanto, a própria Lagoa repele alguns de seus usuários devido aos problemas de iluminação, qualidade da pista, os carros e as bicicletas que trafegam, bem como o seu estado de conservação.

“Costumo correr na Lagoa, mas para a especificidade do exercício a Lagoa é tumultuada, pois precisa de espaço. Na Lagoa trombamos com as outras pessoas, e a iluminação não é boa. No Mineirão, tem vigilância e segurança.” (#85, mulher, 47 anos, Esplanada, corrida com grupo).

“Tem segurança, é perto de casa, não tem trânsito, é limpo e tem música. Na Lagoa, só do ‘perfume’ eu já desisto e tem subida e descida.” (durante o trajeto casa/Lagoa) (#111, mulher, 46 anos, Esplanada, caminhada, membro da associação de moradores).

Em uma terça-feira, por volta das 19h:15min., vi várias pessoas correndo em pequenos grupos pela esplanada. Olhando mais atentamente, percebi que muitos vestiam a mesma camisa e que pertenciam a um grupo de corrida de um clube próximo. Um dos membros do grupo narrou um pouco sobre o grupo e o motivo de escolherem o Mineirão para a corrida.

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“Temos o costume de correr na Lagoa, mas uma vez por semana fazemos o treino no Mineirão, geralmente quando é treinamento de tiro ou educativo. Escolhemos a esplanada por ter o espaço propício a esse tipo de treinamento, pois a Lagoa é tortuosa e cheia. Para esse treino precisamos de uma reta. O grupo é composto por 70 pessoas, entre homens e mulheres, mas apenas 40 são ativas. O treinamento consiste em uma volta de aquecimento, trabalho de tiro/educativo e depois uma volta para encerrar. A duração é de aproximadamente 1h. A Esplanada ficou muito mais agradável com música, mas poderia ter mais bebedouros.” (#85, mulher, 47 anos, Esplanada, corrida com grupo)

Percebi que alguns membros do grupo estavam acompanhados de seus filhos e filhas. Era em torno de seis crianças, na faixa de cinco a sete anos de idade. Um dos meninos levou um skate para brincar, o que serviu de diversão e distração para todas as crianças, enquanto esperavam seus pais terminarem a atividade. Uma percepção é que, no horário da manhã, quem vai ao Mineirão fazer caminhada, já a fazia antes da existência da esplanada, isto é, antes da reforma do estádio. Segundo alguns relatos, um grupo de vizinhos que se conhecia há muito tempo sempre ia fazer caminhada ao redor do estádio, em um tempo em que o

“Mineirão era menos seguro, devido à pouca conservação e as pessoas que moravam debaixo das marquises” (#50, mulher, 66 anos, Esplanada, caminhada, membro da associação de moradores).

Este grupo era formado aproximadamente por 10 pessoas que se conheciam há muito tempo, já que são moradores antigos da região. Com o fechamento do Mineirão para a reforma, o grupo se dissolveu. Alguns migraram para a Lagoa e outros pararam de caminhar, já que a Lagoa, para eles, era considerada distante. Com a reabertura do estádio, o grupo não voltou mais a se reunir como antes. Os interesses se dispersaram. De acordo com os relatos, alguns preferiram permanecer na Lagoa, outros pararam definitivamente com o exercício e poucos voltaram, porém sozinhos. Dizem que a reforma retirou a marcação de quilometragem que havia, evidenciando, assim, que antes, embora precário, o espaço destinava-se também a esse fim. Há

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também na fala desses moradores um estranhamento em relação à nova configuração do espaço.

“Parece que não é seu. Antes parecia nosso. Agora tem horário para abrir e fechar. Parece que você está invadindo o lugar de alguém. Faltam as árvores. Hoje tem muito concreto.” (#111, mulher, 46 anos, Esplanada, caminhada, membro da associação de moradores)

“Antes era democrático. Hoje, o meu sentimento é de que sou um intruso na sua casa, posso ser xingado e colocado para fora. Sinto falta da sombra, dos pássaros e da liberdade. Antes, aqui para mim era um lugar de diversão. Hoje, é fonte de luta, briga e medo.” (#128, homem, 72 anos, Esplanada, caminhada, membro da associação dos moradores)

“Hoje, o Mineirão não representa mais nada para mim. Já foi turístico, mas já passamos tanta raiva antes, durante e depois da reforma. Fizeram uma passarela que nunca foi usada. Gasto de dinheiro à toa. Fazíamos reuniões com a Minas Arena semanalmente, mas não era cumprido, isso fez com que a relação fosse desgastada. Mas é agradável andar aqui, ouvir música. Antes havia morador de rua e sujeira, não andávamos sozinhas, procurávamos um grupo para andar juntas.” (#111, mulher, 46 anos, Esplanada, caminhada, associação de moradores).

Haja vista que, não por coincidência, todos os que apresentam essa queixa fazem parte da Associação dos Moradores dos bairros São José e São Luiz – Pro-Civitas. Embora reconheçam que a reforma trouxe a valorização da região, suas falas dão a entender que, apesar de todos os problemas existentes, a convivência com o Mineirão antes da reforma era mais orgânica do que com o Mineirão pós- reforma. Parece que a PPP trouxe a diminuição desse sentimento de pertencimento, com o agravante de que agora o Complexo Mineirão passa a ser administrado por uma entidade privada trazendo uma configuração diferente da que se tinha.

“Nós temos sofrido pressão enorme, principalmente pelos moradores do entorno. Os moradores reclamam e a gente sabe que eles estão sofrendo mesmo, é fato. Agora, a culpa não é da Minas Arena, primeiro porque a Minas Arena não é dona do Mineirão, depois não é a Minas Arena que construiu o Mineirão e nem reconstruiu o

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Mineirão. A Minas Arena é uma empresa criada, decorrente de um consórcio que venceu a licitação de reforma do estádio. O estádio já estava aqui antes de qualquer casa do entorno, te mostro as fotos. Então, a vida toda isso daqui para os vizinhos foi problemática, a vida toda. Sempre foi problemática. Agora tem um CNPJ pode ser acusado, antes não, antes o CNPJ era do governo, ninguém falava nada porque era do governo e o governo não ia mudar o estádio daqui. A gente nota que a vontade dos moradores vizinhos é jogar o Mineirão no chão e fazer uma praça para eles usarem” (Entrevistado C).

Verificamos que, desde antes da reforma, tanto os eventos ocorridos no Mineirão, quanto na Pampulha, eram fonte de problemas e de reclamações por parte dos vizinhos e reverberados pela Pro-Civitas por meio de seu jornal e de seu acento nos órgãos públicos. No entanto, a reforma não conseguiu amenizar tais problemas. Essas questões apontam que, antes da reforma, o Mineirão apresentava um sentido de obra para esses usuários vizinhos ao estádio. Contribui para esse sentimento o fato de muitos terem se constituído junto com o estádio. Mesmo sendo considerado um espaço desgastado e degradado, esse grupo viu na coletividade a possibilidade do encontro, da segurança e da utilização do espaço público. Assim, a caminhada, além de ser considerada um exercício físico, era um momento no qual um grupo se reunia, fortalecia o vínculo de amizade e o pertencimento com o bairro e com a cidade. Com a PPP, o Complexo Mineirão passou a ter normas estipuladas por um agente externo com pouco pertencimento com o grupo e com o lugar. A segurança oferecida pelas câmaras de videovigilância e agentes privados pode, entre outros fatores, ter contribuído para a desarticulação desse grupo de usuários. Afinal, com esses aparatos, os sujeitos não necessitam mais estar em coletividade para se sentirem seguros. Dessa forma, cada um pode utilizar o espaço individualmente, no seu tempo, de modo que os encontros, os vínculos de amizade e o sentimento de pertencimento ao lugar ficaram comprometidos.

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5.2.3 Tomada 1... gravando!

Fotos particulares para o álbum de família do bebê que vai nascer, tomada de manobras radicais para produção de matéria, imagens divertidas para postagem no Facebook, passarela para a nova coleção de roupas voltada para a Copa. Tudo isso, filmado e gravado no Mineirão! Durante o tempo da pesquisa, algumas vezes me deparei com o uso do Mineirão enquanto cenário ou objeto com valor de troca. O material produzido variava entre o amador e o profissional, mesmo que a linha divisória fosse tênue, conforme ponderou um usuário que se queixou de ter sido abordado pela segurança por estar utilizando um tripé para fazer suas fotos e filmagens.

Parece que quando vai fazer uma filmagem profissional precisa pedir autorização para utilizar o espaço, igual no Parque Municipal. Mas é muito tênue o limite entre profissionalismo e amadorismo. Posso vir aqui, fazer um vídeo amador, soltar esse vídeo na internet e ele bombar, sei que não será o caso aqui, mas hipoteticamente falando, eles não têm esse controle. Acho isso errado, barrar só porque está de tripé. (Caderno de campo, 25/10/2014, Esplanada)

Essa aparente normativa, que não está fixada em nenhum lugar, demonstra a tensão e a ambiguidade, em se tratando de uma PPP, entre os limites do público e do privado, tendo em vista a possível comercialização do direito de imagem do Mineirão. Assim, o tripé e a filmadora são algo que merece ser verificado, uma vez que, no imaginário, remonta a um uso comercial. Entretanto, essa norma é frouxa, uma vez que, nas situações em que o tripé é utilizado com câmara fotográfica, não observei o mesmo tipo de abordagem.

Enquanto conversava com um dos integrantes da equipe, os outros estavam preparando as filmagens: posicionaram a câmera filmadora em um tripé e este próximo a um dos blocos de cimento, outro estava em pé em seu skate. Já estava quase tudo pronto quando chegou um segurança privado em seu carrinho. Disse que não podia fazer filmagens ali. Antes já havia dito que não podia ficar em pé na grade. De fato, um dos integrantes estava sentado no guarda-corpo próximo ao Portão B. O segurança passou e ele voltou a sentar. Foi depois disso que o segurança disse que não poderia filmar da forma como estava sendo feito. (Caderno de campo, 08/09/2014, Esplanada)

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Vi que o mirante estava ocupado por um casal cruzeirense que estava fazendo o book da gravidez. A produção envolvia os equipamentos necessários para a sessão de fotos e figurino. Fui conversar com eles. A fotógrafa é cunhada do casal e atleticana. Escolheram o Mineirão porque ele faz parte da história da família. Para o marido, é um lugar especial, que frequenta desde a infância e que, quando recebe visitas, é um dos pontos turísticos que faz questão de mostrar, juntamente com a Praça do Papa. (Caderno de campo, 09/08/2014, Esplanada)

Outra gravação que também chamou a atenção foi para um editorial de moda, tendo a Copa do Mundo como tema (figura 27). Aliás, como visto em um dos relatos, a copa foi um evento que trouxe visibilidade ao Mineirão das mais diversas formas.

Avistei duas mulheres sentadas com uma mesa de metal e várias coisas apoiadas nos bancos de cimento e algumas pessoas próximas. Pensei que se tratava de um piquenique. Fui ver. Ambas me falaram que estavam esperando a sessão de fotos terminar. Tratava-se de um editorial de moda, cujo tema era Copa do Mundo e o Mineirão, o cenário. Uma das participantes era parenta. Eram seis meninas, todas maquiadas e arrumadas. Trocavam de roupa e iam posar. Cada uma escolhia um visual. No banco de cimento, várias sacolas de papel com roupas, sapatos e acessórios. Algumas grifes, principalmente mineira e belo-horizontina, fizeram o convite a elas para exibirem suas roupas. A sessão iniciou-se às 9h e terminou às 13:30h. (Caderno de campo, 18/05/2014, Esplanada)

Figura 27 – Editorial de moda no Mineirão

Fonte - http://www.blogdabarbarela.com.br/, postado em 24 mai. 2014.

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O Mineirão, enquanto cenário, foi descoberto, não só pelas produções amadoras ou profissionais, como também por seus visitantes, sejam eles turistas ou excursionistas. Esses, geralmente chegam ao estádio pela Entrada Norte e sobem para um espaço mais alto, apelidado por mim de Mirante Turista, já que de lá se tem uma vista panorâmica da esplanada e da cidade ao fundo. Assim, eles chegam, sobem para esse espaço, fotografam e depois caminham pela esplanada. O tempo de permanência é curto, geralmente, menos de uma hora. O que leva as pessoas até o Mineirão é o fato de ele ser considerado um dos atrativos turísticos da região da Pampulha e/ou a curiosidade e o desejo de conhecê-lo após a reforma.

“Viemos para o Congresso Mulheres diante do Trono. Hoje é dia de City Tour. Aqui é um ponto turístico. É um lugar bonito, uma obra de arte e a arquitetura chama a atenção.” (#113, mulher, 41 anos, Esplanada, Maceió/AL)

“Meu irmão é de Manhuaçu, então trouxe para conhecer um dos pontos turísticos de BH.” (#182, homem, 45 anos, Esplanada, Belo Horizonte)

“Curiosidade. Vi na Copa os jogos pela TV e achei bonito. Ele [o marido] gosta muito de futebol e viemos conhecer.” (#298, mulher, 26 anos, Esplanada, Pelotas/RS)

Nem todos os visitantes têm a intenção de visitar o Museu ou assistir a uma partida de futebol. Simplesmente têm o desejo de conhecer o estádio, enquanto atração turística da cidade e o que ele representa. Aliás, o que pude perceber é que muitos anfitriões, embora inserisse o Mineirão no roteiro turístico, pouco sabem sobre o seu funcionamento em termos do horário de abertura/fechamento, a existência da esplanada e do Museu Brasileiro do Futebol. De acordo com Ferreira (2015), o turismo futebolístico vem aumentando gradativamente no Brasil, e a copa do mundo é reconhecida como um megaevento capaz de atrair fluxos turísticos para a cidade-sede durante e depois de sua realização. Além disso, a atividade turística é composta tanto pelos turistas que tem um objetivo específico de viagem – neste caso, uma proposta de turismo futebolístico – como também por aqueles que se aproveitam da estada em

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determinado lugar e, nos momentos de folga, saem para conhecer o que a cidade oferece em termos futebolísticos.

5.2.4 Pico do skate

O skate é um dos objetos mais vistos na esplanada. Ele é utilizado como brinquedo, trabalho, vivência de lazer e estilo de vida. Ainda que haja mulheres praticantes, é uma atividade hegemonicamente masculina. Embora, à primeira vista, houvesse uma relativa homogeneidade nos praticantes da modalidade que se dava pelo estilo e forma de manusear o skate, o cotidiano no campo demonstrou que se trata de um grupo heterogêneo. Assim, de certa maneira, foi possível identificar dois grupos distintos: os praticantes de skate e os skatistas. Denominei praticantes de skate os sujeitos, jovens e adultos, que têm interesse pela modalidade, mas não necessariamente o vivenciam como um estilo de vida. Na esplanada, esses sujeitos eram mais frequentes nos finais de semana e costumavam estar sozinhos, não tendo a preocupação em formar grupos ou se inserir nos já existentes. Alguns se deslocavam por toda a esplanada, enquanto outros ocupavam pedaços fixos, distintos dos que ocupavam o grupo de skatistas. Os praticantes de skate voltavam a sua atenção e interação diretamente com o objeto, experimentando manobras e formas de interação com o skate sem levar em consideração o entorno. Além disso, além do skate tradicional, costumam utilizar skate de duas rodas, long board e o skate elétrico. Foram considerados skatistas aqueles que têm o skate como prática e estilo de vida. Grosso modo, têm uma interação com o outro, com o objeto e com o espaço, já que, mesmo que tenham ido sozinhos ao Mineirão, se reconhecem e se concentram, especificamente, nos portões B, C e Rampa do Desafio146, formando uma rede de sociabilidade e também um território skatista. É um público predominantemente jovem, “[...] atraídos por um esporte alternativo que propicie a experiência de novas sensações” (MACHADO, 2012, p. 67). Além disso, a idade traz uma percepção distinta em relação aos riscos da modalidade, isto é, o receio de se machucar.

146 Rampa de acessibilidade, em frente ao Portão C, que liga os dois níveis da esplanada. Denominei Rampa do Desafio, pois, devido a sua inclinação, apenas iniciados/as na prática e corajosos/as se propõem a descê-la.

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De acordo com Brandão (2009), durante os anos 1970, por influência do surf e ascensão da juventude, o skate passou a ter uma identidade própria, tornando-se o símbolo de uma juventude rebelde.

O skate passou a ser usado como símbolo de uma nova geração de esportistas que buscava, ao invés de seguir qualquer tradição, inventar o novo, o inusitado ou, em outras palavras, transgredir as próprias vivências do esporte. Conceitualmente, é possível dizer que o skate foi se retirando do american way of life e se inserindo, cada vez mais, na contracultura juvenil (BRANDÃO, 2009, p.19).

Entre os skatistas, a modalidade mais praticada é o street skate, já que a esplanada fornece uma semelhança com a realidade das ruas, com exceção da segurança e a ausência de carros.

Os streeteiros, como se denominam os skatistas praticantes desta modalidade, estão em constante contato com a paisagem urbana a qual utilizam, dando novos significados a certos locais que se tornam obstáculos onde se realizam, sobretudo, as manobras (MACHADO, 2012, p. 66).

Com isso, a vastidão da esplanada propicia um espaço para remar, além de os bancos, as bordas, as escadas e a rampa servirem de obstáculos. Além disso, por não ser um skatepark147, alguns skatistas preferem ir ali porque é mais vazio e os skateparks têm outra forma de conduta, isto é, é preciso aprender como se comportar em uma pista. Assim, a pista do Mineirão acaba servindo como um processo de iniciação na modalidade.

“Espaço bom para aprender a andar de skate. É bom para o street e também para remar, porque é liso e tem as bordas. Eu, que não sei andar muito bem, gosto de ficar aqui.” (#185, homem, 16 anos, Esplanada, skate)

Outro aspecto positivo da esplanada é o fato de ser plana e ter infraestrutura. Assim, pessoas estão migrando de outras pistas da cidade.

147 Espaços construídos com pistas de skate e que tentam imitar o ambiente urbano com escadas, corrimãos, bordas, inclinações, bancos etc. (MACHADO, 2012).

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“Ouvi dizer que era bom. Todo mundo está falando e gostamos muito. O piso é bom, tem segurança e a música é boa. Está havendo uma migração da Praça do Papa para cá, porque aqui é plano.” (#301, mulher, 23 anos, Esplanada, skate).

Entre os skatistas também há heterogeneidade de estilo e modalidade. Pude perceber que a maioria deles apresenta um estilo mais urbano, vestindo calça jeans apertada, camisa de malha branca/preta com ou sem blusa xadrez. Contudo, há também os que usam camisas e calças mais largas, aparentando um estilo mais despojado. Por fim, em menor quantidade, percebi um grupo formado por skatistas mais velhos, que tinham dread no cabelo e sua frequência não era tão grande. Machado (2012) relata que existe relação entre a forma de se vestir, falar, se comportar e se expressar dos skatista e o seu gosto musical. Isso se deve ao fato de que o movimento skatista sofreu influência, ao longo de sua história, de outros movimentos culturais presentes no espaço público urbano, tais como o punk e o hip-hop.

Em muitos casos, o referencial identitário principal para o skatista é a sua preferência musical. É bem certo que ela não determina, mas o influencia a adotar um estilo que se expressa, sobretudo, na sua forma de se vestir e de se portar. Constatou- se, por meio de observações e conversas, que aqueles que se vestem com roupas extremamente justas e ouvem um tipo de música mais voltada para o punk rock são adeptos do estilo skatepunk. Ao contrário, aqueles que vestem roupas bem largas e ouvem rap, são considerados gangueiros. Por fim, aqueles que têm dreads no cabelo ou usam roupas com as cores da bandeira jamaicana (verde, vermelho, amarelo e preto) e preferem reage, são denominados rastas. Ressalto que skatepunks, gangueiros e rastas são categorias nativas, criadas pelos próprios skatistas (MACHADO, 2012, p. 77).

Dessa maneira, embora no espaço da esplanada todos se reconheçam enquanto skatistas, a forma de se apresentar faz com que os grupos se juntem e se afastem por uma questão de afinidade. Com isso, utilizando a nomenclatura acima, enquanto skatepunks e gangueiros dividiam o mesmo espaço, isto é, o Portão B, os rastas não tinham um lugar fixo. Além disso, geralmente, costumavam driblar a vigilância e fumar um cigarro de maconha.

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Continuando a volta, vi dois skatistas em um estilo mais hippie, com bermudão e dread no cabelo. Quando chegamos, eles estavam fazendo manobras, próximos ao Braga, mas nesse momento, encontramos com eles no Mirante Turista. Estavam sentados em seus skates em uma corporeidade semelhante a se estivessem preparando um cigarro de maconha. Silvio até me perguntou se as pessoas costumavam fumar maconha lá, eu disse que nunca tinha visto ou havia sentido o cheiro. (Caderno de campo, 28/08/2014, Esplanada)

Entretanto, alguns usuários perceberam e se queixaram do cheiro e do uso da maconha no Mineirão, inclusive, solicitando uma ação mais efetiva da segurança. Esta, por sua vez, disse que nada podia fazer, já que, embora a câmera de videovigilância seja eficiente, eles só podem apreender mediante flagrante, o que é difícil ocorrer nesses casos.

Na conversa os seguranças privados disseram que, se não conseguissem pegar o objeto enquanto prova do crime, não poderiam autuar ninguém. Um dos exemplos foi o cigarro de maconha. Disseram que poderiam passar e sentir o cheiro, mas se não vissem o cigarro, já que a pessoa podia ter descartado, não poderiam fazer nada. (Caderno de campo, 28/08/2014, Esplanada)

O Portão B é o principal território skatista. O grupo é hegemonicamente masculino, formado por adolescentes e jovens e costuma ser maior aos finais de semana, mas, durante a semana, é possível encontrar alguns por lá. Nos finais de semana, a maior concentração ocorre depois das 15 horas. O tempo de permanência é de aproximadamente quatro horas. De certa maneira, se conheceram e se reconhecem no Mineirão, formando grupos que mantêm uma comunicação pelo whatsapp. Entretanto, não possuem nenhuma página específica no Facebook sobre skatistas do Mineirão ou algo que o valha. Como se trata de um público jovem, muitos vão de ônibus ao Mineirão aplicar o skate. A frequência máxima desse deslocamento chega a ser três vezes na semana e muitos pegam apenas um ônibus. Exceção foi um skatista que mora na cidade de Betim (na RMBH). Segundo ele, o

“Mineirão é muito longe, mas perto da minha casa não tem pista para andar e na rua... meu pai não deixa. Não que no Mineirão ele deixe, mas sabe que é mais seguro.” (#179, homem, 17 anos, Esplanada, skate)

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Especificamente o usuário #179 e seus dois amigos costumam levar lanche próprio para se alimentarem durante o período em que estão andando de skate. Assim, chips, frutas e biscoito fazem parte da refeição, já que consideram os restaurantes da esplanada com pouca opção de alimentação e preços caros para a suas condições. Entretanto, pelo que observei, essa prática não é muito comum entre os skatistas do Portão B. Nem todos sabem por que os bancos próximos ao Portão B foram os escolhidos para a prática do skate, pois, quando passaram a frequentar a esplanada, esse local já estava ocupado pelos skatistas. Entretanto, alguns skatistas, pioneiros desse processo, conseguiram precisar a escolha.

De imediato não souberam responder, mas pensando dali, pensando daqui, chegaram à conclusão de que era por uma das bordas. Um dos bancos de concreto se destaca entre os outros, pois é amplo e não tem nada em volta e nem o canteirinho de árvore. Ele realmente é único e ele foi o escolhido pelos skatistas. (Caderno de campo, 25/10/2014, Esplanada, conversa com um grupo de skatistas)

Na medida em que esse banco foi escolhido, passou a receber um tratamento próprio para a realização das manobras. Assim, os skatistas queimam vela na borda do banco para que a prancha do skate deslize sobre o banco, facilitando as manobras.

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Figura 28 – A borda do banco de cimento utilizado pelos skatistas

Fonte – Foto tomada pela autora da tese em 25/08/2014.

Perguntados se a Minas Arena não reclamava com eles sobre essa utilização dos bancos. Eis o que responderam.

“No início não gostavam, mas foram permitindo.” (Caderno de campo, 25/10/2014, Esplanada, conversa com um grupo de skatistas)

De fato, a relação entre skatistas e administração varia entre a aceitação e a não conformidade, como demonstrou o entrevistado C.

“Quem mais frequenta esse espaço são os skatistas. É do jeito que você está vendo aí: esse perfil, jovem, com uma mochila. Chegam, andam e vão embora. Utilizam os assentos de concreto para fazer suas manobras. Não barramos. O máximo que vai acontecer é lascar a beirada do acento. Mas pelo menos tá em uso. Porém, tínhamos a intenção de construir uma rampa de skate, mas verificamos que os grupos não se dialogam. Os skatistas são muito folgados e a segurança tem muita dificuldade com eles, pois debocham da segurança, respondem com má criação, enfim, tira a ordem das coisas. Quando o skate escapole e passa por debaixo da grade do estádio, eles a saltam para buscá-lo. Quando o segurança chega para falar algo, eles pulam de volta e nem dão ouvidos.

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Além disso, com os skates, eles ferem o banco de cimento” (Entrevistado C).

A fala apresenta duas temporalidades. No início ela remete à aceitação e ao reconhecimento dos skatistas utilizarem a esplanada, de modo que ela não fique vazia. Em seguida, a fala demonstra que as formas de apropriação do espaço pelos skatistas contrastam com a expectativa que a Minas Arena tem em relação ao comportamento dos usuários da esplanada. Assim, a presença dos skatistas, com seus ônus e bônus, traz a dubiedade de sentimento em relação a sua presença. Dentro desse quadro, há usuário que acha que dentro de algum tempo a prática do skate será proibida. Além da divulgação boca a boca, outra maneira de os skatistas tomarem conhecimento do Mineirão para a prática do skate é por meio das revistas especializadas ou por vídeos no Youtube.

“O Mineirão já se tornou um pico de skate da hora, vem gente de fora filmar aqui. Ontem mesmo tinha gente filmando. O piso parece Barcelona”, disse o usuário. “E você conhece Barcelona?” – perguntei. “Não, mas pelo que já vi no youtube é bem parecido”, respondeu. (Caderno de campo, 20/09/2014, Esplanada, conversa com #184)

A chuva que se aproximava começou a cair. Fui em direção à marquise próxima à Entrada Sul. Lá já havia algumas pessoas se protegendo da chuva. Havia também dois skatistas que treinavam suas manobras. Fui conversar com eles. Um tinha 17 anos e o outro 16. Costumam ficar no Portão B e na escada próximo ao Portão C, mas, com a chuva, se contentaram com o espaço disponível. O mais velho disse que ficou sabendo da Esplanada por meio de um vídeo do skatista profissional Jay Alvez148, no qual ele exibia suas manobras e apresentava o novo espaço para a prática do skate em BH. Além disso, ele disse que hoje mais cedo, Jay Alves estava lá fazendo filmagens. Sentiu-se muito orgulhoso, pois é uma possibilidade de mostrar Minas para o mundo. Segundo ele, outros skatistas famosos já estiveram por lá, entre eles, Cezar Gordo. O outro skatista também ficou sabendo da Esplanada pela internet. Ele disse que como aspecto positivo da reforma há a segurança e que o Mineirão para ele é um meio de lazer, não é à toa que todos os finais de semana (quando possível) ele sai do Carlos Prates [região noroeste] para ir andar de skate. Chega por volta das 15h e sai por volta das 21h, quando o espaço fecha. (Caderno de campo, 25/10/2015, Esplanada)

148 http://www.youtube.com/watch?v=oYGQLmfYW1Q

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Figura 29 – Mídia especializada em skate produzida no Mineirão A) B)

Fonte A – Revista Tribo, edição 214, ago. 2013. Fonte B - https://www.facebook.com/cezar.gordo/ - postado em 25 out. 2014.

De acordo com Machado (2012), a prática de skate é um mercado em expansão, e a sua visibilidade fez, inclusive, com que algumas emissoras de televisão lhe dessem mais espaço na grade de programação. Se, de um lado, há a produção de material impresso, por outro, também há produção de material para a mídia televisiva.

Continuando a minha volta, encontrei quatro skatistas entrando na esplanada e outro membro do grupo segurando um supertripé. Eles se localizaram próximos ao portão A e montaram o equipamento para fazer umas imagens. Chamou a minha atenção, mesmo porque, ali não é um local recorrente de skatistas (às vezes dos praticantes de skate, o que, pelo ethos, não era o caso). Tratava-se da gravação de um programa para a MTV Sports, que passará em julho – Deco e Lucas na Rota Explosiva. A caravana composta por um ciclista, um moutainbike, um motoBMX, um skatista e um surfista, está percorrendo, de ônibus, pontos turísticos de BH, SP e Rio. Em BH, escolheram a Praça do Papa, Parque das Mangabeiras, Lagoa da Pampulha, Mineirão. Em época de Copa do Mundo acharam interessante fazer uma tomada lá, afinal “o Mineirão tem uma história, um apelo”. Quem apresentou a esplanada foi o skate e a minibike. (Caderno de campo, 19/05/2014, Esplanada)

Nesse contexto, o Mineirão ganha outro sentido e significado passando a ser reconhecido como pico do skate. Assim, vários skatistas, conhecidos e

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anônimos, profissionais e amadores, fazem as suas filmagens e disponibilizam na rede online ou as vendem para a mídia especializada.

Em plena segunda-feira pela manhã havia um grupo de skatistas no Portão B. Eram cinco, achei estranho o movimento para o dia e horário. Um deles estava fazendo manobras no banco enquanto o outro filmava no celular; o terceiro estava explorando o espaço da esplanada com o skate, enquanto dois faziam manobras em outros bancos. Entretanto, para minha surpresa, descobri que eram skatistas profissionais que ganham a vida conhecendo lugares e fazendo vídeos e fotos para a mídia especializada: revistas e sites, que lhes dão patrocínio. Eles mesmos têm um canal no youtube: vibeshoes e estavam gravando um material. (Caderno de campo, 08/09/2014, Esplanada)

Assim, a mídia especializada torna-se a grande responsável pela divulgação desse espaço. Inclusive, reconhecendo que os investimentos na reforma do Mineirão para a copa do mundo foi determinante para que ele adquirisse o status de pico e passasse a ter importância para a prática e a divulgação do skate em Belo Horizonte, em níveis nacional e internacional (figura 30).

Figura 30 – Reconhecimento do Mineirão enquanto pico do skate.

Por se tratar de um dos estádios oficiais para maior celebração do Futebol no mundo, ele foi reformado para atender às (nossas) necessidades da FIFA e agora, além de estar pronto para os jogos da Copa, possui um dos picos mais perfeitos para andar de skate no País! O CONSrider Jay Alves e os amigos Arthur “Zoio”, Pedro “Droca” e Bráulio Diego, nos mostrou como é a sessão no pico e apresenta ele pra nós. Confira no vídeo pesado logo abaixo! Check! Fonte - http://skateundergroundgama.blogspot.com.br/2013/05/localsonly-no-mineirao-com- jay-alves.html.

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Na periferia do Portão B também é possível identificar outros grupos de skatistas. Entretanto, esses são mais permeáveis, já que, além do skatepunk e gangueiro, é possível identificar meninas skatistas, jovens com bicicleta BMX e pessoas que só estão acompanhando os amigos. Assim, cada pracinha da esplanada torna-se um território skatista, habitado por grupos que se reconhecem ao mesmo tempo em que identificam suas diferenças. Ademais, embora o espaço seja intercruzado por patinadores, pessoas que estão fazendo caminhada e turistas, há um reconhecimento de que ali não é local de permanência se não tiver um skate ou conhecer alguém do grupo.

Figura 31 – Sociabilidade skatistas nas pracinhas da esplanada

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 25/10/2014.

Outro local da esplanada que, ao longo desse tempo, também teve destaque foi o Portão C. Lá não há bancos de cimento, porém há escadas. Assim, alguns skatistas saíam do Portão B e iam para lá tentar suas manobras. Entretanto, com o passar do tempo, um grupo específico passou a ocupar esse portão. O grupo que ocupa o Portão C também é composto por jovens e há a presença de mulheres, não necessariamente skatistas. Aliás, chamou a minha atenção que muitos dos participantes desse grupo, homens e mulheres, não tinham skate, mas estavam lá, interagindo com o grupo. Tal fato se dava porque a base do grupo era formada por colegas de escola que gostavam de skate, mas praticavam em lugares distintos, incluindo o Mineirão. Um dos componentes teve a ideia de criar um grupo no whatsapp chamado bonde meu sangue é o asfalto e convergir as

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práticas para o Mineirão, já que o local é espaçoso e bom para se aprender a andar, visto que nem todos são iniciados no skate. Machado (2012) afirma que a sociabilidade construída entre os skatistas é um misto de vários interesses presentes, que faz com que se liguem ou desliguem de um subgrupo. Além disso, por frequentarem as mesmas pistas, criam vínculos, e o encontro serve para atualizar informações, códigos, conversas. Ainda, segundo o autor, muitos skatistas se conhecem virtualmente, por usarem redes sociais e, quando se encontram nos espaços públicos de skate, passam a ter um vínculo pessoal. Tal fato pode ser observado na nota do caderno de campo a seguir.

Perguntei ao grupo se eles faziam parte de um grupo maior no facebook e eles falaram que não. Disseram que, no skate, cada um tem o seu grupo que anda em alguma pista, lá encontram outras pessoas, outros grupos e isso forma uma rede, que dá origem a um grupo maior. (Caderno de campo, 01/11/2014, Esplanada)

Além do skate, a peculiaridade do grupo do Portão C é a paquera e, de certa maneira, o skate é o objeto que proporciona o encontro.

Próximo ao Portão C, um dos grupos levou um bolo de cenoura. Havia a prática do skate em si, a sociabilidade e também a paquera. Ouvi uma parte da conversa na qual as meninas do grupo pressionavam uma delas querendo saber se pegou, pois parecia que o face dela dava a entender (elas estavam olhando o celular). A menina tentava desconversar até que foi ao menino pego e lhe deu um beijo na boca, tapando sua boca com a mão (logo, ela beijou a mão). A polêmica finalizou e eles começaram a se arrumar para ir embora. (Caderno de campo, 03/04/2014, Esplanada)

Por fim, próximo ao Portão C, há a Rampa do Desafio. Não é um local apenas de skatistas, já que o desafio também está presente entre os patinadores e entre as crianças pequenas que se aventuram na bicicleta. Entre os skatistas, porém, deu o início a uma modalidade que não se tornou frequente.

Na Rampa do Desafio uma nova prática se inicia: os skatistas tentam dar cavalo de pau. Eles usam luvas grossas de pano em ambas as mãos ou apenas na que vai servir de apoio. Descem a rampa com o corpo bem semiflexionado e dão o cavalo de pau apoiando a mão no chão para fazer o giro. Não sei como a prática se chama. Entretanto, precisa ser iniciado

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para isso. Enquanto passava, um deles tomou um capote e foi o comentário da fila (para esperar a sua vez, eles fazem uma fila, não necessariamente um atrás do outro, mas seguem uma ordem). (Caderno de campo, 03/05/2014, Esplanada).

A modalidade em questão é o downhill, isto é, descer uma ladeira com velocidade alta ou moderada e derrapar com o skate, como se fosse um cavalo de pau. Para isso, utilizam-se as mãos ou pés. Depois desse dia, vi os praticantes mais umas três vezes. Como dito, o skate é uma prática hegemonicamente masculina, assim há na esplanada poucas mulheres na modalidade. Quando estão nos grupos, geralmente, é na situação de acompanhante. Na infância é passível ver meninas experimentando o skate. Entretanto, à medida que crescem, a quantidade diminui, sendo que não localizei nenhuma mulher adulta praticante de skate. Dessa forma, questões de gênero perpassam a modalidade também na esplanada.

Encontrei três adolescentes mulheres caminhando com o skate debaixo do braço e fui ver. A mais velha tinha 17 anos e estava acompanhada de sua irmã (11 anos) e de uma amiga de sua irmã (também com 11 anos). Durante a conversa, passou um skatista que já estava andando há algum tempinho na Esplanada. “─ Ah, queria ser assim”, exclamou a mais velha. “─ Você queria ser homem?”, retrucou a irmã. “─ Não queria ser homem, ô cabeção. Ele manda muito bem no skate”, respondeu. (Caderno de campo, 12/10/2014, Esplanada)

Percebi o preconceito de gênero nessa situação. Aliás, a minha abordagem ao grupo de skatistas não foi fácil, já que sou mulher e não compartilhava dos símbolos dos grupos e nem possuía um skate. Assim, muitos foram monossilábicos nas respostas, enquanto outros respondiam enquanto não era a sua vez de realizar as manobras. De acordo com Machado (2012), o que identifica o skatista é o skate, e a sua portabilidade é a senha de entrada em uma rede já formada.

É possível afirmar ser o próprio skate que atua como um artefato simbólico capaz de propiciar a conversão de diferenças. Embora todas as particularidades expressas no ethos e nas orientações dos subgrupos constituintes desse grupo, todos se reconhecem enquanto skatistas e

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compartilham um sentimento comum pela apreciação de um símbolo unificador (MACHADO, 2012, p. 83).

Outra questão que chamou a atenção foi a presença de pré-adolescentes e adolescentes na esplanada, com a idade variando entre 13 e 16 anos, desacompanhados de algum adulto e/ou responsável. Os grupos costumam ser grandes, entre oito e dez pessoas, mas também há trios e quartetos. Alguns grupos são exclusivamente masculinos, outros compostos por meninos e meninas. Não encontrei um grupo exclusivamente feminino. A faixa etária variava entre 13 e 17 anos. Muitos vestiam um estilo skatista.

Encontrei um grupo de quatro pré-adolescentes. Todos tinham 13 anos. Já os havia visto na Esplanada e sempre me chamou a atenção, pois não percebo nenhum adulto os acompanhando. Fui até eles e descobri que são amigos e sempre vão ao Mineirão. Alguns estudam na mesma escola e outros são vizinhos. Geralmente se encontram na metade do caminho, onde pegam carona entre si. Eles consideram o Mineirão como um espaço para brincar e fazer o que quiser. “─ O que quiser não, pois tem regra”, ponderou um deles. (Caderno de campo, 01/11/2014, Esplanada)

Nesse sentido, o Mineirão para eles é visto como um local para brincar, e o skate é um brinquedo capaz de propiciar uma sensação de liberdade. O mesmo não foi percebido com as meninas skatistas, já que elas, mesmo com a sua irmã mais velha, também contavam com a presença de seus pais, em uma distância sob medida: grande o suficiente para dar a sensação de liberdade, porém curta a ponto de intervir quando necessário. Segundo Brandão (2009), no imaginário social, o skate está relacionado à contracultura juvenil, aos atos de rebeldia, a uma diferenciação social. Assim, experimentar o skate é uma forma de formar a identidade do sujeito em certa oposição aos valores sociais hegemônicos. Assim, a esplanada se apresenta como um simulacro desse tempo. De acordo com o autor, a lógica do mercado ajudou a formar essa identidade skatista. Assim, a imagem irreverente associada ao skatista ajudou a vender equipamentos especializados ao mesmo tempo em que contribuiu para um imaginário social sobre a modalidade. Por fim, quando perguntava para os skatistas e praticantes de skate sobre a relação que estabeleciam com o estádio e com o futebol, grande parte das

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respostas caminhou para a ausência/negação da relação com o futebol. Assim, frequentemente ouvia frases como

“não ligo para futebol, não. Não tenho um time, meu negócio é o skate.” (#269, homem, 15 anos, Esplanada, skate)

“Skatista não mexe com esse negócio de futebol, não.” (#271, homem, 18 anos, Esplanada, skate)

“Sou torcedor do Atlético pela necessidade de ter um time. Mas a gente que mexe com patins ou skate não mexe com futebol não. É mais pela necessidade de ter que dizer que torce para alguém, como se isso fosse uma questão social tipo idade, sexo, identidade etc...” (#274, homem, 25 anos, skate)

Em menor quantidade, havia os que se interessavam pelo futebol, porém com a mercantilização desse esporte e o aumento da prática do skate, diminuíram o seu interesse e também o pertencimento, investindo seu tempo e atenção para o skate.

“Antes da reforma, era torcedor assíduo do Atlético e adorava beber uma cerveja nos barraqueiros, no portão da Galoucura, antes de começar o jogo. Agora sou um torcedor de televisão, já que os ingressos estão muito caros. Com o valor gasto prefiro comprar rodinha de skate. Inclusive, desencorajei minha amiga a fazer um pay-per-view, já que, com R$80,00 [referente ao pacote], gasto com cerveja em um bar. Na atualidade, não torço tanto não... Tanto que o Atlético estava na Libertadores e eu estava no Mineirão andando de skate. Eu aplico o skate aqui no Mineirão. Também não gosto dos shows ou jogos no Mineirão, pois impedem que eu ande de skate. O Mineirão poderia ficar aberto meio período em dias de jogos.” (#184, homem, 29 anos, Esplanada, skate)

Os skatistas sentem orgulho do Mineirão, não pelo estádio ou pelas partidas nele disputadas, mas pela criação da esplanada que possibilita a eles um momento de lazer e/ou um trabalho autônomo. Além disso, se sentem contemplados pela divulgação da imagem de Belo Horizonte e a entrada da cidade nesse circuito

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esportivo, dividindo com os profissionais renomados e amadores a pista da esplanada.

5.2.5 Seja bem-vindo/a e vamos patinar!

São muitas as pessoas que vão à esplanada andar de patins. Não levando em consideração as crianças que vão brincar nesse espaço, conforme descrito no item 5.2.1, o grupo de patinadores é formado majoritariamente por adultos e há o predomínio de mulheres. Entretanto, percebi que há mais homens patinando do que mulheres andando de skate. Como era muito difícil encontrar patinadores parados, minha abordagem, geralmente, se dava no momento em que estavam colocando ou retirando o seu material de patinação: patins e equipamentos de segurança. E, na maioria das vezes, o tempo da pesquisa era o tempo necessário para colocá-los ou retirá-los. Como item de segurança obrigatório, a maioria usava joelheira e munhequeira. Poucos usavam cotoveleiras e quase nenhum usava capacete, exceto as crianças. De acordo com Brandão (2009), a patinação é uma forma peculiar de deslizamento, no qual o equilíbrio do corpo em velocidade é a sua principal característica. Sem equilíbrio, há o risco da queda e, consequentemente, o perigo de se machucar. Seguindo esse raciocínio, o autor aponta que, na patinação, o prazer é dado pela relação existente entre o ato de brincar com o corpo em velocidade e a ausência de quedas. Não entrando no âmbito da história da patinação no mundo e no Brasil, podemos dizer que, há algumas décadas, ela passou a fazer parte de uma tendência cidadã de esportivizar a rua, isto é, rompendo com os limites do campo esportivo (BOURDIEU, 1990), a patinação, o skate, o parkour, entre outros, podem ser classificados como esportes urbanos.

Estas práticas, que se desenvolvem e estendem de forma fluida, heterogênea e intermitente, aos poucos aportam novas formas de entender a atividade física não competitiva, como também de repensar e superar constantemente as normas pré- estabelecidas dos espaços desportivos e também dos usos convencionais dos espaços urbanos (SANCHEZ, CAPELL, 2008, p. 47).

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Em relação aos esportes urbanos, Sanchez e Capell (2008) reforçam que não se trata de uma ausência da estrutura esportiva, mas, sim, há a ocorrência de novas estruturas que podem ocorrer à margem, em paralelo e/ou concomitante à estrutura esportiva tradicional. Como não há uma revista ou uma mídia especializada em patinação, o conhecimento da esplanada para a prática da patinação se dava por meio da divulgação boca a boca. O motivo da escolha do Mineirão é o ambiente e a infraestrutura, pois alegam que, em Belo Horizonte, não há outro espaço público propício a essa prática.

“Atividade familiar. Coisa de primeiro mundo. A música traz tranquilidade.” (#149, mulher, 44 anos, Esplanada, patins)

“Local muito familiar, muito saudável. Não tem bagunça, trago meu filho com tranquilidade.” (#150, mulher, 43 anos, Esplanada, patins)

“Melhor ponto de BH, a única estrutura que tem para andar de patins.” (#151, homem, 28 anos, Esplanada, patins)

Com exceção da Entrada Sul e dos Portões B e C, há patinadores espalhados por todos os espaços da esplanada, incluindo a Rampa do Desafio. O ponto de convergência, porém, são os bancos entre os Portões F e A, já que nele se concentram os membros de um grupo do facebook que, para a pesquisa, será chamado de Roller. O Roller surgiu da dissidência de membros de outro grupo de patinadores e é um espaço aberto às pessoas que amam patinar. A existência desses grupos é anterior à reforma do Mineirão, porém a construção da esplanada os fez tomar novo fôlego. Ter patins é algo primordial, já que faz parte das ações do grupo a realização de eventos, tais como aulões, piquenique temático (dia das mães, dia das crianças), tardes de manobras etc.

Sem patins não dá para participar dos eventos e esses são bacanas quando tem muita gente. Já conseguimos reunir 130 pessoas em um evento. (#31, mulher, 18 anos, Esplanada, patins e moderadora do Roller)

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Assim, quem patina na esplanada pode ser divido em dois grupos: os que são membros ou simpatizantes do Roller e os que não têm nenhuma vinculação com o grupo. De um modo geral, durante o tempo de pesquisa, aproximei-me mais da primeira categoria, isto é, dos que eram membros ou simpatizantes do grupo. Para isso, foquei a minha atenção nos Portões F e A. Se com os skatistas tive grande dificuldade de abordá-los e compreender o seu ambiente, o mesmo não ocorreu com os patinadores. Como dito anteriormente, no tópico 4.4, o fato de ter sido proibida de fazer a pesquisa, enquanto conversava com um deles, abriu meu caminho posteriormente. Afinal, na sequência dos fatos, a própria participante #31149 me apresentou como a pessoa que estava fazendo uma pesquisa sobre o grupo e o segurança não deixou. Isso gerou uma discussão, na qual me inseri. Para participar do grupo, basta ter patins e se aproximar. Há, porém, pessoas sem patins que ficam sentadas nos bancos esperando o/a amigo/a, relacionamento afetivo ou familiar patinar. Quem está patinando, de tempos em tempos, vai ao banco conversar com quem está esperando ou com algum membro do grupo que acabou de chegar. Inclusive, o acolhimento é uma das características do grupo e que faz com que as pessoas se aproximem e escolham patinar próximos ao Portão F e A.

“Tem o piso, as pessoas e o Roller se reúnem aqui. As pessoas são legais, acolheram bem.” (#46, homem, 26 anos, Esplanada, patins).

Além disso, o grupo serve para a troca de informação sobre patinação, seja na manutenção de um item, na troca de experiência sobre técnicas e estilos, na escolha de um modelo ou na possibilidade de comprar novos patins a um preço mais barato.

Nesse meio tempo, chegou uma mãe com o filho e o marido. Havia feito questionário com eles na quarta à noite. O marido foi fazer caminhada. Ela pediu no grupo uma chave para trocar a roda do filho que estava agarrando. Isso gerou uma mobilização, pois quem estava próximo não tinha. Os que

149 #31, mulher, 18 anos, Esplanada, patins. Enquanto fazia o formulário com ela, fui abordada por um dos seguranças privados do Mineirão argumentando que era proibido a realização de pesquisa naquele espaço.

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estavam andando, quando voltavam para o banco, eram perguntados. Um dos que estava sentado falou para o menino: “─ Sua roda está comida, já está precisando trocar”. (Caderno de campo, 10/05/2014, Esplanada)

Perguntei qual seria o melhor modelo de patins. Se era melhor comprar com ou sem freio. Ela e o namorado disseram que o freio não era muito bom. Primeiro, dificultava para fazer manobras do tipo cruzamento de pernas; segundo que, como o freio é atrás, o risco de cair é muito grande. De acordo com o namorado: “─ Usamos 10 maneiras diferentes para frear, menos o freio. Se você reparar aqui, ninguém tem freio.” (Caderno de campo, 10/05/2014, Esplanada)

Estou observando os patins e descobri que, no Carrefour, não dá para comprar. Alguém do grupo me falou: ─ “Patins de brinquedo não dá”. Outro membro indicou a Centauro, mas ponderou que o melhor mesmo era comprar em uma loja especializada que vive disso. Disse que, no grupo, há sempre pessoas vendendo seus patins para comprar um melhor, mais novo, mais bonito. Ele mesmo estava querendo vender o dele para comprar um de R$2.000,00. (Caderno de campo, 18/05/2014, Esplanada)

Para esse grupo, há um investimento de tempo e de dinheiro na prática da patinação. Ao mesmo tempo, há um investimento na melhora da capacidade motora demandada pela patinação.

Por fim, quase indo embora, parei no Roller. O grupo já não estava tão grande, mas seu núcleo básico ainda estava lá. Em um dos bancos havia uma mesa estendida – o evento de hoje era piquenique. Reconheci algumas pessoas da semana passada150 – que também me reconheceram: “─ E aí, hoje você trouxe a autorização?” “─ Hoje não deu problema não, né?!”. Enquanto conversava um pouco, ouvi uma pessoa dizendo: “─ Olha, tem gente nova no grupo?”. Quem perguntou foi uma das administradoras do grupo no face e que fazia mestrado em microeletrônica/UFMG. Expliquei o de que se tratava e ela logo veio dizendo: “─ Cadê os patins?”. Eu respondi que era neófita no assunto e que estava me informando antes de comprá-lo. Ela disse que a maioria das pessoas iniciou dessa forma: “─ Alguns evoluíram... outros não.... depende da dedicação. Se comprar o patins e só usar uma vez, não vai melhorar. Mas, se for aos eventos, praticar, rola.” (Caderno de campo, 18/05/2014, Esplanada)

150 Dia 10/05/2014, quando ocorreu a abordagem do segurança particular me proibindo de fazer a pesquisa.

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Inclusive para eles, patinar não é visto como uma atividade física, mas uma atividade de lazer. Enquanto tal, está inserida no tempo disponível do sujeito e relacionada a algo prazeroso, sem ter, à primeira vista, uma preocupação com a melhora ou manutenção da capacidade física do sujeito. De acordo com o estudo de Sanchez e Capell (2008) que tinha como objetivo mostrar o complexo universo das lógicas de uso e apropriação das ruas e praças de Barcelona por práticas físico-esportivas, um dos objetivos que levam patinadores a escolherem tal modalidade é o divertimento e o lazer em detrimento da saúde. A escolha pela patinação tem também relação com o consumo desse produto, seja para a progressão na prática, na escolha da modalidade ou como fator de distinção, pautado pelo valor dos patins ou acessórios utilizados.

No grupo, chamou a minha atenção uma moça que tinha patins personalizados. Na verdade, a roda dos patins acendia luzes quando ela andava. Igual tênis de criança que, quando elas pisam no chão, as luzes acendem. Foi a primeira vez que vi esse tipo de rodinhas. (Caderno de campo, 25/10/2014, Esplanada).

Na esplanada, é possível verificar indícios das seguintes modalidades: 1) fitness – o ato de patinar em si, pois não requer o conhecimento de manobras, giros, saltos etc.; 2) freestyle – mistura entre o ato de patinar e a utilização de manobras, giros, saltos, mudança de direção; 3) slalom – pratica que consiste em fazer um zigzag por pequenos cones, dispostos em linha reta e que distam 50cm, 80cm ou 120cm entre si; 4) agressive/street – consiste na realização de saltos, giros e deslizes sobre corrimões, bancos, escadas ou qualquer outro obstáculo que estiver no caminho; 5) downhill – descer ladeiras e rampas; 6) artístico – realização de movimentos, giros, manobras e equilíbrios ao ritmo de uma música. Todas as modalidades são executadas próximas aos Portões F e A, com exceção do downhill que é executado na Rampa do Desafio. As vivências ocorrem de forma individual ou coletiva. Coletivamente, algumas brincadeiras são criadas, tais como: sair em grupo patinando em velocidade, desafio de subir as escadas com patins, pegador com patins e, até mesmo, descer a Rampa do Desafio.

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O agressive/street é praticado nas quinas dos bancos. Durante todo o tempo da pesquisa, não percebi nenhuma mulher praticando-o. Os patinadores não usam nenhum tipo de equipamento de segurança, e a queda e arranhões é algo inerente dessa modalidade.

“O espaço é plano para a corrida e para os patins. Tem as quinas que são boas.” (#26, homem, 26 anos, Esplanada, patins)

Havia um grupo próximo que estava praticando uma modalidade que é se equilibrar na quina. “─ Acho muito legal, mas que machuca muito”, comentou a entrevistada #31. (Caderno de campo, 10/05/2014, Esplanada)

Geralmente, os praticantes do slalom levam seus minicones e armam o circuito – uma ou duas pistas. O equipamento fica montado e se torna um atrativo para crianças e adultos que queiram treinar ou simplesmente vivenciar o desafio de fazer o zigzag sem esbarrar em nenhum dos cones. Por fim, o downhill é o menos praticado. A frequência de patinadores na Rampa do Desafio é muito variável. Alguns são formados pelos próprios membros do Roller, embora tenham pessoas que vão exclusivamente para descer a rampa. Nenhum dos participantes da pesquisa relatou ser patinador/a profissional. Todos/as se consideravam amadores/as. Algumas pessoas relataram que, de crianças, andavam de patins e que a esplanada permitiu que retomassem essa prática sozinhas ou acompanhadas por amigas/os, relacionamento afetivo e filho/a.

Perguntei para ela e me respondeu que aprendeu a patinar na esplanada. Seu filho complementou que ela já andou quando pequena, mas ela retrucou que muito pouco. Aprendeu mesmo a patinar no Mineirão. (Caderno de campo, 07/05/2014, Esplanada)

Entretanto, havia pessoas que estavam aprendendo de adultas. Algumas aprendiam individualmente, outras contratavam um professor para ensinar a elas. As aulas não ocorrem de maneira explícita ou institucionalizada, isto é, não existem turmas e horários fixos. Há a contratação de professores particulares. Durante a

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pesquisa, conheci dois professores: um que era membro do Roller e outro que atuava em uma academia da região.

Ele atua em uma academia da Lagoa. Disse-me que já andava de patins e que uma vez suas alunas da academia o viram andando no Mineirão e perguntaram como é que faziam para aprender. Foi aí que teve a ideia de também dar aula de patinação. Disse que grande parte dos seus alunos é da academia, mas, de vez em quando, consegue um da própria esplanada. Afirmou que a maioria tenta aprender sozinho, poucos são os que procuram por aula, permanecendo, em média, por três ou quatro aulas. (Caderno de campo, 07/05/2014, Esplanada)

Durante a pesquisa de campo, percebi que participantes entravam e saiam do grupo. Isso ficou mais evidente depois da reabertura do Mineirão pós- Copa, já que muitas pessoas com as quais havia conversado antes de o estádio receber o mundial, não estavam mais presentes após o mundial. Em sua pesquisa, Sanchez e Capell (2008) também constataram que os patinadores produzem solidariedades mais ou menos difusas que são feitas e desfeitas dentro de uma temporalidade não definida. Os autores analisaram esse dado tomando como base o conceito das relações em rede, isto é, os indivíduos formam redes de sociabilidades de acordo com seus gostos e, com isso, apresentam um caráter efêmero e mutante. Os autores dizem que esse fato pode ser mais bem analisado tomando como base os fóruns desses grupos na internet. Nestes, é possível ser espectador e protagonistas das ações do grupo, como também transcender as conversas, discutindo temas domésticos e viagens entre outros. Durante o período de coleta de dados, embora não tenha acompanhado o facebook do grupo, percebi que grande parte das ações era organizada por ele. Além disso, as opiniões expressas na rede ganhavam as conversas presenciais, como apontado no trecho abaixo do caderno de campo.

Fui ao Restaurante do Pão de Queijo151. Lá estavam alguns membros do Roller. Era em torno de seis (três homens e três mulheres) e estavam esperando o lanche chegar. Enquanto esperava meu lanche, ouvia a conversa do grupo. Falavam sobre dieta, curso de fotografia, viagens e também do grupo.

151 Nome fictício.

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Um deles estava fazendo a nova logomarca do grupo, parece que o desenho ou fotografia utilizaria os pórticos do Mineirão com o traçado da lagoa. Sobre o grupo, também falaram sobre um dos membros em tom de crítica. Parece que no facebook o grupo está morninho e esse sujeito está querendo aparecer, pois, com os mais antigos, não conversa tanto quanto com os novatos. Além disso, parece que está querendo formar outra comunidade. Um dos homens disse: ─ Também pudera, pois no Roller ele é apenas mais um patinador, mas no grupo dele, ele será O Patinador. (Caderno de campo, 26/08/2015, Esplanada)

Durante os quase três meses em que o Mineirão ficou fechado para a Copa, alguns patinadores recorreram a outros espaços da cidade, entre eles, o estacionamento coberto de um hipermercado da região, a Lagoa da Pampulha e a Cidade Administrativa.

Durante a conversa com os outros membros surgiu o assunto do fechamento da Lagoa aos finais de semana para a prática de atividade física. Alguns se posicionaram favoráveis a patinar lá. Também, com o fechamento da esplanada para a Copa, muitos disseram que iam andar onde desse para andar, sendo os mais citados a Cidade Administrativa e o estacionamento do Carrefour Pampulha para dias de chuva. (Caderno de campo, 18/05/2014, Esplanada)

Embora a Cidade Administrativa tenha uma área ampla para patinar e apresente uma paisagem muito mais aprazível que a do Mineirão, o piso de asfalto não é considerado tão bom para os patins. Além disso, é considerada distante152 e nem sempre está aberta ao público, já que, por ser sede do governo estadual, sofre um forte esquema de segurança. Nesse sentido, há o reconhecimento, por parte das pessoas que vão patinar no Complexo Mineirão, de que ali é um dos principais espaços gratuitos de lazer de Belo Horizonte e que, de certa maneira, o investimento gasto na reforma teve um sentido mais amplo, inclusive, dando reconhecimento e legitimidade à região da Pampulha. Além disso, há o discurso em construção de que o Complexo Mineirão entrou no rol das grandes infraestruturas urbanas de nível internacional.

“Oportunidade de lazer em BH sem pagar nada. Lugar organizado.” (#53, homem, 30 anos, patins)

152 A distância entre o Mineirão e a Cidade Administrativa é de 11 km.

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“Investimento que valeu a pena. Agora dá para trazer pessoas, andar de bicicleta, patins, criança, skate. Tem lanchonete para comer algo.” (#273, mulher, 24 anos, patins, moradora de Contagem)

“Área de lazer boa para a população. E é de graça. BH ganhou mais uma área boa de lazer.” (#148, homem, 41 anos, esperando a filha e a mulher patinarem)

“Lazer de final de semana. É a praia do mineiro, não há outro lugar.” (#150, mulher, 43 anos, patins).

“Para mim é o pilar da Pampulha. É um marco da Pampulha. Pensar na Pampulha é pensar no Mineirão. Sinto orgulho da Pampulha por conta dele. Passei a estudar no colégio Bernoulli [região centro-sul] e, quando as meninas me perguntaram onde eu morava, disse que era na Pampulha. Elas questionavam... na Pampulha? E eu respondia: “─ Sim, moro perto do Mineirão”. Então, elas afirmaram: “─ Aah, tá, sabemos onde você mora, então”. (#219, mulher, 17 anos, Esplanada, patins)

“Ofereceu à cidade oportunidade de espaço que era obsoleto. Espaço que todos podem frequentar e participar.” (#150, mulher, 43 anos, Esplanada, patins)

“Coisa de primeiro mundo. Nunca viajei para fora, mas quem viaja fala que aqui é um lazer completo. Não existe no mundo e no Brasil lugar espaçoso, amplo e com infraestrutura: banheiro, piso, água. Não precisa sair daqui, ir para fora.” (#149, mulher, 44 anos, Esplanada, patins)

Novamente, percebemos nas falas que a esplanada se tornou um espaço disponível à existência de outras práticas corporais físico-esportivas que, por sua vez, existiam de forma esparsa, tanto pela falta de incentivo, quanto de espaços disponíveis e adequados. Dessa forma, a esplanada contribui para o aumento do repertório do lazer físico-esportivo. Mesmo não sendo considerado um espaço público na essência do termo, os usos e as formas de apropriação desse espaço fazem dele um lugar de encontro e convivência, ao mesmo tempo em que incide na qualidade de vida dos sujeitos.

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5.3 Um caminho a melhorar

Os relatos, as descrições e as falas trazidas ao longo do item anterior demonstram que o Complexo Mineirão, no espaço da esplanada, trouxe uma possibilidade de desenvolvimento de várias práticas corporais, bem como a possibilidade do encontro, da socialização, da fruição do lazer. Entretanto, em alguns aspectos, o uso da esplanada ainda não é satisfatório. Depois que o sol se põe, isto é, por volta das 18:30 horas, apenas os espaços compreendidos entre a Entrada Norte e Entrada Sul, passando pelos portões F, A, B e C, estão ocupados. Os portões D e E ficam vazios, o que torna o espaço ermo.

18:30h - o movimento nos portões de trás já havia terminado, isto é, não havia mais ninguém nos portões D, E, exceto os visitantes que dão a volta no estádio para (re)conhecê-lo. Nesse horário, o movimento já estava mais concentrado no portão B e na Entrada Norte. (Caderno de campo, 15/11/2013, Esplanada)

Os portões C, D e E estavam vazios. Era a parte mais escura e mais vazia do estádio, não havendo ninguém fixo. Apenas um casal que estava fazendo caminhada e passava por lá. (Caderno de campo, 07/05/2014, Esplanada)

Continuando a volta no sentido horário, levei um susto com dois meninos de bicicleta, entre os Portões E e D. Eles estavam em uma área de sombra, sendo difícil localizá-los à primeira vista. Não estavam fazendo nada de mais, apenas estavam parados, encostados na grade e conversando. A penumbra, porém, não me permitiu vê-los. Mais tarde, percebi que eles estavam esperando um casal que estava ficando ali próximo. (Caderno de campo, 13/09/2014, Esplanada)

Talvez, essa região fique desocupada, porque grande parte das pessoas que patinam ou andam de skate procuram ficar próximas aos Portões A e B, respectivamente. Além disso, as lojas estão localizadas próximas à Entrada Norte e à Entrada Sul. Por fim, nos Portões D e E não há nenhum banco de cimento para que as pessoas possam sentar ou fazer de obstáculos para as suas práticas. Ao mesmo tempo, não percebemos, por parte da Minas Arena, um desejo real de animação da esplanada e nem na sua transformação em um espaço público, uma vez que investem muito pouco na divulgação do espaço nos meios de comunicação

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e em uma programação cultural. Seu esforço refere-se à manutenção do Complexo Mineirão e ao aluguel para eventos.

“Temos conseguido mostrar às pessoas que o estádio não é só para futebol. Já tivemos no estádio, shows, convenções, festas de aniversários e encontro de empresas.” (Entrevistado D)

No que se refere ao uso da esplanada, verifica-se que há um hiato entre o que se planejou e o que está sendo executado.

“Esse espaço que tem ali em baixo que na Copa funcionou como vila da mídia e funciona hoje como estacionamento. Na verdade, a gente projetou um minishopping. Ali em baixo tem 5.000 metros de área comercial e é onde fizemos a proposta de fazer uma espécie de mercado central. No legado isso poderia ser show, com um monte de restaurantes, um lugar para vender coisas para turistas, que não existe. Fui lá com os alemães e passei vergonha, o cara teve que comer Pipoca Guri. Então é triste. Por exemplo, o estádio de uma cidade na África virou um point, porque a cidade não tem espaço público. Ele não é usado enquanto estádio de futebol, porque lá, eles gostam mesmo é de rúgbi. Esse estádio é perto do de rúgbi, como se fosse o Mineirinho, e ele lota, já que fazem todos os pubs, botecos, lanchonetes, restaurantes na esplanada do estádio. E lá você ainda pega um elevadorzinho para visitar o estádio, passando por cima do arco dele. É incrível! Aqui eu acho que a Minas Arena, em off, tinha que chamar uma empresa profissional de gestão de estádio, uma empresa americana sabe, de gestão de arena esportiva. Porque a gente visitou estádio na África, na Europa, nos EUA e tal e, nos EUA, o esporte é uma coisa tão rentável. Os caras ganham em tudo. Eles vendem boné, camiseta, tem maquininha vendendo chocolate, tem restaurante com garçom te servindo, no próprio estádio eles fazem um jantar com um abajourzinho e o cara assistindo ao jogo de basquete. Então, em termos da profissionalização da gestão do esporte, que está longe disso com os clubes todos falindo, não entendo como não conseguem ganhar dinheiro tendo os torcedores fanáticos que têm. Então, essa parte da profissionalização do esporte tem um pouco a ver com esse amadorismo de gestão de arenas esportiva. Eu fui ao estádio do Dallas Cowboy que parecia um shopping, o estádio era um shopping. Aliás, com uma

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tela tão gigantesca que ninguém olhava para o campo... E era assim, um dia tinha jogo de futebol americano, dois dias depois holliday on ice, três dias depois show da Madona, quatro dias depois show de Monsters Trucks, cinco dias depois... era um estádio muito ocupado. A gente está longe disso, estamos como você falou, mais próximos dos estádios europeus, é o nosso padrão, vende camiseta e tal, mas não tem todo mundo comendo durante os jogos, 100% do tempo as mais variadas cozinhas.” (Entrevistado B)

“Oh, a esplanada, nós temos algumas coisas que precisam realmente melhorar e a gente propõe muito isso. A primeira coisa, nós temos que alugar as lojas. Temos que alugar as lojas, mas o tempo se mostrou ainda um mau negócio, tanto que nós temos só três lojas alugadas das 16. Então, nós temos que alugar o restaurante. A vista do restaurante é maravilhosa, mas ainda se mostrou um mau negócio. Então, não aparece a pessoa e nós não podemos obrigar ninguém e muito menos dar de graça. Não aparece ninguém. Então, o primeiro movimento seria o aluguel das lojas que é o conceito do estádio. E, a partir daí, ir desenvolvendo algumas coisas. Mas, como eu disse, as pessoas querem usar aqui no jeitinho, não querem pegar uma licença, não querem pagar um ECAD, não querem... entendeu? Querem fazer no jeitinho, com o menor custo e tal, e nós não podemos permitir. Evento pequeno aqui é prejuízo para nós, porque a limpeza é nossa, a operação é nossa, o custo de energia é nosso, o custo de água é nosso, entendeu? Então, a gente tenta, pelo menos, empatar, mas o empreendedor não quer nem empatar, ele quer é de graça e de preferência ilegal. Não quer legalizar o evento, porque é difícil, porque tem que legalizar com o bombeiro, com o juizado de menores, não é uma coisa fácil de fazer, não é muito fácil de fazer, é algo que não tem muito atrativo. Outro problema da esplanada é que ela é muito... mas aí é um problema de arquitetura mesmo, ela é muito ampla e é cimento. Eu acho o cimento muito carregado, e aquelas árvores não crescem. Isso gera um outro problema.” (Entrevistado C)

De certa maneira, todo o uso da esplanada foi pensando de modo a atrair o usuário dentro de um processo de consumo de bens e mercadorias. Assim, de acordo com Oléias (1999, p. 69), “[...] o poder do capital apresenta o modelo de Estado neoliberal, onde o marco central é tornar privado e submeter ao interesse do mercado qualquer atividade da vida social”. Dessa maneira, cada vez mais é próximo o diálogo entre Estado e iniciativa privada de modo

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que, se antes era o Estado o fomentador de políticas públicas de esporte e lazer, agora é a iniciativa privada que determina o que será veiculado em termos de espetáculos e eventos. Entretanto, o que está se consolidando na esplanada é um uso não planejado previamente em que o consumo dos bens e serviços oferecidos não é o fator principal. Ademais, nem todos se sentem contemplados com o que o espaço oferece. Assim, embora satisfeitos com a esplanada, todos os grupos de usuários têm sugestões para um melhor aproveitamento do espaço, de modo a atender suas necessidades. Por parte dos skatistas quantos praticantes de skate acham que o espaço poderia ser mais bem aproveitado. Alguns sugerem a instalação de objetos que tenham relação com a própria modalidade, tais como: rampa e bowl. Outros ampliam as sugestões para o horário de funcionamento da esplanada, a construção e a utilização de outros equipamentos.

Disseram que era o horário de fechar não era bom. Questionei, então, qual seria um horário bom de fechar e #269 respondeu que às 23h. Já #270 disse que deveria ficar aberto 24 horas. “─ 24 horas não, daria muito trabalho, eles não teriam o controle e poderia vir gente para cá fazer outras coisas. 23h é um bom horário”, argumentou #269. (Caderno de campo, 25/10/2014, Esplanada, conversa com #269 e #270153)

“Deveria ter uma piscina ou então deixar o chafariz ligado para a gente poder se refrescar na água. Também poderia liberar o estacionamento interno para a prática do skate, já que possui sombra e quebra-molas para saltar. Também poderiam construir uma rampa de skate semelhante à do Parque das Mangabeiras.” (#303, 13 anos, Esplanada, skate).

“A infraestrutura proporciona o lazer, porém acho que faltam equipamentos de ginástica e o bowl para esportes radicais.” (#28, homem, 40 anos, Esplanada)

Para os/as patinadores/as falta loja especializada e também a possibilidade de aluguel do material para atender aos que estão de passagem pelo Mineirão.

153 #269 e #270 - homem, 15 anos, morador de Belo Horizonte.

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[1] Esse pessoal não sabe ganhar dinheiro. Falta divulgação. Se a Trexart, US Caps, Centauro154 abrissem aqui, iam ganhar rios de dinheiro. Uma loja para vender material, tênis... [4] Principalmente parafuso. Disse uma mulher que estava patinando e entrou na conversa apenas para dar essa opinião. [1] – falta divulgação. Novamente intervi e disse que essas lojas já estão sabendo que as pessoas estão indo ao Mineirão. Contei o caso que ouvi quando fui comprar o meu patins na US Caps. O vendedor havia dito que vende, em média, 30 pares de patins por final de semana e todas as pessoas estão comprando para andar no Mineirão. Teve um final de semana que vendeu 50. [5] 50 pares!! É muita gente. Acho que vou alugar patins. Tenho vontade de trazer, abrir o porta malas do carro lá fora para alugar. Já fiz isso e dá dinheiro. Perguntei como fazia e ele continuou. [5] Já cheguei a voltar para casa com R$1.500,00... R$2.000,00. Só em uma noite, lá em Fortaleza. Tinha 70 pares, cobrava R$15,00 a hora. Não ficava com patins parado, uma pessoa já andava e quando chegava, já tinha gente esperando. Quando encerrava, dava nó nos cadarços juntando os pares e colocava tudo no porta mala do carro. Acho que vou fazer isso de novo. (Caderno de campo, 13/09/2014, Esplanada)

Um grupo de visitantes que estava fazendo o reconhecimento do estádio para o jogo de amanhã parou no restaurante e perguntou: "─ Tem skate aí para alugar?" O atendente respondeu que não e o rapaz lamentou. Disse que se tivesse skate para alugar seria da hora! (Caderno de campo, 09/11/2013, Esplanada)

Há também os que sugerem que haja mesas fora das lojas para tomar um café, conversar, contemplar a paisagem.

É um espaço mal aproveitado, imagina isso aqui à tarde, com umas mesinhas e uma cervejinha? [apontando para o espaço entre os Portões A e B] Mas o brasileiro não sabe explorar seus pontos turísticos e aqui é mal explorado. No exterior, qualquer lugar mais ou menos eles colocam uma mesinha, fazem um café e vendem a vista, o local. Aqui não. As pessoas têm medo de entrar, não sabem se está aberto ou fechado. Tem aqueles cones nos portões, pra quê? Outro dia, um casal me perguntou: ─ “É aqui que entra? Está aberto?”. Eles não sabiam, tiveram receio de entrar (Caderno de campo, 08/09/2014, Esplanada).

Por fim, há os que sugerem a implantação do Programa Academia a Céu Aberto155.

154 Trexart e US Caps são lojas especializadas em skate e patinação. A Centauro é uma loja que oferece material de mais modalidades esportivas.

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“Deveriam promover uma Academia da Cidade, porém o acesso é restrito para quem mora longe” (#43, mulher, 52 anos, Esplanada).

Com base no descrito acima, há visões distintas sobre a função do Mineirão e sua possibilidade de utilização. As falas e relatos evidenciam melhoras pontuais que fomentam as atividades de maneira isoladas em si mesmo, como também a criação de possibilidades de consumo. Além disso, percebemos a ausência de uma política de uso definida para o espaço. Assim, percebemos a carência de uma política de animação na esplanada do Mineirão, com a proposição democrática de usos do espaço, assim como a realização de eventos que promovam a acessibilidade ao Mineirão. De acordo com Serpa (2004), o conceito de acessibilidade vai além de garantir a entrada física aos espaços e equipamentos abertos de uso coletivo. Entretanto, o autor argumenta que, na cidade contemporânea, um dos limitadores do acesso generalizado e irrestrito se dá pela diferença do capital escolar. Dessa forma, nos espaços públicos e de uso coletivo, a acessibilidade é definida, sobretudo, simbolicamente, acentuada, também, pela sacralidade com que alguns equipamentos são revestidos.

155 A Academia a Céu Aberto é um programa da Secretaria Municipal de Esporte e Lazer (SMEL) de Belo Horizonte, lançado em 2009. Inserida em praças e parques da capital, atualmente o Programa conta com 326 academias, instaladas nas nove regionais da cidade. A previsão é que, até o final de 2016, sejam instaladas 492 academias em Belo Horizonte, para que cada bairro tenha, pelo menos, uma. Os equipamentos das Academias a Céu Aberto são aparelhos de ginástica adaptados e sem peso, ou seja, o usuário utiliza o peso do próprio corpo para exercer a atividade física. O discurso vinculado ao Programa consiste em universalizar o acesso ao esporte e ao lazer por meio do desenvolvimento de políticas públicas inclusivas que garantam a participação de todos e promovam a qualidade de vida urbana, contribuindo para a consolidação de ambientes sociais saudáveis, educativos e seguros. Complementando a informação acima, a partir do Programa, é oferecida atividade física gratuita como forma de gerar qualidade de vida para o cidadão e fazer com que a comunidade utilize mais os espaços púbicos. Já as Academias da Cidade funcionam em vários pontos da cidade em todas as regionais, normalmente nos Centros de Referência e Assistência Social (CRAS). Com média de 400 usuários em cada unidade, as academias funcionam de segunda a sábado em horários variados na parte da manhã, tarde e noite. As atividades são gratuitas e qualquer pessoa, preferencialmente acima de 18 anos, pode participar das atividades, basta preencher o cadastro e fazer a avaliação física com o professor na academia mais próxima. Vale ressaltar as diferentes denominações que esse Programa recebe em nosso País, como: Academia a Céu Aberto, Academias ao Ar Livre, Academias da Terceira Idade, Academias da Saúde entre outros. Essa diferença se deve pelo fato de que cada Município implanta a política conforme suas secretarias e formas de financiamento. Com isso, em Belo Horizonte, muitas vezes, essa política é confundida com o Programa Academia da Cidade. Para maiores informações, consultar: http://portalpbh.pbh.gov.br.

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Visto assim, acessibilidade e alteridade têm uma dimensão de classe evidente, que atua na territorialização (e, na maior parte dos casos, na privatização) dos espaços públicos urbanos (SERPA, 2004, p. 26).

É nesse sentido que voltamos a Marcellino (2006) quando argumenta existirem barreiras para a vivência do lazer. Ainda assim, porém, o autor entende que o lazer humaniza a cidade e pode ser visto como um fator de democratização social e do espaço, uma vez que possibilita o encontro, a relação entre os cidadãos, dentro de uma função pública da cidade. Para isso, de acordo com Marcellino (1990), é necessário que haja uma ampliação do entendimento do que é o lazer. O autor aponta que comumente o lazer é entendido de forma parcial e limitada, associado a experiências individuais e restrito a determinadas atividades, geralmente no âmbito das práticas corporais. Como consequência, os valores mais atribuídos ao lazer são o divertimento e o descanso, esquecendo-se do desenvolvimento pessoal e social, no qual o lazer, enquanto objeto e veículo de educação, pode propiciar. Ademais, o autor defende que o lazer deveria ser visto como um instrumento de mobilização e de participação cultural que amplie a pluralidade crítica do sujeito em oposição à indústria de entretenimento de massa ou o “[...] monólogo dos meios de comunicação audiovisuais” (MARCELLINO, 1990, p. 206). Nesse contexto, Marcellino (1990, p. 206) defende que o lazer

[...] não se constitua apenas a oportunidade de recuperação da força de trabalho, ou que possa ser caracterizado como instância de consumo alienado, ou “válvula de escape”, que ajude a manter o quadro social injusto. [...] na esfera da Administração Pública, é preciso que seja levado em conta, mas é fundamental que diferencie sua atuação das demais iniciativas, desde as espontâneas, até as da chamada “indústria cultural.”

Assim, de acordo com Marcellino (1995), precisamos transformar a concepção abstrata de lazer, isto é, do fazer em si mesmo de caráter funcionalista, em uma concepção de especificidade concreta, ou seja, na qual haja uma participação efetiva das pessoas, instigando, assim, a construção de bases para a cidadania, de participação cultural crítica e criativa de sujeitos historicamente situados, de modo a diminuir a exclusão social, pautada na acessibilidade aos

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espaços e equipamentos de lazer e aos bens culturais e na valorização do valor de uso em detrimento do valor de troca. Assim, no caso do Mineirão, deveria haver um amplo diálogo entre as partes envolvidas: o órgão administrador (Minas Arena), o poder público que tem a responsabilidade sobre o equipamento e os usuários – representados por uma associação de bairros ou por algum grupo organizado, de maneira que as reinvindicações sejam dialogadas e a intervenção ocorra no sentido de valorizar o lúdico, a festa, o encontro, a sociabilidade e, não, que o equipamento atinja o status de Novo Eldorado (LAGES et al., 2015). A esplanada do Mineirão configura-se como um riquíssimo espaço de lazer em Belo Horizonte e, a partir de um amplo diálogo na construção de uma política de uso, comprometida com valores que propiciem a educação, a mobilização e a participação cultural, poderiam ganhar todos: a população, a iniciativa privada e o poder público.

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6 MINHA SEGUNDA CASA: USOS E APROPRIAÇÕES DO MINEIRÃO PÓS- REFORMA PELOS TORCEDORES E TORCEDORAS

No capítulo anterior, analisei os dados coletados durante a Situação Esplanada. Vimos que a esplanada está se constituindo como um espaço de lazer para a cidade de Belo Horizonte, ainda que os gestores não tenham conseguido fazer dela um centro comercial dinâmico como constava no projeto inicial. Neste capítulo, apresento o processo de constituição dos usos e apropriações do estádio pelos torcedores e torcedoras do Cruzeiro, dialogando também com os entrevistados, trazendo falas dos torcedores/as e trechos do caderno de campo. Diferentemente da Situação Esplanada, a Situação Futebol é marcada por um conhecimento prévio do torcedor/a em relação ao estádio, aos usos que eram feitos antes da reforma à expectativa da reforma e às mudanças trazidas por ela. Dessa forma, veremos que, na situação Futebol, o percurso da constituição dos usos ainda está sendo traçado. Inicio apresentando a logística de funcionamento do estádio. Depois, aprofundo na temática dos torcedores: a opinião sobre a reforma, a relação que tinham com o estádio antes da reforma, os novos usos externo e o espaço da arquibancada.

6.1 A logística de funcionamento do Mineirão pós-reforma em dias de jogo

Em dias de jogos, o Complexo Mineirão apresenta outra dinâmica. Os portões da esplanada são abertos, geralmente, duas horas antes do horário marcado para a partida, exclusivamente para as pessoas que possuem ingresso156.

156 Até meados de 2013, todas as pessoas tinham acesso à esplanada em dias de jogo, independentemente se tinham ou não ingresso. Depois, o acesso ficou restrito às pessoas que portavam um ingresso. Entretanto, nesse momento, não se faz a sua validação, servindo apenas como controle visual.

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De um modo geral, porém, isso não é visto de forma negativa pelos usuários pesquisados, tanto na situação Futebol, quanto na situação Esplanada. No que tange aos pesquisados na Situação Futebol, como a maioria frequenta o equipamento apenas em dias de jogo, não há, por parte deles, uma preocupação se a esplanada deveria ou não ficar aberta para outros usos. Dessa forma, para esse público, essa temática é irrelevante. Já, para os pesquisados na situação Esplanada, o fechamento da mesma em dias de jogos é algo compreensível e até necessário, uma vez que 63,2% concordam com essa conduta; 7,9% acham que a esplanada poderia abrir apenas um turno; 26,3% pensam que a esplanada deveria atender a ambos os públicos concomitantemente e 2,6% não têm uma opinião formada sobre o fato.

“Concordo que feche. Para oferecer um evento, é necessário segurança. Fazemos uma varredura no estádio no dia do jogo. Para entrar, é necessário ter credencial. Isso favorece a segurança, pois não sabemos da índole de quem está aqui e não dá para julgar pela aparência do sujeito. Então, o melhor é fichar. Porém, para quem vem sempre é ruim, pois está acostumado e se vê obrigado a acompanhar o calendário do futebol.” (#89, homem, 30 anos, Esplanada, bicicleta. Tem o Mineirão como trabalho e lazer)

“Concordo que feche. Sempre tem briga. Não sabem se comportar em espaço público. É importante fechar.” (#177, homem, 28 anos, Esplanada, patins)

“Acho compreensível. Temos a semana inteira. Fica mais organizado. Domingo a gente faz outras coisas.” (#180, homem, 16 anos, Esplanada, skate)

“Poderia fechar apenas um turno [quando é futebol], o pessoal podia curtir a parte da manhã... O show ainda vai, pois tem que montar o palco.” (#184, homem, 29 anos, Esplanada, skate)

“Acho ruim fechar, mas, mesmo se fosse aberto em dia de jogo, nós não viríamos aqui.” (#145, homem, 26 anos, Esplanada, patins)

“Acho péssimo fechar. Pensei em alugar uma loja aqui do estádio. Porém não aluguei, já que não pode funcionar em dias de jogos. Como o cliente vai entender que em dia de jogo não poderá entrar? Como eles estão pensando, só

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poderá ter lojas de comida.” (#83, homem, 36 anos, Esplanada, utiliza o espaço para desenvolver aulas de desenvolvimento motor)

“Não precisava fechar. Regra idiota, exceto quando o evento for na esplanada.” (#54, homem, Esplanada, patins)

“Não concordo em fechar. Não precisava fechar o dia inteiro. Não faz sentido fechar o museu em dia de jogo. O torcedor chega cedo, podia visitar. Perde dinheiro. O estádio, até concordo, por uma questão de segurança.” (#360, homem, 31 anos, Esplanada, visitante)

“A Esplanada é plana, ampla e segura. Sou contra os jogos de domingo só para ter o espaço.” (#47, mulher, 35 anos, Esplanada)

Assim, pelas falas presentes, percebemos que os que concordam que haja o fechamento da esplanada para uso exclusivo do futebol trazem uma percepção que não deveria haver mistura entre os torcedores e os usuários desse espaço, já que argumentam que os torcedores têm uma índole suspeitosa e não sabem se comportar em locais públicos. Além disso, a esplanada é utilizada por pessoas que torcem por várias equipes brasileiras. Assim, o encontro entre grupos de torcedores diferentes, a rivalidade existente entre as torcidas e a própria tensão/excitação provocada pelo jogo poderia gerar transtornos. Daí o reconhecimento da necessidade de tornar o espaço monofuncional, pelo menos, em determinado período de tempo. Parte desse entendimento foi construído tendo como fundamento o fato de o estádio ser o local, socialmente aceito, onde haveria uma frouxidão das regras sociais (ELIAS, 1992; DAOLIO, 1997; PIMENTA, 1997). Os torcedores tornavam-se partícipes do jogo, não apenas nas suas manifestações individuais, mas, principalmente, nas manifestações coletivas. Isto é, participavam do jogo com suas alegorias, coreografias e cânticos que variavam entre apoio à equipe, desqualificação do adversário e provocação à ordem vigente (TOLEDO, 1993). Além disso, a multidão produzia uma figura amorfa que facilitava o anonimato das pessoas. Desde o surgimento do EDT, ações têm sido realizadas para mudar o comportamento dos torcedores dentro do estádio. Ainda assim, na sociedade, o entendimento do torcedor, enquanto ser violento e baderneiro, é atualizado,

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principalmente, em dias de jogos com grande rivalidade entre as torcidas organizadas, já que, comumente, são registrados atos de violência, cujos motivos perpassam ao futebol. Ademais, para algumas pessoas ainda permanece o entendimento de que futebol não é cultura. Entre os que não concordam com o fechamento, há os que têm uma visão mais empresarial, isto é, veem o Complexo Mineirão como fonte de recurso, tanto para o próprio negócio, quanto para o entretenimento do torcedor, aproximando-se da tendência atual do mercado de gestão de estádios esportivos. E há os que, pela falta de espaços públicos em Belo Horizonte com tais características, não gostariam de abrir mão. No entanto, na visão da Minas Arena, deixar a esplanada aberta antes do jogo para que todos tenham acesso e possam desenvolver suas práticas cotidianas dificultaria a operação do estádio para o jogo em si.

“Não pode. Não pode pelo seguinte, a gente faz... Aí entra a questão da limpeza, entra a questão... A gente tem o verificador independente que olha tudo isso. É um fiscal permanente nosso que olha... Então, entra a questão da limpeza. A gente começa a limpar no dia anterior, mas a esplanada e as áreas públicas a gente só limpa no dia do evento, por isso que fecha. Tem que estar com tudo limpo, não podemos ter sujeira, nós temos que estar com tudo gradeado, porque, se eu deixar aberto, essas grades na hora do jogo estarão todas desarranjadas. O nosso pessoal da limpeza já cria problema com as grades, imagina esse público. Vai chegar uma hora em que vou proibir a limpeza também, ‘tira a mão’. Limpeza, abastecimento de bar, proíbo isso tudo faltando cinco horas para abrir o portão. Eu proíbo isso tudo. Porque, depois, com tudo pronto, tudo fechado, demarcado, você vai percorrer o estádio e está tudo aberto, tudo fora do lugar, as grades tudo... Entendeu? Então, o trabalho é muito grande. Por exemplo, o descarregamento de carga lá na doca, cinco horas antes, o caminhão pode parar e pegar o que quiser lá, porque a doca é onde nós recebemos o nosso prestador de serviço, nossos terceirizados, onde faz a chamada, conferência de efetivo etc, etc, etc. Se ali tiver com gelo, molhado com água, sujo, o ambiente fétido, etc, então nós vamos receber quem vai trabalhar pra gente, nós vamos recebê-lo mal, então a gente procura minimizar isso, mantendo o prazo. Se cair água de gelo, derreter e tal, dá tempo de limpar, enxugar. Tudo tem um porquê, nada é por acaso, não. E

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esse momento, esse dia, é o dia em que os caminhões de gradeamento circulam para baixo e para cima carregando grade. Por isso que não pode correr o risco de ter um conflito ou um acidente envolvendo... aí fecha o dia inteirinho, fica só o Museu aberto até determinado horário, porque a visitação lá embaixo é... limpa vestiário, limpa corredor, limpa campo e daí um pouquinho você abre para a visitação, aí fica sujo tudo de novo.” (Entrevistado C)

Na fala acima, percebemos que há uma preocupação exaustiva com a limpeza, a segurança e o risco de acidentes. Assim, há o entendimento de que é preferível prevenir a enfrentar as possíveis consequências. Uma das justificativas é o fato de se tratar de uma PPP e, como tal, qualquer ocorrência é passível de multa e corte de repasse.

“O estádio, como eu disse, tem um caderno de responsabilidades para cumprir. As regras são essas, se estiverem dentro delas, é possível fazer. Porque, fora delas, é preferível não ter. Aqui é preferível não ter, porque aqui a gente tem um contrato de PPP e um sistema de avaliação que multiplica por 1 ou 0. Tudo multiplicado por 0 é 0. Esse zero corresponde ao não repasse do recurso que tem que ser repassado, entendeu? Então, tudo é dependente. Tem multa e a multa é pecuniária, sem grau de recursos. Então, ou paga ou paga, não tem conversa isso. Por exemplo, uma infecção intestinal aqui no estádio, ela gera de cara, sem direito a recurso, uma conta de 16 milhões de reais hoje, para a Minas Arena. De cara. Uma infecção intestinal, bastam cinco ou seis pessoas comprovarem e apresentarem a mesma deformidade, isso vira problema de saúde pública. E um problema de saúde pública é uma multa de 16 milhões. 16 milhões nós estamos quebrados, nós estamos fora do mercado.” (Entrevistado C)

A reforma do Mineirão trouxe uma nova maneira de gerenciá-lo, passando a ser visto como uma empresa. Enquanto empresa, o estádio passa a exercer um papel ativo na busca do capital, tornando-se um agente econômico.

Agente econômico que atua no contexto de um mercado e que encontra neste mercado a regra e o modelo do planejamento e execução de suas ações. Agir estrategicamente, agir empresarialmente significa, antes de mais nada, ter como horizonte o mercado, tomar decisões a partir das informações e expectativas geradas no e pelo mercado (VAINER, 2013, p. 86).

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Assim, se antes o estádio era um bem público, de administração pública e um espaço público, na atualidade, ele tem uma função pública, administrada pela iniciativa privada, propiciado pela parceria público-privada.

A expressão privado, apesar de uma ambiguidade permanentemente acionada, não se refere a interesses, indivíduos ou grupos privados em geral; tampouco remete ao privado enquanto esfera da vida social, em que estaria associada a ideia de particular, íntimo, pessoal – em oposição ao público. Se este fosse o sentido e o entendimento [...] contemplaria todos os cidadãos, uma vez que todos os cidadãos são, na condição de indivíduos, portadores de interesses privados. Mas abandonemos a ilusão: ao propor o fim da separação rígida entre o setor público e o privado, é outra coisa que se tem em vista – privado aqui é, claramente, o interesse privado dos capitalistas e, nesse sentido, comparece no mesmo campo semântico de expressões como iniciativa privada, privatização e outras, que evocam ou remetem a capital, capitais, empresários capitalistas (VAINER, 2013, p. 88).

Nesse contexto de esvaziamento da função pública do estádio, podemos dizer que o Mineirão se tornou um espaço semipúblico.

[São espaços] que tendem a substituir o público, como os espaços comerciais, galerias, shopping centers, por exemplo, onde os encontros, organizados e normatizados, são locais de exclusão. Tem horário de funcionamento, abrem e fecham, são vigiados, não são acessíveis a qualquer hora ou dia, nem a “qualquer um”, contém códigos e normas de uso (CARLOS, 2001, p. 36).

Com isso, entendendo os estádios como espaços sociais e aceitando que as suas mudanças refletem as mudanças sociais vigentes (BALE, 1993; FRANK, STEETS, 2010; MASCARENHAS, 2013), podemos dizer que sua transformação está integrada a um movimento mais amplo de produção e reprodução capitalista das cidades, em âmbito mundial, utilizando-se do planejamento urbano estratégico, no qual a função social da cidade é transformada em mercadoria, empresa e pátria (VAINER, 2013). Assim, antes da reforma, o responsável pela administração do Mineirão era uma autarquia estadual – ADEMG – que não recebia verba direta para a administração do estádio. De acordo com La Corte (2007), a receita era obtida pelo

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aluguel do próprio estádio. Com isso, tanto as manutenções, quanto as reformas pontuais eram feitas com recurso próprio. O autor também averiguou que os balancetes das gestões, do período por ele estudado, apresentavam superávits (1997 a 1999) e déficits (2000 a 2006), demonstrando o desequilíbrio das contas, a tendência de desvalorização e deterioração do Mineirão. No entanto, enquanto um espaço público, administrado pela gestão pública, o estádio possibilitava o encontro de pessoas diferentes convivendo em conjunto e estabelecendo acordos tácitos. Após a reforma, o Mineirão passou a ser administrado por uma empresa privada. Nessa nova conjuntura, o Mineirão passou a ser fiscalizado e sofrer controle de qualidade, sendo encarado como uma empresa e concorrendo no mercado das arenas esportivas.

Figura 32 – Concorrência entre estádios

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 2014.

Dessa maneira, a empresa Mineirão, gerenciada pela Minas Arena, é avaliada pelos órgãos competentes e tem que se adequar às normas que facilitam o comércio, promovam boas práticas de gestão e o avanço tecnológico (figura 33 e figura 34). Cumprindo os quesitos avaliados, ganha os certificados de qualidade existentes passando a ser mais valorada pelo mercado e conseguindo financiamento nos órgãos de fomento. Ademais, necessita ser produtiva oferecendo bons serviços para ganhar legitimidade e atrair público, tornando-se competitiva dentro do mercado de arenas esportivas. Nesse sentido, o estádio, regido por uma PPP, passou a seguir os preceitos de uma empresa privada, implementando as ideias de “[...]

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racionalidade, funcionalidade, regularidade e produtos estandardizados” (VAINER, 2013, p. 85).

Figura 33 – Informativo exibido antes do jogo nas televisões internas do estádio

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 01/12/2013.

Figura 34 – Certificados de qualidade do Mineirão

Fonte – Fotos tomadas pela autora da tese em 2014.

A fala do entrevistado C, abaixo, corrobora a percepção de que o estádio se tornou uma empresa.

“Antes, o estádio... embora fosse considerado à época, moderno, era completamente vilipendiado, completamente pichado, quebrado... e não tinha uma estrutura toda específica, não tinha um recurso confiscado para isso. E o futebol em si não dá uma autossuficiência financeira. Todos esses estádios da copa estão

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demonstrando isso. Então, quando era do governo, eu acredito que tinha muita dificuldade de lidar com isso. Isso daqui é muito caro, tudo é muito grande. Qualquer coisa que for fazer, você faz para 2 km, 3 km, de grade, de vidro, de tudo... Tudo é muito grandioso, então tudo é muito caro. E a manutenção aqui é muito concreto, é muita laje... Tudo isso vai dando seu desgaste natural e etc. Então, antes tinha um estádio que era degradado, tinha-se um nível de degradação, mas funcionava daquele jeito, sem... como era público, não tinha nenhuma vigilância sanitária, nenhuma fiscalização específica de bombeiro, de acessibilidade, não tinha nada disso. Porque foi construído antes das normas atuais.” (Entrevistado C)

Mascarenhas (2013) pondera que dentro de um processo neoliberal de disputa entre as cidades, os estádios de futebol se tornaram um dos elementos nos quais as cidades buscam o seu sentido, isto é, os estádios passam a atuar como vitrines de uma cidade “[...] civilizada. Assim, o estádio torna-se produto e mercadoria da cidade-mercadoria” (VAINER, 2013, p. 78). Enquanto empresa, o Mineirão passou a ter regras mais rígidas, como também a exigir o seu cumprimento, tanto por parte dos usuários, quanto dos prestadores de serviço.

“Antes, a imprensa, os jornalistas, chegavam à hora que queriam, comiam onde queriam. Não tinha limite por emissora. Vinham um, dois, três. Agora não, colocamos ordem. Tem dia para buscar credencial, tem lugar para comer. O controle aumentou e eles não gostaram.” (Entrevistado C)

“Aumentou muito o controle. No bar, tudo precisa ser etiquetado, o produto chegou, pregou etiqueta com data de validade. Pode olhar a geladeira, não tem nada, não tem água e nem nada que esteja com a data vencida. Tudo tem que estar com etiqueta e com a data certa, porque eles olham mesmo. Se entrou na cozinha tem que pôr uma touca. Não pode trabalhar sem luva, com esmalte, nem com anel, acessório, relógios, nada. Em dias de jogo, funcionário não entra se estiver com camiseta, camisa de time, chinelo, bermuda. E antes podia tudo. Antes podia camisa de time. Hoje é proibido funcionário estar aqui atendendo e mastigando, antes não... Hoje, fumar, nem pensar e, dentro dos bares, de maneira nenhuma. Hoje funcionário entra com credencial de prestação de serviço. Antes, pagava uma taxa

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simbólica para trabalhar. Por exemplo, se a geral era R$5,00, nós pagávamos R$2,50 para o funcionário. Olha só para você ver.” (Entrevistada A).

Figura 35 – Aviso sobre as normas de utilização do Complexo Mineirão

Fonte – Foto tomada pela autora da tese em 2014.

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Além disso, durante o período da reforma, os clubes assinaram contratos individuais com a Minas Arena para que pudessem realizar os seus jogos no Mineirão, na condição de equipe mandante e tendo o direito de exploração do estádio durante os jogos. Assim, não só os usuários, mas também os clubes passaram a ser vistos como clientes do estádio157.

“Atualmente os produtores nos procuram e nos apresentam o formato do evento. Nas reuniões estudamos o melhor local para que o evento ocorra da melhor maneira. Temos um modelo flexível para podermos atender as demandas que são variáveis, nenhum jogo ou show ou evento é igual ao outro.” (Entrevistado D)

Assim, enquanto empresas que buscam clientes, estádios e clubes investem em clientes que possam formar a sua audiência medida pela capacidade de consumo. Atrelado a esses dois agentes, existem as redes de televisão em massa que vendem o futebol como mercadoria para anunciantes. Não é à toa que alguns autores (BALE, 1993; CRUZ, 2005; PARAMIO, BURAIMO e CAMPOS, 2008) comparam os estádios pós-modernos a estúdios de televisão. Nesse sentido, voltando ao estudo de Almeida (2015), grande parte dos anunciantes sempre tiveram como público-alvo as classes AB e, em menor parte, uma parcela da classe C. Pela televisão, as pessoas, independentemente da classe social, são expostas à lógica do consumo por meio da publicidade que ensina o que ter, o que usar e o que desejar, oferecendo uma gama de bens simbólicos e serviços. Com as políticas socioeconômicas, além da classe AB, a classe C também passou a ser preterida pelo mercado, e os desejos de consumo cultivados ao longo do tempo, podem ser alcançados.

157 Conferir reportagem do jornal Hoje em Dia, de 20/02/2013, “Detalhes do contrato entre Cruzeiro e Minas Arena são divulgados”. Disponível em: . Acesso em: 07 jan. 2016.

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Figura 36 – Em busca de anunciantes

Fonte – Foto tomada pela autora da tese em 19/05/2013.

Tais mudanças, atreladas à ideia de reformulação do conceito de estádio, trouxeram outra configuração para ele.

6.2 A reformulação do Mineirão

Como dito no capítulo 1, o Mineirão passou por um processo de reforma e de reformulação. Dessa maneira, passou, tanto por alterações físicas, quanto de conceito.

“Eu, quando comecei a trabalhar aqui, comecei a trabalhar no dia 12 de setembro [de 2012], eu fui aprender a reconhecer o estádio... eu gastei três meses para aprender a reconhecer o estádio de novo. Porque isso daqui é uma colina, o alto de um morro, o arquiteto deve ter te falado. Ele mudou, ele foi mudado completamente o conceito. Antes o conceito era o público passar por entre os carros, então a prioridade eram os carros. Hoje o conceito é carro para um lado, público para o outro. Então, a prioridade é o público, tanto que o sistema semafórico da região, na saída de jogo, passa a funcionar de forma que os fiscais de trânsito dão preferência aos pedestres. Foi feita uma laje e seis níveis. Então, nós temos os níveis -3, -2, -1, 0, 1, 2. E cada nível são cortes do terreno. Só o nível 2 circunda todo o estádio, que é a

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arquibancada superior. O resto vai até certo ponto do estádio, depois tem que descer para o nível inferior ou subir para o nível superior. Essa é uma lógica um pouco perversa, porque, quando você entra por um lado, você pensa que está em um nível e está no outro. Então, essas logicas são diferentes. O sistema de segurança, por exemplo, o sistema implantado de segurança de automação, é tudo muito novo, tudo é muito moderno, é muita coisa para aprender. Essas câmeras, os melhores momentos das câmeras, para onde nós vamos focar as câmeras.” (Entrevistado C)

“Para mim o que mudou com a reforma do Mineirão? Para mim, o que mudou na reforma do Mineirão... O público não é o mesmo, posso até estar enganada. O bar hoje tem um nível de serviço melhor para a gente trabalhar. Os bares eram pequenos, hoje você tem espaço para trabalhar. Hoje trabalha com caixa igual você está vendo aqui [o caixa em cima do balcão] e não tem problema nenhum. Antes trabalhava era na gaiola, porque tinha uma grade, porque senão você ia... porque eles levavam até o bar nas costas. Hoje, não tem mais isso aqui. Hoje, você olha os fregueses entrando aqui, as meninas vêm de short, de minissaia, você não vê ninguém mexendo, ninguém nem olha. Antes não podia, nossa! Antes não podia vir. Agora as mulheres vêm de salto alto no Mineirão. Os fregueses também estão mais calmos, antes era... não posso nem falar, tá gravando... não posso nem falar o que eles falavam... mandavam tudo quanto é jeito... eles falavam muita coisa... era muito palavrão. Hoje, é difícil ouvir um palavrão aqui no balcão, é difícil. Mas antes, era 24 horas no ar, as cozinheiras ficavam lá na cozinha e eles gritando na fila, tinha que ver o que eles gritavam antes, hoje não tem isso mais não... acabou. O jogo parece que está mais tranquilo. Não sei se é por causa do ingresso que está mais caro. Você tinha que ver... tinha cada um...” [risos].(Entrevistada A)

Assim, tanto quanto a mudança física e estrutural presente na fala do entrevistado C quando cita a questão do trânsito ou dos cortes do terreno que implicam diretamente a operacionalização do estádio, tem-se também a mudança de comportamento do público, conforme narrou a entrevistada A, ao citar a alteração no vestuário das mulheres presentes no estádio, a forma de operacionalizar o bar, a diminuição dos palavrões e xingamentos fortuitos. A entrevistada sugere que a mudança foi provocada pelo aumento do preço do ingresso já que, nesse e em outro trecho da entrevista, ela faz a seguinte afirmação.

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“Porque o padrão hoje é diferente. Chega um freguês aqui e ele quer levar quatro tropeiros, aí na marmita ele pode pôr as quatro empilhadas e levar. No prato, não. E no dia que freguês jogava comida na cara do outro? Jogava refrigerante. Hoje não tem mais isso aqui não. Hoje, aqui é outro nível! Hoje, no Mineirão aqui, as mulheres vêm de minissaia, antigamente mulher não podia... no meu tempo, minissaia? Ela saía pelada. Ela saía pelada daqui, porque o pessoal metia as caras. Mas o ingresso também era R$5,00 entrava era... Tudo quanto é coisa que você via entrava no Mineirão.” (Entrevistada A)

Dessa maneira, é feita uma relação direta entre o aumento do valor cobrado pelos ingressos e a mudança do comportamento do público presente no estádio, uma vez que fatores econômicos remetem diretamente à questão de classes sociais e, entre essas, há hierarquias, nas quais os comportamentos ditos civilizados são um dos componentes de classificação. Além dos fatores interclasses sociais, podemos pensar que a mudança de comportamento do público também pode ter sido propiciada pelo aumento dos mecanismos de controle e constrangimento que passaram a atuar sobre o estádio, seja pelo aumento das câmeras de videovigilância, da presença da segurança privada, do serviço de ajuda ao torcedor, da manutenção da limpeza do estádio e pela mudança de conceito com o qual o estádio-empresa passou a operar.

“Hoje, o estádio é um ambiente agradável de conviver. Antes não, antes era um ambiente tipicamente masculino. Na sua grande maioria, masculino aliado a embriaguez. Então, era um ambiente promíscuo. Muita briga, homens completamente bêbados, muito suor, não se tinha um controle de até quantas pessoas cabiam, chegava entrava e assim caminhava. E a polícia fazia minimamente o que era possível fazer: separar briga, prender drogado, socorrer bêbado... O papel da polícia era basicamente esse. Não era atender o torcedor, não tinha o trabalho que tem hoje. Hoje, efetivamente, torcedor é um cliente. E assim a gente tem implantado. A diferença é grande.” (Entrevistado C)

A nova ideologia que opera o Mineirão está alinhada com o que ocorreu com o futebol em nível internacional, principalmente no futebol inglês, já que foi verificado que houve uma exclusão dos torcedores mais pobres em detrimento dos

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torcedores mais ricos, em um contexto em que o futebol passa a ser do interesse da indústria do entretenimento (BALE, 1993; CRUZ, 2005, GIULIANOTTI, 2012).

Os antigos torcedores da classe trabalhadora – com sua subcultura de “consciência futebolística” centrada no time local, na masculinidade, na participação ativa e na vitória – estava sendo excluída, para ser substituída por torcedores “genuínos” de classe média e seus supostos interesses no futebol em família, no espetáculo, na habilidade e na eficiência performativa (GIULIANOTTI, 2012, p. 5).

Assim, o clube passa a ser visto como um cliente desses estádios pós- modernos158 e, concomitante a esse processo de mercantilização do futebol, produz um torcedor-cliente, trazendo outra configuração para o estádio, já que o futebol em si passa a ser mais um produto comercializado e vinculado. Como nos lembra Mascarenhas (2013), o princípio mercadológico sempre esteve presente nos estádios de futebol, uma vez que, para acessá-lo, sempre foi necessário adquirir ingresso. Entretanto, na atualidade, o que percebemos no estádio é uma exacerbação do valor de troca em detrimento do valor de uso. Assim, o estádio é transformado sobremaneira em mercadoria, e a sua apropriação se dá dentro da lógica do mercado e do consumo. Voltando às falas da entrevistada A e do entrevistado C, verificamos que, além da exclusão financeira, houve a comportamental. Assim, não basta apenas ter o montante necessário para comprar o ingresso, é necessário incorporar os novos hábitos vinculados no estádio. Com isso, tanto o popular, quanto o abastado que tiverem, concomitantemente, o recurso para a ida ao estádio como o comportamento almejado, tornam-se o público pretendido no estádio. Na pesquisa de Bandeira (2010), cujo objetivo era analisar a construção cultural da masculinidade no estádio de futebol, o autor verificou que um mesmo local pode ser vivido de formas diferentes de masculinidades. Entretanto, não necessariamente, há uma convivência harmônica entre elas. Desse fato, as diferentes masculinidades são hierarquizadas dentro de um contexto cultural específico.

158 Vale ressaltar que no futebol brasileiro, dos estádios reformados para a copa, poucos são os que pertencem a um clube. Em sua maioria eram estádios públicos que, após a reforma passaram a ser administrados por uma PPP. É nesse contexto que os clubes se tornam clientes dos estádios e esses passam a ter mais relevância.

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Nesse sentido, o autor afirma que os estádios de futebol têm uma pedagogia. “Estar em um estádio de futebol significa passar por diferentes pedagogias. É necessário aprender quando gritar, quando calar, o que gritar, o que calar, o que e como sentir...” (BANDEIRA, 2010, p. 344). Assim, Bandeira (2010) observou que a formação do modo masculino de ser torcedor em um estádio é produzida ao longo de um tempo em diferentes jogos e em diversas situações. Dessa forma, o que o autor denominou currículo de masculinidade do torcedor de futebol tem relação com a representação social do clube, com a atitude positiva diante de um confronto físico (isto é, não fugir ou renunciar ao convite de um confronto físico), com a violência, simbólica, como forma de socialização e construção da virilidade, com o amor ao clube acima de tudo e com a valorização da masculinidade desejável em oposição ao outro.

Ações feitas pela torcida, elogios às atitudes dos nossos jogadores e a tradição do clube aparecem para ascender graus de masculinidade. Botar a torcida adversária para correr, cantar mais, beber bastante aparecem como exaltação de nossos desempenhos (BANDEIRA, 2010, p. 350).

Por fim, para que tudo isso ocorra, o autor conclui que é necessário estar em multidão. Mais do que isso, o anonimato dos sujeitos é garantido pela forma amorfa dessa multidão e a ausência de um aparato que os controle. Após a reforma, a multidão perdeu a sua forma amorfa pela colocação dos blocos de cadeiras. Além disso, muitas câmeras de videovigilância foram instaladas. Com a reformulação do estádio, se, por um lado, há um processo de exclusão, por outro, há a inclusão de grupos até então com pouca visibilidade no estádio: deficientes, crianças e principalmente as mulheres. Como apontado na pesquisa de Campos (2010), as mulheres sempre estiveram presentes no estádio. Antes da reforma, porém, a sua visibilidade era menor, já que muitas vezes estavam camufladas por uma performatividade masculina.

Atualmente, o vestuário é pautado no modelo masculino. Às mulheres é permitida certa dose de feminilidade, expressadas em acessórios, bijuterias ou maquiagens discretas tornando-se mais respeitadas ou camufladas em meio à multidão. Com isso, ampliam o seu acesso e o direito de pertencer a esse local. As

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que estão dentro dos padrões de feminilidade, por opção ou por não conhecerem os códigos locais, recebem o constrangimento verbal e simbólico tanto dos homens como das próprias mulheres. Talvez essa violência e, mais, a dificuldade de assimilar os códigos locais fazendo-as abrir mão da sua performatividade façam com que muitas mulheres não voltem ao estádio (CAMPOS, 2010, p. 113).

Assim, retomando às falas da entrevistada A e ao estudo de Bandeira (2010) sobre a construção cultural da masculinidade do torcedor de futebol, veremos que, após a reforma, houve uma mudança nesse processo, com a diminuição da valorização da performatividade masculina hegemônica nesse espaço, partindo do reconhecimento de que masculinidades e feminilidades são marcações de gênero. Tornamo-nos homens ou mulheres pela incorporação de sugestões ou estímulos que valorizam gostos e comportamentos aprovados para cada um dos sexos, dentro de cada cultura e tempo. É nesse contexto que foi criado, por Judith Butler, o conceito de performatividade. Segundo Butler (2006), a performatividade, entendida como atuação, ajuda a explicar a manutenção desses referenciais de gênero, pois, ao criar uma expectativa sobre os corpos, construímos uma expectativa de gênero. Por meio da repetição de atos, gestos e signos, no âmbito cultural, em nosso cotidiano, atuamos de modo a reforçamos (ou não) a construção dos corpos masculinos e femininos tais como os reconhecemos. Sob essa perspectiva, a construção de gênero é simultaneamente ação voluntária e intencional, ainda que nem sempre de maneira consciente, capaz de produzir e reproduzir possibilidades corporais, validadas ou não, no âmbito da cultura e social. Assim, no Mineirão, percebem-se a tensão e o estranhamento existente entre quais masculinidades e feminilidades serão formadas naquele espaço. O estranhamento e adequação aos novos parâmetros podem ser visto na fala de alguns/algumas torcedores/as, bem como foi registrado em caderno de campo.

“A melhora da segurança fez com que venha tranquila. Posso vir de relógio, bolsinha, celular e até brinco de ouro. Antes me vestia de homenzinho para vir. Era a roupa do corpo.” (#03, mulher, 21 anos, Futebol)

“Hoje, na idade que estou, não sinto falta de muita coisa, não. Mas com 23 anos [Libertadores de 1997] sinto falta do calor da galera. Me dá pena saber que muita gente

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não irá saber o que é isso, o Mineirão lotado. Hoje parece shopping”. (#16, homem, 39 anos, Esplanada)

“O antigo era muito melhor. Amava as barraquinhas, sentava na grama. Hoje, fico bebendo no sol.” (#44, mulher, 40 anos, Esplanada)

“Hoje tem muitas regras, não pode fazer nada, e o preço do ingresso é elevado.” (#69, homem, 23 anos, Futebol)

Continuo caminhando e cruzo a conversa de duas jovens torcedoras. Uma falava que antigamente que era bom, pois tinha churrasquinho, já a outra argumentou falando que agora está mais organizado, pois antigamente misturava ônibus e torcida organizada. Ela começou a contar um caso particular que ilustrava uma situação vivida. (Caderno de Campo, 26/102013, Futebol)

As falas acima demonstram o processo de reforma e reformulação do estádio, já que abrangem a questão temporal e a comportamental. Também são evidenciadas as regras estabelecidas formalmente no estádio, a multiplicidade de performatividades masculina e feminina existentes e as questões de classe social. Chama a atenção, entretanto, que o fato de ser homem não, necessariamente, significa que o sujeito será contrário às mudanças ocorridas e o fato de ser mulher, favorável, já que existem muitas maneiras de ser homem e mulher dentro da nossa sociedade. A ampliação na performatividade masculina e feminina159 também pode ser vista nos vestuários dos/as torcedores/as e na sua maneira de se relacionar com o estádio, independentemente se são homens ou mulheres. De um modo geral, os homens estão usando bermuda ou calça jeans, tênis e a camisa do clube. Poucos vêm de chinelo e/ou sem a camisa do clube. Alguns vestem a roupa de alguma torcida organizada (blusa e/ou calça), mesmo quando assumem não pertencer à agremiação. Percebi, no estádio, pequenos grupos masculinos usando calça jeans skinny160 e cabelo com corte diferente.

159 Embora reconheça que houve uma ampliação na performatividade masculina e feminina no estádio, isto é, após a reforma, o estádio está mais permeável aos homens que não possuem uma masculinidade hegemônica e nem as mulheres necessitem interpretá-la para serem aceitas, alguns grupos ainda continuam excluídos do estádio, tais como os travestis, transexuais e homossexuais masculinos com identidade de gênero feminina. 160 A calça jeans modelo skinny possuiu uma modelagem bastante rente ao corpo, principalmente na região da cintura e da canela.

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Já, em relação às mulheres, há maior variação no repertório. Muitas não vêm uniformizadas. Em dias quentes, costumam usar bermuda ou short, mas também há as que estão de calça comprida. O sapato costuma variar entre sapatilha, tênis e sandálias rasteirinhas ou de salto, embora em menor número. Geralmente, a bolsa tem sido parte dos acessórios femininos.

Uma jovem torcedora, acompanhada, entrou pelo portão B portando um salto alto, shortinho e miniblusa. Alguns homens olharam discretamente, outros encararam. As mulheres também olharam. O fato, porém, é que ninguém falou nada. (Caderno de Campo, 26/10/2013, Futebol)

Entretanto acabei de ver uma exceção: três mulheres com bolsa grande, calça justíssima, blusa social e salto alto. As pessoas ficaram olhando e se entreolharam, mas também não falaram nada. (Caderno de Campo, 02/10/2013, Futebol)

Assim, no Mineirão após a reforma, estar vestida dentro do que a sociedade reconhece como feminino não está se constituindo como algo que tenha que ser escondido. Esse rearranjo, ao mesmo tempo em que causa um estranhamento, é valorizado pelo público masculino, já que a beleza de sua torcida é uma espécie de capital simbólico para os torcedores e o clube.

Enquanto escrevia as respostas, os dois torcedores, de 20 anos cada, observavam o entorno. Nisso, um deles falou para o outro: “─ Ficou bonito o selfie dela”. Olhei na tentativa de identificar sobre quem estavam falando. Não deu para ver, apenas entendi que se referia a uma torcedora na arquibancada. (Caderno de Campo, 29/10/2014, Futebol)

“Aspecto positivo da reforma... a beleza da torcida feminina [risos]. Você não vai colocar isso não, né?!” (#261, homem, 42 anos, Futebol).

Se está havendo, porém, a tentativa de reformulação do público, no que tange ao corpo de funcionários, ela não foi tão efetiva, já que grande parte dos que prestam serviços em dias de jogos são os mesmos de antes da reforma.

Eu vim para o Mineirão faz 24 anos. Era o Mineirão antigo. Eu comecei lá fora, nas barracas lá fora. Eu trabalhei uns tempos por lá, bastante tempo. Aí eu conheci o pessoal aqui dentro, a administração que era a

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ADEMG e fui tentando entrar. Entrei e trabalhei no antigo bar 12. Tinha jogo que eu vendia cinco tropeiros. Mas fui fazendo amizade com polícia, com freguês e tudo. Foi uma caminhada longa. Depois, peguei outros bares. Fiquei até a reforma do Mineirão. Mesmo assim, depois que fechou o Mineirão, trabalhei aqui para fazer umas entregas de marmita para a obra. Foi aí que parei. Voltei tem um ano e sete meses, porque já tem poucos anos que inaugurou, né. (Entrevistada A)

Havia uma vendedora ambulante próxima onde estava repassando os formulários preenchidos pela a equipe de trabalho. Como sempre fazemos, relatávamos nossas primeiras impressões, percepções interessantes etc. A vendedora estava fumando o seu cigarro e, discretamente, prestava atenção em nossa conversa. Até que, em determinado momento, ela não resistiu e, efetivamente, entrou na conversa, já que o tema era a perda do mando de campo do Cruzeiro em um jogo. Ela disse que era um absurdo, pois deixaria de trabalhar. Os meninos já haviam conversado com ela e sabiam que ela trabalha há 18 anos. Perguntei, então, se todos os ambulantes voltaram, pois, no início, não eram eles, eram pessoas mais jovens e descoladas. Ela respondeu: “─ É verdade, não éramos nós. Mas essas pessoas roubaram a Minas Arena e eles tiveram que nos chamar de novo. Pois a gente vive disso, trabalha em show, eventos, feiras. Não é igual a esse povo que veio aqui, não... Eles nem sabiam carregar as caixas, ficavam carregando assim [e imitou o jeito que as caixas eram carregadas, seguradas a frente da barriga]. Eles tiveram que nos chamar”. (Caderno de Campo, 04/10/2014)

Nesse jogo, vi o maneta (não sei o seu nome, apenas que é um morador de rua que andava pelos lados do Centro/Santa Lúcia e que não possui um braço) lá no portão de entrada do estádio negociando com alguém (não sei se da Minas Arena ou Cruzeiro) o seu ingresso. Depois o vi na arquibancada. Antes da reforma ele também estava presente. (Caderno de campo, 02/10/2014, Futebol)

Embora haja por parte dos dirigentes e de alguns usuários o desejo pelo processo civilizador (ELIAS, 1992) no Mineirão, a permanência e volta de determinados sujeitos demonstra que não se trata de algo linear e que a reformulação do estádio necessitará de um investimento constante para a sua incorporação. Nesse sentido, o estádio antes da reforma se torna o outro, dentro de um sistema binário de oposições.

251

6.3 Percepções dos torcedores sobre a reforma do Mineirão

Como dito por Santos (1996, p. 83), “[...] a ideia de forma-conteúdo une o processo ao resultado, a função e a forma, o passado e o futuro, o objeto e o sujeito, o natural e o social”. A relação entre forma e conteúdo é processo e produto de um meio e um tempo. Dessa maneira, para compreendermos as formas de uso e apropriação do Mineirão por seus torcedores, torna-se relevante conhecer as suas percepções sobre a reforma do estádio. Busco analisar os aspectos positivos e negativos da reforma, como também o de que eles sentem falta do Mineirão antes da reforma. Vale ressaltar que, no formulário, essas eram questões abertas, de tal modo que os participantes puderam apontar mais de um aspecto. Com isso, os dados apresentados fazem parte, não apenas de uma percepção individual (participante), mas também de uma percepção coletiva sobre o equipamento. Conforme demonstrado no gráfico 5, os três itens mais positivamente avaliados após a reforma do estádio foram o conforto (46%), segurança (24%) e organização (20,6%).

252

Gráfico 6 – Aspectos positivos da reforma do Mineirão (%) – Situação Futebol

16 23 5,2

24 20,2

3,8 1 18,1

20,6 3,5 2,1 6,3

10,1 46 16,4 9,1 7,3 5,9 2,4 6,3

Acessibilidade Beleza/estética Cadeiras Cobertura Conforto Esplanada Estacionamento interno Facilidade compra ingresso - internet Gramado/bares/modernidade Infraestrutura Limpeza banheiro Limpeza do estádio Lugar marcado Não conhecia Organização/administração Parceria Cruzeiro Serviço de apoio ao torcedor Segurança Seleção do público Visibilidade do campo

Fonte: Elaborado pela autora da tese.

Mesmo sabendo que a categoria conforto pode englobar outras categorias existentes (acessibilidade, banheiro, cadeiras, cobertura, serviço de apoio ao torcedor etc), optamos por mantê-la como tal, já que muitos torcedores mencionaram essa palavra para designar outros benefícios da reforma.

“Conforto – cadeira numerada. Chego e tenho o meu lugar. Ele tá aqui. Desde que sou sociotorcedor, sento aqui.” (#190, homem, 60 anos, Futebol)

“Conforto – antes o número de pessoas era maior que a capacidade. Ficavam duas pessoas no mesmo espaço. Agora a cadeira limita. O povo jogava xixi lá embaixo. Era cheio e ninguém via nada.” (#280, homem, 19 anos, Futebol)

253

“Conforto – antes era a geral e todo mundo ficava em pé. Diminuiu o tamanho, mas aumentou o conforto.” (#429, homem, 21 anos, Futebol)

No que tange à segurança, consideramos que essa categoria também não esgota em si mesma. A segurança não envolve apenas o controle de atos de violência, mas também a garantia de aspectos que possibilitem a integridade e o bem-estar do ser humano161.

“Estrutura, esplanada, não violência, estádio ser só do Cruzeiro.” (#01, homem, 24 anos, Futebol)

“Segurança, pois melhorou o nível dos frequentadores. Antes já fui assaltado dentro do Mineirão, tinha arrastão direto.” (#169, homem, 25 anos, Futebol)

“Acesso e segurança. No clássico, tinha que ficar esperto, não tinha grade nem nada” [para separar as torcidas]. (#186, homem, 32 anos, Futebol)

“Higiene dos banheiros, comodidade do lugar marcado, segurança, exceto pela Máfia Azul” [torcida organizada]. (#212, homem, 59 anos, Futebol)

“Os aspectos positivos são a esplanada para andar de patins, já que, antes, o piso era irregular; os shows e a segurança. Mas minha prima já foi assaltada, levaram seu celular.” (#416, mulher, 27 anos, Futebol).

“Segurança, pois só entra na esplanada com ingresso na mão.” (#380, homem, 32 anos, Futebol)

“Segurança. Hoje, tenho coragem de trazer meu filho [seis anos], antes, não. Antes tinha cavalo andando no meio da gente, barracas no caminho. Hoje, quem não tem ingresso não fica perto, não tem gente pressionando, querendo roubar.” (#481, homem, 25 anos, Futebol)

Percebemos, por meio das falas, que a sensação de segurança está relacionada com a percepção do torcedor da diminuição da violência e dos delitos cometidos no estádio e o aumento do controle. Os torcedores também fazem uma

161 A alteração do fluxo veicular e de pedestres nas ruas do entorno do Mineirão, por exemplo, não se enquadra na prevenção à violência. Entretanto, faz parte de um plano de segurança para os torcedores.

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relação direta entre classe social e aumento da sensação de segurança. Verificamos que parte das percepções dos torcedores sobre a sensação de segurança tem como base a sua própria experiência no estádio. No que tange ao quesito organização, muitos torcedores a associam à sinalização do estádio (placas indicativas), à informação (presença de pessoas aptas a prestar informações), à delimitação e ordenação do espaço e à melhora do fluxo de pedestres, principalmente, no espaço da esplanada.

“Melhorou a chegada às lanchonetes. O estádio oferece melhores condições para o torcedor. Modernizou bastante. Hoje é bem organizado.” (#115, homem, 36 anos, Futebol)

“Organização e informação. Hoje, qualquer pessoa te responde, não fica perdido. Diferente de antigamente.” (#171, homem, 30 anos, Futebol)

“O estacionamento interno melhorou, está mais seguro e mais confortável. Tem organização – você chega e tem pessoas para te orientar.” (#163, homem, 57anos, Futebol)

“Lugar marcado, já que, com o tempo, sentando no mesmo lugar e eles [administração] mantendo os mesmos funcionários no setor, vamos ganhando intimidade e nos reconhecendo. Isso diminui a confusão, pois, como estão nos mesmos setores, já conhecem os torcedores que ficam naquela região.” (#261, homem, 42 anos, Futebol)

“Facilidade de acesso, pois se entra mais rápido e fácil, não é tanto tumulto. Sociotorcedor não era tão grande.” (#281, homem, 20 anos, Futebol)

Outra categoria que teve destaque é a limpeza. No gráfico, ela foi subdividida entre limpeza do estádio (10,1%) e limpeza do banheiro (16,4%), uma vez que os torcedores colocaram essa delimitação espacial em suas falas.

“Conforto, antes era tudo de concreto. As pessoas estão mais conscientes, há poucos danos ao patrimônio.” (#116, homem, 50 anos, Futebol)

255

“Banheiros sempre limpos; educação e respeito dos funcionários, são capacitados.” (#265, mulher, 64 anos, Futebol)

Pelas falas acima, podemos perceber que à limpeza o torcedor acopla a ideia da ausência de lixo e de sujeira, a manutenção do asseio e a conservação do patrimônio. O estado de asseio do Mineirão perpassa o dia de jogo, ainda que seja influenciado por ele, como disse um usuário da esplanada que fazia sua caminhada no dia posterior a um jogo no estádio.

“Mudou demais! Antes era muito sujo, tinha lixo. Hoje, é mais cuidado, mais limpo. Ontem teve jogo e nem parece. Antes era lixo.” (#112, homem, 58 anos, Esplanada)

Apesar de haver o reconhecimento da melhora da limpeza do Mineirão, as observações de campo levam a crer que ela se deu pela mudança de comportamento dos usuários, pela diminuição do comércio alimentício no estádio e, principalmente, por maior ação na manutenção do espaço limpo.

Uma coisa que me chama a atenção é que a esplanada está sempre limpa. Não há muito como sujá-la, mas ela está sempre muito limpa. Reparando bem, vejo dois varredores vestidos de uniforme cinza, carregando um saco de lixo, uma vassoura e uma pá. Eles agem discretamente e se camuflam na paisagem. (Caderno de campo, 16/10/2013, Futebol)

Algo que venho reparando, quando chego cedo ao setor da arquibancada, independentemente de qual seja, são os funcionários contratados para a limpeza terminando de limpar os corredores e banheiros. Parece que, antes de cada jogo, eles são orientados a limpar tudo e, no caso do banheiro feminino, conservar limpo. No banheiro, desde a abertura dos portões até o seu fechamento, sempre há uma funcionária passando pano no chão, recolhendo o lixo e secando a pia. Nos corredores é comum ver o pessoal da limpeza passando invisivelmente entre os torcedores com uma pá, vassoura e saco de lixo, recolhendo os tocos de cigarro, papel, copo e afins. (Caderno de campo, 29/10/2014, Futebol)

Nesse sentido, alguns usuários tecem uma crítica ao comportamento alheio em relação à não manutenção da limpeza do Complexo Mineirão, ao poder público e á Minas Arena que não investem em campanhas sobre o descarte dos resíduos sólidos.

256

“Falta educação dos usuários que espalham o lixo, mesmo tendo lixeira perto. Deveria alertar mais as pessoas, fazer campanha.” (#88, homem, 45 anos, Esplanada)

“Deveria ter mais informação sobre a questão do lixo.” (#89, homem, 30 anos, Esplanada)162

Analisando as categorias valoradas positivamente pelo torcedor, verificamos que conforto, segurança, organização e limpeza são termos que se inter- relacionam e que são apresentados, sobretudo, como marcadores de um novo tempo. Em seu estudo, La Corte (2007) alertou que a falta de limpeza em todos os setores do Mineirão, independentemente da temporalidade do evento, era um problema crônico do estádio.

Corredores, escadas, revestimentos e qualquer superfície nos pareceram tomadas com camadas profundas de sujeira, o que causa uma sensação de extremo desconforto aos espectadores. Nos pareceu que a sujeira já está incorporada na superfície de concreto, principalmente nas áreas de circulação do nível de arquibancada superior e em suas escadas, e nas escadas das arquibancadas, tanto inferior, quanto superior. Em uma das seções da arquibancada superior, nos chamou a atenção uma área de cobertura, em uma das juntas de dilatação, um ninho de morcegos que contribuem para a sujeira do ambiente através de suas fezes, sendo realmente um incômodo para os espectadores (LA CORTE, 2007, p. 439).

O autor declarou que grande parte do lixo produzido no estádio provinha do costume regional de torcedores irem para o estádio realizar uma refeição e beber e não tendo a preocupação com o descarte dos resíduos. Além disso, verificou que, em muitos banheiros, as instalações sanitárias estavam destruídas e vandalizadas. Por fim, descreveu que o Mineirão, interna e externamente, tinha inúmeras áreas pichadas, “[...] um problema que a administração não enfrenta em virtude da dificuldade de controle e do alto custo de retrabalhos semanais” (LA CORTE, 2007, p. 440).

162 Embora as falas dos usuários #88 e #89 tenham sido coletadas na situação Esplanada, eles também estão presentes no estádio na situação Futebol.

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Por meio dessas passagens, verificamos que havia, por parte da administração pública, um sucateamento do Mineirão e, por parte de seus usuários, um desleixo. Acoplado a isso, socialmente estava havendo um movimento de fuga dos espaços públicos ou, nas palavras de Raquel Rolnik, uma agorafobia coletiva. Rolnik (2000) aponta que esse processo de fobia, que se instalou em relação à cidade e ao espaço público, ocorreu em dois momentos. O primeiro é marcado pelo esvaziamento e não-uso do espaço público e, o segundo, pela sua rejeição e medo, já que passou a ser visto como um local de exercício da violência.

Como reflexo desses fenômenos combinados instalou-se na sociedade, em relação à cidade e ao espaço público, uma espécie de agorafobia coletiva. Em um primeiro momento aconteceu a fuga, o não-uso, o esvaziamento da função política simbólica identitária da cidade; posteriormente, essa agorafobia se transformou em medo, rejeição, pavor do espaço público, porque não se caracterizava mais como protetor, “conectador” e integrador. Pelo contrário, é cada vez mais percebido como um local de exercício da violência, porque foi dissolvendo-se o contrato que permitia que a diversidade não se expressasse em violência e se rompeu a dimensão pública pluriclassista e heterogênea com a criação de guetos, de espaços privativos, fechados e homogêneos (ROLNIK, 2000, sp.).

Assim, Rolnik (2000) aponta que a sociedade, dividida não apenas em classes sociais, mas em grupos, movimentos, organizações, minorias, se fechou em si mesma em espaços específicos, não possibilitando o encontro das diferenças. A autora conclui o raciocínio argumentando que, basicamente, só permaneceram na rua aqueles que só têm o espaço público como recurso, seja para moradia, trabalho ou refúgio de sobrevivência.

À medida que o processo de homogeneização, de fragmentação, de isolamento se torna mais exacerbado, áreas que ficam abertas são ocupadas por destituídos, mendigos, miseráveis, marginais, enfim, excluídos (ROLNIK, 2000, sp).

É nesse sentido que Mascarenhas (2013) afirma que o estádio, antes da reforma, era um dos últimos bastiões do direito à cidade, para os menos favorecidos economicamente, excluídos pelo processo de transformação da vida em mercadoria.

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Pelo processo de uso e apropriação, os sujeitos podem interferir no espaço por maneiras e formas distintas, entre elas, as manifestações violentas e agressivas. Pol (1996), descrevendo a forma com que os presos se apropriavam das cadeias e reformatórios, concluiu que a pichação, o vandalismo e a destruição visto como formas violentas e agressivas pelos demais, são também maneiras de autoafirmação e de apropriação de sujeitos limitados em todas as esferas da vida. Ainda, segundo o autor, estar à margem do processo social aflora nesses sujeitos uma territorial mais instintiva de deixar a sua marca (seja qual for e da forma como for) para confirmar a própria existência. A tensão que existe entre os vários grupos sociais que frequentavam o Mineirão em dias de jogos, antes da reforma, pode ser evidenciada nas falas dos torcedores apresentadas a partir do gráfico 5 como também nas falas dos entrevistados abaixo.

“O único problema que a gente tinha lá fora [nas barracas] era com pivete. Hoje, não tem mais no Mineirão. Hoje, eu não vejo pivete no Mineirão. Antes, você tinha que trabalhar com um pedaço de pau na mão, eles pegavam as coisas e saiam correndo. Para você ter uma ideia. São muitos anos, muitos anos lá fora. Aqui dentro tenho 24 anos e o que eu fiquei lá fora? Lá fora, devo ter ficado mais do que sete anos. Aqui dentro [do estádio] também dava briga. Porque era igual eu estou te falando, o ingresso era muito barato e entrava uma faixa de gente aqui que não era de um nível... o povo era muito doido, tinha muito pivete aqui dentro. Nossa Senhora, tinha pivete demais. Você estava comendo na mesa, eles chegavam assim no freguês, e pegavam a marmita e saíam rindo da sua cara. Sério. Eu já briguei muitas vezes com pivete, eles tomavam a comida na mão dos outros, quem é hoje de fazer uma coisa dessa. Hoje, não... o naipe... hoje os banheiros daqui, você pode comer dentro do banheiro”. (Entrevistada A)

“As ocorrências após a reforma diminuíram. Caímos para a média de 0,7 ocorrências/jogo. Antes eram 19. As nossas ocorrências aqui, hoje, basicamente são externas, cambista, tomador de conta. Ocorrência aqui mesmo, raríssimo acontecer. Eventualmente uma briga ou desacato a um policial em serviço. Então, o número de ocorrências caiu assustadoramente. Outra coisa é que não podemos importar problemas para dentro do estádio. Então, externamente, pode ter, por exemplo, uma pessoa

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que foi furtada ou teve seu ingresso furtado ou alega que teve seu ingresso furtado lá fora, e quer fazer a ocorrência aqui dentro, na delegacia que atende ao estádio. Eventualmente fazemos, na maioria não, porque ocorrência externa, nós não podemos importar o problema para dentro do estádio. Isso aqui é uma área fechada, se a gente começar a importar os problemas, depois, nós não damos conta de soltar esses problemas para a rua. Então, nós não podemos absorver os problemas externos. Nós já temos os nossos, e temos que ficar em condições.” (Entrevistado C)

Além disso, Campos e colaboradores (2008), ao analisarem as determinações do EDT sobre violência e segurança para compreender quais sentidos os torcedores mineiros atribuíam a tais aspectos na assistência ao futebol no estádio Mineirão, perceberam que os torcedores apresentavam uma elevada sensação de insegurança no estádio, principalmente, em sua área externa, devido ao risco de serem furtados, agredidos, sofrerem lesões corporais, bem como a existência de tumultos e depredação de ônibus entre outros fatores. No que tange aos aspectos negativos da reforma do Mineirão, o gráfico 6 aponta que estacionamento (44,9%), ingresso (29,3%) e alimentação (23%) foram os três piores itens avaliados.

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Gráfico 7 – Aspectos negativos da reforma do Mineirão (%) – Situação Futebol

2,4 1,4 29,3 23

1,4 1 3,1 2,1 4,5 4,2

11,5

9,1 44,9

8 1 Acessibidade 5,2 3,1 Administração/organização Alimentação – valor, variedade e qualidade Bloqueio do portão em dia de clássico Desrespeito ao lugar marcado Diminuição da capacidade Mineirão Estacionamento – valor e vagas Falta entretenimento na esplanada em dia de jogo/mau aproveitamento do espaço falta força de segurança pública Horário de fechamento e abertura dos portões (dia de jogo) Não vender cerveja em dia de jogo Nenhum Qualidade do tropeiro Retirada Barraqueiros Retirada das árvores Seleção do público Valor do ingresso

Fonte - Elaborado pela autora da tese.

Chamou-nos a atenção o fato de o preço do estacionamento e a falta de vagas concentrarem a maior parte das insatisfações dos torcedores.

“Não ter estacionamento do lado de fora. Tem que parar o carro muito longe.” (#66, homem, 52 anos, Futebol)

261

“O acesso de chegada ao estacionamento piorou, pois não pode parar perto do estádio. Ficou muito longe para estacionar o carro.” (#36, homem, 42 anos, Futebol)

“Para conseguir vagas no estacionamento interno tem que chegar cedo e ficar muito tempo na fila. Se não conseguir pegar a fila, tem que dar voltas e voltas, porque a BHTrans não deixa ficar parado por muito tempo. O estacionamento é caro. Só no mês passado gastei R$120,00 (4 x 30,00). Escuto a Itatiaia e eles pedem para acabar com isso, pois pode roubar, assaltar, acontecer alguma coisa. A mulher larga o carro 1 ou 2 km, pode ocorrer alguma coisa...” (#165, mulher, 56 anos, Futebol)

“O estacionamento foi reduzido, pouco acesso de entrada/saída em relação à quantidade de pessoas; não pode parar no entorno.” (#432, mulher, 26 anos, Futebol)

“Com a diminuição e proibição do estacionamento ao redor do estádio, vai tudo para dentro do bairro.” (#111, mulher, 46 anos, Esplanada)

“Estacionamento com baixa capacidade; transporte público é ruim. É um lazer caro.” (#264, homem, 29 anos, Futebol)

“Falta metrô, falta um acesso rodoviário para eventos com muita gente.” (#41, homem, 39 anos, Esplanada)

Um dos argumentos utilizados para o aumento das vagas de estacionamento no entorno do estádio diz respeito à segurança. Outro é a ausência de um transporte público de qualidade e que atenda as demandas de um dia de jogo. No final de 2014, a prefeitura de Belo Horizonte criou uma linha do MOVE163 para atender ao Mineirão, em dias de jogo, partindo do centro da cidade, em uma tentativa de melhorar o deslocamento do torcedor até o estádio (figura 37).

163 MOVE é o nome dado ao BRT na cidade de Belo Horizonte.

262

Figura 37 – Cartaz de divulgação da nova linha de ônibus que atende ao Mineirão em dias de jogo

Fonte - Foto tomada pela autora da tese (2014).

De acordo com o Entrevistado C, está havendo uma inversão de valores nos torcedores mineiros no que diz respeito à acessibilidade e à mobilidade urbana, uma vez que eles se mobilizam, tendo como incentivador os meios de comunicação (uma famosa rádio esportiva da capital, especificamente) para a reinvindicação dos privilégios do transporte particular em detrimento do transporte público.

“A lógica de qualquer ponto de congregação de pessoas, a lógica é você priorizar o transporte público. E o que se quer hoje é o contrario. Quer aumentar vaga para estacionar o veículo particular. Está exatamente na contramão do urbanismo, na contramão da mobilidade. A tendência mundial é se criar isso, a Europa é toda assim, o metrô para na porta do estádio e ele funciona. Vai lotado, volta lotado, vai e volta. Então, é completamente diferente de aqui. Aqui nós estamos caçando, procurando lugar para aumentar estacionamento, por causa de veículo particular. Quer dizer, é a contramão, é o contrassenso do que se prevê os novos conceitos de mobilidade, urbanidade e modernidade.” (Entrevistado C)

Pesquisa realizada sobre a acessibilidade e mobilidade espacial na RMBH apontou que a distribuição da acessibilidade e mobilidade espacial continua

263

mantendo as facilidades do transporte individual em detrimento dos pedestres, ciclistas e usuários do transporte público coletivo (LOBO, CARDOSO e MAGALHÃES, 2013). Assim, Lobo e colaboradores (2013), afirmam que, enquanto a população de Belo Horizonte cresceu cerca de 18% (passando de 2.020.161 para 2.385.638 habitantes) entre 1991 e 2011, a frota total de veículos cresceu cerca de 198% (passando de 478.805 para 1.429.865 veículos), no mesmo período164. Ao mesmo tempo, apontam que, em Belo Horizonte, inexiste a modalidade de transporte sobre trilhos. Segundo os autores, o Trem Metropolitano de Belo Horizonte tem a tecnologia de metrô de superfície e tem a abrangência espacial 28,1km de extensão, ligando a Regional Venda Nova (Estação Vilarinho) até o município de Contagem (Estação Eldorado), isto é, estabelece conexão entre a porção norte de Belo Horizonte, margeando a área central, à porção oeste da RMBH, em uma viagem que dura em média de 44,7 minutos. Outra reclamação diz respeito aos valores do ingresso e alimentação.

“Valor do ingresso; não gosto da qualidade da comida; não concordo com não vender cerveja.” (#02, mulher, 53 anos, Futebol)

“Financeiramente, tudo é muito caro: estacionamento, ingresso, comida. Fora do padrão da realidade brasileira. Só hoje, gastamos mais ou menos, R$400,00.” (#90, mulher, 28 anos, Futebol)

“Valor do lanche. Picolé [de frutas] a R$5,00?” (#212, homem, 59 anos, Futebol)

“Valor ingresso. Não precisava repassar tudo para o usuário.” (#217, mulher, 26 anos, Futebol)

“Preço de tudo. Não posso trazer comida. Sou diabética e tive que deixar minha comida lá fora, pois não deixaram entrar.” (#265, mulher, 64 anos, Futebol)

“O valor ingresso fez com que deixasse de trazer pessoas comigo.” (#418, homem, 38 anos, Futebol)

164 Os autores também exibem dados mostrando que a taxa de motorização do município (que se refere ao número total de veículos para cada mil habitantes) era de 599, em 2011. Este valor é muito próximo daquele da cidade de São Paulo (618) e superior a países como Japão (395), Estados Unidos (478) e Itália (539) (LOBO, CARDOSO e MAGALHÃES, 2013).

264

“Valor ingresso. Tinha que encher tudo. Tem muita parte vaga, muito caro. Antigamente era um preço só e enchia.” (#483, mulher, 59 anos, Futebol)

“Diminuição da capacidade. Diminuição da emoção. Seleção de público. Os que vinham assiduamente com o ingresso a R$10,00 foram espantados, o que torce mais. Diminuiu o incentivo.” (#366, homem, 28 anos, Futebol)

Pudemos verificar que, com a diminuição da capacidade do estádio, os acentos passaram a ser vendidos como raridade. Concomitante a isso, durante a coleta de dados, o Cruzeiro estava em busca do seu segundo título consecutivo no Campeonato Brasileiro. Isso fez com que o clube optasse pela manutenção do valor de ingresso em patamares elevados, principalmente para os torcedores que não se associavam a nenhum programa de fidelidade oferecido pelo clube, isto é, não se tornavam sociotorcedores, fazendo jus à lei da oferta e da procura. Entretanto, também não podemos deixar de pensar, amparada pela pesquisa de Cruz (2005), que o aumento suntuoso dos preços dos ingressos também é uma tentativa de afastar do estádio um público bem específico. De acordo com Giulianotti (2012), há uma tendência mundial de uma homogeneização de estruturas coorporativas de esportes profissionais pautadas em um processo de mercantilização e marketing165, de modo que os torcedores são diretamente influenciados por essa economia. Nesse sentido, os clubes de futebol, em geral, têm feito uma opção por um determinado tipo de torcedores. Giulianotti (2012), na tentativa de traçar uma taxonomia dos torcedores, relata que os clubes cada vez mais tentam se afastar dos torcedores fanáticos na busca pelos torcedores fãs166 que, nos estudos sobre o futebol no Brasil, são denominados consumidores.

165 Giulianotti (2012) relata que, nos Estados Unidos, o beisebol, o basquete, o futebol americano e hóquei no gelo passaram por um processo de mercantilização e marketing que resultou em novas formas de relação entre torcedores e clubes. Na Austrália, esse processo se deu pela incessante tentativa de se construir ligas nacionais de alto nível para clubes de futebol australiano, rúgbi e futebol. De acordo com o autor, a Liga Australiana de Futebol parece ter sido a de maior sucesso na construção de um perfil nacional, popular e lucrativo, tendo, nesse processo, criado novas formas de identificação do torcedor em detrimento das formas mais tradicionais do torcer. 166 De acordo com Giulianotti (2012), há quatro tipos-ideais com os quais é possível identificar e classificar os torcedores. Assim, partindo de duas oposições binárias: quente/frio e tradicional/consumidor, Giulianotti (2012) propôs quatro categorias nas quais os torcedores podem ser identificados: tradicional/quente; tradicional/frio; consumidor/quente e consumidor/frio, isto é, fanáticos, seguidores, fãs e flâneurs, de modo que cada um tem uma forma diferente de se relacionar com o clube e manifestar o pertencimento clubístico. Mesmo sabendo do caráter estático, totalizante e estereotipado dessas classificações, elas se tornam didáticas para compreender esse processo de reformulação dos estádios, no que se refere aos torcedores.

265

O autor define os torcedores fanáticos como aqueles que apresentam um investimento pessoal e emocional de longo prazo com o clube que passa a ser uma extensão da família e da comunidade que o cerca. O estádio é o local de encontro e fortalece a solidariedade entre esses torcedores. Desse encontro, surge a atmosfera especial e única que permeia os estádios de futebol. Embora haja o consumo de mercadorias sobre o clube, não é isso que caracteriza e dá legitimidade a esse grupo. Esses valores vêm do conhecimento e da manutenção das tradições e identidades que o clube tem e são confrontadas por outros clubes. Assim, os torcedores tradicionais são comprometidos com a causa do clube e fomentadores das rivalidades entre clubes. O torcedor fã ou consumidor, embora tenha também um sentimento forte com o clube, é mais afastado do que os torcedores fanáticos. De acordo com Giulianotti (2012), o fã vivencia o clube, suas tradições, seus maiores jogadores e os outros torcedores por meio de um conjunto de relações baseadas no mercado, seja na forma direta (compra de produtos diretamente relacionados ao clube ou contribuição financeira) seja na indireta (compra de revistas e pacotes televisivos sobre futebol). Como têm identidade com o clube e com suas manifestações de pertencimento clubístico, podem se aproximar dos torcedores-fanáticos. Entretanto, se afastam, na medida em que os vínculos com o clube são transformados em uma relação utilitária. Assim, se o investimento feito não for correspondido, o torcedor fã migra para outras atividades de lazer167. Dessa maneira, o aumento dos preços praticados no Mineirão visa atender esse forte mercado do consumo do futebol, no qual se tem o torcedor apto a pagar pelo evento e a contribuir emocionalmente para ele e para o clube que oferece o crescimento de sua marca e o estádio que propicia os recursos necessários para essa fruição. Por fim, algo que também chama a atenção é a reclamação pela qualidade do tropeiro.

167 De acordo com Giulianotti (2012), a nova economia do futebol trouxe à cena o torcedor flâneur. O flâneur do futebol é composto por um público majoritariamente masculino e por um burguês em busca de experiências. Adota uma postura afastada em relação ao clube, no qual a interação é produzida, geralmente, pela mídia e pelo consumo de seu significante (cor da camisa, design, emblema, patrocínio) ao invés do significado conceitual (a identidade específica do clube). A televisão e a internet são os produtores de suas experiências. Assim, consomem imagens. Nesse sentido, as lealdades são transferíveis, já que o compromisso é feito com a imagem vinculada sobre e pelo clube: vitória, riqueza, sofisticação, vanguardismo.

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“O tropeiro não é mais o mesmo, está mais industrializado. Antes, era mais caseiro, tinha ovo. Tinha tradição, principalmente para os homens.” (#167, mulher, 33 anos, Futebol)

“O tropeiro de antes era parecido com o da nossa mãe, hoje é isopor.” (#418, homem, 38 anos, Museu)

“Falta o tropeiro, eu vinha para comer, às vezes, assistia já que já estava aqui. A qualidade não é a mesma.” (#92, homem, Futebol)

“O tropeiro era mais gostoso. As tias que faziam cada uma em seu bar. Agora é tudo de São Paulo.” (#66, homem, 52 anos, Futebol)

“A comida era melhor, principalmente o tropeiro. Hoje, tem nutricionista... mas antes era melhor. Antes, o tropeiro era referência, hoje não.” (#169, homem, 25 anos, Futebol)

Estamos em Minas. Ao invés de fazer uma comida tradicional, um tropeiro bom... Esse é horrível. Nota 1, porque para comida não se dá zero. Trabalho na vigilância sanitária e dizem que todo esse controle é por conta da salmonela e do excesso de gordura. Mas quantas pessoas já comeram aqui e quantas já morreram? (#212, homem, 59 anos, Futebol)

Ovo no tropeiro e cerveja com álcool. Por que tiraram o ovo? É uma tradição, é típico. É igual vaca atolada: sem mandioca ou frango com quiabo sem quiabo. (#280, homem, 19 anos, Futebol)

A análise das frases acima mereceria um estudo à parte, já que o descontentamento indica que o tropeiro significou muito mais do que um prato de comida. Por trás dessa iguaria da culinária mineira, estão presentes conceitos tais como identidade regional, tradição, patrimônio cultural, pertencimento e sociabilidade. O tropeiro é algo tão forte no Mineirão que a incerteza entre a sua permanência ou a sua supressão no Mineirão após a reforma ganhou reportagens na mídia impressa168.

168 Patrimônio ameaçado: a reforma do Mineirão põe em risco o tropeirão. Revista Piauí, Edição 56, Seção Esquina, Maio de 2011. Disponível em: . Acesso em: em 01 set. 2014.

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Em linhas gerais, após a reforma, os bares do Mineirão passaram por licitação e a empresa vencedora – GSH169 – é formada pela parceria entre uma empresa alemã com uma austríaca. Tem escritórios nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, além de Berlim, Moscou e Londres. Logo, se considera uma empresa global. Ao mesmo tempo, o projeto arquitetônico da reforma não previu uma cozinha em todos os bares. Com isso, não houve o alvará do corpo de bombeiros para que se cozinhasse em grande parte dos bares do estádio. Assim, no Mineirão, havia duas cozinhas centrais, nas quais os cozinheiros da GSH preparavam o tropeiro e o distribuíam entre os bares responsáveis pela sua venda. Segundo o entrevistado C, havia no contrato entre a Minas Arena e a GSH os ingredientes mínimos necessários para a elaboração de um tropeiro na tentativa de garantir uma receita básica. Entretanto, o alimento comercializado teve baixa aceitação entre o público e, durante muito tempo, foi alvo de críticas e de reclamação que ultrapassavam os limites da culinária e contestavam a própria reforma do estádio170 conforme ilustra a charge abaixo.

Figura 38 – Crítica ao tropeiro

Fonte - http://blog.chicomaia.com.br/, apud GUSTIN (2014)

169 Nome fictício. 170 “Feijão Tropeiro do Mineirão: caso de polícia”. Disponível em: . Acesso em: 08 jan. 2016. “Novo tropeiro do Mineirão é alvo de reclamações”. Disponível em: . Acesso em: 08 jan. 2016.

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A situação só foi amenizada quando a GSH decidiu alugar os bares individualmente e contratar alguns dos antigos cozinheiros.

Voltei porque as pessoas que estavam aqui não deram certo. Vou te explicar como é que eu voltei. Teve um show aqui na esplanada. Conheci um dos chefes [dirigente da Minas Arena] e fiz um sanduíche para a Minas Arena. Expliquei para ele que eu já tinha trabalhado aqui e tudo. Aí ele falou para mim: “─ Nossa, nós estamos atrás de gente que trabalhou aqui, porque têm pessoas aqui que não estão dando certo, estão acontecendo uns problemas”. E me contou os problemas todos que estavam acontecendo com o tropeiro. Ele me perguntou se eu tinha as documentações da empresa e eu falei: “─ Tenho’. Então, fui à Minas Arena, conversei com ele e eles me colocaram em contato com a GSH. Eles fizeram o teste comigo e eu passei. Passei e comecei a trabalhar. (Entrevistada A)

Com a incorporação dos antigos funcionários e, minimamente, o que eles representam para a cultura do estádio, a situação foi contornada.

“Olha, o tropeiro aqui... Eu faço o mesmo tropeiro até hoje. A única diferença é que não tem ovo frito, certo?! Então, o pessoal não aceita isso de maneira nenhuma. A briga aqui é por causa do ovo, mas o meu tropeiro continua o mesmo. Então, eles falam: “─Ah... o tropeiro não é o mesmo.” E eu digo que é o mesmo tropeiro, só que não vai com o ovo. E o prato... porque antes era naquele prato n. 22. Não sei se você se lembra. Era um prato assim [e me mostrou o tamanho do prato]. A comida ficava mais bonita no prato. Hoje é marmita. E por que é marmita? Porque o padrão hoje é diferente. Chega um freguês aqui e ele quer levar quatro tropeiros. Na marmita, ele pode por as quatro empilhadas uma em cima da outra e levar. No prato, não”. (Entrevistada A)

Assim, por meio de um episódio envolvendo um simples prato da culinária presente no estádio: o feijão tropeiro, podemos observar as duas forças que agem sobre o território produzindo arranjos territoriais: a verticalidade e a horizontalidade. De acordo com Santos (1996), as verticalidades são representadas pelo capital internacional e os agentes hegemônicos que agem sobre o território em um

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processo homogeneizante e hierárquico. Às vezes, chegam como vetores de modernização, instalando uma ordem em seu próprio benefício, por meio de normas rígidas. Já as horizontalidades se referem às relações existentes entre os fenômenos e a sua incidência sobre o território que apresenta saberes e relações grupais.

As verticalidades são vetores de uma racionalidade superior e do discurso pragmático dos setores hegemônicos, criando um cotidiano obediente e disciplinado. As horizontalidades são tanto o lugar da finalidade imposta de fora, de longe e de cima, quanto o da contra-finalidade, localmente gerada. Elas são o teatro de um cotidiano conforme, mas não obrigatoriamente conformista e, simultaneamente, o lugar da cegueira e da descoberta, da complacência e da revolta (SANTOS, 1996, p. 227).

Com isso, sempre no território agirão forças estrangeiras a ele e forças locais. O fortalecimento dessas forças locais – as horizontalidades – pode, segundo Santos (1996), estar a serviço do interesse coletivo, transformando-se em força política que se contrapõe às tendências meramente verticalizantes, ampliando o debate para o conjunto da sociedade local. No caso específico, houve uma adaptação de ambos, isto é, as forças hegemônicas tiveram que recorrer ao saber local e este teve que se enquadrar às normas.

“O tropeiro no início era ruim, mas agora ficou bom de novo. O de antigamente era pesado, com gordura, com tudo. Agora tá light.” (#118, homem, 32 anos, Futebol)

A tensão e a desordem geradas pelas forças verticalizantes que agem sobre o território também foram expressas quando os torcedores apontaram as coisas de que mais sentiam falta do Mineirão antes da reforma, isto é, o que existia e que, com a reforma, deixou de existir. Os dados apresentados no gráfico 7 demonstram que 30% dos torcedores apontou o tropeiro; 23,3% os barraqueiros e 19,2% a cerveja com álcool.

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Gráfico 8 – Do de que os torcedores sentem falta do Mineirão antes da reforma (%)

Arquibancada sem cadeira 1,7 1,4 Árvores 30 23,3 Barraqueiros

Capacidade

Cerveja com álcool

3,8 Clássico com duas torcidas

3,5 Conversa fiada/encontro

Enfeite/Bandeiras das TO’s 6,6 Estacionamento 19,2 Feira de carros

Geral 17,4 2,8 Preços mais baratos (ingresso, comida, estacionamento) 3,1 Tremer 4,5 3,1 1,7 14,3 Tropeiro

Fonte - Elaborado pela autora da tese.

Verificamos que as três coisas de que o torcedor mais sente falta no Mineirão estão relacionadas à alimentação. Em um primeiro momento, poderíamos pensar que o alimentar-se diz respeito à satisfação de uma das necessidades básicas do ser humano. Inclusive, algumas falas dão a entender que seja somente isso.

“Com os barraqueiros era mais acessível comprar cerveja e comida. Hoje, só tem um posto, do lado da [avenida] Abrahão Caran, na [avenida] Catalão não tem nada.” (#170, homem, 29 anos, Futebol)

“Pessoal do lado de fora na esplanada vendendo coisas.” (#214, mulher, 29 anos, Futebol)

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Sinto falta das barraquinhas. Vendiam lanche, tropeiro e cerveja. Eram perto do estádio. Acabava de tomar e entrava para o jogo. (#428, homem, 30 anos, Futebol)

Entretanto, no contexto da experiência do estádio para o torcedor mineiro, o alimentar-se tem um sentido mais amplo, constituído por outros elementos que vão além do aspecto nutricional. Nesse contexto, envolve a temporalidade do jogo, questões de gênero, apropriação e encontros. Assim, a comida funciona aqui como catalizadora e mediadora das relações sociais.

“Sinto falta da hospitalidade. Com o padrão FIFA perdeu o jeitinho mineiro. O acolhimento do entorno com os barraqueiros e o estacionamento e a prestação de serviços. Hoje, é mais voltado para o material e menos para as pessoas.” (#18, homem, 47 anos, Futebol)

“Sinto falta da bebida e das barraquinhas. Tinha opção de alimentação, bebida e conversa. Hoje, eu só chego para o jogo.” (#344, homem, 33 anos, Futebol)

“Sinto falta das resenhas antes do jogo no entorno do estádio.” (#155, homem, 33 anos, Futebol)

“Amizade lá fora. Tomar cerveja. Chegar mais cedo com a família, a mulher ia embora e você ficava para o jogo. Hoje, está uma frescura danada”. (#364, homem, 57 anos, Futebol)

“Sinto falta dos barraqueiros, da Barraca da Goreti, entre os Portões 3 e 6. Ela guardava cerveja para gente quando o jogo era cheio. Depois, com a proibição, ela passou a guardar na Kombi e ia lá, despistadamente, pegar.” (#261, homem, 42 anos, Futebol)

“Sinto falta das barracas, porque dava para fazer amizade com o pessoal. Tinha tropeiro, churrasco, cerveja. Já tinha o barraqueiro certo. Eles até guardavam o capacete pra gente. Vinha de moto e deixava o capacete com eles, depois pegava.” (#311, homem, 29 anos, Futebol)

Como dito no capítulo 3, no lado externo do estádio havia um comércio informal de alimentos e de artigos (não) relacionados ao futebol. De acordo com Miranda e Merladet (2013) e Gustin (2014), os vendedores ambulantes chegaram ao Mineirão ainda na sua construção, auxiliando no fornecimento de alimento para os

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operários que trabalhavam na obra. Quando o estádio foi inaugurado, em dias de jogos, eles permaneceram vendendo laranja, amendoim, pipoca e outros alimentos que não necessitavam de uma estrutura física para a produção. Aos poucos, o comércio foi se estruturando e dando lugar a uma atividade mais estruturada. Com isso, cada um passou a possuir barracas e comercializar alimentos como churrasco, sanduíche de pernil, salgados fritos e assados. Os barraqueiros se posicionavam nas laterais do Mineirão, próximos às suas paredes, distribuídos pelos onze portões do estádio. Em 1991, esse comércio foi licenciado pela ADEMG. Algum tempo depois, os barraqueiros formaram a Associação dos Barraqueiros do Entorno do Mineirão – ABAEM171. Miranda e Merladet (2013) e Gustin (2014) apontam que, ao longo dos anos, sucederam-se períodos de fiscalização e de informalidade em relação à situação dos barraqueiros, dificultando a sua organização e a dignidade da condição de trabalho, pois se tratava de uma produção artesanal, familiar, de comerciantes ambulantes.

O caráter artesanal pode ser percebido, primeiramente, porque os alimentos são produzidos manualmente. Na produção são utilizadas matérias-primas industrializadas, embora o preparo do alimento envolva todo um saber tradicional que tem raízes fundas na cultura brasileira e belo-horizontina. Além do mais, a sua produção se dá em pequenos grupos (barracas) e não de maneira centralizada, para posterior distribuição. [...] O comércio é popular, de pequena escala e frequentemente organizado em núcleos familiares e de vizinhança e algumas vezes com mão-de-obra contratada. Embora exista a clara intenção de obter o sustento da família daquela atividade, o trabalho não é dividido e planificado por mecanismos administrativos de mercado (MIRANDA e MERLADET, 2013, p. 71).

Concomitantemente, a Pampulha era uma região recém-inaugurada e oferecia poucos serviços, com o agravante de que a lei não permitia o uso não residencial para a região172. Dessa forma, os barraqueiros acabaram se tornando

171 Na atualidade, a ABAEM reivindica ao poder público o direito de trabalho no entorno do Mineirão ou a recolocação de seus membros no mercado de trabalho. 172 Segundo Ferreira (2015), nas legislações municipais vigentes, havia o interesse em consolidar a Pampulha como complexo recreativo e de turismo ecológico. Paradoxalmente a esse interesse, porém, a Lei n. 7.166/1996 impedia que isso acontecesse, pois não se permitia o uso não residencial da região. Essa prerrogativa só foi revogada com a promulgação da Lei n. 8.137/2000 que passou a permitir, na orla da lagoa da Pampulha, os serviços de alimentação, estacionamento, apoio ao

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uma opção para os torcedores. Com o tempo, os torcedores passaram a chegar mais cedo ao estádio para almoçar/jantar nos barraqueiros. Nesse tempo-espaço, de acordo com Gustin (2014), os barraqueiros do Mineirão tornaram-se parte central dessa experiência de estádio que contribuía para o encontro de e entre classes. Nem sempre esses encontros e vínculos eram formados de forma respeitosa como apontam os trechos abaixo.

Na barraca, a gente via o juiz, o promotor, comendo o mesmo tropeirão e pão com pernil que o ladrãozinho, ao lado dele. Misturavam todas as classes sociais. (E.P.S., Barraqueiro, apud GUSTIN, 2014, p.25)

“O único problema que a gente tinha lá fora era com pivete. Hoje, não tem mais no Mineirão. Hoje, eu não vejo pivete no Mineirão. Pivete no Mineirão antes, você tinha que trabalhar com um pedaço de pau na mão, eles pegavam as coisas e saíam correndo. Você estava comendo na mesa, eles chegavam assim no freguês e pegavam a marmita e saíam rindo da sua cara.” (Entrevistada A)

Essa convivência e essa pluralidade de acontecimentos que ocorriam no Mineirão com o próprio sujeito ou com conhecidos, agregada ao futebol, ao pertencimento clubístico, também constituíam a experiência do estádio. Em uma análise mais ampliada, essas tramas formavam o enredo para as narrativas do/no estádio.

A narrativa é uma forma artesanal de comunicação. Dessa maneira, a narrativa possui a marca do narrador, igual a um trabalho artesanal Seja na qualidade de quem as viveu ou na qualidade de quem as relata (BEJAMIN, 1994, sp).

Nesse contexto, vários torcedores e vendedores tornavam-se narradores. Benjamim (1994) descreve o narrador como um sujeito que tem suas raízes no povo. É um ser humilde, capaz de narrar uma experiência que é, ao mesmo tempo, coletiva e individual. O narrador é alguém que sabe dar conselhos, porque tem

visitante, diversão e comunicação dentre outros tipos de serviços tidos como turísticos. Com a aprovação da Lei n. 9.959/2010, ampliou-se a permissividade de atividades econômicas na Pampulha, o que possibilitou a implantação de meios de hospedagem comercial no limite da área tombada.

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sabedoria, e a sabedoria é adquirida com o tempo e com o acúmulo de experiências. Ainda, segundo o autor, a arte de narrar não provém apenas da fala. Ela é também a coordenação da voz, com a alma, com o olhar e com a mão de quem narra. Assim, nesse tempo que antecedia a partida, diante da comida e da bebida, os sujeitos trocavam impressões sobre o time, davam conselhos, escutavam uns aos outros. Nesses encontros, o saber narrado vinha dos assuntos relacionados com o clube, mas passavam por outras esferas da vida.

“O que eu gostava? Vou te falar o que eu sinto falta... Eu sinto falta das minhas mesas aqui na frente. Sinto falta da minha televisão dentro do bar que eu ficava assistindo minhas novelas, meu jornal, tudo. Hoje não pode mais. Ah, e outra coisa que eu sinto mais falta é ver o jogo. Olha esse espaço. É grande e não pode pôr mesas. Antes, as pessoas chegavam, sentavam, ficavam ali, eu ia lá, conversava com todo mundo, sempre conversei com todo mundo. Sentava na mesa e batia papo com todo mundo, sabe. Então, eu sinto falta. Antes, a gente podia ir lá aos jogadores, hoje você não pode nem passar perto dos jogadores. Eu tenho foto dos jogadores em cima do carro quando o Cruzeiro foi campeão em 2003, em cima do carro do corpo de bombeiros, eu tenho foto. Vou trazer para você ver. Eu entrava no campo e tirava retrato. Agora eu fico aqui, não posso nem bisbilhotar. Eu ainda posso ir lá, mas funcionário meu, nenhum pode chegar na beira do campo, isso foi proibido. Não, não pode. Mas o que eu sinto é isso. Você precisa ver meus retratos.” (Entrevistada A)

A princípio, o que a reforma trouxe foi a privação de uma oportunidade de intercambiar experiências. Narrador e narrativa necessitam experiência, e a experiência necessita tempo. É nesse sentido que Benjamin (1994) diz que o narrador é um artesão e a narrativa, uma arte artesanal.

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo.

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E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual (BENJAMIN, 1994, sp).

Podemos pensar que, nesse contexto, a narrativa e a cultura mineira se encontram, uma vez que Minas Gerais, por meio da mineração, agricultura, artesanato, culinária e pelos tropeiros, entre outros, se constituiu em um estado onde o tempo da produção era o tempo da natureza e o tempo da conversa. A retirada desse comércio do entorno do Mineirão fez com que diminuísse essa forma de comunicação, uma vez que a arte de contar histórias depende da disposição para escutá-las para depois contá-las. Ainda, segundo Benjamin (1994, sp), “[...] o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado. Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa”. Assim, podemos perceber que a reforma do Mineirão, inserida em um contexto no qual há a valorização exacerbada do giro do capital, tenta eliminar uma tradição local, repassando a responsabilidade para o poder público, outras para o projeto executivo da obra, para a atividade em si ou para os órgãos de financiamento, minando um dos componentes da identidade do torcedor mineiro.

“Bom... antes era feito de uma forma... meio desarranjada, por exemplo, os barraqueiros. Não existe um controle sanitário, de alimentação... coisa que a gente não pode fazer aqui. Eles não tinham onde colocar rejeitos, lixo, jogavam óleo no pé de árvore, como está acontecendo na área externa. As pessoas que trabalham ali trabalham em situação análoga à escravidão, porque não tem carteira assinada, não tem documentação, não tem nada, não tem horário de descanso, não tem horário de almoço, não tem nada, nem banheiro... o banheiro eram as árvores. Então, é pacifico que é uma atividade irregular e nós como PPP não podemos conviver com a atividade irregular. O poder público não dando conta do problema lá fora, que é crônico, o desarranjo de ocupação da região é muito grande, e o poder público, sem a fiscalização sanitária, sem ter a fiscalização de ambulantes, sem ter a fiscalização de tudo isso, não dão conta. Porque, ontem, em uma reunião, foi falado para nós que o melhor era jogar eles todos dentro da esplanada de novo. Quer dizer, não dão conta e estão querendo jogar por absoluta incapacidade de ação. A reforma do Mineirão teve um custo, esse custo foi como empréstimo. Uma das exigências dos bancos é uma certificação de meio ambiente, uma certificação ambiental. E nós conseguimos a maior certificação mundial que é a Platinum e conseguimos agora a Medalha Chico Mendes. Nós temos que fazer porque senão nós não conseguimos empréstimo ou renegociar o empréstimo. Isso é

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necessidade. O Mineirão foi construído em um escopo e esse escopo não prevê estrutura de canalização, etc, etc, etc, para a esplanada. A presença do barraqueiro vai gerar resíduos, vai demandar água, escoamento de esgoto, de resíduos sólidos, vai gerar uma série de coisas e a esplanada não foi projetada para isso. Isso não está no caderno de operações exigido para a Minas Arena. Não está no projeto, o projeto não foi licitado com isso. Então, é possível fazer? É possível fazer, desde que alguém pague essa conta para fazer, isso tem um custo, montar toda essa estrutura de novo tem um custo. Depois, vai desvirtuar o conceito inicial de amplitude da esplanada. Como ficou na FIFA foi muito bom! Muito bom nada, foi uma merda, porque aquelas barracas, aqueles banheiros que eles montaram aqui, aquelas tendas, o público não conseguia circular. Mas a FIFA pode tudo, tem uma lei especial para ela. Nós não temos, nossa lei aqui é... nosso caderno de atribuições aqui o público tem que ter circulação, na FIFA não teve, mas ninguém fala nada, tudo é FIFA, bacana. Então, a possibilidade existe, nós temos sofrido pressão enorme, principalmente pelos moradores do entorno” (Entrevistado C)

Contudo, o espaço é dinâmico e estratégias à retirada dos barraqueiros foram criadas. Uma delas, de caráter mercadológico, foi a proliferação de bares e restaurantes no entorno do estádio, principalmente, em direção à Avenida Abrahão Caran, sendo que alguns, antes da reforma, funcionavam como estacionamento (figura 38). A outra foi uma tentativa do poder público de relocação desse comércio ambulante, permitindo a permanência de carros que comercializam alimentos no entorno do estádio. Entretanto, ao longo da pesquisa de campo, percebi que em alguns momentos esse comércio estava mais próximo do estádio e, em outros, mais distantes, variando com as determinações do poder público para cada partida. Assim, a localização dos carros de comida não era fixa e nem a sua presença era constante (figura 39). A terceira estratégia percebida partiu dos próprios torcedores que, enquanto esperavam o início da partida, levavam tira-gosto ou faziam churrasco no entorno do estádio (figura 40).

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Figura 39 – Bares e restaurantes no entorno do Mineirão

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 17/08/2014.

Figura 40 – Comércio ambulante de alimentos no entorno do Mineirão

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 09/10/2013.

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Figura 41 – Confraternização dos torcedores próximos ao Mineirão

Fonte - FERREIRA, 2015, p. 173.

6.4 O churrasquinho no entorno do estádio – nova forma de apropriação

De acordo com alguns pesquisadores (MASCARENHAS, 2013; GUSTIN, 2015), a proibição do comércio ambulante próximo ao estádio entra em consonância com a política atual de renovação urbana, que visa à eliminação de aspectos culturais locais e populares em detrimento de formas renovadas e globalizadas de consumo.

É importante notar que o comércio popular cumpre dois papéis. Além de ser alternativa de renda para a classe popular, é também alternativa de consumo para a população de baixa renda. Dessa forma, a exclusão dos barraqueiros cumpre dupla função no processo de elitização: elimina do espaço os vendedores de baixa renda, que, em si, são incompatíveis com as novas demandas estéticas do espaço renovado, bem como contribui para afastar do estádio os consumidores de baixa renda, que passam a ter um espaço que não corresponde a seus anseios e possibilidades de consumo (GUSTIN, 2015, p. 23).

Todavia, apesar do o esforço do poder público de retirar as práticas populares do entorno do Mineirão, o que se viu, ao longo da pesquisa de campo, foi

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a reinvenção dessas práticas, desses encontros, de modo que a tradição de chegar cedo ao estádio, se alimentar e encontrar os amigos se perpetuasse. Assim, nos jogos dos finais de semana, um público majoritariamente masculino173 costuma trazer comida – petiscos e tira-gosto – e se reunir nas vias ao redor do estádio para comer e conversar, esperando pelo horário da partida.

Às 14 horas, cheguei ao canteiro central da Av. Abrahão Caran. Encontrei um grupo de aproximadamente 20 pessoas vindas de Oliveira (MG). O grupo era composto por uma criança, cinco mulheres e 14 homens. Eles estavam reunidos em torno de uma caixa térmica com cerveja e um isopor que continha os tira-gostos: azeitona, queijo, salsicha. Vieram de van alugada e disseram que tinham acabado de chegar. Quando cheguei, uma das mulheres estava sentada em cima da placa de uma propaganda política, logo depois, chegou o seu relacionamento afetivo masculino trazendo um sanduíche de pernil comprado em um veículo de comercialização de alimento estacionado próximo ao local. A conversa transcorreu tranquilamente e o clima era de socialização. Um dos membros do grupo disse que o Mineirão está mal aproveitado, pois, se houvesse barraquinhas do lado de dentro ou se os produtos fossem mais baratos, estariam lá, comendo e bebendo, fazendo do estádio um local de socialização e não apenas um local para assistir aos jogos. Disseram que, em todos os jogos a que vêm, costumam fazer a mesma coisa. (Caderno de campo, 17/08/2014, Futebol)

Outros grupos vão mais além e se reúnem para fazerem churrasquinho nos arredores do estádio. O principal ponto é a Praça Alfredo Camarati. Essa prática, porém, também se espalhou por outras ruas próximas ao Mineirão. A praça é pequena e não tem nenhum equipamento de lazer, tampouco apresenta um jardim. Tem apenas grama e duas árvores frondosas. Está a um quarteirão do Mineirão. Em uma das ruas que a cerca, foi construído um bar, na outra, estão estacionados alguns veículos que vendem alimento (figura 41).

173 Geralmente as mulheres presentes nos grupos de torcedores são parentes: relacionamento afetivo, mãe, irmã, cunhada. Não vi grupos só de mulheres. Também não é um espaço muito frequentado por crianças, embora algumas estejam lá.

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Figura 42 – Visão parcial da praça Alfredo Camarati e os torcedores reunidos na sombra

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 02/11/2014.

Nos finais de semana174, o seu espaço é ocupado pelos torcedores. Alguns vão apenas desfrutar do ambiente. Não bebem e nem comem, mas ficam sentados na grama, conversando e/ou esperando alguém e/ou o horário de entrar no estádio. Outros levam o isopor com cerveja para molhar a palavra até a hora do jogo. Alguns aproveitam para comprar alguma comida nos veículos que vendem alimento, mas a maioria não. Entretanto, a maioria dos torcedores que vão até a praça está em busca do espaço para o churrasquinho. Aglomeram-se debaixo da sombra das duas árvores e em torno de suas churrasqueiras. Os grupos são formados por, no mínimo, seis pessoas. O cheiro de churrasco é intenso. Embora não tenha aprofundado na observação entre os grupos, de longe e de fora pude perceber que não há interação entre os grupos, por mais próximos que estejam um dos outros.

174 Nos jogos realizados durante a semana e no período da noite, a presença dessa prática é bastante reduzida. Segundo o relato de alguns torcedores, quando o jogo é às 20 horas, o tempo entre sair do trabalho e o início da partida não permite a realização do churrasco. Já, nos jogos das 22 horas, alguns, considerados os mais empolgados, tentam acender a churrasqueira, mas são poucos.

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Quem vai para o churrasco costuma chegar com muita antecedência do início da partida175, enquanto o grupo que só vai para beber ou desfrutar do ambiente costuma chegar com, aproximadamente, duas horas de antecedência.

O jogo era às 17 horas e o grupo me informou que estava lá desde as 10:30h. Disseram que era o tempo ideal para arrumar estacionamento, montar os apetrechos do churrasco, gelar a cerveja, comer, beber, conversar, guardar as coisas e ir para o jogo. (Caderno de campo, 02/11/2014, Futebol)

Geralmente, são os mesmos grupos que fazem o churrasco. E, em sua maioria, o sistema é comunitário, isto é, cada um do grupo fica responsável por trazer uma parte do churrasco. Assim, levam todo o material necessário para a preparação do churrasco: minichurrasqueira, carvão, carne (porco, boi, linguiça e/ou espetinho), cerveja, isopor, sal grosso, faca/garfo, tábua, pratinho, banquinho, mesa. Cada grupo se reúne ao redor de suas churrasqueiras e, enquanto a carne assa, bebem e conversam (figura 42). O cardápio não é restrito ao churrasco e à bebida, isto é, cerveja.

Figura 43 – Confraternização dos torcedores na praça

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 02/11/2014.

175 Em conversa com os vários grupos, o tempo médio de antecedência do início da partida variava entre cinco a sete horas.

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Entretanto, presenciei alguns grupos que dispunham de uma infraestrutura diferenciada, pois terceirizavam a preparação do churrasco e/ou cobravam valores diferenciados para a participação. Como um exemplo desses sistemas, encontrei um grupo cujos membros eram moradores do bairro Riacho, município de Contagem (RMBH). Em conversa, o líder do grupo disse-me que o encontro começou com um grupo pequeno e familiar, quando iam de van assistir às partidas do Cruzeiro na Arena do Jacaré, na cidade de Sete Lagoas176, enquanto o Mineirão estava fechado para a reforma. Enquanto o jogo não começava, faziam o churrasquinho. Com a reinauguração do Mineirão e a ausência dos barraqueiros, a prática permaneceu e o grupo aumentou. Oficialmente, tem em torno de 50 participantes. O líder do grupo é o responsável por organizar o evento via whatsapp, fazendo a lista dos participantes confirmados, realizar a compra da carne e levar os vasilhames e demais apetrechos (toalha de papel, molhos, guardanapo, copos de plástico e até maleta de primeiros socorros). Os membros do grupo apenas se responsabilizam pela bebida que forem consumir. Em cada evento há o recolhimento da taxa de R$ 10,00 reais referente ao rateio das despesas. Para ingressar no grupo, é necessário ser convidado por um dos participantes.

Figura 44 – Super estrutura do churrasco na praça

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 02/11/2014.

176 Distante aproximadamente 64 quilômetros do Mineirão.

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Os grupos de torcedores não contam com nenhum tipo de infraestrura pública para a realização do evento, pois não há banheiros públicos/químicos, lixeira, água e estacionamento. Com isso, o resíduo sólido é descartado de acordo com a consciência de cada grupo. Muitos homens fazem da via pública um mictório a céu aberto, enquanto as mulheres recorrem ao banheiro de um bar próximo. Ajudam na limpeza do local os catadores de alumínio.

“Não se tem controle dos flanelinhas. Eles chegam a cobrar R$50,00. É uma extorsão e, se você disser que não vai pagar, eles ameaçam arranhar e/ou depredar o carro. Também, se precisar lavar uma mão não tem água, se quer utilizar um banheiro, não tem. Se fosse na Europa, eles iam arrumar uma estrutura, iam organizar a parada, iam transformar em uma atração e iam incentivar o uso. Aqui, não. A primeira coisa que fazem é coibir, alegando que atrapalha o fluxo de pedestres. Não veem que isso traz turista, traz dinheiro para o munícipio, o turista vem e gasta aqui em BH.” (Caderno de campo, 02/11/2014, Futebol, conversa com o torcedor #304)

Outra queixa dos torcedores refere-se ao fato de não haver um consenso sobre a utilização ou não do espaço.

“Tem dias que o fiscal da prefeitura passa e retira a gente. Somos obrigados a parar e a guardar tudo. Tem dias que deixam. Isso é o pior, não ter uma padronização.” (#305, homem, 28 anos, Futebol)

A descrição da prática coletiva do churrasquinho no entorno do estádio demonstra que nem todos os torcedores estão em conformidade com todas as mudanças pelas quais o Mineirão passou. Dessa forma, o churrasquinho pode ser visto como uma forma de resistência ao modelo hegemônico, na medida em que tenta recuperar uma prática que foi perdida com a reforma do estádio. Ademais, ele está inserido no processo dialético de produção e reprodução do espaço, uma vez que, enquanto materialidade, contribui para o sentido de realização da vida para além da sobrevivência do indivíduo, tornando-se um tempo-espaço para que experiências sejam apre(e)ndidas e trocadas, perpetuando a narrativa (BEJAMIN, 1994; BONDIA, 2002; CARLOS, 2011).

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Podemos pensar que, no contexto estudado, o churrasquinho no entorno do Mineirão também aparece como uma possibilidade de democratização do espaço para o lazer, uma vez que retoma as ligações afetivas entre o sujeito e a cidade/estádio, além de proporcionar a apropriação de uma praça que, comumente, é vista apenas como um local de passagem. De acordo com Marcellino (2007a), o fato de nossa sociedade estar marcada por um consumismo das obras da indústria cultural e pela baixa construção da memória histórica faz com que se alimente a crença da impossibilidade da conciliação entre tradição e progresso. Mesmo que tais termos devam ser questionados, o autor chama a atenção para a valorização da memória cultural que, em seu sentido mais amplo, abrange os usos e costumes de uma comunidade. Nesse sentido, Marcellino (2007a, p. 12) aponta que “[...] a participação comunitária é fundamental para o conhecimento do valor do ambiente e da cultura, e para o incentivo a um comportamento destinado à preservação, valorização e revitalização urbana”. Por fim, o autor supracitado diz que o lazer é uma das formas de valorizar e preservar o patrimônio cultural de um lugar, desde que não seja entendido como um mero item da indústria cultural.

Assim, é muito importante a consideração dos patrimônios artísticos, arquitetônicos e urbanísticos, que fazem parte da memória das cidades, como elementos de enriquecimento da paisagem urbana. Esse Patrimônio Ambiental Urbano, desde que preservado e revitalizado, pode e deve se constituir em novos equipamentos específicos de lazer. Além disso, contribui de maneira significativa para uma vivência mais rica da cidade, quebrando a monotonia dos conjuntos, estabelecendo pontos de referência e mesmo vínculos afetivos. Outro aspecto, não menos importante, é que, se preservando a identidade dos locais, pode-se manter, e até mesmo aumentar o potencial turístico de nossas cidades (MARCELLINO, 2007a, p. 12).

Entretanto, percebemos que o grupo de torcedores que realiza o churrasco não conta com uma organização política e tampouco com uma ação política organizada para que possam reivindicar, junto ao poder público, uma infraestrutura necessária para a realização do churrasco no entorno do Mineirão e nem o seu reconhecimento enquanto uma prática cultural. Assim, notamos que a

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resistência ao modelo hegemônico se dá mais no plano da ação individual de uma parcela de torcedores do que no plano da política177. Por outro lado, o poder público não tem clareza de qual ação tomar com esses torcedores e a prática realizada por eles, daí a inconstância, a incoerência e a ineficiência da fiscalização. O que se nota, porém, nas falas dos torcedores é que há pouco diálogo com o poder público, uma vez que apontam que a proibição é a primeira ação tomada. Nesse sentido, observamos, por parte do poder público, que, ao invés de se aproximar do dialogo para a valorização de uma cultura local e uma solução política para o problema, elimina-o por meio da coerção. Rua (1998, sp) aponta que “[...] o problema com o uso da coerção é que, quanto mais é utilizada, mais reduzido se torna o seu impacto e mais elevado se torna o seu custo”.

6.5 Domingo de clássico

O primeiro clássico ocorrido no Mineirão após a reforma e que contou como marco de sua reinauguração foi disputado em 03/02/2013, pela primeira rodada do Campeonato Mineiro do referido ano. Foi um jogo festivo e com grande apelo simbólico e midiático (ABRAHÃO et al., 2013). O clima era de festa, e as duas torcidas contavam com 50% do espaço da arquibancada cada uma. Havia uma expectativa por parte de todos os presentes, já que, depois de dois anos fechado, o estádio voltaria a ser o palco do futebol mineiro e com cara nova. No entanto, a falta de organização, a quantidade de interesses envolvidos e a pouca experiência dos gestores do Novo Mineirão, fizeram com que a estrutura apresentada não condissesse com o que havia sido anunciado (ABRAHÃO et al., 2013). Eis o que diz o entrevistado C.

“Esse jogo não entra em nossas estatísticas. Ele foi um desvio. Ninguém estava preparado”.

177 De acordo com Rua (1998, sp), “[...] a política consiste no conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica dos conflitos quanto a bens públicos”. Segundo a autora, um dos atores políticos são os trabalhadores, porém seu poder vem de sua ação organizada, expressa por meio de sindicatos. Nesse sentido, podemos estender o pensamento para os torcedores e pensar que o seu poder, enquanto grupo, se dará por meio da criação de uma associação de torcedores. Ademais, a autora também cita que outra forma de atuação, individual ou coletiva, incluiu manifestações e/ou atitudes radicais como greve de fome, por exemplo, que sejam capazes de causar constrangimento e/ou mobilizar a opinião pública.

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Se, nesse clássico, a divisão dos torcedores foi feita à moda antiga, isto é, a divisão igualitária de ingressos por clube e a apropriação das vias para cada torcida, depois dela, os clássicos passaram a ter outra configuração, já que, como os clubes passaram a ser tratados como clientes, foram feitos contratos diferentes com cada um. Assim, uma das cláusulas firmadas entre Cruzeiro e Minas Arena foi o cumprimento do artigo 86, do Regulamento Geral das Competições, da Confederação Brasileira de Futebol, que versa sobre a carga máxima de 10% dos ingressos para a equipe visitante.

Art. 80 – O clube visitante terá o direito de adquirir, com pagamento prévio, a quantidade máxima de ingressos correspondente a dez por cento (10%) da capacidade do estádio ou da capacidade permitida pelos órgãos de segurança, desde que se manifeste em até três (3) dias úteis antes da realização da partida através de ofício dirigido ao clube mandante, obrigatoriamente com cópia às federações envolvidas e à DCO178.

Parágrafo único – Em cumprimento de acordo assinado entre os clubes, inclusive para situações de reciprocidade, a disponibilidade de ingresso para o visitante poderá ser superior aos dez por cento (10%) da capacidade do estádio (CBF, 2014, sp).

Dessa maneira, após esse primeiro clássico, todos os demais tiveram 90% dos ingressos comercializados para a equipe mandante e 10% para a equipe visitante. Nessa nova perspectiva, o tratamento dado ao clássico é igual ao de qualquer outra equipe adversária. Ademais, durante o período em que o Mineirão estava fechado para reforma, os clubes belo-horizontinos também assinaram contrato com os administradores do Estádio Independência para o mando de campo de seus jogos e o direito de exploração do estádio durante as partidas. Nessa nova configuração, o Cruzeiro optou pelo Mineirão e o Atlético optou jogar, prioritariamente, no Independência. Dessa maneira, a reforma do Mineirão e também a do Independência179, serviu para marcar uma nova forma de experienciar os clássicos, já que a atmosfera de antes foi suprimida, tanto pelo cumprimento da carga de 10% dos ingressos para a equipe visitante, quanto pelas opções dos clubes de mando de campo. Assim,

178 Diretoria de Competição da CBF 179 O estádio Independência também foi reformado para a Copa, já que se caracterizou como um centro oficial de treinamento. Dessa maneira, também teve que cumprir as exigências da FIFA.

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houve a alteração da territorialidade futebolística na capital mineira: o Independência passou a ser reconhecido como a casa do Atlético e o Mineirão, a casa do Cruzeiro. Alguns torcedores cruzeirenses, embora sintam orgulho de o Mineirão ser majoritariamente usado pelo Cruzeiro, sentem falta do outro e do clima que a rivalidade proporcionava durante os jogos.

“Os aspectos positivos são a estrutura, a esplanada. Não ter violência e o fato do estádio ser só do Cruzeiro.” (#001, homem, 24 anos, Futebol)

“Sinto falta da torcida mista. O futebol não é só de uma torcida, o jogo ficava mais emocionante.” (#415, homem, 31 anos, Futebol)

“Sinto falta das duas torcidas. Dava mais emoção ao jogo.” (#431, homem, 21 anos, Futebol)

Além disso, alguns torcedores atleticanos pesquisados na Situação Esplanada também sentem falta de que os jogos do Atlético sejam realizados, predominantemente, no Mineirão. Cada grupo tem um processo de produção simbólica e discursiva sobre si em oposição ao outro. Nenhuma coletividade se define como uma sem colocar a outra diante de si, já que temos a tendência de nos tomarmos como a norma (algo positivo) e o outro como o diferente (a negação da norma) (SILVA, 2000). Esse raciocínio também está presente no futebol. Cada clube tem o seu outro. Assim, torcer por um clube é reforçar ou ganhar certa identidade por oposição a outra (DAMO, 1998; FRANCO JÚNIOR, 2007). A partir do momento em que se tira o outro do mesmo ambiente, há uma homogeneidade aparente, na qual a afirmação simbólica e cultural da identidade não faz tanto sentido, já que a disputa pela norma não se faz presente180.

A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição - discursiva e linguística - está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem

180 É fato que, dentro de cada grupo de torcedores, há uma heterogeneidade de identidades que passam pela classe social, credo, raça, naturalidade, gênero, gostos culturais entre outras. Além disso, há várias maneiras de se relacionar com o clube. Entretanto, no caso específico, estou trabalhando com a ‘identidade cruzeirense’ e a ‘identidade atleticana’ que abarca essas diferenças entre grupos e exclui a dentro de um mesmo grupo.

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harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas (SILVA, 2000, p.3).

Se no âmbito da produção discursiva sobre a identidade o outro se faz menos presente, na concretude da arquibancada, mesmo com a quantidade de 10%, o outro se faz muito presente e a rivalidade entre as torcidas é motivo de preocupação e prevenção. Assim, para os clássicos, é planejado um esquema de segurança ostensivo. Esse se inicia, como em todos os jogos, dias antes da partida, levando em consideração a situação dos clubes no campeonato, o histórico de rivalidade entre as torcidas, os eventos que estão concomitantemente ocorrendo em Belo Horizonte e a briga entre as torcidas (principalmente quando é clássico), já que todas essas variáveis se inter-relacionam com o jogo propriamente dito.

“A gente faz uma análise de risco completa. Primeiro, pegamos a situação dos clubes dentro desse campeonato e a situação da torcida perante os clubes. Por exemplo, o clube tá mal? A torcida tá agressiva contra ele? Tudo isso impacta aqui. Depois, a rivalidade entre os clubes, o histórico anterior disso. Também nos preocupamos... às vezes, jornalistas ou cronistas esportivos criticam um clube A ou B, mas vêm para cá trabalhar, então essa pessoa é hostilizada. Por exemplo, Galvão Bueno. Ele é hostilizado por todas as torcidas de Minas. É ele chegar e alguém saber que ele está aqui, que é vaiado e inclusive com tentativa de agressão. Nós acompanhamos isso, nós temos um sistema permanente de busca de informação nesse sentido. Então, essa é a primeira análise que a gente faz, da situação dos clubes. A segunda análise é o que está acontecendo na cidade e também como isso irá impactar no nosso prestador de serviço, já que temos que nos preparar para o início da operação e a abertura dos portões. Fazemos também o acompanhamento das torcidas. Os fatos que acontecem com as torcidas. Por exemplo, uma briga numa sexta-feira, de Torcida Organizada na rua, impacta no jogo. Fatalmente ela vai terminar aqui no dia do jogo. A gente acompanha todo o noticiário policial, todas as informações. Nós temos que receber o torcedor bem, ele tem que ser bem tratado desde o portão, para ele tratar bem o espaço que ele está ocupando. Se ele já entra quente, porque já apanhou na rua de polícia ou própria briga e tal, ele já entra com raiva, então a tendência dele é quebrar alguma coisa. É provocar algum dano ou continuar a briga.” (Entrevistado C)

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Para o jogo, é feito uma divisão da esplanada utilizando-se grades. O ambiente se torna hostil, como apontam alguns dos usuários do espaço e a figura 44.

Ao fazermos a volta pela esplanada, chegamos a um muro feito de grades e divisórias. Tratava-se da divisa das torcidas. Formou-se um corredor iniciado na Entrada Norte e que leva direto ao Portão A, com isso, as lojas ficaram do lado do Cruzeiro. A divisa era flexível, igual tudo que divide e cerca o Mineirão. Havia uma fileira de grades menores, uma placa verde de mais ou menos dois metros de altura e mais uma fileira de grades. Em determinado ponto, os agentes da segurança privada tomavam conta de uma passagem que ligava ambos os lados, quando necessário. (Caderno de campo, 19/05/2013, Futebol)

Figura 45 – Preparação da esplanada para o clássico

Fonte - Foto tomada pela autora da tese em 20/09/2014.

Nas arquibancadas, mesmo não havendo mais a divisão igualitária entre as torcidas, a rivalidade permanece, com o adendo de que agora ela é estimulada pelos próprios administradores do Mineirão que vendem o seu painel para anunciantes. Assim, em um dos clássicos observados, no telão houve a exibição de lances vitoriosos do Cruzeiro sobre o Atlético, em uma espécie de aquecimento.

Nesse momento, a Minas Arena começou com as transmissões nos telões. Entre os anúncios, foi exibido o Top 10 gols mais bonitos do Cruzeiro na temporada e as Top 5 Goleadas no Atlético. A cada gol exibido, a torcida se inflava e comemorava como se aquele jogo estivesse ocorrendo naquele exato

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momento. Nesse momento, ainda não havia muitos torcedores atleticanos em campo. A sensação que tive era que aquelas imagens serviam para esquentar a torcida, mas também aguçar a rivalidade da partida. Quando chegou a TO do Atlético o clima ficou tenso. De certa forma, a organização do evento subestimou a presença e a rivalidade existente ao não fazer um reforço maior na divisa. A Prosegur não deu conta de conter os torcedores e a PM foi acionada. (Caderno de campo, 21/09/2014, Futebol)

O clima aquecido se manteve durante as partidas. Assim, entre um lance e outro, xingamentos de desqualificação e cânticos ofensivos foram entoados. É fato que o grau de importância do jogo faz com que o equilíbrio entre tensão-excitação (ELIAS, 1992) penda para um dos dois lados. Assim, os clássicos coadunam com a percepção de Mascarenhas (2013) quando aponta que os torcedores tendem a desobedecer as normas vigentes em busca de uma nova territorialidade e de sua identificação com o aquilo que compreendem como torcer no Mineirão em dia de clássico. Além disso, embora haja o desejo de estabelecer outros hábitos dentro do estádio, o currículo de formação da masculinidade (BANDEIRA, 2010) continua presente, mesmo que com menos intensidade. Dessa maneira, podemos perceber que, embora o esforço por parte de algumas pessoas, entre gestores públicos, administradores do estádio, órgãos da imprensa, clubes, jogadores e torcedores, para que se mude a atmosfera do estádio, vemos que permanências e resistências existem. E, dependendo do jogo e da rivalidade, elas podem ser mais ou menos acessadas.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este trabalho procuramos analisar as formas de uso e de apropriação do Mineirão, tanto em dia de jogos de futebol, quanto em dias sem jogos. Especificamente, propusemo-nos a compreender a opinião dos usuários sobre a reforma do estádio; verificar as relações estabelecidas pelos usuários com o Mineirão, tanto em dias de jogos, quanto em dias sem jogo e comparar as formas de uso sugeridas pelo discurso oficial e a prática da população. A motivação para isso foi a reforma do Mineirão para a Copa do Mundo de 2014, já que, após a sua reinauguração, houve a promessa de um novo tempo para o estádio, criando uma tensão entre a expectativa do que viria a ocorrer com o estádio e a desesperança pela destruição de algo que já estava consolidado. Dessa premissa, surgiram os questionamentos que delimitaram este estudo. Concomitantemente à análise das formas de uso e apropriação do Mineirão após a reforma, este trabalho acabou relatando o processo de produção e reprodução de um espaço, no qual operam forças hegemônicas e não hegemônicas, verticalidades e horizontalidades. E, como toda tentativa de descrever uma prática social e cultural de determinado lugar, sempre há a sensação de incompletude. Ainda mais quando buscamos compreender o processo de constituição de formas de uso e de apropriação de um lugar rico em sentidos e significados e que já contava com uma dinâmica espacial própria e peculiar. Com isso, reconheço que a análise apresentada neste trabalho foi influenciada pela minha relação com a cidade de Belo Horizonte e com o Mineirão. Entretanto, há percepções que se destacam e merecem um olhar detalhado. Assim, este estudo propicia uma ampla capacidade de diálogo com os estudos que se debruçam sobre o espaço urbano, espaços e equipamentos de lazer, futebol e estádios. Além disso, no que se refere à análise do estádio de futebol enquanto espaço e equipamento de lazer, há de se levar em consideração fatores que influenciam na sua forma de uso e de apropriação e que trazem experiências

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diferentes para os sujeitos envolvidos. São alguns deles: relações de gênero, idade, fração de classe; o estádio em si e o que representa; os locais ocupados pelos torcedores no estádio, a localização geográfica do estádio em escalas, o papel exercido pelo sujeito e as partidas assistidas. Assim, é no conjunto dessas experiências e na pluralidade dos sujeitos que as investigam que o conhecimento acadêmico sobre o tema se materializa e o estádio pode ser entendido como um microcosmo social. Dessa maneira, compreendemos que o estádio é um dos espaços que refletem as mudanças sociais em um determinado espaço de tempo, sendo por elas atingido e, ao mesmo tempo, influenciando-as. No que se refere ao Mineirão, verificamos que, após a reforma, ele se reconstitui enquanto um espaço e equipamento de lazer da população de Belo Horizonte, não justificando ou afastando os temores que haviam da sua transformação em um elefante branco. Entretanto, diferentemente do que havia sido planejado pelos arquitetos e gestores públicos responsáveis pela condução da reforma do Mineirão, a parceria público-privado não conseguiu transformá-lo em um novo Eldorado, na medida em que os espaços pensados para aluguel de lojas, restaurantes e camarotes foram parcialmente alugados bem abaixo da expectativa. Ao invés disso, na esplanada, o que vimos, principalmente, foram as pessoas buscando esse espaço para vivenciar o conteúdo físico esportivo tais como skate, patins, caminhada, brincadeiras infantis. Nesse sentido, a esplanada do Mineirão, utilizada majoritariamente por residentes das regiões Pampulha e Noroeste, passou a ser uma opção de equipamento de lazer em Belo Horizonte, em uma cidade que apresenta uma distribuição desigual desses equipamentos, tendo a sua concentração na região Centro-Sul e a má conservação dos existentes nas outras regiões. Além disso, a infraestrutura, a conservação, a possibilidade de realizar várias práticas, a segurança e a gratuidade são predicados que fazem com que os usuários reconheçam a esplanada e a legitimem. A legitimação do espaço é percebida pela sua ocupação, tanto durante a semana, quanto nos finais de semana. Assim, percebemos que a reforma do Mineirão possibilitou o resgate da patinação em Belo Horizonte, enquanto prática corporal não apenas de crianças, mas de adultos também e a solidificação do skate

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enquanto esporte urbano. Dessa maneira, a esplanada passa a ser um espaço onde o sujeito, no seu cotidiano, se torna autor de sua prática. Entretanto, verificamos que a iniciativa privada não investe na esplanada como uma possibilidade de lazer, cumprindo apenas o contrato, isto é, mantendo as condições de limpeza, infraestrutura, segurança e gratuidade. Por sua vez, também não vimos a iniciativa de uma possível parceria com o poder público, no sentido de alavancar uma política de animação no espaço da esplanada e nem da sua divulgação para a população, ocorrendo essa de maneira espontânea e individualizada e por pequenos grupos de praticantes. Por outro lado, no uso do estádio para o futebol foi onde vimos o maior impacto da parceria público-privado, já que, enquanto um representante da cidade- mercadoria, o estádio passou a operar dentro de uma lógica empresarial, negociando clientes e público. Deixando de ser um equipamento público de uso coletivo e se transformando em um equipamento de interesse público, porém administrado pela iniciativa privada. Nessa reformulação, percebemos que os administradores do estádio e do clube fizeram a opção por um grupo de torcedores que, além de disporem do capital econômico para a aquisição do ingresso, é necessário incorporarem os novos hábitos vinculados no estádio. Isso faz com que novas performatividades de torcedor se destaquem no estádio em tensão com as performatividades praticadas antes da reforma. Os dados demonstraram, porém, que os torcedores têm um sentimento dúbio em relação à reforma do Mineirão, pois, ao mesmo tempo em que reconhecem as melhorias em termos de conforto, limpeza e segurança, alguns reconhecem que ela retirou atributos da mineiridade, expressos nos encontros que formavam as narrativas do/sobre o jogo, propiciados pelos barraqueiros. Em função desse sentimento de falta, vários torcedores resistem e reinventam essa prática, por meio do churrasquinho organizado em pequenos grupos ao redor do estádio, em momentos anteriores às partidas. Assim, verificamos que, se o processo de constituição das formas de uso e apropriação do espaço é dinâmico, podemos dizer que, na esplanada, ele já está quase consolidado. O que pode ocorrer é a incorporação de outras práticas, mas as

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já existentes no momento da pesquisa tendem a permanecer e ganhar mais adeptos. O mesmo não posso dizer sobre o processo de constituição das formas de uso e apropriação do estádio, uma vez que elas ainda estão longe de estarem se solidificando, já que mudanças no plano da legislação influenciam esse processo. Enquanto fazia a análise dos dados e a escrita dessas considerações finais, a venda de cerveja dentro do estádio foi permitida (Lei estadual 21.737/2015)181, o churrasco no entorno do Mineirão182 (e em qualquer espaço público de Belo Horizonte) foi proibido (Decreto 16.203 de 11 jan. 2016). Em menos de uma semana, tal decreto foi revogado183. Ademais, no dia 15 de março de 2016 iniciou-se a Feira de Conveniência do Entorno do Mineirão184em uma tentativa de resgatar o costume das barracas no entorno do estádio, porém de uma maneira reformulada185, não levando em consideração os antigos barraqueiros. Tais fatos corroboram a percepção dos sujeitos de que, cada vez menos, o poder público de Belo Horizonte tem dialogado com a população e com a academia para definir as políticas públicas da cidade. Verificamos, por meio dessas ações, mais uma vez, o alinhamento do poder público com os atores hegemônicos do capital ao mesmo tempo em que nega a própria cidade e a sua possibilidade de lazer, vigorando e reforçando o valor de troca sobre o valor de uso, em busca de um projeto modernizador, enfraquecendo o entendimento da cidade enquanto obra e o lazer enquanto direito social. O lazer, encarnado na cidade, contribui para a sua dimensão pública. Não se trata, porém, do lazer veiculado pela indústria cultural, mas, sim, do lazer que possibilita o encontro entre as pessoas, a convivência entre sujeitos diferentes, a heterogeneidade. Entretanto, essa ação não deveria ser apenas por parte dos

181 http://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/cruzeiro/1,10,1,17/2015/08/09/noticia_interio r,316792/minas-arena-define-cerveja-e-preco-que-sera-praticado-no-mineirao-para-jogo-deste- domingo.shtml. Acesso: 10 ago. 2015. 182 http://www.mg.superesportes.com.br/app/noticiais/futebol/atletico- mg/1,91,17/2016/01/12/noticia_interior,327299/churrasqueiras-assadeiras-e-grelhas-se-tornam- proibidas-em-locais-publicos-de-belo-horizonte.shtml. Acesso: 15 jan. 2016 183 http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1156669. Acesso: 22 março 2016. 184 http://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/cruzeiro/2016/03/15/noticia_cruzeiro,331861 /feira-de-conveniencia-do-entorno-do-mineirao-sera-aberta-nesta-terca-pela-prefeitura-de-bh.shtml. Acesso: 15 março 2016. 185 http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/noticia.do?evento=portlet&pAc=not&idConteudo=206252&pIdPlc= &app=salanoticias. Acesso: 11 ago. 2015.

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sujeitos, deveria haver, também, uma política setorial de lazer, que levasse em consideração a diminuição das barreiras para a sua vivência, a ampliação dos seus conteúdos e o reconhecimento do seu caráter de mobilização e participação cultural. Por fim, creio que esta pesquisa se junta a outras que vêm tratando os estádios enquanto importantes equipamentos para as cidades. Todavia, ainda é incipiente esse tipo de iniciativa no meio acadêmico. Para além de ampliá-las em termos quantitativos, temos que também implica-las em uma relação mais próxima do poder público e da iniciativa privada, no sentido de que a voz dos usuários dos estádios brasileiros seja amplificada e ojalá ouvida por aqueles que cuidam do futebol.

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309

APÊNDICE A FORMULÁRIO DE PESQUISA

Universidade Estadual de Campinas Faculdade de Educação Física As relações estabelecidas pelos frequentadores com o Mineirão pós- reforma

Data: ___/___/2014 Lugar da aplicação: ( ) roxo / ( ) amarelo superior / ( ) amarelo inferior / ( ) vermelho /(... ) laranja superior / ( ) laranja inferior/ ( ) entorno / ( ) esplanada

1. Nome: 2. Idade: 3. Sexo: M ( ) F ( ) 4. Clube pelo qual torce: 5. Estado civil: ( ) Solteiro / ( ) Casado / ( ) Viúvo / ( ) Divorciado / ( ) Outro:

6. Escolarização (o que já completou) ( ) Pós-Graduação / ( ) Graduação / ( ) Ensino médio / ( ) Ensino fundamental II / ( ) Ensino fundamental I/ ( ) Nenhuma 7. Tem ocupação profissional? ( ) Sim / ( ) Não 8. É estudante: ( ) Sim ( ) Não 9. É aposentado?: ( ) Sim ( ) Não 10. Renda mensal (S.M.) 11. Cidade em que mora: ( ) Belo Horizonte / Bairro ______( ) Outra: ______12. Como você veio ao estádio? ( ) Carro particular ( ) Veículo fretado ( ) Ônibus ( ) Moto ( ) Táxi ( ) Carona ( ) A pé 13. Quem acompanha você hoje? ( ) sozinho [(M) (F)] relacionamento afetivo ( ) irmão ( ) irmã [(M) (F)] sobrinho/a [(M) (F)] tio/a ( ) pai ( ) mãe ( ) filho ( )filha ( ) amigos ( ) amigas ( ) outros ______14. Em quais dias da semana você frequenta o Complexo Mineirão: ( ) 2ª feria ( ) 3ª feira ( ) 4ª feira ( ) 5ª feira ( ) 6ª feira ( ) 1ª vez ( ) sábado ( ) domingo ( ) somente em dias de jogo ( ) outra ______15. Em que parte do dia você frequenta o Complexo Mineirão? ( ) manhã ( ) tarde ( ) final de tarde/início da noite ( ) noite 16. Durante a sua estadia no Complexo Mineirão, qual é o seu tempo de permanência? (em média).

310

17. Pós-reforma, com que frequência você costuma fazer as seguintes atividades aqui?

( ) Sou turista - Assistir aos jogos: ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca / ( ) 1ª vez - Trazer pessoas para visitá-lo: ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca - Praticar exercícios físicos: ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca Quais exercícios você pratica? ______- Utilizar lanchonetes: ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca - Trazer filho/a para passear: ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca - Assistir aos shows( ) 1x / ( ) 2x / ( ) 3x / ( ) 4 x ou mais / ( ) Nunca - Visitar o Museu: ( ) 1x / ( ) 2x / ( ) 3x ou mais / ( ) Nunca - Visitar o interior do estádio: ( ) 1x / ( ) 2x / ( ) 3x / ( ) 4x ou mais / ( ) Nunca - Comprar na loja do Cruzeiro: ( ) 1x / ( ) 2x / ( ) 3x / ( ) 4x ou mais / ( ) Nunca - Outras ______( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca 18. Por que você escolheu o Complexo Mineirão para a prática de exercícios físicos e/ou trazer filho/a para passear?

19. Antes da reforma do Mineirão, com que frequência você costumava

- Assistir aos jogos: ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca - Frequentar os barraqueiros ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca - Feira de Veículos: ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca - Trazer pessoas para visitá-lo: ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca - Exercício físico: ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca Qual? ______- Assistir aos shows: ( ) 1x / ( ) 2x / ( ) 3x / ( ) 4x ou mais / ( ) Nunca - Eventos religiosos: ( ) 1x / ( ) 2x / ( ) 3x / ( ) 4x ou mais / ( ) Nunca - Alojar-me: ( ) 1x / ( ) 2x / ( ) 3x / ( ) 4x ou mais / ( ) Nunca - outras ______: ( ) Sempre / ( ) Frequentemente / ( ) Raramente / ( ) Nunca 20. Quais os aspectos positivos do Mineirão após a reforma?

21. Quais os aspectos negativos do Mineirão após a reforma?

22. Do que você mais sente falta no Mineirão? (o que tinha e agora não tem mais).

23. O que você acha de o Complexo Mineirão fechar para as outras atividades em dias de shows e jogos no estádio?

24. Para você, o que representa o Complexo Mineirão?

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APÊNDICE B Apresentação das nove regionais administrativas de Belo Horizonte

Barreiro – polo que integra Belo Horizonte aos municípios de Contagem, Ibirité, Brumadinho e Nova Lima. É composto por 54 bairros e 18 vilas que abrigam 283.544 habitantes. Tem intensa atividade comercial, industrial e de serviços. Além disso, conta com diversas áreas verdes, nascentes e mananciais de água que abastecem parte da RMBH. O Parque Estadual da Serra do Rola Moça localiza-se nessa regional. O IDH186 é 0,787. Centro-Sul – a história dessa região se mistura com a da cidade de Belo Horizonte, já que parte de seus bairros fazem parte do traçado inicial da cidade. Dessa forma, concentra as principais atividades culturais, política e econômica da cidade, além de um vasto patrimônio arquitetônico. Tem elevado padrão de ocupação e grande contraste social, pois, em meio a luxuosos prédios, encontram- se grandes aglomerados urbanos. Entre outros, compõem essa região os bairros Belvedere, Centro, Lourdes, Mangabeiras, Santo Agostinho e Savassi. O IDH é alto, 0,914 e chega a ser comparado a alguns países europeus. Leste – apresenta uma densidade populacional de 8987,1 habitantes/km2. Região que teve sua origem como residência dos operários da comissão construtora da Nova Capital, devido à proximidade com o centro da cidade. Essa região é conhecida pela boemia, gastronomia tradicional e produção cultural, já que dela vieram os músicos que compõem o Clube da Esquina e, na atualidade, tem se destacado pelo carnaval de rua de Belo Horizonte. É formada, entre outros, pelos bairros Floresta, Sagrada Família, Santa Tereza. O IDH é 0,837. Nordeste – tem 69 bairros e vilas, com uma população de 290.353 habitantes. A região teve participação na industrialização do município, com as fábricas têxteis nos anos 1930. Apresenta grande diferença no poder aquisitivo dos seus moradores no que tange à heterogeneidade temporal da região: bairros mais antigos, os mais próximos do centro, os mais novos e os mais afastados do centro.

186 O IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – serve para avaliar o nível de desenvolvimento de países, cidades e regiões. Seu valor é expresso entre 0 (baixo) e 1 (alto). Para o cálculo, são levados em consideração a expectativa vida, o nível de escolaridade e o PIB (Produto Interno Bruto).

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Pertencem a essa regional os bairros Ipiranga, Cidade Nova e Renascença entre outros. O IDH é 0,826. Noroeste – tem uma população de 331.362 habitantes, distribuídos em 54 bairros e 19 favelas. É uma das regiões mais antigas de Belo Horizonte, já que sua ocupação se iniciou com a fundação da capital quando, paralelamente ao planejamento do centro da cidade, foi formada uma região de operários e da boemia. É formada, entre outros, pelos bairros Caiçara, Lagoinha, Padre Eustáquio e Coração Eucarístico. O IDH é 0,835. Norte – faz limite com o município de Santa Luzia. Sendo o único trajeto possível entre Belo Horizonte e Santa Luzia, a regional iniciou-se como um povoado afastado do projeto urbano da nova capital. A partir de 1930, intensificou-se a ocupação, devido ao grande crescimento demográfico da cidade que se expandia. Assim começaram a surgir as vilas operárias, soluções adotadas para a questão habitacional, pois os lotes de tamanhos reduzidos tinham menor preço. Atualmente, situada entre os aeroportos da Pampulha e Confins, tem um grande contraste populacional: de um lado, bairros com população de melhor poder aquisitivo e infraestrutura urbana e, de outro, bairros e vilas com população carente e com condições mínimas de moradia. Assim, essa regional apresenta o maior número de domicílios do tipo conjunto habitacional para baixa renda, promovido pelo poder público, bem como o maior índice de vulnerabilidade social. É composta pelos bairros Guarani, Planalto e Tupi entre outros. O IDH é 0,787. Oeste – Tem uma população de 308.549 habitantes distribuídos por 67 bairros oficiais. Limita-se com o município de Contagem. Os bairros mais tradicionais constam na história da construção de Belo Horizonte. Entretanto, com a expansão urbana, alguns dos seus bairros tornaram-se um prolongamento da região Centro- Sul. Como alguns exemplos dos bairros que compõem a região Oeste, Alto Barroca, Buritis, Gameleira e Prado. O IDH é 0,853. Pampulha – com uma população de 226.100 habitantes distribuídos em 41 bairros e vilas, a regional Pampulha é maior que a Lagoa homônima e o conjunto arquitetônico que deu fama à região. Entretanto, devido ao furor modernista dos envolvidos nas obras, não se levou em consideração o planejamento da região como um todo. Assim, nas décadas seguintes, ocorreram ocupações desordenadas à beira dos córregos da região. Ademais, a expansão urbana foi dotada de um perfil

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sociocultural diversificado, com diferenças sociais, culturais e urbanísticas. Tem como bairros Aeroporto, Bandeirantes, Castelo, Jaraguá, São Luís, Ouro Preto. O IDH é 0,870. Venda Nova – com o início de seu povoamento datado em 1711, o distrito de Venda Nova é mais antigo que a própria Belo Horizonte. Começou a ser povoado por tropeiros que traziam gados e mercadoria da Bahia para abastecer as minas de ouro em Sabará, ainda no ciclo da mineração. Posteriormente, a ocupação das terras da região se deu por pequenas fazendas, sítios e chácaras. O distrito foi anexado a Belo Horizonte em 1948. No final da década de 1950 e no princípio da década de 1960, houve grande loteamento sem nenhuma infraestrutura. Esse fato foi um dos principais fatores da explosão demográfica da região. Venda Nova passou de um lugar calmo, tranquilo, para uma cidade-dormitório, com os benefícios e problemas característicos dos grandes centros urbanos. Atualmente, Venda Nova conta com 262.183 habitantes. Alguns dos bairros pertencentes á região são Céu Azul, Copacabana, Serra Verde. O IDH da região é 0,788.